A música é, bem dizê, a vida da gente

Transcrição

A música é, bem dizê, a vida da gente
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA - MESTRADO E DOUTORADO
Dissertação de Mestrado
"A música é, bem dizê, a vida da gente":
um estudo com crianças e adolescentes em situação de rua
na Escola Municipal Porto Alegre - EPA
por
Vânia Beatriz Müller
Porto Alegre
2000
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA - MESTRADO E DOUTORADO
Dissertação de Mestrado
"A música é, bem dizê, a vida da gente":
um estudo com crianças e adolescentes em situação de rua
na Escola Municipal Porto Alegre - EPA
por
VÂNIA BEATRIZ MÜLLER
Dissertação submetida como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em Música,
área de concentração: Educação Musical.
Orientadora: Profa. Dra. Jusamara Souza
Dedico este trabalho ao Gabriel, Filipe e Marcelo.
Que ele possa, um dia, encorajá-los nas buscas de
si mesmos e justificar, assim, minha ausência
durante sua construção.
AGRADECIMENTOS
Agradeço às crianças e adolescentes com quem convivi no
trabalho de campo, pelas contribuições a este trabalho, pelas lições
que me deram, pela oportunidade de partilhar a riqueza de suas
humanidades;
À Míriam, pela "iniciação" na vida da rua, pelo que acrescentou
em mim sobre ética, sobre fragilidade e dignidade humanas, sobre
Educação;
À direção da EPA, aos professores e funcionários, pela
paciência com minha presença no seu ambiente de trabalho, pelo
convívio ímpar, pelo privilégio de conviver com seu projeto políticopedagógico;
À Jusamara, minha orientadora, por sua essencial participação
no desencadear de meu maravilhamento com a construção de
conhecimento e com a escrita; pelo exemplo de resistência na
perseguição
de
nada
menos
que
a
verdade
na
busca
de
conhecimento; pela educadora exigente e generosa ao ler cada
palavra, por ler-me, inclusive, naquelas que não escrevi;
À CAPES, pela concessão de bolsa que possibilitou este estudo,
aos professores pelas reflexões e o crescimento proporcionados, ao
carinho da Ritinha e demais funcionários do PPG-Música;
À minha mãe, pelo exemplo de força de transformação da
realidade, por seu desejo de mudança; ao meu pai, por seu desejo de
metodização. Aos dois, pela ajuda na transcrição de entrevistas, na
tradução de textos, pela presença.
Ao Germano, pela compreensão deste momento e valorização
deste trabalho, por sua generosidade;
À
Verônica,
pelo
exemplo
de
relação
amorosa
com
o
conhecimento, pelo incentivo e alegria sempre, pela leitura e
sugestões no trabalho escrito;
À Vaneila, Luís Henrique e Francisco, pela disponibilidade
sempre afetuosa e pela força;
À Carla Livi pela ajuda no Inglês;
Ao Hugo pelo afeto e atenção dispensados com o Gabriel, Filipe
e Marcelo, e pela ajuda no Inglês;
À Viviane Beineke, pelos momentos partilhados de reflexão e
construção de conhecimento, pelas oportunidades prazerozas de
troca de saberes;
Ao Fernando Mattos pelo incentivo e ajuda na preparação para
a seleção do mestrado;
À Prefeitura Municipal de Porto Alegre – Secretaria de
Comunicação Social, pela contribuição com fotografias que ilustram
este trabalho;
À Rede Bandeirantes de Televisão - Porto Alegre, pelas imagens
fornecidas;
À Carmen, com quem, um dia, por sua humanidade e
incontestável esperança, comecei a construir a realidade que hoje se
concretiza, também, neste trabalho.
v
SUMÁRIO
RESUMO
INTRODUÇÃO
IX
1
1 O CENÁRIO: A ESCOLA MUNICIPAL PORTO ALEGRE - EPA 7
1.1 A dinâmica da rua determinando o tempo-espaço da escola
8
1.1.1 Ocupando a secretaria, cuidando da escola
10
1.1.2 Buscando os professores
12
1.2 A prática pedagógica da EPA
14
1.2.1 A organização curricular
16
1.2.2 "Nosso chão é a fala dos alunos": a rede temática
21
1.3 Princípios ético-políticos da prática pedagógica da EPA
24
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E REFERENCIAL TEÓRICO
31
2.1 Tocando na superfície: buscando vínculos no campo
31
2.1.1 Esperando a música no currículo oficial
33
2.1.2 O acesso ao campo
35
2.1.3 Uma escola (muito) aberta: meu estranhamento
38
2.2 Compondo um método
2.2.1 A coleta de dados
2.2.1.1 Registrar ou viver?
2.2.1.2 As entrevistas
2.2.2 Analisando e interpretando os dados
2.2.2.1 As transcrições
2.2.2.2 Categorização e análise
2.3 Referencial teórico: a concepção de Christopher Small
41
45
49
51
53
53
54
58
2.3.1 Musicking
61
2.3.2 O aspecto "comunitário" da música
63
2.3.3 O aspecto "vivencial" da música
64
3 O ASPECTO "COMUNITÁRIO" DA MÚSICA NA EPA
67
3.1 A música e o vínculo dos alunos com a escola
68
3.2 Da ponte até a escola: a música nas relações sociais
77
3.3 A música como possibilidade de inclusão
99
3.4 A música e a identidade das crianças e adolescentes em
situação de rua
4 O ASPECTO "VIVENCIAL" DA MÚSICA NA EPA
105
125
4.1 "A música é, bem dizê, a vida da gente"
125
4.2 "Se eu penso sobre música? Como assim?"
133
4.3 Vivenciando a diversidade
137
4.3.1 O "aqui e agora" por princípio
150
4.3.2 A música compromete
157
4.3.3 As apresentações
164
5 CONCLUSÕES
173
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
183
vii
ANEXOS
188
Anexo 1: Planejamento estratégico da EPA
189
Anexo 2: "Jornada Temática da EPA", em comemoração ao 4º
aniversário da escola
196
Anexo 3: Atividades realizadas na EPA no primeiro semestre
de 1999
199
Anexo 4: Roteiro de entrevista semi-estruturada
201
Anexo 5: Livro de poesias da EPA
205
ABSTRACT
208
viii
RESUMO
Este
trabalho
investigou
as
formas
como
crianças
e
adolescentes em situação de rua se relacionam com a música, e os
sentidos que atribuem à ela. O cenário escolhido para a pesquisa foi
a Escola Municipal Porto Alegre – EPA, localizada em Porto Alegre,
RS, e cuja particularidade é proporcionar educação à crianças e
adolescentes que vivem nas ruas.
A metodologia do Estudo de Caso, através de uma abordagem
socioeducacional, possibilitou a interpretação das relações sociais
estabelecidas
na
comunidade
escolar,
as
quais
se
revelaram
contempladas nas formas como os alunos se relacionavam com
música e nos sentidos que ela tinha para eles.
Os aspectos "comunitário" e "vivencial" da música (SMALL,
1989; 1998) observados naquele cenário enfatizam a mediação do
projeto político-pedagógico da EPA nas atividades musicais dos seus
alunos.
INTRODUÇÃO
A Escola Municipal Porto Alegre - EPA - é uma escola da Rede
Municipal de Ensino, da cidade de Porto Alegre, RS, destinada a
crianças e adolescentes em situação de rua. Definida como "escola
aberta", a EPA assume características diferenciadas de outras
instituições escolares, por sua organização flexível e uma relação
não-hierarquizada com as áreas do conhecimento. Segundo YUS
RAMOS (1999), a escola aberta é um tipo de escola "que pretende
renaturalizar os processos, ou seja, recuperar ou aprender a partir
dos procedimentos ou das estratégias de processos extra-escolares,
como a tentativa, o ensaio e o erro, a aprendizagem incidental”. Além
disso, é uma escola “que pretende recontextualizar os conteúdos,
afastar os olhos dos livros-texto e ir aos lugares onde o conhecimento
tem origem e é vivenciado [...]” (YUS RAMOS, 1999, p. 19).
A particularidade da EPA despertou em mim entusiasmo e
desejo em conhecer uma escola que construísse conhecimento a
partir das realidades e dos saberes dos alunos. Mais especificamente,
2
interessava-me a possibilidade de discutir a música integrando a
construção e a convivência com outros saberes que faziam sentido
para crianças e adolescentes em situação de rua.
Tomando a EPA como cenário de investigação, inicialmente
procurei
responder às seguintes questões: Como a música está
inserida na vida desta escola? Como seus alunos se relacionam com
a música? Em que medida o projeto político-pedagógico, refletido no
tempo-espaço desta escola, determina a relação dos seus alunos com
a música?
Essas questões tornam-se relevantes para a área de Educação
Musical, uma vez que elas contribuem para revelar o imbricamento
entre uma prática educativa desafiadora e a música. A carência de
uma literatura na área de Educação Musical que contemple as
questões recentes trazidas pela área da Educação justificou, também,
a definição da EPA como cenário de pesquisa.
Trabalhos recentes em Educação Musical têm abordado a
questão de ensino e aprendizagem de música do ponto de vista
sociocultural (ver GOMES, 1998; STEIN 1998; PRASS, 1998;
ARROYO, 1999). Os resultados dessas pesquisas têm permitido,
segundo PRASS (1998), "visualizar a complexidade da música na sua
relação com a vida social, [o que] parece ser um meio eficiente para a
relativização de nossos conteúdos curriculares, da ideologia por
3
detrás de nossas escolhas de repertório e metodologia, abrindo novas
perspectivas para a educação musical" (p. 308).
Embora as mais variadas áreas do conhecimento venham
demonstrando interesse crescente pelo tema "situação de rua", a área
de Educação Musical tem se dedicado pouco às investigações a este
tema. Entre as contribuições cito o trabalho de BARCELLOS (1997),
que relata uma experiência em criação musical com “Meninos de
rua”.
A motivação em adentrar essa temática veio da preocupação em
apreender, compreender e interpretar a cultura desse grupo social,
embora estivesse consciente da responsabilidade que a tarefa
acarretava. Isso porque imaginava que quando esses alunos chegam
à escola já trazem concepções de música com seus códigos de grupo,
seus significados, vivências musicais anteriores à escola e até suas
identidades, de grupo e individuais, formadas com influência de
preferências musicais (PAIS, 1993).
Após alguns meses de convívio, de participação em atividades
musicais com os alunos da EPA e, principalmente, após a
constatação de que, embora a música não constasse na grade
curricular, a vida musical era intensa naquele espaço escolar, a
questão central deste trabalho veio constituir-se em revelar os
sentidos que os alunos da EPA atribuem à música, e desvelar as
formas como se relacionam com ela.
4
Optei por trabalhar com o Estudo de Caso, procurando estar
com os alunos da EPA o maior tempo possível, dentro e fora do
espaço
escolar
e
em
situações
diversas:
ora
tocando
nos
instrumentos de percussão com o grupo, ora acompanhando-os em
apresentações musicais em outras instituições, ora visitando-os em
seus mocós1. A utilização de técnicas na coleta de dados, como a
entrevista e a observação participante, resultaram das decisões
metodológicas que buscavam uma intensa imersão no cenário, dadas
as suas características de diversidade e imprevisibilidade.
As entrevistas utilizadas nesta dissertação foram transcritas
literalmente obedecendo à sintaxe da linguagem falada. O critério de
transcrever como se fala tomo-o a mim também. Segundo RECTOR
(1994, p. 31), "a linguagem é um tipo de comportamento social e,
como tal, é de livre escolha do ser humano". Ela é, portanto, gestada
no seio do grupo social, de acordo com suas intencionalidades e
desejos, que vêm explícita ou implicitamente nas nuances sonoras,
nos
signos,
na
incisão,
no
silêncio,
na
impetuosidade,
na
espontaneidade e nas deambulações de sua fala.
Foram escolhidos pseudônimos a fim de preservar a identidade
1 Lugar onde habitam as crianças e adolescentes em situação de rua. A
maioria dos mocós dos alunos da EPA se localizavam embaixo de pontes, sendo que
dois eram em casarões abandonados.
5
dos alunos, professores e funcionários que participaram deste
estudo.
A citação de trechos das entrevistas e do caderno de campo
seguem o padrão de citação literal de bibliografia, trazendo no início
das falas a inicial dos nomes de quem participa dos diálogos, sendo
que a minha fala sempre está indicada por "V". As citações da
literatura portuguesa foram mantidas no português original, e as da
literatura inglesa e espanhola foram traduzidas por mim.
A dissertação está organizada em cinco capítulos: no primeiro,
descrevo o cenário de pesquisa, a EPA, que tem seu tempo-espaço
configurado pela dinâmica da rua trazida para a escola pelos alunos
que a freqüentam e o seu projeto político-pedagógico.
No segundo capítulo, explico os procedimentos metodológicos
adotados na investigação, justificando os contornos que o Estudo de
Caso adquiriu neste cenário. Ainda neste capítulo, exponho as
concepções de Christopher Small argumentando sobre as razões que
me levaram a optar por esse autor para a interpretação da realidade
observada. Sua crítica à visão científica e à racionalidade do mundo
ocidental fundamenta seus argumentos no que concerne à relação
que temos com a música (SMALL, 1989). Na sua opinião, essa é a
razão originária da qual decorrem outros fatores e valores que nos
afastam dos aspectos "comunitário" e "vivencial" da música, conceitos
sobre os quais interpretei e organizei o material empírico obtido.
6
No terceiro capítulo, procuro revelar o aspecto "comunitário"
que a música adquiriu nesse cenário, a partir do vínculo das crianças
e adolescentes em situação de rua com a escola, dos vínculos entre
seus pares de amigos e, ainda, das relações sociais que se
estabeleceram na comunidade escolar. Além disso, discuto a música
como possibilidade de inclusão para os alunos da EPA e a
participação da música na formação de suas identidades.
No quarto capítulo, procuro desvendar os sentidos que os
alunos da EPA atribuíam à música, e as formas como se
relacionavam com ela a partir do aspecto "vivencial" da música
observado entre as crianças e adolescentes em situação de rua que
freqüentavam a escola. O aspecto vivencial da música será abordado
sob a perspectiva de seu interesse pelas músicas que ouviam,
tocavam, cantavam e dançavam, bem como da forma como a música
se inseria na relação dos alunos com os demais saberes que
vivenciavam na escola.
O quinto e último capítulo apresenta de uma forma concisa os
resultados do trabalho, apontando possíveis contribuições para a
área de Educação Musical.
1 O CENÁRIO:
A ESCOLA MUNICIPAL PORTO ALEGRE - EPA
Em cumprimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente, a
Prefeitura Municipal de Porto Alegre criou, em 1995, a Escola
Municipal Porto Alegre - EPA -, visando "proporcionar o direito à
educação das crianças e adolescentes que, socialmente excluídos da
escolarização formal, vivem nas ruas do centro de Porto Alegre"
(FLEISCHMANN, 1999, p.16).
A faixa etária dos alunos que freqüentam a escola abrange dos
10 aos 18 anos de idade, muito embora, na prática, os limites de
idade sejam ultrapassados, principalmente a idade máxima. No ano
de 1999, havia 337 alunos matriculados, comparecendo uma média
de 50 alunos diariamente, distribuídos entre o turno da manhã e o
turno da tarde. É essa "média" que trazia para dentro da escola a
vida, o movimento, a dinâmica da rua.
8
1.1 A dinâmica da rua determinando o tempo-espaço da
escola
A chegada das crianças e adolescentes em situação de rua que
estudavam na EPA mostrava como, geralmente, o tempo-espaço da
escola era ocupado: com alegria às vezes alardeadora, com o corpo
expansivo de quem estava acostumado a ocupar espaços disponíveis.
Alguns já entravam dançando e/ou cantando, outros com a
irreverência adolescente e uma afetividade que ora se fazia visível no
seu avesso, na sua carência, ora se revelava na sua inteireza e
generosidade.
Um grande portão de barras cilíndricas de ferro, azul marinho,
sempre chaveado com cadeado, fazia a divisa entre a escola e a rua,
exceto às quintas-feiras à tarde, quando não havia aula para os
alunos. Ao seu lado localizava-se a guarita onde trabalhavam dois
guardas municipais, que estavam sempre vestindo o uniforme - calça
e camisa - azul escuro. Uma de suas funções era revistar os meninos,
sempre no horário de entrada da escola, enquanto duas professoras
revistavam as meninas. Essa medida era tomada para evitar que os
alunos entrassem com drogas ou com algum objeto que podia
ameaçar a segurança no interior da escola.
9
No ato de revista, embora estivessem de braços para cima, era
visível o vínculo dos alunos com os guardas, com quem mantinham
uma relação amigável. Álvaro, um garoto de 16 anos, contou-me que
tinha com um dos guardas, Emílio, "uma amizade legal, é tri gente
fina. Às vezes tomamo uma cerveja e a gente conversa". Enquanto os
guardas cumpriam sua função de examiná-los, alguns alunos
seguiam cantando da mesma forma como cantavam ao chegar em
frente a escola.
Quando os alunos chegavam, o refeitório era o primeiro espaço
ocupado, pois, tanto no turno da manhã quanto no da tarde, as
refeições eram realizadas antes das atividades pedagógicas na escola.
Antes de deixar a escola no seu respectivo turno, os alunos faziam
outra refeição. Durante cada uma das refeições, uma dupla de
professores permanecia com os alunos no refeitório, uma sala ampla,
com duas mesas de aproximadamente 4 metros de comprimento por
80 centímetros de largura, com banquetas para os alunos sentarem.
Numa das paredes ficava um armário com as escovas de dentes dos
alunos, marcadas com seus nomes, e eventuais cartazes feitos em
aula por eles, estimulando a escovação de dentes, assim como outros
alusivos à organização das filas e à ordem no refeitório. Cartazes
permanentes alertavam para a prevenção do vírus HIV e o uso de
preservativo.
10
Este espaço onde faziam as refeições era separado por uma
parede com duas grandes aberturas onde os alunos pegavam os
pratos servidos e os deixavam após a refeição. Ali trabalhavam as
cozinheiras
e
um
cozinheiro,
com
os
quais
alguns
alunos
conversavam regularmente e, entre os mais próximos, partilhavam
cigarros.
1.1.1 Ocupando a secretaria, cuidando da escola
Depois de comer, de dar uma volta no pátio, ou escovar os
dentes, era hora de ir para a sala de aula. Antes, porém, olhavam
para dentro da secretaria, que se localizava na parte central do
prédio, ao lado do corredor que dá acesso às salas de aula, sendo
possível ver quem estava lá dentro. Por vezes os alunos entravam
para conversar com uma professora ou com a secretária, que também
conhecia a história da maioria dos alunos e tinha vínculos com
muitos deles. Se já havia colegas dentro da secretaria, aí sim,
entravam para ficar junto com todos. Era comum encontrar cerca de
três ou quatro alunos dentro da secretaria.
Sentiam-se bem tendo acesso àquele lugar que servia para
administrar, organizar e decidir a vida da escola. Muitas vezes
ultrapassavam o balcão de atendimento e sentavam-se nas cadeiras
11
da mesa de trabalho da secretaria, embora houvesse um pedido na
porta para que não permanecessem ali. Os que estavam em busca de
contato humano compartilhavam o espaço da secretaria com aquele
colega que ia pedir algum produto para tomar banho, ou com quem
vinha pegar seu remédio deixado guardado no dia anterior, ou ainda
pedir uma agulha para o colega tirar seu bicho-de-pé. Tudo isso era
permeado com as conversas entre os professores.
Na
marcadas
secretaria
também
audiências
com
eram
o
providenciados
juiz,
documentos,
consultas
médicas,
encaminhamentos para casas de abrigo. Era onde se pedia o rádio,
CDs , a chave da sala para pegar os instrumentos de percussão,
reclamar de algum colega ou de alguma dor, o que resultava, às
vezes, em um intenso congestionamento sonoro e físico.
Além disso, o balcão da secretaria servia, comumente, de local
de reivindicações dos alunos, podendo gerar longas discussões, uma
vez que era habitual os professores tentarem mostrar ao aluno a
realidade circunstancial que o envolvia, propiciando-lhe o exercício de
seu direito ao entendimento do que se passa consigo e no seu
ambiente. O transitar dos alunos pelo espaço escolar fazia parte da
intenção político-pedagógica da escola, qual seja, contribuir na
conscientização de seus educandos em relação à necessidade de que
reconheçam e reivindiquem seus direitos (FLEISCHMANN, 1999).
12
Os alunos circulavam pelo pátio, pelos corredores e salas da
escola, com apropriação dos direitos que sentiam ter sobre seus
espaços. Assim, por exemplo, procuravam preservar o aspecto físico
da escola e reclamavam quando trabalhos do curso que funciona à
noite no prédio da EPA2 ocupavam espaço a mais em suas paredes do
que o estabelecido.
1.1.2 Buscando os professores
A maneira como os alunos ocupavam os espaços da EPA era
diferenciada do que ocorre nos espaços escolares que eu conhecia. As
crianças e adolescentes que freqüentavam a EPA não consideravam
as portas fechadas como obstáculo, e não havia espaços que
hierarquicamente impediam-nas de utilizá-los. Embora houvesse um
aviso na porta da sala dos professores solicitando privacidade e que
batessem antes de entrar, era comum ver os alunos entrarem nesta
sala, por exemplo, para mostrar trabalhos produzidos na aula, nos
quais, em muitos casos, explicitavam a afetividade por uma
determinada professora.
2 O prédio da EPA era ocupado à noite pelo CEMET (Centro Municipal de
Educação para Trabalhadores), vinculado à Secretaria Municipal de Educação de
Porto Alegre.
13
Presenciei inúmeros momentos de alunos sentados à mesa com
as professoras, mostrando e explicando com satisfação o trabalho
feito em aula, alguns tentando ler o que eles próprios haviam escrito.
Era um local na escola considerado "especial" pelos alunos, pois
estavam ali suas relações mais próximas - o professor de cada um -,
e também um lugar "de confiança",
onde deixavam sua sacola de
plástico com alguma peça de roupa, ou carteira, remédio, cigarro, fita
cassete, até o momento de sair da escola.
O tempo-espaço da EPA era ocupado pelas crianças e
adolescentes que a freqüentavam, de acordo com sua necessidade de
expressão. Foram também inúmeras as entradas de alguns alunos
nas reuniões pedagógicas que aconteciam às quintas-feiras à tarde,
embora eles soubessem que não havia aula naquele dia à tarde. Mas
sabiam que os professores estariam na escola. Em uma reunião, por
exemplo, na janela da sala onde estávamos reunidos, surgiu uma
criança, de repente, e começou a chamar. Alguns professores
dirigiram o olhar para ela, bem como a professora que estava falando
naquele momento, mas continuou a falar, como quem já não
estranha isso. Era Irineu, 14 anos. O garoto saiu da janela. Passados
uns cinco minutos ele entrou na sala onde estávamos e, sorrindo, foi
fazendo a volta, vagarosa e silenciosamente, por trás do círculo que
formávamos, passando a mão na cabeça da professora Greta, depois,
da professora Cimara. Foi saindo pelo outro lado do círculo, tendo os
14
olhares todos para si, passando a mão, ainda, nos cabelos da
professora Gláucia, que estava próxima à porta. Quando viu que teria
que sair, voltou, fugindo da professora Élvia, que foi atrás dele
tentando convencê-lo a sair da sala. Convidou-o a se retirar dizendo
"aqui o pessoal tá trabalhando, estão de reunião", ao que ele resistiu
um pouco, mas logo saiu.
1.2 A prática pedagógica da EPA
Através de sua práxis diária3, a EPA intenciona seguir o projeto
da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, que determina
como fundamento pedagógico à Rede Municipal de Ensino os
princípios da Escola Cidadã4, cujos objetivos são:
(...) redimensionar a lógica excludente da organização do
tempo e do espaço escolares capaz de flexibilizar-se em
função
de
uma
lógica
de
inclusão,
fundada
no
compromisso coletivo com a aprendizagem efetiva de
todos os alunos. Partindo do pressuposto de que todo/a
aluno/a não só tem direito mas é capaz de aprender e
Consta no Anexo 1 o "Planejamento Estratégico" de atuação pedagógica
quando em processo de construção e averigüação da realidade em que se inseria a
escola, no mês de julho de 1999. Está organizado em "Matriz do Ator", "Matriz do
Problema", "Matriz dos Objetivos" e "Matriz da Conjuntura".
3
4 Para aprofundamento desse tema ver: FREITAS, Ana L. (1999).
Projeto
Constituinte Escolar: AVivência da "Reinvenção da Escola" na Rede Municipal de
Ensino de Porto Alegre. In: SILVA, L. H. (Org.) Escola Cidadã: Teoria e Prática. Porto
Alegre: Vozes, p. 31-45.
15
traz consigo saberes para a situação de aprendizagem,
fez-se necessário pensar uma organização curricular
diferenciada (FREITAS, 1999, p.40).
A EPA pretende ter seu tempo e espaço redimensionados, uma
vez que seus alunos são crianças e adolescentes em situação de rua,
necessitando acolher em cada uma de suas turmas de alunos um
universo diversificado em idades, níveis de alfabetização e de
desenvolvimento cognitivo. Por isso, cada turma tem no máximo
quinze alunos e é atendida por dois educadores com a preocupação
de suprir as demandas individuais dos alunos, os quais são
distribuídos nas turmas de acordo com o nível de alfabetização.
Faz parte também da flexibilização do espaço escolar com a
realidade de seus educandos a freqüência livre. Independente do
tempo de ausência do aluno, seu retorno é garantido e sempre viável,
uma vez que a escola procura não desenvolver conteúdos estanques
ou hierarquizados. Apesar dessa flexibilidade, há um horário
estabelecido para a entrada e saída na escola diariamente.
16
1.2.1 A organização curricular
Na EPA o currículo se organiza em três Totalidades do
Conhecimento, denominadas T1, T2 e T3. O conceito de Totalidades
do Conhecimento5 é uma organização curricular que pretende romper
(...) com as fragmentações do currículo tradicional que
aparecem na escola seriada, na forma de hierarquização
e desarticulação de conteúdos e disciplinas, [...] onde o
conhecimento é dado a priori, transmitido de um
indivíduo ao outro como verdade definitiva, absoluta e
anistórica (BERTONCELLO, 1999, p. 129).
Além dos conteúdos que são trabalhados pelos professores
responsáveis pela turma, como Língua Portuguesa, Matemática,
Ciências e Estudos Sociais, o currículo inclui as disciplinas de
Informática,
Educação
Ambiental,
Roda
de
Poesia,
Capoeira,
Educação Física, Argila e Oficina de Papel Reciclado, as quais são
ministradas por professores especializados.
5 Para aprofundamento desse tema ver: BORGES, Liana. (1997). Em Busca
da Unidade Perdida - Totalidades do Conhecimento: Um Currículo em Educação
Popular. In: SILVA, Luiz H. (Org. et al.). Novos Mapas Culturais Novas Perspectivas
Educacionais. Porto Alegre: Sulina, p. 279-295.
17
De caráter extracurricular, existia um grupo de rap6, o
Sabedoria de Rua, integrado por 6 meninos e 3 meninas. Esse grupo
preparava coreografias coletivas e individuais para apresentações
dentro e fora do espaço escolar. Embora tenha havido tentativas da
direção da escola em trazer um coordenador para o grupo, os alunos
ficaram, no ano de 1999, sem orientação de um professor.
No início do ano de 1999, havia a intenção de promover aos
alunos aulas de construção e restauração de instrumentos de
percussão e aulas de rap. E ainda, fazia parte dos planos da direção a
instalação de uma rádio comunitária7, também com o intuito de
envolver os alunos diretamente na produção e execução dos
programas que fossem ao ar.
O currículo da EPA não só inclui, mas é concebido a partir da
realidade cotidiana dos educandos, contemplando temas como
À parte das discussões do ponto de vista musicológico sobre se "rap é
música ou não?", considero-o nesse trabalho como música, em primeiro lugar
porque é considerado como tal pelas crianças e adolescentes que participaram da
pesquisa. Em segundo lugar, a literatura que investiga o tema (CONTADOR e
FERREIRA, 1997; SHUSTERMAN, 1998; ANDRADE, 1999a, 1999b; TELLA, 1999)
para citar alguns, o nomina "a música rap" justificando nas razões sócio-históricoculturais sua estética. Nas palavras de SHUSTERMAN (1998) "o rap é uma arte
popular pós-moderna que desafia algumas das convenções estéticas mais
incutidas, que pertencem não somente ao modernismo como estilo artístico e como
ideologia, mas à doutrina filosófica da modernidade e à diferenciação aguda entre
as esferas culturais. [...] Ele afronta assim qualquer distinção rígida entre artes
maiores e arte popular fundada em critérios puramente estéticos, assim como
coloca em questão a própria noção de tais critérios" (p. 144).
6
7 Fazia parte do projeto político-pedagógico da EPA atuar, também, através
de uma rádio comunitária. Durante o ano de 1999 presenciei três contatos com
rádios comunitárias já existentes, junto às quais a direção da escola buscava
subsídios no empreendimento dessa questão.
18
violência, AIDS, raça, sexualidade, identidade e drogas. A partir deste
currículo, a escola tem por objetivos:
a) Assegurar a crianças e adolescentes, socialmente
excluídos,
o
acesso
historicamente
pela
ao
conhecimento
humanidade
elaborado
garantindo
a
distribuição e a reconstrução desse conhecimento;
b) Resgatar a cultura dos alunos, num constante
processo de reflexão e reelaboração dos saberes;
c) Possibilitar a crianças e adolescentes socialmente
excluídos
tornarem-se
contribuindo
na
sujeitos
construção
(FLEISCHMANN, 1999, p. 117).
de
de
sua
projetos
história,
de
vida
Foto: Aline Gonçalves
19
Foto: Vânia Müller
Alunos da EPA em aula de Educação Ambiental, disciplina que
compõe o currículo da escola.
Alunos com uma professora, em aula da disciplina de Argila.
Foto: Aline Gonçalves
20
Aluno da Epa expondo papel ainda úmido, recém
confeccionado na Oficina de Papel Reciclado.
21
1.2.2 "Nosso chão é a fala dos alunos": a rede temática
Como mencionado anteriormente, os professores da EPA
elaboram o currículo da escola a partir da realidade de seus alunos.
A cada ano, realizam uma investigação junto a seus educandos para
verificar suas inquietações e necessidades mais prementes. A partir
das falas dos alunos são categorizadas palavras-chaves em conceitos
que resultarão no tema gerador das atividades curriculares.
É formada, então, uma rede temática que é abordada com os
educandos através das diversas áreas do conhecimento, priorizando
as atividades interdisciplinares, "tentando estabelecer relações com o
contexto sócio-histórico-econômico-cultural no qual a escola está
inserida, com a intenção de que estes possam fazer uma nova, ou
senão mais elaborada leitura da realidade" (MÜLLER, 1999, p.7).
A freqüência dessa investigação para a elaboração de redes
pode ser realizada de acordo com a demanda dos alunos e suas
manifestações. A criação de uma rede temática pode exigir vários
encontros que se constituem em momentos de construção de
conhecimento entre os professores sobre seus alunos.
Participei da construção da última rede temática do ano letivo
de 1999, cujo tema gerador foi "identidade". Esta rede temática
emergiu do chão, no pátio central da EPA, em cima das mesmas lajes
22
onde os alunos sempre dançavam, onde ouviam rádio. As falas
recolhidas entre os alunos escritas em papéis reciclados, quadrados,
distribuídos pelo chão, sobre um papel pardo com aproximadamente
três metros de comprimento, eram conduzidas pelas mãos de seus
educadores sentados ao redor, que tentavam agrupá-las segundo a
coerência e compreensão do mundo "do lado de cá". Empenhavam-se
em traduzir e interpretar as falas de seus educandos, para que os
tempos e espaços partilhados na escola a partir daquele momento
fossem ocupados por um subtexto comum a todos os educadores,
para orientar suas intervenções pedagógicas. Uma intervenção que
viesse ao encontro das expectativas contidas nos anseios das falas de
seus alunos.
O tema gerador "identidade", definido na rede temática,
resultou de discussões a partir das falas dos alunos, que traziam
questões referentes à "sexualidade", "violência sexual" e "poder". Este,
segundo os professores, é claramente exercido pelo líder de cada
grupo principalmente sobre os menores, os quais se submetem a
prostituir-se e roubar a fim de adquirir o dinheiro exigido pelo líder
para terem o direito de pertencer àquele grupo. E as crianças o fazem
como única alternativa para adquirirem uma "certa" segurança. A
questão resultou em observar as implicâncias da
exploração, da
transgressão e da submissão na constituição da identidade das
crianças e adolescentes em situação de rua que freqüentavam a EPA.
23
Como foram necessários vários encontros, a professora Maira
lembrava-os: "Não podemos perder de vista nosso tema gerador.
Nosso chão é a fala dos alunos".
Vale ressaltar a proximidade que era gerada entre alunos e
professores, uma vez que estes estavam atentos às questões com as
quais as crianças e os adolescentes se ocupavam no seu cotidiano,
sendo também explicitamente abordados temas de sua intimidade.
Efetivamente,
acompanhavam
tratamentos
de
soropositivos,
conversavam sobre práticas sexuais ou sobre situações de roubo e de
exploração. Os professores conheciam as relações familiares que
dificultavam o desenvolvimento de determinado aluno, assim como
também as que favoreciam, sabiam quem usava drogas e que tipo de
droga estavam usando, que influência estavam tendo determinadas
amizades, sabiam quem eram os amigos preferidos dos alunos.
As crianças e adolescentes tinham aproximações diferenciadas
com determinados professores. Assim, embora a maioria das
questões causasse constrangimentos, os alunos conversavam a
respeito ou relatavam fatos para o adulto com o qual se sentiam mais
vinculados.
Os professores sabiam quem estava indo em casa, partilhavam
da vida afetiva dos alunos, conversavam sobre a realização e
identificação dos mesmos com determinada área do conhecimento e
sobre seus projetos de vida, a partir de um contato espontâneo que
24
não se limitava à sala de aula. Ou seja, existiam vínculos criados nas
relações pessoais entre as crianças e adolescentes e vários adultos
deste espaço escolar, os quais transcendiam o simples recolher de
falas para a construção da rede temática.
1.3 Princípios ético-políticos da prática pedagógica da EPA
Na relação com o conhecimento, o universo escolar da EPA
abrangia atividades educativas de naturezas distintas que integravam
a vivência dos alunos como um todo. A escola proporcionava a
vivência não-hierarquizada de uma diversidade de saberes, sendo
visível o não-julgamento valorativo dos alunos em relação às suas
preferências pelas diversas áreas do conhecimento e, também, às
formas como os alunos individualmente se relacionavam com elas.
Na relação pessoal com os alunos, um cuidado dos professores
era chamá-los por seus nomes próprios e não por seus apelidos,
sendo que em alguns casos os mesmos tinham uma conotação
pejorativa,
podendo
potencializar
a
discriminação.
Segundo
GRACIANI (1997), todas as crianças e adolescentes em situação de
rua têm um apelido "definido a partir de características físicas
pessoais ou caracteres próprios de identidade que facilitam o
25
processo de interação no grupo e servem de dissimulador em relação
aos grupos de embate, principalmente a polícia" (p. 249-250).
A valorização do indivíduo a partir de suas particularidades
remete a um princípio ético-político de respeito incondicional às
crianças e adolescentes com os quais a escola coloca em prática seu
projeto educativo. Como
exemplo,
cito
a
preocupação
de
uma
professora com a "leitura" que os alunos fariam de uma atividade
envolvendo-os na escola: os professores da EPA e eu estávamos
reunidos para definir a data da apresentação de um conjunto
instrumental de crianças e adolescentes de outra escola,
que se
realizaria
minha
na
EPA,
cuja
organização
estava
sob
responsabilidade. Como haveria uma solenidade de entrega das
pastas de papel reciclado, produzidas por alunos da EPA na Usina do
Papel no Gasômetro8, pensou-se em trazer o conjunto instrumental
como "um presente" para eles, com o que as professoras Dóris, Ana
Amélia, Mila e Maira concordaram. Porém a professora Rejane,
refletindo, argumentou:
R- Eu acho que este dia não é apropriado para a
apresentação de outro grupo aqui. Como vai estar o
prefeito e outras autoridades, acho que a leitura que
farão é a de que o grupo de fora foi trazido por causa das
8 A Oficina de Papel Reciclado da Usina do Gasômetro era freqüentada por
quatro alunos da EPA, no ano de 1999, mediante bolsa-auxílio concedida pela
Secretaria Municipal de Educação.
26
autoridades, e não por causa deles. Acho que eles é que
deveriam se apresentar nesse dia. Talvez devêssemos
trazer o outro grupo em outra ocasião, em que fique claro
que é para eles aproveitarem.
(Caderno de Campo, 24.6.99)
No tempo-espaço cotidiano da EPA, eram essas estruturações e
decisões que aproximavam os alunos dos sentidos que os professores
pretendiam revelar em suas práticas, mesmo que algumas vezes estes
não fossem explicitamente do conhecimento dos alunos. A procura de
um tratamento isonômico e individualizado determinava a confiança
que os alunos depositavam no compromisso ético-político que a
escola firmava com seu desenvolvimento incondicional, uma vez que,
diariamente, seja em que condições o aluno entrasse na escola, ela
dava prosseguimento ao seu projeto.
Isonômico porque estimulava o esforço dos alunos dentro de
seus limites individuais sem privilégios entre eles, pois acreditava que
todos,
a
seu
tempo
e
a
seu
modo,
podiam
desenvolver-se;
individualizado, porque se formavam e estavam inseridos em uma
esfera cultural que CRAIDY (1998) chama de "cultura da rua", onde
ocorre uma despersonalização dos sujeitos.
Em
relação
ao
compromisso
da
escola
no
contato
individualizado com o aluno, o argumento de GIMENO SACRISTÁN
(1999) é que "dentro de cada esfera, seja qual for a sua amplitude,
27
haverá sempre subesferas, até chegar à radical individualidade de
cada sujeito. E é o sujeito o que importa" (p. 181). Nesse contato
estreito com os professores, onde viam o favorecimento de seu
desenvolvimento e valorização individual, ao mesmo tempo os alunos
passavam a conhecê-los através dos limites e dos "combinados" que o
professor trazia para a relação com o aluno. Assim, também, os
atritos ocorriam vez que outra, pois, tanto quanto os limites eram
trazidos pela escola, os alunos podiam discuti-los e refletir com os
professores.
As regras combinadas na EPA davam segurança aos alunos e
levava-os a cobrar dos colegas que as mesmas fossem cumpridas.
Gostavam de organização no ambiente, exigiam que o que foi
combinado fosse realizado, sentiam-se bem com rotinas. Um exemplo
disso ocorreu por ocasião do aniversário da EPA9, no mês de agosto,
quando foram programadas atividades culturais e jogos no lugar das
aulas. A cada dia daquela semana compareciam menos alunos na
escola. O comentário geral entre eles era "a gente não vem porque
não tem aula. Tem que tê aula pra gente vim!".
O exercício da reflexão e do pensamento crítico que marcava a
convivência entre os professores estendia-se também às atividades
educativo-pedagógicas e à relação com os alunos. Dessa forma, as
relações sociais desenvolvidas no espaço socioescolar eram gestadas
28
no princípio ético-político dos professores, que se estendiam na
relação com os alunos para além da sala de aula, na diversidade do
tempo-espaço escolar10.
Por essa razão, alguns professores procuravam envolver-se nos
jogos de futebol, nas rodas de capoeira, nos rachas de rap11,
acompanhando
os
alunos
nas
apresentações
fora
da
escola,
dançando e tocando com eles em diversos momentos na escola,
valorizando os alunos com sua presença.
No esforço de que os alunos se sentissem valorizados, os
professores expunham seus trabalhos feitos em aula, nas festas da
EPA, que muitas vezes eram abertas ao público, inclusive com
autoridades políticas do município, o que os deixava envaidecidos.
Nessas festas, a intenção pedagógica da escola se fazia presente, pois,
algumas vezes, em meio à música, dança e lanches, havia jogos que
envolviam a leitura e a escrita.
A preocupação constante da escola era que as crianças e
adolescentes
em
situação
de
rua
que
freqüentavam
a
EPA
avançassem na sua relação com o conhecimento, ao mesmo tempo
9
Consta no Anexo 2 a programação da semana do 4º aniversário da EPA.
A diversidade de atividades nas quais os professores se envolviam com os
alunos pode ser observada no Anexo 3 "Atividades realizadas na EPA no primeiro
semestre de 1999".
10
11 A professora mais próxima do Sabedoria de Rua, Dóris, e os alunos da
EPA nominavam de "racha de rap" o encontro de mais de um grupo de rap na
mesma roda.
29
que lutava contra o estigma da exclusão. Para tanto, propiciava aos
alunos contatos com pessoas "do lado de cá", na tentativa de que
eles desmistificassem "as significações imaginárias construídas e
legitimadas pela sociedade instituída" (ANTUNES, 1997, p.87).
Presenciei uma ocasião em que a professora Dóris atendeu o
telefone na secretaria, e como Délcio, 20 anos, estava ali no
momento, num ímpeto ela disse:
Tá, então fala com um deles que ele já tá aqui, e vocês
acertam tudo. [Dóris piscou o olho para mim, sem o
garoto ver, sabendo que seria um desafio para Délcio "se
ligar", se comunicar e marcar um compromisso.
(Caderno de Campo, 12.2.99)
Ela alcançou o telefone para o garoto que ficou muito surpreso,
pois não sabia do que se tratava. Mesmo assim, um pouco
constrangido, pegou o telefone e logo foi sorrindo muito, sentindo-se
orgulhoso por estar tratando, em nome também de seus colegas, de
um convite para se apresentarem tocando e dançando no baile de
carnaval, na Febem feminina. Enquanto falava, por duas vezes Délcio
fez menção de passar o telefone para Dóris, sentindo dificuldade de
expressar-se, mas ela insistiu que ele "resolvesse". Quando desligou o
telefone,
a
professora
pediu
que
apresentação que ele havia marcado.
contasse
os
detalhes
da
30
Os princípios ético-políticos que orientam a prática educativopedagógica da EPA parecem ir ao encontro do argumento de
ASSMANN (1998): "(...) o ético-político se enraíza em campos do
sentido, que emergem sob a forma de experiências de aprendizagem,
que por sua vez emergem de processos auto-organizativos da vida
real, onde viver e aprender se identificam num único processo" (p.
108).
As relações sociais que se estabeleceram na EPA,
descritas
neste capítulo, estarão representadas na interpretação dos sentidos
que a música tem para as crianças e adolescentes em situação de rua
que freqüentaram a EPA, e na interpretação das formas como se
relacionavam com ela, como será visto no decorrer do trabalho.
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
E REFERENCIAL TEÓRICO
Neste capítulo descrevo o acesso ao campo salientando
particularidades que daí resultaram, bem como as opções e decisões
metodológicas realizadas na coleta e análise dos dados. Ainda neste
capítulo, exponho as concepções de Christopher Small argumentando
sobre as razões que me levaram a optar por esse autor para a
interpretação do material empírico obtido durante o trabalho de
campo.
2.1 Tocando na superfície: buscando vínculos no campo
O primeiro contato direto com os alunos da EPA que
participaram da pesquisa ocorreu no pátio da escola, onde alguns
garotos tocavam instrumentos de percussão - repenique, surdo, caixa
32
e pandeiro. Quando um pandeiro "sobrou", aproveitei-o para me
integrar ao grupo.
Embora o fato de ser percussionista tenha facilitado o acesso
junto às crianças e adolescentes que freqüentavam aquele espaço
escolar, logo fui constatando que os vínculos teriam que ser
construídos e que avançariam na medida e no tempo determinados
por eles. Durante os ensaios subseqüentes percebia que, embora não
houvesse nenhuma resistência aparente, eles pareciam não ter
ilusão com a minha pessoa e com qualquer expectativa que eu
pudesse criar. Não entendia todas as palavras que usavam para se
comunicarem entre si e não havia um gesto que favorecesse minha
inclusão na roda de percussão. Sentia um limite intrínseco em suas
falas, no corpo e nos olhares: tocar junto era o máximo que eu podia.
Lembrava-me das palavras de GRACIANI (1997):
A criança de e na rua tem como principal agente
socializador e imensamente preponderante a sociedade
como o "outro autoritário", que, com sua discriminação
contra ela e com seus mecanismos pauperizantes, entra
brutalmente em sua psique e dinamiza os impulsos da
criança,
que
vai
construindo,
a
golpes,
o
"outro
generalizado", que dirigirá suas atitudes e condutas
contra as expectativas da mesma sociedade (GRACIANI,
1997, p. 113-114).
Fui sendo incluída no grupo, gradativamente, com a minha
presença sistemática em seus ensaios e apresentações musicais,
33
dentro e fora do espaço escolar. Comentários e brincadeiras que
habitualmente ocorriam entre os alunos, passaram a ser dirigidos
também a mim.
Minha aproximação com as crianças e adolescentes em
situação de rua que freqüentavam a EPA foi se estabelecendo pelo
fato de não só tocar, mas de estar com o grupo. Aos poucos, passei a
ser solicitada pelos garotos para curativos, para ajudar a resolver um
cálculo matemático, jogar bola, dançar, ou, simplesmente sentar ao
seu lado em silêncio, no refeitório, enquanto comiam.
2.1.1 Esperando a música no currículo oficial
Ao longo do primeiro semestre de 1999, sucederam-se algumas
tentativas por parte da direção da EPA de incluir a música no
currículo oficial, porém, sem êxito. As aulas de rap e a oficina de
construção e restauração de instrumentos de percussão que
integravam a grade curricular, e que nas elaborações do projeto
dessa pesquisa justificavam esta escola como cenário de investigação,
não se efetivaram na prática. Inclusive os ensaios do Sabedoria de
Rua, foram cancelados.
O quadro docente da EPA não possuia um educador musical,
ou um profissional que, independente de sua formação, atuasse como
34
professor de música. Essa atividade era anteriormente exercida por
um oficineiro12 da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, cujos
contratos não se renovaram naquele início de ano letivo.
A expectativa de a qualquer momento se concretizar alguma
atividade musical no currículo - e isso dependia de um recurso
humano externo à escola - seguida da respectiva falta de êxito na
efetivação da atividade, foi gerando em mim uma instabilidade
crescente à medida em que o semestre avançava. Já era certo que, no
currículo, não haveria aula de música no ano escolar de 1999 e,
também, que não aconteceriam as oficinas de rap abertas a todos os
alunos. Restava a expectativa de um possível oficineiro que
trabalharia com o Sabedoria de Rua.
Essa expectativa acabou quando, por fim, no mês de junho,
soube através de Dóris, a professora responsável pelas atividades
culturais da escola e também articuladora do Sabedoria de Rua, que
haviam decidido não mais trazer alguém de fora para trabalhar com o
grupo. Isso porque, ao mesmo tempo que havia a dificuldade
financeira na contratação do professor de rap, a
escola
estava
percebendo que os alunos estavam necessitando, antes de tudo, de
agência e auto-organização. Dóris justificou-se: "Eles sabem muito
12 Nominação dada aos agentes dos processos de ensino-aprendizagem de
música em bairros do município de Porto Alegre, promovidos pelo Projeto de
Descentralização da Cultura, articulados pela Secretaria Municipal da Cultura de
Porto Alegre e sua Coordenação de Música (Ver STEIN, 1998).
35
bem fazer isso, são os que mais conhecem rap; precisam é se
organizar".
Para isso, o caminho escolhido pela escola foi colocar música
nos recreios levando o aparelho de rádio para o pátio, com a intenção
de que os alunos utilizassem esse espaço-tempo também para uma
socialização
que
envolvesse
auto-organização,
auto-gerência
e
responsabilidades nas intenções do grupo de rap. Essa atitude
alcançava outro objetivo, não menos importante, segundo Dóris, de
proporcionar "um clima informal" de música para que todos os
alunos se sentissem à vontade para dançar e partilhar aquele
momento da forma que quisessem, independente do Sabedoria de
Rua.
2.1.2 O acesso ao campo
Se o fato de ser percussionista favoreceu meu contato com as
crianças e adolescentes que freqüentavam a EPA, o mesmo não
ocorreu com os professores, embora oficialmente a direção tivesse
aprovado a realização do trabalho de pesquisa na escola. A aprovação
ocorreu após a entrega de cópias e a exposição do projeto de pesquisa
em reunião pedagógica para todo corpo docente no início do ano
letivo.
36
No convívio com a EPA, fui percebendo que o pouco tempo
destinado para a apresentação e discussão do projeto de pesquisa
com os professores era escasso também para seus próprios assuntos,
devido à demanda de particularidades das crianças e adolescentes
em situação de rua, como descrito no capítulo 1.
Nos primeiros contatos com os professores houve comentários
de
que
alguns
pesquisadores
utilizaram
o
espaço
para
o
desenvolvimento de suas pesquisas e não retornaram os resultados
de seus trabalhos para a escola. Era visível uma certa indignação dos
professores pelo fato de o objeto de pesquisa tratar-se de seus alunos
que, carentes, contribuíam em investigações sem algum retorno para
a EPA.
Passou a haver receptividade por parte da escola, quando levei
alguns diários de campo para a professora Maira, designada para
tratar das questões relativas a esta investigação, e também, quando
propus uma apresentação de um conjunto instrumental de crianças e
adolescentes na EPA, com o qual eu já havia trabalhado.
Embora
o
acesso
às
diversas
informações
de
que
eu
necessitava para desenvolver o trabalho fosse dificultado pela pouca
disponibilidade de tempo de Maira por seu grande envolvimento com
a escola e os alunos, ela foi a pessoa com quem aprendi a conviver
com a dinâmica da rua. Maira era a professora ligada aos alunos
mais diretamente, inclusive mantendo contato com os mesmos em
37
abordagens na rua e em seus mocós. Nossa proximidade, tanto na
escola como nas abordagens de rua, foi ampliando minha percepção
das diversas nuances da complexidade do fenômeno "situação de
rua".
Apesar
dos
vínculos
com
os
garotos
se
estabelecerem
lentamente pela sua infreqüência e suas particularidades, sentia forte
atração por aquele ambiente. Justamente porque, enquanto estive ali
por aproximadamente quatro meses sem "fazer nada", buscando
vínculos e uma questão de pesquisa num contexto socioescolar que
parecia não se acomodar nunca aos meus olhos, presenciei na
prática cotidiana da EPA dois aspectos que vieram a configurar-se
como as razões para que eu decidisse tomá-la como o cenário deste
trabalho de pesquisa.
Um dos aspectos foi a constatação de que as atividades
musicais dos alunos independiam do currículo oficial da escola, ou
de professor, e eram quase que diárias; o outro, a concepção políticopedagógica da EPA, explicitada no capítulo 1. Essa concepção gestava
relações sociais no cenário de uma qualidade "estranha" para mim,
pois que, no desejo de nelas me inserir, vi também revelada minha
formalidade e rigidez, portanto, a parte que me tocava nos
constrangimentos e entraves no desenvolvimento do trabalho.
38
2.1.3 Uma escola (muito) aberta: meu estranhamento
O estranhamento entre observador e observado pelo confronto
das respectivas culturas (ARROYO, 1999; ZALUAR, 1995) ocorreu de
uma forma intensa e desestabilizadora, justamente pela flexibilidade
e naturalidade da EPA na sua relação com o conhecimento e da
qualidade das relações sociais desenvolvidas no tempo-espaço
daquela escola.
Após a escola ter decidido não mais trazer um professor de rap
para a escola e sim, colocar música nos recreios como mencionado
anteriormente, passei a ter uma compreensão mais apurada do que
é a prática educativo-pedagógica da EPA e, principalmente, a
dimensão da flexibilidade ali presente. Simultaneamente ao meu
estranhamento de sua atitude de "privar" os alunos de aulas de rap,
dimensionei esse gesto na direção de seu objetivo maior: a agência
dos alunos.
Entendi que se a direção acreditava que os alunos se
mobilizariam e, sozinhos, fariam o Sabedoria de Rua continuar ativo,
é porque estava ciente do que representa a música para as crianças e
adolescentes que freqüentavam a escola. Essa constatação levou-me
a focalizar mais pontualmente as relações que se estabeleciam a
partir da valorização da escola pelas atividades musicais de seus
alunos, e também, as relações sociais no âmbito geral do cenário.
39
A imersão no convívio com o mundo da exclusão e com a forma
como a EPA concebe e atua com essa questão trouxe também um
estranhamento no processo desse trabalho, a partir da constatação
de que "a dialética 'inclusão/exclusão' [que] gesta subjetividades
específicas que vão desde o sentir-se incluído até o sentir-se
discriminado" (SAWAIA, 1999, p. 8-9), estão em todas as esferas da
sociedade.
SAWAIA (1999, p. 9) argumenta que "essas subjetividades não
podem ser explicadas unicamente pela determinação econômica, elas
determinam e são determinadas por formas diferenciadas de
legitimação social e individual, e manifestam-se no cotidiano como
identidade, sociabilidade, afetividade, consciência e inconsciência".
Dessa forma, vi que não é assim tão incomum, encontrar em nossa
sociedade de padrões e hierarquias fortemente estabelecidos, em
quem "não consegue" cumprir com a ordem social, aquilo que
Paugam, sociólogo francês, citado por SAWAIA (1999, p. 9) conceitua
como "desqualificação social" e "identidade negativa" gerando a
"culpabilização individual".
Observar
e
viver
as
relações
sociais
deste
cenário
era
confrontar a flexibilidade, o direito à diversidade, o senso de
coletividade, o desejo de autonomia e agência do ser humano, com o
reverso desses conceitos que carregava comigo para o meio: a rigidez,
o
acato
à
homogeneidade,
o
individualismo
isolacionista,
a
40
formalidade imposta pela radicalização cartesiana e pelo paradigma
moderno de Educação (GIMENO SACRISTÁN, 1999; MCLAREN,
1999).
A partir de então, vi que o trabalho teria estímulo, também,
naquilo que estranhava no cenário, pois me remetia ao encontro com
minha
biografia. Nas palavras de OLIVEIRA (1998, p. 19),
"a
consonância entre pesquisa e biografia [do pesquisador] é altamente
estimulante, pois atribui vida ao estudo"). Simultaneamente à
valorização da experiência vivida, esforcei-me para que ela não
justificasse verdades cristalizadas, fórmulas vulgares e esquemas
reducionistas, "pois tudo isso pode trazer o resultado inverso, o da
mortificação" (ibid.).
Uma das exigências do trabalho de campo mais difíceis de
cumprir foi permanecer nele sem perder de vista a questão central da
investigação. Estava consciente do quanto aprendia com o contexto
pedagógico-cultural daquele cenário e, portanto, o quanto isso me
ocupava. Muito esforço foi feito no sentido de "minimizar os efeitos do
campo sobre o investigador, [e] conservar a sua problemática em
mente para evitar ser arrastado por acontecimentos espectaculares",
como salienta MAROY (1997, p. 150-151).
41
2.2 Compondo um método
As especificidades deste cenário levaram-me a optar pelo
Estudo de Caso, segundo TRIVIÑOS (1994, P. 133), "uma categoria de
pesquisa
cujo
objeto
é
uma
unidade
que
se
analisa
aprofundadamente". As particularidades da EPA como instituição
escolar, como descrito anteriormente, somadas ao fato de que os
alunos que observava se constituíam em um grupo distinto e não
generalizável de crianças e adolescentes em situação de rua, pelo
próprio
contato
com
esta
escola
e
as
relações
sociais
dele
decorrentes, levaram-me a considerar este cenário como uma
unidade a ser analisada e interpretada.
Na busca dos sentidos que a música tinha para as crianças e
adolescentes em situação de rua que freqüentavam a EPA, e de
revelar as maneiras como estes se relacionavam com a música, optei
por realizar um estudo particularizado, tentando valorizar a natureza
e a abrangência do objeto desta investigação.
Busquei uma vivência atenta às relações humanas do grupo
estudado, tentando captar suas sutilezas e verificar a existência de
uma possível relação entre os sentidos que movem as relações sociais
cotidianas
do
grupo
e
suas
atividades
musicais,
procurando
42
revelações que dizem respeito aos sentidos atribuídos à música pelos
próprios sujeitos e da compreensão de sua relação com ela.
A importância de uma compreensão histórica dos sujeitos no
contexto da realidade atual, na qual estão inseridos, não deve
desprezar
sua
trajetória
individual.
Embora
as
crianças
e
adolescentes em situação de rua, no momento da investigação, se
encontrassem nas mesmas condições de vida e, por isso, pudessem
ser identificados como classe, a história individual de cada um
qualificava as informações que forneciam, assim como levar a
possíveis questionamentos de conceitos generalizantes na literatura,
quando se trata da questão da diversidade dentro de um grupo que
se nos apresenta homogêneo.
Na opinião de BOURDIEU (1997), para conhecer o sujeito que é
nosso objeto de estudo, é necessário
dar-se uma compreensão genérica e genética do que ele é,
fundada no domínio (teórico ou prático) das condições
sociais das quais ele é o produto: domínio das condições
de existência e dos mecanismos sociais cujos efeitos são
exercidos sobre o conjunto da categoria da qual eles
fazem
parte
[...]
e
domínio
dos
condicionamentos
inseparavelmente psíquicos e sociais associados à sua
trajetória particular no espaço social (BOURDIEU, 1997,
p. 699-700).
Somente depois de um período de convivência, quase ao final
do trabalho de campo, é que foi posssível obter algumas informações
43
sobre seus passados, através de depoimentos colhidos diretamente
da fala dos alunos, quando se estabeleceram alguns vínculos de
afetividade e confiança. Em sete meses de convívio, era possível
prever os assuntos que seriam incômodos e outros nos quais,
comumente, não se falava, decorrentes dos traumatismos que
compunham suas histórias de vida. À medida que se configurava o
grupo de alunos que participaria mais diretamente neste trabalho, ia
buscando nos registros escritos e na ficha de matrícula dos mesmos
informações mais detalhadas sobre sua trajetória de vida.
Outras informações vieram dos professores, com quem os
alunos se relacionavam mais individualmente, nas salas de aula.
Porém, a contribuição da professora Maira se destaca por seus
depoimentos traduzirem a palavra do grupo investigado. Sua
proximidade com as crianças e adolescentes que freqüentavam a EPA
se estabelecia desde quando os contactava ainda na rua13. Os
vínculos que se aprofundaram em quatro anos de escola entre ela e
esse grupo de crianças e adolescentes legitima seus relatos, pois atua
na realidade cotidiana desse grupo com um respeito surpreendente
pelas relações que estabelece individualmente com cada um.
13 As abordagens de rua ocorriam de uma a duas vezes por semana, com o
objetivo de trazer para a EPA as crianças e adolescentes que lá encontrasse. As
abordagens procuravam seguir o projeto da Educação Social de Rua - ESR -, órgão
pertencente à Fundação de Educacão Social e Comunitária - FESC. Esta fundação
é vinculada às secretarias municipais da Saúde, Educação, Esporte e Assistência
Social, cujos especialistas nas respectivas áreas integravam a ESR.
44
Nesse sentido, os relatos de Maira cumpriram o papel daquilo
que a História Oral julga essencial no processo de aquisição de
dados, qual seja, "a interação entre o pesquisador e seu objeto de
estudo, que se cria a partir dos depoimentos" (PESSANHA, 1996,
p.75). Os depoimentos vieram colaborar nos perfis que construía dos
alunos e, principalmente, dimensionar mais realisticamente as
relações sociais daquele cenário. Através de alguns de seus relatos,
tanto os que se referiam ao passado dos alunos como ao que ocorria
durante o trabalho de campo, podia dimensionar, também, a
confiança que as crianças e adolescentes em situação de rua que
freqüentavam a EPA depositavam em Maira, e a intimidade existente
entre eles.
Nos primeiros depoimentos, percebia que Maira procurava
preservar a intimidade dos alunos, quando me revelava informações
pessoais de alguma criança ou adolescente. Muitas vezes, sua
emoção
no
depoimento
mostrou-me
por
que
um
aluno
não
comentava a respeito de determinado assunto. Ela me revelava o que,
em muitos casos, eles se poupavam de lembrar. Em momentos
alternados, sua indignação, tristeza, vibração e esperança é que me
revelaram o sentido de algumas passagens da história de vida de
alguns alunos e de suas vivências cotidianas durante o trabalho de
campo.
45
Os depoimentos de Maira não só contextualizavam social e
historicamente as crianças e adolescentes que observava, pelo que
prima a pesquisa qualitativa, mas também, me ajudava a colocar
"ênfase na idéia dos significados latentes" de seu comportamento
(TRIVIÑOS, 1994, p. 122). O exercício de chegar no que estava latente
no cotidiano das crianças e adolescentes em situação de rua
direcionou-me aos sentidos que a música tinha para eles e às formas
como se relacionavam com ela.
2.2.1 A coleta de dados
As técnicas utilizadas para a coleta de dados foram: a
observação participante; a observação livre; o registro de caderno de
campo;
entrevistas
individuais,
semi-estruturadas;
análise
de
documentos; fotografias e gravações de áudio e vídeo.
Todo processo metodológico da pesquisa foi sendo construído
ao longo de um convívio partilhado com as crianças e adolescentes
em situação de rua que freqüentavam a EPA, determinado pela
demanda da dinâmica do contexto socioescolar. Ao longo do trabalho
de campo fui aprendendo a me colocar em contato com o cenário a
partir de sua dinâmica da rua. As decisões quase que diárias de como
atuar em determinada situação ou atividade, desenvolveu em mim
46
uma postura de abertura incondicional a aceitar o surgimento de
oportunidades imprevistas e diversificadas que poderiam trazer
informações para o trabalho.
Por
exemplo,
participei
de
algumas
atividades
de
cuja
realização fui saber no próprio momento em que deveriam ocorrer.
Assim aconteceu quando uma professora telefonou avisando do
ensaio para um vídeo que estavam produzindo com os alunos e para
o qual havia sido convidada a participar. Em cinco minutos recolhi o
material de registro e me pus a caminho da EPA.
Esse mesmo exemplo serve para mostrar a diversidade da
natureza das atividades nas quais me engajei, na busca contínua
para aprofundar os vínculos com os sujeitos no intuito de chegar aos
sentidos que os moviam àquilo que se propunham empreender. Para
tanto, foi necessário um certo despojamento. Nessa oportunidade,
dispus-me a interpretar cenicamente um personagem do enredo do
vídeo, para aproveitar mais uma oportunidade de conviver com os
alunos da EPA, devido aos períodos de infreqüência dos mesmos e da
imprevisibilidade de atividades que incluíssem a música, como era o
caso dessa.
Os vínculos neste espaço socioescolar se estabeleceram,
também, à medida que, relativa e aleatoriamente, os alunos
compareciam à escola. A qualquer momento um aluno novo poderia
estar chegando, o que poderia significar mais uma contribuição para
47
este trabalho. A questão da infreqüência dos alunos na EPA fez com
que durante todo o período de trabalho de campo, o ano letivo de
1999,
houvesse
necessidade de uma atenção permanente às
oportunidades de acesso que poderiam surgir, tanto a alguma
atividade, a algum aluno, como para conseguir marcar uma
entrevista, para depois, efetivamente, realizá-la.
O convívio com os alunos da EPA pode-se dividir em dois
espaços principais: dentro e fora da escola. Dentro do espaço escolar
as observações se realizaram através do convívio "informal", no
sentido de que era mais uma professora da escola, assim chamada
por eles. Ali, observei muitos recreios com música, no pátio da escola,
quando utilizavam o rádio ou tocavam instrumentos de percussão.
Esses momentos com música ocorreram também no refeitório, em
horários
de
refeições,
em
apresentações
dos
alunos
tocando
instrumentos de percussão e do grupo de rap Sabedoria de Rua, em
datas comemorativas e em rachas de rap. Também os observei
envolvidos com música nos corredores da escola e na calçada, em
frente à escola. Participei ainda de rodas de capoeira.
Fora do espaço escolar, houve encontros com as crianças e
adolescentes que freqüentavam essa escola em seus mocós e em três
praças da cidade onde alguns deles viviam a maior parte de seu
tempo. Também estive com os alunos em várias apresentações em
outras instituições, tanto do Sabedoria de Rua, como de um grupo de
48
alunos que às vezes o acompanhava, tocando os instrumentos de
percussão.
Procurei presenciar situações individuais e coletivas tentando
elucidar o que pertencia a um modo típico de ação desse grupo
social, estando atenta às singularidades, como sugere PAIS (1994),
uma vez que já me chamavam atenção os aspectos referentes à
identidade individual e coletiva das crianças e adolescentes em
situação de rua (CRAIDY, 1998; GRACIANI, 1997).
Nessa direção, houve um espaço de convívio importante, que
foram
seis
meses
de
participação
nas
reuniões
pedagógicas,
realizadas semanalmente na EPA. A intenção era conhecer um pouco
mais sobre os alunos através de seus educadores, tentando
ultrapassar a realidade visível da identidade de grupo que os
homogeneíza
na
aparência
física,
no
comportamento,
na
comunicação verbal e não-verbal, muitas vezes incorporados e
assimilados inconscientemente pela necessidade de pertencimento ao
grupo (GRACIANI, 1997).
Participar semanalmente das reuniões pedagógicas e conviver
com
os
professores
possibilitou-me
conhecer
o
tratamento
dispensado aos alunos sob a perspectiva de sua condição e contexto
social. Observando como educandos e educadores se percebiam
mutuamente, fui me inserindo, enquanto aprendia, no padrão de
comunicação daquele meio socioescolar: da corporeidade, da fala, dos
49
códigos, da veemência da simples presença. Alguns meses foram
necessários para compreender, por exemplo, quando um empurrão,
aparentemente violento, era simplesmente uma forma de tocar o
outro, e quando não o era.
2.2.1.1 Registrar ou viver?
A observação participante na busca dos sentidos do mundo
estudado levou-me algumas vezes a tentar ver a atividade observada
na perspectiva daqueles que estavam sendo observados. Como
registrou DENZIN (1989), em sua experiência com a observação
participante: "Os objetivos do observador participante giram em torno
da tentativa de tornarem significativo o mundo que estão a estudar
na perspectiva dos que estão a ser estudados" (DENZIN apud
VASCONCELOS, 1997, p.52).
Vivenciei algumas situações bem significativas, como por
exemplo, quando observava e filmava um ensaio de percussão com
aproximadamente vinte alunos, e Lucas, 15 anos, tocava surdo pela
primeira vez. Esse momento foi assim registrado no caderno de
campo:
O som grave e solene daquele surdo preenchia todo o
ambiente e soava muito dentro do galpão, sozinho,
provocando um silêncio geral nos que estavam presentes.
Todos estavam atentos ao que ele tocava, pois teriam que
entrar tocando seus instrumentos ao sinal do "regente".
50
Vi que Lucas vibrava muito, sorrindo contidamente,
olhando para o surdo e ouvindo o som, sentindo-se
orgulhoso da responsabilidade que estava tendo no grupo
ao fazer uma coisa que aprendera naquele dia mesmo.
Assim que os outros instrumentos entraram, significando
que o solo tinha sido um sucesso, aliviado ele fez menção
de olhar-me, parecendo querer evitar, mas não resistiu.
Deu uma espiada rápida para ver se eu testemunhava
seu êxito. Quando encontrou-me na outra extremidade
do grupo e viu que eu estava ali com ele, na torcida,
voltou o olhar em minha direção. Furtivamente, deu um
sorriso pleno e permitiu, ou melhor, não resistiu, que
nossos olhares se encontrassem por entre todos que
tocavam
animadamente.
Ele
baixou
os
olhos
no
instrumento e impregnou mais energia no braço que
segurava a baqueta. As lágrimas vieram-me aos olhos e
fiquei paralisada por um momento, sem conseguir filmar.
(Caderno de Campo, 19.11.99)
Esse foi um dia em que tive que me dividir em integrante de um
grupo, pois que já me consideravam como tal, e pesquisadora.
Larguei a câmera e resolvi dançar com duas professoras e três alunos
que o faziam animadamente, o que ajudou a me recompor e voltar à
função de pesquisadora.
Talvez essa vivência tenha sido bem significativa, porque Lucas
sempre estabeleceu um limite para nossa aproximação. Embora nos
víssemos freqüentemente, pois ele é bem assíduo à escola, mantevese a distância por oito meses, quando, em setembro, a entrevista
parece ter provocado uma certa abertura. Isso ocorreu quando, em
51
visita ao seu mocó, três dias antes, Lucas demonstrava bastante
satisfação em estar comigo e chegou a pedir à professora que me
acompanhava para tirar uma fotografia de nós dois, juntos.
2.2.1.2 As entrevistas
Foram entrevistados, individualmente, onze alunos, escolhidos
para tal porque mostravam ter maior contato com a música dentro do
espaço escolar. Como será detalhado no capítulo 3, eram os
adolescentes que quase diariamente tocavam, dançavam ou ouviam
rádio no pátio da EPA, ou ainda atuavam no Sabedoria de Rua.
No total, foram realizadas doze entrevistas, sendo que três em
bares centrais da cidade, gravadas em áudio, e as outras ocorreram
em salas de aula e na biblioteca da EPA, sendo gravadas em áudio e
vídeo. Ocorreram eventuais participações de amigos que entravam na
sala onde realizávamos a entrevista, pois estavam habituados a
entrar nas salas e sair delas quando lhes aprouvesse.
Algumas questões estruturadas a partir de uma investigação de
CAMPBELL (1998) serviram de roteiro para a entrevista semiestruturada (Anexo 4), que abordava os seguintes eixos temáticos: as
formas de participação da música no cotidiano da família, na
infância, e atualmente para o caso das crianças e adolescentes em
situação de rua que mantêm algum contato com a família; as
atividades musicais nos mocós, na rua (no "trabalho") e na EPA; as
52
razões que os levavam a dançar e a tocar; a música vivida
individualmente e em grupo, as apresentações e o pensar sobre
música.
Embora tenha tomado cuidado quando me referia ao passado
dos entrevistados, informando-me antecipadamente sobre a vida dos
alunos, esse assunto criou desconforto quase que na totalidade das
entrevistas. Por exemplo, as questões: "Que lembranças tu tens de
momentos com música quando eras pequeno?" e "Tu lembras de
alguma música da tua infância?" Apesar de estarmos convivendo há
oito meses, ainda não havíamos estabelecido laços suficientemente
confiáveis para essas crianças e adolescentes que, visivelmente, estão
a proteger-se permanentemente.
As entrevistas com as crianças e adolescentes selecionados,
não corresponderam totalmente ao que VASCONCELOS (1997)
sugere para uma boa entrevista etnográfica: "uma partilha, [...] uma
interacção, [...] uma conversa amigável" (p. 56). O ato da entrevista,
em si, simbolicamente os remetia à idéia de inquirição e de
julgamento, como também me confirmou Maira. Uma adolescente,
por exemplo, concordou em marcar a entrevista comigo somente
depois que conversou com dois colegas que a haviam realizado e,
mesmo assim, veio temerosa no momento de efetuá-la.
53
2.2.2 Analisando e interpretando os dados
2.2.2.1 As transcrições
A transcrição de determinadas entrevistas foram trabalhosas
em razão da fala caracteristicamente veloz e atropelada de alguns
alunos, que assim se acentuava quando a questão abordada era do
seu
interesse.
A
dificuldade
se
potencializou
pela
opção
de
transcrever a fala literalmente, opção que fiz utilizando-me do critério
da fidelidade à natureza do tema estudado, uma vez que se tratavam
de pessoas cuja língua funciona nas relações sociais observadas e
que sustentam este estudo (ver BOURDIEU, 1996, p. 24).
Como prevê o Estudo de Caso e as investigações qualitativas
em geral, a transcrição literal das falas das crianças e adolescentes
em situação de rua neste estudo pretende oferecer ao leitor mais um
elemento identitário do cenário investigado, para que componha sua
leitura e, eventualmente, outras possibilidades de interpretação.
RABITTI (1999) salienta a possibilidade de os leitores formarem
pontos de vista diferentes do pesquisador, assim como encontrar
questões que foram subestimadas e mereçam aprofundamento, já
que o Estudo de Caso não objetiva a "pesquisa de causalidade, mas a
compreensão do sistema investigado" (p. 34).
54
Se a estranheza da linguagem de um grupo social nos afasta
culturalmente, por outro lado pode nos aproximar dos sentidos que,
na minha opinião, temos o compromisso de tentar compreender.
Segundo PAIS (1994),
O dizer manifesta-se e apóia-se em inumeráveis coisas
que
se
silenciam.
A
linguagem
existe
graças
à
possibilidade da reticência, do subentendido (o que não
se entende bem). O subentendido, o deficientemente
entendido, é o que sociologicamente se torna necessário
entender (PAIS, 1994, p. 76).
2.2.2.2 Categorização e análise
Como menciona VASCONCELOS (1997), a análise dos dados, à
medida que vão surgindo, trazem novos temas e direcionam a
investigação. A análise durante o trabalho de campo deste Estudo de
Caso
era
praticamente
diária,
pela
necessidade
de
reavaliar
permanentemente o direcionamento das inserções neste cenário que
tem a imprevisibilidade e a dinâmica da rua, ao que me referi
anteriormente, principalmente em função da dificuldade de manter
um contato mais estreito com os alunos em suas atividades musicais.
Um redimensionamento importante ocorreu durante o trabalho
de campo quando, após a análise de dez entrevistas, acreditei na
obtenção de dados mais substanciais através de observações livres e
o adensamento na minha relação
com as crianças e adolescentes
55
que freqüentavam a EPA. Embora o redirecionamento tomado a partir
da primeira análise das entrevistas tenha sido pertinente ao
desenvolvimento do trabalho, a questão surgida na análise das
entrevistas - a aparente dificuldade dos alunos de falar e pensar
sobre música - revelou, posteriormente, dados substanciais para a
interpretação dos sentidos que a música têm para esses alunos, e as
formas como se relacionam com ela, como será discutido no capítulo
3 e 4.
A observação participante após o período de entrevista me
trouxe subsídios para interpretá-las sob um enfoque mais próximo
dos sentidos que
buscava encontrar nas vivências musicais dos
alunos da EPA. Nas palavras de PAIS (1994),
Interpretar é algo mais que reconhecer o significado das
falas.
O
significado
é
apenas
a
contrapartida
do
significante. O significado é de ordem semiótica (signo); o
significante, de ordem semântica. Interpretar requer,
primeiramente, captar não só o sentido semântico
percebido mas também a sua intencionalidade latente.
De facto, as falas frutificam para além dos seus
significados. Frente aos cadáveres das palavras escritas é
possível descobrir, nomeadamente através da observação
participante, a riqueza inesgotável da palavra sonora, o
seu uso conflitivo em contextos situacionais e referenciais
próprios (PAIS, 1994, p. 86).
Para haver um adensamento na relação com os alunos,
proporcionei o retorno imediato para eles do trabalho construído até
56
aquele momento, como a projeção de imagens deles gravadas em
vídeo em situações diversas; uma atividade pedagógica de música
envolvendo três encontros; e minha participação, juntamente com os
alunos, no vídeo que estava sendo elaborado pela escola, que
abordava a questão "etnia", como já mencionado.
Entendendo por "categoria" um "conceito que permite nomear
uma realidade presente no material recolhido" (MAROY, 1997, p.
131), categorizei o material empírico obtido. Inicialmente foi feita
distinção entre dados substantivos, metodológicos e analíticos
(BURGESS, 1997), uma vez que os registros continham reflexões
metodológicas
e
analíticas,
acompanhando
dados
substanciais
relacionados às atividades musicais dos alunos da EPA e às formas
como se relacionam com a música.
Como salienta BURGESS (1997), as anotações analíticas no
caderno de campo indicam "aspectos emergentes e conceitos que
podem ser desenvolvidos juntamente com reflexões preliminares
acerca do enquadramento analítico" (p. 190), significando que o
investigador terá temas estabelecidos antes de se completar a coleta
de dados. Durante a categorização propriamente, confirmaram-se
temas surgidos previamente e emergiram novos temas, aos quais
foram atribuídos números de código associando-os aos tópicos mais
importantes, como sugere BURGESS (1997), "de modo a que todo
57
material de um tópico particular esteja disponível num só lugar" (p.
190).
As
entrevistas
foram
categorizadas
através
de
temas
emergentes listados em ordem alfabética, como também sugere
BURGESS (1997). Primeiramente foram analisadas entre si, e
posteriormente, os trechos selecionados, adicionados aos respectivos
tópicos que delineavam os eixos temáticos que estruturariam o
trabalho escrito deste Estudo de Caso. Esse processo de seleção,
abstração e transformação do material empírico recolhido, ou, a
"redução dos dados" (MAROY, 1997, p. 123), resultou em uma grade
que inicialmente continha todo o conteúdo da pesquisa de forma
codificada.
A partir de várias releituras da grade com os conteúdos
codificados e sua confrontação com o material empírico registrado,
busquei validar as hipóteses e interpretações emergentes da análise,
o que MAROY (1997) sugere como "particularmente pertinente
quando a finalidade principal da análise qualitativa é fazer surgir
teorias locais [e] produzir um esquema de inteligibilidade [...]" (p.
125).
Em busca da "teoria local" MAROY (1997), argumento no ítem a
seguir
sobre
interpretar
a
os
escolha
do
dados
obtidos
metodológicos aqui expostos.
referencial
teórico
através
dos
escolhido
para
procedimentos
58
2.3 Referencial teórico: a concepção de Christopher Small
A busca de aproximação com a área da Educação, como
colocado anteriormente, levava-me a reflexionar a prática políticopedagógica do cenário que observava, à luz de autores que discutem
os preceitos daquela área e o papel da escola na reprodução dos
saberes e dos valores que estruturam a atual sociedade. Os aportes
teóricos de GIMENO SACRISTÁN (1999), SILVA (1998, 1996)
McLAREN
(1999),
SANTOMÉ
(1995,
1997),
ASSMANN
(1999),
KINCHELOE (1998) faziam-me avançar na compreensão dos sentidos
da práxis do cenário no qual estava inserida.
Na área de Educação Musical a concepção de SMALL (1989)
mostrava similaridades com os paradigmas sociais da Educação.
SMALL (1989) argumenta que "a sociedade, a cultura musical e a
educação se acham em uma situação indissociável de dependência
recíproca, e que toda mudança em uma delas se reflete e volta a se
refletir nas outras" (p. 206).
SMALL (1989) propõe para a Educação Musical uma reflexão a
partir das formas como a música se insere na vida da sociedade
ocidental, relacionando-as à visão científica do mundo instaurada
desde o Renascimento no Ocidente. Seu argumento de que a
sociedade,
a
música
e
a
educação
estão
intrinsecamente
59
relacionadas, sugere que a música, desde então, foi vista como mais
um objeto do conhecimento a ser dominado pelo homem, afastandose de sua natureza "vivencial" e perdendo seu "caráter comunitário"
(SMALL, 1989). A aproximação das áreas Música e Educação
proposta por SMALL, justificou, assim, a sua escolha como
referencial teórico para esse trabalho.
SMALL (1989) reflete sobre a necessidade dos educadores
musicais reconhecerem as origens das práticas e concepções que
temos hoje sobre música, sobre Educação Musical e sobre como nos
relacionamos
com
música.
Segundo
o
autor,
houve
um
desvirtuamento da relação do homem com a música e da função da
música na sociedade, desde a instauração da visão científica do
mundo no Ocidente, a partir do século XV. Na sua opinião, é
necessário
ver nossa própria música ocidental no marco da
sociedade e das atitudes sociais do Ocidente. [...]
Poderemos assim destacar nossa investigação da música
ocidental em seu marco social contra um telão de fundo
mais nítido, e chegar a ser conscientes de nossa própria
tradição enquanto meio que nos rodeia, nos sustenta, e
penetra todas nossas atitudes e percepções. Ao tomar
consciência da natureza de nossa tradição, podemos
tomá-la também da natureza e a medida das mudanças
que nela se tem produzido nos últimos setenta anos,
aproximadamente (SMALL, 1989, p. 44).
60
Das categorias e análises preliminares do material empírico,
ainda
no
trabalho
de
campo,
emergiam
conceitualizações
reflexionadas a partir das concepções de SMALL (1989). Como PAIS
(1994,
p.
52)
lembra:
"análise
e
teorização
são
sinônimos,
fundamentando-se num vaivém dialéctico entre observações e
conceptualizações".
O
cenário
de
pesquisa
observado
parecia
encontrar respaldo na crítica que SMALL (1989) faz à visão científica
do mundo ocidental, como determinante da forma como o homem se
relaciona com a música em nossa sociedade.
Para o autor, a concepção da música no Ocidente está
intrinsecamente ligada à visão científica do mundo, no sentido de que
a produção de conhecimento no mundo ocidental se dá por meio do
domínio do objeto estudado, "divorciado tão completamente quanto
seja possível da experiência; um corpo de fatos e conceitos que
existem fora do sujeito que conhece e independente dele" (SMALL, p.
14-15).
Essa concepção valoriza a qualidade do produto em si,
independente da experiência vivida na sua produção, o que acarreta
a "natural" necessidade de consumidores para esse produto. Essa
idéia, segundo SMALL (1989), é predominante até nossos dias, tendo
a escola como reprodutora potencial do conhecimento objetificado
onde "a única lição que, de fato, todos aprendem, é que podem ser
consumidores - não produtores - de conhecimento, e que o único
61
conhecimento que tem validade é o que lhes chega por meio do
sistema escolar" (SMALL, 1989, p. 15).
Ao contrário dessa visão, o projeto pedagógico da EPA apontava
para uma relação de seus alunos com o conhecimento que
privilegiava a sua construção com e a partir dos saberes do aluno,
dando ênfase, portanto, à sua experiência vivencial, ao mesmo tempo
em que as fronteiras entre as áreas do conhecimento não restringiam
a mobilidade dos alunos. A música era mais um dos saberes por onde
transitavam, de maneira não hierárquica.
2.3.1 Musicking
Na atividade musical, especificamente, SMALL (1989) coloca
que independente do espaço físico onde ocorra, do gênero de música,
ou, da época, pode-se pensar o significado da música e sua função na
vida humana a partir da performance. Não aquela performance
caracterizada pela perfeição de técnica e habilidade físico-motora,
mas o evento em si, o momento em que uns tocam e outros ouvem.
Segundo o autor, este momento pode ser comparado a um ritual, no
sentido de que as pessoas que participam do evento estão vitalmente
explorando, afirmando e celebrando algo que não pode ser feito
através de outra linguagem (SMALL, 1998).
62
A relevância da performance instigou SMALL a buscar um
nome para o momento em que as pessoas estão fazendo algo que só
ocorre com música e, por causa da música, e o denominou:
musicking. SMALL (1995), argumenta que a qualidade do musicking
terá a qualidade das relações que se estabelecerem entre as pessoas
no momento da performance. SMALL (1998) considera a performance
"uma atividade em que os humanos tomam parte de tal forma, que
eles podem
entender suas relações - com os outros e com uma
conexão de elevado padrão” (p. 140).
SMALL (1998) sugere que estando em contato com este
“elevado padrão” de conectividade com as pessoas e o mundo no
momento da performance, o musicking, portanto, "não é somente
uma razão de divertimento, mas
ensina-nos a configurar esse
padrão" (p. 140). Ensina-nos sobre nossa cultura, sobre nosso lugar
dentro dela e nosso lugar dentro da natureza (SMALL, 1998).
Simultaneamente ao aspecto "vivencial" da música que designa
ao
Musicking,
SMALL
(1998)
traz
também
para
esse
termo,
explicitamente, sua concepção do aspecto "comunitário" da música
abordado acima, pois defende que "toda atividade que chamamos
arte, não somente musicking, refere-se basicamente às relações
humanas. Nós as entenderemos melhor se mantivermos na mente
que elas todas operam dentro de uma linguagem que dá poderes aos
63
seres humanos, [...] de articular essas relações" (SMALL,
1998, p.
140).
Assim, musicking diz respeito ao aspecto "comunitário" da
música
uma
vez
que
se
refere
às
relações
humanas.
Concomitantemente, musicking diz respeito ao aspecto "vivencial" da
música pois que vivemos algo estando em contato com ela, e não
somente observamos. Nas palavras de SMALL (1998) "Em todas as
atividades que chamamos arte, nós pensamos com nossos corpos.
Eles negam com todos os gestos a sectarização Cartesiana entre
corpo e mente" (p. 140).
2.3.2 O aspecto "comunitário" da música
O aspecto "comunitário" da música a que se refere SMALL
(1989) "communality to music", e ao que refiro-me neste trabalho, diz
respeito à música feita em conjunto, a música partilhada por duas
ou mais pessoas na mesma ocasião.
Analisando a posição que a música ocupa na vida social de
Bali, SMALL (1989) salienta o aspecto comunitário da música
naquela sociedade. Na análise de SMALL (1989), o ato musical se
estabelece, também, como um reflexo das relações humanas
existentes entre os integrantes da comunidade, onde o objeto musical
64
não tem relevância no sentido sacralizador como na sociedade
ocidental moderna, em que, uma tensão crescente na obra musical
direciona a atenção a um clímax.
A construção estrutural de sua música "não produz em modo
algum esse sentimento de antecipação, de ver-se arrastado até uma
culminação, que se experimenta com a música harmônica do
ocidente" (ibid p. 50). Em Bali, "as atividades em geral não se
praticam como algo conduzente a um objetivo desejado a alcançar, se
não como algo que leva em si uma satisfação inerente" (SMALL, 1989,
p. 55) e para a qual não há uma distinção entre o que vem a ser um
ensaio e uma apresentação musical. As observações realizadas junto
às crianças e adolescentes em situação de rua que freqüentavam a
EPA, levavam-me a crer que, similarmente, suas atividades musicais
se justificavam, antes, como sociais.
2.3.3 O aspecto "vivencial" da música
A análise de apresentações musicais e as mesmas atividades
musicais em momentos não considerados "apresentações", levaramme a interpretá-las da perspectiva de como SMALL (1989) se refere ao
aspecto "vivencial" da música.
65
Segundo SMALL (1989), na objetificação do conhecimento
musical na área de Educação Musical, a experiência vivida deixou de
ter importância no ato de conhecer música. No caso do conhecimento
artístico em geral, SMALL (1989) insiste na "suprema importância do
processo artístico, e na relativa falta de importância do objeto
artístico; o instrumento essencial da arte é a experiência irrepetível"
(ibid, p. 14). Este autor acredita que "a arte é algo mais que a
produção de objetos belos e expressivos [...] para que outros os
contemplem e admirem; é essencialmente um processo, por meio do
qual exploramos nosso meio, tanto o interior como o exterior, e
aprendemos a viver nele" (SMALL, 1989, p. 13-14).
O aspecto "vivencial" da música na obra de SMALL (1998) é de
tal forma relevante, que o autor parte do princípio de que "toda arte é
ação, performance, [...] e seu significado não reside no objeto criado
mas nos atos de estar criando, estar expondo, e estar percebendo" (p.
140).
Seguindo as concepções de SMALL (1989, 1995, 1998), teria
que olhar para as relações sociais do grupo observado e não somente
para suas atividades musicais, assim como não poderia isolá-lo do
contexto socioescolar como um todo. A forma como os alunos se
relacionavam com ela apontava para similaridades trazidas por
SMALL (1989), observadas em sociedades não ocidentais, ou seja, a
66
música inserida na organização e no estabelecimento das relações
sociais.
Assim, na busca de revelar os sentidos que a música tinha para
as crianças e adolescentes da EPA, e investigar as formas como se
relacionavam
com
ela,
delimitei
dois
vieses
analíticos
de
interpretação: o aspecto "comunitário" e o aspecto "vivencial" da
música.
Alguns
dos
resultados
obtidos
apresentados nos capítulos subseqüentes.
nessa
análise
serão
3 O ASPECTO "COMUNITÁRIO" DA
MÚSICA NA EPA
Este capítulo pretende revelar os sentidos que os alunos da
EPA atribuíam à música e, também, as formas como se relacionavam
com ela sob quatro focos. Primeiro, apresento o grupo de alunos com
o qual convivi mais proximamente durante o trabalho de campo,
buscando revelar como a música se insere no cotidiano da escola e
como esta se tornava um dos fatores de vínculo entre alunos e escola,
embora a música não integrasse o currículo oficial da EPA. Segundo,
discuto da perspectiva do vínculo estabelecido entre as crianças e
adolescentes em situação de rua com a escola e das suas relações
sociais. Posteriormente, procuro revelar os sentidos que a música
apresenta como uma possibilidade de inclusão para as crianças e
adolescentes
em
situação
de
rua.
E,
por
último,
mostro
a
participação da música na formação da identidade das crianças e
adolescentes com os quais convivi na EPA.
68
3.1 A música e o vínculo dos alunos com a escola
Embora o limite de idade para permanência do aluno na EPA
seja 18 anos, a postura da escola frente a essa situação é flexível, em
função das poucas perspectivas para a inserção das crianças e
adolescentes que lá estudam no mercado formal de trabalho. O caso
dos egressos configura-se, portanto, numa situação delicada e
tocante para os professores e a direção da EPA. A professora Maira
declarou em uma ocasião: "os alunos vão ficando ansiosos e
inseguros quando se aproximam dos 18 anos de idade. Às vezes,
relativizamos atitudes mais impulsivas, por exemplo, em função
dessa situação".
A preocupação com a passagem dos alunos de 18 anos para o
mundo formal do trabalho, em que terão responsabilidades e
compromissos a cumprir, levou a escola a criar o "Grupo dos 18". É
realizada uma reunião semanal com os alunos de 17 e 18 anos, no
sentido de acompanhá-los mais de perto nessa fase de transição, com
a orientação de uma professora designada para isso. Nessa reunião
participam também alunos que já passaram para a T 4, que funciona
à noite, no mesmo prédio da EPA. As turmas T 4,
T 5 e T 6 formam
os níveis de ensino do CEMET, abordado no capítulo 1.
69
Os alunos que avançavam para a T 4, o que, em geral,
tentavam retardar, aproveitavam todos os motivos para entrar
durante o dia nos espaços da EPA e estar com os amigos, colegas e
professores conhecidos. Era comum alunos da noite estarem no
portão da EPA, durante o dia, principalmente nos horários de entrada
da escola. Daí se origina a expressão "Um pé na T 4 e dois na EPA",
criada
por
uma
professora
da
escola
durante
uma
reunião
pedagógica, em que se discutiam as tentativas desses alunos, da T 4,
de freqüentar o espaço escolar durante o dia.
A preocupação da escola com os adolescentes que se encontram
nessa situação reflete-se neste meu diálogo com Maira:
M- (...) O 'Grupo dos 18', a gente se reúne com eles, faz
encontros, conversa com eles (...)
V- Vocês fazem regularmente?
P- Sim, toda quarta de manhã a gente se encontra, vê o
que eles poderiam fazer, se engajar num trabalho, um
serviço qualquer que fiquem, que durem, sabe? Mas não
tem perspectiva, eles não têm pra onde ir. Quem vai dar
emprego pra eles? Ao mesmo tempo, como vão aprender a
ter responsabilidades, a se comprometer? É difícil...
então, eles não querem sair da escola! E a gente vê que
eles estão crescendo também, cognitivamente, estão
indo... Tem os da Oficina do Papel14 que estão com um
14 Aqui, Maira referia-se à Oficina de Papel Reciclado da Usina do
Gasômetro, freqüentada por quatro alunos da EPA, no ano de 1999, mediante
bolsa-auxílio concedida pela Secretaria Municipal de Educação. Também foram
providenciados cursos em outras instituições, como corte-costura, desenho e
padaria, nos quais os alunos matriculados em 1999 não permaneceram.
70
vínculo, ao menos, que não é a escola, se a gente cortar
isso... sei lá o que pode acontecer... Quer dizer, foi feito
um trabalho de aprendizagem, de exercício de autonomia,
de auto-organização,
mas eles não estão prontos pra
esse sistema! [modo de organização da sociedade] Eles
precisam de um lugar pra morar, alguém tem que se
responsabilizar por essa faixa etária! Por essa fase de
transição da rua pra um serviço formal na sociedade
[enfatiza]. Nós vamos ficando com eles, por isso temos
alguns de 19, 20, 21 anos... Eles não querem sair da
escola [Fala num tom baixo e conclusivo].
(Caderno de Campo, 9.8.1999)
Os adolescentes que se encontravam nessa faixa etária são os
mais atuantes musicalmente, pois em geral tomavam as iniciativas,
como providenciar as atividades musicais que se realizavam na EPA.
Assim, vieram a constituir-se no grupo com o qual convivi mais
estreitamente e que colaboraram com informações para este trabalho.
Estabeleci um relacionamento mais próximo com 19 alunos e, dentre
eles, 11 pertencem ao "Grupo dos 18", compondo-se de 3 meninas e 8
meninos.
Embora a música não constasse na grade curricular da escola,
existiam três atividades musicais recorrentes nos tempos-espaços da
EPA. Uma delas era o grupo de rap Sabedoria de Rua, já mencionado.
Outra atividade musical que ocorria na EPA eram as rodas de samba
e pagode em que os alunos tocavam os instrumentos de percussão de
que a escola dispunha, o que podia ocorrer espontaneamente em um
71
determinado momento ou em função de alguma apresentação
prevista. Os instrumentos que estavam disponíveis na escola eram
dois repeniques, uma caixa, dois surdos agudos, três pandeiros, um
agogô, um ganzá e uma cubana, dois atabaques e três berimbaus.
E, por último, uma atividade que, com raras exceções se
realizava diariamente, era a audição musical. Ocorria nos recreios,
quando o aparelho de som da escola era trazido para o pátio, e os
alunos
colocavam
fitas
e
CDs
ou,
não
tão
freqüentemente,
sintonizavam uma rádio. Mas, invariavelmente, dançavam.
As atividades musicais nos tempos-espaços da EPA podiam
surgir nos mais variados momentos, sem um motivo explícito, pois os
alunos demonstravam ter uma receptividade muito grande para com
a música e disposição permanente para tocar algum instrumento e
dançar.
Um exemplo disso ocorreu numa sexta-feira à tarde, quando
alunos do "Grupo dos18" produziam papel reciclado na sala de artes
de forma intensiva, inclusive com a participação da diretora, pois
tinham uma encomenda de grande quantidade de papel, feita por
outra instituição.
Embora fosse visível o cansaço no semblante de alguns, já que
vinham trabalhando com papel toda semana, o ambiente na escola
estava tranqüilo pois todos trabalhavam para um objetivo comum,
72
havendo uma certa euforia por ser a primeira vez que teriam um
retorno financeiro considerável com a venda do papel reciclado que
produziam. De repente, de dentro da secretaria, ouvi o som de um
surdo e um tamborim vindo lá da rua. Saí para o pátio e avistei no
portão, quatro alunos e também a professora Dóris ao redor do Zé,
um amigo dela que de vez em quando ia tocar com eles. Nem entrou
no pátio porque a roda começou ali mesmo, na calçada; ele havia
trazido um surdo que soava muito bem.
Percebi
que
os
garotos
se
entusiasmaram
com
aquela
sonoridade com a qual não estavam acostumados. Cantavam um
samba-enredo de uma escola de samba de Porto Alegre. Peguei a
máquina fotográfica e me juntei a eles, que dançavam e cantavam na
calçada, na frente da escola, muito alegremente. O pessoal que estava
fazendo papel reciclado foi todo para a rua, com os aventais novos,
muito brancos, o que provocou risos em alguns, pois os chamaram
de "açougueiros". O clima era de total empolgação com aquele timbre
novo e bonito do "maracanã" que Zé levava pela primeira vez na EPA.
Tinha uma marcação grave, forte e precisa. Levou-nos todos a dançar
e cantar.
Os meninos e meninas dançavam soltos e à vontade naquela
roda espontânea, mas Francisco, um dos alunos da EPA, estava mais
que à vontade. Francisco dançava como um mestre-sala, que
orgulhosamente carrega sua escola de samba. Fazia poses elegantes
73
com muito samba no pé, com giros e passos "no capricho". Por seu
envolvimento, que o fazia brilhar, parecia estar ouvindo uma bateria
inteira de escola de samba atrás de si, enquanto sua pasta de
plástico transparente contendo seu material escolar rodava no dedo
médio de sua mão erguida, substituindo um pandeiro que girava no
seu imaginário, assim como era quase possível ver na sua imaginação
a porta-bandeira que cortejava elegantemente e com a qual
sincronizava sua coreografia. Enquanto dançava e batia umas fotos,
falei para Dóris:
V- Tu tens a chave?
(Ela ouviu mais ou menos, pelo
volume alto da cantoria e da batucada)
D- Ãh?!
V- A chave da sala tá contigo, né? (quase gritei)
D- Tá, Vânia, tá!! Já entendi!... (e riu pra mim repetindo
minhas perguntas como quem diz: eu sei que tu queres
todos os instrumentos aqui!)
(Caderno de campo, 19.11.1999)
Um pouco contrariada por parar de dançar, a professora Dóris
se afastou em direção à sala onde eram guardados os instrumentos
de percussão da EPA, já com vários alunos acompanhando-a, por
terem entendido na nossa comunicação o que ela iria fazer. Assim
que estes vieram com os instrumentos, o pessoal que estava na
calçada começou a entrar no pátio e, juntos, dirigiram-se ao galpão
sem parar de tocar. Lá dentro o fizeram por uma hora e meia
74
aproximadamente, usando todos os instrumentos de percussão
disponíveis na EPA, descritos anteriormente.
Tadeu, 21 anos, que estava muito envolvido reciclando papel
na sala de artes, foi chamado por três vezes "pra dá uma força", pois
é tido pelos colegas como o mais experiente e habilidoso na
percussão. De avental branco, com os braços e as mãos cheios de
polpa de papel, Tadeu estava orgulhoso de estar ensinando, pegando
a baqueta do Lucas e tocando no surdo que este usava; ao mesmo
tempo que Lucas aprendia, todos os outros tocavam, "ligados" no
seu toque. Mais tarde, comentou comigo: "Bá! Hoje eu cansei. Tinha
que ficá pra lá e pra cá, fazendo papel e ajudando eles!"
75
...a chegada do surdo...
Fotos: Vânia Müller
A confecção de papel reciclado,
...e o surgimento de um momento musical, envolvendo os alunos, a
professora e os guardas.
76
Os alunos envolvidos com a Oficina de Papel na Usina do
Gasômetro, como colocado no capítulo um, assim como os que fazem
papel reciclado na própria escola, são os alunos mais diretamente
envolvidos com as práticas musicais. E embora tenham 18 anos de
idade ou mais, os professores reconhecem seu envolvimento nessas
duas atividades como "práticas educativas úteis" e de "grande
realização para os alunos", o que leva a escola a não cogitar o
rompimento dos alunos
com as mesmas e todos os vínculos que
delas decorrem.
Assim, esses alunos seguiam participando de todas as
atividades educativo-pedagógicas da escola, desde aulas regulares
com a turma do seu nível de ensino até atividades extraclasse, como
apresentações musicais, apresentação de capoeira, passeios e visitas
culturais. Dentre muitos outros, os garotos citados acima, Francisco
e Tadeu, são exemplos concretos dessa situação.
Os alunos tomavam conhecimento e às vezes acompanhavam o
empenho da direção e de alguns professores na busca de alternativas
para quem "precisaria" sair da escola. Configurava-se, assim, entre os
alunos e os professores, principalmente de quatro ou cinco envolvidos
mais diretamente com essa questão, um vínculo pessoal com os
alunos, uma relação de cumplicidade, de confiança e afetividade15.
15 Uma manifestação de afetividade dos alunos para com os professores
pode ser vista no "Álbum de Poesia da EPA", no Anexo 5.
77
A importância que o vínculo com a escola tinha para os alunos
pode ser percebida através do trecho a seguir, retirado de uma
entrevista com Rogério, 18 anos, que avançou para a T 4, à noite:
V- E tem alguma coisa que tu não gosta? Que tu menos
gosta, na EPA?
R- Que eu menos gosto? (sorri) É quando não deixam eu
entrá! [ele sorri muito]. Só isso! Quando não deixam eu
entrar...!
V- Mas por que eles não deixam tu entrar?
R- Ah, tem às veiz que eles falam...É que eles falam que
eu não sou do colégio, né...que eu sou agora do CEMET,
daí, então, eu não posso vim. [...] Como aquele dia, não
dexaram eu entrá no colégio, e tinha um bagulho bom!
Tinha aquele passeio que ia levá lá...naquele...como é que
é no sítio, lá, no primero sítio que eles foram. Cheguei ali
no portão, perguntei, já tinham ido. Bá!! Daí eu comecei a
chorá, ali. Comecei a chorá.
(Entrevista, 30.9.1999)
3.2 Da ponte até a escola: a música nas relações sociais
Se a relação dos alunos com a escola, descrita anteriormente,
me chamava a atenção, as relações pessoais entre os alunos também
se
revelavam
interessantes,
principalmente
pelo
senso
de
coletividade, solidariedade e pela confiança existente entre os pares e
78
grupos de amigos. Muitas vezes, somente o fato de estar com os
amigos gerava alegria entre eles e não por acaso estavam sempre
juntos: era na relação com seus pares de amigos mais próximos que
experimentavam uma certa segurança, pois eram as pessoas que
conheciam mais intimamente. Por exemplo, Lucas sempre andava
com
Daniel.
Embora
os
dois
tivessem
companheiras
fixas,
casualmente ambas esperando um filho do respectivo companheiro,
quase sempre chegavam juntos à escola e na hora da saída um
esperava pelo outro. Sobre a amizade com Daniel, Lucas revelou:
L- É um amigo fora de série mesmo! Dá conselho, me fala
uns troço às veiz...Disse que é pra eu i e ficá na casa dele
quando quisé. Eu podia ficá lá se eu quisesse...A guria
dele também é tri gente fina. Não sei como é que ia sê,
daí, se um dia eles brigá, porque eu me dô tri bem com os
dois!
(Entrevista, 10.9.1999)
Da mesma forma, Rogério e Mendez, Júlia e Laura, Tadeu e
Hagar, Carmen e Cristina, Franco e Carlos têm afinidade e, por isso,
na maioria dos casos, dormem no mesmo mocó. Há também os que
se relacionam com o grupo todo de uma forma mais isonômica, como
Toni do rádio, Cristian e Tomaz, mas que formam um trio que parece
se conhecer bem, quando estão dançando rap.
79
Fotos: Vânia Müller
Os pares de amigos...
Foto: Aline Gonçalves
Foto: Vânia Müller
80
...e a aproximação através
da música.
81
Na ponte
Quase que em sua totalidade, esse grupo de alunos com o qual
convivi mais proximamente, vive em mocós próximos, que são
embaixo de pontes de um mesmo rio. Por isso, sempre sabiam quem
estava passando alguns dias em casa, quem estava doente ou
machucado, quem estava namorando quem, quem estava no
hospital. Sabiam quem estava "cuidando carro", pois seus "pontos"
desse "trabalho" eram próximos aos mocós, sabiam quem havia ido
ou não para a escola e, também, se o Toni estava "em casa" ou não,
porque estava sempre acompanhado de seu rádio. Como me revelou
Carmen, em entrevista, quando contou que gostava de ouvir música
na hora de dormir:
V- E dá pra fazê isso no mocó? Ir dormir ouvindo
música?
C- Dá, mas só às veiz, é que o rádio não é nosso, né, é do
Toni...
V- Sim, e o Toni não é do mesmo mocó...?
C- É, só que ele é de um lado e nóis semo do outro;
aí
dá pra escutá!
(Entrevista, 17.9.1999)
Em entrevista, Lucas me explicava onde dormia cada um na
sua ponte e quem eram seus vizinhos, fazendo questão de detalhar o
local e de ter garantia de que estivesse entendendo sobre quem ele
estava
falando.
Relacionou,
assim,
o
nome
de
vinte
e
sete
82
companheiros que estudam na EPA e vivem juntos, deixando
transparecer uma certa satisfação por todos se conhecerem bem e
por ser um grupo fixo naquele local, embora haja casos de alguns que
em determinadas épocas vão para casa e retornam, como é o caso do
próprio Lucas. Também sabiam quem "não é da área" e estava ali
para passar somente uma noite.
O fato de a maioria dos alunos estar vivendo nas mesmas
pontes como vizinhos conhecidos há bastante tempo, imprimia a esse
grupo de crianças e adolescentes uma identidade de grupo. Essa
auto-imagem de grupo era revestida de orgulho, uma vez que se viam
diferentes dos "meninos de rua", evitando terminantemente essa
denominação.
As crianças e adolescentes que chegavam na EPA pela primeira
vez recebiam comentários e, às vezes críticas, se os que lá estavam há
mais tempo julgassem necessário "ensinar" quem estava chegando, a
se comportar. Conforme contou uma professora, ocorreu uma
situação em que um garoto recém chegado estava falando muito alto
e fazendo gestos expansivos na fila do almoço, ao que Rubinho teria
dito: "Ô meu!! Aqui na EPA não é assim, meu! Aqui não é a rua!"
Quando se referiam ao lugar onde "moravam", raramente
diziam "mocó". Ao invés desse termo, preferiam dizer "ponte",
inclusive os professores. A "ponte" era pelo menos cinco pontes, com
um total de dez mocós, cada um com ocupação de duas até seis
83
crianças e/ou adolescentes. Ou seja, quando diziam, diariamente, na
hora de sair da EPA, a expressão "vamo largá pra ponte", significava
convidar os amigos para ir embora, referindo-se a todas as pontes,
cada uma com seus dois lados. Viam, assim, "um lugar" único, onde
moravam todos, em pequenos grupos com maior proximidade entre
si, os que partilham o mesmo lado de uma ponte, dentro de um
grande grupo.
A música parecia revelar a dimensão deste grande grupo
quando proporcionava uma conexão entre as crianças e adolescentes
de dois lados de uma mesma ponte e nas ocasiões em que se
juntavam num mesmo lado de uma das pontes, quando cantavam,
dançavam e tocavam com as latas e baldes que utilizavam para lavar
os carros que cuidavam.
Uma prática comum e diária de ouvir o rádio, segundo garotos
entrevistados, acontecia à noite, quando ouviam a Rádio Metrô
sintonizada no aparelho de rádio do Toni, num programa que
transmitia até às 24horas, essencialmente rap, de forma que os que
estavam no outro lado da ponte ouviam também, como mencionado
anteriormente.
Em outros momentos, a música parecia dimensionar o grande
grupo quando eles próprios a faziam, agrupando-se num mesmo
mocó para cantar, tocar e dançar as músicas que conheciam do
rádio.
84
Era no seio do grupo, também, que a criação ia tomando forma
à medida que experimentavam e "ensaiavam" as músicas dos garotos
que criam rap, como contou Rogério sobre um rap que fez em
parceria com Josué:
R- Porque [o rap] tem as parte, né. Ele [Josué] marca as
parte que eu que tem que cantá e as parte que ele que
tem que cantá. Às veiz nóis peguemo lá as guria, lá, a
Cristina, que à veiz faiz a lady, que eles chamam de lady
aquelas que canta [sorri], daí a gente dá pra elas um
jogral pra cantá. Daí fica meio trizinho! Sabe! Fica que
nem tá cantando de verdade! A gente bem dizê tamo se
treinando pa quando tivé um pouquinho mais maior, tivé
uma chance pra nóis ou até quando agora que nóis tivé
pequeno, tivé uma chance pra nóis, nóis tá...afiadinho
pra cantá, daí! E todo mundo gostá.
(Entrevista, 30.9.1999)
Pela entrevista de Rogério fiquei sabendo que o rap mais
conhecido e cantado pelos alunos da EPA, no ano de 1999, era de
sua autoria em parceria com Josué. Rogério, preocupado que eu não
acreditasse que a autoria do rap era dele e de Josué, fazia questão
de me explicar por que todos conhecem e aprendem as músicas que
fazem:
R- Por isso, às veiz, ...como a senhora disse que às veiz
eles sabem da música da gente, pcausqui [por causa
que], a maioria, né, lá onde que nóis vivemo, lá...a
maioria fica...em grupo, sabe? Como nóis! Fiquemo em
grupo. Pa cantá a gente faiz em grupo assim mais que
85
cinco, seis, assim numa roda, aí começa a cantá... aí
cada um vai cantando um pedacinho só, já vai ouvindo
e...aí vai, aí quando vem pro colégio aí todo mundo sabe.
Daí, se um canta lá...aí, "essa música eu conheço..." aí, já
canta junto...aí, outro canta lá do outro lado... aí, fica
assim.
(Entrevista, 30.9.1999)
Na ponte, a criação também podia ser coletiva e, segundo
Rogério, acontecia através do "rap de hora", uma combinação
improvisada de frases, como comentou na entrevista:
R- [...] porque assim, ó, daí se uma pessoa...assim, é por
verso, né, às veiz, aí eu faço assim, um verso, daí se eu
não sei cantá o outro verso ele já tá com outro verso na
cabeça e aí pode botá, o verso dele junto co meu [com o
meu]; aí ele pára na outra parte que ele não sabe, daí eu
invento, otros inventa, e assim vai indo...por isso que sai
uma música já mais...mais maiorzinha. Porque se eu
cantá, eu canto só um pedaço, né, se ele cantá, ele canta
só um pedaço, ou se outro cantá, ele canta só um
pedaço, daí a gente ajuntemo tudo isso, cada um canta
um pedaço, daí dá uma música intera.
(Entrevista, 30.9.1999)
A música estava presente, também, nos locais de "trabalho",
enquanto "cuidavam carro", atividade exercida pela maioria das
crianças e adolescentes "da ponte" e que freqüentam a EPA. A esse
respeito, Rogério também revelou:
86
R- Tem os balde lá, as lata que a gente lava os carro lá, e
a gente fica lá tocando. Tem uns que fazem o som com a
batida, com a boca, assim, daí quando vê aí dá, aí sai um
sonzinho, daí a gente...fica ali. Se distrai um poco, né,
sora! Que ficá parado, triste, esperando até o dinhero
vim, ainda o dinhero é poco, aí, bá, daí a gente vai
até...mas é bobagem, né sora, se a gente ficá triste,
parado ali esperando, uma micharia vim ainda pra podê
cumê, ainda a gente vai ficá meio triste... Cantando, daí a
gente fica rindo, né, fica rindo, cantando, todo mundo
rindo, falando, conversando ali, daí eu acho que aquilo
ali...solta um poco mais daquele...desespero, sabe, de
todo... trabalhador o [ou] inocente sofre. Acho que, acho
que daí libera um poco mais. Dá um poco mais de
consciência.
(Entrevista, 30.9.1999)
Na escola
Seus mocós se localizavam relativamente próximos da escola,
facilitando a freqüência dos alunos e por isso sua proximidade dentro
do espaço escolar. Em um dos espaços, o refeitório, pude presenciar
vários momentos em que alcançavam determinado alimento para um
colega que sabiam que o apreciaria.
A lembrança dos amigos, quando eles não estavam presentes
em determinada atividade que sabiam que apreciariam, levava-os a
manifestar-se e às vezes, chamá-lo, para participar da mesma
ocasião. Numa tarde de racha de rap, a professora de Zeca, que
87
estava ao seu lado, pôs no aparelho de som uma fita cassete com a
gravação de um rap que ele havia feito em aula, em parceria com
Laio. Assim que começou o rap na voz de Laio, vários que estavam no
pátio, ouvindo, ficaram bem impressionados com o rap e começaram
a chamar, gritando, pelo nome de Laio, que estava na cancha jogando
bola. Jorge, 13 anos, correu lá e foi avisá-lo de que seu rap estava
tocando no rádio. Quando chegou junto ao pessoal que estava em
volta do aparelho de som, era visível a expectativa de todos pela
alegria e orgulho que Laio sentiria por ouvir o rap feito na aula,
juntamente com Zeca.
Na busca dos sentidos que as crianças e adolescentes em
situação de rua atribuíam à música e, também, buscando verificar as
formas como a música se inseria na sua vida, fui percebendo que as
relações pessoais entre os alunos e as relações entre os alunos e a
escola pareciam gerar os sentidos que, segundo SMALL (1998), uma
performance musical pode revelar.
Convivendo com os alunos da EPA, passei a considerar mais
pontualmente em minhas observações a forma como se relacionavam
entre si e seu relacionamento com os professores. Acreditava, assim,
reconhecê-los mais individualmente nas suas formas de buscar e de
manter as relações desejadas e de que maneira elas estavam
contempladas
nas
GUARESCHI (1999),
suas
práticas
musicais.
Na
opinião
de
88
os grupos humanos, e as sociedades em geral, são
melhor compreendidos se forem vistos como constituídos,
em sua essência, por relações. Não é, por exemplo, nem o
número, nem a cor, nem o tamanho, nem a idade das
pessoas o essencial na constituição de um grupo. O que
faz um grupo ser um grupo são as relações que nele se
estabelecem (GUARESCHI, 1999, p. 142).
SMALL (1998, p. 142) acredita que os sentidos encontrados em
uma performance musical, são revelados pelas relações entre as
pessoas que nela estão envolvidas. O autor argumenta que as
pessoas
envolvidas
em
uma
performance
musical
estão,
essencialmente, celebrando as relações que se estabelecem entre
elas, e que a qualidade da performance será determinada pela
qualidade das relações geradas no momento da performance.
As crianças e adolescentes em situação de rua tinham no
vínculo com a escola e, mais precisamente, nas relações pessoais com
determinados professores e com seus iguais, razões bem concretas
para fazer de suas práticas musicais nos tempos-espaços da EPA,
uma celebração; seja tocando os instrumentos de percussão, ouvindo
rádio com os colegas, participando de uma roda de rap, ou dançando
nas festas no pátio da escola.
Na EPA, a música parecia não só servir para a celebração dos
vínculos ali existentes, mas também para revelá-los, no sentido de
"trazer à tona" as relações sociais, fazendo-as visíveis em momentos
89
que
envolviam
música.
Assim,
se
estivessem
ouvindo
algo
interessante na sala de aula ou no vídeo da biblioteca, era comum
algum aluno chamar "os outros" - os guardas, os colegas, a direção
da escola, professores - para ouvirem também. Pareciam ver-se,
identitariamente, como um grupo social em que as funções
hierárquicas não emergem em detrimento do que as pessoas são em
si mesmas, antes das funções que exercem.
Isso pude observar em uma ocasião "formal", em que a diretora
da EPA fazia um discurso no pátio da escola, perante um grande
público, inclusive autoridades do poder público oficial. No entanto,
Mauro, 15 anos, diretamente envolvido no projeto que a diretora
explicava no microfone, sentiu necessidade de agradecer a uma
professora, de fora da EPA, que trabalhou com ele. O garoto segredou
ao ouvido da diretora que, naturalmente, incluiu na sua fala as
palavras de Mauro.
Assim como se sentiam à vontade transitando pela escola e
entrando nas salas livremente, pareciam entender como "natural" que
todos que ali conviviam e partilhavam o tempo-espaço escolar o
faziam, também, segundo suas razões e curiosidades. Isso ocorreu
quando mostrei para os alunos imagens gravadas em vídeo que havia
feito durante o trabalho de campo. Da mesma forma, Emílio e
Leonardo, os guardas, sempre estiveram presentes nas três sessões
de vídeo realizadas na biblioteca, além do Hélio.
90
Emílio, Leonardo, Hélio e Jóice, a secretária, participaram da
reunião pedagógica dos professores, quando dava um retorno deste
trabalho de pesquisa, parecendo ter o entendimento de que este
trabalho lhes dizia respeito. Em minha opinião, seu entendimento
vinha da relação cotidiana com as crianças e adolescentes, cuja
realidade conheciam de perto, e tinham amizades estabelecidas com
alguns deles.
Embora o aspecto comunitário deste espaço socioescolar se
reflita de alguma forma nas diversas áreas e atividades de interesse
dos seus integrantes - alunos, professores e funcionários -, quando a
atividade envolvia música, este aspecto parecia salientar-se. Era um
momento em que a maioria dos presentes na escola se concentrava
num ponto comum, a música. Esses momentos indicavam tanto o
aspecto
comunitário
deste
grupo
social,
quanto
o
aspecto
comunitário da música vivida ali. As observações indicavam que não
faria sentido "olhar" para a música na vida das crianças e
adolescentes deste cenário, à parte das relações sociais e da vida
desta comunidade escolar.
Em dezembro de 1999, a escola levou a "Família Mambembe"
para dar um espetáculo envolvendo música, teatro e poesia, e ainda
incluindo o preparo de cuca integral em uma tenda de panos
coloridos, armada no pátio, e andar de perna-de-pau. Essa foi uma
das vezes em que vi os guardas serem chamados para abrir o portão
91
porque alguém havia chegado, e eles não estavam lá, já que
participavam das atividades educativas com os alunos. Leonardo, um
dos guardas, que toca violão, nesse dia acompanhou o cantor
principal em uma de suas músicas na viola caipira que o grupo
trouxera. Havia mais crianças pequenas do que comumente ocorre.
Neusinho, um ex-aluno da EPA, levou uma irmãzinha de 2 anos, e
havia também sete crianças do grupo de artistas do "Mambembe" que
tinham de 2 a 14 anos de idade.
Depois da atividade do grupo visitante, resultou em uma
grande festa de quatro horas, onde todos, sem exceção, independente
das idades e das funções na EPA, envolveram-se de alguma maneira,
ocasionando um alvoroço geral: enquanto alguns cruzavam o pátio
com pernas-de-pau, inclusive professoras, outros batiam fotos,
outros, ainda, amassavam as cucas, a viola caipira passava de mão
em mão, e cada um "tocava" um pouco, os garotos maiores pegavam
os pequenos no colo, dançando com eles, bem afetuosos, como
costumam reagir aos bebês que aparecem na EPA16.
Dois garotos começaram a cantar no canto do "L", formado
16 Algumas vezes alunos vieram para a escola com irmãos ou sobrinhos,
menores de 5 anos de idade. Houve casos também de ex-alunos que vieram visitar
a EPA na companhia de crianças pequenas da sua família, principalmente nas
ocasiões festivas. Nessas ocasiões, os bebês circulavam pelo colo dos alunos,
especialmente os garotos, incluindo-os nas suas atividades da festa, principalmente
a dança e a música.
92
pelos banheiros e pelas janelas da sala dos professores e da
secretaria. Cristian tocava na lixeira de plástico e Caio tocava no
pandeiro do "Mambembe". Logo chegou Fernando caminhando em
cima da perna-de-pau e, ao mesmo tempo que se apoiava em um dos
pilares, batucava nele, junto com Cristian e Caio.
Os três cantavam uma música conhecida do rádio, um samba.
A partir daí, outros foram juntando-se a eles, aumentando o grupo e
também a animação. Lucas chegou na frente da câmera com a qual
eu filmava e disse com entusiasmo e pressa: "me dá a chave, quero
buscá um instrumento pra eu tocá!" Mais tarde, veio Fernando dizer
que queria pegar uma caixa para tocar, e assim vieram, em
momentos diferentes, mais três alunos pedir a chave da sala onde
ficam guardados os instrumentos de percussão da escola, a qual
estava comigo.
O grupo que se formava já produzia um resultado sonoro de
volume considerável. Inclusive os atores-músicos do grupo que foi
fazer o espetáculo na EPA e suas sete crianças, que já se misturavam
entre os garotos, tocando e cantando engajados naquela performance
que se originou espontaneamente.
Já estavam sendo utilizados três repeniques, dois pandeiros,
um surdo, dois tamborins, duas caixas, três tambores médios, um
agogô às vezes tocado pela Mila, a vice-diretora, e outras por Maira.
Quando Leonardo viu que Alex estava "tocando" cavaquinho, sem
93
"saber" tocar, perguntou-me se poderia tocar com o meu violão, que
sempre
usa
nessas
ocasiões.
Havia
também
na
"roda",
um
cavaquinho, um ganzá tocado por Ceres, a servente, que às vezes
alternava com Júlia, a secretária, e, ainda, uma lixeira de plástico e
outra de metal.
Depois de trinta minutos, todos os alunos e quase todos os
adultos presentes no espaço escolar estavam na "roda", amontoados,
ocupando não só o canto onde Cristian e Caio começaram a tocar e
cantar, mas todo o "L" em frente aos banheiros e as janelas da sala
dos professores e da secretaria. Eu me alternava em filmar e
participar da "roda", o que era possível quando a professora Rejane
filmava um pouco, ou, a professora Cimara, que cuidava trabalhos de
argila dos alunos, expostos no pátio, na ocasião.
As músicas cantadas vinham dos garotos - as que conhecem do
rádio, raps, pagodes e sambas, e algumas canções das rodas de
capoeira, conhecidas pelos integrantes do grupo de teatro. Também,
vinham músicas desse grupo - canções populares brasileiras de vinte
e trinta anos atrás, como marchinhas de carnaval e outras - que os
alunos não conheciam totalmente, mas tentavam cantar. Como nós,
os professores, as conhecíamos, as músicas se sustentavam e iam,
em geral, até o fim. Assim, era possível ouvir após "Sobrevivendo no
94
Inferno", um rap dos Racionais Mc's17 "puxado" pelos alunos, a
música "Bandeira Branca"18 de Max Nunes, puxado pelo grupo
Mambembe; após um samba-enredo de uma escola de samba
carioca,
uma
professoras,
música
de
acompanhadas
"Milton
pelo
Nascimento"
violeiro
do
cantada
pelas
Mambembe.
Os
"repertórios" de cada "segmento" que participava pareciam ser,
naquele instante, o repertório do grupo que ali se formou.
As atividades com música na EPA, em geral envolvendo os
adultos, as crianças e os adolescentes, os alunos, os professores e os
funcionários em momentos de um dia corriqueiro de aula ou em uma
comemoração aberta ao público, revelavam que ali a música assumia
um "caráter comunitário" (SMALL, 1989). E o entusiasmo que marca
o envolvimento de cada um com o grupo que está a vivenciar e
partilhar a música leva-me a concordar com este autor, quando diz
que "[...] o júbilo fundamental da música, que se em definitivo é um
prazer, é um prazer compartilhado" (SMALL, 1989, p. 205).
SMALL (1989) critica a distância que a música tomou da vida
diária do homem, depois que os "especialistas" em música passaram
a explorar e pensar a música coerentes com a visão científica do
Grupo brasileiro de rap de maior preferência entre os alunos da EPA. Um
dos grupos precurssores do movimento Hip-Hop no Brasil, surgiu no início da
década de 90, em São Paulo, abordando com veemência a violência urbana. (Ver
ANDRADE, 1999; CONTADOR e FERREIRA, 1997).
17
18 Marcha popular executada tradicionalmente durante o Carnaval, na
maioria dos estados brasileiros.
95
"mundo europeu pós-renascentista" (p. 34), delimitando tanto a obra
musical como o tempo e o lugar onde seria "apropriado" ouvi-la. O
autor compara esse distanciamento com a obra de um artista plástico
e quem a recebe, argumentando que na música dois limites impõem a
distância entre nós e a obra musical: o limite "espacial e temporal"
(SMALL, 1989, p. 34). Ao referir-se ao limite espacial, ele diz:
Situamos os sons em um edifício ou outro espaço
construído ou reservado para esse fim e cuidadosamente
ilhado para que não possam entrar os ruídos da vida
diária - e quem sabe também para que os sons não
possam escapar até o mundo - , enquanto que os
executantes estão instalados sobre uma plataforma, à
parte do público. A separação entre o mundo da música e
o da vida diária se acentua nos rituais minuciosos da
sala de concertos e do teatro de ópera - a compra de
entradas, a reserva de assentos, as convenções sobre o
atendimento e o comportamento de executantes e público
- , definindo a execução do concerto ou a ópera como
uma ocasião especial, um momento diferente do resto da
vida de qualquer um (SMALL, 1989, p. 34-35).
Ao referir-se ao limite temporal, este autor argumenta:
O tempo que será ocupado pela música está claramente
definido. Antes de começar a execução, sabemos com
uma margem de minutos quanto há de durar; às vezes,
um anúncio na entrada avisa a hora exata em que
acabará. Uma vez que o público sentou e está em
silêncio, o diretor levanta a batuta, o pianista leva as
mãos ao teclado e a obra segue o curso pré-estabelecido
sem que nada, a não ser um desastre natural ou uma
96
falha dos músicos, lhe impeça de chegar ao acorde final.
[...] A planificação em grande escala dos acontecimentos
no tempo - aquilo a que chamamos forma - é um
elemento de grande importância nesta música. É como se
não gostássemos de perder-nos no tempo. Cada obra
musical representa uma progressão linear no tempo, que
vai desde o bem definido começo até o final inevitável, e o
ouvinte familiarizado com o estilo sabe sempre onde está
em relação ao começo e com o fim, ainda que seja a
primeira vez que esteja ouvindo uma obra (SMALL, 1989,
p. 35).
Essa visão da obra musical - nas palavras de SMALL (1989)
como algo "autônomo", "externo a nós", "acabado" e "especial" explica
a
atenção
prioritária
depositada
no
produto
musical,
distanciando-nos do aspecto vivencial da música (SMALL, 1989),
como
será
abordado
no
capítulo
quatro
e,
talvez,
mais
acentuadamente, do "caráter comunitário da música" a que se refere
SMALL (1989, p. 218). A busca por um momento "`a parte" da vida
cotidiana para encontrar-se com um produto musical que se basta
em si mesmo, pois tem início, meio e fim, e é sua coerência interna
que importa, não contempla o "prazer compartilhado" a que se refere
esse autor.
Foto: Aline Gonçalves
Foto: Vânia Müller
97
Da
ponte...
...até a escola...
Foto: Vânia Müller
98
...suas atividades musicais se justificavam, antes, como
sociais.
99
3.3 A música como possibilidade de inclusão
A necessidade que as crianças e adolescentes da EPA tinham
de inclusão, de serem aceitos no grupo, manifestava-se nas mais
diversas atividades nas quais se envolviam. Toda e qualquer atividade
era vista por eles como uma possibilidade de inclusão. A música
parecia propiciar uma variedade de situações em que era possível
realizar o desejo de ser aceito, às vezes, não tanto pela música em si,
mas para aproximar-se do grupo. Aconteceu assim com Walter, 16
anos, quando nos encontramos a caminho da EPA, como revela o
trecho de nosso diálogo que segue:
Hoje encontrei o Walter no ônibus "Praça XV", na ida
para EPA. Ele estava calado, extremamente introspectivo,
o olhar absorto pra fora da janela. Parecia estranhar que
eu tivesse ido sentar ao seu lado, de vez em quando
espiando com o canto do olho. Comecei a puxar conversa,
ele disse que estava com febre, que estava vindo do
hospital,
onde
foi
consultar
um
médico.
Quando
descemos do ônibus ele disse "Bá, eles vão ri e gozá
muito de mim! Vão dizê que eu tô de militar" porque
usava uma calça do tipo "safari", camuflada, verde e
marrom. Eu disse que ele estava muito arrumadinho,
todo cheiroso, de gel no cabelo, que parecia que tinha
tomado banho, ao que ele respondeu "Claro! Eu sempre
tomo banho antes de sair de casa! Não dá pra ir no
médico sem tomá banho." Quando chegamos perto do
portão da EPA, já se ouvia o som dos atabaques, então eu
falei:
100
V- Olha só, a roda de capoeira, pelo jeito já tá
acontecendo...!
W- Não vou entrá! (e foi parando)
V- Vamos! Entra comigo! (parei também)
W- Não, vão me gozá que eu tô assim! (olhava pra sua
calça)
V- Toma aqui, entra tocando pandeiro, que ninguém vai
repará na tua calça...! (mostrei o estojo do pandeiro)
W- Que que é isso?
V- É um pandeiro.
W- Bá! Me dá aqui, vô entrá tocando...! (tirei o pandeiro
do estojo e dei pra ele)
V- Vamo então!
W- Não, vou ficá aqui. Vai indo, vô depois.
(Caderno de Campo, 6.12.1999)
Outro exemplo de que um instrumento musical, por si só, pode
fazer o aluno sentir-se incluído ou vinculado a uma determinada
atividade é o que ocorreu com Fabiano, 11 anos:
(...) a roda de capoeira já estava funcionando bem, uma
roda
grande,
muitos
instrumentos
sendo
tocados
produzindo um volume forte. Depois de ajudar-me a
carregar os últimos instrumentos para o pátio - o
atabaque, um pandeiro e outro berimbau -, Fabiano veio
mostrar-me seu nome escrito em uma etiqueta e colado,
por uma professora, dias atrás, no pandeiro que usava.
Enquanto eu ajustava as pernas do atabaque, ele disse
bem alto, perto do meu ouvido pra que eu pudesse ouvir:
"claro que eu não posso levar embora, mas é meu!"
101
(Caderno de Campo, 6.12.1999)
Os alunos da EPA aproveitavam bem a possibilidade de
inclusão através da música. Foi possível observar momentos em que
o desejo de estar no seio do grupo muitas vezes é maior do que o
interesse pela atividade musical em si. O exemplo de Toni, a seguir,
mostra que optou pela companhia dos colegas, mesmo que estivesse
em um meio musical que não aquele com que mais se identifica. Ele,
que é considerado "o rapper", "o coreógrafo", tenta entrar de qualquer
forma na roda de samba, inclusive lutando pra conseguir um
instrumento:
Toni estava no pátio com o rádio ligado, ouvindo rap,
sozinho, fumando seu cigarro, enquanto todos - uns 15
colegas - passavam na sua frente com instrumentos de
percussão em direção ao galpão, onde seria o ensaio que
já estava programado há alguns dias e para o qual havia
pessoas de fora da escola envolvidas, inclusive. Depois de
cerca de 10 minutos, Toni entrou no galpão. O rádio da
escola, os CDs e as fitas cassete de rap ou pagode, ou
ainda ouvir a rádio que quisesse, não era, naquele
momento, razão suficiente pra ficar sozinho ali, no pátio,
enquanto todos estavam no galpão envolvidos numa
atividade comum. Era visível que seu envolvimento,
embora tenha tirado o instrumento de outro menino e
estivesse
tocando,
era,
para
não
dizer
superficial,
completamente diferente de quando está dançando ou
102
cantando rap. Estava tocando para estar participando,
para estar incluído, para estar junto; fazia-o com certa
displicência
e
divertia-se
consigo
mesmo
fazendo
movimentos com os braços, levantando as baquetas entre
as batidas no tambor. Para o Toni, tocar aquele gênero de
música, estar naquela atividade musical, parece não
exigir dele um total envolvimento; então, dá tempo de
brincar. Ao contrário do rap, onde só vê-lo ouvindo,
sentado do lado do aparelho de rádio, se percebe que está
mais concentrado do que na roda de samba ou de
olodum; quando dança, então, sua concentração e
vibração são permanentes, sabe o que está fazendo e está
inteiro no rap. Dança os recreios inteiros trazendo os
outros, meninos e meninas, que se alternam indo e vindo
dançar
ao
seu
lado,
imitando
sua
coreografia,
aprendendo com ele, enquanto ele se mantém sem
sentar. O difícil é interromper seu envolvimento quando
acaba o tempo dos recreios que têm rádio.
(Caderno de Campo, 19.11.1999).
Quando os alunos tinham oportunidade de estar e fazer música
com pessoas que não se encontravam em situação de rua como eles,
ficavam eufóricos. É quando transparecia mais nitidamente a
sensação de inclusão que os alunos estavam tendo.
A escola promovia o contato dos alunos com pessoas que não
se encontram em situação de rua, levando para dentro do espaço
escolar outros músicos para tocar, assim como organizava rachas de
rap, quando os alunos receberam grupos de outros bairros da cidade.
Várias rodas de capoeira se realizaram na escola com a participação
103
de capoeiristas trazidos pelo professor de Educação Física, em
horários
extraclasse,
como
aos
sábados
à
tarde,
não
se
caracterizando como aula, e sim, como mais um momento de
socialização, através da capoeira.
Fora da EPA, os alunos participavam de eventos, tocando ou
dançando ao ar livre em parques centrais da cidade. Participei de
uma apresentação na Febem feminina, quando os alunos da EPA
foram convidados para animar o baile de carnaval das garotas
internas daquela instituição. Houve o concurso "Rainha do Carnaval,
1999", o que animou sobremaneira os garotos. Sentiam-se bem
importantes tocando entre a apresentação e o desfile de cada
candidata. Depois do concurso, tocaram para as pessoas dançarem, e
também o Sabedoria de Rua se apresentou. Era visível, naquela
tarde, na Febem, o bem-estar decorrente daquele momento, não só
pelas sessenta meninas presentes, com as quais dançaram e
cortejaram, mas também pelos vários adolescentes e jovens do sexo
masculino, cerca de cinqüenta, que foram convidados para o baile,
vindos de outras instituições assistenciais, de cidades próximas de
Porto Alegre.
Outro exemplo da euforia dos alunos perante "cidadãos
incluídos" deu-se após a apresentação do Sabedoria de Rua, quando
os apresentei, um a um, dizendo seus nomes:
104
Hoje Délcio não dançou para os músicos adolescentes
visitantes, pois foi pisado por um brigadiano. Ele, então,
ficou de Dj e, no final, orgulhosamente, disse: "Esse é o
grupo de rap Sabedoria de Rua", ao que os visitantes
aplaudiram muito e assoviaram. Nesse momento, junteime a eles no centro do galpão e contei para o pessoal da
outra escola que eles iriam se apresentar à tarde, na
Assembléia Legislativa, e apresentei-os individualmente,
dizendo seus nomes. Vários iam falando seus nomes
antes de mim, de medo que eu pudesse não falar.
Estavam saltitantes e eufóricos na minha volta, no centro
do galpão curtindo serem admirados na "sua casa", por
outros músicos, adolescentes e, do "lado de lá". Parece
visível o "inchar" do ego, embora ele já venha machucado,
sem muita certeza de onde vai dar, pra que vai servir...o
que vai mudar por causa disso.
(Caderno de Campo, 19.8.1999)
A música como uma possibilidade de inclusão tem efeitos
diretos em aspectos da identidade das crianças e adolescentes em
situação de rua, pois vivenciar a música estando em contato com
pessoas "do lado de cá" se configura em uma circunstância
potencialmente identitária. Nessa direção, serão interpretadas a
seguir algumas vivências dos alunos da EPA que ilustram essa
questão.
105
3.4 A música e a identidade das crianças e adolescentes em
situação de rua
Nas observações realizadas nesta investigação e no convívio
com os alunos da EPA, pude verificar em momentos diversos a
participação da música em três aspectos relevantes sobre os quais é
construída sua identidade: a) na frustração da privação de sua
infância (CRAIDY, 1998), b)no estigma, e c)na necessidade do grupo.
a) A privação da infância
Para CRAIDY (1998), a privação da infância ocorre pela
"antecipação das responsabilidades adultas e pela supressão do
tempo de fazer de conta, tempo de poder ser 'irresponsavelmente' um
experimentador de papéis sociais" (p. 64).
Nas brincadeiras da infância, a representação e o jogo com os
papéis sociais possibilitam "o reconhecimento de si mesmo e do outro,
[pois] é um processo de simbolização e de significação em que o outro,
enquanto
referência
adulta
(em
particular,
os
pais
ou
seus
substitutos), e o outro, enquanto igual (outra criança de idade
próxima), desempenham papel decisivo" (CRAIDY, 1998, p. 63-64). No
entanto, no caso das crianças e adolescentes em situação de rua, elas
têm o seu "momento de simbolizar, por excelência, [...] substituído
106
pela necessidade de assumir a realidade na sua expressão mais
dramática e opressora" (CRAIDY, 1998, p. 64).
Na
convivência
com
os
alunos
da
EPA
pude
observar
comportamentos decorrentes da privação da infância, através da
adultização precoce em alguns momentos, contrastando com a
infantilização em outros. CRAIDY (1998) presenciou em seu trabalho
junto a crianças e adolescentes em situação de rua "meninas de doze
a dezesseis anos - prostitutas e, algumas, até mães - que brincavam
de boneca e de 'casinha', como se fossem crianças de sete ou oito
anos, [e também] 'homens-meninos', às vezes infratores, a brincarem
com carrinhos como crianças pequenas" (p. 63).
A privação da infância parecia levar alguns adolescentes da
EPA, de 15 a 20 anos, a permanecer na fase da infância. Convivi com
algumas crianças e adolescentes cujo corpo parecia atestar seu
desejo de não crescer, como a voz infantilizada de alguns e os olhos
de um garoto, Josué, que nunca se abriam totalmente, parecendo
"não querer ver a realidade", como colocou uma professora da EPA.
Porém, chamava-me mais a atenção a maneira como alguns alunos
"aproveitavam" a música para "fazer de conta" e experimentar "papéis
sociais".
Délcio, 20 anos, por exemplo, na maioria das vezes em que
tocavam os instrumentos de percussão, fazia de conta que era o
regente do grupo; Francisco, 18 anos, não perdia a oportunidade de
107
sambar "brincando" de passista de escola-de-samba, quando se
reuniam para tocar, ou quando um samba tocava no rádio; Dino, 14
anos, numa ocasião, ficou "fazendo de conta" que era "Pai de Santo" o mestre de uma cerimônia afro-religiosa - dançando e vestido como
tal por cerca de duas horas, em uma festa.
A música também parecia "permitir-lhes" comportarem-se
como criança, pelos trejeitos, caretas e movimentos não habituais
com o corpo, quando estavam em grupo tocando os instrumentos de
percussão. A primeira reação dos garotos quando iam pegar esses
instrumentos na sala onde são guardados era de uma alegria de
quem tinha um brinquedo na mão e, como tal, o manuseava,
aleatoriamente, sem se preocupar com o som produzido, "brincando"
de tocar.
Numa ocasião, chamou-me a atenção que Alex, embora nunca
houvesse tocado cavaquinho,
fixou uma posição com os dedos da
mão esquerda nas cordas desse instrumento e "tocou" várias
músicas, por aproximadamente uma hora. Era uma festa de final de
ano no pátio da EPA e, de pé, numa grande roda onde alunos,
professores e funcionários tocavam algum instrumento e cantavam,
ele pôde fazer de conta que tocava, e assim participou integralmente
da dinâmica daquele momento musical.
108
b) O estigma
Especificamente sobre o estigma, GRACIANI (1997) escreve:
As crianças, adolescentes e jovens de e na rua são
categoricamente estigmatizados, desde o seu nascimento,
pelo
processo
de
exclusão,
sempre
considerados
'anormais', delinqüentes em potencial, devido ao modo
como vivem e ao espaço que ocupam, e não pelo delito
concreto cometido. O estigma [...] é um julgamento
categórico de antemão. O estigma do menor está
determinado não por causa da sua personalidade ou
capacidade, mas porque é pobre e porque é chamado
"menor". Assim, eles se colocam sempre em defesa e
justificação,
assumindo
reforçando
normas
uma
identidade
estereotípicas
da
de
rua,
sociedade
(GRACIANI, 1997, p. 145).
Uma conversa com Tadeu, 21 anos, num final de tarde de
dezembro, reflete a imagem que acredita ter para as outras pessoas, e
que de fato parece ter:
T- É, mais é pocos que confia em mim... pelo que eu já fui
né...é difícil alguém confiá [...] eu quando robava eu não
passava nem na frente de um bar porque os outros
espiavam...as pessoas na rua! Me olhavam e saíam de
perto de mim! Às vezes me olhavam e saíam pro outro
lado da rua, com medo! A minha cara não ajuda
tamém...!!
V- Eu não acho, não tem nada a ver!! [a dona do bar
entrega os talheres pra mim]
109
T- É, mais muita gente já me disse que eu tenho uma
cara de...ladrãozinho.
Era visível o incômodo que causávamos à senhora que
estava atendendo no bar. Ao mesmo tempo que eu dizia
ao garoto "não, não tem nada a ver", a senhora entregou
para mim os talheres que eu havia pedido para o Tadeu.
Era ele que estava comendo, eu não estava. Durante todo
tempo em que estivemos ali, e ficamos uma hora e meia
conversando, ela não dirigiu o olhar sequer a ele nem por
uma vez. Tadeu é de cor preta e está muito magro. Ser
magro, tradicionalmente, é sinal de não ter o que comer,
ou seja, ser pobre. Pobre e preto é vagabundo, e
vagabundo e bandido não tem diferença. É soropositivo e
por isso já esteve internado no hospital por duas vezes,
por vários meses em cada período, sendo que na última
esteve com tuberculose. Segundo o garoto, a doença o fez
"largar dessa vida" e incluir nos seus planos o de viver
com sua filha de três anos: "só o que eu quero é tê minha
casinha e cuidá da minha filha". O esforço que está
fazendo para levar adiante seu desejo de mudança parece
exigir de Tadeu um outro esforço, que é o de conviver
com uma imagem que as pessoas têm dele, segundo ele,
e que não quer mais
para si. Concretizar o desejo de
morar em algum lugar e mudar sua imagem perante os
outros são duas coisas que parecem igualmente grandes
e difíceis de realizar. Tínhamos que ir para a EPA, pois
Tadeu tinha aula. Enquanto saíamos comentei sobre o
incômodo e o comportamento da senhora do bar, ao que
Tadeu respondeu: "Ahã!..." sem se surpreender;
quem diz: "isso é normal".
(Caderno de Campo, 17.12.1999)
como
110
A
proximidade
na
convivência
com
os
alunos
da
EPA
possibilitou-me verificar a forma como vai se sedimentando o estigma
em suas personalidades, através de fatos no cotidiano da escola, ou
ocorridos fora da EPA. Era possível, por exemplo, presenciar relatos
de agressões de policiais e ver, no corpo agredido, a marca da
violência e da discriminação e, também, perceber as sutilezas que
revelavam como suas subjetividades refletem sem cessar as marcas
psicológicas do estigma. E não havia indicações de reversão desse
quadro, por mais que, durante o dia, dentro da EPA, eles
desfrutassem e fossem alvo de uma ação educativo-pedagógica que
visa à auto-estima, à autonomia e ao desenvolvimento integral, enfim,
dos alunos, pretendendo sua desrualização19.
Existem muitos alunos que têm uma forte identificação com
cantores e músicos divulgados na mídia, admirados por sua origem
pobre, e há, principalmente entre os que têm uma vivência musical
intensa, a esperança de que sua realidade poderá mudar, como
aconteceu com alguns dos artistas que conhecem. No trecho de
entrevista que segue, está explicitada essa visão, nas palavras de Kel
e Cristian, ambos do Sabedoria de Rua, quando falavam que queriam
ser famosos e ganhar muito dinheiro:
19 Termo utilizado pela Pedagogia Social de Rua para referir-se a um de seus
objetivos: o restabelecimento de laços entre a criança e a escola e/ou a família,
através da abordagem lúdico-pedagógica na rua (GRACIANI, 1997).
111
C- Claro!! Que nem ...olha Pepe...Pepe e Nenem era tri
pobre pra caralho, né!!
K- Claudinho e Buchecha tamém...!!
C- Então...então tu vê que elas era...elas, elas nasceram
no Rio de Janeiro, né?
V- Foi. Na favela.
K- Como Claudinho e Buchecha! Claudinho e Buchecha
também.
C- Eram tri pobre pra caralho!!! Aquelas ropa mendinga
das nega ffed (ele diria "fedida", mas olha pra Kel e não
continua, porque ela é preta) aí... foi estudando,
estudando, estudando aí feiz...aula de ...inglêis, né?
agora já tá aí cantando (põe a mão na boca como se
estivesse de microfone e ginga)
C- Não! Bá!!, e som, né?!!! (ginga com o corpo querendo
dizer que elas têm o maior swing) foram crescendo,
crescendo (vai levantando os braços e as mãos em toda
sua extensão) agora tão aí, ganhando bastante dinheiro!
É, Claudinho e Buchecha trabalhava em obra... era
servente quando era pequeno. Era servente. (fica sério e
fala num tom de profunda admiração pela trajetória dos
músicos).
(Entrevista, 11.9.1999)
O envolvimento com a música propicia que se exponham mais
à vontade, pois vêem assim a possibilidade de serem vistos como
pessoas comuns, não violentas, que têm saberes e capacidade de
fazer música, e se apresentar, como falou Rogério na entrevista:
R-Claro! Se apresentá...Pras pessoa ficá conhecendo nós
melhor...só porque eu sou menino de rua mas eu não
112
sou... isso que eles pensam...que menino de rua é
malvado, chinelo, que robam deles, eu não, eu sô
diferente! Eu prefiro mais é cuidar meus carrinho lá, não
tá me humilhando do que tá robando deles. Depois ainda
vá que eu caio lá dentro lá [prisão], já sô de maior, né!
(Entrevista, 30.9.1999)
Os alunos da EPA manifestaram também o desejo de divulgar o
nome da escola e de que seja reconhecida através do grupo de rap, o
Sabedoria de Rua. Seu carinho e reconhecimento pela escola se
expressa através das palavras de Tomaz, 18 anos:
Queria que o colégio fosse bem famoso, que todos lugar
conhecesse a EPA! Por isso que tem que trabalhá, ensaiá
bastante. Já tem até, tem uns lugar aí que já conhece
nóis, que já falam 'Ah! Tu é daquele colégio, tal, que tem
o grupo de rap...!' Falam já, mas tem que sê mais
conhecido.
(Entrevista, 27.9.1999)
c) A necessidade do grupo
Relevante
na
construção
da
identidade
das
crianças
e
adolescentes que freqüentam a EPA, a necessidade do grupo e a
conseqüente submissão à ele derivam da busca por segurança e
companhia.
Nessa
relação
com
o
grupo
acontecem
trocas
e
barganhas em que a criança e o adolescente se sujeitam a
atrocidades e todo tipo de exploração, para evitar a solidão, o medo e
113
a fome. (CRAIDY, 1998; GRACIANI, 1997). Assim, essa criança e esse
adolescente vão assimilando os valores, a linguagem, o visual, as
regras
e
a
dinâmica
do
grupo,
em
detrimento
de
suas
individualidades, levando suas personalidades individuais a serem
"absorvidas
simbioticamente
pela
personalidade
do
grupo"
(GRACIANI, 1997, p. 229).
É nesse ambiente, no seu grupo de pertinência, que a criança
ou o adolescente em situação de rua "poderá refazer relações do tipo
primário, nas quais projeta suas necessidades afetivas e expressa sua
capacidade de solidariedade. Entretanto, muitas das formas desta
última não serão mais que 'obediência às regras do jogo' com mais
conteúdo de submissão que de afeto ou convicção" (GRACIANI, 1997,
p. 116-117).
Existe um conflito, portanto, que os acompanha e que eles têm
de administrar de alguma forma: ao mesmo tempo que existe a
necessidade de coesão interna no grupo e, portanto, de fidelidade à
identidade do grupo, há o desejo de não ser identificado como "de
rua" perante a sociedade que o exclui. Um exemplo desse conflito
aconteceu na Assembléia Legislativa do Estado, por ocasião de uma
audiência pública com a Comissão dos Direitos Humanos, para a
qual foram convidados os educandos da EPA. Foram lá para dar
depoimentos sobre suas condições de vida, condições essas que, na
ocasião, propiciaram a morte de um colega.
114
Enquanto aguardávamos no saguão o momento da audiência,
Júlio, 18 anos, ficou muito contrariado e quis se retirar, ao ver
chegando no recinto uma câmera de televisão de uma emissora
comercial, e disse: "Eu não quero aparecer na televisão sendo
chamado por 'menino de rua'". No entanto, aquela ocasião havia sido
criada exatamente para tratar sobre as questões que dizem respeito
"ao menino de rua", como não quer ser chamado, e ele próprio havia
sido escolhido na escola para ser o principal representante da EPA a
depor.
Nesse contexto de jogo de forças permanente entre identidade
de grupo e identidade individual, a música surge, também, como uma
possibilidade de diferenciações entre cada uma delas à medida que
propicia que individualmente a criança e o adolescente em situação
de rua se afirme.
FERNÁNDEZ (1999, p. 18) nos lembra do que ele julga
um
"aspecto importantíssimo da escrita, que a escola muitas vezes
esquece: o escritor - autor como leitor de si mesmo. Escrever como
inscrever-se, e ler como ler-se". O aspecto, em minha opinião,
correspondente na música - ouvir-se, ver-se e sentir-se - tem uma
contribuição relevante para quem está construindo sua identidade, e
ainda mais no caso de atrelamento do indivíduo à identidade de
grupo. No momento em que estão dançando ou tocando juntos, os
alunos têm possibilidade de, apesar do grupo, olharem para si
115
mesmo, buscar-se a si mesmo, relacionar-se consigo mesmo de
alguma forma, o que é raro, pois nunca andam sozinhos (GRACIANI,
1997).
Nas entrevistas podia perceber que realmente não estão
acostumados a estarem sem os amigos. Alguns pareciam sentir-se
desprotegidos. Porém, no decorrer da entrevista, passavam de um
certo desconforto inicial à vibração de ter uma atenção individual.
Neste trecho da entrevista com o Fernando, percebe-se sua satisfação
em olhar para si próprio:
Desligamos o gravador. Eu quis voltar um pouco a fita
pra ele ouvir um pedacinho e ele disse: "dexa voltá tudo!".
Ficou muito tempo em silêncio absoluto, ouvindo o
diálogo. Embora risse em alguns momentos, essa graça
que ele via percebo-a como um aspecto mais superficial
do que a totalidade daquela vivência pra ele. Essa
postura e o desejo de ficar ouvindo a entrevista, se
ouvindo
e
se
ouvindo
na
entrevista
(se
vendo)
manifestou-se em todos os entrevistados, embora uns
mais, outros menos. A meu ver, um fator de extrema
relevância é o fato de estarem só, de estarem em uma
atividade em que não estão expostos aos julgamentos do
grupo e livres de qualquer preocupação em corresponder
aos
padrões
da
identidade
do
grupo,
o
que
é
extremamente raro. O semblante do Fernando parecia
mostrar um certo êxtase pela raridade do momento, o de
olhar para si mesmo; estava muito próximo dele mesmo e
estava tendo uma chance, que parecia não querer perder
em nem uma palavra do que ouvia, de se admirar.
Quando ouviu o que fez com a boca [base de rap], voltou
116
quatro vezes a fita para esse ponto da entrevista. Ria e
me chamava, me avisava pra eu ouvir também. Então
perguntei se gostaria de gravar umas batidas com a boca,
e ele concordou prontamente. Gravamos as batidas e
também concordou em dançar um pouco de break na
frente da câmera, pra que "eu conhecesse" essa dança.
Deu, sora? Só? Tão vão escutá, agora...!
V- O que que tu qué escutá, de novo?!!
Que tu qué
escutá??
F- oooo.........
V- Já sei!! [olha pra mim pra ver se sei mesmo] O que tu
cantô!
F- É!
V- Tu acha importante, Fernando? O quê que tu sente
quando tu ouve?
F- Eu gosto de escutá, sora...
(Entrevista, 6.9.1999)
O contato das crianças e adolescentes em situação de rua com
a EPA, e também a vivência musical que eles possuíam naquele
espaço escolar, parecia poupá-los de uma "progressiva encapsulação
dos grupos incluídos em seus próprios nichos culturais, assim como
a perspectiva de alguns indivíduos inseridos em seus respectivos
grupos"
(GIMENO
identidades
SACRISTÁN,
individuais
mais
1999,
valorizadas
p.
178),
que,
por
viabilizando
sua
vez,
administram com mais autonomia as relações com seus respectivos
grupos.
117
Isso ocorria à medida que os alunos tinham contato com outras
crianças e adolescentes de outras instituições e, também com
adultos, através de atividades envolvendo as diversas áreas do
conhecimento. Esse contato podia ocorrer através da música, quando
se apresentavam fora da EPA ou recebiam outros grupos em seu
espaço escolar.
As identidades individuais e a identidade de grupo parecem ter
na roda de rap um exercício de acomodação e desenvolvimento. A
satisfação
de
dançar
em
grupo,
o
que
o
rap
proporciona
sobremaneira, aumentava proporcionalmente ao encontro de cada
um com sua própria identidade, construída no seio do grupo. O aluno
vê-se dançando, individualmente, ao mesmo tempo que vê o grupo.
O dançar junto parecia reafirmar tanto a identidade individual,
garantindo o espaço de cada um dentro do grupo, quanto a
identidade do grupo. Poderia se fazer uma analogia com os dois
momentos da roda de rap, que tem o momento de se mostrar
individualmente, no centro do círculo, sendo observado por todos e
identificado pelas habilidades individuais expostas, onde todos "tem a
vez"; e o momento de fazer tudo igual a todos, em que a força, o
impacto e a glória são maiores quando tudo acontece rigidamente
igual e junto (CONTADOR e FERREIRA, 1997).
Os alunos da EPA pareciam encontrar uma coesão na prática
do rap, uma vez que, como grupo, se reconhecem como mais um
118
integrante de um movimento social urbano, denominado hip hop,
onde vêem o "discurso do 'gueto' sendo reconhecido e admirado pelos
meios
de
comunicação,
principalmente,
pela
pela
escola
juventude
(com
da
exceções)
classe
e
pela
média
e,
pesquisa
acadêmica" (ANDRADE, 1999b, p. 9). Experimentam o sentimento de
legitimação na sua vida de exclusões, trazida por um discurso que
"foi capaz de reivindicar direitos sociais, apontar dificuldades da vida
na pobreza, condenar as práticas de discriminação étnica e,
principalmente, arrebatar a 'massa' - esse foi e continua sendo o
maior mérito da mobilização dos hip hoppers" (ANDRADE, 1999b,
p.9).
A questão étnica entre os alunos da EPA era um fator relevante
na sua identificação com o rap, uma vez que a grande maioria das
crianças e adolescentes que freqüentavam essa escola era de origem
negra20. O rap propiciava, portanto, momentos onde a auto-estima
individual crescia, também, em função da autovalorização do grupo
como etnia, pois identificavam-se com as origens do movimento hip
hop. Na opinião de
ANDRADE (1999a), "o baile para o jovem negro é
um espaço fundamental de afirmação da sua identidade, mais do que
um simples espaço de sociabilidade juvenil - não é o simples fato de
estar com seus iguais em idade, mas sim o de estar com os seus
20 Os alunos tinham consciência da discriminação étnica, além desse tema
ser enfaticamente contemplado nas reflexões pedagógicas em aula.
119
iguais em etnia, que vivenciam no seu cotidiano as mesmas
dificuldades econômicas e sociais" (p. 87-88).
A roda de rap constitui-se num desafio à auto-afirmação, à
medida que as crianças e adolescentes em situação de rua
necessitam buscar elementos que venham compor uma auto-imagem
que se estabeleça também no seio do grupo. Tradicionalmente, entre
grupos de rap que competem, os rappers buscam estabelecer-se e
mostrar liderança através do máximo de eficiência possível nas
acrobacias que mostram individualmente no centro da roda, com o
objetivo de superar os outros dançarinos presentes na roda
(CONTADOR e FERREIRA, 1997). Segundo esses autores,
A entrada de um breakdancer para o centro do círculo
anuncia o despique, que consiste literalmente em
mostrar aos restantes num curto espaço de tempo - entre
dez a quinze segundos - que a sua atuação é a mais
electrizante e em maior sintonia com a música. O
processo de entrada, também, segue o seu ritual,
desenvolvido através da deambulação do dançarino com
passos parecendo hesitantes, até o ponto central do
círculo
improvisado,
até
que
o
ritmo
esteja
verdadeiramente em fusão com o processo de quebra do
seu corpo. Num ápice, ele está no chão a efetuar
consecutivamente várias figuras físicas estilizadas, todas
configuradas e catalogadas intra-comunitariamente, sem
conceder ao público restrito de breakdancers, que lhe
delimitam a pista, a hipótese de respirar entre cada
movimento. (CONTADOR e FERREIRA, 1997, p. 44-45).
Foto: Vânia Müller
120
Foto: Aline Gonçalves
A música e a identidade individual.
A música e a identidade de grupo.
Foto: Aline Gonçalves
121
Foto: Aline Gonçalves
A roda de rap propicia o momento de se expor individualmente,
...e o momento de fortalecer a coesão do grupo.
122
Embora não houvesse essa competição entre os alunos da EPA,
pois todos se sabem nas mesmas condições de total dificuldade e por
isso são extremamente solidários, os alunos da EPA tinham uma
forte admiração do vigor, da velocidade, da esperteza e da consciência
sóciopolítica dos "manos", que são "fera" do rap, e por isso têm poder
de chamar a atenção e de fazer sua palavra ser ouvida.
Uma demonstração disso ocorreu quando Lucas declarou o
prazer de ter se apresentado com o Sabedoria de Rua, no mesmo
evento
em que participou o grupo de rap da cidade o qual mais
admira, em uma praça central da cidade. Ele comentou:
"Bá, aqueles cara são tri a fu21, mesmo! Já assisti eles
seis veiz, já, se apresentá! Em seis lugar diferente. Bá,
eles fazem tudo, tudo certinho!! Todos os passo. Dão
mortal, giram com a cabeça, tudo.[...] O cara falô que o
vício dele era a música e a arma dele era o microfone, o
cara tava cantando...Ele falô também que não prefere
fumar um baseado; ele prefere pegá um caderno, um
lápis na mão e escrever o seu passado, o passado dele.
(Entrevista, 10.9.1999)
Era na palavra que estava sendo ouvida pela sociedade, através
da voz dos "manos", que as crianças e os adolescentes da EPA viamse representados, considerando-se legitimamente integrantes do
21
máximo".
"Tri a fu" é uma expressão portoalegrense, que significa "bom demais" "o
123
movimento hip hop. Talvez em primeiro lugar, porque o espaço
originário deste movimento, ainda nos guetos de população negra nos
Estados Unidos, na década de 70, foi a rua (ANDRADE, 1999a). Os
alunos tinham conhecimento disso e, por isso, esse movimento lhes
dizia respeito.
Os aspectos abordados acima como relevantes na construção
da identidade das crianças e adolescentes em situação de rua, quais
sejam, a privação da infância, o estigma e a necessidade do grupo
caracterizam, portanto, aspectos fundamentais de sua personalidade.
Revela-se aqui um sentido que a música adquire em meio às
crianças e adolescentes que participaram dessa investigação, pois
que no momento das atividades musicais dos alunos, podiam
minimizar os efeitos dos aspectos identitários citados acima. Segundo
SMALL (1995), no momento em que estamos envolvidos de alguma
maneira com música, nos conectamos com aquilo que imaginamos
como ideal para nós, com a imagem ideal de nós mesmos e com a
imagem do que julgamos nossa relação ideal com o mundo e com as
outras pessoas.
SMALL (1998) acredita que a música nos dá poderes para
articular essas relações de "alto padrão" com as quais nos
conectamos no momento de uma performance musical. Segundo o
autor, a performance não se constitui em um momento de mero
124
divertimento, mas sim, nos ensina sobre o nosso lugar no mundo, na
relação com as pessoas e na natureza.
Portanto, tinha relevância a performance musical para as crianças e
adolescentes que observei e com as quais convivi, por constituir-se
em um momento em que tinham possibilidade de conectar com o que
havia de melhor em si mesmos, apesar da privação da infância e do
estigma; e também, tinham a possibilidade de conectar com um "alto
padrão" de relações que subvertia a ordem das relações estabelecidas
na necessidade e submissão ao grupo.
Esses elementos identitários estarão implícitos nas formas
como se relacionam com a música, também da perspectiva de seu
aspecto "vivencial", como será abordado no capítulo seguinte.
4 O ASPECTO "VIVENCIAL" DA MÚSICA
NA EPA
Este capítulo procura revelar os sentidos que os alunos da EPA
atribuíam à música, e as formas como se relacionavam com ela, a
partir do aspecto "vivencial" da música observado entre as crianças e
adolescentes em situação de rua que freqüentavam a escola.
O aspecto vivencial da música será abordado da perspectiva de
seu interesse pelas músicas que ouviam, cantavam e dançavam, e da
forma como a música se inseria na relação dos alunos com os demais
saberes que vivenciavam na escola.
4.1 "A música é, bem dizê, a vida da gente"
As letras das músicas pelas quais se interessava o grupo de
crianças e adolescentes que observei, retratam as condições e os
126
decorrentes riscos com que vão sobrevivendo, dia após dia, expostos
que estão a toda ordem de violência.
Para GRACIANI (1997),
Hoje, a criança e o adolescente e o jovem de e na rua
representam, ante o todo, uma das categorias mais
graves quanto ao grau de pobreza, de miséria, de fome,
nudez, insalubridade, abandono, desproteção política,
ignorância
e
muitas
outras
circunstâncias
que
o
caracterizam como um protótipo de agressão social,
marcado
pelo
sofrimento,
pela
privação
e
pela
expropriação de direitos. É todo um complexo de
violência destrutiva em que os menores transcorrem sua
existência, em uma luta titânica pela sobrevivência e
subsistência no espaço urbano das cidades (GRACIANI,
1997, p. 110).
Embora seja um grupo socialmente distinto de grupos de
adolescentes infratores e gangues nas razões pelas quais se agrupam,
na organização e identidade do grupo, assim como na sua
intencionalidade (CRAIDY, 1998; 1999), as crianças e adolescentes
em situação de rua vêem sua situação de vida refletida nas letras das
músicas.
No grupo observado, essas letras chegavam através do rap, pela
palavra dos "Manos",
de quem muito se orgulhavam e com quem
havia uma forte identificação, uma vez que os autores das músicas
que faziam sucesso entre eles já viveram em condições similares de
violência e discriminação.
127
No trecho de uma entrevista que se segue, realizada com
Fernando, 20 anos, era visível a presença da violência na sua vida,
em uma dimensão que parece perder o limite entre a violência e a
própria vida:
V- Sobre o que as letras falam, principalmente?
F- Sobre do rap. Comé que foi feito o rap, comé que é a
violência...
V- Ahã...tu acha que o rap fala nas letras sobre como é a
vida de vocês?
F- É a vida e a violência. [....] e a violência. Por isso que
tem aquela... do Naldinho: [ele canta] "violência não tá
com nada/ se liga rapaziada/ não é engraçado/ o povo
morrê nessa cidade..."
(Entrevista, 9.9.1999)
Quando Fernando disse que "é a vida e a violência", sugeria
que a violência é uma entidade da dimensão da vida, ao mesmo
tempo que parece entender que a vida só é vida sem violência; as
duas não cabem no mesmo tempo-espaço. Já na visão de Lucas, a
música retratava exatamente a realidade da vida, como declarou
neste trecho de entrevista, após uma apresentação de grupos de rap,
no centro da cidade:
V- Tu sabe dizê por que que tu gosta de música?
L- Ah, que é tri o que eles falam! Eles falam que que é a
vida!!
V- Ah, por causa da letra, então da música...!
128
L- É, que nem lá na apresentação, os cara tavam falando
dos amigo deles que morreram...trêis amigo deles!
(Entrevista, 10.9.1999)
O grupo de rap que os alunos da EPA mais apreciavam era os
Racionais, seguido do Pavilhão 9
cujos integrantes de ambos os
grupos são presidiários. A linguagem utilizada na construção das
letras traz os termos, as gírias, os códigos de comunicação usados
por quem sofre perseguição da polícia e discriminação social. Mas no
conceito dos alunos da EPA, "esperto e corajoso" eram adjetivos que
vinham ilustrados e traduzidos pela fala áspera e incisiva da voz
rouca e rápida dos vocalistas de rap, que os garotos por sua vez
reproduziam
muito
similarmente.
Parafraseando
os
Racionais,
GUIMARÃES (1999), diz que
'periferia é periferia em qualquer lugar', violência é
violência em qualquer periferia. Não por outro motivo, a
violência é uma presença constante nas letras de rap. Ela
é parte intrínseca do cotidiano vivenciado pelos jovens
que moram em qualquer periferia e, sendo o relato da
vida desses jovens, o rap incorpora essa violência em seu
discurso (GUIMARÃES, 1999, p. 41).
Os exemplos reais de violência que pude presenciar são
inúmeros, inclusive experiências discriminatórias nas quais me vi
envolvida, por estar com os alunos da EPA em lugares públicos.
Desde ver o ônibus não parar quando estávamos na parada de
ônibus, até passar uma tarde de domingo em uma delegacia de
129
polícia por estar conversando com eles na rua, o que para a polícia só
uma razão me levaria a isso: tráfico de drogas.
Selecionei apenas alguns trechos do caderno de campo por
julgar relevante ilustrar e trazer uma dimensão mais realista a essa
questão, a violência. Essa intenção se insere aqui com o propósito de,
através da fidelidade à fala das crianças e adolescentes observados
nesta investigação, interpretar o mais profundamente possível para
os limites da investigação qualitativa as vivências dos alunos da EPA.
Os trechos do caderno de campo são os que seguem e são,
respectivamente, de Laura, que está na T 2, 17 anos; Tadeu, está na
T 4, 21 anos; e Marcinha, 18 anos, está na T 3:
L- Meu pai trabalhava, aí bebia, ele recebia, daí bebia e
batia em
irmão...nóis
nóis de facão, na minha mãe e nos meus
saímo de casa; eu tô na rua desde os cinco
ano.
V- E hoje tu tá com quantos?
L- Com dezessete.
(Caderno de campo, 20.10.1999).
T- Os home pegavam e o pau pegava toda hora! Eu sou
intero assim por fora, mas por dentro eu tô cheio de...de
marquinhas...de apanhá de brigadiano!
(Entrevista, 17.12.1999)
130
M- E aí ficaram implicando com a gente, implicando, e
botaram fogo no caderno. Os brigadiano queimaram meu
caderno...!
(Caderno de campo, 17.8.1999)
Na criação de raps os alunos também retratavam sua
realidade, compondo letras a partir de fatos vividos, como me relatou
Tomaz, 18 anos: "Já fizemo um [rap] pra uma mina que morreu de
AIDS, de um amigo, ...tá escrito".
As
crianças
e
adolescentes
em
situação
de
rua
que
freqüentavam a EPA apreciavam também as músicas românticas,
satisfazendo-se sobremaneira ouvindo pagode. Dentre todos os
alunos da EPA com os quais convivi, conheci um, apenas, que dizia
não gostar de pagode. Neste trecho da entrevista com Rogério, ele
revelou sua visão sobre as letras das músicas, sobre a diferença entre
rap e pagode e sobre romantismo:
V- E tu gosta de música Rogério?
R- Adoro!!! [sorri muito] Adoro!!
V- Tu saberia me dizer por que que tu gosta de música?
Já pensou nisso?
R- Já, já, já...!![sorri] Eu assim, ó, eu gosto de música
porque as música... falam umas palavra que às veiz é
realidade! Quem busca a realidade, sabe? Como as
música de rap, que eles falam sobre os menino de rua,
que morrem de fome de frio, isso aí é, a maioria é
verdade! Né, então por isso que eu gosto de música
porque... ela transmite... as palavra certa. As palavra
131
certa, não transmite as palavra que às veiz são mentira!
É as verdade! Que...transmite a verdade! As palavra que
eles cantam, pá! [...] Mas de pagode eu gosto bem dizê de
todos! Pagode é o que eu mais adoro tamém. Que eu
gosto tamém.
[...]
V- Qual a diferença das letras do rap pras letras do
pagode?
R- A diferença é que às veiz o pagode fala...mais é...comé
que é...coisas que...que acontece na vida deles, né! É
como assim...a letra deles conta mais da vida deles, fala
da mulher deles...né, os amigo deles, o pagode. Mais o
rap não, o rap já é fala mais é da gente, dos menino, das
pessoa que sofrem...as pessoa que são humilhado, as
pessoa que...são morta.
V- Ahã...
R- Né...! não fala muito deles. Eles falam mais é das
pessoa que, que morrem, né, aí transmite mais é o que, o
que as pessoas são mesmo na realidade! O pagode não, o
pagode já fala deles, já fala da música deles mais, deles
mesmo. Por isso que eu acho diferença. [...] Por causa do
embalo, né sôra! [sorri] Por causa tamém que...a gente, a
gente dança com as, com as mulher, né sôra! Ah! E...
[fica encabulado] e eu sô carinhoso, né sôra, não é, tá
ligado, não vô te menti! Fico até envergonhado de
falá...mas eu quando danço...eu..., eu fico até um pouco
encabulado, sabe, pra dançá.
(Entrevista, 30.9.1999)
Rogério fez em parceria com outro garoto, Josué, 18 anos, um
rap de "letra romântica" a partir de uma experiência de ambos. Esse
132
rap foi um dos que mais ouvi durante o trabalho de campo, pois
todos os alunos o sabiam cantar, e faziam questão de apresentá-lo
sempre que viam
oportunidade pra isso. Rogério preocupou-se,
inicialmente, em explicar-me a situação real de onde surgiu o rap,
como segue:
R- É uma bem assim, ó, que é duma guria, né, que uma
guria que nóis encontremo na frente dum som, né, é...
que nóis fiquemo com as duas guria, daí nóis cantemo
essas duas música pra elas, sabe?!
V- Isso é verdade?
R- É! É! Verdade!! É verdade mesmo!! Foi lá na Restinga,
lá!
V- Aí depois, no outro dia vocês...
R- É, daí só que notro dia nóis fumo lá daí né, aí só que
elas falaram que não queriam mais ficá com nóis, daí
nóis começamo a cantar uma música pra elas daí...aí
cantamo bem assim, ó:
"Minha gatinha eu vim aqui pra ti falá/que eu te quero
tanto meu desejo é te amá/desde quando eu conheci eu
gosto muito de você/e hoje o que mais quero é viver sem
te esquecer/te dar amor/ e atenção/ e mesmo na
distância te carregar no coração/sonhar com você já
virou rotina/ sonho mesmo acordado com esse sonho de
menina/ que me satisfaiz/e me traiz a paiz / amores
passados para mim não valem mais/
:/O que eu quero é viver/ o presente com você/ te beijar
te amar até o dia amanhecer :/ [Refrão]
Se o que eu vivo eu sei/um dia pode acabar/ eu só lhe
peço não me chame que eu não quero acordar/ esse
133
sonho tão lindo/ que me satisfaiz/amores passados para
mim não valem mais/..."
e aí repete de novo aquela parte... [o refrão].
(Entrevista, 30.9.1999)
4.2 "Se eu penso sobre música? Como assim?"
Ao tentar refletir com as crianças e adolescentes a respeito de
seu gostar de música, ouvia respostas que remetiam à lembrança de
uma música específica do repertório que conheciam, ou um gênero de
música particular. Para ilustrar essa situação, segue um trecho do
diálogo que tive com Dino, 14 anos:
V- Tu gosta de música, Dino?
D- Gosto!
V- Tu saberia dizer por que? Será que dá pra explicá
isso?
D- Pagode! ... O nome dos pagode?
V- Não...queria...qualquer música. Por que tu gosta de
música?
D- Pagode do Dorinho, Gerasamba, a música do
Salgadinho aquela, aquela... o Tchan da Selva, e rap.
(Entrevista, 1º.12.1999)
134
Havia um tipo de resposta entre alguns alunos que vinha em
forma de outra pergunta: "Como assim?", evidenciando que música,
para eles, é algo que se faz e não que se pensa sobre. E mesmo
quando se pensa, será uma abordagem vivencial, vale dizer, terá
relação direta com sua vida prática, como revela Carmen, 18 anos, no
trecho de sua entrevista que segue:
V- Tem algum momento, Carmen, que tu pensa sobre
música?
C- Como assim?
V- É... de ficar pensando como a música funciona, como
que ela é construída?
C- Ah! A música é feita de...ca [com a] mente da gente,
né, e, e assim, dá pra formá uma música...falando sobre
a nossa vida, que nem o rap, o rap ele já, ele já fala
sobre, sobre nóis mesmo, o que acontece no dia-a-dia
com a gente.
(Entrevista, 17.9.1999)
Quando alguns alunos manifestaram curiosidade em "saber"
algo sobre música, o interesse também estava relacionado com temas
de seu cotidiano revelados na letra das músicas. No trecho da
entrevista a seguir, Kell, que gosta muito de reggae, parece ter
curiosidade em saber alternativas para lidar com a questão das
drogas.
V- Por que que tu gosta de reggae, que que tu acha que
ele tem de diferente?
135
K- É porque fala sobre a vida da pessoa também o
reggae, né, como é que a pessoa foi... no passado! Como
ela usava drogas, por que ela usava drogas, como aquele
cantor Bob Marley também... que tá falando né, sobre as
drogas... e tal!
V- Ahã... ou seja, tu gostaria de saber mais sobre a
história do reggae.
K- É!!
V- Né, como é que a música surgiu e como é que ela
evoluiu... mas o que mais te chama atenção no reggae, o
ritmo, no som, na música mesmo, o que que tu gosta, do
embalo...que que te chama a atenção...?
K- Ahh... me chama a atenção é um pouco de...acho que
é um pouco de tristeza, né...?
V- Tu acha o reggae um pouco triste?
K- Claro! Porque aí tem os cara que cantam reggae
querem pará com as droga e não conseguem né... Como
aquele Bob Marley tamém, Bob Marley... ah, o reggae é
um pouco triste daí.
V- Ahã...
K- É triste reggae [fala muito baixinho].
(Entrevista, 11.9.1999)
No caso de Fernando, a música se inseria na sua vida como
mais um elemento integrante de seu cotidiano, e não era usual
pensar sobre música. Ele disse que ouvia música para pensar em
outra coisa.
136
V- O que a música faz tu sentir, Fernando?
F- Bááá!! Quando o cara briga assim com a... namorada,
aí dá aquelas música lenta, pagode lento... Bá, e aí a
gente... bá! Fica se lembrando!...
V- Dela?
F- Ahã!!
V- E tu acha que a música ajuda a...
F- Ajuda...!!
V- E aí tu... te entristece?
F- Bá, eu, eu... eu às veiz quando eu tô em casa, assim...
eu bá eu pego o meu rádio que eu comprei, de CD, e boto
na área e fico sentado ali... aí eu boto música e fico
escutando ali... eu boto nos horário de programa e fico
escutando a letra... uma jarra de suco do lado...!
V- Uma jarra de suco? De quê?
F- Ahã!! De, de laranja.
V- Laranja...!
F- Bem geladinho!
V- Tu que faz esse suco? [confirma com a cabeça,
sorrindo] É?!
F- Umaaa... [fala com muita preguiça] cartera de cigarro
do lado...! Nunca pode faltá...!
(Entrevista, 6.9.99)
137
4.3 Vivenciando a diversidade
Este subcapítulo pretende abordar as formas como a música se
inseria na vida das crianças e adolescentes em situação de rua que
freqüentavam a EPA e como a vivenciavam, da perspectiva de sua
relação com os demais saberes construídos na escola e de suas
relações interpessoais.
Como já mencionado no início do capítulo três, o grupo de
alunos que se configurou como núcleo de minhas observações foram
os que mostraram ter um contato direto e diário com música,
destacando-se em relação à maioria dos alunos da EPA em
participação e interesse pelas atividades musicais.
Embora esses alunos manifestassem grande interesse pela
música e tivessem uma atividade musical quase diária no espaço
escolar, quando interrogados sobre o que mais gostavam de fazer na
EPA, as respostas incluíam outras atividades, e raramente a música
aparecia em primeiro lugar em suas respostas.
Fernando era considerado pelos colegas como um dos alunos
que melhor executava os instrumentos de percussão. Era sempre
designado a tocar a caixa, pois ela exige maior velocidade e uma
habilidade mais específica que os outros instrumentos; era integrante
do Sabedoria de Rua, dançava no samba de roda, jogava capoeira e
138
tocava todos os instrumentos que compõem a roda de capoeira. Ao
fazer-lhe a mesma pergunta "O que tu mais gostas aqui na EPA",
Fernando respondeu que era a "Oficina de Papel" e a "Padaria".
Fernando parecia não tomar a música como um objeto possível
de extrair do contexto geral de sua vida, para avaliá-la e mensurar
seu gosto por ela. Seria destacá-la da totalidade em que está inserida,
descaracterizando-a na função que tinha para esses alunos. As
observações levam-me a crer que a música estava inserida em suas
vidas por seu aspecto vivencial, e por isso envolviam-se inteiramente
com a música, e não de uma forma cognitiva e abstrata.
Houve
muitas
respostas
incluindo
outras
áreas
do
conhecimento como integrantes dos interesses dos alunos. No caso
de Lucas, que também era considerado pelos colegas como muito
habilidoso nos instrumentos de percussão e dança no grupo de rap
Sabedoria de Rua, em sua opinião sua habilidade estava em
desenhar. Durante a entrevista disse gostar muito de desenhar e que
poderia ser "estilista, que desenha esses troço aí de moda", sem
mencionar sua ligação com a música, ou, sua habilidade em tocar
instrumentos de percussão ou, ainda, em dançar. Disse sim, que o
que mais gostava na EPA era a horta.
A última pergunta da entrevista realizada com os alunos
supunha uma situação hipotética: "Como, ou em quê tu gastarias 50
reais com música?", ao que Lucas respondeu:
139
L- gastá com... rádio, essas coisa assim? Primeira coisa ia
lá comprava um tênis pra mim, uma bermuda, uma
camiseta, um boné, uma cueca, já tava legal... Daí,
comprava uma torta, dexava paga na padaria pra comê
em casa com meus irmão, no meu aniversário. Uma caixa
de refri e umas cerveja pra minha mãe,
pra ela e as
cumadre dela.
(Entrevista, 10.9.1999)
A fala de Lucas revela que a música não fazia parte daqueles
interesses que deviam ser buscados fora de si mesmo. Embora ele
confirmasse sobre a quê eu me referia, perguntando "gastá com...
rádio, essas coisa assim?", Lucas não mencionou sequer um objeto
musical na resposta à pergunta que lhe foi feita. No entanto, é muito
provável que teria música, de alguma forma, na comemoração de seu
aniversário, que imaginou com sua mãe e seus irmãos. O próprio
Lucas em entrevista relatou lembranças da infância em que a música
era bem freqüente em sua casa, como revela o diálogo a seguir:
L- Eu tocava com meu pai.
V- Sim, mas o quê?
L- Surdo.
V- E ele?
L- Ele tocava surdo tamém.
V- É mesmo?!
L- Meu pai toca tudo um poco.
V- Então é dali que tu é ligado em música...
140
L- É, eu aprendi com meu pai, que meu pai tocava com
os amigo dele, tinha os cumpadre dele, os amigo dele, tá
ligado? Os amigo de infância dele... tocavam aí...
V- Teu pai tocava esses instrumento de percussão,
assim...?
L- É, não ele tocava...
V- Ou tocava cavaquinho também, violão?
L- Não, os fim de semana, os fim de semana quando eles
iam assim... que nem a senhora, a senhora não tem
amigo da senhora que a senhora sempre vai, assim?
conversá assim? [me olha esperando uma resposta]
V- Às vezes...
L- Então! Ele tinha os amigo dele que ia lá, e fazia os
negócio dele né? Iam lá.
V- E já virava em música?
L- Aí quando via eles faziam churrasco... daí, enquanto
tavam arrumando o churrasco, ficavam tocando!
(Entrevista, 10.9.1999)
A grande maioria dos alunos tinha nas lembranças da infância
os fins-de-semana com música junto da família e amigos, em alguns
casos com churrasco e/ou futebol. Foi em rodas de samba ainda em
casa que muitos começaram a tocar e a dançar e vários afirmaram
que sua mãe "adora" dançar. A música tinha um caráter social à
medida que ela surgia em função das relações que as pessoas do seu
ambiente estabeleciam umas com as outras.
141
No diálogo citado, percebe-se que Lucas se empenhava para
que eu compreendesse a naturalidade de fazer música em um
encontro de dois ou mais amigos, quando tentou fazer-me entender a
relação de seu pai com o respectivo amigo, levando-me a imaginar o
desejo de estar com um amigo também.
Esses recortes de entrevistas revelam que os alunos traziam
consigo a percepção da música como um elemento intrínseco da sua
vida, pertencendo à uma totalidade vivencial, da qual não fazia parte
nenhuma formalidade com a música, e que suas atividades musicais
- entendidas aqui como o uso da música de maneira geral - estavam
vinculadas às suas relações pessoais.
Por sua vez, no tempo-espaço escolar os alunos conviviam com
as diversas áreas do conhecimento através de atividades educativopedagógicas,
que
visavam
a
"experiência
vivencial"
(GIMENO
SACRISTÁN, 1999; SMALL, 1989) com a referida diversidade de
saberes. A variedade de experiências promovia um autoconhecimento
maior à medida que o aluno potencializava o desenvolvimento de sua
identidade em relação à diversidade de conhecimentos e
materiais
com os quais vinha entrando em contato, o que, segundo uma
educadora da EPA, era "muito importante para as crianças e
adolescentes em situação de rua, cuja identidade chega na escola
gravemente abalada".
142
Por essa razão, era comum ver os alunos empenhando-se em
participar com a mesma intensidade e envolvimento em diferentes
atividades, devido à grande necessidade de auto-afirmação (GRACIANI,
1997), parecendo não querer perder nenhuma chance de se auto-afirmar
e de se realizar através de quaisquer atividades que surjissem na escola.
Além disso, era visível a compreensão que muitos alunos tinham
do desenvolvimento trazido para eles pelo contato com a diversidade de
materiais e linguagens. Régis, por exemplo, realizava-se muito nas
atividades da horta e também na aula de argila; seu sonho é um dia
trabalhar num circo, mas naquele momento dizia estar "apaixonado por
computador", e por isso ia à escola no seu turno inverso e passava horas
no laboratório de informática.
Ao mesmo tempo em que experienciavam uma diversidade de
saberes não hierarquizados, os alunos encontravam na EPA um
ambiente sem tendências à pré-concepções de valores diferenciados em
relação aos saberes que ocupavam o tempo-espaço escolar.
Isso levava os alunos espontaneamente às atividades propostas,
segundo seus próprios interesses. O resultado era que os professores
percebiam proximamente a natureza do envolvimento de seus alunos nas
diversas
atividades
identitariamente,
pedagógicas,
também,
àquilo
passando
em
que
se
a
relacioná-los
realizavam
mais
integralmente e/ou se destacavam. Por exemplo, o Toni do rádio, o Dario
e o Mauro da horta, o Hagar e o Mendez do papel reciclado, o Sandro da
argila, o Régis da informática. Vale ressaltar que causava muito orgulho
143
aos alunos ser identificado por sua "eficiência" em uma determinada
Os trabalhos em argila,
a capoeira...
Foto: Míriam Lemos
Foto: Vânia Müller
prática.
...e a leitura e a escrita
compõem, com a
música, a diversidade
de saberes não
hierarquizados.
Foto: Vânia Müller
Foto: Vânia Müller
144
145
As carências peculiares às crianças e adolescentes em situação
de rua impulsionavam-nas a ver de que forma seria útil o que lhes
estava sendo proposto, de forma a minimizar seu quadro geral de
necessidades. Assim,
vale ressaltar ainda a tendência dos alunos
nas conversas e entrevistas que tivemos, em direcionar o assunto em
alguns momentos para suas necessidades mais prementes. Exemplo
disso ocorreu na entrevista com Tomaz, quando conversávamos sobre
música, mais especificamente sobre a estrutura da música, tipos
diferentes de batidas de rap, seus timbres e ritmos e a importância da
letra nas músicas:
V- Tu acha então, que a letra da música é importante?
T- Tudo é importante: letra, música, base, a dança, mas é
importante ajudá as pessoas...Se eu tivesse condições eu
fazia isso aí. Muitos amigos meus já morreram de ficá na
rua... Queria construí uma casa...
acho muito legal
quem faz isso daí! [vibra e sorri].
(Entrevista, 29.9.1999)
Como se pode perceber no trecho da entrevista acima, Tomaz
pôs no mesmo plano de importância as coisas - como a música - e as
relações que tinham sentido para ele.
Com base no que foi exposto até aqui, pretendo argumentar
que, embora houvesse identificações ou preferências a determinadas
áreas do conhecimento e suas respectivas atividades educativopedagógicas, existia uma postura dos alunos que era anterior
ao
146
contato com essas atividades, que partia do princípio de que tudo
podia ser importante conhecer, mas nada era mais importante que
ele próprio, a criança, ou, o adolescente.
Esta postura surgia na escola com as crianças, que a
desenvolviam como alternativa de sobrevivência, pois o pensar em si
mesmo no mundo da rua é o mínimo para quem precisa se proteger
de tudo e de todos, todo o tempo (GRACIANI, 1997).
O esforço da prática educativo-pedagógica da EPA era no
sentido de transformar o pensar em si como prioridade para o aluno.
A música na EPA, embora não constasse na grade curricular junto às
outras áreas do conhecimento, integrava esse contexto de valorização
da
diversidade
possibilitava
o
de
saberes
como
autoconhecimento,
mais
o
uma
linguagem
desenvolvimento
que
e
a
expressividade dos alunos.
Como afirma uma educadora italiana entrevistada por RABITTI
(1999) "[...]quanto mais materiais se conhecem mais linguagens se
possuem[...]
e
possuir
mais
linguagens
significa
ter
mais
possibilidades de expressar-se" (p. 64). Era na intenção de ampliar as
possibilidades de materiais e de expressão, que a EPA favorecia aos
alunos as práticas musicais no tempo-espaço escolar.
Estas integravam e reforçavam a idéia
de um ambiente de
valorização da diversidade concomitante à isonomia de saberes, pois
147
que tinham por meta os processos de conhecimento desencadeados
no aluno e a autonomia desenvolvida em cada um para a apropriação
desse conhecimento; e não, os saberes objetivados e sacralizados
externamente a eles, como previa o conceito moderno de educação.
Nas palavras de GIMENO SACRISTÁN (1999), as promessas do legado
modernista para a educação foram vistas, muitas vezes,
como metas finais diante das quais é preciso sacrificar o
sujeito
que
aprende,
sem
considerar
os
êxitos
progressivos que podem ser desfrutados durante o
percurso; o valor dos fins justificaram, muitas vezes, a
utilização dos meios inadequados. Aqueles que não
alcançaram a meta final, muito afastada devido à
amplitude e à complexidade da cultura substantiva,
poderiam ver que seu percurso parcial por caminho tão
venerado carecia de sentido, e que os passos dados,
mesmo sendo poucos, podiam ser avaliados como um
fracasso (GIMENO SACRISTÁN, 1999, p. 163).
Compactuando com essa idéia, SMALL (1989) afirma que a
música sofreu, como as demais áreas do conhecimento, a mesma
objetivação da visão tecnicista industrial, desde quando a visão
científica do mundo se estabeleceu no Ocidente a partir do século XV,
deixando, assim, de cumprir seu objetivo primeiro que é "capacitarnos para viver no mundo, enquanto que o da ciência é capacitar-nos
para dominá-lo" (SMALL, 1989, 14).
Na opinião de SMALL (1989), a fragmentação do conhecimento
em disciplinas estanques e sem relação entre si trouxe uma
148
especialização crescente que segue avançando na direção do objeto
conhecido, e não nos processos do sujeito que conhece, visando ao
domínio do objeto conhecido, em oposição à experiência vivida pelo
sujeito no ato de conhecer. Na sociedade ocidental, os objetivos e os
métodos da ciência seguem sendo os mesmos até hoje (SMALL,
1989). Nas palavras desse autor, "a ciência como atividade, como
modo de pensamento, segue se ocupando do conhecimento objetivo e
não vivencial; sua meta segue sendo o total domínio da natureza, e
para consegui-lo segue tentando descobrir seus segredos, e seu
enfoque leva implícita a transformação do 'outro observado' em um
objeto" (SMALL, 1989, p, 76).
Assim, a música passou a ser vista como mais um objeto que
poderia
ser
dominado
pela
ciência
humana,
recebendo
um
tratamento como algo à parte da vida cotidiana, reservada a
momentos especiais (SMALL, 1989) e, portanto, exigindo formalidade
das pessoas na relação com a música, ocasionando a interceptação
da mesma como algo inerente à vida humana. Além disso, a
categorização dos conhecimentos musicais instituiu um status nos
saberes do mundo musical que vai desde as qualidades do som às
relações humanas dentro de uma orquestra, o que resulta, segundo
SMALL (1989), em uma vivência fragmentada e hierarquizada da
música.
149
As observações das formas como a música estava inserida no
cotidiano das crianças e adolescentes em situação de rua que
freqüentavam a EPA indicam que a qualidade de seu envolvimento
com música e a propriedade com que a vivenciavam, relacionava-se
ao seu não atrelamento aos padrões de status, de hierarquia, de
fragmentação do conhecimento e de formalidade na relação com ele,
da "sociedade instituída" (ANTUNES, 1997). Concomitante à isso, a
qualidade de seu envolvimento com a música devia-se ao contato
com a EPA que estimulava a agência dos alunos como sujeitos
críticos, através de saberes vivenciados e não hierarquizados inclusive
a
música
-
que
tem
na
diversidade
sua
complementariedade.
A seguir, serão expostos os sentidos que a música adquire em
meio às atividades dos alunos, reflexionados na perspectiva de
princípios construídos e elaborados a partir da vida na rua.
150
4.3.1 O "aqui e agora" por princípio
Na vida dos meninos de rua o passado é diluído e o
futuro não existe. Viver na rua é fundir-se no presente
(CRAIDY, 1998, p. 80).
O princípio do "aqui" e do "agora" quer dizer que qualquer hora
é hora de se fazer o que se tem vontade; que não se deve desperdiçar
a chance de poder fazer o que se quer no presente. Deixar para
depois não pode, porque o depois não existe. A concepção de tempo
que as crianças e adolescentes em situação de rua vão construindo é
no presente imediato e no improviso. Se nada no presente tem
garantia, é só instabilidade, por que o tempo que virá teria?
Nas palavras de CRAIDY,
Para os que vivem na rua, não há história, mas um
repetir-se crônico e circular da vida sem projeto, eterno
presente que implica a luta cotidiana pela sobrevivência.
Permanecer vivo, ter algum prazer, constituem o móvel
fundamental do existir. O amanhã não existe, a não ser
quando chegar na forma de hoje e trouxer suas
exigências. O passado é melhor omitir; é duro e perigoso
demais para ser lembrado (CRAIDY, 1998, p. 80).
O tempo medido pelo relógio não tem utilidade, e a vida flui
movida pelo tempo da fome, do sono, pela noite e pelo dia. Segundo
151
os professores da EPA, é comum as crianças e adolescentes
em
situação de rua não saberem, ou terem dificuldade em perceber e
dizer o tempo do relógio tal como o medimos. É interessante notar
que momentos significativos para os alunos eram lembrados, muitas
vezes, pelos vínculos pessoais que os ligavam aos fatos. Um exemplo
disso ocorreu quando perguntei nas entrevistas "Quando tu chegaste
na EPA?", e vários responderam "com quem" chegaram, sendo que
não estavam seguros há quanto tempo estavam na EPA, tampouco
em que ano chegaram. Por exemplo, quando perguntei ao Délcio:
V- Lembra quando foi que tu chegô aqui na EPA?
D- Vim eu, a Giselda, o Fernando [...]
(Entrevista, 10.9.1999)
Da mesma forma, ocorreu na entrevista de Lucas:
V- Tu lembra quando que tu chegô na EPA, Lucas?
L- Quando cheguei aqui? Tava eu e o Daniel [...]
(Entrevista, 9.9.1999)
Outra postura das crianças e adolescentes em situação de rua
em relação ao tempo é uma resistência em falar em planos para o
futuro; expressam uma falta de crédito total, a priori, nas palavras e
promessas que não se refiram ao "agora já", e no que é possível ver. O
trecho a seguir traz um exemplo de uma conversa na rua com um
menino que sempre encontrava razões para desviar o assunto
referente na ocasião à ele e seu futuro. Quando a pergunta vinha
152
conjugada no futuro é como se ele nem a ouvisse; não existia essa
conjugação para ele que, então, simplesmente deixava-me falando só
e se ocupava com as distrações da rua:
V- Tem um instrumento que tu goste mais, Dino?
D- Pandeiro.
V- E tem um outro que tu gostaria de aprendê?
D- Que barulho é esse??![pergunta virando a cabeça em
direção ao alto de um prédio]
V- não sei!...acho que é desse ar condicionado.
(Entrevista, 1º.12.1999)
Essa habilidade com que Dino, 14 anos, encerrou nossa
conversa improvisando outro foco de atenção que me fizesse pensar
em outra coisa ou, mudar de assunto, é um elemento que também
os caracterizava e do qual se orgulhavam: o improviso. A vida
improvisada
diariamente
desenvolve
a
esperteza
e
garante
a
sobrevida.
A sensação de correr o risco que tanto eles conheciam, de 'dar
um jeito' em determinada situação em tempo mínimo, de improvisar,
encontrava-se, também, como um dos prazeres em suas práticas
musicais. Essa sensação relatou-me Lucas, 15 anos, em entrevista
após uma apresentação do Sabedoria de Rua, da qual não estavam
sabendo. Foi no centro de Porto Alegre, ao ar livre, em um evento
oficial da Prefeitura Municipal que incluiu outros grupos de rap.
153
Lucas contou, emocionado, como foi acordado no mocó às 9h da
manhã, não acreditando no que dizia a colega que foi acordá-lo para
ir se apresentar, e por isso queria seguir dormindo. Segundo ele, o
melhor de tudo foi ter sido pegado de surpresa:
Ah, eu gostei porque o seguinte, né, eu gostei é que
pegaram nóis de improviso! Pode vê, essa semana não
ensaiemo nem um ensaio, nada né! Aí eu gostei assim,
que pegaram nóis de bobera assim, nóis tinha que i lá e
não podia errá! Nóis tinha que se lembrá tudo que nóis
fizemo desde o último ensaio né![...] É a mesma coisa que
acabá o mundo assim, e a senhora não sabê a hora!
Como se acabasse o mundo agora, assim, e pegasse nóis
de bobera!!
(Entrevista, 8.9.1999)
O garoto contou com detalhes a ida até a escola, o vestir a
roupa do Sabedoria de Rua e depois a ida de ônibus com os colegas e
uma professora até o local do evento. Gostou justamente de não
saber nada do que iria acontecer. Estava muito radiante, contando
com prazer cada parte do movimento necessário para a apresentação,
desde ser acordado no mocó até estar dançando. Mas seus olhos
brilharam muito quando contou e reviveu a expectativa de entrar no
palco, falando com uma velocidade impressionante:
Aí quando vê assim, aí primero a Maira [professora] falô
uns negócio pra nóis, que era pra cada um vê, assim! Bá!
E anunciando nóis! E eu bá!! [põe a mão no coração
outra vez, pega na camisa do Inter que adora, do lado
154
esquerdo, e a movimenta como se seu coração pulsasse
muito intensamente, sorrindo e vibrando muito] E eu
toda hora perguntando pro Toni: bá, Toni!! Comé que
nóis vamo fazê? Bá! Porque nóis não tinha ensaiado
antes, né?!! Aí, 'comé que nóis vamo fazê, Toni?' Vamo
fazê, vamo vê, bá, toda hora perguntando pra ele 'bá, e
comé que vamo fazê o nosso passo?' 'vamo ficá...?' aí
quando vê, depois a Maira veio [e explicou] 'não, tem esse
grupo, depois tem outro grupo, depois mais outro grupo
na frente de vocês 'aí, quando vê, aí eu já fiquei assim...!!
[exclama,
olhando
muitas
vezes
para
o
lado
em
movimentos rápidos, mostrando emoção]
(Entrevista, 10.9.1999)
A fala de Lucas era atropelada - em alguns momentos,
incompreensível - pela emoção, também pelo fato de dividirem o palco
com grupos de rap da cidade que os alunos admiravam e por quem
tinham um grande respeito. Ainda estava presente o Mano Brown,
um rapper bem conceituado no movimento hip hop e bastante
significativo aqui. É que o Mano Brown não só era conhecido dos
garotos, mas havia já um vínculo construído com ele há algum
tempo. Lucas contou: "Eu conheço ele, ele dava aula quando eu era
bem pequenininho na UO22, dava aula de rap lá pra nóis... pro
Délcio, pro Fernando, pro Tadeu", e repetiu três vezes "É tri legal
22 Lucas referia-se à "Unidade Operacional Centro": órgão de atendimento
socioeducativo às crianças e adolescentes em situação de rua e suas famílias.
Localizada no centro de Porto Alegre, esta Unidade pertence à FESC (ver nota de
rodapé nº 13).
155
esse cara!!". Ou seja, Lucas tinha relações pessoais significativas que
convergiam para aquele momento, dando sentido ao evento e
justificando sua emoção, incluindo Toni, colega que estava ao seu
lado no palco esperando a hora de entrar para dançar, com quem
partilhava o risco - pois não sabiam exatamente o que fariam e por
isso estavam nervosos - , e também o prazer de estar ali e dançar.
O êxtase daquele momento se relacionava diretamente ao fato
de que o "aqui" e o "agora", o arriscado, tinha por pano de fundo uma
certeza: não era para conseguir comida ou se livrar da violência
corriqueira; não era por necessidade, era por prazer. Além disso,
experimentavam o enaltecimento de si mesmos e com um público que
testemunhava isso.
O que se pode constatar é que os vínculos que se estabeleciam,
que se reafirmavam e que eram celebrados num momento de
performance musical podiam subverter a ordem deles próprios: de
não deixar-se levar por nenhum sonho, nenhuma expectativa que se
desvie do "aqui" e "agora", como se os traísse sem que percebessem.
As relações pessoais e musicais os inseria numa dimensão de tempo
maior do que a que conheciam e os vinculava a um futuro próximo a
partir do desejo de continuidade.
À medida que essas relações, pessoais e musicais, criavam nas
crianças e adolescentes em situação de rua expectativas e desejos de
156
reafirmação desses vínculos na repetição da ação musical, gerava-se
um contexto histórico, pois passava a haver a consciência de si, antes
e depois desses vínculos pessoais, reconhecendo, ainda, uma
evolução no seu desenvolvimento musical: o que dançavam e o que
dançam no presente. E o desejo de aprimorar-se musicalmente pode
aprofundar os vínculos afetivos que se encontram nas performances
musicais em que os participantes estejam dispostos a partilhar um
desejo comum: o de correr o risco.
Nas palavras de GRACIANI (1997), a rua constitui-se em
"transitoriedade permanente, dada à
insegurança total [e], há que
estar sempre preparado para agir ou reagir, criar e recriar, inventar
ou reinventar formas, maneiras de sobreviver na rua ou mesmo viver
na rua, [pois] o que conta é a troca do consumo imediato daquilo que
se ganha" (p. 131). Pois, na vivência musical, é possível a introdução
de elementos que não compõe o cotidiano das crianças e adolescentes
em situação de rua: o desejo de permanência e continuidade.
"Permanecer vivo, ter algum prazer", trazendo outra vez as
palavras de CRAIDY (1998, p.80) como concepções constituintes do
"móvel fundamental do existir [porque] o amanhã não existe" para os
alunos da EPA deixava de fazer sentido quando eram "traídos", e a
música passava a fazer parte de suas vidas e, com ela, as relações
pessoais que ela podia proporcionar e celebrar (SMALL, 1998).
157
4.3.2 A música compromete
Segundo SMALL, é normal que se espere que a improvisação
surja "em grupos comunitários onde os músicos são pessoas
conhecidas de seus ouvintes, e estes se acham dispostos a
acompanhá-los em suas aventuras, por mais insignificantes ou
arriscadas que sejam" (SMALL, 1989, p. 179).
A atividade musical mais comum no tempo-espaço da EPA,
tinha um caráter de improviso. Como relatado no capítulo três, a
música que ouviam no pátio da escola quase que diariamente, era
vivida sempre como uma oportunidade nova de arriscar, de tentar
combinações de passos novos com os já conhecidos, de tentar
adaptá-los
a
andamentos
diferentes
e,
parecia,
ver
se
os
companheiros estavam arriscando na mesma medida, reforçando os
vínculos existentes entre eles.
Um exemplo desta forma de se relacionar com a música pude
observar em Toni, 16 anos, e Cristian, 15 anos, que sempre que
estavam na escola procuravam dançar juntos. Percebia que haviam
desenvolvido uma percepção sensível do outro, que parecia avançar,
também, na medida da confiança desenvolvida entre esses dois
amigos. Enquanto o aparelho de som da EPA estava ligado no pátio
da escola, os alunos podiam ir pondo fitas cassete ou CDs; às vezes
sintonizavam uma rádio e ficavam dançando no meio do pátio,
158
tomando cada música como um desafio aos passos e às coreografias
já internalizadas. Se Toni ia dançar primeiro, Cristian punha-se a seu
lado para dançarem juntos, e vice-versa. Assim ficavam por muito
tempo experienciando-se mutuamente, através da música, como
anotei nesse exemplo do caderno de campo:
Hoje, enquanto o aparelho de som da EPA tocava as
músicas que mais gostam de ouvir, cantar e dançar
[Racionais MC's, Naldinho, Mano Brown, Pavilhão 9,
Claudinho e Buchecha, assim como deixam, às vezes, na
rádio Eldorado, mas só por uns momentos], Toni e
Cristian não pararam um só momento de dançar. Melhor,
uma certa paradinha se dava quando Toni ia até o
aparelho trocar de fita ou CD. Porém, parece que a cada
música que toca existe um prazer renovado, como se
fosse um desafio acertar a coreografia com uma música
diferente. Agora, parece que Toni, que está do lado do
rádio, todo suado, sem camisa, respirando ainda meio
ofegante, aproveita para dar uma respirada. Cristian,
também sem camisa, todo suado, com as calças caídas
de maneira que apareçam uns 7 centímetros da sua
cueca, como preza a moda adolescente atual, aproveita e
vai até o bebedouro tomar água. Quando está voltando
toca uma fita dos Racionais que Toni pôs, o que faz
Cristian chegar até o centro do pátio dando saltos
mortais, como estão habituados nas rodas de rap. No
último salto, ainda meio agachado, procura os olhos de
Toni para confirmar o sucesso dos movimentos e
encontra o olhar atento do colega. Eles sorriem quase
nada, mas a cumplicidade é total. Ambos se admiram.
Vendo isso, Toni levanta-se do lado do rádio, aumenta o
volume e junta-se a Cristian. Sem falar, eles se põem
159
lado a lado e ficam parados, olhando para o chão e pra
frente, de modo que é possível estar 'ligado' no corpo e no
movimento do outro. É uma concentração que demora
um pouco mais do que o habitual. Depois percebo que é
porque tem coisa nova criada. E dessa vez dá pra
perceber que é Cristian que vai dar a partida. Toni olha
diretamente pra ele, mas Cristian olha pro Toni e pro
chão ao mesmo tempo, se concentrando porque sabe que
o amigo espera que ele conduza a coreografia. Cristian
respira, se concentra, ouve a música, começa a marcar
mais a pulsação com as pernas e, enfim, mostra para
Toni que vai entrar, levanta as sobrancelhas, respira
mais forte e...enfim, os dois entram juntos. Percebo que
essa coreografia é nova, o que justifica a concentração
maior do que o habitual. É interessante a comunicação
que se estabelece entre eles - começaram sem falar nada
- e mostram-se realizados com essas "certezas do outro",
de saber onde o outro também quer chegar, como quer se
satisfazer. Eles sorriem, agora, quando Toni se atrapalha
um pouco nos movimentos de braços [nunca usaram
assim os braços; dá um ar muito leve à coreografia, tanto
que Toni acha engraçado], mas a retoma. O riso parece
vir da noção que vão tendo durante o dançar, da
dimensão do risco que correm [a coreografia é longa, nova
e a qualquer momento podem errar] e parece que vem
daí,
também,
o
prazer:
do
desafio,
do
risco
compartilhado.
(Caderno de Campo, 22.12.1999)
SMALL (1989) afirma que "o músico que improvisa intui, ainda
que não chegue a expressá-lo, que o êxito só tem significado quando
existe a possibilidade do fracasso [...]" (p. 179), o que na relação e na
160
vivência desses dois garotos remete a um comprometimento recíproco
e com o êxito musical. O improviso, nas palavras de SMALL (1989),
proporciona "experiências musicais de um poder e de uma beleza de
uma espécie totalmente diferente do que é escutar, interpretar ou
inclusive criar música composta; o grau de compromisso é muito
diferente, como cabe esperar da exploração recíproca e afetuosa das
personalidades musicais dos componentes" (p. 182). Segundo o
autor, na improvisação se pode testemunhar o poder que essa
atividade musical específica tem na liberação de diferentes aspectos
da musicalidade nas pessoas e do sentido da "responsabilidade
musical de cada um, de uma maneira que não se pode conseguir em
nem uma outra atividade musical" (SMALL, 1989, p. 182).
No dia-a-dia das crianças e adolescentes em situação de rua
são raras as experiências de comprometimento, responsabilidade, ou
compromisso, uma vez que vivem em suspensão de seus laços,
ruptura com as instituições dominantes e têm a vida na rua
institucionalizada (CRAIDY, 1998). Havia, por sua vez, o esforço da
EPA em proporcionar o exercício dessas qualidades - quando havia
desenvolvimento nesse sentido era bem lentamente, pela falta de
respaldo
das
condições
em
que
viviam
-
e
também
nos
relacionamentos entre eles próprios, os quais tinham sempre a
interferência do grupo sobre suas individualidades (GRACIANI, 1997),
como já visto no capítulo 3.
161
É nesse sentido que o improviso tornava-se uma atividade
ímpar no desenvolvimento e aprofundamento dos vínculos pessoais e
musicais dos alunos, pois passava a gerar comprometimento e desejo
de continuidade. O resultado era uma intimidade calcada na
confiança entre os participantes do improviso e uma qualidade
elevada de relacionamento humano que adquiriam esses garotos.
Como já mencionado, os alunos não tinham aula de rap na
EPA. Portanto, o que dançavam e como conduziam seus corpos e
como adaptavam esses movimentos às músicas, era resultado da
escolha e da prática dos alunos. É nesse sentido que a prática da
dança estava sempre sob a condição de improviso, por mais que
existisse
uma
coreografia
e
uma
combinação
construída,
previamente, de movimentos com o corpo. Estavam sempre inovando,
sempre arriscando incluir novos saberes, os quais podiam vir da rua,
de outros grupos de rap ou da mídia.
Para SMALL (1989), assistir ao ato da criação e a um improviso
não é "lamentavelmente, a música que interessa a maioria do público
de nossa cultura, que quer segurança e certeza" (p. 178). Na cultura
ocidental nossas investidas em direção ao que queremos se
caracterizam
pela
busca
de
determinando
na
infância
o
certezas
que
e
vamos
garantias,
querer
inclusive
no
futuro
(SMALL,1989). Já para as crianças e os adolescentes observados
nessa investigação, cujas histórias de vida se constituíram em estado
162
de risco, e o cotidiano presente é de absoluta incerteza, o ato de criar
e improvisar com música significava, antes até das possibilidades de
expressão, a oportunidade de viver nesses momentos, a alegria do
inusitado, do imprevisto - próprio da infância e estimulador da
curiosidade - isentas do risco, e por isso, isentas do medo.
Ao improvisar, diz SMALL (1989),
o músico nos leva consigo em sua viagem de exploração;
com ele passamos curvas e giros, salvamos precipícios e
corremos riscos. É provável que não saibamos quanto vai
durar a viagem, nem sequer necessariamente onde
vamos. Pode ser que não cheguemos a nenhum território
novo, ou que se chegamos, não seja mais que um
inóspito marasmo que não convide ninguém a voltar, mas
haverá,
talvez,
ocasiões
em
que
tenhamos
algum
vislumbre deslumbrante de terras novas, onde nos
encontremos com visões de uma beleza e um significado
tão mais surpreendente do que inesperado (SMALL,
1989, p. 178).
É provável que aí resida uma forte justificativa para a
qualidade do envolvimento com a música e para a forma como as
crianças e adolescentes em situação de rua entregavam-se às suas
atividades musicais, qual seja, este risco e esta incerteza de onde
chegaria a música na qual se empreendiam a criar e/ou improvisar.
Levavam consigo desde o princípio a certeza de que o que se
desvendaria não seria perigoso, violento ou discriminado. Esta, seria
uma viagem segura.
Foto: Vânia Müller
163
O prazer de correr um risco, sem medo.
164
4.3.3 As apresentações
Uma das práticas musicais mais comuns da sociedade - e
talvez mais representativa de seus valores - são as apresentações, ou,
as performances. No meio musical, seja nas escolas de música, salas
de concerto e mesmo ao ar livre, as pessoas se mobilizam para ver o
produto musical que está pronto, acabado e no nível do status
exigido. Por sua vez, outras pessoas, os intérpretes, prepararam e o
julgaram pronto para ser mostrado.
Nas palavras de SMALL (1989),
não devemos nos surpreender de que a educação musical
assuma ao mesmo tempo a natureza da música ocidental
e da educação ocidental. Aqui, como na educação geral, o
conceito dominante é o do produto [...] saibamos
reconhecer que de fato, nossos próprios métodos de
formação musical sacrificam elementos pertencentes à
musicalidade essencial do homem na perseguição dos
ideais do virtuosismo individual e da estandartização da
técnica. [...] nossa sociedade anda na perseguição dos
produtos (as coisas) bem melhor do que nos processos (as
vivências) da vida, assim como as restrições e a
estandartização
que
tal
perseguição
impõe.
Não
alcançamos, tampouco, ver que desde o momento em que
o principiante põe pela primeira vez os dedos sobre o
teclado, [...] ou começa a amassar um pedaço de argila,
está explorando a si e está explorando a natureza do
mundo material; explorando-a não para dominá-la, senão
165
para viver mais plenamente nela (SMALL, 1989, p. 195201).
As apresentações que aconteciam na EPA revelavam uma
realidade que vem ilustrar os argumentos de SMALL, no que este
autor concebe como a função vivencial da música, uma vez que as
práticas musicais dos alunos não visavam a um produto "melhor"
para ser mostrado, mesmo quando iam apresentar-se. Tanto no caso
do Sabedoria de Rua, quanto na prática de percussão, o envolvimento
dos alunos no momento da performance não diferenciava se estavam
tocando ou dançando no pátio da EPA, ou apresentando-se em local
público.
SMALL (1989) propõe que se busquem exemplos de culturas
não ocidentais para compreendermos o aspecto vivencial da música e
exemplifica com a função que a música exerce nas sociedades
balinesa e gamelaneza, onde "os ensaios são públicos, e observados
com interesse pela população da cidade ou da aldeia, que comentam
a atuação com conhecimento de causa e às vezes dão sugestões.
Assim, a peça vai crescendo aos olhos de todos, e o clima da função
ou atuação final difere muito pouco dos ensaios" (SMALL, 1989, p.
51).
As
crianças
e
adolescentes
que
freqüentavam
a
EPA
entregavam-se para a vivência musical, independentemente do
espaço onde ocorresse, sem se preocupar se estavam sendo
166
avaliados; o produto musical que mostravam - o que cantavam,
tocavam ou dançavam - era sempre o seu melhor possível, daquele
momento.
Nesse aspecto, impressionava a naturalidade com que viam
suas
limitações
quando
elas
surgiam.
Por
exemplo,
em
um
determinado dia em que havia muito sono, quando o corpo estava
cansado, não havia exigência de que ele cumprisse com o que sabe.
Se fosse na roda de rap, quando davam um salto viam que não estava
rendendo tudo que podiam, sentavam, tomavam água, voltavam a
fazer uns movimentos que não lhes exigissem o máximo, e jamais
havia alguma cobrança de aprimoramento de um colega ou alguma
reclamação. Havia um consenso tácito de que todos estavam fazendo
o que queriam, nas condições de sua habilidade e domínio do corpo
daquele dia, daquele momento.
Um exemplo dessa postura dos alunos frente às apresentações
pude observar por ocasião de um evento na EPA comemorando a
assinatura de um convênio com uma instituição particular e a
prefeitura de Porto Alegre, envolvendo várias secretarias do município
de alguma forma ligadas ao Meio Ambiente.
Sandro, 16 anos, não havia mais dançado com o Sabedoria de
Rua por ter estado ausente dois meses, por isso não conhecia
integralmente a coreografia que apresentariam. Ele então, dançou o
que lembrava; e, quando não lembrava, parava ao lado da formação
167
do grupo e ficava observando, talvez para aprender, os passos novos,
não se intimidando com o público; tampouco alguém do grupo pediu
que ele não participasse ou reclamou de sua performance. Durante a
música que apresentaram, voltou à cena, ou à formação do grupo - 8
meninos e 4 meninas, com público por toda sua volta - por umas 4
vezes, sempre que reconhecia os passos que os colegas faziam.
Para os alunos, o público era importante, sim, mas por estarem
sendo valorizados e admirados. Não esperavam que as pessoas
aplaudissem seu produto musical e sim, eles próprios. Ou seja, a
vivência musical era algo que lhes dizia respeito tão intrinsecamente,
que não é porque havia público que iriam mudar seu comportamento
e, principalmente, perder a chance de "explorar-se" e "explorar a
música"; trazendo uma vez mais as palavras de SMALL (1989)
"explorando-a não para dominá-la senão para viver mais plenamente
nela" (p.201).
Sua vivência era o que importava e não o nível de sua
performance, de forma que Sandro não julgava sua participação
como um erro. Não existia, na EPA, julgamentos para vivências,
muito contrastante do nosso meio musical, onde se chega ao nível de
stress necessário para atingir o que julgamos ideal para expor um
produto musical.
Os alunos da EPA quando tocavam seus instrumentos de
percussão e dançavam, tiravam o mesmo proveito que no momento
168
de atuarem em público. Os ensaios eram uma vivência musical em
que se colocavam integralmente no presente, assim como vimos
anteriormente na sua concepção de "aqui" e "agora". Também, sua
concepção de tempo muitas vezes os deixava sem saber exatamente o
dia
da apresentação, mas também porque a data não lhes
interessava. Simplesmente porque a apresentação não chegou ainda,
é futuro, e já se pode tocar ou dançar "hoje". Quando chegar a
apresentação, será o momento de pensar nela.
Não existia entre os alunos da EPA o sentido de aprender a
dançar ou a tocar para acumular conhecimento, virtuosismo ou
evoluir, tampouco a busca pela "especialização" em um único
instrumento. Em uma roda de samba, por exemplo, os instrumentos
de percussão circulavam pelas mãos de todos enquanto cantavam
suas músicas, pois não se recusavam a tocar nenhum deles, assim
como não havia hierarquia entre os instrumentos.
O desenvolvimento musical, o domínio do corpo e a habilidade
com os instrumentos de percussão eram conseqüência da vivência
prazerosa e espontânea dos alunos. Com o passar do tempo,
obviamente, desenvolviam mais suas habilidades, mas ninguém se
colocava a fazer seqüências de movimentos idênticos por muito
tempo, treinando sozinho, num lugar à parte dos colegas, sem estar
"valendo". Para eles sempre está valendo, contrariando, também, "o
sonho impossível de nossa cultura - a promessa de satisfações
169
futuras em troca da renúncia do prazer presente - [que] se imprime
muito precozmente na mentalidade das crianças" (SMALL, 1989, p.
188).
Vale trazer aqui outra apresentação do Sabedoria de Rua, como
exemplo do aspecto vivencial da música, mas ressaltando a
informalidade com que as crianças e adolescentes em situação de rua
se relacionam com música: o conjunto instrumental de uma escola
da rede particular de ensino, formado por pré-adolescentes e
adolescentes,
foi tocar para os alunos da EPA, numa manhã de
quinta-feira de agosto, no galpão da escola.
A cada música que era executada, aumentava o número de
instrumentos de percussão, levando os alunos que assistiam à
apresentação a envolverem-se mais a cada uma. Não se contendo em
ficar sentados, muitos andavam pelo galpão e outros dançavam. Na
terceira música, a vibração levou Sandro a dizer: "nóis tamém
queremo se apresentá!! Nóis vamo se apresentá, tamém?", dirigindose a mim, no centro do galpão, mas todos podiam ouvir. Respondi
que se quisessem, poderiam, claro. Na quarta peça, "O Berimbau" de
Baden Powell23, executado com solo de berimbau - instrumento
23
Violonista e compositor brasileiro, nascido em 1937, no Rio de Janeiro.
170
familiar aos alunos - vários começaram a jogar capoeira. Antes da
última peça, Sandro falou: "Bá!!! Tem mais uma ainda?!", com tom de
impaciência, mas revelando sobretudo seu desejo de que se
apresentassem logo.
Durante a última música, a peça Brincadeira com o Olodum, de
minha autoria, para instrumentos de percussão, cujo motivo é o
gênero popular baiano "Axé", que conhecem e tocam também, as
cadeiras estavam praticamente desocupadas, pois a grande maioria
dos alunos da EPA dançava, enquanto outros imitavam o regente,
outros batiam palmas na pulsação da música, e um menino tocava
junto em um repenique do grupo, que viu desocupado.
Quando, enfim, viram que acabou a última música, não levou
dois minutos para o aparelho de som da escola e um CD chegarem
com a corrida de um garoto, que foi pegá-los na secretaria que está à
uns 50 metros do galpão. Imediatamente eles se posicionaram na
formação tradicional do Sabedoria de Rua e estavam prontos para se
apresentar, em frente ao grupo que acabara de tocar, que ficou nas
cadeiras em que estavam para assistir.
Deve-se observar que, devido à comum infreqüência na escola,
muitos alunos não sabiam que teria a apresentação de um conjunto
instrumental de outra escola naquela manhã, e tampouco os
integrantes do Sabedoria de Rua esperavam se apresentar naquele
dia. Esse desejo foi construído no envolvimento com o grupo de
171
instrumentistas que tocava e na vivência da música que ouviam.
Contrariando a "estrutura do pensamento científico, e em
particular a prática científica em transformar tudo aquilo que lhe
interessa em um objeto, quer dizer, em algo que se observa e não que
se vivencia" (SMALL, 1989, p. 68), as crianças e adolescentes
presentes no galpão da EPA naquela manhã não eram meros
observadores
da
música
que
ouviam.
Ao
contrário,
tiveram
dificuldade em se conter para não vivenciá-la24.
Da mesma maneira como se sentiram à vontade enquanto o
conjunto instrumental visitante executava gêneros de música tão
contrastantes - desde a primeira peça, Suíte Húngara de Eberhard
Werdin, em cinco movimentos, executada por um quinteto de flautas,
que não conheciam, até a última,
mencionada
-
entenderam
como
Brincadeira com o Olodum, já
natural
que
também
se
apresentassem naquele momento.
Era em meio à sua comunidade que aprendiam, faziam e se
expunham fazendo música; era com naturalidade que
recebiam a
música na sua vida. Não cogitavam a hipótese: "será que estamos
preparados?" Não ocorria, de maneira alguma, que haveriam de
"saber" algo sobre música para depois vivenciá-la.
24 A propósito, deu-se um contraste estupendo, pois os alunos visitantes,
embora visivelmente interessados e entusiasmados assistindo ao Sabedoria de Rua,
permaneceram todos sentados, durante toda a apresentação, limitando-se a
aplaudir e assoviar.
172
Muito
similarmente,
SMALL
encontrou
nas
referidas
comunidades africanas acima mencionadas, a concepção do que seja
vivenciar a música e do que seja aprender música:
Nestas sociedades não ocidentais, como em muitas
outras, a educação musical das crianças segue um curso
que não lhes impõem esforço algum: o jovem músico toca
seu instrumento desde o começo mesmo. É claro que
trabalha e se esforça, não para obter o domínio de seu
instrumento (já que a idéia mesmo de domínio é alheia a
um músico que considera seu instrumento como um
amado companheiro em seu empreendimento criativo),
senão para aumentar a fluidez, a expressividade e a
naturalidade com que toca, e isso não se faz valendo-se
de exercícios técnicos, senão tocando e expondo-se
continuamente às experiências musicais que se dão no
marco de sua sociedade (SMALL, 1989, p. 169).
Para os alunos da EPA, tanto quanto a música não é algo para
ser observado e sim vivido, ela também não ocupa uma posição de
status que a classifica como superior dentre os elementos que
compõem suas vidas, exigindo, por isso, momentos "adequados" para
fazer música. Nesse sentido, a concepção da música como algo
inerente às suas vidas os faz crer que ela é para ser vivida, seja em
que contexto for e com quaisquer gêneros de música.
5 CONCLUSÕES
Este estudo procurou analisar como a música se inseria na
realidade cotidiana das crianças e adolescentes em situação de rua,
mediada pelo projeto político-pedagógico da Escola Municipal Porto
Alegre, a EPA. Mais especificamente, o estudo procurou revelar as
formas como os alunos se relacionavam com a música e os sentidos
que a ela atribuíam.
Adotando uma abordagem socioeducacional, a metodologia do
Estudo de Caso permitiu uma descrição e interpretação das
atividades musicais realizadas e evocadas na escola, através da
observação participante e de entrevistas qualitativas.
A imersão neste cenário, através de uma convivência estreita
com os princípios que orientam a prática pedagógica da escola, e a
análise dos dados empíricos, revelam que as relações sociais no
cenário investigado têm relevância na mediação entre o contexto
socioescolar e as atividades musicais dos alunos.
174
A relação dos alunos com a música decorria, também, da
relação não-hierarquizada com os diversos saberes representados na
escola e o caráter vivencial (SMALL, 1989) dos mesmos na ocupação
do tempo-espaço escolar. A música estava inserida na vida dos
alunos por seus aspectos comunitário e vivencial e, por isso,
envolviam-se mental, corporal e emocionalmente com ela,
e não
apenas de uma forma cognitiva e abstrata.
Embora os alunos da EPA experienciassem uma diversidade de
saberes, a música não constava na grade curricular juntamente com
as outras áreas do conhecimento. Entretanto, integrava um contexto
de valorização da diversidade de saberes como mais uma linguagem
que possibilitava o autoconhecimento, o desenvolvimento e a
expressividade dos alunos. E mais: mesmo a música não sendo parte
integrante do currículo oficial, ela se tornava um dos fatores de
vínculo entre a escola e os alunos, ressaltando o aspecto comunitário
(SMALL, 1989) que a música adquiria no âmbito socioescolar.
A música ligava-se tão intrinsecamente à vida das crianças e
adolescentes em situação de rua que, verbalizar a seu respeito com
os alunos trazendo-a para reflexão, a destacaria da totalidade em que
está inserida, descaracterizando-a da função que tem para eles. Os
alunos traziam consigo a percepção da música como um elemento
intrínseco da sua vida, pertencendo a uma totalidade vivencial da
qual não fazia parte nenhuma formalidade com a música, e que a sua
175
prática - entendido no caso como o uso da música de maneira geral estava vinculada às suas relações sociais.
Entre os alunos que freqüentaram a EPA no ano de 1999, pude
observar a capacidade que a música tem de conectar as pessoas
envolvidas em uma performance, como acredita SMALL (1998),
revelando a presença marcante do aspecto comunitário da música
entre eles. A confiança que encontravam nos professores, aliada ao
fato de estarem entre amigos, talvez fosse a primeira razão que as
crianças
e
os
adolescentes
tinham
para
celebrar
em
suas
performances musicais, uma vez que, fora dali, estavam em
permanente estado de vigilância e risco (CRAIDY, 1998; GRACIANI,
1997).
A conectividade proporcionada pelo aspecto "comunitário" da
música entre os alunos ressaltava sua identidade de grupo e também
o
sentimento
de
inclusão,
visível
principalmente
quando
as
performances musicais envolviam, além deles, os professores e
funcionários da EPA, o que era freqüente.
Na identidade individual, a performance musical mostrou ter
relevância na minimização de três aspectos característicos da
personalidade de crianças e adolescentes em situação de rua: na
frustração da privação da infância, no estigma e na submissão ao
grupo. Nos momentos de performance musical os alunos podiam
176
conectar-se com um "alto padrão" (SMALL, 1995, 1998) de relações
com o mundo e com as outras pessoas, subvertendo a ordem imposta
pelas relações estabelecidas na necessidade de pertencimento e a
conseqüente submissão ao grupo.
Além disso, durante os momentos de performance musical
podiam conectar-se com a imagem ideal que faziam de si mesmos,
apesar do estigma, aliviando-se do sentimento de "culpabilização
individual" que, na análise sociológica da desigualdade de SAWAIA
(1999, p. 8-9) é o "mecanismo psicológico principal da coação social
nas sociedades onde prevalece o fantasma do uno e da desigualdade".
Este
autor
se
refere
a
esta
questão
como
"dialética
exclusão/inclusão" argumentando que
a sociedade exclui para incluir e esta transmutação é
condição da ordem social desigual, o que implica no
caráter
ilusório
da
inclusão.
[...]
O
pobre
é
constantemente incluído, por mediações de diferentes
ordens, no nós que o exclui, gerando o sentimento de
culpa individual pela exclusão (SAWAIA, 1999, p. 8-9).
Confirmando a culpabilização individual, a professora Maira
declarou em uma ocasião: "Do que mais eles têm medo, é de errar.
Porque até hoje, tudo na vida deles deu errado". Nessa direção,
também, a performance musical mostrou ter um forte sentido para as
crianças e adolescentes em situação de rua, pois tinham a
177
oportunidade de exibir na escola um saber próprio, adquirido e
construído fora da sala de aula, e vivenciá-lo sem o medo do "erro" e/ou da culpa por ele - já que era um saber não avaliado pelos
professores.
Um sentido relevante, também, tinha o improviso musical para
os alunos observados. Improvisar novas coreografias para dançar rap
e novas combinações de ritmos entre os instrumentos de percussão
significava arriscar sem correr o risco real de violência a que estavam
submetidos
diariamente.
Ao
improvisar,
os
alunos
tinham
a
oportunidade de confrontar-se com algo desconhecido - os elementos
musicais e corporais não planejados - sem a habitual sensação de
medo.
Da minha convivência com a "situação de rua"
Somente aqueles que se submetem à natureza e estejam
dispostos a esperar que ela se revele, os que se demoram
ternamente em seus segredos como o amante se demora
em sua amada, alcançarão dela esse conhecimento
autêntico que é experiência vivencial (SMALL, 1989, p. 79)
Nas discussões das questões diárias emergentes do cotidiano
escolar, que em grande escala se davam na rua, mas eram trazidas
para as reuniões do planejamento da prática educativo-pedagógica da
EPA como um todo, buscava dirimir a insegurança gerada pela
178
dimensão da complexidade e profundidade com que se apresentava
para mim aquele contexto sociocultural.
Além disso, tinha que conviver com o fato de que o grupo social
no qual eu me inseria e teria que interpretar, mais conhecido por
"meninos de rua", tem enfoques que variam, dependendo se esses
vêm da mídia, da expressão popular, do poder público oficial, ou
ainda, da literatura científica, específica da área, que também era
nova para mim.
Uma instabilidade era gerada na necessidade de equacionar
essas "fontes" com a realidade que se apresentava para mim, com
abundância de subjetividades. Instabilidade que nos acomete quando
não sabemos "se sequer estamos em uma situação adequada, ou se
podemos de alguma forma nos posicionar em uma situação
adequada, para julgar outros modos de vida" (GEERTZ, 1998, p. 18).
Convivendo com esse "outro modo de vida", pude compreender
a afirmação de CRAIDY (1998, p. 22): "o fenômeno meninos de rua é
antes de tudo um fluxo que expressa um movimento de exclusão
social mais amplo e se manifesta de forma particular na infância, por
ser ela o seu elo mais frágil".
A construção deste trabalho promoveu, paralelamente, a
reconstrução de aspectos fundamentais de minha formação e
vivência escolar. Sinto-me privilegiada pela oportunidade que tive
179
durante o processo desta investigação, de experimentar em minha
própria história a Educação como uma ciência que pode restaurar
"linhas de progresso que um dia foram mutiladas" (GIMENO
SACRISTÁN, 1999, p. 158).
E foram necessários dois cenários, o curso de Pós-Graduação
em Música e a EPA, ambos fortes, para fazer-me reconhecer e
identificar o que eu trazia de uma prática modernista de educação,
refletido na inflexibilidade, na rigidez e nos medos - principalmente
pela inexperiência em pesquisa - de não corresponder à lógica dos
produtos substantivados da cultura educacional absorvida em minha
escolaridade.
Em alguns momentos foi desestabilizador estar em uma
escola - o cenário "oficial" da pesquisa - tão aberta na sua
diversidade, flexibilidade e desejo de agência e autonomia, sensação
potencializada pela prática educativa de minha orientadora - o
cenário de lutas e confrontos comigo mesma - onde, a cada encontro
ela "impunha" seu modo de construir conhecimento isento de
receitas, com um planejamento com espaço para o imprevisto e a
emoção, a discussão democrática e participativa a cada decisão dos
rumos a tomar na investigação num processo dialógico, exigindo que
eu também a viesse tomar decisões, tentando provocar em mim a
mesma agência que a EPA tentava instigar nos seus alunos.
180
Fui compreendendo em profundidade que o "começar do zero" e
trilhar o próprio caminho seria a única alternativa para chegar a um
conhecimento legítimo. A emoção de minha professora ao vislumbrar
a transformação que isso ocasionaria em mim conseguiu levar-me,
apesar de minha resistência, a correr os riscos de estar, agir e
interagir com o desconhecido, em meio a uma desconstrução e
reconstrução de mim mesma, nos dois cenários.
Os modos de atuar nos dois cenários, o modo como foram
sendo construídos os vínculos e o movimento por um objetivo que
passou a ser comum - a construção deste trabalho - foram fatores
determinantes neste meu processo re-educativo, independente dos
conteúdos com os quais convivia.
Minha vivência educativa e aproximação da área da Educação
durante a construção deste estudo, levam-me a uma reflexão
epistemológica da área de Educação Musical. Da mesma forma como
o projeto político-pedagógico da EPA influía na forma como seus
alunos se relacionavam e concebiam música, minha vivência como
aluna-pesquisadora
levou-me à concepção de Educação como
"atividade especificamente dignificadora da condição humana, [que
quer] descobrir o caminho da realização das utopias que melhorem o
estado das coisas da atualidade" (GIMENO SACRISTÁN, 1999, p.
154). Vivência que deixa-me a refletir sobre a concepção do que seja
um educador musical.
181
Se, como afirmado anteriormente, as formas como a música
estava inserida no cotidiano das crianças e adolescentes observados
indicam que a qualidade de seu envolvimento com música e a
propriedade com que a vivenciavam, relacionava-se ao seu não
atrelamento aos padrões de status, de hierarquia, de fragmentação do
conhecimento e de formalidade na relação com ele, da "sociedade
instituída" (ANTUNES, 1997), ficam em aberto algumas questões para
os educadores musicais: em que medida a institucionalização da
práxis educativo-musical determina a forma como os alunos se
relacionam com música? Em que medida a forma como os
educadores musicais se relacionam com música é determinada por
seu atrelamento aos padrões de relação com o conhecimento da
"sociedade instituída"?
Estas perguntas sugerem a necessidade de reflexões sobre a
natureza da relação com música e do conhecimento musical
construído no âmbito escolar. Além disso, para relativizar nossos
conteúdos curriculares, "a ideologia por detrás de nossas escolhas de
repertório e metodologia" (PRASS, 1998, p. 308), como trazido na
introdução deste trabalho, é necessário estar atento ao "efeito de
naturalização que a inscrição durável das realidades sociais no
mundo natural acarreta: diferenças produzidas pela lógica histórica
podem, assim, parecer surgidas da natureza das coisas" (BOURDIEU,
1997, p.160).
182
De todo crescimento obtido durante a construção deste estudo
e absorvido na vivência educativa, gostaria, por fim, de registrar uma
das lições que vejo como útil para nossa práxis educativo-musical e
que percebi nas crianças e adolescentes com os quais convivi: a
necessidade de espaço para o imprevisto e o maravilhamento na
prática pedagógica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Elaine N. (1999a). Hip Hop: movimento negro juvenil. In:
ANDRADE, Elaine N. (Org.) Rap e educação: rap é educação. São
Paulo: Selo Negro, p. 83-91.
ANDRADE, Elaine N. (1999b). Prefácio. In: ANDRADE, Elaine N.
(Org.) Rap e educação: rap é educação. São Paulo: Selo Negro, p.
9-12.
ANDRÉ, Marli E. D. de. (1995). Etnografia da Prática Escolar.
Campinas: Papirus.
ANTUNES, Helenise S. (1997). O Imaginário Social dos Meninos e
Meninas nas Ruas de Santa Maria em Relação à Escola.
Dissertação de Mestrado. PPG Educação. UFSM. Santa Maria.
ARROYO, Margarete. (1999). Representações Sociais sobre Práticas de
Ensino e Aprendizagem Musical: um estudo etnográfico entre
Congadeiros, Professores e Estudantes de Música. Tese de
Doutorado. PPG Música - Mestrado e Doutorado. UFRGS. Porto
Alegre.
ASSMANN, Hugo. (1998). Reencantar a Educação. Petrópolis: Vozes.
BARCELLOS, Lia R. M. (1998). Da "Re-Criação Musical à
Composição" um Caminho para a Expressão Individual de
Meninos de Rua. Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano III, n. 4,
p. 56-65.
BERTONCELLO, Ângela L. et al. (1999). A Práxis na Construção do
Currículo do SEJA. In: SILVA, L. H. (Org.) Escola Cidadã: Teoria e
Prática. Porto Alegre: Vozes, p. 128-138.
184
BORGES, Liana. (1997). Em Busca da Unidade Perdida. Totalidades
do Conhecimento: um Currículo em Educação Popular. In: SILVA,
Luiz H.; AZEVEDO, José C.; SANTOS, Edmilson S. dos. (Org.)
Novos Mapas Culturais Novas Perspectivas Educacionais. Porto
Alegre: Sulina, p. 279-295.
BOURDIEU, Pierre. (1996). A Economia das trocas Linguísticas. São
Paulo: Edusp.
BOURDIEU, Pierre [Coord.]. (1997). A Miséria do Mundo. Petrópolis:
Vozes.
BRESLER, Liora. (1995). Ethnography, Phenomenology and Action
Research in Music Education. The Quarterly Journal of Music
Teaching and Learning, n.3, vol.6, p. 4-16.
BURGESS, Robert G. (1997). A Pesquisa de Terreno. Uma Introdução.
Oeiras: Celta Editora.
CAMPBELL, Patricia S. (1998). Songs in Their Heads. New York:
Oxford University Press.
CONTADOR, António C. e FERREIRA, Emanuel L. (1997). Ritmo e
Poesia: os caminhos do Rap. Lisboa: Assírio & Alvim
CRAIDY, Carmem M. (1998). Meninos de Rua e Analfabetismo. Porto
Alegre: Artes Médicas.
CRAIDY, Carmem M. (1999). A Adolescência dos Meninos de Rua.
Pátio - revista pedagógica. Ano 2, no. 8. Artes Médicas, p. 30-32.
FLEISCHMANN, Gladis et al. (1999). Tecendo Relações. In: SILVA, L.
H. (Org.) Escola Cidadã: Teoria e Prática. Porto Alegre: Vozes, p.
116-121.
FREITAS, Ana L. (1999). Projeto Constituinte Escolar: A Vivência da
"Reinvenção da Escola" na Rede Municipal de Ensino de Porto
Alegre. In: SILVA, L. H. (Org.) Escola Cidadã. Teoria e Prática.
Porto Alegre: Vozes, p. 31-45.
GEERTZ, Clifford. (1998). O Saber Local: novos
antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes.
ensaios
em
GIMENO SACRISTÁN, J. (1999). Poderes Instáveis em Educação.
Porto Alegre: Artes Médicas.
GOMES, Celson H. S. (1998). Formação e atuação dos músicos das
ruas de Porto Alegre: um estudo a partir dos relatos de vida.
185
Dissertação de Mestrado. PPG Música - Mestrado e Doutorado.
UFRGS. Porto Alegre.
GRACIANI, Maria S. S. (1997). Pedagogia Social de Rua. São Paulo:
Cortez.
GUARESCHI, Pedrinho A. (1999). Pressupostos Psicossociais da
Exclusão: Competitividade e Culpabilização. In: SAWAIA, Bader.
(Org.) As Artimanhas da Exclusão: Análise psicossocial e ética da
desigualdade social. Petrópolis: Vozes, p.141-156.
GUIMARÃES, Eloisa. (1998). Escola, Galeras e Narcotráfico. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ.
KINCHELOE, Joe L. (1997). A Formação do Professor como
Compromisso Político: Mapeando o Pós-Moderno. Porto Alegre:
Artes Médicas.
MAROY, Christian. (1997). A Análise Qualitativa de Entrevistas. In:
ALBARELLO, Luc.(et al) Práticas e Métodos de Investigação em
Ciências Sociais. Lisboa: Gradiva, p. 117-155.
MCLAREN, Peter. (1999). Multiculturalismo Revolucionário: pedagogia
do dissenso para o novo milênio. Porto Alegre: Artes Médicas.
MÜLLER, Verônica R. (1999). Pensando sobre los Centros Abiertos:
una contribución desde Brasil. Revista Electrónica de
Investigación Educativa http://redie.ens.uabc.mx Instituto de
Investigación y Desarrollo Educativo. Universidad Autónoma de
Baja California
OLIVEIRA, Paulo de S. (1998). Caminhos de Construção da Pesquisa
em Ciências Humanas. In: OLIVEIRA, Paulo de S. (Org.)
Metodologia das Ciências Humanas. São Paulo: Hucitec, p. 17-26.
PAIS, José M. (1993). Culturas Juvenis. Lisboa: Imprensa Nacional
Casa da Moeda.
PESSANHA, Eliana. (1996). Fronteiras Disciplinares e o Uso da
História Oral: por que, de quem, para quem? In: MEIHY, José
Carlos S. Bom (Org.) (Re)introduzindo a história oral no Brasil. São
Paulo: Xamã, p. 71-91.
PRASS, Luciana. (1998). Saberes Musicais em uma Bateria de Escola
de Samba: uma Etnografia entre os “Bambas da Orgia".
Dissertação de Mestrado. PPG Música - Mestrado e Doutorado.
UFRGS. Porto Alegre.
186
RABITTI, Giordana. (1999). À Procura da Dimensão Perdida: uma
Escola de Infância de Reggio Emilia. Porto Alegre: Artes Médicas.
RECTOR, Mônica. (1994). A Fala dos Jovens. Petrópolis: Vozes.
ROCKWELL, Elsie. (1989). Etnografia e teoria na pesquisa
educacional. In: EZPELETA, Justa e ROCKWELL, Elsie. Pesquisa
Participante. São Paulo: Cortez.
SANTOMÉ, Jurjo T. (1995). As Culturas Negadas e Silenciadas no
Currículo. In: Silva, T. T. (Org.) Alienígenas na Sala de Aula. Rio
de Janeiro: Vozes, p. 159-177.
SANTOMÉ, Jurjo T. (1997). A Instituição Escolar e a Compreensão da
Realidade. O Currículo Integrado. In: SILVA, Luiz H.; AZEVEDO,
José C.; SANTOS, Edmilson S. dos. (Org.) Novos Mapas Culturais
Novas Perspectivas Educacionais. Porto Alegre: Sulina, p. 58-74.
SAWAIA, Bader. (1999). Exclusão ou Inclusão perversa? In: SAWAIA,
Bader et all. (Org.) As Artimanhas da Exclusão: análise
psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, p.
7-13.
SHUSTERMAN, Richard. (1998). Vivendo a Arte: o pensamento
pragmatista e a estética popular. São Paulo: Editora 34.
SILVA, Tomaz T. (1996). Identidades Terminais: as transformações na
Política da Pedagogia e na Pedagogia da Política. Petrópolis: Vozes.
SILVA, Tomaz T. (1998). A Escola Cidadã no Contexto da
Globalização: Uma Introdução. In: SILVA, Luiz H. (Org.) A Escola
Cidadã no Contexto da Globalização. Porto Alegre: Vozes, p. 7-10.
SMALL, Christopher. (1989). Musica, sociedad, educación. Madrid:
Alianza Editorial.
SMALL, Christopher. (1995). Musicking: A Ritual in Social Space. In:
RIDEOUT, Roger. (Org.) Sociology of Music Education Symposium.
University of Oklahoma, p. 1-12.
SMALL, Christopher. (1998). Musicking: the meanings of performing
and listening. Hanover: Wesleyan University Press.
STEIN, Marília. (1998). Oficinas de Música: uma etnografia dos
processos de ensino aprendizagem em bairros populares de Porto
Alegre. Dissertação de Mestrado - CPG Música - Mestrado e
Doutorado - UFRGS. Porto Alegre.
187
TELLA, Marco A. P. (1999). Rap, memória e identidade. In:
ANDRADE, Elaine N. (Org.) Rap e educação: rap é educação. São
Paulo: Selo Negro, p. 55-63.
TRIVIÑOS, Augusto N. S. (1994). Introdução à Pesquisa em Ciências
Sociais. São Paulo: Atlas.
VASCONCELOS, Teresa M. S. (1997). Ao Redor da Mesa Grande: a
prática educativa de Ana. Porto: Porto Editora.
YUS RAMOS, Rafael. (1999). Comunidade e Escola: o que a
transversalidade oferece. Pátio - revista pedagógica. Ano 3, no. 10.
Porto Alegre: Artes Médicas, p. 18-22.
ZALUAR,
Alba. (1995). A Aventura Etnográfica: Atravessando
Barreiras, Driblando Mentiras. In: ADORNO, Sergio (Org.) A
Sociedade entre a Modernidade e a Contemporaneidade. Porto
Alegre: Editora da Universidade e Sociedade Brasileira de
Sociologia, p. 85-91.
ANEXOS
189
Anexo 1: Planejamento estratégico da EPA
190
191
192
193
194
195
196
Anexo 2: "Jornada Temática da EPA", em comemoração
ao 4º aniversário da escola
199
Anexo 3: Atividades realizadas na EPA no primeiro
semestre de 1999
201
Anexo 4: Roteiro de entrevista semi-estruturada
205
Anexo 5: Livro de poesias da EPA
ABSTRACT
This work researched the ways street children and adolescents
connect to the music and the meaning they relate to it. The scenary
choosed at the research were Escola Municipal Porto Alegre - EPA, to
be localized in Porto Alegre, RS, whose peculiarity is to attend
children and adolescents that living in streets, providing education
for them.
The Case Study methodology, through the socialeducational
approach, enable the interpretation of the social relationships
established in the school community, wich emerged contemplated in
the ways the students are related to music as well as in the meaning
it has for them.
The "communality" and "living" aspects of the music (SMALL,
1989; 1998), observed in that scenary, emphasize the mediation of
the politic-pedagogyc project of the EPA on its musical activities of its
students.