aspecto jurídico constitucional da alteração do regime
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aspecto jurídico constitucional da alteração do regime
ANÁLISE JURÍDICA SOBRE A ADMISSIBILIDADE OU NÃO DA INTERRUPÇÃO SELETIVA DA GRAVIDEZ NAS MALFORMAÇÕES INCOMPATÍVEIS COM A VIDA/ANENCEFALIA ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS Amanda Cristina Pasqualini* Eduardo Strobel Pinto** 1 INTRODUÇÃO O Direito de Família tem por objeto fundamental o tratamento e a regulamentação das relações familiares. Classifica-se, de forma inovadora no Direito brasileiro, porém já tradicional na doutrina francesa, em direito de família pessoal e patrimonial. Naquele, temos o direito familiar puro do qual verte os estados e condições pessoais; os direitos e os deveres do indivíduo não são mais do que determinações resultantes do estado que ele tem no grupo familiar e, fora dele, em face da comunidade social. [...] São, assim, direitos absolutos, que se impõem à observância geral; ainda que em primeiro lugar *Estudante na Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina –ESMESC Pós-graduanda em Direito Material e Processual Civil - ESMESC/CESUSC. Graduada pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL – Jan/2005. **Estudante na Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina – ESMESC. Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI Dez/2004. Assessor para Assuntos Específicos no TJSC. REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 451 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO decorra da relação obrigações e deveres de outros membros do grupo para com o titular, o que principalmente interessa à regulamentação jurídica é a posição pessoal, que fundamenta e legitima uma defesa contra todos. (RUGGIERO, 1999, p. 34). No direito patrimonial familiar, encontra-se o abarque do regime de bens entre conjugês e companheiros, o usufruto, a administração dos bens - inclusive os dos filhos menores -, os alimentos e o bem de família. O foco desta pesquisa é tema específico do Direito patrimonial de família – o regime de bens -, e recai na divergência quanto à aplicabilidade da alteração do regime matrimonial de bens prevista no Código Civil de 2002. Por se tratar de tema relativamente recente, carece ainda de abordagem mais profunda por parte do mundo jurídico. Desta forma, propõese que este estudo sirva de elucidação àqueles que de alguma forma se interessam pela matéria, inclusive servindo de contraponto para futuros entendimentos nos Tribunais. A permissão legal do art. 1639, § 2º do Código Civil de 2002 gera dúvida acerca da possibilidade de sua aplicabilidade e, conseqüentemente, questionamentos [Quem pode? Quando pode? Quais as conseqüências jurídicas? E os efeitos? E os casamentos celebrados sob a égide do Código Civil anterior?] dos mais amplos possíveis. Exposto o objetivo, este estudo estruturar-se-á de forma a proporcionar ao leitor a compreensão e fundamentação do tema em foco. Parte-se da análise do estatuto patrimonial dos cônjuges na vigência da sociedade conjugal perante os princípios constitucionais do Direito de Família, com enfoque na dicotomia Direito Público e Privado e a orientação principiológica. Em seguida, analisa-se o direito intertemporal versus a 452 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS prerrogativa do art. 1639, § 2º e 2039, ambos do Código Civil de 2002; quais os requisitos para a alteração do regime matrimonial de bens e as conseqüências jurídicas da mudança; e, por fim, o entendimento jurisprudencial [e futuras tendências] acerca do tema. 2 O ESTATUTO PATRIMONIAL DOS CÔNJUGES NA VIGÊNCIA DA SOCIEDADE CONJUGAL SOB A ÉGIDE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO DE FAMÍLIA A primeira Constituição brasileira (1824) determinava a necessidade de organização de um Código Civil, pois a legislação aqui aplicada era o sistema normativo utilizado em Portugal. De Barão de Penedo a Clóvis Beviláqua, com Ruy Barbosa e Carneiro Ribeiro, o Código Civil brasileiro foi aprovado em dezembro de 1915, traduzia em seu corpo normas mais preocupadas com o ter do que com o ser. Porém, a sociedade do século XX, sobretudo com a eclosão da 1ª Grande Guerra, marca o acaso as codificações. Ocorre a vulneração de normas que pretendiam ser imutáveis e eternas, e a dificuldade em se proceder a reformas em codificações desencadeia o processo de descentralização ou descodificação do Direito Civil, determinando a edição de verdadeiros microssistemas jurídicos. Estes encontram um “ponto lógico-formal de apoio e aplicação hermenêutica nos princípios e normas superiores de Direito Civil consagradas na própria Constituição Federal”. (GAGLIANO, FILHO, 2004, p. 53). Assim, não se pode entender o Direito Civil sem o necessário suporte lógico do Direito Constitucional, visto que este consagra valores que deixam de ser simples intenções e passa a ser considerado um corpo normativo supeREVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 453 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO rior que deve ser diretamente aplicado às relações jurídicas em geral, subordinando toda a legislação ordinária. É nesse contexto, de suporte da legislação na Carta Magna, que surge o novo Código Civil, que manteve a estrutura do Código Civil de 1916 e alterou o conteúdo, dentre outros, do Direito de Família, área que norteia o alvo deste estudo: limitou o grau de parentesco, introduziu novo regime de bens, atenuou o princípio da imutabilidade de bens do casamento, regulamentou a união estável, afirmou o poder familiar e a igualdade entre os filhos. (CARLI, 2004). Revestido de maior significação dentre todas as instituições, para bem situar o Direito de Família, é necessário reportarmo-nos a divisão clássica do Direito em Público e Privado. Constituidor do complexo de normas disciplinares das relações de família, o Direito de Família tem ocupado sempre posição destacada no Direito Privado. Porém, há uma tendência de retirá-lo do Direito Privado e classificá-lo como Direito Público. O fundamento se dá na predominância acentuada de princípios de ordem pública nas relações jurídico-familiares. Não podemos negar a predominância da ordem pública; porém o Direito Público e o Direito Privado não são dois compartimentos estanques, se intercomunicam com certa freqüência. Kelsen (1998, pp. 309-314) nos propõe então considerar a distinção entre Direito Público e Direito Privado como distinção entre dois métodos de criação da norma jurídica, sendo os atos que formam o fato produtor do Direito um prolongamento do processo de formação da vontade do Estado, e propõe reconhecer, no negócio jurídico privado, uma especificação da norma geral. Maria Celina Bodin de Moraes, assim afirma estar superada a dicotomia Direito Público e Direito Privado, prevalece uma verdadeira constitucionalização do Direito Privado, destacam-se os princípios constitucionais e os 454 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS direitos fundamentais, os quais se impõem às relações interprivadas, aos interesses particulares. 2.1 Princípios constitucionais e demais princípios inerentes ao Direito de Família e ao Regime Matrimonial de Bens A família é base da sociedade e por isso tem especial proteção constitucional por parte do Estado. A proteção reflete-se na definição constitucional de três espécies de entidades familiares: a) a constituída pelo casamento civil (CF, art. 226, o o §§ 1 e 2 ); b) a constituída pela união estável entre o homem o e a mulher (CF, art. 226, § 3 ); e, c) a comunidade formada o por qualquer dos pais e seus descendentes (CF, art. 226, § 4 ). Perante esta classificação de entidade familiar a Constituição estabeleceu algumas regras para sua regência: cabeça do casal: os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher; dissolução do casamento: [...] pelo divórcio [...]. planejamento familiar: fundado no princípio da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte das instituições oficiais ou privadas; adoção: a adoção será assistida pelo poder público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros; filiação: os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.[...]. assistência mútua: os pais tem dever de assistir, criar e edu- REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 455 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO car os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. (MORAES, 2005, p. 2159). Além dessas regras de regência das relações familiares abarcadas pela Constituição, temos princípios que norteiam o Direito de Família. Segundo Diniz (2004), o moderno Direito de Família rege-se pelos seguintes princípios: a) Princípio da “ratio” do matrimônio e da união estável: o fundamento do casamento, da vida conjugal e do companheirismo é a afeição entre os cônjuges ou conviventes. A affectio somente se extingue com a ruptura da uniãoo estável, separação judicial e divórcio (CF, art. 226, § 6 ; CC, arts. 1511 e 1571 a 1582). “E, além disso, vedada está a qualquer pessoa jurídica, seja ela de direito público ou de direito privado, a interferência na comunhão de vida instituída pela família (CC, art. 1513)”. (DINIZ, 2004, p. 18); b) Princípio da igualdade jurídica dos cônjuges e dos companheiros: mediante este, desaparece a base patriarcal da família e as decisões passam a ser tomadas de comum acordo entre os conviventes ou entre marido e mulher. Este princípio foi o previsto, inicialmente, na Constituição em seu art. 5 , inciso I, que propugna a igualdade de direitos e obrigações eno tre homens e mulheres. Ainda, o art. 226, § 5 estabelece uma isonomia entre marido e mulher relativa a seus direitos e deveres. O novo Código Civil abarca a determinação da igualdade, expressamente, em alguns artigos, como, 1511, 1567 e 1569; c) Princípio da igualdade jurídica de todos os filhos: impõe a exigência de que nenhuma distinção seja feita entre filhos o legítimos, naturais ou adotivos (CF, art. 227, § 6 , e CC, arts. 1596 a 1629); d) Princípio do pluralismo familiar: consubstancia-se na exis456 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS tência de entidades familiares: família matrimonial, união estável e família monoparental; e) Princípio da consagração do poder familiar: seguindo os passos da lei francesa de 1970, prefere-se falar autoridade parental, abandonando a locução pátrio poder. Este se relaciona com o substituído marital e o paterno; aquele é o poder familiar considerado como um poder-dever (CC, arts. 1630 a 1638). f ) Princípio da liberdade: fundado, como observa Paulo Luiz Netto Lôbo, no livre poder de constituir uma comunhão de vida familiar por meio de casamento ou união estável, sem qualquer imposição ou restrição de pessoa jurídica de direito público e privado (CC, art. 1513); na decisão livre do casal, unido pelo casamento ou pela união estável, no planejamento familiar (CC, art. o 1565, § 2 ; Enunciado n. 99, aprovado nas Jornadas de Direito Civil, promovidas pelo STJ), intervindo o Estado apenas em sua competência de propiciar recursos educacionais e científicos ao exercício desse direito; na livre aquisição e administração do poder familiar (CC, art. 1642 e 1643) e opção pelo regime matrimonial mais conveniente (CC, art. 1639); na liberdade de escolha pelo modelo de formação educacional, cultural e religiosa da prole (CC, art. 1634); e na livre conduta, respeitando-se a integridade físico-psíquica e moral dos componentes da família. (DINIZ, 2004, p.22). g) Princípio do respeito da dignidade humana: a idéia de dignidade da pessoa humana encontra em nossa Constituição total aplicabilidade; é considerada a família célula da sociedade. Este princípio apresenta-se em uma dupla concepção: prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos; estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. O direito à vida privada, intimidade, honra, imagem, REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 457 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO [dentre outros], aparece intimamente ligado à dignidade da pessoa humana, e é fundamento da República Federativa do o Brasil (CF, art. 3 ). “Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual”. (MORAES, 2005, pp. 128-129). Por fim, outros princípios destacam-se como norteadores do regime matrimonial de bens. Há necessidade de se abarcar referidos princípios visto que serão de valiosa utilidade quando do confronto de ideologias inerentes a mutabilidade desses. A essência das relações econômicas entre os consortes reside no regime matrimonial de bens que está submetido a normas especiais disciplinadoras de seus efeitos. O regime de bens é regido por quatro princípios que, por conta da promulgação do novo Código Civil, sofreram consideráveis alterações, a saber: a) Princípio da variedade do regime de bens: atualmente, é oferecida aos nubentes a opção por quatro tipos de regimes matrimoniais para reger seus interesses pecuniários: comunhão universal, comunhão parcial, separação de bens e participação final nos aqüestos. Este último surgiu em substituição ao regime dotal previsto no Código Civil de 1916. b) Princípio da liberdade dos pactos antenupciais: o novo Código Civil seguiu a mesma linha do antigo e permitiu aos nubentes a autonomia da vontade na escolha de regime de bens, dando oportunidade de fazê-lo aderindo aos regimes descritos pelo legislador ou combinando-os entre si. Encontramos esta liberdade consubstanciada nos art. 1639 – “É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver” -, e no parágrafo único do art. 1640 – “poderão os nubentes, no processo de 458 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS habilitação, optar por qualquer dos regimes que este Código regula”. Porém, é obstáculo deste preceito a imposição legal, ou por precaução ou para punição dos nubentes, a aderência ao regime obrigatório - o de separação de bens – nos casos previstos no art. 1641, I a III do Código Civil. A liberdade de escolha do regime é estipulada mediante pacto antenupcial. Para Silvio Rodrigues (apud DINIZ, 2004, p.147), “o pacto antenupcial é um contrato solene, realizado antes do casamento, por meio do qual as partes dispõem sobre o regime de bens que vigoraráo entre elas desde a data do matrimônio (CC, art. 1639, § 1 )”. De referido conceito podemos extrair: que será nulo o pacto antenupcial que não se fizer por escritura pública por ser esta determinação substância do ato; são ineficazes as convenções antenupciais se o casamento não lhes seguir; o pacto deve tão-somente conter estipulações atinentes às relações econômica dos cônjuges, não admitindo as alusivas às relações pessoais dos consortes, nem mesmo as de caráter pecuniário que não digam respeito ao regime de bens ou que contravenham preceito legal. Ainda, considerar-se-ão nulas as cláusulas que contravenham disposição legal absoluta (CC, art. 1655), que ofendam bons costumes e a ordem pública. Como exemplo, podemos citar as que dispensam os consortes dos deveres de fidelidade, coabitação, mútua assistência; alterem a ordem de vocação hereditária; ajustem algum regime de bens quando se impõe obrigatório o da separação. Embora nosso Código preveja a liberdade na escolha do regime de bens e assegure aos nubentes a possibilidade de fixá-los em pacto antenupcial, prefere um tipo de regime estabelecendo que, se os noivos não escolherem o regime de bens ou se sua liberdade de escolha for exercida de modo defeituoso, vigorará o regime que indica, ou seja, um regime legal, o da comunhão parcial (CC, art. 1640). Assim, REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 459 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO infere-se que o pacto antenupcial é facultativo, porém necessário se os nubentes quiserem exercer a liberdade de escolha de regime matrimonial. c) Princípio da imediata vigência do regime de bens: Por ser o matrimônio o termo inicial do regime de bens, decorre da lei ou do pacto antenupcial (CC, arts. 1653 a 1657); logo, nenhum regime matrimonial poderá ter início em data anterior ou posterior ao ato nupcial, pois começa, por imposição legal, a vigorar desde a data do casamento. (DINIZ, 2003, p.1126). d) Princípio da mutabilidade justificada do regime de bens: o Código Civil de 1916 portava a imutabilidade do regime matrimonial dando ao seu art. 230 a seguinte redação: “o regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento e é irrevogável”. Assim, toda e qualquer modificação do regime matrimonial, após a celebração do ato nupcial, estava proibida para dar segurança aos consortes e terceiros, “daí por que descabia a colocação de qualquer condição suspensiva ou resolutiva no que concernia ao regime de bens, por ser incompatível com o princípio da irrevogabilidade”. (DINIZ, 2004, p.151). No entanto, exceções existiam a essa regra. A jurisprudência admitia a comunicação de bens adquiridos na constância do casamento quando adquiridos pelo esforço comum de ambos os consortes, mesmo se casados no estrangeiro pelo regime da separação de bens, pois justo não seria que esse patrimônio pertencesse a um deles por que em seu nome se fez a aquisição (RJTJSP, 111:232 e 118:271). O Supremo Tribunal Federal também entendeu que o princípio da inalterabilidade do regime matrimonial não era ofendido quando houvesse pacto antenupcial que estipulasse, na hipótese de superveniência de filhos, que o casamento com separação se convertesse 460 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS em casamento com comunhão (RF, 124:105). (DINIZ, 2004). Por fim, a súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, admite a comunicação de bens adquiridos durante o casamento pelo esforço comum, quando o regime fosse o da separação obrigatória de bens, evitando enriquecimento indevido quando da dissolução do casamento. Perante estes casos, viu-se a necessidade de o novo Código Civil portar referida questão de forma diversa. Com isso, o o art. 1639, § 2 veio a admitir a alteração do regime matrimonial adotado, desde que haja autorização judicial, atendendo a um pedido motivado de ambos os cônjuges. O regime de bens que era inalterável, afora pequenas exceções já citadas, pode hoje ser modificado perante decisão judicial. Vejamos a redao ção dada ao art. 1639, § 2 : “é admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”. Denise Wilhelm Gonçalves dispõe acerca deste princípio: A organização do regime matrimonial de bens obedecia à época a três princípios fundamentais, a saber: variedade dos regimes, liberdade de escolha dos pactos antenupciais, a imutabilidade do regime adotado. Com a entrada em vigor do novo Código Civil, não mais vigora um dos princípios mencionados, qual seja, o da imutabilidade do regime adotado, [...]. (apud MEIRELLES, 2004, p.11). Dessa inovação surgem dúvidas quando a sua aplicabilidade aos casados sob a égide do Código Civil de 1916. Estas serão abarcadas em momento oportuno, o direito intertemporal. Expostos estes princípios inerentes ao Direito de Família e ao regime matrimonial de bens, elencar-se-á as várias esREVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 461 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO pécies de regime de bens que o Código Civil de 1916 comportou e que o Código de 2002 comporta. 2.2 Regimes de bens previstos no Código Civil de 1916 e 2002 Do casamento, projetam-se conseqüências no ambiente social, nas relações pessoais e econômicas dos cônjuges, nas relações pessoais e patrimoniais entre pais e filhos, dando origem a direito e deveres disciplinados por normas jurídicas. Dentre as classes dos efeitos jurídicos do matrimônio - sociais, pessoais e patrimoniais -, interessa, neste instante, detalhar os efeitos patrimoniais decorrentes da união entre um homem e uma mulher como forma básica de um núcleo familiar. A essência das relações econômicas entre os consortes traduz-se no regime matrimonial de bens. Este, é o estatuto que regula as relações patrimoniais do casamento e em sua classificação se divide atendendo a dois critérios: a) quanto à origem: convencional ou legal (CC, art. 1641); e b) quanto ao objeto, em que se toma por base o fato de se comunicarem ou não os patrimônios dos cônjuges. A rigor, existiriam apenas as modalidades: comunhão e separação. No entanto, a serviço das conveniências dos cônjuges, sugere-se a manutenção destas formas puras ou a criação de outros regimes que derivam da combinação em que se comunicam alguns valores, enquanto outros se conservam destacados no patrimônio dos consortes. Dessa reunião das noções básicas, resultam, portanto, os regimes de bens. Nossos Códigos – 1916 e 2002 –, abarcaram as seguintes modalidades: 462 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS 2.2.1 A Comunhão Universal: Prevista no Código Civil de 2002 nos arts. 1667 a 1671 e no antigo código nos arts. 262 a 268, tem origem consuetudinária nos primeiros tempos da nação lusitana, consagrada depois nas Ordenações Afonsinas, às Manuelinas e às Filipinas. Amparado pelas influências de Clóvis Bevilaqua, o Código de 1916 consagrou o regime da comunhão universal e, até 1977, foi o regime legal, deixando de sê-lo quando da promulgação da Lei do Divórcio. Sílvio Rodrigues (2002, p. 197) ensina: [...] os patrimônios dos cônjuges se fundem em um só, passando marido e mulher, a figurar como condôminos daquele patrimônio. Trata-se de condomínio peculiar, pois que, insuscetível de divisão antes da dissolução conjugal, extinguindo-se inexoravelmente nesse instante [...]. Assim, na comunhão universal, os bens adquiridos antes e na constância do casamento são do casal, assim como os percebidos por herança ou doação e as dívidas posteriores ao casamento (CC/02, art. 1667). Exclui-se da comunhão os bens previstos no art. 1668, CC/02, dentre eles os bens de uso pessoal e rendimentos do trabalho por terem efeitos pernonalíssimos ou devido a sua própria natureza. Com a extinção da co1 munhão (CC/2002, art. 1671), efetiva-se a divisão do ativo e passivo e a responsabilidade de cada um dos cônjuges para com os credores do outro é cessada. Pelo exposto, não se vislumbra grandes alterações neste regime do Código de 1916 para o de 2002 além das hipóteses 1 Segundo PEREIRA (2004, p. 227 e 228), a extinção se dá, com a consequente partilha do acervo: pela morte de um dos cônjuges, pela anulação do casamento quando a sentença o considerar putativo, pela separação judicial, pelo divórcio. REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 463 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO de exclusão de bens e dívidas da comunhão universal (CC/ 1916, art. 263 e 264), no qual o atual Código foi mais restrito. 2.2.2 A Comunhão Parcial: A comunhão universal não é aceita em todos os sistemas jurídicos. Alguns adotam a comunhão limitada, como vigente na falta de convenção dos interessados. Outros aceitam combinações mais ou menos imaginosas, em que prevalece a comunicação de alguns e a separação de outros bens. E desta simbiose resulta a “comunhão parcial”. (PEREIRA, 2004, p. 212). Antigamente, no Brasil, referido regime denominavase, para Lafayette, Melo Freire, Coelho Rocha, separação; ou, por Teixeira de Freitas, regime misto; e que se pode simplesmente chamar de comunhão de aqüestos. Com o advento da Lei do Divórcio (1977) ocorreu a destituição do regime da comunhão universal como legal e ascendeu em seu lugar o da comunhão parcial. Assim, este regime passou a vigorar como legal e convencional e caracteriza-se pela comunicação do que seja adquirido na constância do matrimônio. As regras atinentes à comunhão parcial foram parcialmente alteradas de um Código para outro – 1916 para 2002 –, por isso convêm analisá-las e confrontá-las destacadamente. a) O que se exclui da comunhão?: o Código de 2002 menciona no art. 1659 o que se exclui da comunhão; ele compilou o conteúdo dos art. 269 e 270 do Código Civil de 1916, não tendo recepcionado os previstos nos incisos III e IV do art. 269. De início, exclui-se da comunhão os bens que cada cônjuge possuía ao casar, constituindo os bens particulares 464 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS de cada um. Na mesma categoria incluem-se os que cada cônjuge, na constância do casamento, receber por doação ou por herança, e os sub-rogados em seu lugar. b) Dívidas e obrigações: cada um dos cônjuges responde pelas dívidas contraídas anteriormente ao casamento. Todavia, entende-se que haverá comunicação dos débitos anteriores no caso de se beneficiar o cônjuge que não os tenha, “como na hipótese de dívida contraída na aquisição de bens de que lucram ambos”. (PEREIRA, 2004, p. 215). Ainda, cada cônjuge responde pelas obrigações provindas de ilícitos por ele cometidos. c) Não se comunicam os bens de uso pessoal [livros e instrumentos de trabalho] e os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge. O legislador não quis deixar dúvidas e inseriu neste contexto a palavra proventos que, num sentido amplo e comum, significa salário, vencimentos, qualquer verba percebida como ganho decorrente de atividade laborativa do cônjuge [conseqüentemente, há que se excluir os bens que com eles adquirir]. Ainda, acrescenta-se nos incomunicáveis as pensões, meio-soldos, montepios e outros rendimentos semelhantes. O art. 1660 traz os bens que são comunicáveis, ou seja, entram na comunhão. No Código antigo o marido era administrador de todos os bens: comuns, seus próprios e da mulher, salvo quanto a esta, o direito de reservar-se a administração de alguns determinados ou de todos que lhe pretencem. Tal prerrogativa se extinguiu com a nova visão constitucional, em que a administração dos bens comuns cabe ao casal; ou, no caso de malservação dos bens, poderá o juiz atribuir a administração a apenas um dos cônjuges (CC, o art. 1663, § 3 ). d) Cessando o regime pela morte de um dos cônjuges, pela separação judicial, pelo divórcio ou anulação do matrimôREVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 465 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO nio, os bens que não se comunicam se atribuem a cada um respectivamente ou aos herdeiros, e os que eram comuns se distribuem segundo as regras da partilha no regime da comunhão universal. e) Outras inovações no tocante a responsabilização e adminsitração são os arts. 1664, 1665 e 1666 do Código Civil de 2002. 2.2.3 A Participação Final nos Aqüestos: O Código Civil de 2002 inseriu esta nova e ainda pouco difundida modalidade de regime de bens em seus arts. 1672 a 1686. Originário do direito costumeiro húngaro, tendo sido adotado pelos países escandinavos [Suécia, Finlândia, Dinamarca e Noruega], também foi adotado na Alemanha como regime supletivo desde 1957 e no Código Civil francês em 1965. (PEREIRA, 2004). Inseriu-se no Direito Civil brasileiro constituindo um regime misto: mescla regras dos regimes da comunhão e da separação. De acordo com Eduardo Leite (2005, p. 351): “durante o casamento, como ocorre na separação de bens, cada um dos cônjuges goza de liberdade total na administração e na disposição de seus bens, mas, ao mesmo tempo, associa cada cônjuge aos ganhos do outro, quando ressurge a idéia da comunhão.” Assim, a modalidade de participação final nos aqüestos é o regime em que há a formação de massas de bens particulares e incomunicáveis durante o casamento, ocorrendo apenas a comunicação quando da dissolução da sociedade conjugal, limitando-se ao direito de participação final sobre o valor de eventual saldo, após a compensação dos acréscimos de ambos 466 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS os cônjuges; ocasião em que cada cônjuge torna-se credor da metade do que o outro adquiriu durante a constância da sociedade conjugal. Dos bens indivisíveis, apurar-se-á o valor para reposição em dinheiro em favor de cada cônjuge não-proprietário; não se podendo realizar a reposição em dinheiro, serão avaliados e, mediante autorização judicial, alienados tantos bens quanto bastarem, nos termos do art. 1684 e seu parágrafo único. Ainda, constata-se a exclusão dos bens anteriores ao casamento e sub-rogados, do que sobrevierem a cada cônjuge por sucessão ou liberalidade e das dívidas relativas aos mesmos. No tocante a administração dos bens, faz-se necessário destacar algumas peculiaridades, e para isso nos utilizamos DINIZ (2004, p. 167-168): A administração do patrimônio inicial é exclusiva de cada cônjuge, que, então, administrará os bens que possuía ao casar, os adquiridos por doação e herança e os obtidos onerosamente, durante a constância do casamento, podendo aliena-los livremente, se forem móveis (CC, art. 1673, parágrafo único). No pacto antenupcial que adotar esse regime poder-se-á convencionar a livre disposição dos bens imóveis, desde que particulares do alienante (CC. Art. 1656). Se não houver convenção antenupcial nesse sentido, nenhum dos cônjuges poderá alienar ou gravar de ônus os bens imóveis (CC, art. 1647, I) sem autorização do outro. Por fim, cabe frisar a insatisfação dos doutrinadores na constituição desta modalidade de regime em nosso ordenamento, pois na prática, a difícil apuração contábil apresentada por esse, deixará eventual litígio lento e dispendioso. Para PEREIRA (2004, p. 236), o legislador, ao buscar subsídios na doutrina estrangeira, quis inserir no direito experiência internacional não coerente com a estrutura econômica brasileira, diante da REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 467 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO inflação ainda enfrentada que, por mais que reduzida, às partilhas de bens nesse regime. 2.2.4 A Separação de Bens: A separação de bens trata-se de regime em que cada consorte conserva o domínio, a posse e a administração de seus bens presentes e futuros, inclusive os débitos anteriores e posteriores ao casamento. Assim, cada consorte – o marido e a mulher – conserva seu patrimônio original, traduzindo-se na incomunicabilidade, inclusive do que adquirir na constância do casamento, havendo uma completa separação de patrimônio dos dois cônjuges. Por conseqüência desta incomunicabilidade, não há proibição de gravar de ônus real ou alienar bens, inclusive imóveis, sem o consentimento do outro cônjuge. Esta disposição é inovação do atual Código Civil – art. 1687 -, visto que o Código de 1916 vedava tal atitude sem a anuência ou autorização do consorte. Ainda, é novidade a alteração trazida ao art. 277 do antigo Código. Agora, por conta do princípio constitucional da igualdade entre os cônjuges, ambos estão adstritos à obrigação de concorrer para o adimplemento das despesas do casal, nas proporções dos rendimentos de seu trabalho e de seus bens, salvo estipulação em contrário quando da realização do pacto antenupcial. Quanto as suas formas, temos a classificação da separação de bens em legal e convencional. A separação de bens legalmente imposta se dá nos casos previsto no art. 1641 do Código Civil – inobservância de causas suspensivas da celebração do casamento, casamento de pessoas com mais de sessenta anos e daqueles que dependerem de suprimento judicial para o 468 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS ato. Já, a convencional é a regida pelo art. 1687 do mesmo diploma e fixada mediante pacto antenupcial. No tocante a imposição legal do art. 1641 do Código Civil à aderência ao regime da separação de bens, cabe ressaltar que em relação às causas suspensivas da celebração do casamento e das pessoas que dependerem de autorização judicial, uma vez supridas referidas condição ali imposta e adquirida a maioridade civil, nada obsta a admissibilidade de alteração do regime matrimonial de bens constante do art. 1639, o § 2 do mesmo diploma. Por conseqüência, conclui-se que a única situação em que a lei impõe definitivamente referido regime é no casamento em que um dos cônjuges é maior de sessenta anos. Por fim, mas sem o intuito de estender-se, com o advento do Código Civil de 2002, pairam dúvidas quanto à apli2 cabilidade da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal adotada quando da vigência do antigo Código. Os que sustentam a inaplicabilidade de referida súmula após 2002, fundam-se no novo Código Civil por não prever a regra contida no art. 259 do Código Civil de 1916, que dispunha: “embora o regime não seja o da comunhão de bens prevalecerão, no silêncio do contrato, os princípios dela, quanto à comunicação dos adquiridos na constância do casamento”. Os que argumentam sua aplicação, argumentam que não há razão [justo] que os bens fiquem pertencendo exclusivamente a um dos cônjuges quando representam trabalho e economia de ambos. 2 Súmula 377 do STF: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”. REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 469 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO 2.2.5 O Regime Dotal: Pode-se conceituar como regime dotal que, outrora, vigorava aquele em que um conjunto de bens, designado dote, era transferido pela mulher, ou alguém por ela, ao marido, para que este, dos frutos e rendimentos desse patrimônio, retirasse o que fosse necessário para fazer frente aos encargos da vida conjugal, sob a condição de devolvê-lo com o término da sociedade conjugal. (DINIZ, 2004, p. 179). O dote poderia ser constituído por um ou mais bens determinados, conforme descrito e estimados na convenção antenupcial, para que se fixasse o preço que o marido deveria pagar quando no caso da dissolução da sociedade conjugal. Ainda, continha a convenção a expressa declaração de que tais bens ficariam sujeitos ao regime dotal, ou seja, destinação específica, daí a incomunicabilidade desse patrimônio podendo o marido tão-somente administrá-lo. O regime dotal estava previsto nos art. 278 a 311 do Código Civil de 1916, não sendo incluído dentre os regimes previstos no novo Código. Para Maria Helena Diniz, Sílvio Rodrigues e Washington de Barros Monteiros, esse regime não teve a menor aceitação entre nós, caracterizando um verdadeiro desajuste entre a realidade material dos fatos e a realidade formal das normas jurídicas. Tendo-se abordado, ainda que em breve noções, os regimes de bens adotados pelo Código Civil anterior [1916] e pelo em vigor [2002], e exposto os princípios e regras que norteiam estas convenções, pode-se concluir que o Direito brasileiro apresenta destacável estrutura e modernização em matéria de regime de bens, incluindo, ainda, a previsão contida no o art. 1639, § 2 do Código Civil, referente ao objeto de estudo desse trabalho, segundo a qual a alteração do regime de bens 470 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS durante o casamento passou a ser admitida em nosso ordenamento inserindo-se o princípio da mutabilidade dos regimes. Neste momento, em análise mais específica, adentraremos na visão permissionista da mutabilidade. 2.3 Autonomia Privada versus Ordem Pública Novamente destacando a dicotomia Direito Privado e Direito Público, tende-se a revelar o enquadramento dado a determinado ramo do Direito Civil, aqui em especial ao direito de Família com sua existente divisão em casamento, que por sua vez traz a opção pelo regime matrimonial de bens. Destaca-se que esta classificação [público-privado] apresenta-se de forma que é possível conciliá-la e encontrarmos um comum entre elas no qual vivem harmoniosamente. Por isso, não podemos escapar de nos posicionar junto a Maria Celina Bodin de Moraes (apud PEREIRA, 2004) na idéia de que hoje, o que temos, é a supremacia axiológica da Constituição que passou a se constituir como centro de integração do sistema jurídico de direito privado, e que por conta disso se pode afirmar ser ultrapassada esta dicotomia que tanto já foi ressaltada e fixada entre direito público e privado. O Direito de Família tem princípios, alguns de ordem privada, outros decorrentes de ordem pública. Destaques devem ser dados ao princípio da autonomia da vontade que autoriza um casal a tomar determinados posicionamentos, como p. ex., ser livre a escolha pelo modelo de formação educacional dos filhos, mas se deve combinar esta com a assistência, que prevê a necessidade de educação, criação e o dever se assistir. Da mesma forma, e agora adentramos na especificidade deste estudo, devemos analisar a escolha do regime de bens pelo casal. Excetuados os casos em que o Estado impõe um regiREVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 471 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO me matrimonial de bens legal ou obrigatório, os demais cabe ao casal optar pela escolha de qual regime norteará seu matrimônio. Isto se funda na autonomia que os mesmos tem de “planejamento familiar”. Assim, unindo-se ao princípio da liberdade, que abarca a livre escolha do regime de bens, há que se deixar ao livre arbítrio do casal esta fixação e sua alteração quando conveniente [sempre atendendo aos requisitos neces3 sários para alteração] . Pelo analisado, pode-se expressar a idéia de que as normas atinentes ao Direito Civil, em especial ao de Família, impõem-se hora fundadas na ordem pública – cogentes, são aplicáveis a todos indistintamente -, ora fundadas na ordem privada, mas que independente a que taxinomia se liguem, para serem respeitadas e cumpridas a função que o Estado quer para cada indivíduo, deve-se sempre partir do respeito a dignidade da pessoa humana, que necessariamente deve ser encarado como base, alicerce para se ver cumpridos os demais princípios. Ainda, a exegese do preceito que faculta aos cônjuges a alteração do regime de bens deve ser realizada de modo a respeitar o princípio da igualdade ou isonomia, concluindo-se que autorizar somente os casados após 11 de janeiro de 2003 a alteração do regime de bens com base na disposição do art. 2039 do Código Civil, que não prevê expressamente a manutenção do princípio da irrevogabilidade dos regimes para casamentos anteriores [art. 230 do Código Civil de 1916], é discriminatória ao atribuir tratamento desigual a pessoas que se encontram em igual situação de casadas; até porque essa interpretação restritiva levaria os casados sob a égide do diploma 3 Os requisitos necessários para a alteração do regime de bens serão alvo de abordagem em tópico específico. 472 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS revogado a buscar isonomia pelo divórcio e novo casamento, em franca fraude à lei. Exposta esta idéia inicial, e recorrendo ao objetivo proposto, analisa-se o Direito Intertemporal e, assim, a quem se a plica a regra estabelecida no art. 1639, § 2º do Código Civil. 3 DIREITO INTERTEMPORAL VERSUS PRERROGATIVA DO ART. 1639, § 2º E ART. 2039, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 Antes de partirmos para o exame do presente tópico e as novas disposições do Código Civil, impende salientar que o art. 230 do Código Civil revogado, com extremo rigor, ainda que admitindo raríssimas exceções, impunha: Art. 230. O regime de bens entre cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento, e é irrevogável. Ao contrário o novo Código Civil, por intermédio do art. 1.639, § 2º, permite a alteração do regime patrimonial de bens, desde que constantes os pressupostos descritos em referida norma legal, os quais serão analisados posteriormente. A partir de tal norma, surge a controvérsia a ser dirimida, conforme bem explana Mário Luiz Delgado (2004, p. 130): A grande controvérsia no tocante ao presente dispositivo refere-se à aplicabilidade ou não da regra que permite a mudança do regime de bens durante o casamento (art. 1.639, § 2º). Valeria para quem se casou antes de 11 de janeiro de 2003 ou apenas para quem venha a contrair matrimônio após a entrada do novo Código? Não há dúvidas que tal indagação traz consigo inúmeras incertezas, recaindo sobre os magistrados e Tribunais as soluções que encontrem o verdadeiro ‘espírito’ do legislador e REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 473 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO que, ao mesmo passo, aponte para os anseios do corpo social. Diante de tal indagação, várias correntes doutrinárias surgiram, apontando para entendimentos diversos. Neste norte, cumpre ao Direito Intertemporal estabelecer “os parâmetros definidores dos limites de vigência de duas normas que se sucedem cronologicamente” (DELGADO, 2004, p. 2). Contudo, supracitado doutrinador aponta com propriedade que, muitas vezes, além dos princípios gerais que integram o Direito Intertemporal, o próprio legislador pode querer conceder a solução, “ou mesmo evitar o possível conflito de leis, regulando casuisticamente os problemas que por certo decorrerão do advento da nova lei e revogação da anterior” (DELGADO, 2004, p. 3). Desta forma, o legislador do Código Civil de 2002 se valeu da prerrogativa mencionada, inserindo no corpo da própria lei as disposições acerca da aplicabilidade da norma revogada e da incidência do novo ordenamento jurídico. Mário Luiz Delgado (2004, p. 4), expõe: O Código Civil de 2002, inovando em relação ao seu antecessor revogado, não deixou ao talante exclusivo da doutrina e da jurisprudência a escolha das normas aplicáveis às relações em curso, estabelecendo, no próprio texto normativo, um conjunto de regras destinadas a conciliar, por meio de critérios fundados na eqüidade e nos princípios gerais do direito, a lei posterior com as relações já definidas pela anterior, indicando ao Juiz qual o sistema jurídico sobre o qual devem estar lastreadas as decisões judiciais. Trata-se de verdadeira “lei de conflito”, em que o legislador procurou solucionar os eventuais conflitos, estabelecendo quando se aplicará o CC/1916 ou o CC/2002, ou em que proporção se aplicará cada um deles. 474 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS Assim, o Código Civil de 2002, por intermédio dos arts. 2.028 a 2.046, que integram o denominado “Livro Complementar – Das Disposições Finais e Transitórias”, “destinamse, exatamente, à prevenção e solução do conflito de leis no tempo, que poderia resultar da aplicação da lei posterior a situações constituídas sob a regência da lei anterior”. (DELGADO, 2004, p. 4). Convém destacar que o legislador pátrio, ao estipular, ele próprio, as disposições atinentes ao livro citado, observou os ditames do Direito Intertemporal, com especial atenção ao art. 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal [que impõe o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e a coisa julgada] e ao art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC). Ultrapassadas as considerações gerais acerca do Direito Intertemporal e o Novo Código Civil, mister se faz delimitarmos as disposições constantes do “Livro Complementar – Das Disposições Finais e Transitórias” que são aplicáveis, dentro do assunto em análise. Outrossim, frente às normas inseridas no novo Código Civil , o art. 2.039 merece especial atenção quando se fala na alteração do regime patrimonial de bens. Cabe considerar que supracitado artigo reza que: “o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Códio go Civil anterior, Lei n. 3071, de 1 de janeiro de 1916, é por ele estabelecido”. Por isso, surge a primeira dúvida se o novo princípio de mutabilidade do regime de bens afeta os casamentos realizados na vigência do antigo código. Esta dá ensejo a outras dúvidas referentes às conseqüências/efeitos desta alteração. Respeitáveis juristas vem se manifestando pela impossibilidade da alteração do regime matrimonial dos bens, conforme as lições de Maria Helena Diniz (2003, p. 1394/1395): REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 475 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO O novo Código Civil, com sua entrada em vigor, terá efeito imediato e geral, desde que respeite o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada (CF/88, art. 5º, XXXVI, e LICC, art. 6º. [...]. Se assim é, em relação ao regime matrimonial de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916 é o por ele estabelecido nos arts. 256 a 314, em respeito às situações jurídicas definitivamente constituídas, pouco importando que venham a colidir com o disposto nos arts. 1.639 a 1.688 do novo Código Civil. Os arts. 256 a 314 do Código Civil de 1916, não mais vigentes, continuam a ser vinculantes, tendo vigor para os casamentos anteriores à vigência do Código Civil de 2002, visto que o seu art. 2.039, sub examine, dá-lhes aptidão para produzir efeitos jurídicos concretos mesmo depois de revogados. Resguarda-se assim a segurança jurídica, que exige que as situações patrimoniais entre os cônjuges criadas sob o amparo de uma lei não sejam alteradas por outra posterior. De outro lado, parte da doutrina se posiciona pela possibilidade da alteração do regime patrimonial de bens, de acordo com o art. 1.639 do CC em vigor, mesmo pelos casais que contraíram matrimônio pelo Código Civil de 1916. Antônio Jeová dos Santos (2003, p. 116/117) expõe seu posicionamento pela possibilidade de citada alteração, haja vista que a norma inserida no § 2º de referido dispositivo legal incluiu no ordenamento jurídico pátrio nova ação judicial que visa a alterar o regime patrimonial de bens e, portanto, diante de sua feição puramente processual, possui aplicabilidade imediata: E se a mudança de regime de bens somente pode ser concretizada mediante sentença judicial, não dependendo apenas da autonomia da vontade do casal, esta regra é de natureza vistosamente processual e, como tal, sua aplicação é imediata. Abarca todos os casamentos aqueles celebrados antes da vigência do Código Civil de 2002, inclusive. [...]. Não nos furtamos à afirmação de que – deixai passar a 476 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS repetição – os cônjuges que se casaram antes do Código Civil de 2002 poderão modificar o regime de bens, atendido o disposto no art. 1.639, § 2º. Regras de direito processual têm aplicação imediata, porque não existe direito substantivo a ser protegido. As leis processuais não atingem a esfera dos direitos materiais já incorporados ao patrimônio dos cidadãos. Entre os que se mostram adeptos a esta retroatividade estão José Encina Manfré e José da Silva Pacheco, que sustentam: “se tal alteração é possível, doravante, em relação às escolhas feitas, após a entrada em vigor do novo Código, nada impede que se admita a mudança, em relação ao regime escolhido anteriormente”. (apud, MEIRELLES, 2004, p.12). Interessante, também, mostram-se os argumentos expendidos por Rolf Madaleno, segundo o qual o art. 230 do Código Civil de 1916, que vedava a mutabilidade do regime matrimonial de bens, não pode continuar a dispor os matrimônios celebrados na sua vigência. Isto porque, o art. 2.045 do CC de 2002 revogou inteiramente o Código Civil de 1916, inexistindo, portanto, fundamentos para a subsistir o citado art. 230. Assim, ensina Rolf Madaleno (2003, p. 204-205): Começa que o novo Código Civil, no seu artigo 2.045 revoga inteiramente a Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916 – o Código Civil anterior. Logo, não há como imigrar para o artigo 230 (CC de 1916), abrogado, a partir da ressalva extraída do artigo 2.039 do novo Código Civil, quando diz que os regimes anteriores continuarão sendo respeitados e regulados pelos princípios da legislação passada, mas nada impede que possam ser alterados pela legislação presente. [...]. Portanto, o artigo 2.039 do Código Civil não autoriza deduzir que o artigo 230 do Código Civil de 1916 siga regulando os matrimônios celebrados ao seu tempo, como se REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 477 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO meramente derrogado para os novos casamentos contraídos sob a égide do novo Código Civil. Nem há que ser falado em direito adquirido, dado que um novo sistema substituiu o anterior, há uma nova disciplina no campo da mutabilidade do regime de bens, em que o § 2º, do artigo 1.639 do Código de 2002 revogou o artigo 230 do Código de 1916. A bem da verdade, evidencia-se que os doutrinadores pátrios, a partir de tais divergências passaram a se dividir quanto à aplicação do art. 2.039 do CC/2002 aos casamentos realizados sob a égide do CC de 1916, e, ao mesmo tempo, apontando diversas interpretações a norma legal incidente. Ademais, convém destacar o preceito do art. 2.035 do CC/2002, que dispõe: Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. DINIZ, no volume de Direito de Família do Curso de Direito Civil Brasileiro (2004, p. 151-155), traz à baila o art. 2035 do novo Código Civil, acrescentando que seu parágrafo único dispõe que: “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”. O art. 2035 refere-se a atos negociais anteriores ao novo Código e regem-se pelo Código Civil de 1916 e terão validade se atendidos os pressupostos legais. Sabe-se que o novo Código Civil não alcança os atos pretéritos iniciados e findos antes da data de seu início, mas tão-somente os futuros. “E os contratos em curso de execução, como, p. ex., os pactos antenupciais, são regidos pela lei sob cuja vigência foram estabeleci478 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS dos”. Assim, Diniz conclui que “logo, o art. 2039 é o aplicável ao regime matrimonial de bens, que, portanto, será imutável, se o casamento se deu sob a égide do Código de 1916, salvo as exceções admitidas pela jurisprudência, durante sua vigência”. Ainda, acrescenta que nada obsta a que se aplique o art. 1639, o § 2 do novo Código, excepcionalmente se assim o magistrado o o entender, “aplicando os arts. 4 e 5 da LICC, para sanar lacuna axiológica que, provavelmente, se instauraria por gerar uma situação em que se teria a não correspondência da norma do CC de 1916 com os valores vigentes na sociedade, acarretando injustiças”. Já Washington de Barros Monteiro (2004) entende de outra forma e afirma que as relações de caráter patrimonial originadas do casamento, regulam-se pela lei do tempo em que se formaram, assim, o regime de bens não está sujeito às alterações da lei nova. Neste rumo, valiosa é a lição de citado jurista (MONTEIRO, 2004, p. 188): Na conformidade do art. 2.039 do novo Código Civil, [...], a uma primeira vista, poderia levar à conclusão de que seria inaplicável o princípio da mutabilidade aos casamentos celebrados anteriormente à vigência do novo Código Civil. Devese, no entanto, ter presente o disposto no art. 2.035 do novo Código Civil. Ademais, ainda que à título de problematização, devese ter em mente que dois companheiros na união estável possuem a faculdade de alterar o regime patrimonial de bens a qualquer tempo; vedar tal alteração ao cônjuges é subverter a hierarquia constitucional do casamento, conforme vários autores vem esposando em seus posicionamentos. Dessarte, parece-nos que tende prevalecer os entendiREVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 479 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO mentos dos juristas quanto a possibilidade da alteração do regime matrimonial de bens, ou seja, a propensão é que os doutrinadores pátrios não emprestem grande ênfase a uma interpretação literal da disposição do art. 2.039 do CC mas, em verdade, apeguem-se e apoiem ao anseio social de permitir que os casais tenham a plena possibilidade, desde que respeitados os requisitos e os direitos de terceiros, de dispor e alterar o regime de bens que contrataram quando do matrimônio. Diante de tais entendimentos, sem dúvida alguma se estará privilegiando os princípios da isonomia de tratamento das pessoas que integram a condição de casados, bem como a modernidade, haja vista que o direito deve seguir as transformações e evoluções do corpo social. Analisado o Direito Intertemporal a par da possibilidade de alteração do regime matrimonial de bens por conso tante disposição expressa do art. 1639, § 2 , CC, buscaremos traçar os mais diversos requisitos necessários para se pleitear a alteração fundados nas possíveis saídas/possibilidades que podem ocorrer e que efeitos podem ser decorrentes da mudança. 4 REQUISITOS JURÍDICOS PARA A MUDANÇA DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS E CONSEQÜÊNCIAS JURÍDICAS DA MUDANÇA Como exposto anteriormente, o Código Civil de 1916 vedava a possibilidade de alteração do regime pactuado entre os cônjuges. Esta imposição veio a sofrer flexibilidade com o advento de decisões que se adaptavam com a evolução que a sociedade sofreu através dos tempos. Com o advento do Códi480 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS o go Civil de 2002, segundo dispõe o art. 1639, § 2 , não mais vigora o Princípio da Imutabilidade, dando lugar à possibilidade de modificação. Os capítulos anteriores cuidaram de analisar as questões relevantes à possibilidade de alteração do regime de bens bem como de definir os fundamentos do Direito Intertemporal que interessam ao tema, isto para que seja possível a verificação do alcance da faculdade da modificação do regime de bens para todos os casamentos, independentemente da data da sua realização, seja sob a égide do Código Civil de 1916 ou do diploma de 2002. Dispõe o art. 1639 do Código Civil: É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver. § 1º. O regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento. § 2º. É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros. Inicialmente, extrai-se do texto legal os seguintes requisitos para a alteração: documento fundamentado; pedido de ambos os cônjuges; fundamentação do pedido; resguardo ao direito de terceiros. Por segundo, na opinião dos juristas [doutrinadores e tribunais], são requisitos: 1) Para PEREIRA (2004, p. 191-193): não há necessidade de tempo mínimo de casamento; não estabelecimento de hipóteses ou condições para os requerentes; comprovação do patrimônio existente; averbação da decisão no local de registro de casamento e no Registro de Imóveis da situação dos bens quando existirem estes; averbação na Junta Comercial se comerciante qualquer dos cônjuges; atuação do Ministério Público, embora se trata de jurisdição voluntária; competência do juízo da Família; REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 481 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO 2) para o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por meio do então Corregedor-Geral Desembargador Acides dos Santos Aguiar, em 22 de agosto de 2003 expediu o Provimento nº 13/2003, são requisitos, além dos que se extrai de forma o clara da leitura do artigo 1639, § 2 : é procedimento de jurisdição voluntária; necessita publicação de edital pelo juízo com prazo de 30 dias a fim de imprimir a devida publicidade à mudança; obrigatoriedade de intervenção do Ministério Público; expedição de ofícios aos Cartórios de Registro de Imóveis e Civil; se qualquer dos cônjuges for empresário, ofício ao Registro Público de empresas Mercantis, a cargo da Junta Comercial – JUCESC; competência do Juízo da Vara da Família; 3) Para o Superior Tribunal de Justiça, prevê o enunciado nº 13 aprovado na Jornada de Direito Civil: É admissível alteração do regime de bens entre os cônjuges, quando então o pedido, devidamente motivado e assinado por ambos os cônjuges, será objeto de autorização judicial, com ressalva dos direitos de terceiros, inclusive dos entes públicos, após a perquirição de inexistência de dívida de qualquer natureza, exigida ampla publicidade. 4) Para Hércules Aghiarian (2004): [...] a instrução deverá conter a qualificação dos cônjuges, o regime que vige e qual passará a ter eficácia, o que pretendem, a causa de pedir que motiva a conversão e os pedidos, além, por óbvio, de vir acompanhada das certidões negativas de Cartórios de Registros de Imóveis, havendo bens, e, sobretudo, das certidões de distribuidores de ações cíveis e criminais, de abrangência de feitos de competência estadual e federal, bem como de centralização de distribuição de negócios jurídicos. Oportuno, ainda, a apresentação de certidões de interdições e tutelas. As municipais, de regra, por mais vulgares, restam apontando litígios decorrentes de obrigações tributárias, propter rem. Assim, por cautela, a certidão negativa de débitos fiscais, como do distribuidor de com482 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS petência de ações da fazenda municipal, soam como prudência inafastável, necessária ao momento da partilha e inventariança. Extraídos os requisitos que norteiam o pedido de alteração do regime matrimonial de bens, deve-se retomar ao avaliado no Direito Intertemporal e relembrar que o art. 1639, § 2º, amparado pelo art. 2039, ambos do Código Civil, tende a apegar-se e apoiar-se ao anseio social de permitir que os casamentos, incluídos os celebrados sob a égide do Código Civil de 1916, tenham plena possibilidade, desde que respeitados os requisitos, de alterar do regime de bens pactuado. Assim, o art. 1639, § 2º tem efeito imediato. Em razão desse efeito, apresenta-se que a alteração do regime matrimonial de bens pode ter eficácia ex nunc ou ex tunc. A eficácia aplicável deverá ser analisada conforme o caso apresentado perante o magistrado: a) Ex nunc: se a decisão optar pela eficácia ex nunc, o novo regime de bens deverá ter vigência a partir do trânsito em julgado da sentença, ou seja, válido para o presente e futuro; ainda, resguardar-se-á o direito de terceiros; b) Ex tunc: se a eficácia adotada for a ex tunc, o novo regime matrimonial de bens retrogirá à data da celebração do casamento. Caberá ao magistrado analisar com maior cautela, fixando que o novo regime terá validade somente para os cônjuges durante todo o período do casamento; assim, excetuam-se os terceiros que, se prejudicados, perante eles prevalecerá o antigo regime de bens da data da celebração do casamento até o trânsito em julgado da sentença que autorizou a modificação. Neste sentido é o entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que estabelece como regra a eficácia ex tunc: REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 483 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO ALTERAÇÃO DE REGIME DE BENS DO CASAMENTO. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. 1. A alteração do regime de bens é possível juridicamente, consoante estabelece o art. 1.639, §2º, do NCCB e as razões postas pelas partes evidenciam a conveniência para eles, trazendo para ambos vantagem de caráter econômico e patrimonial, constituindo o pedido motivado de que trata a lei. 2. A alteração do regime de bens pode ser promovida a qualquer tempo, de regra com efeito ex tunc, ressalvados direitos de terceiros, inexistindo qualquer obstáculo legal à alteração de regime de bens de casamentos anteriores à vigência do Código Civil de 2002. Inteligência do artigo 2.039, do NCCB. Recurso provido. (TJRS, AC 70009419813, de Passo Funda. Rel. Des. Sérgio Fernando e Vasconcelos Chaves. 7ª Câmara Cível, de 27/10/2004). Ainda, cabe destacar o posicionamento de Euclides de Oliveira (2003): A respeito do termo inicial de vigência do novo regime de bens, se a partir da sentença ou retroativo à data do casamento, há que se levar em conta a formulação do pedido e os termos da decisão proferida pelo juiz. Normalmente, os efeitos se operam ex nunc, preservando-se, pois, a situação anterior originada pelo pacto antenupcial, até o momento da mudança. Mas não se descarta a possibilidade de pedido de modificação do regime ex tunc, cabendo ao juiz examinar, ainda com maior cautela, a proteção dos direitos das partes requerentes e de terceiros interessados, para então decidir, se for o caso, pela autorização do novo regime de bens em caráter retroativo à data da celebração do casamento. Trata-se de questão controvertida, bem se reconhece, a exigir mais aprofundado estudo e a esperada solução que haverá de ser ditada pela jurisprudência na apreciação dos casos concretos, com essas e outras variáveis. Pode-se, por fim, destacar o caso em que os próprios cônjuges encaminham pedido apresentando uma solução, ou seja, um alternativa de divisão de bens e regime, que ao magis484 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS trado, verificando a justiça do caso exposto, caberá deferir. Para desfecho, da leitura do art. 1639, extrai-se eu a intenção do legislador era a aplicabilidade, como regra, do efeito ex tunc, pois se contrário fosse seu pensamento não teria porque ressalvar o direito de terceiro prejudicado. 5 ENTENDIMENTOS JURISPRUDENCIAIS E FUTURAS TENDÊNCIAS A partir da possibilidade da alteração do regime matrimonial de bens, prevista no art. 1.639, § 2º, os Pretórios pátrios foram instados a se manifestar acerca da questão, haja vista que casais, por motivos diversos, buscaram a aplicação de referida norma legal. Pode-se citar, como exemplo, a determinação imposta pelo art. 977 do Código Civil, quanto à impossibilidade dos cônjuges contratar sociedade, com terceiros ou entre si, quando casados no regime da comunhão universal de bens ou no da separação obrigatória. Neste norte, vários casais, visando a continuidade de seus negócios familiares, projetaram a alteração do regime matrimonial de bens como a única saída para se adequarem a imposição legal supracitada. Outrossim, diversos são os fatos e motivos que levam, todos os dias, os cônjuges a pleitearem a tutela jurisdicional para a alteração do regime matrimonial de bens, principalmente daqueles realizados antes da entrada em vigor do Código Civil de 2002. Desta forma, procedendo-se pesquisa jurisprudencial, constata-se que os Tribunais pátrios começam a definir um posicionamento majoritário, mas, não unânime. Sempre assumindo o papel inovador e de vanguarda, o REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 485 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul começou a adotar o entendimento da possibilidade da alteração do regime matrimonial de bens. Como destaques deste novel posicionamento, referida Corte de Justiça manifestou-se: PEDIDO DE ALVARÁ JUDICIAL. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA LAVRAR ESCRITURA PÚBLICA DE PACTO ANTENUPCIAL. POSSIBILIDADE JURÍDICA DA ALTERAÇÃO DE REGIME. DESNECESSIDADE DE ESCRITURA PÚBLICA. 1. Não tendo havido pacto antenupcial, o regime de bens do casamento é o da comunhão parcial sendo nula a convenção acerca do regime de bens, quando não constante de escritura pública, e constitui mero erro material na certidão de casamento a referência ao regime da comunhão universal. Inteligência do art. 1.640 NCCB. 2. A pretensão deduzida pelos recorrentes que pretendem adotar o regime da comunhão universal de bens é possível juridicamente, consoante estabelece o art. 1.639, §2º, do Novo Código Civil e as razões postas pelas partes são bastante ponderáveis, constituindo o pedido motivado de que trata a lei e que foi formulado pelo casal. Assim, cabe ao julgador a quo apreciar o mérito do pedido e, sendo deferida a alteração de regime, desnecessário será lavrar escritura pública, sendo bastante a expedição do competente mandado judicial. O pacto antenupcial é ato notarial; a alteração do regime matrimonial é ato judicial. 3. A alteração do regime de bens pode ser promovida a qualquer tempo, de regra com efeito ex tunc, ressalvados direitos de terceiros. Inteligência do artigo 2.039, do NCCB. 4. É possível alterar regime de bens de casamentos anteriores à vigência do Código Civil de 2002. Recurso provido”. (SEGREDO DE JUSTICA) (Apelação Cível Nº 70006423891, Sétima Câmara Cível, rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. em 13/08/ 2003). APELAÇÃO CÍVEL. ALTERAÇÃO DE REGIME DE BENS DE CASAMENTO CELEBRADO NA VIGÊNCIA DO ANTERIOR CÓDIGO CIVIL. POSSIBILIDADE 486 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS JURÍDICA DO PEDIDO. 1. A alteração do regime de bens está autorizada pelo o art. 1.639, § 2º, do atual CCB. 2. A alteração do regime de bens pode ser promovida a qualquer tempo, inexistindo obstáculo nos casos de casamentos anteriores à vigência do Código Civil de 2002. 3. Inteligência do artigo 2.039 do CCB e do Enunciado nº 260 da I JORNADA DE DIREITO CIVIL, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Recurso provido”. (Apelação Cível Nº 70012446126, Sétima Câmara Cível, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 31/08/ 2005). Para finalizar, em sessão realizada em 14/09/2005, a Sétima Câmara Cível do citado Tribunal, em decisão proferida na Apelação Cível nº 70012341715, de relatoria da Desembargadora Maria Berenice Dias, apontou, de forma brilhante, o entendimento da Corte Gaúcha: REGISTRO CIVIL. REGIME DE BENS. ALTERAÇÃO. MOTIVAÇÃO. Com o reconhecimento da mutabilidade do regime de bens pelo Código Civil houve, em verdade, uma otimização do princípio da autonomia da vontade do casal, consagrado no princípio da livre estipulação do pacto, de forma que não deve a Justiça ser por demais resistente no exame do requisito da motivação previsto no §2º do art. 1639 do Código Civil. Até porque, a esta exigência legal deve ser conferida uma conotação de ordem subjetiva, tendo em vista as inúmeras razões internas e externas que podem levar um casal a optar pela alteração do regime de bens. Ademais, não se pode olvidar que, quando da escolha do regime de bens por ocasião da celebração do casamento, não é exigido dos nubentes qualquer justificativa sobre o pacto eleito, motivo pelo qual, por mais esse fundamento, tal condição deve ser minimizada pelos julgadores. Apelo provido”. (Apelação Cível Nº 70012341715, Sétima Câmara Cível, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 14/09/2005). Ao contrário, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, em todos os julgados encontrados até o mês de maio REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 487 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO de 2005, manifestou-se pela impossibilidade da alteração do regime matrimonial de bens dos casamentos realizados sob a égide do Código Civil de 1916. Convém destacar os seguintes precedentes jurisprudenciais: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE MODIFICAÇÃO DO REGIME DE BENS – IMPOSSIBILIDADE – INTELIGÊNCIA DO ART. 230 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 – CASAMENTO REALIZADO SOB A ÉGIDE DO CÓDIGO CIVIL ANTIGO – NOVO CÓDIGO CIVIL, ART. 1.639, §2° – NÃO APLICABILIDADE – EXEGESE DO ART. 2.039 DO CÓDIGO CIVIL EM VIGOR – REGIME MATRIMONIAL MANTIDO – SENTENÇA CONFIRMADA – RECURSO NÃO PROVIDO. A modificação do regime matrimonial de bens, de casamento celebrado sob a égide do Código Civil de 1916, é juridicamente impossível, ex vi do art. 2.039 do atual Código Civil”. (Apelação cível n. 03.020451-2, da Capital, Relator: Des. Wilson Augusto do Nascimento). APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE ALTERAÇÃO DE REGIME DE BENS – IMPOSSIBILIDADE – CASAMENTO CELEBRADO SOB OS TERMOS DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 – INTELIGÊNCIA DO ART. 230 DO CC ANTIGO – NÃO APLICABILIDADE DO ART. 1.639, § 2º E APLICABILIDADE DO ART. 2.039, AMBOS DO NOVO CÓDIGO CIVIL – REGIME ANTERIOR MANTIDO – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO NÃO PROVIDO. Só será permitida a alteração do regime de bens aos casamentos realizados após a vigência do atual Código Civil, o qual não alcança atos pretéritos iniciados e findos antes de 11.01.2003, ex vi do art. 2.039 do CC de 2.002”. (Apelação cível n. 04.016125-5, de Blumenau, Relator: Des. Wilson Augusto do Nascimento). DIREITO DE FAMÍLIA – ALTERAÇÃO DO REGIME DE BENS – CASAMENTO CELEBRADO NA VIGÊN488 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS CIA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 – IMPOSSIBILIDADE SOB PENA DE AFRONTA AO PRINCÍPIO DA IMUTABILIDADE ADOTADO NO MOMENTO DO MATRIMÔNIO – INTELIGÊNCIA DO ART. 230 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 E DOS ARTS. 1.539, § 2º, e 2.039 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 – RECURSO IMPROVIDO O permissivo constante do § 2º do art. 1.639 do Código Civil de 2002 não é aplicável aos casamentos celebrados sob a égide do Código Civil revogado (Lei n.º 3.071/16), sob pena de afronta às situações jurídicas definitivamente constituídas, ex vi do art. 2.039 daquele diploma legal. Ademais, se assim não fosse, não bastaria ao atendimento do pleito de alteração do regime matrimonial de bens celebrado na vigência do Código Civil de 1916 o “pedido motivado”, pois se faria necessária, também, a alegação e comprovação das “razões invocadas” a fim de que o julgador pudesse avaliar a procedência ou improcedência destas”. (Apelação Cível n. 2004.014157-2, da Capital, Relator designado: Des. Marcus Tulio Sartorato). APELAÇÃO CÍVEL – ALTERAÇÃO DO REGIME DE BENS DO CASAMENTO – IMPOSSIBILIDADE – MATRIMÔNIO CELEBRADO SOB A ÉGIDE DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 – INTELIGÊNCIA DO ART. 2.039 DO NOVO CÓDIGO CIVIL – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO NÃO PROVIDO. [...] Só será permitida a alteração do regime de bens aos casamentos realizados após a vigência do atual Código Civil, o qual não alcança atos pretéritos iniciados e findos antes de 11.01.2003, ex vi do art. 2.039 do CC de 2002” (Des. Wilson Augusto do Nascimento). (Apelação cível n. 2005.005191-6, de Concórdia, Relator: Juiz Sérgio Izidoro Heil). E, recentemente: AÇÃO DE MUDANÇA DE REGIME DE BENS. CASAMENTO CELEBRADO SOB A ÉGIDE DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. IMPOSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 2.039 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. SENREVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 489 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO TENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. A modificação do regime matrimonial de bens, de casamento celebrado sob a égide do Código Civil de 1916, é juridicamente impossível, ex vi do art. 2.039 do atual Código Civil. (Apelação cível n. 03.020451-2, da Capital. Relator: Des. Wilson Augusto do Nascimento). (Apelação Cível n. 2004.014034-7, da Capital, Relatora: Desa. Maria do Rocio Luz Santa Ritta). Neste norte, evidencia-se que a Corte Catarinense, utilizando-se de uma interpretação literal do art. 2.039 do CC, entende que somente os casamentos realizados na vigência do CC de 2002 poderiam abranger a alteração do regime de bens, apegando-se, principalmente, ao comando do art. 230 do CC de 1916. Assim, diversos são os posicionamentos dos Tribunais Pátrios. Alguns se atendo a aplicação literal do art. 2.039 do CC/2002, impossibilitando a alteração do regime de bens nos casamentos realizados na vigência do CC de 1916, enquanto outros apontando pela possibilidade da referida alteração, utilizando para tanto diversos argumentos. Contudo, a jurisprudência pátria carecia de um posicionamento do Tribunal Superior acerca de tal matéria, ou seja, tratando-se de legislação infraconstitucional, cumpria ao Superior Tribunal de Justiça dar um norte aos Tribunais de Justiça, mesmo que seu entendimento não vincule posteriores decisões. Destarte, o tão esperando posicionamento do STJ surgiu em 23/08/2005, mais de dois anos após a entrada em vigor do novo Código Civil. Referido precedente ocorreu quando do julgamento do Recurso Especial nº 730.546, originário do Estado de Minas Gerais, de relatoria do Ministro Jorge Scartezzini, que restou assim ementado: 490 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS CIVIL - REGIME MATRIMONIAL DE BENS - ALTERAÇÃO JUDICIAL – CASAMENTO OCORRIDO SOB A ÉGIDE DO CC/1916 (LEI Nº 3.071) - POSSIBILIDADE - ART. 2.039 DO CC/2002 (LEI Nº 10.406) - CORRENTES DOUTRINÁRIAS - ART. 1.639, § 2º, C/C ART. 2.035 DO CC/2002 - NORMA GERAL DE APLICAÇÃO IMEDIATA. 1 - Apresenta-se razoável, in casu, não considerar o art. 2.039 do CC/2002 como óbice à aplicação de norma geral, constante do art. 1.639, § 2º, do CC/2002, concernente à alteração incidental de regime de bens nos casamentos ocorridos sob a égide do CC/1916, desde que ressalvados os direitos de terceiros e apuradas as razões invocadas pelos cônjuges para tal pedido, não havendo que se falar em retroatividade legal, vedada nos termos do art. 5º, XXXVI, da CF/88, mas, ao revés, nos termos do art. 2.035 do CC/2002, em aplicação de norma geral com efeitos imediatos. 2 - Recurso conhecido e provido pela alínea “a” para, admitindo-se a possibilidade de alteração do regime de bens adotado por ocasião de matrimônio realizado sob o pálio do CC/1916, determinar o retorno dos autos às instâncias ordinárias a fim de que procedam à análise do pedido, nos termos do art. 1.639, § 2º, do CC/2002. Em seu lapidar voto, o Ministro Jorge Scartezzini, expôs de forma brilhante: Pois bem, consoante determinava o art. 230 do CC/1916 norma inserida no Capítulo I (Disposições Gerais) do Título II (dos Efeitos Jurídicos do Casamento) -, o regime de bens, uma vez escolhido pelos nubentes, tornava-se irrevogável. Neste sentido, ressalte-se que, mesmo à época, o rigor de aludida regra restou amenizado, mediante a previsão de exceções legais à inalterabilidade do regime de bens no curso do casamento (v. g., art. 7º, § 5º, da LICC, permitindo a adoção do regime de comunhão parcial de bens ao estrangeiro casado que se naturalizasse brasileiro; Súmula 377/STF, admitindo a comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento selado pelo regime da separação de bens). REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 491 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO De qualquer forma, afora mencionados casos excepcionais, o regime de bens - conjunto de regras disciplinadoras das relações patrimoniais oriundas do casamento, mais precisamente relativas ao domínio e à administração de ambos ou de cada um dos cônjuges quanto aos bens trazidos ao casamento e aos adquiridos durante a união - era, até o advento do novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002), irrevogável, durante a vigência do casamento (não se olvidando, por óbvio, a possibilidade de alteração do primitivo regime de bens, após o advento da Lei nº 6.515/77, em se tratando de cônjuges que, previamente divorciados, procedessem a novo matrimônio). Inovando a matéria, pois, a Lei nº 10.406/2002 dispôs, no seu art. 1.639, § 2º - também inserido nas Disposições Gerais referentes ao casamento -, ser “admissível a alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”. Por outro lado, editou-se, também, o art. 2.039, ora enfocado, localizado no Livro Complementar das Disposições Finais e Transitórias, o qual determinou, quanto ao regime de bens dos casamentos celebrados anteriormente à vigência do novo Estatuto, que se aplicassem as regras do antigo Código. Pois bem, quanto à interpretação de aludida norma, verifica-se que parte dos doutrinadores pátrios, adotando orientação “literalista” ou “textualista” (tal como, in casu, procederam as d. instâncias ordinárias), pressupõe que a alteração do regime de bens, consoante previsto no § 2º do art. 1.639 do atual Código Civil, aplica-se tão-somente àqueles casamentos ocorridos após a entrada em vigor do novo Código. É dizer, nos precisos termos do art. 2.039 do CC/2002, a mudança incidental do regime de bens não alcança os casamentos ocorridos sob a égide da Lei nº 3.071/16 (Código Civil/1916), que, peremptoriamente, impedia tal alteração (art. 230). A bem da verdade, tal posicionamento se fundamenta no respeito ao ato jurídico perfeito, princípio sufragado pelos arts. 5º, XXXVI, da CF/88, e 6º da LICC (Decreto-lei nº 4.657/42). Sob esse prisma, pois, para os casamentos anteriores à nova lei civil, subsistiria o pacto relativo ao regime de 492 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS bens como ato jurídico perfeito, por isso imutável, sobretudo diante da regra inserta no art. 2.039 do CC/2002. [...] Por outro lado, nomes de relevo na doutrina pátria, ao interpretarem o art. 2.039 do CC/2002, não obstante a literalidade de seus termos, defendem a possibilidade de alteração convencional do regime de bens com relação aos casamentos ocorridos antes do novo Estatuto Civil, desde que ressalvados os direitos de terceiros e apuradas as razões invocadas pelos cônjuges para tal pedido, a teor do que dispõe o art. 1.639, § 2º, do CC/2002. Isso porque, segundo tal exegese, a uma, o art. 2.039 do CC/2002, ao dispor que o regime de bens quanto aos casamentos celebrados na vigência do CC/1916 “é o por ele estabelecido” , estaria determinando a incidência da legislação civil anterior exclusivamente no tocante às regras específicas a cada um dos regimes matrimoniais, consignadas, como assinalado, nos arts. 262 a 314, alusivas aos aspectos peculiares dos regimes da comunhão universal e parcial, e da separação de bens, do regime dotal e das doações antenupciais. Ao revés, as normas gerais concernentes aos interesses patrimoniais dos cônjuges na constância da sociedade conjugal, previstas nos arts. 1.639 a 1.652 da novel legislação civil, na medida em que contêm princípios norteadores dos diversos regimes particulares de bens, aplicar-se-iam imediatamente, alcançando tanto os casamentos celebrados sob a égide do CC/1916, cujos regimes de bens encontram-se em curso de execução, como, por óbvio, os pactuados sob o CC/2002. Desta feita, o art. 1.639, § 2º, do CC/2002, abonador da alteração dos regimes de bens na vigência dos casamentos, constituindo-se em norma geral relativa aos direitos patrimoniais dos cônjuges, incidiria imediatamente, inclusive às sociedades conjugais formalizadas sob o pálio do CC/1916, afastando a vedação constante do art. 230 do CC/1916. Ainda, e principalmente, consoante observam tais doutrinadores, a possibilidade de o art. 1.639, § 2º, do CC/2002, permissivo da mudança de regime de bens no curso do matrimônio, aplicar-se aos efeitos futuros de contratos de bens em plena vigência quando do respectivo advento, haja vista consistir, segundo frisado, em norma geral de efeito imediaREVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 493 AMANDA CRISTINA PASQUALINI / EDUARDO STROBEL PINTO to, encontra-se determinada pelo próprio CC/2002 que, em seu art. 2.035 preconiza, explicitamente: “A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores , referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam , salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução” ). Ressalte-se, por fim, não haver que se confundir o denominado efeito imediato do art. 1.639, § 2º, do CC/2002 (conquanto equiparado, segundo alguns autores, ao denominado efeito retroativo mínimo, mitigado ou temperado), preconizado de modo expresso pelo art. 2.035 do CC/2002, com retroatividade genérica das leis, vedada, em regra, pela Magna Carta em atenção ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada (art. 5º, XXXVI, da CF/88). Deveras, in casu, a nova legislação a ser imediatamente aplicada não atingirá fatos anteriores, em, tampouco, os efeitos consumados de tais fatos; incidirá, por óbvio, nos fatos futuros à sua vigência, bem assim com relação tão-somente aos efeitos vindouros dos fatos, ainda que pretéritos, em pleno curso de execução quando de sua vigência, não se cogitando, pois, de retroatividade legal ofensiva aos ditames constitucionais, por inobservância a ato jurídico perfeito. Dessarte, mesmo que vários Tribunais ainda se filiem ao posicionamento literalista, mostra-se que diante do recente precedente do Superior Tribunal de Justiça os Tribunais de Justiça irão adotar o entendimento da mais alta Corte infraconstitucional da Nação. 6 CONCLUSÃO Não subsistem dúvidas quanto a louvável inclusão no novel Código Civil do preceito insculpido no art. 1.639, § 2º, que possibilita aos cônjuges procederem a alteração do regime matrimonial de bens. 494 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 ASPECTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DA ALTERAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS Referida alteração vem ao encontro do anseio do corpo social, visto que sabidamente o direito deve estar atento as transformações da sociedade. Neste norte, os requisitos impostos pela supracitada norma legal, ainda que existam divergências, concede aos cônjuges ampla possibilidade de acordarem quanto ao melhor regime patrimonial a ser adotado. Ainda que enormes e sérias divergências em relação ao tema dominem os debates encetados na doutrina e jurisprudência pátria, principalmente no tocante a sua aplicação aos matrimônios realizados à época do CC/1916, parece-nos que, aos poucos, a norma legal em estudo assumirá função de grande relevância no direito civil. Até mesmo porque, ainda que diversos pretórios continuem a se filiar a corrente literalista de que a alteração do regime matrimonial de bens somente possa acontecer em relação aos matrimônios contraídos na vigência do atual Código Civil, evidencia-se que a partir do precedente do Superior Tribunal de Justiça os Tribunais de Justiça dos Estados passem a admitir referida alteração mesmo para os casamentos realizados sob a égide do CC de 1916. 7 BIBLIOGRAFIA AGHIARIAN, Hércules. Da modificação do regime de bens. 28 maio 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto.asp?id=5241>. Acesso em: 24 out 2005. CARLI, Vilma Maria Inocêncio. 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