johncagekoandan ã oviol ê ncia

Transcrição

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VIOLÊNCIA
de
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também conferência em
La Casa Encendida
Madrid, Espanha, 2006
John Cage - Koan da Não Violência
Emanuel Dimas de Melo Pimenta
título: JOHN CAGE - KOAN DA NÃO VIOLÊNCIA
autor: Emanuel Dimas de Melo Pimenta
ano: 2006
John Cage, música, estética
editor: ASA Art and Technology UK Limited
© Emanuel Dimas de Melo Pimenta
© ASA Art and Technology
www.asa-art.com
www.emanuelpimenta.net
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JOHN CAGE - KOAN DA NÃO VIOLÊNCIA
emanuel dimas de melo pimenta
2006
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John Cage era um amigo. ���������������
Não meu amigo. ��������������������������
Era também meu amigo, mas
a amizade era sua conduição interior, genética.
E a condição essencial do amigo é a confiança, a honestidade da
transparência.
John Cage acreditava no ser humano – qualquer ser humano, onde
estivesse.
Mais que o ser humano, John acreditava na vida.
A vida como dinâmica de informação em permanente metamorfose.
Ele acreditava que cada um de nós – criminosos ou artistas – possui a
condição humana da cultura. A cultura como manifestação da vida, como
organismo que somos todos nós. Por isso, ele pedia para que todos penetrassem
no silêncio, para que o pensamento pudesse parar – porque apenas a diferença
produz a consciência.
Mas, muitos tomaram o seu silêncio como algo absoluto.
O silêncio de John era um koan – porque o silêncio não existe na
realidade.
JOHN CAGE - KOAN DA NÃO VIOLÊNCIA
emanuel dimas de melo pimenta
2006
O mito em torno de John funcionou pelo conteúdo do que disse e não
pelas suas acções.
John nunca esteve em silêncio.
Pode-se considerar que a sua referência ao silêncio era uma metáfora.
Mas, John nunca foi uma pessoa que amasse as metáforas ou os símbolos.
As suas roupas eram simples.
Vivia uma vida simples.
Não se vestia como um artista, nem se comportava como uma pessoa
diferente das outras.
O símbolo é um signo degenerado que não pertencia ao seu universo.
A sua vida privada era um mundo diferente do seu trabalho.
John era Zen.
Zen é acção.
Zen é paz porque é iluminação, descoberta. Para compreender como esta
relação com a paz acontece, é necessário dar um passo atrás.
JOHN CAGE - KOAN DA NÃO VIOLÊNCIA
emanuel dimas de melo pimenta
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Ele defendia o silêncio, mas continuava a fazer música, livros, textos,
conferências, obras visuais.
Assim, o silêncio era a consciência, a iluminação. Não obrigatoriamente de
uma única pessoa. Silêncio como estado de abertura, de amor ao conhecimento,
à aprendizagem. Quando descobrimos algo, tornamo-nos encantados e
penetramos no silêncio.
Não será esta uma excelente definição para a paz?
Utilizamos equivocadamente, e em demasia, a palavra tolerância. Mas,
tolerância não significa paz, e nem mesmo é algo positivo. Quem tolera um
outro, suporta-o com tudo o que considera serem seus defeitos. Tolerância
implica sofrimento.
A paz não está na tolerância, mas na descoberta.
Quando tudo está bem, não existe tolerância e a condição é zero – porque
tudo é possível quando temos o zero como ponto de partida.
E o zero é a condição primeira do silêncio, da descoberta.
Por outro lado, ainda que tocando tudo e todos a partir de uma mesma
posição lógica, o zero nunca é média, nunca é mediocridade.
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A palavra paz lança as suas raízes etimológicas no Indo Europeu *pag,
que significava fixar algo, estabelecer um marco – um ponto consensual, um
elemento comum a todos.
Aqui se estabelece verdadeiramente a base de John como koan – tomando
o zero como elemento equidistante, como contínuo gerador de descobertas,
como foco pleno de paz.
Assim, John Cage jamais estabeleceu um elemento de mediocridade.
Tudo para ele era invenção e descoberta.
A paz não estava em criar uma tradição, um corpo de ideias com
seguidores, como uma igreja. Não era criar um marco imutável, porque somos
todos uma contínua metamorfose.
O único marco, o único elemento possível para uma paz perpétua é o
zero, a permanente descoberta, o permanente estado de encantamento.
Esta condição de encantamento é o que nos torna menos arrogantes,
que nos torna mais conscientes de que somos nada e, na melhor das hipóteses,
de que somos zero – potencialmente tudo.
Por isso, a música não era, para John, a história da música Ocidental, nem
mesmo qualquer história. A música era, para ele, um elemento fundamental do
pensamento.
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Há um ponto importante para se compreender este koan de uma vida.
John também considerava, junto com o zero, que era uma grande ilusão pensar
em mudar o mundo.
Tudo era, no seu universo, uma contínua mutação.
Por isso, John era um optimista.
Se defendia o zero, o silêncio, que é um estado potencial de não acção,
de pré acção, ele também defendia a acção da invenção.
Nos seus últimos anos de vida, pelo menos, John considerava o mundo
como livre de todo o tipo de determinismo.
Tudo era invenção.
Não havia lugar para o destino. O destino era, para ele, algo sem
sentido.
Sendo tudo invenção, o mundo era pura acção.
Conversamos sobre isso poucos dias antes da sua morte.
Falamos longamente sobre nanotecnologia e John se encantava com a
magia humana, com a ilimitada possibilidade da criatividade – e isto é acção.
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Algumas pessoas podem, apressadamente, concluir que John estava
equivocado, perdido em contradições.
Mas não!
Esses paradoxos não estavam fora da sua consciência.
É possível que John não elaborasse estas ideias buscando uma coerência.
John era fascinado pela misteriosa dinâmica da vida. Não lhe interessava muito
questionar essa dinâmica. Ele trabalhava com ela.
Os paradoxos eram parte da sua vida, do grande koan que edificava a sua
existência.
Tudo isso construiu uma forte e misteriosa ligação de amizade entre nós
dois.
A minha música era cheia de sons, que para mim também eram silêncio
– em outro sentido.
Como hoje, naquela época o meu trabalho compreendia a acção e a não
acção.
Todas as diferenças e identidades faziam da nossa relação uma contínua
e mútua descoberta.
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De toda a forma, tudo era sempre invenção. Para nós dois, onde havia
descoberta, mistério e encantamento era o nosso lugar.
Acreditando firmemente na invenção, ele também pensava que ninguém
poderia elaborar algo novo sem a participação activa dos outros.
Em outras palavras, John não se considerava um compositor, no sentido
de ser um criador. Considerava-se uma espécie de antena, de animador, de
articulador de pessoas. Outro paradoxo. Por isso, nos últimos anos, as suas
partituras se tornaram mais e mais simples, com menos indicações precisas.
Abandonou as partituras gráficas.
A sua música se tornava numa emergência de sons através da conjunção
e disjunção de outras pessoas e de si próprio.
Em 1991, David Tudor e eu fizemos um concerto no teatro Albeniz, em
Madrid, com uma das minhas composições para Merce Cunningham. John
realizava um concerto em outro teatro. Uma noite, depois do concerto, um dos
músicos me disse não compreender a música de John – porque não havia quase
qualquer notação, mas funcionava. Tudo era algo que emergia, como mágica.
Assim que voltou a Nova York, o jovem e talentoso músico tratou de
iniciar uma carreira de compositor. Mas, depois de pouco tempo, compreendeu
que não era capaz de fazer aquela música que o encantava.
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O jovem não compreendia por que a música de John funcionava e não a
sua – ambas quase sem notação.
Para John, a ideia de uma música que funcionava era algo bizarro. Para ele
todas as músicas poderiam funcionar. Tudo dependia de quem escuta – porque
tudo é uma ilusão.
Assim, para John, o compositor existia e não existia; a notação era e não
era importante; devemos fazer silêncio, mas continuamos a trabalhar; tudo é
não acção mas a guerra é algo inadmissível; tendo o zero como ponto sem
ideias tornado singularidade de novas ideias.
Em todas essas contradições, que formam este encantador koan, há um
elemento central – o poder.
Junto com o zero, com o silêncio, seguramente a ideia de poder é algo
fundamental para uma mais profunda compreensão do koan de John Cage
como um poema para a paz.
A palavra poder lança as suas raízes etimológicas no Indo Europeu *poti,
que designava a pessoa mais importante de uma família ou de um grupo social,
de um clã, de uma tribo.
Assim, o poder implica a existência de um elemento supremo, de
estabilidade, de comum aceitação por todos.
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Isto não era o desígnio de John.
Mesmo na sua vida pessoal, íntima, ele jamais pretendeu, pelo menos
durante o tempo em que o conheci, estabelecer qualquer tipo de dominação.
Quando uma pessoa lhe mostrava um trabalho que se assemelhava às suas
composições, John o considerava um verdadeiro absurdo. Não gostava de
homenagens ou prémios. Quando recebeu o prémio Quioto em 1989, da
Fundação Inamori, justificava dizendo que era importante para ajudar os
projectos com Merce.
O poder implica, como o sentido arcaico da paz, a estabilidade e a
coerência.
Toda a produção de John Cage estava na instabilidade, na descoberta.
John criou a sua vida como um maravilhoso koan orientado à paz – não
como algo localizado no tempo ou no espaço, mas como sentido primeiro da
própria existência, depois da Natureza.
Toda esta história me faz recordar Paul Valery quando dizia que «entre a
ordem e a desordem reina um momento delicioso».
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