caminhos de curaçá

Transcrição

caminhos de curaçá
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
CAMINHOS
DE CURAÇÁ
Esmeraldo Lopes
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
CAMINHOS DE CURAÇÁ
ESMERALDO LOPES
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
GRÁFICA FRANCISCANA
Petrolina
2000
Capa: José Alberto Lopes Goçalves
Projeto gráfico: Júlio Zinga Suzuki Lopes
Revisão: Marcelino Ribeiro e Elisabet Moreira.
Catalogação: Gerluce Guimarães Lustosa.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Lopes, Esmeraldo. 1954 Caminhos de Curaçá / Esmeraldo
Lopes. Curaçá: Gráfica Franciscana, 2000
...p. 260.
1. Curaçá - história I. Título
CDD 981.42
TODOS OS DIREIROS RESERVADOS – É proibida a reprodução total ou parcial de
qualquer forma ou por qualquer meio para fins comerciais ou uso público sem a autorização,
por escrito, do autor.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todas as pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram
para a realização desse trabalho, especialmente aos motoristas da Prefeitura
Municipal de Curaçá, Ba, Augusto Gonçalves da Silva, que me conduziu pelos
caminhos sem limite de hora e prestou informações preciosas, Jaime (Jailson
Conceição dos Santos), Edmilson Dantas; à prefeitura daquele Município, na
pessoa do prefeito Salvador Lopes; a Maita (Maria Rita do Amaral Assy) que
realizou críticas aos primeiros textos, o que permitiu o redirecionamento do
trabalho; a Babá (Omar Dias Torres), que leu e fez sugestões; a Júlio Zinga
Suzuki Lopes, que prestou assessoria eletrônica; à professora Ivete Aparecida
da Silva, que fez reparos gramaticais nos primeiros textos, a Marcelino Ribeiro
e à professora Elisabet Moreira, que efetuaram a revisão; a meu pai, Luizinho,
e à memória de minha mãe, Anita, que embalaram minha imaginação nos
contados dos contos às noites ao aberto do céu no terreiro; aos meus filhos
Amaranto e Bruno, por terem tolerado minhas ausências e me acompanhado
em parte da trajetória desse trabalho, e a todos aqueles que nos ofereceram
informações, citados nas notas do rodapé.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
DEDICATÓRIA
Esta obra é dedicada ao povo de Curaçá.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
SUMÁRIO
Dedicatória
.............................................................................................................
Agradecimentos ...................................................................................................
Apresentação ........................................................................................................
Prefácio..................................................................................................................
Sede
Curaçá .................................................................................................................
Distritos
Barro Vermelho .................................................................................................
Patamuté ...........................................................................................................
Poço de Fora .....................................................................................................
Riacho Seco ......................................................................................................
Povoados
Caminhos de Curaçá
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Pedra Branca ......................................................................................................
Mundo Novo .....................................................................................................
São Bento .....................................................................................................
Jatobá .....................................................................................................
Agrovilas .....................................................................................................
Outros escritos
As Eras ................................................................................................................
Índios ...................................................................................................................
Vaqueiros .............................................................................................................
Gruta de Patamuté ...............................................................................................
Vozes do Povo ....................................................................................................
São Gonçalo ........................................................................................................
Apêndice
Pambu ................................................................................................................
Mapas ...............................................................................................................
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Esmeraldo Lopes
APRESENTAÇÃO
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Esmeraldo Lopes
Como viver em um mundo, em um espaço cuja origem e contexto se
desconhece? Esse tipo de preocupação sempre perturba aqueles que buscam
conhecer suas origens, se situar no tempo, no espaço que ocupam. Mas ela se
acentua na medida em que mudanças e novas formas de ser e viver, vão
sepultando velhas práticas, costumes, histórias. E, de repente, toda a nossa
história passa a jazer nos cemitérios. Nos cemitérios silenciosos que também
vão sendo sepultados pelo tempo. E, quando um cemitério ou sepultura é
sepultado pelo tempo, toda história se resume a uma frase: “É coisa do outro
século. A gente não sabe”. E esse não saber nos distancia de nós. É o
nascimento de um mundo erguido sobre outro que, com o correr do tempo,
cada vez mais se desconhece.
Foi buscando esse desconhecido que procurei gravar em papel parte
daquilo que estava e está sendo sepultado cada vez que um caixão desce à
sepultura. Foi essa a preocupação que me conduziu a um esforço de conversar
com os mortos, de desenterrar sepulturas, ao rastrear escassos papéis, os passos
dos mortos através dos vivos que, de alguma forma, ainda os mantinham vivos
em suas memórias. Mas, também segui passos dos vivos, que falaram sobre os
tempos que já morreram, sobre os tempos em que vivem e sobre os tempos que
virão. A matéria-prima: os velhos. Eles que são os principais depositários de
nossa história.
Esse trabalho não foi iniciado por si mesmo. Preocupado com o vazio
que desune o passado do presente, elaborei uma proposta de criação de um
museu, o Museu Zoo-Parque de Curaçá, e a entreguei ao Prefeito. Este, ao lêla, queixou-se do fato de não possuir sequer registro fotográfico do distrito
sede, das sedes dos demais distritos e povoados. Ansioso por conhecer o
município, me propus a tal empreendimento e, logo na primeira viagem,
percebi que era muito pouco efetuar apenas registro fotográfico. Sugeri, então,
um trabalho mais amplo que compreendesse registro escrito sobre a memória
de cada distrito e povoado.
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Com a concordância do Prefeito, iniciei o trabalho, desenvolvendo-o
sempre nos finais de semana. Ponto zero: junho de 1998 e término em
novembro de 1999. Evidentemente um trabalho agoniado pela escassez de
tempo, uma vez que o desenvolvi nos finais de semana e nos meus raros
horários vagos do correr da semana. Além da dificuldade de tempo e de
algumas condições, nem sempre havia carro disponível - a área do município é
imensa, o que prejudicava a velocidade de seu andamento, e também a
dificuldade de obtenção de informações a respeito da origem de cada
localidade. Em alguns casos foi mais fácil, mas em outros muita coisa já está
bastante aprofundada nas distâncias do tempo, espatifadas pelo vento dos idos.
Evidentemente que muitos detalhes não foram colhidos e nem era minha
pretensão efetivar um trabalho definitivo, vez que este tipo de coisa não existe.
Como era de se esperar, muita coisa, a maioria até, continua nos subterrâneos
das memórias. Memórias que estão cada vez mais se debilitando e
desaparecendo. De qualquer sorte o objetivo foi atingido, o de se produzir um
material que viesse a possibilitar o conhecimento do município por parte de sua
população, o que, acreditamos, contribui para integrá-la; de estruturar um
acervo fotográfico; de proporcionar material para utilização em sala de aula; de
contribuir para que visitantes e população chegante possa mais facilmente
compreender a gente que aqui vive e viveu. Acredito também que, a partir
desse trabalho, outros virão de forma até mais consistentes porque produzidos
em cada localidade, por gente da localidade, com a vantagem de beneficiaremse dos furos deixados por esse. Se isso acontecer, um outro objetivo será
atingido: o de mostrar às pessoas e especialmente aos professores a
importância de escrever sobre nossa gente e nossa história, para que, no futuro,
os buracos, os vazios sejam menores. E é preciso urgência para que se colham
mais dados, mais informações, mais registros. No percurso desse trabalho, pelo
menos três informantes faleceram: o Sr. Piau, o Sr. Sindolfo e o Sr. João
Fininho.
Esmeraldo Lopes.
Curaçá, BA, 19 de novembro de 1999.
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"A memória é o segredo da história. É pela memória que se
puxam os fios da história. Ela envolve a lembrança e o
esquecimento, a obsessão e a amnésia, o sofrimento e o
deslumbramento. De repente, um gesto, fala, som, cor, ritmo ou
entonação desvendam o que estava escondido no passado, próximo
ou remoto. O que se havia encoberto de névoa e sombra,
fragmentado e disperso na paisagem pretérita, num instante explode
em toda a vivacidade, como se fosse um milagre da criação
artística.
Sim, a memória é o segredo da história, do modo pelo qual se
articulam o presente e o passado, o indivíduo e a coletividade. Aos
poucos, revelam-se os fios da história. O que parecia esquecido e
perdido logo se revela presente, vivo, indispensável. Na memória
escondem-se segredos e significados inócuos e indispensáveis,
prosaicos e memoráveis, aterradores e deslumbrantes.
Lembrar É Resistir: “este é um magnífico e alucinado
mergulho na memória e na história. Com um mínimo de elementos,
resgata praticamente o acontecido. O que estava perdido ou
proibido, encoberto pelo esquecimento, logo se revela vivo, tenso,
contundente. Diz respeito ao indivíduo e à coletividade, à biografia
e à história. Amarra o presente ao passado, pela audácia da
imaginação e pelo talento da criação. Revela a estrada percorrida;
alerta sobre a estrada que se percorre; prenuncia a lonjura da estrada
seguindo lá longe."
Octávio Ianni – In: Caros Amigos, nº 32, p. 10.
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SEDE
CURAÇÁ
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Região de refúgio de índios. Nessas terras eles se asilavam, fugindo das
perseguições dos portugueses. As terras não eram ricas mas eram o que
sobrava e, acreditavam, nelas poderiam viver para o sempre, em paz. O rio,
vasto em águas, farto em peixes, fazia nascer em suas margens um verde cheio
de plantas de muitos tipos. No meio dessas plantas, bichos do chão e bichos do
ar faziam a vida, no ritmo da natureza. No distante, as serras, despontando no
azul do verde visto ao longe, também abrigo de animais e de uma gente que o
português resolveu batizar com o nome de índio. Entre o rio e as serras, um
tapete cinzento nos tempos de seca: a caatinga. Caatinga fechada, lugar difícil
de ser penetrado1.
Dificuldades grandes, mas os portugueses tinham um sonho: o sonho do
enriquecimento. Primeiro penetraram a caatinga para aprisionar os índios e
transformá-los em escravos. Depois a percorreram procurando ouro. Não
deixaram escapar uma serra e assim se encaminharam para os montes que
avistavam, rasgando o mato, caminhando por dentro dos riachos. Belchior Dias
Moréia, caçador de minas de metais preciosos, o primeiro a se saber, rastejou
pelas terras das bandas das caatingas do sertão de corassá. Andou na Serra da
Borracha, registrou que nela havia salitre, e caminhou pelo Riacho Curaçá. Isso
no finalzinho do século XVI2. Muito depois, lá pelos anos de 1640, trouxeram
1
Nas caatingas as caminhadas eram penosas. A falta de água, o solo cheio de obstáculos, “as
veredas falsas e múltiplas são um verdadeiro perigo. A vegetação espinhenta, as trincheiras
quase intransponíveis (...) formam uma barreira que se sucede por dezenas de léguas,
desafiando aos mais robustos picadores de mato. Só o gado pôde primeiro trilhar a caatinga; e
naquelas regiões onde o europeu primeiro penetrou através dela, foi sem dúvida pela trilha do
índio, e guiado pelo índio. Ajunte-se a tudo isso, a falta d'água por dezenas de léguas, a aridez
do solo, a escassez das chuvas” (...) Teodoro Sampaio - In.: Caminhos Antigos e Povoamento
do Brasil – J. Capistrano de Abreu – p.5l, Itatiaia, SP. 1989. Em alguns casos, para que a
caatinga fosse rompida, utilizavam o expediente de atearem fogo nela e se protegiam até que o
trabalho ficasse pronto.
2
É corrente, nos escritos sobre Curaçá, que o jesuíta Luiz de Gran andou, em 1563, nas terras
do município. Apóiam-se, os que assim escrevem, no livro de João Matos, Descripção
Histórica e Geográfica do Município de Curaçá. João Matos, entretanto, não fez tal
insinuação. Ele simplesmente afirma que o jesuíta tentou efetuar os primeiros aldeamentos
indígenas nas bandas do sertão. O referido padre, pelos escritos conhecidos, limitou a sua ação
às proximidades do litoral, não se aprofundando muito no interior e, é remotíssima a
possibilidade dele ter alcançado as terras do sertão de corassá .
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o boi. E o boi foi invadindo o mato. Os vaqueiros fazendo currais, levando o
boi para mais longe, tomando conta de tudo, espantando o índio. Os índios se
enfezando e matando bois e vaqueiros. Teve briga. Briga longa3. Fazendas
foram nascendo, se multiplicando. E assim, indo e indo, até que todo o mato
ficou adonado pelos criadores de gado4. Os índios, só com os cantinhos de
terra, agoniados, sem jeito de vida.
Os padres, querendo a salvação das almas dos índios. O frei Martin de
Nantes e frei Anastácio d’Audierne5 acorreram à região. O frei Martin de
Nantes instalou uma missão em Pambu, para aldear os índios que viviam nas
ilhas e às margens do rio São Francisco. A missão pegou fama. Era o único
lugar onde havia padre, em toda a região do submédio São Francisco. Porque
não achava certo o que os fazendeiros faziam com os índios, o frei foi
duramente perseguido e depois mandado embora. Alguns anos mais tarde,
vieram os missionários franciscanos e Pambu ficou mais famoso6. Até santo
milagroso, lá apareceu. No resto desse mundão, só as caatingas e uns
lugarzinhos sem vida, sem jeito de ser, as fazendinhas de vaqueiros solitários.
Com o passar dos tempos, alguns fazendeiros foram se chegando, trazendo as
famílias, morando no mato. Eram os ricos, donos de muitos currais, das terras,
do gado, dos homens. Homens vaqueiros, homens agregados, homens escravos.
3
A esse propósito, ver o livro de Esmeraldo Lopes, Opara - Formação Histórica e Social do
Submédio São Francisco.
4
Por essa época as terras eram apropriadas sob a forma de sesmaria. Uma sesmaria, via de
regra, possuía uma légua de frente por três léguas de fundo (base das atuais fazendas que, nos
dias de hoje,possuem mais ou menos as mesmas dimensões, só que parceladas sob a forma de
sítios - cada fazenda compreende vários sítios em seus domínios). Essas sesmarias eram
obtidas da Casa da Torre (sede do morgadio da família D`Ávila, situada nas imediações de
Salvador-Ba, subsistindo suas ruínas, nos dias atuais, no bairro de Itapoã), que historicamente
havia se adonado de todas as terras abrangidas pelo atual município. Pobre não tinha a mínima
condição de se tornar proprietário de uma faixa territorial, por pequena que fosse.
5
Ambos chegaram ao Brasil em 1671, ano em que frei Nantes instalou a Missão de
Pambu.
6
Foi elevado a paróquia (1714), a distrito da Vila de Jacobina (1724), a julgado (1743),
a Vila (1832).
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As caatingas do sertão do corassá 7sendo habitadas mais e mais. Os
fazendeiros morando nas fazendas com suas famílias. Isolados, os moradores
viviam: vaqueiros, fazendeiros, escravos. Mundos fechados. Pouco contato
entre os habitantes da região. Pambu era o centro de tudo. Lá tinha padre e lá
tinha juiz. Assim por tempos e tempos. Curaçá não existia.
7
Essa expressão é conhecida desde que Belchior Dias Moréia passou pelas terras hoje
ocupadas pelo município de Curaçá. Querem alguns que a palavra curaçá signifique paus
trançados, querem outros que signifique cruz. Entretanto, não há significação exata para ela
hoje. Sabe-se apenas que é de origem indígena, podendo inclusive dizer respeito ao nome de
algum grupo indígena que habitasse a região à época. Quanto a sua relação com cruz, acho
bastante improvável, uma vez que os índios dessa região, na época em que ela foi visitada por
Belchior Dias, ainda não haviam sido objeto de catequese.
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O rio separando os lugares, fazendo barreira para o movimento do povo.
Num ponto do rio o povo vai se chegando nas travessias. Nasce um porto.
Lugar das pessoas atravessarem, lugar para onde os paquetes se dirigiam, lugar
onde as pessoas, vez por outra, se encontravam. Porto do Capim Grosso.
Terreno alto na beira do rio. Um padre8. Padre José Antônio de Carvalho
Mattos, chegou por ali, viu graça naquele chão, resolveu se abarrancar.
Comprou “uma casinha de taipa, coberta de palhas”, fundou residência9. Que
ventos o trouxeram? Um padre no porto. Não demorou e surgiu um sítio junto.
O Sítio do Senhor Bom Jesus da Boa Morte. A dona, Feliciana Maria de Santa
Theresa de Jesus10. Com o padre morando ali, a proprietária do sítio deu
providência, pediu ajuda a fazendeiros e mandou vir escravos para os trabalhos
na construção da capela. Capela do Senhor Bom Jesus da Boa Morte11. Bem
perto, construiu sua casa também12. Porto, padre e capela. Dois nomes para o
mesmo lugar: Porto do Capim Grosso, Sítio Bom Jesus.
8
Padre José Antônio de Carvalho Mattos, no ano de 1809. Esse, realmente peça fundamental
na formação da aglomeração - In: Matos, p.82.
9
Aqui subsiste uma dúvida. Segundo João Matos, o terreno onde se situou o porto pertencia a
Florêncio dos Santos, esposo de Feliciana Maria de Santa Theresa de Jesus, que lhe fora doado
pelo pai, capitão-mor João Francisco dos Santos. Isto em 1809. No entanto, é de conhecimento
que existe uma escritura pública de compra e venda, datada de 1842, através da qual Dona
Feliciana adquire, do Visconde da Torre, um terreno no mesmo local. Por outro lado, como
venderiam a casa ao padre em 1809 se ainda não eram proprietários do terreno? Sabe-se
também que, bem antes da data da escritura, Dona Feliciana era proprietária de um sítio na
mesma localidade e que, inclusive, chegou a ser uma das enfrentantes da construção da igreja.
Será que tinha o seu sogro e depois seu esposo se adonando da terra e só muito depois a
havido por compra?
10
Essa senhora era proprietária de fazenda na caatinga e interessou-se por estabelecer sítio e
construir uma casa próxima ao rio, após a chegada do padre.
11
Provavelmente fosse esse o santo de sua devoção. A construção da capela foi iniciada por
volta de 1819 e sua inauguração ocorreu em 1835, sendo nesta data celebrada a 1ª Missa (In:
Revista do Centenário do Município – 1953). Carrega em suas paredes gemidos de escravos.
In: Matos, p. 82. Originariamente, a capela só possuía a nave central e a parte que fica por
detrás do altar era bem baixinha. Informação do Sr. Ângelo Alves dos Santos.
12
A casa de D. Feliciana foi construída ao lado da Igreja. Segundo informações, em uma área
de uns 30x30 m. Possuía um mirante de onde, segundo a memória oral, ela acompanhava o
trabalho de construção da capela e também contemplava a paisagem oferecida pelo rio. Há
também uma história que diz que ela só bebia da água recolhida no meio do rio e, do mirante,
observava o trabalho dos escravos ao recolherem-na.
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Padre atraía gente. Padre, capela e porto, então! O povo se chegando
nas adorações das coisas de Deus, nas travessias do rio, nos aconselhamentos
do padre, levantando casinhas13. Lugarzinho acanhado, sem vida. A caatinga
precisava do rio. No rio tinha plantação: abóbora, batata. Tinha água, tinha
capim, refrigério para os animais. Um comerciozinho: as barcas passando,
levando as coisas do mato, trazendo coisas de longe; os beiradeiros, os
caatingueiros vindo se abastecer e o porto vivendo. Beiradeiros, caatingueiros:
encontro de mundos. Pambu lá, o mundo todo em um longe sem fim.
Os fazendeiros nas caatingas, com seus vaqueiros, com seus agregados,
com seus escravos, fazendo seus mundos, impondo suas normas, mantendo
seus impérios. Perdidos no mato, na beira do rio, alguns grupos de homens sem
nada, vivendo do mato, do que o rio dava.
Arraial do Capim Grosso, uma festa de gente se encontrando, sabendo
dos assuntos do mundo, vendo coisas que só aí se via: rio, barcos, paquetes,
gente diferente. Os caatingueiros gostavam, os beiradeiros se admiravam. Uma
casinha, mais outra casinha. O povo começou a chamar o lugar de povoação do
Curaçá14. Agora três nomes: Porto do Capim Grosso, Sítio do Bom Jesus,
Curaçá.15
Pambu, elevado a vila, ganhou área territorial, município enorme.
1832 . Não crescia, não podia ser porto. A vida morta, morta. Comunicações
16
13
É provável que as casas que construíam, com raríssimas exceções e por longo tempo, só se
prestassem para abrigos periódicos, por ocasião de algumas solenidades religiosas, tendo-se em
vista que a vida era eminentemente rural.
14
Por essa época, (década de 1840), o lugar era chamado também de povoação. No avançar do
tempo a expressão porto foi sendo abandonada, conforme evolução dos escritos históricos.
15
Pelo menos é o que nos cientificamos a partir da leitura da carta do frei Paulo Maria de
Genoveva, padre da freguesia do Pambu, escrita em 1846 e reproduzida no livro de João
Matos, p.35. Nesta mesma carta, o referido frei assinala que a capela era pobríssima, nada
possuindo, e nem reboco em suas partes externas. Por que Curaçá? Provavelmente o nome
esteja ligado à expressão “sertão de corassá”.
16
Pelo Decreto de 6 de julho de 1832, Pambu foi elevado à condição de vila, abrangendo a área
que ia do riacho Curaçá até Santo Antônio da Glória, próximo à cachoeira de Paulo Afonso.
Caatinga adentro, divisava-se com Geremoabo e Monte Santo. Nesta mesma oportunidade,
Pambu ganhou também uma escola pelo Decreto de 16 de junho – In: Mattos, p. 33 e 47. A
instalação do município só foi efetivada a 17 de maio de 1834 – In: IBGE, Sinopse
Estatística, 1948.
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difíceis, longe de tudo. Os políticos influentes morando fora, o povo ao Deus
dará, a igrejinha em ruínas. Demorou pouco tempo como sede de vila. Capim
Grosso também fraquinho, fraquinho, mas Pambu estava minguando, se
arruinando. 1853. Levaram a sede da vila para Capim Grosso. A sede da
freguesia foi junto17. Pronto: o fim. capela do Senhor Bom Jesus da Boa Morte
se elevou a matriz, a matriz de Pambu acabou sendo capela filial. A povoação
virou sede, a sede virou povoação. Os fazendeiros deram mais importância ao
lugar, foram construindo, formando o quadro das casas dos ricos, abandonando
o mato, se juntando na fidalguia da rua18. Os pobres se abrigando em casinhas
que faziam no derredor das casas dos ricos, de seca a verde aí, que não tinham
outro assento, vivendo como dava para ser: sendo serviçal, caçando, pegando
peixe, fazendo alguma plantaçãozinha nas terras dos outros, de favor. Assunto
de vida: mais gente se vendo. Nesse sem novidade, o tempo, se levando, se
levando.
O governo botou escola19. Os meninos vindo para a rua estudar. Uns
pouquinhos, só. Escola só para gente que podia. Os pobres no seu, vendo, sem
saber para que aquilo prestava. Por certo que tinha valor, à gente importante
importava... Os filhos dos fazendeiros estudavam, depois se iam embora,
17
A transferência da sede da vila e da freguesia para Capim Grosso se deu em decorrência da
Resolução de 6 de junho de 1853. A transferência da sede da vila não implicou na alteração da
área territorial do município. Qual terá sido o motivo dessa transferência se Capim Grosso
também era uma insignificância? Provavelmente o fato de, para aí, acorrerem alguns
fazendeiros de maior prestígio na área do município e também por estar situado em uma área
de maior possibilidade de comunicação. Essa é a hipótese mais provável. O engenheiro
Henrique Guilherme Fernando Hafeld, que percorreu todo o rio São Francisco, em missão de
estudo, registrou a existência de 59 casas e cerca de 300 habitantes no povoado de Capim
Grosso ou síto do Bom Jesus, no ano de 1853. De acordo com suas anotações, em Pambu,
nessa mesma ocasião, havia "cerca de 30 casas, que quasi todas em péssimo estado e a Vila
parece despovoada de seus habitantes, dos quais conta-se em mais ou menos 140 que vivem
aparentemente em pobreza e miséria". Nesta mesma época, Petrolina contava com 48 casas e
Juazeiro com 287 casas cobertas de telha e 1.328 habitantes - In: Atlas e Relatório do Rio São
Francisco - Levantado por Ordem do Governo de S.M.I. o Senhor Dom Pedro II, pag.
283. Rio de Janeiro, 1860.
18
O que concluímos a partir dos estudos efetuados a respeito da formação regional, os
fazendeiros só passaram a fixar residências na “rua” a partir de 1850.
19
A primeira escola foi criada em 1874, só para meninos, e a segunda, só para meninas, foi
criada em 1876 – In João Matos, p.84.
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estudar mais, virar doutor nas capitais. Por lá ficavam, o povo, de cá, ouvia o
zunzum do sucesso dos bichos20. Os pobres também se iam, na busca da sorte
do mundo21. Mato Grosso, terras de Goiás, levando a vida tangendo tropas,
conduzindo boiadas, empurrando barcas pelo rio, a andar nesse mundo sem
fim. Uns voltavam, outros sem rastro, sem notícia de nunca mais. No mais, não
tinha mais. De tempos em tempos uma notícia: Capim Grosso virou comarca22;
Capim Grosso agora muda de nome, o nome é Curaçá 23; Curaçá perde
comarca; Curaçá tem Intendente para governar24. E tudo a mesma coisa, o
20
Os jovens, filhos, dos fazendeiros, dirigiam-se às capitais para estudos mais adiantados e,
uma vez se formando, com raras exceções, nunca voltavam, a não ser para algum passeio
rápido de visita a familiares. O destino mais freqüente que tomavam era Salvador e Rio de
Janeiro, onde ocuparam cargos de destaque. Os poucos que voltavam à região se abrigavam em
Juazeiro. Em finais do século XIX, Curaçá configurou-se como um tipo de centro civilizador.
21
No relato que fez a respeito da viagem pelo S. Francisco, em 1879, o engenheiro Teodoro
Sampaio anotou, ao percorrer o trecho Boa Vista-Juazeiro: “Daqui pra cima, em ambas as
margens do Rio São Francisco não faltam moradores. A população é mesmo numerosa, bem
que pouco produtiva. Vive alheia às leis econômicas. Produz apenas o preciso para viver. Não
importa, porque não produz para trocar, nem troca ou permuta, porque não tem mercado onde
fazê-lo. (...) Nas estradas que margeiam o rio ou dele partem em direções diversas, as
habitações se sucedem a miúdo, formando pequenas povoações, lugarejos insignificantes, e
algumas vilas e cidades. Nas povoações ribeirinhas, o aspecto de pobreza e de atraso é
extremo. Vive-se aí sem se saber de que... – In: O Rio São Francisco e a Chapada
Diamantina - Teodoro Sampaio. P. 70. Nos relatos orais dos mais velhos, é interessante notar
como a gente viajava. Viagens a Mato Grosso, Goiás, sertão de Pernambuco, Salvador, rio de
cima, rio de baixo, Amazonas, etc.
22
De acordo com o ato de 3 de julho de 1890, o governador do estado eleva Capim Grosso à
categoria de comarca, desanexando-a da comarca de Juazeiro. Dois anos depois, entretanto, a
comarca é extinta e Curaçá volta a ser termo da comarca de Juazeiro In: IBGE – Sinopse
Estatística e João Matos, p.83.
23
Em 10 de julho de 1890, pelo Ato nº 59, a sede da vila e o município passam a denominar-se
Curaçá. O porquê da mudança, hoje, não se sabe – In: IBGE – Sinopse Estatística, 1948.
24
Logo no início do período republicano, em decorrência da lei orgânica dos municípios, criouse a figura do intendente que tinha a função de dirigir o poder executivo nos municípios (o
equivalente a prefeito) . Pela ordem, os intendentes e prefeitos de Curaçá, a partir do momento
em que o município se tornou autônomo, foram os seguintes: 1892 a 1895, Scipião Gonçalves
Torres; 1896 a 1899, Benedito Jácome Brandão; 1900 a 1901, Scipião Gonçalves Torres;1902
a 1903, Possídio Nascimento; 1904 a 1907, Jerônimo Coelho Aquino; 1908 a 1911,
Epaminondas dos Santos Torres; 1912 a 1915, Rui Gonçalves Torres; 1916 a 1917, Benevides
José do Nascimento; 1918 a 1919, José Gonçalves de Oliveira Costa; 1920 a 1923, José dos
Santos Torres; 1924 a 1927, Raul Chrispiniano Coelho; 1928 a 1930, Benevides José do
Nascimento; 1931, José dos Santos Torres; 1932 a 1933, Angelo José Gonzaga Filho; 1934,
Scipião Torres; 1935, José Jácome Brandão; 1936 a 1939, Aníbal Lustosa Cantareli; 1940 a
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
mundo parado.
Antônio Conselheiro deixando rastro nas terras de Curaçá. O povo
sabendo, se devotando. Aquele homem puro, cheio de santidade, em
peregrinação, acudindo as almas viventes, se sacrificando pela salvação do
mundo. Fez cemitério em Riacho Seco, fez igreja em Chorrochó25. A notícia
dele, de seus feitos, de seus ditos correndo pelo mato. As mulheres se
agarrando aos terços, os homens fazendo consideração: preparação para o
GRANDE DIA26.
O porto trazia vida, mais gente vindo comprar, vindo vender, vindo
vender e comprar. O povo vindo do longe de outros lugares da beira do rio, das
distâncias das caatingas. A feira na beira do porto, os feirantes se agasalhando
do sol debaixo dos pés de tamarineiro. Farinha27, rapadura, feijão, toucinho,
milho: coisas de comprar. Penas de ema, cordas, algodão, pele de criação:
coisas de vender. Os beiradeiros marcavam praça. Traziam suas coisas:
chapéus-de-palha, boca-pius, cestos, esteiras, abóboras, batatas, farinha, peixes.
E a Igreja? As festas do Bom Jesus, o dia do festejo a São Benedito, os marujos
dançando, o povo na devoção da fé. Aquele horror de gente acompanhando as
coisas da santidade, ouvindo o padre, pagando promessa, batizando os filhos,
se casando, dançando marujo. À noite, feixes de candeias acesos em tochas,
iluminando a festa. Uma alegria danada, tudo no claro28.
1942, Raul Chrispiniano Coelho; 1943 a 1945, Ten. Manoel Cordeiro de Matos (interventor);
1945 a 1946, Jayme da Silveira Coelho; 1946, Jovino Ribeiro; 1947 a 1950, Pompílio de
Possídio Coelho - In: Revista de Comemoração do Centenário de Curaçá, 1953. De 1951 a
1955, Jayme da Silveira Coelho; 1955 a 1959, Virgílio Ribeiro; 1959 a 1963, Gilberto da
Silveira Bahia; 1963 a 1967 José Félix Filho; 1967 a 1971, Pompílio Possídio Coelho; 1971 a
1973, José Félix Filho; 1973 a 1977, Theodomiro Mendes; 1977 a 1983, Aristóteles Loureiro;
1983 a 1988, Theodomiro Mendes; 1989 a 1992, Aristóteles Loureiro; 1993 a 1996, Gilberto
Bahia Filho; 1997... Salvador Lopes Gonsalves.
25
O cemitério de Riacho Seco foi terminado em 1887. A igreja de Chorrochó também foi
construída em torno de 1845.
26
Grande Dia: o dia da ressurreição de Cirsto, quando todos prestariam contas de seus atos.
27
Farinha era a base alimentar do povo de toda a região, mais importante que qualquer outro
alimento. Depois dela, a rapadura. Em verdade o comércio era feito mais à base de troca que de
venda, uma vez que o dinheiro era quase inexistente. Dona Cecília da Conceição Lopes
(*1913) lembra-se que, em tempo de mocinha, alcançou comerciantes vendendo fósforo por
palito, ou seja, de retalho.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Povo religioso. O padre achando a igreja pequena, apertada, com
altarzinho feio. Deu sinal de contrariedade de Deus, com sua casa tão assim. O
povo acudiu. Houve colaboração. A igrejinha só tinha a nave central. O padre
dirigiu os trabalhos. A reforma foi feita. Nasceu altar, construiu as laterais.
Igreja maior, folgada, altar bonito. Deus contente29.
Em 1912, uma festa de santificação. As Santas Missões. Os
missionários chegaram fazendo pregações, falando de alma, de céu, de inferno,
de pragas, de castigos, de pecado, da vida pura das virtudes divinas, da
necessidade da santidade e o povo se arrumou na rua para ouvir a palavra
sagrada daqueles homens de oração forte, na maior devoção. O povo ansioso
por ser purificado de suas faltas e os pregadores apressados nos trabalhos da
salvação. Casamentos, batizados, ninguém poderia ficar pagão, ninguém
poderia ficar na vida de amigação, que esses caminhos levavam o diabo a se
alegrar, a sacudir o rabo. Reza, reza, reza. No encerramento foi levantado um
Cruzeiro, fora da cidade, no lugar mais alto de perto30. E aquele lugar ganhou
santidade, virou ponto de adoração e de enterramento de anjinhos31.
28
Esta informação, da iluminação com feixes de candeia, nos foi dada pelo Sr. Ângelo Alves
dos Santos – 1923 -, que a ouviu da boca de D. Carlota (Maria Carlota de Possídio Coelho).
29
Esta reforma foi realizada em torno do ano de 1891, sendo o vigário o Monsenhor Elpídio
Tapiranga. No final da década de 1940 foi realizada uma segunda reforma, que consistiu no
alteamento do fundo da igreja - que era bem baixinho - e - arquitetada pelo engenheiro Dirceu
de Possídio Coêlho. Só havia o altar-mor, onde todas as imagens de santos eram concentradas.
A igreja não tinha mobiliário. Cada fiel levava suas cadeiras. Cadeiras para ajoelhar e cadeiras
para sentar. Quem não as levava, assistia a missa de pé. O padre José Luna, entre finais dos
anos 50 e início dos anos 60, fez campanha e conseguiu mobiliar a igreja com a contribuição
do povo - In: Revista do Centenário do Município, 1953, e depoimentos de idosos.
30
Trata-se do cruzeiro existente na roça do Sr. Juraci Gonçalves, contígua a Curaçá.
31
Segundo a crença da época, não era de bom grado enterrar crianças em cemitérios, uma vez
que elas eram inocentes e não tinham pecados. Por isso, as crianças que morriam eram
chamadas de anjos e o enterro não era carregado de sentimentos. Eu mesmo cheguei a
presenciar um enterro de anjo onde as pessoas que faziam o acompanhamento cantavam e
algumas crianças que acompanhavam o cortejo o faziam vestidas com roupas brancas.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Marujada, festa de escravos, homenagem a São Benedito32. Coisa que
vem de muito tempo. Nesse dia, escravos “livres”, com o “direito” de suas
coisas, se paramentavam, viravam “senhores”, no conforme do consentimento
de seus donos, que ficavam assuntando, com atenção, cuidando para não haver
desrespeito. Cantavam, dançavam, bebiam, homenageavam o Santo, dando
homenagem aos Senhores. O outro dia?
“Ô Sinhô Rei
Lá no seu reinado
Ô Sinhô Rei
Lá no seu reinado
Hoje na Igreja
Amanhã no machado
Ó Sinhá Rainha
Rabo de tainha
Ó Sinhá Rainha
Rabo de tainha
Hoje na Igreja
Amanhã na cozinha” 33.
32
“O mistério, ô mistério
Ô da Virgem Mãe de Deus
E que vamo-nos embora
Que eu não sou escravo seu”.
................
“Rei, Rainha
Seu Tenente e Generá
Rei, Rainha
Seu Tenente e Generá
Quero que me dê licença
Rei de Congo vadiá”.
São Benedito nasceu por volta de 1526, em São Filadelfo, na Silícia (Itália). Era negro,
filho de escravos e analfabeto. Foi alforriado ainda bem jovem. Trabalhou como pastor de
rebanhos e desde jovem ajudava os pobres. Aos 21 anos tornou-se eremita. A convite,
ingressou em uma ordem religiosa onde exerceu o ofício de cozinheiro e em 1578 foi nomeado
guardião do convento no qual vivia. Morreu no dia 4 de abril de 1589 – In: Os Santos de Cada
Dia, J. Alves, Edições Paulina, SP, 1990, 4ª Edição. Segundo o pesquisador Joaquim Maria
Botelho, um dos fatores que chamou a atenção dos religiosos, com relação a São Benedito, foi
sua capacidade de resignação, tendo em vista que era muito humilhado por ser negro e também
o seu espírito conformista e a benevolência. Segundo ele, o aparecimento desse santo pode ter
sido uma invenção de Roma para apaziguar os escravos negros do Brasil. As datas
comemorativas oficiais são 4 de abril ou 5 de outubro, sendo que, no Brasil, as comemorações
são realizadas sem a observância a essas datas - In: Anuário do Festival Nacional do Folclore
da Cidade de Olímpia – SP, 1996.
33
Esta festa sempre foi controlada e dirigida pelos mesmos que faziam o domínio sobre os
escravos. Não temos certeza se na origem da festa era assim mas, no passar dos tempos, a elite
tomou para si o direito de escolher entre seus membros aqueles que fariam o papel de rei e de
rainha.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Escravos, Senhores. Uma história com dor. Tinham de fazer de um tudo
por tudo e em tudo dar agrado. Carregar pedra para construir barragem, fazer
casas, capelas, tanques, cercas, carregar água... e chamar o dono de meu
Senhor. Fazenda Boa Esperança. Um escravo fez revolta. Não chamou seu
dono de Senhor. O senhor o mandou amarrar em uma baraúna. O chicote
comendo e ele lá, resmungando, xingando. O senhor se revoltando com o
desaforo: “Me chama de meu Senhor, negro!”. O negro: “Num chamo”. Os
outros escravos assistindo aquilo. O senhor, espumando, ordenou capação. O
negro gemendo e xingando, xingando, não se dobrou: foi capado34. 1888: fim
da escravidão. Os escravos libertos fizeram festa. A festa foi no Tijuco, em
frente a Santa Maria da Boa Vista. Estava lá a animação, os batuques, aquela
alegria. Um senhor mandou ordem: “Diga a fulano, meu negro, que venha
aqui”. O negro ouviu o recado. Fez despacho: “Diga a ele que a distância de lá
pra cá é a mesma daqui pra lá”35.
Os fazendeiros abandonando as caatingas. Saindo da solidão das
fazendas, entrando na solidão da rua. Fazendo moradas na rua, botando as
datas da construção nas fachadas. A rua do quadro crescendo. As mulheres, em
casa, sem motivo de saída. Os homens se fazendo respeito à distância, nas
cerimônias do sem muito aprochego, sem permissão de uma prosa de gracejo.
Evitando o contato dos filhos com o povo, que mistura arruína, traz
degeneração. As moças sem licença de visitas de ninguém. Assim na
purificação da nobreza, dos costumes, da raça36. Solidão. Quebravam a solidão
34
Esta história nos foi contada na Fazenda Boa Esperança, próxima à serra da Borracha, pela
Senhora Maria Antera e confirmada pelo Sr. Didi (João Pedro Cunha - *1917), descendente
direto do autor da façanha. Segundo ela, o nome do senhor era Paulo da Cunha.
35
Esta informação nos foi prestada pelo Sr. Ângelo Alves dos Santos, que ouviu do pai e de
outros mais velhos.
36
Uma mulher da elite, que viveu sua infância na década de 1940, informou que foi
repreendida com certo rigor, por parentes, pelo fato de ter sido flagrada circulando na rua do
quadro, no mesmo espaço habitado por seus pares. Que não era permitido, aos membros da
elite, nem mesmo a uma criança ser levada ao rio para tomar banho, embora suas casas fossem
todas próximas do S. Francisco. Ela contou que um dos membros da elite chegou a construir
um jardim interno como forma de evitar que seus filhos tivessem contato com o povo. Segundo
ela, mesmo entre vizinhos, as visitas tinham que ser comunicadas com certa antecedência para
que fossem providenciadas as formalidades de praxe, tanto da parte do visitante como da parte
do visitado. Isso incluía comidas, maneiras e vestimentas. Segundo ela, as visitas eram uma
troca de cortesia para haver entrosamento entre os membros da sociedade. Disse também que
era de hábito as famílias disporem de cartões de apresentação para serem enviados àqueles que
Caminhos de Curaçá
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fazendo festas, “de tempos em tempos, quando um cego perdia um vintém”. A
orquestra “A Furiosa” animava nos seus toques, no salão da prefeitura, que era
lá que as festas aconteciam. O povo ia olhar. Ficava na janela, pegando sereno
que o salão era de gente fina. Um teatro, uma escola de artes dramáticas:
grande idéia37. Preparação dos dramas. Os ensaios, a apresentação. A elite se
encontrava, se via, se aplaudia, se elogiava. O povo podia espiar, e tinha
orgulho de ver, de fazer correr a notícia do tido. O Sr. Raul Coelho dava
ordenamento aos dramas, escolhia as peças, dirigia os ensaios, organizava o
que era para ser organizado, fazia a animação. Uma filarmônica e outra
filarmônica38. O toque no teatro, na rua. Os músicos entusiasmados, satisfeitos.
O povo apreciando no atrás, que na frente tinha a elite com suas cadeiras.
Os pobres na rua39, nas roças, nos sítios, no rio, nas cozinhas,
procurando jeito de vida. Atenciosos com os senhores, na prontidão do
atendimento das solicitações que eles fizessem. Coronel Napoleão40, sem pena
de pobre, fazia o respeito na base de cabroeira. Pegou as escrituras das terras
do povo da Barra Grande e se fez proprietário de tudo. Seus protegidos tinham
a coberta de sua defesa, sem conversa de razão. O povo tremia com o ouvir do
nome dele. Se ele achasse mal feito na obra de alguém, mandava chamar o
sujeito. O sujeito vinha acudir sua ordem na precisão da hora dita. Chegando, o
coronel ditava o castigo mandando executar. O castigo, no comum do costume
era bolo, com a palmatória cantando nas mãos do coitado. Fogoso, mandava
que os moradores das terras de suas bandas, lhe entregassem filhas e esposas
para prazeres sexuais41. O povo acanhadinho, amedrontado, não botava
visitassem a cidade e que fossem considerados ilustres.
37
O Teatro Raul Coelho foi fundado em 1895, segundo João Matos. A Escola de Artes
Dramáticas, ao que parece, foi fundada na mesma época.
38
Segundo contam os mais velhos, foram criadas duas filarmônicas, a XV de novembro e a
Minerva, esta última, de longa duração, sobreviveu até os anos de 1930.
39
Pelos idos da cidade, até os anos de 1940, grande parte das casas era de palha.
40
Coronel Napoleão Carlos Augusto de Moron (*1855 +1917) - como os demais mencionados
através de patentes, era coronel de patente comprada, ou como dizia o povo posteriormente
“oficial da guarda não sois nada” - proprietário da Fazenda Genipapo e do sítio Prazeres.
Dominava, submetendo os seus moradores, as terras que vão do sítio Santa Cruz (onde
construiu uma capela e foi enterrado) até a Barra Grande, subindo daí até a Fazenda Cajueiro.
41
Várias pessoas de idade avançada, e que ainda estão vivas hoje, dizem terem ouvido falar de
muitas histórias nesse sentido, sendo que algumas delas conheceram algumas das vítimas do
coronel. Há apenas o registro de um sujeito ( o Sr. José Preto) que, recebendo o recado para
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resistência. Só se conhece a história de um que fincou pé e o desafiou, se
entrincheirando e mandando dizer ao coronel que viesse ele mesmo buscar sua
esposa. O coronel se afrouxou, não foi. Uma mulher se perfumou, se enfeitou e
foi se oferecer a ele. Ele corrigiu o corpo dela com os olhos. Mandou seus
cabras a moerem de pancada por motivo de safadeza. O coronel arredava o que
tivesse pela frente. Os cachorros42 não se quedavam na obediência de ninguém.
Moravam em ajuntamento de magote, habitando em umas casinhas de palha,
para as bandas do Barra Grande. De noite samba, batuque; de dia sono, pegar a
criação dos outros para comer. O coronel Napoleão decidiu: tocou fogo nas
casas deles no sentido de escurraçá-los. Ia à rua e só andava por um caminho.
Um sujeito construiu uma casa tapando um beco por onde ele passava. No que
foi, viu o beco tapado. Voltou fungando. Deixou recado: “Diga a quem
construiu essa casa que volto semana que vem e quero passar aqui que é o meu
caminho”. O pobre do dono da construção fez obediência: derrubou a casa e
mandou pedir desculpas43. Os outros grandolas não faziam imitação. Ficavam
no quieto de suas reprovações, sem intromissão de palpites, e o povo se
tremendo sem valia. Botavam o respeito de outras maneiras, exigindo as
distâncias devidas do cada um no seu cada qual. O povo se salvando pela
humilhação do tudo suportar, tendo que calar, que obedecer, que se conformar.
Sonho de respeito, longe, em poucos, escondido.
A pobreza procurando a riqueza. Arranjar um pedacinho de terra para
plantar, licença para fazer um sitiozinho, morada de favor, agasalho para um
levar sua mulher ao coronel, mandou a resposta pelo mesmo mensageiro: “Diga a ele que
venha buscar” – e se entrincheirou esperando. O coronel não foi. Esse senhor era metido a
fogoso, a dispor de todas as mulheres que caíssem em sua graça, independente de idade ou
estado civil. Tinha vários filhos, sendo que só reconheceu uns três ou quatro. Informante: Dona
Olímpia do Nascimento Souza, *1911, moradora do Barra Grande; Luiz Lopes Filho; Nezinho
da Salobra (Manoel Lima dos Santos, *1924); Ascendino Duarte.
42
Cachorros era um povo que habitava nas proximidades do riacho Barra Grande e que,
provavelmente fosse originário de agrupamentos indígenas e negros. Por não se enquadrar nas
ordens e exigências dos senhores, foi colocado à margem. Esse nome, certamente pejorativo,
devido aos seus hábitos de vida. No correr do tempo, pouco a pouco, os remanescentes foram
sendo incorporados e se desfizeram como agrupamento. O fato mencionado ocorreu na década
de 1910.
43
Essa história nos foi contada pelo Sr. Antero Caçote, nascido no início do século XX.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
filho em troca de sua serventia pela gratidão do senhor . Apadrinhar filho com
alguém rico, maneira de compromisso de proteção44.
No rio as barcas. Barcas pesadas vencendo as corredeiras, os remansos.
Os remeiros gemendo nas varas, nas cordas, assoviando, pedindo a clemência
do vento45. Transportavam mercadorias e gente. Curaçá-Juazeiro: cinco dias.
Os beiradeiros as viam passar, olhavam as novidades que iam nelas, ofereciam
o que tinham para vender, comprovam o que podiam comprar, e lá se iam elas,
sumindo devagarinho, desaparecendo na curva do rio. Os beiradeiros não
gostavam das barcas. Os remeiros, no puxado das cordas, no pisado dos pés,
quebravam cercas, destruíam as plantações. Os meninos se vingavam: botavam
espinhos no caminho que eles pisavam. Quando os avistavam, se escondiam
para ouvir o “HUMMM!” do homem que suspirava a dor do espinho no pé,
sem poder parar46. Palavrões, esturros e os meninos escondidos, sorrindo.
44
As pessoas sem condições costumavam oferecer seus filhos àqueles de posse para que estes
os “criassem”. As mulheres eram utilizadas para os trabalhos domésticos e os homens nos
trabalhos de roça e de campo. Não havia nenhum tipo de remuneração pelo trabalho deles. Ao
contrário. Tanto os pais como os “criados” sentiam-se eternamente gratos pela bondade do
senhor. Em alguns casos, os senhores (que não eram senhores, mas apenas pessoas com alguma
condição), na fase adulta dos meninos, davam-lhes alguma vantagem como a licença para
estabelecer morada em suas terras, licença para criarem enjeitados, alguma coisinha assim.
Dessa forma até o final da década de 1950. Após a ampliação das vagas escolares, iniciada no
final da década de 1950, era interesse dos pais pobres que os guardiões de seus filhos
propiciassem algum estudo e, no caso das mulheres, além de algum estudo, o aprendizado de
alguma habilidade como costura ou outra arte qualquer. Também carapinas, ferreiros, etc.,
costumavam receber adolescentes que trabalhariam gratuitamente na condição de aprendizes.
45
As barcas eram impulsionadas pela força humana dos remeiros. Quando era possível, estes
caminhavam pelas margens puxando as barcas por cordas que trançavam no peito. Quando não
era possível, valiam-se de enormes varas que, apoiadas nos peitos, eram metidas na água até
que alcançassem o fundo do rio e, pendendo o corpo sobre elas, caminhavam pelas coxias,
fazendo a barca andar. De vez em quando, quando o vento batia, soltavam as velas e tinham
uma fugazinha.
46
Se em uma dessas o remeiro parasse, a barca perdia a carreira e o sofrimento seria ainda
maior ou, em certas circunstâncias, ela poderia voltar, empurrada pela correnteza, o que
implicava em uma grande perda de serviço. Por isso, seu único recurso era aguentar a dor e
xingar. Os meninos faziam isso porque, quando as cercas eram quebradas, os animais invadiam
as plantações e era função deles vigiar. Note-se que, por essa época, a plantação era toda feita
no molhado do rio, exatamente por onde o remeiro fazia caminho. Informações, entre outros,
dos Srs. Bráulio Braulino da Conceição, Donizete Nunes Francos e Ângelo Alves dos Santos.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
A rua era pequenininha. No dia de feira se enchia de gente. A feira na
beira do rio47. O rio cheio de paquetes, carregados com capim, produtos de
palha, abóboras, batatas, peixes, farinha, beiju... Muitos e muitos animais de
carga, de montaria dos caatingueiros, dos tropeiros à procura de mantimento,
de mercadorias. Os tropeiros vinham do longe dos distritos e de outras cidades.
Alguns chegavam trazendo suas mercadorias das lonjuras da serra do Araripe48,
que era lá onde mais se produzia. No rio ficavam as barcas grandes que
ligavam o “rio de baixo” com o “rio de cima” e que traziam e levavam
mercadorias49. Também transportavam gente para Juazeiro. Um movimento de
dar agonia. Depois que ela findava, o silêncio da rua se misturava com o escuro
da noite e só o de todo dia acontecia.
Um curaçaense tinha barca. Fazia linha para Juazeiro. Era Seu Lino
Paqueteiro. Ele encostava a barca no porto de Juazeiro e ficava por ali,
comendo pão, sentado sobre sacos de farinha. Quando alguém lhe perguntava:
“Seu Lino, que hora vai?” - ele respondia: “Só quem sabe é aquele ali” e
apontava para o céu50.
A rua não podia crescer. Estava amaldiçoada por praga de padre. Um
padre que fora esfaqueado caíra sobre uma pedra deixando manchas de sangue
nela. Antes de morrer ele decretou espraguejamento: “Esta cidade vai crescer
que nem rabo de égua. Só ficará livre no dia em que meu sangue nessa pedra
for lavada pelo rio”51. Maldição. Por isso a cidade não ia, mas se tentava
47
A feira era realizada nas proximidades do rio, mais ou menos ali perto de onde hoje é a
SCAB - Sociedade Curaçarense Artística Beneficente). Ali construíram um barracão onde os
feirantes agasalhavam suas mercadorias. Havia também uns pés de tamarineiros que serviam
de abrigo.
48
Araripina, Serra Branca, Bodocó, Barbalha, Juazeiro do Norte, em distância que chegavam a
300 km. Mercadorias: feijão, milho, farinha-de-mandioca, toucinho e carne de porco. A
rapadura que era consumida em Curaçá, quando não vinha dos engenhos locais, que tinham
pequena capacidade de produção, provinha do “rio de cima” (Alto São Francisco). As tropas
iam de 5 a 20 animais para transporte em surrões e caixões. Informação, entre outros, do Sr.
Donizete Nunes Franco, *1912.
49
As mercadorias que essas barcas transportavam: de subida: sal, carro-de-boi, penas, algodão,
seda-de-algodão(bofó), peles. De descida: rapadura, querosene, tecidos, quinquilharias.
Informações fornecidas pelo Sr. Donizete Nunes Franco.
50
José Acendino Duarte (Zezé), *1910.
51
Esta é uma história que até pouco tempo era muito dita. Entretanto, ninguém sabe afirmar ao
certo se tal fato aconteceu e nem se conhece o nome e a data dele. O certo é que até pouco
Caminhos de Curaçá
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alguma coisa, com muita dificuldade. Resolveram botar iluminação. Era
iluminação de lampião. Aquela luzinha fraca, com a lavareda tremendo no
vento, soltando fumaça até nove horas da noite, todo dia. Um aqui, outro ali,
sinalizando os pontos, que não clareavam quase nada. Uns oito, só, mas era
progresso52. Progresso mesmo era o vapor chegando. Os marinheiros saudando
o povo com os chapéus e depois o espetáculo de um deles que pulava na vara
para fazer o atracamento do navio. A beira do rio cheia de gente, que todo o
povo ia assistir, ver, curiar, que não era coisa de acontecimento do normal53. Os
que desembarcavam se orgulhavam. Eram motivo de inveja daquela multidão
que estufava os olhos, atenta a tudo.
Campo Santo. Enterrar os mortos só nele para proteger as suas almas,
que enterro fora de cemitério dá pasto ao Cão, na atentação das almas dos
finados. Os que morriam longe eram trazidos nos esquifes até o cemitério. Os
defuntos eram embrulhados em esteiras ou enrolados em redes e depois com
uma armação de varas grossas fazia-se a arrumação para o transporte, que
caixão era coisa de fineza. Os familiares dos finados ficavam lá nos seus
lugares, lamentando, pondo imaginação do trajeto na cabeça. Era dever de
obrigação dos vizinhos, dos conhecidos, fazerem o carregamento dos que
morriam. A população de Curaçá acompanhava, queria saber, perguntava e os
homens carregando o esquife, sérios, meio chorosos, rumavam silenciosamente
até o Campo Santo para o enterro. No quieto de palavras, abriam a cova,
enterravam o finado. Acabou-se. Jogavam as armações de pau na porta do
cemitério, respondiam às perguntas com tristeza e se iam54. Os paus na porta do
cemitério, com o ir dos homens, o povo os apanhava para fazer lenha.
tempo havia uma pedra, em frente à casa do Sr. Joatan Nunes Franco, que possuía umas
manchas com coloração avermelhada e que o povo dizia ser o sangue do padre. Um prefeito, ao
fazer o calçamento da rua onde ela ficava, a mandou arrancar e dar sumiço.
52
A iluminação por lampiões foi utilizada nas eras dos anos 20 e 30, mais ou menos. Havia um
funcionário encarregado de acender e apagar os lampiões e estes ficavam acesos do escurecer
até às nove horas da noite. Ficava um de cada lado da igreja, outro na casa do Sr. Inácio
Pereira, na esquina da prefeitura, na rua do Luar do Sertão havia dois e dois na rua de baixo.
53
Somente em certas épocas do ano, quando as águas do rio estavam altas, o vapor descia até
após Curaçá.
54
Informações do Sr. Luiz Lopes Filho, *1919, e de Dna. Cecília da Conceição Lopes, *1913.
Caminhos de Curaçá
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Coisa de doido, sem lua de gente ajuizada. Os grandes falando em
comemoração de festejo. O telégrafo, correio55. Como pode? Recado andando
pendurado em fio? E os fios estirados, amarrados nos postes. Zummmmm,
direto. Negócio de governo. Os funcionários vigiando os fios, os postes e o
povo na incutição de mandar telegrama. Um homem foi tirar a prova. Mandou
um telegrama e correu para a linha, na espera do papel, com um gancho bem
enganchado no fio. Provou. Os estafetas carregando as malas em lombo de
burro, a pé. Lampião não gostava de correio, de telégrafo. Saía cortando os
postes, os fios, dando carreira nos estafetas. Os estafetas andando pelas
estradas, assombrados, na atenção dos cuidados.
Os fazendeiros velhos morrendo. Os filhos herdando, dividindo as
terras, as fazendas, indo embora. As fazendas nos cuidados dos vaqueiros o
tempo todo. Os rebanhos repartidos, diminuídos por venda, por morte. Os
vaqueiros sozinhos fazendo o trabalho às próprias custas, se pagando com os
bichos. Os donos perdendo o interesse, caindo em pobreza. Deram a vender as
terras. Os vaqueiros comprando pedaços de chão, montando sítios, virando
fazendeiros, que a semente de bicho adquiriam por partilha. Os moradores de
favor se fincando no costume do direito de morada nas terras que ocupavam,
ficando por ali. O número de donos aumentando56.
Houve uma praga de febre. Ela matava o povo na maior ligeireza. Nas
bandas da Barra Grande um sujeito pegou uma febre e capotou. Depois de
algum choro, os vizinhos se juntaram. Tomaram as providências do enterro
para logo, antes que a febre se alastrasse. Determinaram que dois rapazes
deveriam transportar o finado de canoa para sepultamento no cemitério da
Santa Cruz57. Os rapazes não se negaram. Colocaram o morto na canoa,
seguiram viagem. A uma certa altura da andança, já sem medo da carga, numa
curva do rio, viram o morto se levantar e perguntar: “Pra onde estão me
levando?”. Agoniaram-se, pularam da canoa e o “morto” gritando: “Esperem
por mim!”. Corrida sem parada até chegarem na casa do “finado”. Os
55
Segundo o Sr. Doniezete Nunes Franco, o correio e o telégrafo foram instalados em Curaçá
na década de 1910, por iniciativa do Sr. Gerônimo Coelho, então chefe político da cidade.
56
A decadência econômica da pecuária, a partilha de terra por herança e também o
parcelamento das terras por venda propiciou o surgimento de um tipo de reforma agrária
natural que se estendeu até a década de 1950.
57
15 km de distância, aproximadamente.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
familiares dele se lamentavam em lágrimas. Quando estes viram os rapazes
perguntaram espantados: “Já enterraram?”. Os rapazes responderam: “O morto
vem ai, vem aí atrás”. O povo se esbandalhou pelo meio do mato,
assombrado58.
Eras de 1940. Outra febre apareceu, matando gente59. O governo
mandou seu funcionários tirar um pedaço do fígado de cada pessoa que
morresse e que tivesse febre para enviar para exame. Uma confusão. Os
familiares dos mortos não deixavam. “Coisa do diabo!” Gente presa por causa
disso. Funcionário escorraçado, se agoniando em funeral, em beira de cova de
defunto.
Na rua, só ruinha, o mato era logo aí. O alto cheiroso 60 na beira da rua.
O povo indo lá fazer cocô, jogar entulho. Construíram a Engolideira nesse
lugar. Engolideira era a prisão, era cadeia. Ela engolia os homens que entravam
lá. Os presos aí, agoniados pelos soldados. Os soldados olhando, se enfezando,
criando raiva. Os presos só olhando, sem poder nada, adivinhando. Os soldados
se riam. Apostavam: “Vamos ver quem faz o cabra gritar mais?”. A palmatória
cantando. Os presos sofrendo. Os soldados cansando. “Quem entrava ali, não
saía homem direito, se saísse vivo61”. O vencedor feliz, os outros aumentando a
admiração, o respeito. Os presos não podendo se amolecer. Aguentando,
garantir o respeito de ser homem, da honra da família botada neles. Ficavam
amuados, enfezados. Apanhar de soldado não fazia lá essas vergonhas. Era
coisa do ofício. O povo botava fé em soldado. Soldado se orgulhava. Homem
sem medo, sem direito a amofinamento, garantindo o cumprimento da lei do
certo. Podia fazer tudo. Tinha muito cabra brabo nesses meios de mato. Os
mais valentes, de Chorrochó. Os soldados procurando criminoso a pé. Viajona
danada. Quando iam atrás de um tinham que prender, evitar outro sofrimento.
O sem assunto de novidade. Uma pessoa, outra pessoa caminhando
devagar pela rua. O sol esquentando, os meninos brincando. Com pouco, a
58
Estas informações são do Sr. Luiz Lopes Filho (Luizinho, *1919), e o caso é verídico.
Segundo o Sr. Milton Araújo, tratava-se do tifo.
60
Chamava-se alto cheiroso o arredor, porque, não dispondo de privadas em casa, era nos
arredores da rua que o povo satisfazia suas necessidades fisiológicas e ficava aquele cheirinho
encardido no ar.
61
Frase do Sr. Espedito Bin.
59
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
novidade: Arqueleu está chegando. Os soldados arredaram, estabanados, sem
destino de carreira. Cavalos fungando, barulhando com os cascos no chão, em
compasso de pressa. Homens montados, com armas nas mãos. Arqueleu na
frente. Seus cabras atrás. Eles indo, se indo no rumo da prisão. Foram e foram.
Cercaram a cadeia, arrombaram as portas, depois as grades de pau. Soltaram os
presos, criminosos de Chorrochó. Acenderam um fogo e o chefe mandou
apanhar todos os processos de dentro da delegacia. Arqueleu pegando de um
por um, gritando : “Esse é o processo de fulano”... Rasgando-o e lançando-o ao
fogo. Cadê os processos dos homens? Arqueleu deixou recado pro chefe de
Curaçá: “Diga a ele que mande os processos pra Chorrochó”62.
Correram notícias: “os revoltosos vão atacar Curaçá”. Soldado se
tremeu: “eles não dão moleza”. Chegou reforço de tropa. Homens e homens do
governo fazendo barreira contra a Coluna Prestes63. Prestes não veio. As forças
do governo se aliviaram. Cochilo pequeno. Em 1930 outra revolta64. Os
revolucionários tomaram a cidade, de susto. Eles vinham que vinham, tomando
cidade por cidade na direção do Rio de Janeiro. O povo não sabia, não entendia
o que era. Os soldados do governo não esperaram.65 Quando tiveram a notícia
correram sem rumo, caatinga adentro, amedrontados. Um dos chefes políticos
da cidade, homem do governo, fugiu. Foi se esconder na roça Santa Cruz.
Agoniado, se amoitou por dias, em um mufumbo de calumbi. Os
revolucionários cercaram a cidade: ninguém entrava, ninguém saía.
Acamparam. Casas fechadas foram ocupadas. O povo fazia acolhimento em
suas casas, sem entendimento de razão política. Eles não davam amolecimento
a inimigo. Queriam saber cada coisa de cada um. Iam ao mato, matavam gado,
62
Fato ocorrido na década de 1910, pelos idos de 1914/15. Arqueleu era um dos chefes de
Chorrochó e, segundo informações, se fazia acompanhar por doze homens em armas. Em
Curaçá só havia dois soldados. Informação do Sr. Doniezete Nunes Franco.
63
Este fato aconteceu em 1926. Com a Coluna Prestes palmilhando os sertões nordestinos, o
governo espalhou suas tropas pelas cidades que poderiam estar na rota da Coluna Prestes. Esta
era formada fundamentalmente por militares, tendo também civis, cujo objetivo era lutar por
uma nova ordem no país; tinha como chefe principal o oficial do exército Luis Carlos Prestes,
que posteriormente tornou-se um grande nome do cenário político nacional, firmando-se como
o maior líder comunista do país.
64
Revolução de 1930, comandada por Getúlio Vargas e que acabou por depor o governo
estabelecido.
65
Tenente Galdino e o sargento Pedro Álvares. Eles foram avisados pelo funcionário do
telégrafo.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
criação. Penduravam as carnes para secar na rua mesmo. Era homem que dava
agonia, todos com lenços vermelhos. A frente da igreja serviu de ponto de
arrumação das tropas. O povo, querendo simpatia, arranjava um jeito de
arranjar pano vermelho também. A tropa queria alegria. Os oficiais faziam
festas para ela. Mandavam convidar o povo, com intenção nas moças da
cidade. Quem não ia? Os pais não queriam, mas não faziam pé contra, que o
negócio não era de brincadeira.
Petrolina também tinha sido tomada pelos revolucionários. Juazeiro
resistia. Os revolucionários queriam Juazeiro de qualquer jeito. Ameaçaram
fazer bombardeio. Os chefes políticos da cidade, aliados ao governo, se
retiraram da cidade, amedrontados. Os revolucionários astuciaram plano: tomar
Juazeiro por terra, saindo de Curaçá. As tropas do governo souberam.
Rumaram para atacar Curaçá. O Coronel Franklin, de Pilão Arcado, coronel de
patente comprada, rumou com seus jagunços, junto com os soldados do
governo. Vinham folgados pela estrada. Queriam ataque de surpresa. Os
revolucionários souberam da história. Cavaram trincheiras na fazenda Acari.
Pegaram a simpatia de Dona. Rola Dantas66, mulher valente e malvada, dona da
fazenda. Quando as tropas do governo chegaram foram pegas de surpresa. O
fogo comeu. De Curaçá se ouviam os estrondos. Morreu gente, morreu gente.
As forças do governo se arrebentaram. Os revolucionários seguiram, levando
simpatias, paixões67.
E Lampião! Desassossego! Ele pegou a pisar pela região. O povo ia
espalhando a fama, as coisas. Era gente correndo, dormindo no mato,
abandonando as fazendas. Não havia paz. Mas, no começo, era mais
converseiro. Depois veio um caso. Aí arrepiou. Chorrochó, distrito de Curaçá.
Os mesmos soldados. Um sargento pegou seus homens, foi a Chorrochó fazer
66
Rola Dantas, uma das proprietárias da fazenda Acari, chefiava a família e exercia liderança
sobre os moradores das proximidades. Era respeitada por seus atos de truculência. A Fazenda
Acari fica a aproximadamente 25 km de Curaçá, já nas terras do município de Juazeiro.
67
Alguns dos oficiais, pelo menos três, se apaixonaram e casaram-se, posteriormente, com
moças de Curaçá. O povo não teve motivo para odiar as tropas revolucionárias, ao contrário,
fez amizade. Note que os revolucionários não desrespeitaram a população. Informantes: Seu
Jovem (Joviniano Moreira da Silva, *1901), Dona Nén (Liz Carvalho de Araruzo, *1913),
Dona ecília da Conceição Lopes, *1913), Sr. Antero Caçote – década de 1910), Zezé (José
Acendino Duarte, *1910).
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
prisão. Prender Antônio de Ingrácia. Ele não estava em casa. O sargento pegou
a mãe dele, botou chocalho, botou cambão, botou careta, fez montaria,
maltratação. Os Ingrácias não engoliram a desfeita. Já eram de arruaça. Aí
pegou. Juntaram-se com Lampião. Conheciam tudo, o lugar. O sargento,
homem do capitão Benevides. Lampião tocou fogo na fazenda68 do capitão,
matou o vaqueiro. Começou a perseguição, o piseiro nas terras de Curaçá.
Atrás de Lampião as Volantes. Lampião chegando nas fazendas, fazendo
exigência. O proprietário tinha que cumprir. Fazer bom recebimento de comida
farta e agasalho para seus homens. Lampião se ia. Com pouco chegavam os
homens das Volantes. Os combatentes contra Lampião. Faziam acusação de
acoitamento e o pau pegava. Os caatingueiros espremidos, sem saber como
fazer. Um sujeito arranjou uma saída: receber bem a Lampião e às Volantes:
“Sou amigo dos banditórios e dos macacórios”69. Lampião fazia coisas, as
Volantes iam no rastro do machucamento do povo, machucando mais. O povo
corria para a rua, abandonando o mato, deixando os bichos. Na rua, o
moradores fazendo trincheiras, na espera de Lampião. Aí vinha a história:
“Lampião tá perto”. A população se esbandalhava. Gente atravessava para
Pernambuco, gente caía no mato. Gente da elite fugiu para outras terras de
mais longe. No roda que roda, aconteceu. Lampião pegou um irmão do
sargento. Carregou esse irmão amarrado em um jumento, no jeito de carregar
porco em montaria, até longe. Pediu resgate. A família providenciou dinheiro.
Lampião recebeu e disse: “Por mim você tá livre”. Antônio de Ingrácia disse:
“Mas de mim não está não” – e o matou, em terras de abaixo de Riacho Seco.
Um espanto. Foi no ano de 1926. O povo só conhecia carro de boi e
tropa de animal, não conhecia carroça. Quando pensa que não, um carro70.
Atravessou o rio embarcado. Veio de Boa Vista no seguir viagem para
Juazeiro. Todo mundo em cima daquela novidade. Coisa de espanto. O
proprietário seguindo viagem. A maior dificuldade que a estrada não estava
terminada. Aqui, ali, chamamento de gente para tirar os embaraços71. Depois,
68
Fazenda Amizade. O Sr Benevides era capitão de patente comprada.
Essa é uma frase atribuída ao capitão Olímpio, morador nas imediações da Fazenda Juá.
Informação do Sr. Gió, proprietário da Fazenda Juá.
70
Carro do Sr. Flor Barros, de Boa Vista. Curaçá só veio a conhecer uma carroça no ano de
1959, introduzida pelo Sr. José do Fumo, este proveniente de Ouricuri, Pernambuco.
71
A estrada Curaçá-Juazeiro foi construída em 1926 pelo, na época intendente, Raul Coelho.
69
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
no mesmo ano, outro carro. Esse de gente de Curaçá72. As pessoas sonhando
com uma voltinha. Coisa impressionante, que não se entendia. Tinha gente que
mendigava uma carona, ia para voltar a pé, só para saber como é que era. Nem
bem se acostumara com o carro, lá vem Seu Raul Coelho com um rádio.
Rádio!? O povo indo se admirar, assistir o bicho falador. O dono o botava na
janela de sua casa para o povo ouvir. Depois o levou para o teatro. “Como é
que pode essa coisa faladeira? Num será coisa do diabo?”. Uma mulher teimou
e teimou. Queria ver o homem que estava dentro da caixa73. Assistir missa feita
em Roma, como é que pode? Foi feita até associação para comprar um para o
povo. E o povo ficava ali no silêncio, botando atenção, querendo entender.
E os padres! Teve pragas de padres. O do sangue na pedra tá dito. Padre
Manoel Félix. Homem de reza forte, de vida santa, de praga pegadeira,
conhecedor das leis divinas. Não tinha medo de careta. Arranjava raiva contra
ele. Mandaram matá-lo. O pistoleiro se tocaiou. O padre na estrada. O tiro
pipocou. A bala pegou na sela. O padre olhou o homem, sem medo. Disse:
“Você, daqui para frente não matará mais nem um passarinho”. Seguiu viagem
sem olhar para trás. O homem, se tremendo, deu volta desaluado, se acabou
sem macheza . Chorrochó. Ele foi rezar missa lá. Deu-se que haviam roubado
umas peças da igreja. O padre rezou missa com as velas acesas em castiçais
colocados de cabeça para baixo. Um dos rapazes que havia feito o roubo
morreu logo, logo, assassinado. O outro ficou aleijado pela vida que viveu,
enrolado dentro de uma rede. Mandões do lugar entraram em teima com ele.
Ele os mandou arredar. Em Patamuté botou praga em gente. Fez o mesmo em
Poço de Fora. O povo se tremia, respeitava, se vigiava no acatamento das
coisas ditas por ele74. “Se ele jogasse praga em uma pessoa... ela ia morrer”75.
Em Curaçá foi de outro jeito. O padre se navegava com cabeça própria. Não
adulava rico. Não fazia aprochego com a elite. Uma família da elite entrou em
revolta contra ele. Providenciou seu retiramento. Ele nem aí. O padre gostava
de vatapá. Um dia, alguns membros dessa família mandaram fazer um vatapá
com quipá, xique-xique, mandacaru. Enfeitaram o bicho bem direitinho e
72
Esse de propriedade do Sr. Raul Coelho.
Informações dos Senhores Angêlo Alves Santos e Donizete Nunes Franco, entre outros.
74
O padre Manoel Félix atuou como pároco de Curaçá nos anos de 1905 a 1914. Ele chegou a
morar na Gruta de Patamuté e foi o iniciador das romarias do dia 2 de novembro. A informação
relativa a Chorrochó nos foi fornecida pela Sra. Maria Teles de Mendonça, de Riacho Seco.
75
Seu Jovem (Joviniano Moreira da Silva), de Poço de Fora.
73
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
mandaram para ele. Veio o decreto de praga: “Atraso para os membros da
família até a 5ª geração e não haverão de ser nada”.
“O padre Eutímio sabia se benzer” 76. Veio logo depois do padre Félix.
Botou morada em Curaçá. Tinha mulher amante77. O padre rezando missa e uns
sujeitos, gente de bem da cidade, lá. Lá na casa da amante dele. Sapecaram o
pau a bater nela, chutando, espancando de todo jeito. Pegaram umas riquezas
dela. O padre foi avisado no fim da missa. Assuntou o caso com os olhos,
vendo a mulher escorneada, gemendo. Deu as providências da salvação da
vida. Anunciou o decreto dos destinos dos homens: “Todos cairão em
desgraças e farão padecimento até enquanto viverem”. “A praga pegou”. Até
pouco tempo tinha gente carregando ferida na perna, cachimbando pelo meio
da rua. E o bêbado? O padre rezando missa. Um bêbado chegou falando,
dizendo coisas do padre. O padre mandou botar o bêbado fora. Ordenou o
fechamento das portas. Chovia. O bêbado não se foi. Fez baticum, urrando na
porta da igreja, enquanto o padre rezava. O padre não disse nada. O povo fez
juízo de praga. O bêbado era comerciante na feira. Ninguém mais quis comprar
nada dele. O padre se compadeceu e foi lá, no meio da rua da feira, dizer:
“Comprem as coisas do homem que ele não está excomungado não”.
Dificuldades com tratamento das doenças. Rezas, remédios de pau.
Dor-de-barriga: raspa de caatingueira, chá de pai-pedo, cuia esquentada no
fogo e passada em cruz na barriga; febre: chá de eucalipto; para obrar: purgante
de óleo de rícino; pílula-contra para tudo; papeira: casa de maria-pobre e,
quando ela descia, o sujeito tinha que ir urrar num curral; arranhão com sangue
nas pernas, nos braços: mijo. Para cortar íngua, tição passado em cruz nos pés.
No resguardo: cebola branca, raspa de quebra-faca, arruda, fazer inguento.
Depois amarrava na barriga. Um mês assim, com a coisa, sem afrouxamento.
Banho de pé à cabeça, de jeito nenhum, que a mulher morria. Só meio banho,
até um mês. Não podia pegar sereno. Andar de pés descalços... “Deus me
livre!”. Para dentição: raíz de carquejo; sujeira no nariz de menininho: água de
barco para a criança beber78. Se isso não desse jeito, feiticeiro. Se não desse
76
O padre Eutímio sucedeu ao padre Manoel Félix.
O padre Firmino veio para Curaçá e teve três filhos; o padre João teve amante em Curaçá e
um outro fez família na cidade
78
Água que se acumulava no piso das canoas. A mortalidade infantil e de parturientes era
alarmante.
77
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
jeito, morria. Mulher em parto, assistência de parteira. O menino nascendo e a
parteira com um cachimbo na boca. Menino nascido, um assopro de fumaça no
imbigo dele. Mãe Sérgia, a mais famosa. Fez muito trabalho de nascimento. Na
rua, no tempo dela, pegou quase todo mundo que nasceu79. Depois teve doutor
na rua. Não tinha farmácia. O doutor passava a receita. Cadê o remédio? Os
possuídos de condições mandavam um portador comprar em Juazeiro. Seu
Manoel Velho era quem mais ia. Ia a pé. Saía em um dia, chegava no outro80.
Mas doutor não curava doença de feitiço, de picada de cobra. Doença de feitiço
com feiticeiro. Para picada de cobra, rezador, remédios feitos de pau, resguardo
contra gente do sangue, de olho ruim. Para sezão!? Quinino, remédio que o
povo encontrou. Esse vinha de farmácia. Um pozinho, ruim, amarguento. Tão
amarguento que o cristão não aguentava engolir ele nu. O povo fazia um
embrulhuzinho em papel de seda e depois o engolia. Só aguentava assim. Teve
até gente que ficou surda por causa dele81. Dor de dente, dor de dente! Arrancar
o bicho sem ajuda de anestesia. No dia da feira o dentista às vezes vinha. Se
arranchava debaixo de um pé de pau e começava o trabalho. O dolorido
sentado em uma cadeira, o dentista com o boticão na mão e uns quatro homens
segurando o camarada. O pau comia e o camarada esperneando até o fim do
trabalho. Mesmo com esse sacrifício todo havia gente, que com os dentes sãos,
mandava-os arrancar para botar chapa, dente de ouro no lugar82.
79
Mãe Sérgia (Sérgia Maria da Conceição). Esse nome porque as parteiras eram reverenciadas
pelas crianças nascidas pelas mãos delas como uma segunda mãe. Faleceu na década de 1960,
bastante velhinha. Fez o trabalho de parto de várias gerações, para o que não exigia pagamento.
Era descendente de escravos e sucedeu seus pais na guarda da bandeira de São Benedito. Até
hoje, é da casa onde ela morou que a bandeira sai todos os anos. Não fumava.
80
Isso até a década de 1940. A remuneração por esse serviço era de 12 mil réis, equivalente a
seis dias de serviço. Segundo diziam, era mais rápido que animal. O fator determinante,
entretanto, eram as despesas que os animais provocariam e a demora da viagem de volta.
Informante: Donizete Nunes Franco.
81
Informação do Sr. Milton Araújo. O impaludismo, ou sezão atacava principalmente nos
períodos de cheia e vazante do rio. Nas décadas anteriores a 1960 morreu muita gente de febre
tifo e de impaludismo.
82
Usar chapa, dente de ouro ou as duas coisas ao mesmo tempo era sinal de boa condição
social.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Os tropeiros, os boiadeiros nos caminhos, caminhando para a Serra
Branca83, para Juazeiro, para Rio Branco84, para Vila Nova da Rainha85.
Tropas de cinco, de dez, de vinte animais de carga 86. Surrões, caixões
com as mercadorias dentro, cobertos por couros. Farinha, rapadura, toucinho,
carne seca, milho, cachaça, feijão... As estradas estreitas, com o mato batendo
nas cargas. Andanças de feira em feira. Os animais marcando rojão, no
compasso do grito do tropeiro. A chibata estalando no ar. Puxado grande para
dormida nos pontos de descanso, de água, de feira de dia certo.
Nas roças, as farinhadas, os trabalhos de moagem de cana, os trabalhos
de plantação, de limpa da terra. Rapadura e farinha87. O rio subindo, comendo
terra, afogando a plantação e o povo na arrancação de mandioca. Trabalho nas
pressas, com a água vindo e com as formigas comendo os pés, as mãos.
Carregação da mandioca para as canoas, no lameiro. As canoas entupidas.
Remar até a casa-de-farinha. Fazer o carrego até as raspadeiras e as raspadeiras
raspando, raspando, cantando, soltando converseiro, tirando versos.
“Passarim sofreu
Onde vai morar
Na beira do rio
Onde canta o sabiá
Ou na beira do rio
Onde canta o sabiá.
83
“Ô minha gente!
olhe a rola
fogo pagô
minha rola
pega o nizinho
da rola
Serra Branca, no Estado de Pernambuco. Na verdade os tropeiros se abasteciam em toda essa
região, atingindo as cidades de Bodocó, Araripina, Crato e algumas outras. Aí se abasteciam
com farinha, feijão e toucinho, fundamentalmente.
84
Rio Branco, atual Arco Verde-PE, fica a aproximadamente 500 km de Curaçá. Segundo os
tropeiros, a distância era de 95 léguas (570 km). Ali existia uma feira de gado. De Curaçá a Rio
Branco, a viagem durava entre 18 e 22 dias, segundo o Sr. Sindolfo Cursino Rosa, *1919.
85
Atual cidade de Senhor do Bonfim. Para esta localidade, os tropeiros levavam criação miúda
e compravam principalmente produtos alimentícios.
86
A carga transportada por cada animal pesava por volta de 60 kg.
87
Estes foram os alimentos básicos de nossa gente até a década de 1960. Outro alimento
importante era o toucinho e o feijão. Tendo isso, o camarada podia dizer que era farto.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Ceva, ceva cevadeira
Seu cevar já me namora
Se não fosse seu cevar
Eu não estaria aqui agora.
fogo pagou
minha rola
pega nos ovinhos
da rola
Passarim...”
fogo pagou
minha rola
pega no pezinho
da rola
fogo pagou...”88
Ralar, imprensar, peneirar, mexer a massa no forno89. A moçada se
olhando, procurando namoro, aproveitando o mexido do peneiramento da
massa na peneira para se grosar nas mãos. O povo na conversa, esperando
sono, esperando o aprontamento dos beijus90. O mexedor, não! Rolando a noite
toda na beira do forno, no vai-e-vem do rodo, mexendo a massa. Cuidando para
ninguém bufar por perto, senão a farinha saía azeda. No tarde da noite, o povo
se enrolando com cobertores, procurando um canto de parede, qualquer beira
de chão, providenciando agasalho para o sono.
88
E por aí iam as brincadeiras embutidas nas cantigas, entrecortadas por gargalhadas. Os
versos da Rola foram recolhidos da boca de Loló, rapadeira de longas datas.
89
O trabalho era coletivo. Os arrancadores, as raspadeiras, os mexedores e o dono da casa-defarinha recebiam a paga em farinha. Uma raspadeira recebia um prato (cinco litros) de farinha
por dia. O mexedor que, além de ter a atribuição de ajudar no trabalho de arranca, de transporte
e de prensagem da massa, era pago na proporção de um prato de farinha a cada oito
produzidos. O proprietário da casa-de-farinha era remunerado na mesma proporção do
mexedor. O dono da mandioca ainda tinha que remunerar com farinha o tirador de lenha e as
pessoas envolvidas em outras operações, como peneirar, carregar a mandioca, lavar, etc. Tinha
também que arcar com as despesas de alimentação de todos quantos participassem do processo
de desmanche da mandioca. No final, sobrava entre a metade e um pouco menos da produção,
mas o que interessava ao dono da farinhada e aos demais que se envolviam no trabalho de
desmanche da mandioca era a garantia de alimentação e farinha era a alimentação básica.
Possuí-la estocada em casa significava fartura. Esse o seu valor. Informação prestada pelo Sr.
Bina (Bernardino Rodrigues dos Santos) e Luizinho (Luiz Lopes), que ainda possuem casasde-farinha.
90
De início, até a década de 1940, o trabalho de ralar a mandioca era inteiramente manual, feito
através da força humana. Depois, alguns proprietários de casas-de-farinha introduziram motor.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Plantação na beira do rio no aproveitamento da umidade da vazante,
uma tira de terra no comprido da linha d`água, que plantação maior só quando
Deus mandava chuva. Milho, abóbora, batata, feijão, mandioca, melancia.
Plantar muito, para quê? “Você tinha para vender e não tinha quem
comprasse”. Trabalho na medida das necessidades do sustento. Fora a
plantação a aventura nas pescarias, esperando a sorte de uma fisgada, tiração de
palha de carnaúba para fazer esteira, vassoura, chapéu, extrair a cera91.
Nos engenhos, outra futrica. Trabalhos de moagem92. Cortar cana,
carregar a cana para o pé do engenho, botar lenha, aparar a garapa, cuidar dos
tachos para não perder o ponto do mel, da rapadura, colocar o melaço nas
formas. Garapa, mel, rapadura, batida, alfinim. Os bois girando, rodando a
moenda de pau naquele inhec inhec da madeira gritando, o “pé-de-engenho”
enfiando a cana na moenda, a garapa caindo. Os tachos no fogo, esquentando a
garapa, pro apurado do mel. O ponteiro na atenção, cuidando do ponto certo.
As formas sendo enchidas, na medida certa do tamanho das rapaduras. Os
meninos esperando as coisas doces dessa agonia, se lambuzando no chupado de
cana.
Nas caatingas, trabalho com os bichos. O criatoriozão aí. “O criatório
era muito. Os donos eram poucos. Quem tinha, tinha muito. Quem não tinha,
não tinha nada93.” As cabras, o gado chegando na malhada. Os bodes no
bodejo, correndo atrás das cabras. Os jumentos urrando, os bezerros, as vacas
berrando. Gritos, latidos no mato e os chocalhos das cabras tocando. As caças
gordas, muitas, no mato. O ronco das emas, o canto das seriemas Queijo,
91
A cera de carnaúba chegou a ser um produto importante na economia regional. Embora não
proporcionasse renda vantajosa, proporcionava um meio de vida para muitas pessoas em
alguns períodos do ano. A cera era retirada da palha depois destas serem retidas e postas a
secar. Uma vez secas, batiam-nas e delas caía um tipo de um pó que era aparado para depois
ser transformado em barra, por meio de cozimento.
92
Pé-de-engenho era o responsável por fazer a moagem; o ponteiro era o responsável pela
apuração do mel e pela observação do ponto do mel. O proprietário do engenho assumia todas
as despesas da moagem, dividindo a produção bruta, meio a meio, com o produtor da cana. A
produção no município era insuficiente para satisfazer as necessidades da população.
93
Espressões análogas a essa foram pronunciadas por várias das pessoas entrevistadas.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
requeijão, imbuzada, coalhada, carne assada, pele de criação para fazer a
feira94, cheiro de chuva, banho nos riachos. De noite, fogueiras, histórias.
Doenças para os bichos quase não tinha. Se aparecesse, chamavam o curador
de pasto para fazer benzimento. Ele benzia três cantos, um ficava sem
benzimento para a “intuição ruim sair”95. As doenças se acabavam. Bicho de
bicheira caía com reza. Para as mundiças das plantas também era só fazer reza:
“Chegar na roça e dizer: Senhoras mundiças, Jesus Cristo mandou dizer que é
pra subir ou pra descer”. No outro dia não tinha mais nenhuma. Se virasse uma
lagarta pelo avesso, as outras morriam.
A seca: “Tristeza de vaqueiro”96. O vento soprando, o vento sumindo,
os bichos berrando fraco. A valença: ela demorava a vir. Quando vinha,
queimar mandacaru, xique-xique. Cortar rama de juazeiro, de quixabeira. Dar
água aos bichos, nas cacimbas, puxando água de bogó. A seca apertando, os
bichos esmagrecendo, morrendo, o mundo se enfeiando. Quem tinha do que se
valer, se valia do que tinha. Quem não tinha, dava providência de outras coisas
no trabalho de se escapar. Tirar casca de angico97, arrancar salitre das furnas,
trabalho do cão98. Da serra da Borracha com muito salitre na barriga, socado
94
Os caatingueiros, via de regra, efetuavam todas as compras na feira com o dinheiro apurado
com a venda da pele da criação que abatiam para comer.
95
Expressão do Sr. Francisco Bispo, que nos deu informações, sendo ele um benzedor.
96
Expressões frequentemente utilizada pelas pessoas que vivem ou viveram no campo.
97
A flor do angico era um excelente refrigério para os animais e a retirada da casca redundava,
no mais das vezes, na morte do pau. Alguns criadores fizeram queixa ao prefeito, na década de
1950, e este mandou tocar fogo nas cascas tiradas e que eram o meio de ganho do povo na
seca. Resultado: até hoje o povo prejudicado não esqueceu o fato e se enraivece quando ouve o
nome dele.
98
A exploração do salitre tinha duas utilidade. Tanto servia para a produção de sal, como de
matéria prima para a produção de pólvora, além de ser um produto comercializável. Um quilo
de salitre proporcionava recurso suficiente para se fazer uma feira. Processo de extração: tirar o
salitre de uma furna, porque ele só dá onde não cai água. Pega a terra e a mistura com cinza de
esterco. Coloca-se em coxos furados, coloca-se água e vai-se alimentando até lavar. Os
pingos, em baixo, vão sendo aparados em uma vasilha. Pega-se a água pingada e a coloca em
uns tachos para ferver, até dar o ponto. Resultado: fica um tipo de um mel. Depois disso,
coloca-se em coxos de madeira e esse mel coalha. Quando já estiver coalhado, joga-se água
nele várias vezes até lavar. Lavado, põe-se em um tacho para ferver de novo. É descoalhado.
Coloca-se no coxo novamente e aí ele coalha diferente. No final, ele fica como sal de pedra.
Esse era o processo utilizado até a década de 1940. A comercialização era feita em Patamuté e
em Uauá para comerciantes de Sergipe. Informação fornecida pelo Sr. Sindolfo Rosa, que teve
nessa atividade parte de sua sobrevivência. Desde muito tempo o salitre vinha sendo extraído.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
por dentro das locas. “Juntava uma homaiada danada. Era tanta gente, que se
aproveitava até para fazer festa99.” Na faltança de tudo, apelar para as comidas
que o mato dava, “que gente pobre não tem grã-fineza, é o que Deus dá100”:
batata de angelim, batata de macambira, gró101, xique-xique102 e até mucunã.
Mucunã, quando não havia mais jeito de nada. Tinha que ser lavado em nove
águas, senão podia matar. “Quem comeu mucunã, se morreu com cem anos,
ainda morreu de mucunã”103.
“Ladrão!? Ou era desterrado104, ou era preso ou era morto.” A família
do camarada ficava toda esmorecida, envergonhada e todo mundo no fala, fala.
Perdia merecimento de respeito, de honra. A família, no que podia,
providenciava reparação, se lavando, se desesperando na vergonha105.
Uma lavadeira andando pelas lojas do comércio. Não desconfiava que
desconfiassem de sua pessoa. Pegou umas peças de pano. Os donos deram
falta. Pensaram nela. O delegado foi lá na casa dela. Executou as investigações,
achando o fato das coisas. Decretou pena, jeito, dia e hora de seu cumprimento.
Todo mundo ficou sabendo, conversando nos ouvidos. No aprazado, conforme
Já em 1697, a viúva de um dos D`Ávilas, Dona. Leonor Pereira Marinho, mandara construir
nessa serra, uma oficina para a preparação de salitre. As ruínas dela estão lá, já bastante
comidas pelo tempo. Possui aproximadamente 8 metros de comprimento por 4 de largura, toda
construída com pedra; observam-se bocas de forno (duas) em uma das laterais, acabadas com
tijolo de alvenaria. O povo morador nas vizinhanças diz que ali era a casa dos caboclos.
99
De Dona Ricota, moradora da fazenda Laminha, nas cercanias da Serra da Borracha (mais
ou menos 75 anos).
100
Expressão de Dona Elzita da Salobra.
101
O gró era feito do miolo do ouricuri. Lascava-se, colocava no sol e depois de seco fazia-se
angu.
102
Com o xique-xique fazia-se cuscuz. Retirava-se a parte interna dele, colocava-se por vários
dias no sol para secar e, uma vez seco, fazia-se a massa. Todos os informantes disseram que
esse cuscuz era gostoso.
103
Dito do Sr. Sindolfo Rosa.
104
Desterro era um recurso que os criadores utilizavam quando tinham conhecimento que
alguém estava praticando roubo de bode. Isso obtinham ou através de pressão sobre a família
do acusado, ou oferecendo os meios para que o mesmo se mudasse para outro local.
105
Os atos bons ou ruins praticados por um indivíduo, repercutiam sobre todos os membros de
sua família. Assim, as famílias, para se livrarem das sanções morais,. procuravam reparar as
práticas negativas de seus membros, repudiando-as e punindo o mal feitor de modo que todos
viessem a tomar conhecimento.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
o decreto do delegado, tudo aconteceu. Ela na frente, com uma toalha
encobrindo a cabeça, cuidando para não ser vista, escondendo a vergonha. O
povo se fechou nas casas, curiando pelos buracos das portas. Ela apontou bem
no beco do Chalé. Vinha na frente, com os panos do furto segurados pelos
braços. Um soldado atrás. Ela caminhava no rumo do cumprimento da
sentença. Ia passando pelas frentes das casas, na conformidade do andar. Sabia
que era vista. Encafifava-se por dentro de si, ouvindo o pisado do soldado bem
perto dela. E foi... e foi nesse que chegou na primeira loja. Botou os panos lá
onde estavam antes. Depois foi na outra. O soldado parou por aí, olhando o ela
sumir na esquina, atarantada. Os converseiros aos pés dos ouvidos, na rua106.
Prefeito? Existia! Não se sabia direito que serventia tinha. Os políticos
nas pendengas disputando prestígio, se arreliando com eles mesmos. O povo se
dividia no acompanhamento de um dos lados. Os eleitores votando, carregados
pelas mãos dos candidatos. Precisava-se de palavra de proteção, no quase nada
das coisas do governo, da justiça, de polícia. De tempo em tempo uma eleição.
As coisas na mesma. Ninguém esperava nada, que cada um que desse seu jeito
de viver, cuidando do que podia e queria. A falta de tudo batendo e o povo se
rebolando no nada, na esperança da piedade de Deus. Remédio para escassez
de água: abrir cacimba. E era assim, porque era assim que era.
Os ensinamentos. Na rua107, escola para meninos, escola para meninas.
O professor entrando na sala e os meninos ficando de pé para tomar a bênção,
todo mundo de uma vez só: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, bênção,
professora”. Ela respondia: “Para sempre Deus seja louvado. Deus abençoe”.
Professores do governo, desde muito existiam, com professores formados pela
vocação. Com formatura de escola, as professoras Marieta e Enedina, vindas
das lonjuras de Salvador108. Pobre começando a ver utilidade em estudo, mas
106
Este fato ocorreu na década de 1950.
Rua era assim que designava-se a cidade ou a sede do distrito.
108
As primeiras professoras formadas em Curaçá foram Anedina e Marieta Severo Bahia,
vindas de Salvador entre finais do século XIX e início do século XX. Não dispomos de
informações a respeito dos professores do século passado. O professor Evaristo lecionou por
volta da primeira década desse século, assim como o professor Hermenegildo (estes leigos) e
Dona Maria Carlota. Nessa época, o trabalho de professor não era remunerado condignamente,
pois Evaristo viveu na miséria – In: Álbum do Centenário de Curaçá. Foram também
professores da primeira metade do século em Curaçá as Senhoras Maria Carlota, Leni Possídio,
Elisabeth Bahia, Olga Bahia, Ezilda Torres, Ilda Torres Lima, Maria Augusta, Excelda
107
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
escola difícil. Tinha exigência, os meninos precisavam trabalhar109. O povo no
mato, que na rua era pouca gente. Botar professor pé-de-pau110, sem formação
de diploma. Os pais pagavam, o professor ia, ficava morando lá. Escola com
exigência que se pudesse cumprir. Professor dando aula em casa, debaixo de
pau, fazendo governo de estudo com palmatória, com reguadas, com castigos
de ajoelhamento no chão em cima de caroços de milho. Ensinar a ler, a
escrever, a contar. Os meninos levando seus banquinhos, se sentando no chão,
lendo a Cartilha do Povo. Depois o 1º Livro, o 2º Livro, até o 5º Livro. Não
tinha mais livro e o cabra estava pronto. Nas aulas, o professor marcava o dia
do “argumento”: perguntas e respostas sem gaguejo. Tabuada cantada. Quem
não soubesse responder em cima da bucha apanhava. Menino sem caderno,
fazendo escrita, conta no chão. Caderno só foi depois, que antes ou era o chão
ou eram as pedras, onde se faziam as contas111. O recreio, uma festa de alegria.
Mas... daí o professor tocava o buzo112 e pronto, era o começo da agonia.
As festas da rua. No fim do ano tinha a maior. Natal: presépio de Jesusmenino. O povo apreciando aquela boniteza com piedade, tudo tão condoído
no olhar de Nossa Mãe Virgem Maria, dos bichinhos perto dela na manjedoura.
Missa do Galo com todo mundo se purificando dos pecados, ouvindo a voz do
padre, adorando os santos ajuntados no altar. No fim, o baile pastoril, da gente
de grã-finagem cantando, dançando na rua, vestida com roupa só vestida
naquele dia. No emendar dos dias, a festa de São Benedito, do Bom Jesus da
Boa Morte. No começo não era assim. A atenção a São Benedito era em outra
ocasião, mas havia dificuldade de padre. Resolveram fazer tudo junto e ficou
Nascimento e já, na década de 1950, Valdelice Aquino e Eliete Torres (Titinha). Informantes
Ângelo Alves dos Santos e Valdelice Aquino.
109
As dificuldades eram muitas. Na rua eram poucas as pessoas que moravam e mesmo entre
essas poucas, quase ninguém podia arcar com as despesas de comprar livros, cadernos e
fardamento, conforme era exigido. No mais, a alimentação dos meninos pobres pela manhã,
antes de irem à escola, era café preto com farinha.
110
Essa designação decorria do fato desses professores serem práticos e também por se
sujeitarem a trabalhar nas condições que lhes ofereciam. Foram de extrema importância na
alfabetização do povo do mato e também da cidade.
111
Pedra: um pedaço de granito em forma de tábua, com molduras, no formato de uma folha.
Nessa pedra, só para fazer conta, o estudante escrevia com outra pedra, que servia como um
tipo de giz. Logo que o espaço era preenchido, com a tarefa pronta, mostrava-se ao professor
para correções e apagava-se para nova tarefa. Em Curaçá, o último desses professores, na sede,
foi o professor Sílvio Torres, famoso por seu rigor. Também o professor Austriquiliano teve
grande importância como educador na área das caatingas.
112
Uma espécie de buzina de chifre feita com chifre de gado.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
um festão emendado, sem folga113. Os das caatingas vinham, os das roças
também. Os que estavam fora voltavam. Aquela gente chegando, muitas
pessoas mal vestidas e descalças, carregando a roupa da festa enrolada em uma
toalha, uma muda só, pendurada no braço e, entrançado no pescoço, um par de
sapatos com os cadaços amarrados. Todo mundo se vendo naquela alegria.
Tinha novena, tinha missa. O padre celebrando, o povo se libertando dos
pecados na reza. Casamento, batizado. No dia da saída da bandeira de São
Benedito, um grupo saindo com ela, de casa em casa, tirando esmola e todo
mundo abrindo a casa para a visita. Os moradores de cada casa esperando,
vindo de longe, para receber a visita. A bandeira entrando, todo mundo
cantando:
“É chegada nesta casa
É chegada nesta casa
A bandeira da alegria
Que nela vem retratada
Benedito maravilha.
Benedito maravilha
Vem correndo a freguesia
Vem tirando sua esmola
Para a festa do seu dia.
Este santo pede esmola
Mas não é por carecer
Pede pra experimentar
Quem seu devoto quer ser
Este santo saiu hoje
Saiu com muita alegria
Visitando seus devotos
Filhos da Virgem Maria
Quem se cobre com a bandeira No reino do céu se veja
A bandeira da alegria
Nossas almas em bom lugar...
Que nela vem retratado
Meu Senhor São Benedito
A bandeira passando pelas cabeças dos moradores da casa e eles
beijando, com os olhos chorentos, se enchendo de emoção, ouvindo o verso de
saída:
(...)
Deus lhe pague sua esmola
113
Informação da professora Nenzinha (Maria de Almeida Araújo, *1916. Segundo ela, um dos
padres que serviu à cidade ficava indignado por ser São Benedito mais popular e mais
devotado que o padroeiro. Esse fenômeno ocorre em outras cidades do Brasil.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Deus lhe dê muito que dá.
Deus lhe pague sua esmola
Deus lhe dê muito o que dá”.
Na procissão da levantação da bandeira de São Benedito, nem se fala...
do mundo de gente que ajuntava. Todo mundo cantando, com veneração de
crença forte, com velas acesas nas mãos, levando a bandeira. Os homens se
apressando, para chegar na frente, pagar promessa de carregar o mastro. Um
embuchado de mãos nele, no seu carregamento para igreja. Na igreja a
levantação. A bandeira amarrada no mastro, o mastro subindo, os foguetes
pipocando no ar e o padre gritando: “Viva São Benedito!”. O povo
respondendo: “Viva!” – e cantando:
“Que bandeira é esta
Que vamos levantar
- É de São Benedito
Que vamos festejar
Viva, viva
Viva São Benedito
Que vamos festejar”.
Levantação feita. Todo mundo pro teatro para assistir ao drama 114.
Depois forró nas casas, que tinha muito sanfoneiro. Não cobravam ingresso
para entrar. Só pagava quem dançasse. Mulher, não. O cabra dançava uma vez,
outra vez e aí precisava pagar a cota. O cobrador ficava assuntando o povo no
salão, para ninguém enganar. Mas tinha camarada sabido, que não pagava cota.
Saía de casa em casa onde tinha forró e dançava a noite toda, de graça, só
dançando duas partes em cada uma. Os sanfoneiros lá dentro das casas
agoniando a sanfona e os dançadores chiando os pés no chão. Manoel Pistola
resfolegando o fole, cantando o "Deus Salve a América"115... A poeira subindo.
Um suor lascado, com o calorzão tomando conta da sala. De vez em vez um
cacete e... aquele corre-corre atropelado. O povo se esbandalhando, correndo
114
Drama, entendido como qualquer representação teatral. Todo ano era preparado um
espetáculo para a noite do dia 30 de dezembro.
115
Hino da América, que era uma das músicas que o povo mais gostava de dançar, nos toques
da sanfona de Manoel Pistola.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
para longe e, de longe, assuntando a hora certa de voltar pro chamego do ralarala. A elite fora disso, que a festa da “sociedade” era no salão da prefeitura,
com tocadores de instrumentos finos e músicas de outro jeito, com seleção de
quem podia entrar. Coisa para gente de posição. Mas havia gente pobre que ia
lá, ficar se divertindo vendo, serenando do lado de fora, na janela. Havia
também o carrossel, que botavam perto do cais. Aquelas coisas rodando e a
meninada desejando, os adultos apreciando. A banca de seu Odilon, cheia de
coisas apreciadas, levantando vontade, o jogo caipira com o bozó com os dados
dentro e os homens, a mocidade aventurando sorte. O todo povo enfeitado,
com roupa nova, com sapato. Um paluxiado danado no se apresentar. Cabelo
lambido com brilhantina, chaveiro com pente, escova de dente e espelho,
pendurados no passador dianteiro da calça. Um cheiro grande cheirando no
ficar perto das pessoas. Gente puxando da perna, pelos agoneios do sapato
apertando no pé. Quando não, quando não, o camarada se revoltava, arrancava
o bicho dos pés e se acocorava onde desse para ser.
Na manhãzinha do outro dia, os marujos em animação de festa,
chegando embarcados, indo para a igreja homenagear a bandeira de São
Benedito, cantando, tocando:
“Adeus, adeus, porto do mar
mar
Ora Deus, ora Deus
mar
Ribeira riá
ajudar
Adeus, adeus, porto do mar
ajudar
Ora Deus, ora Deus
Ribeira riá.
Quando eu fora me embarcar
andaram aqui
Com espingarda e mochila
aqui
“Vamos seguindo nas ondas do
Vamos seguindo nas ondas do
Conceição de Maria nos queira
Conceição de Maria nos queira
Queira ajudar, queira ajudar”.
.................................
“Viva os soldados que
Viva os soldados que andaram
Caminhos de Curaçá
Lacuxia, lacuxia
Lá no porto do mar.
Adeus...
........................
Esse nosso batalhão
É formado em divisão
Alferes, porta-bandeira
General e Capitão.
Esmeraldo Lopes
Viva nosso Rei do Aracati
Viva nosso Rei do Aracati
Do Aracati, do Aracati”.
..................................
“Dom Pedro, Dom Antônio,
Dom Felipe, Dom Tomé
Os marujos de Angola
Pintandim que nem guiné
(Bis)
Adeus...”.
Esse povo já me pede
Pra essa guerra se acabá
Já morreu o capitão
Só ficou o generá”.
Depois pegar o rei e a rainha e sair pelas ruas até a igreja. Rei e rainha
no trono, no altar. O padre rezando, o coral cantando, o povo venerando, os
foguetes pipocando. De resto visitar as casas para começão e bebeção. Assim
do amanhecer ao entardecer. No outro dia, a procissão do padroeiro. E a banda
de música? Cabras bons nos toques, no acompanhando da procissão, na missa,
na praça. No começo era só a Banda de Curaçá, depois a Banda de Curaçá
misturada com a de Barro Vermelho e, no correr dos tempos, só a de Barro
Vermelho.
As mulheres da alegria dos homens também faziam suas festas, tinham
suas danças. Corria na rua que era dança de cabaré. A sociedade condenava
essa animação. O samba rolava a noite toda. Fele Brabo, o sanfoneiro, homem
puro, ia lá pro ganho da vida tirando harmonia do fole. Tocava a noite toda
com os olhos fechados, “pra não ver safadeza, pra não pecar”.
Fora do fim do ano, na rua, as festas de assustado. Os rapazes
combinavam segredo com as moças: “ Vamos fazer um assustado na casa de
fulano”. Na hora o fulano em casa, calmo, quando via era a chegança do povo
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
dizendo que ia ter festa. O dono da casa tinha que dar as providências do beber
e do comer. Ficava acanhado de negar a graça da brincadeira. Procura
providência. Não havia carnaval. Era “intrude”116. A moçada se mascarava e
saía pela rua assustando os meninos, tirando brincadeira, jogando água no
povo. Algumas pessoas danavam a xingar, a jogar pedra, a cair com molhador
no chicote. Houve até um sujeito que fugiu pro mato... se perdeu. Morreu lá, de
fome, de sede117. Quando o acharam veio o arrependimento da brincadeira. No
São João, as fogueiras, os fogos pipocando118. Milho assado, canjica, as
quadrilhas, pau-de-sebo, quebra pote. Todo mundo tinha que acender fogueira,
“senão o diabo vinha mijar na porta”. Os viúvos, não. Esses ficavam com a
dívida para o dia de São Pedro. Os batismo de São João, com a moçada se
apadrinhando.
As cerimônias da morte de Cristo. Semana Santa. Resguardo para a
alma, sem ninguém poder pecar, nem em atos nem em pensamentos. Não
podia, não podia, não podia. Na sexta-feira, aí então! Reza, reza, jejum sério.
Se fosse tirar leite, do peito do animal saía sangue. Se montasse em um animal,
era como se montasse em Jesus. Só podia matar cobra, que esse feito levava ao
caminho da salvação, mas as cobras se escondiam... O dia virava. Sábado de
Aleluia: a serração. A turma fazia rosário de mamona, cruz de qualquer pau,
pegava serrote, enxada, pé-de-cabra e saía no silêncio, procurando casa de
gente amigada. Chegava quietinha, travava as portas, as janelas e aí, em coro,
grosando o serrote em alguma coisa que fizesse barulho, danava a gritaria de
lamentação no mundo: “Acorda jumento vem receber seu sacramento. Jesus,
perdoe esse irmão!”. De dentro da casa partia tiro, partiam xingamentos: “A
panela de cozinhar viado eu já quebrei. Fulano, sua irmã dá a beltrano! O
tabaco da mãe, filho de rapariga! Vá serrar o corno de seu pai! ”119.
Vaqueiro não tinha dia de festa na rua. Suas festas eram no mato, todo
dia no tempo da pega de boi. Na comemoração do Centenário 120 os da rua
116
Entrudo, de acordo com o dicionário.
O nome desse cidadão era Pedro Fogoso.
118
Os fogos, do final da década de 1950 até a década de 1960 eram confeccionados por Dona
Ana Fogueteira, uma senhora protestante.
119
Dona Ciclita, moradora da rua de baixo, era a predileta dos serradores porque era a que mais
xingava e era a mais imoral nas palavras.
120
O Centenário de Curaçá aconteceu em 1953.
117
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
fizeram a invenção. Convidaram os vaqueiros para fazerem apresentação. O
povo gostou, os vaqueiros gostaram. E aí no outro ano, e mais ano e todo ano.
A vaqueirama toda pronta, completa nos couros: chapéu, gibão, perneira,
peitoral, sapato de couro121, garupeira, guiada, corda, serrote, facão, faca,
alforje, machadinho, flêmo122, frasco de mercúrio123, tabaqueiro de torrado,
copo de chifre, buzo, jogo de peias, chocalho, mochila para milho. Cavalos no
completo dos arreios. Os organizadores na vistoria. Se tivesse um sem os
aprontamentos de vaqueiro, era botado fora. De manhã a missa, depois o
desfile pelas ruas, com os vaqueiros aboiando.
“Ô...ê....
Eu nasci pra ser vaqueiro
E adoro a profissão
Quando monto eu meu cavalo
Quando eu tomo o meu gibão
Me pego logo com Deus
Pra honrar minha profissão
Ê... boi, oi ê.. i... a...” 124
“Ô... ê... meniná
Meniná eu quero um beijo
Só não quero no pescoço
Quero no bico do peito
Que é lugar que não tem osso
Que já tô ficando véio
Prá lembrar que já fui moço
Ê... ê... ô... ô...”
Os aboios, onde houvesse vaqueiro, o dia todo. A rua para os cavalos, o
povo que se desviasse. À tarde, as corridas, a escolha do cavalo mais bonito, a
escolha do vaqueiro melhor encourado, os prêmios. O povo da rua vendo,
aplaudindo, admirando, se orgulhando. De noite as danças. Forró para todo
lado. Vaqueiro não pagava em canto nenhum. Documento de vaqueirice: o
peitoral. Alguns se acompanhavam de chicote, de espora, ainda nos couros.
Festa de vaqueiro125.
121
O sapato tinha que ser 100% feito de couro.
Instrumento com leve aparência de canivete. Era utilizado para fazer sangria no cavalo,
quando ele ficava afrontado ou quando ficava triste.
123
O mercúrio era utilizado em ferimentos e para combater o piolho dos animais.
124
Aboios do Sr. Bernardino Rodrigues dos Santos.
125
Entre os incentivadores desta festa, por longas datas, destacaram-se os Senhores Gilberto
Bahia e Durval Gato. Por longo período a festa era de fato dos vaqueiros. Através de uma
associação que fundaram, fizeram um cercado para dar apoio aos animais e a sede da
Associação. Segundo o Sr. Bertoldo Pereira Martins, vaqueiro da velha guarda, a festa
significava “boniteza. Era uma reunião. Tinha gente que a gente só via no dia da festa. Hoje, na
122
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
As festas no mato. Alguém marcava novena. A notícia corria pelas
rendondezas. A moçada se animava. No dia o povo ia chegando na casa da
reza. Todo mundo na lordeza de roupa, nas vaidades dos perfumes. Cavalos
arriados na prontidão de festa. Terreiro cheio. As mulheres descaroçando os
terços, fazendo as puxadas dos benditos. O restante no acompanhamento. O
povo olhando o santo no oratório, se benzendo, clamando por graças, pelo
aliviamento dos pecados, nos devidos do merecimento da fé de cada um. A
novena terminava e o povo se debandava para a casa da festa. Novena em uma
casa, a festa em outra casa, por perto. A sanfona gemia, o cheiro de cachaça se
acendia e a dança se desembaraçava na alegria. Os homens tirando as moças
para dançar. As moças na obrigação de aceitar. Se uma desse um corte, pronto:
a noite toda quieta, sem a permissão de dançar com outro. O cabra agoniado no
acochado dos braços da dama e, daí a pouco, lá se vinha um e pedia uma parte.
O cabra tinha que entregar a dama, sem conversa que senão tinha
aborrecimento, com prosseguimento de cacete, que desaforo não se levava para
casa. Daí a pouco o leilão. Uma vasilha encoberta, toda enfeitada. Ninguém
sabia o que tinha por baixo. Os lances começavam: “Dou-lhe uma, dou-lhe
duas, quem dá mais”... A rapaziada olhando, se mostrando para as moças,
gritavam preço. Acontecia disputa. No fim, quando o ganhador descobria a
vasilha, todo mundo olhando, aparecia um doce, ou um requeijão, ou um
frango, ou uma fruta, coisas assim. No fim do leilão a festa continuava, até o
dia amanhecer. Bulir em moça? Casamento na certa, por bem ou na marra,
festa, a gente não pode nem usar facão e até vaqueiro calçado com conga tem. É vaqueiro?”.
Com o passar dos tempos, entre finais da década de 1960, início da década de 1970, políticos
se apropriaram da festa e a colocaram em decadência, com os vaqueiros sendo colocados na
passividade, ao ponto de grande parte dos associados nunca terem montado em um cavalo.
Hoje a festa não possui regulamento e parte considerável dos associados é constituída por gente
sem vínculo efetivo com o campo. O seu marco inicial foi o ano do centenário de Curaçá, em
1953, quando os vaqueiros foram convidados para fazerem uma apresentação. No ano
seguinte, a reunião de vaqueiros teve continuidade, acontecendo no seguir dos anos no dia 2 de
julho, como comemoração da Independência da Bahia. Mais recentemente alteraram a data da
festa que está acontecendo em data rotativa, no primeiro final de semana do mês de julho. Isso
porque, às vezes, o dia dois de julho cai no meio da semana e cria dificuldades para os
participantes e visitantes. As informações foram prestadas pelos Senhores Gilberto Bahia
(1914), Sindolfo Rosa e Bertoldo Pereira Martins (do São Bento).
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
senão morte, que honra era coisa que não se podia sujar. Quem queria mulher
bulida na família?126 “Tenho muito pecado de jega”127.
Z
O padre marcava “as desobrigas”128. O boateiro se espalhava. Os
meninos pagãos seriam batizados, os noivos se casariam. Os noivos faziam os
convites. Os convidados chegavam. Todo mundo montado. Os noivos na
frente, os convidados atrás com os cavalos batendo os cascos no chão,
barulhando as argolas, levantando poeira129. Aqui e ali, um gritava: “Viva os
noivos! Viva nossa bela sociedade!” O resto respondia em coro: “Viva!”
Casamento feito, acompanhamento de volta. Dança, cachaça, comida nos
devidos das posses de cada um.
A rua entrando no moderno das coisas do mundo. Iluminação de
lâmpada na rua. Energia gerada por caldeira130. Isso nos anos de 1930. A rua,
de noite, com claridade do dia. Uma lampadinha aqui, outra ali, penduradas em
postes de madeira. Alegria de desenvolvimento. Logo a caldeira fechou e o
escuro voltou. E ficou no escuro uns anos. Os anos. Botaram outra caldeira.
Caldeira para mover a desfibradeira de caroá, a descaroçadeira de algodão, à
noite funcionando para a iluminação131. Um horror de gente carregando água
para a bicha. Lenha, muita lenha para ela funcionar. Ligaram um gerador e a
rua ficou clara de novo. Às dez da noite desligavam. Luz acesa a noite toda!?
126
Os homens solteiros, principalmente os jovens, viviam no sofrimento pela ausência de
mulher que satisfizesse suas necessidades sexuais. Quando a coisa apertava, ou se viravam
sozinhos ou caíam no mato, em busca de alguma jumenta.
127
Dito de um vaqueiro nascido em 1938. Poucos foram os caatingueiros, e mesmo moradores
da rua, que viveram sua juventude até o início dos anos 60 e que não se satisfaziam
sexualmente com jumentas.
128
O povo, principalmente no mato, sentia dificuldade de satisfazer as exigências da igreja,
em vista da carência de padre. Meninos cresciam pagãos e até mesmo casais se juntavam sem
receberem as bençãos do padre. Outros ficavam algum tempo à espera que algum padre
aparecesse para poderem se casar. Por isso, de tempos em tempos, algum padre saía pelas
localidades fazendo as “desobrigas”, ou seja, desobrigando o povo das faltas cometidas por
falta de quem lhe desse o sacramento.
129
Os cavalos de festa eram bem tratados e arriados e tinham quer ser marchadores. A crina
bem feita, o rabo enrolado. Arreios além dos habituais, mas bem conservados, com peitoral
enfeitado. Na sela, cochinil e garupeira.
130
Esta caldeira era de propriedade do Sr. Maro Brandão e funcionava em um sobrado que
havia em frente à praça Dona Feliciana.
131
Esta, de propriedade do Sr. Raul Coelho, dos anos 40 para os anos 50.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Era morte de rico. Um tempo, e o escuro voltou. Veio um prefeito e comprou
motor. E luz de novo. Semana tinha, semana não, que motor quebrava, que
faltava combustível. Uma novela: aquele vai ter luz, não vai ter luz132.
No comum da vida de todo dia, divertimento de gente fina, passeio no
prado133. As moças, os rapazes da sociedade com roupa de lordeza caminhando,
procurando divertimento no limpão do chão vermelho, cheio de moitas de
malva, ouvindo os gritos dos jogadores no campo de futebol. Eles indo e
vindo, vendo o povo da chegança da labuta das roças passarem, carregando
suor, corpo doído.
Ilusão de pobre: ganhar dinheiro. Um sujeito em um caminhão. Chegou
por ali. O povo espiando com os olhos, com os ouvidos. Homem de situação.
Ele viu o povo. Notou a querença por ganho. Falou: “Quero encher esse
caminhão de ponta. Só quero ponta. Por cada ponta de bode eu pago 500 réis e
as de boi eu pago dez'tões. Quando eu voltar pago e pego tudo”. Desceu rio
abaixo na viagem que ia. A turma ficou juntando ponta, formando as rumas.
Sempre alguém tomando conta de cada ruma de ponta, se prevenindo contra a
sabedoria dos outros, sem sossego, dia e noite, dormindo de guarda no pé dela.
Cada ruma danada e não se parava de catar mais. O homem demorando. O
povo já desconfiado, desconfiando. Daí o sujeito aparece. Fica sabendo e vai
olhar. Marcou dia e hora do recebimento para pagamento. Gente alegre,
conversando, calculando plano. No dia marcado, cadê o homem? Saiu na
madrugada ainda noite. Ficaram as rumas de pontas, tristezas e gaitadas134.
O clima mudando, as profecias chegando, se confirmando nos tempos.
O fim das eras. Lá estava dito. O livro sagrado se mostrando no de vera dos
acontecimentos vistos. Pai sem ligar para filho, filho sem ligar para pai; irmão
brigando contra irmão; nação contra nação; pecado da raparigagem, da
viadagem, da traição de mulher contra marido; uns bichos voando por cima,
outros voando por baixo; os “cientistas” se multiplicando no mundo; o povo se
vendo na vaidade, sem adoração ao Criador; as plantações sendo aguadas;
132
Foi o prefeito José Borges, entre 1963 e 1967.
O que chamavam de prado era uma área descampada que havia atrás da cidade, nas
imediações de onde até hoje é o campo de futebol. Era um campo aberto, de terra avermelhada,
pontilhado por moitas de malvas. Era aí que os membros da elite passeavam nos finais de tarde.
134
Fato ocorrido em 1936, segundo o Senhor Ângelo Alves dos Santos.
133
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
muito pasto e pouco rastro. Coisas do fim do mundo. A gente querendo, não
podendo alcançar os ditos na imaginação. Como podia ser? Todo mundo de
cuia carregando água, molhando a plantação? Os bichos voando por cima,
serpentes? E os bichos voando por baixo? No sinal de tudo, está tudo aí, com o
mundo se indo, findando.
Os caminhões aparecendo, matando os barcos, matando as tropas.
Caminhão de Seu Pedro Unias, de Seu Jaime de Seu Hermes, de Seu Donizete,
de Seu Inácio Pacote, na briquitação, fazendo linha, correndo para Juazeiro.
Hora das viagens, na madrugada da noite, ainda. O povo, todo lorde para
viajar, pendurado na carroceria, em cima da carga. Vento e poeira, chegava em
Juazeiro todo enfeiado. O carro parando e parando e a estrada ruim. Quando
chovia, os atoleiros, os riachos botando empate. Os viajantes presos no meio da
chuva, na espera do estio.
Caminhão só para viagem longe, para carregar coisa de muita
importância. Não tinha carroça. Transporte de telha, de tijolo, de areia, de cal
em lombo de jegue. A infieira de jegue com as cargas. Os bichinhos se
torcendo com o peso. Os donos atrás gritando. Seu Tito, Zequinha Gato,
Joaquim Vermelho. Aquelas idas e vindas sem fim, todo dia, todo dia. Aqui,
ali, um jegue deitava. Seu Tito tinha a arte de fazer o deitador levantar:
esquentava o fundo do jegue com fogo.
No rio, Seu Chico Coelho, Seu Piau, João Pescocinho. Seu Chico
Coelho na travessia do povo, se mantendo na vida com essa serventia. Linha:
Barro Alto-Curaçá. Ele no meio do rio, empurrando o barco com o remo,
pedindo a sorte de um ventinho que soprasse na vela. Viagem devagarinho.
Vivia nesse ir e vir, todo dia. Sem saber nadar, quase tinha morada no rio. Do
mesmo jeito Barba Azul (Chico Barge). Seu Piau nos peixes. Subindo e
descendo com seus anzóis, se desviando dos lugares de Nêgo D`água, que no
rio tem mistérios. “Nêgo D`água existe, mas nem tudo é para todo mundo ver,
mas eu vi um neguinho, que dava nos peitos de um homem sentado”135. Na
canoa de tronco de pau João Pescocinho cortando as águas, de dia e de noite.
Ele assobiando, cantando, armando e desarmando a rede de pescar, botando
anzóis na água, se apoitando numa ilhinha no meio do rio. Nela plantando
135
Seu Piau ( José Nunes dos Santos, *1916, foi o primeiro pescador profissional de Curaçá.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
zozós, angaris, calumbis na luta para não deixar as águas carregarem sua areia,
sonhando dela ser grande um dia.
Não tinha cais. As mulheres lavando roupa no rio. Da rua para o rio, um
ladeirão sem fim, cheio de pedra. Os carregadores de água com os galões136, as
mulheres subindo a ladeira com as latas na cabeça, carregando água para as
casas da riqueza. Ganho de vida137. Agasalho de água em casa de pobre, só para
beber, cozinhar e para banho das mulheres, que lordeza de banho para macho
era no rio, ou então que virasse rico. Rico-rico não bebia água do rio, não.
Água para eles trazida de longe, de um caldeirão da serra do Icó, nos barris, nas
latas carregadas pelos jegues138.
No domingo, na segunda-feira, os carregadores de saco gemendo com
os sacos nas costas, rompendo a subida rio acima. Na água paquetes e
paquetes; no seco animais e gente. A beira do rio era uma rua de gente. O
governo decretou: construir cais em Curaçá139. Gente chegando para trabalhar
na obra. Obrão sem fim, de grande que era. O paredão de pedra subindo, os
homens trabalhando. Um buracão danado se formando. Fazer enchimento.
Carregar areia da ilha. Uma porção de canoas nessa labuta. Não dava.
Contrataram gente para carregar terra. Jegue que não acabava mais. Não davam
conta da obra no tempo dito. Trouxeram caminhão. Mais de seis meses de
trabalho nesse serviço de transporte de terra, até tudo ficar pronto140.
Ninguém acreditava, mas era de vera. Falavam que falavam em
construção de hospital. Foi que foi até que veio. Um obrão danado que dava
para caber o povo todinho da rua. Muito, muito maior que a igreja, nem era de
fazer comparação. Um trabalho danado de muitos trabalhadores na peleja.
Prédio bonito como nunca se tinha visto, com o chão ladrilhado com mosaico.
136
Galão: duas latas cheias de água amarradas nas extremidades de um pau que era apoiado no
ombro de uma pessoa.
137
Havia gente que tinha no trabalho de carregar água a fonte principal de ganho.
138
Este caldeirão localiza-se nas terras da fazenda que pertenciam a Dona Cizina e a uns 15 km
de Curaçá. Informação de Betinho de Lídio e de Nego de Mariinha de Totó.
139
A construção do cais foi realizada em finais da década de 1940; o deputado Manoel Novaes
foi o responsável por sua solicitação. Algumas pessoas, até hoje residentes em Curaçá, foram
atraídas pela oportunidade de trabalho que essa obra propiciou.
140
Foram informantes nesse parágrafo os Senhores Betinho de Lídio (Alberto Xavier), Nego de
Maria de Totó, Ângelo Alves dos Santos, Seu Piau e Chico Bispo.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Tinha até caixa d`água. Colocaram um bocado de aparelho, de coisas dentro
dele. Fizeram inauguração. Não mandaram médico e o prédio ficou lá, ficou
lá, ficou lá... o tempo andando, andando e ele se desmanchando. Um dia, com
pouco tempo, o telhado desmoronou. Foi feita a reforma. Ele ficou bonito de
novo141. Enquanto estava em pé, nele funcionou a maternidade, depois o
ginásio e aí não deu mais. Foi caindo de pouquinho até que se acabou. Um
prefeito mandou executar demolição do resto e no lugar dele ficou um
limpão142. Só sobrou a caixa d`água. O posto de saúde veio junto. Também
prediozão. Um doutor fazia a apreciação da saúde do povo, mas era uma coisa
acanhada, no acanhamento do lugar.
Muita coisa em um tempo só. Chegou até juiz. Curaçá sede de
comarca143. Homem da lei, na reteza do agir, passando na rua sem oferecer
ousadia. O juiz na admiração do povo, mostrando exemplo do bom proceder.
Gente querendo intimidade e o homem difícil. Por educação oferecia resposta a
cumprimento dado. No mais, encafifado dentro de casa, só dando prosa a gente
igual. Feiticeiro assim também. Cientista. Sujeito de segredo, vivendo no meio
dos encantos . Falar baixo, melhor nem pensar, que ele tem o segredo de andar
nos segredos dos outros. “Sabe o que se deu, o que vai se dar”. Desenvolve
trabalho para curar, para adoecer, para adivinhar, para botar e para tirar
encosto, para achar perdido no trabalho de responso144. O povo sem querer
prosa, de longe, chegando perto nas necessidades.
O lugar da feira foi mudado. O prefeito construiu prédio para o
mercado145. O barracão velho, os pés de tamarineiros ficaram no abandono, até
que morreram. Prédio grande. Cabia o mundo todo lá dentro dele. Até calçado
era, cabia gente!... Os armazéns ficaram onde já eram. No dia de feira, o povo
do mundo todo vinha, montado nos animais, trazendo o alforje que era para
141
Informação de Babá (Omar Dias Torres).
Este prédio de hospital tinha planta igual à do Hospital Regional de Juazeiro; sua obra foi
iniciada em 1949 e concluída logo depois.
143
A comarca foi criada pelo decreto-lei estadual nº 519, de 19 de junho de 1945, abrangendo
um só termo que foi desanexado da comarca de Juazeiro – In: Sinopse Estatística do Município
de Curaçá – IBGE, RJ, 1948.
144
Através do responso, o cientista ou feiticeiro não só encontra os desaparecidos (perdidos,
sumidos ou roubados), como fica sabendo quem roubou ou achou o objeto procurado.
145
O mercado foi construído entre 1953 e 1954. Um pouco antes, em 1951, houve a construção
do matadouro municipal. O prefeito Gilberto Bahia foi o autor das duas obras.
142
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
carregar os trens. Trazia também uma pele de criação e um litro de vidro
amarrado na garupa da sela que era para botar o querosene. A pele o povo
vendia para apurar o dinheiro da feira. Os beiradeiros não tinham pele, traziam
coisas das roças. Coisas que faziam coisas que plantavam. No mercado, aquele
zummmmmm da voz do povo, imitando zoada de marimbondo no ninho. De
longe se ouvia. No fim da feira ficava a turma da confusão, bebendo cachaça.
De tardezinha era a hora do pau. Os bêbados se agarravam. Às vezes o caldo
engrossava, com sangue derramando no chão.
O governo mandando coisa de novidade. Instalou um posto da
Comissão do Vale do São Francisco. Mandou engenheiro, mandou caminhão,
veio trator, veio motor para botar água em plantação146. “Você já viu!”. Coisa
de governo procurando o que fazer. Levantaram prédios na roça, casa pro
doutor, bicho porco. Como pode um sujeito morar numa casa com latrina
dentro, bem juntinho da sala, da cozinha? E o fedor? Vôte! 147 No resto o
conforto. Água encanada, casa toda encimentada. Gente do lugar virando
funcionário do governo, dirigindo caminhão, futucando em trator no fuça, fuça
do chão. O engenheiro mandando construir valetas para água correr, para
molhar plantação. Plantação de uva. “Tá vendo qui num dá certo?” A cerca
toda certinha, com os paus pintados de branco, toda no arame. “Dinheirão
jogado fora”. O povo passando, curiando, vendo aquele aguaceiro correndo nas
plantas e as plantas trepadas em arames. O doutor no calado de sua
importância, aqui, ali uma palavrinha de assunto novo, falando das coisas de
progresso. De bom mesmo o caminhão que adjutorava transportando de graça,
carregando madeira, dando carona.
146
Refiro-me à instalação de um posto da Comissão do Vale do São Francisco em Curaçá, nos
meados da década de 1950, por influência do deputado Manoel Novaes. Este posto tinha a
função de oferecer assistência técnica e difundir tecnologias agrícolas. Foi extinto em finais
dos anos 60. A C.V.S.F. posteriormente foi extinta e criada para a mesma função a
Superintendência do Vale do São Francisco. Esta posteriormente foi modificada em suas
funções, recebendo o nome de CODEVASF – Companhia de Desenvolvimento do Vale do
São Francisco, até hoje (1999) existente.
147
A primeira casa de Curaçá a possuir sanitário nos moldes modernos foi a do chefe da
Comissão do Vale do São Francisco – CVSF, onde hoje é o parque de exposições. A população
não entendia. É que, nessa época, as latrinas ficavam fora da casa, na extremidade do muro, e
as fezes caíam dentro de um buraco que ficava aberto o tempo todo. Imaginem o fedor.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
A “Difusora Sertânia de Curaçá” levando seus programas ao ar,
povoando a rua com música, com conversa, alegrando o povo148. Cinco e meia
da tarde o primeiro programa: “Ao cair da Tarde”. Músicas de Carlos
Galhardo, Nelson Gonçalves, Vicente Celestino... Às 18:00 horas: “A Ave
Maria”’. Às 19:00 retransmissão da “A Voz do Brasil”. No mais tarde da noite
as cantigas de sucesso: Trio Nordestino, Roberto Carlos, Jerri Adriane, Diana,
Evaldo Braga, Vanderley Cardoso, Renato e seus Blue caps... A voz de Zito
Torres no comando, dando avisos, mandando mensagens, cortando corações :
“Estamos falando diretamente dos estúdios da Amplificadora Sertânia de
Curaçá, da rua Major Torres, para toda a cidade”. O povo sentado nas portas
apreciando as músicas, as conversas que vinham dos alto-falantes149.
A praça Dona Feliciana. Os que chegavam mais cedo esperavam os
outros para irem em magote fincar os marcos no cais150. Os porcos roncando,
querendo a comida, chegando perto. A turma, de cócoras, espantando os porcos
no abanar das mãos. Depois do alívio, a volta. As moças chegando.
Começando a circulação no arredondado da calçada da praça, arrodiando o
quadro. Os rapazes também. Os olhares, os chego, não chego. Recadinhos,
troca de olhares escondidos. Os alto-falantes espalhados na rua, soltando
música no ar. Com pouco lá se vinha: “Um alguém muito apaixonado oferece
esta música para uma morena de cabelos castanhos que está vestida com roupa
azul e que se encontra, nesse momento, passeando na rua do Quadro”.
Curiosidades. Destino e destinatário bem que se sabiam. A sorveteria de Seu
Juatan, a casa de Dona Gercina em frente da praça, criando aperreio na
rapaziada desendinheirada. Cadê dinheiro para pagar doce, sorvete para a
namorada? E se ficava assim. Na precisão grande, gastava-se o dinheiro da
vergonha151. A luz baixava: primeiro sinal. Todo mundo a se ir que, com o
segundo sinal, vinha a escuridão. Hora de moça séria ir para casa 152. A
148
Era um serviço de alto-falante de propriedade da prefeitura e foi criado em 1967.
De acordo com Babá (Omar dias Torres), antes, no início da década de 1950, já haviam
instalado um serviço de alto-falante, cujos locutores foram José de Roque (José Ferreira Só) e
Adélia Rodrigues.
150
Expressão relembrada por Omar Dias Torres. Fincar os marcos significava fazer cocô.
151
Dinheiro da vergonha era aquele dinheiro que o sujeito carregava no bolso para se prevenir
de grandes aperreações. Não era para ser gasto, isso só poderia acontecer em último caso.
Consistia em grande vergonha o fato de alguém ser descoberto totalmente desindinheirado.
152
Esta situação ocorreu durante toda a década de 1960. A casa de Dona Gercina era uma
doceria e vizinho à casa dela funcionava a sorveteria de Seu Juatan – a primeira da cidade. A
149
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
rapaziada ficava mais, fazendo balanço da noite, contando estórias de
assombração, falando da vida alheia, conversando putaria.
Os velhos no converseiro sobre os assuntos de tudo do mundo. O ponto
na porta da casa de Fortunato Lopes. Ali iam chegando, se abancando logo no
cedinho do amanhecer. Prosas e prosas. Às vezes a conversa cochichada, às
vezes bradada. Pilhérias contra os passantes e os assuntos correndo no chegar e
no sair dos frequentadores de todo dia. O banco lisinho, lisinho de tanta bunda
ser coçada. No dia que morria alguém os parentes do morto vinham pegar o
banco para colocar o defunto em cima dele. Não havia problema, a sentinela
não passava de uma reunião extraordinária.
Os beiradeiros na incutição de enricar. Deram a plantar cebola na
aventura da bicha dar dinheiro. Sonho, sonho. Aqui, ali, um ganhando.
Carregação de água na cabeça, botar veneno, arrancação, entrançamento. Um
cheiro ardido no ar, grudado no corpo. Os matutos sem querer negócio com
essa labuta que é coisa de aventura sem futuro. Criação dá resultado de certeza,
com a ajuda das águas das chuvas, que Deus manda.
Os rádios na falação de banco153. Banco emprestando dinheiro para
comprar motor, para comprar gado bonito, jegue grande, cavalo possante, para
fazer cerca de arame. Os caatingueiros desconfiados: “É armadilha pra gente
dever”. Pouca gente entrando na estória. Os mais entendidos se enfiando nela,
tirando proveito do seu ser. E começaram a vir as cercas de arame, os bichos de
raça, as coisas de novidade nova.
As escolas ajuntadas em um lugar só. As aulas no prédio que o governo
havia ordenado construir154. O povo começando a ver utilidade no estudo de
rua do Quadro situa-se ao lado da praça Dona Feliciana e era nesses espaços que toda a moçada
se encontrava. Aos domingos, o encontro ocorria após a celebração da missa ou novena. Com
relação ao cocô no cais, este já era uma tradição de todos os dias e, por isso, nesse horário, o
local se infestava de porcos.
153
Nos meados da década de 1960 os bancos iniciaram o processo de financiamento para
atividades agropecuárias na região.
154
Prédio Scipião Torres. Construção do governo do estado, iniciada em 1936 e finalizada
mais ou menos em 1940. As escolas que até então eram isoladas foram agrupadas nele.
Informação de Milton Araújo e Valdelice Aquino.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
escola de professora formada. Meninos da rua, meninos das roças, do mato de
perto da rua vindo estudar. Iam chegando a pé, montados em jegues, trazendo
lenha, leite para vender. Depois ir para a escola. Todo mundo fardado, com os
livros, os cadernos, nos alinhos ditos pelas professoras. Os pais de distante,
botando os filhos para morar na rua. As mães acompanhando os filhos. A rua
crescendo. Menino sem freio de pai, sem traquejo de labuta, nas vaidades da
desocupação, querendo roupa, comida fina, entrando nos entusiasmos dos
namoros. Ainda pouca gente nos estudos. Ensino só até o curso primário.
Depois dele, o fim. Escola mais adiantada: ginásio, em Juazeiro155. Quem
podia? Os estudantes se aquietavam nesse. Gente teimosa tinha, que meteu a
cara em coisa de caminho de doutor156. Dificuldades sem tamanho: “Pra quê?
Coisa de desatino de pobre metido a besta, que estudo adiantado num tem
serventia nessa vida do mato”.
José Gonçalves157 nas preocupações de estudo adiantado. Jogou-se na
luta por ginásio, falando com um, falando com outro. O povo achando aquilo
impossível. Os líderes da cidade sem entusiasmo. Ele foi e foi. Bateu aqui,
bateu ali, no desespero de seu querer. Ficava sonhando, achando que podia ser.
Conseguiu. Ginásio funcionando, no adular de gente para dar aula, que
dinheiro não tinha158. Os estudantes com entusiasmo de estudo adiantado,
155
A continuidade dos estudos na região só poderia acontecer em Juazeiro onde, desde 1953,
fora fundado o Ginásio Rui Barbosa, que oferecia ensino gratuito. Mesmo havendo a
dificuldade imposta pela necessidade de mudança de cidade, alguns pais envidaram esforços e
garantiram a continuidade do estudo de seus filhos. Note-se que é a partir daí que os menos
aquinhoados passaram a atingir melhor condição de vida e ascender socialmente. Antes disso
só os abastados podiam manter filhos em escolas, vez que elas se localizavam nas capitais. O
curso colegial só foi criado em Juazeiro em 1963, também funcionando no Ginásio Rui
Barbosa - Ribeiro, p. 149.
156
Houve polêmica entre a população da cidade. A maioria achava que manter filho estudando
em níveis mais adiantados era uma coisa descabida. Uma minoria insignificante, entretanto,
teimou e bancou os sacrifícios, garantindo o prosseguimento dos estudos dos filhos.
157
José Gonçalves (Pretinho), natural de Curaçá, de origem humilde, estudara em Salvador,
onde se fez farmacêutico. Voltou para Curaçá pelo propósito de acompanhar a mãe que tinha
uma casa de hospedagem. Aí estabeleceu uma farmácia, de onde extraía, com dificuldades,
recursos para sua sustentação, que era auxiliada pela renda do emprego nos Correios e
Telégrafos Desde 1954 se embalava na idéia de um ginásio em sua cidade, na esperança de
poder ver pobre avançar nos estudos.
158
Diante da falta de interesse do Estado, foi criado um ginásio municipal, em 1962, que
recebeu o nome de Ginásio Municipal de Curaçá, tendo suas atividades iniciadas em 1963,
Caminhos de Curaçá
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orgulhando-se no vestir da farda destacada de cor cáqui. Educação virando
obrigação de necessidade. Mais e mais estudantes vindo para rua, nos deveres
do novo aprender, do novo seguir nos encaminhamentos de se preparar para
arranjar emprego em terras distantes.
Padres americanos chegando, falando com enrolo de língua, sem
ninguém entender. Os meninos ensinando os padres a falar: “Diga, “minha mãe
é puta” – e o padre: “Minha mãe é puta”. Gente diferente falando em Deus,
fazendo pregações.. Os padres parecidos bestas, se fingindo, roubando as
coisas da igreja, trocando as peças sagradas, enrolando os caatingueiros,
comprando por nada peças de valor, levando-as embora 159. As mulheres, os
poucos homens devotos, nem se davam conta.
Zé Pretinho rua acima, rua abaixo. Um bastão na mão, um coité
pendurado no passador da calça160. Homem de todas as casas, sem pedido de
licença para entrar. Café aqui, outra comida ali. Dando-se a dar recados, que
tinha merecimento de palavra. Hora por outra esticava os olhos para o céu e
funcionando inicialmente nas instalações do Prédio Escolar Scipião Torres, no período
noturno, por falta de espaço durante o dia. No ano seguinte mudou-se para o local onde
funcionava a Casas de Parto e, posteriormente, para o prédio do hospital, até que este viesse a
ruir, tornando-se ameaçador. Nessa ocasião já funcionava no turno vespertino. A primeira
turma foi composta por 20 estudantes e os primeiros professores foram os seguintes: José
Gonçalves – que foi o 1º Diretor - (Farmacêutico), Osmar de Souza Oliveira (Juiz de Direito),
Antônio Laranjeiras (Promotor), Euvaldo Torres de Aquino (Odontólogo), Valdeci Aquino
(Professora), Excelda do Nascimento (Professora), Alice Possídio – Alicinha – (Professora),
Dr. Juracy Gonçalves, José Gaudêncio de Souza (Sargento), Pompílio Possídio Coelho
(Médico) e Valdejane Brandão (Professora). Pelo menos entre 1963 e 1966 os professores
deste ginásio não eram remunerados por suas atividades. Informante: José Gonçalves. No
correr da história, já na década de 1970, criaram o curso Normal (pedagógico em nível de 2º
Grau) e, em um gesto descabido, mudaram o nome do colégio para Colégio Municipal de 1º e
2º Graus Dr. Ivo Braga, um sujeito que a população não sabe quem é e nem o que fez pela
educação e pelo município.
159
Este fato ocorreu na década de 1960, quando o bispo de Juazeiro trouxe alguns padres
americanos. Segundo algumas pessoas que na época davam assistência à igreja, eles tiraram
algumas peças e venderam-nas em antiquários. Embora não haja um inventário, em muito
contribuíram para dilapidar o patrimônio histórico municipal pela aquisição de peças
encontradas nas caatingas e que eram resultado de heranças de antepassados. Note-se que os
antigos tinham o costume de inverterem seus recursos em ouro e prataria.
160
Coité era uma vasilha feita com o casco de um coco serrado ao meio e que era utilizado
tanto para beber água como café.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
dizendo: “Desce daí, Suzano”161. Tomava banho nu no rio. Na hora certa ele
chegando, tirando a roupa sem atenção no estar dos outros, rumando ao rio e
três mergulhos. A roupa dele suja e sem querer trocar. A turma ia lá, pegava a
roupa velha, colocava uma roupa nova. Ele xingava, urrava, vestia, se ia como
nada acontecido. Zebu fumando o tempo todo na luta para não deixar o cigarro
apagar, falando sem ligança para os ouvidos dos outros, contando casos de
Lampião: “Foi sim! Nastá!” Mororó todo florido, batendo lata, se apaixonando,
vendo Santa Terezinha em toda moça bonita que enxergava. Coruja no seu
quebra-jaca e dizendo: “Cachaça ainda mata um peste/ Um peste ainda morre
bêbado/ Eu não sei se é João de Sérgia, Conceição ou Gi do Ó/ Só não morre
Conceição, que é filho de Chorrochó”. Daru rodando o mundo, de vez em
quando chegando para despejar uma barriga. João de Mãe Sérgia se entortando
na cachaça, bocejando: “Rererere”, brigando com Zé Pintor, e Zé Pintor
gritando: “ Ora, que putaria, forró não! Quer sacanear? Um chega, mete dedo
na tinta, outro pega o pincel e vem esse agora querendo carregar a escada!
Putaria, forró não!” Conceição soltando suas mentiras e Domingão soltando
“porraaaaa...” jogando pedra nos meninos aperreadores. Turite (Maria
Quitéria), afogada na cachaça, rezando nos doentes, clamando aos céus,
pedindo socorro ao povo e gritando: “turite”. João Pescocinho em suas
pregações, preparando a volta de Jesus. Zé Doido futucando nos sacos de
farinha, na feira, beliscando a bunda das mulheres. Goizinho trocando dinheiro
por dinheiro, cuidando da origem das pessoas, com nojo do povo. Macacuí...
Macacuí se enchendo de cachaça, jogando pedra, falando putaria, putaria,
putaria, carregando uma galiota162, fugindo da mãe para beber escondido e a
mãe atrás dele com uma vara na mão. Neném de Zé Pitaca caminhando no seu
caminhar, se botando em intimidade com todo mundo, comendo nos conformes
de sua querença. Os doidos do povo, da rua toda na intimidade de chegança em
qualquer lugar, na entrança das casas sem estranhamento dos donos.
As coisas distantes chegando para perto. Lá se vieram os homens da
água, esburacando o chão, chão duro que só furava com tiro. Aquela
buraqueira danada, feita para se deitar cano. A construção da caixa d`água.
Uma altura de alcançar o céu. O povo trabalhando na trabalheira de obra de fim
de sofrimento de água na cabeça. A coisa indo e o povo sem crença de
161
162
Suzano seu irmão falecido. Esta expressão nos foi lembrada por Gerson de Maria Júlia.
Carrinho-de-mão.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
funcionamento daquela invenção. Água paga! Coisa de fim de mundo que onde
já se viu pagar pelo que Deus deu? E a água chegou, correu nos canos, entrou
nas casas. Água com o conforto do só abrir da torneira. Gente sem poder fazer
encanação. Pegar água no chafariz. Aquela fila medonha, do povo no aparar
dela. Lata batendo, gente cortando fila, as aperriações de apelido, as
converseiras de falação da vida alheia e o pau comendo de gente nas brigas. Os
canos subindo rua acima e o chafariz ficando só, no seu sem função. O povo
entrando no moderno do conforto de água paga no fim do mês163.
No rastro da água, a luz. Luz de Paulo Afonso. Energia que mata gente
descuidada. Os homens no trabalho de arribação de poste. O chão duro, duro,
com os tiros retirando as pedras de baixo, no aprofundamento dos buracos. Os
postes subindo, os fios sendo esticados. Trabalho feito, as casas com instalação
feita. Cadê luz? Não tinha rede de transporte de energia. Rede da Bahia em
Juazeiro, em Barro Vermelho. A de Pernambuco, ali, no atravessar do rio.
Empurra para cá, empurra para lá, um acordo feito: sangrar a energia de
Pernambuco. Curaçá no clarão a noite toda, toda, morresse rico, morresse
pobre, não morresse ninguém164. O povo chegando do trabalho das roças,
cuidando para esconder os trajes, as manchas da labuta. Gente cortando
caminho pelas ruas de detrás. A claridade mostrando as caras, os jeitos. A
pobreza aparecendo nos sinais de candeeiros acesos, dentro das casas das ruas
iluminadas. Os escurinhos dos namorados invadidos. Ponto de amarração de
animal mais difícil, o prefeito sem querer sujeira, sem querer bichos na rua. As
mulheres querendo casas com sala na decência. Os meninos nas brincadeiras
até o tarde da noite, as meninas brincando de roda, os meninos brincando de
barra, de esconder, de chicotinho queimado e todo mundo brincando de
casamento oculto.
Os velhos no mato, os velhos na rua. Os sem valia da rua se guardavam
no abrigo São Vicente165, feito desde muito para a finalidade desse
163
O SAAE implantou o serviço de água em Curaçá por volta de 1963.
A energia de Paulo Afonso foi instalada em Curaçá por volta de 1970. A sangria da rede de
Pernambuco foi feita um pouco acima da Ilha do Canto, bem no local onde há uma grande
pedra no meio do rio.
165
O Abrigo São Vicente de Paula, ou Casa dos Vicentinos, como queiram, foi fundado mais
ou menos na década de 1930, tendo à frente os Senhores Jonas J. Brandão e José dos Santos
Torres, com a contribuição inestimável de Salvador Pereira Lima. Por todo o tempo foi
164
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
cumprimento. Isso só no desamparo do não ter apoio nenhum, por velhice, por
doença de pegar. Os do mato, se sem a graça de possuir família, entregues a
Deus e a acudição da caridade de almas boas, como desse. Os que possuíam
família se ancoravam na proteção dela vivendo do compromisso do respeito do
costume, plantado pelas exigências de Deus. Velhos curvos pela judiação do
trabalho, pela passação de necessidades, com pouco de enxergar. O governo
entendeu fazer reparo da situação. Adotou medida criando aposentadoria. Os
velhos se emburacando na procura do FUNRURAL na intenção de se
aposentar166. Carradas deles no caminho de Juazeiro. “Dinheiro fácil, vindo na
valia da vida”, arranjamento de adjutório para se tocar no tempo com os
trocados de todo mês167. Os comerciantes abrindo crédito, eles comprando no
certo de poder pagar, se aumentando no respeito da família.
No mato os pais na briquitação, dando, sozinhos, assistência ao
criatório. Esforço para garantir sustentação de futuro para os filhos. Despesão
danado. Os bichos caindo no pau para sustentar. Feira para casa da rua, feira
para casa do mato. Os meninos desaprendendo, deixando de aprender as coisas
dos traquejos da vida das caatingas, entrando nas delicadezas, nos desejos das
coisas da rua: rádio, bicicleta, roupa bonita, comida de rua, festas. Os filhos
sem voltar. Mais e mais sem voltar.
mantido pela contribuição pública, tendo à frente alguns membros da elite e do da cidade e
também gente do povo com alguma condição, havendo mesmo aqueles que, sem dispor
condições de doar, contribuíam com trabalho, destacando-se aqui o pedreiro José Francisco.
Após a adoção da aposentadoria pelo governo, através da criação do FUNRURAL, seus
membros julgaram que a atividade não fazia mais sentido. Foi transformado em Casa de Apoio
ao Aposentado. Segundo o Sr. Donizete Nunes Franco, vicentino, em entrevista do dia
26.09.99, a entidade retomou seu nome de origem, mas encontra dificuldades para funcionar
como no passado.
166
A aposentadoria dos trabalhadores rurais foi criada a partir de 1971, sendo que seu valor por
essa época era inferior à metade do salário mínimo. Só dos meados da década de 1980 em
diante é que a remuneração passou a ser equivalente a um salário mínimo.
167
Embora o valor da aposentadoria fosse pequeno, necessário é levar em conta o tipo de
consumo que estava incorporado aos hábitos da gente a que aqui nos referimos. O comércio
local, a princípio, não sentiu grande impacto. Como os velhos recebiam suas aposentadorias em
Juazeiro, aproveitavam para efetuar parte de suas compras por lá mesmo. Posteriormente, com
a abertura de agência bancária em Curaçá, a situação se reverteu e a sede do município ganhou
por atrair os velhos dos distritos e dos povoados.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
O mundo mudando, mudando, chegando perto do fim. As coisas se
acabando. O silêncio, o mato crescendo nos terreiros, as cercas caindo, as
cacimbas se entupindo. Os carcarás, os gatos-do-mato , os bichos do mato se
multiplicando no pasto. As secas apertando, com as águas diminuindo, sem
fazer tempo bom. Os mata-pastos sem crescer. Falta de água, falta de comida, a
lamentação. Os bichos minguando, o mato entrando no abandono de casas sem
gente. E cadê gente para adjutorar nos trabalhos de todo dia? Gente
sustentando a alimentação dos desejos, fazendo dinheiro com os bichos dos
outros. Os lobisomens, as almas sem ter a quem assustar, se aquietando,
desaparecendo. Rua! Rua! Rua! Todo mundo indo para rua. Vender as terras.
Gente de fora comprando.
Os políticos precisando de voto, de voto. Olho no povo. O povo tinha
voto. Água de carro-pipa. As cacimbas entupindo. Carro-pipa! Carro-pipa!168 A
matutada gostando, agradecendo a atenção, se enfiando no compromisso com
homem bom. Homem bom de merecimento com os pobres. Lá se vinha
recomendação de doente a médico, a hospital; ajeitamento de papéis para
aposentadoria, ajeitamento pro sujeito tirar o título eleitoral. Os políticos
ajeitando, os políticos perseguindo e o povo fazendo fieira, virando rebanho
esperando água no pé da porteira. Todo mundo se vendo na necessidade de se
agasalhar nas mãos de político. O povo sem saber se achar nos direitos que já
tinha, sem ter força, sem querer, vivendo na dívidas dos agradecimentos,
querendo cair na graça de alguém que pudesse.
Juazeiro longe. Viagem de caminhão. Estrada de terra. Os carros
fazendo poeira. No tempo de chuva, a lama, os atoleiros, os riachos cheios,
empancando os carros e os carros esperando a água baixar. Riacho da Barra
Grande, um tormento. A cheia do rio, Sobradinho querendo explodir: 1979.
Curaçá ilhada. As águas do rio subindo. O povo desesperado, sem ter como
sair, como chegar, viajando a pé pelo Pernambuco. Desespero. O prefeito
fugiu169. Agonia.
168
No início dos anos 70 o emprego de carro-pipa passou a ser uma grande arma utilizada para
o atrelamento político dos caatingueiros. As cacimbas cada vez mais foram sendo entupidas e a
dependência dos homens do campo aumentou.
169
O prefeito da cidade na ocasião se ausentou sem dar explicações, abandonando o povo.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
A irrigação na beira do rio. Cebola, melão, melancia. Adubo, motor,
bomba, veneno, trator. Coisas de comprar, coisas de vender. O povo, na
influência de pegar em dinheiro, de acertar em negócio bom. Trabalho de cada
qual em seu cada qual, sem palpite de pai, sem olho de família, sem
consideração de vergonha de fazer o não certo, de seguir nos caminhos da
consideração do respeito. Farinha, rapadura, abóbora, feijão, batata... coisas
sem futuro, de trabalho que não paga a pena. Irrigação. A beira do rio
mudando, as carnaubeiras, os juazeiros, os marizeiros sumindo, os limpos
nascendo, a água subindo, comendo chão e o povo plantando, molhando,
envenenando, colhendo, ganhando, perdendo. Cadê os beiradeiros? Sonho de
carro, de casa bonita, de dinheiro para gastar. Banco, comprador. O povo nos
trabalho de roça, sem data de ano para trabalhar. Cadê Nêgo d`Água? Chico
Coelho morreu, Seu Piau se aposentou170, os peixes sumiram, os paquetes
desapareceram. A barragem de Sobradinho acabou com o capim d`água, com o
zozó. Na enchente o rio comeu a ilha, levou a canoa de João Pescocinho. Ele
perdeu o encantamento. Parou de assobiar. Entocou-se em um buraco de
ribanceira. Gatos amarrados na entrada, amarrados em uma cruz. Os gatos para
não deixarem cobras entrarem. A cruz para espantar os espíritos. Foi preciso o
povo ir lá arrancá-lo. Ele protestando. E Deus o fez seu enviado. Ele danou a
pregar, a combater as perdições do mundo171. E o rio virou água, um mundo de
água, caminho de barco andar. Os barcos a motor cortando as águas do rio,
subindo e descendo com pressa de chegar. As bombas chupando o rio.
Dinheiro, mercadoria. O povo sem se conhecer, sem se reconhecer. Salário
mínimo, Justiça do Trabalho, cheque, promissória, avalista. Palavra sem valor.
O mato se modernizando. Um viver no parecido do da rua. Carro,
moto, festa com conjunto, gás, roupa lorde, pão, bolacha, refrigerante, cerveja,
televisão172. Carro-pipa, energia solar, poço artesiano. O tamanho dos
chiqueiros diminuindo, os bichinhos berrando. O jeito de criar piorado. Gente
de fora atacando os chiqueiros, pegando os bichos na malhada. Refrigério com
170
O Sr. Piau faleceu após estas linhas terem sido escritas, no mês de setembro de 1999.
João Pescocinho pregou de 1979 até sua morte, que ocorreu por volta de 1988.
172
Curioso é notar que essas modificações, que se verificaram nos costumes do homem do
campo, só se operaram em aspectos vinculados à aparência. Raríssimas foram as pessoas que
fizeram melhorias sanitárias. O mobiliário e o aspecto das construções não sofreu alteração. As
técnicas de criação se mantêm inalteradas, não obstante os problemas tenham aumentado em
muito.
171
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
farelo, com coisa comprada nos caminhões. Vaqueiro sem ter o que traquejar,
perdendo o treino, se acabando e os bichos mansinhos, criados na fome de
ração pouca. Cavalos de enfeite, sem ocupação de corrida nas caatingas brabas.
Mais coisas para comprar, mais coisas com o que gastar. Caatingueiro andando
de carro, de moto. Os caminhos do mato se apagando, os caminhos de rodagem
se acendendo. Os aposentados no sossego do dinheiro do governo, todo fim de
mês173. Os filhos, os netos vivendo do dinheiro dos velhos. Os meninos
estudando nas escolas do mato, com os carros levando e trazendo todo dia,
todo dia. Todo mundo querendo que o governo dê, que o governo faça, que o
governo dê.
A rua crescendo. Estrada asfaltada, posto do Banco do Brasil, agência
do Baneb, banco estadual, sinal de televisão174. Gente de fora, gente do mato
chegando, gente da rua se indo. Os carros correndo nas estradas de toda
direção, levando, trazendo. O povo em um ir e vir sem fim. A rua se inchando,
se inchando. Gente de fora chegando, chegando. O povo sem se conhecer, sem
se confiar. Ruas nascendo nos locais de plantação. Roubos, assaltos,
enganações. Gente se pondo sabida nos desconfios. Trabalho de muitos jeitos,
nos muitos das profissões e o mundão aí, com tudo perto. O povo querendo
emprego, se aperreando na rua sem ocupação de ganho, tendo que comprar,
que comprar, que pagar, que pagar. Ir para onde? Os aposentados recebendo a
aposentadoria em Curaçá. Os comerciantes se animando, esticando a feira
nesses dias. Os carros trazendo tudo, o comércio na fartura de sortimentos
variados. Mas a feira fraca que comércio tem todo dia em todo lugar. O povo
indo comprar fora, no espalho do mundo.
As festas. Quem liga para coisa de santo? Muitas bandeiras andando na
rua, na tiração de esmola para São Benedito, mas pouca devoção O povo na
173
Note-se que os chiqueiros reduziram em quantidade de criação, sendo possível que a média
de animais por chiqueiro não chegue a 45 cabeças. Levando-se em conta que uma criação, em
média, é vendida por R$ 25,00 e que só há parição uma vez por ano, a atividade não consegue
dar suporte de vida a seus praticantes, dentro das atuais exigências de consumo. O salário de
um aposentado – R$ 136,00 - equivale a 5,4 criações mês.
174
A estrada Curaçá-Juazeiro foi asfaltada no início dos anos 80, ocasião em que também foi
instalado posto telefônico e que a cidade recebeu sinal de televisão. Na transição da década de
1970 para a de 1980, foi instalado um posto do BB (Banco do Brasil) e, logo depois, uma
agência do Baneb (Banco do Estado da Bahia).
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
procissão com fé encolhida. Os jovens com devoção envergonhada, os velhos
sentindo saudade e o santo sem alumiação de muita luz de vela. Pobreza de
foguetes. A banda em arremedo não sabe mais tocar a cantiga do santo e o
povo querendo, fraco, desentoado. O padre se esforçando, mas sem saber. O
povão mesmo nas barracas, na barulho das músicas de sucesso. Festa, festona
na rua com conjunto afamado. Os marujos crescendo, mais gente participando.
A fila de gente querendo ser rei, ser rainha. Festa dos vaqueiros com vaqueiros
de enfeite, vestidos com roupas de pano, montados em cavalos grandes,
arriados com selas coloridas. Os vaqueiros de verdade em cavalinhos de
trabalho do aprumo das caatingas, sem espaço de liberdade na rua. Aboios?
Aboios de disco, cantados em carros-de-som. Os vaqueiros desfilando atrás do
carro-de-som, em romaria no silêncio de suas vozes, sendo levados, sendo
levados.
O teatro se arruinando, se desmilinguindo pelo gasto do tempo. O povo
do lugar sem força para reconstrução. Trabalho de recuperação. Dinheiro
vindo de fora. Devagarinho, devagarinho se embonitou de novo. Marcos da Ré
que deu providência, no chamado da Ararinha Azul175. Padre José fez pedido,
arranjou as cadeiras. Tá lá, bonito, pedindo uso, cansado de solidão.
Os costumes mudados. Tudo no diferente de antes. Os pais sem a
atenção do respeito dos filhos, perdendo condição de mando. A justiça fazendo
os impedimentos da disciplina dos filhos pelos pais. A lei dos homens
governando o mundo. Os estatutos de outro jeito. O povo no desconhecimento
de como ser. Os velhos vindos do mato se misturando com os velhos da rua,
jogando dominó, jogando pulha, esperando o tempo passar, assuntando o
mundo, se admirando com as coisas aparecidas. Os jovens nas providências das
novidades, sonhando com ganho de emprego, ganhando para gastança nos
pagamentos de compra de roupa, de bebida, de entrada de festa, querendo
carro, abandonando o fazer, o ser dos pais. Festa direto. Os bares estrondando
som, a noite toda. A polícia rodando, vigiando os movimentos do povo e todo
mundo animado desanimado176.
175
Marcos da Ré, catarinense, agente iniciador do Projeto Ararinha Azul, desenvolveu
campanha de reforma do Teatro e conseguiu apoio da Fundação Louro Parque (entidade
espanhola) e de parte da população local.
176
Nos dias atuais está havendo um volume acentuado de drogas circulando entre a juventude,
o nível de criminalidade acentuou-se bastante e há também um grande número de moças
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Cadê os doidos? Os doidos vivos se endoidecendo. Zé Doido
procurando o mundo no mato, nos caminhos sem rumo, sem lugar de bem
querença na rua, agora trancado. Domingão triste, porrinhas bem fracas, bem
baixinhas, sem entrosamento de amizade com o povo chegante, de vez em
quando se dando a fugir nas caminhadas pelas caatingas. Goizinho foi levado
embora, vive em outro mundo sempre pedindo para voltar177. Neném foi morar
no mato. Vive reclamando, querendo Curaçá. Nerimar vivendo na rua.
Incutição de ser artista, tocando guitarra sem som, aproveitando a música dos
bares para fazer apresentação. De vez em vez um maltrato contra ele. Miau,
esturrando miados, fazendo caretas, assombrando os desconhecidos. A cidade
sem lugar para os doidos, os doidos sem lugar de boa aceitação.
Uma parte do povo procurando jeito de arranjar recursos que chegue
para o sustento do sonho da vida da modernidade do jeito de ser. A sabedoria
campeando nas enrolações de palavras floreadas, garantindo dinheiro para
amanhã. O fiado amedrontando os comerciantes e o prefeito agoniado com a
fila de gente atrás pedindo emprego, adjutório. Os patrões assustados com os
trabalhadores, que aprenderam o caminho da Justiça do Trabalho, reclamando
direitos. Os trabalhadores sem o preparo exigido pela vida presente 178. O povo
do mato se queixando de seca, na certeza da mudança do mundo, querendo
maneira de se melhorar. Reuniões, discussões. Formar associação: a frase dita e
repetida pela gente do governo. O povo formando associação, correndo para se
amparar nos recursos do Banco. Depois do dinheiro na mão, cada um em seu
cada um, sem ligança para a união necessária da coisa: enfeite de casa, compra
de carro, de moto, roupa, festa. Poucos se aplicando nos investimentos para o
futuro. O prefeito falando, buscando novidade, promovendo cursos e o povo
sem crença na força própria. Riacho Seco indo, entendendo as coisas na frente,
se adiantando na história, crescendo. Os moradores dos outros distritos
ciumando, olhando de braços meio cruzados. Uma parte do povo se agarrando
nos jeitos velhos do passado, vendo o mundo se acabar, se entregando,
reclamando da safadeza do mundo, da mudança do clima, recordando as
adolescentes engravidando.
177
Faleceu recentemente, quando este trecho já estava concluído.
178
Inclua-se como trabalhadores, inclusive a maioria, os funcionários públicos, que ainda não
se compenetraram da necessidade de mais agilidade, eficiência e compromisso com suas
atribuições.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
profecias do fim do mundo, sem dar fé à modernidade. De quando em quando,
a notícia de um sujeito mudando o pensamento, entendendo a forma de se guiar
na vida procurando outras maneiras179.
Curaçá180 frente a frente com o futuro, na intenção do colorido dos mundos
distantes, elegantes, reluzentes. Recomeçar. Botar a cabeça para frente, fazer o
a ser feito, entrar no mundo do mundo novo. Outras tristezas, outras alegrias.
Quem entende esse mundo? Como será?
179
Na administração do atual prefeito, Salvador Lopes Gonçalves, foram realizados vários
cursos preparatórios para novas atividades e de modernização de atividades antigas. Ocorre,
entretanto, que os resultados são ainda embrionários, devido à resistência das pessoas. Mesmo
quando muitas dessas pessoas manifestam simpatia por novos métodos de trabalho, não
conseguem assimilar os procedimentos que a atualidade exige. De qualquer modo, muitas
associações foram criadas e a idéia associativista está em expansão em todo território do
município.
180
Posição da sede do município: latitude: S, 8º 59’ 27” ; longitude: W. Gr. 39º 54’ 41” . A
altitude é de 350m. Segundo João Matos, p. 49, “pelo recenseamento de 31 de dezembro de
1890, a população do Município atingia 12.000 habitantes”... O recenseamento de 1920
registrou uma população de 16.500 habitantes. De acordo com João Matos, por volta de 1926
Curaçá possuía "200 casas bem construídas e alinhadas, formando 3 praças e 4 ruas, com mil
habitantes". Em 1940, segundo o IBGE - Sinopse Estatística, 1948 – a área territorial do
Município de Curaçá era de10.628 km² e a população estimada em 21.331 habitantes, 1.884 na
zona urbana e suburbana e 19.447 na zona rural. Na sede, nesta época, existiam 23 logradouros
públicos. Havia cinco distritos: distrito sede (Curaçá) com 4.091 habitantes sendo que 918 na
zona urbana e 3.173 na zona rural; Barro Vermelho com 3.053 habitantes, sendo que 290 na
zona urbana e 2.763 na zona rural; Chorrochó com 5.021 habitantes, dos quais 360 na zona
urbana e 4.661 na zona rual; Ibó com 5.923, sendo que 66 na zona urbana e 5.857 na zona rual;
Patamuté com 3.243 habitantes dos quais 250 na zona urbana e 2.993 na zona rural (Em 1926,
segundo João Matos, já era essa a divisão administrativa). Entre a população de 5 anos e mais
sabiam ler e escrever 3.245 pessoas; não sabiam ler e escrever 14.741. Declaram-se católicos
21.235, contra 83 de outras religiões. Foram recenseados 24.451 bovinos, 3.315 equinos,
11.303 asininos e muares, 6.041 suínos, 44.142 ovinos, 146.126 caprinos e 13.484 aves - In
Sinopse Estatística - Município de Curaçá -, IBGE, Rio de Janeiro, 1948.
Em 1953, com a elevação de Chorrochó à condição de município, Curaçá perdeu
3.919 km² ficando com uma área de 6.709 km² (Segundo a SEI – Superintendência de Estudos
Econômicos e Sociais da Bahia, a área do município é de 6.476,0 km²) sua atual área
territorial. A partir de 1953, pela Lei nº 628 de 30 de dezembro, os distritos de Curaçá
passaram a ser os seguintes: distrito sede (Curaçá), Riacho Seco, Barro Vermelho, Poço de
Fora e Patamuté, sendo esta a mesma situação administrativa da atualidade, acrescida dos
povoados de Mundo Novo, Pedra Branca, São Bento e as Agrovilas – pertencendo estas duas
últimas aglomerações ao distrito de Riacho Seco.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Segundo o censo estatístico do IBGE, realizado em 1996, a população do município
naquele ano era de 25.219 habitantes sendo 9.762 na zona urbana e 15.457 na zona rural e uma
densidade demográfica de 3,89 habitantes por km². No distrito sede foram contabilizados
10.361 habitantes, dos quais 7.112 urbanos e 3.249 rurais. Em Barro Vermelho: 731 habitantes
(201 da zona urbana e 539 da zona rural); Patamuté: 2.455, 355 habitando a zona urbana e
2.100 na zona rural; Poço de Fora: 1.612 habitantes, (614 na zona urbana e 998 na zona rural);
Riacho Seco: 10.051, (1.480 na zona urbana e 8.571 na zona rural).
Segundo ficha cadastral da Fundação Serviço de Saúde Pública, a sede do município
possuía, em maio de 1999, 2.269 domicílios, sendo que, destes, 1.837 estavam ligados à rede
de esgoto, quase toda realizada a partir de 1997. Os dados do SAAE, também no mês de maio
de 1999, apontaram a existência de 126 logradouros públicos.
No censo de 1996, o rebanho do município estava assim constituído: 34.128 bovinos,
11.427 suinos, 2.463 equinos, 6.810 asininos (jumentos), 1.748 muares (burros), 67.661
ovinos, 254.184 caprinos. Em 1998, pesquisa do SEBRAE identificou 260 estabelecimentos
comerciais, sendo que 35% deles eram bares, 20 unidades industriais (30% de padarias), e no
setor de serviços 110 unidades (31,82% no ramo de costura). Estes dados, embora não
claramente especificados no documento, ao que parece referem-se ao município como o todo e
não estão discriminados por distritos (está contabilizado como estabelecimento qualquer
atividade, mesmo que seja desenvolvida em nível individual e embrionário) – In: SEBRAE PERFIL EMPRESARIAL (de Curaçá), 1999.
Em 1999, a Secretaria de Educação do Município matriculou 8.858 alunos, dos quais
966 no ensino infantil, 21 no ensino especial, 7.222 no ensino fundamental, 524 no curso de
magistério, 125 em educação básica. Destes, estão matriculados na sede 433 em educação
infantil, 21 em educação especial, 1.719 no ensino fundamental, 140 no curso de magistério,
125 em educação básica, um total de 2.438 matrículas.
Total de recursos da prefeitura, incluindo o FPM, nos meses a seguir:
-Fevereiro: R$ 436.676,02;
Caminhos de Curaçá
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-Março: R$ 529.211,91;
-Junho: R$ 383.922,06;
Outubro: R$ 455.615,20 (meses correspondentes ao ano de 1999).
Distâncias entre distritos e povoados: Curaçá - Riacho Seco: 42 km / Curaçá - Pedra
Branca: 91 km / Curaçá - Agrovilas: 102 km/ Curaçá - Patamuté (via São Bento): 84 km /
Curaçá - São Bento: 42 km / Curaçá - Barro Vermelho: 54 km / Curaçá - Mundo Novo: 96 km /
Curaçá - Poço de Fora: 78 km / Riacho Seco - Pedra Branca: 48 km / Riacho Seco - Agrovilas:
60 km / Patamuté - Barro Vermelho: 42 km / Patamuté - São Bento: 42 km / Barro Vermelho Poço de Fora: 24 km / Barro Vermelho - Mundo Novo: 42 km.
Limites do Município de acordo com a Lei nº 628, de 30 de dezembro de 1953:
- com o Estado de Pernambuco: começa no rio São Francisco, na foz do rio Curaçá,
desce pelo talvegue do rio São Francisco até a foz do riacho do Pambu (quatro
municípios pernambucanos são fronteiriços: Lagoa Grande, Santa Maria da Boa
Vista, Orocó e Cabrobó);
- com o Município de Abaré (esta divisão não está coberta por essa Lei, pois
Abaré só veio a se emancipar de Chorrochó recentemente, por volta de 1962) :
começa na foz do riacho do Pambu, sobe por este até sua nascente, daí em reta até
a nascente do riacho Santo Antônio, daí em linha reta até a foz do Riacho
Jaquinicó e, daí, em reta até as proximidades da fazenda Horizonte;
- com Chorrochó: Seguindo das proximidades da fazenda Horizonte, através do
riacho da Vargem até as proximidades da fazenda Lagoa da Pedra, daí seguindo
em sinuosidade até o ponto mais alto da serra dos Cágados, na divisa com o
município de Uauá (Também este limite não está em conformidade com a referida
Lei pelo mesmo motivo do caso do município de Abaré);
- com Uauá: começa no ponto mais alto da serra dos Cágados; daí em reta até o
marco no alto da serra da Canabrava ao norte do povoado do mesmo nome, daí
por outra reta até o marco do alto da serra do Januário;
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
DISTRITOS
-
com Jaguarari: começa no marco do alto da serra do Januário, de onde segue em
reta até o marco no lugar Boa Vista (ou Bela Vista?), no rio Curaçá;
com o município de Juazeiro: começa no marco no lugar Boa Vista, no rio
Curaçá, e por este abaixo até sua foz no rio São Francisco.
Caminhos de Curaçá
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BARRO VERMELHO
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Vai longe o tempo que começou. A história é a história vinda das
lembranças dos mais velhos. Naquele tempo o povo não tomava nota das
coisas. Ficava tudo aí, rolando de boca em boca, de cabeça em cabeça, nos
andos e desandos do mundo. Fazer finado viver, quem quiser precisão, que o
outro século, há muito, já se acabou e a memória o tempo comeu.
Do que se sabe, o início foi com Joana do Garrote. Mulher rica,
fazendeira, dona de dinheiro de ouro e da Fazenda do Garrote 181. De onde ela
veio? Sei lá! Talvez de Portugal. Tinha marido, um tal de Francisco Félix. Pelo
parecimento da história, não era um sujeito por exemplo182. Ela não parou
naquele mesmo do lugar. No desembaraço da labuta, fez vida de fazendeira e
esparramou raiz por longe, abrindo curral para as bandas do riacho que seus
vaqueiros deram o nome de Mundo Novo. O casal teve quatro filhas. Uma das
filhas se casou183 e o marido botou fazenda por perto, nas terras da sogra. Foi
vivendo ali. Porque sim, porque não, outros parentes se chegando, morando
perto, fazendo situação e, quando viram, já era uma pequena aglomeração no
meio da caatinga184. Devagarinho, devagarinho o povo se multiplicando,
formando parentalha. Aqui, ali, um casamento com gente de fora, com gente
chegante, mas logo, logo, viravam a mesma “progena”185, nas misturas do
sangue.
181
A Fazenda Garrote ainda existe com esta mesma denominação e situa-se próximo a Barro
Vermelho. Informação de Hélio Oliveira.
182
Segundo provérbio de alguns curaçaenses existe homem por acaso e homem por exemplo.
183
Conforme dizem alguns dos mais velhos de Barro Vermelho, o marido dessa moça, de
nome Josefa, era Francisco Gonçalves Brito, supostamente, originário do Riacho do Navio,
Pernambuco. De acordo com o Sr. Dilson Martins Oliveira, *1924, este casal teve, mais ou
menos, 10 filhos, dos quais apenas dois eram mulheres, e fixaram residência em Barro
Vermelho.
184
Segundo Hélio Oliveira essa pequena aglomeração tinha se formado em torno do ano de
1850.
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Barro Vermelho... Terá sido esse o nome desde o tempo de começo?
Há uma história. Por ela, esse nome porque um padre, ao ser mal recebido
pelas pessoas, quando passava pelo lugar, se zangou e jogou uma praga: “Tu és
barro vermelho e barro vermelho ficará. Haverás de crescer que nem rabo de
égua186”. Bateu o pó dos chinelos e se foi, atazanado, sem olhar para trás. O
povo ficou crente naquilo, conversando pelos tempos.
Havia muitas fazendas por perto do lugarejo. O povo
aumentando, aumentando. Feira no rio, em Curaçá. Cada um no seu por si, pelo
meio do mato, fazendo vereda. Comprar, vender, tudo, tudo, lá. Em Juazeiro,
vez por outra. Gente, bicho de idéia, alguém atinou. Começou a fazer revenda,
compra das coisas do mato, pele de bode187, pena de ema, essas coisas.
Comércio grande, ainda em Curaçá. Nesse que nesse, veio outro e outro e
nasceu uma feirinha, debaixo de um tamarindeiro. Eras de 1903, por aí. Depois
construíram um barracão. O povo se juntando no compra e vende, mais trocatroca, que dinheiro era raro. Os tropeiros é que iam ao rio. Aquela enfieira de
jegue, tudo carregado: farinha, feijão, rapadura, abóbora, batata, fumo, gás188,
um tudo por tudo. Quando chovia, um Deus acuda de sofrimento, os animais
atolando, jegue deitando. Na seca, o sol, a água longe. Outros tropeiros vinham
de mais longe ainda. Vinham de Sergipe, também de Juazeiro. Ganhou
importância, virou distrito189.
185
Progênie: origem, procedência, descendência.
Esta é a versão dos moradores, quando tentam explicar a origem do nome do lugar.
187
Era, normalmente, através da venda de peles de bode que os caatingueiros conseguiam
recursos para efetuarem a feira. Na maioria das vezes a feira era efetivada com a venda de uma
única pele.
188
Querosene, que era o único combustível utilizado para iluminação.
189
Barro Vermelho foi elevado à condição de distrito em 1911. Sinopse Estatística do Estado
da Bahia, In: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – Conselho Nacional de Estatística,
1948, Rio de Janeiro.
186
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Barro Vermelho cresceu mais, foi se situando. Os padres passando,
pregando. Santas Missões de 1912. Os padres fizeram incentivo, ordenação
para o povo para construir igreja. O povo carregando pedra, areia, fazendo cal.
As paredes levantadas, o altar feito. A força acabou190. São João Batista, o
padroeiro191. Sagrado Coração de Jesus192, muito venerado, até com
homenagem de comemoração. Adoração sem proteção de telhado. Nas festas,
cobertura só para as festas, de palha, qualquer coisa assim. Depois, mais
adiante, com uns dez anos as forças renasceram e igreja terminada. Não tinha
bancos. O povo assistindo missa em pé, se sentando, se ajoelhando no chão. Os
mais mais providenciaram cadeiras, marcando lugar. Os outros aí. Uma porção
de velhinhas com panos na cabeça, venerando, ouvindo o padre falar em latim,
que era assim que era193.
Agora, lugar distinto. Os fazendeiros fazendo casas, se arruando nos dias
de feira, nos tempos de festa. As mulheres gostando. Uma civilização. Os
pobrezinhos também foram se chegando, fazendo casinhas de palha, formaram
a Rua da Palha, ali perto da Cacimba Velha, do lado do Riacho Dema, vivendo,
Deus sabe como.
190
A igreja de Barro Vermelho foi construída em duas etapas. A primeira etapa teve início em
1912, através de mutirão sob a liderança de João Onório de Oliveira, com a levantação das
paredes. A segunda etapa, em 1923, sob a liderança de Jovino Ribeiro, quando a obra recebeu
cobertura e foi finalmente concluída. Informante: Hélio Oliveira.
191
Comemorado no dia 24 de junho, sendo a festa profana realizada da noite de 23 para 24.
192
O Sagrado Coração de Jesus é comemorado em data rotativa: último final de semana do mês
de setembro.
193
Informações prestadas por Dona Quiquinha (Maria Oliveira Coelho, *1913), e pela
Professora Filadélfia Fonseca Ribeiro, *1914.
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O lugar se afamando, virou sede de distrito194. Fundou filarmônica195.
Música comendo no centro, animação. Filarmônica 15 de Março. Os meninos
aprendendo, os mais velhos ensinando. Sem sossego. Todo lugar queria
música: Patamuté, Uauá, Curaçá, acompanhando os padres nas desobrigas,
aquela coisa. Nas desobrigas, nas festas dos lugares, a banda indo e vindo,
acompanhando os noivos, os batizados, fazendo acompanhamento na
procissão. A paga dos músicos? Festa, bebida, comida, dormida. Dez, quinze
dias fora de casa, fazendo alegria. O povo entusiasmado, admirado, invejando,
querendo ser um. Os músicos formaram jazz196, tocavam nas festas dançantes,
ganhando uns troquinhos. Dois trompetes, um sax, dois trombones, cabaça,
pandeiro, pronto, estava o conjunto formado. De dia a filarmônica, de noite o
jazz, nos clubes, fazendo a festa dos ricos.
194
Em 1926 já era sede de distrito. In: Matos, 1926, p. 92.
A Filarmônica 15 de Março teve sua fundação em 1917. Foram maestros consecutivamente:
Antônio Alves, Arnobre Varjão, Isaulino Gonçalves, Sr. Filemon e atualmente Hélio Oliveira
é o responsável.
196
No caso significa banda, conjunto.
195
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Escola chegando. Primeiro os professores pé-de-pau, pagos pelos pais
dos meninos. Aprender as primeiras letras, a fazer conta, cantar bem a tabuada.
Menino rude se via na peia. Seu Berlarmino, Seu Benício de Moraes, Dona
Lindaura, os professores mais conhecidos. Andavam de lugar em lugar,
ensinando, conforme fossem chamados. Professora mesmo, de diploma, só
depois. Primeiro foi Dona Leni Cardoso, por pouco tempo. Depois a professora
Elisabeth Bahia, vinda de Curaçá, ficou mais. Quando se foi, aí veio uma
professora do lugar mesmo, a professora Filadélfia Fonseca197. Muitos meninos
moravam longe, nas fazendas. Vinham todo dia, montados nos jeguinhos.
Vários pais não davam importância, não. Esse negócio de escola, para quê! Só
é preciso aprender a ler, a contar. De resto a vida ensina, que não é preciso
escola para poder aprender a derrubar boi e nem a trabalhar com enxada. As
mães pensavam de outro jeito, pediam que a professora convencesse seus
maridos. Ela fazia campanha, aconselhava. Era tida com respeito, às vezes
conseguia vantagem.
Água, a dificuldade. O tanque do Governo às vezes secava, de acordo o
andar das chuvas. No longe das chuvas a água engrossava. Servir-se da
Cacimba Velha198, lá no riacho, fazer cacimbinhas dentro dela. Abrir buracos
chão abaixo, até dar minação. Esperar a água chegar, um sacrifício, ali
aparando, enchendo a cuia. Cada um cuidando da sua, evitar sujeira dentro.
Bem tapadinhas, para o riacho não entupir, para os bichos não caírem dentro. A
água era boa. Lavar roupa, aí o problema. Também quase não tinha roupa. Os
ricos mandavam lavar fora, longe. A pobreza se ajeitava no seu conforme.
Assim se ia.
197
A educação formal iniciou-se em Barro Vermelho no início da década de l930. A
professora Filadélfia Fonseca Ribeiro, natural desse distrito, iniciou seu trabalho em Patamuté,
no ano de 1938, para onde se deslocava a cavalo no final das férias. Neste mesmo ano
conseguiu transferência para sua terra onde lecionou de 1938 até 1965, quando se aposentou
por invalidez.
198
A Cacimba Velha foi construída, segundo é acreditado, por escravos que, no trabalho de
escavação, utilizaram-se de gamelas e banguês para carregarem o material que retiravam.
Informação fornecida por Hélio Oliveira.
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O comércio crescendo. Seu Augusto Martins, Euclides, seu Jovino
Ribeiro, depois seu Agostinho, seu Isaú, botaram armazém. Dia de feira, um
mundão de gente. Um converseiro danado, chega fazia zuuuuu. De longe se
ouvia. Tinha a turma da cachaça. Ficava por ali, nas vendas, contando
conversa, procurando assunto, bebendo, fazendo volta na frente do balcão. No
tarde da tarde começava a se desmanchar. Uns com feira feita, outros por fazer.
Alguns pegavam suas montarias e se encaminhavam bambaleando pelos
caminhos; outros ficavam mais, falando alto, dizendo, dizendo, se
desentendendo com os colegas. No mais das vezes acabavam no Beco da
Porrada, no enrola-enrola de confusão feia de tapas e puxadas de faca. O povo
se assanhava em correria, uns para cima outros para longe. Não havia solidão
Apareceu correio, seu Bento Matos carregando os malotes nas costas,
caminhando a pé, indo e vindo direto, Barro Vermelho-Curaçá. Assim até que
apareceu o caminhão do correio, fazendo o caminho Chorrochó-Patamuté–
Barro Vermelho-Juazeiro. O caminhão de seu Zinho de Patamuté fazendo
linha, caminhando na direção de Juazeiro. O povo esperando, querendo viajar,
resolver coisas, procurar providência para saúde. Gente do lugar comprou um,
ficou melhor199. Partida, chegada mais certa. Até prédio escolar apareceu200.
Barro Vermelho virando comércio.
Um padre fazendo pregação. Padre José Luna. Achou a igreja acanhada,
sem bancos para o povo sentar, sem mobiliário. Deu a fazer campanha. Pediu e
pediu. Homem jeitoso, de palavra chamativa. O povo foi dando, fazendo
contribuição. Ele arranjou umas coisinhas por fora. Abancou a igreja, botou
mobiliário201. Ficou bonitinha. O povo agradeceu.
199
200
201
O Sr. Augusto Martins adquiriu um caminhão e passou a fazer linha regular.
Segundo Hélio Oliveira, o prédio escolar foi construído em1949.
Padre José Luna trabalhou no município de 1958 a 1961.
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A festa de São João Batista. O povo todo vindo. Os de longe e os de
perto. Todo mundo na veneração. A igreja cheia. O padre pregando, o povo
rezando, cantando. Os foguetes no ar, pipocando. O cheiro de vela. Aqui, ali, a
banda se assanhando. Aquela gente toda se vendo, se abraçando, se
encontrando. Um pergunteiro danado. Depois bebida, dança até o sol alto. No
fim a procissão. São João Batista no alto, carregado. A Filarmônica tocando.
As filas de gente acompanhando, passo a passo em passos pequenos, fazendo
respeito. A fila saía, a fila chegava, pronto. Despedidas.
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Os rapazinhos indo estudar fora, na procura da formação de ginásio.
Umas mães indo junto. Juazeiro, Bonfim, poucos para Salvador. O povo
ganhando o mundo: São Paulo, outros cantos. Lugar sem emprego, os homens
na labuta do sempre; as mulheres, costurando, bordando, lavando, cozinhando,
sem outro meio de vida. Só na dificuldade da labuta bruta. Os situados ainda
tinham o seu, se faziam no seu de criação de bicho; os sem situação, vendendo
dia, quando havia alguém para comprar, vivendo do mato: tirando casca de
angico, caçando, arrancando pena de ema, comendo tatu. As agonias. Quem
voltava? Só gente indo, indo, indo202. Os músicos também se foram, se
esbandalharam mundo a fora. De vez em vez é que vem. Os velhos ficavam. O
governo botou salário de aposentadoria. Um adjutório bom. Refrigério dos
velhos. Dinheiro sem sacrifício, todo mês, todo mês. Uma beleza.
A feirinha203 ficando fraca, o povo comprando em outras bandas, no
mais em conta. Os aposentados recebendo dinheiro fora, aproveitavam e já
faziam a feirinha. Quase não precisavam mais do comerciozinho, que é mais
caro. Assim as coisas correm. Aparência de deserto. Até os velhos se vão. Os
filhos carregam, levam-nos para perto da assistência. Casas fechando,
fechando. A rua sem gente, a feira apagada, bancos vazios nas portas. Silêncio.
Um vulto aqui, outro longe, um grito solitário no vento. Os que ficam sentem.
“A vida aqui é uma solidão retada!204”. Viver de pensamento. Pensar no
passado, nos que foram, no sucesso e nos insucesso que alcançaram. Adelmário
Coelho, o orgulho205. Mas tem a festa.
202
De 1960 em diante o processo de emigração se aprofundou.
A feira semanal de Barro Vermelho ocorre às quartas-feiras.
204
Frase do Sr. Dilson Martins Oliveira, *1924, em setembro de 1998. A esse respeito, Dona
Quiquinha, 1913, disse: “No passado ninguém reclamava de solidão. Ninguém conhecia nada.
Todo mundo era cego. Nas caatingas a gente achava bom, quanto mais no comerciozinho!”.
205
Adelmário Coelho é cantor de projeção em todo o Nordeste brasileiro.
203
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Dia 23 de junho chegando. O quem vem, quem não vem começa. Os
recados: limpem minha casa, ajeitem as coisas, estarei aí... Providências: ajeitar
a igreja, arranjar meio para a Filarmônica, arrumar as coisas. O povo chegando,
chegando, se encontrando, dizendo, perguntando, bebendo, festejando. Gente
que não se conhece se conhecendo: a “progena” feita longe. Uma alegria
danada. A festa canta e canta, mas termina. Despedidas, choros, partida.
Recordações206.
Meninos continuam nascendo. Mais no mato, que na rua quase
não têm. Trouxeram as escolas do mato para a rua. Dia de aula tem
movimento. Menino que só o diabo, chegando nas caminhonetes, gritando,
trazendo vida. Estudam. Depois se retiram. O silêncio volta. No outro dia tem
mais barulho. Para esses o se ir está acabando. Ir para onde, com tanto
desemprego no mundo? Ajeitar-se por aqui mesmo. Fazendo o quê, ninguém
sabe? O mato vai nascer de novo207?
206
Recordações. Para que se tenha uma idéia mais clara, enquanto, em 1996, o IBGE contou
201 habitantes na sede do distrito, sendo 104 do sexo feminino e 97 do sexo masculino. Em
1940, o mesmo órgão registrou a existência de 290, de acordo com a Sinopse Estatística do
IBGE de 1940, p. l3, e em 1950 a população era de 360 habitantes, segundo a Enciclopédia dos
Municípios da Bahia, 1958, p. 211. A secretaria de Saúde de Curaçá contabilizou, em 1999,
158 prédios na sede do distrito. A Secretaria Municipal de Educação contabilizou, em 1999,
172 matrículas, sendo 17 no ensino infantil e 155 no ensino fundamental.
207
A energia elétrica foi instalada em 1974, o posto médico nos meados da década de 1980, o
dessalinizador em, 1994 e a água encanada em 1997. Em março de 1999, segundo dados da
Secretaria Municipal de Saúde, Barro Vermelho possui 158 prédios. O IBGE, no censo de
1996, contou 201 habitantes na sede do distrito, 104 de sexo feminino e 97 de sexo masculino.
Situa-se a 54 km, da sede do município, a 24 km de Poço de Fora, a 42 km de Patamuté e a 42
km de Mundo Novo. Faz divisa com o município de Juazeiro, com os distritos Poço de Fora,
Patamuté e com o distrito sede, Curaçá. As divisas são as seguintes:
a - com Curaçá: começa no rio Curaçá, na foz do riacho do serrote Pelado; sobe por este até a
foz do riacho do Banguê; sobe por este até a sua nascente; daí em reta até a nascente do riacho
Jaquinicó.
b – com Patamuté: começa na nascente do riacho Jaquinicó, daí em linha reta até a nascente do
riacho Patamuté; continua em reta até a nascente do riacho Espírito Santo.
c – com Poço de Fora: começa no rio Curaçá, na foz do riacho Espírito Santo, sobe por este até
sua nascente.
d – com o rio Curaçá.
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PATAMUTÉ
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Um homem, morador pelas bandas de Canudos, ouviu uma fala: “Em
Rodelas tem uma índia que sabe onde existe um grande olho d`água nos
campos de Curaçá”. O homem era criador. Atentou naquele dito. Ele era de seu
propósito. Os campos de Curaçá tinham pasto, ele sabia. O gado que possuía já
era demais nas terras de sua fazenda, lá nas bandas do rio Vaza-Barris.
Pastinho pouco, bicho muito. Procurou a índia. Ela se dispôs. Lá se foram. A
prova do dito foi mostrada. No olho d`água tinha uma anta. A anta se assustou.
Mergulhou na água, sumiu. A índia viu o mergulho dela e gritou: “Patamuté,
patamuté!”208. Um riacho com água, muita água para mais de muitos metros no
correr do comprido dele. Tinha peixe também209. O homem fez a situação do
lugar. Patamuté ficou nome de fazenda. Isso lá no tempo do não se sabe. O
tempo comeu a memória do continuar da história.
Foi feita uma casa210, um chiqueiro e um curral. Plantou-se criação: gado,
cabra, ovelha. O fazendeiro botou um vaqueiro e ele foi se levando na vida
assim. Todo mundo se levava assim: na labuta, se aperreando nas agonias do
mato. Aquela solidão danada. Só berro de bicho, tocar de chocalho, ronco de
ema, assobio de cascavel, canto de cigarra. O ventão assoprando, de noite:
vuuuu, chaaaa, chaaaa. O sol, a seca, a chuva, o verde, o sol... De longe em
longe, um boiadeiro, um viajante perdido. Outros foram se aprochegando, se
situando nas terras de perto, perto longe de mais de légua. Ouvidos afiados,
208
Segundo alguns, o termo patamuté, na língua cariri, significa anta na água, anta caiu na
água. Entretanto, o neto do fazendeiro em apreço afirmava que era a própria índia que se
chamava Anta. O nome do fazendeiro era Pedro Martins e se neto era o capitão Pedro Pereira
de Alcântara. In: Matos, p. 90. O Sr. Didi (João Pedro da Cunha, *1917), afirma que Pedro
Martins era mais conhecido pelo nome de Barão de Geremoabo.
209
Na década de 1960, a água que se acumulava no paredão atingia mais de 500 metros no
correr do riacho.
210
Segundo os moradores mais antigos, a primeira casa, que era a sede da fazenda, é uma
casinha que se encontra em ruínas, situada no segundo quadro da sede do distrito e que
pertencia aos Chias ( um povo de quem não se tem mais notícias). Os moradores dessa casa
provavelmente tenham sido os primeiros vaqueiros da fazenda. Segundo o Sr. Didi (João Pedro
Cunha, *1917), o primeiro morador foi João Paulo, vaqueiro do Barão de Geremoabo.
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conversa para muito tempo. Assuntar, matutar,
aproximação sem
aproximação, que o mundo é cheio de história e o diabo não dorme. Esse povo
de longe... sei lá! O tempo andando, andando, o povo virando finado. Os
mesmos se vendo no sempre mesmo da vida, de quase não existir um morador
novo, na redondeza. Mas chegava o desespero das secas brabas, e lá se vinham
eles, os outros moradores de perto, trazendo seus animais, procurando
refrigério de água. Iam se agasalhando por ali, arranjando comida de
mandacaru, de xique-xique para o gado, para eles também. Os tropeiros, os
boiadeiros, na descoberta de água no lugar, começaram a fazer apoito por ali. A
fazenda ganhando freguesia de gente, no mais e mais tomada de conhecimento
de gente das lonjuras do mundo. Assim é que se acredita que foi, e pode ter
sido desse jeito mesmo. Aquele aguaceiro no riacho, com poças fundas e até
peixe existindo, tudo isso no meio da caatinga, não deixava de fazer espanto,
de atrair a atenção do povo.
O fazendeiro, dono do lugar, viu que dava para ser mais. Mandou
construir um paredão no riacho, represar água, buscar mais vida. Uma obra de
vantagem, sem outra para comparação. E deram um nome ao riacho: riacho do
Paredão211. E assim ficou para o sempre da história do até hoje.
O povo foi se chegando, correndo das dificuldades trazidas pela seca,
pela escassez de água. Foi se abancando no lugar, chegando mais para perto,
botando sitiozinhos. Os tropeiros se arranchando por ali, fazendo descanso,
atraíram moradores da redondeza que vinham buscar novidades, fazer
compras, vender o que tinham. Um ponto de encontro, um lugar de gente se
ver, de fazer negócio. Fora daí, comprar umas coisinhas só em um longe sem
fim, sofrimento de estradas compridas, aquele desertão das caatingas. Isso era
lá pelos idos do final do século XIX212. Uma casinha, mais outra casinha, o
povo se chegando, o lugar virando feira, tomando jeito de lugarejo, até padre
começando a passar, fazendo desobrigas de tempos em tempos. Os fazendeiros
também foram se chegando, fazendo casas e o lugar se encorpando. Houve
entusiasmo. Deu-se no povo a necessidade de construir uma igreja, coisa feita
211
Os mais velhos acreditam que essa pequena barragem tenha sido construída por escravos, a
mando do proprietário da fazenda.
212
Os documentos que dizem respeito sobre a propriedade das terras de fazendas da região, e
que se têm notícias, são datados por volta de 1860. Por esse período, é provável que os
primeiros situadores das terras com gado o tenham feito por volta do início do século XIX.
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por volta de 1902 para 1903213. O povo naquela futrica, se ocupando do
trabalho sagrado, carregando pedra, areia, fazendo a construção. Nisso lá vêm
passando uns retirantes e viram aquela movimentação. Um deles perguntou:
“quem é o padroeiro daqui?” Não tem – foi a resposta. O retirante carregava
uma imagem de Santo Antônio e a deixou como oferenda. O povo viu sentido
nessa atitude e tomou o santo como padroeiro214. Obra da igreja acabada. Não
tinha banco, cada um que levasse sua cadeirinha. Muita gente em pé, ouvindo
as pregações.
Alguém se deparou com uma gruta215. Susto! O povo ficou admirado.
Aquilo só podia ser obra do divino, coisa do começo dos tempos. Um padre
andava fazendo pregação das Santas Missões. Foi lá, viu, se maravilhou.
Resolveu fazer o encerramento da missão dentro dela. Levou os fiéis, fez
veneração, botou o povo para rezar. No fim botou um cruzeiro dentro dela216.
Ficou aquele achado a fazer impressão no povo. Os ditos do missionário se
grudaram na cabeça das pessoas. Não foi muito apareceu o padre Manoel Félix.
Padre de vida boa, seguidor dos exemplos de Jesus. Encantou-se com a gruta.
Resolveu botar residência dentro dela. Foi ao coronel do lugar, na intenção de
213
Segundo o Senhor José Gomes Reis, *1904, a igreja foi iniciada entre 1902 e 1903 e a torre
levantada em 1906. Note-se que, em 1903, aconteceu a realização das Santas Missões e era do
feitio dos missionários incentivarem o povo a efetuarem construções sacras. O altar da igreja
foi demolido na transição da década de 1950 para 1960, sob a orientação do Padre José que o
fez com a finalidade de ampliá-la. Nesta oportunidade, o coro também foi demolido. Segundo
os moradores ouvidos, foi esse mesmo padre o responsável pela aquisição dos bancos e demais
mobiliários da igreja.
214
Essa é a história conhecida pelos moradores de Patamuté. Segundo a Senhora Maria
Helena, filha do Senhor José Gomes Reis, a imagem doada pelo retirante é uma pequena que
ainda está exposta no altar da igreja ao lado de uma imagem bem maior, adquirida mais
recentemente. A festa do padroeiro é realizada no dia 13 de junho, e a festividade profana é
realizada na noite de 12 para 13.
215
A gruta foi encontrada em finais do século XIX e dista 18 km da sede do distrito. Segundo
o Sr. Lídio dos Santos, *1906, dentro dela foram encontrados ossos de animais pré-históricos.
Informação também registrada na obra de Fausto Luiz de Souza e Antônio Carlos Magalhães
(Viagem de Reconhecimento Geológico e Paleontológico à Região de Curaçá, Bahia –
publicada pela Universidade do estado da Guanabara em 1965). Estes últimos obtiveram a
informação através do Padre Manoel de Magalhães, que foi pároco em Curaçá pelas eras de
1940.
216
Este fato ocorreu em 1903 e o pregador foi o missionário monsenhor Pedro Cavalcante
Rocha. In.: Matos, 1926, p.67.
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comprar o terreno. Terreno para o Sagrado Coração de Jesus. O coronel não
botou dificuldade. O padre, como dizem, fez aguada, para si e para os romeiros
que ele queria levar para lá no dia da santidade. Fez casa também. O coronel,
vendo aquilo, botou olho gordo, ofereceu dificuldade. Recebeu
espraguejamento217. O padre não desistiu. Deu início às romarias.
Mais casas nascendo, em frente e ao lado da igreja. Nasceu um
quadrado. As casas voltadas umas para as outras e todas olhando a igreja. Fora
do quadrado o mato, a rua de costas para ele, e assim ficou até 1912. A rua era
só essa. Mas era grande. Os coronéis vinham fazer morada nela, mostrar pose,
fazer sociedade, viver entre os iguais, com jeito de civilização218.
Um barracãozinho219 servia de mercado, feira dia de sábado, todo sábado.
O povo vinha fazer compras, vender. Comerciantes de Rodelas, de Uauá, de
Chorrochó, de Barro Vermelho, gente da serra da Canabrava220, de Riacho
Seco. De Curaçá, batata, abóbora. Os jumentos nas estradas em comboio
trazendo as coisas, um sofrimento. Mercadorias: rapadura, farinha, milho,
feijão, tecidos, miudezas. Nesse passo de andar, o governo mandou botar
correio221, um progresso. Educação tinha também. Os fazendeiros de posse
217
Essa é uma versão contada por dois antigos e que rola na boca de muita gente. Outros
antigos confirmam a praga do padre contra o coronel Galdino Matos e sua descendência até a
quinta geração, mas afirmam ser outro o motivo. Entretanto, se recusaram a falar sobre o fato
motivador da história que conhecem. De qualquer modo, ao que tudo indica, foi o Pe. Manoel
Félix o iniciador da romaria, entre 1905 e 1914.
218
Patamuté foi elevado à condição de distrito em 1911. (“Em virtude do Ato nº 59, de 10 de
julho de 1890, o Município passou a denominar-se Curaçá, figurando na divisão administrativa
do Brasil, correspondente ao ano de 1911, composto dos distritos de Curaçá, Várzea da Ema,
Ibó, Chorrochó, Patamuté e Barro Vermelho” – In: Sinopse Estatística – Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, RJ, 1948).
219
O barracão (quatro forquilhas e uma cobertura) é, provavelmente, do final do século XIX,
segundo o Sr. José Gomes.
220
Serra que fica na divisa com Uauá. Uauá dista 56 km e Chorrochó 90 km. Curaçá fica a 84
km e o distrito curaçaense de Barro Vermelho a 42 km.
221
Não consegui identificar a data da instalação do posto do correio, mas os antigos que foram
entrevistados foram unânimes em afirmar que tal fato ocorreu há muito tempo. Provavelmente
tal ocorrência tenha se verificado entre as décadas de 1910 e 1920. Segundo contam, os
estafetas transportavam os malotes a pé ou em lombos de animais e faziam as linhas PatamutéCuraçá e Patamuté-Juazeiro. Na década de 1930, os estafetas eram vítimas certas de Lampião,
quando eram por ele alcançados.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
botando seus filhos na escola, no trabalho do conhecimento das primeiras
letras. Primeiro um professor, depois professoras no ensinamento das coisas de
futuro222.
O chefe do lugar, o mandão de tudo era o coronel Galdino. Coronel de
patente comprada. Tinha poder absoluto. Tudo debaixo de suas ordens e nada
sem o seu consentimento, quem seria doido de torcer o queixo, dificultando o
cumprimento de suas determinações? Era o homem de tudo e em tudo metia
seu dedo, sem querer ouvir palavra contrária223.
O Patamuté desenhando a realeza no meio das caatingas. Era preciso ser
como todo lugar de gente fina. Botaram iluminação. Iluminação de candeeiros,
com combustível de carboreto, ao lado da igreja. Ficavam eles lá acesos,
clareando do anoitecer até um pouco mais da noite, sinalizando vida. E de
longe o povo ficava vendo a dança das sombras que eles faziam, os vultos que
entrecortavam os sinais do fogo. Mas não era só monotonia. Aconteciam festas.
A festa do padroeiro a maior. Havia também as festas que a elite fazia,
reservadas só para gente da “sociedade”, “ que os vaqueiros, o povo do
trabalho, era todo ignorante, não podia entrar, e além do mais não tinha roupa
nova”. Nelas “as finezas e elegâncias de roupas e tratos”. Os músicos vindos de
Barro Vermelho, de Belém do São Francisco, de Serra Talhada. A “sociedade”
alegre, dançando, se animando. O povo de fora, com o prazer pelo direito de
poder assistir, e nisso se contentava.
Na festa do padroeiro dava mais animação. Os músicos acompanhando
os batizados e os casamentos de casa para a igreja, da igreja para casa, com
222
Segundo o Sr. José Gomes, de seu conhecimento, o primeiro professor foi Purcino da
França Cardoso, e depois dele, Quintina Ricarda Monteiro (esta de Salvador), na década de
1910. Depois, nas décadas posteriores, foram assinalados pelo Sr. Adonai Matos Torres,
Manoelito ( Manoel Mendes de Souza) e pela Sra. Filadélfia Fonseca Ribeiro os seguintes:
Maria Honório Sampaio Matos, que dinamizou a vida cultural da sede do distrito, promovendo
comemorações e festas; Dona. Maria; Dona Edite; Dona Almerinda e professora Filadélfia
Fonseca Ribeiro (natural do distrito de Barro Vermelho). O primeiro prédio escolar só veio a
ser construído entre as décadas de 1940 e 1950, por influência do deputado Manoel Novais.
223
O coronel Galdino, *1840 +1930, era natural de Monte Santo e passou a residir em
Patamuté a convite da viúva de Cazuza Mendes, próspero fazendeiro do lugar, de quem era
parente.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
seus toques, espalhando alegria. O povo fazendo boa apreciação daquele
acontecimento tido de ano em ano.
Nas eras de 1950 Patamuté ficou mais animada. Ganhou luz gerada por
motor. A claridade do começo da noite até daqui a pouco. “As ruas claras como
o dia, chega a claridade doía nos olhos”. Aí ganhou mais jeito de cidade, de
rua organizada. O comércio se alegrava. Havia sortimento com muita variedade
nos armazéns e o povo andava para a feira em maior quantidade. Desde os anos
de 1940 que já havia caminhão zoando pelo mato, fazendo linha, libertando os
jumentos das estradas de longe. O povo começava a ver outra vida. A água é
que ainda era a mesma. Os poços do Paredão onde os homens iam tomar
banho, as mulheres iam lavar roupa e os animais beber água. Aí a meninada
fazia a festa na brincadeira das águas. Pescavam também, que tinha peixe
curimatá e traíra. As mulheres não tomavam banho lá, não. Eram
“cerimonientas”, tinham medo dos olhos escondidos dos homens. Levavam
água em latas, na cabeça, para se lavaram em casa. Água de beber nas
cacimbinhas, feitas acima do paredão. A água minava à noite. Durante o dia lá
se ia o povo para pegá-la, para o abastecimento dos trabalhos da cozinha, para
beber. Água calcária, pesada. Foi assim até os anos de 1960, quando
construíram um poço artesiano. Aí sim, água com fartura, mas salobra. Ainda
era melhor. Nesse tempo, fazendo sombra de progresso, teve também a
construção do prédio do mercado. O barracãozinho foi levado ao chão, botado
no esquecimento das coisas finadas224.
Por perto da rua teve gente querendo fazer indústria. Na fazenda Bom
Jardim225 botaram uma desfibradora de caroá. Foi aquele mundo de gente
trabalhando, arrancando caroá no mato, carregando água, estendendo as fibras,
enfardando. Vinha gente de longe para esse trabalho, também ia gente da rua
para lá. Foi um tempo de ganho do povo. Coisa pouco mas de serventia que os
meios de vida era escassos. Foi e foi até que parou e tudo ficou na lembrança.
Há algum tempo atrás, apareceu um alemão em Patamuté. O comentário
do povo é que ele era fugitivo226, supõe-se que de guerra. Arranjou amparo do
coronel Galdino e foi se arranchar na gruta. Vivia a deixar rastro nas serras,
224
O prédio do mercado foi construído pelo prefeito José Borges entre 1966 e 1967, segundo o
Sr. José Gomes.
225
Pelos idos de 1950.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
fuçando as grutas, as furnas, procurando ouro. Enfiou esperanças de riqueza na
cabeça do povo. Mas um dia foi pego por alguém do lugar e entregue à polícia,
em troca de recompensa. É o que falam os mais velhos. Ele foi levado, mas
muita gente ficou sonhando com o ouro escondido, encravado nas pedras,
misteriado nas furnas. Nunca se achou ouro. Acharam jazidas de mármore e
veio a animação. Gente estranha andando no lugar, chegando de carro,
correndo o mato, cavando buraco no chão. Contrataram homens para o
trabalho nas pedras. Aquele entusiasmo. Mármore róseo, artigo de primeira,
coisa para exportação. Seu Elieser foi quem começou com essa furupa 227.
Grandes blocos de pedra tirados do chão, carregados em caminhões, levados
para longe, onde acontecia o beneficiamento. Daí a pouco o fôlego esmorecia,
os homens sumiam. Com pouco tempo, lá vinham eles de novo. De uma vez
fizeram até aeroporto. Avião descendo e subindo. Mas não há infra-estrutura:
as estradas são ruins, os compradores ficam longe e as vezes desaparecem228. O
povo vai aproveitando os restos das jazidas, construindo calçadas, utilizando-os
para fazer os bancos da praça.
O povo fazendo casas na rua, largando o mato de pouco, botando os
filhos no estudo. Os da rua rumando para longe, buscando futuro de conforto,
de estudo mais adiantado. Uns chegando, outros saindo. Aquele chega e sai.
Patamuté pequeno, mas crescendo, devagarinho, devagarinho. Meio de vida
dificultoso, que a caatinga e o bode é que dão sustento a tudo, mas a seca
coloca atrapalho. O povo também quer mais e o bode não pode sustentar as
despesas das adquirenças das finezas que vêm de longe. A gente entrando no
mundo das modernagens. As mocinhas, os rapazinhos, sonhando com o mundo
de longe, desejando, se indo, se indo. Voltar só por ocasião das festas grandes,
poucos dias por ali. Aí as poses, os aparecimentos, com os que ficaram se
226
Segundo a sondagem que fizemos, esse alemão deve ter aparecido em Patamuté entre o final
da década de 1910 e meados da década de 1920.
227
Esta informação nos foi prestada pelo Sr. José Gomes. José Afonso Souza Menezes,
entretanto, indica o Sr. Turibo como sendo o pioneiro da exploração do mármore em Patamuté.
228
Segundo José Afonso Menezes, o mármore é beneficiado em Salvador, em Cachoeira do
Itapemirim, em Goiânia, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Parte deste mármore é, em certas
épocas, exportado para a Itália. A exploração não ocorre de forma contínua devido à
concorrência de outros materiais como o granito, falta de compradores e falta de infraestrutura. É utilizado para fazer revestimentos, pisos, pias, etc.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
admirando, também querendo se ir. Depois das festas, o quieto das pessoas sem
novidade de ver, com poucas de ouvir, de falar e nesse a vida se leva229.
As modernidades do mundo cada vez mais ficando perto, emburacando
de porta adentro: rádios, bicicletas, televisão, energia elétrica, água encanada,
dessalinizador, carros... O mundo de longe ficando perto e os do lugar ficando
iguais aos de fora230. O comerciozinho minguando. Os aposentados gastando
dinheiro nos lugares do recebimento da aposentadoria; o povo cada vez mais
comprando fora e a feira ficando fraca, fraca. Os jovens querendo sonhar sem
saber com o quê, reclamando, querendo emprego, meio de ganhar a vida no
lugar. Querendo instalação de curso de segundo grau. Não vêem vantagens no
mundo de fora. Ir para onde? Os que se foram reclamam da saudade e se põem
a recordar231.
229
Em 1940, Patamuté tinha uma população de 250 habitantes na sede do distrito e 2.993 na
zona rual – note-se que a esta época a área do distrito era bem superior, sendo parte dela
desmembrada para compor o município de Chorrochó no ano de 1953 (Sinopse Estatística IBGE - 1948).Segundo a Enciclopédia dos Municípios (1958), p. 211, a sede do distrito de
Patamuté, em 1950, contava com uma população de 331 habitantes. A contagem do IBGE, no
Censo Estatístico de 1996, contabilizou 335 habitantes na zona urbana, sendo 193 do sexo
feminino e 162 do sexo masculino. Na zona rural foram contabilizados 2.100 habitantes, sendo
994 do sexo feminino e 1.106 do sexo masculino . A Secretaria de Saúde do município de
Curaçá, no ano de 1999, contabilizou 208 prédios na sede do distrito. A Secretaria de Educação
do Município contabilizou, em 1999, 557 matrículas das quais 47 no ensino infantil e 510 no
ensino fundamental.
230
A energia gerada em Paulo Afonso foi instalada na década de 1980; o dessalinizador nos
anos de 1990, como resultado da interferência do Sr. José Hugo Borges; a água encanada
também foi instalada nos anos 90 deste século.
231
Os limites do distrito de Patamuté, segundo a Lei nº 628 de 30.12.1953, são os seguintes:
a – com Curaçá: começa na nascente do riacho Jaquinicó e desce por ele até o marco do
término da reta, de direção sul, tirada do alto da serra da Natividade;
b – com Barro Vermelho: começa na nascente do riacho Jaquinicó, daí em reta até a nascente
do riacho Patamuté; continua em reta até a nascente do riacho do Espírito Santo;
c – com Poço de Fora: começa na nascente do riacho do espírito Santo, seguindo por uma reta
que, passando pelo lugar Angico, vai encontrar os limites intermunicipais com Uauá;
d – com Riacho Seco: começa no marco à margem do riacho Jaquinicó, no extremo da reta de
direção sul, tirada do ponto mais alto da serra da Natividade; desce pelo dito riacho Jaquinicó
até sua foz no riacho da Vargem;
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
“Uma cidade pequena, mas com muito amor pra dar
Tenho orgulho dessa terra porque lá é meu lugar
Gosto tanto da cidade, que pra lá quero voltar
Patamuté quadradinho, uma praça, uma igreja
Mais pra cima o mercado, pra vendas de miudeza
Para todos da cidade e de outras redondezas.
Eu me lembro com alegria das caçadas de tatu
E dos mês de fevereiro da fartura do umbu.
E do jogo de gamão, na venda de Zé Lulu.
Suas matas, suas serras e os rios pra pescar
Existe uma gruta linda onde o padre fez seu lar.
Eu lhe provo tudo isso, se quiser lhe levo lá.” (Jorge Augusto).
e – com Curaçá: começa na nascente do riacho Jaquinicó e desce por ele até o marco do
término da reta, de direção sul, tirada do alta da serra da Natividade.
f – com o município de Uauá: começa na serra dos Cágados e segue em linha reta até o ponto
tirado da reta que, partindo da nascente do riacho Espírito Santo e passando na fazenda Angico,
atinja a linha divisória entre os municípios de Curaçá e Uauá;
g – com Chorrochó: iniciando na serra dos Cágados até os limites interdistritais com Riacho
Seco.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
POÇO DE FORA
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Ainda era tempo de escravidão. Um escravo232 fugiu, errante pelas
caatingas. Danou-se a andar pelo mundo, procurando. Queria se ir. Não podia
sossegar. Era tempo de seca, seca braba. Caatinga no seco, queimando. O sol
sapecando. Uma serra comprida no seu caminho, desfilando pelo longe. Lugar
bom para esconderijo. Foi lá, para descanso. Perambulou por ela. Foi ter bem
no lugar onde ela se abre. Topou um poço grande, cheio de água. Serviu-se
dela, mas não podia parar. Se não tinha destino, também não podia fazer
desmazelo. Sabia ter gente nos seus rastros. Arribou.
Um criador na caatinga sem caminho. Caminhava sem rebanho. Com
ele, dois filhos e um escravo, procurando lugar bom, tomando fundamento para
fazer fazenda. Tinha seca de água, tinha sede. No descuido da atenção, o
escravo, quando viu, se viu no meio deles. O escravo agoniado. Conversa que
conversa, aperta que aperta, o fugitivo bateu com a língua no ponto: “Hoje fui
tomar banho, no boqueirão de uma serra, e se não sou eu nêgo d’água, tinha
morrido afogado”. Combinaram acerto. O negro mostraria a lagoa e o criador o
deixaria. O poço foi mostrado. Alegria. O primeiro filho do criador deu um
mergulho, não achou terra, o segundo a trouxe na mão. Compromisso do
criador: bico calado. De parte a parte, acerto cumprido. O escravo se foi, o
criador ficou, se plantando, preparando jeito para arranjar o rebanho233.
Da serra, do mato, os bichos do mato olhavam curiando, querendo saber.
Cutia, veado, ema, seriema, caititu, tamanduá, peba, tatu-bola, gambá... Não
232
Segundo seu Jovem (Joviniano Moreira da Silva, *1901), os mais antigos contavam que o escravo
fugia dos maus-tratos a que era submetido. Vinha fugindo de Ribeira do Conde, caminhando em direção
ao Piauí. Este fato ocorreu bem antes de 1850, uma vez que os avós do informante se estabeleceram
nas imediações do Poço Grande em 1853 e a história já era bem passada.
233
Esta é a história que corre carregada pela memória dos mais velhos. Entre 1988 e l992 foi redigido
um texto que veicula essa mesma versão nas escolas de Poço de Fora. Esse texto, sem assinatura, foi
redigido por algumas professoras que, entretanto, não o assinaram. Seu Jovem (1901) e Erval Felix
contam a mesma versão. Segundo esta história, o criador era um pernambucano, Domingos da Silva
Duarte, e situam tal ocorrência por volta dos meados do século XIX.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
podiam bater com atino de juízo. Não tinham. Sua água, sua paz, sem defesa.
Os homens se chegando. Cadê os bichos do mato?
Índios, pouquinhos, de sobra, ainda havia, espantados, agoniados. Os
fazendeiros atrás. A caboclinha correu, deixou a papa de xiquexique em cima
da pedra: serrote da Caboclinha. Um sem lugar de sossego.
Lugar bom, sem melhor, por ali, o criador procurou garantia de domínio
sobre a terra. Foi se bater com o procurador da Casa da Torre 234, responsável
pelas terras daquele pedaço de chão. Conseguiu arrendamento por dez anos.
Botou nome no lugar: Poço de Fora. Segundo dizem, esse nome, porque havia
outro poço por trás da serra e que denominou Poço de Dentro.
O poço podia ficar maior. O criador tinha escravos. Ordenou que
levantassem, com pedra e cal, um paredão. O poço virou represa. A água
durava mais tempo, atravessando o ano. O segundo nome: Poço Grande.
A serra se abriu, formou boqueirão, deu viagem ao riacho. Águas se
represam. Um espelho de vida refletindo formações rochosas. Cactos, arbustos
contemplando, do alto das pedras. E as águas correntes das chuvas caminham,
se vão, deixando desenhos nas rochas. A imaginação, depois, dá o sentido:
banda de lua, coração, rastro de animais, buraco dos namorados, imagem de
Nossa Senhora... Tem marca de gente, de outra gente. Quando essa gente
viveu? Quando se marcou nas pedras? Há quantos anos? Dois mil, dez... sei lá.
O que queria dizer ao tempo, podemos decifrar? Mistério, encanto, acalento.
Poço Grande, marco zero.
O tempo passando. A seca se jogando na terra. Os criadores se
amparando na acolhida das águas do poço, fazendo caiçaras, improvisando
moradias, se amontoando no desespero, rezando por tempos bons. Lugar
conhecido, falado. Ponto bom para desobrigas235. Os padres foram chegando.
Não havia prédio, nem mesmo casa. Um grande pé de juazeiro. Sombra
234
A Casa da Torre pertencia à família D`Ávila, os primeiros conquistadores da região e, através de
seus procuradores, exercia enorme pressão para que todos que se estabelecessem nas áreas que julgava
serem de seu domínio pagassem uma taxa de arrendamento. Ver o livro Opara - Formação Histórica e
Social do Submédio São Francisco, Juazeiro, Gráfica Franciscana e/ou História da Casa da Torre.
Salvador-BA, Fundação Cultural.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
majestosa à beira do riacho, pertinho do Poço Grande. O padre decidiu,
escolheu. O juazeiro virou o lugar das desobrigas e ficou Juazeiro Grande.
Casamentos, batizados, confissões, comunhões, pregações, aconselhamentos,
disciplinamentos. O povo em devoção, se encontrando no sagrado. Um ano,
outro ano e todo ano. Padre Eutímio, homem de oração... sabia se benzer.
Depois o padre Manoel Félix236, mais lembrado. Homem santo, de força nos
mistérios, tinha segredo. Assistia às nove noites da novena. Todo mundo
obedecia. Quem tinha coragem de teimar? “Os cachaceiros iam beber no
cemitério, se escondendo. Se ele jogasse praga em uma pessoa... ela ia morrer,
pegava. Quem desobedecia pagava. Um que teimou, levou a pontada de um
boi, ficou inutilizado; outro, descadeirado; e, mais outro, ficou louco. Tudo
isso por causa de frequentarem a casa de uma mulher da vida. Bala não entrava
nele, não237.” Reunia o povo todo nas desobrigas. “Não desprezem as pregações
do Sagrado Coração de Jesus, que Poço Santo haverá de ser combatido e não
vencido238”.
Fé viva. Construir uma capela239. O padre fez incentivo, o povo seguiu.
Uma capela defronte ao Juazeiro Grande. Bem pequena, dentro não dá
cabimento de muita gente. As sombras do juazeiro como amparo e ficou assim.
Um padroeiro. Sagrado Coração de Jesus, seu devotado. Ele fez influência, o
povo aceitou. Buscou a imagem na Europa. Ela foi colocada no trono240.
Pronto. A festa cresceu: dia do padroeiro241. Não tinha foguete, mas tinha
pipoco. Um clavinote amarrado em um pau forte. Pólvora acochada no cano.
235
Desobriga. A escassez de padres e a dispersão da população no território levava os fiéis
católicos a não se batizarem, a não se confessarem com regularidade, a se juntarem
matrimonialmente sem que tivessem recebido os sacramentos religiosos. Em vista disso, de
tempos em tempos, os padres saíam a desobrigar seus fiéis de suas faltas, andando pelos
lugarejos e fazendas. O povo, com grande devoção, participava desses eventos.
236
Padre lendário. É lembrado por quase todos os idosos de Curaçá. Estes sempre ressaltam
seus poderes e o respeito que o povo lhe dedicava. Morou na Gruta de Patamuté. Fez
desobrigas em Poço de Fora, todos os anos, de l905 até 1914.
237
Informante: Seu Jovem.
238
Palavras do padre Manoel Félix em suas pregações. Ele não aceitava nem a denominação
de Poço Grande, nem a denominação de Poço de Fora. Só tratava o lugar pelo nome de Poço
Santo.
239
Antônio do Bulhão foi, pelo que dizem os mais velhos, enfrentante notável da obra.
240
O documento já referido, e que circula nas escolas de Poço de Fora, situa a construção da
capela e a entronização do padroeiro por volta de 1908. Outros informantes não contestaram.
241
O dia do padroeiro é comemorado no primeiro sábado do mês de junho.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Uma varinha com fogo na ponta e fogo no clavinote. A serra véia tremia,
estalava. Duas casinhas assistiam tudo, olhando aquele amontoado de gente242.
Alegria com bebida gingibirra243.
Fazendas perto, fazendas longe. O lugar sem agasalho. O povo foi
construindo casebrezinhos. Arranjos feitos de barro. Passar dois, três dias, nos
dias da santidade do padroeiro, com padre pregando.
Lugar de ajuntamento, de combinação das coisas. Dificuldade para
comprar, dificuldade para vender. Feiras em Jaguarari e Bonfim. Uma danação
de caminhada. Barro Vermelho também, umas coisinhas. Caminho do rio, lá se
ia. Não era de muita vantagem, não. Nesse ido, foi que foi. Começou a
aparecer tropeiro vendendo coisa. Tropeiro de Bonfim, de Campo Formoso, de
Jaguarari, das bandas do hoje Euclides da Cunha. Feirinha no meio do tempo,
bem aí, onde nasceu a praça: farinha, feijão, rapadura, batata... Tudo, tudo. De
noite, o claro dos candeeiros acesos. De longe se via, parecia rua, ficava rua
naquele movimento244. No crescer do número de casas, no movimento da feira,
Poço de Fora245 se viu povoado246.
O povo fazendo casinha, cada quem fazendo casinha... arruou. A feira
juntou muita gente. Levantaram um barracão247, coisa bem feita. Forquilhas de
pau de lei. Cobertura véia, no começo, depois, telhado bom, ladrilhado, no
meio de um limpo. Licença dada em Jacobina, conforme exigência de Lei.
Mais casas dos lados, o quadro se fechando. O limpo já era praça. Praça sem
242
Nesses idos só havia duas casas, a de Pedrão e a de Virtilino, segundo Seu Jovem
(Joviniano Moreira da Silva). Segundo Erval Felix, uma, a de um ferreiro de nome João
Domingos e de acordo com o documento que circula nas escolas, os primeiros moradores
foram Pedro Fagundes e José Virgulino. De acordo com os dois primeiros, abaixo da capelinha
havia um curtidor de couro.
243
Gingibirra era um tipo de refrigerante artesanal feito com milho, água e açúcar. O padre só
recriminava o uso da cachaça.
244
A feira teve início por volta de 1918, segundo todos os informantes.
245
Poço de Fora fica a 78 km de Curaçá e faz divisa com os municípios de Juazeiro, Jaguarari
e Uauá.
246
A elevação da condição de Poço de Fora em Povoado ocorreu em 1922, quando Raul
Coelho era o Intendente de Curaçá.
247
O barracão foi construído em 1933, segundo o documento já mencionado.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
banco, sem jardim. Um limpão, com o barracão no meio. Progresso. O povo
cantou ABC.
Zé Cazuza e Pedro Félix
Por serem aços ligeiros
Cobriram a casa da Feira
Com palha velha e esteira.
Interventor em Curaçá. Ele achou o barracão feio, véio. Deu ordem.
Derrubaram248. Construir mercado. O homem foi embora. O Poço permaneceu.
Cadê mercado? Feirante no sol.
Um sem novidade, na vida. Um dia, aí deu. Uma arrelia, pequena. Coisa
de dívida no valor de quatro contos de réis, lá no mato. Compadre e comadre
em desentendimento. A comadre disse que não pagava, o compadre bateu pé
firme. Um fala que fala danado. O compadre foi buscar providência da justiça.
A comadre, nem aí. A falação. Disse que disse. A coisa envergou. Mataram um
dos da confusão. A madeira deitou. De um lado uma mulher, chefiando. Do
outro um homem, comandando.
Eram perto de moradia. Endereço:
249
Sameado . A bala emendou no mundo. Ano de 1923. Trincheiras nas
comeeiras. Pá, pá, pá, o dia todo. À noite uma pausazinha. Cabras destemidos.
Intervalozinho curto no tempo. Todo mundo conhecido, o povo assustado,
temendo compromisso da palavra. Curioso, de boca fechada. Quando pensa
que acabou, aí chegam mais cabras, trazidos de Vila Bela250. Gente morta de
toda parte. Fogo nas casas, as casas furadas. “Bala é brincadeira?” Nesse,
durou um ano. Chefe, homem vencido, degredou-se. Tensão, silêncio,
desconfiança, cisma. Quando pensa que não Lampião, chegando sem aviso,
cheiroso, vaidoso, exigindo dinheiro, montaria. Alvoroço. Se ia. Lá vem a
volante. Acusação de alcovitagem. Como ser? Um sem paz de vida, viu!
248
249
250
O barracão foi derrubado nos meados da década de 1940, segundo Erval Félix.
A denominação dessa fazendo ora aparece como sendo Sameado, ora como Esfomeado.
Vila Bela, atual Serra Talhada, no estado de Pernambuco.
Caminhos de Curaçá
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Devagarinho, o lugar foi andando. Atingiu ser distrito251. O povo
conseguiu escola de professora particular252. Depois, professora do governo e
aquela cantoria de tabuada na sala de aula. Os meninos tremendo, olhando a
palmatória girando na mão da professora.
Lá vem o caminhão, roncando na estrada, fazendo zoada no ar. Os
tropeiros arredam sem jeito, dando aposentadoria às tropas. O povo se alegra.
Andar ligeiro, viajar, ir e vir no mesmo dia. Juazeiro, Uauá, Pinhões. A feira253
caminhando, correndo atrás dos feirantes, chegando perto, perto, matando a
feira. O povo se esbandalha. O prefeito fez mercado254, a feirinha minguando
ao lado dele. Mais carro. Carro caminhonete, levando, trazendo, botando
mercadorias nas vendas. Coisas novas, muitas. Os bodinhos poucos, véios, no
ser de antes. “Num há dinhero qui chegue, fim do mundo”. A serra, serra do
Poço, ali encostada, só vendo, assistindo, acompanhando, jogando frio no
povo. O povo olhando para a serra, vendo o pato de pedra. Pato de choco sem
fim.
O rádio traz novidade todo dia. Televisão. Mundo bonito! Tudo
diferente, colorido, alegre, notícias de longe, novelas. Trabalhar fora, virar
empregado, botar negócio, arranjar ganho que dê.
A capela, a mesma, do tempo do padre Manoel Félix. Pequena, acanhada,
às costas da rua. O riacho chegando, lambendo seus pés. O Juazeiro Grande de
testemunha, assistindo. O povo quer igreja grande, deseja, deseja255. Igreja não
nasce do chão, os velhos sabem disso. Mas... cadê o povo para fazer a igreja?
Povo sem força da fé. Pediu socorro. Um político atendeu256. Obra de fé?
251
Poço de Fora passou a ser distrito em 1953, pela Lei número 628 de 30 de dezembro. Antes,
pertencia ao distrito de Barro Vermelho.
252
Em 1937 chegou a primeira professora, Alzira Ribeiro. Depois, 1938, chegou a professora
Rachel da Costa Lima Zumba que ficou até 1950, sendo substituída pela professora Inês Viana
Barbosa. Uma outra, a professora particular Libânia Dias de Oliveira, trabalhou de 1947
a1952.
253
A feira acontece às terças-feiras.
254
O mercado foi construído em 1966.
255
O padre José Luna, por volta de 1960, deu início à campanha pela construção da igreja, mas
ela só veio a ser erguida na década de 1980.
256
Antônio Carlos Duarte, vereador na época, natural e morador de Curaçá, doou a cobertura.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
A rua crescendo, crescendo257. Bares, festas, escolas. Cadê meio de vida
para o povo assim258? Sustento: bichos de criação, plantação de chuva, dinheiro
de aposentadoria, salário dos funcionários públicos.
Lazer: Poço Grande. Apreciação das pedras, refresco das águas. Lugar
para namoro, para levar visitante. Ponto de descanso, de menino fujão.
Meteram broca nele. Desfiguraram seu jeito, arrebentaram muitas pedras.
Queriam fazer progresso. O povo o ama, assim com amor bruto. Admira, mas
não faz cerimônia de fazer os alicerces das casas com suas pedras.
Água, a dificuldade. Poço Grande não aguenta. O povo toma
providência: fez cacimba259, reivindicou açude. O açude seca. Não dá. Poço
artesiano, arremedeia. Um sonho: barramento da Gangorra, idéia antiga, com
obra começada, com obra parada, nunca esquecida. Sonho com água. Perto, o
Açude de Pinhões: um rio260.
257
Em 1930, iniciada a construção da primeira estrada que interligava Juazeiro a Uauá (padre
Magalhães foi um dos organizadores) ; 1950, instalação de um posto do correio e telégrafo;
1951, construído o primeiro prédio escolar; 1958, é instalado um gerador para eletrificação dos
distritos – iniciativa do deputado Manoel Novaes; em 1981 é instalada água encanada,
proveniente do poço artesiano; 1982, instalação de energia fornecida pela usina de Paulo
Afonso; posto telefônico instalado em 1987. Informações fornecidas pelo professor Expedito.
258
Em 1947 foi construído o açude; em 1966, o Mercado Municipal; em 1968, o poço
artesiano e um cata-vento; em1981, instala-se água encanada, captada no poço artesiano; em
1986, é criada a Escola Estadual; em 1987, o posto telefônico; em 1990 foi criado o Colégio
Estadual. No início de 1999 contava, na zona urbana, com 764 habitantes (segundo o IBGE,
censo de 1996, a população urbana era de 614 pessoas e a rural de 998 pessoas em um total de
16l2 habitantes), 279 casas, 192 famílias, 19 depósitos, 22 casas comerciais, 2 oficinas, 110
alunos nas escolas municipais, 47 alunos na Escola Getúlio Vargas e 164 no Colégio Estadual
João Francisco Félix. Atualmente, 1999, há 37 matrículas no ensino infantil, 456 no ensino
fundamental e 69 no curso de magistério, um total de 562 matrículas, segundo a Secretaria
Municipal de Educação.
259
Antes da instalação do poço artesiano, quando o Poço Grande seca e também o açude, o
povo se servia da água da cacimba, a Cacimba Velha, aberta em antiga data e que fica nas
proximidades da capelinha.
260
O açude de Pinhões fica a 12 km e abrange terras de Juazeiro e Curaçá. De acordo com a
Lei número 628, de 30 de dezembro de 1953, os limites do distrito de Poço de Fora são os
seguintes:
a – com Barro Vermelho: começa no rio Curaçá na foz do riacho do Espírito Santo, sobe por
este até a nascente;
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
b – com Patamuté: começa na nascente do riacho do Espírito Santo, seguindo por uma reta que,
passando pelo lugar Angico, vai encontrar os limites intermunicipais com Uauá.
c - com o município de Juazeiro: limites pelo rio Curaçá;
d - com o município de Jaguarari: começa no marco do alto da serra do Januário, de onde segue
em reta até o marco no lugar Boa Vista, no rio Curaçá.
e – com Uauá: começa no marco do alto da serra do Januário e vai até o ponto definido por
uma reta que, iniciando-se nas nascentes do riacho Espírito Santo, passando pelo lugar Angico
(fazenda Angico), vai dar na divisa de Curaçá com Uauá.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
RIACHO SECO
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Mato alto, fechado. Muitos pés de juazeiro, de quixabeira, de muquém,
de ingazeira. Na beira do rio, capim d’água, zozó e o mato cheiroso: paipedo,
marcela. Carnaubeiras recortando a margem do rio, dos dois lados. Jacarés,
capivaras, galinhas d’água, garças, mergulhões, bichos aos montes. Os índios
gostavam. Havia peixe, havia caça, havia água. Quando os criadores chegaram
foram tirando a paz dos índios, expulsando-os da terra. Os índios foram se
acantonando nas ilhas. Vieram os padres fazendo pregações, formando
aldeamentos, fundaram missões261. Os criadores foram se achegando, se
achegando e acabaram escorraçando os índios, se adonando das ilhas. Os
índios sem nada, sem nada, se perderam no seu ser, foram se esquecendo,
morrendo, se misturando, nascendo sem saber ser índio.
Juazeiros frondosos, quixabeiras imensas, pedaço de terra plana, vazantes
boas de plantação, defronte uma ilha grande, de terra boa, a ilha do Inhanhum.
Gente foi se chegando, situando, ficando por ali. Nas folgas dos dias sem
trabalho, lá vinham eles, os pernambucanos, jogar baralho, se divertir, beber
cachaça debaixo das sombras das árvores262. Os mais velhos é que dizem.
261
Em tempos imemoriais foi criada uma missão na Illha do Inhanhum, que fica defronte a
Riacho Seco. Em suas proximidades há também a Ilha da Missão, onde existem ruínas de
alicerces daquilo que teria sido uma capela. Da Ilha do Inhanhum, os missionários faziam o
acompanhamento dos índios que habitavam nas demais ilhas das imediações. Não dispomos de
muitas informações escritas sobre o assunto. Apenas as ruínas e o trabalho de Sebastião da
Rocha Pita, citado no livro “O Homem no Vale do São Francisco”, p. 260, de autoria de
Donald Pierson, sugerem este raciocínio.
262
Esta é a história que rola na boca dos mais velhos e que a mim foi passada pelo Senhor
Guilherme Bernardes, *1908, e que é morador no lugar desde 1955, mas que desde sempre
viveu nas adjacências.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Todo lugar tem um nome, se não tem é de bom juízo que se bote um. Um
riacho ali perto. Anos de pouca chuva, chuvinhas fracas. O riacho levou sete
anos sem botar água. Foi fácil. Apelidaram o lugar: Riacho Seco. E Riacho
Seco ficou. Coisa de pilhéria, que o lugar fica na beira do rio, rio que de tudo
por tudo pode faltar, menos água. Um lugar e um nome. De resto não havia
novidade. Isto nos anos de ninguém sabe.
Antônio Conselheiro, de vez enquanto saía de seu arraial, no lugar Belo
Monte. Dessa vez, no ano de 1877, andava andando com seu batalhão de fiéis
pelas caatingas, aconselhando, proclamando a palavra de Deus quando, na
certa, teve vontade de ver as águas do rio. Caminhou em sua direção e saiu ali,
naquele lugar cheio de sombras. Ninguém sabe o que se deu na cabeça dele. O
que se sabe é que ele resolveu que ali deveria existir um cemitério. Por que
cemitério, se no muito das vezes ele construía igrejas? Porque sim, porque não,
a decisão dele foi cemitério, e acabou! Reuniu o povo que veio vê-lo, se
aconselhar, ouvir as palavras das sagradas escrituras e ordenou o trabalho de
início da obra sagrada. Pensando melhor, acrescentou que deveria ser
construída também, no fundo do cemitério, uma capelinha, para servir como
agasalho de orações. Cemitério era melhor mesmo. Os mortos tinham que ser
enterrados em lugares abençoados, livres das tentações do diabo. Dá até para
imaginar o tanto que sofriam as almas dos finados enterrados fora dos Campos
Santos. O povo não fez corpo mole. Deu começo à obra. Antônio Conselheiro,
junto, acompanhou a feitura do alicerce, depois foi embora, deixando dito que
voltaria para ver o trabalho terminado. Dito e feito. Voltou dez anos depois e
viu. Fez a bênção263 do Campo Santo. Os mortos podiam descansar em paz.
Capela que se preze tem que ter sino. Um fazendeiro resolveu fazer
presente. Mandou comprar um em Salvador. Transportaram-no no lombo de
burro até Riacho Seco. Colocaram-no na capela e ele ficou lá por tempos e
tempos anunciando rezas e enterros264.
263
Segundo o Sr. Guilherme Bernardes o cemitério foi iniciado em 1877, tendo Conselheiro
acompanhado o levantamento do alicerce e o inaugurando em 1887.
264
Segundo a Sra. Maria Teles de Mendonça, *1924, o fazendeiro doador foi, possivelmente,
o Sr. Félix Alves. Quanto ao fato do sino ter sido transportado em lombo de burro, é a
possibilidade que resta, uma vez que a linha férrea que liga Salvador a Juazeiro só foi
concluída em 1896. Segundo a Sra. Adalcina Alves dos Santos, *1933, antes do sino havia um
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
No meio da caatinga, o povo, desassistido da palavra de Deus, bem sabia
da importância de livrar os mortos das perseguições dos mensageiros do
inferno. Dever de cristão: dar proteção às alma dos finados, fazer enterro só no
Campo Santo. Mas só havia cemitério longe. Quando alguém morria, lá se
vinha a obrigação. Fazer esquife265. Levar o finado nos ombros até o lugar
certo, fosse onde fosse. Riacho Seco era o lugar mais perto de muitos e muitos
lugares. Foi se afamando.Na beira do rio, por perto de Riacho Seco, nasceu
engenho266, nasceu casa-de-farinha. Não demorou muito, a matutada começou a
se encaminhar para lá na procura de se abastecer. Virou uma feirinha, comércio
de rapadura, farinha, batata, abóbora, peles, debaixo das sombras dos juazeiros.
A feira crescendo, construíram um barracão267. Andavam barcas268 pelo rio,
vindo de baixo, vindo de cima, fazendo comércio. Os donos deram a fazer
paradas para vender, para comprar269. Carregavam gente também, que esse,
tirando lombo de animal, era o transporte para Juazeiro. Aqueles homens, ora
empurrando as barcas com varas grandes, ora caminhando pela margem do rio,
puxando-as com cordas, um sacrifício danado. Apareceram tropeiros, tocando
fieiras de animais de carga, mais para comprar, mas havia os que vinham
vender. No chamego desse movimento, seu Gregório Mendonça resolveu
construir casa, botar ponto para vender cachaça270. Aí é que os pernambucanos
vinham mais. Mas o lugar sem vida.
“chocalho de Itabaiana, pendurado em um pau – um desses de colocar em pescoço de vaca ”.
Uma senhora, fazendeira das adjacências, indignada, vendeu três bois e com o dinheiro
mandou comprar um sino em Salvador. O cemitério, no correr do tempo, ficou pequeno e
fizeram uma murada que abrangeu a construção feita pelo Conselheiro. Hoje as paredes
levantadas sob a orientação do beato estão caindo, mas ainda há sepulturas antigas.
265
Alguns mortos eram carregados em redes, outros eram carregados enrolados em esteiras.
Eram feitas armações toscas de madeira para facilitar o trabalho dos carregadores.
266
Na região de Riacho Seco havia muitos engenhos, tendo deles que produziam até 300
rapaduras por dia. Além de rapadura faziam também mel, batida e alfenim.
267
Este barracão, segundo o Sr. Guilherme Bernardes, foi construído em 1906.
268
Estas barcas, na viagem rio acima, eram empurradas com enormes varas ou, quando era
possível, puxadas por cordas. Na descida os remeiros utilizavam os remos. O percurso de
subida entre Riacho Seco e Juazeiro era coberto, normalmente, em oito dias.
269
Os comerciantes sergipanos traziam muita cachaça, produto que trocavam por qualquer
outro.
270
Segundo o Sr. Guilherme Bernardes, o Sr. Gregório Mendonça foi o responsável pela
feitura da primera casa de Riacho Seco.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
A caatinga seca todo ano. No tempo ruim vinham os criadores procurar
refrigério na beira do rio. Mais e mais casa. No meio do mato, botaram mato de
gente no lugar. Plantaram tamarineiros271. No verde voltava todo mundo para o
mato. As casas ficavam. Riacho Seco se situando assim. Na vazante das águas
do rio, o impaludismo dava carreira no povo272. Era praga que pegava em todo
mundo. Amolecia o corpo e o cabra ia se quedando, amarelando, dando
preguiça, com febre misturada com frio, todo dia. No vai-e-vem do povo, o
lugar acabou ficando uma vilinha. Movimento de vida só em dia de feira.
No mato o povo clamando por Deus, querendo apreciar as palavras, as
coisas de Jesus, fazer desobrigas. Padre, coisa rara. Só o Padre Eutímio, antes
dele, o Padre Manoel Félix, andando273. Não podiam estar em todo lugar274.
Vieram os missionários. Santas Missões. 1912. O povo descambou para a rua.
Assistir pregação, casar, batizar, tirar pecado. A capelinha não dava. Era
pequena demais. É certo que era nela que os padres rezavam missa. Mas para
as missões vinha gente demais. Altar debaixo de pau. Debaixo de um pé de
juazeiro275. Riacho Seco sem abrigo de casa para todo mundo. O povo se
arranchando debaixo dos paus. Assistindo missa ao sol, se penitenciando dos
pecados feitos, afinando os ouvidos, esbugalhando os olhos, dando atenção aos
271
Esta árvore, cujo nome no dicionário é tamarindeiro, não é nativa. Ela é originária da África
e não sabemos o motivo dos primeiros nordestinos não indígenas serem tão apegados a ela.
Logo que um fazendeiro situava uma área e construía uma casa, de imediato cuidava de plantar
uma muda no terreiro. Curiosamente, sua sombra é medíocre. Por longa data foi a única planta
estrangeira difundida na região. A sua existência em um lugar, pelo que parece, sinalizava a
presença “branca”, ou seja, não-indígena, no lugar. Podia ser também um distintivo de status,
vez que só fazendeiros de um certo destaque, pelo que parece, exibiam-nas em seus terreiros..
272
A época da vazante, que ocorria entre os meses de fevereiro, março e até abril, correspondia
ao período em que a caatinga, exceto períodos excepcionais, estava verde.
273
O padre Manoel Félix assistiu de 1905 a 1914¸aproximadamente. Padre Eutímio o sucedeu.
Informação de seu Jovem (Joviniano Moreira da Silva, *1901), morador da Fazenda Terra do
Sal, distrito de Poço de Fora - Curaçá .
274
O padre Manoel Félix assistia a todo o município de Curaçá, que na época abrangia os
territórios dos atuais municípios de Chorrochó e Abaré.
275
Na época existiam vários pés de juazeiro. Esse, debaixo do qual foi erguido o altar, situavase a meio caminho entre o lugar onde hoje existe o prédio escolar estadual e a igreja. Depois
das missões, as missas continuaram a ser celebradas debaixo dele, até que construíram a igreja.
Informação fornecida por Maria Teles de Mendonça e confirmada por Josefa Bernardes,
professora natural de Riacho Seco, onde trabalhou por quase toda a vida.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
ditos, aos jeitos dos padres. Os padres soltando o verbo no mundo, falando de
céu, de inferno, de alma, de pecado, de perdão, de penitência, das tentações, de
jeito santo de viver.
Fazer a casa de Deus em frente ao Cruzeiro276: mandado dos padres. Os
padres foram embora. Não podiam ficar muito tempo. Tinham o mundo a
socorrer. O povo se ficou na promessa do cumprimento de fazer a obra. seu
Luiz Sacerdote Bispo, homem forte do lugar, fazendeiro, encabeçou os outros
fazendeiros, “os mais fortes”. Fizeram o enfrentramento277. Os pobres seguiram
atrás, que todo mundo quer o merecimento do caminho do céu. O trabalho
começou em 1915278. Em 1919 terminou. Foi feita a festa de inauguração.
Trouxeram o sino da capelinha do cemitério279. Botaram o santo no altar. São
Luiz Gonzaga, o padroeiro280. Altar bonito, cheio de encantamento. Igreja
grande, cheia de pilastras, alta, dava para caber o povo do mundo todo dentro.
O povo orgulhoso, o padre alegre.
Lugar de respeito. A matutada fez mais e mais casas. Retiro da seca,
busca de devoção, preparação do caminho da alma. Ficar perto do santo, da
casa de Deus. Riacho Seco crescendo. Mais gente se chegando, plantando roça,
refrigerando os bichos de criação. Mas vinha a chuva, o impaludismo, a praga
de muriçoca. O povo batia em retirada. Tomava os caminhos das caatingas. No
276
Segundo o Sr. Guilherme Bernardes, o cruzeiro é anterior a 1912. Entretanto, não sabe
explicar quem o construiu e nem a época. Julga que pode ter sido obra de Antônio Conselheiro,
na mesma época da construção do cemitério. Apóia-se na semelhança com relação ao cruzeiro
de Chorrochó, este, sim, sabidamente construído por Conselheiro. Entretanto, era prática dos
missionários marcarem suas passagens pelos lugares onde pregavam com um cruzeiro. O Sr.
Guilherme assevera que o de Riacho Seco não foi obra das missões.
277
O enfrentante da obra, segundo a Senhora Maria Teles, foi o Senhor Luiz Sacerdote Bispo,
que serviu como referência para a escolha do padroeiro, ajudado pelos fazendeiros Ananias
Carlos do Nascimento, Ângelo Gregório de Mendonça, Teodomiro Dias Pereira, Graciliano
dos Santos, Félix Souza, Pedro da Silva, Capitão Benevides e José dos Santos. O povo ajudou
com o próprio trabalho.
278
Embora haja concordância com relação à data de conclusão da obra, ela não existe com
relação à data do início. Segundo o Sr. Guilherme, a construção foi iniciada em 1915, segundo
a Sra. Maria Teles de Mendonça a construção foi iniciada em 1912, mesmo ano das missões.
279
Depois que a igreja foi construída, a capela do cemitério ficou abandonada e caiu
recentemente, por falta de cuidados, segundo o Sr. Guilherme Bernardes.
280
Segundo os informantes, o padroeiro foi escolhido pelo Sr. Luiz Sacerdote Bispo, que era
devoto de São Luiz Gonzaga, a quem devia o nome.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
dia do padroeiro, 21/22 de junho, o povo queria vir, assistir às novenas, se
purificar. Não dava certo. Os criadores estavam nas caiçaras, na caatinga,
dando cuidado ao criatório, aproveitando o resultado do verde, fazendo
requeijão. Os ricos, que os pobres não tinham negócio com tempo certo, que
sem quase do que cuidar. A festa ficava fraquinha e o povo pecando pela
ausência. O padre se condoeu. Fez mudança de data. Comemoração no último
domingo de agosto. Os caatingueiros, os beiradeiros chegando. Festão. Reza,
reza. O andor de São Luiz Gonzaga carregado pela rua pelos homens da chefia
do lugar. O povo atrás fazendo preces, implorando, pedindo clemência. No fim
da reza, dança e bebedeira. O povo se vendo, se aparecendo. Alegria. Os ricos
dançando em festa animada com conjunto, sem permissão da pobreza entrar.
Festa de elegância da gente de fineza, nas lordezas dos ternos e dos vestidos
brancos. Os pobres se punham de pé, pegando sereno, apreciando de longe,
sem a ousadia da licença de chegar mais perto. Pobre que entrasse seria botado
para fora agarrado pelo braço. Ficavam curiando aquela coisa bonita do toque
do clarinete, do saxofone, do dançar da gente educada. Nos salõezinhos o
buco-buco do surdo misturado com as puxadas da sanfona nos toques de Pedro
Chinol281, com o povo dentro do forró, se grosando no suor. No fim, o silêncio,
o paradão do sempre do lugar. Zoada, animação, só no dia da feirinha282.
Os sanharós283 viram o movimento. Quiseram ficar perto. Arrancharamse em um tamarineiro. Ficaram ali brincando com os feirantes. De vez em
quando agoniando, se enrolando nos cabelos deles. Botaram fogo no oco do
pau, eles não saíram .
E Lampião? Todo mundo com medo. Nas caatingas, na rua. Do mato ele
mandava pedir dinheiro aos fazendeiros. Quem não atendesse virava inimigo e
atacava, matava, tocava fogo na casa, nas cercas, matava os bichos que visse.
Na rua, atacava os comerciantes. Dava as mercadorias ao povo. Se pegasse um
graúdo, levava. Propunha troca por dinheiro. Estipulava quantia, determinava
prazo. O homem, imagem de assombração. Os fazendeiros largando os bichos,
281
Pedro Chinol era o sanfoneiro da animação até o início dos anos 60.
Por essa época, 1926, Riacho Seco era considerada uma povoação, segundo João Matos, In:
Descripção Histórica e Geográfica do Município de Curaçá, p. 95.
283
Um tipo de abelha de cor preta que, ao invés de ferroar, se enrosca nos cabelos e belisca a
pele, exalando um cheiro desagradável.
282
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
a terra, indo embora, vindo para a rua284. O povo pobre amedrontado. Pobre não
tinha dinheiro, mas vivente que não fosse rico tinha que ser cabra de alguém.
Lampião não dava perdão fácil. Um dia de feira, a surpresa. Ele chegou. Botou
conversa no povo, foi maltratando os comerciantes. Deu que encontrou um
inimigo. Matou o homem ali mesmo na assistência dos presentes. O homem
sangrando, gemendo, morrendo sem amparo de cristão. Quem dava socorro? A
história ficou de espanto. Fizeram combinação. “Quando Lampião estiver por
perto, tocar o sino da igreja, para o povo ter tempo de correr”. Foi o acertado.
Um dia tocaram o sino fora de hora. O povo se espavoriu. Desesperou na
carreira, se entocando nas moitas. Pai perdendo filho, mulher se apartando de
marido. Era engano285. Cadê o povo confiar?
A feirinha286 cresceu mais. Mais gente fazendo movimento. Os paquetes
no rio, os animais amarrados nas árvores, as barcas paradas. Os barqueiros, os
tropeiros, comprando, vendendo. Não havia produto de granfineza. Era tudo
coisa grossa: panelas, potes, filtros de pedra287, cordas, chocalhos, esporas,
feijão, farinha, pele de animais, penas de ema, cachaça, batata, café em caroço,
milho, arroz em casca, abóbora, rapadura, mel de engenho, fósforo, gás288,
assim. Povo sem dinheiro, que a vida era difícil.
Os fazendeiros ainda se acudiam. A pobreza padecia. “Uma muda de
roupa de sobressalência e a roupa do trabalho. Sapato, os pés num conhecia.
Granfineza de comida: carne de porco, de criação, de caça, que era o melhor
paladar que conhecia”289. Levar a vida caçando, tirando caroá para fazer corda
284
Mesmo os fazendeiros que tinham tradição de luta armada fugiam, pois que o governo do
Estado havia mandado a polícia desarmar o povo. Dito de Gulherme Bernardes.
285
Quem tocou o sino foi o Sr. Martins Pereira, segundo informação do esposo de Donana
(Ana Soares Nascimento dos Santos), enfermeira prática.
286
Acontece às quarta-feiras.
287
Filtro de pedra era utilizado para purificar a água, mas estava ao alcance apenas das pessoas
mais dotadas. De pedra porque o objeto filtrante era uma pedra porosa. Era produzido no “rio
de baixo”, na localidade chamada Jatobá, nos arredores de Petrolândia. As barcas vinham de
Abaré, Orocó e da região de Petrolândia, principalmente da localidade conhecida pelo nome de
Jatobá, transportando peles, utensílios de barro, algodão de seda (um tipo de seda extraído de
uma planta chamada bofó), mamona, peles, etc.
288
Querosene. Fósforo, chamavam de fosco.
289
Informação do Senhor Marcelino Feitosa – mais ou menos 65 anos - feirante em Curaçá e,
natural dos arredores de Riacho Seco.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
ou vender as fitas, pescando, trabalhando por dia, plantando uma rocinha, na
conveniência do consentimento do dono da terra. Salvação: a ilha do
Inhanhum290. Muita terra, plantação de meia, fazendo cultivo na lama do rio.
Ganho de vida difícil. Viver humildemente se humilhando. O mais certo, o
mais livre, o caroá que estava solto no mato, sem ligança dos donos das terras.
Meio de vida de pobre. Esses faziam casinha no mato, para se agasalhar, no
sossego do corpo. Trabalho desgraçado. “Só fazia isso quem não tinha outra
coisa pra viver”291. Acabava com as mãos, com os braços, com as pernas.
Machucava o corpo todo. Arrancar o caroá, tirar parte dos espinhos,
descangotar, puxar a fita (uma folha), bater a fita no pilão, botar para enxugar,
depois fazer corda, vender corda para fazer a feira. Vender maço de fita
também. Cada maço com doze fitas. Isso dava para comprar um prato de
farinha. Também trabalho de catar algodão de seda. A turma saia catando bofó,
que tinha muito espalhado no mato. Abria o bicho, botava para secar e depois
vendia no quilo, por um quase nada. Para pesar mais, o que faziam? Botavam o
bofó para secar em cima da areia das crôas, para o bicho misturar com areia,
ganhar peso. O padre foi quem mandou parar com essa sabedoria292. No verde,
plantar tudo: feijão, milho, abóbora, batata, algodão, mamona 293. Fartura vinda
da riqueza da chuva. Descanso do caroá, do bofó.
As farinhadas. Trabalho de festa. As raspaderias no chec-chec o dia todo,
conversando, tirando versos, paluxiados294. À noite a cevação. As mulheres
cevando e cantando. Os homens puxando roda e bebendo cachaça a noite toda.
O mexedor no pé do forno, rolando o rodo, derramando suor, tempero de
farinha. Gente carregando mandioca, gente botando lenha no forno, gente nos
preparos da tapioca, providenciando os preparos dos beijus. Nos engenhos
também a futrica. Cortar cana, carregar cana até a canoa, remar até o engenho,
levar a cana para o alto, colocá-la no pé do engenho, fazer a moagem, aparar a
290
A ilha do Inhanhum, possui 195 hectares e pertence à família Bernardes. Foi muito utilizada
pelo povo sem terra, que trabalhava de meia. Fica defronte a Riacho Seco.
291
Marcelino Feitosa, que viveu dessa prática por muito tempo, dos anos 40 aos anos 60.
292
O Padre Magalhães, na década de 1940, foi procurado por um comerciante de Juazeiro e
este pediu ao padre para avisar ao povo de Riacho Seco que deixaria de comprar o produto,
caso continuassem a utilizar essa prática.
293
Mamona e algodão eram produzidos especialmente para comercialização. Eram os produtos
que propiciavam algum ganho para aquisição de outros coisas.
294
O caso paluxiado significa brincadeira.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
garapa, tanger as cangas de bois, carregar o bagaço, colocar lenha nos fornos,
preparar o alfenim, a batida, o mel a rapadura.
Instalaram uma desfibradora de caroá295. Foi na fazenda Barra. Começou
funcionando com caldeira. Gente carregando água, gente arrancando o caroá,
gente fazendo o carregamento do mato e gente transportando em animais até a
Barra do Tarrachil296. Mais de 400 pessoas se ocupando. O negócio ia indo. O
proprietário se entusiasmou. Comprou motor. Mecânico só em Recife. Mais
parada que andando, mas andava, até que a indústria não quis mais comprar as
fibras. Aí desandou de tudo. Os pobres voltaram para suas cordas, para seus
maços de fibra.
“A pobreza procurando a riqueza”297, arranjando meio de compadrio,
querendo amparo de vida com menos sacrifício para os filhos, uma
proteçãozinha. Mendingando a acolhida de um filho, de uma filha nas casas da
gente potentada. Trabalhar como babá, como menino de serventia de serviços
de mandado para ver se pingava alguma sorte aventurada. Pagamento com
comida, com uma roupinha de quando em quando, na ocasião da boa vontade
do compadre.
Lugarzinho isolado. Tudo difícil. Médico298, comércio de novidades,
estudo, caminho para Juazeiro, tudo em Boa Vista 299. Os comerciantes de lá
vindo para a feira de Riacho Seco. O povo pegando amizade, se misturando,
295
Esta desfibradora foi instalada pelo Sr. Guilherme Bernardes na Fazenda Barra, a uma
distância aproximada de 42 km de Riacho Seco e funcionou durante as décadas de 40 e 50. As
fibras eram utilizadas para confecção de tecidos, cordas e redes de pescar.
296
Em Barra do Tarrachil, o material era atravessado e transportado até São Caetaano, PE,
para ser entregue a uma cooperativa. O produto era utilizado para fazer tecidos. Na década de
1950 o transporte através de animal foi substituído por caminhão.
297
Expressão de Dona. Adalcina Alves dos Santos, *1933.
298
Em Riacho Seco, como nos demais distritos, a situação da saúde é precária. Embora haja
posto de saúde, o seu funcionamento é precário pela falta de médico. Dona (Ana Soares Nunes
do Nascimento), enfermeira prática, durante vários anos desempenhou, com exclusividade,
funções de enfermeira e de médica, receitando, tratando e fazendo trabalho de parto. Segundo
ela, a mortalidade infantil, por volta de 1979, era assustadora. Atualmente o atendimento
médico é prestado em Curaçá e o transporte é fornecido pela prefeitura.
299
Santa Maria da Boa Vista – PE., fica a aproximadamente 24 km.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
virando parente. Curaçá, longe300, com pouco contato, vendo recurso sangrar, o
povo também na procura de melhoria, se indo embora.
Ensino de professor pé-de-pau. Aprender a ler e a contar. Bem lido e
bem contado, senão a palmatória pegava. O cabra tinha que decorar as letras e
cantar a tabuada, sem apelação de desculpa. Professoras de nome Dona
Raimunda, Dona Zifa, sem formação de diploma. Sabiam a arte do ensino,
executavam os meninos no direitinho do saber. Depois, no mais longe, a
professora Josefa Bernardes301, formada e tudo. Ensino até o primário. Ensino
mais adiantado fora. Os caatingueiros construindo casas na rua, para abrigo de
dia de feira, para trazer os meninos do mato para o estudo. Escola pequena de
uma professora só. Não dava para todo mundo e no mais havia as exigências
que arredava os pobres302.
Riacho Seco ganhando vida, viu luz. Década de 1940. Instalaram um
motor a diesel. Esparramarm os fios pelas ruas, pendurados nos postes. Em
cada poste uma lâmpada. Claridade danada. O povo se encandeando. Noite se
parecendo com dia. De longe dava para ver. O negócio agora vai! Um prédio
para escola303. Um deputado atendeu o pedido. Vira sede de distrito304.
Animação dos moradores.
O povo aumentou, a Igreja não o coube mais. O Padre305 arranjou meio
de crescer o espaço dela. Fez combinação e mandou derrubar o altar, tombou
pilastras. Um altar feinho foi botado no lugar. Os mais velhos até hoje
lamentam306.
300
Curaçá fica a 42 km, rio acima. Praticamente toda transação de Riacho Seco é com Santa
Maria Boa Vista.
301
A professora Josefa Bernardes lecionou em Riacho Seco de 1940 até 1972. Por muito
tempo foi a única professora formada trabalhando no lugar. Informação da própria professora.
302
Cumprimento rigoroso de horário, farda completa e limpa, aquisição de material didático.
303
Prédio Escolar Ananias Carlos, construído pela influência do deputado Manoel Novaes, em
1948.
304
De acordo com a Lei nº 628, de 30.12.1953.
305
Padre José Luna, na transição da década de 1950 para 1960.
306
O altar, construído em 1919 e que os mais velhos afirmam que era uma obra primorosa, foi
demolido na transição da década de 50 para a de 60, sob a orientação do vigário de Curaçá na
época.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Cebola, ouro de roça. O povo se encafifando, com idéia de ficar rico.
Molhação com lata, que motor era só para os ricos. Fazer entrançamento de
cebola, amarrando com fita de caroá. Levar para o comprador e pegar na
bufunfa. Sair do caroá, aventurar na plantação, que o negócio dá futuro. A seca
apertando, apertando. Caatingueiro se abeiradando, se abeiradando, que na
caatinga a vida é dura, ficando sem futuro. Não abandonar de tudo, que
criatório dá segurança307. Cebola dando dinheiro. Gente vendeu criatório,
comprou motor, se danou a plantar. Mudou o jeito de ser. Começou a falar alto,
a fazer zoada em mesa de bar. Carro, revólver, cerveja, roupa bonita, móveis de
loja para enfeitar casa. Cara de progresso. Mais desejo. Gente quebrou com
cebola ruim de preço. Entrou melão, melancia, tomate. Um ganha e perde
danado, mas assim o povo se foi. Animando-se, se desanimando. Tudo na
irrigação. Esquecer batata, mandioca, cana. De um tudo por tudo o que se
plantava não se planta mais, que não dá esperança de dinheiro bom. Farinha,
rapadura e até feijão, vem tudo de fora308.
1967. Cebola deu bom preço. Os beiradeiros se endinheiraram. Sidu309
viu a bocada. Foi a Recife. Comprou um bocado de terno, contratou conjunto
em Belém do São Francisco. Anunciou a festa. O povo se animou e ele
dizendo: “Pra entrar é preciso estar bem vestido”. O povo não entrou nas
dúvidas. Deu a comprar roupa boa e na hora tava todo mundo lá. Os negros do
Serrote também. Quando a fineza chegou foi aquele Deus nos acuda. Revolta,
apelação. Sidu sem fingir engano: “Pra entrar aqui só precisa estar bem
vestido”. Assim ficou310.
Os sanharós incomodando, se enrolando no cabelo do povo. Botaram
veneno no oco do pau. Eles sobreviveram.
307
No município de Curaçá, foi na área de Riacho Seco onde a agricultura comercial primeiro
foi praticada e ganhou sentido para o povo, incorporando-se à cultura, talvez pela influência
dos pernambucanos. Estes já a praticavam desde meados da década de 1940.
308
Os engenhos não suportaram a competição das rapaduras do rio de cima (região de
Januária). As casas de farinha foram desativadas por causa das transformações das relações
sociais, da competição com os comerciantes de Sergipe, que possuem melhores preços e
qualidades, e também devido à mudança do movimento das águas do rio depois da arragem de
Sobradinho. A agricultura comercial destruiu o espaço das culturas tradicionais.
309
Edmundo Mariano de Souza.
310
Informe da Sra. Josenita Ambrósia dos Santos, 1951.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Um areião danado na rua. O povo se atolando nele. O prefeito atendeu o
queixume. Tomou providência. Foi seu Luiz de Jorgina quem fez o serviço,
carregando cascalho no lombo dos jumentos, para mais de dez animais.
Trabalho todo dia. Cada dia um pouquinho, até tudo. O chão ficou duro. As
carregadeiras de água acharam mais suave no caminhar mais leve com o peso
da lata na cabeça.
Estudo mais desenvolvido de ginásio, de colégio em Santa Maria da Boa
Vista, PE. Poucos em Curaçá. Quem não podia ficava no primário, se com
sorte, que no mato não tinha escola. Um dia e outros dias, as coisas foram
aparecendo: energia, posto de saúde, posto policial, ginásio, colégio, posto
telefônico, posto médico, mercado, imagem de televisão, água encanada 311. O
lugar tá indo!
O povo diferente, sem ligança para as coisas de Deus. A capela do
cemitério foi ao barro, o muro do cemitério velho está caindo, os meninos
depredam o cruzeiro, e os pais nem reclamam. Festa de padroeiro? Só festa de
dança e cachaça, que os novos não querem saber de outra coisa. O padre só se
danando. Rua cheia, igreja vazia. O padre fez decisão combinada. Comemorar
o padroeiro no dia certo, 21/22 de junho312. O tempo mudou. Esta data não faz
mais atrapalhação. Na festa, cadê o povo? Nem dá importância. Nem homem
para pegar no andor do santo aparece. Sair na rua pedindo a um e a outro.
Festinha desapercebida, coisinha fraca. Animação mesmo é na Festa da
Agricultura313. Aí, sim, zoada a noite toda! Gente de todo lugar, o povo na rua,
se alegrando. O sino fez revolta, perdeu o gosto, ficou mudo314.
311
Energia da rede de Paulo Afonso, por volta de 1970; posto telefônico em 1988; ginásio em
1984 e colégio 1993; água encanada 1984/85 ; mercado e posto médico entre meados da
década de 1980 e 1990.
312
A comemoração do padroeiro nesta data é coisa recente, ocorrida na década de 1990.
313
A Festa da Agricultura ocupou a data em que o padroeiro era comemorado, ocorrendo no
último domingo do mês de agosto e está se afirmando como sendo a festa do lugar, embora
esteja ocorrendo pela quarta vez em 1999.
314
O sino da capelinha do cemitério e que foi transferido para a igreja, recentemente rachou e,
depois que o soldaram, perdeu o som. Encontra-se hoje na casa de dona Áurea, incansável
zeladora voluntária da igreja. O sino que serve hoje é recente, adquirido e instalado há uns três
anos.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
A feirinha em um quase não tem. Os aposentados recebendo dinheiro
fora. Fora mesmo fazem as compras. Os mercadinhos tem de tudo, todo dia. As
barcas, tropeiros, engolidos pelos caminhões, pelos carros, despareceram,
desde faz muito315. O mato, só só. Os bichos, querendo gente, pernas para a
rua. As cabras na praça. Têm direito? Discussão. O povo sonhando com roça,
com roça. Muita gente arredada pelos mundos de meus Deus, uns outros
emburacados nos caminhos dos “projetos”. As coisas de roça se compra fora,
se vende fora. Mas... Riacho Seco crescendo316, se enchendo. Animação na
noite: estudantes caminhando, música, cerveja nos bares.
A agricultura arremediando a vida do povo. Os sem nada plantando de
meia, aventurando uma fezinha, com os mantimentos fornecidos pelos donos
das terras. Quando dá, dá. Quando não dá, comeu. Na hora da conta, a
confusão: meeiro se queixando de exploração. Os donos das roças se
315
Tão logo o caminhão passou a ser difundido, as barcas perderam suas cargas, assim como
os tropeiros perderam o seu motivo de ser e desapareceram. Isso lá pela década de 1950.
316
Riacho Seco é o maior e o mais dinâmico distrito do município de Curaçá. Tem posto
telefônico, posto policial, mercado, ginásio, colégio, posto médico, água encanada, energia
elétrica, maior produtor municipal na área de agricultura, muitos bares e várias casas
comerciais. Dista 42 km da sede do município e é interligado através de estrada asfaltada,
concluída no ano de 1999. Em sua área territorial está incluída a povoação de Pedra Branca, as
Agrovilas, Ilha Redonda. Na sede do distrito, segundo a Secretaria de Saúde do Município,
1999, existem 457 edificações. De acordo com o senso realizado pelo IBGE em 1996, a
população urbana era de 1.480 pessoas e a população rural de 8.571, em um total de 10.051
habitantes, 4.829 do sexo masculino e 5.222 do sexo feminino. A população estudantil de
Riacho de Seco conta com 2.214 estudantes, sendo que, destes, 293 estão matriculados no
ensino infantil, 1.839 no ensino fundamental e 82 no curso de magistério. Seus limites, de
acordo com a Lei nº 628, de 30 de dezembro de 1953, são os seguintes:
a – com Curaçá: começa no rio São Francisco, na foz do riacho Barra do Ananias, subindo por
este até sua nascente; daí em reta até o ponto mais alto da serra da Natividade; daí em reta na
direção sul até o marco à margem do riacho Jaquinicó.
b – com Patamuté: começa no marco à margem do riacho Jaquinicó, no extremo da reta de
direção sul, tirada do ponto mais alto da serra da Natividade; desce pelo rio Jaquinicó até a sua
foz no riacho da Vargem.
c – com o estado de Pernambuco: começa no rio São Francisco, na foz do riacho Barra do
Ananias e vai, acompanhando a margem, até a foz do riacho do Pambu.
d – com Abaré: começa na foz do riacho Jaquinicó, no riacho da Vargem, daí em reta à
nascente do riacho de Santo Antônio e finalmente em reta à nascente do riacho do Pambu, pelo
qual desce até a sua foz no rio São Francisco.
Caminhos de Curaçá
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queixando dos meeiros. Os velhos morrendo, as terras divididas, ficando
pequenas, tripinhas, sem jeito de trabalho. Os mais novos aflitos, se dando de
frente com os destinos da vida. E assim vai.
Os sanharós317 atacando. Taparam o oco do pau com cimento e pedra.
“Eles mandaram dizer: ‘Só vamos se levarem o pau”318. Quiseram cortar o pé
de tamarineiro. Os moradores mais velhos não deixaram. Disseram: “Os pés de
tamarineiro são da história”. Os meninos brincam com os sanharós. O povo
pegou conhecimento com eles.
317
O sanharó se arranchou e até hoje está em um dos dois pés de tamarineiro que ficam ao
lado do local onde foi construída a primeira casa de Riacho Seco.
318
Gozação do Sr. Guilhermes Bernardes.
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POVOADOS
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PEDRA BRANCA
Caminhos de Curaçá
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Antigamente, lá pelos anos de 1919, onde hoje é Pedra Branca, existia
somente uma casinha de taipa, perto da beira do rio São Francisco, onde
morava seu Chicó (Francisco Araújo). Como todos os habitantes das margens
do rio, esse senhor vivia do que podia: plantava roça, criava uns bichinhos, se
aventurava, ora por outra, em uma pequena pescaria. Nas imediações desse
lugar o rio é cheio de ilhas e corredeiras, mas bem no ponto onde o seu Chicó
estabelecera sua casa, um local alto de onde se avista uma bonita paisagem
desenhada pelas águas, a travessia para o outro lado da margem é possível.
Além disso, é um dos raros lugares, naquele trecho, onde isso podia acontecer
sem grandes dificuldades, reunindo, desse modo, as condições para se
transformar em um porto. Como morador da beira do rio, seu Chicó possuía
uma canoa para suas andadas pelo rio e para as travessias para o outro lado,
que fazia de vez em quando.
Nesse tempo, que vai do começo da história até os dias dos anos de 1940,
o povo vivia com dificuldade de encontrar mantimento. Produzia-se farinha e
rapadura na beira do rio, mas a produção era pequena. Quando muito satisfazia
o consumo dos moradores de bem perto. Os das caatingas, esses tinham que se
arrumar de outro jeito. Foi aí que começaram a aparecer comboeiros319. Os
comboieiros formavam tropas de cinco e até vinte animais de carga para se
encaminharem até Bodocó,
serra Branca e Araripina, no estado de
Pernambuco320, Barbalha, Juazeiro do Norte e mais lugarejos daquela região da
serra do Araripe, no Ceará. Farinha, mel e rapadura eram o que mais iam
comprar, ou para o próprio abastecimento ou para comércio.
Como o rio não oferecia outras alternativas de travessia naquele trecho e
como o ponto onde se estabelecera seu Chicó era favorável, muitos deles
começaram a efetuar suas passagens ali porque, além do já dito, era mais
cômodo, dado que cortavam caminho. Aparecia comboieiro de Chorrochó, de
319
Comboieiro ou tropeiro: condutor-proprietário de comboio formado por tropas de animais
utilizados para o transporte de cargas.
320
Do porto de Pedra Branca até estas localidades as distâncias variam de aproximadamente
170 km a até 300 km.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Uauá, de Patamuté, da Icozeira e de outros lugares. Agasalhavam-se com seu
Chicó, que também garantia a travessias dos comboios e dos comboieiros em
sua canoa. Canoa de dois remos e um leme, três homens trabalhando321.
Atravessavam os animais de pouquinho, peiados e deitados dentro da
embarcação. Conforme fosse o tamanho da tropa, esse trabalho gastava até dois
dias. Com esse movimento, o ponto de travessia ficou conhecido. Conhecido
pelo nome de Porto da Pedra Branca. Isto porque, em suas imediações, havia
muitas pedras brancas, transparentes e soltas, que brilhavam à luz do sol ou à
claridade da lua322.
No ano de 1937, uma outra pessoa, o Sr. Barnabé Hipólito, percebendo o
movimento naquele local, resolveu instalar ali um pequeno comércio de
bebidas, cereais, miudezas e, posteriormente, tecidos. Esse comércio,
inicialmente, funcionou em uma barraca. Depois da construção da segunda
casa do porto da Pedra Branca foi transferido para ela, onde seu proprietário
passou a residir.
Os moradores das redondezas de Pedra Branca, até 1937, frequentavam a
feira do Ibó323, a 30 quilômetros de distância, rio abaixo, o que era muito
sacrificante. Percebendo essa dificuldade e as vantagens que se poderiam tirar
dela, o Sr. Barnabé e um comerciante do Ibó deram início a uma feirinha, aos
sábados, no porto da Pedra Branca, “pra ficar mais perto pro povo 324”. Depois
de iniciarem a feirinha, algumas pessoas começaram a levantar casas ao redor
321
Informação de Dona Brígida Barbosa, *1920. Ela também acrescentou que Seu Chicó tinha
uma comerciozinho e que só não vendia cachaça. Informou ainda que, em 1932, a polícia
ficava lá para dar apoio aos comboieiros.
322
Informação prestada por Guiomar Hipólito, primeira professora formada a lecionar em
Pedra Branca. Foi nomeada em 1960, pelo Estado, em decorrência de aprovação em concurso
público. Sua nomeação para Pedra Branca foi complicada, uma vez que a localidade ainda não
possuía cadeira (cargo). Depois de muita luta da referida professora, o governador Juraci
Magahães a criou e ela, finalmente, pôde iniciar suas atividades, lecionando por 10 anos
consecutivos. O início de seu trabalho foi complicado, uma vez que não havia prédio. O seu
pai, Sr. Barnabé, então desativou um depósito e o cedeu para que funcionasse como escola.
323
Ibó é distrito do município baiano de Abaré, distando por volta de 30 km de Pedra Branca,
através de estrada carroçável.
324
Dito de Dona Rosalina Gomes Fonseca, que acompanhou todo o processo de formação do
povoado.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
do espaço onde ela acontecia e, assim, o porto foi se transformando em
povoado325.
A vida na Pedra Branca, de quando em quando, era sobressaltada pela
presença de Lampião ou de seus cabras. Antônio de Ingrácia, Antônio de seu
Mário e Cirilo326, por serem naturais de Chorrochó, localidade próxima, de vez
em vez passavam por lá, quando não era o próprio Lampião. Eles, ao
chegarem, deixavam os comboieiros e a população local em polvorosa. Em
resposta às frequentes passagens dos homens do cangaço pelo porto de Pedra
Branca, as tropas das volantes327 estavam sempre a se abarrancar por lá, no
intuito de garantir a movimentação dos transeuntes.
Lugar de passagem, com fraquíssima vida comercial, Pedra Branca se ia
vagarosamente com uma casa sendo feita aqui, outra ali, em um passo sem
compasso. Nisso, seus moradores, se sentindo sem assistência religiosa,
levantaram uma capelinha em l949328, oportunidade em que tiveram a
satisfação de, pela primeira vez, darem acolhida à presença passageira de um
padre329. O povo veio ver. Faltava-lhe, entretanto, um padroeiro, e viveu sem
até o final da década de 1950, quando um padre330 escolheu o nome de Nossa
Senhora de Lourdes para tal, batizando sua imagem em 1959. O dia litúrgico
da padroeira, 11 de fevereiro, não era observado porque esta data coincidia
com o período da safra e o povo achava complicado. Por isso, passou-se a
comemorá-lo no segundo domingo do mês de setembro.
Emoldurando a capela, foram sendo construídas casas que acabaram por
formar um quadro, aspecto tradicional dos lugarejos nordestinos. Mas a
325
Povoado do Distrito de Riacho Seco.
Antônio de Ingrácia e os outros dois eram naturais de Chorrochó e, não obstante já tivessem
fama de valentia, só entraram para o bando de Lampião depois de terem tido problemas com a
polícia de Curaçá que executou maus-tratos contra a mãe de Antônio.
327
Forças do governo de combate ao cangaço.
328
Informação da professora Guiomar Hipólito.
329
Pedre Jacson Bemberengue Prado, hoje bispo em Salvador. Depois passaram por lá,
fazendo assistência, os padres Pedro Campos, José Luna, os bispos D. Antônio Monteiro (de
Bonfim), D. Tomás Guilherme (de Juazeiro), os padres Luiz, Flávio (americanos) e o Padre,
Adolfo que assumiu a paróquia de Curaçá. Este último muito atuou junto ao povo, impelindo-o
ao trabalho de melhoria do lugar.
330
Padre José Luna que, a esta época, era o pároco de Curaçá.
326
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
preocupação não era apenas com a religião. Em 1941, por reivindicação de
moradores, o município faz a designação de uma professora para servir às
crianças da comunidade. Nessa época Pedra Branca era tão grande que os
meninos eram chamados às aulas pelo toque da campainha de um relógio
despertador que tinha na casa da professora331. Professoras contratadas pelo
município, leigas, de pouco estudo, esforçadas. Ficavam seis meses, um ano
sem receber pagamento. O povo as mantinha, ajudando-as, clamando pelo
trabalho delas. Professora Eunice, professora Tolentina. Esta casou. Foi
embora, mais ou menos 1955. Pedra Branca sem escola. Uma professora crente
botou sala. Escola particular. Cadê os pais quererem botar seus filhos para
estudarem com ela? “Crente num é da Lei de Deus!”. Ela se esforçando, mas
pouquinhos alunos. Um quase nada. Veio a professora formada, nascida no
aqui de Pedra Branca, professora Guiomar. Paga pelo Governo. Os meninos
voltaram às aulas. Sala de aula em um depóstio. Cada menino com sua
cadeirinha, uns no chão. O menino Otílio estudava na escola, sabia ser
marceneiro. A professora fez entusiasmo. Eles arranjaram resto de caixões, de
madeira. Aos sábados, na hora da aula, começavam os trabalhos. Um baticum
danado, Otílio ensinando, a professora assistindo, fizeram as cadeiras. Escola
arrumada332. Daí em diante a assistência educacional, no nível primário, não
sofreu interrupção.
Em Pedra Branca tudo era como tudo tinha sido. Seu Noé, vendo nos
outros lugares, resolveu: botou, bem no lugar onde hoje é a tomada de água das
Agrovilas, uma usina de beneficiamento de caroá. “Foi o ganho que a pobreza
conheceu, das eras de 40 para 50”. Um monte de gente carregando água para a
caldeira. No mato, gente e gente arrancando caroá, cortando lenha, levando
tudo para a usina. A coisa ia bem. Seu Noé até construiu uma vilinha de
casinhas brancas. Uma beleza! Mas... um dia, as indústrias têxteis não
331
Professora Eunice Siqueira. Depois assumiu a professora Artemísia Tolentino, que lecionou
até mais ou menos 1955, tendo casado e ido embora. A localidade passou a dispor então de
uma professora evangélica, semi- analfabeta, mas sua escola quase não tinha alunos devido à
recusa dos pois em colocarem seus filhos para estudar com ela, devido a sua vinculação
religiosa. De 1955 até 1960, portanto, a localidade ficou praticamente sem assistência
educacional.
332
A professora Guiomar não se limitava ao trabalho de lecionar. Fazia reunião com os pais,
formou grupos de jovens, grupos de mulheres e atuava na catequese.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
quiseram mais as fibras e a usina fechou. Seu Noé foi embora e tudo voltou ao
antes.
O movimento ainda existia no porto. O povo atravessando, indo com as
tropas para o Ceará, para Pernambuco. Foi que apareceu o caminhão, ligeiro,
forte, carregando tudo, indo para todo lugar. Os tropeiros sumiram, o porto foi
ficando mais só. Só com os de perto.
No todo dia de Pedra Branca, mulheres, meninos e homens subindo e
descendo a ladeira, no caminho do rio e da rua. Carregar água, lavar roupa,
atravessar, tomar banho. Na beira do rio há uma pedra dividindo o porto. De
um lado, o banheiro dos homens; do outro, o banheiro das mulheres. Na
confusão dessa separação, os meninos curiando, enchendo a alma de pecado. À
noite, as conversas dos velhos, as brincadeiras de roda, de esconde-esconde, o
silêncio. O silêncio tomava conta de tudo e aí, às vezes, aparecia o fim do
silêncio no meio do escuro. Pisadas de cavalos que corriam, montados por
homens que gritavam, que atiravam e o sono se ia carregado pelo medo.
A novidade que acontecia no povoado era a chegada do padre. Aí o povo
se reunia. Rezas, batizados, casamentos. Aquele movimento. Mas um dia foi
diferente. Padre, todo mundo já conhecia. Um dia foi o bispo. Bispo de
Bonfim333, que Juazeiro ainda não era diocese. Aquele homem santo, cheio de
roupa bonita, com um jeito, um olhar de gente de outro mundo, bem ali para
quem quisesse ver, ouvir. A rua se encheu.
A capela e a existência de escola se somavam à feira e ao porto, atraindo
a atenção da gente que vivia nos sítios próximos. Por outro lado, as
comunicações com Petrolina e Juazeiro por aí se faziam mais facilmente,
principalmente a partir dos meados da década de l960334, quando houve
interligação asfáltica entre Petrolina e Recife. Note-se que as comunicações
com as demais cidades da Bahia, inclusive com a sede do município ao qual
333
Dom José Trindade visitou Pedra Branca em l951. Na oportunidade estava acompanhado
por um frade e padre, segundo anotações da professora Guiomar Hipólito.
334
Em 01-04-1964, conforme anotações da professora Guiomar, Pedra Branca tinha seis
pequenas casas comerciais, sendo duas de tecidos; uma capela católica; uma igreja batista; um
mercado; uma barbearia; uma escola estadual sem prédio; duas escolas municipais; uma escola
batista; entre 154 e 172 habitantes; 50 casas e 81 crianças matriculadas.
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pertence Pedra Branca, que fica a 100 quilômetros, até os dias atuais, são
complicadas pelas distâncias e pelas condições das estradas que são de terra.
Em decorrência, Pedra Branca passa a receber influências mais diretas
de Pernambuco, tendo seus moradores contatos regulares com o município
pernambucano de Cabrobó, distante 30 km, onde realizam seus negócios,
recebem assistência médica e até assistência bancária. Com a difusão dos
transportes, com a adesão dos pedra branquenses à agricultura irrigada e com a
instalação em Cabrobó de uma emissora de rádio, o estreitamento das relações
se tornou ainda maior, ao ponto da feira e do comércio de Pedra Branca serem
seriamente abalados. O comércio varejista de Cabrobó, bem mais dinâmico,
oferece melhores preços e isto aniquila o comerciante pedrabranquense. Por
outro lado, a comercialização dos insumos e da produção agrícola e pecuária é
realizada nos municípios pernambucanos de Orocó, Belém do São Francisco e
Cabrobó. Mais recentemente, com a introdução do cartão magnético pelas
agências bancárias, até mesmo os aposentados335, que todos os meses eram
forçados a retirarem suas pensões em Curaçá, deixaram de fazê-lo, se dirigindo
para os municípios pernambucanos ou para o município baiano de Abaré,
conforme o mais cômodo. Nesta oportunidade também efetuam suas compras.
Dentro dessa realidade, resta ao comerciante de Pedra Branca desenvolver suas
atividades apenas nas sobras. Vendendo pouco e fiado, precisa vender mais
caro e, vendendo caro, só lhe compram quando não há outro jeito.
Uma notícia chegou carregando esperança: “o governo vai fazer umas
barragens. As barragens vão prender as águas, que vão mergulhar as terras do
povo. O povo vai ser trazido prá cá. Vai ter projeto, riqueza!” Os homens das
firmas chegaram, começaram a pisar chão, daqui prali, dali praqui.
Desapropriaram terras, as máquinas foram chegando, veio a balsa. Uma canoa
bem grandona, aguenta carregar até trator336. No pisado de idas e vindas,
fizeram o que não dava nem para imaginar: derrubaram um mundo de mato,
335
O dinheiro proveniente da pensão dos aposentados representa a principal fonte de renda dos
moradores do povoado.
336
Na década de l980, Pedra Branca viveu um certo alento. Em 1984 foi instalada a energia
elétrica, em 1986 a água encanada, em 1988 o posto telefônico e, em 1989, chega a balsa que
possibilitou o transporte de veículos e caminhões para Pernambuco . Informações de Aldeniza
Gomes e Antoniel Gomes.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
dalí a umas andadas, subiram água pelos canos caatinga adentro, construíram
vilas e vilas cheias de casas. Dinheiro correu. Houve ganho para o povo.
O governo mandou o povo337. Gente e gente passando, indo morar nas casas
das vilas, todo mundo por conta da Chesf, ganhando dinheiro, mas o povo só
passava. Parava pouco em Pedra Branca, por muito que fosse bem aí. Ia-se para
Cabrobó, Belém, fazer feira e assim é. Pedra Branca338 fica só vendo, pegando as
beiradinhas. Mesmo assim, cresceu mais, ficou mais possível339.
“O governador prometeu: vai fazer a estrada. O ligamento Paulo AfonsoJuazeiro vai ser feito e, então, aí sim, as coisas melhorarão de vez.”
337
A transferência desse povo, que foi trazido da área inundada pela Barragem de Itaparaica,
iniciou-se em l988. Informação do Sr. Assueres da Silva Santos, um dos assentados e
dirigente do Pólo Sindical.
338
Atualmente Pedra Branca conta com oito bares-mercearias, 178 prédios (informação da
Secretaria de Saúde de Curaçá), duas balsas, 153 famílias (aproximadamente) e, mais ou
menos, 690 pessoas. Dados fornecidos por Aldeniza Gomes. Segundo a Enciclopédia dos
Municípios – 1958 – p.211, a população estimada para o ano de 1957 era de 70 habitantes.
339
Pedra Branca, segundo a Secretaria de Educação do Município, em 1999 contava com 531
matrículas na rede municipal sendo 57 no ensino infantil e 474 no ensino fundamental. Dista
91 km de Curaçá e 10 km das Agrovilas, fazendo divisa com o município de Abaré, na Bahia, e
com os municípios pernambucanos de Cabrobó e Orocó. É povoado do distrito curaçaense de
Riacho Seco.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
MUNDO NOVO
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
“Eu vou contar a história que escutei
falar, que nesse tempo eu não era
nascido.” Bernardino Geraldo.
“Esse sabido, é o sabido do conto dos
mais velhos, que contavam conto por
conto.” Damázio Francisco César340.
Caatinga. Caatinga braba, bruta: xiquexique, mandacaru... Tudo ermo.
Havia uma lagoa. Uma lagoa encantada. Ninguém sabia dela, ninguém tinha
notícia. As águas findadas no mato. O gado da fazenda Garrote desgarrado.
Fim das águas no mato, mês de outubro, por aí. As vacas sem sair na fonte para
beber água. Joana do Garrote341 mandou os vaqueiros darem campo no gado.
Os vaqueiros andaram, andaram, deram com o gado. O gado bebido, farto.
Mistério. Os vaqueiros no cavucar da cabeça, sem saber. Joana do Garrote
mandou seus homens pegarem a pista do gado. Rastejar as vacas, seguir no
rastro delas para tirar a certeza das coisas. O mato fechado, tecido de pau. Seca,
seca, tudo seco. Os vaqueiros deram no rastro gado. O rastro soltando lama.
“Rapaz, num tempo desse, onde é que tem lama?” As vacas tocando os
chocalhos, pegando comida no mato. Os vaqueiros bem atrás, no andar delas.
Quando o sol pendeu, elas pegaram a caminhar um caminhando desapressado,
fazendo arrodeios no mato. Foram, foram. Os chocalhos pararam. De tempo
em tempo um badalado. Os vaqueiros chegando devagarinho, sem fazer
barulho. Elas não podiam sentir o cavalo, o cheiro do vaqueiro, que os bichos
do mato têm sabedoria. Ficar de longe. Acompanhá-las pelo rastro, pelos
chocalhos. Com pouco eles viram uma mancha, uma ilha de verde. Uma moita
de caatinga diferente com árvores grandes, verdes. “Mas rapaz, a verdura.
Todo lugar tá seco”... Não era uma larga de verdura. Era um quadro, uma ilha,
340
Ambos são moradores e naturais das adjacências de Mundo Novo.
Joana, viúva e proprietária da fazenda Garrote nas adjacências de Barro Vermelho. Este fato
deve ter ocorrido por volta de 1850.
341
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
com a secura da caatinga fazendo o mundo. Eles foram arrodeando, se
aproximando, se aproximando, até avistar o gado. Encostaram. O calumbi
fechando passagem. Xiquexique, xiquexique, o mato embrenhado. Viram um
bocado de cipós saindo do chão, subindo pelas árvores altas e o gado, por
baixo, procurando brecha para alcançar a água. As poças de água debaixo do
mato. Quando o gado percebeu os vaqueiros, se assustou espantado, correu
esbandalhado, sem o encanto, com mistério quebrado. Os vaqueiros foram
apreciar o encontrado, meio desconfiados das vistas. Voltaram para casa na
fazenda Garrote. Soltaram a boca nos ouvidos de Dona Joana. Ela juntou um
bando de gente para ir olhar. Quando chegou, ficou ali pensando que lugar era
aquele. Matutou no juízo e disse: “Aqui é um mundo novo”. Todo mundo quis
ir lá, ver, conhecer a lagoa desencantada. “Mundo novo, mundo novo” e
Mundo Novo ficou.
O encanto da lagoa não era tão encantado. A serra do Pica-pau ali perto.
Na baixa da serra, uma gente morando, vivendo, arredada. Raça de caboclos.
Caboclos brabos. Os caboclos sendo afugentados, afugentados, andando de um
lugar para outro. Plantaram-se lá. Era tudo ermo, ermo. Muita caça nos matos
das caatingas. A lagoa dando sustento de água. Os caboclos na paz do mundo
seu. Longe, sem notícia dos afugentadores. Na secura daquele mundo ermo
ninguém viria. O gado, seus chocalhos, trazendo notícia de mau sentido. Eles
plantando rocinhas de mandioca, habitando em ranchos de palha. Os vaqueiros
passando. Os caboclos se escondendo por trás dos paus, botando sentido nas
andanças deles, assuntando o que queriam. Foi e foi. Mais vaqueiros, mais
vaqueiros. O mundo dos outros chegando. Os caboclos desconfiando da
segurança do mato, se amedrontando. A lagoa invadida, cheia de gente
estranha. Fazendas se plantando por perto. Fazenda Lagoa da Vaca, com gente
escrava, com tronco, senzala e tudo342. Os espaços sendo encurtados, os
caboclos se fechando em si, com cisma, de acordo com o afugentamento dos
estranhos. De pouco em pouco se quedando, se amansando no mesmo mundo
do viver dos outros.
Um fazendeiro botou o olho nas terras dos caboclos. Deu jeito de se
adonar de terras nas terra deles. Coisa de documento em cartório. Os caboclos
342
No sabido da memória dos velhos, esta fazenda pertencia ao Sr. Cazuza Mendes, que não
dava sossego a seus escravos. Esta fazenda situa-se a poucos quilômetros de Mundo Novo.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
sem entendimento dessas coisas. Anunciou a venda da terra. Um outro
fazendeiro se interessou. Quando foi se estabelecer nas terras, os caboclos
fincaram pé. Foram em Patamuté na procura de decisão certa dos homens da
lei. A lei se fez contra eles. O comprador, olhando para eles, disse: “Vocês
perderam as terras, caboclos!”. Quando o homem se viu “dono” das terras
mandou seus cabras tocarem fogo em tudo. Nas palhoças, nas roças, para
desarranchar os caboclos343. Eles perderam a mandioca, que é do que viviam,
tirando as caças e as comidas do mato. Ficaram desabitados, sem terra, sem
lugar para ficar. Se esbandalharam se abandonando, morando de favor nas
terras dos fazendeiros. Viraram agregados, nos caprichos dos proprietários.
Não podiam botar roça. Viver só do que o mato dava: raiz de imbuzeiro, mari,
bruteiro344, favela, juá, caça, xiquexique, mucunã345, miolo de ouricuri e ovo de
passarinho. Não podiam reagir. “Não tinha mais flecha, não. Os caboclos
foram desabituados porque os governos tomaram parte, tomaram as armas e a
direção. A gente ficou assim meio acanhado porque caboclo nunca teve
instrução mesmo, né”346.
A lagoa amparando a vida do povo, a vida dos bichos. Gente de longe
vindo para perto dela, se arranchar, nos tempos de seca. A gente vivia aí com
as coisas do mato. Muito xiquexique e, nas serras, o ouricuri. Os meninos com
aqueles buchos bem grande, empanturrados com os intestinos inchados. No
verde a vida melhorava. E o povo levantando casas de palha e casas cobertas
343
O informante, Sr. Bernardino Geraldo, filho de um dos caboclos desarranchados, disse que o
sujeito que se adonou das terras inicialmente foi um sujeito de nome Barros (do Paredão) e o
comprador que desarranchou os caboclos foi Agostinho Félix (das Cacimbas). O responsável
pelo cartório que acabou decidindo a questão foi Galdino Matos (chefe político de Patamuté).
Esse fato ocorreu entre o final e o início desse século. No local onde habitavam os caboclos, foi
instalada uma fazenda com o nome de Angico.
344
Também conhecido pelo nome de araticum verdadeiro, em outras regiões.
345
Segundo o Sr. Bernardino Geraldo, “lavavam a mucunã em nove águas e ela ainda matava”.
346
Sr. Bernardino Geraldo. No seguir de sua fala: “Você sabe quem gerou a geração do Brasil?
Foi a princesa Isabel. A princesa Isabel era cabocla... foi pegada. O reino de Portugal foi quem
avançou... e pegaram a caboclinha e aí ela casou com o fio do homem e agora, aí todo mundo é
caboclo. É por isso que eles (os índios) querem a terra de volta... que ela foi tomada a muque,
não foi vendida a Portugal. Nem que o governo me prenda mas eu acho que eles não
compraram. Houve morte, houve guerra... caboclo matou soldado, soldado matou caboclo...
mas era muitos e venceram”.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
com barro347. Agregados, refugiados da seca, vaqueiros. Todo mundo na
pobreza, se confundindo nos mesmos caminhos. Uma roupinha só, para cobrir
os couros. Calça sem cueca. Na hora de lavar, ir para o mato se esconder, nu,
esperando a roupa secar. Os vaqueiros sem ter onde prender os bichos doentes,
que cerca só a do curral, a do chiqueiro. Os bichos doentes amarrados debaixo
dos paus. Os fazendeiros morando longe, para as bandas de Bonfim, de
Salvador. Morando por aí, um ou outro, fechado nas distâncias com o povo. Os
que tinham, tinham muito. Os que não tinham, não tinham nada. O povo por
si, na esperança de Deus.
Assunto de escola no mato, sem auxílio do governo. Os pais, os
padrinhos pagando aos mestres para realizarem os ensinamentos. Os meninos
indo para aprender a escrever o nome, com sorte aprender a ler, a escrever, na
conformidade de suas inteligências. A palmatória, os castigos. Os meninos
inventando os meios de escrever. Faltava tudo. Faziam tinta com leite de
pinhão, com folhas, com lagartas desmanchadas em água quente. Quem
aprendesse bem, a ler e a escrever, virava professor, no ensinamento das
escrituras.
A morte. Enterrar gente só em cemitério, para garantir a salvação da
alma, para impedir as tentações dos diabo. Cemitério em Uauá. Fosse seca,
fosse verde, carregar o defunto em um esquife, caminhando dez léguas com ele
nos ombros. Assim, assim até 1937, quando construíram um cemitério perto da
lagoa.
Os fazendeiros foram perdendo a impressão de vantagem nas terras das
caatingas. De pouco em pouco passaram a vender retalhos de terras. Os
vaqueiros comprando, virando proprietários. Os agregados ganhando
consentimento para botar roça. A vida mudando de pouquinho348.
347
Esta cobertura era feita da seguinte forma: levantavam-se os esteios, depois fazia-se uma
armação com varas na cobertura. Após isso, jogava-se barro e depois colocavam capim. O
primeiro morador foi o Sr. Antônio Fagundes. O cemitério foi construído em 1937 pelo Sr.
João Onório, sendo o mesmo até os dias atuais. Neste período, os cemitérios configuravam-se
como espaço de aglomeração humana, dado o seu caráter sagrado, ou palha sobre o barro da
cobertura, tocavam fogo para o barro endurecer.
348
Mais ou menos por volta de 1930, as terras começaram a ser retalhadas.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
A lagoa, o último lugar de água no mato. O gado livre de carreira de
cavalos, arredio por perto dela. Os bichos do mato na paz das caatingas, se
vendo com eles mesmos. Os vaqueiros se chegando, batendo o campo, fazendo
retiros349, botando caiçaras350, se alegrando, fazendo festa nas corridas de pega
de boi. A lagoa, o agasalho deles. E eles se arranchando na sombra da baraúna
grande, bem grande, que havia na beirada dela. Gente vindo com carga,
carregando cachaça, fazendo rancho, mulher chegando para vender comida,
doces. Aboios, conversas, informações sobre gado, sobre gente, as notícias
correndo. Cachaça, cachaça351. Os bichos do mato arredando. A lagoa do
Mundo Novo conhecida e conhecida. Todo mundo era dono. Nunca venderam
terra aí352. Nunca teve dono. Alguém botou morada pertinho353.
Os caboclos, espalhados nas moradas do mato, sem prosa de muita
aproximação com ninguém, assustados na desconfiança. Quando viam gente
estranha, saíam correndo, abandonando casas, retornando com o sumiço dos
chegantes. Vivia entocado nos seus caprichos, se dando consigo, estranhando
o mundo dos que chegavam no seu chão, vivendo do mato, caçando, também
plantando em suas rocinhas. O mato ficando fraco, a lagoa morrendo e eles
olhando, acompanhando nas conversas entre si. De pouco em pouco, na
carreira do tempo, foi se botando nas misturas. Misturou, se fundiu, entrou no
mundo dos outros. Agora, sobra de resto de sangue, sem noção dos costumes.
Feira nas distâncias. Caminhadas para as lonjuras, caminhando à pé, em
lombo de animal. Em Uauá, a seis léguas, na segunda-feira feira; em Patamuté,
a oito léguas, no sábado; em Barro Vermelho, a sete léguas, na quarta-feira;
Poço de Fora, a seis léguas, na terça-feira. Alguém de comércio atinou
organizar adjunto de feira. O adjunto no oitão da casa do morador de perto da
lagoa. O adjunto em um dia livre, sem feira: sexta-feira. Rapadura, cachaça,
349
Ajuntamento de gado ou outros animais para depois retirá-los para as fazendas de sua
criação, por ocasião do final das águas no mato.
350
Caiçara: abrigo provisório que os criadores montavam em locais abundantes em pasto e/ou
água, para se livrarem dos rigores da seca ou aproveitarem o resto do verde.
351
Estes acontecimentos ocorreram até as décadas de 1940, início da década de 1950.
Conforme o tempo, o movimento persistia até início de agosto.
352
Bernardino Geraldo.
353
Segundo a coleta de informações realizada pela professora Maria Ferreira, o primeiro
morador foi o Sr. Antônio Fagundes.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
feijão, farinha. Começo de tardezinha354. Pegou. No continuar dos tempos o
povo caminhando para aí355, no mesmo dia do começo.
Mudaram a feira, para um lugar próximo, pertinho, onde tinha um pé de
imbuzeiro. Debaixo dele o comércio das coisas356. A feira chamando gente.
Fizeram um barracão357. O imbuzeiro esquecido. O povo chegando no atrasado
da hora. De atraso em atraso, ela na noite e na noite rolando. Seis horas da
tarde, os primeiros ajeitamentos de negócio. O povo começou a levantar umas
casinhas, casinhas de taipa, de palha, de vara. Depois foi uma casa de tijolo.
Foi seu Lino358 quem a construiu para sua morada. Adoração dos santos. Seu
Lino 4gostava. Lugar de cristão tem que ter casa de Deus. Ele pediu a ajuda do
povo. Construiu uma igrejinha, botaram santo dentro359. O povoado crescendo
devagarinho.
A devoção, para agrado das coisas boas de Deus. Uma mulher do mato
de perto, com a imagem de uma santa. Nossa Senhora do Parto. Comemoração
da data dela: 15 de agosto. No começo, novena meio dia na casa da dona da
santa. Depois a mulher levando a imagem para a igreja, no dia da celebração.
Assim, assim até que ela veio morar na rua. Trouxe a santa. Colocou-a no altar
da igrejinha. O padre Adolfo dando assistência de missa no dia da reza.
Resolveu construir igreja. Chamou o povo, fez mutirão. Igreja construída,
trouxe a imagem da padroeira360. Ele que escolheu: Nossa Senhora da
354
Segundo o Sr. Bernardino Geraldo, a feira se realizava no final da tarde devido às ocupações
do povo nas caatingas, principalmente no período de seca.
355
Segundo o Sr. Urbano Fernandes de Vale, *1909, os enfrentantes do adjunto da feira foram
os Srs. Antônio Ferreira e Antônio Emiliano. Segundo Sr. Bernardino Geraldo e Dna. Flora
Ferreira de Souza, *1934. A primeira feira aconteceu em 1950.
356
Segundo informação da professora Maria Ferreira, o pé de imbuzeiro localizava-se onde
hoje é a casa da Sra. Corina.
357
Segundo o Sr. Damázio o barracão foi construído nas eras de 1950, na gestão do prefeito
Gilberto Bahia. Barracão era o local onde a feira se realizava e consistia em uma pequena área
coberta, mas aberta nas laterais. Foi ele a primeira benfeitoria do município na localidade.
358
Seu Lino tinha um comerciozinho e também era pedreiro. Além disso criava e possuía uma
rocinha de mandioca.
359
A capelinha foi construída de 1953 para trás, uma vez que, nessa data, um padre de Uauá
celebrou a primeira missa da coletividade nela.
360
A atual capela foi inaugurada em 1969.
Caminhos de Curaçá
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Assunção. As duas santas no altar. As duas santas dividindo o andor na hora da
procissão.
Nesse, nesse, o tempo rolando. Veio a construção de prédio para
mercado, no mesmo lugar do barracão361. Feirantes em jumentos, a pé, em
bicicletas, em motos, em caminhonetes. No hoje o comércio de feira até às
22:00h. Todo tipo de mercadoria. Depois cachaça. A turma bebendo, se
alegrando nos bares, conversando alto, de vez em quando um cacete. Alegria
até as três horas da manhã. “Feira só pode ser de dia. Tem gente que conhece o
mundo todo e só conhece feira de noite aqui. Só aqui que é de noite. Não
sei362”.
A baraúna grande não existe mais. Acabou-se a prova dos tempos velhos.
O povo foi devorando os paus da lagoa, arrancando os cipós, derrubando as
árvores grandes, a água minguando, se acabando logo.
Agora a alegria dos meninos do estudo, chegando fazendo zoada,
trazendo alegria, animando, dando vida ao lugar363.
361
O prédio do mercado foi construído em 1973.
Frase do Sr. Urbano Fernandes do Vale.
363
Primeiro prédio escolar construído em 1964; o segundo prédio construído em 1985. Foram
as primeiras professoras: Mariana Marques de Jesus e Maria de Lourdes Rodrigues de Souza.
Atualmente a sede do povoado conta com ensino completo de primeiro grau, tendo diretora e
coordenadora com curso superior. Regularmente matriculados se encontram (1999) 29 alunos
na educação infantil e 453 no ensino fundamental, segundo resultados do Censo Escolar
organizado pela Secretaria Municipal de Educação. Antes da energia de Paulo Afonso,
instalada em 1986, havia um gerador a diesel e que iluminava o povoado até às 21:00 h.
Mundo Novo, além dos equipamentos já assinalados anteriormente, conta com um posto
telefônico, dois poços artesianos e um dessalinizador (que passou a funcionar em 1996), uma
quadra de esportes, um restaurante, uma igreja evangélica e um posto policial (embora sem
assistência). Há vários bares e duas mercearias. Em meados de 1999 contava com 106 prédios
(entre residenciais e comerciais), segundo a Secretaria de Saúde do Município. Dista 96 km da
sede do município e é povoado do distrito de Patamuté, conforme delimitação territorial do
município, estabelecida pela Lei nº 628 de 30-12-1953.
362
Caminhos de Curaçá
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SÃO BENTO*
*
Este texto foi redigido em muito com base em um documento escrito por José Afonso Gomes
Leite.
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Serra da Natividade, Riacho do Jaquinicó, Brejo, Serra da Canabrava.
Mato rico, terra boa de plantação. O povo foi situando, situando. Uma fazenda,
depois outra e mais outra. A gente se multiplicando. Com o tempo, muitas
fazendas.
Vida de trabalho, de enfrentamento de dificuldades. A secona queimando
tudo. Os bichos berrando na porteira da fonte. Queimar mandacaru, cortar rama
de juazeiro, de quixabeira. Salvar os bichinhos, não deixar a semente se acabar.
Comida pouca em casa. Na faltança das coisas, comer comida do mato: gró 364,
macambira, xiquixique. As caças se escondendo, se escondendo, para não virar
comida grã-fina. O povo se salvando como podia365. Avançava para cima do
mato, tirando casca de angico; arrancando a vida e a pena das emas; fazendo
sal, tirando salitre da barriga das serras. As mulheres indo longe, lavar roupa
nos caldeirões366. A chuva chegava. Mato alegre, chão molhado, riacho
roncando, criação berrando forte, cabritos escabriolando, bodes bodejando.
Plantação de roça: algodão, mamona, milho, feijão, abóbora, melancia367.
Queijo, leite, imbuzada, carne assada, requeijão. Fartura da muita. Novenas
alegres e o povo procurando dança. Os campos nos bichos, os chiqueiros
crescendo no namoro deles. Ovelhas, bodes aos montes.
Os meninos. Fizeram escola para eles. Foi na fazenda São Bento, perto
do riacho, na beira da estrada. Os meninos de jegue, a pé no caminho do
estudo. Pequenininhos, grandinhos, fazendo zoada, carregando vida nas
364
Gró, uma comida feita do miolo da planta ouricuri. O ouricuri era encontrado na serra da
Borracha. Informe do Sr. Sindolfo.
365
Está viva na lembrança do povo a atitude de um prefeito que, percebendo o caráter
predatório da retirada da casca de angico, mandou que seus funcionários queimassem toda a
casca que encontrassem. A ordem foi cumprida e o povo se indignou, pois ela era o sustento da
vida da maioria dos que não tinham outro recurso.
366
Escavação natural existente na rocha, que armazena água por longo período.
367
A área de plantio era compreendida pela faixa de terra umedecida pelo riacho, quando das
cheias.
Caminhos de Curaçá
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brincadeiras, alegrando o mato. A professora Baiana368 ensinando. Aprender a
ler, a escrever, a fazer zelo do lápis, do caderno. A régua, a palmatória de
prontidão para endireitamento dos traquinos, dos desmazelados. Um
sofrimento danado. Os pais autorizando a professora: “Aplique a disciplina!”.
Os meninos ouvindo, vendo, com medo. Havia festa de comemoração da
pátria. 7 de Setembro. Os meninos fardados carregando bandeirinhas do Brasil.
A professora vigiando, botando tudo nos conformes do desejado. Os pais, o
povo de perto assistindo. A escola mais bonita assim. A hora do desfile. A
professora nervosa, os meninos se arrumando na fila e o desfile começava. O
trajeto: uma volta em torno do prédio, que não havia rua. Depois a cantiga do
hino. Era bonito. Os meninos gostavam. Os pais se orgulhavam. A professora
ficava feliz369.
Feira em Curaçá370. O povo indo toda semana, carregado pelos animais.
Juntando-se pelas estradas, conversando, se botando a par das coisas da vida.
Viajona danada. Comprar rapadura, sal, farinha, feijão, gás371; vender pele de
bode, pena de ema, requeijão, coisas do mato. Assim foi, por muito, desde o
tempo dos antigos.
Um comerciante viu372. Achou que dava futuro, marcou o dia e o local.
Fazenda São Bento, do lado do prédio escolar373, dia de domingo. Lugar bom
para o caminho do povo. Ano de 1972374. O povo chegando, gostando. Feira
perto, sem precisão de caminhada longa. A notícia se espalhando e cada vez
mais gente nas feiras do seguir das semanas. O ajuntamento crescendo, a coisa
dando certo. O dono da fazenda375 ficou incomodado com o ajuntamento dentro
de suas terras. Botou dificuldade, querendo fazer questão. Também tinha a
atrapalhada do riacho que, quando enchia, não deixava o povo atravessar.
368
Professores: Cecília de Assis, Raquel de Souza (Baiana), Flordinice Lima.
As atividades festivas eram organizadas com grande ajuda da professora Flordinice.
370
Curaçá fica a 42 km do povoado de São Bento.
371
querosene
372
Joatan Nunes Franco, tradicional comerciante de Curaçá.
373
O Prédio Escolar, hoje abandonado e em ruínas, foi construído no ano de 1972, antes do
início da feira.
374
Segundo documento de memória do povoado e assinado por José Afonso, entre outras
pessoas, a primeira feira foi realizada no dia 1º de setembro de 1972.
375
O proprietário da fazenda era o Sr. José de Souza. Informação do Sr. Eduardo Pereira
Martins.
369
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Perto, bem perto outra fazenda, esta de nome Bela Vista. Os donos fizeram
consentimento para o negócio. A feira mudou de lugar, mas levou o nome do
lugar velho. Foi botada na malhada da casa de Né Pereira, quase na porta,
debaixo de dois tamarineiros. Mas o movimento foi aumentando, aumentando.
Mais feirantes, mais comerciantes. Estava incomodando os moradores. Eles
resolveram fazer doação de uma área de terra, em lugar perto, para o
movimento do povo376.
O povo se animou, levantou latadas, levantou barracão. Um
barracãozinho, coberto de palha377. Área livre, os feirantes foram fazendo
casinhas para se agasalhar, apoiar os meninos na escola 378. Tomou jeito de vila
e logo virou povoado379. Povoado de São Bento, na fazenda Bela Vista. A feira
virou ponto de encontro dos que tinham negócio e dos que queriam diversão.
Animação danada. Pegou fama e mais gente vindo morar, visitar. Teve até
ônibus fazendo linha380. O prefeito se entusiasmou, fez prédio para o
mercado381.
Casa de Né Pereira382, sede da fazenda Bela Vista. Né Pereira devoto de
São Sebastião383. Desde muito comemorando o santo, fazendo novenas,
reunindo a matutada pras rezas. Aí foi. São Sebastião virou padroeiro de São
Bento. Festa em 20 de janeiro. Procissão, missa e tudo mais. Não havia igreja.
Um sonho do povo e o povo esperando, esperando. Época de eleição, um
candidato fez promessa, financiou a construção384. São Sebastião agasalhado.
Igreja e mercado. Depois foi o prédio escolar, energia e poço artesiano385.
376
Fizeram a doação de uma pequena área de mais ou menos dois hectares, no ano de 1973. Os
doadores foram Juvino Pereira, Manoel Pereira, Zilda Pereira Rego, Zulmira Pereira dos
Santos e Antônio Pereira.
377
Este barracão funcionava como mercado.
378
Os primeiros moradores da área específica do povoado foram Eduardo Pereira, Serafim de
Rita, Norberto e Evangelista.
379
Já em 1974 ganhou caráter de povoado.
380
Ônibus da empresa Joalina.
381
O prédio do mercado foi construído no ano de 1976.
382
Originário do município de Juazeiro.
383
A casa de Né Pereira foi construída em 1915 e, a partir de 1916, São Sebastião passou a ser
celebrado em novenário.
384
A igreja foi construída com recursos doados por Antônio Carlos Duarte, no ano de 1983.
Caminhos de Curaçá
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“Crises”. Uma virada do mundo. “As crises mudando a natureza do
povo”. Secas danadas, com o criatório morrendo. A gente foi abandonando
seus lugares, as casinhas sem cuidado, caindo, as cercas se espedaçando, indo
ao chão. O povo para rua de Curaçá. A feirinha minguando. O povoado
perdendo gente. Trabalho nos projetos, escolas mais adiantadas, longe.
Aposentados recebendo dinheiro na rua e na rua fazendo as compras. De pouco
em pouco se vão para lá. A facilidade de transporte desvia os feirantes.
Comerciozinho fraco, cachaça, surtimento pequeno de mercadorias. Crises386.
São Bento esvaziando, se amiudando387. Caminho para gruta e para Patamuté,
os moradores ficam vendo os carros passarem, olhando a poeira388. As pessoas
sentadas nas portas, os meninos brincando na rua. O tempo, a vida assim ...
Um sonho. Barragem, que o riacho é grande. No atrasado dos tempos
houve uma promessa389. O DNOCS fez estudo, corrigiu a terra e plantou a idéia
de represamento de muita água. Os homens do governo foram embora. O
desejo ficou. Os mais velhos sem ilusão, os mais jovens sonhando. Uma
fezinha de novo. Agora parece que vai. Uma barragem nascendo. Não é tão
grande como a que ficou na promessa, mas vai fazer arremediação para
adjutório de vida e São Bento se anima. Os meninos também chegando para os
negócios de estudo, vindo de todos os lados nas caminhonetes. Uma gritaria
zoadenta, o povoado ganhando vida390.
385
O prédio escolar construído em 1986 , o gerador de energia em 1987 e o poço artesiano
também foi nessa época.
386
É assim que o Sr. Eduardo Pereira explica a decadência do povoado de São Bento.
387
São Bento possuia, em meados de 1999, segundo José Afonso, 47 casas e 80 moradores.
388
A estrada passa bem no meio do povoado.
389
Por volta de 1940, o DNOCS fez estudo da área e projetou um açude que, segundo está na
memória dos mais velhos, represaria água numa extensão de 40 km. Em 1999 está sendo
concluída uma barragem projetada para acumular 42.598 m³ de água e um volume útil de
25.558m³, devido à perda por infiltração e evaporação. O projeto estima que serão atendidos
750 habitantes, levando-se em conta o consumo per capta de 100 l/dia – In: Memorial
Descritivo de Projeto Barragem de São Bento, Prefeitura Municipal de Curaçá- 1999.
390
A Secretaria Municipal de Educação resolveu nuclear as escolas nos povoados e nas sedes
dos distritos e isso está mudando o panorama de calma dessas localidades.Segundo aquela
secretaria, a população estudantil de São Bento é de 282 estudantes, sendo 26 matrículas no
ensino infantil e 256 no ensino fundamental.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
JATOBÁ
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
As margens do rio fechadas de mato. Jatobás, juazeiros, muquéns,
genipapeiros, ingazeiras, os mufumbos de calumbis, os entrançados dos cipós,
matos pequenos do chão. No subir do alto a secura dos matos da caatinga
caminhando na direção da serra do Icó. Bichos do mato abrindo veredas no
entre a serra e o rio. No distante dos tempos, índios passando por aí, fazendo
pouso, armando aldeia na fartura do rio, na fartura da serra. Os brancos
chegando, os bois berrando, a terra ficando pouca, apertada: perseguição,
aperreio, índios se indo, sumindo, se acabando. Gente negra chegando, se
escondendo nas terras de índios, correndo de branco, se apertando na beira do
rio, no agasalho do mato fechado, cheio de bichos do rio, de bichos do chão, de
mosquitos. O povo morador empurrado, molestado com as águas subindo, com
as águas baixando. Os brancos se encostando, se encostando, ficando perto,
perto. Índios e negros se misturando, se fazendo outro ser. Caça, pesca,
plantação de mandioca. Casas de palha, de taipa, debaixo das sombras das
árvores. Na noite, fogueiras no terreiro, toré. As caças escasseando, o falado da
língua mudando, o povo esquecendo, fazendo um outro jeito de si. Jatobá, o
nome do lugar.
A vida sempre assim: caça, pesca, plantaçãozinha de beira de rio e o
tempo passando. O povo ali no seu ser de sempre, no briquitar das poucas
coisas precisas pra fazer vida. Breiação de negro com índio e o povo casando
entre si, se confundindo na mistura do mesmo sangue virando parentalha,
formando rama do mesmo tronco. De raro em raro, mistura nova de sangue
brotada da barriga de índia pega a dente de cachorro na serra. Índia amarrada,
amansada, pros preparos do casamento do pegador.
“Sou bisneto de índio. Minha bisavó foi pegada a
dente de cachorro. Os caçadores no mato,
caçando... os cachorros pegaram ela e meu bisavô
a trouxe. Casou com ela. Os índios não a
procuraram mais. Não sei informar porque eles
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
não a procuraram. Ele, meu bisavô, era negro”391.
(...) “Minha avó, só era ver cachorro, ficava se
tremendo”392.
Sem ser do comum, mas havia breiação de homem branco com mulher
do Jatobá. Coisas que aconteciam, nos mexidos dos desencontros encontrados
da vida. Uma ou outra família também chegando se entrando na convivência.
“Aí foi ficando tudo melado, tudo russo, tudo
misturando. Somos negros-caboclos”393. “Mas na
nossa descendência somos índios, que antes era
tudo índio”394. “Tinha muita cerâmica de índio.
Aqui era aldeia de caboclo brabo. Nessa serra
tinha caboclo brabo. O negro, eu acho que surgiu
do índio, dos caboclos velhos, que quando iam
fazer roças achavam os cacos de telha, os
cachimbos deles”395.
Ramo velho fincado no ramo novo. O ramo novo dando vida ao tronco
velho e o povo fazendo marca de vida de gente na igualdade da parenteação,
nos trabalhos de todo mundo junto no mesmo pedaço de chão, derramando as
mesmas lágrimas pelos que morriam, sentindo as mesmas saudades dos que
partiam. Um povo só: Rompedor, Jatobá, Favela.
Os meninos crescendo nos costumes de uso de flecha para pescar, para
caçar capivaras. Treinar, treinar, treinar, que só depois de ser bom em flecha
acontecia condição de respeito de ser homem. Aí sim, direito de usar
espingarda, sonho de menino. A vida no mato, na roça, no rio. As casas, lugar
de encosto para sono. Na frente delas o terreiro, a fogueira, as histórias, as
danças do toré.
391
Manu (Manoel Gonçalves Buriti, *1938).
Anatalino Barbosa dos Santos, *1931.
393
Manu (Manoel Gonçalves Buriti).
394
Anatalino Barbosa dos Santos.
395
Dona. Maria Izabel.
392
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Toré, sessão de giro, depois o xangô396. Sessão de giro só com palma e
pandeiro, trabalhando na linha branca, na linha do bem. Coisa de parecimento
com toré. Todo mundo que tem sangue de caboclo é de uma aldeia. Precisa
fazer disciplina, senão morre. Cada caboclo possui um escravo. O escravo é um
espírito. Ele bota seu escravo para se encostar no sujeito para ele adoecer. O
sujeito doente vai procurar tratamento, vai à sessão. No tratamento o corpo fica
limpo, sem os fluidos ruins, então o caboclo encosta, entra nele, ensina tudo,
como é, como deixa de ser. Daí pra frente o caboclo passa a rezar no povo, a
consultar, a passar remédio. Caboclo é coisa que vem da natureza, de um
dom397.
Trabalho de roça. Mês de março, o começo da plantação na vazante do
rio. Briquitar até junho. Os grandes no pesado, os meninos no mais leve,
juntando o mato, botando as sementes nas covas. Depois banho no rio, as
brincadeiras. Em dezembro lá se vinham as águas subindo, subindo. Arrancar
batata, mandioca. A labuta para fazer farinha. As rapadeiras tirando versos, o
mexedor suando, os carregadores gemendo com o peso dos caçuás, o tirador de
lenha com o machado zoando e a turma puxando roda, no esforço dos braços,
na lida da cevação, se animando com cachaça, soltando cantoria. Dia e noite,
noite e dia o mexido do povo no tralho. Uma farinhada, mais outra farinhada e
o tempo se ia na vida, no conforme do movimento da água no rio.
No tempo de moagem, os engenhos virando festa. Gente carregando cana
do alto para o rio, os paquetes até o porto do engenho, do rio para o alto, do
alto para o engenho. Os carregadores de lenha, os meninos tangendo os bois,
outros botando cana no pé do engenho e mais gente cortando os pés das canas.
As canas entrando na moenda e a moenda gemendo, estalando e os bois
girando. Fome nessa labuta não tinha. Garapa, mel, alfenim batida, rapadura.
“Milho pra jegue, rapadura pra homem”398.
396
Segundo os velhos do Jatobá, o toré era coisa dos mais antigos. Do tempo deles veio o
xangô e a sessão de giro. Pelas características que deram, a sessão de giro se aproxima do toré
e notei haver uma certa censura ao xangô e ao candomblé que só recentemente foi introduzido
lá mas, pelo que deixaram transparecer, não fez muito sucesso. Pelo que tudo indica, a sessão
de giro chegou por volta dos anos de 1940/1950.
397
Este é o raciocínio de Manu e de outros habitantes do Jatobá.
398
Expressão de Manu ( Manoel Gonçalves Buriti).
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Dia de feira, feira em Curaçá399. A infieira de barcos, a infieira de gente
andando a pé, um ou outro montado em jegue, no caminho da rua. Cestos nas
cabeças das mulheres, os homens carregando as coisas nos ombros, nos braços,
nos cabeçotes das selas. Abóbora, batata, esteiras, farinha, beiju, tapioca,
verduras. “Os negros do Jatobá”400 chegando na feira, se achegando no
armazém de seu Juatan, no mercado, com suas vozes diferentes, falado
cantante arrastado, andando em turma. Vinham como se iam, em irmandade de
ajuntamento.
O tempo, o tempo.
Nas enchentes, as águas do rio caminhando terra acima, as muriçocas
empesteando o mundo, o povo fugindo, mudando os ranchos para o alto, no
vai e vem de todo ano. A irrigação chegando, os engenhos morrendo, as
farinhadas diminuindo, barco a motor aparecendo. Plantação de cebola, de
coisas só de vender. Os jovens entrando em desejo de outras novidades, os
velhos ficando no seguir dos costumes. As sessões de giro carecendo de gente,
as brincadeiras antigas sem animação da mocidade. A mocidade nas escutas de
rádio, no campo de futebol, nas festas de músicas tocadas com radiola.
A vida, outra vida de outras coisas. O povo se desgarrando pra outras
bandas no cedo da idade. Os jovens providenciando maneiras de outro viver.
De pouco em pouco tomando decisão de fazer as casas no alto, fugindo das
águas, das muriçocas. Os velhos, resmungando, se convenceram no tempo. A
beira do rio deixada pro canto dos sapos, dos grilos de noite, lugar só de
trabalho. As casas, perto umas das outras, mas de taipa. Umas na Favela, outras
no Rompedor e algumas no Jatobá. Água longe, carregada com latas na cabeça,
em galões, com os sujeitos gemendo no peso, ladeira acima.
Irrigação, barco a motor, plantação para vender. A luta do novo da vida.
“O que passou prá trás já foi. Agora só as coisas modernas” 401. Casas de
alvenaria, luz elétrica, água encanada, os meninos estudando. O junto do antes.
O povo se misturando na parentalha. Obra de devoção: construir igreja. “Se a
399
Curaçá dista 10 km.
Esta a expressão que o povo de Curaçá utilizava para designar os jatobaenses.
401
Do Sr. Mateus, mais ou menos 70 anos, morador do Jatobá.
400
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
gente se afastar das coisas de Deus, nada vai pra frente”. A turma no briquitar.
Teve gente de fora que ajudou402. Igreja sem padroeiro. Arranjar um. Eleição.
O eleito, São José. Cadê imagem do santo? Romaria para Juazeiro do Norte, se
acudir nas preces para Padre Cícero. Viram uma imagem em uma casa de
comércio. São José bonito. Desejaram. Foram se acertar no preço. O dinheiro
não dava. Fizeram reserva da imagem. Compraram um pequenininho, para
adorar. Voltaram no desejo do santo grande. Arranjaram dinheiro, enviaram
portador pro cumprimento da missão, com recurso de conta certa. O homem
havia subido o preço. “Aí acertaram que voltariam. Assinaram papel e tudo.
Outra viagem. O santo estava lá, conforme o dito do homem. Fizeram a
compra. Enrolaram, encaixotaram. Vieram direitinho, de ônibus, porque o
santo precisa ter conforto. Como é que ia ficar, santo quebrado? Mas quebrar
ele não ia, não, que santo tem milatre, ô!... São José!403.” O santo chegado,
reunião do povo. Aquela veneração. Procissão pra igreja. O santo entronizado,
lá, no comando das coisas divinas. O padre benzeu o santo, inaugurou a capela.
As coisas do tempo velho findas. O candomblé sem entusiasmo, seção de
giro de sem ter. Os engenhos acabados, farinhadas nas diferenças do mundo.
Fazer festa. Festa do Jatobá. Foi e veio. Chegaram: 20 de novembro, festa do
Rei Zumbi. Comemorar as coisas de negro, as coisas do tempo velho. O dia
todo de acontecimento. Comida, danças, cantigas, apresentações, exposição das
coisas: cestos, colheres-de-pau, potes, cordas, tambores de madeira, gamelas,
pilões. Velhos, meninos, visitantes. O dia todo.
402
403
A capela foi construída em 1991, através de mutirão.
Dona Maria Izabel.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
AGROVILAS
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
A vida era como conhecida por todos. Trabalho nas roças, plantando
cebola, milho, feijão, coisas da irrigação. A maioria trabalhava como meeiro,
como rendeiro. Alguns nas ilhas do São Francisco, quase todos em terra firme.
Havia os que só cuidavam de trabalhar avulso, para os outros, recebendo pelo
dia de serviço trabalhado. Também havia os que, nas épocas de chuva, se
ocupavam com o criatório nas caatingas e durante a seca se mudavam para a
beira do rio, procurando refrigério404. A vida era assim.
Ninguém, nem de longe, poderia imaginar o que viria a se suceder. Que
falavam da represa, isso falavam! Mas quem podia crer que uma obra dos
homens fosse capaz do que foi, de mexer com tanta gente? Isso, não! Foi nos
idos de 1976 que a conversa teve o tom aumentado. Mas era só conversa de
rádio e a palestra que o padre fazia na igreja, na hora da missa.
404
A agricultura ainda não era uma atividade especializada. Via de regra era consorciada com
a pecuária, pescaria e outras atividades residuais. Os trabalhadores ainda podiam ser
configurados como camponeses.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
O povo não acreditava. Aquilo tudo não podia ser. Mas, foi que foi e
começou a acontecer. Os maquinários chegando, zoando, fuçando o chão. As
empreiteiras instalando canteiro-de-obra e o povo despreparado para a verdade
que iria acontecer, conforme o dito do padre405. Ele já conhecia a história pelo
passado ocorrido na barragem de Sobradinho, quando o povo sobrou, sendo
dele feito o que a Chesf quis. O padre já sabia que todo mundo ia ser botado
fora, que as águas iam tomar conta de tudo. De pouco em pouco foram
aparecendo uns. Uns que começaram a acreditar na verdade do que izria ser.
Foi aí que começaram as reuniões. Foram reuniões e reuniões. Os mais velhos
não acreditavam. Ficavam rindo daqueles que participavam delas. Quando os
via caminharem na direção dos locais de encontro, diziam: “Oh! Os bestas já
vão” – e se danavam a sorrir. A Chesf também não acreditava que o povo
tivesse a capacidade de fazer com que ela procedesse ao contrário do que
planejara. Ia tocando a obra como bem entendia e sabia fazer. Foi aí que cada
vez mais chegava mais gente para participar das reuniões. Os sindicatos
chefiados por pelegos406. As empreiteiras começaram o serviço, já mexendo
com o povo. O povo fez concentração dentro do canteiro-de-obra,
reivindicando, querendo acerto, a Chesf sem querer, só enrolando. Era difícil.
Os sindicatos estavam isolados e nas mãos de dirigentes pelegos. Foi preciso
tomar os sindicatos, mas não bastava. A obra da barragem de Itaparica iria
mexer com gente de vários municípios da Bahia e do Pernambuco407, com
gente da caatinga, com gente da beira do rio e com gente das cidades e dos
povoados. Precisava que ser uma fala só. Foi aí que nasceu a idéia. Juntar os
sindicatos, formar um pólo sindical que comandasse todos os sindicatos da área
afetada. Mas a luta ainda não era forte.
405
O então Padre Alcides Modesto que, posteriormente, foi eleito deputado estadual e federal,
por algumas legislaturas.
406
Pelego, no caso, é aquele representante que faz jogo contrário aos interesses de seus
representados; dirigente sindical conciliador.
407
Ao todo, aproximadamente 120 mil pessoas seriam removidas, segundo reportagem do
Diário de Pernambuco de 19 de julho de 1981. Aí incluíam-se a totalidade dos habitantes da
cidade de Petrolândia, Pernambuco.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Muita gente continuava sem acreditar no que viria. Também pudera,
como imaginar ver aquele mundão de terra debaixo d’água, até terra longe, nas
caatingas, e rio acima, bem distante? E como é que se podia imaginar ver tudo
acabar assim com o acabamento de tudo, cemitério, igreja, todos os lugares?
Lugares bem conhecidos, onde viveram os bisavós, os avós e onde se criaram
seus pais? E o povo, como é que iria ficar? Para onde ir? Essa história era sem
prumo. Sem prumo? E os tratores cortando o mato? E aqueles homens
diferentes cortando o mato, fazendo picada? Será que aquilo tudo era feito
apenas para fazer susto? Não! Não podia ser. Nessa história tinha que haver um
quê. À medida que o tempo passava, a coisa ia ficando mais verdade. Quando
pensa que não, olhe os tratores futucando nas roças do povo! Não tinha jeito.
Era verdade. Até o ministro admitia. Mas ainda havia quem duvidasse.
Depois de muita luta, os trabalhadores organizados passaram a fazer
suas exigências: terra por terra na beira do lago; indenização das benfeitorias;
construção de casas, de acordo com o número de casas de cada comunidade;
benefício de escolas, posto médico, igreja, rede de saneamento, eletrificação,
estradas, área para feira, área comunitária para criatório, com tamanho de 10 ha
por trabalhador; reassentamento de todos, inclusive daqueles que não tinham
propriedade de terra408. Os anos 80 já haviam entrado.
A obra avançava dia-a-dia. Para se garantirem sobre o que
reivindicavam, os líderes fizeram visitas aos trabalhadores reassentados de
Sobradinho. Não gostaram do que viram. Exigiram terra de qualidade, fosse
onde fosse. Perceberam um problema: como ficariam os moradores das terras
para onde se transfeririam? Exigiram que os atingidos das áreas onde seriam
reassentados também fossem beneficiados nas mesmas condições. A vida, se já
não era fácil no normal, ia ficando difícil dia-a-dia. Incertezas, inseguranças.
Para onde iriam? A Chesf avançava em sua obra, o lago logo ia ser formado
pelas águas, e o povo? Aí é que dava. Pressão: assembléias, manifestações,
denúncias. Foi que foi, a Chesf apontou áreas, aceitou certas condições. Pedra
Branca409. Onde fica?
408
Boletim dos Trabalhadores Rurais Atingidos pela barragem de Itaparica, número 8, julho de
81 a junho de 1982.
409
A área total do projeto compreende 11.000 ha, sendo que 2.700 ha. para irrigação e 7.300
como área de sequeiro. Cada reassentado teria direito a 10 ha de área de sequeiro e de 1,5 a 6
ha de área para irrigação, a depender da força de trabalho de cada família, na ocasião do
Caminhos de Curaçá
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O povo da Chapada, da Fazenda Árvore estava no seu quieto. De vez
em quando botava ouvido no assunto do rádio. Questão de curiosidade. Quem
iria imaginar? A conversa começou a chegar. Vão fazer projeto, trazer gente de
fora, gente ruim. Ficou com medo, cismado. Será que é mesmo? Em Pedra
Branca um dito corria: “Agora vai acabar com o sossego de Pedra Branca com
esse cão que vem”. Chegaram as firmas, começaram a fazer levantamento, a
tomar apontamento. O povo assistindo sem saber direito. Apareceu uma
mocinha410 da igreja, fazendo falação, reunindo, organizando. O povo se
chegando, compreendendo. Quando menos se esperava, apareceu também
gente da gente que vinha. Veio fazer exame da terra. Olhar o lugar, para fazer
decisão. A área foi aprovada. Os de fora procuraram os do lugar. Fazer reunião,
conversar, se conhecer, acertar a vida. Aquela desconfiança. Os pratos foram
colocados na mesa. Muitos do lugar viram vantagem. Terra irrigada, escola,
atendimento médico, eletrificação. Não imaginavam isso. Amoleceram
desejando. Teve quem achasse ruim. Os que tinham muita terra, que criavam
muito. Esses não ficaram satisfeitos. Os que não tinham nada, só o trabalho
dia-a-dia, duvidaram, mas desejaram que fosse.
As empreiteiras fizeram os variantes, começaram a construir as casas.
Um bocado de vilazinhas. Setenta, sessenta casas, mais ou menos, em cada
uma. O mato foi sendo mudado. Estrada pra todo lugar. Buracos enormes. Os
do lugar ficavam imaginando. Os velhos vendo. “É o fim do mundo”. Uns se
desesperavam411: “Eu vou sair daqui, nada, pra morrer nas terras alheias! Lá vai
morrer todo mundo de sede, vai se acabar todo mundo de fome”.
Nas terras de Rodelas, em trechos de Abaré, o falatório, o aperreio de
juízo. “Vai inundar, vai inundar, temos que ir.” O sindicato batendo pé: todo
mundo junto, os vizinhos juntos, os parentes juntos, as comunidades perto. Mas
as obras para onde iam não estavam prontas. Só as vilazinhas tinham sido
feitas. A Chesf dizendo: quem cria só pode levar ou três vacas ou trinta cabeças
de criação. E o resto? Tem que vender412. Vender os bichinhos, abandonar as
transplante, e da quantidade de terra que cultivava anteriormente.
410
A mocinha era uma agente pastoral servindo na paróquia de Curaçá e chama-se Ângela.
411
Informe do Sr. João Batista, militante sindical e dirigente de uma das cooperativas.
412
Segundo Assueres da Silva Santos, *1965, dirigente do Pólo Sindical, havia criadores que
possuíam um rebanho de até três mil cabeças de animais. É certo que esta era uma situação
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
casas, as terras, não ver mais o que se vê. Não poder ser mais do jeito da gente.
Viver como, se ainda não havia jeito de trabalho? Lá se vai o sindicato de novo
fazer briga. Botou na mesa: dois salários mínimos e meio para cada chefe de
família reassentado, enquanto as obras não ficarem completas para o povo
trabalhar. Fez pressão. A Chesf não achou outro jeito, concordou. Mas a coisa
era de dúvida. Alguns fizeram logo a decisão e exigiram indenização. A Chesf
pagou um dinheirinho. Esses agora teriam que se virar sozinhos, onde
quisessem, como quisessem. Outros resolveram ficar em algum lugar por perto
mesmo e a maioria decidiu que aceitaria se mudar para o projeto Pedra Branca.
De qualquer jeito, espatifo de gente.
Os representantes examinaram as vilas. Fizeram distribuição do povo, no
conforme das vizinhanças, das proximidades de sangue. Só faltava a mudança,
e o dia chegando, chegando. O povo se apertando no coração, sem saber como
seria, se desaprumando na cabeça, olhando sem ver. Chegou o dia. O dia durou
dois meses. Início do ano de 1988. Choro, choro, abraços, despedidas,
saudades das terras, das coisas, da vida que a água ia afogar. As mudanças nos
caminhões, a poeira subindo, a gente toda olhando, acenando, sumindo, nos
caminhos do adeus
Terra nova, diferente. As casinhas juntas nas vilas. Dezenove vilas413. A
ocupação das casas não era de qualquer jeito. Havia a ordem. A das vilas
também. Em cada vila, os chegados de sangue ou de vizinhança. Morador em
cada casa, conforme a casa anterior414. Já as conheciam no papel. Agora
isolada, mas muitos possuíam chiqueiros com 100 e até 200 cabeças. 30 era um número
pequeno demais. Essa criação é solta na área de sequeiro, onde cada um tem direito a 10 ha
Entretanto, não há cerca demarcatória entre as áreas individuais. Só é permitido a cada
proprietário fazer chiqueiro. Nesse particular foi possível manter a tradição.
413
Treze dessas vilas foram situadas no município de Curaçá e seis no município de Abaré.
Nelas foram reassentados apenas moradores do município de Rodelas, os antigos moradores da
área onde o projeto foi estabelecido e moradores da parte da área atingida pelo lago no
município baiano de Chorrochó. Foi criada uma estrutura mínima com eletricidade,
saneamento, rede de água, educação e assistência médica.
414
Casas de nível um, com um quarto; casas de nível dois, com dois quartos e casas de nível
três, com três quartos. A distribuição foi feita de acordo com as casas onde moravam
anteriormente. Ao todo, segundo o Sr. João Batista, foram construídas 801 casas,
correspondentes ao número de famílias reassentadas. Número igual de lotes foram
estruturados. Estima-se que, aproximadamente, 3.200 pessoas foram envolvidas diretamente no
Caminhos de Curaçá
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estavam na frente delas, abrindo as portas, se agasalhando naquele desajeito
todo, todo mundo murchando pela fome. Uma coisa de espanto: no abrir das
portas, cada um se deparou com a fartura de uma cesta básica botada no meio
da sala. Ao lado dela uma quentinha para cada membro da família, tantas
quantos fossem415. Alento, desalento. Tudo tão diferente. O cansaço, o sono, a
dúvida. Depois, os meninos nas ruas, brincando, fazendo festa, admirando o
tudo novo. Os velhos desalentados, saudosos. Os do batente, desencontrados,
sem saber. E agora? Não tem comércio, não tem rio pertinho, não tem trabalho,
não tem, não tem... Recomeço. Teve gente que morreu416: saudade!
As notícias: as águas da represa estão subindo, já inundaram lugar tal. A
ilha fulana não existe mais. Tá tudo afundado. O povo, ouvindo, encabulado na
contrariação, fazendo cálculo, pensando, pensando. “É! Inundou tudo”.
O mato diferente, sem chocalho tocando. Os tratores se mexendo. Os
homens das firmas andando pra cima e pra baixo. Nisso, todo mundo parado
esperando a terra. Esperando a terra pronta, conforme acordo assinado. A terra
não chega e não chega. Firma começa, firma pára e um lá vem, lá vai sem
nunca se acabar. Todo mês o salário do acerto417 e o paradão da vida. As
mulheres no de casa; os homens jogando pulha pelos cantos, conversando
fiado, jogando baralho, sinuca, bebendo; os meninos, os jovens, na vadiação,
procurando vaidade. Caminhar para Cabrobó418, Abaré, Belém, Ibó. Comércio
nesses lugares. Assistência médica também. Andança. Os assaltantes nas
reassentamento.
415
Esse fato marcou os reassentados causando-lhes a melhor das impressões em relação à
Chesf.
416
Os reassentados do próprio lugar tiveram poucos traumas, pois a maioria achou-se
beneficiada. Há, entretanto, os que se queixam.
417
Pelo acordo, a Chesf se comprometeu a pagar a V.M.T. (Verba de Manutenção
Temporária), equivalente a dois e meio salários mínimos a cada chefe de família, por mês, até
que o projeto estivesse completamente pronto. Na realidade ela só pagou dois salários. Como a
maioria absoluta deles viviam exclusivamente da V.M.T., criou-se uma situação de
nivelamento social.
418
A assistência médica usual era e continua sendo feita pelo município de Cabrobó. Os casos
mais complicados são enviados para Petrolina ou para Juazeiro. O transporte para estas duas
cidades é feito através do estado de Pernambuco, por via asfaltada. O contato com a sede do
município de Curaçá é pequeno, tendo sido iniciado recentemente e é restrito aos dias de feira.
O município de Cabrobó foi o que mais se beneficiou com o reassentamento, pois é nele que as
transações comerciais de compra e venda são habitualmente realizadas.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
estradas tomando dinheiro, o que encontrassem, assustando. Viagem só em
comboio, guardado pela polícia419.
Anos de nada, de vazio, sem ocupação. Quase dez. Só depois desse
tempão a Chesf entregou os lotes. Mas a obra, no completo, ainda sem estar
pronta. Muitos lotes não prestaram420. Terra rasa, sem condição. Cadê
financiamento? E, depois desse tempo, o povo ainda quer trabalhar? Surpresa!
Os assentados, em sua maioria, entraram no batente421. Problemas tiveram. O
mundo já é outro. O jeito de plantar e o que plantar, também. Não é mais cada
qual no seu cada qual. Trabalho coordenado, coisa de decisão em reunião. A
água vem de uma vez422. É preciso se ajeitar no horário da molhação, fazer
calendário de plantação. Tem queixume. Coco, goiaba, manga, banana. Mais
banana que é o carro chefe423. A caatinga verdejou, no seguir do ano inteiro. A
terra aguenta? O medo da salinização. Nas chuvas prejuízos, feitos no correr
das águas, pelas lagoas nascidas. Cadê drenagem? Uns querem plantar mais. A
terra não cabe, a bomba, as subestações não suportam. Problema. Como é que
faz?
O povo ficando diferente. O igual se acabando. Gente plantando, gente
sem plantar. Gente ganhando, gente perdendo. Gente vindo de fora trabalhar,
419
Houve uma série de assaltos aos reassentados quando estes se dirigiam ao município de
Cabrobó. Como resolução do problema foi e é necessário que a polícia baiana os escolte até o
porto de Pedra Branca e que a polícia pernambucana os escolte até a cidade de Cabrobó.
420
Segundo dirigente do Pólo Sindical, no projeto Pedra Branca, mais ou menos 100 lotes
foram descartados por questão de impropriedade do solo e a Chesf quer substituir seu
compromisso inicial por indenização.
421
Pelo que ouvi de alguns moradores das Agrovilas, um dos aspectos básicos que motivam a
juventude para o trabalho é o consumo. Moto é o objeto mais ambicionado. Também há festas
frequentes, com bandas de renome regional.
422
A irrigação é feita por aspersão. A água é bombeada de uma distância de 18 km e a
distribuição é feita através de estações de bombeamento.
423
No início os assentados andaram plantando culturas temporárias mas tiveram muitos
prejuízos por causa da oscilação de preços. Depois passaram para a fruticultura, onde alguns se
consideram bem sucedidos. Segundo dirigente da Cooperativa, hoje (início de 1999) há mais
de 1.000 ha plantados com fruteiras. O mesmo dirigente informou que toda atividade agrícola,
até agora realizada, dependeu apenas de recursos próprios dos proprietários dos lotes, isso
devido a embaraços jurídicos provocados pela Chesf. Só recentemente é que está sendo
iniciada a viabilização de empréstimos, junto ao BNB, agência de Salgueiro, PE.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
fazendo meação, se ocupando em serviço de diária424. Interesses diferentes se
plantando no povo. Uns esperando pelo salário do governo, outros querendo
enricar425. Não é mais igual. “Lugar esquisito. Tem muita gente de fora, mistura
muito: meeiros trabalhadores. Tranquilo mesmo era o nosso lugar. A gente não
vai voltar mais. Não adianta mais. Lá virou mar, né. A gente vai voltar, mas pra
onde? Lá virou água, só é água. Ficou tudo inundado426”. Desando do mundo.
Os mais velhos continuam nesse. Para onde? Nada presta, nada presta. Os mais
jovens nem ligam, mas querem ir, ir. Melancolia.
Os meninos cresceram. Viraram jovens, adultos. Houve casamentos.
Gente nasceu427. Problema. As vilinhas não aguentam mais casas. O povo
aumentando. A estrutura é pequena: energia, saneamento. Uma dificuldade
fazer o ajeitamento do povo novo428. E aí? Se não for nos lotes dos pais,
trabalhar onde429?
Cuidado para se livrar de gente de fora. Não deixar estranho construir
casa. O lugar só pros daqui. Consentimento de abaixo-assinado, assinado pela
maioria. É assim.
A Chesf está saindo, terminando o compromisso com o povo. A
V.M.T.430 vai acabar. Está correndo no seu descomprometimento. Entregando a
424
Os meeiros e os diaristas não são bem vistos pela população local. Moram em casas ou
barracões construídos nos lotes.
425
As diferenças sociais começam a aparecer. O medo dos líderes sindicais é que a Chesf
entregue títulos de propriedade e os beneficiários possam vender suas terras. Eles temem tanto
a concentração da terra nas mãos de alguns, como a infiltração de estranhos na condição de
proprietários. Isso, dizem, quebraria o equilíbrio da vida dos moradores.
426
Frase de Cida (Maria Aparecida, dona de um restaurante da Agrovila 5), originária do
povoado de Penedo, no município de Rodelas.
427
A estimativa dos líderes sindicais é que, hoje, mais de 4.000 pessoas vivam no Projeto.
428
Segundo o informante Assueres, a energia é insuficiente para alimentar as residências atuais,
assim como a estrutura de saneamento é muito pequena, incapaz de atender a novas
residências.
429
Esta é uma dificuldade séria. Os jovens constituindo família e a estrutura do projeto não
suporta expansão. O sistema de captação de água só é suficiente para alimentar os 2.700
hectares previstos pela Chesf. Ampliá-lo seria muito caro, fora do alcance financeiro dos
reassentados.
430
Verba de Manutenção Provisória. Pelo que falam os membros do Pólo Sindical, essa verba
será eliminada tão logo a Chesf conclua as tarefas delineadas no acordo, o que parece irá
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
responsabilidade dos serviços às prefeituras, passando responsabilidades para
os reassentados, resolvendo pendências de qualquer jeito431. O governo criou o
GERPI432, terminar logo, logo a responsabilidade. Privatizar Itaparica. É
preciso entregar o Projeto, cumprir acordo. Entregar os títulos da terra,
construir o que falta433, fazer estrada, passar o controle da área irrigada para a
CODEVASF434. Pronto! O povo que se vire435. Pagar água, energia, garantir
operação e manutenção das bombas, da adutora. Despesa alta. Vai dar certo?
Ampliar a infra-estrutura dá um jeito mais ajeitado para o lugar. As
prefeituras podem bancar?
Preocupação: arranjar meio de vida para os jovens. Sonhos com
indústria, comércio de cidade, hospital, polícia, serviços, resolver tudo no lugar
mesmo, movimentação. Medo: vai chegar gente de fora, gente do lugar vai
crescer, gente do lugar vai minguar. Como a vida vai ser?436
acontecer em breve.
431
Para se ver livre de seus compromissos com os reassentados, a Chesf está querendo substituir
a entrega de lotes por terra, para aqueles trabalhadores que não receberam lotes ou para aqueles
cujos lotes foram descartados. O Pólo Sindical reage.
432
Grupo Executivo para a Conclusão do Projeto de Reassentamento de Populações da Usina
Hidrelétrica de Itaparica, em 1997.O bjetivo: entregar logo o projeto; criar as condições para
privatização da hidrelétrica.
433
Entre os itens que faltam, encontra-se a construção do centro comercial com mercado, área
para feira, casa de hospedagem, centro de saúde, pontos comerciais. Este centro comercial já
conta com um prédio escolar e um posto policial.
434
Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco.
435
Recentemente foi criada uma cooperativa que tem por intuito a organização da produção e
da comercialização.
436
Situação da população estudantil em 1999, segundo a Secretaria Municipal de Educação:
Educação Infantil com 27 alunos matriculados; Ensino Fundamental com 1.360 matrículas;
Magistério com 233 matrículas. Total de matrículas: 1.620.
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OUTROS ESCRITOS
Caminhos de Curaçá
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AS ERAS
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
O mundo mar, o mundo pântano. Duzentos milhões de anos... sessenta
milhões de anos: mar. Depois pântano. Mastodontes, tatus, preguiças gigantes,
ursos, jacarés... os bichos esturrando no mundo desses chãos. Bichos grandes,
grandões. Água farta, muito verde o tempo todo. Nuvens de bichos pequenos,
cardumes de muitos, de muitos peixes. Outras árvores, outros matos, tudo
outro. Catástrofe na terra: os bichos gigantes morrem. Bichos menores
sobreviveram. Menores grandes. A natureza se refaz, anda no tempo grande
sem hora. Gente índio437 aparecendo, caçando, matando os animais, os animais
se matando. Os bichos grandes rareando. Onze mil anos atrás: o tempo muda, o
mar se movimenta438. Animais morrem, plantas desaparecem, plantas
aparecem. Outro mundo.
A caatinga nascendo, ainda sem ser caatinga. As lagoas secando,
escasseando. O rio. Os bichos mais perto dele. No alto, os brejos pingados da
sobra do tempo findo. Serras verdes, muitos animais pequenos. Água pouca.
Índios andando, de um lado para outro, andando, sem rumo de parada,
brigando com os outros, brigando com os animais. Abrigando-se na furnas, nas
locas de pedra, deixando rastro de letras nos paredões das serras, dos serrotes,
nas pedras439. O tempo mudando, mudando, a caatinga aparecendo, aparecendo.
Mar de seca, ilhas de verde. Disputa entre homens e bichos pelos brejos, pelos
caldeirões, pelos olhos d`água. Assim vivendo. O rio, o caminho. Fartura no
rio.
437
Em verdade tratava-se de uma gente que antecedeu os índios. Segundo uma hipótese, a
presença do homem no Nordeste data de pelo menos 49.000 anos; segundo outra, a presença
humana só se verificou a partir de 12.500 anos atrás - Gabriela Martin - In: Pré-História do
Nordeste do Brasil.
438
Há cerca de 11.000 anos “ocorreu uma mudança radical no clima da América do Sul e uma
elevação de 80 metros no nível do mar, provocando um desequilíbrio ecológico enorme”- In:
Super Interessante, nº 8, p. 22.
439
Há várias inscrições rupestres nas serras e serrotes do município de Curaçá. Elas podem ser
encontradas na serra da Natividade, nas imediações da serra da Canabravinha, no serrote do
Velho Chico (onde há a maior variedade), no serrote das Letras (em Poço de Fora e também no
poço Grande) e, segundo várias informações, na serra do Icó.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Os índios zanzando, procurando apoio do bom do mato. Indo, vindo,
parando, caminhando. Morrer, morriam. Deixar os urubus, outros animais
comerem a carne do morto. Esperar a limpeza dos ossos. Preparar o funeral.
Construir aribés. Ossos limpos, cerimônia de funeral: botar os ossos no aribé,
enterrá-los perto da morada, dentro da morada. Pronto. Viver outras jornadas.
Por que assim com os mortos? Quem sabe! O que queriam dizer com o que
escreviam?440
O céu azul, cinzento, estrelado, enluarado, ensolarado, coberta do mundo.
O mundo grande sem fim. As águas rolando no descambo da terra, se juntando,
formando rio. O rio molhando o chão de seu caminho. Em suas margens o
mato. Mato entrelaçado, abrigo dos bichos. Carnaubeiras, juaís, muquéns,
ingazeiras, jatobás, calumbis, jenipapeiros... capim-cabeludo, paipedo,
marcela... zozós, capim-d`água... defendendo a terra da beira do rio. Os bichos
no mato, os bichos do rio: cobras, jacarés, capivaras, passarinhos, preás,
caititus, cágados, jabutis, camaleões, teiús, gatos, guarás, raposas... Peixes e
peixes, nadando, batendo na água: mandins, mandins-açu, curimatás, dourados,
piaus, corvinas, surubins, mantrinchãs, acaris, piranhas, pacus, traíras,
caborges, pacomons, sarapós, cananans, pirás, piabas... As palhas das
carnaubeiras, no choque com o vento, tocando a música do rio:
tratratratratratratra.... e as águas acompanhando, roncando nas pedras, sem
parar.
No alto a caatinga fechada, sem caminho, espinhenta, baixa com árvores
altas aqui e acolá. Xiquexiques, frades, mandacarus, quipás, apontando
espinhos. Moitas de croatás, de caroás, macambiras, cipós se enroscando e o
chão queimando de sol. As serras lá longe, se mostrando no azulado das
distâncias. Muitos animais, do chão, do ar. Um silêncio sem fim no barulho do
mato. Os índios vivendo aí, no seu vagar, guerreando entre si. Disputando os
brejos, os caldeirões. A sua paz.
Um outro tipo de gente: português. Português querendo ouro,
procurando mato adentro, entrando, se arranhando no mato fechado,
440
Pelas hipóteses dos estudiosos do assunto, as inscrições rupestres encontradas datam de
idades que vão de 3.500 a 9.000 anos atrás.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
espinhento, esgarranchento. Caminho fácil: os riachos. Ouro nas serras, nos
serrotes. Caminhada, caminhada. Sede, incerteza, ataque dos índios, o perigo
dos bichos, doenças de insetos, fome, desorientação. No aperreio dos
mufumbos do mato, fogo nele. E os estalados, os bichos correndo, os
passarinhos perdendo seus ninhos, os índios assustados, caatinga queimando441.
Caminhada leve no rumo do limpo da queimada. E se iam, se vinham. Deram
que deram para pegar índio. Guerra danada. Fazê-los escravos. Levá-los para
Salvador, para fazer comércio. Índio morrendo na guerra, índio adoecendo.
Desgraça.
Os portugueses trazendo gado, plantando currais, se adonando do mundo,
ficando com as terras boas, com os olhos d`água, com os brejos, com os
caldeirões. Os índios, as onças, caçando o gado. Os homens dos portugueses
reagindo matando onça, guerreando contra índio. Onça se acabando, índio
morrendo, fugindo, indo para longe, se escondendo nas serras, na beira do rio.
Vozes diferentes, berros diferentes habitando no mato. Os rebanhos crescendo,
mais currais, mais currais, os índios indo para mais longe, correndo. Os padres
mudando o jeito dos índios, domesticando-os, amansando-os pros portugueses.
441
...“Ainda em meados deste século, no atestar de velhos habitantes das povoações ribeirinhas
do S. Francisco, os exploradores que em 1830 avançaram, a partir da margem esquerda daquele
rio, carregando em vasilhas de couro indispensáveis provisões de água, tinham, na frente,
alumiando-lhes a rota, abrindo-lhes a estrada e devastando a terra, o mesmo batedor sinistro, o
incêndio, o incêndio. Durante meses seguidos viu-se no poente, entrando nas noites dentro, o
reflexo rubro das queimadas.
Imaginem-se
decorrer de séculos...
os resultados de semelhante processo aplicado, sem variantes, no
Previu-os o próprio governo colonial. Desde 1713 sucessivos decretos visaram oporlhes paradeiros. E ao terminar a seca lendária de 1791-1792, a grande seca, como dizem ainda
os velhos sertanejos, que sacrificou todo o norte, da Bahia ao Ceará, o governo da metrópole
figura-se tê-la atribuído aos inconvenientes apontados, estabelecendo desde logo, como
corretivo único, severa proibição ao corte das florestas.
Esta preocupação dominou-o por muito tempo. Mostram-no-lo as cartas régias de 17
de março de 1796, nomeando um juiz conservador das matas; e a 11 de junho de 1799,
decretando que ‘se coiba a indiscreta e desordenada ambição dos habitantes (da Bahia e
Pernambuco) que tem assolado a ferro e fogo preciosas matas... que tanto abundavam e já hoje
ficam a distâncias consideráveis, etc” – Euclides da Cunha, In: Os Sertões, p. 51, Círculo do
Livro.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Os vaqueiros caçando as índias, amarrando-as, amansando-as para casamento.
Índio se deixando, esquecendo o jeito de índio, nos mandos dos portugueses,
virando vaqueiro. O povo à toa no mato, se cuidando do jeito que dava:
caçando, tirando mel, fazendo alguma plantação, cuidando dos bichos dos
outros, se multiplicando.
Os homens caçando, caçando, perseguindo os bichos do mato e os bichos
minguando, se embrabecendo, se escondendo. Perseguição. Comércio de
penas442, de peles dos bichos443. Os passarinhos perseguidos para comércio444.
O machado comendo os paus, os homens tirando mel, matando abelhas 445,
arrancando o salitre das grutas, tirando casca de angico, arrancando caroá; as
casas-de-farinha, os engenhos, as olarias, as caieiras comendo lenha. As cercas
devorando as árvores, as serras ficando peladas446. Os caminhões carregando
madeira, indo longe, e os machados batendo no mato. Jumento, cabras,
442
O comércio de penas e peles por longa data foi uma fonte de renda para a população
João Matos, em 1926, arrolou em seu livro os seguintes animais pertencentes à fauna no
município: onça pintada, tigre, onça de lombo preto, sussuarana, gato-do-mato, raposa,
saguins, lontra, quatis, saruê, guaxinin, cangabá, queixada, cangambá, capivara, caititu, veado,
cotia, mocó, preá, tamanduá, tatu, tatu-bola, peba, cágado, jaboti, jacaré, camaleão, teiú, ema,
seriema, codorniz, anun, alma-de-gato, mãe-da-lua, garça, frango d`água, gaivota, saracura,
craúna, socó, jaburú, jacurutu, massarico, mergulhão, colheira, pato, marreca, lavadeira,
maracanã, papagaio, picapau, bem-te-vi, carcará, urubu, gavião, cauan, coruja, corujão,
caboré, sabiá, sofrê, cardeal, canário, pega, xuréo, coleira, cheque, azulão, caboclinho, papacapim, joão-de-barro, joão-de-couro, cancão, jesus-meu-deus, vinvim, tentém, colibri,
carriças, etc.
444
Os canários talvez tenham sido os mais atingidos. Note-se que no final da década de 1960
eles andavam aos bandos, voando pelos riachos e em quase todas as grandes árvores se
arranchava um casal. A sua valorização no mercado e a facilidade com que eram pegos os fez
praticamente extintos, não só no município como em toda a região.
445
As abelhas em extinção: mandassaia, arapuá, manduri. A invasão das abelhas chamadas de
africanas e italianas em muito contribuiu para o sumiço das abelhas mandassaias. Por outro
lado, o processo que os moradores da região utilizavam para retirar o mel era, como ainda o é,
extremamente predatório, não havendo preocupação em reconstituir o abrigo das abelhas.
Casos há em que se utiliza o expediente de tocar fogo nas abelhas como forma de afugentá-las.
446
Após os anos 60, quando começou a haver financiamento para a construção de cercas e
também com a irrigação, especialmente com o cultivo da uva, houve um verdadeiro ataque às
árvores de porte como angico, aroeira, baraúna, carnaubeiras, imbuzeiros, juazeiros, etc. A
irrigação efetuou um duplo ataque: derrubadas e consumo de madeira para cerca e para o
estaqueamento dos parreirais, sendo que este requer madeira de porte em grande quantidade
por hectare.
443
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
impedindo o mato de crescer, roendo os paus, matando o mato. O gado
pastando no mesmo lugar, pisando, pisando, comendo. Os homens cortando
xiquexique, mandacaru, queimando as moitas de macambira para alimentação
dos bichos. As chuvas rareando, os brejos morrendo, os olhos d`água
minguando, os veios d`água secando447. O mato rareado, cortado de estradas,
de caminhos. Os passarinhos, as caças sem proteção de esconderijo. A
irrigação devastando o mato, envenenando a terra. A terra, nua, se
empobrecendo, se esburacando, as chuvas carregando tudo pro rio, o rio
entupindo, limpo nas beiras. Os bichos se acabando, o mato do mato ficando
pouco. Caçadores vindo de perto, de longe, matando tudo, tudo, com armas
potentes, com armadilhas, com cachorros treinados, sem respeito de tempo
nem de lugar.
Jacarés extintos, cadê as lontras? Mergulhões, galinhas d`água, garças,
socós, capivaras, guarás, sem lugar para se asilar, sumindo. Sobradinho mexeu
nas águas448. Capim d`água, zozó, capim cabeludo sumiram. Os barrancos
quebrando, o rio se enlarguecendo, bancos de areia apontando.
O mato gemendo, olhando.
Os caminhos das águas cavados pela correnteza, mostrando as pedras do
fundo do chão. Duas serras se vendo, apreciando o mundo de suas voltas. A
caatinga seca embaixo delas. No chão, ossos. Ossos de animais gigantes,
rolados pelo pisar dos bichos, dos homens. Ossos arrancados da terra pelo
movimento das águas. O silêncio do mato e uma voz que se levanta: “Quantos
anos faz que o outro mundo se acabou?”449.
447
Exemplo disso é a fazenda Laminha, que possui esse nome por ter sido brejo. Segundo todas
as pessoas entrevistadas, as chuvas começaram a rarear a partir da década de 1930. Para que se
tenha idéia, em um passado de 25 anos atrás, os mata-pastos cresciam bastante, chegando a
encobrir um homem alto. Esse mesmo mato, nos tempos atuais, quando muito atinge os 50
centímetros.
448
Antes da barragem de Sobradinho, o rio começava a encher a partir do mês de novembro e
permanecia com as águas altas até março, mais ou menos, período em que o povo utilizava o
molhado das margens para plantar.
449
Frase pronunciada pelo Sr. João Fininho, mais ou menos 75 anos, no dia 21.11.1998,
quando estávamos a observar ossadas de animais pré-históricos, nas imediações da fazenda
Cabaceira. Uma semana depois ele se suicidou. Queixava-se de solidão.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Ruínas de cemitério sumindo defronte a um terreiro. Pedaços de cruz
comida pelo tempo, arrodiada por pedras encobertas por uma moita de
xiquexique Uma mulher acocorada, com os olhos cansados, falando com
lerdeza: "A gente que está enterrada aí é tudo do outro século. Sei quem são,
não"450.
A ararinha-azul sozinha, testemunhando a vida de outros tempos,
assistindo a devastação. Canto sem resposta, vôo no perigo das espingardas. Na
solidão do ser só, se acasalou com arara de outra espécie. Não reproduz, só
grita, um grito de despedida. Voa pelos céus enquanto há vida.
Um homem pensativo, olhando para frente, olhando para trás sentencia:
"A vida da gente aqui na terra é só a emoção de uma notícia"451.
450
451
Frase de Dona Dionísia Gomes dos Santos, *1912, moradora da Fazenda Brejo
Frase de Hugo França, mais ou menos 60 anos.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
ÍNDIOS*
*
Índios que se denominam TUMBALALÁS. Estão em processo de renascimento e habitam
nos limites entre os municípios de Curaçá e Abaré. Praticam seus rituais em Missão Velha e
em São Miguel, ambas as localidades bem próximas entre si, nas imediações de Pambu
(Abaré), mas já dentro do município de Curaçá. Cada uma dessas localidades possui um pajé
que se encarrega do trabalho interno da aldeia, das crenças e comanda os rituais. O cacique é
eleito pelos membros da aldeia e cuida das relações externas e problemas de domínio
administrativo.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
“E tu quebra teu coco
É decomer de caboclo
Ôi! Caboclo gentio não pisa no chão
Penera no ar que nem gavião.”
O deus do índio, Papai do Ar. Quando eles ouviam um trovão, quando
viam um relâmpago, se escondiam debaixo das folhas, debaixo dos paus, com
temor. Quando viam aquela luz grande ficavam com medo. Aqueles mais
entendidos perguntavam: “Como é que nós vamos escapar?” Alguém, com
confiança, respondia: “Os poderes de Papai do Ar são grandes”. Os mais
inocentes gritavam: “...Mas o mato ainda é maior”. É. Eram todos inocentes,
selvagens. Os índios viviam sem ressurreição. Viviam por conta de Deus. Não
faltava o tatu, o peba, o tamanduá... bichos do mato pra comer. Não faltava a
abelha. Deus botava tudo no mundo pra eles. A roupa era de casca de pau, só
se vestiam da cintura para baixo... faziam aquelas roupas de croá452, de embira,
penachos para cobrir a cabeça, se curavam com remédio de pau. Se um ficasse
doente, outro que tivesse experiência assentava o ouvido no chão e ficava
sabendo onde estava o pau que servia de remédio para aquela doença. Viviam
nesse modo aí. Tinham a união deles lá no mato. Eram felizes. Mais felizes do
que hoje, porque hoje a tibuta453 é grande.
A cruz é do regime dos índios. O índio já tinha seu cruzeirinho no mato
para trabalhar. Os padres, os portugueses chegaram depois e assentaram um
cruzeiro. Era Dom Manoel. Ele pensava que estivesse em uma ilha e deu o
nome de Ilha da Velha Cruz. Os índios começaram a matar, a comer carne de
português. Os portugueses voltaram para Portugal. Quando retornaram,
trouxeram fumo, fitas verdes, vermelhas, de toda qualidade, aqueles laços,
aquelas belezas e colocaram esses acessórios no cruzeiro. Botavam essas coisas
452
453
Caroá.
Tibuta (labuta).
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
para os índios se abestalharem e irem pegar. Os índios não podiam pegar.
Tinham vontade, mas refugavam. Os portugueses resolveram trazer cachaça.
Colocaram-na no cruzeiro. No que os índios foram pegar as coisas, beber a
cachaça, abraçaram o cruzeiro e se engancharam. Cada um que se enganchava
ia sendo batizado, ia sendo amansado. Os padres enganaram os índios. Eles
queriam amansar os índios para eles ficarem amansados na cruz, para ficarem
com a religião. A religião do índio era a inocência. Começaram a amansar os
índios pelo cruzeiro. Pegaram, batizaram, amansaram. Isso foi bom para os
índios. Eles ganharam a ressurreição. Antes, faziam tudo no mundo. Comiam
cobra, calango, gente... O jesuíta domesticou, deu a doutrina. Houve muita
traição contra eles. Os padres maltratavam os índios porque achavam que eles
estavam em outro sentido. Depois se recompreenderam, hoje estão ajudando o
índio.
Santo Antônio do Pambu é do índio. Ele se apareceu pra nós. É nosso
padroeiro. Ele era muito rico. Tinha ouro, tinha terras que o povo fazia
doações. Os padres se aproveitaram, venderam as coisas do santo, do índio e
ficou assim.
A gente sabe disso porque ouviu o pai contar. O pai ouviu do avô, o avô
do bisavô e assim veio trazendo, trazendo. Os nossos bisavós eram brabos do
mato. Caboclos véios da jurema. Viviam encobrindo as partes de baixo do
corpo com embira, com croá. Foram pegos a dente de cachorro. No mato ainda
há lugar onde os índios dançavam o toré. Os terreiros dos antigos. Nesses
lugares o mato não nasce, 'tá tudo limpinho, parecendo coisa de mistério. Coisa
de caboclo tem força.
Quando os índios eram só sangue puro, brabio, a cor deles era morena
com os cabelos bons. Depois breou com português, com africano, mudou a
qualidade. Agora tem índio de toda qualidade. O sangue se esparramou nas
misturas. Tem até índio de olho azul. Quem vê diz que não é, mas é. Tem
sangue.
O povo não sabia que Pambu era aldeia. Um pajé da nação truká, da ilha
da Assunção, recebeu um encanto, um espírito de antigo que já morreu. Eles se
apresentam no corpo dos vivos que tenham sangue de índio para fazer
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
revelações. O encanto declarou que Pambu era aldeia. Exigiu que o povo de
Pambu começasse a dançar o toré. Só tinha toré na ilha da Assunção. Ficava
penoso ir lá duas vezes na semana, dançar a noite toda e no outro dia ir
trabalhar na roça. Os velhos resolveram assentar um cruzeiro em São Miguel,
depois em Missão Velha. O cruzeirinho de São Miguel vem dos velhos454.
Muita gente tinha medo de dançar, de ir ver o toré. Pensava que era coisa
que botasse espírito... coisa ruim. Depois é que viu que esse negócio de coisa
ruim é de sessão, de xangô. Nesse lugares o sujeito vai tirar um espírito e entra
outro. No toré, não. É uma dança. Só encostam os espíritos da descendência455.
Quem possui sangue índio não tem jeito, tem que dançar toré. Se não tiver
força pra dançar, pode ficar sentado, assistindo. Senão pode até morrer, abrir
correndo na caatinga, sem rumo. Os espíritos da descendência chamam.
Adoecem o sujeito e ele só se cura se for ao toré. Todo mundo precisa que
trabalhar pela descendência dos antigos. Sem a descendência o índio não é
nada. Não precisa chamar ninguém. Des'tá que quem tiver sangue índio vem,
puxa pra aldeia. Está brolhando, é rama nova, o que surge do que secou. Isso é
que nem pé de pau. Se cortar, quando menos se espera a rama brolha. As
aldeias são assim.
Os antigos chegam nos trabalhos, no toré, se enramam. Cantam, ensinam
as coisa pra gente. Quando um índio é enramado, é tomado pelo encanto.
Recebe o manifesto para ensinar remédio, para rezar, para orientar alguma
coisa. Tem gente que só fica radiado456, adormecido sem sair de si, com aquela
força. Não há trabalho para prejudicar. O espírito do gentio é brabo. Gentio é
das matas. Usa arco e flecha. É desconfiado, brabio. A gente tem que trabalhar
direito. Ajeitar os encantos, senão eles vão embora. O espírito que foi
encantado nas águas é mais manso. Se o sujeito não trabalhar direitinho para
eles, o maltrato vem.
454
Missão Velha e São Miguel não ficam a mais de 500 metros de Pambu. Aí foi o local dos
primeiros aldeamentos indígenas e local da primeira residência do padre. O toré voltou a ser
dançado aí, há aproximadamente 50 anos.
455
No caso da utilização do termo, aqui descendência vai significar ascendência,
ancestralidade.
456
Adormecido mas consciente.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
A gente aprende as coisas nos trabalhos do toré. Às vezes quando a gente
está dormindo os velhos da descendência vem, falam as coisas, nos levam para
as aldeias velhas. Mostram os trabalhos, os campos, as danças, ensinam as
linhas, mostram os encantos, aquelas coisas bonitas, as detias457. Depois a gente
volta e vai trabalhar como eles ensinaram. Tudo direitinho. Quem faz anarquia
é porque não sabe.
A linguagem do índio nós não sabemos mais. A linguagem que dá para
entender, a gente entende. A que não dá para entender...
A casa, o terreiro. No terreiro um cruzeiro. Os índios chegando, pelas
estradas, caminhando, de bicicleta. “Boa noite pra todos! Bença padim, bença
tio”... Um banco na frente do cruzeiro, na outra ponta. Os índios se ajeitando,
colocando pujá nas cabeças, vestindo kataió, balançando os maracás, assobio
de apitos, chamando os encantos. O pajé caminhando pelo terreiro com o koaki
na boca, paramentado, assoprando fumaça nos presentes, retirando as
impurezas. A vasilha com o ajuká458 colocada na frente do banco. Os maracás
chiando nas mãos, o pajé se sentando no banco, os índios se ajeitando em fila
nas laterais deixando um vazio entre o banco e o cruzeiro, de frente uns para os
outros e todos se vendo. Os maracás marcando, os pés compassando e...
“Cadê meu maracá
Que eu quero trabalhar
Eu quero trabalhar
Na aldeia tumbalalá
Êina, êina, êina, ôa”.
...
457
Detia: costumes do índio.
Toré: ritual indígena, festejo pelas coisas boas, cerimônia em homenagem aos ancestrais.
Ajuká: bebida feita com a casca da raiz de jurema de caboclo (a jurema sem espinho) e
preparada pelo pajé ou pelos mais antigos que conhecem os segredos. Incenso: preparado com
fumo, alecrim de caboclo, alfazema e outras plantas do mato. Koaki: um tipo de cachimbo que
enchem com os preparos para gerar o incenso. Kataió: veste em formato de saiote feito de fibra
de caroá. Pujá: ornamento feito de caroá que colocam na cabeça, em formato de gorro.
Borduna: instrumento de guerra. Linha: as cantigas. Jurema de caboclo: árvore sagrada.
458
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
“A cachaça dos caboclos é a jurema
É a jurema
É a jurema
É a jurema
É a jurema meus caboclos
É a jurema
O meu penacho
É feito de pena de ema
E minha cama é enrolada de jurema
É a jurema”...
O cantorio das linhas, no indo e vindo do cruzeiro para o banco, do banco
para o cruzeiro, fazendo curvas. Os da frente segurando bordunas, homens,
mulheres, meninos, todo mundo cantando, todos descalços pisando no chão
com força, marcando o ritmo da dança. Os mais velhos, sem força, sentados,
dos lados assistindo, participando com os olhos, com os ouvidos, com os
sentidos. Beber ajuká. A força da natureza se mostrando, os encantados
arrodeiando, se aproximando, o zumbido do apito chamando. Uma linha, outra
linha... até o dia amanhecer459.
459
Os índios tumbalalás estão lutando pelo reconhecimento da FUNAI. Reivindicam a
devolução e regularização das terras, assistência médica, condições para irrigarem as terras.
Este trabalho foi composto a partir das informações de Cícero Marinheiro, dos pajés Antônio
Lourenço e Luiz Vieira Fatum, dos Srs. Aprígio Fatum, Luiz Alberto Maciel (este da nação
truká da ilha de Assunção que fica em frente a Missão Velha, a fazenda São Migual e Pambu),
Manoel dos Santos, João Cardoso de Almeida, José Plínio e da Sra. Maria Alves de Carvalho
( Maria de Pedim). Missão Velha, São Miguel e Pambu situam-se às margens do rio S.
Francisco, 120 km abaixo de Curaçá e foi aí o núcleo inicial de toda a colonização regional.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
VAQUEIROS
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
O VERDE
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Os cachorros latindo no mato. Gritos nos espaços do tempo: “Ôoo...
êee... xi cabra!” Na soleira da porteira, por algum lugar do terreiro, da malhada,
os meninos, as mulheres chamando o gado. As vacas respondendo com os
berros e os bezerros fazendo coro. Os chocalhos das cabras, das vacas, dos
outros animais, se misturando no ar com os berros, com os gritos, com o canto
dos pássaros. Barulho de tudo no mundo. As galinhas procurando lugar para se
ajeitarem no galinheiro. A lenha para a fogueira da noite sendo providenciada,
arrumada no terreiro. Os animais chegando e a gente de casa enchiqueirando as
cabras, botando os bezerros para mamar, depois apartando-os. A noite vinha
trazendo seu truvo, soltando as almas, dando abrigo às cobras, abrindo caminho
para o caminhado livre dos bichos do mato. Os vaqueiros voltando, carregando
o cheiro do mato, do suor de seus corpos, dos cavalos, descendo das montarias,
arrancando os gibões, se sentando em qualquer canto, esticando os pés para os
meninos puxarem as perneiras. O dasarreio dos animais, o levá-los para o
peador, trabalho de menino. Os cachorros se deitando, soltando fadiga pela
boca. O mundo invadido pela noite. A janta: imbuzada, feijão, coalhada, carne
assada, carne cozida, “o nome do Pai, a Ave Maria”. A fogueira, as labaredas
tremendo. O povo preparando agasalho, as histórias saindo, os meninos
curiando imaginação, os cabritos, os borregos enjeitados procurando encosto
em gente. O canto dos sapos, o barulho dos grilos. O sono, barulho espaçado de
chocalhos, de berros, silêncio de falas. A barra do dia clareando, os galos
cantando, os passarinhos acordando, o gado, a criação se agitando. Vozes de
gente, o dia. Tirar leite, comer zupi460, soltar as cabras, as vacas, levar os
bezerros no comedor, pegar os animais no peador, dar de comer aos enjeitados.
Tomar café: leite, pirão-de-leite, carne assada com pirão de leite, queijo,
requeijão, coalhada, coalhada escorrida, rapadura, café preto, café com farinha.
Trabalho de sofrimento: labuta na roça, pastorar ovelha. Trabalho de diversão,
de alegria: dar campo nos bichos. Coisa de gente sem futuro: caçar, tirar mel,
que homem sério só faz isso dia de domingo. As mulheres carregando água,
lavando roupa, preparando comida, fazendo requeijão, cuidando dos porcos,
dos enjeitados, das galinhas, ajudando na roça. Nas roças, melancia, melão,
abóbora, feijão, milho.
460
Farinha com leite retirado diretamente do peito da vaca. Habitualmente comia-se o zupi
utilizando-se casca de caatingueira para servir como colher.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
As emas roncando, os tatus, os pebas fuçando o chão, cavando
buracos, as seriemas, os canários, os pássaros cantando, os patos procurando as
lagoas, as abelhas com muito mel, os mocós pulando nas pedras, as codornas
dando susto no povo, nos animais, as raposas se escondendo, os cangambás
soltando seu fedor. Os pés de imbuzeiros carregados, os meninos tirando
favela.
Tempo de parição das cabras, agonia de tanto cabrito berrando,
futucando nas pernas da gente, querendo mamar. As moscas botando varejeiras
e o cuidado no umbigo dos bichos. Os carcarás espiando os bichinhos, se
preparando para hora de descuido arrancar a língua, comer os olhos, beliscar na
bunda deles. Cuidado! E os ajuntamentos? Os vaqueiros batendo o campo,
chegando no chiqueiro com os magotes de ovelhas. As ovelhas berrando, se
agoniando no chiqueiro, os carneiros brigando, os borregos procurando as
mães, as ovelhas procurando os filhos. A poeira subindo no ar, os bichos e os
homens se sufocando. Separar as ovelhas no conforme dos sinais nas orelhas,
formar os magotes, entregar ao vaqueiro do lugar dos chiqueiros delas. Os
berros tristes, méee, cobrindo o mundo, se indo no vento461.
461
Nos anos 1930 e 1931, abateu-se uma grande seca que reduziu bastante o rebanho. De
1932 a 1950, quase não houve seca. O rebanho mais que quadruplicou. Os ajuntamentos então
se intensificaram uma vez que as ovelhas caminhavam em pasto livre. Nesses ajuntamentos,
reuniam-se até 50 vaqueiros. O dono da fazenda, onde o ajuntamento era realizado, tinha por
obrigação oferecer o almoço e a janta para os vaqueiros Em compensação, as criações de
orelha inteira que fossem encontradas no meio do rebanho ficavam para ele. Outro aspecto é
que quase não havia doenças no rebanho e quando havia morrinha (mortandade dos animais
por doença) esta era localizada. A partir dos anos 50, quando começou a haver o trânsito de
animais provenientes de outras regiões, as doenças alastraram-se, fundamentalmente nos anos
60, provocando um baque no volume de animais. Febre aftosa e verme foram as doenças que
mais atingiram os rebanhos, principalmente pela falta de conhecimento para combatê-las.
Nesses anos também as chuvas começaram a ser mais raras, sucedendo-se os períodos de seca,
os gatos do mato passaram a atacar mais os borregos e cabritos. Some-se a isso o fato do povo
passar a deslocar-se para a rua em busca de escola e da realização de outras aspirações,
aumentando o nível de consumo e a redução da força de trabalho no mato. Também os laços
sociais que regulavam este tipo de atividade extensiva foram quebrados e o roubo de animais
apresentou-se como problema. Note-se que as ovelhas, pelo seu instinto de andança, acabaram
por ser um dos principais fatores de integração dos caatingueiros na medida em que estes
tinham que se deslocar em busca delas.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
O FIM DO VERDE
O pasto murchando, as lagoas secando, as folhas das árvores amarelando,
caindo, a plantação virando bagaço. Vigiar as lagoas, ver se não tem bicho
atolado. Tempo de fazer partilha, de ferrar os bezerros, de assinar os borregos,
os cabritos. Os bichos berrando de dor.
Os campos no mato para juntar a criação, o gado. Os vaqueiros
aprumados, encourados, prontos para o enfrentamento contra os bois: guerra na
caatinga. Os cavalos ariscos, assoprando pelas ventas, os cachorros agoniados.
Faca, serrote, guiada, facão, corda, chocalho, peia, buzo462. Caminho do mato.
O gado na paz do pasto, gordo, longe de idéia de curral. Vaqueiro chegando,
avistando, conversando combinação, a teima para ver quem vai - os cavalos se
agitando. A definição. Espora, chicote no cavalo. O gado assombrado,
disparando. O cavalo atrás. O vaqueiro sabe o bicho que quer. Bota o cavalo
nele. A caatinga quebrando, os paus passando, roçando, açoitando o cavalo, o
vaqueiro. As moitas de xiquexique, o cavalo saltando os pés de imbuzeiro, de
imburana, o boi por baixo, o cavalo enfiado atrás, com o vaqueiro derriado,
fazendo parelha com o pescoço dele. Deus tome conta! Não sabe como o pau
está, por onde o boi vai, não pode pensar, não liga para nada, fica cego, não
mede perigo, só quer pegar o bicho. Os paus pegando nas costas, nos braços,
nas pernas. O cavalo se espetando nos espinhos. O vaqueiro se benzeu, Deus
acompanha. O cavalo chegando, o boi se embalando, o rabo, o rabo, o cavalo
não chega, o boi vira. Vira nos peitos do cavalo. O vaqueiro salta da sela, corre
para cima do boi, se abraça com ele, mete os peitos na cabeça do bicho, agarra
os chifres, empurra para baixo, deita o boi no muque. Os outros vaqueiros
chegam, passam o rabo por dentro das pernas dele, peiam-no. Limpar ligeiro o
mato debaixo de um pau. Amarrar a rês. Deixá-la amarrada, para perder o
enfezo. O arraso fica para trás, o aceiro de pau quebrado. O cavalo fungando,
cansado, surrado, com a barriga esporada, o boi enfezado, o vaqueiro
arranhado, suado. Vaqueiro vivo é abençoado de Deus. “Iquiô”, os gritos de
alegria, os reconhecimentos, os comentários. Assunto para muito tempo.
462
Guiada: instrumento semelhante a uma lança com um ferrão na ponta, que os vaqueiros
utilizam para futucar alguma rês amoitada ou para dela se defenderem; buzo: instrumento feito
com chifre de gado que os vaqueiros utilizam para buzinar, sinalizando a posição em que se
encontram no mato ou para darem aviso de alguma coisa.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Preparação para outra pegada. No outro dia vir apanhar o bicho. A rês
descansada, acostumada na corda. Botar careta, cambão, tocá-la na direção do
curral. Diploma de vaqueirice. Os meninos vão saber, vão se embalar nos
sonhos de virar homem logo. Pegar boi no mato. Coitados dos bezerros, nas
brincadeiras de aprendição.
Aprender a pegar boi tomando surra da caatinga. Até ficar prático, toma
muito açoite de pau! Não aprende. É disposição. Quem não tem medo de
morrer pode ser vaqueiro. Vaqueiro bom mesmo, pega o boi com a rama na
boca. Sem tempo do bicho virar, derrubando-o pelo rabo. É preciso disposição,
cavalo bom, prática de caatinga. Correr de dia, de noite, na hora que for de
precisão. Homem do mato sem rastro de mato no corpo? Isso é lá homem!
Vender os bois erados463, as vacas velhas. O rólo de porteira464, as
conversas de preço se acertando e os bichos no curral sem imaginação de saber
dos tratados de seus destinos. Os meninos no pé da porteira, sentindo sensação
de tristeza, se despedindo sem palavras, lembrando do tempo dos bichos
bezerros. Negociação fechada, os vaqueiros se posicionando e os animais
saindo, sendo levados465. Aboios e o berro saudoso de despedida do gado. As
boiadas de bois nos caminhos. Caminhos longos, cheios de dureza, tirados a pé
que animal de montaria dava despesa. Os tangedores dos lados, atrás das
boiadas, fazendo encaminhamento na alpercata, carregando a roupa, a rede
pendurada nas costas, apanhando chuva, apanhando sol, todo dia466. O gado se
vendo saindo do pasto, se apavorando, querendo se desencaminhar, em um sem
463
O ciclo de uma rês é o seguinte: primeiro ano, bezerro; segundo ano, garrote; terceiro ano
novilhote; quarto ano boi de ano. De seis anos em diante, boi erado. Alguns criadores
deixavam bois completarem até 12 anos. Já a nível da criação miúda, dizia-se que estava erada
ou de chifre virado, a partir de 4 anos.
464
Rólo de porteira: essa a designação que era utilizada no processo de negociação do gado.
465
Os bois eram conduzidos até Rio Branco, atual Arco Verde-PE. Esta cidade fica a
aproximadamente 500 km de Curaçá. Segundo os tropeiros, a distância era de 95 léguas (570
km). Ali existia uma feira de gado. De Curaçá a Rio Branco a viagem durava entre 18 e 22
dias, segundo o Sr. Sindolfo Cursino Rosa, *1919.
466
Segundo os informantes, no encaminhamento da boiada, de comum, trabalhavam cinco
pessoas. Um ia na guia, mostrando o caminho ao gado, dois iam fazendo costaneira
(caminhando ao lado do gado) e dois atrás, sendo que, dos que iam atrás, um era o encarregado
da boiada.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
entender de nada. Os cavalos, os tangedores arrodiando467. O vaqueiro da
fazenda, botado na frente, indo choroso, alumiando caminho, latumiando com a
voz engasgada em esforço de aboiar, pro gado, seu conhecido, se acalentar.
Nas lonjuras do pasto, no seu voltar, o vaqueiro se despedindo com o olho dos
bichos de sua guarda. Desandava no caminho da fazenda, escutando as pisadas
do cavalo na solidão do mato, e se ia ouvindo o barulho das almas dos berros
do gado. No longe do pasto, aboio, aboio pro gado ficar calmo, estradeiro.
Aqui... ali... uma rês, parando com mansidão, virando a cabeça para trás,
tristonha,
soltando
um
berro
comprido...
comprido...:
“monooooooooooooooo...”, que ia até lá dentro, no fundo. O tangedor
remoendo remorso, ouvindo, sem querer ver, sabendo o desejo do dito daquele
berro. Respondia:
“Ô, ô, ô, gado manso.
A vida de tangedor
É como vida de teiú
De dia pra tanger boi
De noite pra feijão cru
Ê, ê ê, minha boiada
Ô...”468.
E continuava no seu levar, empurrando o gado no caminho do desterro,
para fora das terras de sua pátria. O gado estranhando o chão, ficando alerta,
assustado, nas areias de Limão Brabo469.
Comer!? No andar da boiada, farinha com rapadura. Vinte e um dias de
viagens, na poeira do rastro do gado. De noite o descanso. Os tropeiros tiravam
a roupa do corpo, molhada das invernadas. Botavam-na para secar. Apanhavam
outra na mochila para passar a noite que, de dia, a outra já estava seca 470.
467
Os cavalos só eram utilizados até o gado sair do pasto.
Verso reproduzido pelo Sr. Bina (Bernardino Rodrigues dos Santos, *1922), que ganhou
parte de sua vida tangendo boi de Curaçá para Rio Branco.
469
Limão Brabo é uma localidade que era cortada pela estrada das boiadas. Os tangedores já
sabiam que, ao passar por esse local, a possibilidade da boiada estourar era grande.
470
Segundo Elias Nunes da Silva, *1938, duas vezes tangedor nesse trajeto, o comum era
levarem apenas duas mudas de roupa, que não eram lavadas durante todo o período de duração
do trabalho.
468
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Cozinhar feijão, fazer pirão, no cochilo do sono. Às vezes assar carne, “se
tinha”. Em Rio Branco, o gado entregue. Missão cumprida. Os bichos presos
no curral, na espera do trem para seguir viagem para Recife. A paga: cinco mil
réis por dia nesse serviço471. Só se ganhava na ida, que a volta era por conta do
tangedor.
Boiadas de criação miúda, para Vila Nova da Rainha472, para Juazeiro,
para Itabaiana e para Carira, em Sergipe473. Dificuldade de água, comer só nas
paradas. Rapadura, farinha. Quando dava, um taco de carne assada. “A gente
não comia, lambia474”. Assim...
A SECA
O mato seco, a falta d`água. Puxar água de cacimba, cortar, sapecar
xique-xique, mandacaru, queimar caroá, tirar rama de juazeiro, de quixabeira.
Os bichos emagrecendo, dando morrinha475, berrando fraco, crescendo a
barriga. O sol quente, o céu limpo, a terra rachando, as cigarras fazendo
zimmmmmm. Comida sem fartura. Feijão com toucinho, farinha, rapadura,
com sorte carne seca, resto do verde: requeijão, manteiga. A feira magra.
Cacimba secando, tirar terra de cacimba. O terreiro sem vida, as pessoas
desvanecidas, olhando para o tempo. No mato os cangaços dos bichos. Na
porteira da fonte a criação pedindo clemência por água. No mato andando de
um lugar para outro procurando comida. Seca, tristeza de vaqueiro.
471
Segundo o Sr. Donizete Nunes Franco, por volta de 1932, um trabalhador que trabalhasse
por dia, de terça-feira a sábado, ganhava 10 mil réis e esse dinheiro dava para fazer uma feira
com os seguintes itens: uma rapadura, um prato de farinha, um quilo de carne de bode, um
quilo de carne de boi, uma garrafa de querosene e uma caixa de fósforo. Pronto. Estava a feira
feita. Nessas condições, tanger boi era um bom negócio.
472
Atual Senhor do Bonfim.
473
Segundo o Sr. Eduardo Pereira Martins, que foi negociante de criação nesses lugares, para
Juazeiro faziam a viagem em quatro, cinco dias, e para Sergipe levavam 14, 15 dias, através do
Raso da Catarina. Para Paulo Afonso, gastavam até 8 dias. As boiadas eram compostas de, em
média, 100 cabeças de criação.
474
Expressão do Sr. Sindolfo Cursino Rosa.
475
Morrinha é a mortandade dos animais por qualquer doença.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
VAQUEIROS SEM PASTO
As chuvas rareando no correr dos anos. Seca, seca... Os mata-pastos sem
futuro de crescimento, os paus sendo acabados, os mandacarus no toco, os
bichos dando morrinha. As cercas aumentando, o gadinho comendo ração,
sendo carregado de caminhonete, de caminhão. Os jegues sobrando, os cavalos
sem serventia no trabalho. Dar carreira em quê? Vaqueiro? “Embrulho de
couro, que quase não tem mais. O mundo véio um buraco e o povo caindo
dentro”476. Tudo comprado, tudo para vender. Boi erado477, bode de chifre
virado? Os bichinhos não podem nem crescer. No nascer, o dono olhando,
montando planos para vendição. Os vaqueiros velhos no mato, sozinhos,
conversando com os borregos enjeitados, conversando para si mesmos,
espantando a solidão, ouvindo os toques dos chocalhos, o barulho do vento
topando nas galhas dos paus. Os filhos longe, nos ajeitamentos das coisas da
rua, dos lugares com muita gente. A gente se amoitando nos vilarejos do mato.
O mato dos novos virando rua, com o moderno das coisas necessárias de outros
regimentos de vida, nas delicadezas de conforto de rua no mato, se mirando nas
ruas de outros mundos. Quem ainda pode ter vaqueiro em uma fazenda? O
ganho de partilha não dá sustento à vida, à lei. Os velhos vivendo de
aposentadoria, os jovens se apoiando nisso. Agora é tudo no salário, com
conversa de Justiça do Trabalho. Chiqueirinhos pequenos, pequenos, com uns
bichinhos berrando, perdidos na malhada. O povo sem confiança, saltando nas
criações, no gado alheio. Todo mundo andando de carro, de moto, os caminhos
se tapando com o mato.
Os terreiros suspirando sem força, aqui e ali, desenterrando as histórias
idas. Cozinho, Narciso. Cozinho das atrapalhadas de muitas conversas, de
muitos feitos de gente que andava louquejando478. Narciso, vaqueiro bom de
pega. Pequenininho, um tabaqueiro. Não caía de animal, por brabo que fosse.
476
Frase do Sr. Sindolfo Rosa ao se referir à gente que veste couro nas festas, para se
apresentar, sem, entretanto, nunca ter dado um campo na caatinga.
477
Boi erado. Boi de mais de 12 anos. Deixavam ficar erado pelo prazer, pelo orgulho. O
sujeito dizia: “Eu só vendo por tanto.” Se não achasse comprador, o boi ia ficando. Informação
de Luiz Lopes Filhos (Luizinho).
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Sabia fazer encanto, era ideista479. Berrava com o buzo e o gado vinha ter em
seus pés. Aboiozinho vagaroso... No cavalo dele ninguém mexia. Os animais
que montava eram todos desmantelados, com mão torta, mancando, magros,
com defeitos. Só usava careta de tamanduá. Todo mundo gostava dele. Nunca
deu carreira perdida no mato, fosse de dia, fosse de noite. No espinar do gado
ele gritava: “Com as fé de Deus, Nossa Senhora, Virgem Maria”... Desabava
pau adentro. No pegar do rabo do boi gritava de novo: “Deita boi!”480 Ir ver o
rastro da corrida? De jeito nenhum, que não se rasteja carreira, para não dar
azar. O boi brabo podia estar aí, cavucando chão, fungando, remetendo. Ele
chegava e batia com os pés no bicho. O boi atendia. Ia pro mato, juntava égua,
vaca, ovelha, jegue, cabra e botava tudo na mesma direção do caminho que
queria. Os bichos vinham todos sem fazer queixa, direitinho por onde ele
indicasse. Não tinha história de hora para correr, que não dava carreira
perdida... Narciso, não! Ele com um companheiro atrás de um boi em cima da
serra da Canabrava. O dia todo e nada. Botaram tocaia na beira de um poço, na
espera do boi. De noite ele falou para o companheiro: “Eu agora vou dar uma
volta por ali... ver se encontro o boi”. O colega ficou. Daí a pouco a caatinga
quebrando. O companheiro montou ligeiro. Saiu na zoada dos paus, para
ajudar. Quando viu, o que viu? O boi na carreira, com duas luzes, uma em cada
ponta. Uma delas clareando adiante, a outra clareando para trás. O
companheiro se assombrou, voltou. Os meninos ouvindo as histórias, forçando
a imaginação481.
478
Louquejando: frase pronunciada pelo Sr. João Fininho, na fazenda Cabaceiras, ao se referir
a Cozinho: “Quando Cozinho ainda andava louquejando por aí”...
479
Botador de encanto, ideista, mandingueiro: qualidade que lhe atribuíam pelo fato de
dominar os animais com a maior facilidade, por brabos que fossem. Havia a crença de que
algumas pessoas conseguiam lançar idéias na cabeça dos animais – os mandingueiros - e fazer
com que eles pensassem como gente. Este poder também, acreditava-se, podia ser utilizado
para dominá-los.
480
As informações sobre Narciso foram dadas por Luiz Lopes (Luizinho) e por Jorge do Sítio
Pau de Colher. Narciso faleceu em São Paulo, onde fora trabalhar como operário.
481
Além dos nomes já citados, foram informantes também Nezinho da Salobra (Manoel Lima
dos Santos. *1924, Sr. Augusto, *1920, (da Serra da Natividade), Sr. Damázio Francisco
César, * 1927, (Mundo Novo), Sr. Elias Nunes da Silva, *1938 , Sr. Bina, *1922, (Bernardino
Rodrigues dos Santos), Sr. Bráulio Braulino da Conceição, *1918. Todos os informantes foram
ou ainda estão na briquitação de vaqueiro.
Caminhos de Curaçá
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Caminhos de Curaçá
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GRUTA DE PATAMUTÉ
Caminhos de Curaçá
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A serra, lá com seus matos, com suas pedras. Mato fechado.
Dificuldade para andar. O homem subindo nela, quebrando pau, procurando
madeira para fazer uma linha para telhado de casa. Andando, andando,
andando. Um cachorrinho em suas pisadas, acompanhando o dono. Com pouco
lá se foi ele mato adentro. O latido. O homem foi no seu rumo. Deu com um
descambado de pedra. Pedra talhada. Os cipós se enroscando desde cima e o
cachorro latindo. O homem foi entrando no mato enroscado, desconfiando de
como aquilo podia ser, se na frente tinha era um paredão. Foi e foi cortando
mato com um facão. Quando pensou que não, avistou um buracão danado,
descido para baixo, bem largo. O coração disparou: “É uma toca!”. Correu,
correu. Foi se ter na casa do coronel, homem que mandava em tudo do lugar.
“Nesse tempo era assim. O povo era besta e tudo o que via contava para um
poderoso”482. O coronel se encafifou. Mandou fazer verificação do dito do
homem. O achado foi confirmado. O homem que fez o achado morreu, logo,
logo, sem prazo de tempo para apreciação do que encontrara. Gruta é obra
misteriosa do divino, obra do começo dos tempos. Aquele que desvenda os
mistérios do divino morre!
A notícia se espalhou, todo mundo querendo ver aquela coisa de
santidade. Um padre do tempo antigo foi lá. Fez profecia: “ Não há gente no
mundo que encha essa gruta. Se um dia ela ficar cheia, sua boca se fechará e
todos que estiverem dentro dela morrerão”. É mistério.
Um outro padre andava pregando em santas missões. Ouviu falar da
gruta. Quis ver. Pasmou de admiração. Acabou encerrando a santa missão
dentro dela. Lá fincou um cruzeiro. Mais um padre chegou no lugar. Caiu no
encanto da gruta. Botou moradia dentro, dormindo numa caminha isidora. Fez
pregação, providenciou imagem de santo, deu jeito de construir altar. O povo
se pegou na fé: rezando, colocando ex-votos, enfeitando o altar, acendendo
482
O fato ocorreu no final do século XIX e o coronel em apreço era o Sr. Galdino Matos (18401930), então chefe político de Patamuté. A frase entre aspas é do Sr. Lídio Santos, 1906,
natural de Patamuté.
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Esmeraldo Lopes
velas, reverenciando o cruzeiro, apreciando com espanto. A imaginação vendo
inscrições naturais, “feitas divinamente no começo dos tempos”: rastro de uma
vaca, a pegada de uma onça, figura de santo. E tinha a pedra que chorava gotas
de água bem brancas, água milagrosa. O povo aparando-a nos dedos para se
benzer. Uma “mulher da vida” se utilizou dessa água em seu benzimento. Por
causa disso, como dizem, a água sumiu.
O padre, morador da gruta, foi firmando devoção no povo. Devoção no
Sagrado Coração de Jesus483. A gruta ganhando fama, os milagres se
espalhando, com as conversas indo longe. Nasceu romaria com data de
acontecimento no dia 1º de novembro. O povo indo, indo. Gente de longe, de
483
“Em 1903, um erudito pregador, o missionário católico, Monsenhor Pedro Cavalcante
Rocha, visitando esta gruta, achou-a tão bela que nela terminou a Santa Missão que, nesta
data, pregava em Patamuté, conduzindo para ali muitos milhares de fiéis e colocando no
interior da gruta um grande Cruzeiro, que é muito venerado, até na distância de mais de
cincoenta léguas, por grande número de crentes, que vão oferecer suas preces com devoção e
respeito. E, em 1905, o Padre Manuel Félix de Moura, então vigário desta freguezia, para ali
transferiu a sua residência, onde, implantou a devoção do Sagrado Coração de Jesus, colocou
uma belíssima imagem, oferecida pelos habitantes de Patamuté, em um lindo altar de pedras
transparentes.”(João Matos, in: Descripção Histórica e Geográfica do Município de Curaçá,
1926, p. 67.
Após a santa missão de 1903, a gruta ganhou fama e transformou-se em ponto de romaria,
acontecendo a principal delas no dia 1º de novembro, que arrebanha gente de toda a redondeza.
Esta romaria foi iniciada pelo padre Manuel Félix, a partir de 1905. Ele morou dentro da gruta
por algum tempo e depois construiu uma casinha no local que hoje serve de acampamento para
os romeiros.
O acesso à gruta é um pouco sacrificante. Situa-se a 66 km de Curaçá e a 18 km da sede do
distrito de Patamuté. A estrada é de terra e, em determinados trechos, a poeira chega a
incomodar, mas nada que desanime a curiosidade do visitante. O percurso do estacionamento
até a sua entrada pode ser feito por dois caminhos e é de aproximadamente 400 metros de
subida em caminho pedregoso, necessariamente feito a pé. Vencida esta dificuldade, um
pequeno descambado guia o visitante à obra da natureza: a Gruta de Patamuté. Mede 120
metros de cumprimento por 44 de largura e 22 de altura. De sua cúpula abobada, pendem
estalactites.
A Prefeitura Municipal de Curaçá construiu, em 1998, 10 banheiros, dois reservatórios de água
e, especificamente nos dias de romaria, instala um grupo gerador para iluminação, dando ao
acampamento um ar de vila. Também abriu um segundo caminho que dá acesso à gruta, onde,
em um de seus trechos, colocou uma estátua de padre Cícero em tamanho natural.
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Esmeraldo Lopes
mais de 50 léguas. Outra romaria no dia 1º de dezembro para gente de mais
perto.
Sem romaria a gruta fica sozinha. Existe gente que faz estrago. Escreve
nomes nas paredes, achando bonito, se marcando para os santos, mas enfeia.
Tem gente que quebra as pedras, acabando com a obra dos tempos. A pedra da
água não escapou.
As caminhonetes, os caminhões, os ônibus levantando poeira, zoando
no subir da serra. Dia 1º de novembro. Os romeiros chegando, chegando, se
agasalhando debaixo dos paus, no relento dos limpos no mato, em uns ranchos
que há. As farofas tiradas das mochilas. “Se não for com sacrifício não é
romaria”. As barracas funcionando sem fechar, vendendo comida, cachaça. O
povo cantando, tocando, músicas vindas dos rádios dos carros. O motor da luz
no tututu, a noite toda. Confusão de zoada. O povo para cima e para baixo
passeando, caminhando, querendo ver. Gente de todos os cantos da redondeza.
O mato virando rua, com as coisas da rua. No tarde da noite, os magotes de
gente fazendo ruma, no sono. Fogueiras acesas. Gente tomando palestra,
fazendo roda de conversa. Não tem atrapalho de desentendimento.
Madrugada. O povo se levantando, caminhando na direção do mato.
Com pouco, começa a movimentação. Os romeiros subindo a serra na procura
da obra divina. Cumprir pagamento de promessa, venerar o sagrado. Logo,
logo, ainda no cedo do dia a gruta repleta de gente. Foguetes pipocando do lado
de fora, sem dar sossego aos ouvidos. Romeiros entrando, romeiros saindo,
num frivio danado. Lá dentro cada um no seu jeito, rezando, pagando
promessas, apreciando o monumento. O cruzeiro arrodeado de gente ajoelhada,
orando, acendendo vela. Velas acesas no altar, nas pedras, nas paredes de
pedra. Aquela alumiação. Ex-votos sendo colocados dentro da gruta. Coisa de
todo jeito. Uma banda de pífano tocando, cobrindo pagamento de promessa;
uma Roda de São Gonçalo se arma: violão, pandeiro, cavaquinho, cantorias. O
altar cheio. Poses para fotografia. Gente arrodeando o salão, na imitação de
procissão. Não tem ensaio. É cada um em seu propósito de fé. E tudo é afinado
em harmonia. Festa do povo. O padre chegando para fazer celebração. Vai
espantando o povo do altar, tomando conta de tudo. Paramenta-se e faz a
organização do ambiente a seu modo. O povo obedecendo, ato de respeito, de
fé na missa. Uns perto, outros longe. Muitos alheados, contemplando o
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monumento, se pondo em fé por conta própria. Outros indiferentes, assuntando
conversa, olhando o movimento. O cheiro de vela queimada tomando conta de
tudo. A fumaça enuviando o espaço. O calor se acende. A fé se firma. O corpo
fica leve.
À tarde, os romeiros se preparam para avolta. Amontoam-se nos
transportes para se irem. Tomam as estradas, na esperança do ano que vem.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
VOZES DO POVO
Caminhos de Curaçá
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O DILÚVIO
No outro século não existia serra. Só o liso, o plano. Veio o dilúvio. A
água inundou tudo. Tudo ficou mar, mar sem fim sem nada de fora. Os
viventes: peixes e Noé com seus bichos no barco grande. A água começou a
correr, a correr. Foi cavando o chão. Noé no meio da água, sem rumo de saber
para onde. Ele soltava os passarinhos. Os passarinhos andavam o dia todo,
depois voltavam para a arca. A água descendo, formando os oceanos. Um dia
ele soltou uma pombinha. Ela voou o dia todo e à noite voltou com os pés sujos
de lama. Noé disse: “Ói! Já tem terra por perto”. Foi andando até quando
avistou um montinho de terra. Era a serra do Araripe, só com o topetinho de
fora. Ele encostou a arca nela - ainda deve ter os restos dela por lá. As águas
baixando. Uns lugares altos, outros lugares baixos. Foram aparecendo as serras,
os serrotes, os altos, os baixos, os riachos, as cavernas, os rios. No descer
apressado das águas, baleias, outros peixes do mar ficaram no seco. Não
tiveram tempo. Morreram sem água, deixando os cangaços aí, nos tabuleiros do
mundo.
“Esse mundo vai se acabar pelo fogo. Ói aí o bagaço, pra queimar o
mundo da gente. O fogo vai derreter tudo... esses morros, vão ficar tudo liso
que nem um tábua. Vai tudo ficar que nem era no outro século. Essas
destruíções já vêm lá do alto. Está escrito nas bíblias”484.
......................................................................................................................
484
Versão contada pelo Sr. Aprígio José de Almeida, do sítio Salgueiro (São Bento), e pelo Sr.
Augusto Pires, do sítio Papagaio, na costada da Serra da Natividade
Caminhos de Curaçá
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O BURACO DOS CABOCLOS
Dizem que os caboclos brabos fundaram o expulso485 lá. Eles que
fizeram o buraco. Buracão sem fim. Um dia apareceu um homem na casa de
seu Edmundo e perguntou: “O senhor conhece um lugar denominado pelo
nome de Buraco dos Caboclos?”. Seu Mundinho foi mostrar. Quando
chegaram lá, o homem arrodeou o buraco, meteu a mão no embornal e puxou
um livro. Ajoelhou-se e começou a ler. Quando terminou, fechou o livro e
disse: “Este buraco aqui tem dois canais. Um vai diretamente à serra Grande de
Araripe e o outro vai sair em Paulo Afonso. Quem quiser pode entrar, mas ele é
perigoso. Se aprofundar bastante, o sujeito está sujeito a não voltar”. Seu
Edmundo fez um pavio de cera e entrou. A uma certa altura, começou a
encontrar uns sapos e uma resfrialdade. Voltou para contar a história.
Lá
foram descobertos uns ossos maciços. Esses ossos são do tempo do dilúvio de
Noé. Encostou ali uma baleia e lá ela morreu. Isso diziam os mais velhos486.
.................................................................................................
A CAIPORA
É a dona do mato. Quando ela não quer, ninguém caça nada. Ela esconde
as caças. Os cachorros saem acuando, acuando, aqui, ali, acolá. O caçador indo
no rumo do latido deles. Quando ele pensa que não está variado. Isso quando
ela está boa. Quando não, a caipora mete o chicote nos cachorros e eles correm
para debaixo das pernas do caçador, com o rabo entre as pernas, ganindo,
ganindo, amedrontados, se mijando. Só se ouve é o quebrar de pau que ela faz.
Caçador se defende, querendo ficar em paz com ela. Deixa fumo em algum
lugar do mato. Ela sossega.
.................................................................................................
485
No caso, significa refúgio.
O Buraco dos Caboclos localiza-se no pé da Serra da Natividade e foi entupido porque nele
caíam muitos animais. Essa história nos foi contada pelo Sr. Aprígio José de Almeida, do sítio
Salgueiro, nas proximidade do São Bento.
486
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
LAMPIÃO
Um forró. O zabumba zoando no bumbumbum, a sanfona gemendo no
forofonfon. A turma no furdunço da dança. Animação. Lampião chegou com a
cabruera, cercou a casa, pegou os animais dos festeiros. Entrou na casa e disse:
“Daqui ninguém sai. Quero todo mundo dançando, e não quero ver ninguém
com tristeza!” Amanheceu o dia, o sol ficou alto e o povo foi pedindo: “Nóis
precisa ir embora seu Lampião, as cabras estão presas, senão vão morrer tudo”.
Lampião respondendo: “Não morre nada! Daqui não sai ninguém!” Deu fumo,
deu cigarro, deu bebida e gritava direto: “Quero alegria!”487.
TERRENO DOS CEMITÉRIOS
“A Bíblia diz que Judas vendeu Jesus aos egípcios por cinco dinheiros.
Então não quiseram botar o dinheiro no cofre. Aí resolveram comprar terreno
para fazer cemitério para enterrar os mortos.”488
.....................................................................................................................
OS ENCANTOS DAS SERRAS
As serras lá, se mostrando de todo lugar, chamando os olhos, se
misteriando, mudando de cor, guardando, protegendo encantos encantados. As
furnas, as grutas chamando a atenção, se carregando de mistério, mostrando
perigo, se guardando nos segredos, mergulhadas na escuridão. O sonho dos
487
488
História contada pelo Sr. Augusto Pires, da fazenda Papagaio.
Dito do Sr. José Plínio de Santana, 1916, morador do Pambu.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
homens: ouro. As serras o esconde. O ouro caminhando, mudando de direção.
Um dia aqui, outro dia ali e vai. É vivo. Tem vida. Muda de lugar, se encanta.
As serras se enchem de assombração. Fecham-se de mato, alimentam suas
vidas. Armam-se com armadilhas: os buracos, os talhados, o tudo parecido
delas ariando os homens. E acompanha os homens em cada gesto, em cada
passada, em cada respiração, com seus milhões de olhos, olhando de todos os
lados, de cima, de baixo, onde ele estiver. Os bichos vão se abrigar lá, fazer
seus ninhos, se proteger, protegê-las. O vento forte, o frio, o calor, o silêncio, a
água que elas escondem. De seus cabeços, nas alturas, o mundo embaixo, se
amiudando, indo longe até o encontro do cabeço de outra serra e o espaço se
prolonga, no acompanhar das sombras das nuvens, das manchas do mato, no
encontro da terra com o céu e tudo se fecha em torno delas. O centro do
mundo. Mostra, mas não se mostra e seus encantos se encantam489.
A NOVILHA ENCANTADA
Um dia, andava um caçador, caçando na serra da Natividade. Ao meio
dia, ele avistou uma novilha amarela que nem gema de ovo, em pé, debaixo de
uma árvore. O caçador se aproximou devagarinho e pegou no rabo dela. Ela
saiu de encontro a uma pedra bem grande. A pedra se abriu e a novilha foi
correndo na direção dela. O caçador continuou grudado no rabo dela, sendo
arrastado até quando chegou no pé da pedra. Nessa hora ele soltou o rabo da
novilha. A pedra se fechou e ela sumiu490.
O GALO DE OURO
489
A serra da Borracha, sobre quem bem recai o escrito, é a maior e a que ainda está bastante
preservada, não obstante venha sendo depredada. A marca da passagem do homem nela se
apresenta nitidamente pela existências das ruínas de uma oficina de beneficiamento de salitre,
construída no final do século XVIII, pela existência de coivaras e pelos rastros de caçadores.
Mesmo assim, ainda se afirma como um tipo de berçário para os animais do mato.
490
História contada pelo Sr. Aprígio José de Almeida.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Nem adiantava esperar que ele não tinha hora certa para aparecer. Nem
todo mundo ouvia seu canto. Algumas pessoas sim, outras não, que nem tudo é
para todo cristão. Cantava nos cabeços altos da serra. Vivia sozinho. Era um
galo de ouro. Um dia, uma feiticeira ouviu seu canto e fez conta dos cantos que
ele cantou. Desse dia em diante ele calou e nuca mais deu notícia. Foi na serra
da Borracha.
O CARNEIRINHO DE OURO
Só aparece à noite. Sozinho, tocando seu sino, andando de uma ponta da
serra para a outra, pulando de cabeço em cabeço e fica nesse vai-e-vem,
berrando. Sai de serra em serra, de uma para outra sem descanso. Fica bem
visível no clareado de seu ouro. Defende-se dos curiosos. Nem todos podem
vê-lo e ouvi-lo. Quando uma pessoa quer vê-lo, aí é que não o vê mesmo491.
O VENTO
Não se sabe quando. Quando menos se espera se ouve o pipocar. É um
vento com jeito de fim de mundo. Fica parecendo que está arrastando, virando
tudo. Quando é no outro dia que a gente vai olhar, tudo normal. E se a gente
estiver perto dele, se treme, se arrepia de medo492.
491
492
O carneiro de ouro percorre todas as serras, segundo os moradores do mato.
Esse fenômeno ocorre na serra da Borracha, segundo os moradores de suas adjacências.
Caminhos de Curaçá
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SÃO GONÇALO*
*
Embora São Gonçalo seja um único santo, existem três imagens diferentes: São Gonçalo do
Amarante, São Gonçalo do Poço e São Gonçalo da Viola. Os dois primeiros são os mais
comemorados em Curaçá. Não obstante as diferentes imagens, o ritual e os cânticos são os
mesmos. Foram informantes exclusivos o Sr. Paulo César Dias Torre, *1963, e a Sra. Otila dos
Santos Silva, ambos participantes habituais do culto a São Gonçalo.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
O povo da casa nas agonias dos preparativos para o acontecimento da
Roda de São Gonçalo. No lado direito da porta de entrada da casa, o altar
pronto para receber o santo493. A mesinha do altar forrada com toalha branca, o
lugar para as velas já no jeito, umas florzinhas enfeitando o altar. Um
banquinho do lado esquerdo do altar para o finado sentar, assistir as rodas494.
Os fogos bem guardados, no contado necessário da promessa do finado495. Na
cozinha, o fogo, as panelas, mulheres apressadas mexendo nos trens. O santo
chegando no conforto do tratamento que lhe deram, nos agasalhos da viagem.
O povo da casa vem ver, colocá-lo no trono do altar, se benzer, acender as
velas. O povo também chegando, os guias, os contraguias, as cantoras496, os
convidados. O entra-e-sai na casa, os comentários, as atenções das coisas da fé.
O dono da promessa, ansioso por deixar os infortúnios do sofrimento,
cuidadoso, nos conformes das exigências para o pagamento da dívida,
observando a maneira de estar, os sentimentos de cada um 497. Começar as
493
Nas casas do mato normalmente o povo constrói uma latada para agasalhar o santo. Na
cidade providenciam algo como um nicho. Segundo a tradição, o altar só pode ser construído
do lado direito da porta da casa. O santo, via de regra, é pedido emprestado. Aquele que possua
uma imagem de São Gonçalo não pode se recusar a cedê-la, embora possa impor exigências
quanto aos cuidados com a imagem.
494
Nesse banco ninguém pode se sentar enquanto as rodas estiverem em andamento. Segundo
se afirma, é sentado nele que o finado assiste as rodas e, às vezes, quando há algum erro, ele
baixa em algum dos presentes e indica o tipo de reparação a ser feita.
495
São Gonçalo não perdoa. Aquele que não pagar em vida promessa por graça alcançada, após
a morte, cai em sofrimento até que a promessa seja paga. Para tal, baixa em alguma pessoa ou
vem em sonho e faz pedido para que realizem por ele o pagamento da promessa devida.
Enquanto isso não é feito, o morto não se vê livre dos sofrimentos no outro mundo. “Quem
deve tem que pagar”. Faz-se promessa para que seja alcançada qualquer graça: a aquisição de
uma casa, o tratamento de alguma doença, para chover...
496
Os guias, os contraguias e as cantoras, no passado, faziam o trabalho puramente por
devoção. Nos dias atuais está havendo um certa tendência à profissionalização. Mesmo quando
estes não cobram por seus trabalhos, o dono das rodas lhes oferece gratificação financeira.
Alguns deles passam grande parte de seu tempo ocupados nessa atividade.
497
No caso de roda de finado, há uma série de exigências a serem observadas. Os participantes
podem usar roupas de algodão, o calçado precisa ser de couro, as mulheres precisam vestir
roupas de manga comprida, não podem usar batom e nem estar com as unhas pintadas. Não é
Caminhos de Curaçá
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rodas. O povo se preparando. Os guias organizado, acertando os violões; os
contraguias se preparando nos pandeiros para auxílio dos guias, as cantoras
ajeitando o repertório, os convidados se enfileirando atrás498. Duas filas para os
entrançados da dança499. Todo mundo atento nos modos dos jeitos dos
dançadores. Evitar perder o trabalho, garantir a libertação da alma do finado,
para ela não ficar penando.
O povo nos ajeitados certos da dança, sem nenhuma incorreção. Os guias
pinicando os violões, os contraguias marcando com os pandeiros, as cantoras
soltando a voz com todo mundo parado dos pés.
“Nas horas de Deus amém
Nas horas de Deus amém
Pai e Filho, Espírito Santo
Pai e Filho, Espírito Santo.
Puxa a roda por diante
Puxa a roda por diante
Vamos ver a luz do dia
Vamos ver a luz do dia.
(coro)
Ora viva e arriviva...
Ora viva e arriviva
Ora viva e arriviva
Viva São Gonçalo, viva
Viva São Gonçalo, viva.
Que seremos ajudados
Que seremos ajudados
Da sempre Virgem Maria
Da sempre Virgem Maria”...
(as cantoras)
São as primeiras cantigas
permitido comércio e nem é tolerado nenhum tipo de brincadeira. Caso ocorra uma infração, o
finado dirá, ou imediatamente ou posteriormente, que a roda não teve validade. Segundo as
pessoas que cultivam São Gonçalo, o finado assiste todo o desenrolar da roda.
498
A roda é dançada com, no mínimo,16 pessoas. O máximo é o que o terreiro comportar. Dois
guias, um em cada fila, atrás deles os contraguias e atrás destes as cantoras. Depois deles as
mulheres e, atrás delas, no final da fila, os homens. Segundo alguns guias, os homens devem
seguir atrás para que sejam evitadas pilhérias ou brincadeiras que prejudiquem a roda. Quanto
maior for o número de participantes, maior será o tempo gasto para a conclusão de uma
jornada. Uma jornada dançada com 16 pessoas, em média, dura oito horas.
499
O número de rodas a serem dançadas é chamada de jornada. Cada grupo de 12 rodas é
chamado de jornada. O mínimo permitido para ser dançado é de meia jornada (6 rodas) e não
há máximo. Entretanto, só podem ser múltiplo de seis, sendo raras as rodas de três jornadas.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
São as primeiras cantigas
Que eu a São Gonçalo canto
Que eu a São Gonçalo canto.
“Ora viva e arriviva”...
Os dançarinos fazendo os entrançados, indo e voltando, reverenciando o
santo, dando voltas uns em torno dos outros, trocando pé, se topando nos
ombros, o violão falando, o pandeiro batendo, dança vai, dança vem. Foguetes
pipocando a cada final de roda dançada. No lá vai, no lá vai, o defunto
baixando em gente, mandando fazer conserto. O povo obedecendo no mais da
atenção. Cuidado com cachorro, com gato, com menino cortando a roda. Nada,
nada podendo passar entre os dançadores e o altar. Se passar, roda desfeita,
trabalho perdido, começar tudo de novo. O povo fica dos lados cuidando500.
Na metade das rodas puxar o canto lê, lê, lê na continuação de tudo
igual.
500
Segundo Paulo César, em uma das rodas um cachorro atravessou entre o altar e os
dançadores. A roda parou imediatamente e uma turma saiu correndo atrás do cachorro até ser
pego e, amarrado por uma corda, colocaram-no para retornar por onde havia passado.
Caminhos de Curaçá
“Ô lê, lê, lê, doce canto
Ô lê, lê, lê, doce canto
Minha gente viva ao santo
Minha gente viva ao santo
São Gonçalo do Amarante
São Gonçalo do Amarante
Obrou um milagre ontem
Obrou um milagre ontem
Ô lê, lê, lê...
O menino pediu água
O menino pediu água
Fez do seu peito uma fonte
Fez do seu peito uma fonte
Esmeraldo Lopes
Ô lê, lê, lê...
A parreira tem mil galhas
A parreira tem mil galhas
Cada galha sua flor
Cada galha sua flor
Ô lê, lê, lê...
Meu divino São Gonçalo
Meu divino São Gonçalo
Essa vai no seu louvor
Essa vai no seu louvor”
(...)
O finado assistindo tudo, cuidando pelo livramento dos sofrimentos.
Assiste aos trabalhos até o fim. No final baixando para dizer se pagou, se não
pagou. As cantoras tirando os últimos versos. Reza cantada da Salve Rainha. O
arrodeio da casa e a entrada porta adentro com o santo na frente. Promessa
paga, sossego da alma501.
501
As rodas dos vivos seguem os mesmos rituais, sem os protocolos das rodas de finados.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
APÊNDICE
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
PAMBU
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
O nome sabe-se que veio dos índios, mas o que significa? A notícia que
temos é que os primeiros padres e portugueses que andaram na região, nos idos
dos tempos, já falavam no Pambu502. Nesse lugar, por volta de l660, os
portugueses construíram uma capela toda de taipa, onde reuniam-se “pelo
Natal e na Páscoa, vindos de trinta léguas e mais ao redor, para aí cumprirem
as suas devoções”, como deixou escrito o jesuíta de nome Martinho de Nantes,
que chegou a Pambu em l67l, com o intuito de aldear índios nessa região. Ele
disse também que essa capela era o abrigo de um capelão que fazia assistência
à região, percorrendo “para mais de cem léguas para cima e trinta para baixo, a
confessar os habitantes, (...) dizendo missa de dez em dez léguas...” 503
Tão logo chegou ao Pambu, o frei Nantes construiu uma casa e com
barro, madeira e cobertura de palha, uma igreja, onde instalou um pequeno
sino. Para isso utilizou o trabalho de índios e a ajuda de um fazendeiro que lhe
ofereceu um boi em troca de algumas missas504. Aí o frei fundou sua base para
o trabalho de aldeamento, de catequese dos índios e de assistência religiosa aos
fazendeiros e vaqueiros que já habitavam na região. Bem defronte do lugar
onde o frei se estabelecera, em uma ilha, “havia uma bonita aldeia de
cariris”505.
Os fazendeiros e os vaqueiros se ocupavam com o trabalho de criação
de gado e habitavam, uns longe dos outros, espalhados nos ermos das
caatingas, vivendo em solidão. Os índios, fustigados pelos criadores, situavam
suas aldeias principalmente às margens do rio e nas ilhas, sobrevivendo de
pequenos cultivos, da caça e da pesca. Com a chegada do religioso, passaram a
502
Segundo João Matos, In: Descripção Histórica e Geográphica do Município de Curaçá,
p. 113, significa sair ou chegar à planície. Pelas condições, do relevo do lugar faz sentido, pois
que Pambu é circundado por pequenas ondulações que avançam até a margem do rio.
503
Nantes, Frei Martinho de . Relação de uma Missão no Rio São Francisco. São Paulo, Ed.
Brasiliana, l979, p. 35.
504
Idem, p. 38.
505
Idem, p. 36.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
visitar Pambu com mais frequência, uns por curiosidade, outros em busca dos
serviços religiosos e alguns que para lá acorriam, vez ou outra, fugindo da
solidão dos ermos. Pouco a pouco, o lugar foi sendo transformado em ponto de
confluência de portugueses, mestiços e índios em domesticação. Assim, surge
o primeiro núcleo não exclusivamente indígena de toda a região do submédio
São Francisco: a missão do Pambu.
Pambu tinha poucos moradores. Seu povo morador era formado quase
só por índios que o frei havia aldeado. O religioso é que saía em suas andanças
de missão, percorrendo as ilhas e fazendas, nas dificuldades da correnteza das
águas e das caatingas sem caminhos bons. Mas, nas ocasiões especiais, os
moradores da região para lá se encaminhavam para a comemoração dos dias
santos e para fazerem adoração às santidades. O dia da solenidade da morte de
Cristo era o de maior comparecimento.
Nos anos primeiros da existência de Pambu, o que havia de importância
para o povo era apenas a capela e o padre. Não havia outra coisa. O frei
ensinava catecismo, a escrita e a leitura aos indiozinhos. Os índios grandes
ficavam curiando aquela coisa que não entendiam, desconfiados. As missas que
o frei rezava chamavam a atenção da gente. Não havia outro lugar onde coisa
semelhante acontecesse em toda a região. Desse jeito, de pouco em pouco, a
missão foi ficando importante, criou fama e mereceu atenção política.
Os índios e os criadores não se uniam. Viviam em arrelia por causa de
terra, por causa da criação que os índios, vez por outra caçavam, e por outras
coisas. O frei Nantes se intrometia, aconselhando, resolvendo. Muitas vezes
não conseguia apaziguar. A convivência entre índios, criadores e o frei era
cheia de conflitos. O frei entrava em discórdia com os índios por causa da
reação destes às normas que ele impunha; os criadores se lançavam contra os
índios, matando-os, corrompendo suas mulheres, invadindo suas terras e
destruindo suas plantações; os índios flechavam o criatório dos criadores,
argumentando que tinham direito por serem donos da terra e, ora por outra,
enraivecidos, matavam a quem encontrassem nos currais (fazenda, sítio); os
criadores - que eram portugueses - julgando-se superiores e donos de tudo,
botavam-se contra o frei Nantes, acusando-o de colocar-se a favor dos índios.
Outras vezes os criadores astuciavam intrigas e jogavam os índios contra o frei
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
e o frei, que queria ser meio termo, tomava pancada de um lado e do outro, ora
se posicionando contra os criadores, ora se colocando contra os índios.
O trabalho do frei tinha três objetivos: converter os índios ao
cristianismo, torná-los submissos ao rei, ensinando-os a conviver com os
portugueses e reforçar nos portugueses e mestiços a fé e os costumes cristãos.
No final do século XVII, após muitos conflitos entre o jesuíta e os
fazendeiros, tendo estes à frente o chefe militar e político de toda a região e
dono da Casa da Torre, o segundo Francisco Dias D`Avila, a situação do frei
na região ficou complicada, com muitas ameaças e até tentativas de
assassinato. Também o rei de Portugal não estava vendo com bons olhos a
presença de capuchinhos franceses no Brasil e tomou medidas limitando o
trabalho que desenvolviam. Em consequência desses aspectos, o frei foi
forçado a se retirar. Vieram substituí-lo padres da Ordem de Santa Teresa, que
permaneceram por curtíssimo período em Pambu e posteriormente, os
missionários franciscanos, no início do século XVIII.
Pelo que sabemos, depois que o frei foi forçado a ir embora, a missão
do Pambu ficou um período sem assistência religiosa e os padres da Ordem
de Santa Teresa, que o substituíram, não davam a importância necessária ao
trabalho missionário. O rei de Portugal, informado sobre isso por Garcia
D`Avila Pereira, na época mandatário da Casa da Torre, que possuía o domínio
de quase todo território regional, mandou substituí-los pelos capuchinhos
franciscanos506.
Pambu foi a segunda localidade, na região do médio São Francisco,
onde os franciscanos instalaram missão. A primeira foi em Saí507, em l697, e a
terceira no rio Salitre, em l703. O trabalho deles em Pambu iniciou-se em
l702508. Ao chegarem, nomearam logo um padroeiro para o lugar. Escolheram
506
Documentos Históricos, Vol. XXXIV, p.310 e 3ll. In: Relação de Uma Missão no Rio São
Francisco, p. 122.
507
Missão instalada na área hoje compreendida pelo município de Senhor do Bonfim.
508
Maria do Carmo Tavares de Miranda, In: Os Franciscanos e a Formação do Brasil, p.
l72, Recife, l969.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
Nossa Senhora da Conceição e rebatizaram o aldeamento indígena com o nome
de Aldeia de Nossa Senhora da Conceição do Pambu509.
Ao contrário dos jesuítas, que se preocupavam também com as questões
materiais e sociais dos índios, os capuchinhos franciscanos limitavam suas
preocupações com as questões espirituais. A purificação e a salvação das almas
de seus assistidos fossem eles índios ou portugueses. Aos portugueses
pregavam a caridade e a observância aos valores morais; aos índios e mestiços
pregavam a obediência e a submissão e a ambos a necessidade da veneração.
Não deixaram registros sobre conflitos. Será que eles deixaram de existir?
A instalação da missão dos franciscanos impulsionou a importância do
Pambu como centro povoador da região. Já em l7l4 é elevado à condição
paróquia (distrito eclesiástico) e, no civil, em l724, foi elevado à condição de
distrito da Vila de Jacobina, sob a jurisdição da Ouvidoria de Sergipe, ficando
assim até l742. Nessa época é criada a Ouvidoria de Jacobina e Pambu a ela
fica vinculado, sendo promovido em l743 à condição de julgado (território de
atuação de um juiz)510.
A ascendência do Pambu, em tão pouco tempo, mostra bem o prestígio
que gozou. Isso foi possível devido à inexistência de outras aglomerações na
área em que estava situado e pelo prestígio da missão que atraía a atenção da
população e das autoridades. Contando com capela, com padre, com juiz e com
um santo milagroso, assumia notoriedade em imensas áreas das caatingas.
Durante todo o século XVIII, Pambu foi, pelo que aparece nos registros,
o centro povoador mais importante do médio São Francisco. Nos primeiros
anos do século XIX, Sento Sé começa a disputar-lhe o prestígio, ao sediar
comarca com jurisdição sobre o seu território. Juazeiro, que também era sede
de missão desde 1706, desponta, não em prestígio político ou judicial, mas em
termos econômicos. Situada em um ponto de ligação entre Salvador e amplas
regiões nordestinas, por aí todo o transporte era realizado, o que ampliava suas
possibilidades. Também o lugarejo, localizado na área territorial do Pambu,
conhecido pelo nome de Capim Grosso, ganha significância. Mas, mesmo
509
510
In: Nantes, p. l22.
João Matos, Descripção Histórica e Geográphica do Município de Curaçá, Bahia, l926.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
diante do florescimento de outras localidades, Pambu ainda fazia manter sua
preponderância, sendo elevado à posição de vila em l832 511 e instalando sua
primeira escola em l835512. Provavelmente tenham sido estes os últimos atos
que assinalaram sua importância.
Por esta ocasião, ao que tudo indica, a missão dos franciscanos já havia
sido devolvida513 e seu destaque como centro religioso minguou-se em
decorrência do aparecimento de outras localidades que contavam com a
presença de padres, inclusive em sua vizinhança, como era o caso da Ilha de
Assunção, onde fora fundada a Vila dos Índios de Nossa Senhora de Assunção,
com igreja e tudo o mais514.
Mas não foi só isso. Pambu não conseguira, devido a vários fatores,
dinamizar-se. Seu prestígio, por todo este período, mantivera-se graças à
inexistência de outras localidades, o que o transformava também em centro
civilizatório. Não conseguira expandir-se populacionalmente, mantendo seus
habitantes dispersos ao longo do rio e nas caatingas; nunca chegara a
desenhar-se como centro comercial, sua localização o impedia de estabelecer
porto e, ademais, ficava mal localizado do ponto de vista da ligação com as
outras localidades.
Assim, à medida em que lugarejos surgiam, Pambu mergulhava no
isolamento. Até mesmo o motivo que lhe dera existência desaparecera devido
ao próprio trabalho dos missionários: a desindianização e o atendimento dos
remanescentes indígenas na ilha de Assunção. A exclusividade jurídica lhe
escapava e, desse jeito, passava a manter-se apenas pela tradição e pela fama
de Santo Antônio515. Não tinha mais o que oferecer como atrativo, restando-lhe
somente o santo milagroso. É nesse contexto que, em l853, perde a condição de
511
Pambu foi elevado à condição de vila em 1832, no dia 06 de junho.
IBGE - Enciclopédia dos Municípios – Bahia, l958.
513
A Ordem religiosa responsável há havia extinto e, por consequência, recolhido seus agentes.
514
Entre 1781 e 1838, foi sede de freguesia sob a invocação de S. Gonçalo e ganhou status de
vila, denominando-se Real Vila de Assumpção. In: Matos, 1926, p. 94.
515
Em 1853, Pambu possuía cerca de 30 casas e mais ou menos 140 habitantes, de acordo com
registros deixados por Halfeld - In: Atlas e Relatório do Rio São Francisco, Rio de Janeiro,
1860, pag. 39.
512
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
sede de vila e de paróquia para Capim Grosso (Curaçá). Daí em diante Pambu
mergulha no esquecimento e cai totalmente em importância.
Em 1952, Chorrochó , distrito de Curaçá, é transformado em município
compreendendo a área que abrangia Pambu, Ibó, Lagoa de José Alves e Abaré.
Pambu permanece na condição de povoado de Chorrochó até o ano de 1962,
quando com a elevação de Abaré à condição de município a ele passa a
pertencer, também como povoado. Embora Pambu seja hoje um povoado de
Abaré, pelas ligações históricas e culturais e também por estar a menos de 80
metros da área do município de Curaçá, vincula-se mais a este. Por outro lado,
a população de Curaçá não entende o motivo de Pambu não se incluir na área
de seu município e o reivindica516.
Por três vezes os habitantes do Pambu tentaram romper o seu
isolamento e emprestar-lhe algum sentido econômico, empreendendo a
organização de uma feira em l935, em l950 e em l960. Contudo, em todas essas
tentativas, o objetivo foi frustrado, o evento não ultrapassando a primeira
semana. Nas décadas de l930 e l940, também ocorreu uma tentativa econômica
com a instalação de uma desfibradora de caroá. Porém, o produto perdeu
importância como matéria-prima da indústria têxtil e sua vida foi efêmera.
Nos dias atuais, Pambu possui aproximadamente l00 habitantes e, bem
contadas, 43 casas, das quais apenas 20 são habitadas regularmente, um bar,
um posto telefônico, uma escola de primeiro grau menor, uma igreja, um
cemitério em ruínas e um campo de futebol. As casas foram construídas
voltadas umas para as outras, formando um quadro, no centro do qual está
localizada a igreja, símbolo do lugar. Às suas costas, à esquerda, o rio São
Francisco que, nesse ponto, expõe-se em bela paisagem de águas corredeiras e
ilhas. Nos outros quadrantes a caatinga, paupérrima em vegetação, o solo
pedregoso e de relevo acidentado. O cemitério, embora mal cuidado, estampa
duas sepulturas que chamam a atenção pelos traços arquitetônicos. O povo é
acolhedor e simpático, parecendo ser formado por uma só família. À
tardezinha, as crianças brincam e abrem os ouvidos com a maior atenção para
516
Pambu dista 110 km da sede do município de Curaçá, l6 km do povoado curaçaense de
Pedra Branca – rio acima - e 12 km de Ibó, distrito de Abaré.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
a conversa dos mais velhos. A pequena agricultura, a pecuária e a
aposentadoria dos velhos são as principais fontes de renda, senão as únicas.
Indiferentes às formalidades administrativas e políticas do estado, os
pambuenses denominam seu lugar pelo nome histórico de Aldeia do Pambu e,
muitos, senão quase todos, se dizem índios da nação tumbalalá sem, entretanto,
saberem o significado da palavra. O desejo que têm é serem reconhecidos pela
FUNAI. Embora, desde tempos imemoriais, alguns habitantes da área
dançassem toré na Missão Velha, atualmente esta dança vem envolvendo
grande parte dos moradores do Pambu, da Missão Velha e adjacências, em um
renascimento histórico e cultural das tradições de seus ancestrais. Mais que
uma simples dança, o toré implica em revivificar o passado dos ancestrais
indígenas; reencontrá-los através da encarnação de seus espíritos; ouvir seus
conselhos; receberem orientações para tratamento de saúde; disciplinar os
participantes integrando-os ao grupo e aprender pelos encantos e linhas517, os
modos indígenas de viver. Segundo os pajés518 e as pessoas que já se
identificam como índias, aquele que tiver sangue índio é forçado, pelos
espíritos dos antepassados, a se integrar ao grupo e participar do toré. “Não é
preciso chamar, destá que quem tiver sangue índio vem”. Dizem eles, que basta
uma pessoa de sangue índio assistir o toré para se ver livre das perturbações da
vida ou doenças. Dizem também que Santo Antônio do Pambu é deles, pois
apareceu na aldeias que lhes pertence e afirmam que o santo era rico, que tinha
muita terra e ouro, mas que os padres, aproveitando-se da inocência dos índios
antigos, pegaram tudo.
Um dos caciques disse que desde “há muito tempo não sabiam que
Pambu era aldeia, mas que um pajé da nação trucá, da aldeia da ilha da
Assunção, através de um encanto, descobriu. O encanto fez essa revelação e
exigiu que eles iniciassem a dançar o toré e que eles obedeceram”.
517
Encanto ou encantado são os espíritos dos índios que já morreram, mas que se apresentam
no momento dos rituais, através de encarnação, se enramando no corpo de um dos participantes
para fazer revelações ou fazer alguma recomendação. Podem também se apresentarem em
sonho. Nessa oportunidade, às vezes, conduzem o espírito da pessoa possuída no sonho até as
aldeias antigas para mostrarem o jeito de viver índio e ensinam-lhe novas linhas. Linha são as
cantigas rituais.
518
No período em que colhemos essas informações, final de 1998, havia dois pajés e dois
caciques em decorrência da disputa pala liderança.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
MISSÃO VELHA E PAMBU
Missão Velha fica na vizinhança de Pambu, a uns 300 metros, e não
possui casas agrupadas. Na verdade é uma área onde existem sítios e roças.
Dizem os mais velhos que tem esse nome por ter sido lá o local onde,
inicialmente, os jesuítas estabeleceram a missão. Há três pistas que dão
sentido a esta suspeita: nessa localidade existe uma área que deixa aparecer
resquícios de construções com certo alinhamento; o próprio nome Missão
Velha, o que pressupõe a existência de uma missão nova e; por último, a
história do aparecimento de Santo Antônio, o que implicou na construção de
uma capela em novo local, conforme vem sido dito através dos tempos. O certo
é que, em Missão Velha, se encontram dois terreiros de toré e também, além
dos alicerces já mencionados, encontra-se um terreiro onde, dizem os atuais
moradores, dançavam os índios de antigamente. Missão Velha já se situa
integralmente no município de Curaçá.
SANTO ANTÔNIO
Não se sabe quando o santo apareceu . Segundo indica o livro de João
Matos, ocorreu antes de l7l4. Os franciscanos, ao chegarem em Pambu, em
l702, nomearam Nossa Senhora da Conceição como padroeira da aldeia, o que
nos faz supor que por esta época ainda não houvesse ocorrido o aparecimento
do santo. O que sabemos é que há muito e muito, corre de boca em boca,
atravessando os tempos, a história que diz que acharam o santo dentro de uma
moita de cachacumbi519 sobre uma pedra. Na pedra, segundo a história, havia
uma inscrição que dizia assim: “SANTO ANTONIO DO PAMBU,
COMBATIDO E NÃO VENCIDO”. Com o achado, o povo todo caiu em
admiração e espanto. Os padres levaram a imagem para a capela e a colocaram
no altar. No outro dia, quando chegaram lá, o santo não estava. Procuraram e o
encontraram novamente dentro da moita, sobre a pedra. Por várias vezes
botaram o santo no altar e ele sempre voltava. O povo foi se admirando com
aquilo. O santo ganhou fama, começou a fazer milagres e o povo, rio acima, rio
519
Cachacumbi é um cacto espinhento de galhos alongados e finos.
Caminhos de Curaçá
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abaixo, caatinga adentro, caatinga afora, alastrou a notícia. O jeito que os
padres encontraram foi fazer uma capela nova para ele, com o altar erguido
bem no lugar onde fora achado520. Com o tempo a popularidade do santo
cresceu cada vez mais ao ponto de chegar a destronar Nossa Senhora da
Conceição e ascender à condição de padroeiro do lugar. Daí em diante,
aqueles que construíram novas casas o fizeram ao redor da capela do padroeiro,
provocando a transferência do local da missão.
A fama do santo atraía o povo que ia lá, vê-lo, venerá-lo, pagar
promessa e Pambu, com isso, angariava mais fama. Como, à época, as
dificuldades de locomoção eram muitas e os fiéis se encontrassem espalhados e
distantes, alguns devotos intentando tirar esmolas para obras pias. “Viajavam
com ele pelas localidades vizinhas. Aí tinha vez que o povo tomava um
soninho e o santo vinha embora sozinho521”. Há quem diga que, na fuga, o
santo deixava o rastro no chão, o jeito dos pezinhos. Houve um homem
desaforado que o desafiou, depois que, por várias vezes, haviam tentando leválo para um determinado local, sem sucesso : “Quero ver esse santo fugir
agora”. O homem foi a Pambu, pegou o santo o colocou dentro do alforje,
amarrou bem a boca e partiu. Não andou 600 metros, morreu. Quando acharam
seu corpo foram logo aos alforjes. Que nada! O santo havia desamarrado tudo
e ido embora. O povo se abismou. Daí para a frente a temência tomou conta de
todos e ninguém mais teve coragem de retirá-lo de Pambu, de seu altar. No
lugar onde acharam o corpo do homem que tentara carregar o santo à força,
520
Trata-se da capela erguida em homenagem a Santo Antônio do Pambu, construída em
tempos imemoriais, provavelmente ainda no século XVIII. As paredes da nave são de pedras e
medem aproximadamente 70 cm. Segundo o Sr. José Plínio, a torre foi construída em 1902 e,
nos meados desse século, foram realizadas ampliações nas laterais próximo ao altar. O seu
estado de abandono já é secular. Em 1846, o seu vigário, Frei Paulo Maria Genoveva,
escrevia: “A respeito da relação do estado desta Matriz cumpre-me dizer a V. Exa. que a dita
Matriz se acha em um estado assaz deplorável, até de não se puder mais celebrar o santo
sacrifício da missa para não ficar vítima extinta das iminentes ruínas que ameaçam cada dia de
vê-la caída por terra, e justamente o meu digníssimo finado antecessor, para remover os perigos
que podia acontecer às ovelhas estando dentro da dita Matriz assistindo aos Atos da nossa
Santa Religião e os mais que seguem, foi servido mandar tirar fora a coberta da Igreja, que era
de telhas de barro, que pelo grande peso que fazia as paredes já se desaplumavam do
alinhamento que foram edificadas”. In: Matos, Descripção Histórica e Geográfica do
Município de Curaçá, pag.34-35.
521
Esta versão foi contada pelo Sr. José Plínio, mas outras idênticas correm de boca em boca,
ecoando longe.
Caminhos de Curaçá
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construíram uma capela e dentro dela um cruzeiro. Esta capela fica bem em
cima de um pequeno morro, voltada para a igreja onde reina Santo Antônio.
Deram-lhe o nome de Capela da Santa Cruz e fica na área da Missão Velha.
Essa capela passou a ser ponto de veneração, de pagamento de promessa. O
povo vai lá, leva ex-votos, escreve seus nomes e faz desenhos de mãos, de
pernas, etc. nas paredes, com o maior respeito.
O povo continua devoto de Santo Antônio de Pambu. Todo dia há gente
indo visitá-lo. Vai gente de todo lugar da região. Seu dia, pelo calendário
oficial da igreja católica, é no mês de junho, mas em Pambu a comemoração
faz-se no dia seis de janeiro. Por quê? É que, depois que Pambu ficou sem
padre, tudo passou a ser complicado. Havia o dia do padroeiro em junho, o dia
de Nossa Senhora da Conceição em novembro e o dia dos Reis Magos, que
também era bem comemorado pelo povo do lugar, no dia seis de janeiro. Os
padres, que davam assistência a Pambu, moravam em Glória522, cujo trajeto,
522
Glória situava-se a, aproximadamente, 200 km rio abaixo, fazendo limite com Paulo
Afonso. Em decorrência do represamento de águas para a construção do lago de Itaparica, foi
transferida de lugar, estando hoje nas adjacências de Paulo Afonso e recebeu a denominação de
Nova Glória.
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além de ser bastante longo, era percorrido à cavalo. Então, pela dificuldade,
reduziram todas as comemorações para um dia só: seis de janeiro. No dia cinco
à noite há festa. O povo vai chegando e enchendo a rua. “É gente a não caber
no mundo. Carro-de-som... Uma festa grande. A noite toda tem zoada de
música. A gente não consegue dormir”. No outro dia, o dia do grande dia,
muito dessa gente vai embora no clarear. Outras pessoas chegam, em
pagamento de promessa por graças alcançadas, fazendo homenagem, se
devotando ao santo, para se casar, para batizar os meninos. A igreja fica
entupida.
Caminhos de Curaçá
Esmeraldo Lopes
MAPAS
Caminhos de Curaçá
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