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A
OUTRA
PERNA
DO
SACI
1
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer formas ou meios, eletrônicos
ou mecânicos, incluindo fotocópias, gravações ou qualquer outro tipo
de arquivamento de informações,sem autorização por escrito do autor.
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Aparecido Raimundo de Souza
A OUTRA PERNA
DO SACI
2009
São Paulo - SP
Ed. Sucesso
3
Organização editorial
Denise Barros
Revisão
Jussára C. Godinho
Projeto gráfico e Diagramação eletrônica
Denise Barros
Capa
Claus Ritter
Impressão digital e acabamento
Docuprint
© 2009 Celeiro de Escritores
www.celeirodeescritores. org
SOUZA, Aparecido Raimundo de
A outra perna do saci / Aparecido Raimundo de Souza São Paulo, SP: Ed. Sucesso, 2009.
120 p. ; 21 cm.
ISBN 978-85-89091-1
1. Histórias curtas. 2. Sexo-Ficção. I. Souza, Aparecido
Raimundo de. II. Título.
CDU 82-32
CDU 82-311.2
Índice para catálogo sistemático:
1. Histórias curtas CDU 82-32
2. Sexo - Ficção CDU 82-311.2
© 2009 Aparecido Raimundo de Souza
Brasil
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Sumário
Prefácio.............................................................
Sinfonia escarlate...............................................
Celulares...........................................................
Pentelho............................................................
Segundas intenções............................................
Olhos sobre tela................................................
Missão quase impossível....................................
Um intruso no formigueiro..................................
Persuasão..........................................................
Nó na garganta..................................................
Anjo noturno.....................................................
Demônios eternos..............................................
Zona de impacto................................................
Foi tudo culpa da pia.........................................
Gêmeas.............................................................
Doutor Boris......................................................
Radical..............................................................
Lâmpada milagrosa............................................
Fofoqueiras.......................................................
Camisa de onze varas........................................
Iniciação............................................................
Para bom entendedor uma cerveja basta............
Xeque-mate.......................................................
Mico.................................................................
Código de honra................................................
Reação em cadeia..............................................
009
011
021
027
033
039
043
049
055
063
073
077
081
085
089
097
103
109
115
125
133
141
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151
155
161
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Prefácio
O escritor Aparecido Raimundo de Souza nos presenteia, mais uma vez, com uma série de textos inéditos. Ele continua a esmiuçar o dia-a-dia, sem cair no cotidiano. Zombeteiro, irreverente, sarcástico e gozador, faz questão de trazer à
baila as questiúnculas comuns que nos cercam, como bem se
pode ver no texto que encabeça o livro.
O drama da jovem Aruca, como descrito em “Sinfonia
escarlate”, pode estar sendo vivido agora por uma de nossas
filhas, debaixo de nossos olhos e, pior, sem que nada possamos fazer a respeito. Não devemos esquecer que, em torno de
nós, existem milhares de elementos com a personalidade doentia de Zanzonho, a espera, apenas, de uma brecha, de uma
oportunidade para atacar, objetivando, a satisfação pessoal,
ainda que às custas das lágrimas de inocentes e incautas
donzelas.
“Sinfonia escarlate” revela, pois, com maestria, numa
linguagem simples e sem rebusques, o trágico a que estamos
expostos, seja em famílias pobres ou abastadas. Aparecido
Raimundo de Souza, entretanto, não lida somente com as
mazelas e as enfermidades que nos afligem. Ele se envereda,
igualmente, por caminhos onde discute as questões surgidas
com a evolução desenfreada da modernidade dos tempos atuais, aí embutidas as intempéries da globalização, que, por sua
vez, nos transformam em bobos da corte de um consumismo
conturbado. O texto “Mico” reflete muito claramente o grau
de imbecilidade que tomou conta da nossa personalidade e
fez de nós, seres humanos, meros fantoches movidos por marionetes.
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É o caso, por exemplo, dos “Celulares”, onde as pessoas perdem a sua identidade e se expõem ao escárnio e ao ridículo. Já em “Segundas intenções” prova que somos um bando de bufões girando em torno de uma sociedade de hipócritas. Estamos perfilados em torno de um enorme picadeiro,
gracejando, desordenadamente, para agradar a banda contaminada dessa burguesia podre que nos pisoteia os sonhos e
as esperanças de horizontes mais abastados. Dessa forma, seja
através do nom sense, vivido pelo engraçado médico Dr. Boris,
formado pela Sorbonne, de Paris, ou na voz de personagens
pitorescos, como Pantolfo, em “Nó na garganta”, Bilico
Tanajura em “Gêmeas”, e Tangerino Chupado em “Lâmpada milagrosa”, que, Aparecido Raimundo de Souza,
obcecadamente, nos coloca, sem máscaras, diante de um imenso espelho. Mostra que, o pouco da dignidade que nos resta,
fazemos questão de deixar ser levada, arrebatada, literalmente, como água corrente, pelos ralos da imbecilidade que
criaram vida e forma dentro de nossas almas.
“A OUTRA PERNA DO SACI” com os 25 textos que o
compõem, é uma espécie de tapa direto no rosto de cada um
de nós. E, como tal, age como se fosse uma bordoada de alerta nos nossos brios; uma pancada de sobreaviso na nossa moral; uma cacetada na desatenção que mantemos viva e
pulsante dentro de nossa vidinha medíocre e sem sentido; uma
espécie de direcionamento. Enfim, Aparecido nos convida a
parar e a meditar na tênue luz que ainda pode ser vista no fim
do imenso túnel.
(*) Zeca Camargo
*Jornalista
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APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Sinfonia escarlate
A CAMPAINHA TOCOU. Uma, duas, dez vezes. Zanzonho
levantou da privada, deu descarga, se enrolou numa toalha amarela
e acorreu abrir a porta. Na sua frente, apareceu Aruca, a vizinha
que morava de parede meia, com os pais e seis irmãos. Tinha
dezessete anos a beldade. Era uma loirinha alta e curvilínea, dona
de um encanto de fazer inveja em qualquer barbado. No belo
rosto, mesmo ao natural e sem os artifícios da maquiagem, algo
misterioso realçava seus dotes de princesa. Antes que o rapaz
fizesse o convite para que entrasse, ela se adiantou e passou
correndo por debaixo do braço dele e se empoleirou no sofá.
- O que houve com seu telefone? Desde ontem venho
tentando falar com você e nada. Que dificuldade!
- O aparelho que comprei pegou dengue.
- O quê?
- Isso que acabou de ouvir. Está com dengue.
- Deixa de papo furado. Ligo aqui no seu fixo e nada. Seu
celular, idem, só dá caixa postal. Que droga!
- Sabe o que é? Ele se apaixonou por essa tal de caixa
postal. Vão até se casar...
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- Engraçadinho. Se não gosta de telefones, por que pediu
à companhia telefônica que instalasse um aqui? E por que, quando
sai pra rua, leva outro pendurado no pescoço? Precisava falar
com você, urgente. Entendeu? Urgente! Caso de vida ou morte...
- Ainda bem que a pressa acabou. Ia entrar no banho
quando você tocou. Tenho um compromisso inadiável e estou
atrasado. Até logo.
- Ei, vem cá. É sério.
- Você disse precisava. No sentido como se expressou
me cheira a queria. Portanto...
- Está legal, seu certinho. Necessito.
- Qual é a urgência? Não me diga que está pensando em
empenhar a tela plana que ganhou da sua tia, no dia do seu
aniversário, e me fazer uma proposta para ficar com a tranqueira
em troca de mais um empréstimo?
- Zanzonho, por favor, não brinque. Todas as vezes que
pedi dinheiro a você eu paguei bonitinho. Nada lhe devo. Estamos
quites.
- Quanto a isso não tenho o que reclamar. Sei que cumpre
com suas obrigações. Diga, pois, em que confusão se meteu desta
vez? Aruca, embora aparentasse descomedida inquietação, não
perdia os traços de feminilidade. Os loiros cabelos longos, bem
cuidados, caíam em cascata, cobrindo um par de brinquinhos
discretos nas orelhas. Da pele macia como o veludo, exalava um
toque sutil de perfume de alfazema. As maçãs do rosto sobressaíam,
salientes, com a boca rasgada, deixando à mostra uma arcada
dentaria perfeita, com dentes muito brancos. O corte firme do
queixo, os seios fartos e cheios, a cintura fina e sólida, os quadris
generosos e redondos, as coxas fortes, um par de pernas longas e
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
bem feitas. Sem falar no sorriso, na voz suave, nos gestos
delicados, havia um conjunto de pequenos atrativos que dava a
ela um sex-appeal, que exalava inocência, contrastando com um
outro, bem mais adulto, mais sofrido e, ao mesmo tempo,
ligeiramente maroto. Para Zanzonho, tudo nela lembrava o pecado.
Numa das mãos, a graciosa segurava fortemente uma granada de
brinquedo. Aquilo deveria representar uma espécie de válvula de
escape. Talvez, intimamente, alimentasse a idéia de que bastava
algo dar errado e o que tinha a fazer era arrancar o pininho para
que o mecanismo explodisse e voasse com tudo pelos ares.
De repente, todo seu corpo começou a tremer com tanta violência
que mal conseguia manter a postura de moça comportada.
- O que está acontecendo? Quer um copo de refrigerante
ou uma taça de vinho?
- Nem uma coisa, nem outra. Apenas que me dê atenção
e me leve a sério.
- Prometo que assim farei. Agora me conta o que se passa.
Sou todo ouvidos.
Zanzonho sentou ao lado dela e, ao fazê-lo, capturou, não aquele
olhar infantil, de alguns minutos atrás, mas um olhar perdido, de
profundo medo estampado. Parecia que a sua vizinha abrira uma
cratera enorme em seu rosto brejeiro.
- Preciso que me empreste um dinheiro.
- Já percebeu que é só para isso que vem atrás de mim?
- Só conto com você.
- E o Barão, seu namorado?
- Sumiu, escafedeu, virou pó.
- Pra que a grana dessa vez?
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- Psiu! Fale baixo. Estou grávida.
- Legal. E o que eu tenho a ver com a sua trepada mal
dada? - Você é a única pessoa em quem confio.
- Quem é o pai? O Barão?
- Antes fosse!
- Caraca, se não é o almofadinha, quem conseguiu acertar
a sua veia?
- Importa?
- Quero saber.
- Vai descolar a mixaria?
- Corrija se eu estiver errado. Pretende fazer aborto?
Aruca tampou com a mão direita a boca de Zanzonho. O rapaz
tomou um baita susto com esse gesto inesperado.
- Quer um megafone? Meus pais estão ai ao lado e podem
nos ouvir.
- Com seis praguinhas gritando? Ouça os berros. Acho
pouco provável!
- Meus irmãozinhos não são praguinhas.
- Diabinhos seria uma colocação apropriada.
- E aí? Vai me safar dessa enrascada?
- Totalmente fora dos meus princípios. Sou contra esse
tipo de solução. Acho uma desumanidade. Tô fora!
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- Zanzonho - implorou Aruca com uma voz cheia de tensão,
o coração batendo violentamente - Pelo amor de Deus. Se você
me deixar na esquina...
- Procure o pai da criança e exponha os fatos. Afinal de
contas, quem pariu Mateus que o embale.
Ela fitou seu vizinho com os olhos gelados.
- O cafajeste rachou no trecho.
- Te deixou na mão, não é?
- Botou no meu cu com força e deu linha.
Zanzonho aproveitou a deixa e atacou. - No cu também?
- Porra, meu amigo. É jeito de falar. Qual é! Nunca dei
meu traseiro.
- Quer me convencer de que o Barão não enfiou o parafuso
na rosquinha aí atrás e mandou você rebolar?
- Não. Agora, quer, por favor, me escutar? Não foi o Barão.
Ta legal. Vou abrir pra você. Me envolvi com um sujeito e descobri
que ele é casado. Mas isso não tem a menor importância agora.
Não desvirtue o assunto. Vamos voltar ao que interessa. Responda
com sinceridade. Acaso me acha com cara de piranha?
Zanzonho esteve a ponto de dizer que sim com todas as letras.
A gravidez indesejada era prova mais que suficiente para corroborar uma verdade que logo viria à tona. Contudo, isso poria suas
chances de conseguir alguma coisa rio abaixo.
- Longe de pensar numa barbaridade dessas a seu respeito.
- Então?
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- Então o quê? A propósito, já que estamos aqui, nós dois,
sem testemunhas, mata uma curiosidade que me persegue?
- Que curiosidade?
- Que diabo de tatuagem mandou fazer na... Na perereca?
Aruca emitiu um tipo de som que mais se assemelhava ao de
uma gata assustada sendo expulsa, de surpresa, de cima de uma
mesa cheia de petiscos de ratos. Ficou pasma, paralisada, estática,
a impressão de querer sumir debaixo do tapete a seus pés.
Zanzonho não ouviu quando ela soltou um “como sabe disso, seu
filho da puta?” porque o ventilador de teto que ele se levantou
para ligar passou a ronronar, a toda velocidade, sobre suas cabeças.
Ela ficou furiosa. Possessa. Quando ele voltou a se sentar ao seu
lado, aplicou em seu braço um beliscão violento. Esse gesto, melhor
que mil palavras, demonstrou a fúria interior que lhe subiu às ventas.
- Como descobriu? Não falei pra ninguém. Nem a meus
pais, ou a melhor amiga eu...
Zanzonho pegou a garota pelo braço e a conduziu até o banheiro.
Introduziu–a num reservado onde deveria existir um boxe decente.
Ao invés disso, uma cortina suja e rasgada se esparramava.
No lugar do chuveiro, um cano enferrujado escorria água pela
parede. Ao lado da torneira e do suporte para colocar sabonetes,
um pequeno orifício aparecia, tímido, como um elefante dentro de
um ônibus.
- Espie.
- Credo, Zanzonho. Que mau cheiro! Estava cagando?
- Espie de uma vez.
Aruca se abaixou e meteu o olho. Por ele viu o vaso sanitário
da sua casa, a banheira, o cesto de roupas sujas, os irmãos
correndo e tudo mais que lá existia.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- Tarado. Filho da puta!
- Chiiii! Abaixe a voz. Podem nos ouvir.
- Então, você me espia daqui? Cretino!
- Todo os dias. Desde cedo, quando vem mijar ou fazer
cocô. Ouço seus peidinhos... Vejo você escovar os dentes, lavar
as partes... Foi numa dessas peregrinações que deparei com a tal
tatuagem.
- Desgraçado, safado, veado.
- Veado, não. Quando te vejo como veio ao mundo, o
sangue sobe. Perco o controle...
- Vomite de uma vez.
- Deixa baixo. Vamos por etapas. Que tatuagem é aquela?
- É o desenho de um homem pré-histórico fazendo amor
com sua amada.
- Ficou legal. A segunda coisa é o que realmente nos
interessa a ambos. E em cima dela, proponho um trato.
- Um trato? Que trato?
- De quanto você precisa?
- Cinco mil reais.
- Raios me partam. Quantos bebês pretende arrancar desta
barriga?
- Faço o que você quiser. E só pedir.
- Está melhorando. Sendo assim, as conversas podem
tomar outro rumo. Esqueça a tela plana. Como deve ter notado,
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tenho uma na sala. Vou ser direto e reto. Bom pra nós dois. Como
você acabou de falar que faz o que eu quiser, aí vai...
- Você quer o meu computador? Fechado!
- Tenha calma. Não quero seu computador.
- Então, o quê?
- Faz realmente o que eu quiser pela grana?
- Faço.
- Pois, então, transe comigo, aqui, agora, e eu libero o
dinheiro.
Aruca começou a sentir nojo pelo seu vizinho, um asco
intolerante que, aos poucos, se transformou em ódio e desprezo.
Não esperava aquilo de Zanzonho. Não numa hora amarga como
aquela. Num momento tão íntimo, quando lhe abria a alma inteira
e pedia ajuda.
- Jamais. Não sou prostituta, não vendo meu corpo.
Vá procurar uma dessas vadias de...
- É pegar ou largar. Quem precisa da bufunfa não sou eu.
- Você é desprezível.
- Não, não sou, mas confesso que quando estou com meus
sentidos grudados em você, no seu corpo, principalmente, na sua
bundinha maravilhosa, a minha emoção aqui no meio das pernas
não consegue ficar em estado letárgico. Isto é ser desprezível?
Tudo começou a rodopiar em volta de Aruca, como se alguém
tivesse tirado a tampa daquele ralo imundo e um redemoinho
gigantesco puxasse seu corpo para dentro.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- Por favor, Zanzonho... Não faça isso...
- Me dá o que eu quero e o cascalho vai pra sua mão.
O rosto do rapaz perdeu completamente a cor como se uma
artéria importante houvesse se arrebentado e ele começasse a
perder sangue rapidamente.
- Não, Zanzonho, não... Não... Não...
Por um momento, o ar ficou tão parado e pesado que Aruca
parecia andar embaixo d’água.
- Solta o fiofozinho. Só quero entrar no seu rabicó.
A parada fica aqui, entre nós. Prometo ser discreto e carinhoso.
Vamos, Aruca, me faça presente de seu cuzinho. Eu não mereço?
Pense, cinco mil reais, cinco mil, por um buraco fedido...
No que falava, Zanzonho deixou cair, propositalmente, a toalha.
Apareceu diante dela uma avantajada arma de artilharia, pronta
para entrar em ação. Aruca levou a mão à boca, horrorizada.
Embora não fosse virgem, e tivesse tido experiências sexuais com
vários namoradinhos, nunca vira um pau tão grosso e comprido
como aquele. Zanzonho captou essa fraqueza no ar e não esperou
por uma decisão definitiva. Sem dar tempo à jovem de se refazer
do susto, enlaçou-a pela cintura, ajeitou-a como pode, de quatro,
as mãos agarradas na bacia da privada.
- Sugiro que seja boazinha e aceite como uma coisa natural.
Acho que será pior pra você, lutar contra. Não vai doer. Serei
generoso. Penetrarei sua cauda bem devagar, com todo cuidado.
Enquanto eu desfruto do seu figo, pense na grana, na grana.
Aproveite, minha linda, aproveite para relaxar... E... Claro, gozar...
- Pelo amor de Deus, Zanzonho, não pode fazer isso...
É estu...
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Enlouquecido pelo desejo, Zanzonho pouco se lixava para o
que a garota balbuciava em meio a uma crise convulsiva de choro
e soluço que lhe acometeu. Naquele momento, o desnaturado só
queria saber de dar cabo da sua pretensão. Suspendeu a saia até
a altura das costas e, pausadamente, arriou a calcinha.
O excitamento sexual levou sua afoiteza a rápidas reações
multiorgásticas. Então, mandou brasa. Gritos abafados de dor se
misturaram a urros e deleites, como o de um animal em fúria. Dessa
forma humilhante e, pior que isso, se prevalecendo da necessidade
da pobre garota, Zanzonho entrou nela, penetrou-a violentamente
com tudo o que achava ter direito. Um filete de sangue verteu
silencioso de Aruca, como lava escorrendo ligeira dos lábios de
um vulcão. Foi nessa hora que ela puxou o pininho da granada de
brinquedo e ...
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Celulares
NO ÔNIBUS LOTADO, O CELULAR do passageiro, sentado
ao lado da porta da saída, entoa a 9ª Sinfonia de Beethoven.
No terceiro toque o sujeito decide.
- Alô? Alô? Alô?...
Diante da mudez do aparelho, o cidadão espia, meio
desconcertado, para um lado e outro, a fim de averiguar se alguém
olha para ele. Ninguém parece preocupado, embora todas as
atenções estejam discretamente voltadas para sua pessoa. Nova
chamada. Dessa vez, espera uns segundos. Atende, ansioso.
- Alô? Alô? Merda! Alôooa?...
Nada.
Uma moça trajando conjunto verde - parece um abacate
amarrado pelo meio - viaja logo atrás. O telefone dela, com o
“Vamos fugir” também resolve se fazer presente. Ao atender, seu
rosto se ilumina num sorriso mágico.
- Tô chegando, amor...
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Há uma pequena pausa.
- Você já está no ponto? Devo pintar aí dentro de uns
cinco ou seis minutos...
Novo intervalo. - Te amo. Beijos.
Um terceiro celular começa a encher o saco com a Pantera
Cor de Rosa. A colegial com o rosto abarrotado de espinhas emite
uns gritinhos estridentes antes de iniciar a conversação.
- Rodriguinho, seu veado. Isso lá é hora de ligar?
A 9ª Sinfonia de Beethoven volta à baila e se mistura com a
voz da adolescente.
- Alô? Alô? Alô?
Desta vez a ligação se completa. O passageiro ao lado da porta
da saída consegue, finalmente, manter o diálogo com seu
interlocutor.
- Legal, cara. Parabéns!
Gesticula e fala alto o suficiente para irritar um defunto. Sem
um pingo de decência, age como se perto dele não houvesse uma
leva de pessoas que merecesse, ao menos, respeito e educação.
- Até que enfim. Então você está indo pra Portugal? Faça
uma boa viagem, meu amigo. O Pedro te manda um abraço.
A Luíza um beijo, o Carlos um puxão de orelhas...
“Vamos fugir” volta a disparar no telefone da moça de verde.
Ela prontamente atende:
- Amor, tenha um pouco de paciência. Que loucura!
O quê? Fala mais alto...
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
De repente, a coisa toma proporções descomunais. A colegial
pisa em ovos de tão indignada e irritada.
- Vá pra merda, Rodriguinho. Não me racha a cara!
O sujeito no banco ao lado da porta parece um lunático.
- Seu avião sai a que horas? As 19? De onde? Eu...
O quê?
Lado esquerdo do coletivo, um casal assiste a tudo com os
olhos arregalados. A certa altura, o rapaz comenta, num cochicho:
- É mole ou quer mais?
- As pessoas – observa a moça igualmente aos murmúrios
- perderam o senso do ridículo. A sensatez foi pro brejo. Ninguém
respeita mais a individualidade.
- Virou febre esse negócio. Todo mundo agora tem celular.
Li, ontem, no jornal, que estão à venda, no mercado, aparelhos
celulares de última geração para cachorros.
Risos.
- Fala sério? Qual o quê! Isso é piada!
- Não é não. Agora, além de hospitais, hotéis e
restaurantes, os cachorros poderão contar com mais essa vantagem.
Celular para cães e gatos.
- Se for verdade o que está me dizendo, minha nossa.
Será o cúmulo do absurdo. A que ponto chegamos. Olhe só para
essa gente. Parece um bando de alucinados. Ninguém se entende.
Um homenzarrão puxa a campainha. Pessoas se levantam.
Outras tantas tomam posição para apear.
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- Vá se lixar, Ro...
- Olhe, se lá em Portugal não tiver mulher que sirva, volta
e leva uma brasileira. As mais bonitas do mundo estão aqui, meu
chapa...
- Rodriguinho, eu pensava, até agora, que você fosse do
conceito. Me enganei redondamente. Vá pro inferno, ta ligado?
A moça de verde pula do banco ao ver o rapaz que a espera,
na calçada defronte à porta de acesso de uma loja de
departamentos. Passa a mão no telefone e disca um número da
memória.
- Ei, amor, olha euzinha aqui. Cheguei. Já me enxergou?
Estou te vendo. Me dê adeusinho!
Nessa hora, então...
- A mãe te manda um abraço. Vá com Deus. Chegando
em Lisboa, ligue... Entendeu? Ligue, ligue, ligue, cacete!...
No mesmo clima.
- Rodriguinho, ô, sem noção, o bagulho por aqui tá tenso.
Meu namorado não vai gostar. Com certeza levará um “lero”
contigo, e, depois, com certeza, te comerá na porrada, meu...
A moça de verde, afoita:
- Com licença, meu senhor... Com licença...
- Calma, senhorita. Vou ficar aqui também. Deixe ao menos
o motorista parar e liberar a traseira.
-... De Lisboa? Puta que pariu!
-... Ro, Ro, cuidado com a tribo, malandro. Quer saber?
Estou injuriada. Vá se foder de verde e amarelo...
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
-... Amor, amor, estou descendo...
Sobra o casal acomodado no lado esquerdo, rindo da galera a
mais não poder.
- Odeio celular – pondera a jovem, depois que todos saem
- parece que esses trocinhos controlam nossa vida. Aliás, dominam,
vivem no nosso pé. Jogaram, definitivamente, para o ralo a nossa
intimidade. - Estou com você – completa o rapaz – O negocio é bom,
mas, em certas horas, se torna deselegante, cai no vulgar. Tira a
privacidade. Imagine, daqui a algum tempo, como lhe falei, ainda
a pouco, a gente cruzando na rua, com essas madames, metidas à
besta, atendendo ao telefone. “É pra você, Fifizinha!”. E o animal,
posudo: “- Agora não posso, estou ocupada, lendo Os Melhores
Contos de Cães e Gatos do meu amigo Flavio Moreira da Costa.
Peça para me ligar mais tarde”.
A jovem se abre num sorriso contagiante. Pensa em responder
alguma coisa. Entretanto, seu celular estronda Tchaikovsky.
- Desculpe. Meu marido...
Pede licença, baixa a cabeça. Sem tirar o aparelho do ouvido
se acomoda num banco lá na frente, ao lado do cobrador.
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APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Pentelho
O SUJEITO PEGA O TELEFONE E ENQUANTO LIGA
PARA O AMIGO vai se desfazendo dos sapatos e das meias
pelo meio do corredor a caminho da cozinha. Fala:
“Alô? Luiz, seu bobalhão, sou eu, o Carlos. Acabei de chegar
em casa, vindo do prédio onde funciona seu escritório. Toquei a
campainha uma porrada de vezes e ninguém atendeu. Sua secretária
não veio trabalhar, ou não quis abrir, sei lá. A garota da sala ao
lado, de nome Bethânia, chegou às oito horas e dez minutos e, me
vendo impaciente, andando para lá e para cá, feito coro de pica, e
àquela hora da manhã, ofereceu água gelada e um cafezinho que
fez na hora e, depois, caneta e papel para que eu pudesse, antes
de virar as costas, lhe escrever um bilhete e enfiar por baixo da
porta. O negócio é o seguinte: procurei feito um imbecil o nome
que você me passou, ontem, por telefone. Fui em todas as livrarias
da cidade (são quase vinte) e não encontrei nenhum livro de Julia
Petit”.
“Aliás, Luiz, ninguém conhece Julia Petit por aqui. E ela nunca
esteve na lista dos mais vendidos. Liguei para sua casa e consegui
falar com a sua filha. Ela confirmou o nome da criatura: realmente
Julia Petit, com o t mudo no final. Argumentei que na pressa, talvez
você tivesse me passado o nome errado. Quem sabe, não fosse
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Julia, mas Rulia, Nulia, Sulia, Vulia, ou qualquer coisa parecida.
Sua filha garantiu que era Julia, até soletrou, jota de jaca, u, de
uva, ele, de laranja, i de indelicadeza e a de amendoim. Parti, então,
para o Petit. Não seria, Petite, com e, ou Petitte, com dois tes?
Consegui tirar a sua simpática mocinha do sério. Nas ligações
seguintes, a jovem só não me chamou de santo, mas percebi, pela
alteração da voz, que meu papo se tornara chato e incômodo.
Insisti em continuar a conversa, mas ela, com a grosseria e o
atropelo que rondam a cabeça da juventude, acabou me mandando
tomar naquele lugar por onde expelimos nossas fezes, ou seja, o
cu. Não contente, meu amigo, pá, desligou na minha cara. Fiquei
como um abestalhado, a boca aberta, as palavras entrecortadas
na garganta, o telefone no ouvido e o troço: tu, tu, tu, tu, tu, tu...”.
“Você sabe muito bem, amigo Luiz, que odeio quando alguém
interrompe a ligação, sem mais nem menos, e eu fico boquiaberto,
feito um panaca, sem saber o que fazer com o auscultador na
mão. Pior é o tu, tu, tu, tu, tu, tu...”.
“Só por vingança disquei de novo. Decidi soltar meia dúzia de
cobras e lagartos no escutador de novelas daquela patricinha de
Beverly Hills. Perdão, meu amigo, não por raiva, só para que ela
aprendesse a respeitar os mais velhos. Contudo, na primeira
tentativa, a porcaria deu ocupado e o “tu, tu, tu, tu, tu, tu” se fez
ouvir, logo que terminei de riscar o quarto número. Insisti por mais
umas quinze vezes. Todas infrutíferas. Resolvi dar um espaço. Cinco
minutos. Findo esse tempo, voltei à carga. Nada! De novo, uma,
duas, dez, vinte vezes, Luiz, acredite, vinte vezes e a mer... Digo, a
porcaria, insistente: tu, tu, tu, tu, tu, tu...”.
“Com certeza, sua filha está de marcação serrada. Não é possível
ficasse pendurada por tanto tempo, sem dar folga. Bem, pode ser,
também, que tenha deixado o fone fora do gancho, por descuido.
Para matar as horas, Luiz, optei por um novo rolé. Tomei um
café,comi um pão com manteiga e, após isso, voltei à peleja. Gastei,
meu amigo, duas horas e meia refazendo as livrarias. Uma por
28
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
uma. As respostas das atendentes eram sempre as mesmas. Teve
uma que resolveu me alugar pra valer. Chato quando alguém lhe
torra as medidas, não é verdade? Tentarei reproduzir o diálogo
que tivemos”:
- Senhor, não temos nenhum livro de Julia Petit, nem de
Julia Petite ou similar. Por acaso o senhor saberia dizer qual o
nome da obra que ela escreveu? É romance? Livro de autoajuda?
Esotérico? Já procurou em casas que vendem produtos espíritas?
O senhor não levaria, em substituição, o último de Paulo Coelho,
ou o mais recente de Lya Luft?
- Obrigado.
- Não gosta de Zíbia Gasparetto? Ah! Temos também “Por
Que os Homens Fazem Sexo e as Mulheres Fazem Amor”.
- E por quê?
- Desculpe, ainda não li o livro, mas dizem que é bom.
Minha supervisora devorou de cabo a rabo e achou massa.
- Massa?
- É. Legal!...
- Minha filha, você já leu Kafka?
- Não, senhor.
- E Roberto Shinyashiki?
- Nunca ouvi falar.
- Nem eu. Prefiro Fernando Sabino.
“Esse foi, Luiz, na íntegra, o bate-papo que trocamos, eu e a
vendedora, em uma das livrarias. Para você ver que não estou
29
mentindo, trouxe o nome dela, o número do CPF, identidade,
carteira de trabalho e o telefone, caso o amigo queira ligar e
confirmar realmente minha presença lá. Mudando de pau para
cavaco, uma gracinha, a guria. Roldana, o nome da tetéia. Lembra
a Margarete. Já sei, você vai me questionar: quem é Margarete?
Deixa refrescar sua memória. Margarete, aquela do cabelo
vermelho, bem curtinho, que você se engraçou, na lanchonete e,
depois – me escangalho de rir quando penso nisso – eu flagrei
vocês dois, mais tarde, lá na quitinete, na hora exata em que a
gulosa lhe “pagava um boquete”.
“Para terminar, deixei um lembrete debaixo da porta do seu
escritório com os dizeres: “Ligue-me, ligue-me, ligue-me, pelo
amor de Deus, ou vou acabar louco. Assinado, seu amigo Carlos”.
Em tempo: peça desculpas a Senhorita Bethânia. Na pressa, na
correria, acabei trazendo a caneta dela.”
***
Quando Luiz chega em casa, a secretária eletrônica sinaliza
que há ligações não atendidas. Aperta o play. Quarenta. Todas,
sem exceção, do Carlos. Retorna:
“Carlos, sou eu, Luiz, atenda essa merda de telefone. Caralho!
Eu sei que está aí. Recebi seus recados. “Trocentos”, ao todo.
Não precisava ligar tantas vezes, mané. Achei seu bilhete, pi, pi,
pi, pi, pi, pi (Nessa hora, a secretária eletrônica de Carlos começa
a apresentar problemas. Luiz encontra dificuldade para gravar a
resposta aos insistentes apelos do amigo)... Julia Petit, pi, pi, pi,
pi, pi, pi é Ju... Pi, pi, pi, pi, pi, pi... Julia. Escreve-se, J, u, l, i, a ,
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
pi, pi, pi, pi, pi, pi, - e Petit se soletra pi, pi, pi, pi, pi, pi... P, E, T,
I, T. O t é mudo, o t é mudo, no final, pi, pi, pi, pi, pi, pi... Julia, pi,
pi, pi, pi, pi, pi, Petit... Seu Zé babaca, pi, pi, pi, pi, pi, pi, é pro...
Pi, du, pi, pi, to, pi, pi, pi, ra, pi, pi, pi, pi... Mu, pi, pi, pi, pi, pi,
si,cal, pi, pi, pi, pi, pi, pi ... Não,pi, pi, pi, pi, pi, pi, é, pi, pi, pi, pi,
pi, pi, es, pi, pi, pi, pi, pi, pi, cri, pi, pi, pi, pi, pi, pi, to, pi, pi, pi, pi,
pi, pi, ra. Ela... Pi, pi, pi, pi, pi, pi, está, pi, pi, pi, pi, pi, pi, na lis, pi,
pi, pi, pi, pi, pi, ta, pi, pi, pi, pi, pi, pi, dos, pi, pi, pi, pi, pi, pi, mais,
pi, pi, pi, pi, pi, pi, bem pi, pi, pi, pi, pi, pi, vesti, pi, pi, pi, pi, pi, pi,
dos, pi, pi, pi... Não, pi, dos pi, mais, pi, bem, pi, vendi, pi, pi, pi,
pi, pi, pi, dos... Pi, pi, pi, pi, pi. Eu disse... Pi, pi, pi, pi, pi, pi...
Vesti, pi, pi, pi, pi, pi, pi, dos pi, pi, pi, pi, pi, pi, Não, pi, pi, pi, pi,
pi, pi, vendidos. E, por fa, pi, pi, pi, pi, pi, pi, vor, pi, pi, pi, pi, pi,
pi, não, pi, pi, pi, pi, pi, pi, me, pi, pi, pi, pi, pi, pi, tor, pi, pi, pi, pi,
pi, pi, re, pi, pi, pi, pi, pi, pi, tan, pi, pi, pi, pi, pi, pi, to, pi, pi, pi, pi,
pi, pi, a por pi, pi, pi, pi, pi, pi, ra, pi, pi, pi, pi, pi, pi, do pi, pi, pi,
pi, pi, pi, sa, pi, pi, pi, pi, pi, pi, co. Pi, pi, pi, pi, pi, pi. Vá, pi, pi,
pi, pi, pi, pi, para, a, pi, pi, pi, pi, pi, pi, a, pi, pi, pi, pi, pi, pi, puta,
pi, pi, pi, pi, pi, pi, que... Pa... Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!...”.
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APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Segundas intenções
BASTOU ENTRAR NA LOJA DE CALÇADOS A MOÇA
PROVOCOU um suave burburinho nos quatro atendentes que
estavam próximos da porta. Impensadamente, todos de uma só
vez se precipitaram em direção a ela.
- Bom-dia! – disse um.
- Pois não? – gritou outro.
- Em que posso ajudá-la? – acorreu o terceiro.
- Preferência por alguma marca em particular?
Diante de tantos rapazes bonitos, charmosos e elegantemente
vestidos, a jovem composta por uma simetria corporal perfeita e
uma luminosidade vital, que transbordava alegria e sensualidade a
um só tempo, optou pelo mais tímido que se limitou a um “Bomdia”.
- Gostaria que me mostrasse alguma coisa diferente do
que venho usando.
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O atendente esticou o braço direito, indicando um dos muitos
bancos existentes.
- Por favor, me acompanhe.
Antes de se acomodar, a jovem deu uma caminhada básica
pelo salão, como se procurasse nos milhares de produtos expostos,
alguma coisa que lhe chamasse a atenção. Na verdade, ela só
queria mostrar seus dotes de princesa, envoltos por debaixo
daquele vestido azul- marinho, bem curto e esvoaçante, sabendo,
de antemão, que deixava todos os marmanjos ali presentes
(inclusive o que a seguia de perto), dissimuladamente estupefatos.
Para os que sobraram garimpassem mais acentuadamente seu
visual impecável, levantou um pouco o tecido que cobria os joelhos
de maneira insinuante. Finalmente, sentou no local indicado,
cruzando as pernas devagar.
- Qual seu número?
- 34.
- Aguarde só um minutinho. Trarei as últimas novidades
que acabamos de receber.
Sumiu, atrás de uma porta vai-vém, que ficava perto da seção
de abertura de créditos. Ao lado, uma fila aguardava vez para
pagamentos de carnês.
Os vendedores, que ficaram a ver navios, começaram a trançar
de um lado para outro. Passavam na frente da jovem, balançavam
a cabeça em sinal de cumprimento ou simplesmente sorriam e
desviavam os olhos para suas lindas pernas. E que pernas! Ela
percebeu que deixara a todos extasiados, naturalmente, em
decorrência do panorama que exibia. Apimentou um pouco a visão
da galera, tornando a coisa bem mais quente e lúbrica.
Propositalmente derrubou o celular. No que se abaixou entre as
poltronas, para reaver o aparelho, permitiu, ao se curvar, pudessem
os engraçadinhos bisbilhotar um pouquinho além do que deviam.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Nessas alturas, literalmente, todos os vendedores ficaram sem
ação, boquiabertos, como se estivessem embasbacados. Houve
um silêncio solene, colossal e abrupto. Também, diante de uma
coisa maravilhosa como aquela, e levando-se em conta o que
estava à mostra, faria qualquer homem normal arregalar os olhos e
babar. Foi o que aconteceu. Devido à movimentação exagerada
dos vendedores, o gerente caiu em si e pescou no ar o lance.
Arranjou um jeito discreto de sair de trás do balcão, estendendo a
conversa com uma cliente. A intenção dele era levar a senhora que
fora pagar uma prestação até a porta. Na verdade, tencionava
passar perto daquela deusa e desfrutar, como os demais
funcionários, do que ela oferecia, de graça, para o deleite dos
olhos esbugalhados de todos.
Com uma dezena de caixas coloridas em cada uma das mãos,
eis que surge, de volta, o vendedor escolhido. Caminhava devagar,
para não deixar que nada fosse ao chão. Nesse instante, sem
exceção, a loja inteira parou, inclusive alguns clientes que
vasculhavam as vitrines. Todas as cabeças se voltaram para aquele
pobre que se aproximava, cambaleante, pé ante pé, solícito, o
mesmo sorriso de sempre nos lábios. A linda, ao vê-lo, levantouse, e o ajudou a se livrar daquela carga, colocando um pouco das
caixas sobre uma das poltronas.
- Nossa, você caprichou.
- Trouxe tudo que encontrei em nosso estoque e espero
que alguma coisa venha a lhe agradar.
- Com certeza.
- Posso dar uma sugestão?
- Claro.
Tirou de dentro de uma das caixas um belo par de sapatos e o
exibiu a jovem.
35
- Experimente. É a sua cara.
Ela voltou a se sentar e ele se pôs de cócoras, para calçar o
pezinho que ela lhe indicava. Foi aí que aconteceu. No instante
em que abotoava o fecho da sandália. A graciosa fez de propósito.
Premeditou tudo. Abriu as pernas. Era como um auto de fé.
Uma obsessão, um vício. Não conseguia domar a criatura selvagem
que morava dentro de seu ego medieval. Queria ver a reação,
sentir de perto e na pele, como cada um se comportava diante de
uma provocação inesperada como aquela.
Num primeiro momento, o atendente, entretido em cuidar dos
detalhes, não só para agradar, como para não perder a venda, se
esqueceu de espiar para um pormenor maior do que o seu limite
de contenção permitia. Ela estava sem calcinha. Contudo, ao darse conta do que desfilava diante de si, o coração disparou.
O sangue ferveu. Seu rosto perdeu a cor natural. Por segundos,
pisou em brasa viva, se viu no meio de uma fogueira sem ter como
escapar. Nessa quase loucura, abriu trilhas numa selva que até
então vivia adormecida dentro de seu corpo. Teve a impressão de
morder cabeças de cobras venenosas e arrancar o couro de tatus
e porcos-espinhos. As batidas de seu coração se espalharam por
todos os cantos como tambores. Chegaram a provocar um eco
retumbante naquele outro coração que dormia, quieto, logo abaixo,
dentro da cueca de algodão. Olhou ao seu redor, assustado, sem
saber o que fazer, ou que atitude tomar. Uma sensação gostosa e
atemporal se alastrou por sua mente.
Continuava atarantado, fora de si, sem ação e perdido. Percebeu
que um entusiasmo erótico instantâneo mexeu com seus nervos.
Enquanto isso, a estonteante cliente, mordiscava os lábios e sorria
maliciosamente. Sabia que alcançara seus objetivos. Podia se ver
em seu rosto maquiavélico, que aquela cena mexia com seu interior.
Havia uma estranha combinação de magia e poder feminino sobre
a presa, a essa altura, transformado num duende completamente
estabanado, segurando, fortemente, um de seus pés.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Resolveu levar adiante a estripulia. Descerrou, por completo, seu
triângulo do prazer, seu esconderijo secreto, e o fez sem meiostermos, sem pudor, sem nenhum sentimento de vergonha. O pobre
rapaz tremeu na base. Diante dele, a doce cavidade do deleite em
completo repouso e a espera de ser atingida.
Nessa visão colossal, ele viu um jasmineiro florido, com
passarinhos cantando uma melodia suave. Sentiu como se um
milhão de luzes houvessem se acendido e, no minuto seguinte, teve
a impressão de mergulhar, de cabeça, do alto de uma cachoeira.
O cheiro da maçã entrou em suas narinas. Pressentiu o pecado se
agigantando, tomando conta da sua vontade. Seus olhos não
mentiam. Não via coisas, nem sonhava acordado. A jovem era
real, tudo ali tinha forma física e podia ser tocado. Com as mãos,
a linda moveu um pouco o vestido, permitindo que o desvairado
ficasse mais perto do calor e da tentação e, nesse clima, o infeliz
se fascinasse com todas as transgressões que pudessem ser criadas
por sua imaginação.
Para os intrusos, a facécia cobria o essencial. Especialmente
para o vendedor sortudo, a safadinha mostrava a cobiça, o apetite,
a vontade exacerbada se agigantando, no meio de suas coxas.
Um ponto, dentro dela, de repente, explodiu em líquido puro.
A poção do universo veio abaixo, a ponto de molhar o assento da
cadeira. Diante da incredulidade do vendedor, ela começou a
esfregar a bunda, cadenciadamente, no assento até que alcançou
o epítome do que buscava. Gozou.
37
38
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Olhos sobre tela
UM GRUPO DE AMIGOS resolveu parar no centro da cidade
e almoçar num ambiente diferente daquele a que estavam
acostumados. Depois de algum tempo de procura, optaram por
um self-service, que oferecia preços módicos no quilo, com
churrasco, além de um copo com suco de laranja grátis,
acompanhado de uma sobremesa a escolher. O restaurante não
tinha nenhuma sofisticação chamativa. Bastante simples, asseado
e acolhedor, mantinha as mesas no espaçoso salão a uma distância
regular, de maneira que a clientela, por mais que se acotovelasse,
na hora de movimento intenso, não se sentisse espremida,
esbarrando uma sobre as outras. De moderno, uma porta de vidro
fumê, aparelho de ar condicionado central e música ambiente de
gosto apurado.
A turma elegeu, por unanimidade, uma espécie de reservado,
onde juntaram mesas e cadeiras, formando um círculo sobre o
qual todos se veriam de frente sem correrem o risco de ficarem
fora do bate papo durante a refeição. Numa das paredes que
fundeava a peça, sobressaía uma enorme tela que ocupava toda a
39
parede, consumindo-a de um extremo a outro, onde se via, pintado
em alto relevo, o Jardim do Éden, bem como o primeiro homem e
a primeira mulher; os animais em derredor, vivendo em disposição
bem ordenada e, em sintonia com a natureza; além de árvores
frondosas e copadas. Destacava, ao alto, um céu límpido e muito
azul, com ralas nuvens brancas e, ao longe, um riacho de águas
cristalinas descendo por entre um emaranhado de árvores e pedras.
O painel de cores fortes conciliava a perfeição e a destreza do
autor, realçando seu espírito criativo em grau máximo, ao mesmo
tempo em que sobrelevava sua simplicidade a patamares profundos,
tornando a obra praticamente uma coisa quase irreal dentro do
real. Dava a impressão de que a pintura se solidificava com o
resto do refeitório, tamanha a beleza, a calma e a tranquilidade
que emanavam de todo o conjunto, declarando a sua
engenhosidade ausente de qualquer defeito de criação.
Ambrósio, o mais velho do grupo, de descendência alemã, mal
começou a comer, estancou o garfo no ar. Olhando fixamente
para o quadro comentou:
- Parem um pouco e observem aquela gravura. Olhem
bem para o Adão. O corpo atlético, físico ricamente trabalhado
recorda - ainda que ligeiramente – um deus grego, as faces
vermelhas, ruborizadas, talvez, pelo sangue que lhe corre nas veias.
E a Eva? Que doçura, que candura! Contemplem as pernas, os
seios, os olhos. Divinamente angelicais. Lembra-me Afrodite a
deusa da beleza e do amor. Adão e Eva, com certeza, eram alemães.
- Discordo plenamente – interrompeu Narciso com ar
engraçado – Se vocês atentarem mais apuradamente para o Adão
e fixarem a ferramenta de trabalho (olhem o tamanho) e,
consequentemente, perderem uns bons segundos no vasto e
cabeludo triângulo de amor da Eva, no meio das pernas, verão
que, de ambos, desprende uma espécie de erotismo nato, quase
tribal, com pinceladas, eu acrescentaria, animalescas. Adão deve
tirar umas ótimas bombadas e deixar a Eva em frangalhos.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Quando falo em frangalhos, me refiro às partes pudentes que, nessa hora, costumam ficar em brasa viva. Sem medo de errar digo a
vocês, aqui, agora: estamos diante de um belo casal de franceses.
Não asseguro isso só porque morei na França, quatro anos.
Nada a ver.
Baldaraque, um loiro vesgo que nunca tirava os óculos escuros
da testa, contestou os amigos acrescentando:
- Pelo amor de Deus, não falem besteiras! Ambrósio e
Narciso, vocês estão complemente equivocados. Prestem atenção
nas mãos de Adão. Vejam, que mãos. São de homem macho.
Fixem o semblante da Eva. Reparem os cabelos de princesa, a
fronte de rainha, o nariz de gente fina, a pele tratada a rigores de
ervas, os seios delicados. Devo lembrar, ainda, que Adão e Eva,
segundo estudos de pesquisadores recentes, têm, nas veias, sangue
nobre, sangue inglês. Você não está de pleno acordo comigo, amigo
Tomaz?
Tomaz comia quieto, em profundo silêncio. Ouvia o papo
furado, mandando para dentro um suculento filé ao molho pardo
com batatinhas fritas. Não se ligava na conversa e, para ele, aquele
assunto não importava:
- Tomaz, está dormindo, cara?
- Desculpem, andava longe! O que foi que disse
- Estou afirmando para nossos caríssimos que Adão e Eva,
como estão postos naquela pintura, eram ingleses. Queria fechar
minha tese com suas considerações. Pode ser?
Tomaz levantou os olhos por breves segundos, capturando o
verde que escorria deles na pintura gigantesca. Depois de
prolongada contemplação, muito sério e senhor absoluto do que
diria para os companheiros, expôs:
41
- Os prezados não perceberam alguns detalhezinhos, a
meu ver, importantíssimos. O Adão está nu. A Eva, pelada. Ambos
descalços, os pés feridos. Não há casa ou barraco por perto.
Parecem viver sem teto, ao relento, à mercê de chuvas e ventos.
Não vislumbro sinais de abrigo, sequer uma barraca dessas
vagabundas, para passarem a noite. Vejo mais: apenas uma maçã,
uma única maçã, na mão da Eva. Já nem quero falar da cobra ao
lado. Estão vendo a cobra? Magra, raquítica, como se esperasse
o momento certo para dar o bote e roubar a fruta. Pois bem, numa
escala ascendente, tentando ser um pouquinho melífluo, Adão
transmite um ar de babaca, de bobo. Pois então, a Eva com aquele
par de peitos prontos para serem sugados, mamados, um traseiro
descomunal e uma boce... Desculpem, uma periquita maior ainda,
livre e desimpedida para entrar no ferro e, levando-se em conta o
sorriso sacana e ligeiramente enrubescido, recorda, vagamente, a
Madame Josefina, dançando numa boate vagabunda e soltando a
franga sem medo de ser feliz. O Adão não tem bunda, só pau.
A Eva parece doida de pedra para liberar o traseiro e esconder a
trosoba de seu homem. Esses dois, meus prezados, finalizando
minha humilde observação, largados às agressividades da
sobrevivência, fodidos e mal-pagos e, ainda, sonhando com o
paraíso, só podiam ser brasileiros.
42
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Missão quase impossível
A EMÍLIA TINHA NA CABEÇA, além dos cabelos literalmente
loiros e compridos, uma fantasia excêntrica: fazer amor ao vivo e
em cores com o namorado, em seu local de trabalho. Fábio era
chaveiro e passava os dias numa espécie de mini trailer 24 horas
instalado numa avenida movimentadíssima do centro. Para piorar,
funcionava, contíguo, um shopping centter recém inaugurado.
O troço fervia como feira livre, de segunda a domingo. Mal dava
oito horas, começava a chegar gente vinda de todos os lados.
Nessa correria desenfreada, o rapaz sequer respirava.
Na sua peregrinação, vezes sem conta, Emília rondava o
pedaço, na expectativa de tornar seu sonho realidade. Todavia,
sempre na horinha agá, pintava um serviço urgente e a vontade
dela acabava ficando presa, engasgada como um nó incomodando
na garganta. Nervosa, ou melhor, furiosa, a coisa mexia com seus
pensamentos, remoía de tal forma que, em pouco tempo, se não
conseguisse praticar, viraria uma tremenda paranoia. Não colocasse
em prática as loucuras que se formavam em sua mente, certamente
acabaria lelé da cuca.
À noite, não dormia direito. Mal se recolhia, estranhos pesadelos
se formavam e invadiam seu pequeno mundo, que não ia além de
um quarto muito amplo e ricamente mobiliado com pôsteres gigantes
43
de artistas famosos, espalhados pelas paredes. Seus pais lhe
davam de tudo e, nesse tudo, incluía o que havia de melhor: um
espaço só seu, cheio de bonecas, um guarda-roupa abarrotado
de saias de grife, jeans, blusas, meias, e sapatos de marcas famosas.
Na garagem, ao lado da Mercedes do pai e do Jaguar da mãe, um
Peugeot zero bala para ir e voltar da faculdade de comunicação
sem precisar enfrentar ônibus lotados. Não contando que morava
numa suntuosa mansão incrustada num bairro nobre, onde circulava
a mais alta nata da sociedade.
Em paralelo, seus genitores viviam ligados à moda fashion quase sempre a mídia especializada nessa área marcava presença
- jantares e reuniões de negócios em busca de novidades e fofocas.
Embora tivesse tudo a tempo e hora, Emília não estava satisfeita
com sua vidinha pacata. Recém hospedada na esteira dos vinte,
fazia dois meses que conhecera o Fábio e começara a namorar
sério, escondida dos pais, mas sério. Foi amor à primeira abertura
de um cadeado que ele nem se lembrou de cobrar. Logo que viu o
“pedaço de mau caminho”, seu coração de mulher se abriu como
um paraquedas. Daí em diante, passou a quebrar as chaves nas
fechaduras e a cegar os alicates de unha da mãe e de uma tia
solteirona que morava junto, só para as duas, obrigatoriamente,
passarem de carro, no trailer do saradão e encomendar seus
préstimos, e, claro, pedir, depois, que ela fosse buscar e pagar
pelos serviços. O encontro inaugural aconteceu meio sem graça.
Mas rendeu.
- Oi!
- Oi...
- Você abre este cadeado para mim? Perdi as chaves.
- Claro. É pra já.
Fábio, vinte e dois anos, o que tinha de bonito, carregava
de tímido. Caladão e sério, não ia além de um sorriso maroto.
Contudo, diante de Emília, como num passe de mágica, a vergonha,
de repente, deu lugar à ousadia.
44
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- Que livro é esse?
- Capitu Sou Eu, de Dalton Trevisan.
- Já li alguma coisa.
- Você também é chegado em leituras?
- Bastante.
- O que está lendo?
- Zero Absoluto de Chuck Logan. Como meu tempo é
curto e as horas corridas, levo quase um mês para chegar ao final.
Antes de Logan, consegui terminar Harold Robbins.
- Maneiro. Recém terminei 79 Park Avenue, dele.
- O cara é irado.
- Tô ligada.
Emília realmente se ligou. A tal ponto que no encontro
posterior rolou uns beijinhos, mãozinhas bobas aqui, mãozinhas
bobas ali, até que a moça encasquetou de se entregar inteira, corpo
e a alma, de lambuja. Afinal de contas vivia seu primeiro caso,
curtia o primeiro namorado, o primeiro homem, seu primeiro amor
de verdade.
Decidiu que a doce aventura seria no trailler apertadinho
entre chaves, alicates, tesouras, cadeados, facas, gente chegando
e saindo.
O roça-roça passava de um mês. Na verdade, um mês e
quinze dias. Ela estava pra lá de seca, ele igualmente doido,
descontrolado, subindo pelas paredes, trepando de costas. Mas
o bem-bom, o bem- bom, nada.
- Vou ser dele. E vai ser no chão daquela bosta.
A primeira investida, entretanto, falhou. Como a segunda, a
sexta, a nona. Parecia que algo lutava contra. Surgia uma brecha,
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eles não perdiam tempo: se engalfinhavam um no outro. Todavia,
no momento de partirem para os “finalmente”, pintava sujeira.
Emília teve uma ideia. Trancar a porta pelo lado de dentro e ficar
de cócoras. Quem chegasse, só veria o Fábio da cintura para
cima. Jamais alguém, em sã consciência, desconfiaria que, por
debaixo do minúsculo balcão, uma marinheira de primeira viagem,
se preparava para dar uma festa de arromba e deixar seu bem
amado de queixo caído. Ou seria de saco vazio? O que importava
era a festa, aliás, prometia ser inesquecível.
Aconteceu no sábado. Emília se posicionou no diminuto
compartimento, disposta a se entregar aos prazeres do sexo e à
fogosidade da carne fraca que lhe faziam tremer todas as partes
do corpo. Havia nela um fanatismo instilado que a empurrava para
frente, numa ansiedade descomedidamente irrefreável de perder a
virgindade com aquele deus grego. Nesse prazer escrachadamente
doido, faria o Fábio viajar até as nuvens, embalado e montado
numa potranca de fogo, como vira num filme pornô que trouxera
emprestado da casa de uma amiga da escola.
Chegou uma freguesa. Emília, porém, não se fez de rogada.
Ao diabo esperar mais. Abriu o zíper da calça do namorado.
A peça foi descendo até formar um amontoado de pano amassado.
Fábio começou a trabalhar no alicate da madame. Emília, de
repente, se viu frente a frente com a arma do crime colada em seu
rosto. E bem perto de seus lábios ressequidos pelo prazer. Fábio
tinha um tremendo de um volume grosso que pulsava, irrequieto,
dentro da cueca. Parecia a ponto de pular fora e se aninhar em
meio às mãos da gulosa. Na verdade, o troço saltou mesmo.
E esquentou. E o bicho pegou.
- Ai, ai...
A senhora que aguardava, recostada no parapeito do balcão,
por um momento imaginou que o rapaz estivesse às portas de um
piripaque.
- Você está se sentindo bem, meu filho?
- Sim... Estou... Estou quase...
46
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- Quer que eu chame um médico? Nossa, meu querido,
você está suando em bicas!... Ficou branco... Não, amarelo, Credo
em cruz!
- Ai, ai, engole... Sua vaca... Sua puta...
Sem entender o que se passava, ao ouvir essas palavras,
ditas assim, sem mais nem menos, na lata, na bucha, a madame
rodou a baiana.
- Pelo amor de Deus, meu amigo, que modos são esses?
– gritou a posuda mulher – cenho franzido - nunca fui tratada dessa
forma. Que falta de respeito! Acaso me chamou de vaca, de puta?
E quer que eu engula... Engula o quê? Escuta aqui, seu pilantra.
Não volto mais aqui. Nem eu nem minhas amigas. Passa pra cá
meu alicate. Suspenda o serviço. Eu deveria chamar a polícia, seu
mal-educado, vagabundo, tarado!
- Não, senhora. Por favor, não é nada disso que está
pensando. Eu estou falando com a... Ai, ai, aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!
Emília se despojou de todos os preconceitos e talantes clericais,
nos quais se criara desde pequena e mandou bala.
Àquela altura, não mais volveria à lucidez. Num delirar sem conta,
enfiou, na boca, numa só estocada, a chave grossa e comprida
pendurada no meio das pernas de Fábio e a fez dar uma série de
giros numa fechadura inimaginável. Engoliu de forma tresloucada
o pau quente do namorado, sorveu os centímetros que pulsavam
com vontade e determinação. O troço parecia ter aumentado de
intensidade, principalmente, depois que fora colocado goela abaixo.
De certa forma, esse gesto inesperado atiçou a gula, despertou a
fome e a libido. Afinal, ela estava no êmulo de sua fraqueza. Talvez
o ineditismo da cena, o local, a posição, a forma como tudo
acontecia ajudava a criar um clima novo. Emília literalmente
agarrada, feito uma possessa, no talo do rapaz, e depois de tê-lo
levado às nuvens, não parava de friccionar o pênis num vai-vém
incessante. Em busca do “quero de novo”, voltou com a pica na
posição inicial e começou a lambê-la, primeiro com a ponta da
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língua, depois enfiando inteira, sem pestanejar, a uma velocidade
incontrolável. O patrão de Fábio, um tal de Miguel das Mil Utilidades, chegou
no exato minuto em que a dona do alicate, furiosa, voltava com
dois policiais em meio a uma pequena multidão de curiosos.
Gesticulava, muito braba, apontando o trailer.
- O Senhor é o dono dessa espelunca? Seu
funcionariozinho aí...
Emília conseguira de novo. Fábio gozava pela segunda vez. Da sua máquina, ainda quente e turbinada, acabava de jorrar um
jato branco muito fort e, fazendo com que urrasse
descontroladamente. Agora de joelhos, Emília terminava de
saborear o final do boquete, a substância viciadora do pecado,
escorrendo pelas maçãs do rosto e parte da boca. Acabara de
saciar seu desejo aprisionado. Tudo como havia sonhado, ao fazer
a sua escolha. Foi legal, ainda que ralando os joelhos numa
superabundância de chaves velhas e alicates imprestáveis. O aríete
de Fábio, aos poucos, entrou em estado de repouso. Parecia um
pequeno botão de rosa, pendendo para a esquerda e chorando
uma reluzente lágrima de orvalho. A mão de Emília, contudo,
continuava dentro da calcinha. Ela teimava em continuar fustigando
os pequenos lábios. Enquanto engolia o sêmen quente do seu
macho, gemia, gemia num crescendo, gemia com seguidas ondas
de êxtase, assemelhada a uma cadela no cio, tal como se estivesse
fora de suas faculdades normais. De fato, estava!
O embasbacado patrão, sem saber o que acontecia, tanto
dentro, como fora, destrancou a porta e entrou esbaforidamente.
Atrás dele, a galera pedia providências. O casal, surpreendido no
flagra, foi posto no olho da rua. Não fossem os policiais, ambos
teriam sido linchados.
Uma semana após o acontecido, Miguel das Mil Utilidades
ajustou, para ocupar a vaga de Fábio, um rapazola loirinho, muito
alegre e simpático, que sorria como uma hiena e, claro, nas horas
de folga, entre o intervalo de um alicate e a feitura de uma chave,
quebrava os galhos chupando a vara do patrão.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Um intruso no formigueiro
“Era uma vez um louco: Eu”
Pachá OLHAR PARA AS GATINHAS QUE PASSAM todas as
manhãs embaixo da minha janela, com destino à escola pública,
quase em frente a minha casa, instiga a minha libido terrorista. Se
me fixar em seus traseiros mais afogueadamente, com certeza, terei
uma ereção nos moldes das derrubadas das torres gêmeas do
World Trade Center, em New York. Geralmente essas inocentes
espiadelas terminam ali mesmo, ocultas por detrás das cortinas,
ou trancafiadas no banheiro, diante de um pôster gigante da Bruna
Ondinha, num pecaminoso cinco contra um, o que redunda,
invariavelmente, num verdadeiro entulho de 250 mil toneladas de
espermatozóides sendo ejaculados ao “deus dará”. Recentemente
descasquei uma banana prolongada para a Vivi, nua em pêlo, numa
revista feminina que roubei do meu vizinho, que tem assinatura e,
às vezes, demora para visitar a caixinha do correio. Me imaginei
na pele do Gozadão, com todo aquele material de primeira, ao
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alcance das mãos, esparramado numa cama redonda, com teto
solar, piscina de água quente e outras diversões, longe dos curiosos,
num desses flets espalhados por lugares deslumbrantemente
exóticos.
Gosto, como todos os rapazes da minha idade, de apreciar as
revistas de mulheres peladas. Devoro todas as publicações que
me caem nas mãos. Faz um bem enorme avaliar as curvas perfeitas
das modelos mais cobiçadas deste país. Nessas horas, sinto como
se estivesse dentro do carro, o pé até embaixo, no acelerador,
voando perigosamente em alta velocidade, por uma estrada sinuosa,
margeando uma serra cheia de curvas fatais. Ao meu lado, ajudando
a dar vazão a esse quadro irreal, uma colegial (dessas que todos
os dias passam rebolando na calçada da minha janela) com o
rostinho de princesa, lembrando, não a Vivi do Gozadão, mas a
Anita Caxinha de Fósforo, com os cabelos longos e soltos à moda
da Maria Nasci Rica. Enquanto seguro o volante, com a outra
mão, atolo o dedo no pequeno triângulo que ela carrega escondido
como um brilhante valioso no meio das pernas, onde, bem sei,
existe um caminho secreto, encoberto por um invólucro minúsculo
de nylon, levando meus devaneios às loucuras irascíveis do prazer.
Semanas atrás quase aconteceu um milagre. Só não foi
completo... Acho melhor contar desde o começo para que a coisa
fique bem clara e não reste dúvidas a respeito da minha sanidade
mental. Aconteceu assim: voltava do trabalho, quando à altura do
Viaduto Maria Paula, tropecei com uma velha amiga, a Santi,
conhecida de longa data. Não encontrava pela frente essa figura
fazia bom tempo. Conversa vai, conversa vem, consegui arrastar
a moleca para um quarto de motel, na Praça da Sé. Por sorte,
nesse dia, havia sobrado uns trocados no bolso. Mixaria, mas
quebrava o galho. Entre um suco de manga e uns biscoitos que
compramos, ela resolveu ceder aos meus impulsos. Como a um
telefone, me tirou, ou melhor, me arrancou do gancho.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Tomamos um banho demorado com ervas e sais afrodisíacos,
misturados a espumas aromáticas. A magia da sua presença
inebriava o ambiente. Seu corpo, abrigo de vinte e cinco
primaveras, tinha a sutileza de uma rima. Uma flagrância envolvente
nos cabelos lhe corria pelos cachos dourados e terminava à altura
exata onde a calcinha cor da pele encobria os dois lados do pecado.
Cheguei a sentir o cheiro forte que ligava seus ciclos menstruais à
lua. Ao deslizar a língua em seu traseiro, saboreei o doce gosto de
mel estagnado que emanava da sua bundinha avantajada.
Por breves minutos, me senti na pele de um rei poderoso,
desfrutando de toda sua majestade intocável. Os móveis que
compunham o quarto onde estávamos, embora humildes e antigos,
pareciam pequenos súditos reverenciando nossa felicidade.
Na verdade, naquele momento mágico, me imaginava com
autoridade absoluta diante daquele corpo escultural todinho
entregue a minha disposição. Uma verdadeira visão hipnótica,
disfarçada em meiga candura.
Depois do banho, partimos para a cama. Santi tirou de dentro
da bolsa uma Sexy onde se via estampada às formas impecáveis
da Sandroca Beleza. Virando o rosto para meu lado e empinando
o traseiro, segredou que gostaria de ser como a Pati Boneca, sua
atriz preferida. Revelou que igual às colegiais americanas é
cheerleader de um time de basquete do colégio, onde cursa o
sexto período da faculdade de comunicação e que, vez em quando,
para ganhar uns trocadinhos, trabalha como acompanhante de um
casal de idosos, no Tatuapé.
Por fim, anunciou que seu namorado – um negrão recémchegado do Senegal – disse para seguir a carreira de modelo.
Jamais desperdiçar seu belo par de olhos azuis. Seria uma pena
irreparável se isso acontecesse. Concordo plenamente com o
sujeito. Não é todo mundo que enquadra um visual tão propício
para a arte das passarelas: 1,67m de altura, 48 quilos, 86
centímetros de busto, 6l cm de cintura e 86 cm de quadris. Santi,
porém, está vivendo uma dúvida cruel. Ultimamente, para ajudar
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nas despesas do apartamento que divide com algumas amigas, no
Largo do Arouche, vem ganhando a vida como garota de programa
(o quê???) numa movimentadíssima boate, na Marquês de São
Vicente, na Barra Funda. Garota de programa? Puta que pariu!
Na minha santa ignorância achei que levara uma eternidade enorme
para arrastá-la comigo, até aquele cubículo imundo, de frente para
as escadarias da Estação Sé do metrô.
- E aí, vamos partir para os finalmente? – disse ela num
dado momento da conversa - Tenho outros encontros, você
sabe como é, né mesmo!
Olhar para as gatinhas que passam na rua em direção à escola
aqui perto de casa, agita, a olhos vistos, o meu lado animal. Foi
assim quando revi a Santi, depois de muitos anos, não sei
exatamente quantos, mas isso não importa agora. Estar numa cama
de hotel com ela ao alcance das mãos e de outras coisas me fez
senhor absoluto de mim. Juro que, por breves instantes, me senti
como Príapo, filho de Baco e Vênus, que nasceu, segundo a
história, com um pênis desproporcionalmente imenso.
Contudo, a revelação dela, de cara limpa (garota de programa?)
- olhando bem dentro de meu coração desafortunado - caiu como
um balde de água fria - misturado com cubos de gelo recém saídos
de um imenso congelador. A ferramenta, símbolo da masculinidade
deste pobre ser mortal, se tornou flácida, encolheu de medo e
perdeu a pose do tamanho. Na verdade, o troço fugiu correndo
para o esconderijo, ante a revelação nua e crua, mais crua que nua
de Santi. Então, a desgranhenta safada, ordinária, se transformara
numa prostitutazinha barata?! Meu Deus, quem diria, uma vulgar
que ganhava a vida em troca de um punhado de moedas, a duras
flexões em camas barulhentas de espeluncas baratas. Pintou, na
moleira, uma série de pequenos fragmentos que redundou no
esfriamento completo do apetite bestial. O estágio intermediário
da babaquice deu lugar a uma realidade gritante que, num momento
de lucidez, passei a enxergar.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
De repente, percebi que o espelho tinha duas faces distintas.
Através de uma delas, me vi enfiado numa espécie de almofada
pegajosa, onde os bichanos dormem e sonham com gorduchos
ratos de esgoto. Foi para os cambaus, meu milagre. Daí o quase.
Claro, não teve clima. Santi sentiu primeiro que eu - os propósitos
de uma bela foda haviam perdido a gana - e, de roldão, todo o
ritual da intensidade pela posse da Besta Primeva.
A outra face refletiu o momento exato em que vestimos nossas
roupas em meio a um silêncio constrangedor. Saímos cabisbaixos,
como se tivéssemos medo ou vergonha um do outro. Deixei a
vadia em frente ao prédio do Fórum Cívil, onde acenou para um
táxi. Na despedida, trocamos um beijo ríspido e vazio, sem sabor,
um beijo maquinal. Ela cheirava a sexo barato. Só fui perceber
depois que revelou ser uma tremenda vagabunda!
O melhor que tenho a fazer nesse “chove não molha” é vigiar a
revista pornô deste mês, que chega na caixinha do correio do meu
vizinho. Os colegas de trabalho lá da empresa comentaram que a
filha do Margarina, a Marina, vai pintar mostrando tudo, nuazinha,
nuazinha, em carne e osso, como saiu da barriga da mãe.
Lembrando desse incidente com Santi, e vendo uma leva de gatinhas
indo e vindo em direção à escola, vou partir em busca do esquisito
pendurado no meio das pernas. Coitado! Ele que seja macho, que
me endureça as feições e aguente a turminha de dedos que cairá
em seus costados. Só espero, sinceramente, que na hora agá, meus
colhões não empaquem e resolvam, junto com o caralho, fazer
greve de porra!
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54
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Persuasão
O RAPAZ CHEGA PARA A NAMORADA E PROPÕE:
- Lígia, minha linda, estamos aqui sentados no interior deste
carro, desde as oito horas da noite. São quase duas da manhã.
Como pode ver, ninguém na rua. Que tal aquela chance?
- Qual Julinho?
- De lhe fazer feliz por inteira.
- Mas sou completamente feliz, amor. Você me preenche
todos os vazios.
- Ficaria mais satisfeito e realizado interiormente se
fizéssemos amor.
- Não estou preparada. Namoramos há seis meses, mas
não estou pronta. Entende o que eu digo? Não chegou o momento...
Julinho finge uma mágoa ensaiada. Bruscamente pede a Lígia
que levante de seu colo e passe para o banco do carona.
- Você não gosta de mim como eu de você.
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- Claro que gosto, amor. Eu te amo. E muito. Você sabe.
Dou minha vida por nosso amor.
- Mas não dá o que realmente nos uniria de uma vez para
sempre.
- Julinho, você só pensa em sexo. Seu negócio é transar,
transar, transar. Quantas coisas bonitas tivemos a oportunidade
de dizer um para o outro. Você tem se saído um verdadeiro poeta.
Recita versos lindos, me enche de frases românticas... Sem falar
nas cartas maravilhosas que escreve. Vamos dar mais um tempo.
Nosso momento chegará. Pode ser amanhã, depois, ou...
- ...Ou nunca, Lígia. Para mim, chega. Tô fora.
- Julinho, eu te amo. Não seja tão radical. Já dei várias
demonstrações de que você é o cara com quem quero me casar,
ter filhos, construir uma vida, envelhecer.
- Faltou a principal.
- É tão importante essa prova?
- É.
- O que você quer?
- Preciso dizer?
- Meus pais...
Julinho abre a janela e aponta para a varanda enorme um pouco
acima deles.
- Seus velhos estão numa boa. Quem sabe até, pelo
adiantado das horas, em promoção de temporada.
- Promoção de temporada?
- Isso mesmo. Devem estar trabalhando na fabricação da
raspa do tacho.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- Raspa do tacho? De onde você tirou essa maluquice,
Julinho?
- Como você é ingênua. Raspa do tacho é o mesmo que
bebê temporão, ou seja, aquele irmãozinho inesperado que chega
para aumentar o clã familiar quando menos se espera. Risos.
- Papai a estas alturas do campeonato ronca a sono solto.
Mamãe, coitada, deve andar pra lá de Bagdá.
- Sentiu o drama? Ambos, dormindo, perdendo um tempo
precioso, como nós, aqui, agora.
- Amor, amanhã a gente continua o papo. Preciso subir.
- É cedo, gatinha.
- Amanhã eu...
- Amanhã é outro dia, depois de hoje... E hoje é o nosso
agora.
- Sofia, minha irmã, subiu passava um pouco das dez. Meu
irmão, Marco Aurélio, idem. Só eu estou aqui.
O rapaz continua firme na sua determinação e parece que nada
o demove a deixar a coisa para a noite seguinte.
- Escute o que vou dizer: entramos ali na garagem, só por
alguns minutos. Juro que levo você às estrelas.
- Não vejo estrelas. O céu está escuro demais.
Julinho deixa a aparente mágoa de lado e volta a abraçar a
namorada. Beija-lhe carinhosamente a nuca e os seios.
- Deixa lhe mostrar essas estrelas.
Enquanto tenta quebrar as últimas resistências de Lígia, abre o
porta- luvas do carro e, de lá, retira uma caixinha.
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- O que é?
- Abra e descubra.
Lígia, curiosa, obedece.
- Dois dadinhos?
- Na batata. Dois dadinhos.
- Para que servem? O que estão escritos neles?
- Calma princesa. Por etapas. Vamos até a garagem?
Enquanto fala, Julinho sobe vagarosamente a mão pelas pernas
de Lígia. Seu coração bate descompassadamente. O dela pouco
falta para saltar do peito numa erupção desenfreada de desejos
sendo despertados. A mão do rapaz segue adiante. Continua firme
e determinada, subindo, subindo, galgando centímetro após
centímetro. Lígia, quase sem fôlego, está sem ar. O corpo treme.
Sua pele sua. Entrementes, os dedos de Julinho bolinam na calcinha
e, afoitos roçam a...
Lígia enlouquece. Explode a vontade da posse contrabandeada
pelo desejo da entrega total. A tentação chega ao ápice, desperta
de seu sono, acorda furiosa.
- Está bem. Venha comigo.
O casal sai do carro e entra no escuro da garagem.
- Que volume é esse no seu bolso?
- Uma lanterna.
- Para que você quer uma lanterna, Julinho?
- Vamos jogar dadinhos. É assim. Deixa eu te explicar. Na
face que cair você deverá praticar ou fazer o que estiver escrito.
- E o que é que estará escrito?
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- Como vou saber? Você terá que jogar.
Os dois se acomodam num canto bem no fundo ao lado do
CITRÖEN dos pais de Lígia. Julinho tira a lanterna do bolso e
procura, com o foco, um espaço livre, no chão.
- Aqui está legal. Chacoalhe os dados com uma das mãos
e jogue, devagar.
A garota aquiesce.
- Leia.
- Neste aqui, NA MESA. No outro, COM A PORTA
ABERTA. - Não valeu. De novo.
- Lígia faz a segunda tentativa.
- E agora?
- No primeiro, AO AR LIVRE, no segundo, SEXO ORAL
NELE.
- Ótimo. Vá em frente.
- O que? Eu!...
- Amor prove que me ama de verdade. São seis meses.
Olhe só como estou por sua causa. Me dá aqui a sua mão. Sinta o
volume. Veja como você me deixa. Vamos, gatinha, aposto que
vai gostar. E pedirá bis. Não dói.
Desce rapidamente as calças. Num piscar de olhos está de
sunga, a camisa aberta.
- Tire fora. Olhe o que vou fazer.
Do bolso da camisa puxa um vidrinho pequeno.
- Nossa Senhora, Julinho, o que tem nesse trocinho?
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- Calma, Lígia, isso aqui é Jelly Well.
- Jelly o quê?
- Gel corporal.
- Qual é a serventia?
- Vou passar na pontinha do... Do Juninho.
- Credo! Não vou aguentar esse negócio comprido e
grosso dentro de mim. Acaso esqueceu que sou virgem? Você
sabe que nunca transei.
- E estou muito feliz por nós dois. Escute, minha linda: não
vou introduzir o “Juninho” dentro de você. Inicialmente pretendo
colocar o nenenzinho na sua boquinha. Obedeça aos dados. SEXO
ORAL NELE. Experimente. Ainda estou te dando a chance de
ser aqui dentro. Lembre-se que no outro dadinho saiu AO AR
LIVRE. - Eu, eu...
- Deixa de conversa fiada. Sinta o sabor do gel na ponta
da sua língua.
- Tenho nojo. Nunca fiz antes...
Todavia, diante de tamanha e acirrada insistência (embora não
suportasse mais esperar para ver como funcionava a coisa) Lígia,
meio sem jeito e ressabiada, começa a praticar sexo oral no
namorado. À medida que sorve o espesso membro, a emergência
definidora da vontade imperiosa de se subjugar às vontades do
rapaz, como por encanto, vai se soltando dentro de seu corpo,
aos poucos, até que, completamente relaxada, sente seu organismo
inteiro se descontrair. Num instante mágico, se desprende de todas
as amarras impostas pelos recatos da sua formação moral e segue
em frente. O brinquedo armado pulsa febril entre seus dentes, lhe
dá total sensação de liberdade, uma liberdade jamais sentida. Pela
primeira vez ela se sente mulher de verdade. Entrementes finge
uma vergonha inexistente.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- Chega... Que gosto horrível... Vou... Vou...
- Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! Por que parou? Merda, eu estava quase...
A donzela, desvairada, corre e vomita para todas as direções
e, pior, deixa o namorado a ver navios com bolinhas coloridas no
meio do aposento escuro, quase às três da manhã.
Dia seguinte, mesmo horário e lugar, a cena se repete.
- Jogue os dadinhos.
- Hoje é sua vez, gatinho. À vontade.
O rapaz não espera uma segunda ordem.
- Saiu EM FRENTE AO ESPELHO e SEXO ANAL.
- Tudo bem. Vamos nos contentar só com o que temos.
Não vou lá em cima buscar um espelho, a menos que você faça
absoluta questão.
- Para mim, tudo bem. Faremos sem o espelho.
- Afinal de contas, amor, qual a função do espelho?
- Desfrutar melhor dos movimentos... Você adoraria ver o
Juninho entrando no seu... Na sua bundinha. Dá uma sensação...
Risos.
- Pense que não faltará oportunidade. Talvez na próxima.
A gente vem pra cá preparado e traz tudo que tem direito.
A propósito, ia esquecendo: deixa te mostrar o que minha irmã
Sofia me deu de presente, antes de ir hoje cedo para o trabalho.
Cadê a lanterna?
Lígia levanta o vestido. De dentro da calcinha retira uma
pequena latinha.
- Posso saber o que tem dentro desse recipiente?
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- Calma. Dentro de alguns minutos matará a sua
curiosidade. Agora senta aqui a meu lado e deixa te falar uma
coisa. Contei tudo o que fizemos ontem a Sofia, ou melhor, o que
tentamos e não conseguimos.
- Pô, você abriu pra sua irmã?
- Sim. Qual o problema?
- Jesus Cristo, estamos fritos.
- Relaxe, meu príncipe. Fique frio. Ela é sangue bom. Aliás,
me deu altos conselhos. Deixou bem clara a nossa situação.
“Maninha, vá em frente. Para segurar a onda e manter um homem
embaixo dos seus pés, não espere, dê. Solte a franga. Mostre
logo do que é capaz. Detalhe: ele vai chegar junto e te pedir uma
comida básica no traseiro. A primeira vez dói pra caramba.
Parece que as pregas estão sendo arrombadas e arrancadas ao
mesmo tempo, por um estilete. Por mais carinhoso que o cara seja
enfiando a piroca com jeitinho e usando de toda delicadeza, você
subirá ao topo da Torre Eiffel e voltará ao chão umas “trocentas”
vezes. Não se assuste. O corpo sede, tudo sede, você sem se
aperceber dará gritinhos de prazer, além do que a bunda tem uma
elasticidade medonha para se amoldar ao ferro entrando. Nas
metidas que se seguirem depois, aposto, você estará enfiando de
primeira e rebolando em cima do pau dele, tão carente, mas tão
carente, quanto uma criança recém saída do gueto”. Me deu isto e
pediu que passasse antes de você me chamar no saco.
- E o que é?
- Unta cu.
- Unta o quê?
- Deixe de conversa fiada. Você jogou os dadinhos,
lembra? Tirando a história do espelho, ponha em prática o que
saiu escrito no outro.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Nó na garganta
MAL E PORCAMENTE PANTOLFO CHEGOU DA RUA
E SE ACOMODOU no sofá da sala para tirar os sapatos, o pequeno Luan, que assistia desenhos na TV, desligou o aparelho e
encarou o pai, muito sério.
- O senhor saberia me esclarecer quem nasceu primeiro?
O homem ou a mulher?
- O homem.
- E a mulher?
- Veio de uma costela de Adão.
- E quem é Adão?
- O primeiro homem.
O garoto sentou ao lado do pai e cruzou as pernas como se
fosse adulto.
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- Foi?
- Isso.
- E onde ele está agora?
- Morto.
- Se ele está morto, como é que a mulher nasceu da costela
dele?
- Obra de Deus, meu filho. Obra de Deus. Cadê sua mãe?
- Saiu com a Maria. Foram ao supermercado fazer compras.
- Seu irmãozinho?
- No parquinho com a babá. Pai, tem um negócio que está
me causando um monte de dúvidas? Será que o senhor...
- ...Se estiver ao meu alcance.
- Voltando a esse tal de Adão. O senhor falou que a mulher
veio da costela dele. Se a mulher veio da costela desse tal de
Adão, a mamãe saiu da sua costela?
- Não, filho. Mamãe e papai são diferentes.
- Diferentes? Como?
- Mamãe nasceu na casa de seu avô Tonico e de sua avó
Simone.
- E o senhor?
- Eu vim da casa de vovô Anacleto e de vovó Custódia.
O moleque caminhava absorto em pensamentos distantes.
- Pai, onde é que o vovô Tonico e a vovó Simone
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
nasceram? E o vovô Anacleto mais a vovó Custódia, vieram do
mesmo lugar?
Boquiaberto, Pantolfo não sabia o que responder. Precisava
pensar rápido, inventar uma desculpa qualquer que satisfizesse a
curiosidade do filho e o retornasse aos desenhos.
- Todos eles vieram lá do céu, no bico de uma cegonha
enorme. - O senhor também veio no bico dessa cegonha?
- Como todo mundo...
- Pai, essa cegonha traz gente grande igual todo adulto ou
só carrega criança do meu tamanho?
- Só criança do seu tamanho.
- No bico?
- No bico.
- E a criança não cai?
- Não, não cai. A cegonha é muito cuidadosa.
Luan estalava os dedos das mãos, como fazia seu avô Anacleto.
Parecia nervoso e preocupado. Aliás, estava. E muito.
- Pai, meu irmão Lucas veio no bico da cegonha?
- Veio. E pousou bem aí nos fundos do quintal.
- Que troço mais esquisito!
- O que é esquisito, filho?
- Se for mesmo a cegonha quem traz as crianças, como é
que o Lucas saiu da barriga da mamãe e nasceu na maternidade?
Será que a cegonha errou de endereço?
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Pantolfo abriu a boca e franziu o cenho diante dessas revelações.
Para ele, até então, o guri não passava de uma criança com o
espírito embebido na aventura da idade, só querendo conhecer
um pouco mais da vida dos adultos. Todavia, a história da barriga
e da maternidade mexeu fundo com sua cabeça.
- Quem falou que o Lucas saiu da barriga da mamãe e
nasceu na maternidade?
- O padre.
- Padre? Que padre?
- Padre Gregório.
- Quem levou você a esse tal de padre Gregório?
- Tia Elaine.
- Quando?
- Não sei.
- Não sabe?
- Acho que “era” ontem.
Risos.
- Sua mãe acompanhou vocês?
- Não. Mamãe parou na padaria.
- Na padaria?
- É pai. Ela disse à tia Elaine que iria comprar uns
trecos:ovos, pão de forma, manteiga, não sei mais o que e fermento.
- Fermento? Para que sua mãe precisa de fermento?
- Acho que é para pôr na torta que vai fazer para tia Vânia.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- Torta para tia Vânia?
- Ela vai fazer aniversário, esqueceu? Mamãe está preparando uma torta de surpresa. Eu e tia Elaine fomos até a paróquia
convidar o padre.
- Hummm!...
- Pai, o padre Gregório é mulher?
- Não conheço pessoalmente o padre Gregório, filho, mas
por tudo quanto é mais sagrado, de onde você tirou essa idéia?
- Ele não usa uma saia preta e comprida?
- Todos os padres se vestem assim. Aquilo não é saia.
É batina.
- Mamãe usa batina?
- Sua mãe usa saia.
- E tia Elaine usa batina?
- Saia.
- E tia Vânia?
- Saia. Todas as mulheres usam saia. A Maria, a babá de
seu irmão, sua avó...
- Por que os padres usam batina e não vestem calça?
O senhor não acha que tia Elaine e tia Vânia ficariam mais bonitas
se usassem uma batina igual a do padre Gregório? Ou vice-versa?
O senhor teria coragem de usar batina, ou uma saia bem curta
igual a da Maria, nossa empregada?
Pantolfo começou a mostrar sinais de irritação e impaciência.
O moleque queria saber demais, e a uma velocidade vertiginosa.
Torrava a paciência. Principalmente, depois de um dia estafante e
cheio de encrencas no escritório da companhia. Teve uma ideia.
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- Filho, você não quer chupar um sorvete?
- De morango ou de abacaxi?
- Você escolhe o sabor que melhor lhe aprouver.
- Melhor o quê?
- Agradar. Melhor lhe der satisfação.
Luan, contudo, não se fez de rogado. Voltou à bateria de
perguntas.
- Pai, como é o nome da primeira mulher?
- Eva.
- Eva?
- Eva.
- Gozado! O senhor não vai acreditar. Ela mora ali
embaixo, depois da pracinha, perto do açougue. É a mãe do
Funchal.
- Mãe... Mãe de quem?
- Do Funchal, um colega meu. Estuda comigo. A gente
senta um ao lado do outro.
- Filho, essa Eva é outra. Não é a que saiu da costela de
Adão.
- Como é que essa outra Eva conseguiu sair da costela
desse tal de Adão?
- Já disse: ela não saiu...
- O senhor não acabou de falar que a Eva saiu da costela
de Adão?
- Sim.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- Então?
Pantolfo colocou as mãos em concha no rosto miúdo do garoto
e tentou parecer calmo. Por dentro, entretanto, uma pilha.
- Lembro que estávamos comentando a respeito da
primeira mulher, não da mãe de seu amiguinho aí... Como é mesmo
o nome?
- Funchal.
- Claro, Funchal. Que nome.
Luan seguia disposto a não dar tréguas.
- Pai, o que é costela?
Em resposta o pobre e cansado pai arrancou do bolso uma
carteira e, dela, uma nota de dez reais. Balançou no ar.
- Olha só. Vamos gastar tudo em sorvete?
- O senhor não respondeu: costela, o que é costela?
- Está bem. Você ganhou. Costela, ou melhor, costelas,
são esses ossos que temos aqui nas costas.
No que falava, Pantolfo se posicionou de lado e, com o braço
esquerdo, tentou indicar as vértebras à linha média no ventral do
tronco.
- Está vendo?
- Não senhor.
- Tudo bem. Vamos voltar ao sorvete? Você falou em
morango e abacaxi...
O menino, porém, andava longe.
- Droga! Agora acho que “pirei”...
69
Pela segunda vez, Pantolfo voltou a arregalar os olhos. Fixou
o rosto do filho como nunca havia feito até então. Não queria
acreditar no que acabara de ouvir.
- Acha que o quê?
- Pirei...
- Explique o que é “pirei”.
- Todos os meus amiguinhos da escola falam “pirei quando
vi a professora levantando a calcinha no banheiro, pirei quando
minha madrasta chegou e me pegou batendo uma punheta. Pirei
quando o diretor me pegou mijando de pau duro, na parede da
secretaria...”
- E, no seu caso, como é que você acha que pirou?
- Tio Léo veio dormir aqui em casa quando o senhor viajou.
- E daí?
- Trouxe com ele a tia Berenice. Eu escutei os dois
conversando lá no quarto da Maria. Tio Léo disse e mamãe também
ouviu quando ele falou que a tia Berenice era a costela dele.
Tia Berenice saiu da costela do tio Léo, pai?
O telefone tocou. Pantolfo, quase à beira de um ataque de
nervos (não tinha mais saída para tantas perguntas e, sobretudo,
empombado com a sagacidade e a inteligência do primogênito),
deu um pulo do sofá e correu atender. Graças a Deus havia sido
salvo pelo gongo. Mais um bloco de perguntas e entraria em pânico.
Do outro lado da linha, alguém procurava pelo Luan.
- É seu amigo navio.
O pequeno franziu o cenho.
- Meu amigo navio? Eu não tenho nenhum amigo navio,
pai.
70
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
O infeliz levou as mãos à cabeça. Não sabia mais o que fazer,
ou dizer. Na verdade, sua vontade se constituía numa só: arrancar
os poucos fios de cabelo e sair correndo feito um louco pelo meio
da rua. Optou por gritar o nome do coleguinha e pronto. Assunto
encerrado.
- Funchal, Funchal. É o Funchal...
- E por que o senhor chamou meu amigo Funchal de navio?
Teve vontade de explicar que Funchal era um transatlântico
que ele vira atracado no porto, quando voltava para casa.
E, coincidentemente, seu amiguinho tinha o mesmo nome dessa
embarcação. Conteve o ímpeto a tempo. Sabia, de antemão, que
qualquer observação que fizesse não ficaria restrita só a pequenos
pormenores. O guri iria querer detalhes:
- Escuta aqui, seu espertinho. Atenda ao telefone e deixe
de conversa fiada. Vou lá fora comprar cigarros.
- Cigarros? Para quem? O senhor não fuma! E o meu
sorvete? Cadê o dinheiro que o senhor tirou do bolso e ia me dar
para comprar sorvete?
71
72
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Anjo noturno
PACU DA CABEÇA VERMELHA SABIA QUANDO a
gostosura da vizinha do 301 estava em casa. Morava no 201, o
que lhe proporcionava, na pacífica contemplação dos sons
produzidos por ela, uma viagem ao faz de conta, em que meditações
bucólicas embaraçavam sua alma de homem solitário. De repente,
se via no meio da cena, como se estivesse lá em cima, ao lado
dela, igual um poeta sentado e embevecido com o sussurro das
árvores docemente agitadas pelo calmo sibilar do vento.
A misteriosa moradora - dona de um corpo escultural e perfeito
- reunia todos os encantos do ser ideal com os quais qualquer
sujeito normal sonharia. Em razão disso, Pacu se tornou
perdidamente apaixonado. Uma paixão delirante, inconsequente,
desenfreada e inexplicável, que impregnava nas paredes pequenas
nuances de senilidade, misturados com momentos de furor e de
ciúme mesclados com pitadas de reviravoltas de ternura e
lágrimas. A linda chegava sempre por volta das cinco horas da
manhã. Estivesse dormindo ou não, acordava com o barulho dos
sapatos dela nos degraus. Moravam, ambos, num prédio antigo,
de três andares onde se acessava as residências por uma escada
de corrimão amarelo. Logo que entrava em casa a jovem ia ao
banheiro. Ouvia a tampa da privada sendo abaixada às pressas e,
73
depois, a descarga acionada. Em seguida, ela se dirigia para o
quarto. Livrava os pés dos sapatos altos e os toc, toc, toc, toc,
contra o piso de cerâmica cessavam. Movia a porta de algum tipo
de guarda-roupas ou algo semelhante, o que produzia um diálogo
rústico entre o ato de ser aberta e o ranger das dobradiças, como
a de uma gata assustada soltando um miado fora de tom.
Pacu da Cabeça Vermelha imaginava, a partir desse instante,
que ela se despia completamente das roupas usuais. Tinha início
uma série de andanças calmas e suaves como o de um desabrochar
de flores. Naturalmente, a catita circulava nua, ou só de calcinha.
Tudo não passava de simples deduções devido à convivência, o
apuro dos ouvidos e a meticulosidade nas observações. Do quarto
ela entrava no banho. Abria a torneira. Sobressaíam, então, os
ruídos da porta do boxe sendo acionada, do chuveiro quente ligado
e da água escorrendo pelo ralo. O fragor desse asseio corporal
durava meia hora, quarenta minutos, às vezes mais. Outros estalidos
de menor importância vinham em auxílio às repetições desses sons,
até que, inesperadamente, se tornavam fracos como se a donzela
sumisse em pleno ar. Mas não. Em meio ao curto silêncio, ela logo
dava sinais de que estava lá, bem viva e esvoaçante. Ligava a
televisão. Vozes e tiros, gemidos e berros substituíam a calmaria
reinante. A bela surfava nos canais à procura de algo que
preenchesse vazios ou espantasse a solidão.
O passeio durava um segundo. Logo esquecia o controle e se
atinha ao reprodutor de CDs. A voz adocicada de Ana Carolina(ela
a adorava) tomava conta do ar, se misturava à magia da quase
manhã, perdia a timidez e saía pela janela, como leve brisa
balouçando ao acaso. “Eu quero te roubar pra mim, eu que não
sei pedir nada, meu caminho é meio perdido, mas que perder seja
o melhor destino”. Pacu, embalado por essa tranquilidade inabitual
e, inebriado pela voz da intérprete, dava a seus devaneios uma cor
risonha, saía literalmente do chão, como se flutuasse. Voltava à
vida quando os ponteiros do relógio passavam das onze e meia da
manhã.
74
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Uma bela madrugada, por volta das quatro da matina, despertou
com passos diferentes no corredor. Não os dela, mas de alguém
oposto aos hábitos e costumes a que se acostumara. Apurou os
sentidos. Ouviu, então, a voz grave de um homem e tal constatação
bastou para lhe fazer mergulhar em horríveis visões. Seu mundo
caiu. Desmoronou, veio a baixo. A sedutora moradora do 301,
realmente, trouxera, consigo, um “estranja” a tira-colo. Estava
patente a sua presença no pedaço e, por mais que quisesse, não
poderia simplesmente fazer de conta que não se importava. Deixar
a coisa pra lá, meter o travesseiro sobre o rosto e tentar conciliar
o sono, bem sabia, seria humanamente impossível.
Afinal, de onde vinha esse cuidado sem razão? Por que essa
preocupação descomedida com aquela jovem? Não era nada sua,
nem um simples laço de amizade mantinha com ela. Que ganharia
se metendo em sua vida? Sabia que a ocupante do apartamento
acima do seu se assemelhava a uma dessas deusas hollywoodeanas,
só vista nos cinemas, mas e daí? Vezes sem conta forçara
encontros. Chegou ao cúmulo de mandar flores e bombons com
nome trocado. Quando se esbarravam, fosse saindo ou chegando,
trocavam apenas ligeiros acenos de cabeça ou “olás” insossos.
Num desses tropeços fugidios, certa vez, ela lhe dirigiu um sorriso
seco e sem a indicação de que pretendia manter uma amizade
duradoura ou qualquer coisa equivalente. Entretanto, a ida daquela graciosa para a cama com o tal sujeito
que viera de contrapeso, avançou para seus tímpanos como um
cortejo melodramático aos toques de uma música sombria e brutal.
Não a de Ana Carolina, “Eu vou contar pra todo mundo, eu vou
pichar sua rua, vou bater na sua porta de noite, completamente
nua, quem sabe, então, assim, você repara em mim”, mas um
batidão simultaneamente duro e solene, no qual se misturava o
pensamento fixo enroscado nos dois abraçados, atarracados, quem
sabe, num beijo de língua, rolando, por certo, sobre os lençóis e
os gritos de prazer daquela fêmea estupenda, durante o ato e,
após, saciada pelo apogeu do gozo supremo, o descanso merecido.
75
Essa loucura aparentemente infantil fez com que os pensamentos
desordenados explodissem em ondas de um frenesi impetuoso.
Pacu da Cabeça Vermelha se viu, de repente, em meio a uma
multidão horrorosa de fantasmas circulando em volta de si. Como
se tivesse sido atirado, sabe-se lá por quem. A esse quadro lúgubre,
se juntaram barulhos ensurdecedores, gemidos, gargalhadas, gritos
e urros distantes que outros tantos, vindos, talvez das profundezas
de prédios vizinhos, pareciam responder. Uma coisa, porém, restou
clara. A formosa do 301, a partir daquele momento, perdera, para
ele, seu caráter de nobreza. Deixou de ser a princesa que morava
em um castelo de mimos dentro de seu coração desafortunado e
vazio para se transformar numa figura ignóbil e grotesca.
Decidiu que, a partir daquele instante, era chegado o tempo de
esquecer a moça de uma vez. Para sempre. Dar um basta. Deixar
de sofrer por quem nem sabia da sua existência. Colocar uma
pedra enorme em cima. Faria isso ou acabaria louco, vivendo uma
fantasia que não levaria a nada, nem a lugar nenhum. Caminhou
até o freezer. Abriu uma cerveja bem gelada. Fritou uns tira-gostos.
“Eu quero uma lua plena, eu quero sentir a noite, eu quero olhar as
luzes, que teus olhos não me têm deixado ver, agora eu vou viver”.
De volta ao quarto, escolheu um pornô e botou pra rolar.
Repetiu a cerveja, depois outra e mais outra. Diante do aparelho
de DVD, fartou os desejos incontidos num cinco contra um em
homenagem à musa graciosa que brilhantemente coadjuvava no
filme. A campainha tocou. “Quem poderia ser, àquela hora?” Pelado,
as mãos sujas da recente punheta, não se preocupou em pegar
uma toalha e se cobrir. Estava grogue, a cabeça em pandarecos.
“Que se foda! – pensou – Seja quem for, isso não é hora de bater
na casa de ninguém”. Destrancou a chave, assoviando Ana
Carolina. “Eu não vim aqui pra entender ou explicar, nem pedir
nada pra mim, eu vim pelo que sei, e pelo que sei, você gosta de
mim, é por isso que eu vim”. Escancarou a porta até o canto.
Espanto total. Diante dele, a gostosura da vizinha do 301.
76
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Demônios eternos
QUANDO EU ERA PEQUENO, TINHA UM MEDO terrível, que me pelava todo, da Cuca, que vovô João, dizia, a
toda hora, viria me pegar, se eu fizesse alguma coisa errada, e me
levaria dentro de um saco preto para um lugar distante. E eu fazia
muita coisa errada, porque era criança e criança não tem o
discernimento das pessoas adultas, de saber distinguir o que é
certo e o que é errado, de diferenciar entre o feio e o ridículo, ou
de separar o bem e o mal, como o joio do trigo. E fazendo coisas
erradas, entrava na “bainha do facão”, uma espécie de protetor
de couro duro onde vovô João guardava um facão enorme, usado
para cortar cana na vendinha, onde comercializava pastéis, quibes,
coxinhas e caldo de cana. Essa bainha de facão odiosa entrava em
cena quando eu o tirava do sério. Se transformava, de repente,
numa espécie de cinto que comia, sem dó nem piedade, por cima
do lombo.
77
Lembro que vovó Marta acordava muito cedo para fritar uma
porção de salgados (já preparados na véspera) para, às sete horas
em ponto, a pequena portinha de ferro estar escancarada ao público
e vovô João aumentar o volume dos seus trocados nos bolsos.
Morávamos em frente a um grupo escolar, onde, aliás, eu
também estudava, na parte da tarde. Na hora do recreio, o velho
Airão abria a porta de madeira. Um bando de meninos e meninas,
entre afoitos e alegres, corria a atravessar a rua movimentada para
pegar um lugarzinho melhor na vendinha de meus avós. A maioria
da garotada ficava do lado de fora comendo, sentada na calçada,
porque não cabia todo mundo lá dentro. À noite, na hora que
fechavam, os dois velhinhos faziam a festa, e antes de ser servido
o jantar, ficavam num canto do quarto contando um amontoado
de moedinhas. Depois, separavam cada uma pelo seu valor
correspondente e depositavam em pequenas latas de leite em pó.
Só, então, depois de cumprido esse ritual, os dois se separavam.
Vovô ia esconder o dinheiro atrás de uma velha estante que havia
no quarto do casal, e vovó Marta seguia para a cozinha para
preparar o jantar. Geralmente, a última refeição se constituía numa
suculenta panela de sopa com os mais variados tipos de legumes.
Mas a tal da Cuca, meu Deus, essa praga povoava meus dias
de manhã à noite. Seguia meu rastro pelos corredores, se fazia
presente na sala de aula, me vigiava pelas esquinas e estava sempre
por perto, prestes a dar o bote e me matar. O Orlando, um
amiguinho meu, que estudava na sala ao lado, era paralítico, se
movimentava com a ajuda de dois paus de arrimo e, praticamente,
todos os dias, quando tocava a campainha para o intervalo,
costumávamos trocar o lanche das nossas lancheiras. Ele falava,
com o rosto tomado pelo pavor, que na sua casa havia um bicho
“danado de medonho”, que seus pais diziam que se não estudasse
direito e repetisse o ano, ele seria entregue tão logo soubessem da
notícia pelo boletim. Era o Saci Pererê, um menino mal encarado,
78
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
filho do demônio, que andava pulando numa perna só e fumava
um cachimbo comprido cheirando a enxofre. Com a Aninha, uma
outra coleguinha de classe (que sentava ao meu lado direito) não
acontecia diferente. Aninha morava com uma tia feia e chata, de
cabelos avermelhados, duas casas abaixo da minha. Não tinha
mãe, nem pai. Eles morreram quando atravessavam o leito da via
férrea, num acidente horrível, envolvendo o carro de passeio, em
que viajavam e o Litorânea, um trem expresso, de passageiros,
que cruzava a cidade, tarde da noite, vindo da capital, com destino
ao interior. O bicho da Aninha era o Boi da Cara Preta. A simples
menção desse troço a deixava em pânico, aos prantos e em estado
de choque.
Porém, o tempo passou. A infância cedeu lugar ao mundo adulto.
Cresci, virei gente grande. Casei. Arranjei um monte de filhos.
Hoje, olhando para eles, percebo que a mesma história dos tempos
dos meus avós, das tias e dos pais dos meus amiguinhos de infância
continuam se repetindo, indefinidamente. E com certeza, serão
eternos, movidos pelo medo e pelo ressentimento que cada um
carrega dentro de si. Serão imortais esses malnascidos,
alimentados pelas línguas dos nossos entes queridos e amados,
que ainda conseguem ressuscitar e fazer desses demônios, bichos
de aparências indescritíveis, com sete cabeças e mil braços,
invencíveis e indestrutíveis como os fantasmas iracundos que estão
dentro de nossos corações.
A Cuca não pega, o Boi da Cara Preta não assusta, nem leva
ninguém para lugar algum. Tampouco o Saci Pererê, e tantos mais...
Nada disso existe. Esses seres inexpressivos são figuras
mitológicas, sem alma, frutos de mentes doentias que lhes davam
vida e forma, movidos por uma imaginação tacanha. O nosso medo
bobo, por eles todos, está bem aqui dentro do peito, escondido,
inoculado, como uma vacina de horrores, pronto para entrar em
79
cena a qualquer momento. Eu sou a Cuca, o Orlando o Boi da
Cara Preta, a Aninha o Saci, ou vice-versa. Nós próprios criamos
um receio que não existe e vivemos com ele, como se fosse uma
doença incurável, para o resto de nossas vidas. A Cuca,
definitivamente não estará, jamais, espreitando quem quer que seja,
no final do corredor, nem o Saci Pererê entrará por uma janela
que ficou aberta, como igualmente o Boi da Cara Preta não correrá,
desembestado, em volta da casa, intencionado em levar, com ele,
preso aos chifres, uma menininha linda que não quis dormir de luz
apagada. A escuridão sombria é o pavor medonho do nosso quarto.
Somos nós mesmos, idiotas petrificados, refletidos no espelho do
nosso terror. Como a luz benigna que se acende, também vem de
dentro de nós e se espalha como o sol bonito lá fora, por todo o
infinito que o Criador nos deu de presente. Esses demônios têm a
vida que lhes damos e respiram o ar que colocamos em suas
narinas. Como fazia vovô João. Por isso, essas criaturas se
movimentam, segundo nossas vontades. Esses bichos-papões que
andam, à solta, pelos becos e guetos de nosso dia a dia, a
amedrontar, hoje, nossos filhos, e amanhã, e certamente depois,
tirarão o sossego e o fôlego de nossos netos e bisnetos, estão e
estarão vivos dentro de cada um que os queira alimentar. Estão e
estarão presentes em nosso caminho, como aquela gigantesca
árvore do mal, fazendo uma sombra escura cair, pesada, por sobre
nosso futuro. Precisamos, pois, cortá-la, para que não tenha mais
vida plena. Arrancar, de uma vez, a raiz maligna que nasce do
centro da nossa alma e brota, como se tivesse mil tendões.
Precisamos exorcizar esses demônios, banalizar a barbárie, de
maneira que só restem deles, uma lembrança longínqua, esquecida,
apagada, atenuada para sempre, num canto ermo da nossa
memória.
80
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Zona de impacto
O MENINO ENGRAXAVA SAPATOS NO CENTRO DA
cidade e, naquele momento, cruzava a ponte, voltando para casa
com sua caixinha debaixo do braço. De repente, seus olhos argutos
e muito vivos avistaram a peça que descia rio abaixo, ao sabor do
vento morno da tarde ensolarada. Como um doido danou a correr
gritando para o pessoal que bebia cerveja na birosca do Waldemar,
em torno de um outro grupinho que tocava cavaco, surdo, recoreco e pandeiro:
- O sofá, o sofá! Venham ver, o sofá!
A rapaziada se pôs de pé e acorreu para onde o moleque
apontava o precioso achado. Em pouco tempo, uma multidão de
moradores da Favela do Elefante, ao ouvir a gritaria e perceber o
corre-corre, engrossou a massa dos curiosos. Era assim, qualquer
novidade mudava o quadro daquelas famílias humildes. Num abrir
e fechar de olhos, o cotidiano de cada um saía do marasmo e
explodia para uma espécie de alvoroço inusitado. A miséria se
escondia num canto e em seu lugar nascia o momento mágico do
irreal e do ilógico. Saídos de ruelas e becos os mais diversos,
homens de bicicleta e sem camisa, mulheres com crianças no colo
81
e agarradas às barras de seus vestidos imundos, paravam os
afazeres. Os comerciantes cerravam as portas de suas vendas e
lojinhas para se juntarem à raia miúda que, em polvorosa, se
acotovelava em fila tripla, espalhada por toda a extensão ribeirinha
com a finalidade de bisbilhotar o que o rio trazia em seu leito.
Misturado em meio a tubos de óleo, pedaços de sacolas, sacos
plásticos, latas de cerveja e refrigerante, garrafas descartáveis,
restos de acampamentos e piqueniques, lá vinha, boiando, meio
capenga, o enorme sofá vermelho de curvim. Nessas alturas,
alguém lembrou de chamar o Rubião Mathias, líder comunitário,
que, junto a um vereador local e um representante do prefeito,
faziam um trabalho voluntário exatamente no sentido de
conscientizar os cidadãos da periferia a não jogarem dejetos no
velho rio que, às vezes, dava a impressão de estar morrendo em
lenta agonia. Mas não estava. Quando chovia a favela virava um
inferno. Se o temporal perdurasse por muitas horas, as águas subiam
acima do nível normal, atravessavam o asfalto, engarrafavam o
trânsito, invadiam os barracos e, muitas vezes, deixavam famílias
inteiras ao desabrigo. Afora o desespero de perderem o pouco
que possuíam, a tragédia, nessas ocasiões, não vinha sozinha. Trazia
consigo a desgraça e a incerteza de um amanhã cheio de dores.
A maioria das cabeças de porcos que ocupava, praticamente,
todo o terreno, no qual se fundava o vilarejo dos casebres, era
construída com caixas de papelão, depois envolta em plástico e
coberta com folhas de zinco. Muitas vezes, essas construções
precárias não resistiam ao temporal e, em consequência, vinham
abaixo e, com eles, a desgraça de alguém aparecer morto - tentando
resgatar um aparelho de TV, roupas de cama e até comida - na
hora precisa, não atinava com o bom senso de largar tudo e escapar
a tempo de salvar a pele. Mas nesse dia não havia chovido. O dia
transcorrera calmo e sossegado. O rio apresentava um curso
coberto por uma película oleosa, em que uma variedade de microorganismos perigosos proliferava a céu aberto. Sem contar nos
cinco milhões de metros cúbicos de sedimento, lixos e afluentes
de esgotos industriais e domésticos. Bem, ainda, coliformes fecais
82
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
e descargas de outros afluentes que terminavam se juntando a ele,
a rotina seguia sua sequência normal.
Não fosse, igualmente, o pestinha ter dado o alarme, a favela
findaria o resto da tarde em clima de total tranquilidade:
- O Sofá, o sofá. Venham ver!
O que teria de tão extraordinário naquele cacareco malajambrado para movimentar uma centena de desocupados e vadios
em torno de sua presença? Por que a favela em peso se levantou
num salto gigantesco para lhe colocar os olhos em cima? Não era
apenas um velho móvel vermelho de curvim? Que estranho mistério
o envolvia?
As respostas estavam condensadas num fato acontecido há
algumas semanas. Um traficante conhecido como “Chiquinho
Fumaça” havia sido preso junto ao seu bando num arrastão que a
polícia fizera, sem aviso, em sua brejada. Os representantes da lei,
contudo, não encontraram nada do que procuravam, ou seja,
cocaína, pedras de craque e maconha. O “Chiquinho” comandava
uma boca de fumo da pesada no coração da favela, mas na hora
do “pega pra capar”, não havia nada que o incriminasse.
O sujeito parecia ter trato com o Coisa Ruim. Algumas horas
antes de ser levado para a carceragem, como que adivinhando e
antevendo os acontecimentos, operou um processo de
“engravidamento” no sofá, ou seja, acondicionou tudo que se
relacionava ao seu comércio ilegal numa espécie de fundo falso,
bem camuflado. Contratou um carroceiro de fora da favela e
transportou o “material”, incluindo dinheiro, joias e uma vultuosa
quantia de dólares para a casa de uma de suas amantes que morava
numa outra favela, não muito distante, também, por coincidência,
à beira do mesmo rio e, cujo endereço até o próprio diabo
desconhecia. O interessante, nessa história, é que a moça que
receberia o sofá sabia que o companheiro vivia às margens da lei,
contudo, não atinava com o segredo valioso que ele escondia
dentro de si.
83
Na segunda noite, contudo, o inesperado aconteceu:
O “Chiquinho” apareceu enforcado misteriosamente em sua cela.
Sua morte foi comentada em todos os jornais e programas de
televisão. A amante, logo que soube dos fatos, e, temerosa de se
ver envolvida com a Federal, resolveu ir embora da cidade. Fez
as malas e, antes de abandonar, de vez, o barraco achou por bem
“dispensar” o sofá, atirando-o ao rio.
Quando a notícia da morte de “Chiquinho” se espalhou pela
favela do Elefante muita gente, na calada da noite, resolveu tomar
posse dos bens do falecido. Todos sabiam que o camarada tinha
culpa no cartório. Só não sabiam como os homens da lei não o
flagraram com a boca na botija. Em meio a tanto disse-me-disse,
a vizinhança e os próprios colegas de infortúnio, por unanimidade,
concluíram que o espertalhão havia “enxertado”, de alguma forma,
o velho sofá vermelho de curvim e sumido com ele sabe Deus
para onde. A prova disso é que a polícia ficou de mãos abanando,
a ver navios...
Depois de alguns dias, caso passado, outros investigadores
retornaram à favela a fazer perguntas. Claro que uma pá de gente
lembrou-se do carroceiro e da carroça fretada. Claro que uma pá
de gente chegou a ver, realmente, o sofá vermelho saindo, numa
boa. Porém, nesses lugares, ainda impera a lei do silêncio.
Conclusão: mesmo que algum idiota tivesse visto ou presenciado
qualquer tipo de manobra estranha, faria, com certeza, vistas
grossas, ou colocaria um zíper na língua para não ser assassinado
e amanhecer com a boca cheia de formigas.
Mas, na tarde daquele dia, a porra do menino voltava da cidade,
onde trabalhava engraxando sapatos. De repente, no meio da ponte,
seus olhos argutos e muito vivos avistaram a peça que descia rio
abaixo, ao sabor do vento morno da tarde ensolarada:
- O sofá! Venham ver! O sofá do Chiquinho está vindo ali,
venham, venham depressa!
Tanta gente se fez ao rio que, em menos de cinco minutos, o
velho sofá, como por encanto, desapareceu.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Foi tudo culpa da pia
TENHO UM AMIGO COMUM, O PEDRA NA VESÍCULA
que, impreterivelmente, nos finais de semana, não deixa de beber
a sua cachaça. Chova ou faça sol, haja algo ou não para comemorar,
lá está ele, fiel a sua companheira.
Outro dia, ao socorrer uma jovem que fora atropelada no
trânsito, fui parar, quase às duas da madrugada, num prontosocorro desta cidade. Para surpresa minha, quem não encontro
na recepção, com a cara toda arrebentada preenchendo uma ficha
para ser atendido? Ele mesmo, Pedra na Vesícula. Entre espantado
e boquiaberto (ou mais boquiaberto e desesperado pelo fato de
ter me visto) lhe perguntei, de chofre, o que havia acontecido.
Meio estonteado e titubeante, na verdade, mais para lá do que
para cá, o coitado explicou com uma voz bastante rouca:
- Foi a pia. Se estou aqui, agora, neste estado lastimável
que você está presenciando, agradeço a ela. Unicamente a ela.
- A pia? Mas que pia?
- Pelo amor de Deus, Barbosinha. Você não sabe o que é
uma pia?
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- Claro que sei o que é uma pia. Mas que relação pode
haver entre uma pia e esse seu estado deplorável?
- Vou tentar ser objetivo. Como sempre faço, depois do
serviço, passo na birosca do Aleijadinho. Tomo umas geladinhas
com alguns amigos de copo para calibrar o organismo debilitado.
Depois de algumas boas rodadas, acabo de chegar no lar doce
lar. Entro direto para o banho, janto, vejo um pouco de novela na
televisão e, então, vou para um quartinho que tenho nos fundos.
Não sei se você sabe, mas eu construí um cômodo nos fundos lá
de casa. Na verdade, fiz uma puxadinha para a Narcisa, minha
filha, que vai casar até o final deste ano. Lembra da Narcisinha?
- Mais ou menos. Quero saber da tal história da pia.
Não enrola e conta logo.
- Calma, homem, eu chego lá. Como estava dizendo, me
dirigi para o quartinho. Sempre que resolvo “embriagar” os ossos,
encharcar a alma, me desligar dos problemas, me tranco nesse
aposento e “meto bronca”. Bebo até o copo fazer bico e a garrafa
pedir arrego. Minha mulher, a Rita, que você já conhece, não
aprova a ideia. Aliás, ela odeia quando bebo alguma coisa, mesmo
que seja uma xícara de café. Acredito até que pretendia “tirar uma”
e eu não estava muito a fim. Não é todo dia que você está com
vontade de “dar no coro” e esquentar aquelas partes secretas,
não é mesmo? Conclusão: a filha da mãe me pegou de porrada e
a coisa acabou nesse quadro que o companheiro está vendo com
os próprios olhos.
- Mas espera lá. Você não falou que não foi a Ritinha?
- De fato.
- Então?
- As “cacetadas” que a Ritinha me deu, você sabe, não
fizeram nem cosquinha. De mais a mais, tapinhas de amor não
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
doem. A culpa realmente foi da droga da pia.
- Está bem. Sou todo ouvidos.
- Na verdade, tenho sempre em casa dez ou doze garrafas
de aguardente, da “boa”. Coisa de primeira. Acontece que a Ritinha
bateu na porta do quartinho e me chamou para ir deitar. Iniciamos
uma pequena discussão. Entre tapas e beijos ela resolveu medir as
forças e avançou resoluta para cima de mim, de cabo de vassoura
e me obrigou a jogar as garrafas fora. Imagine!
- Você não obedeceu, não é mesmo?
- Nem poderia. Como já estava grogue, ou para lá de
Bagdá, peguei a primeira garrafa, bebi um copo e joguei o resto
na pia.
- Continue.
- Peguei a segunda garrafa, bebi outro copo e joguei,
também, o que havia sobrado dela, na pia. Parti para a terceira
garrafa e aí fiz o seguinte: mandei para dentro o resto da água que
os passarinhos não bebem e joguei o copo na pia. Voou vidro
para tudo quanto foi lado. Com a quarta garrafa não foi diferente.
Bebi na pia e joguei o resto no copo.
- Como é que é?
- Você já vai entender: na quinta garrafa, eu peguei uma
tigela cheia de tira-gosto e atirei para o cachorro.
- Para o cachorro?
- É. Mas ele não estava a fim. Deu uma cheirada básica e
foi embora. Meu cachorro não se dá bem com nada que tenha
pimenta do reino. Depois disso eu joguei uma tampinha de garrafa
nos cornos da Ritinha. Ela fica fula da vida quando eu atiro uma
tampinha de garrafa em seu rosto. Não sei o que tem contra as
tampinhas.
87
Acredito que seja trauma de infância. O pai dela, que já morreu,
meu sogro, que Deus o tenha, trabalhava numa fábrica de rolhas e
tampinhas de garrafas. Pois então. Enquanto ela se desvencilhava
da tampinha, aproveitei e ingeri, de uma só vez, toda a bagaceira.
Depois, passei a mão na sexta garrafa, meu chapa. Corri para a
pia, corri com vontade e, antes de chegar nela, bebi seu conteúdo.
Bebi na moral, sem ao menos respirar. Ato contínuo joguei o copo
no resto.
- O quê?
- O copo no resto, cara. Joguei o copo no resto. É difícil
entender o meu papo?
- Vá em frente...
- A sétima, meu prezado, peguei no resto, enfiei o dedo
nos olhos da nossa empregada, a Lucrecinha, que veio correndo,
quando se apercebeu do bafafá comendo solto e, antes dela me
xingar todinho, bebi a pia.
- Bebeu... Bebeu a pia?
- Isso mesmo. Na seguinte, nem lhe conto! Que loucura!
Passei a mão no copo, arranquei a pia do lugar e a arremessei
com tudo, contra a nona garrafa. O troço caiu no chão e explodiu
como uma bomba, dessas caseiras.
- Você ficou louco? Pirou de vez?
- Calma, deixa eu acabar de concluir.
- Ta legal. Prometo não interromper mais.
- Pois bem. Por derradeiro, joguei a décima garrafa no
copo, tropecei na décima primeira e me atirei, incontinente
(enquanto segurava a décima segunda garrafa debaixo dos braços)
de cabeça, na pia.
88
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Gêmeas
BILICO TANAJURA INVENTOU DE PEGAR UM
DESSES COFRINHOS DE plástico que essas financeiras
distribuem nas ruas, a título de chamarisco, para angariar clientes
novos. Caiu na besteira de levá-lo para casa. Um fiasco. Logo
que meteu a cara dentro do apartamento, topou, na sala, com
Crístiam, uma das suas filhas. A pequena correu em sua direção,
para beijá-lo e, ao fazê-lo, descobriu o cofrinho num dos bolsos
do paletó.
- É meu, papai, é meu?
- Sim, trouxe para você.
- Oba! oba!
Lembrou, então, da Cristiane, gêmea da Crístiam. Coçou a
cabeça. Acabara de criar um problema muito sério. Tentando
remediar a situação, saiu correndo atrás da filha, mas a pequena
sapeca já havia sumido pela porta da cozinha. Certamente iria
levar a novidade para a amiguinha de escola que, coincidentemente,
também era vizinha e morava dois andares acima. Tarde demais.
O que estava feito, não tinha como desfazer ou remediar.
89
Pediu uma cerveja à empregada e, enquanto a Lurdinha
preparava a bebida, foi ao quarto e se livrou das coisas que
incomodavam . Odiava sapatos sociais. Terno e gravata, então,
representavam a morte. Meteu os pés num chinelo, vestiu uma
bermuda meio surrada e pegou uma camiseta na gaveta da
cômoda. Retornou à sala. Ligou a televisão. Passeou pelos canais.
Nada de bom. Lembrou que comprara um DVD e havia um filme
na estante que ainda não assistira. “Vai ser agora”.
Lurdinha chegou com a cerveja e um potinho de porcelana
com azeitonas verdes, seu tira-gosto preferido. A serviçal estendeu
uma toalhinha e acomodou tudo numa mesinha de centro.
- Mais alguma coisa, doutor?
- Minha mulher ligou?
- Chegará às oito. Hoje é quarta-feira e o senhor sabe, ela
tem dentista.
- Cadê minha outra filha? A Crístiam eu sei que está na
casa da Samara. E a Cristiane?
- Foi ao shopping com dona Esther, sua sogra.
Bilico apertou o play. Acomodou as costas numas almofadas e
botou as pernas para cima. Depois de um longo dia, alguns minutos
de relaxamento no conforto aconchegante do velho lar. Sem mulher,
sem as crianças, sem a sogra vigiando cada gesto seu...
Que maravilha, ele sozinho, como um rei, só com a empregada a
seu serviço. Bastava estalar os dedos e lá vinha a coitada correndo,
solícita, atenciosa, um amor de pessoa. O filme começou.
Bilico Tanajura gritou à Lurdinha que lhe renovasse as azeitonas
e trouxesse mais uma geladinha.
O filme estava na sua melhor parte. De repente, entra na sala
a Crístiam agarrada nos cabelos da Cristiane e a avó na cola,
fazendo mais barulho que as duas, na tentativa de acalmar os
ânimos entre as briguentas.
90
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- Parem com isso, meninas, parem, pelo amor de Deus!
Crístiam não arredou pé. Continuou mantendo a irmã submissa
às suas garras, presa pelos cabelos. Cristiane, sem saída,
praticamente sendo arrast ada, gritava e chorava
desesperadamente. Bilico deu um salto do sofá e olhou feio para
as duas.
- Alguém pode me dizer o que é que está acontecendo
por aqui?
- Ela pegou meu cofrinho.
- Ele é meu. Eu não peguei.
- Papai trouxe e deu pra mim.
- Mentira. Esse aqui é meu.
- Sua louca. Fui eu quem achou no bolso de papai.
E tome puxada de cabelo pra cá, beliscada pra lá, chutes e
tapas.
Bilico deu um berro.
- Calmaaaaaaaaaaaaaaa! Querem, por favor, me escutar,
as duas?
Ambas se aproximaram. A sogra de Bilico aproveitou o ensejo
e veio na onda. Botou o dedo no rosto do genro.
- Você não tinha nada que ter dado essa porcaria a Crístiam.
Olha só a confusão.
- Dona Esther, as filhas são minhas.
- Mas eu sou a avó.
- E eu o pai, esqueceu?
91
- Vá à merda...
- Se a senhora for comigo, cheiraremos juntos!
A velha partiu para cima do genro. Foi contida pela filha
juntamente com a Lurdinha que milagrosamente apareceram em
cena e trataram de apartar os contendores na hora em que o circo
começava a pegar fogo.
- Mãe, por favor. Lico tenha modos. Por que toda essa
celeuma?
Antes de responder a velha retirou de dentro de uma sacola
de supermercado um pequeno cofrinho em formato de porco.
- Por conta desta bosta que esse energúmeno trouxe da
rua e deu a Crístiam. Esqueceu que tem duas crias. Esse negócio
de preferência é um caso sério!
- Não tenho preferência, ô velha jararaca, caninana. Gosto
das duas com a mesma intensidade. Vai ver se estou na esquina...
- Me arranja um cabresto. Se você estiver por lá, eu
aproveito e lhe trago preso nele. Evita que perca a caminhada.
- Chega. Silêncio, os dois. Mãe, para o quarto.
Dona Esther não se deixou amedrontar. Mandou bala:
- Burra...
- Mãe!
A velha saiu furiosa, indignada, soltando marimbondos pela
boca.
- Você não acha que já está bem grandinho para ficar
implicando com minha mãe? Olha a idade dela.
- Querida, foi ela quem começou. Eu estava quieto, no
92
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
meu canto, tomando minha cerveja, vendo meu filme. Pergunte à
Lurdinha.
A esposa de Bilico ia retrucar, mas Crístiam interrompeu a
discussão.
- Pai, quem é que vai ficar, afinal, com essa droga de
cofrinho?
Bilico fez uma cara de ternura e contemplou a jovenzinha que
olhava para ele muito séria.
- Você, quem é?
- Sou Crístiam, pai.
- Mentira. Ela é a Cristiane. Eu sou a Crístiam.
- Pai, não vê que ela só está tentando confundir a gente?
A Crístiam sou eu.
- Vamos fazer o seguinte. Primeiro provem pra mim, quem
é quem. Estou vendo, na minha frente, duas meninas como se
tivessem saído de uma máquina xerox. A mesma aparência uma
da outra, cabelos semelhantes, olhos inconfundíveis, penetrantes,
sem falar que estão vestidas identicamente. Até os rostinhos não
diferem em nada. Nenhum traço, nenhuma manchinha ou pintinha
para distinguir e afirmar, categoricamente esta sou eu, e, esta não
sou eu. Querem ver. Crístiam, quantos anos você tem?
- Cinco.
- E você Cristiane?
- Também.
- Qual é a cor dos seus sapatos, Crístiam?
- Pretos.
93
- E os seus, Cristiane?
- Pretos.
- Muito bem. Você é a Crístiam e ela a Cristiane.
- Lógico que não, pai. Eu sou a Crístiam.
- Eu é que sou.
- Tenham calma. A confusão perdura. Farei uma pergunta
básica. Quem acertar leva o cofrinho: onde é que ele estava quando
eu botei os pés aqui em casa? Quero saber exatamente de qual
dos meus bolsos ele saiu. Esquerdo ou direito?
- Esquerdo pai.
- Sua tonta, você errou. O cofrinho estava no bolso direito.
- Esquerdo, pai
- Direito.
Bilico rodava as duas irmãs em volta de si e começava
uma brincadeira que dava gosto presenciar. Homem de paciência
chegou ali parou.
- Agora que embaralhei as duas, quero saber uma coisa:
afinal, quem é você?
- Eu sou a Crístiam pai e ela a Cristiane.
- Eu é que sou a Crístiam. Pensa que papai é bobo.
Bilico voltou a se sentar no sofá. Sorveu um gole da cerveja
e, em seguida, se voltou para as irrequietas princesinhas:
- Estamos, realmente, diante de um impasse.
- Que impasse, pai?
94
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- De saber no meio dessa confusão toda, quem é a Crístiam
e quem é a Cristiane. Vamos tentar de novo: Quem é você?
- Eu sou a Crístiam, já cansei de falar.
- E ela?
- A Cristiane, quem mais poderia ser?
- Eu sou a Crístiam.
- Vamos fazer de conta que estamos numa audiência no
tribunal. Eu sou o juiz. Darei, agora, o veredicto. Como ninguém
aqui me provou quem é quem, de verdade, e, ainda, levando em
conta o fato que, nenhuma das duas lembra em qual dos bolsos do
meu paletó estava o pivô desta balbúrdia, e como até eu mesmo,
como pai, não saberia dizer quem é a Crístiam e quem não é a
Cristiane, e, sobretudo, levando em conta, que se eu devolver o
cofrinho à suposta Crístiam, a Cristiane, sua irmã, ficaria em
desvantagem e vice versa... Se pensarmos nessa hipótese simples,
no fundo, eu, indiretamente beneficiaria uma filha e deixaria a outra
descontente. Por todas essas razões, eu informo às lindas
mademoiselles, que o simpático cofrinho acaba de ser confiscado.
A partir deste momento ele é meu. Agora, minhas bonequinhas,
lindas do papai, com licença. Vou me preparar para o jantar.
Seguiu, sorrindo em direção ao quarto levando o bendito cofrinho.
- Viu só. Você mentiu para o papai. Eu sou a Crístiam.
- Chata, burra, nojenta. Você é a Cristiane. Eu é que sou a
Crístiam.
A mãe fez cara feia, ralhou, deixando claro que, enquanto
estivessem sentadas na mesa, comendo, não queria ouvir nem um
pio. Obedeceram prontamente. Todavia, continuaram a trocar
farpas com os olhares carregados de insatisfação. Se ódio matasse,
certamente morreriam ambas, em conseqüência dele.
95
96
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Doutor Boris
BORIS TORQUATO PIMENTA DE ARAGÃO Y
ARAGÃO, com ipsilom, doutor em medicina pela Sorbonne, de
Paris, cuja profissão exercera por quase cinquenta anos
ininterruptos, tornara-se conhecido no tout paulista da feminilidade
graças a sua dedicação ímpar às clientes, seguida de uma
demonstração de carinho e dedicação incondicionais. Amava o
sacerdócio médico e vivia feliz envolvido nos dramas de cada
paciente fazendo deles, não um cliente, mas um amigo em potencial,
cujo sentimento ficava para sempre.
Profissional competente alçou às culminâncias do sucesso, da
fama e da glória e se tornou, com o passar dos tempos, um beau
vivent. Só não chegou a se aposentar como tal, tendo em vista
uma internação quase que às pressas, num sanatório desta cidade.
Os motivos? Estresse, depressão, loucura, sabe-se lá. Algum mal
súbito, todavia, lhe penetrou lentamente às faculdades mentais qual
se fora um unguento tresloucado, acompanhado de um bálsamo
que espatifou seu cérebro lhe fazendo experimentar as sensações
da imprudência e os descaminhos das tropelias.
97
Segundo o diagnóstico do psiquiatra que o atendeu, o Doutor
Boris passou a acrescentar no final das frases, e em tudo mais que
dizia, aquele trocinho que toda mulher traz no meio das pernas.
Isso mesmo. A perseguida, a vulva, a vagina ou como é
popularmente conhecida, pela alcunha de boceta. Dessa forma,
ele não mais senhor de si, alcançou um aflitivo tumulto espiritual e,
em vista disso, parecia débil e vencido pela enfermidade da
insensatez. Nessa agonia sem precedentes, jungida à canga da
insanidade que o finava consideravelmente, precisaram afastá-lo
dos consultórios e dos hospitais onde dava plantões diários, bem
ainda do convívio familiar.
Contam, os mais chegados, que tudo começou ha duas
semanas, ou mais precisamente num domingo, em meio a um
churrasco entre companheiros e funcionários da sua clínica
particular, amigos, respectivas esposas e filhas no aconchego de
sua suntuosa mansão, aberta nos finais de semana às reuniões da
frivolidade social. A certa altura, teria o vistoso anfitrião passado a
comentar sobre filmes assistidos. Doutor Boris falava com
entonação de quem sabia o que queria expressar.
- Ontem, Matias passou, num desses canais pagos,
“A Sociedade das vaginas mortas” e, logo depois, o clássico infantil
“Alice no país das vaginas”. Mas o que mais me chamou a atenção
foi o que tive o prazer de acompanhar, logo a seguir, em outro
canal, se não me engano naquela da Seção Pipoca, quase já no
finalzinho, “A Insustentável leveza da vagina”. Fantástico! Na
sequência, exibiram “Os caçadores da vagina perdida” e...
Dizem que um amigo tentou intervir mudando o rumo da prosa:
- Boris, você teve oportunidade de ver “O Exterminador
do futuro”?
- Não, meu prezado, mas em compensação, assisti, por
cinco vezes seguidas “Apertem os cintos, a vagina sumiu” e “Os
filhos de vagina”, seguido de “Corra que a vagina vem aí”.
98
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- Credo, que é isso?
- A propósito: qual de vocês aqui teve o desprazer de ver
“Loucademia de vaginas” e o “Massacre da vagina elétrica”?
- Boris, pelo amor de Deus, pare com isso. Olhe as
senhoras...
O velho médico não estava nem aí para as madames presentes
que conversavam num canto, animadamente.
- Pretendo ver amanhã “2001 Uma vagina no espaço” e
“As vaginas do senhor reitor”.
Um outro do grupo tomou a frente:
- Boris, vamos ver como estão as panelas lá na cozinha?
Estou com uma fome!
- Antes deixa acabar de concluir aqui para o nosso colega
cardiologista os filmes que loquei final de semana retrasada: “Vagina
em fuga, A última vagina do resto de nossas vidas, Eu sei o que as
vaginas fizeram no verão passado, Romeu e Vagina e Uma linda
vagina, com Richard Pau e a Julia Vagina”.
O tal cardiologista tentou levar na esportiva sem perder a
serenidade:
- Boris, chegou a assistir “O Morro das bocetas uivantes”?
- Infelizmente um sujeito chegou antes de mim. Mas não
me fiz de rogado. No lugar dele eu trouxe “Doze homens e uma
vagina, Sociedade das vaginas mortas, A vagina do diabo e A
espera de uma vagina”. Para meus netinhos escolhi “Vagina aranha
I e II e A Ilha da vagina cortada”. Ainda ganhei de brinde “A vagina
de Brair e O rapto da vagina dourada”.
Diante da insistência do amigo, achou melhor desconversar:
99
- Que tipo de literatura você aprecia, Boris?
- A boa, a impecável. Para seu governo, tenho lido muito
de uns tempos para cá.
Parecia estar dando resultado. Todos aplaudiram em silêncio.
- Qual seu autor preferido?
- Poderia enumerar vários deles. Minha nossa...
- Diga alguns nomes.
- Bem, acabei de ler o Luiz Vagina e Carlos Vagina. Aprecio
também os clássicos como José Vagina, Jorge Vagina, Érico Vagina,
Clari Vagina, Maria Vagina e, claro, Antonio Vagina de Santa
Copacabana
O que convidara o Doutor Boris para ir até a cozinha não pode
deixar de soltar uma estrondosa gargalhada.
- Vamos falar de música.
- Aproveitem e coloquem o CD que eu trouxe da Lizete.
- Que me dizem, antes da Lizete, o Jorge Plutão?
Doutor Boris arrancou o copo de cerveja da mão de um de
seus convidados e mandou bala:
- Nada de Jorge Plutão. Minha filha me deu de aniversário
o último do rei Vagina e Chico Vagina. Independentemente desses
que acabei de citar, tenho, lá na estante - caso alguém queira variar
o repertório - Vagininha preta, Mel Vagina, Banda Eucaliptovagina
e Pobre e Vagina.
Dois outros inventaram de acomodar o Doutor Boris numa
rede armada entre duas grossas pilastras em frente aos banheiros
100
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
que serviam a piscina. Talvez o álcool ingerido o fizesse pegar no
sono.
- Deita um pouco e relaxa, amigão!
- Não estou cansado.
- Quer ver televisão? Alguém sabe onde está o controle?
- Televisão? A essa hora?
- Sim, estamos todos querendo ver o jogo. Não é galera?
A turma gritou um sim alto e uníssono.
- Meus queridos, neste exato momento está começando o
Feriadão do Vaginão. Não seria melhor mudar para o canal
português?
- Tem algum filme lá?
- Vai começar, daqui a pouco, um filme que considero
sensacional.
- Qual?
- Se não me engano, Efeito borboleta.
- Acertou em cheio. Se for esse, não devemos perder
nenhuma cena.
Doutor Boris se serviu de um gole de vinho e voltou à carga.
- Todos aqui estão por fora. O que vai passar na tv, dentro
de quinze minutos, é Vagina Indecente com Robert Redvaginfor e
Demeu Vagimoore.
- Que tal darmos uma olhada no canal de esportes?
101
Doutor Boris não estava nem um pouco bêbado como a
princípio dera a entender ao seleto grupo de cirurgiões, reunidos
nos jardins da sua acolhedora residência. Ao contrário, ele havia,
realmente, entrado num tormento indimensional e, por conta dele,
pirado mesmo, talvez, quem sabe, pelo excesso de trabalho e anos
de dedicação à gloriosa arte de praticar, com zelo e presteza, a
profissão que escolhera. Na frente do sisudo psiquiatra não foi
diferente a conduta de comportamento.
- E aí, Boris, tudo na santa paz?
- Tudo.
- Quer me contar o que está acontecendo? Parece um
pouco exausto e abatido...
- Estranho! Você me lembra aquele sujeito da “Volta à
vagina em 80 dias”... Ou seria o de “Uma vagina de mestre”?
Ah, lembrei. O guarda que foi morto dentro da cela naquele filme
famoso o...
-...Dragão vermelho?
- Não, Silêncio das vaginas.
O psiquiatra opinou, sem maiores circunlóquios, pelo imediato
internamento de Doutor Boris.
102
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Radical
- EU ME CONSIDERAVA FEIO, CARA, MUITO FEIO,
disse Leon Ildebrando à Monsueto - um negrão de quase um metro
e noventa, seu amigo, desde os tempos de infância - até o dia em
que, Mãe Santíssima, não quero nem lembrar! Chega a me dar
arrepios...
- Continue, disse Monsueto, enquanto ajudava a sorver a
gelada que comprara para recepcionar o companheiro que viera
visitá-lo.
- A mulher chegou lá em casa, conversamos uma meia
hora, na sala, sobre os assuntos mais triviais, tomamos umas
cervejas, comemos uns tira-gostos e depois começou a pintar um
clima. Fomos para o quarto.
- Então, valeu a pena?
103
- Não tenho nada a reclamar. Correu tudo às mil maravilhas.
Porém, na hora em que ela se dirigiu ao banheiro, para lavar as
partes pudentes, e voltou sem roupa, enrolada numa toalha...
- Espere aí. Deixa ver se entendi direito. Vocês transaram
vestidos?
- Mais ou menos.
- Como, mais ou menos?
- Na verdade, eu fiquei logo peladão. Estava em meu
território e, em nosso território, ou bem ou mal, somos o rei, o
mandachuva. Quanto a ela, logo que se deitou a meu lado toda
fogosa e doida para soltar a franga, pedi que arriasse a calcinha...
- Arriasse?
- É. Solicitei gentilmente que só tirasse a calcinha. Que
ficasse de saia, blusa e sutiã.
- E ela?
- Achou estranho transar de roupa e tudo, só tirando a
peça íntima.
- Chegaram aos finalmentes?
- Sem sombra de dúvidas. Ela, na cama, é divina,
maravilhosa. Faz gato e sapato com uma pica ereta e dura. Se
não tivesse acontecido comigo, eu mesmo não acreditaria. A
poderosa tem o dom de colocar o indivíduo para ir e voltar ao céu
umas trezentas vezes. Confesso que fiquei de quatro, queixo caído.
- Conta a história da calcinha. Estou intrigado com essa
parte. Ela tirou e vocês mandaram brasa?
104
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- Sim, nos engalfinhamos até que ela deu uns gritos de fera
enjaulada.
- Seriam de prazer?
- Acho que sim. Em seguida gemeu, botou as duas mãos
na cabeça e quase arrancou os cabelos, sem contar que se mexia
mais que cobra em areia quente.
- Como?
- Cobra em areia quente.
- E cobra se mexe em areia quente?
- Se mexe ou não, meu prezado Monsueto, não posso lhe
assegurar com precisão. Vovô Gob, já falecido - que Deus o tenha
em sua Glória - dizia que sim e comentava com os amigos dele,
quando o assunto girava em torno de mulheres.
- E depois da trepada?
- Como te falei, ela foi tomar banho. Ficou uma hora no
chuveiro quente. Pensei na minha conta de luz. Voltou enrolada
numa toalha.
- E esfregou de novo o brinquedo na sua cara?
- Pior que isso. Cismou de ficar pelada na minha frente.
Não se contentou só de mostrar aquele corpo feio e gordo, mas
passou a dançar uma dança esquisita. Você precisava estar lá para
presenciar tudo. Parecia uma avariada maluca.
Risos
- Diante disso, você caiu em cima dela de novo?
- Qual o quê! Tive vontade sair em desabalada carreira.
105
A potranca tinha, além do corpo feio, umas pernas horríveis, cheias
de veias verdes. A bunda, meu Deus, horrorosa, descomunal,
repleta de estrias. Sem falar na pança enorme, derramando banha
pura e, finalmente, o troço...
- Troço? Que troço?
- O sexo dela. A xoxota no meio das pernas. Meu caro
amigo, que desatino!
- O que havia com o sexo dela?
- Parecia um filho de cruz-credo desmamado.
- Filho de cruz-credo desmamado? Explique.
- Não tenho como. Pretendia até tirar uma segunda, mas
ao ver o material ali, às claras, bem diante de meu nariz...
- Caiu matando?
- Ao contrário. Apaguei. Brochei!
- E quanto a ela, com relação a você?
- Adorou, disso eu tenho plena certeza. O tempo todo
amou estar por baixo de mim. Suava em bicas. A vagabunda estava
no seco, no cio, acho que não via um... Acho que não via uma
vara há tempos.
- Acabou a festa com você de pau murcho?
- Para mim, sim, para ela, não. Tentou, ao seu modo, uma
segunda seção.
- O que foi que ela fez?
- Caiu de boca. Agarrou no ferro pelo talo e mamou como nunca vi mulher nenhuma mamar. Saiu de beiço inchado, os
106
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
maxilares doendo. E olha que em matéria de mulher não sou nenhum
marinheiro de primeira viagem.
- E como ele se comportou?
- Ele quem?
- O seu... O seu... Pinto, Leon Ildebrando?
- Me sacaneou bonito. Permaneceu de cabeça baixa o
tempo todo: flácido e mole. Acho que nem assoprando decolaria.
Não quis nada com o trabalho. Mas a filha da mãe mostrou que
tem talento, garra, determinação, força de vontade. Foi em frente.
Não desistiu...
- E o que ela fez? Conta, conta, conta de uma vez.
- Me fez um belo de um fio terra.
- Um o quê?
- Fio terra, cara, fio terra.
- E o que é fio terra?
- Não tenho como explicar. Espere um pouco. Se você
virar a bunda eu mostro.
- Virar o quê? A bunda?
- É. A bunda. Sua bunda. Vira ela pra mim, fica de quatro.
- E por que eu faria tal coisa?
- Não quer saber como é o fio terra?
- Querer é claro que eu quero, Leon, mas daí virar o rabo
pra você...
107
- Não somos amigos, Monsueto?
- Claro que sim, Leon!
- Então. Arria um pouco a calça, abaixa a cueca que lhe mostro
em um minuto.
– Vou trancar a porta. Pode, por azar, chegar alguém e até
explicar o porquê de estar de bunda virada para seu lado... E
nessa posição esquisita!
Monsueto se levanta e chaveia a porta. Ao voltar desafivela o
cinto e desce a calça. Em seguida, arria a cueca.
- Então, me mostra como é esse tal de fio terra.
- Feche os olhos.
- Se eu fechar os olhos, como verei você fazer a porcaria do
fio terra?
- Não vai ver, vai sentir. Agora vira a bunda e faça o que mandei.
- Pronto.
Monsueto, o negrão de quase um metro e noventa, soltou um
grito medonho, um brado de dor e agonia que ecoou por toda a
casa. Acabara de levar de Leon Ildebrando uma tremenda de uma
dedada bem no centro do olho do cu.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Lâmpada milagrosa
TANGERINO CHUPADO DA SILVA TRABALHAVA
NUMA SEÇÃO onde mexia com uma série de arquivos mortos.
Por causa deles, passava o dia procurando velhos papéis de
pensionistas e aposentados que requeriam benefícios ao INSS.
O problema é que muitas dessas criaturas já haviam passado desta
para melhor, mas alguém, em nome dos falecidos “defuntos”,
pretendia uma revisão disso, ou daquilo, enfim, havia uma máfia lá
fora mamando às custas dos “de cujos” e, claro, dos parentes
que, desconhecendo a verdadeira pretensão dos cabeças da
gangue, entregavam documentos sem pensar duas vezes nas
consequências de tal ato.
A função de Tangerino: desarquivar esses processos e
encaminhar ao chefe da seção que, por sua vez, mandava tudo
para o pessoal da perícia. Num desses arquivos, Tangerino
encontrou uma lâmpada tipo a do Aladim. Satisfeito com o achado,
pensou num jeito de levar a raridade embora. Talvez a coisa fosse
mágica. Como todo ser normal, acreditava piamente em sonhos, e
por acreditar neles, quem sabe...
109
Na hora do almoço saiu mais cedo e disse ao encarregado que
iria atrás de um par de sapatos novos, tendo em vista que os seus
estavam, a muito, furados. E realmente isso era verdade. Assim,
comprou um modelito vagabundo na primeira loja que avistou.
Jogou o velho no lixo e voltou contente para a repartição com a
caixa vazia debaixo do braço. Se alguém perguntasse sobre o
embrulho diria que ali dentro estava o pisante antigo, que levaria
de volta para usar nos finais de semana. A ideia era economizar o
novo. Continuar surrando o velho. No fundo, a função da caixa
era outra: meter dentro dela a lâmpada misteriosa. Assim fez.
Orgulhoso da sua vivacidade se gabou do plano que arquitetara.
Ninguém desconfiara de nada e ele saiu da sala, passou pela
diretoria, pegou o elevador e para não levantar suspeitas, antes de
ganhar a rua, tomou um cafezinho requentado com o porteiro e
fumou um cigarrinho com o vigia.
O trajeto até sua casa demorou uma eternidade enervante.
Nunca o trem empacara tanto, da estação Luz até Prefeito
Saladino, onde morava com a mulher, um casal de filhos e uma
sogra rabugenta. No aconchego do lar, beijou a esposa na cadeira
de rodas e o casal de filhos que brincava com Ritinha, a empregada.
Só então se predispôs a esconder o pacote num lugar seguro.
Pensou em um que seria inquestionável. Havia entre o guardaroupas e a parede um desvão. Ali Tangerino depositou a caixa.
Para despistar a turba de curiosos, pegou uma cadeira quebrada e
entulhou com umas roupas que estavam sobre a cama. Essa atitude
ajudaria a afastar as crianças.
Em seguida, se livrou dos sapatos e da camisa. Pegou uma
toalha limpa no armário, levou uma bronca da sogra chata, que
apareceu de repente reclamando das coisas deixadas no meio do
caminho, da camisa suada sobre a cama e da toalha limpa, que ela
havia acabado de recolher do varal, para guardar.
- Por que não usa mais uns dias a que está lá no banheiro?
110
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Fazendo ouvidos de mercador Tangerino fingiu não ter escutado
uma palavra. Assobiando “Quero que vá tudo para o inferno”, de
Roberto Carlos, encostou a porta do banheiro (nunca trancava a
porta, tinha essa mania), ligou o chuveiro e mandou a sogra para a
casa do Carvalho. Do Carvalho mesmo, melhor não confundir
com aquilo que alguns homens costumam não carregar no meio
das pernas.
O Carvalho, sujeito bom, pacato e humilde. Da mesma idade
da sogra. Vivia paquerando a jararaca. Por azar de Tangerino, a
maldita não dava chance para o infeliz levá-la, de vez, para dividir
as escovas de dente com ele. O elemento nutria sentimentos nobres
com relação à setentona, todavia, a megera não abaixava a guarda.
O fato é que seu Carvalho, duro, e Tangerino, mole, debaixo do
chuveiro, quando via água quente jorrando sobre a cabeça,
esquecia da vida. Levava horas para voltar a si. Ao menos para
pensar na conta de luz e no rombo que sofreria seu bolso, no final
do mês, quando viesse o talão. Nesse interregno, a velha resolveu
ir ao quarto do genro e preparar uma muda de roupas. Estava
quase na hora do banho da filha, que por infelicidade, num desastre
de automóvel fraturara as duas pernas e estava toda engessada,
sem poder se locomover para as necessidades mais prementes.
Lá chegando, estranhou, de cara, deparar com uma cadeira
encostada no canto com algumas das peças de roupas que ela, há
pouco, havia passado. Faltava guardar nas gavet as
correspondentes. Quem as colocara ali? As crianças? Com certeza!
Sem pensar duas vezes, passou a mão na cadeira. Ao passar a
mão na cadeira, uma blusa foi ao chão. No que apanha, a velha
enxerida avista a caixa de sapatos acondicionada detrás do roupeiro.
- Danadinho. Isso é arte do Marcelinho mais a Francisquinha.
Pegou a caixa de qualquer jeito. A caixa se abriu, sem querer,
e ao abrir, caiu no chão a estranha lâmpada fazendo um barulho
111
seco contra o assoalho. Os olhos da velha se alvoroçaram numa
cobiça só. Ao ver a joia, seus pensamentos trouxeram à baila
tempos passados.
- Meu Deus parece àquela lâmpada do... Como é mesmo
o nome do personagem? Ah! Lembrei. Aladim!... Mas espere,
pior que é!
Correu à porta, espiou o corredor. A filha, coitada, estava com
os olhos pregados na novela. As crianças brincavam.
- Será que se eu fizer alguns pedidos e esfregar, esse treco
funciona?
Trancou-se, por dentro, silenciosamente. Ansiosa e meio
trêmula, não esperou mais. Não custava tentar. Experimentou.
Na primeira esfregada, uma grande luz branca começou a surgir
do bico da lâmpada, enquanto uma imensa forma humana
masculina ia se projetando no espaço. Num piscar de olhos pintou
na frente dela um gênio com cara de Brad Pitt, esbanjando
músculos bem trabalhados. Até a voz lembrava o astro, embora a
tradução do inglês para o português fosse de péssima qualidade.
- Diga, minha ama e senhora. Estou aqui para lhe servir.
Peça e a atenderei. Devo informá-la que tem direito a três pedidos.
- Só três?
- Que realizarei imediatamente. Então, madame, o que vai
ser?
A velha estava um pouco atordoada e desconcertada com tudo
o que acontecia, mas não se fez de rogada. Pensou por um instante
e decidiu.
- Quero minha filha fora daquela cadeira de rodas e
andando normalmente.
112
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- Seu pedido é uma ordem.
Puf!
No minuto seguinte, a sogra de Tangerino Chupado ouviu gritos
vindos da sala e fortes batidas na porta. Complemente atordoada,
correu abrir. Deparou com a filha andando. Marcelinho,
Francisquinha e Ritinha, logo atrás, na maior algazarra.
- Vó, a mãe voltou a andar. Cadê o pai?
Enquanto Francisquinha dava meia volta com Ritinha e ia em
busca do pai para lhe contar a novidade, a velha agarrou a mão da
filha e do neto. Praticamente arrastou os dois para dentro do quarto,
voltando a passar a chave na porta.
- Mãe, quem é esse cara e de onde ele saiu? Não me diga
que a senhora...
- Calma, filha, não é nada do que está pensando. Deixa
que depois explico com mais calma. Seu gênio, por favor, vamos
em frente: quero ter muito dinheiro para poder viajar e conhecer o
mundo com minha filha aqui e meus lindos netos.
E o gênio, solícito.
- Como disse há pouco, madame, seu pedido é uma
ordem.
Puf!
Uma avalanche de dinheiro caiu de um buraco que se abriu no
teto. Em menos de um minuto, metade da peça estava abarrotada
de notas de cem.
- Meu Deus, Meu Deus, não acredito. Minha filha, estamos
ricas.
113
O gênio interrompeu a velhota e observou.
- Falta o terceiro, minha ama e senhora. Por favor?
A velha parou de rir e ficou séria. A filha abraçou Marcelinho e
encarou o gênio. A velha olhou para a filha, depois para Marcelinho
e se voltou para o gênio.
- Chega o ouvido aqui, meu bom amigo. Vou mandar o
terceiro pedido.
O encantado, com suas maneiras estudadas e extremamente
corteses, chegou o ouvido perto da velha. Realmente um homem
bonito, sem falar no porte elegante que lhe emprestava ares de um
daqueles antigos reis que viviam em castelos medievais à beira de
lagos eternos. Uma pena que vivesse recluso e literalmente
“enlampado”.
Tradução de enlampado: mesma coisa que engarrafado.
- Meu terceiro pedido é o seguinte: quero...
Completou baixinho, sussurrando o restante da frase de maneira
que só o iluminado a escutasse.
- Perfeitamente, madame. Seu pedido é uma ordem.
Puf!
Vem lá de dentro, correndo, a Francisquinha com Ritinha a
tiracolo, segurando, com as duas mãos, um porquinho todo
molhado, pingando água pelo chão.
Praticamente esmurram a porta. Quando a mesma é aberta...
- Mainhê, olhe só o que achei no banheiro, debaixo do
chuveiro!
114
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Fofoqueiras
AS DUAS FAXINEIRAS SE ENCONTRAM NO corredor
de um dos andares do edifício onde trabalham.
Marli
- Biloca, estou pasma! Hoje cedo fiquei sabendo uma da
Lurdinha que me deixou de queixo caído.
Biloca
- A pirua do 301?
Marli
- É.
Biloca
- O que te contaram, Marli?
Marli
- Que ela está saindo com o cara do 403.
Biloca
- O Etevaldo?
115
Marli
- Esse mesmo. Parrudão, olhos verdes, cabelos
compridos, presos por um elástico de amarrar dinheiro...
Biloca
- Tem uma Mitsubishi prata?
Marli
- Tem!
Biloca
- O próprio.
Marli
- Pensei que tivesse caso só com o seu... Deixa pra lá...
As aparências enganam.
Biloca
- Começou fala. Odeio quando as pessoas fazem esse
tipo de sacanagem.
Marli
- Sabe o que é? Depois a bomba estoura nas minhas mãos.
Biloca
- Fala, droga.
Marli
- Esquece.
Biloca
- Ora, vamos. Não confia em mim?
Marli
- Não se trata de confiar, ou não. Acho melhor ficar de
boca fechada.
Biloca
- Ta bom. Não te conto o que fiquei sabendo da Ritinha
do 805.
116
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Marli
- Você vai falar. Ah, se vai. Que diabo de amiga fui arranjar
que não compartilha os segredos?
Biloca
- Chumbos trocados não doem. Você não quer me dar a
ficha do Etevaldo do 403!
Marli
- Não é que não queira. Já tenho fama de leva e traz por
aqui. Se alguma coisa vem à tona e descobrem que fui eu quem
bateu com a língua nos dentes, acabo parando no olho da rua.
Tenho duas boquinhas para dar de comer, o marido e a sogra
chata. Biloca
- Não seja por isso. Eu também tenho um casal de filhos,
o marido e, graças a Deus, a sogra chata mora sozinha e bem
longe lá de casa.
Marli
- Vamos fazer um trato?
Biloca
- Que trato?
Marli
- Vomite os podres da Ritinha do 805 que eu canto a pedra
do Etevaldo. Tenho certeza de que você vai cair de quatro.
Biloca
- Fechado.
Marli
- Vai guardar segredo?
Biloca
- Sou um túmulo
117
Marli
- Jure!
Biloca
- Pela minha mãe.
Marli
- Qual delas?
Biloca
- Como qual delas? Só tenho uma. A outra é minha
madrasta, quero dizer, a companheira do meu pai.
Marli
- Então?
Biloca
- Tá. Juro pela minha mãe.
Marli
- Quer ver ela mortinha da silva?
Biloca
- Credo!
Marli
- Sim ou não?
Biloca
- Que seja. E aí?
Marli
- Esse Etevaldo da Mitsubishi está comendo a Lurdinha
do 301 e pulando a cerca com...
Biloca
- Pera ai! Que cerca?
Marli
- Você é mesmo uma burra de pai e mãe. Parece saber
118
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
tudo, mas olha só. Pular a cerca significa que ele está tendo um
caso... Um galho entendeu?
Biloca
- Um caso? Um galho? Com quem? Pelo amor de Deus!
Não é só com a Lurdinha?
Marli
- Não. E Você não faz ideia de quem seja o galho dele?
Biloca
- Gente aqui do prédio?
Marli
- Não exatamente. De fora.
Biloca
- Vamos por eliminação: a gata que vem sempre no 901?
Marli
- Tá frio.
Biloca
- A bunduda que faz as unhas do velhote do 1007?
Marli
- Gelou mais ainda. Última chance.
Biloca
- Me liguei. Caiu a ficha. É a Marieta. Só pode ser a
Marieta. A sem-vergonha quando morava aqui abriu as pernas
pra todos os machos do pedaço. E mesmo depois de ter se
mudado, continua aprontando. Dia desses esteve aqui e deu para
o vigia da noite, e depois para o paralítico do 202.
Marli
- Seu Piteco?
Biloca
- Em carne e osso. Ela encarou a muleta dele, numa boa.
119
Bem, voltando ao Etevaldo, só falta agora o saradão papar a
ceguinha do 107 e... E você.
Marli
- Me erra, Biloca. Acha que sou assim tão fácil como
apanhar mosca com mel? Pensa que vou para a cama com qualquer
borra-botas? Ainda mais em se tratando do galinha do Etevaldo.
E agora, pior, depois do que eu soube. Ainda que assim não fosse.
Tenho meu marido, sou bem casada, adoro meus filhos e até a
sogra chata que é um porre!
Biloca
- Pode até ser, mas soube que andaram te dando uns
presentinhos, apesar de ser bem casada, ter filhos e pá e bola,
caixinha de fósforos. O que me diz dos perfumes e das calcinhas
exóticas?
Marli
- Tudo mentira. Inveja pura. Olho grande dos brabos.
Quem falou deve estar morrendo de raiva e doido para estar em
meu lugar. Afinal, embora não passe de uma serviçal, não sou de
jogar fora. Você mesma já presenciou quando estamos vindo ou
indo para o trabalho - que estou arrumada - fica “assim” de carinhas
assoviando e jogando piadinhas. É ou não é?
Biloca
- Não mude de assunto. Quem é a nova Felizarda?
Marli
- Que nova felizarda? Biloca
- Ora, de quem estamos falando? Do Etevaldo do 403,
que tem um caso com a Lurdinha do 301. Agora você me deixou
curiosa, dizendo que, além da Lurdinha, o Etevaldo está
bombeando mais uma. Quem é, afinal, a dita cuja?
Marli
- Preparada?
120
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Biloca
- Sim
Marli
- Acho melhor sentar.
Biloca
- Estou bem em pé.
Marli
- Senta.
Biloca
- O rodo e o balde de água me seguram. Pelo amor de
Deus, fala de uma vez. Que diabo!
Marli
- Não é felizarda. É felizardo. O Etevaldo joga nos dois
times, amiga. É gilete. Bomba e é bombado.
Biloca
- O quê?
Marli
- Isso mesmo que ouviu. Ele dá o caneco. Gosta de
empurrar o quibe. Come e... Não é preciso falar...
Biloca
- Aquele pedaço de mau caminho, de olhos verdes e
cabelos compridos? Não, não pode ser... Deve ser intriga da galera.
Tem muita colega nossa querendo reganhar pra ele.
Marli - Todos no prédio estão comentando a nova conquista.
Eu, particularmente, acho uma pouca vergonha, uma indecência.
Me admiro a Lurdinha se submeter a sair com ele. Se pega uma
doença, babau. E pior é o cara que enraba ele. Casado, dois filhos,
esposa carinhosa, os cambaus.
121
Biloca
- Tá, deixa de frescura. Quem é o sujeito que manda brasa
nele?
Marli
- Trato é trato. Quero saber da Ritinha, do 805.
Biloca
- Ela está de flerte com Romeu, o porteiro da noite.
Pilharam os dois no maior amasso.
Marli
- Minha nossa. Quem diria. Romeu com aquela cara de
santo... Biloca
- Deixa o Romeu pra lá. Já falei o que sabia. Agora quem
é o sujeito que come o cu... Que manda brasa no Etevaldo?
Marli
- É o seu...
Biloca
-...Seu Augusto, o síndico?
Marli
- Psiu! Fale baixo. Quer parar no olho da rua? Não é o
seu Augusto.
Biloca
- Então, quem é? Solta logo essa língua...
Marli
- Acho melhor você ir lá embaixo e pedir a Balduína um
copo de água com açúcar.
Biloca
- Deixa de ser nojenta. Não preciso dessas besteiras. Fale
de uma vez.
122
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Marli
- Tem certeza de que não vai passar mal?
Biloca
- Fala ou deixo de ser sua amiga. Por tudo quanto é mais
sagrado, não podemos ficar aqui o dia inteiro.
Marli
- Tá bom. Se você faz tanta questão de saber, lá vai a
bomba: o Etevaldo está transando com seu marido.
Biloca
- O quê? O que foi que disse? Repita que não ouvi direito...
Transando com quem? Repita, sua filha da...
O elevador, de repente, abre a porta e alguém desce. Ambas
se dispersam. Sai cada uma para um lado esfregando o chão.
123
124
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Camisa de onze varas
O REPÓRTER PEGOU TONINHO BAIACU NESTE
INÍCIO DE SEMANA, bem no meio da praça, de surpresa.
Atrás do repórter, um cara com uma câmara ligada gravava cada
palavra que saía de sua boca, enquanto outro, com uma luz forte,
acesa acima da cabeça, suspensa por uma espécie de mastro,
tentava jogar o foco diretamente na direção do seu rosto. Em redor
dos quatro, uma pequena multidão de pessoas começou a formar
uma rodinha, até que o cordão humano se tornou coeso e atento,
não só às perguntas que eram formuladas, como também às
respostas do entrevistado. Não se ouvia a respiração de ninguém.
Na verdade, todos estavam ávidos para saber o que o jornalista
queria com Toninho Baiacu (até aquele momento um ilustre
desconhecido) e como ele se sairia daquela batelada de perguntas.
- Você me disse que se chama Antônio. E me disse também
que tem um apelido engraçado. Poderia dizer qual é esse apelido?
- Eu? Pois não: Toninho Baiacu.
125
- E por que Toninho Baiacu?
- Porque desde pequeno aprecio esse tipo de peixe. Baiacu
é um peixe. Não como outro, por melhor que seja. Daí o pessoal
lá de casa, meu pai, meus irmãos, minhas irmãs, me chamarem de
Baiacu. E pegou...
- Toninho, você vai participar, ao vivo, do programa do
Fernandinho Cuca Fresca, da Rede Vem que é Mole. Pode ser ?
- Claro.
- Olhando para esta câmera, quando eu falar três. Podemos
começar? Um, dois, três. Fernandinho, estou aqui com o Toninho,
conhecido na intimidade, como Toninho Baiacu. Por favor, diga
um olá para o Fernandinho.
- Olá, Fernandinho, tudo bem? É um prazer muito grande
participar do seu programa.
- Toninho, vou lhe fazer algumas perguntas. Aliás, as
mesmas que já fiz anteriormente para os dois caras da pesada que
estão concorrendo com você. O Marcos e o Cláudio. Preste
atenção. Não pode pensar muito, tem de falar o que vier na cabeça,
certo? Volto a repetir. O candidato que fizer o menor tempo e der
a resposta mais criativa ganhará um final de semana, com tudo
pago, para curtir, com a namorada, amiga, ou quem ele quiser
levar como acompanhante, para a suíte presidencial do Motel Fome
dos Prazeres, do nosso amigo Leo, para quem eu mando um forte
abraço e, o mais importante, leva, igualmente, de lambuja, um carro
GOL FLEX, zero bala, completo, oferecimento da Corcovado
Automóveis, do Jorginho Brucutu, que também está ligado no nosso
programa. Preparado?
- Eu? Positivo.
- Você é casado?
126
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- Eu? Não, sou solteiro.
- Bem, sendo solteiro, fica um pouco complicado. Mas,
tudo bem, vamos lá. Saberia dizer para o público aqui presente e
para todos os demais telespectadores qual é o maior e o melhor
truque feminino?
- Bem, embora seja solteiro, como já lhe falei, tenho, graças
a Deus, um punhado de mulheres aos meus pés. Você me perguntou
qual é o maior e o melhor truque feminino. Pois bem: o maior é
quando a mulher, na cama, nos leva ao delírio, ou a loucura. O
melhor é quando alcançamos, juntos, os finalmente e gritamos:
Mengo, Mengo...
- Vejo que o amigo é um flamenguista doente.
- Eu? Com certeza.
- Pois muito bem, quem você levaria para uma ilha deserta?
- Eu? Deixa ver... A Karina Mal Me Quer? Não, muito
nova! A Gorduxa? Acho que a Gorduxa não faz o meu tipo. Já sei,
a Margarida da quitanda..
- Sentiu o lance aí, ô Fernandinho? Nosso amigo aqui tem
bom gosto. Mandou bem.
- E por que a Margarida?
- Ela é gostosa demais. Tem um traseiro...
- Três coisas que você pediria, caso ela chegasse aqui,
agora.
- Eu? Três coisas? A Margarida?
- Claro.
- Me leva ao céu, beleza. Joga minha cara no chão, e,
127
depois pisa com força. Pra me deixar de queixo caído, gamado
em você, espezinha meu coração, amassa até sangrar.
- Companheira ideal?
- Pra mim? Bem, eu... A Monique. Isso mesmo, Monique,
uma vizinha do arco da velha, que mora de frente para minha casa.
Ai! Me arrepio todo, só de pensar nela...
- Toninho, como você se define?
- Eu? Bem: gostoso, machudo, bom de cama...
- Consegue marcar quantos gols numa só noite?
- Eu? Bem. Tenho que responder a isso?
- Claro, você está ao vivo, para todo o Brasil.
- Bem, duas, três, sei lá. Depende do pedaço de mau
caminho que estiver comigo. Se fosse a minha vizinha Monique,
por exemplo, acredito que conseguiria alcançar o clímax umas cinco
vezes, sem tirar de dentro e sem deixar ela ir ao banheiro fazer
xixi.
- Garoto esperto, Fernandinho. Esse aqui bota nós dois
no bolso. Só gosta do que é bom. Agora, a última, concorrendo
com o menor tempo e a resposta mais criativa. Se for você, e vou
torcer para que seja, um final de semana com tudo pago, na suíte
presidencial do Motel Fome dos Prazeres, do nosso grande amigo
Leo; e um carro GOL FLEX, zero bala, completinho, gentileza da
Corcovado Automóveis, do Jorginho Brucutu. Boa sorte! Toninho,
se você chegasse em sua casa agora e recebesse o recado de que
essa sua vizinha, como é mesmo o nome dela?
- Monique.
- Se você recebesse a notícia de que a Monique pediu
128
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
para que você fosse até a residência dela para prestar um pequeno
favor e, quando você chegasse lá, ela viesse abrir a porta só de
calcinha e sutiã e, para apimentar o lance, estivesse segurando, em
uma das mãos, uma lâmpada, e, na outra, uma escada para você
subir e fazer a troca da nova pela queimada, o que é que faria,
exatamente? Um segundo. Tempo.
- Quem? Eu? Minha nossa, o que eu faria? Engolia a
lâmpada e me acendia, depois, todinho, dentro dela, como um
curto circuito, trepando, ligeiro pela escada.
- Bravo! Resposta inteligente e criativa. Fica aqui ao meu
lado. Vamos a mais um candidato. Temos o Marcos, o Cláudio e
o Toninho. Deixa eu ver quem vai ser. Ok, você aí, atrás da moça
de amarelo, o baixinho de blusa azul. É, você mesmo. Vem prá cá,
correndo. Fernandinho diretamente dos nossos estúdios, a
produção com o cronômetro nas mãos, marcando o melhor tempo.
Quem será o vencedor? Toninho Baiacu, Marcos, Cláudio ou...
Muito boa tarde, como é o seu nome?
O domingo, finalmente, chegou. Nesse dia, por coincidência,
acontecia o aniversário da sogra de Toninho. Estava, pois, por
conta desse evento, reunida a família, em peso, bem como parentes
e amigos. No quintal imenso rolava um churrasco no capricho,
refrigerante para a garotada, a dar com o pau, e para os marmanjos,
muita cerveja gelada.
Por volta de oito da noite, a galera resolveu sentar na sala e
ficar de olho grudado na televisão. Para aumentar o impasse e
criar expectativa e audiência, o canal de tevê, que exibia o programa
do Fernandinho Cuca Fresca, não revelava o nome do vencedor.
Mandava para o ar, especificamente, o bairro que havia sido
contemplado, mais nada. Santo Antão, por sua vez, quando
confirmou a novidade, abriu as veias fervilhantes da curiosidade.
Sem exceção, todos queriam saber quem era o felizardo, para,
evidentemente, dar-lhe os cumprimentos e os parabéns.
De repente, eis quem se transforma em celebridade: Toninho
129
Baiacu . Os filhos quando viram o pai, se arrebentaram em aplausos,
promoveram uma algazarra sem tamanho. Um dos garotos
grudou no seu pescoço, o outro pulou em seu colo. O menorzinho,
mais afoito, disparou à cata da empregada da casa, que conversava,
nada mais, nada menos, com a Monique, a mocetona da frente,
autora dos caprichos e das comedias louçãs de Baiacu.
Vieram as duas, em desabalada carreira, juntamente com outros
vizinhos e se barafustaram na sala apertada que, aquelas alturas,
não cabia mais ninguém. A esposa, animada, berrava saltitante:
- Silêncio, pelo amor de Deus, vamos assistir!
A sogra, surda de um ouvido, deu um jeito de se acomodar
perto do aparelho:
- Meu genro, você daria para ser artista. Fica um gato
diante de uma câmera e um microfone. Minha filha é uma sortuda
por ter casado com você.
O sogro foi nas águas da mulher e completou:
- Lembra um pouco meus tempos de rapaz, esse sanhudo.
Toninho Baiacu, todavia, parecia mordido por um bicho
carpinteiro. Sua impaciência andava à mil. Não demoraria muito,
teria um piripaque, um faniquito ou algo parecido. A poder de
muito custo e sacrifício conseguiu pegar o controle e mudar de
canal.
- Sogrão, ei, sogrão, tem um jogaço na Band. Seu time
acaba de entrar em campo.
- Ficou maluco? Volta pra Rede Vem Que É Mole. Não
perco você no Fernandinho Cuca Fresca por nada neste mundo.
A esposa deu um chega pra lá no companheiro.
- Senta ai e abaixa o facho, seu filho de uma égua. Deixa
de conversar pabulagem..
130
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Toninho Baiacu entrou em pânico. O desespero se fazia visível,
e não havia mais coesão em seus atos. O infeliz suava em bicas.
Sem falar na tremedeira pelo corpo inteiro. O programa do
Fernandinho começava e, aquela altura, a comunidade, em peso,
sabia que ele havia se sagrado vencedor. Santo Antão virara um
palco de festa, com pula-pula para a criançada, carrinhos de
pipoca, algodão doce, e soltura de fogos na praça da matriz. Tinha
até um grupo de pagode na porta da casa. E a galaria em peso,
numa bulha encarnada, balançando o esqueleto, como se fosse
carnaval fora de época.
- Pessoal vamos ver outra coisa. Essa porcaria do
Fernandinho só exibe o que não presta.
Quase apanhou. Faltou pouco. A massa compacta queria
assistir, na íntegra, a entrevista na praça e, saber das respostas
que ele dera às indagações do entrevistador. A esposa, coitada,
não cabia em si de contentamento, naturalmente levada pela alegria
intensa de estar vendo o marido, pela primeira vez, ao vivo, num
programa de televisão, em rede nacional.
O desditoso e desastrado, diante da sua impotência, da sua
estupidez e insignificância, olhou desalentadamente ao redor.
Primeiro, encarou a sogra e o sogro, em segundo, se deteve nos
filhos, e na companheira de tantos e tantos anos. Por fim, fixou os
olhos na multidão que viera até sua residência, passando pelos
mais chegados, e, no meio deles, a cunhada, e os sobrinhos.
Terminou sua rápida peregrinação ao topar com Monique, o rosto
sem cor, sem a vivacidade de sempre, entristecido e estremunhado,
na angustia da vergonha, como se transformasse cada escárnio
que receberia a “depois”, numa bofetada profundamente sentida.
Com certeza, naquela noite, tudo que construíra anos a fio, rolaria
água abaixo: sua vida, seu lar, seus filhos, seus sonhos; a amizade
dos amigos. Era o fim, o fim de tudo, sem a menor sombra de
dúvidas. Naquela noite, tudo deitaria por terra.
131
Dito e feito. Quando a entrevista acabou, suas tralhas estavam
todas - não empilhadas ordenadamente na calçada, à saída do
portão – ao contrário, dava a impressão de terem sido jogadas,
atiradas, de qualquer jeito, pela janela, e, de fato foram
arremessadas com a fúria e o menosprezo de seus familiares,
notadamente a indignação da esposa, a maior ultrajada em sua
honra e moral.
Foi chegando gente – sempre nessas horas aparecem os
retardatários - juntando aqui e ali, por sobre muros e carros, rostos
de feições sombrias e assustadas, uns para apertar as mãos de
Toninho, a maioria, porém, para chafurdar nas bisbilhotices do
inusitado das desgraças alheias.
Toninho Baiacu, rabo entre as pernas, humilhado, acabado e
vencido, mal teve tempo de pegar os documentos pessoais.
Praticamente fora expulso de casa, a poder de toques de caixa.
No bar onde se reunia com a rapaziada dos copos de cerveja,
implorou choroso, por uma pequena migalha a fim de inteirar a
passagem e tomar o ônibus até o terminal.
Para completar seu quadro desolador, quando pegava a
condução, chegava, no bairro, sob forte alarido, a caravana, com
a produção do programa do Fernandinho Cuca Fresca, seguida
por uma baita carreta, em cima da qual, uma dezena de meninas
sumariamente vestidas, dançava freneticamente, ao som de uma
música esquisita, em volta de um elegante GOL FLEX zero bala
completo. Na verdade, o automóvel que havia ganho pela
vivacidade do menor tempo e a originalidade da resposta mais
criativa.
132
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Iniciação
“Ah! Essas mulheres... Sempre tive uma, amando quatro
de cada vez...”
(Fernandinho Saraiva).
A PRIMEIRA, DE UMA SÉRIE DE MUITAS QUE TIVE
O PRAZER DE colecionar, ao longo da vida, foi uma
empregadinha doméstica que veio trabalhar em casa, logo que
mudamos para o apartamento novo. Elizabete. Loirinha, de olhos
verdes, dezenove anos. Uma gracinha de menina, um amor de
pessoa. Personalidade acima de qualquer suspeita. Monumental.
Quando a vi pela primeira vez, meus olhos se encheram de
minúsculos coraçõezinhos apaixonados. O tal cupido que o Lilico,
meu irmão de vinte e sete, vivia falando toda hora, finalmente,
havia atirado seu dardo envenenado e acertado em cheio o meu
coração de garoto que começava a descobrir as coisas boas do
mundo. Logo que veio morar com a gente, Elizabete não trouxe
muitas coisas. Sua bagagem, se bem recordo, não passava de
uma bolsa de nylon, bastante surrada e de um verde desbotado,
meia dúzia de sacolas de supermercados com sapatos, discos e
uma outra, com uma caixa cheia de produtos de beleza.
Mamãe a ajudou a se instalar. Deu-lhe um cobertor, lençóis,
fronhas, uma colcha e um travesseiro. Não havia cama. Nos
primeiros dias, Elizabete dormiu no chão, de frente para a porta,
numa espécie de estrado improvisado por papai. Os meses foram
passando...
133
Durante o dia, Elizabete cuidava de todos os afazeres
domésticos oriundos de uma casa de família: lavava, passava,
vigiava um irmão recém-nascido (raspa de tacho, como apregoava
meu velho), fazia feira aos domingos e, ainda, ajudava mamãe a
servir o café, o almoço, o lanche da tarde e, à noite, o jantar.
Depois de cumpridas todas essas tarefas, ela se retirava para seu
quarto e ficava por horas a fio ouvindo discos numa velha
radiovitrola.
Um ano após sua chegada, as coisas para ela melhoraram
consideravelmente. Havia, agora, num canto, uma penteadeira, com
um espelho oval, um banquinho e uma cômoda, onde colocava,
bem arrumadinho, um monte de LPs de Roberto Carlos, Jerry
Adriani, Wanderley Cardoso, Gilliard, Odair José, Diana, Jessé,
Cely Campello, Guilherme Arantes, Adilson Ramos, Carlos Alberto
e tantos mais. Naquele tempo, não existiam os CDs. Os bolachões,
ou discos de vinil, com suas capa duras cobertas por um plástico
faziam a festa e invadiam as lojas de discos. Elizabete seguia uma
espécie de ritual: entrava no quarto, encostava a porta, não passava
a chave, apagava a luz e acendia um pequeno abajur em forma de
elefante. Despia-se, esparramando as roupas a caminho do
banheiro. Tomava uma ducha longa e demorada, de meia hora,
talvez um pouco mais. Vinha, então, a melhor parte. Saía do
chuveiro só de calcinha e estirava o corpo na cama de solteiro que
meu irmão doara para ela, logo depois do seu casamento com a
Liliane.
Meu posto de observação ficava num lugar bastante engraçado.
Para as sessões de espionagem, lembro que precisava trepar numa
espécie de baú repleto de livros e cadernos atirados às traças.
Essa peça jazia, jogada à sorte, perto da máquina de lavar roupas
e do tanque, na varandinha, ao lado da porta da cozinha. Era dali
que espreitava, às escondidas, a Elizabete, depois do seu retiro
para a intimidade. Uma báscula que nunca fechava, servia mais
como passagem de ar para resfriar o ambiente. Uma espécie
134
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
de cortina caía, por sobre os vidros, lisos, e, devido a isso, se
tornava difícil, ou quase impossível, alguém, do outro lado, dar
comigo espionando. Ademais, tomava um cuidado medonho para
que ninguém me pegasse no flagra, principalmente, o Nelsinho,
outro irmão, ainda solteiro, que costumava trazer a namorada para
dar “uns amasso” numa espécie de dispensa, onde guardavam,
além das ferramentas de papai, mantimentos em estoque, latas de
óleo, garrafas de cerveja, produtos de limpeza, botijões de gás e
outras quinquilharias.
O fato é que, a cada nova manhã, Elizabete ficava mais radiante.
Simplesmente abafava. O salário que ganhava aplicava em coisas
de uso pessoal. Tinha um excelente bom gosto, a danada. Gostava
de usar roupas curtas e justinhas à pele (estava em moda a minissaia)
e, geralmente, as garotas imitavam as cantoras da moda. Por assim,
quando colocava um daqueles minúsculos “xortinhos”, realçando
o bumbum, ou uma minissaia, deixando à mostra a calcinha, eu
“viajava na maionese”, “pirava na batatinha”. À noite, os ares
ficavam mais densos. Elizabete saía do banho, enfiada numa
camisola branca, muito curta e transparente, que mostrava, em
todo o esplendor, seu corpo de mulher. As formas perfeitas, a
barriguinha, o umbiguinho, com destaque para o biquíni minúsculo
com enfeites de gatinhos, cobrindo carinhosamente o triângulo do
amor. Para mim, tudo aquilo dava a impressão de estar
espremidinho, pedindo socorro. Nessas horas, voava em
pensamentos distantes, ao tempo que roia, desesperadamente, as
unhas.
Um dia, Elizabete pulou fora do banho sem nada cobrindo a
nudez, sem a calcinha, sem a toalha, sem qualquer recato ao pudor,
a água quente escorrendo, macia por sobre seus cabelos formando
uma poça nos azulejos brancos do chão. Caminhou até o aparelho
de som e colocou cuidadosamente um disco no prato. Ajustou o
volume de maneira que somente seus ouvidos pudessem curtir a
melodia. Era o Odair José e as músicas desse artista faziam um
sucesso danado, na época, e ela, fã de carteirinha, sempre que
135
podia, botava alguma coisa dele para rodar. Tinha, inclusive, um
pôster tamanho gigante, pregado na parede, ao lado da janela,
que dava vista para o prédio contíguo:
“... As minhas coisas
De repente estão tristes
Compreenderam que não existe
Nada mais entre nós
Meu violão
Caiu de cima do armário
Suas cordas rebentaram
Dando adeus a minha voz...”
A graciosa parecia absorta. Sem ao menos se enxugar ou se
cobrir com a toalha, deitou de barriga para baixo, deixando à
mostra, para meu deslumbramento, um senhor par de pernas bem
torneadas, que terminavam numa montanha de ancas bem
proporcionadas, dessas de deixar qualquer homem maluco, com
visões sinistras do paraíso. Vendo aquilo o instinto falava alto. Aliás,
isso sempre acontecia. Bastava fixar os olhos em Elizabete, algo
anormal como um fogo interior transformava meu ser. Cuidadoso,
olhava para a porta da cozinha. Ninguém por ali. Corria os olhos
para o lado da dispensa. Nada, também. Então, relaxava, dava
asas à imaginação. Abaixava o calção até a altura dos joelhos e
colocava para fora o membro enrijecido pelo tesão que sentia por
aquela deusa maravilhosa, que me deixava completamente louco
e fora de qualquer controle. Do meu posto, acomodado na ponta
dos pés e por sobre o baú de livros, chegava até mim uma visão
privilegiada da cama e, em cima dela, o pecado em todas as suas
formas, exposto sobre o lençol de algodão e, ao fundo, parte da
entrada do banheiro onde ela refrescava o cansaço estafante do
dia a dia.
Enlouquecido, sonhava acordado. Imaginava mil coisas como,
por exemplo, estar deitado ao lado dela, entrelaçado em seus
136
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
braços, o sangue fervendo nas veias, o suor escorrendo, os sentidos
todos em alerta. O meu deslumbramento, entretanto, não ia além
de um momento de pura felicidade, um momento fugaz, muito
rápido. Elizabete desconhecia os meus anseios secretos e tampouco
imaginava que a comia, que a devorava, literalmente, da cabeça
aos pés, centímetro por centímetro, sorrateiro, como um bicho
acuado, enquanto ela, na tranquilidade de seu retiro pessoal, sabese lá, pensava em algum namoradinho distante. Nesse chove não
molha - enquanto descontraída ela cuidava de si, ora pintando as
unhas, ora escovando os cabelos, que lhe caíam até a cintura - eu
friccionava o pau, com força, movido por uma ânsia descontrolada.
A música rolava. De cima do baú, só restava a satisfação de me
contentar com um querer enorme, mas frustrado.
Nervoso, com os neurônios em alerta geral, agarrava o nervo
duro e irrequieto no meio das pernas. Chegava à exaustão, devido
à cadência empregada com as mãos, para atingir o clímax,
chacoalhando, sem parar o órgão genital. Essa brincadeira de mau
gosto (de mau gosto porque somente eu participava), perdurou
por muitos e muitos meses, até que numa noite, também já prestes
a gozar, eis que, de repente, o Nelsinho, como surgido dos quintos
do inferno, assomou no umbral da porta da dispensa, com a droga
da namorada a tiracolo. Os dois me pegaram de calção arriado,
na hora agá, no instante derradeiro, justamente quando meu corpo,
voltado para os prazeres da carne, uma vez mais, liberava uma
porrada de espermatozóides em homenagem àquela deusa
encantada, que recostada sobre a cama e ao som do Odair José,
seguia indiferente aos meus problemas de menino adolescente
batendo às portas dos dezesseis.
- Bonito, seu moço. Descascando banana em plena oito
horas da noite! E ainda por cima importunando a Bete. Deixa o
pai saber disso.
Não contente, completou a frase:
- Mãe, ô mãe, venha até aqui na cozinha ver um negócio!
137
Exatamente o que temia acabou acontecendo. Deu uma encrenca
dos diabos. Para mim, evidentemente. Mamãe acorreu, com uma
vizinha de apartamento, chata, que não saía lá de casa, o cenho
franzido, os olhos dilacerados pela fúria. Enquanto meu irmão
me puxava o braço, aos beliscões, me arrancando em
contrapartida, pelado, de cima do baú, em vão tentava esconder
o pinto da namorada dele, como da mamãe e da vizinha. Aliás,
essa maldita destrambelhada, me olhava como se estivesse
encarando um maníaco. O engraçado, o cômico, no meio desse
povo todo que apareceu, uma vergonha infinita veio vindo lá do
fundo e queimou, por inteiro, meu rosto pálido. Se fosse a Elizabete,
com certeza, o vexame não atingiria graus tão altos.
Em meio à confusão que tomou forma, Elizabete saltou da cama,
apagou a luz, desligou o som e meteu o bedelho. Pegou-me num
beco sem saída, numa situação caótica que não desejaria ao pior
inimigo. Levei, na frente de todos, uns belos tabefes no meio das
ventas. Quando papai chegou, a cinta comeu firme no lombo.
Apanhei feito cachorro magro e sem dono.
Aquele incidente, no qual me deixei ser pilhado, era tão grave
quanto fazer rolar escada abaixo a cadeira de rodas com uma
velhinha paralítica a bordo.
Depois desse mico, optei por ficar de molho, quase um mês,
confinado dentro do quarto, com vergonha de aparecer para
Elizabete, embora soubesse, de antemão, que a namorada de meu
irmão Nelsinho, havia contado a ela, com riquezas de detalhes, o
incidente, desde o instante em que me pegaram com as mãos na
massa. Pronto, estava na boca de todos o meu segredo,
desvendado, exposto, com direito até a apelido: “tarado da bunda
branca”. Em parte, a alcunha ajudou muito. De tanto falarem do
meu traseiro branco, Elizabete, por fim, aquiesceu. Veio chegando,
aos poucos, de mansinho, devagar. Parecia não ter pressa. Trazia
o café, o almoço, o lanche, conversava muito sobre tudo, sentava
a meu lado para ver televisão...
138
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Rolou o clima num final de semana. Ninguém em casa. Do seu
jeito, como só ela sabia. Aconteceu. Perdi a virgindade e, junto,
os medos bobos que povoavam minha adolescência. Passei a
conhecer, a partir de então, um mundo diferente e, dentro dele,
um sonho obscuro, onde um universo imensurável se abriu.
Elizabete me fez ver o outro lado da moeda, ou seja, o reverso da
clausura, na qual vivia enfurnado. Conheci mais, senti o
prazer, conheci o amor, a felicidade se fez plena, e a alegria de
viver que todos buscam veio ao meu encontro, como um sol
gostoso batendo no rosto.
Elizabete ficou com a gente por quase oito anos. Nesse tempo,
me ensinou tudo o que hoje sei, tudo o que um homem deve saber
para fazer uma mulher se sentir plenamente realizada. Nosso caso
de amor, que deu até aborto, infelizmente terminou de forma trágica.
Estraguei tudo. Ela me pegou, na cama dos meus pais, com a filha
de um pessoal novo, que ocupara, recentemente, o apartamento
vago, porta com porta, no andar em que morávamos.
139
140
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Para bom entendedor,
uma cerveja basta.
Ao meu amigo SIVUCA (in memoriam).
ONTEM FOI UM DIA MISERAVELMENTE MASSADOR.
Chato pra cachorro. Pra cachorro não, particularmente pra mim.
Se eu tivesse o dom de adivinhar, ou de prever os acontecimentos
futuros, como a espertalhona da Mãe Dinada, certamente não teria
saído de casa.
Verdadeiro desastre. Logo ao pôr a cara para fora do apartamento,
tropecei nas escadas do prédio. Quase quebro o pé.
Até a parada, para tomar a condução, uma chuva intermitente
me deu um banho daqueles de gelar até os cabelos da alma. Não
sei se alma tem cabelo, mas vá lá, isso é de somenos importância.
Geralmente ensopo os ossos nos dias de aguaceiro. Não uso
guarda-chuvas, aliás, nunca uso guarda-chuvas. Tenho verdadeira
ojeriza a esse tipo de objeto, ando com a cabeça nas nuvens e
acabo esquecendo a porcaria em qualquer lugar. O último que me
lembro ficou espetado num sorvete.
141
No ônibus, acomodei o traseiro ao lado de uma mulher gordona.
E bota gordona nisso. A balofa parecia um piano de cauda
desafinado, desses de segunda mão, recém saído de um antiquário.
Ocupava o assento da janela e boa parte do meu. Aliás, mais o
meu do que o espaço a ela reservado. Tive que viajar até o ponto
onde pretendia descer, espremido, apertado, agoniado, feito uma
sardinha raquítica dentro de uma latinha hermeticamente fechada.
Uma droga! Nessas horas é que a gente aprende a dar valor à
liberdade e, mais, ter consciência, de como se sente uma miserável
sardinha numa latinha hermeticamente fechada. Imagine, sem ar,
sem poder se mexer, ou virar o braço para coçar a bunda.
E a bendita adiposa me olhava de soslaio, me comia de mansinho
pelas beiradas, o rosto fechado, cenho franzido, como se me
recriminasse por estar prostrado exatamente naquela cadeira.
Ao deixar o coletivo, ainda embaixo de fortes pancadas de
São Pedro, tomei outra ducha ao atravessar a rua para galgar a
calçada que dava nos escritórios da firma onde exerço as funções
de especialista em marketing impresso. Trocado em miúdos, boy
de xerox. Um automóvel, vindo não sei de onde, parecia fugir da
puta que pariu, passou feito um furacão. Deu aquela espirradela
de água suja de lama, ao bater os pneus num buraco. Dessa vez,
tive sorte. Ensopei um pouco mais a camisa branca que titia Anabela
havia passado com tanto carinho e esmero.
Outros passantes também foram atingidos. Só ouvi gente
xingando a mãe do infeliz. Não sei por que as pessoas pensam
distribuir impropérios afrontosos, direcionados principalmente às
mães. Existem umas figuras de línguas afiadas, que, nessas horas,
perdem a linha, a estribeira, o bom senso. Apelam. Mandam o
motorista deseducado e barbeiro enfiar o carro naquele lugar, ou
seja, no cu da mãe, como se no cu da mãe coubesse um carro
com motor e todos os acessórios e tranqueiras que o acompanham.
Segui meu caminho. Parei na banca de revistas do Epitáfio, para
correr os olhos nos jornais pendurados. Virou rotina. Sempre faço
isso. O dia que passo direto, o sujeito corre no meu encalço
142
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
e questiona se estou com raiva dele.
“CACHORRO FAZ MAL À MOÇA” – estampava um em
letras garrafais – enquanto outro proclamava “O NOVO
SALÁRIO MÍNIMO CONTINUARÁ MINGUADO”.
Uma vergonha esse negócio de salário mínimo. Por mais que o
povo brigue por um regime de rendimentos melhores, ou condições
igualitárias justas, não consegue, ou melhor, nunca consegue, o
governo ganha os tubos com as roubalheiras e põe a culpa na
Previdência. Não sei por que a população não se une de forma
coesa e se insurge, de uma vez, pra cima dos responsáveis por
essa situação caótica, e não põe um basta definitivo no que julga
errado e, de lambuja, leva junto, a tal da Previdência. Chamou
minha atenção um terceiro jornaleco. A manchete com letras
destacadas anunciava: “MARIDO MATAA ESPOSA COM BIFE
QUE LHE FOI FRITO”.
Epitáfio, o dono da banca, como sempre, não perdia a
oportunidade. Bastava me ver encostado, se abria num sorriso
largo e perguntava se eu levaria alguma publicação, um gibi que
fosse, ou uma revista de mulher pelada. Epitáfio só queria mesmo
torrar a paciência, conversar, passar o tempo. Sabia, de antemão,
que eu ganhava pouco e jamais gastaria um centavo com besteiras.
Segui adiante.
A próxima parada, antes de entrar no edifício onde ficava a
empresa que eu trabalhava, era a loja de discos do André da
“motoleta”. Tinha verdadeira adoração por esse local. Não subia
antes de dar uma espiada nas novidades. E sempre havia coisas
novas nas prateleiras. Bem, deixa falar um bocadinho do André
da “motoleta”. Colocaram esse apelido nele, porque perdeu uma
das pernas num acidente de motocicleta.
Apesar dessa fatalidade, o rapaz é um cara feliz. Está sempre
de bem com a vida. Costuma dizer que amputou uma parte
importante de seu corpo, mas, em compensação, ganhou
143
um par de muletas e, com elas, não se sente tão só. Pior aconteceu
com o motoqueiro. Com o impacto, o indivíduo bateu com a cabeça
no meio-fio e acabou partindo desta para melhor. O cômico nessa
história do André é que ele nunca chegou a montar, nem de carona.
Desde pequeno, até de bicicleta passava longe. A família do cidadão
causador do atropelamento, para evitar uma demanda judicial,
presenteou o André com a bendita moto, e o felizardo, entre aspas,
colocou a dita numa vitrina com um monte de capas de CDs
espalhadas. Ficou massa. A galera da vizinhança soube do caso e,
claro, teve um engraçadinho que surgiu com uma piadinha. Logo a
coisa se propagou e, no fim, acabou se tornando uma referência.
De André da moto para André da “motoleta”, um pulo. Contei a
história do desditoso mancebo para um amigo meu, o Canterbury.
Na lata, ele me chamou a atenção dizendo que é feio colocar
cognome nas pessoas. Segundo ele, mancebo é um cabide para
pendurar roupas, formado por uma haste nos braços. A bem da
verdade, nunca estive interessado no verdadeiro significado dessa
droga de palavra. Mandei o Canterbury chupar prego velho até
desenferrujar a cabeça. De mais a mais, a alcunha do André não é
mancebo, mas “motoleta”.
Pois bem. No momento em que entrei na loja, o André botava
um CD para rodar. Adorei o balanço da música. Lembrava Mestre
Sivuca, aquele do acordeom. Perguntei de quem era o disco, e o
André, brincalhão, gritou: é do Severino Dias.
- E quem é Severino Dias?
- Você não conhece Severino Dias?
- Nunca ouvi falar.
- Pois saiba que esse cidadão é reconhecido no mundo
inteiro. Brasileiro, natural de Itabaiana, na Paraíba, nasceu em 26
de maio de 1930. Ah! esteve exilado no exterior, convencido da
marginalização da música instrumental e do solista popular
brasileiro.
144
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- Estou pasmo!
- Quer saber mais? O poderoso aí tem um currículo de
fazer inveja. Trabalhou com artistas internacionais famosos e fez
várias turnês. Tem três CDs individuais nos Estados Unidos e dois
na Europa.
- Tudo bem. Apesar desses esclarecimentos interessantes,
seu Severino Dias continua sendo para mim como um bife bem
gostoso, porém malpassado.
Lembro que havia um cliente nos fundos da loja. Escolhia alguns
discos, mas, se via, se antenara na conversa. A certa altura, se
desculpou por estar ouvindo nosso bate-papo e pediu um aparte:
- Não pude deixar de ouvir vocês. Severino Dias, eu tenho
absoluta certeza de que o prezado conhece muito bem.
- O amigo está enganado. Nunca ouvi falar.
- Vamos bater uma apostinha?
- Exatamente o que apostaríamos?
- Uma cerveja.
- Só?
- Para não passarmos em branco. Uma brincadeirinha, se
não se importa, evidentemente. Estou lhe vendo agora, pela primeira
vez. O André da “motoleta”, em compensação me conhece de
velhos carnavais.
- Tudo bem. Amigo dele é meu também.
- E então?
145
- Está valendo a cerveja. Não conheço Severino Dias.
- Conhece.
- Eu passo.
- Puxe pela memória.
- Severino, Severino, Severino. Desisto.
- De pé a aposta?
- Sim! Nunca ouvi falar do tal Severino Dias.
- Severino Dias é o Mestre Sivuca, aquele do acordeom.
146
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Xeque-mate
O APARTAMENTO DEFRONTE AO QUE TERREMOTO
reside possui duas campainhas distintas. Uma delas tem uma tampa
cinza e, no meio, um buraquinho redondo, com duas pernas de
fios soltas. Quando chega alguém à cata do morador (que nunca
ninguém viu, nem mais gordo, nem mais magro, nem mesmo
Terremoto), existe abaixo do olho mágico uma caixinha dessas
modernas, ou melhor, a campainha de verdade, para que seja
comprimida e, uma vez acionada, alerte o residente de que há
gente a sua espera do lado de fora. Sempre que surge uma pessoa
no corredor, Terremoto logo fica sabendo, não porque bisbilhote
o tempo todo, mas, simplesmente, porque o alarme sonoro do
subir e descer do elevador disparava um “plim” e, corroborando
com a atitude desse mecanismo, as dobradiças enferrujadas da
velha porta da engenhoca começam a ranger desesperadamente.
147
Nessas ocasiões, Terremoto aproveita para espiar pelo olho
mágico e ver quem é a visita que anda em busca do vizinhofantasma. Curiosidade de quem já trabalhou muito na vida, se
aposentou com um bom salário por mês e não tem, realmente, o
que fazer, além de dormir e coçar o saco. Contudo, um excelente
exercício para matar o tempo ocioso, vez que se depara com as
situações mais engraçadas e inusitadas possíveis. Dias atrás, uma
moça com os cabelos vermelhos elegantemente vestida, procurava
pela campainha. Como todos os demais, ela não viu, diante de si,
a caixinha, abaixo do olho mágico e, por essa razão, começou a
futucar aqui e ali, na esperança de enfiar um dos dedos no orifício
da tampa cinza e juntar os fios. Os dedos não ajudaram em nada.
Talvez fossem as unhas compridas ou os anéis que atrapalhassem.
Quem sabe nem uma coisa nem outra, mas a cor dos cabelos. Em
seguida, ela introduziu o polegar e o indicador com o objetivo de,
a qualquer custo, fazer funcionar a geringonça. Puro fiasco. Um
faniquito repentino a fez sair furiosa, cuspindo marimbondos.
Não foi diferente com um cidadão baixinho, de chapéu na
cabeça e uma bolsa dessas 007. Possivelmente cobrador. O infeliz
chegou ao cúmulo de, a certa altura das frustradas tentativas, meter
o nariz no olho mágico, objetivando ver se enxergava alguma coisa
no interior do apartamento. Também teve problemas com os fios.
Quase certo, pelo ar desagradável que se fechou em seu rosto,
tomou uma tremenda descarga. Desistiu, pois, da empreitada.
Resmungando, deu meia volta e desapareceu.
Terremoto chegou à conclusão de que as pessoas, de um modo
geral, são levadas e expostas ao ridículo por pura comodidade.
Ninguém para por alguns instantes com a intenção de analisar o
que está posto e visível diante do óbvio. Pensar numa solução
simples que desencadeie algum resultado prático. Às vezes, uma
insignificância, de solução clara, está logo ali, atropelando, mas a
pressa e o nervosismo juntos, de mãos dadas com a velha burrice
botam tudo a perder.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
O cômico, na história do vizinho extravagante, se resumia num
só objetivo. Quem quer que pintasse no pedaço, se via logo às
voltas com os fios da campainha. Talvez, no fundo, fosse essa a
verdadeira intenção do engraçadinho. Dar choque nos chatos que
não desistiam de vir até sua residência perturbar o sossego. Com
certeza, o canastrão deveria rir um bocado e se divertir às
expensas dos apalermados. De qualquer forma, deixava claro que
não queria, decididamente, ser incomodado por ninguém. Pairava
no ar uma dúvida cruel. E essa dúvida deixava Terremoto com a
pulga na orelha. Por que o cidadão divulgava aquele endereço, se
não queria ser encontrado nele? E se espalhava com qual objetivo?
Fazer pouco caso? Tirar sarro? Zombar dos seus semelhantes?
Mais cômodo seria indicar um local público, um shopping, ou
marcar um barzinho. Perto dali havia um café expresso espetacular,
com garçonetes lindas de serem vistas. Tudo bem que as pessoas
devam preservar a sua individualidade, resguardar a sua privacidade
com unhas e dentes. Com fios desencapados, certamente, o cúmulo
do absurdo.
As duas pernas de fios soltas da suposta campainha, de certa
forma, instigavam a atenção dos que acampavam diante da entrada,
fossem quais fossem os motivos que os levassem a estar ali. Pelo
sim, pelo não, os que se aventuravam, esqueciam de atentar para
um detalhe insignificante, qual seja, fazer soar o botãozinho
politicamente correto, e à vista de um cego, logo abaixo do tal
olho mágico.
Terremoto percebeu, nessas olhadelas, que cada ser humano
reagia de uma maneira diferente. Uns xingavam, outros faziam
caretas, alguns chutavam as paredes. A maioria olhava para os
lados, desconfiada. Teve um visitante que se deu ao trabalho de
encarar o olho mágico de Terremoto. Não se sabe com qual
finalidade. Levou um baita susto. Ficou evidente que se descobrira
com a boca na botija. As mulheres eram as mais interessantes de
serem reparadas: puxavam a calcinha que entrava na bunda,
149
penteavam os cabelos, retocavam a maquiagem do rosto, refaziam
o batom dos lábios. Os homens, como sempre, menos exigentes
com a aparência, limitavam-se a corrigir o nó da gravata, dar uma
ajeitadinha nos óculos, e uma batidinha discreta no paletó, para
afastar algum cisco por ventura deixado com o vento. Pensavam
em tudo, esses ilustres visitantes, mas esqueciam do mais trivial:
Premer com o indicador o botãozinho da segunda campainha, logo
abaixo do olho mágico ou, por outra, de bater suavemente, com
os nós dos dedos, produzindo um leve toc, toc, toc, no sisudo e
silencioso portal do esquisito morador.
150
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Mico
A MERCEDES PRETA COM VIDROS FUMÊ encostou
silenciosamente na única bomba que se encontrava vazia para
abastecimento. Cristiane, uma das moças veio atender, solícita.
O motorista, um sujeito magro, abriu meio vidro, o bastante para
passar um molho de chaves:
- Completa o tanque, por favor.
Cristiane, mais que depressa procurou despachar o homem no
menor tempo possível. As ordens do gerente, nesse sentido, giravam
em torno do posto ter alguns diferenciais que precisavam ser
seguidos ao pé da letra: oferecer bom atendimento ao cliente, agir
com rapidez e elegância na maneira de abordar, preservar a
discrição e, em hipótese alguma, sair de cara feia, ou xingar os
engraçadinhos, caso levasse uma cantada. O segredo estava
também na diplomacia, na perspicácia e no saber se livrar dos
elementos chatos, de mansinho, numa boa, com classe, sem lhe
ofender a moral e o decoro.
151
Cristiane desde que admitida como frentista, agia nos conformes.
Aliás, as demais colegas se espelhavam nela. Assim, naquela manhã,
ao ver chegar a Mercedes preta, tratou de fazer o seu trabalho
sem mais delongas. Contudo, não pode deixar de reparar no que
acontecia no interior do veículo. Embora a janela não estivesse
totalmente aberta, ela percebeu que a acompanhante do sujeito
magro – uma loirinha de cabelos compridos – praticava sexo oral.
Em outras palavras, pagava um boquete. Talvez a garota estivesse
sendo forçada a fazer aquilo. Ninguém, em sã consciência, por
mais depravado e sem-vergonha que seja, se submeteria a um
mico daqueles. Por outro lado, se havia uma terceira pessoa
ameaçando (escondida, talvez, no banco de trás), por que não
gritou, nem tentou abrir a porta e sair para pedir ajuda?
Dorinha, a colega de Cristiane, se aproximou para oferecer
outros serviços, entre eles, água gelada e cafezinho. Cristiane ainda
tentou desviar a atenção da amiga, mas era tarde. O sujeito magro,
desta vez, não abriu o vidro, escancarou a porta. Dorinha, diante
disso, deu de cara com a cena patética. O cidadão, com o troço
para fora da bermuda e a moça do banco do carona (a loirinha
dos cabelos compridos), grudada nele, chupando, como se aquele
ato fosse a coisa mais banal e corriqueira desse mundo. Dorinha,
porém, seguiu à risca as instruções: não esquecia da história dos
três macaquinhos. Essa é a melhor filosofia para se trabalhar num
posto de gasolina, ou em qualquer outro lugar.
Sem perder a calma, e mostrando serenidade, dirigiu-se ao
cliente, desempenhando maravilhosamente a sua função e, por fim,
propôs os brindes.
- O senhor aceita uma água gelada, ou um cafezinho?
- Por gentileza, um cafezinho.
- Sua companheira não gostaria de...
152
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
O rapaz se abriu num sorriso debochado:
- Como pode ver, ela está ocupada, de boca cheia.
Acredito que não vai querer misturar café ao leite condensado
que logo deverá jorrar em abundância.
Dorinha se afastou. Cristiane havia acabado de completar o
tanque. Foi sua vez de se aproximar do freguês.
- Suas chaves, senhor. Deu setenta e dois reais e cinquenta
centavos. Vai querer o cupom fiscal?
- Não, belezura. Só estou à espera do cafezinho que a
outra atendente solicitamente me ofereceu. Como pode perceber,
não posso me dar ao luxo de me levantar daqui, ou a minha gatinha
teria que interromper a sua merenda. Como é seu nome?
- Cristiane, senhor.
- Aqui está o dinheiro, setenta e cinco reais. Pode ficar
com o troco. Gorjeta.
Dorinha chegou trazendo um copinho de plástico cheio de café
dentro de uma bandejinha pequena.
- Senhor.
- Obrigado. E você, como se chama?
- Dorinha, senhor. Algo mais?
- Bonito. Gostei. Cristiane também. Legal. Vocês duas são
uns amores. Estou satisfeito. Recomendarei aos meus amigos o
lugar para abastecerem aqui.
A loirinha continuava na mesma posição, chupando, sem parar,
imprimindo à cabeça um vaivém cadenciado. Enquanto sorvia
153
o café, o sujeito magro segurava nos cabelos dela e ordenava:
- Mais rápido, mais rápido. Cuidado para não me lambuzar
de café.
Agradeceu a bebida, fechou a porta. Antes de ligar o motor,
voltou a abrir o vidro. Olhou para as duas:
- Meninas, aqui está o copinho. Tenham um bom-dia.
Saiu tão silenciosamente como chegou.
Passado o primeiro impacto, as duas se reúnem num desabafo.
- Você viu o que eu vi?
- Estou pasma, colega! Olhe, minhas mãos estão tremendo
até agora. Meu Deus, que coisa horrível. Como é que uma garota
simpática, de boa aparência, não deve ter dezessete anos pelo
que pude perceber, se presta a fazer aquilo, em público?
- Dinheiro, amiga. O vil metal, como diz meu pai. O troço
faz das pessoas gato e sapato.
- Jamais passaria por um ridículo nessas proporções. Nem
que a criatura fosse meu marido ou o príncipe mais bonito da face
da terra. É o fim da picada!
- Concordo plenamente, amiga. E que pica... Quero
dizer, que picada!
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Código de honra
MARIA JULIETA TINHA TUDO A TEMPO E À HORA,
do bom e do melhor. Não lhe faltava absolutamente nada. Essa
mordomia se estendia do fogão de cozinha à cama onde dormia,
feita sob medida, em madeira de lei, passando pelo carro último
tipo estacionado na garagem e acabando nos vestidos de grife
encontrados em lojas grã-finas e sofisticadas. Em seu close, ao
lado do guarda-roupa, perfilados um ao lado do outro, elegantes
pares de sapatos para cada um dos dias do mês. Vestia uma
elegância ímpar e jamais repetia um modelo. Madame de vitrina,
praticamente, todas as tardes um convite lhe esperava para um
chá de confraternização ou troca de gentilezas, nas residências de
amigas – a maioria esposas de médicos que trabalhavam na clínica
Tapajós&Tapajós, em plena Alphavile em Barueri. Há pouco
completara vinte e cinco anos, ao contrario do maridão, doutor
Cornélio Dias Tapajós, cirurgião plástico renomado, em tempos
passados, assistente de Ivo Pitangui. Homem mais velho, passava
dos cinquenta. Todavia, não negava fogo. Mesmo nessa faixa de
idade dava trabalho, não fazia feio ou deixava a desejar. Punha, na
moral, como se costuma dizer por aí, muitos garotões no chinelo,
tal o vigor e a disposição na hora de fazer gracinhas para a esposa,
quando partia para o “vamos ver como é que fica”. E ficava mesmo.
O casamento deles ia de vento em popa.
155
Maria Julieta não completara dezesseis quando viu, pela
primeira vez, no consultório da clínica, o cara que viria a ser, dentro
em breve, o príncipe encantado da sua vida. Tudo aconteceu ao
acompanhar a única tia com quem vivia desde os cinco anos, que
se internara para se livrar de uns incômodos que ameaçavam sua
beleza. A jovenzinha se acendeu por dentro como uma desatinada,
diante do primeiro garoto que lhe deu uma piscadela de olhos
mais demorada e falou meia dúzia de palavras bonitas, ao pé do
ouvido. Ele também não ficou atrás. Investiu nas olhadas e paqueras.
Na verdade, ambos se corresponderam à altura, até que, uma
semana depois, jantavam de mãozinhas dadas, como dois
pombinhos apaixonados. Houve um pedido formal de casamento
entre taças de champanhe e caviar e, nessa hora, ela, Maria Julieta,
flutuou num espaço desconhecido que se descortinava a sua frente.
A princípio, a tia deu contra, afinal ela não passava de uma
menina ingênua e ele, um coroa. Contudo, diante da devolução de
um cheque pré-datado passado à clínica e uma série de outras
conveniências, acabou por concordar com o matrimônio. Em menos
de duas semanas, Maria Julieta, agora senhora Cornélio Tapajós,
se mudava de mala e cuia para a espetacular mansão do médico
em Aldeia da Serra, bairro nobre nas cercanias da grande São
Paulo.
Oito anos de felicidade plena e incondicional, regadas com
muito amor, carinho, badalações, festas, encontros, simpósios,
viagens, idas e vindas ao exterior. A garotinha do bairro do
Morumbi, de certa forma, acertara na sorte grande. Não que
precisasse. Trazia o vento dos bons presságios soprando sobre
sua cabeça, ou mais precisamente, a partir da morte dos pais, num
acidente ocorrido na Rodovia dos Imigrantes, em direção a
Santos. Passara a viver, desde esse fatídico dia, com a tal da tia
ricaça, que lhe tratava como filha e a amava como ninguém. Jovem
e bonita, conquistara sua independência financeira. Conseguira,
num curto espaço, galgar destaque na sociedade. Seu rosto de
princesa dos contos de fada não saía das colunas sociais. Como
esposa de um cirurgião plástico conhecido internacionalmente,
156
A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
sua ascendência às altas esferas da burguesia chegou num abrir e
fechar de olhos. Até aquele dia...
A porta de uma das cristaleiras, que ajudavam a adornar a sala
imensa e ricamente mobiliada, emperrou. Em conversa com uma
das empregadas que compunham a ala das serviçais a seu dispor,
Maria Julieta descobriu que Chiquinha, a copeira, tinha um irmão
entendido em assuntos relacionados a móveis finos e os consertava
com impecável precisão. Assim, Pedro Juliano teve acesso à
residência dos Tapajós. Num sábado, logo depois das nove horas
da manhã, estava o moço com a irmã à disposição, assim que a
patroa despachasse o maridão para se ater ao que o levara até ali.
A espera não se fez muito delongada. Menos de meia hora depois,
Pedro Juliano se viu diante de uma deusa nunca dantes imaginada.
A beleza ímpar da rainha, a senhora Tapajós, não obedecia a limites.
O destino, a partir desse encontro, mudou sistematicamente a vida
de todos os envolvidos e acabou com a paz que reinava naquele
doce lar. Pedro não se deparara com ninguém tão especial, pelo
menos a ponto de ficar embasbacado, queixo caído, feito um
doente mental.
- Me acompanhe, por favor. Mostrarei ao senhor o móvel
que pretendo seja prontamente restabelecido à normalidade.
Pedro Juliano se deixou levar pelo braço como um extasiado
diante de algo que, até então, só vira nas telas dos cinemas.
Uma hora depois, o serviço ficava pronto. Mandou a irmã avisar
que tudo estava nos conformes. A dona da casa voltou à cena.
Desta feita, entrou na sala mais elegante que antes. Pedro sentiu
um tremor. Começou a suar. Sua camisa colou nas costas.
- Senhora, me permite lavar as mãos?
Maria Julieta fez que sim, pediu um suco à Chiquinha que se
afastou prontamente em direção à cozinha. A sós, ela e o rapaz,
ao invés de conduzi-lo para os banheiros destinados aos empregados, apontou o seu, que ficava dentro do quarto da suíte do
157
casal. Pedro Juliano, ao entrar naquele ambiente chiquérrimo, quase
teve um ataque. Primeiro, porque nunca havia visto nem estado
num ambiente tão luxuoso e, segundo, ao lado do sanitário e da
banheira de hidromassagem, havia uma parede, ou melhor, a parede
se constituía num quadro enorme de Maria Julieta, de corpo inteiro,
nua em pelo, comendo uvas e fazendo uma pose tremendamente
provocante e sensual. Seus brios de macho entraram em estado
de alerta. Houve uma dificuldade enorme para abrir o zíper e tirar
o grosso volume que latejava dentro da cueca apertada. Sentiu
vontade de se acabar numa série de ejaculações em homenagem
àquela formosura, que se oferecia, como uma gata selvagem,
querendo ser possuída e amada.
Ao urinar, o jato escorreu para fora do vaso formando uma
poça em torno de um tapete com desenhos do Piu-Piu. Pedro
Juliano esquecera de mirar o fundo da bacia da privada, tamanha
a tensão que fragilizava seu estado emocional.
Sem saber que estava sendo observado, Maria Julieta encostou
a porta de acesso a seu quarto e se achegou do banheiro. Espiou
então o rapaz, ou melhor, sua atenção, nesse momento, se desviou
para o que ele segurava em uma das mãos. Ao deparar-se com
“aquilo” enorme e descomunal entre os dedos, arregalou os olhos
e soltou um gritinho de espanto. Surpreso Pedro girou sobre si
mesmo e, ao fazê-lo, se viu de calças curtas, diante de Maria Julieta
em carne e osso.
A partir daquele momento, nenhum dos dois conseguiu tirar o
outro da cabeça. Até que a coisa acabou tendo que ser resolvida
na cama. Pedro Juliano passou, então, a quebra-galho oficial da
mansão, ou seja, a fazer pequenos retoques aqui e acolá. Cada
dia pintava algum objeto para ser consertado ou restaurado. Além
de quebra-galho, o sortudo ganhou, igualmente, o posto de amante
oficial da bela e apetitosa patroa de sua irmã Chiquinha e, como
tal, a desfrutar não só dos prazeres que o corpo da amada lhe
proporcionava, mas dos presentes caros que ela comprava e
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
oferecia em troca das mijadas que, como a presença dele, na casa,
passaram a ser uma constante no banheiro da suíte do quarto de
casal.
O ilustre Cornélio Tapajós, cirurgião plástico renomado,
exatamente dois anos depois, sem querer, sem esperar, sem ser
avisado e sem planejar nada, acabou dando um flagra. Voltou, de
repente, para buscar o estetoscópio que esquecera sobre o criadomudo. Maldita hora. Topou com a jovem esposa no banheiro,
encostada no próprio retrato, aos gemidos de “vai, meu gato, me
encha as entranhas com sua porra quente” sendo possuída por
Pedro Juliano. Cornélio Tapajós enlouqueceu. Perdeu a cabeça.
Primeira reação: passou a mão numa arma que mantinha dentro
do cofre e atirou na despudorada. Uma bala só. Certeira,
suficiente. Meio da testa. Os miolos dela mancharam a parede e
seu corpo escultural se coloriu de sangue. Em seguida, o médico
mirou os colhões do amante, sem se importar com aquela frase
conhecida que surge na boca dos envolvidos, nas horas mais
erradas possíveis. “Amigo, me escute, não é nada disso que está
pensando”. Sem escapatória. Apertou cinco vezes o gatilho.
Aldeia da Serra virou um inferno. Em meio aos gritos de “se
entregue que é melhor, jogue a arma pela janela e saia de mãos
para cima” da polícia, que cercou a mansão e do desespero dos
empregados, vizinhos e curiosos Cornélio Tapajós da Clínica
Tapajós&Tapajós, pôs em prática a terceira de suas funestas
reações: encostou a arma no ouvido e... Não havia mais nenhuma
bala disponível no tambor do revólver.
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APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Reação em cadeia
O AQUILEU ERA REALMENTE UM HOMEM com agá
maiúsculo. Macho até debaixo d’água. Como delegado titular da
homicídios um exemplo de policial linha dura. Queria tudo certinho
e dentro dos conformes. Seus subordinados sabiam da fama, por
essa razão, quando sentado em sua cadeira, no amplo gabinete,
ninguém brincava. Até advogado de porta de cadeia receava visitar
preso nessas ocasiões. Final de semana, depois do expediente,
decidiu pescar com amigos, numa cidadezinha fora do seu Estado.
Geralmente, nessas pescarias rolavam muita carne no espeto,
cerveja e mulheres bonitas. Até aí, tudo bem, o Aquileu não estava
de serviço, nem perto de sua jurisdição, ao contrário, mais de
seiscentos quilômetros o separavam da pacata Santa Gertrudes.
Ademais, que mal havia sair da rotina e distrair um pouco as ideias?
Filho de Deus gozava direitos iguais como todo ser humano mortal.
Passou a mão nas tralhas. Tirou da garagem uma BMW preta,
adquirida recentemente. Ainda sem placas, os plásticos nos
bancos. Ganhou mundo.
Na roda de amigos e garotas, a algazarra corria às mil
maravilhas. Depois de pescar num riozinho de águas límpidas e
beber todas, se embrenhou para caçar mato adentro, com alguns
dos muitos rapazes que haviam sido convidados. No decorrer da
161
farra, contudo, e no alvoroço que se seguiu, deixou cair, por
descuido, numa espécie de clareira, todos os documentos. Daí em
diante, nada restou nos bolsos que o identificasse. Pior, na história
toda, é que ninguém viu a carteira rolar, nem ele próprio se deu
conta. Aliás, estava como os demais, fora de si e bêbado feito
uma mula, mal conseguia parar em pé.
No domingo à noite, apesar dos companheiros insistirem para
que não voltasse sozinho (afinal, passara todo o dia misturando
cerveja, vinho e cachaça), Aquileu, teimoso, não deu ouvidos. Além
de precisar estar na delegacia na segunda-feira, às primeiras horas
da tarde, havia outros problemas a serem resolvidos antes de
encarar o batente. Tomou um demorado banho de cachoeira,
mandou para dentro um prato de arroz com feijão e carne de
porco. Em seguida, despediu-se da galera e encarou a longa
estrada de volta. Quilômetros à frente, uma blitz o fez interromper
a viagem. Tinha nego espalhado e armado até os dentes, por todos
os lados. Uma gangue vinda de Belo Horizonte saqueara um
supermercado e levara todo o dinheiro da féria. Coincidentemente
um dos carros envolvidos era uma BMW preta. A Civil e a
Rodoviária fecharam o cerco. Não passava nem agulha. O sujeito
que interceptou Aquileu chegou gritando:
- Pula fora, devagarzinho, não faça nenhum gesto suspeito
e mantenha as mãos onde eu possa vê-las.
- Sou da casa...
- Identificação?
Procura daqui, procura dali, nada. Somente nessa hora, Aquileu,
efetivamente foi se dar conta de que deixara, ou perdera, todos os
documentos. Não existia absolutamente nenhuma prova que fizesse
dele um cidadão honesto e decente. Menos ainda os documentos
de delegado. Ainda assim, procura daqui, mexe dali, vira de um
lado, futuca de outro, qual o quê. Nem os do carro, no portaluvas para salvar a pátria.
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
- O bafômetro. Tragam o bafômetro.
- Meu amigo sou delegado de polícia.
- Identificação?
Fizeram uma vistoria minuciosa. Arrancaram tudo de dentro
da BMW, inclusive uma pistola sete-meia-cinco, uma escopeta,
duas caixas de munição e cartuchos deflagrados. Diante de tantas
evidências, partiram para uma geral. Aí a cobra entrou em cena e
começou a fumar de verdade.
Aquileu era bom de briga. Lutava caratê, kung-fu e capoeira,
além de conhecer a fundo outros esportes violentos. Por ter
recusado a assoprar o bafômetro, e por não poder provar o
transporte das armas e das balas, levou um tapa no meio das ventas.
Furioso, não deixou por menos, revidou. Partiu para a desforra
devolvendo o tabefe. Um esquisitão que segurava um revolver
trinta e oito, perdeu a arma e dois dentes. Outro beijou o asfalto
com a testa esfolada. Um terceiro voou longe e caiu, de quatro,
dentro de uma valeta perto do acostamento. A confusão, de
repente, criou formas gigantescas. Cada um que tentava pegar a
unha o Aquileu, ou ajudar os companheiros, saía com a fuça
vermelha e os olhos inchados. Vendo que perdiam terreno, um
dos presentes solicitou reforço pelo rádio.
Pintou na área, reforçando o que já existia, meia dúzia de viaturas
vindas de todas as direções, sirenes ligadas, as luzes intermitentes
rodopiando numa confusão desenfreada. Um barulho infernal.
Acionaram, também, o comissário do lugarejo, um velhote metido
a valentão, que chegou, quase no mesmo instante. Todavia, Aquileu,
por mais brigão e arisco que fosse, ainda levando em consideração
os vapores do álcool acumulado, e mais, exausto de tanto dar e
receber cacetadas, acabou dominado, aliás, completamente
nocauteado.
Finalmente conseguiram colocar-lhe as algemas.
163
- Cadê o valentão?
- Ali, doutor.
O tal comissário, muito brabo, e abusando do seu poder, chutou
com força as costas de Aquileu.
- Então você é um delegado?
- Positivo. Sou seu colega. Meu nome...
- Identificação?
- Acredite, não posso provar agora, mas...
- Seus comparsas foram para onde? Que rumo tomaram?
E o produto do roubo, onde esconderam?
Cadê o restante das armas? Além de você, quantos mais
conseguiram fugir? Desembucha de uma vez que é melhor. Lá na
cadeia disponho de uns métodos interessantes para fazer o sujeito
soltar a voz. Tenho certeza que o meu amigo “delegado”, desculpe,
o doutorzinho, particularmente, vai adorar.
Com a prisão do suspeito desfizeram a barreira. Levaram
Aquileu, a BMW e as armas para a Delegacia. Na porta do prédio
onde funcionava a DP, uma multidão de curiosos aguardava a
chegada do comissário e do misterioso assaltante. Assim que se
viu em frente ao edifício, o comissário ordenou a um agente que
levasse o “delinquente” para os fundos da construção e desse uma
chuveirada fria no mais novo “Van Damme”do pedaço para lhe
acalmar os ânimos agitados. Em obediência, dois “canas” de nariz
roxo e cabelos em desalinho (devido às porradas recebidas) se
apresentaram para dar início ao tratamento vip que consistia,
primeiramente, na revista corporal, ou como é conhecida na gíria
dos malandros, a “arrancada das penas do frango”.
Depois o meliante seria levado ao tradicional banho do
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A outra perna do saci
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
descarrego, ou o jato de água fria, com mangueira de bombeiro,
que atirava a criatura longe. Por derradeiro, uma visita à sala
especial, onde “encapuzados” faziam qualquer brutamontes soltar
a língua e confessar que matou a mãe a pedradas e comeu a irmã
de sobremesa. Nessa ordem, começaram pela camisa. Em seguida,
o cinto, os sapatos, o relógio, celular, cordão de ouro, pulseira,
até que chegou a vez da calça. Aquileu voltou a ficar endiabrado e
a distribuir porradas, mesmo estando com os braços para trás,
presos ao bracelete. Todavia, seus esforços resultaram em vão.
Dominado uma vez mais pelos grandalhões com traços de
“Schwarzenegger”, finalmente, a jeans rolou pernas abaixo.
O espanto veio junto. A comoção pegou todos de surpresa.
Tomou forma em rostos de aparências rudes que nunca abriram
brechas para sorrisos. Olhares incrédulos, queixos caídos, gente
se benzendo. Um Ohhhhh! uníssono pipocou de um canto a outro.
“Meu Deus – disse um pastor – em que mundo estamos
vivendo?”. O comissário veio lá da recepção, onde dava entrevista à FM
91,9 Rádio Comunitária. Tudo girava em torno de política.
O prefeito, o padre, os vereadores, todos, sem distinção, se faziam
presentes no átrio da delegacia. Repórteres dos dois jornais diários,
ávidos por um “furo” jornalístico, inédito naquele condado,
obtiveram permissão para adentrarem no recinto e fotografarem o
absurdo. Um sensacionalismo bizarro e, ao mesmo tempo,
dramático. Certamente, aumentaria a venda dos periódicos por
muitas semanas. A gargalhada vinda dos fundos da construção
estrondeava pelos quatro cantos. Criava força, à medida que a
notícia ia se propagando, numa velocidade incrível, de boca em
boca, de casa em casa, de bar em bar, enfim, entre a multidão em
polvorosa. O parrudo delegado Aquileu, saradão, queimado de
sol, corpo atlético e de boa aparência, no lugar da cueca, usava
uma minúscula calcinha cor de rosa.
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CONTATO COM O AUTOR:
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sem autorização por escrito do autor.
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