A música é, bem dizê, a vida da gente
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A música é, bem dizê, a vida da gente
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE MÚSICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA - MESTRADO E DOUTORADO Dissertação de Mestrado "A música é, bem dizê, a vida da gente": um estudo com crianças e adolescentes em situação de rua na Escola Municipal Porto Alegre - EPA por Vânia Beatriz Müller Porto Alegre 2000 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE MÚSICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA - MESTRADO E DOUTORADO Dissertação de Mestrado "A música é, bem dizê, a vida da gente": um estudo com crianças e adolescentes em situação de rua na Escola Municipal Porto Alegre - EPA por VÂNIA BEATRIZ MÜLLER Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Música, área de concentração: Educação Musical. Orientadora: Profa. Dra. Jusamara Souza Dedico este trabalho ao Gabriel, Filipe e Marcelo. Que ele possa, um dia, encorajá-los nas buscas de si mesmos e justificar, assim, minha ausência durante sua construção. AGRADECIMENTOS Agradeço às crianças e adolescentes com quem convivi no trabalho de campo, pelas contribuições a este trabalho, pelas lições que me deram, pela oportunidade de partilhar a riqueza de suas humanidades; À Míriam, pela "iniciação" na vida da rua, pelo que acrescentou em mim sobre ética, sobre fragilidade e dignidade humanas, sobre Educação; À direção da EPA, aos professores e funcionários, pela paciência com minha presença no seu ambiente de trabalho, pelo convívio ímpar, pelo privilégio de conviver com seu projeto políticopedagógico; À Jusamara, minha orientadora, por sua essencial participação no desencadear de meu maravilhamento com a construção de conhecimento e com a escrita; pelo exemplo de resistência na perseguição de nada menos que a verdade na busca de conhecimento; pela educadora exigente e generosa ao ler cada palavra, por ler-me, inclusive, naquelas que não escrevi; À CAPES, pela concessão de bolsa que possibilitou este estudo, aos professores pelas reflexões e o crescimento proporcionados, ao carinho da Ritinha e demais funcionários do PPG-Música; À minha mãe, pelo exemplo de força de transformação da realidade, por seu desejo de mudança; ao meu pai, por seu desejo de metodização. Aos dois, pela ajuda na transcrição de entrevistas, na tradução de textos, pela presença. Ao Germano, pela compreensão deste momento e valorização deste trabalho, por sua generosidade; À Verônica, pelo exemplo de relação amorosa com o conhecimento, pelo incentivo e alegria sempre, pela leitura e sugestões no trabalho escrito; À Vaneila, Luís Henrique e Francisco, pela disponibilidade sempre afetuosa e pela força; À Carla Livi pela ajuda no Inglês; Ao Hugo pelo afeto e atenção dispensados com o Gabriel, Filipe e Marcelo, e pela ajuda no Inglês; À Viviane Beineke, pelos momentos partilhados de reflexão e construção de conhecimento, pelas oportunidades prazerozas de troca de saberes; Ao Fernando Mattos pelo incentivo e ajuda na preparação para a seleção do mestrado; À Prefeitura Municipal de Porto Alegre – Secretaria de Comunicação Social, pela contribuição com fotografias que ilustram este trabalho; À Rede Bandeirantes de Televisão - Porto Alegre, pelas imagens fornecidas; À Carmen, com quem, um dia, por sua humanidade e incontestável esperança, comecei a construir a realidade que hoje se concretiza, também, neste trabalho. v SUMÁRIO RESUMO INTRODUÇÃO IX 1 1 O CENÁRIO: A ESCOLA MUNICIPAL PORTO ALEGRE - EPA 7 1.1 A dinâmica da rua determinando o tempo-espaço da escola 8 1.1.1 Ocupando a secretaria, cuidando da escola 10 1.1.2 Buscando os professores 12 1.2 A prática pedagógica da EPA 14 1.2.1 A organização curricular 16 1.2.2 "Nosso chão é a fala dos alunos": a rede temática 21 1.3 Princípios ético-políticos da prática pedagógica da EPA 24 2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E REFERENCIAL TEÓRICO 31 2.1 Tocando na superfície: buscando vínculos no campo 31 2.1.1 Esperando a música no currículo oficial 33 2.1.2 O acesso ao campo 35 2.1.3 Uma escola (muito) aberta: meu estranhamento 38 2.2 Compondo um método 2.2.1 A coleta de dados 2.2.1.1 Registrar ou viver? 2.2.1.2 As entrevistas 2.2.2 Analisando e interpretando os dados 2.2.2.1 As transcrições 2.2.2.2 Categorização e análise 2.3 Referencial teórico: a concepção de Christopher Small 41 45 49 51 53 53 54 58 2.3.1 Musicking 61 2.3.2 O aspecto "comunitário" da música 63 2.3.3 O aspecto "vivencial" da música 64 3 O ASPECTO "COMUNITÁRIO" DA MÚSICA NA EPA 67 3.1 A música e o vínculo dos alunos com a escola 68 3.2 Da ponte até a escola: a música nas relações sociais 77 3.3 A música como possibilidade de inclusão 99 3.4 A música e a identidade das crianças e adolescentes em situação de rua 4 O ASPECTO "VIVENCIAL" DA MÚSICA NA EPA 105 125 4.1 "A música é, bem dizê, a vida da gente" 125 4.2 "Se eu penso sobre música? Como assim?" 133 4.3 Vivenciando a diversidade 137 4.3.1 O "aqui e agora" por princípio 150 4.3.2 A música compromete 157 4.3.3 As apresentações 164 5 CONCLUSÕES 173 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 183 vii ANEXOS 188 Anexo 1: Planejamento estratégico da EPA 189 Anexo 2: "Jornada Temática da EPA", em comemoração ao 4º aniversário da escola 196 Anexo 3: Atividades realizadas na EPA no primeiro semestre de 1999 199 Anexo 4: Roteiro de entrevista semi-estruturada 201 Anexo 5: Livro de poesias da EPA 205 ABSTRACT 208 viii RESUMO Este trabalho investigou as formas como crianças e adolescentes em situação de rua se relacionam com a música, e os sentidos que atribuem à ela. O cenário escolhido para a pesquisa foi a Escola Municipal Porto Alegre – EPA, localizada em Porto Alegre, RS, e cuja particularidade é proporcionar educação à crianças e adolescentes que vivem nas ruas. A metodologia do Estudo de Caso, através de uma abordagem socioeducacional, possibilitou a interpretação das relações sociais estabelecidas na comunidade escolar, as quais se revelaram contempladas nas formas como os alunos se relacionavam com música e nos sentidos que ela tinha para eles. Os aspectos "comunitário" e "vivencial" da música (SMALL, 1989; 1998) observados naquele cenário enfatizam a mediação do projeto político-pedagógico da EPA nas atividades musicais dos seus alunos. INTRODUÇÃO A Escola Municipal Porto Alegre - EPA - é uma escola da Rede Municipal de Ensino, da cidade de Porto Alegre, RS, destinada a crianças e adolescentes em situação de rua. Definida como "escola aberta", a EPA assume características diferenciadas de outras instituições escolares, por sua organização flexível e uma relação não-hierarquizada com as áreas do conhecimento. Segundo YUS RAMOS (1999), a escola aberta é um tipo de escola "que pretende renaturalizar os processos, ou seja, recuperar ou aprender a partir dos procedimentos ou das estratégias de processos extra-escolares, como a tentativa, o ensaio e o erro, a aprendizagem incidental”. Além disso, é uma escola “que pretende recontextualizar os conteúdos, afastar os olhos dos livros-texto e ir aos lugares onde o conhecimento tem origem e é vivenciado [...]” (YUS RAMOS, 1999, p. 19). A particularidade da EPA despertou em mim entusiasmo e desejo em conhecer uma escola que construísse conhecimento a partir das realidades e dos saberes dos alunos. Mais especificamente, 2 interessava-me a possibilidade de discutir a música integrando a construção e a convivência com outros saberes que faziam sentido para crianças e adolescentes em situação de rua. Tomando a EPA como cenário de investigação, inicialmente procurei responder às seguintes questões: Como a música está inserida na vida desta escola? Como seus alunos se relacionam com a música? Em que medida o projeto político-pedagógico, refletido no tempo-espaço desta escola, determina a relação dos seus alunos com a música? Essas questões tornam-se relevantes para a área de Educação Musical, uma vez que elas contribuem para revelar o imbricamento entre uma prática educativa desafiadora e a música. A carência de uma literatura na área de Educação Musical que contemple as questões recentes trazidas pela área da Educação justificou, também, a definição da EPA como cenário de pesquisa. Trabalhos recentes em Educação Musical têm abordado a questão de ensino e aprendizagem de música do ponto de vista sociocultural (ver GOMES, 1998; STEIN 1998; PRASS, 1998; ARROYO, 1999). Os resultados dessas pesquisas têm permitido, segundo PRASS (1998), "visualizar a complexidade da música na sua relação com a vida social, [o que] parece ser um meio eficiente para a relativização de nossos conteúdos curriculares, da ideologia por 3 detrás de nossas escolhas de repertório e metodologia, abrindo novas perspectivas para a educação musical" (p. 308). Embora as mais variadas áreas do conhecimento venham demonstrando interesse crescente pelo tema "situação de rua", a área de Educação Musical tem se dedicado pouco às investigações a este tema. Entre as contribuições cito o trabalho de BARCELLOS (1997), que relata uma experiência em criação musical com “Meninos de rua”. A motivação em adentrar essa temática veio da preocupação em apreender, compreender e interpretar a cultura desse grupo social, embora estivesse consciente da responsabilidade que a tarefa acarretava. Isso porque imaginava que quando esses alunos chegam à escola já trazem concepções de música com seus códigos de grupo, seus significados, vivências musicais anteriores à escola e até suas identidades, de grupo e individuais, formadas com influência de preferências musicais (PAIS, 1993). Após alguns meses de convívio, de participação em atividades musicais com os alunos da EPA e, principalmente, após a constatação de que, embora a música não constasse na grade curricular, a vida musical era intensa naquele espaço escolar, a questão central deste trabalho veio constituir-se em revelar os sentidos que os alunos da EPA atribuem à música, e desvelar as formas como se relacionam com ela. 4 Optei por trabalhar com o Estudo de Caso, procurando estar com os alunos da EPA o maior tempo possível, dentro e fora do espaço escolar e em situações diversas: ora tocando nos instrumentos de percussão com o grupo, ora acompanhando-os em apresentações musicais em outras instituições, ora visitando-os em seus mocós1. A utilização de técnicas na coleta de dados, como a entrevista e a observação participante, resultaram das decisões metodológicas que buscavam uma intensa imersão no cenário, dadas as suas características de diversidade e imprevisibilidade. As entrevistas utilizadas nesta dissertação foram transcritas literalmente obedecendo à sintaxe da linguagem falada. O critério de transcrever como se fala tomo-o a mim também. Segundo RECTOR (1994, p. 31), "a linguagem é um tipo de comportamento social e, como tal, é de livre escolha do ser humano". Ela é, portanto, gestada no seio do grupo social, de acordo com suas intencionalidades e desejos, que vêm explícita ou implicitamente nas nuances sonoras, nos signos, na incisão, no silêncio, na impetuosidade, na espontaneidade e nas deambulações de sua fala. Foram escolhidos pseudônimos a fim de preservar a identidade 1 Lugar onde habitam as crianças e adolescentes em situação de rua. A maioria dos mocós dos alunos da EPA se localizavam embaixo de pontes, sendo que dois eram em casarões abandonados. 5 dos alunos, professores e funcionários que participaram deste estudo. A citação de trechos das entrevistas e do caderno de campo seguem o padrão de citação literal de bibliografia, trazendo no início das falas a inicial dos nomes de quem participa dos diálogos, sendo que a minha fala sempre está indicada por "V". As citações da literatura portuguesa foram mantidas no português original, e as da literatura inglesa e espanhola foram traduzidas por mim. A dissertação está organizada em cinco capítulos: no primeiro, descrevo o cenário de pesquisa, a EPA, que tem seu tempo-espaço configurado pela dinâmica da rua trazida para a escola pelos alunos que a freqüentam e o seu projeto político-pedagógico. No segundo capítulo, explico os procedimentos metodológicos adotados na investigação, justificando os contornos que o Estudo de Caso adquiriu neste cenário. Ainda neste capítulo, exponho as concepções de Christopher Small argumentando sobre as razões que me levaram a optar por esse autor para a interpretação da realidade observada. Sua crítica à visão científica e à racionalidade do mundo ocidental fundamenta seus argumentos no que concerne à relação que temos com a música (SMALL, 1989). Na sua opinião, essa é a razão originária da qual decorrem outros fatores e valores que nos afastam dos aspectos "comunitário" e "vivencial" da música, conceitos sobre os quais interpretei e organizei o material empírico obtido. 6 No terceiro capítulo, procuro revelar o aspecto "comunitário" que a música adquiriu nesse cenário, a partir do vínculo das crianças e adolescentes em situação de rua com a escola, dos vínculos entre seus pares de amigos e, ainda, das relações sociais que se estabeleceram na comunidade escolar. Além disso, discuto a música como possibilidade de inclusão para os alunos da EPA e a participação da música na formação de suas identidades. No quarto capítulo, procuro desvendar os sentidos que os alunos da EPA atribuíam à música, e as formas como se relacionavam com ela a partir do aspecto "vivencial" da música observado entre as crianças e adolescentes em situação de rua que freqüentavam a escola. O aspecto vivencial da música será abordado sob a perspectiva de seu interesse pelas músicas que ouviam, tocavam, cantavam e dançavam, bem como da forma como a música se inseria na relação dos alunos com os demais saberes que vivenciavam na escola. O quinto e último capítulo apresenta de uma forma concisa os resultados do trabalho, apontando possíveis contribuições para a área de Educação Musical. 1 O CENÁRIO: A ESCOLA MUNICIPAL PORTO ALEGRE - EPA Em cumprimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente, a Prefeitura Municipal de Porto Alegre criou, em 1995, a Escola Municipal Porto Alegre - EPA -, visando "proporcionar o direito à educação das crianças e adolescentes que, socialmente excluídos da escolarização formal, vivem nas ruas do centro de Porto Alegre" (FLEISCHMANN, 1999, p.16). A faixa etária dos alunos que freqüentam a escola abrange dos 10 aos 18 anos de idade, muito embora, na prática, os limites de idade sejam ultrapassados, principalmente a idade máxima. No ano de 1999, havia 337 alunos matriculados, comparecendo uma média de 50 alunos diariamente, distribuídos entre o turno da manhã e o turno da tarde. É essa "média" que trazia para dentro da escola a vida, o movimento, a dinâmica da rua. 8 1.1 A dinâmica da rua determinando o tempo-espaço da escola A chegada das crianças e adolescentes em situação de rua que estudavam na EPA mostrava como, geralmente, o tempo-espaço da escola era ocupado: com alegria às vezes alardeadora, com o corpo expansivo de quem estava acostumado a ocupar espaços disponíveis. Alguns já entravam dançando e/ou cantando, outros com a irreverência adolescente e uma afetividade que ora se fazia visível no seu avesso, na sua carência, ora se revelava na sua inteireza e generosidade. Um grande portão de barras cilíndricas de ferro, azul marinho, sempre chaveado com cadeado, fazia a divisa entre a escola e a rua, exceto às quintas-feiras à tarde, quando não havia aula para os alunos. Ao seu lado localizava-se a guarita onde trabalhavam dois guardas municipais, que estavam sempre vestindo o uniforme - calça e camisa - azul escuro. Uma de suas funções era revistar os meninos, sempre no horário de entrada da escola, enquanto duas professoras revistavam as meninas. Essa medida era tomada para evitar que os alunos entrassem com drogas ou com algum objeto que podia ameaçar a segurança no interior da escola. 9 No ato de revista, embora estivessem de braços para cima, era visível o vínculo dos alunos com os guardas, com quem mantinham uma relação amigável. Álvaro, um garoto de 16 anos, contou-me que tinha com um dos guardas, Emílio, "uma amizade legal, é tri gente fina. Às vezes tomamo uma cerveja e a gente conversa". Enquanto os guardas cumpriam sua função de examiná-los, alguns alunos seguiam cantando da mesma forma como cantavam ao chegar em frente a escola. Quando os alunos chegavam, o refeitório era o primeiro espaço ocupado, pois, tanto no turno da manhã quanto no da tarde, as refeições eram realizadas antes das atividades pedagógicas na escola. Antes de deixar a escola no seu respectivo turno, os alunos faziam outra refeição. Durante cada uma das refeições, uma dupla de professores permanecia com os alunos no refeitório, uma sala ampla, com duas mesas de aproximadamente 4 metros de comprimento por 80 centímetros de largura, com banquetas para os alunos sentarem. Numa das paredes ficava um armário com as escovas de dentes dos alunos, marcadas com seus nomes, e eventuais cartazes feitos em aula por eles, estimulando a escovação de dentes, assim como outros alusivos à organização das filas e à ordem no refeitório. Cartazes permanentes alertavam para a prevenção do vírus HIV e o uso de preservativo. 10 Este espaço onde faziam as refeições era separado por uma parede com duas grandes aberturas onde os alunos pegavam os pratos servidos e os deixavam após a refeição. Ali trabalhavam as cozinheiras e um cozinheiro, com os quais alguns alunos conversavam regularmente e, entre os mais próximos, partilhavam cigarros. 1.1.1 Ocupando a secretaria, cuidando da escola Depois de comer, de dar uma volta no pátio, ou escovar os dentes, era hora de ir para a sala de aula. Antes, porém, olhavam para dentro da secretaria, que se localizava na parte central do prédio, ao lado do corredor que dá acesso às salas de aula, sendo possível ver quem estava lá dentro. Por vezes os alunos entravam para conversar com uma professora ou com a secretária, que também conhecia a história da maioria dos alunos e tinha vínculos com muitos deles. Se já havia colegas dentro da secretaria, aí sim, entravam para ficar junto com todos. Era comum encontrar cerca de três ou quatro alunos dentro da secretaria. Sentiam-se bem tendo acesso àquele lugar que servia para administrar, organizar e decidir a vida da escola. Muitas vezes ultrapassavam o balcão de atendimento e sentavam-se nas cadeiras 11 da mesa de trabalho da secretaria, embora houvesse um pedido na porta para que não permanecessem ali. Os que estavam em busca de contato humano compartilhavam o espaço da secretaria com aquele colega que ia pedir algum produto para tomar banho, ou com quem vinha pegar seu remédio deixado guardado no dia anterior, ou ainda pedir uma agulha para o colega tirar seu bicho-de-pé. Tudo isso era permeado com as conversas entre os professores. Na marcadas secretaria também audiências com eram o providenciados juiz, documentos, consultas médicas, encaminhamentos para casas de abrigo. Era onde se pedia o rádio, CDs , a chave da sala para pegar os instrumentos de percussão, reclamar de algum colega ou de alguma dor, o que resultava, às vezes, em um intenso congestionamento sonoro e físico. Além disso, o balcão da secretaria servia, comumente, de local de reivindicações dos alunos, podendo gerar longas discussões, uma vez que era habitual os professores tentarem mostrar ao aluno a realidade circunstancial que o envolvia, propiciando-lhe o exercício de seu direito ao entendimento do que se passa consigo e no seu ambiente. O transitar dos alunos pelo espaço escolar fazia parte da intenção político-pedagógica da escola, qual seja, contribuir na conscientização de seus educandos em relação à necessidade de que reconheçam e reivindiquem seus direitos (FLEISCHMANN, 1999). 12 Os alunos circulavam pelo pátio, pelos corredores e salas da escola, com apropriação dos direitos que sentiam ter sobre seus espaços. Assim, por exemplo, procuravam preservar o aspecto físico da escola e reclamavam quando trabalhos do curso que funciona à noite no prédio da EPA2 ocupavam espaço a mais em suas paredes do que o estabelecido. 1.1.2 Buscando os professores A maneira como os alunos ocupavam os espaços da EPA era diferenciada do que ocorre nos espaços escolares que eu conhecia. As crianças e adolescentes que freqüentavam a EPA não consideravam as portas fechadas como obstáculo, e não havia espaços que hierarquicamente impediam-nas de utilizá-los. Embora houvesse um aviso na porta da sala dos professores solicitando privacidade e que batessem antes de entrar, era comum ver os alunos entrarem nesta sala, por exemplo, para mostrar trabalhos produzidos na aula, nos quais, em muitos casos, explicitavam a afetividade por uma determinada professora. 2 O prédio da EPA era ocupado à noite pelo CEMET (Centro Municipal de Educação para Trabalhadores), vinculado à Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre. 13 Presenciei inúmeros momentos de alunos sentados à mesa com as professoras, mostrando e explicando com satisfação o trabalho feito em aula, alguns tentando ler o que eles próprios haviam escrito. Era um local na escola considerado "especial" pelos alunos, pois estavam ali suas relações mais próximas - o professor de cada um -, e também um lugar "de confiança", onde deixavam sua sacola de plástico com alguma peça de roupa, ou carteira, remédio, cigarro, fita cassete, até o momento de sair da escola. O tempo-espaço da EPA era ocupado pelas crianças e adolescentes que a freqüentavam, de acordo com sua necessidade de expressão. Foram também inúmeras as entradas de alguns alunos nas reuniões pedagógicas que aconteciam às quintas-feiras à tarde, embora eles soubessem que não havia aula naquele dia à tarde. Mas sabiam que os professores estariam na escola. Em uma reunião, por exemplo, na janela da sala onde estávamos reunidos, surgiu uma criança, de repente, e começou a chamar. Alguns professores dirigiram o olhar para ela, bem como a professora que estava falando naquele momento, mas continuou a falar, como quem já não estranha isso. Era Irineu, 14 anos. O garoto saiu da janela. Passados uns cinco minutos ele entrou na sala onde estávamos e, sorrindo, foi fazendo a volta, vagarosa e silenciosamente, por trás do círculo que formávamos, passando a mão na cabeça da professora Greta, depois, da professora Cimara. Foi saindo pelo outro lado do círculo, tendo os 14 olhares todos para si, passando a mão, ainda, nos cabelos da professora Gláucia, que estava próxima à porta. Quando viu que teria que sair, voltou, fugindo da professora Élvia, que foi atrás dele tentando convencê-lo a sair da sala. Convidou-o a se retirar dizendo "aqui o pessoal tá trabalhando, estão de reunião", ao que ele resistiu um pouco, mas logo saiu. 1.2 A prática pedagógica da EPA Através de sua práxis diária3, a EPA intenciona seguir o projeto da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, que determina como fundamento pedagógico à Rede Municipal de Ensino os princípios da Escola Cidadã4, cujos objetivos são: (...) redimensionar a lógica excludente da organização do tempo e do espaço escolares capaz de flexibilizar-se em função de uma lógica de inclusão, fundada no compromisso coletivo com a aprendizagem efetiva de todos os alunos. Partindo do pressuposto de que todo/a aluno/a não só tem direito mas é capaz de aprender e Consta no Anexo 1 o "Planejamento Estratégico" de atuação pedagógica quando em processo de construção e averigüação da realidade em que se inseria a escola, no mês de julho de 1999. Está organizado em "Matriz do Ator", "Matriz do Problema", "Matriz dos Objetivos" e "Matriz da Conjuntura". 3 4 Para aprofundamento desse tema ver: FREITAS, Ana L. (1999). Projeto Constituinte Escolar: AVivência da "Reinvenção da Escola" na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre. In: SILVA, L. H. (Org.) Escola Cidadã: Teoria e Prática. Porto Alegre: Vozes, p. 31-45. 15 traz consigo saberes para a situação de aprendizagem, fez-se necessário pensar uma organização curricular diferenciada (FREITAS, 1999, p.40). A EPA pretende ter seu tempo e espaço redimensionados, uma vez que seus alunos são crianças e adolescentes em situação de rua, necessitando acolher em cada uma de suas turmas de alunos um universo diversificado em idades, níveis de alfabetização e de desenvolvimento cognitivo. Por isso, cada turma tem no máximo quinze alunos e é atendida por dois educadores com a preocupação de suprir as demandas individuais dos alunos, os quais são distribuídos nas turmas de acordo com o nível de alfabetização. Faz parte também da flexibilização do espaço escolar com a realidade de seus educandos a freqüência livre. Independente do tempo de ausência do aluno, seu retorno é garantido e sempre viável, uma vez que a escola procura não desenvolver conteúdos estanques ou hierarquizados. Apesar dessa flexibilidade, há um horário estabelecido para a entrada e saída na escola diariamente. 16 1.2.1 A organização curricular Na EPA o currículo se organiza em três Totalidades do Conhecimento, denominadas T1, T2 e T3. O conceito de Totalidades do Conhecimento5 é uma organização curricular que pretende romper (...) com as fragmentações do currículo tradicional que aparecem na escola seriada, na forma de hierarquização e desarticulação de conteúdos e disciplinas, [...] onde o conhecimento é dado a priori, transmitido de um indivíduo ao outro como verdade definitiva, absoluta e anistórica (BERTONCELLO, 1999, p. 129). Além dos conteúdos que são trabalhados pelos professores responsáveis pela turma, como Língua Portuguesa, Matemática, Ciências e Estudos Sociais, o currículo inclui as disciplinas de Informática, Educação Ambiental, Roda de Poesia, Capoeira, Educação Física, Argila e Oficina de Papel Reciclado, as quais são ministradas por professores especializados. 5 Para aprofundamento desse tema ver: BORGES, Liana. (1997). Em Busca da Unidade Perdida - Totalidades do Conhecimento: Um Currículo em Educação Popular. In: SILVA, Luiz H. (Org. et al.). Novos Mapas Culturais Novas Perspectivas Educacionais. Porto Alegre: Sulina, p. 279-295. 17 De caráter extracurricular, existia um grupo de rap6, o Sabedoria de Rua, integrado por 6 meninos e 3 meninas. Esse grupo preparava coreografias coletivas e individuais para apresentações dentro e fora do espaço escolar. Embora tenha havido tentativas da direção da escola em trazer um coordenador para o grupo, os alunos ficaram, no ano de 1999, sem orientação de um professor. No início do ano de 1999, havia a intenção de promover aos alunos aulas de construção e restauração de instrumentos de percussão e aulas de rap. E ainda, fazia parte dos planos da direção a instalação de uma rádio comunitária7, também com o intuito de envolver os alunos diretamente na produção e execução dos programas que fossem ao ar. O currículo da EPA não só inclui, mas é concebido a partir da realidade cotidiana dos educandos, contemplando temas como À parte das discussões do ponto de vista musicológico sobre se "rap é música ou não?", considero-o nesse trabalho como música, em primeiro lugar porque é considerado como tal pelas crianças e adolescentes que participaram da pesquisa. Em segundo lugar, a literatura que investiga o tema (CONTADOR e FERREIRA, 1997; SHUSTERMAN, 1998; ANDRADE, 1999a, 1999b; TELLA, 1999) para citar alguns, o nomina "a música rap" justificando nas razões sócio-históricoculturais sua estética. Nas palavras de SHUSTERMAN (1998) "o rap é uma arte popular pós-moderna que desafia algumas das convenções estéticas mais incutidas, que pertencem não somente ao modernismo como estilo artístico e como ideologia, mas à doutrina filosófica da modernidade e à diferenciação aguda entre as esferas culturais. [...] Ele afronta assim qualquer distinção rígida entre artes maiores e arte popular fundada em critérios puramente estéticos, assim como coloca em questão a própria noção de tais critérios" (p. 144). 6 7 Fazia parte do projeto político-pedagógico da EPA atuar, também, através de uma rádio comunitária. Durante o ano de 1999 presenciei três contatos com rádios comunitárias já existentes, junto às quais a direção da escola buscava subsídios no empreendimento dessa questão. 18 violência, AIDS, raça, sexualidade, identidade e drogas. A partir deste currículo, a escola tem por objetivos: a) Assegurar a crianças e adolescentes, socialmente excluídos, o acesso historicamente pela ao conhecimento humanidade elaborado garantindo a distribuição e a reconstrução desse conhecimento; b) Resgatar a cultura dos alunos, num constante processo de reflexão e reelaboração dos saberes; c) Possibilitar a crianças e adolescentes socialmente excluídos tornarem-se contribuindo na sujeitos construção (FLEISCHMANN, 1999, p. 117). de de sua projetos história, de vida Foto: Aline Gonçalves 19 Foto: Vânia Müller Alunos da EPA em aula de Educação Ambiental, disciplina que compõe o currículo da escola. Alunos com uma professora, em aula da disciplina de Argila. Foto: Aline Gonçalves 20 Aluno da Epa expondo papel ainda úmido, recém confeccionado na Oficina de Papel Reciclado. 21 1.2.2 "Nosso chão é a fala dos alunos": a rede temática Como mencionado anteriormente, os professores da EPA elaboram o currículo da escola a partir da realidade de seus alunos. A cada ano, realizam uma investigação junto a seus educandos para verificar suas inquietações e necessidades mais prementes. A partir das falas dos alunos são categorizadas palavras-chaves em conceitos que resultarão no tema gerador das atividades curriculares. É formada, então, uma rede temática que é abordada com os educandos através das diversas áreas do conhecimento, priorizando as atividades interdisciplinares, "tentando estabelecer relações com o contexto sócio-histórico-econômico-cultural no qual a escola está inserida, com a intenção de que estes possam fazer uma nova, ou senão mais elaborada leitura da realidade" (MÜLLER, 1999, p.7). A freqüência dessa investigação para a elaboração de redes pode ser realizada de acordo com a demanda dos alunos e suas manifestações. A criação de uma rede temática pode exigir vários encontros que se constituem em momentos de construção de conhecimento entre os professores sobre seus alunos. Participei da construção da última rede temática do ano letivo de 1999, cujo tema gerador foi "identidade". Esta rede temática emergiu do chão, no pátio central da EPA, em cima das mesmas lajes 22 onde os alunos sempre dançavam, onde ouviam rádio. As falas recolhidas entre os alunos escritas em papéis reciclados, quadrados, distribuídos pelo chão, sobre um papel pardo com aproximadamente três metros de comprimento, eram conduzidas pelas mãos de seus educadores sentados ao redor, que tentavam agrupá-las segundo a coerência e compreensão do mundo "do lado de cá". Empenhavam-se em traduzir e interpretar as falas de seus educandos, para que os tempos e espaços partilhados na escola a partir daquele momento fossem ocupados por um subtexto comum a todos os educadores, para orientar suas intervenções pedagógicas. Uma intervenção que viesse ao encontro das expectativas contidas nos anseios das falas de seus alunos. O tema gerador "identidade", definido na rede temática, resultou de discussões a partir das falas dos alunos, que traziam questões referentes à "sexualidade", "violência sexual" e "poder". Este, segundo os professores, é claramente exercido pelo líder de cada grupo principalmente sobre os menores, os quais se submetem a prostituir-se e roubar a fim de adquirir o dinheiro exigido pelo líder para terem o direito de pertencer àquele grupo. E as crianças o fazem como única alternativa para adquirirem uma "certa" segurança. A questão resultou em observar as implicâncias da exploração, da transgressão e da submissão na constituição da identidade das crianças e adolescentes em situação de rua que freqüentavam a EPA. 23 Como foram necessários vários encontros, a professora Maira lembrava-os: "Não podemos perder de vista nosso tema gerador. Nosso chão é a fala dos alunos". Vale ressaltar a proximidade que era gerada entre alunos e professores, uma vez que estes estavam atentos às questões com as quais as crianças e os adolescentes se ocupavam no seu cotidiano, sendo também explicitamente abordados temas de sua intimidade. Efetivamente, acompanhavam tratamentos de soropositivos, conversavam sobre práticas sexuais ou sobre situações de roubo e de exploração. Os professores conheciam as relações familiares que dificultavam o desenvolvimento de determinado aluno, assim como também as que favoreciam, sabiam quem usava drogas e que tipo de droga estavam usando, que influência estavam tendo determinadas amizades, sabiam quem eram os amigos preferidos dos alunos. As crianças e adolescentes tinham aproximações diferenciadas com determinados professores. Assim, embora a maioria das questões causasse constrangimentos, os alunos conversavam a respeito ou relatavam fatos para o adulto com o qual se sentiam mais vinculados. Os professores sabiam quem estava indo em casa, partilhavam da vida afetiva dos alunos, conversavam sobre a realização e identificação dos mesmos com determinada área do conhecimento e sobre seus projetos de vida, a partir de um contato espontâneo que 24 não se limitava à sala de aula. Ou seja, existiam vínculos criados nas relações pessoais entre as crianças e adolescentes e vários adultos deste espaço escolar, os quais transcendiam o simples recolher de falas para a construção da rede temática. 1.3 Princípios ético-políticos da prática pedagógica da EPA Na relação com o conhecimento, o universo escolar da EPA abrangia atividades educativas de naturezas distintas que integravam a vivência dos alunos como um todo. A escola proporcionava a vivência não-hierarquizada de uma diversidade de saberes, sendo visível o não-julgamento valorativo dos alunos em relação às suas preferências pelas diversas áreas do conhecimento e, também, às formas como os alunos individualmente se relacionavam com elas. Na relação pessoal com os alunos, um cuidado dos professores era chamá-los por seus nomes próprios e não por seus apelidos, sendo que em alguns casos os mesmos tinham uma conotação pejorativa, podendo potencializar a discriminação. Segundo GRACIANI (1997), todas as crianças e adolescentes em situação de rua têm um apelido "definido a partir de características físicas pessoais ou caracteres próprios de identidade que facilitam o 25 processo de interação no grupo e servem de dissimulador em relação aos grupos de embate, principalmente a polícia" (p. 249-250). A valorização do indivíduo a partir de suas particularidades remete a um princípio ético-político de respeito incondicional às crianças e adolescentes com os quais a escola coloca em prática seu projeto educativo. Como exemplo, cito a preocupação de uma professora com a "leitura" que os alunos fariam de uma atividade envolvendo-os na escola: os professores da EPA e eu estávamos reunidos para definir a data da apresentação de um conjunto instrumental de crianças e adolescentes de outra escola, que se realizaria minha na EPA, cuja organização estava sob responsabilidade. Como haveria uma solenidade de entrega das pastas de papel reciclado, produzidas por alunos da EPA na Usina do Papel no Gasômetro8, pensou-se em trazer o conjunto instrumental como "um presente" para eles, com o que as professoras Dóris, Ana Amélia, Mila e Maira concordaram. Porém a professora Rejane, refletindo, argumentou: R- Eu acho que este dia não é apropriado para a apresentação de outro grupo aqui. Como vai estar o prefeito e outras autoridades, acho que a leitura que farão é a de que o grupo de fora foi trazido por causa das 8 A Oficina de Papel Reciclado da Usina do Gasômetro era freqüentada por quatro alunos da EPA, no ano de 1999, mediante bolsa-auxílio concedida pela Secretaria Municipal de Educação. 26 autoridades, e não por causa deles. Acho que eles é que deveriam se apresentar nesse dia. Talvez devêssemos trazer o outro grupo em outra ocasião, em que fique claro que é para eles aproveitarem. (Caderno de Campo, 24.6.99) No tempo-espaço cotidiano da EPA, eram essas estruturações e decisões que aproximavam os alunos dos sentidos que os professores pretendiam revelar em suas práticas, mesmo que algumas vezes estes não fossem explicitamente do conhecimento dos alunos. A procura de um tratamento isonômico e individualizado determinava a confiança que os alunos depositavam no compromisso ético-político que a escola firmava com seu desenvolvimento incondicional, uma vez que, diariamente, seja em que condições o aluno entrasse na escola, ela dava prosseguimento ao seu projeto. Isonômico porque estimulava o esforço dos alunos dentro de seus limites individuais sem privilégios entre eles, pois acreditava que todos, a seu tempo e a seu modo, podiam desenvolver-se; individualizado, porque se formavam e estavam inseridos em uma esfera cultural que CRAIDY (1998) chama de "cultura da rua", onde ocorre uma despersonalização dos sujeitos. Em relação ao compromisso da escola no contato individualizado com o aluno, o argumento de GIMENO SACRISTÁN (1999) é que "dentro de cada esfera, seja qual for a sua amplitude, 27 haverá sempre subesferas, até chegar à radical individualidade de cada sujeito. E é o sujeito o que importa" (p. 181). Nesse contato estreito com os professores, onde viam o favorecimento de seu desenvolvimento e valorização individual, ao mesmo tempo os alunos passavam a conhecê-los através dos limites e dos "combinados" que o professor trazia para a relação com o aluno. Assim, também, os atritos ocorriam vez que outra, pois, tanto quanto os limites eram trazidos pela escola, os alunos podiam discuti-los e refletir com os professores. As regras combinadas na EPA davam segurança aos alunos e levava-os a cobrar dos colegas que as mesmas fossem cumpridas. Gostavam de organização no ambiente, exigiam que o que foi combinado fosse realizado, sentiam-se bem com rotinas. Um exemplo disso ocorreu por ocasião do aniversário da EPA9, no mês de agosto, quando foram programadas atividades culturais e jogos no lugar das aulas. A cada dia daquela semana compareciam menos alunos na escola. O comentário geral entre eles era "a gente não vem porque não tem aula. Tem que tê aula pra gente vim!". O exercício da reflexão e do pensamento crítico que marcava a convivência entre os professores estendia-se também às atividades educativo-pedagógicas e à relação com os alunos. Dessa forma, as relações sociais desenvolvidas no espaço socioescolar eram gestadas 28 no princípio ético-político dos professores, que se estendiam na relação com os alunos para além da sala de aula, na diversidade do tempo-espaço escolar10. Por essa razão, alguns professores procuravam envolver-se nos jogos de futebol, nas rodas de capoeira, nos rachas de rap11, acompanhando os alunos nas apresentações fora da escola, dançando e tocando com eles em diversos momentos na escola, valorizando os alunos com sua presença. No esforço de que os alunos se sentissem valorizados, os professores expunham seus trabalhos feitos em aula, nas festas da EPA, que muitas vezes eram abertas ao público, inclusive com autoridades políticas do município, o que os deixava envaidecidos. Nessas festas, a intenção pedagógica da escola se fazia presente, pois, algumas vezes, em meio à música, dança e lanches, havia jogos que envolviam a leitura e a escrita. A preocupação constante da escola era que as crianças e adolescentes em situação de rua que freqüentavam a EPA avançassem na sua relação com o conhecimento, ao mesmo tempo 9 Consta no Anexo 2 a programação da semana do 4º aniversário da EPA. A diversidade de atividades nas quais os professores se envolviam com os alunos pode ser observada no Anexo 3 "Atividades realizadas na EPA no primeiro semestre de 1999". 10 11 A professora mais próxima do Sabedoria de Rua, Dóris, e os alunos da EPA nominavam de "racha de rap" o encontro de mais de um grupo de rap na mesma roda. 29 que lutava contra o estigma da exclusão. Para tanto, propiciava aos alunos contatos com pessoas "do lado de cá", na tentativa de que eles desmistificassem "as significações imaginárias construídas e legitimadas pela sociedade instituída" (ANTUNES, 1997, p.87). Presenciei uma ocasião em que a professora Dóris atendeu o telefone na secretaria, e como Délcio, 20 anos, estava ali no momento, num ímpeto ela disse: Tá, então fala com um deles que ele já tá aqui, e vocês acertam tudo. [Dóris piscou o olho para mim, sem o garoto ver, sabendo que seria um desafio para Délcio "se ligar", se comunicar e marcar um compromisso. (Caderno de Campo, 12.2.99) Ela alcançou o telefone para o garoto que ficou muito surpreso, pois não sabia do que se tratava. Mesmo assim, um pouco constrangido, pegou o telefone e logo foi sorrindo muito, sentindo-se orgulhoso por estar tratando, em nome também de seus colegas, de um convite para se apresentarem tocando e dançando no baile de carnaval, na Febem feminina. Enquanto falava, por duas vezes Délcio fez menção de passar o telefone para Dóris, sentindo dificuldade de expressar-se, mas ela insistiu que ele "resolvesse". Quando desligou o telefone, a professora pediu que apresentação que ele havia marcado. contasse os detalhes da 30 Os princípios ético-políticos que orientam a prática educativopedagógica da EPA parecem ir ao encontro do argumento de ASSMANN (1998): "(...) o ético-político se enraíza em campos do sentido, que emergem sob a forma de experiências de aprendizagem, que por sua vez emergem de processos auto-organizativos da vida real, onde viver e aprender se identificam num único processo" (p. 108). As relações sociais que se estabeleceram na EPA, descritas neste capítulo, estarão representadas na interpretação dos sentidos que a música tem para as crianças e adolescentes em situação de rua que freqüentaram a EPA, e na interpretação das formas como se relacionavam com ela, como será visto no decorrer do trabalho. 2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E REFERENCIAL TEÓRICO Neste capítulo descrevo o acesso ao campo salientando particularidades que daí resultaram, bem como as opções e decisões metodológicas realizadas na coleta e análise dos dados. Ainda neste capítulo, exponho as concepções de Christopher Small argumentando sobre as razões que me levaram a optar por esse autor para a interpretação do material empírico obtido durante o trabalho de campo. 2.1 Tocando na superfície: buscando vínculos no campo O primeiro contato direto com os alunos da EPA que participaram da pesquisa ocorreu no pátio da escola, onde alguns garotos tocavam instrumentos de percussão - repenique, surdo, caixa 32 e pandeiro. Quando um pandeiro "sobrou", aproveitei-o para me integrar ao grupo. Embora o fato de ser percussionista tenha facilitado o acesso junto às crianças e adolescentes que freqüentavam aquele espaço escolar, logo fui constatando que os vínculos teriam que ser construídos e que avançariam na medida e no tempo determinados por eles. Durante os ensaios subseqüentes percebia que, embora não houvesse nenhuma resistência aparente, eles pareciam não ter ilusão com a minha pessoa e com qualquer expectativa que eu pudesse criar. Não entendia todas as palavras que usavam para se comunicarem entre si e não havia um gesto que favorecesse minha inclusão na roda de percussão. Sentia um limite intrínseco em suas falas, no corpo e nos olhares: tocar junto era o máximo que eu podia. Lembrava-me das palavras de GRACIANI (1997): A criança de e na rua tem como principal agente socializador e imensamente preponderante a sociedade como o "outro autoritário", que, com sua discriminação contra ela e com seus mecanismos pauperizantes, entra brutalmente em sua psique e dinamiza os impulsos da criança, que vai construindo, a golpes, o "outro generalizado", que dirigirá suas atitudes e condutas contra as expectativas da mesma sociedade (GRACIANI, 1997, p. 113-114). Fui sendo incluída no grupo, gradativamente, com a minha presença sistemática em seus ensaios e apresentações musicais, 33 dentro e fora do espaço escolar. Comentários e brincadeiras que habitualmente ocorriam entre os alunos, passaram a ser dirigidos também a mim. Minha aproximação com as crianças e adolescentes em situação de rua que freqüentavam a EPA foi se estabelecendo pelo fato de não só tocar, mas de estar com o grupo. Aos poucos, passei a ser solicitada pelos garotos para curativos, para ajudar a resolver um cálculo matemático, jogar bola, dançar, ou, simplesmente sentar ao seu lado em silêncio, no refeitório, enquanto comiam. 2.1.1 Esperando a música no currículo oficial Ao longo do primeiro semestre de 1999, sucederam-se algumas tentativas por parte da direção da EPA de incluir a música no currículo oficial, porém, sem êxito. As aulas de rap e a oficina de construção e restauração de instrumentos de percussão que integravam a grade curricular, e que nas elaborações do projeto dessa pesquisa justificavam esta escola como cenário de investigação, não se efetivaram na prática. Inclusive os ensaios do Sabedoria de Rua, foram cancelados. O quadro docente da EPA não possuia um educador musical, ou um profissional que, independente de sua formação, atuasse como 34 professor de música. Essa atividade era anteriormente exercida por um oficineiro12 da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, cujos contratos não se renovaram naquele início de ano letivo. A expectativa de a qualquer momento se concretizar alguma atividade musical no currículo - e isso dependia de um recurso humano externo à escola - seguida da respectiva falta de êxito na efetivação da atividade, foi gerando em mim uma instabilidade crescente à medida em que o semestre avançava. Já era certo que, no currículo, não haveria aula de música no ano escolar de 1999 e, também, que não aconteceriam as oficinas de rap abertas a todos os alunos. Restava a expectativa de um possível oficineiro que trabalharia com o Sabedoria de Rua. Essa expectativa acabou quando, por fim, no mês de junho, soube através de Dóris, a professora responsável pelas atividades culturais da escola e também articuladora do Sabedoria de Rua, que haviam decidido não mais trazer alguém de fora para trabalhar com o grupo. Isso porque, ao mesmo tempo que havia a dificuldade financeira na contratação do professor de rap, a escola estava percebendo que os alunos estavam necessitando, antes de tudo, de agência e auto-organização. Dóris justificou-se: "Eles sabem muito 12 Nominação dada aos agentes dos processos de ensino-aprendizagem de música em bairros do município de Porto Alegre, promovidos pelo Projeto de Descentralização da Cultura, articulados pela Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre e sua Coordenação de Música (Ver STEIN, 1998). 35 bem fazer isso, são os que mais conhecem rap; precisam é se organizar". Para isso, o caminho escolhido pela escola foi colocar música nos recreios levando o aparelho de rádio para o pátio, com a intenção de que os alunos utilizassem esse espaço-tempo também para uma socialização que envolvesse auto-organização, auto-gerência e responsabilidades nas intenções do grupo de rap. Essa atitude alcançava outro objetivo, não menos importante, segundo Dóris, de proporcionar "um clima informal" de música para que todos os alunos se sentissem à vontade para dançar e partilhar aquele momento da forma que quisessem, independente do Sabedoria de Rua. 2.1.2 O acesso ao campo Se o fato de ser percussionista favoreceu meu contato com as crianças e adolescentes que freqüentavam a EPA, o mesmo não ocorreu com os professores, embora oficialmente a direção tivesse aprovado a realização do trabalho de pesquisa na escola. A aprovação ocorreu após a entrega de cópias e a exposição do projeto de pesquisa em reunião pedagógica para todo corpo docente no início do ano letivo. 36 No convívio com a EPA, fui percebendo que o pouco tempo destinado para a apresentação e discussão do projeto de pesquisa com os professores era escasso também para seus próprios assuntos, devido à demanda de particularidades das crianças e adolescentes em situação de rua, como descrito no capítulo 1. Nos primeiros contatos com os professores houve comentários de que alguns pesquisadores utilizaram o espaço para o desenvolvimento de suas pesquisas e não retornaram os resultados de seus trabalhos para a escola. Era visível uma certa indignação dos professores pelo fato de o objeto de pesquisa tratar-se de seus alunos que, carentes, contribuíam em investigações sem algum retorno para a EPA. Passou a haver receptividade por parte da escola, quando levei alguns diários de campo para a professora Maira, designada para tratar das questões relativas a esta investigação, e também, quando propus uma apresentação de um conjunto instrumental de crianças e adolescentes na EPA, com o qual eu já havia trabalhado. Embora o acesso às diversas informações de que eu necessitava para desenvolver o trabalho fosse dificultado pela pouca disponibilidade de tempo de Maira por seu grande envolvimento com a escola e os alunos, ela foi a pessoa com quem aprendi a conviver com a dinâmica da rua. Maira era a professora ligada aos alunos mais diretamente, inclusive mantendo contato com os mesmos em 37 abordagens na rua e em seus mocós. Nossa proximidade, tanto na escola como nas abordagens de rua, foi ampliando minha percepção das diversas nuances da complexidade do fenômeno "situação de rua". Apesar dos vínculos com os garotos se estabelecerem lentamente pela sua infreqüência e suas particularidades, sentia forte atração por aquele ambiente. Justamente porque, enquanto estive ali por aproximadamente quatro meses sem "fazer nada", buscando vínculos e uma questão de pesquisa num contexto socioescolar que parecia não se acomodar nunca aos meus olhos, presenciei na prática cotidiana da EPA dois aspectos que vieram a configurar-se como as razões para que eu decidisse tomá-la como o cenário deste trabalho de pesquisa. Um dos aspectos foi a constatação de que as atividades musicais dos alunos independiam do currículo oficial da escola, ou de professor, e eram quase que diárias; o outro, a concepção políticopedagógica da EPA, explicitada no capítulo 1. Essa concepção gestava relações sociais no cenário de uma qualidade "estranha" para mim, pois que, no desejo de nelas me inserir, vi também revelada minha formalidade e rigidez, portanto, a parte que me tocava nos constrangimentos e entraves no desenvolvimento do trabalho. 38 2.1.3 Uma escola (muito) aberta: meu estranhamento O estranhamento entre observador e observado pelo confronto das respectivas culturas (ARROYO, 1999; ZALUAR, 1995) ocorreu de uma forma intensa e desestabilizadora, justamente pela flexibilidade e naturalidade da EPA na sua relação com o conhecimento e da qualidade das relações sociais desenvolvidas no tempo-espaço daquela escola. Após a escola ter decidido não mais trazer um professor de rap para a escola e sim, colocar música nos recreios como mencionado anteriormente, passei a ter uma compreensão mais apurada do que é a prática educativo-pedagógica da EPA e, principalmente, a dimensão da flexibilidade ali presente. Simultaneamente ao meu estranhamento de sua atitude de "privar" os alunos de aulas de rap, dimensionei esse gesto na direção de seu objetivo maior: a agência dos alunos. Entendi que se a direção acreditava que os alunos se mobilizariam e, sozinhos, fariam o Sabedoria de Rua continuar ativo, é porque estava ciente do que representa a música para as crianças e adolescentes que freqüentavam a escola. Essa constatação levou-me a focalizar mais pontualmente as relações que se estabeleciam a partir da valorização da escola pelas atividades musicais de seus alunos, e também, as relações sociais no âmbito geral do cenário. 39 A imersão no convívio com o mundo da exclusão e com a forma como a EPA concebe e atua com essa questão trouxe também um estranhamento no processo desse trabalho, a partir da constatação de que "a dialética 'inclusão/exclusão' [que] gesta subjetividades específicas que vão desde o sentir-se incluído até o sentir-se discriminado" (SAWAIA, 1999, p. 8-9), estão em todas as esferas da sociedade. SAWAIA (1999, p. 9) argumenta que "essas subjetividades não podem ser explicadas unicamente pela determinação econômica, elas determinam e são determinadas por formas diferenciadas de legitimação social e individual, e manifestam-se no cotidiano como identidade, sociabilidade, afetividade, consciência e inconsciência". Dessa forma, vi que não é assim tão incomum, encontrar em nossa sociedade de padrões e hierarquias fortemente estabelecidos, em quem "não consegue" cumprir com a ordem social, aquilo que Paugam, sociólogo francês, citado por SAWAIA (1999, p. 9) conceitua como "desqualificação social" e "identidade negativa" gerando a "culpabilização individual". Observar e viver as relações sociais deste cenário era confrontar a flexibilidade, o direito à diversidade, o senso de coletividade, o desejo de autonomia e agência do ser humano, com o reverso desses conceitos que carregava comigo para o meio: a rigidez, o acato à homogeneidade, o individualismo isolacionista, a 40 formalidade imposta pela radicalização cartesiana e pelo paradigma moderno de Educação (GIMENO SACRISTÁN, 1999; MCLAREN, 1999). A partir de então, vi que o trabalho teria estímulo, também, naquilo que estranhava no cenário, pois me remetia ao encontro com minha biografia. Nas palavras de OLIVEIRA (1998, p. 19), "a consonância entre pesquisa e biografia [do pesquisador] é altamente estimulante, pois atribui vida ao estudo"). Simultaneamente à valorização da experiência vivida, esforcei-me para que ela não justificasse verdades cristalizadas, fórmulas vulgares e esquemas reducionistas, "pois tudo isso pode trazer o resultado inverso, o da mortificação" (ibid.). Uma das exigências do trabalho de campo mais difíceis de cumprir foi permanecer nele sem perder de vista a questão central da investigação. Estava consciente do quanto aprendia com o contexto pedagógico-cultural daquele cenário e, portanto, o quanto isso me ocupava. Muito esforço foi feito no sentido de "minimizar os efeitos do campo sobre o investigador, [e] conservar a sua problemática em mente para evitar ser arrastado por acontecimentos espectaculares", como salienta MAROY (1997, p. 150-151). 41 2.2 Compondo um método As especificidades deste cenário levaram-me a optar pelo Estudo de Caso, segundo TRIVIÑOS (1994, P. 133), "uma categoria de pesquisa cujo objeto é uma unidade que se analisa aprofundadamente". As particularidades da EPA como instituição escolar, como descrito anteriormente, somadas ao fato de que os alunos que observava se constituíam em um grupo distinto e não generalizável de crianças e adolescentes em situação de rua, pelo próprio contato com esta escola e as relações sociais dele decorrentes, levaram-me a considerar este cenário como uma unidade a ser analisada e interpretada. Na busca dos sentidos que a música tinha para as crianças e adolescentes em situação de rua que freqüentavam a EPA, e de revelar as maneiras como estes se relacionavam com a música, optei por realizar um estudo particularizado, tentando valorizar a natureza e a abrangência do objeto desta investigação. Busquei uma vivência atenta às relações humanas do grupo estudado, tentando captar suas sutilezas e verificar a existência de uma possível relação entre os sentidos que movem as relações sociais cotidianas do grupo e suas atividades musicais, procurando 42 revelações que dizem respeito aos sentidos atribuídos à música pelos próprios sujeitos e da compreensão de sua relação com ela. A importância de uma compreensão histórica dos sujeitos no contexto da realidade atual, na qual estão inseridos, não deve desprezar sua trajetória individual. Embora as crianças e adolescentes em situação de rua, no momento da investigação, se encontrassem nas mesmas condições de vida e, por isso, pudessem ser identificados como classe, a história individual de cada um qualificava as informações que forneciam, assim como levar a possíveis questionamentos de conceitos generalizantes na literatura, quando se trata da questão da diversidade dentro de um grupo que se nos apresenta homogêneo. Na opinião de BOURDIEU (1997), para conhecer o sujeito que é nosso objeto de estudo, é necessário dar-se uma compreensão genérica e genética do que ele é, fundada no domínio (teórico ou prático) das condições sociais das quais ele é o produto: domínio das condições de existência e dos mecanismos sociais cujos efeitos são exercidos sobre o conjunto da categoria da qual eles fazem parte [...] e domínio dos condicionamentos inseparavelmente psíquicos e sociais associados à sua trajetória particular no espaço social (BOURDIEU, 1997, p. 699-700). Somente depois de um período de convivência, quase ao final do trabalho de campo, é que foi posssível obter algumas informações 43 sobre seus passados, através de depoimentos colhidos diretamente da fala dos alunos, quando se estabeleceram alguns vínculos de afetividade e confiança. Em sete meses de convívio, era possível prever os assuntos que seriam incômodos e outros nos quais, comumente, não se falava, decorrentes dos traumatismos que compunham suas histórias de vida. À medida que se configurava o grupo de alunos que participaria mais diretamente neste trabalho, ia buscando nos registros escritos e na ficha de matrícula dos mesmos informações mais detalhadas sobre sua trajetória de vida. Outras informações vieram dos professores, com quem os alunos se relacionavam mais individualmente, nas salas de aula. Porém, a contribuição da professora Maira se destaca por seus depoimentos traduzirem a palavra do grupo investigado. Sua proximidade com as crianças e adolescentes que freqüentavam a EPA se estabelecia desde quando os contactava ainda na rua13. Os vínculos que se aprofundaram em quatro anos de escola entre ela e esse grupo de crianças e adolescentes legitima seus relatos, pois atua na realidade cotidiana desse grupo com um respeito surpreendente pelas relações que estabelece individualmente com cada um. 13 As abordagens de rua ocorriam de uma a duas vezes por semana, com o objetivo de trazer para a EPA as crianças e adolescentes que lá encontrasse. As abordagens procuravam seguir o projeto da Educação Social de Rua - ESR -, órgão pertencente à Fundação de Educacão Social e Comunitária - FESC. Esta fundação é vinculada às secretarias municipais da Saúde, Educação, Esporte e Assistência Social, cujos especialistas nas respectivas áreas integravam a ESR. 44 Nesse sentido, os relatos de Maira cumpriram o papel daquilo que a História Oral julga essencial no processo de aquisição de dados, qual seja, "a interação entre o pesquisador e seu objeto de estudo, que se cria a partir dos depoimentos" (PESSANHA, 1996, p.75). Os depoimentos vieram colaborar nos perfis que construía dos alunos e, principalmente, dimensionar mais realisticamente as relações sociais daquele cenário. Através de alguns de seus relatos, tanto os que se referiam ao passado dos alunos como ao que ocorria durante o trabalho de campo, podia dimensionar, também, a confiança que as crianças e adolescentes em situação de rua que freqüentavam a EPA depositavam em Maira, e a intimidade existente entre eles. Nos primeiros depoimentos, percebia que Maira procurava preservar a intimidade dos alunos, quando me revelava informações pessoais de alguma criança ou adolescente. Muitas vezes, sua emoção no depoimento mostrou-me por que um aluno não comentava a respeito de determinado assunto. Ela me revelava o que, em muitos casos, eles se poupavam de lembrar. Em momentos alternados, sua indignação, tristeza, vibração e esperança é que me revelaram o sentido de algumas passagens da história de vida de alguns alunos e de suas vivências cotidianas durante o trabalho de campo. 45 Os depoimentos de Maira não só contextualizavam social e historicamente as crianças e adolescentes que observava, pelo que prima a pesquisa qualitativa, mas também, me ajudava a colocar "ênfase na idéia dos significados latentes" de seu comportamento (TRIVIÑOS, 1994, p. 122). O exercício de chegar no que estava latente no cotidiano das crianças e adolescentes em situação de rua direcionou-me aos sentidos que a música tinha para eles e às formas como se relacionavam com ela. 2.2.1 A coleta de dados As técnicas utilizadas para a coleta de dados foram: a observação participante; a observação livre; o registro de caderno de campo; entrevistas individuais, semi-estruturadas; análise de documentos; fotografias e gravações de áudio e vídeo. Todo processo metodológico da pesquisa foi sendo construído ao longo de um convívio partilhado com as crianças e adolescentes em situação de rua que freqüentavam a EPA, determinado pela demanda da dinâmica do contexto socioescolar. Ao longo do trabalho de campo fui aprendendo a me colocar em contato com o cenário a partir de sua dinâmica da rua. As decisões quase que diárias de como atuar em determinada situação ou atividade, desenvolveu em mim 46 uma postura de abertura incondicional a aceitar o surgimento de oportunidades imprevistas e diversificadas que poderiam trazer informações para o trabalho. Por exemplo, participei de algumas atividades de cuja realização fui saber no próprio momento em que deveriam ocorrer. Assim aconteceu quando uma professora telefonou avisando do ensaio para um vídeo que estavam produzindo com os alunos e para o qual havia sido convidada a participar. Em cinco minutos recolhi o material de registro e me pus a caminho da EPA. Esse mesmo exemplo serve para mostrar a diversidade da natureza das atividades nas quais me engajei, na busca contínua para aprofundar os vínculos com os sujeitos no intuito de chegar aos sentidos que os moviam àquilo que se propunham empreender. Para tanto, foi necessário um certo despojamento. Nessa oportunidade, dispus-me a interpretar cenicamente um personagem do enredo do vídeo, para aproveitar mais uma oportunidade de conviver com os alunos da EPA, devido aos períodos de infreqüência dos mesmos e da imprevisibilidade de atividades que incluíssem a música, como era o caso dessa. Os vínculos neste espaço socioescolar se estabeleceram, também, à medida que, relativa e aleatoriamente, os alunos compareciam à escola. A qualquer momento um aluno novo poderia estar chegando, o que poderia significar mais uma contribuição para 47 este trabalho. A questão da infreqüência dos alunos na EPA fez com que durante todo o período de trabalho de campo, o ano letivo de 1999, houvesse necessidade de uma atenção permanente às oportunidades de acesso que poderiam surgir, tanto a alguma atividade, a algum aluno, como para conseguir marcar uma entrevista, para depois, efetivamente, realizá-la. O convívio com os alunos da EPA pode-se dividir em dois espaços principais: dentro e fora da escola. Dentro do espaço escolar as observações se realizaram através do convívio "informal", no sentido de que era mais uma professora da escola, assim chamada por eles. Ali, observei muitos recreios com música, no pátio da escola, quando utilizavam o rádio ou tocavam instrumentos de percussão. Esses momentos com música ocorreram também no refeitório, em horários de refeições, em apresentações dos alunos tocando instrumentos de percussão e do grupo de rap Sabedoria de Rua, em datas comemorativas e em rachas de rap. Também os observei envolvidos com música nos corredores da escola e na calçada, em frente à escola. Participei ainda de rodas de capoeira. Fora do espaço escolar, houve encontros com as crianças e adolescentes que freqüentavam essa escola em seus mocós e em três praças da cidade onde alguns deles viviam a maior parte de seu tempo. Também estive com os alunos em várias apresentações em outras instituições, tanto do Sabedoria de Rua, como de um grupo de 48 alunos que às vezes o acompanhava, tocando os instrumentos de percussão. Procurei presenciar situações individuais e coletivas tentando elucidar o que pertencia a um modo típico de ação desse grupo social, estando atenta às singularidades, como sugere PAIS (1994), uma vez que já me chamavam atenção os aspectos referentes à identidade individual e coletiva das crianças e adolescentes em situação de rua (CRAIDY, 1998; GRACIANI, 1997). Nessa direção, houve um espaço de convívio importante, que foram seis meses de participação nas reuniões pedagógicas, realizadas semanalmente na EPA. A intenção era conhecer um pouco mais sobre os alunos através de seus educadores, tentando ultrapassar a realidade visível da identidade de grupo que os homogeneíza na aparência física, no comportamento, na comunicação verbal e não-verbal, muitas vezes incorporados e assimilados inconscientemente pela necessidade de pertencimento ao grupo (GRACIANI, 1997). Participar semanalmente das reuniões pedagógicas e conviver com os professores possibilitou-me conhecer o tratamento dispensado aos alunos sob a perspectiva de sua condição e contexto social. Observando como educandos e educadores se percebiam mutuamente, fui me inserindo, enquanto aprendia, no padrão de comunicação daquele meio socioescolar: da corporeidade, da fala, dos 49 códigos, da veemência da simples presença. Alguns meses foram necessários para compreender, por exemplo, quando um empurrão, aparentemente violento, era simplesmente uma forma de tocar o outro, e quando não o era. 2.2.1.1 Registrar ou viver? A observação participante na busca dos sentidos do mundo estudado levou-me algumas vezes a tentar ver a atividade observada na perspectiva daqueles que estavam sendo observados. Como registrou DENZIN (1989), em sua experiência com a observação participante: "Os objetivos do observador participante giram em torno da tentativa de tornarem significativo o mundo que estão a estudar na perspectiva dos que estão a ser estudados" (DENZIN apud VASCONCELOS, 1997, p.52). Vivenciei algumas situações bem significativas, como por exemplo, quando observava e filmava um ensaio de percussão com aproximadamente vinte alunos, e Lucas, 15 anos, tocava surdo pela primeira vez. Esse momento foi assim registrado no caderno de campo: O som grave e solene daquele surdo preenchia todo o ambiente e soava muito dentro do galpão, sozinho, provocando um silêncio geral nos que estavam presentes. Todos estavam atentos ao que ele tocava, pois teriam que entrar tocando seus instrumentos ao sinal do "regente". 50 Vi que Lucas vibrava muito, sorrindo contidamente, olhando para o surdo e ouvindo o som, sentindo-se orgulhoso da responsabilidade que estava tendo no grupo ao fazer uma coisa que aprendera naquele dia mesmo. Assim que os outros instrumentos entraram, significando que o solo tinha sido um sucesso, aliviado ele fez menção de olhar-me, parecendo querer evitar, mas não resistiu. Deu uma espiada rápida para ver se eu testemunhava seu êxito. Quando encontrou-me na outra extremidade do grupo e viu que eu estava ali com ele, na torcida, voltou o olhar em minha direção. Furtivamente, deu um sorriso pleno e permitiu, ou melhor, não resistiu, que nossos olhares se encontrassem por entre todos que tocavam animadamente. Ele baixou os olhos no instrumento e impregnou mais energia no braço que segurava a baqueta. As lágrimas vieram-me aos olhos e fiquei paralisada por um momento, sem conseguir filmar. (Caderno de Campo, 19.11.99) Esse foi um dia em que tive que me dividir em integrante de um grupo, pois que já me consideravam como tal, e pesquisadora. Larguei a câmera e resolvi dançar com duas professoras e três alunos que o faziam animadamente, o que ajudou a me recompor e voltar à função de pesquisadora. Talvez essa vivência tenha sido bem significativa, porque Lucas sempre estabeleceu um limite para nossa aproximação. Embora nos víssemos freqüentemente, pois ele é bem assíduo à escola, mantevese a distância por oito meses, quando, em setembro, a entrevista parece ter provocado uma certa abertura. Isso ocorreu quando, em 51 visita ao seu mocó, três dias antes, Lucas demonstrava bastante satisfação em estar comigo e chegou a pedir à professora que me acompanhava para tirar uma fotografia de nós dois, juntos. 2.2.1.2 As entrevistas Foram entrevistados, individualmente, onze alunos, escolhidos para tal porque mostravam ter maior contato com a música dentro do espaço escolar. Como será detalhado no capítulo 3, eram os adolescentes que quase diariamente tocavam, dançavam ou ouviam rádio no pátio da EPA, ou ainda atuavam no Sabedoria de Rua. No total, foram realizadas doze entrevistas, sendo que três em bares centrais da cidade, gravadas em áudio, e as outras ocorreram em salas de aula e na biblioteca da EPA, sendo gravadas em áudio e vídeo. Ocorreram eventuais participações de amigos que entravam na sala onde realizávamos a entrevista, pois estavam habituados a entrar nas salas e sair delas quando lhes aprouvesse. Algumas questões estruturadas a partir de uma investigação de CAMPBELL (1998) serviram de roteiro para a entrevista semiestruturada (Anexo 4), que abordava os seguintes eixos temáticos: as formas de participação da música no cotidiano da família, na infância, e atualmente para o caso das crianças e adolescentes em situação de rua que mantêm algum contato com a família; as atividades musicais nos mocós, na rua (no "trabalho") e na EPA; as 52 razões que os levavam a dançar e a tocar; a música vivida individualmente e em grupo, as apresentações e o pensar sobre música. Embora tenha tomado cuidado quando me referia ao passado dos entrevistados, informando-me antecipadamente sobre a vida dos alunos, esse assunto criou desconforto quase que na totalidade das entrevistas. Por exemplo, as questões: "Que lembranças tu tens de momentos com música quando eras pequeno?" e "Tu lembras de alguma música da tua infância?" Apesar de estarmos convivendo há oito meses, ainda não havíamos estabelecido laços suficientemente confiáveis para essas crianças e adolescentes que, visivelmente, estão a proteger-se permanentemente. As entrevistas com as crianças e adolescentes selecionados, não corresponderam totalmente ao que VASCONCELOS (1997) sugere para uma boa entrevista etnográfica: "uma partilha, [...] uma interacção, [...] uma conversa amigável" (p. 56). O ato da entrevista, em si, simbolicamente os remetia à idéia de inquirição e de julgamento, como também me confirmou Maira. Uma adolescente, por exemplo, concordou em marcar a entrevista comigo somente depois que conversou com dois colegas que a haviam realizado e, mesmo assim, veio temerosa no momento de efetuá-la. 53 2.2.2 Analisando e interpretando os dados 2.2.2.1 As transcrições A transcrição de determinadas entrevistas foram trabalhosas em razão da fala caracteristicamente veloz e atropelada de alguns alunos, que assim se acentuava quando a questão abordada era do seu interesse. A dificuldade se potencializou pela opção de transcrever a fala literalmente, opção que fiz utilizando-me do critério da fidelidade à natureza do tema estudado, uma vez que se tratavam de pessoas cuja língua funciona nas relações sociais observadas e que sustentam este estudo (ver BOURDIEU, 1996, p. 24). Como prevê o Estudo de Caso e as investigações qualitativas em geral, a transcrição literal das falas das crianças e adolescentes em situação de rua neste estudo pretende oferecer ao leitor mais um elemento identitário do cenário investigado, para que componha sua leitura e, eventualmente, outras possibilidades de interpretação. RABITTI (1999) salienta a possibilidade de os leitores formarem pontos de vista diferentes do pesquisador, assim como encontrar questões que foram subestimadas e mereçam aprofundamento, já que o Estudo de Caso não objetiva a "pesquisa de causalidade, mas a compreensão do sistema investigado" (p. 34). 54 Se a estranheza da linguagem de um grupo social nos afasta culturalmente, por outro lado pode nos aproximar dos sentidos que, na minha opinião, temos o compromisso de tentar compreender. Segundo PAIS (1994), O dizer manifesta-se e apóia-se em inumeráveis coisas que se silenciam. A linguagem existe graças à possibilidade da reticência, do subentendido (o que não se entende bem). O subentendido, o deficientemente entendido, é o que sociologicamente se torna necessário entender (PAIS, 1994, p. 76). 2.2.2.2 Categorização e análise Como menciona VASCONCELOS (1997), a análise dos dados, à medida que vão surgindo, trazem novos temas e direcionam a investigação. A análise durante o trabalho de campo deste Estudo de Caso era praticamente diária, pela necessidade de reavaliar permanentemente o direcionamento das inserções neste cenário que tem a imprevisibilidade e a dinâmica da rua, ao que me referi anteriormente, principalmente em função da dificuldade de manter um contato mais estreito com os alunos em suas atividades musicais. Um redimensionamento importante ocorreu durante o trabalho de campo quando, após a análise de dez entrevistas, acreditei na obtenção de dados mais substanciais através de observações livres e o adensamento na minha relação com as crianças e adolescentes 55 que freqüentavam a EPA. Embora o redirecionamento tomado a partir da primeira análise das entrevistas tenha sido pertinente ao desenvolvimento do trabalho, a questão surgida na análise das entrevistas - a aparente dificuldade dos alunos de falar e pensar sobre música - revelou, posteriormente, dados substanciais para a interpretação dos sentidos que a música têm para esses alunos, e as formas como se relacionam com ela, como será discutido no capítulo 3 e 4. A observação participante após o período de entrevista me trouxe subsídios para interpretá-las sob um enfoque mais próximo dos sentidos que buscava encontrar nas vivências musicais dos alunos da EPA. Nas palavras de PAIS (1994), Interpretar é algo mais que reconhecer o significado das falas. O significado é apenas a contrapartida do significante. O significado é de ordem semiótica (signo); o significante, de ordem semântica. Interpretar requer, primeiramente, captar não só o sentido semântico percebido mas também a sua intencionalidade latente. De facto, as falas frutificam para além dos seus significados. Frente aos cadáveres das palavras escritas é possível descobrir, nomeadamente através da observação participante, a riqueza inesgotável da palavra sonora, o seu uso conflitivo em contextos situacionais e referenciais próprios (PAIS, 1994, p. 86). Para haver um adensamento na relação com os alunos, proporcionei o retorno imediato para eles do trabalho construído até 56 aquele momento, como a projeção de imagens deles gravadas em vídeo em situações diversas; uma atividade pedagógica de música envolvendo três encontros; e minha participação, juntamente com os alunos, no vídeo que estava sendo elaborado pela escola, que abordava a questão "etnia", como já mencionado. Entendendo por "categoria" um "conceito que permite nomear uma realidade presente no material recolhido" (MAROY, 1997, p. 131), categorizei o material empírico obtido. Inicialmente foi feita distinção entre dados substantivos, metodológicos e analíticos (BURGESS, 1997), uma vez que os registros continham reflexões metodológicas e analíticas, acompanhando dados substanciais relacionados às atividades musicais dos alunos da EPA e às formas como se relacionam com a música. Como salienta BURGESS (1997), as anotações analíticas no caderno de campo indicam "aspectos emergentes e conceitos que podem ser desenvolvidos juntamente com reflexões preliminares acerca do enquadramento analítico" (p. 190), significando que o investigador terá temas estabelecidos antes de se completar a coleta de dados. Durante a categorização propriamente, confirmaram-se temas surgidos previamente e emergiram novos temas, aos quais foram atribuídos números de código associando-os aos tópicos mais importantes, como sugere BURGESS (1997), "de modo a que todo 57 material de um tópico particular esteja disponível num só lugar" (p. 190). As entrevistas foram categorizadas através de temas emergentes listados em ordem alfabética, como também sugere BURGESS (1997). Primeiramente foram analisadas entre si, e posteriormente, os trechos selecionados, adicionados aos respectivos tópicos que delineavam os eixos temáticos que estruturariam o trabalho escrito deste Estudo de Caso. Esse processo de seleção, abstração e transformação do material empírico recolhido, ou, a "redução dos dados" (MAROY, 1997, p. 123), resultou em uma grade que inicialmente continha todo o conteúdo da pesquisa de forma codificada. A partir de várias releituras da grade com os conteúdos codificados e sua confrontação com o material empírico registrado, busquei validar as hipóteses e interpretações emergentes da análise, o que MAROY (1997) sugere como "particularmente pertinente quando a finalidade principal da análise qualitativa é fazer surgir teorias locais [e] produzir um esquema de inteligibilidade [...]" (p. 125). Em busca da "teoria local" MAROY (1997), argumento no ítem a seguir sobre interpretar a os escolha do dados obtidos metodológicos aqui expostos. referencial teórico através dos escolhido para procedimentos 58 2.3 Referencial teórico: a concepção de Christopher Small A busca de aproximação com a área da Educação, como colocado anteriormente, levava-me a reflexionar a prática políticopedagógica do cenário que observava, à luz de autores que discutem os preceitos daquela área e o papel da escola na reprodução dos saberes e dos valores que estruturam a atual sociedade. Os aportes teóricos de GIMENO SACRISTÁN (1999), SILVA (1998, 1996) McLAREN (1999), SANTOMÉ (1995, 1997), ASSMANN (1999), KINCHELOE (1998) faziam-me avançar na compreensão dos sentidos da práxis do cenário no qual estava inserida. Na área de Educação Musical a concepção de SMALL (1989) mostrava similaridades com os paradigmas sociais da Educação. SMALL (1989) argumenta que "a sociedade, a cultura musical e a educação se acham em uma situação indissociável de dependência recíproca, e que toda mudança em uma delas se reflete e volta a se refletir nas outras" (p. 206). SMALL (1989) propõe para a Educação Musical uma reflexão a partir das formas como a música se insere na vida da sociedade ocidental, relacionando-as à visão científica do mundo instaurada desde o Renascimento no Ocidente. Seu argumento de que a sociedade, a música e a educação estão intrinsecamente 59 relacionadas, sugere que a música, desde então, foi vista como mais um objeto do conhecimento a ser dominado pelo homem, afastandose de sua natureza "vivencial" e perdendo seu "caráter comunitário" (SMALL, 1989). A aproximação das áreas Música e Educação proposta por SMALL, justificou, assim, a sua escolha como referencial teórico para esse trabalho. SMALL (1989) reflete sobre a necessidade dos educadores musicais reconhecerem as origens das práticas e concepções que temos hoje sobre música, sobre Educação Musical e sobre como nos relacionamos com música. Segundo o autor, houve um desvirtuamento da relação do homem com a música e da função da música na sociedade, desde a instauração da visão científica do mundo no Ocidente, a partir do século XV. Na sua opinião, é necessário ver nossa própria música ocidental no marco da sociedade e das atitudes sociais do Ocidente. [...] Poderemos assim destacar nossa investigação da música ocidental em seu marco social contra um telão de fundo mais nítido, e chegar a ser conscientes de nossa própria tradição enquanto meio que nos rodeia, nos sustenta, e penetra todas nossas atitudes e percepções. Ao tomar consciência da natureza de nossa tradição, podemos tomá-la também da natureza e a medida das mudanças que nela se tem produzido nos últimos setenta anos, aproximadamente (SMALL, 1989, p. 44). 60 Das categorias e análises preliminares do material empírico, ainda no trabalho de campo, emergiam conceitualizações reflexionadas a partir das concepções de SMALL (1989). Como PAIS (1994, p. 52) lembra: "análise e teorização são sinônimos, fundamentando-se num vaivém dialéctico entre observações e conceptualizações". O cenário de pesquisa observado parecia encontrar respaldo na crítica que SMALL (1989) faz à visão científica do mundo ocidental, como determinante da forma como o homem se relaciona com a música em nossa sociedade. Para o autor, a concepção da música no Ocidente está intrinsecamente ligada à visão científica do mundo, no sentido de que a produção de conhecimento no mundo ocidental se dá por meio do domínio do objeto estudado, "divorciado tão completamente quanto seja possível da experiência; um corpo de fatos e conceitos que existem fora do sujeito que conhece e independente dele" (SMALL, p. 14-15). Essa concepção valoriza a qualidade do produto em si, independente da experiência vivida na sua produção, o que acarreta a "natural" necessidade de consumidores para esse produto. Essa idéia, segundo SMALL (1989), é predominante até nossos dias, tendo a escola como reprodutora potencial do conhecimento objetificado onde "a única lição que, de fato, todos aprendem, é que podem ser consumidores - não produtores - de conhecimento, e que o único 61 conhecimento que tem validade é o que lhes chega por meio do sistema escolar" (SMALL, 1989, p. 15). Ao contrário dessa visão, o projeto pedagógico da EPA apontava para uma relação de seus alunos com o conhecimento que privilegiava a sua construção com e a partir dos saberes do aluno, dando ênfase, portanto, à sua experiência vivencial, ao mesmo tempo em que as fronteiras entre as áreas do conhecimento não restringiam a mobilidade dos alunos. A música era mais um dos saberes por onde transitavam, de maneira não hierárquica. 2.3.1 Musicking Na atividade musical, especificamente, SMALL (1989) coloca que independente do espaço físico onde ocorra, do gênero de música, ou, da época, pode-se pensar o significado da música e sua função na vida humana a partir da performance. Não aquela performance caracterizada pela perfeição de técnica e habilidade físico-motora, mas o evento em si, o momento em que uns tocam e outros ouvem. Segundo o autor, este momento pode ser comparado a um ritual, no sentido de que as pessoas que participam do evento estão vitalmente explorando, afirmando e celebrando algo que não pode ser feito através de outra linguagem (SMALL, 1998). 62 A relevância da performance instigou SMALL a buscar um nome para o momento em que as pessoas estão fazendo algo que só ocorre com música e, por causa da música, e o denominou: musicking. SMALL (1995), argumenta que a qualidade do musicking terá a qualidade das relações que se estabelecerem entre as pessoas no momento da performance. SMALL (1998) considera a performance "uma atividade em que os humanos tomam parte de tal forma, que eles podem entender suas relações - com os outros e com uma conexão de elevado padrão” (p. 140). SMALL (1998) sugere que estando em contato com este “elevado padrão” de conectividade com as pessoas e o mundo no momento da performance, o musicking, portanto, "não é somente uma razão de divertimento, mas ensina-nos a configurar esse padrão" (p. 140). Ensina-nos sobre nossa cultura, sobre nosso lugar dentro dela e nosso lugar dentro da natureza (SMALL, 1998). Simultaneamente ao aspecto "vivencial" da música que designa ao Musicking, SMALL (1998) traz também para esse termo, explicitamente, sua concepção do aspecto "comunitário" da música abordado acima, pois defende que "toda atividade que chamamos arte, não somente musicking, refere-se basicamente às relações humanas. Nós as entenderemos melhor se mantivermos na mente que elas todas operam dentro de uma linguagem que dá poderes aos 63 seres humanos, [...] de articular essas relações" (SMALL, 1998, p. 140). Assim, musicking diz respeito ao aspecto "comunitário" da música uma vez que se refere às relações humanas. Concomitantemente, musicking diz respeito ao aspecto "vivencial" da música pois que vivemos algo estando em contato com ela, e não somente observamos. Nas palavras de SMALL (1998) "Em todas as atividades que chamamos arte, nós pensamos com nossos corpos. Eles negam com todos os gestos a sectarização Cartesiana entre corpo e mente" (p. 140). 2.3.2 O aspecto "comunitário" da música O aspecto "comunitário" da música a que se refere SMALL (1989) "communality to music", e ao que refiro-me neste trabalho, diz respeito à música feita em conjunto, a música partilhada por duas ou mais pessoas na mesma ocasião. Analisando a posição que a música ocupa na vida social de Bali, SMALL (1989) salienta o aspecto comunitário da música naquela sociedade. Na análise de SMALL (1989), o ato musical se estabelece, também, como um reflexo das relações humanas existentes entre os integrantes da comunidade, onde o objeto musical 64 não tem relevância no sentido sacralizador como na sociedade ocidental moderna, em que, uma tensão crescente na obra musical direciona a atenção a um clímax. A construção estrutural de sua música "não produz em modo algum esse sentimento de antecipação, de ver-se arrastado até uma culminação, que se experimenta com a música harmônica do ocidente" (ibid p. 50). Em Bali, "as atividades em geral não se praticam como algo conduzente a um objetivo desejado a alcançar, se não como algo que leva em si uma satisfação inerente" (SMALL, 1989, p. 55) e para a qual não há uma distinção entre o que vem a ser um ensaio e uma apresentação musical. As observações realizadas junto às crianças e adolescentes em situação de rua que freqüentavam a EPA, levavam-me a crer que, similarmente, suas atividades musicais se justificavam, antes, como sociais. 2.3.3 O aspecto "vivencial" da música A análise de apresentações musicais e as mesmas atividades musicais em momentos não considerados "apresentações", levaramme a interpretá-las da perspectiva de como SMALL (1989) se refere ao aspecto "vivencial" da música. 65 Segundo SMALL (1989), na objetificação do conhecimento musical na área de Educação Musical, a experiência vivida deixou de ter importância no ato de conhecer música. No caso do conhecimento artístico em geral, SMALL (1989) insiste na "suprema importância do processo artístico, e na relativa falta de importância do objeto artístico; o instrumento essencial da arte é a experiência irrepetível" (ibid, p. 14). Este autor acredita que "a arte é algo mais que a produção de objetos belos e expressivos [...] para que outros os contemplem e admirem; é essencialmente um processo, por meio do qual exploramos nosso meio, tanto o interior como o exterior, e aprendemos a viver nele" (SMALL, 1989, p. 13-14). O aspecto "vivencial" da música na obra de SMALL (1998) é de tal forma relevante, que o autor parte do princípio de que "toda arte é ação, performance, [...] e seu significado não reside no objeto criado mas nos atos de estar criando, estar expondo, e estar percebendo" (p. 140). Seguindo as concepções de SMALL (1989, 1995, 1998), teria que olhar para as relações sociais do grupo observado e não somente para suas atividades musicais, assim como não poderia isolá-lo do contexto socioescolar como um todo. A forma como os alunos se relacionavam com ela apontava para similaridades trazidas por SMALL (1989), observadas em sociedades não ocidentais, ou seja, a 66 música inserida na organização e no estabelecimento das relações sociais. Assim, na busca de revelar os sentidos que a música tinha para as crianças e adolescentes da EPA, e investigar as formas como se relacionavam com ela, delimitei dois vieses analíticos de interpretação: o aspecto "comunitário" e o aspecto "vivencial" da música. Alguns dos resultados obtidos apresentados nos capítulos subseqüentes. nessa análise serão 3 O ASPECTO "COMUNITÁRIO" DA MÚSICA NA EPA Este capítulo pretende revelar os sentidos que os alunos da EPA atribuíam à música e, também, as formas como se relacionavam com ela sob quatro focos. Primeiro, apresento o grupo de alunos com o qual convivi mais proximamente durante o trabalho de campo, buscando revelar como a música se insere no cotidiano da escola e como esta se tornava um dos fatores de vínculo entre alunos e escola, embora a música não integrasse o currículo oficial da EPA. Segundo, discuto da perspectiva do vínculo estabelecido entre as crianças e adolescentes em situação de rua com a escola e das suas relações sociais. Posteriormente, procuro revelar os sentidos que a música apresenta como uma possibilidade de inclusão para as crianças e adolescentes em situação de rua. E, por último, mostro a participação da música na formação da identidade das crianças e adolescentes com os quais convivi na EPA. 68 3.1 A música e o vínculo dos alunos com a escola Embora o limite de idade para permanência do aluno na EPA seja 18 anos, a postura da escola frente a essa situação é flexível, em função das poucas perspectivas para a inserção das crianças e adolescentes que lá estudam no mercado formal de trabalho. O caso dos egressos configura-se, portanto, numa situação delicada e tocante para os professores e a direção da EPA. A professora Maira declarou em uma ocasião: "os alunos vão ficando ansiosos e inseguros quando se aproximam dos 18 anos de idade. Às vezes, relativizamos atitudes mais impulsivas, por exemplo, em função dessa situação". A preocupação com a passagem dos alunos de 18 anos para o mundo formal do trabalho, em que terão responsabilidades e compromissos a cumprir, levou a escola a criar o "Grupo dos 18". É realizada uma reunião semanal com os alunos de 17 e 18 anos, no sentido de acompanhá-los mais de perto nessa fase de transição, com a orientação de uma professora designada para isso. Nessa reunião participam também alunos que já passaram para a T 4, que funciona à noite, no mesmo prédio da EPA. As turmas T 4, T 5 e T 6 formam os níveis de ensino do CEMET, abordado no capítulo 1. 69 Os alunos que avançavam para a T 4, o que, em geral, tentavam retardar, aproveitavam todos os motivos para entrar durante o dia nos espaços da EPA e estar com os amigos, colegas e professores conhecidos. Era comum alunos da noite estarem no portão da EPA, durante o dia, principalmente nos horários de entrada da escola. Daí se origina a expressão "Um pé na T 4 e dois na EPA", criada por uma professora da escola durante uma reunião pedagógica, em que se discutiam as tentativas desses alunos, da T 4, de freqüentar o espaço escolar durante o dia. A preocupação da escola com os adolescentes que se encontram nessa situação reflete-se neste meu diálogo com Maira: M- (...) O 'Grupo dos 18', a gente se reúne com eles, faz encontros, conversa com eles (...) V- Vocês fazem regularmente? P- Sim, toda quarta de manhã a gente se encontra, vê o que eles poderiam fazer, se engajar num trabalho, um serviço qualquer que fiquem, que durem, sabe? Mas não tem perspectiva, eles não têm pra onde ir. Quem vai dar emprego pra eles? Ao mesmo tempo, como vão aprender a ter responsabilidades, a se comprometer? É difícil... então, eles não querem sair da escola! E a gente vê que eles estão crescendo também, cognitivamente, estão indo... Tem os da Oficina do Papel14 que estão com um 14 Aqui, Maira referia-se à Oficina de Papel Reciclado da Usina do Gasômetro, freqüentada por quatro alunos da EPA, no ano de 1999, mediante bolsa-auxílio concedida pela Secretaria Municipal de Educação. Também foram providenciados cursos em outras instituições, como corte-costura, desenho e padaria, nos quais os alunos matriculados em 1999 não permaneceram. 70 vínculo, ao menos, que não é a escola, se a gente cortar isso... sei lá o que pode acontecer... Quer dizer, foi feito um trabalho de aprendizagem, de exercício de autonomia, de auto-organização, mas eles não estão prontos pra esse sistema! [modo de organização da sociedade] Eles precisam de um lugar pra morar, alguém tem que se responsabilizar por essa faixa etária! Por essa fase de transição da rua pra um serviço formal na sociedade [enfatiza]. Nós vamos ficando com eles, por isso temos alguns de 19, 20, 21 anos... Eles não querem sair da escola [Fala num tom baixo e conclusivo]. (Caderno de Campo, 9.8.1999) Os adolescentes que se encontravam nessa faixa etária são os mais atuantes musicalmente, pois em geral tomavam as iniciativas, como providenciar as atividades musicais que se realizavam na EPA. Assim, vieram a constituir-se no grupo com o qual convivi mais estreitamente e que colaboraram com informações para este trabalho. Estabeleci um relacionamento mais próximo com 19 alunos e, dentre eles, 11 pertencem ao "Grupo dos 18", compondo-se de 3 meninas e 8 meninos. Embora a música não constasse na grade curricular da escola, existiam três atividades musicais recorrentes nos tempos-espaços da EPA. Uma delas era o grupo de rap Sabedoria de Rua, já mencionado. Outra atividade musical que ocorria na EPA eram as rodas de samba e pagode em que os alunos tocavam os instrumentos de percussão de que a escola dispunha, o que podia ocorrer espontaneamente em um 71 determinado momento ou em função de alguma apresentação prevista. Os instrumentos que estavam disponíveis na escola eram dois repeniques, uma caixa, dois surdos agudos, três pandeiros, um agogô, um ganzá e uma cubana, dois atabaques e três berimbaus. E, por último, uma atividade que, com raras exceções se realizava diariamente, era a audição musical. Ocorria nos recreios, quando o aparelho de som da escola era trazido para o pátio, e os alunos colocavam fitas e CDs ou, não tão freqüentemente, sintonizavam uma rádio. Mas, invariavelmente, dançavam. As atividades musicais nos tempos-espaços da EPA podiam surgir nos mais variados momentos, sem um motivo explícito, pois os alunos demonstravam ter uma receptividade muito grande para com a música e disposição permanente para tocar algum instrumento e dançar. Um exemplo disso ocorreu numa sexta-feira à tarde, quando alunos do "Grupo dos18" produziam papel reciclado na sala de artes de forma intensiva, inclusive com a participação da diretora, pois tinham uma encomenda de grande quantidade de papel, feita por outra instituição. Embora fosse visível o cansaço no semblante de alguns, já que vinham trabalhando com papel toda semana, o ambiente na escola estava tranqüilo pois todos trabalhavam para um objetivo comum, 72 havendo uma certa euforia por ser a primeira vez que teriam um retorno financeiro considerável com a venda do papel reciclado que produziam. De repente, de dentro da secretaria, ouvi o som de um surdo e um tamborim vindo lá da rua. Saí para o pátio e avistei no portão, quatro alunos e também a professora Dóris ao redor do Zé, um amigo dela que de vez em quando ia tocar com eles. Nem entrou no pátio porque a roda começou ali mesmo, na calçada; ele havia trazido um surdo que soava muito bem. Percebi que os garotos se entusiasmaram com aquela sonoridade com a qual não estavam acostumados. Cantavam um samba-enredo de uma escola de samba de Porto Alegre. Peguei a máquina fotográfica e me juntei a eles, que dançavam e cantavam na calçada, na frente da escola, muito alegremente. O pessoal que estava fazendo papel reciclado foi todo para a rua, com os aventais novos, muito brancos, o que provocou risos em alguns, pois os chamaram de "açougueiros". O clima era de total empolgação com aquele timbre novo e bonito do "maracanã" que Zé levava pela primeira vez na EPA. Tinha uma marcação grave, forte e precisa. Levou-nos todos a dançar e cantar. Os meninos e meninas dançavam soltos e à vontade naquela roda espontânea, mas Francisco, um dos alunos da EPA, estava mais que à vontade. Francisco dançava como um mestre-sala, que orgulhosamente carrega sua escola de samba. Fazia poses elegantes 73 com muito samba no pé, com giros e passos "no capricho". Por seu envolvimento, que o fazia brilhar, parecia estar ouvindo uma bateria inteira de escola de samba atrás de si, enquanto sua pasta de plástico transparente contendo seu material escolar rodava no dedo médio de sua mão erguida, substituindo um pandeiro que girava no seu imaginário, assim como era quase possível ver na sua imaginação a porta-bandeira que cortejava elegantemente e com a qual sincronizava sua coreografia. Enquanto dançava e batia umas fotos, falei para Dóris: V- Tu tens a chave? (Ela ouviu mais ou menos, pelo volume alto da cantoria e da batucada) D- Ãh?! V- A chave da sala tá contigo, né? (quase gritei) D- Tá, Vânia, tá!! Já entendi!... (e riu pra mim repetindo minhas perguntas como quem diz: eu sei que tu queres todos os instrumentos aqui!) (Caderno de campo, 19.11.1999) Um pouco contrariada por parar de dançar, a professora Dóris se afastou em direção à sala onde eram guardados os instrumentos de percussão da EPA, já com vários alunos acompanhando-a, por terem entendido na nossa comunicação o que ela iria fazer. Assim que estes vieram com os instrumentos, o pessoal que estava na calçada começou a entrar no pátio e, juntos, dirigiram-se ao galpão sem parar de tocar. Lá dentro o fizeram por uma hora e meia 74 aproximadamente, usando todos os instrumentos de percussão disponíveis na EPA, descritos anteriormente. Tadeu, 21 anos, que estava muito envolvido reciclando papel na sala de artes, foi chamado por três vezes "pra dá uma força", pois é tido pelos colegas como o mais experiente e habilidoso na percussão. De avental branco, com os braços e as mãos cheios de polpa de papel, Tadeu estava orgulhoso de estar ensinando, pegando a baqueta do Lucas e tocando no surdo que este usava; ao mesmo tempo que Lucas aprendia, todos os outros tocavam, "ligados" no seu toque. Mais tarde, comentou comigo: "Bá! Hoje eu cansei. Tinha que ficá pra lá e pra cá, fazendo papel e ajudando eles!" 75 ...a chegada do surdo... Fotos: Vânia Müller A confecção de papel reciclado, ...e o surgimento de um momento musical, envolvendo os alunos, a professora e os guardas. 76 Os alunos envolvidos com a Oficina de Papel na Usina do Gasômetro, como colocado no capítulo um, assim como os que fazem papel reciclado na própria escola, são os alunos mais diretamente envolvidos com as práticas musicais. E embora tenham 18 anos de idade ou mais, os professores reconhecem seu envolvimento nessas duas atividades como "práticas educativas úteis" e de "grande realização para os alunos", o que leva a escola a não cogitar o rompimento dos alunos com as mesmas e todos os vínculos que delas decorrem. Assim, esses alunos seguiam participando de todas as atividades educativo-pedagógicas da escola, desde aulas regulares com a turma do seu nível de ensino até atividades extraclasse, como apresentações musicais, apresentação de capoeira, passeios e visitas culturais. Dentre muitos outros, os garotos citados acima, Francisco e Tadeu, são exemplos concretos dessa situação. Os alunos tomavam conhecimento e às vezes acompanhavam o empenho da direção e de alguns professores na busca de alternativas para quem "precisaria" sair da escola. Configurava-se, assim, entre os alunos e os professores, principalmente de quatro ou cinco envolvidos mais diretamente com essa questão, um vínculo pessoal com os alunos, uma relação de cumplicidade, de confiança e afetividade15. 15 Uma manifestação de afetividade dos alunos para com os professores pode ser vista no "Álbum de Poesia da EPA", no Anexo 5. 77 A importância que o vínculo com a escola tinha para os alunos pode ser percebida através do trecho a seguir, retirado de uma entrevista com Rogério, 18 anos, que avançou para a T 4, à noite: V- E tem alguma coisa que tu não gosta? Que tu menos gosta, na EPA? R- Que eu menos gosto? (sorri) É quando não deixam eu entrá! [ele sorri muito]. Só isso! Quando não deixam eu entrar...! V- Mas por que eles não deixam tu entrar? R- Ah, tem às veiz que eles falam...É que eles falam que eu não sou do colégio, né...que eu sou agora do CEMET, daí, então, eu não posso vim. [...] Como aquele dia, não dexaram eu entrá no colégio, e tinha um bagulho bom! Tinha aquele passeio que ia levá lá...naquele...como é que é no sítio, lá, no primero sítio que eles foram. Cheguei ali no portão, perguntei, já tinham ido. Bá!! Daí eu comecei a chorá, ali. Comecei a chorá. (Entrevista, 30.9.1999) 3.2 Da ponte até a escola: a música nas relações sociais Se a relação dos alunos com a escola, descrita anteriormente, me chamava a atenção, as relações pessoais entre os alunos também se revelavam interessantes, principalmente pelo senso de coletividade, solidariedade e pela confiança existente entre os pares e 78 grupos de amigos. Muitas vezes, somente o fato de estar com os amigos gerava alegria entre eles e não por acaso estavam sempre juntos: era na relação com seus pares de amigos mais próximos que experimentavam uma certa segurança, pois eram as pessoas que conheciam mais intimamente. Por exemplo, Lucas sempre andava com Daniel. Embora os dois tivessem companheiras fixas, casualmente ambas esperando um filho do respectivo companheiro, quase sempre chegavam juntos à escola e na hora da saída um esperava pelo outro. Sobre a amizade com Daniel, Lucas revelou: L- É um amigo fora de série mesmo! Dá conselho, me fala uns troço às veiz...Disse que é pra eu i e ficá na casa dele quando quisé. Eu podia ficá lá se eu quisesse...A guria dele também é tri gente fina. Não sei como é que ia sê, daí, se um dia eles brigá, porque eu me dô tri bem com os dois! (Entrevista, 10.9.1999) Da mesma forma, Rogério e Mendez, Júlia e Laura, Tadeu e Hagar, Carmen e Cristina, Franco e Carlos têm afinidade e, por isso, na maioria dos casos, dormem no mesmo mocó. Há também os que se relacionam com o grupo todo de uma forma mais isonômica, como Toni do rádio, Cristian e Tomaz, mas que formam um trio que parece se conhecer bem, quando estão dançando rap. 79 Fotos: Vânia Müller Os pares de amigos... Foto: Aline Gonçalves Foto: Vânia Müller 80 ...e a aproximação através da música. 81 Na ponte Quase que em sua totalidade, esse grupo de alunos com o qual convivi mais proximamente, vive em mocós próximos, que são embaixo de pontes de um mesmo rio. Por isso, sempre sabiam quem estava passando alguns dias em casa, quem estava doente ou machucado, quem estava namorando quem, quem estava no hospital. Sabiam quem estava "cuidando carro", pois seus "pontos" desse "trabalho" eram próximos aos mocós, sabiam quem havia ido ou não para a escola e, também, se o Toni estava "em casa" ou não, porque estava sempre acompanhado de seu rádio. Como me revelou Carmen, em entrevista, quando contou que gostava de ouvir música na hora de dormir: V- E dá pra fazê isso no mocó? Ir dormir ouvindo música? C- Dá, mas só às veiz, é que o rádio não é nosso, né, é do Toni... V- Sim, e o Toni não é do mesmo mocó...? C- É, só que ele é de um lado e nóis semo do outro; aí dá pra escutá! (Entrevista, 17.9.1999) Em entrevista, Lucas me explicava onde dormia cada um na sua ponte e quem eram seus vizinhos, fazendo questão de detalhar o local e de ter garantia de que estivesse entendendo sobre quem ele estava falando. Relacionou, assim, o nome de vinte e sete 82 companheiros que estudam na EPA e vivem juntos, deixando transparecer uma certa satisfação por todos se conhecerem bem e por ser um grupo fixo naquele local, embora haja casos de alguns que em determinadas épocas vão para casa e retornam, como é o caso do próprio Lucas. Também sabiam quem "não é da área" e estava ali para passar somente uma noite. O fato de a maioria dos alunos estar vivendo nas mesmas pontes como vizinhos conhecidos há bastante tempo, imprimia a esse grupo de crianças e adolescentes uma identidade de grupo. Essa auto-imagem de grupo era revestida de orgulho, uma vez que se viam diferentes dos "meninos de rua", evitando terminantemente essa denominação. As crianças e adolescentes que chegavam na EPA pela primeira vez recebiam comentários e, às vezes críticas, se os que lá estavam há mais tempo julgassem necessário "ensinar" quem estava chegando, a se comportar. Conforme contou uma professora, ocorreu uma situação em que um garoto recém chegado estava falando muito alto e fazendo gestos expansivos na fila do almoço, ao que Rubinho teria dito: "Ô meu!! Aqui na EPA não é assim, meu! Aqui não é a rua!" Quando se referiam ao lugar onde "moravam", raramente diziam "mocó". Ao invés desse termo, preferiam dizer "ponte", inclusive os professores. A "ponte" era pelo menos cinco pontes, com um total de dez mocós, cada um com ocupação de duas até seis 83 crianças e/ou adolescentes. Ou seja, quando diziam, diariamente, na hora de sair da EPA, a expressão "vamo largá pra ponte", significava convidar os amigos para ir embora, referindo-se a todas as pontes, cada uma com seus dois lados. Viam, assim, "um lugar" único, onde moravam todos, em pequenos grupos com maior proximidade entre si, os que partilham o mesmo lado de uma ponte, dentro de um grande grupo. A música parecia revelar a dimensão deste grande grupo quando proporcionava uma conexão entre as crianças e adolescentes de dois lados de uma mesma ponte e nas ocasiões em que se juntavam num mesmo lado de uma das pontes, quando cantavam, dançavam e tocavam com as latas e baldes que utilizavam para lavar os carros que cuidavam. Uma prática comum e diária de ouvir o rádio, segundo garotos entrevistados, acontecia à noite, quando ouviam a Rádio Metrô sintonizada no aparelho de rádio do Toni, num programa que transmitia até às 24horas, essencialmente rap, de forma que os que estavam no outro lado da ponte ouviam também, como mencionado anteriormente. Em outros momentos, a música parecia dimensionar o grande grupo quando eles próprios a faziam, agrupando-se num mesmo mocó para cantar, tocar e dançar as músicas que conheciam do rádio. 84 Era no seio do grupo, também, que a criação ia tomando forma à medida que experimentavam e "ensaiavam" as músicas dos garotos que criam rap, como contou Rogério sobre um rap que fez em parceria com Josué: R- Porque [o rap] tem as parte, né. Ele [Josué] marca as parte que eu que tem que cantá e as parte que ele que tem que cantá. Às veiz nóis peguemo lá as guria, lá, a Cristina, que à veiz faiz a lady, que eles chamam de lady aquelas que canta [sorri], daí a gente dá pra elas um jogral pra cantá. Daí fica meio trizinho! Sabe! Fica que nem tá cantando de verdade! A gente bem dizê tamo se treinando pa quando tivé um pouquinho mais maior, tivé uma chance pra nóis ou até quando agora que nóis tivé pequeno, tivé uma chance pra nóis, nóis tá...afiadinho pra cantá, daí! E todo mundo gostá. (Entrevista, 30.9.1999) Pela entrevista de Rogério fiquei sabendo que o rap mais conhecido e cantado pelos alunos da EPA, no ano de 1999, era de sua autoria em parceria com Josué. Rogério, preocupado que eu não acreditasse que a autoria do rap era dele e de Josué, fazia questão de me explicar por que todos conhecem e aprendem as músicas que fazem: R- Por isso, às veiz, ...como a senhora disse que às veiz eles sabem da música da gente, pcausqui [por causa que], a maioria, né, lá onde que nóis vivemo, lá...a maioria fica...em grupo, sabe? Como nóis! Fiquemo em grupo. Pa cantá a gente faiz em grupo assim mais que 85 cinco, seis, assim numa roda, aí começa a cantá... aí cada um vai cantando um pedacinho só, já vai ouvindo e...aí vai, aí quando vem pro colégio aí todo mundo sabe. Daí, se um canta lá...aí, "essa música eu conheço..." aí, já canta junto...aí, outro canta lá do outro lado... aí, fica assim. (Entrevista, 30.9.1999) Na ponte, a criação também podia ser coletiva e, segundo Rogério, acontecia através do "rap de hora", uma combinação improvisada de frases, como comentou na entrevista: R- [...] porque assim, ó, daí se uma pessoa...assim, é por verso, né, às veiz, aí eu faço assim, um verso, daí se eu não sei cantá o outro verso ele já tá com outro verso na cabeça e aí pode botá, o verso dele junto co meu [com o meu]; aí ele pára na outra parte que ele não sabe, daí eu invento, otros inventa, e assim vai indo...por isso que sai uma música já mais...mais maiorzinha. Porque se eu cantá, eu canto só um pedaço, né, se ele cantá, ele canta só um pedaço, ou se outro cantá, ele canta só um pedaço, daí a gente ajuntemo tudo isso, cada um canta um pedaço, daí dá uma música intera. (Entrevista, 30.9.1999) A música estava presente, também, nos locais de "trabalho", enquanto "cuidavam carro", atividade exercida pela maioria das crianças e adolescentes "da ponte" e que freqüentam a EPA. A esse respeito, Rogério também revelou: 86 R- Tem os balde lá, as lata que a gente lava os carro lá, e a gente fica lá tocando. Tem uns que fazem o som com a batida, com a boca, assim, daí quando vê aí dá, aí sai um sonzinho, daí a gente...fica ali. Se distrai um poco, né, sora! Que ficá parado, triste, esperando até o dinhero vim, ainda o dinhero é poco, aí, bá, daí a gente vai até...mas é bobagem, né sora, se a gente ficá triste, parado ali esperando, uma micharia vim ainda pra podê cumê, ainda a gente vai ficá meio triste... Cantando, daí a gente fica rindo, né, fica rindo, cantando, todo mundo rindo, falando, conversando ali, daí eu acho que aquilo ali...solta um poco mais daquele...desespero, sabe, de todo... trabalhador o [ou] inocente sofre. Acho que, acho que daí libera um poco mais. Dá um poco mais de consciência. (Entrevista, 30.9.1999) Na escola Seus mocós se localizavam relativamente próximos da escola, facilitando a freqüência dos alunos e por isso sua proximidade dentro do espaço escolar. Em um dos espaços, o refeitório, pude presenciar vários momentos em que alcançavam determinado alimento para um colega que sabiam que o apreciaria. A lembrança dos amigos, quando eles não estavam presentes em determinada atividade que sabiam que apreciariam, levava-os a manifestar-se e às vezes, chamá-lo, para participar da mesma ocasião. Numa tarde de racha de rap, a professora de Zeca, que 87 estava ao seu lado, pôs no aparelho de som uma fita cassete com a gravação de um rap que ele havia feito em aula, em parceria com Laio. Assim que começou o rap na voz de Laio, vários que estavam no pátio, ouvindo, ficaram bem impressionados com o rap e começaram a chamar, gritando, pelo nome de Laio, que estava na cancha jogando bola. Jorge, 13 anos, correu lá e foi avisá-lo de que seu rap estava tocando no rádio. Quando chegou junto ao pessoal que estava em volta do aparelho de som, era visível a expectativa de todos pela alegria e orgulho que Laio sentiria por ouvir o rap feito na aula, juntamente com Zeca. Na busca dos sentidos que as crianças e adolescentes em situação de rua atribuíam à música e, também, buscando verificar as formas como a música se inseria na sua vida, fui percebendo que as relações pessoais entre os alunos e as relações entre os alunos e a escola pareciam gerar os sentidos que, segundo SMALL (1998), uma performance musical pode revelar. Convivendo com os alunos da EPA, passei a considerar mais pontualmente em minhas observações a forma como se relacionavam entre si e seu relacionamento com os professores. Acreditava, assim, reconhecê-los mais individualmente nas suas formas de buscar e de manter as relações desejadas e de que maneira elas estavam contempladas nas GUARESCHI (1999), suas práticas musicais. Na opinião de 88 os grupos humanos, e as sociedades em geral, são melhor compreendidos se forem vistos como constituídos, em sua essência, por relações. Não é, por exemplo, nem o número, nem a cor, nem o tamanho, nem a idade das pessoas o essencial na constituição de um grupo. O que faz um grupo ser um grupo são as relações que nele se estabelecem (GUARESCHI, 1999, p. 142). SMALL (1998, p. 142) acredita que os sentidos encontrados em uma performance musical, são revelados pelas relações entre as pessoas que nela estão envolvidas. O autor argumenta que as pessoas envolvidas em uma performance musical estão, essencialmente, celebrando as relações que se estabelecem entre elas, e que a qualidade da performance será determinada pela qualidade das relações geradas no momento da performance. As crianças e adolescentes em situação de rua tinham no vínculo com a escola e, mais precisamente, nas relações pessoais com determinados professores e com seus iguais, razões bem concretas para fazer de suas práticas musicais nos tempos-espaços da EPA, uma celebração; seja tocando os instrumentos de percussão, ouvindo rádio com os colegas, participando de uma roda de rap, ou dançando nas festas no pátio da escola. Na EPA, a música parecia não só servir para a celebração dos vínculos ali existentes, mas também para revelá-los, no sentido de "trazer à tona" as relações sociais, fazendo-as visíveis em momentos 89 que envolviam música. Assim, se estivessem ouvindo algo interessante na sala de aula ou no vídeo da biblioteca, era comum algum aluno chamar "os outros" - os guardas, os colegas, a direção da escola, professores - para ouvirem também. Pareciam ver-se, identitariamente, como um grupo social em que as funções hierárquicas não emergem em detrimento do que as pessoas são em si mesmas, antes das funções que exercem. Isso pude observar em uma ocasião "formal", em que a diretora da EPA fazia um discurso no pátio da escola, perante um grande público, inclusive autoridades do poder público oficial. No entanto, Mauro, 15 anos, diretamente envolvido no projeto que a diretora explicava no microfone, sentiu necessidade de agradecer a uma professora, de fora da EPA, que trabalhou com ele. O garoto segredou ao ouvido da diretora que, naturalmente, incluiu na sua fala as palavras de Mauro. Assim como se sentiam à vontade transitando pela escola e entrando nas salas livremente, pareciam entender como "natural" que todos que ali conviviam e partilhavam o tempo-espaço escolar o faziam, também, segundo suas razões e curiosidades. Isso ocorreu quando mostrei para os alunos imagens gravadas em vídeo que havia feito durante o trabalho de campo. Da mesma forma, Emílio e Leonardo, os guardas, sempre estiveram presentes nas três sessões de vídeo realizadas na biblioteca, além do Hélio. 90 Emílio, Leonardo, Hélio e Jóice, a secretária, participaram da reunião pedagógica dos professores, quando dava um retorno deste trabalho de pesquisa, parecendo ter o entendimento de que este trabalho lhes dizia respeito. Em minha opinião, seu entendimento vinha da relação cotidiana com as crianças e adolescentes, cuja realidade conheciam de perto, e tinham amizades estabelecidas com alguns deles. Embora o aspecto comunitário deste espaço socioescolar se reflita de alguma forma nas diversas áreas e atividades de interesse dos seus integrantes - alunos, professores e funcionários -, quando a atividade envolvia música, este aspecto parecia salientar-se. Era um momento em que a maioria dos presentes na escola se concentrava num ponto comum, a música. Esses momentos indicavam tanto o aspecto comunitário deste grupo social, quanto o aspecto comunitário da música vivida ali. As observações indicavam que não faria sentido "olhar" para a música na vida das crianças e adolescentes deste cenário, à parte das relações sociais e da vida desta comunidade escolar. Em dezembro de 1999, a escola levou a "Família Mambembe" para dar um espetáculo envolvendo música, teatro e poesia, e ainda incluindo o preparo de cuca integral em uma tenda de panos coloridos, armada no pátio, e andar de perna-de-pau. Essa foi uma das vezes em que vi os guardas serem chamados para abrir o portão 91 porque alguém havia chegado, e eles não estavam lá, já que participavam das atividades educativas com os alunos. Leonardo, um dos guardas, que toca violão, nesse dia acompanhou o cantor principal em uma de suas músicas na viola caipira que o grupo trouxera. Havia mais crianças pequenas do que comumente ocorre. Neusinho, um ex-aluno da EPA, levou uma irmãzinha de 2 anos, e havia também sete crianças do grupo de artistas do "Mambembe" que tinham de 2 a 14 anos de idade. Depois da atividade do grupo visitante, resultou em uma grande festa de quatro horas, onde todos, sem exceção, independente das idades e das funções na EPA, envolveram-se de alguma maneira, ocasionando um alvoroço geral: enquanto alguns cruzavam o pátio com pernas-de-pau, inclusive professoras, outros batiam fotos, outros, ainda, amassavam as cucas, a viola caipira passava de mão em mão, e cada um "tocava" um pouco, os garotos maiores pegavam os pequenos no colo, dançando com eles, bem afetuosos, como costumam reagir aos bebês que aparecem na EPA16. Dois garotos começaram a cantar no canto do "L", formado 16 Algumas vezes alunos vieram para a escola com irmãos ou sobrinhos, menores de 5 anos de idade. Houve casos também de ex-alunos que vieram visitar a EPA na companhia de crianças pequenas da sua família, principalmente nas ocasiões festivas. Nessas ocasiões, os bebês circulavam pelo colo dos alunos, especialmente os garotos, incluindo-os nas suas atividades da festa, principalmente a dança e a música. 92 pelos banheiros e pelas janelas da sala dos professores e da secretaria. Cristian tocava na lixeira de plástico e Caio tocava no pandeiro do "Mambembe". Logo chegou Fernando caminhando em cima da perna-de-pau e, ao mesmo tempo que se apoiava em um dos pilares, batucava nele, junto com Cristian e Caio. Os três cantavam uma música conhecida do rádio, um samba. A partir daí, outros foram juntando-se a eles, aumentando o grupo e também a animação. Lucas chegou na frente da câmera com a qual eu filmava e disse com entusiasmo e pressa: "me dá a chave, quero buscá um instrumento pra eu tocá!" Mais tarde, veio Fernando dizer que queria pegar uma caixa para tocar, e assim vieram, em momentos diferentes, mais três alunos pedir a chave da sala onde ficam guardados os instrumentos de percussão da escola, a qual estava comigo. O grupo que se formava já produzia um resultado sonoro de volume considerável. Inclusive os atores-músicos do grupo que foi fazer o espetáculo na EPA e suas sete crianças, que já se misturavam entre os garotos, tocando e cantando engajados naquela performance que se originou espontaneamente. Já estavam sendo utilizados três repeniques, dois pandeiros, um surdo, dois tamborins, duas caixas, três tambores médios, um agogô às vezes tocado pela Mila, a vice-diretora, e outras por Maira. Quando Leonardo viu que Alex estava "tocando" cavaquinho, sem 93 "saber" tocar, perguntou-me se poderia tocar com o meu violão, que sempre usa nessas ocasiões. Havia também na "roda", um cavaquinho, um ganzá tocado por Ceres, a servente, que às vezes alternava com Júlia, a secretária, e, ainda, uma lixeira de plástico e outra de metal. Depois de trinta minutos, todos os alunos e quase todos os adultos presentes no espaço escolar estavam na "roda", amontoados, ocupando não só o canto onde Cristian e Caio começaram a tocar e cantar, mas todo o "L" em frente aos banheiros e as janelas da sala dos professores e da secretaria. Eu me alternava em filmar e participar da "roda", o que era possível quando a professora Rejane filmava um pouco, ou, a professora Cimara, que cuidava trabalhos de argila dos alunos, expostos no pátio, na ocasião. As músicas cantadas vinham dos garotos - as que conhecem do rádio, raps, pagodes e sambas, e algumas canções das rodas de capoeira, conhecidas pelos integrantes do grupo de teatro. Também, vinham músicas desse grupo - canções populares brasileiras de vinte e trinta anos atrás, como marchinhas de carnaval e outras - que os alunos não conheciam totalmente, mas tentavam cantar. Como nós, os professores, as conhecíamos, as músicas se sustentavam e iam, em geral, até o fim. Assim, era possível ouvir após "Sobrevivendo no 94 Inferno", um rap dos Racionais Mc's17 "puxado" pelos alunos, a música "Bandeira Branca"18 de Max Nunes, puxado pelo grupo Mambembe; após um samba-enredo de uma escola de samba carioca, uma professoras, música de acompanhadas "Milton pelo Nascimento" violeiro do cantada pelas Mambembe. Os "repertórios" de cada "segmento" que participava pareciam ser, naquele instante, o repertório do grupo que ali se formou. As atividades com música na EPA, em geral envolvendo os adultos, as crianças e os adolescentes, os alunos, os professores e os funcionários em momentos de um dia corriqueiro de aula ou em uma comemoração aberta ao público, revelavam que ali a música assumia um "caráter comunitário" (SMALL, 1989). E o entusiasmo que marca o envolvimento de cada um com o grupo que está a vivenciar e partilhar a música leva-me a concordar com este autor, quando diz que "[...] o júbilo fundamental da música, que se em definitivo é um prazer, é um prazer compartilhado" (SMALL, 1989, p. 205). SMALL (1989) critica a distância que a música tomou da vida diária do homem, depois que os "especialistas" em música passaram a explorar e pensar a música coerentes com a visão científica do Grupo brasileiro de rap de maior preferência entre os alunos da EPA. Um dos grupos precurssores do movimento Hip-Hop no Brasil, surgiu no início da década de 90, em São Paulo, abordando com veemência a violência urbana. (Ver ANDRADE, 1999; CONTADOR e FERREIRA, 1997). 17 18 Marcha popular executada tradicionalmente durante o Carnaval, na maioria dos estados brasileiros. 95 "mundo europeu pós-renascentista" (p. 34), delimitando tanto a obra musical como o tempo e o lugar onde seria "apropriado" ouvi-la. O autor compara esse distanciamento com a obra de um artista plástico e quem a recebe, argumentando que na música dois limites impõem a distância entre nós e a obra musical: o limite "espacial e temporal" (SMALL, 1989, p. 34). Ao referir-se ao limite espacial, ele diz: Situamos os sons em um edifício ou outro espaço construído ou reservado para esse fim e cuidadosamente ilhado para que não possam entrar os ruídos da vida diária - e quem sabe também para que os sons não possam escapar até o mundo - , enquanto que os executantes estão instalados sobre uma plataforma, à parte do público. A separação entre o mundo da música e o da vida diária se acentua nos rituais minuciosos da sala de concertos e do teatro de ópera - a compra de entradas, a reserva de assentos, as convenções sobre o atendimento e o comportamento de executantes e público - , definindo a execução do concerto ou a ópera como uma ocasião especial, um momento diferente do resto da vida de qualquer um (SMALL, 1989, p. 34-35). Ao referir-se ao limite temporal, este autor argumenta: O tempo que será ocupado pela música está claramente definido. Antes de começar a execução, sabemos com uma margem de minutos quanto há de durar; às vezes, um anúncio na entrada avisa a hora exata em que acabará. Uma vez que o público sentou e está em silêncio, o diretor levanta a batuta, o pianista leva as mãos ao teclado e a obra segue o curso pré-estabelecido sem que nada, a não ser um desastre natural ou uma 96 falha dos músicos, lhe impeça de chegar ao acorde final. [...] A planificação em grande escala dos acontecimentos no tempo - aquilo a que chamamos forma - é um elemento de grande importância nesta música. É como se não gostássemos de perder-nos no tempo. Cada obra musical representa uma progressão linear no tempo, que vai desde o bem definido começo até o final inevitável, e o ouvinte familiarizado com o estilo sabe sempre onde está em relação ao começo e com o fim, ainda que seja a primeira vez que esteja ouvindo uma obra (SMALL, 1989, p. 35). Essa visão da obra musical - nas palavras de SMALL (1989) como algo "autônomo", "externo a nós", "acabado" e "especial" explica a atenção prioritária depositada no produto musical, distanciando-nos do aspecto vivencial da música (SMALL, 1989), como será abordado no capítulo quatro e, talvez, mais acentuadamente, do "caráter comunitário da música" a que se refere SMALL (1989, p. 218). A busca por um momento "`a parte" da vida cotidiana para encontrar-se com um produto musical que se basta em si mesmo, pois tem início, meio e fim, e é sua coerência interna que importa, não contempla o "prazer compartilhado" a que se refere esse autor. Foto: Aline Gonçalves Foto: Vânia Müller 97 Da ponte... ...até a escola... Foto: Vânia Müller 98 ...suas atividades musicais se justificavam, antes, como sociais. 99 3.3 A música como possibilidade de inclusão A necessidade que as crianças e adolescentes da EPA tinham de inclusão, de serem aceitos no grupo, manifestava-se nas mais diversas atividades nas quais se envolviam. Toda e qualquer atividade era vista por eles como uma possibilidade de inclusão. A música parecia propiciar uma variedade de situações em que era possível realizar o desejo de ser aceito, às vezes, não tanto pela música em si, mas para aproximar-se do grupo. Aconteceu assim com Walter, 16 anos, quando nos encontramos a caminho da EPA, como revela o trecho de nosso diálogo que segue: Hoje encontrei o Walter no ônibus "Praça XV", na ida para EPA. Ele estava calado, extremamente introspectivo, o olhar absorto pra fora da janela. Parecia estranhar que eu tivesse ido sentar ao seu lado, de vez em quando espiando com o canto do olho. Comecei a puxar conversa, ele disse que estava com febre, que estava vindo do hospital, onde foi consultar um médico. Quando descemos do ônibus ele disse "Bá, eles vão ri e gozá muito de mim! Vão dizê que eu tô de militar" porque usava uma calça do tipo "safari", camuflada, verde e marrom. Eu disse que ele estava muito arrumadinho, todo cheiroso, de gel no cabelo, que parecia que tinha tomado banho, ao que ele respondeu "Claro! Eu sempre tomo banho antes de sair de casa! Não dá pra ir no médico sem tomá banho." Quando chegamos perto do portão da EPA, já se ouvia o som dos atabaques, então eu falei: 100 V- Olha só, a roda de capoeira, pelo jeito já tá acontecendo...! W- Não vou entrá! (e foi parando) V- Vamos! Entra comigo! (parei também) W- Não, vão me gozá que eu tô assim! (olhava pra sua calça) V- Toma aqui, entra tocando pandeiro, que ninguém vai repará na tua calça...! (mostrei o estojo do pandeiro) W- Que que é isso? V- É um pandeiro. W- Bá! Me dá aqui, vô entrá tocando...! (tirei o pandeiro do estojo e dei pra ele) V- Vamo então! W- Não, vou ficá aqui. Vai indo, vô depois. (Caderno de Campo, 6.12.1999) Outro exemplo de que um instrumento musical, por si só, pode fazer o aluno sentir-se incluído ou vinculado a uma determinada atividade é o que ocorreu com Fabiano, 11 anos: (...) a roda de capoeira já estava funcionando bem, uma roda grande, muitos instrumentos sendo tocados produzindo um volume forte. Depois de ajudar-me a carregar os últimos instrumentos para o pátio - o atabaque, um pandeiro e outro berimbau -, Fabiano veio mostrar-me seu nome escrito em uma etiqueta e colado, por uma professora, dias atrás, no pandeiro que usava. Enquanto eu ajustava as pernas do atabaque, ele disse bem alto, perto do meu ouvido pra que eu pudesse ouvir: "claro que eu não posso levar embora, mas é meu!" 101 (Caderno de Campo, 6.12.1999) Os alunos da EPA aproveitavam bem a possibilidade de inclusão através da música. Foi possível observar momentos em que o desejo de estar no seio do grupo muitas vezes é maior do que o interesse pela atividade musical em si. O exemplo de Toni, a seguir, mostra que optou pela companhia dos colegas, mesmo que estivesse em um meio musical que não aquele com que mais se identifica. Ele, que é considerado "o rapper", "o coreógrafo", tenta entrar de qualquer forma na roda de samba, inclusive lutando pra conseguir um instrumento: Toni estava no pátio com o rádio ligado, ouvindo rap, sozinho, fumando seu cigarro, enquanto todos - uns 15 colegas - passavam na sua frente com instrumentos de percussão em direção ao galpão, onde seria o ensaio que já estava programado há alguns dias e para o qual havia pessoas de fora da escola envolvidas, inclusive. Depois de cerca de 10 minutos, Toni entrou no galpão. O rádio da escola, os CDs e as fitas cassete de rap ou pagode, ou ainda ouvir a rádio que quisesse, não era, naquele momento, razão suficiente pra ficar sozinho ali, no pátio, enquanto todos estavam no galpão envolvidos numa atividade comum. Era visível que seu envolvimento, embora tenha tirado o instrumento de outro menino e estivesse tocando, era, para não dizer superficial, completamente diferente de quando está dançando ou 102 cantando rap. Estava tocando para estar participando, para estar incluído, para estar junto; fazia-o com certa displicência e divertia-se consigo mesmo fazendo movimentos com os braços, levantando as baquetas entre as batidas no tambor. Para o Toni, tocar aquele gênero de música, estar naquela atividade musical, parece não exigir dele um total envolvimento; então, dá tempo de brincar. Ao contrário do rap, onde só vê-lo ouvindo, sentado do lado do aparelho de rádio, se percebe que está mais concentrado do que na roda de samba ou de olodum; quando dança, então, sua concentração e vibração são permanentes, sabe o que está fazendo e está inteiro no rap. Dança os recreios inteiros trazendo os outros, meninos e meninas, que se alternam indo e vindo dançar ao seu lado, imitando sua coreografia, aprendendo com ele, enquanto ele se mantém sem sentar. O difícil é interromper seu envolvimento quando acaba o tempo dos recreios que têm rádio. (Caderno de Campo, 19.11.1999). Quando os alunos tinham oportunidade de estar e fazer música com pessoas que não se encontravam em situação de rua como eles, ficavam eufóricos. É quando transparecia mais nitidamente a sensação de inclusão que os alunos estavam tendo. A escola promovia o contato dos alunos com pessoas que não se encontram em situação de rua, levando para dentro do espaço escolar outros músicos para tocar, assim como organizava rachas de rap, quando os alunos receberam grupos de outros bairros da cidade. Várias rodas de capoeira se realizaram na escola com a participação 103 de capoeiristas trazidos pelo professor de Educação Física, em horários extraclasse, como aos sábados à tarde, não se caracterizando como aula, e sim, como mais um momento de socialização, através da capoeira. Fora da EPA, os alunos participavam de eventos, tocando ou dançando ao ar livre em parques centrais da cidade. Participei de uma apresentação na Febem feminina, quando os alunos da EPA foram convidados para animar o baile de carnaval das garotas internas daquela instituição. Houve o concurso "Rainha do Carnaval, 1999", o que animou sobremaneira os garotos. Sentiam-se bem importantes tocando entre a apresentação e o desfile de cada candidata. Depois do concurso, tocaram para as pessoas dançarem, e também o Sabedoria de Rua se apresentou. Era visível, naquela tarde, na Febem, o bem-estar decorrente daquele momento, não só pelas sessenta meninas presentes, com as quais dançaram e cortejaram, mas também pelos vários adolescentes e jovens do sexo masculino, cerca de cinqüenta, que foram convidados para o baile, vindos de outras instituições assistenciais, de cidades próximas de Porto Alegre. Outro exemplo da euforia dos alunos perante "cidadãos incluídos" deu-se após a apresentação do Sabedoria de Rua, quando os apresentei, um a um, dizendo seus nomes: 104 Hoje Délcio não dançou para os músicos adolescentes visitantes, pois foi pisado por um brigadiano. Ele, então, ficou de Dj e, no final, orgulhosamente, disse: "Esse é o grupo de rap Sabedoria de Rua", ao que os visitantes aplaudiram muito e assoviaram. Nesse momento, junteime a eles no centro do galpão e contei para o pessoal da outra escola que eles iriam se apresentar à tarde, na Assembléia Legislativa, e apresentei-os individualmente, dizendo seus nomes. Vários iam falando seus nomes antes de mim, de medo que eu pudesse não falar. Estavam saltitantes e eufóricos na minha volta, no centro do galpão curtindo serem admirados na "sua casa", por outros músicos, adolescentes e, do "lado de lá". Parece visível o "inchar" do ego, embora ele já venha machucado, sem muita certeza de onde vai dar, pra que vai servir...o que vai mudar por causa disso. (Caderno de Campo, 19.8.1999) A música como uma possibilidade de inclusão tem efeitos diretos em aspectos da identidade das crianças e adolescentes em situação de rua, pois vivenciar a música estando em contato com pessoas "do lado de cá" se configura em uma circunstância potencialmente identitária. Nessa direção, serão interpretadas a seguir algumas vivências dos alunos da EPA que ilustram essa questão. 105 3.4 A música e a identidade das crianças e adolescentes em situação de rua Nas observações realizadas nesta investigação e no convívio com os alunos da EPA, pude verificar em momentos diversos a participação da música em três aspectos relevantes sobre os quais é construída sua identidade: a) na frustração da privação de sua infância (CRAIDY, 1998), b)no estigma, e c)na necessidade do grupo. a) A privação da infância Para CRAIDY (1998), a privação da infância ocorre pela "antecipação das responsabilidades adultas e pela supressão do tempo de fazer de conta, tempo de poder ser 'irresponsavelmente' um experimentador de papéis sociais" (p. 64). Nas brincadeiras da infância, a representação e o jogo com os papéis sociais possibilitam "o reconhecimento de si mesmo e do outro, [pois] é um processo de simbolização e de significação em que o outro, enquanto referência adulta (em particular, os pais ou seus substitutos), e o outro, enquanto igual (outra criança de idade próxima), desempenham papel decisivo" (CRAIDY, 1998, p. 63-64). No entanto, no caso das crianças e adolescentes em situação de rua, elas têm o seu "momento de simbolizar, por excelência, [...] substituído 106 pela necessidade de assumir a realidade na sua expressão mais dramática e opressora" (CRAIDY, 1998, p. 64). Na convivência com os alunos da EPA pude observar comportamentos decorrentes da privação da infância, através da adultização precoce em alguns momentos, contrastando com a infantilização em outros. CRAIDY (1998) presenciou em seu trabalho junto a crianças e adolescentes em situação de rua "meninas de doze a dezesseis anos - prostitutas e, algumas, até mães - que brincavam de boneca e de 'casinha', como se fossem crianças de sete ou oito anos, [e também] 'homens-meninos', às vezes infratores, a brincarem com carrinhos como crianças pequenas" (p. 63). A privação da infância parecia levar alguns adolescentes da EPA, de 15 a 20 anos, a permanecer na fase da infância. Convivi com algumas crianças e adolescentes cujo corpo parecia atestar seu desejo de não crescer, como a voz infantilizada de alguns e os olhos de um garoto, Josué, que nunca se abriam totalmente, parecendo "não querer ver a realidade", como colocou uma professora da EPA. Porém, chamava-me mais a atenção a maneira como alguns alunos "aproveitavam" a música para "fazer de conta" e experimentar "papéis sociais". Délcio, 20 anos, por exemplo, na maioria das vezes em que tocavam os instrumentos de percussão, fazia de conta que era o regente do grupo; Francisco, 18 anos, não perdia a oportunidade de 107 sambar "brincando" de passista de escola-de-samba, quando se reuniam para tocar, ou quando um samba tocava no rádio; Dino, 14 anos, numa ocasião, ficou "fazendo de conta" que era "Pai de Santo" o mestre de uma cerimônia afro-religiosa - dançando e vestido como tal por cerca de duas horas, em uma festa. A música também parecia "permitir-lhes" comportarem-se como criança, pelos trejeitos, caretas e movimentos não habituais com o corpo, quando estavam em grupo tocando os instrumentos de percussão. A primeira reação dos garotos quando iam pegar esses instrumentos na sala onde são guardados era de uma alegria de quem tinha um brinquedo na mão e, como tal, o manuseava, aleatoriamente, sem se preocupar com o som produzido, "brincando" de tocar. Numa ocasião, chamou-me a atenção que Alex, embora nunca houvesse tocado cavaquinho, fixou uma posição com os dedos da mão esquerda nas cordas desse instrumento e "tocou" várias músicas, por aproximadamente uma hora. Era uma festa de final de ano no pátio da EPA e, de pé, numa grande roda onde alunos, professores e funcionários tocavam algum instrumento e cantavam, ele pôde fazer de conta que tocava, e assim participou integralmente da dinâmica daquele momento musical. 108 b) O estigma Especificamente sobre o estigma, GRACIANI (1997) escreve: As crianças, adolescentes e jovens de e na rua são categoricamente estigmatizados, desde o seu nascimento, pelo processo de exclusão, sempre considerados 'anormais', delinqüentes em potencial, devido ao modo como vivem e ao espaço que ocupam, e não pelo delito concreto cometido. O estigma [...] é um julgamento categórico de antemão. O estigma do menor está determinado não por causa da sua personalidade ou capacidade, mas porque é pobre e porque é chamado "menor". Assim, eles se colocam sempre em defesa e justificação, assumindo reforçando normas uma identidade estereotípicas da de rua, sociedade (GRACIANI, 1997, p. 145). Uma conversa com Tadeu, 21 anos, num final de tarde de dezembro, reflete a imagem que acredita ter para as outras pessoas, e que de fato parece ter: T- É, mais é pocos que confia em mim... pelo que eu já fui né...é difícil alguém confiá [...] eu quando robava eu não passava nem na frente de um bar porque os outros espiavam...as pessoas na rua! Me olhavam e saíam de perto de mim! Às vezes me olhavam e saíam pro outro lado da rua, com medo! A minha cara não ajuda tamém...!! V- Eu não acho, não tem nada a ver!! [a dona do bar entrega os talheres pra mim] 109 T- É, mais muita gente já me disse que eu tenho uma cara de...ladrãozinho. Era visível o incômodo que causávamos à senhora que estava atendendo no bar. Ao mesmo tempo que eu dizia ao garoto "não, não tem nada a ver", a senhora entregou para mim os talheres que eu havia pedido para o Tadeu. Era ele que estava comendo, eu não estava. Durante todo tempo em que estivemos ali, e ficamos uma hora e meia conversando, ela não dirigiu o olhar sequer a ele nem por uma vez. Tadeu é de cor preta e está muito magro. Ser magro, tradicionalmente, é sinal de não ter o que comer, ou seja, ser pobre. Pobre e preto é vagabundo, e vagabundo e bandido não tem diferença. É soropositivo e por isso já esteve internado no hospital por duas vezes, por vários meses em cada período, sendo que na última esteve com tuberculose. Segundo o garoto, a doença o fez "largar dessa vida" e incluir nos seus planos o de viver com sua filha de três anos: "só o que eu quero é tê minha casinha e cuidá da minha filha". O esforço que está fazendo para levar adiante seu desejo de mudança parece exigir de Tadeu um outro esforço, que é o de conviver com uma imagem que as pessoas têm dele, segundo ele, e que não quer mais para si. Concretizar o desejo de morar em algum lugar e mudar sua imagem perante os outros são duas coisas que parecem igualmente grandes e difíceis de realizar. Tínhamos que ir para a EPA, pois Tadeu tinha aula. Enquanto saíamos comentei sobre o incômodo e o comportamento da senhora do bar, ao que Tadeu respondeu: "Ahã!..." sem se surpreender; quem diz: "isso é normal". (Caderno de Campo, 17.12.1999) como 110 A proximidade na convivência com os alunos da EPA possibilitou-me verificar a forma como vai se sedimentando o estigma em suas personalidades, através de fatos no cotidiano da escola, ou ocorridos fora da EPA. Era possível, por exemplo, presenciar relatos de agressões de policiais e ver, no corpo agredido, a marca da violência e da discriminação e, também, perceber as sutilezas que revelavam como suas subjetividades refletem sem cessar as marcas psicológicas do estigma. E não havia indicações de reversão desse quadro, por mais que, durante o dia, dentro da EPA, eles desfrutassem e fossem alvo de uma ação educativo-pedagógica que visa à auto-estima, à autonomia e ao desenvolvimento integral, enfim, dos alunos, pretendendo sua desrualização19. Existem muitos alunos que têm uma forte identificação com cantores e músicos divulgados na mídia, admirados por sua origem pobre, e há, principalmente entre os que têm uma vivência musical intensa, a esperança de que sua realidade poderá mudar, como aconteceu com alguns dos artistas que conhecem. No trecho de entrevista que segue, está explicitada essa visão, nas palavras de Kel e Cristian, ambos do Sabedoria de Rua, quando falavam que queriam ser famosos e ganhar muito dinheiro: 19 Termo utilizado pela Pedagogia Social de Rua para referir-se a um de seus objetivos: o restabelecimento de laços entre a criança e a escola e/ou a família, através da abordagem lúdico-pedagógica na rua (GRACIANI, 1997). 111 C- Claro!! Que nem ...olha Pepe...Pepe e Nenem era tri pobre pra caralho, né!! K- Claudinho e Buchecha tamém...!! C- Então...então tu vê que elas era...elas, elas nasceram no Rio de Janeiro, né? V- Foi. Na favela. K- Como Claudinho e Buchecha! Claudinho e Buchecha também. C- Eram tri pobre pra caralho!!! Aquelas ropa mendinga das nega ffed (ele diria "fedida", mas olha pra Kel e não continua, porque ela é preta) aí... foi estudando, estudando, estudando aí feiz...aula de ...inglêis, né? agora já tá aí cantando (põe a mão na boca como se estivesse de microfone e ginga) C- Não! Bá!!, e som, né?!!! (ginga com o corpo querendo dizer que elas têm o maior swing) foram crescendo, crescendo (vai levantando os braços e as mãos em toda sua extensão) agora tão aí, ganhando bastante dinheiro! É, Claudinho e Buchecha trabalhava em obra... era servente quando era pequeno. Era servente. (fica sério e fala num tom de profunda admiração pela trajetória dos músicos). (Entrevista, 11.9.1999) O envolvimento com a música propicia que se exponham mais à vontade, pois vêem assim a possibilidade de serem vistos como pessoas comuns, não violentas, que têm saberes e capacidade de fazer música, e se apresentar, como falou Rogério na entrevista: R-Claro! Se apresentá...Pras pessoa ficá conhecendo nós melhor...só porque eu sou menino de rua mas eu não 112 sou... isso que eles pensam...que menino de rua é malvado, chinelo, que robam deles, eu não, eu sô diferente! Eu prefiro mais é cuidar meus carrinho lá, não tá me humilhando do que tá robando deles. Depois ainda vá que eu caio lá dentro lá [prisão], já sô de maior, né! (Entrevista, 30.9.1999) Os alunos da EPA manifestaram também o desejo de divulgar o nome da escola e de que seja reconhecida através do grupo de rap, o Sabedoria de Rua. Seu carinho e reconhecimento pela escola se expressa através das palavras de Tomaz, 18 anos: Queria que o colégio fosse bem famoso, que todos lugar conhecesse a EPA! Por isso que tem que trabalhá, ensaiá bastante. Já tem até, tem uns lugar aí que já conhece nóis, que já falam 'Ah! Tu é daquele colégio, tal, que tem o grupo de rap...!' Falam já, mas tem que sê mais conhecido. (Entrevista, 27.9.1999) c) A necessidade do grupo Relevante na construção da identidade das crianças e adolescentes que freqüentam a EPA, a necessidade do grupo e a conseqüente submissão à ele derivam da busca por segurança e companhia. Nessa relação com o grupo acontecem trocas e barganhas em que a criança e o adolescente se sujeitam a atrocidades e todo tipo de exploração, para evitar a solidão, o medo e 113 a fome. (CRAIDY, 1998; GRACIANI, 1997). Assim, essa criança e esse adolescente vão assimilando os valores, a linguagem, o visual, as regras e a dinâmica do grupo, em detrimento de suas individualidades, levando suas personalidades individuais a serem "absorvidas simbioticamente pela personalidade do grupo" (GRACIANI, 1997, p. 229). É nesse ambiente, no seu grupo de pertinência, que a criança ou o adolescente em situação de rua "poderá refazer relações do tipo primário, nas quais projeta suas necessidades afetivas e expressa sua capacidade de solidariedade. Entretanto, muitas das formas desta última não serão mais que 'obediência às regras do jogo' com mais conteúdo de submissão que de afeto ou convicção" (GRACIANI, 1997, p. 116-117). Existe um conflito, portanto, que os acompanha e que eles têm de administrar de alguma forma: ao mesmo tempo que existe a necessidade de coesão interna no grupo e, portanto, de fidelidade à identidade do grupo, há o desejo de não ser identificado como "de rua" perante a sociedade que o exclui. Um exemplo desse conflito aconteceu na Assembléia Legislativa do Estado, por ocasião de uma audiência pública com a Comissão dos Direitos Humanos, para a qual foram convidados os educandos da EPA. Foram lá para dar depoimentos sobre suas condições de vida, condições essas que, na ocasião, propiciaram a morte de um colega. 114 Enquanto aguardávamos no saguão o momento da audiência, Júlio, 18 anos, ficou muito contrariado e quis se retirar, ao ver chegando no recinto uma câmera de televisão de uma emissora comercial, e disse: "Eu não quero aparecer na televisão sendo chamado por 'menino de rua'". No entanto, aquela ocasião havia sido criada exatamente para tratar sobre as questões que dizem respeito "ao menino de rua", como não quer ser chamado, e ele próprio havia sido escolhido na escola para ser o principal representante da EPA a depor. Nesse contexto de jogo de forças permanente entre identidade de grupo e identidade individual, a música surge, também, como uma possibilidade de diferenciações entre cada uma delas à medida que propicia que individualmente a criança e o adolescente em situação de rua se afirme. FERNÁNDEZ (1999, p. 18) nos lembra do que ele julga um "aspecto importantíssimo da escrita, que a escola muitas vezes esquece: o escritor - autor como leitor de si mesmo. Escrever como inscrever-se, e ler como ler-se". O aspecto, em minha opinião, correspondente na música - ouvir-se, ver-se e sentir-se - tem uma contribuição relevante para quem está construindo sua identidade, e ainda mais no caso de atrelamento do indivíduo à identidade de grupo. No momento em que estão dançando ou tocando juntos, os alunos têm possibilidade de, apesar do grupo, olharem para si 115 mesmo, buscar-se a si mesmo, relacionar-se consigo mesmo de alguma forma, o que é raro, pois nunca andam sozinhos (GRACIANI, 1997). Nas entrevistas podia perceber que realmente não estão acostumados a estarem sem os amigos. Alguns pareciam sentir-se desprotegidos. Porém, no decorrer da entrevista, passavam de um certo desconforto inicial à vibração de ter uma atenção individual. Neste trecho da entrevista com o Fernando, percebe-se sua satisfação em olhar para si próprio: Desligamos o gravador. Eu quis voltar um pouco a fita pra ele ouvir um pedacinho e ele disse: "dexa voltá tudo!". Ficou muito tempo em silêncio absoluto, ouvindo o diálogo. Embora risse em alguns momentos, essa graça que ele via percebo-a como um aspecto mais superficial do que a totalidade daquela vivência pra ele. Essa postura e o desejo de ficar ouvindo a entrevista, se ouvindo e se ouvindo na entrevista (se vendo) manifestou-se em todos os entrevistados, embora uns mais, outros menos. A meu ver, um fator de extrema relevância é o fato de estarem só, de estarem em uma atividade em que não estão expostos aos julgamentos do grupo e livres de qualquer preocupação em corresponder aos padrões da identidade do grupo, o que é extremamente raro. O semblante do Fernando parecia mostrar um certo êxtase pela raridade do momento, o de olhar para si mesmo; estava muito próximo dele mesmo e estava tendo uma chance, que parecia não querer perder em nem uma palavra do que ouvia, de se admirar. Quando ouviu o que fez com a boca [base de rap], voltou 116 quatro vezes a fita para esse ponto da entrevista. Ria e me chamava, me avisava pra eu ouvir também. Então perguntei se gostaria de gravar umas batidas com a boca, e ele concordou prontamente. Gravamos as batidas e também concordou em dançar um pouco de break na frente da câmera, pra que "eu conhecesse" essa dança. Deu, sora? Só? Tão vão escutá, agora...! V- O que que tu qué escutá, de novo?!! Que tu qué escutá?? F- oooo......... V- Já sei!! [olha pra mim pra ver se sei mesmo] O que tu cantô! F- É! V- Tu acha importante, Fernando? O quê que tu sente quando tu ouve? F- Eu gosto de escutá, sora... (Entrevista, 6.9.1999) O contato das crianças e adolescentes em situação de rua com a EPA, e também a vivência musical que eles possuíam naquele espaço escolar, parecia poupá-los de uma "progressiva encapsulação dos grupos incluídos em seus próprios nichos culturais, assim como a perspectiva de alguns indivíduos inseridos em seus respectivos grupos" (GIMENO identidades SACRISTÁN, individuais mais 1999, valorizadas p. 178), que, por viabilizando sua vez, administram com mais autonomia as relações com seus respectivos grupos. 117 Isso ocorria à medida que os alunos tinham contato com outras crianças e adolescentes de outras instituições e, também com adultos, através de atividades envolvendo as diversas áreas do conhecimento. Esse contato podia ocorrer através da música, quando se apresentavam fora da EPA ou recebiam outros grupos em seu espaço escolar. As identidades individuais e a identidade de grupo parecem ter na roda de rap um exercício de acomodação e desenvolvimento. A satisfação de dançar em grupo, o que o rap proporciona sobremaneira, aumentava proporcionalmente ao encontro de cada um com sua própria identidade, construída no seio do grupo. O aluno vê-se dançando, individualmente, ao mesmo tempo que vê o grupo. O dançar junto parecia reafirmar tanto a identidade individual, garantindo o espaço de cada um dentro do grupo, quanto a identidade do grupo. Poderia se fazer uma analogia com os dois momentos da roda de rap, que tem o momento de se mostrar individualmente, no centro do círculo, sendo observado por todos e identificado pelas habilidades individuais expostas, onde todos "tem a vez"; e o momento de fazer tudo igual a todos, em que a força, o impacto e a glória são maiores quando tudo acontece rigidamente igual e junto (CONTADOR e FERREIRA, 1997). Os alunos da EPA pareciam encontrar uma coesão na prática do rap, uma vez que, como grupo, se reconhecem como mais um 118 integrante de um movimento social urbano, denominado hip hop, onde vêem o "discurso do 'gueto' sendo reconhecido e admirado pelos meios de comunicação, principalmente, pela pela escola juventude (com da exceções) classe e pela média e, pesquisa acadêmica" (ANDRADE, 1999b, p. 9). Experimentam o sentimento de legitimação na sua vida de exclusões, trazida por um discurso que "foi capaz de reivindicar direitos sociais, apontar dificuldades da vida na pobreza, condenar as práticas de discriminação étnica e, principalmente, arrebatar a 'massa' - esse foi e continua sendo o maior mérito da mobilização dos hip hoppers" (ANDRADE, 1999b, p.9). A questão étnica entre os alunos da EPA era um fator relevante na sua identificação com o rap, uma vez que a grande maioria das crianças e adolescentes que freqüentavam essa escola era de origem negra20. O rap propiciava, portanto, momentos onde a auto-estima individual crescia, também, em função da autovalorização do grupo como etnia, pois identificavam-se com as origens do movimento hip hop. Na opinião de ANDRADE (1999a), "o baile para o jovem negro é um espaço fundamental de afirmação da sua identidade, mais do que um simples espaço de sociabilidade juvenil - não é o simples fato de estar com seus iguais em idade, mas sim o de estar com os seus 20 Os alunos tinham consciência da discriminação étnica, além desse tema ser enfaticamente contemplado nas reflexões pedagógicas em aula. 119 iguais em etnia, que vivenciam no seu cotidiano as mesmas dificuldades econômicas e sociais" (p. 87-88). A roda de rap constitui-se num desafio à auto-afirmação, à medida que as crianças e adolescentes em situação de rua necessitam buscar elementos que venham compor uma auto-imagem que se estabeleça também no seio do grupo. Tradicionalmente, entre grupos de rap que competem, os rappers buscam estabelecer-se e mostrar liderança através do máximo de eficiência possível nas acrobacias que mostram individualmente no centro da roda, com o objetivo de superar os outros dançarinos presentes na roda (CONTADOR e FERREIRA, 1997). Segundo esses autores, A entrada de um breakdancer para o centro do círculo anuncia o despique, que consiste literalmente em mostrar aos restantes num curto espaço de tempo - entre dez a quinze segundos - que a sua atuação é a mais electrizante e em maior sintonia com a música. O processo de entrada, também, segue o seu ritual, desenvolvido através da deambulação do dançarino com passos parecendo hesitantes, até o ponto central do círculo improvisado, até que o ritmo esteja verdadeiramente em fusão com o processo de quebra do seu corpo. Num ápice, ele está no chão a efetuar consecutivamente várias figuras físicas estilizadas, todas configuradas e catalogadas intra-comunitariamente, sem conceder ao público restrito de breakdancers, que lhe delimitam a pista, a hipótese de respirar entre cada movimento. (CONTADOR e FERREIRA, 1997, p. 44-45). Foto: Vânia Müller 120 Foto: Aline Gonçalves A música e a identidade individual. A música e a identidade de grupo. Foto: Aline Gonçalves 121 Foto: Aline Gonçalves A roda de rap propicia o momento de se expor individualmente, ...e o momento de fortalecer a coesão do grupo. 122 Embora não houvesse essa competição entre os alunos da EPA, pois todos se sabem nas mesmas condições de total dificuldade e por isso são extremamente solidários, os alunos da EPA tinham uma forte admiração do vigor, da velocidade, da esperteza e da consciência sóciopolítica dos "manos", que são "fera" do rap, e por isso têm poder de chamar a atenção e de fazer sua palavra ser ouvida. Uma demonstração disso ocorreu quando Lucas declarou o prazer de ter se apresentado com o Sabedoria de Rua, no mesmo evento em que participou o grupo de rap da cidade o qual mais admira, em uma praça central da cidade. Ele comentou: "Bá, aqueles cara são tri a fu21, mesmo! Já assisti eles seis veiz, já, se apresentá! Em seis lugar diferente. Bá, eles fazem tudo, tudo certinho!! Todos os passo. Dão mortal, giram com a cabeça, tudo.[...] O cara falô que o vício dele era a música e a arma dele era o microfone, o cara tava cantando...Ele falô também que não prefere fumar um baseado; ele prefere pegá um caderno, um lápis na mão e escrever o seu passado, o passado dele. (Entrevista, 10.9.1999) Era na palavra que estava sendo ouvida pela sociedade, através da voz dos "manos", que as crianças e os adolescentes da EPA viamse representados, considerando-se legitimamente integrantes do 21 máximo". "Tri a fu" é uma expressão portoalegrense, que significa "bom demais" "o 123 movimento hip hop. Talvez em primeiro lugar, porque o espaço originário deste movimento, ainda nos guetos de população negra nos Estados Unidos, na década de 70, foi a rua (ANDRADE, 1999a). Os alunos tinham conhecimento disso e, por isso, esse movimento lhes dizia respeito. Os aspectos abordados acima como relevantes na construção da identidade das crianças e adolescentes em situação de rua, quais sejam, a privação da infância, o estigma e a necessidade do grupo caracterizam, portanto, aspectos fundamentais de sua personalidade. Revela-se aqui um sentido que a música adquire em meio às crianças e adolescentes que participaram dessa investigação, pois que no momento das atividades musicais dos alunos, podiam minimizar os efeitos dos aspectos identitários citados acima. Segundo SMALL (1995), no momento em que estamos envolvidos de alguma maneira com música, nos conectamos com aquilo que imaginamos como ideal para nós, com a imagem ideal de nós mesmos e com a imagem do que julgamos nossa relação ideal com o mundo e com as outras pessoas. SMALL (1998) acredita que a música nos dá poderes para articular essas relações de "alto padrão" com as quais nos conectamos no momento de uma performance musical. Segundo o autor, a performance não se constitui em um momento de mero 124 divertimento, mas sim, nos ensina sobre o nosso lugar no mundo, na relação com as pessoas e na natureza. Portanto, tinha relevância a performance musical para as crianças e adolescentes que observei e com as quais convivi, por constituir-se em um momento em que tinham possibilidade de conectar com o que havia de melhor em si mesmos, apesar da privação da infância e do estigma; e também, tinham a possibilidade de conectar com um "alto padrão" de relações que subvertia a ordem das relações estabelecidas na necessidade e submissão ao grupo. Esses elementos identitários estarão implícitos nas formas como se relacionam com a música, também da perspectiva de seu aspecto "vivencial", como será abordado no capítulo seguinte. 4 O ASPECTO "VIVENCIAL" DA MÚSICA NA EPA Este capítulo procura revelar os sentidos que os alunos da EPA atribuíam à música, e as formas como se relacionavam com ela, a partir do aspecto "vivencial" da música observado entre as crianças e adolescentes em situação de rua que freqüentavam a escola. O aspecto vivencial da música será abordado da perspectiva de seu interesse pelas músicas que ouviam, cantavam e dançavam, e da forma como a música se inseria na relação dos alunos com os demais saberes que vivenciavam na escola. 4.1 "A música é, bem dizê, a vida da gente" As letras das músicas pelas quais se interessava o grupo de crianças e adolescentes que observei, retratam as condições e os 126 decorrentes riscos com que vão sobrevivendo, dia após dia, expostos que estão a toda ordem de violência. Para GRACIANI (1997), Hoje, a criança e o adolescente e o jovem de e na rua representam, ante o todo, uma das categorias mais graves quanto ao grau de pobreza, de miséria, de fome, nudez, insalubridade, abandono, desproteção política, ignorância e muitas outras circunstâncias que o caracterizam como um protótipo de agressão social, marcado pelo sofrimento, pela privação e pela expropriação de direitos. É todo um complexo de violência destrutiva em que os menores transcorrem sua existência, em uma luta titânica pela sobrevivência e subsistência no espaço urbano das cidades (GRACIANI, 1997, p. 110). Embora seja um grupo socialmente distinto de grupos de adolescentes infratores e gangues nas razões pelas quais se agrupam, na organização e identidade do grupo, assim como na sua intencionalidade (CRAIDY, 1998; 1999), as crianças e adolescentes em situação de rua vêem sua situação de vida refletida nas letras das músicas. No grupo observado, essas letras chegavam através do rap, pela palavra dos "Manos", de quem muito se orgulhavam e com quem havia uma forte identificação, uma vez que os autores das músicas que faziam sucesso entre eles já viveram em condições similares de violência e discriminação. 127 No trecho de uma entrevista que se segue, realizada com Fernando, 20 anos, era visível a presença da violência na sua vida, em uma dimensão que parece perder o limite entre a violência e a própria vida: V- Sobre o que as letras falam, principalmente? F- Sobre do rap. Comé que foi feito o rap, comé que é a violência... V- Ahã...tu acha que o rap fala nas letras sobre como é a vida de vocês? F- É a vida e a violência. [....] e a violência. Por isso que tem aquela... do Naldinho: [ele canta] "violência não tá com nada/ se liga rapaziada/ não é engraçado/ o povo morrê nessa cidade..." (Entrevista, 9.9.1999) Quando Fernando disse que "é a vida e a violência", sugeria que a violência é uma entidade da dimensão da vida, ao mesmo tempo que parece entender que a vida só é vida sem violência; as duas não cabem no mesmo tempo-espaço. Já na visão de Lucas, a música retratava exatamente a realidade da vida, como declarou neste trecho de entrevista, após uma apresentação de grupos de rap, no centro da cidade: V- Tu sabe dizê por que que tu gosta de música? L- Ah, que é tri o que eles falam! Eles falam que que é a vida!! V- Ah, por causa da letra, então da música...! 128 L- É, que nem lá na apresentação, os cara tavam falando dos amigo deles que morreram...trêis amigo deles! (Entrevista, 10.9.1999) O grupo de rap que os alunos da EPA mais apreciavam era os Racionais, seguido do Pavilhão 9 cujos integrantes de ambos os grupos são presidiários. A linguagem utilizada na construção das letras traz os termos, as gírias, os códigos de comunicação usados por quem sofre perseguição da polícia e discriminação social. Mas no conceito dos alunos da EPA, "esperto e corajoso" eram adjetivos que vinham ilustrados e traduzidos pela fala áspera e incisiva da voz rouca e rápida dos vocalistas de rap, que os garotos por sua vez reproduziam muito similarmente. Parafraseando os Racionais, GUIMARÃES (1999), diz que 'periferia é periferia em qualquer lugar', violência é violência em qualquer periferia. Não por outro motivo, a violência é uma presença constante nas letras de rap. Ela é parte intrínseca do cotidiano vivenciado pelos jovens que moram em qualquer periferia e, sendo o relato da vida desses jovens, o rap incorpora essa violência em seu discurso (GUIMARÃES, 1999, p. 41). Os exemplos reais de violência que pude presenciar são inúmeros, inclusive experiências discriminatórias nas quais me vi envolvida, por estar com os alunos da EPA em lugares públicos. Desde ver o ônibus não parar quando estávamos na parada de ônibus, até passar uma tarde de domingo em uma delegacia de 129 polícia por estar conversando com eles na rua, o que para a polícia só uma razão me levaria a isso: tráfico de drogas. Selecionei apenas alguns trechos do caderno de campo por julgar relevante ilustrar e trazer uma dimensão mais realista a essa questão, a violência. Essa intenção se insere aqui com o propósito de, através da fidelidade à fala das crianças e adolescentes observados nesta investigação, interpretar o mais profundamente possível para os limites da investigação qualitativa as vivências dos alunos da EPA. Os trechos do caderno de campo são os que seguem e são, respectivamente, de Laura, que está na T 2, 17 anos; Tadeu, está na T 4, 21 anos; e Marcinha, 18 anos, está na T 3: L- Meu pai trabalhava, aí bebia, ele recebia, daí bebia e batia em irmão...nóis nóis de facão, na minha mãe e nos meus saímo de casa; eu tô na rua desde os cinco ano. V- E hoje tu tá com quantos? L- Com dezessete. (Caderno de campo, 20.10.1999). T- Os home pegavam e o pau pegava toda hora! Eu sou intero assim por fora, mas por dentro eu tô cheio de...de marquinhas...de apanhá de brigadiano! (Entrevista, 17.12.1999) 130 M- E aí ficaram implicando com a gente, implicando, e botaram fogo no caderno. Os brigadiano queimaram meu caderno...! (Caderno de campo, 17.8.1999) Na criação de raps os alunos também retratavam sua realidade, compondo letras a partir de fatos vividos, como me relatou Tomaz, 18 anos: "Já fizemo um [rap] pra uma mina que morreu de AIDS, de um amigo, ...tá escrito". As crianças e adolescentes em situação de rua que freqüentavam a EPA apreciavam também as músicas românticas, satisfazendo-se sobremaneira ouvindo pagode. Dentre todos os alunos da EPA com os quais convivi, conheci um, apenas, que dizia não gostar de pagode. Neste trecho da entrevista com Rogério, ele revelou sua visão sobre as letras das músicas, sobre a diferença entre rap e pagode e sobre romantismo: V- E tu gosta de música Rogério? R- Adoro!!! [sorri muito] Adoro!! V- Tu saberia me dizer por que que tu gosta de música? Já pensou nisso? R- Já, já, já...!![sorri] Eu assim, ó, eu gosto de música porque as música... falam umas palavra que às veiz é realidade! Quem busca a realidade, sabe? Como as música de rap, que eles falam sobre os menino de rua, que morrem de fome de frio, isso aí é, a maioria é verdade! Né, então por isso que eu gosto de música porque... ela transmite... as palavra certa. As palavra 131 certa, não transmite as palavra que às veiz são mentira! É as verdade! Que...transmite a verdade! As palavra que eles cantam, pá! [...] Mas de pagode eu gosto bem dizê de todos! Pagode é o que eu mais adoro tamém. Que eu gosto tamém. [...] V- Qual a diferença das letras do rap pras letras do pagode? R- A diferença é que às veiz o pagode fala...mais é...comé que é...coisas que...que acontece na vida deles, né! É como assim...a letra deles conta mais da vida deles, fala da mulher deles...né, os amigo deles, o pagode. Mais o rap não, o rap já é fala mais é da gente, dos menino, das pessoa que sofrem...as pessoa que são humilhado, as pessoa que...são morta. V- Ahã... R- Né...! não fala muito deles. Eles falam mais é das pessoa que, que morrem, né, aí transmite mais é o que, o que as pessoas são mesmo na realidade! O pagode não, o pagode já fala deles, já fala da música deles mais, deles mesmo. Por isso que eu acho diferença. [...] Por causa do embalo, né sôra! [sorri] Por causa tamém que...a gente, a gente dança com as, com as mulher, né sôra! Ah! E... [fica encabulado] e eu sô carinhoso, né sôra, não é, tá ligado, não vô te menti! Fico até envergonhado de falá...mas eu quando danço...eu..., eu fico até um pouco encabulado, sabe, pra dançá. (Entrevista, 30.9.1999) Rogério fez em parceria com outro garoto, Josué, 18 anos, um rap de "letra romântica" a partir de uma experiência de ambos. Esse 132 rap foi um dos que mais ouvi durante o trabalho de campo, pois todos os alunos o sabiam cantar, e faziam questão de apresentá-lo sempre que viam oportunidade pra isso. Rogério preocupou-se, inicialmente, em explicar-me a situação real de onde surgiu o rap, como segue: R- É uma bem assim, ó, que é duma guria, né, que uma guria que nóis encontremo na frente dum som, né, é... que nóis fiquemo com as duas guria, daí nóis cantemo essas duas música pra elas, sabe?! V- Isso é verdade? R- É! É! Verdade!! É verdade mesmo!! Foi lá na Restinga, lá! V- Aí depois, no outro dia vocês... R- É, daí só que notro dia nóis fumo lá daí né, aí só que elas falaram que não queriam mais ficá com nóis, daí nóis começamo a cantar uma música pra elas daí...aí cantamo bem assim, ó: "Minha gatinha eu vim aqui pra ti falá/que eu te quero tanto meu desejo é te amá/desde quando eu conheci eu gosto muito de você/e hoje o que mais quero é viver sem te esquecer/te dar amor/ e atenção/ e mesmo na distância te carregar no coração/sonhar com você já virou rotina/ sonho mesmo acordado com esse sonho de menina/ que me satisfaiz/e me traiz a paiz / amores passados para mim não valem mais/ :/O que eu quero é viver/ o presente com você/ te beijar te amar até o dia amanhecer :/ [Refrão] Se o que eu vivo eu sei/um dia pode acabar/ eu só lhe peço não me chame que eu não quero acordar/ esse 133 sonho tão lindo/ que me satisfaiz/amores passados para mim não valem mais/..." e aí repete de novo aquela parte... [o refrão]. (Entrevista, 30.9.1999) 4.2 "Se eu penso sobre música? Como assim?" Ao tentar refletir com as crianças e adolescentes a respeito de seu gostar de música, ouvia respostas que remetiam à lembrança de uma música específica do repertório que conheciam, ou um gênero de música particular. Para ilustrar essa situação, segue um trecho do diálogo que tive com Dino, 14 anos: V- Tu gosta de música, Dino? D- Gosto! V- Tu saberia dizer por que? Será que dá pra explicá isso? D- Pagode! ... O nome dos pagode? V- Não...queria...qualquer música. Por que tu gosta de música? D- Pagode do Dorinho, Gerasamba, a música do Salgadinho aquela, aquela... o Tchan da Selva, e rap. (Entrevista, 1º.12.1999) 134 Havia um tipo de resposta entre alguns alunos que vinha em forma de outra pergunta: "Como assim?", evidenciando que música, para eles, é algo que se faz e não que se pensa sobre. E mesmo quando se pensa, será uma abordagem vivencial, vale dizer, terá relação direta com sua vida prática, como revela Carmen, 18 anos, no trecho de sua entrevista que segue: V- Tem algum momento, Carmen, que tu pensa sobre música? C- Como assim? V- É... de ficar pensando como a música funciona, como que ela é construída? C- Ah! A música é feita de...ca [com a] mente da gente, né, e, e assim, dá pra formá uma música...falando sobre a nossa vida, que nem o rap, o rap ele já, ele já fala sobre, sobre nóis mesmo, o que acontece no dia-a-dia com a gente. (Entrevista, 17.9.1999) Quando alguns alunos manifestaram curiosidade em "saber" algo sobre música, o interesse também estava relacionado com temas de seu cotidiano revelados na letra das músicas. No trecho da entrevista a seguir, Kell, que gosta muito de reggae, parece ter curiosidade em saber alternativas para lidar com a questão das drogas. V- Por que que tu gosta de reggae, que que tu acha que ele tem de diferente? 135 K- É porque fala sobre a vida da pessoa também o reggae, né, como é que a pessoa foi... no passado! Como ela usava drogas, por que ela usava drogas, como aquele cantor Bob Marley também... que tá falando né, sobre as drogas... e tal! V- Ahã... ou seja, tu gostaria de saber mais sobre a história do reggae. K- É!! V- Né, como é que a música surgiu e como é que ela evoluiu... mas o que mais te chama atenção no reggae, o ritmo, no som, na música mesmo, o que que tu gosta, do embalo...que que te chama a atenção...? K- Ahh... me chama a atenção é um pouco de...acho que é um pouco de tristeza, né...? V- Tu acha o reggae um pouco triste? K- Claro! Porque aí tem os cara que cantam reggae querem pará com as droga e não conseguem né... Como aquele Bob Marley tamém, Bob Marley... ah, o reggae é um pouco triste daí. V- Ahã... K- É triste reggae [fala muito baixinho]. (Entrevista, 11.9.1999) No caso de Fernando, a música se inseria na sua vida como mais um elemento integrante de seu cotidiano, e não era usual pensar sobre música. Ele disse que ouvia música para pensar em outra coisa. 136 V- O que a música faz tu sentir, Fernando? F- Bááá!! Quando o cara briga assim com a... namorada, aí dá aquelas música lenta, pagode lento... Bá, e aí a gente... bá! Fica se lembrando!... V- Dela? F- Ahã!! V- E tu acha que a música ajuda a... F- Ajuda...!! V- E aí tu... te entristece? F- Bá, eu, eu... eu às veiz quando eu tô em casa, assim... eu bá eu pego o meu rádio que eu comprei, de CD, e boto na área e fico sentado ali... aí eu boto música e fico escutando ali... eu boto nos horário de programa e fico escutando a letra... uma jarra de suco do lado...! V- Uma jarra de suco? De quê? F- Ahã!! De, de laranja. V- Laranja...! F- Bem geladinho! V- Tu que faz esse suco? [confirma com a cabeça, sorrindo] É?! F- Umaaa... [fala com muita preguiça] cartera de cigarro do lado...! Nunca pode faltá...! (Entrevista, 6.9.99) 137 4.3 Vivenciando a diversidade Este subcapítulo pretende abordar as formas como a música se inseria na vida das crianças e adolescentes em situação de rua que freqüentavam a EPA e como a vivenciavam, da perspectiva de sua relação com os demais saberes construídos na escola e de suas relações interpessoais. Como já mencionado no início do capítulo três, o grupo de alunos que se configurou como núcleo de minhas observações foram os que mostraram ter um contato direto e diário com música, destacando-se em relação à maioria dos alunos da EPA em participação e interesse pelas atividades musicais. Embora esses alunos manifestassem grande interesse pela música e tivessem uma atividade musical quase diária no espaço escolar, quando interrogados sobre o que mais gostavam de fazer na EPA, as respostas incluíam outras atividades, e raramente a música aparecia em primeiro lugar em suas respostas. Fernando era considerado pelos colegas como um dos alunos que melhor executava os instrumentos de percussão. Era sempre designado a tocar a caixa, pois ela exige maior velocidade e uma habilidade mais específica que os outros instrumentos; era integrante do Sabedoria de Rua, dançava no samba de roda, jogava capoeira e 138 tocava todos os instrumentos que compõem a roda de capoeira. Ao fazer-lhe a mesma pergunta "O que tu mais gostas aqui na EPA", Fernando respondeu que era a "Oficina de Papel" e a "Padaria". Fernando parecia não tomar a música como um objeto possível de extrair do contexto geral de sua vida, para avaliá-la e mensurar seu gosto por ela. Seria destacá-la da totalidade em que está inserida, descaracterizando-a na função que tinha para esses alunos. As observações levam-me a crer que a música estava inserida em suas vidas por seu aspecto vivencial, e por isso envolviam-se inteiramente com a música, e não de uma forma cognitiva e abstrata. Houve muitas respostas incluindo outras áreas do conhecimento como integrantes dos interesses dos alunos. No caso de Lucas, que também era considerado pelos colegas como muito habilidoso nos instrumentos de percussão e dança no grupo de rap Sabedoria de Rua, em sua opinião sua habilidade estava em desenhar. Durante a entrevista disse gostar muito de desenhar e que poderia ser "estilista, que desenha esses troço aí de moda", sem mencionar sua ligação com a música, ou, sua habilidade em tocar instrumentos de percussão ou, ainda, em dançar. Disse sim, que o que mais gostava na EPA era a horta. A última pergunta da entrevista realizada com os alunos supunha uma situação hipotética: "Como, ou em quê tu gastarias 50 reais com música?", ao que Lucas respondeu: 139 L- gastá com... rádio, essas coisa assim? Primeira coisa ia lá comprava um tênis pra mim, uma bermuda, uma camiseta, um boné, uma cueca, já tava legal... Daí, comprava uma torta, dexava paga na padaria pra comê em casa com meus irmão, no meu aniversário. Uma caixa de refri e umas cerveja pra minha mãe, pra ela e as cumadre dela. (Entrevista, 10.9.1999) A fala de Lucas revela que a música não fazia parte daqueles interesses que deviam ser buscados fora de si mesmo. Embora ele confirmasse sobre a quê eu me referia, perguntando "gastá com... rádio, essas coisa assim?", Lucas não mencionou sequer um objeto musical na resposta à pergunta que lhe foi feita. No entanto, é muito provável que teria música, de alguma forma, na comemoração de seu aniversário, que imaginou com sua mãe e seus irmãos. O próprio Lucas em entrevista relatou lembranças da infância em que a música era bem freqüente em sua casa, como revela o diálogo a seguir: L- Eu tocava com meu pai. V- Sim, mas o quê? L- Surdo. V- E ele? L- Ele tocava surdo tamém. V- É mesmo?! L- Meu pai toca tudo um poco. V- Então é dali que tu é ligado em música... 140 L- É, eu aprendi com meu pai, que meu pai tocava com os amigo dele, tinha os cumpadre dele, os amigo dele, tá ligado? Os amigo de infância dele... tocavam aí... V- Teu pai tocava esses instrumento de percussão, assim...? L- É, não ele tocava... V- Ou tocava cavaquinho também, violão? L- Não, os fim de semana, os fim de semana quando eles iam assim... que nem a senhora, a senhora não tem amigo da senhora que a senhora sempre vai, assim? conversá assim? [me olha esperando uma resposta] V- Às vezes... L- Então! Ele tinha os amigo dele que ia lá, e fazia os negócio dele né? Iam lá. V- E já virava em música? L- Aí quando via eles faziam churrasco... daí, enquanto tavam arrumando o churrasco, ficavam tocando! (Entrevista, 10.9.1999) A grande maioria dos alunos tinha nas lembranças da infância os fins-de-semana com música junto da família e amigos, em alguns casos com churrasco e/ou futebol. Foi em rodas de samba ainda em casa que muitos começaram a tocar e a dançar e vários afirmaram que sua mãe "adora" dançar. A música tinha um caráter social à medida que ela surgia em função das relações que as pessoas do seu ambiente estabeleciam umas com as outras. 141 No diálogo citado, percebe-se que Lucas se empenhava para que eu compreendesse a naturalidade de fazer música em um encontro de dois ou mais amigos, quando tentou fazer-me entender a relação de seu pai com o respectivo amigo, levando-me a imaginar o desejo de estar com um amigo também. Esses recortes de entrevistas revelam que os alunos traziam consigo a percepção da música como um elemento intrínseco da sua vida, pertencendo à uma totalidade vivencial, da qual não fazia parte nenhuma formalidade com a música, e que suas atividades musicais - entendidas aqui como o uso da música de maneira geral - estavam vinculadas às suas relações pessoais. Por sua vez, no tempo-espaço escolar os alunos conviviam com as diversas áreas do conhecimento através de atividades educativopedagógicas, que visavam a "experiência vivencial" (GIMENO SACRISTÁN, 1999; SMALL, 1989) com a referida diversidade de saberes. A variedade de experiências promovia um autoconhecimento maior à medida que o aluno potencializava o desenvolvimento de sua identidade em relação à diversidade de conhecimentos e materiais com os quais vinha entrando em contato, o que, segundo uma educadora da EPA, era "muito importante para as crianças e adolescentes em situação de rua, cuja identidade chega na escola gravemente abalada". 142 Por essa razão, era comum ver os alunos empenhando-se em participar com a mesma intensidade e envolvimento em diferentes atividades, devido à grande necessidade de auto-afirmação (GRACIANI, 1997), parecendo não querer perder nenhuma chance de se auto-afirmar e de se realizar através de quaisquer atividades que surjissem na escola. Além disso, era visível a compreensão que muitos alunos tinham do desenvolvimento trazido para eles pelo contato com a diversidade de materiais e linguagens. Régis, por exemplo, realizava-se muito nas atividades da horta e também na aula de argila; seu sonho é um dia trabalhar num circo, mas naquele momento dizia estar "apaixonado por computador", e por isso ia à escola no seu turno inverso e passava horas no laboratório de informática. Ao mesmo tempo em que experienciavam uma diversidade de saberes não hierarquizados, os alunos encontravam na EPA um ambiente sem tendências à pré-concepções de valores diferenciados em relação aos saberes que ocupavam o tempo-espaço escolar. Isso levava os alunos espontaneamente às atividades propostas, segundo seus próprios interesses. O resultado era que os professores percebiam proximamente a natureza do envolvimento de seus alunos nas diversas atividades identitariamente, pedagógicas, também, àquilo passando em que se a relacioná-los realizavam mais integralmente e/ou se destacavam. Por exemplo, o Toni do rádio, o Dario e o Mauro da horta, o Hagar e o Mendez do papel reciclado, o Sandro da argila, o Régis da informática. Vale ressaltar que causava muito orgulho 143 aos alunos ser identificado por sua "eficiência" em uma determinada Os trabalhos em argila, a capoeira... Foto: Míriam Lemos Foto: Vânia Müller prática. ...e a leitura e a escrita compõem, com a música, a diversidade de saberes não hierarquizados. Foto: Vânia Müller Foto: Vânia Müller 144 145 As carências peculiares às crianças e adolescentes em situação de rua impulsionavam-nas a ver de que forma seria útil o que lhes estava sendo proposto, de forma a minimizar seu quadro geral de necessidades. Assim, vale ressaltar ainda a tendência dos alunos nas conversas e entrevistas que tivemos, em direcionar o assunto em alguns momentos para suas necessidades mais prementes. Exemplo disso ocorreu na entrevista com Tomaz, quando conversávamos sobre música, mais especificamente sobre a estrutura da música, tipos diferentes de batidas de rap, seus timbres e ritmos e a importância da letra nas músicas: V- Tu acha então, que a letra da música é importante? T- Tudo é importante: letra, música, base, a dança, mas é importante ajudá as pessoas...Se eu tivesse condições eu fazia isso aí. Muitos amigos meus já morreram de ficá na rua... Queria construí uma casa... acho muito legal quem faz isso daí! [vibra e sorri]. (Entrevista, 29.9.1999) Como se pode perceber no trecho da entrevista acima, Tomaz pôs no mesmo plano de importância as coisas - como a música - e as relações que tinham sentido para ele. Com base no que foi exposto até aqui, pretendo argumentar que, embora houvesse identificações ou preferências a determinadas áreas do conhecimento e suas respectivas atividades educativopedagógicas, existia uma postura dos alunos que era anterior ao 146 contato com essas atividades, que partia do princípio de que tudo podia ser importante conhecer, mas nada era mais importante que ele próprio, a criança, ou, o adolescente. Esta postura surgia na escola com as crianças, que a desenvolviam como alternativa de sobrevivência, pois o pensar em si mesmo no mundo da rua é o mínimo para quem precisa se proteger de tudo e de todos, todo o tempo (GRACIANI, 1997). O esforço da prática educativo-pedagógica da EPA era no sentido de transformar o pensar em si como prioridade para o aluno. A música na EPA, embora não constasse na grade curricular junto às outras áreas do conhecimento, integrava esse contexto de valorização da diversidade possibilitava o de saberes como autoconhecimento, mais o uma linguagem desenvolvimento que e a expressividade dos alunos. Como afirma uma educadora italiana entrevistada por RABITTI (1999) "[...]quanto mais materiais se conhecem mais linguagens se possuem[...] e possuir mais linguagens significa ter mais possibilidades de expressar-se" (p. 64). Era na intenção de ampliar as possibilidades de materiais e de expressão, que a EPA favorecia aos alunos as práticas musicais no tempo-espaço escolar. Estas integravam e reforçavam a idéia de um ambiente de valorização da diversidade concomitante à isonomia de saberes, pois 147 que tinham por meta os processos de conhecimento desencadeados no aluno e a autonomia desenvolvida em cada um para a apropriação desse conhecimento; e não, os saberes objetivados e sacralizados externamente a eles, como previa o conceito moderno de educação. Nas palavras de GIMENO SACRISTÁN (1999), as promessas do legado modernista para a educação foram vistas, muitas vezes, como metas finais diante das quais é preciso sacrificar o sujeito que aprende, sem considerar os êxitos progressivos que podem ser desfrutados durante o percurso; o valor dos fins justificaram, muitas vezes, a utilização dos meios inadequados. Aqueles que não alcançaram a meta final, muito afastada devido à amplitude e à complexidade da cultura substantiva, poderiam ver que seu percurso parcial por caminho tão venerado carecia de sentido, e que os passos dados, mesmo sendo poucos, podiam ser avaliados como um fracasso (GIMENO SACRISTÁN, 1999, p. 163). Compactuando com essa idéia, SMALL (1989) afirma que a música sofreu, como as demais áreas do conhecimento, a mesma objetivação da visão tecnicista industrial, desde quando a visão científica do mundo se estabeleceu no Ocidente a partir do século XV, deixando, assim, de cumprir seu objetivo primeiro que é "capacitarnos para viver no mundo, enquanto que o da ciência é capacitar-nos para dominá-lo" (SMALL, 1989, 14). Na opinião de SMALL (1989), a fragmentação do conhecimento em disciplinas estanques e sem relação entre si trouxe uma 148 especialização crescente que segue avançando na direção do objeto conhecido, e não nos processos do sujeito que conhece, visando ao domínio do objeto conhecido, em oposição à experiência vivida pelo sujeito no ato de conhecer. Na sociedade ocidental, os objetivos e os métodos da ciência seguem sendo os mesmos até hoje (SMALL, 1989). Nas palavras desse autor, "a ciência como atividade, como modo de pensamento, segue se ocupando do conhecimento objetivo e não vivencial; sua meta segue sendo o total domínio da natureza, e para consegui-lo segue tentando descobrir seus segredos, e seu enfoque leva implícita a transformação do 'outro observado' em um objeto" (SMALL, 1989, p, 76). Assim, a música passou a ser vista como mais um objeto que poderia ser dominado pela ciência humana, recebendo um tratamento como algo à parte da vida cotidiana, reservada a momentos especiais (SMALL, 1989) e, portanto, exigindo formalidade das pessoas na relação com a música, ocasionando a interceptação da mesma como algo inerente à vida humana. Além disso, a categorização dos conhecimentos musicais instituiu um status nos saberes do mundo musical que vai desde as qualidades do som às relações humanas dentro de uma orquestra, o que resulta, segundo SMALL (1989), em uma vivência fragmentada e hierarquizada da música. 149 As observações das formas como a música estava inserida no cotidiano das crianças e adolescentes em situação de rua que freqüentavam a EPA indicam que a qualidade de seu envolvimento com música e a propriedade com que a vivenciavam, relacionava-se ao seu não atrelamento aos padrões de status, de hierarquia, de fragmentação do conhecimento e de formalidade na relação com ele, da "sociedade instituída" (ANTUNES, 1997). Concomitante à isso, a qualidade de seu envolvimento com a música devia-se ao contato com a EPA que estimulava a agência dos alunos como sujeitos críticos, através de saberes vivenciados e não hierarquizados inclusive a música - que tem na diversidade sua complementariedade. A seguir, serão expostos os sentidos que a música adquire em meio às atividades dos alunos, reflexionados na perspectiva de princípios construídos e elaborados a partir da vida na rua. 150 4.3.1 O "aqui e agora" por princípio Na vida dos meninos de rua o passado é diluído e o futuro não existe. Viver na rua é fundir-se no presente (CRAIDY, 1998, p. 80). O princípio do "aqui" e do "agora" quer dizer que qualquer hora é hora de se fazer o que se tem vontade; que não se deve desperdiçar a chance de poder fazer o que se quer no presente. Deixar para depois não pode, porque o depois não existe. A concepção de tempo que as crianças e adolescentes em situação de rua vão construindo é no presente imediato e no improviso. Se nada no presente tem garantia, é só instabilidade, por que o tempo que virá teria? Nas palavras de CRAIDY, Para os que vivem na rua, não há história, mas um repetir-se crônico e circular da vida sem projeto, eterno presente que implica a luta cotidiana pela sobrevivência. Permanecer vivo, ter algum prazer, constituem o móvel fundamental do existir. O amanhã não existe, a não ser quando chegar na forma de hoje e trouxer suas exigências. O passado é melhor omitir; é duro e perigoso demais para ser lembrado (CRAIDY, 1998, p. 80). O tempo medido pelo relógio não tem utilidade, e a vida flui movida pelo tempo da fome, do sono, pela noite e pelo dia. Segundo 151 os professores da EPA, é comum as crianças e adolescentes em situação de rua não saberem, ou terem dificuldade em perceber e dizer o tempo do relógio tal como o medimos. É interessante notar que momentos significativos para os alunos eram lembrados, muitas vezes, pelos vínculos pessoais que os ligavam aos fatos. Um exemplo disso ocorreu quando perguntei nas entrevistas "Quando tu chegaste na EPA?", e vários responderam "com quem" chegaram, sendo que não estavam seguros há quanto tempo estavam na EPA, tampouco em que ano chegaram. Por exemplo, quando perguntei ao Délcio: V- Lembra quando foi que tu chegô aqui na EPA? D- Vim eu, a Giselda, o Fernando [...] (Entrevista, 10.9.1999) Da mesma forma, ocorreu na entrevista de Lucas: V- Tu lembra quando que tu chegô na EPA, Lucas? L- Quando cheguei aqui? Tava eu e o Daniel [...] (Entrevista, 9.9.1999) Outra postura das crianças e adolescentes em situação de rua em relação ao tempo é uma resistência em falar em planos para o futuro; expressam uma falta de crédito total, a priori, nas palavras e promessas que não se refiram ao "agora já", e no que é possível ver. O trecho a seguir traz um exemplo de uma conversa na rua com um menino que sempre encontrava razões para desviar o assunto referente na ocasião à ele e seu futuro. Quando a pergunta vinha 152 conjugada no futuro é como se ele nem a ouvisse; não existia essa conjugação para ele que, então, simplesmente deixava-me falando só e se ocupava com as distrações da rua: V- Tem um instrumento que tu goste mais, Dino? D- Pandeiro. V- E tem um outro que tu gostaria de aprendê? D- Que barulho é esse??![pergunta virando a cabeça em direção ao alto de um prédio] V- não sei!...acho que é desse ar condicionado. (Entrevista, 1º.12.1999) Essa habilidade com que Dino, 14 anos, encerrou nossa conversa improvisando outro foco de atenção que me fizesse pensar em outra coisa ou, mudar de assunto, é um elemento que também os caracterizava e do qual se orgulhavam: o improviso. A vida improvisada diariamente desenvolve a esperteza e garante a sobrevida. A sensação de correr o risco que tanto eles conheciam, de 'dar um jeito' em determinada situação em tempo mínimo, de improvisar, encontrava-se, também, como um dos prazeres em suas práticas musicais. Essa sensação relatou-me Lucas, 15 anos, em entrevista após uma apresentação do Sabedoria de Rua, da qual não estavam sabendo. Foi no centro de Porto Alegre, ao ar livre, em um evento oficial da Prefeitura Municipal que incluiu outros grupos de rap. 153 Lucas contou, emocionado, como foi acordado no mocó às 9h da manhã, não acreditando no que dizia a colega que foi acordá-lo para ir se apresentar, e por isso queria seguir dormindo. Segundo ele, o melhor de tudo foi ter sido pegado de surpresa: Ah, eu gostei porque o seguinte, né, eu gostei é que pegaram nóis de improviso! Pode vê, essa semana não ensaiemo nem um ensaio, nada né! Aí eu gostei assim, que pegaram nóis de bobera assim, nóis tinha que i lá e não podia errá! Nóis tinha que se lembrá tudo que nóis fizemo desde o último ensaio né![...] É a mesma coisa que acabá o mundo assim, e a senhora não sabê a hora! Como se acabasse o mundo agora, assim, e pegasse nóis de bobera!! (Entrevista, 8.9.1999) O garoto contou com detalhes a ida até a escola, o vestir a roupa do Sabedoria de Rua e depois a ida de ônibus com os colegas e uma professora até o local do evento. Gostou justamente de não saber nada do que iria acontecer. Estava muito radiante, contando com prazer cada parte do movimento necessário para a apresentação, desde ser acordado no mocó até estar dançando. Mas seus olhos brilharam muito quando contou e reviveu a expectativa de entrar no palco, falando com uma velocidade impressionante: Aí quando vê assim, aí primero a Maira [professora] falô uns negócio pra nóis, que era pra cada um vê, assim! Bá! E anunciando nóis! E eu bá!! [põe a mão no coração outra vez, pega na camisa do Inter que adora, do lado 154 esquerdo, e a movimenta como se seu coração pulsasse muito intensamente, sorrindo e vibrando muito] E eu toda hora perguntando pro Toni: bá, Toni!! Comé que nóis vamo fazê? Bá! Porque nóis não tinha ensaiado antes, né?!! Aí, 'comé que nóis vamo fazê, Toni?' Vamo fazê, vamo vê, bá, toda hora perguntando pra ele 'bá, e comé que vamo fazê o nosso passo?' 'vamo ficá...?' aí quando vê, depois a Maira veio [e explicou] 'não, tem esse grupo, depois tem outro grupo, depois mais outro grupo na frente de vocês 'aí, quando vê, aí eu já fiquei assim...!! [exclama, olhando muitas vezes para o lado em movimentos rápidos, mostrando emoção] (Entrevista, 10.9.1999) A fala de Lucas era atropelada - em alguns momentos, incompreensível - pela emoção, também pelo fato de dividirem o palco com grupos de rap da cidade que os alunos admiravam e por quem tinham um grande respeito. Ainda estava presente o Mano Brown, um rapper bem conceituado no movimento hip hop e bastante significativo aqui. É que o Mano Brown não só era conhecido dos garotos, mas havia já um vínculo construído com ele há algum tempo. Lucas contou: "Eu conheço ele, ele dava aula quando eu era bem pequenininho na UO22, dava aula de rap lá pra nóis... pro Délcio, pro Fernando, pro Tadeu", e repetiu três vezes "É tri legal 22 Lucas referia-se à "Unidade Operacional Centro": órgão de atendimento socioeducativo às crianças e adolescentes em situação de rua e suas famílias. Localizada no centro de Porto Alegre, esta Unidade pertence à FESC (ver nota de rodapé nº 13). 155 esse cara!!". Ou seja, Lucas tinha relações pessoais significativas que convergiam para aquele momento, dando sentido ao evento e justificando sua emoção, incluindo Toni, colega que estava ao seu lado no palco esperando a hora de entrar para dançar, com quem partilhava o risco - pois não sabiam exatamente o que fariam e por isso estavam nervosos - , e também o prazer de estar ali e dançar. O êxtase daquele momento se relacionava diretamente ao fato de que o "aqui" e o "agora", o arriscado, tinha por pano de fundo uma certeza: não era para conseguir comida ou se livrar da violência corriqueira; não era por necessidade, era por prazer. Além disso, experimentavam o enaltecimento de si mesmos e com um público que testemunhava isso. O que se pode constatar é que os vínculos que se estabeleciam, que se reafirmavam e que eram celebrados num momento de performance musical podiam subverter a ordem deles próprios: de não deixar-se levar por nenhum sonho, nenhuma expectativa que se desvie do "aqui" e "agora", como se os traísse sem que percebessem. As relações pessoais e musicais os inseria numa dimensão de tempo maior do que a que conheciam e os vinculava a um futuro próximo a partir do desejo de continuidade. À medida que essas relações, pessoais e musicais, criavam nas crianças e adolescentes em situação de rua expectativas e desejos de 156 reafirmação desses vínculos na repetição da ação musical, gerava-se um contexto histórico, pois passava a haver a consciência de si, antes e depois desses vínculos pessoais, reconhecendo, ainda, uma evolução no seu desenvolvimento musical: o que dançavam e o que dançam no presente. E o desejo de aprimorar-se musicalmente pode aprofundar os vínculos afetivos que se encontram nas performances musicais em que os participantes estejam dispostos a partilhar um desejo comum: o de correr o risco. Nas palavras de GRACIANI (1997), a rua constitui-se em "transitoriedade permanente, dada à insegurança total [e], há que estar sempre preparado para agir ou reagir, criar e recriar, inventar ou reinventar formas, maneiras de sobreviver na rua ou mesmo viver na rua, [pois] o que conta é a troca do consumo imediato daquilo que se ganha" (p. 131). Pois, na vivência musical, é possível a introdução de elementos que não compõe o cotidiano das crianças e adolescentes em situação de rua: o desejo de permanência e continuidade. "Permanecer vivo, ter algum prazer", trazendo outra vez as palavras de CRAIDY (1998, p.80) como concepções constituintes do "móvel fundamental do existir [porque] o amanhã não existe" para os alunos da EPA deixava de fazer sentido quando eram "traídos", e a música passava a fazer parte de suas vidas e, com ela, as relações pessoais que ela podia proporcionar e celebrar (SMALL, 1998). 157 4.3.2 A música compromete Segundo SMALL, é normal que se espere que a improvisação surja "em grupos comunitários onde os músicos são pessoas conhecidas de seus ouvintes, e estes se acham dispostos a acompanhá-los em suas aventuras, por mais insignificantes ou arriscadas que sejam" (SMALL, 1989, p. 179). A atividade musical mais comum no tempo-espaço da EPA, tinha um caráter de improviso. Como relatado no capítulo três, a música que ouviam no pátio da escola quase que diariamente, era vivida sempre como uma oportunidade nova de arriscar, de tentar combinações de passos novos com os já conhecidos, de tentar adaptá-los a andamentos diferentes e, parecia, ver se os companheiros estavam arriscando na mesma medida, reforçando os vínculos existentes entre eles. Um exemplo desta forma de se relacionar com a música pude observar em Toni, 16 anos, e Cristian, 15 anos, que sempre que estavam na escola procuravam dançar juntos. Percebia que haviam desenvolvido uma percepção sensível do outro, que parecia avançar, também, na medida da confiança desenvolvida entre esses dois amigos. Enquanto o aparelho de som da EPA estava ligado no pátio da escola, os alunos podiam ir pondo fitas cassete ou CDs; às vezes sintonizavam uma rádio e ficavam dançando no meio do pátio, 158 tomando cada música como um desafio aos passos e às coreografias já internalizadas. Se Toni ia dançar primeiro, Cristian punha-se a seu lado para dançarem juntos, e vice-versa. Assim ficavam por muito tempo experienciando-se mutuamente, através da música, como anotei nesse exemplo do caderno de campo: Hoje, enquanto o aparelho de som da EPA tocava as músicas que mais gostam de ouvir, cantar e dançar [Racionais MC's, Naldinho, Mano Brown, Pavilhão 9, Claudinho e Buchecha, assim como deixam, às vezes, na rádio Eldorado, mas só por uns momentos], Toni e Cristian não pararam um só momento de dançar. Melhor, uma certa paradinha se dava quando Toni ia até o aparelho trocar de fita ou CD. Porém, parece que a cada música que toca existe um prazer renovado, como se fosse um desafio acertar a coreografia com uma música diferente. Agora, parece que Toni, que está do lado do rádio, todo suado, sem camisa, respirando ainda meio ofegante, aproveita para dar uma respirada. Cristian, também sem camisa, todo suado, com as calças caídas de maneira que apareçam uns 7 centímetros da sua cueca, como preza a moda adolescente atual, aproveita e vai até o bebedouro tomar água. Quando está voltando toca uma fita dos Racionais que Toni pôs, o que faz Cristian chegar até o centro do pátio dando saltos mortais, como estão habituados nas rodas de rap. No último salto, ainda meio agachado, procura os olhos de Toni para confirmar o sucesso dos movimentos e encontra o olhar atento do colega. Eles sorriem quase nada, mas a cumplicidade é total. Ambos se admiram. Vendo isso, Toni levanta-se do lado do rádio, aumenta o volume e junta-se a Cristian. Sem falar, eles se põem 159 lado a lado e ficam parados, olhando para o chão e pra frente, de modo que é possível estar 'ligado' no corpo e no movimento do outro. É uma concentração que demora um pouco mais do que o habitual. Depois percebo que é porque tem coisa nova criada. E dessa vez dá pra perceber que é Cristian que vai dar a partida. Toni olha diretamente pra ele, mas Cristian olha pro Toni e pro chão ao mesmo tempo, se concentrando porque sabe que o amigo espera que ele conduza a coreografia. Cristian respira, se concentra, ouve a música, começa a marcar mais a pulsação com as pernas e, enfim, mostra para Toni que vai entrar, levanta as sobrancelhas, respira mais forte e...enfim, os dois entram juntos. Percebo que essa coreografia é nova, o que justifica a concentração maior do que o habitual. É interessante a comunicação que se estabelece entre eles - começaram sem falar nada - e mostram-se realizados com essas "certezas do outro", de saber onde o outro também quer chegar, como quer se satisfazer. Eles sorriem, agora, quando Toni se atrapalha um pouco nos movimentos de braços [nunca usaram assim os braços; dá um ar muito leve à coreografia, tanto que Toni acha engraçado], mas a retoma. O riso parece vir da noção que vão tendo durante o dançar, da dimensão do risco que correm [a coreografia é longa, nova e a qualquer momento podem errar] e parece que vem daí, também, o prazer: do desafio, do risco compartilhado. (Caderno de Campo, 22.12.1999) SMALL (1989) afirma que "o músico que improvisa intui, ainda que não chegue a expressá-lo, que o êxito só tem significado quando existe a possibilidade do fracasso [...]" (p. 179), o que na relação e na 160 vivência desses dois garotos remete a um comprometimento recíproco e com o êxito musical. O improviso, nas palavras de SMALL (1989), proporciona "experiências musicais de um poder e de uma beleza de uma espécie totalmente diferente do que é escutar, interpretar ou inclusive criar música composta; o grau de compromisso é muito diferente, como cabe esperar da exploração recíproca e afetuosa das personalidades musicais dos componentes" (p. 182). Segundo o autor, na improvisação se pode testemunhar o poder que essa atividade musical específica tem na liberação de diferentes aspectos da musicalidade nas pessoas e do sentido da "responsabilidade musical de cada um, de uma maneira que não se pode conseguir em nem uma outra atividade musical" (SMALL, 1989, p. 182). No dia-a-dia das crianças e adolescentes em situação de rua são raras as experiências de comprometimento, responsabilidade, ou compromisso, uma vez que vivem em suspensão de seus laços, ruptura com as instituições dominantes e têm a vida na rua institucionalizada (CRAIDY, 1998). Havia, por sua vez, o esforço da EPA em proporcionar o exercício dessas qualidades - quando havia desenvolvimento nesse sentido era bem lentamente, pela falta de respaldo das condições em que viviam - e também nos relacionamentos entre eles próprios, os quais tinham sempre a interferência do grupo sobre suas individualidades (GRACIANI, 1997), como já visto no capítulo 3. 161 É nesse sentido que o improviso tornava-se uma atividade ímpar no desenvolvimento e aprofundamento dos vínculos pessoais e musicais dos alunos, pois passava a gerar comprometimento e desejo de continuidade. O resultado era uma intimidade calcada na confiança entre os participantes do improviso e uma qualidade elevada de relacionamento humano que adquiriam esses garotos. Como já mencionado, os alunos não tinham aula de rap na EPA. Portanto, o que dançavam e como conduziam seus corpos e como adaptavam esses movimentos às músicas, era resultado da escolha e da prática dos alunos. É nesse sentido que a prática da dança estava sempre sob a condição de improviso, por mais que existisse uma coreografia e uma combinação construída, previamente, de movimentos com o corpo. Estavam sempre inovando, sempre arriscando incluir novos saberes, os quais podiam vir da rua, de outros grupos de rap ou da mídia. Para SMALL (1989), assistir ao ato da criação e a um improviso não é "lamentavelmente, a música que interessa a maioria do público de nossa cultura, que quer segurança e certeza" (p. 178). Na cultura ocidental nossas investidas em direção ao que queremos se caracterizam pela busca de determinando na infância o certezas que e vamos garantias, querer inclusive no futuro (SMALL,1989). Já para as crianças e os adolescentes observados nessa investigação, cujas histórias de vida se constituíram em estado 162 de risco, e o cotidiano presente é de absoluta incerteza, o ato de criar e improvisar com música significava, antes até das possibilidades de expressão, a oportunidade de viver nesses momentos, a alegria do inusitado, do imprevisto - próprio da infância e estimulador da curiosidade - isentas do risco, e por isso, isentas do medo. Ao improvisar, diz SMALL (1989), o músico nos leva consigo em sua viagem de exploração; com ele passamos curvas e giros, salvamos precipícios e corremos riscos. É provável que não saibamos quanto vai durar a viagem, nem sequer necessariamente onde vamos. Pode ser que não cheguemos a nenhum território novo, ou que se chegamos, não seja mais que um inóspito marasmo que não convide ninguém a voltar, mas haverá, talvez, ocasiões em que tenhamos algum vislumbre deslumbrante de terras novas, onde nos encontremos com visões de uma beleza e um significado tão mais surpreendente do que inesperado (SMALL, 1989, p. 178). É provável que aí resida uma forte justificativa para a qualidade do envolvimento com a música e para a forma como as crianças e adolescentes em situação de rua entregavam-se às suas atividades musicais, qual seja, este risco e esta incerteza de onde chegaria a música na qual se empreendiam a criar e/ou improvisar. Levavam consigo desde o princípio a certeza de que o que se desvendaria não seria perigoso, violento ou discriminado. Esta, seria uma viagem segura. Foto: Vânia Müller 163 O prazer de correr um risco, sem medo. 164 4.3.3 As apresentações Uma das práticas musicais mais comuns da sociedade - e talvez mais representativa de seus valores - são as apresentações, ou, as performances. No meio musical, seja nas escolas de música, salas de concerto e mesmo ao ar livre, as pessoas se mobilizam para ver o produto musical que está pronto, acabado e no nível do status exigido. Por sua vez, outras pessoas, os intérpretes, prepararam e o julgaram pronto para ser mostrado. Nas palavras de SMALL (1989), não devemos nos surpreender de que a educação musical assuma ao mesmo tempo a natureza da música ocidental e da educação ocidental. Aqui, como na educação geral, o conceito dominante é o do produto [...] saibamos reconhecer que de fato, nossos próprios métodos de formação musical sacrificam elementos pertencentes à musicalidade essencial do homem na perseguição dos ideais do virtuosismo individual e da estandartização da técnica. [...] nossa sociedade anda na perseguição dos produtos (as coisas) bem melhor do que nos processos (as vivências) da vida, assim como as restrições e a estandartização que tal perseguição impõe. Não alcançamos, tampouco, ver que desde o momento em que o principiante põe pela primeira vez os dedos sobre o teclado, [...] ou começa a amassar um pedaço de argila, está explorando a si e está explorando a natureza do mundo material; explorando-a não para dominá-la, senão 165 para viver mais plenamente nela (SMALL, 1989, p. 195201). As apresentações que aconteciam na EPA revelavam uma realidade que vem ilustrar os argumentos de SMALL, no que este autor concebe como a função vivencial da música, uma vez que as práticas musicais dos alunos não visavam a um produto "melhor" para ser mostrado, mesmo quando iam apresentar-se. Tanto no caso do Sabedoria de Rua, quanto na prática de percussão, o envolvimento dos alunos no momento da performance não diferenciava se estavam tocando ou dançando no pátio da EPA, ou apresentando-se em local público. SMALL (1989) propõe que se busquem exemplos de culturas não ocidentais para compreendermos o aspecto vivencial da música e exemplifica com a função que a música exerce nas sociedades balinesa e gamelaneza, onde "os ensaios são públicos, e observados com interesse pela população da cidade ou da aldeia, que comentam a atuação com conhecimento de causa e às vezes dão sugestões. Assim, a peça vai crescendo aos olhos de todos, e o clima da função ou atuação final difere muito pouco dos ensaios" (SMALL, 1989, p. 51). As crianças e adolescentes que freqüentavam a EPA entregavam-se para a vivência musical, independentemente do espaço onde ocorresse, sem se preocupar se estavam sendo 166 avaliados; o produto musical que mostravam - o que cantavam, tocavam ou dançavam - era sempre o seu melhor possível, daquele momento. Nesse aspecto, impressionava a naturalidade com que viam suas limitações quando elas surgiam. Por exemplo, em um determinado dia em que havia muito sono, quando o corpo estava cansado, não havia exigência de que ele cumprisse com o que sabe. Se fosse na roda de rap, quando davam um salto viam que não estava rendendo tudo que podiam, sentavam, tomavam água, voltavam a fazer uns movimentos que não lhes exigissem o máximo, e jamais havia alguma cobrança de aprimoramento de um colega ou alguma reclamação. Havia um consenso tácito de que todos estavam fazendo o que queriam, nas condições de sua habilidade e domínio do corpo daquele dia, daquele momento. Um exemplo dessa postura dos alunos frente às apresentações pude observar por ocasião de um evento na EPA comemorando a assinatura de um convênio com uma instituição particular e a prefeitura de Porto Alegre, envolvendo várias secretarias do município de alguma forma ligadas ao Meio Ambiente. Sandro, 16 anos, não havia mais dançado com o Sabedoria de Rua por ter estado ausente dois meses, por isso não conhecia integralmente a coreografia que apresentariam. Ele então, dançou o que lembrava; e, quando não lembrava, parava ao lado da formação 167 do grupo e ficava observando, talvez para aprender, os passos novos, não se intimidando com o público; tampouco alguém do grupo pediu que ele não participasse ou reclamou de sua performance. Durante a música que apresentaram, voltou à cena, ou à formação do grupo - 8 meninos e 4 meninas, com público por toda sua volta - por umas 4 vezes, sempre que reconhecia os passos que os colegas faziam. Para os alunos, o público era importante, sim, mas por estarem sendo valorizados e admirados. Não esperavam que as pessoas aplaudissem seu produto musical e sim, eles próprios. Ou seja, a vivência musical era algo que lhes dizia respeito tão intrinsecamente, que não é porque havia público que iriam mudar seu comportamento e, principalmente, perder a chance de "explorar-se" e "explorar a música"; trazendo uma vez mais as palavras de SMALL (1989) "explorando-a não para dominá-la senão para viver mais plenamente nela" (p.201). Sua vivência era o que importava e não o nível de sua performance, de forma que Sandro não julgava sua participação como um erro. Não existia, na EPA, julgamentos para vivências, muito contrastante do nosso meio musical, onde se chega ao nível de stress necessário para atingir o que julgamos ideal para expor um produto musical. Os alunos da EPA quando tocavam seus instrumentos de percussão e dançavam, tiravam o mesmo proveito que no momento 168 de atuarem em público. Os ensaios eram uma vivência musical em que se colocavam integralmente no presente, assim como vimos anteriormente na sua concepção de "aqui" e "agora". Também, sua concepção de tempo muitas vezes os deixava sem saber exatamente o dia da apresentação, mas também porque a data não lhes interessava. Simplesmente porque a apresentação não chegou ainda, é futuro, e já se pode tocar ou dançar "hoje". Quando chegar a apresentação, será o momento de pensar nela. Não existia entre os alunos da EPA o sentido de aprender a dançar ou a tocar para acumular conhecimento, virtuosismo ou evoluir, tampouco a busca pela "especialização" em um único instrumento. Em uma roda de samba, por exemplo, os instrumentos de percussão circulavam pelas mãos de todos enquanto cantavam suas músicas, pois não se recusavam a tocar nenhum deles, assim como não havia hierarquia entre os instrumentos. O desenvolvimento musical, o domínio do corpo e a habilidade com os instrumentos de percussão eram conseqüência da vivência prazerosa e espontânea dos alunos. Com o passar do tempo, obviamente, desenvolviam mais suas habilidades, mas ninguém se colocava a fazer seqüências de movimentos idênticos por muito tempo, treinando sozinho, num lugar à parte dos colegas, sem estar "valendo". Para eles sempre está valendo, contrariando, também, "o sonho impossível de nossa cultura - a promessa de satisfações 169 futuras em troca da renúncia do prazer presente - [que] se imprime muito precozmente na mentalidade das crianças" (SMALL, 1989, p. 188). Vale trazer aqui outra apresentação do Sabedoria de Rua, como exemplo do aspecto vivencial da música, mas ressaltando a informalidade com que as crianças e adolescentes em situação de rua se relacionam com música: o conjunto instrumental de uma escola da rede particular de ensino, formado por pré-adolescentes e adolescentes, foi tocar para os alunos da EPA, numa manhã de quinta-feira de agosto, no galpão da escola. A cada música que era executada, aumentava o número de instrumentos de percussão, levando os alunos que assistiam à apresentação a envolverem-se mais a cada uma. Não se contendo em ficar sentados, muitos andavam pelo galpão e outros dançavam. Na terceira música, a vibração levou Sandro a dizer: "nóis tamém queremo se apresentá!! Nóis vamo se apresentá, tamém?", dirigindose a mim, no centro do galpão, mas todos podiam ouvir. Respondi que se quisessem, poderiam, claro. Na quarta peça, "O Berimbau" de Baden Powell23, executado com solo de berimbau - instrumento 23 Violonista e compositor brasileiro, nascido em 1937, no Rio de Janeiro. 170 familiar aos alunos - vários começaram a jogar capoeira. Antes da última peça, Sandro falou: "Bá!!! Tem mais uma ainda?!", com tom de impaciência, mas revelando sobretudo seu desejo de que se apresentassem logo. Durante a última música, a peça Brincadeira com o Olodum, de minha autoria, para instrumentos de percussão, cujo motivo é o gênero popular baiano "Axé", que conhecem e tocam também, as cadeiras estavam praticamente desocupadas, pois a grande maioria dos alunos da EPA dançava, enquanto outros imitavam o regente, outros batiam palmas na pulsação da música, e um menino tocava junto em um repenique do grupo, que viu desocupado. Quando, enfim, viram que acabou a última música, não levou dois minutos para o aparelho de som da escola e um CD chegarem com a corrida de um garoto, que foi pegá-los na secretaria que está à uns 50 metros do galpão. Imediatamente eles se posicionaram na formação tradicional do Sabedoria de Rua e estavam prontos para se apresentar, em frente ao grupo que acabara de tocar, que ficou nas cadeiras em que estavam para assistir. Deve-se observar que, devido à comum infreqüência na escola, muitos alunos não sabiam que teria a apresentação de um conjunto instrumental de outra escola naquela manhã, e tampouco os integrantes do Sabedoria de Rua esperavam se apresentar naquele dia. Esse desejo foi construído no envolvimento com o grupo de 171 instrumentistas que tocava e na vivência da música que ouviam. Contrariando a "estrutura do pensamento científico, e em particular a prática científica em transformar tudo aquilo que lhe interessa em um objeto, quer dizer, em algo que se observa e não que se vivencia" (SMALL, 1989, p. 68), as crianças e adolescentes presentes no galpão da EPA naquela manhã não eram meros observadores da música que ouviam. Ao contrário, tiveram dificuldade em se conter para não vivenciá-la24. Da mesma maneira como se sentiram à vontade enquanto o conjunto instrumental visitante executava gêneros de música tão contrastantes - desde a primeira peça, Suíte Húngara de Eberhard Werdin, em cinco movimentos, executada por um quinteto de flautas, que não conheciam, até a última, mencionada - entenderam como Brincadeira com o Olodum, já natural que também se apresentassem naquele momento. Era em meio à sua comunidade que aprendiam, faziam e se expunham fazendo música; era com naturalidade que recebiam a música na sua vida. Não cogitavam a hipótese: "será que estamos preparados?" Não ocorria, de maneira alguma, que haveriam de "saber" algo sobre música para depois vivenciá-la. 24 A propósito, deu-se um contraste estupendo, pois os alunos visitantes, embora visivelmente interessados e entusiasmados assistindo ao Sabedoria de Rua, permaneceram todos sentados, durante toda a apresentação, limitando-se a aplaudir e assoviar. 172 Muito similarmente, SMALL encontrou nas referidas comunidades africanas acima mencionadas, a concepção do que seja vivenciar a música e do que seja aprender música: Nestas sociedades não ocidentais, como em muitas outras, a educação musical das crianças segue um curso que não lhes impõem esforço algum: o jovem músico toca seu instrumento desde o começo mesmo. É claro que trabalha e se esforça, não para obter o domínio de seu instrumento (já que a idéia mesmo de domínio é alheia a um músico que considera seu instrumento como um amado companheiro em seu empreendimento criativo), senão para aumentar a fluidez, a expressividade e a naturalidade com que toca, e isso não se faz valendo-se de exercícios técnicos, senão tocando e expondo-se continuamente às experiências musicais que se dão no marco de sua sociedade (SMALL, 1989, p. 169). Para os alunos da EPA, tanto quanto a música não é algo para ser observado e sim vivido, ela também não ocupa uma posição de status que a classifica como superior dentre os elementos que compõem suas vidas, exigindo, por isso, momentos "adequados" para fazer música. Nesse sentido, a concepção da música como algo inerente às suas vidas os faz crer que ela é para ser vivida, seja em que contexto for e com quaisquer gêneros de música. 5 CONCLUSÕES Este estudo procurou analisar como a música se inseria na realidade cotidiana das crianças e adolescentes em situação de rua, mediada pelo projeto político-pedagógico da Escola Municipal Porto Alegre, a EPA. Mais especificamente, o estudo procurou revelar as formas como os alunos se relacionavam com a música e os sentidos que a ela atribuíam. Adotando uma abordagem socioeducacional, a metodologia do Estudo de Caso permitiu uma descrição e interpretação das atividades musicais realizadas e evocadas na escola, através da observação participante e de entrevistas qualitativas. A imersão neste cenário, através de uma convivência estreita com os princípios que orientam a prática pedagógica da escola, e a análise dos dados empíricos, revelam que as relações sociais no cenário investigado têm relevância na mediação entre o contexto socioescolar e as atividades musicais dos alunos. 174 A relação dos alunos com a música decorria, também, da relação não-hierarquizada com os diversos saberes representados na escola e o caráter vivencial (SMALL, 1989) dos mesmos na ocupação do tempo-espaço escolar. A música estava inserida na vida dos alunos por seus aspectos comunitário e vivencial e, por isso, envolviam-se mental, corporal e emocionalmente com ela, e não apenas de uma forma cognitiva e abstrata. Embora os alunos da EPA experienciassem uma diversidade de saberes, a música não constava na grade curricular juntamente com as outras áreas do conhecimento. Entretanto, integrava um contexto de valorização da diversidade de saberes como mais uma linguagem que possibilitava o autoconhecimento, o desenvolvimento e a expressividade dos alunos. E mais: mesmo a música não sendo parte integrante do currículo oficial, ela se tornava um dos fatores de vínculo entre a escola e os alunos, ressaltando o aspecto comunitário (SMALL, 1989) que a música adquiria no âmbito socioescolar. A música ligava-se tão intrinsecamente à vida das crianças e adolescentes em situação de rua que, verbalizar a seu respeito com os alunos trazendo-a para reflexão, a destacaria da totalidade em que está inserida, descaracterizando-a da função que tem para eles. Os alunos traziam consigo a percepção da música como um elemento intrínseco da sua vida, pertencendo a uma totalidade vivencial da qual não fazia parte nenhuma formalidade com a música, e que a sua 175 prática - entendido no caso como o uso da música de maneira geral estava vinculada às suas relações sociais. Entre os alunos que freqüentaram a EPA no ano de 1999, pude observar a capacidade que a música tem de conectar as pessoas envolvidas em uma performance, como acredita SMALL (1998), revelando a presença marcante do aspecto comunitário da música entre eles. A confiança que encontravam nos professores, aliada ao fato de estarem entre amigos, talvez fosse a primeira razão que as crianças e os adolescentes tinham para celebrar em suas performances musicais, uma vez que, fora dali, estavam em permanente estado de vigilância e risco (CRAIDY, 1998; GRACIANI, 1997). A conectividade proporcionada pelo aspecto "comunitário" da música entre os alunos ressaltava sua identidade de grupo e também o sentimento de inclusão, visível principalmente quando as performances musicais envolviam, além deles, os professores e funcionários da EPA, o que era freqüente. Na identidade individual, a performance musical mostrou ter relevância na minimização de três aspectos característicos da personalidade de crianças e adolescentes em situação de rua: na frustração da privação da infância, no estigma e na submissão ao grupo. Nos momentos de performance musical os alunos podiam 176 conectar-se com um "alto padrão" (SMALL, 1995, 1998) de relações com o mundo e com as outras pessoas, subvertendo a ordem imposta pelas relações estabelecidas na necessidade de pertencimento e a conseqüente submissão ao grupo. Além disso, durante os momentos de performance musical podiam conectar-se com a imagem ideal que faziam de si mesmos, apesar do estigma, aliviando-se do sentimento de "culpabilização individual" que, na análise sociológica da desigualdade de SAWAIA (1999, p. 8-9) é o "mecanismo psicológico principal da coação social nas sociedades onde prevalece o fantasma do uno e da desigualdade". Este autor se refere a esta questão como "dialética exclusão/inclusão" argumentando que a sociedade exclui para incluir e esta transmutação é condição da ordem social desigual, o que implica no caráter ilusório da inclusão. [...] O pobre é constantemente incluído, por mediações de diferentes ordens, no nós que o exclui, gerando o sentimento de culpa individual pela exclusão (SAWAIA, 1999, p. 8-9). Confirmando a culpabilização individual, a professora Maira declarou em uma ocasião: "Do que mais eles têm medo, é de errar. Porque até hoje, tudo na vida deles deu errado". Nessa direção, também, a performance musical mostrou ter um forte sentido para as crianças e adolescentes em situação de rua, pois tinham a 177 oportunidade de exibir na escola um saber próprio, adquirido e construído fora da sala de aula, e vivenciá-lo sem o medo do "erro" e/ou da culpa por ele - já que era um saber não avaliado pelos professores. Um sentido relevante, também, tinha o improviso musical para os alunos observados. Improvisar novas coreografias para dançar rap e novas combinações de ritmos entre os instrumentos de percussão significava arriscar sem correr o risco real de violência a que estavam submetidos diariamente. Ao improvisar, os alunos tinham a oportunidade de confrontar-se com algo desconhecido - os elementos musicais e corporais não planejados - sem a habitual sensação de medo. Da minha convivência com a "situação de rua" Somente aqueles que se submetem à natureza e estejam dispostos a esperar que ela se revele, os que se demoram ternamente em seus segredos como o amante se demora em sua amada, alcançarão dela esse conhecimento autêntico que é experiência vivencial (SMALL, 1989, p. 79) Nas discussões das questões diárias emergentes do cotidiano escolar, que em grande escala se davam na rua, mas eram trazidas para as reuniões do planejamento da prática educativo-pedagógica da EPA como um todo, buscava dirimir a insegurança gerada pela 178 dimensão da complexidade e profundidade com que se apresentava para mim aquele contexto sociocultural. Além disso, tinha que conviver com o fato de que o grupo social no qual eu me inseria e teria que interpretar, mais conhecido por "meninos de rua", tem enfoques que variam, dependendo se esses vêm da mídia, da expressão popular, do poder público oficial, ou ainda, da literatura científica, específica da área, que também era nova para mim. Uma instabilidade era gerada na necessidade de equacionar essas "fontes" com a realidade que se apresentava para mim, com abundância de subjetividades. Instabilidade que nos acomete quando não sabemos "se sequer estamos em uma situação adequada, ou se podemos de alguma forma nos posicionar em uma situação adequada, para julgar outros modos de vida" (GEERTZ, 1998, p. 18). Convivendo com esse "outro modo de vida", pude compreender a afirmação de CRAIDY (1998, p. 22): "o fenômeno meninos de rua é antes de tudo um fluxo que expressa um movimento de exclusão social mais amplo e se manifesta de forma particular na infância, por ser ela o seu elo mais frágil". A construção deste trabalho promoveu, paralelamente, a reconstrução de aspectos fundamentais de minha formação e vivência escolar. Sinto-me privilegiada pela oportunidade que tive 179 durante o processo desta investigação, de experimentar em minha própria história a Educação como uma ciência que pode restaurar "linhas de progresso que um dia foram mutiladas" (GIMENO SACRISTÁN, 1999, p. 158). E foram necessários dois cenários, o curso de Pós-Graduação em Música e a EPA, ambos fortes, para fazer-me reconhecer e identificar o que eu trazia de uma prática modernista de educação, refletido na inflexibilidade, na rigidez e nos medos - principalmente pela inexperiência em pesquisa - de não corresponder à lógica dos produtos substantivados da cultura educacional absorvida em minha escolaridade. Em alguns momentos foi desestabilizador estar em uma escola - o cenário "oficial" da pesquisa - tão aberta na sua diversidade, flexibilidade e desejo de agência e autonomia, sensação potencializada pela prática educativa de minha orientadora - o cenário de lutas e confrontos comigo mesma - onde, a cada encontro ela "impunha" seu modo de construir conhecimento isento de receitas, com um planejamento com espaço para o imprevisto e a emoção, a discussão democrática e participativa a cada decisão dos rumos a tomar na investigação num processo dialógico, exigindo que eu também a viesse tomar decisões, tentando provocar em mim a mesma agência que a EPA tentava instigar nos seus alunos. 180 Fui compreendendo em profundidade que o "começar do zero" e trilhar o próprio caminho seria a única alternativa para chegar a um conhecimento legítimo. A emoção de minha professora ao vislumbrar a transformação que isso ocasionaria em mim conseguiu levar-me, apesar de minha resistência, a correr os riscos de estar, agir e interagir com o desconhecido, em meio a uma desconstrução e reconstrução de mim mesma, nos dois cenários. Os modos de atuar nos dois cenários, o modo como foram sendo construídos os vínculos e o movimento por um objetivo que passou a ser comum - a construção deste trabalho - foram fatores determinantes neste meu processo re-educativo, independente dos conteúdos com os quais convivia. Minha vivência educativa e aproximação da área da Educação durante a construção deste estudo, levam-me a uma reflexão epistemológica da área de Educação Musical. Da mesma forma como o projeto político-pedagógico da EPA influía na forma como seus alunos se relacionavam e concebiam música, minha vivência como aluna-pesquisadora levou-me à concepção de Educação como "atividade especificamente dignificadora da condição humana, [que quer] descobrir o caminho da realização das utopias que melhorem o estado das coisas da atualidade" (GIMENO SACRISTÁN, 1999, p. 154). Vivência que deixa-me a refletir sobre a concepção do que seja um educador musical. 181 Se, como afirmado anteriormente, as formas como a música estava inserida no cotidiano das crianças e adolescentes observados indicam que a qualidade de seu envolvimento com música e a propriedade com que a vivenciavam, relacionava-se ao seu não atrelamento aos padrões de status, de hierarquia, de fragmentação do conhecimento e de formalidade na relação com ele, da "sociedade instituída" (ANTUNES, 1997), ficam em aberto algumas questões para os educadores musicais: em que medida a institucionalização da práxis educativo-musical determina a forma como os alunos se relacionam com música? Em que medida a forma como os educadores musicais se relacionam com música é determinada por seu atrelamento aos padrões de relação com o conhecimento da "sociedade instituída"? Estas perguntas sugerem a necessidade de reflexões sobre a natureza da relação com música e do conhecimento musical construído no âmbito escolar. Além disso, para relativizar nossos conteúdos curriculares, "a ideologia por detrás de nossas escolhas de repertório e metodologia" (PRASS, 1998, p. 308), como trazido na introdução deste trabalho, é necessário estar atento ao "efeito de naturalização que a inscrição durável das realidades sociais no mundo natural acarreta: diferenças produzidas pela lógica histórica podem, assim, parecer surgidas da natureza das coisas" (BOURDIEU, 1997, p.160). 182 De todo crescimento obtido durante a construção deste estudo e absorvido na vivência educativa, gostaria, por fim, de registrar uma das lições que vejo como útil para nossa práxis educativo-musical e que percebi nas crianças e adolescentes com os quais convivi: a necessidade de espaço para o imprevisto e o maravilhamento na prática pedagógica. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Elaine N. 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ANEXOS 189 Anexo 1: Planejamento estratégico da EPA 190 191 192 193 194 195 196 Anexo 2: "Jornada Temática da EPA", em comemoração ao 4º aniversário da escola 199 Anexo 3: Atividades realizadas na EPA no primeiro semestre de 1999 201 Anexo 4: Roteiro de entrevista semi-estruturada 205 Anexo 5: Livro de poesias da EPA ABSTRACT This work researched the ways street children and adolescents connect to the music and the meaning they relate to it. The scenary choosed at the research were Escola Municipal Porto Alegre - EPA, to be localized in Porto Alegre, RS, whose peculiarity is to attend children and adolescents that living in streets, providing education for them. The Case Study methodology, through the socialeducational approach, enable the interpretation of the social relationships established in the school community, wich emerged contemplated in the ways the students are related to music as well as in the meaning it has for them. The "communality" and "living" aspects of the music (SMALL, 1989; 1998), observed in that scenary, emphasize the mediation of the politic-pedagogyc project of the EPA on its musical activities of its students.