Revista Estudos Hegelianos - Versão Integral

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Revista Estudos Hegelianos - Versão Integral
REH
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
(Revista Semestral da Sociedade Hegel Brasileira - SHB)
Ano 5
nº 8 , Junho - 2008
ISSN 1980-8372
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Expediente
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos - ISSN 1980-8372
Sociedade Hegel Brasileira - SHB
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Manuel Moreira da Silva
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SUMÁRIO
Editorial
Uma consideração especulativa sobre a bibliografia hegeliana em
Língua portuguesa: Algumas notas críticas aos lançamentos
mais recentes (2007/2008)
Manuel Moreira da Silva ................................................................................5
REH. Nota sobre o número 8
Manuel Moreira da Silva ...............................................................................23
Artigos
A Crítica e Transformação da “Filosofia da Subjetividade”
na Fenomenologia do Espírito
Christian klotz .................................................................................................25
Hegel leitor de Goethe: entre a física da luz e o colorido da arte
Márcia Cristina Ferreira Gonçalves ...................................................37
Traduções
Hegel, variantes do fragmento “Die Liebe”
Joãosinho Beckenkamp .................................................................................57
O fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe (1803/1804):
apresentação e tradução
Erick C. de Lima ..................................................................................................75
Normas de submissão (Versão resumida)...........................................99
Editorial
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 5, nº8, Junho-2008: 5-22
Uma consideração especulativa sobre a bibliografia
hegeliana em Língua portuguesa: Algumas notas críticas aos lançamentos mais recentes (2007/2008)
Manuel Moreira da Silva
DEFIL – UNICENTRO/PR
Propomo-nos aqui analisar sucintamente a produção bibliográfica em
Língua portuguesa – especificamente do Português de Portugal e do Português do Brasil – concernente a textos de Hegel e sobre Hegel editados entre
janeiro de 2007 e maio de 2008. Limitar-nos-emos a discutir os aspectos
mais relevantes de tal produção e o seu significado filosófico para o desenvolvimento dos estudos hegelianos nos países de Língua portuguesa em geral e no Brasil e em Portugal em especial; isso, em razão de pouco a pouco
a investigação em torno dos temas e problemas hegelianos constituir-se em
um campo comum aos estudiosos de Hegel em ambos os países. Infelizmente não temos como proceder à verificação dessa produção no que tange ao
seu confronto com a dos anos anteriores e, de certo modo, nem mesmo os
dados necessários para uma verificação completa do que se produziu entre
os falantes da Língua portuguesa acerca de Hegel e o hegelianismo nos 15
meses aqui levados em consideração. Por isso, concentrar-nos-emos unicamente nos dados cuja constatação e verificação pudemos levar a termo
entre janeiro de 2007 e maio de 2008.
Os textos sobre os quais tivemos conhecimento de sua edição ou
reedição conformam uma média razoável de aproximadamente 1 livro editado a cada 30 dias; isso para um total de 15 publicações nos 15 meses
relativos ao período em questão. Esse não nos parece um número pouco
expressivo; pois, levando-se em consideração principalmente a realidade
editorial do Brasil e as condições gerais de nossa educação filosófica (o que
também pode ser o caso de Portugal), a publicação de aproximadamente
um livro por mês sobre um filósofo como Hegel ou sobre a filosofia esposada
por ele deve ser motivo de celebração. Eis os dados: 4 traduções de obras
de Hegel, 4 traduções de comentadores (três do alemão e uma do francês),
3 comentários em língua portuguesa, 2 introduções gerais, 1 reconstrução
crítica e 1 volume coletivo (que de certo modo também não deixam de ser
comentários). Contudo, os dados acima não nos permitem ainda uma celebração propriamente dita do renascimento – em terras lusófonas – do espírito que habita a filosofia de Hegel; isso porque encontramos aí algo muito
desconfortável, a saber: a discrepância entre o número de comentários e o
de traduções das obras do próprio Hegel.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
I.Considerações preliminares:
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
Editorial
Num país ou numa língua onde poucas obras de Hegel foram traduzidas até agora, muitas das quais não contando ainda com o aval de
representantes importantes da comunidade científica – de certo modo extremamente reduzida –, os quais não apresentam ou não encontram espaço
para a apresentação de versões alternativas, não se pode louvar sem mais o
descompasso entre a proliferação de comentários (nacionais ou traduzidos)
e a baixa produtividade de traduções de textos canônicos do próprio filósofo
e da filosofia em questão. Embora na média seja normal que, em se tratando
de um filósofo de língua estrangeira, o número de comentários ultrapasse
substancialmente o número de traduções das obras comentadas, essa não
pode ser a situação ideal em uma língua na qual as obras fundamentais do
filósofo ainda não estejam vertidas. Trata-se de uma proporção de quase 5/1
apenas no período aqui investigado – o que poderia ser considerado como
algo normal em um país onde as obras completas do filósofo já tenham sido
publicadas e se busque traduzir textos raros ou produzir versões alternativas
–, com textos que buscam mais um confronto com Hegel do que sua leitura
compreensiva e sua compreensão sistemática; o que, não obstante, mostra
uma comunidade – direta ou indiretamente – já emancipada ou em vias de
emancipação em relação ao pensamento com o qual se confronta. Restaria
saber se tal confronto e emancipação assumem esse pensamento naquilo
que ele tem de fundamental, i.é, seu espírito vivo, ou se é justamente deste
espírito que pretendem se distinguir ou separar, mostrando-se alheios ao
mesmo e fazendo com que ele passe ao largo sem lhes revelar seu interior.
Esta é uma constatação hegeliana e uma exigência da própria filosofia de Hegel, o qual – já em 1801 – afirmara: “O espírito vivo que habita
em uma filosofia exige, para se desvelar, renascer através de um espírito
afim”; isso porque, “diante de um comportamento histórico que surge de
um interesse qualquer pelo conhecimento das opiniões, ele passa ao largo
como um fenômeno estranho e não revela seu interior”. Infelizmente, dos
15 textos aqui analisados, excetuando-se os textos de Hegel (4) e os que
(incluindo-se aí o volume coletivo) se propõem a comentar Hegel (5), (os
quais, por definição, devem se esforçar para se manterem no espírito da
filosofia especulativa tal como Hegel a concebera nos escritos por eles então
comentados), mais os que são meramente introdutórios (2) (e nem sempre
atingem o espírito acima aludido), os restantes (4) muito dificilmente parecem estar em condições de deixar o espírito do Idealismo especulativo neles
renascer, pois seu próprio ponto de partida não se constitui senão como uma
tomada de posição em face da filosofia hegeliana. A seguir, trataremos primeiramente das traduções de Hegel, depois das traduções de comentadores
e dos comentários publicados originalmente em Português; enfim, de duas
tentativas lusófonas de reconstrução que se querem no espírito hegeliano.
. G. W. F., HEGEL, Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie
(1801), in: Jenaer Schriften (1801-1807). Auf der Grundlage der Werke von 1832-1845 neu
edierte Ausgabe. Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1970 [TWA 2], p.16. De ora avante conforme se segue: Differenzschrift, p. 16.
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II. Sobre as traduções de Hegel I: As preleções sobre Arquitetura (2008), o Artigo sobre o Direito natural e Fé e Saber (1ª.
Edição em 2007)
Considerados textos de juventude, o chamado Naturrechtsaufsatz
[Artigo sobre o Direito natural] e Fé e Saber marcam um momento decisivo, senão o momento decisivo – do desenvolvimento filosófico de Hegel;
sua redação ocorre ainda nos quadros da colaboração mútua de Hegel e
Schelling – levada a cabo sobretudo no Jornal Crítico de Filosofia, publicado
entre janeiro de 1802 e maio de 1803 –, em torno da crítica das filosofias
da reflexão da subjetividade, sobretudo no que diz respeito às conseqüências céticas do idealismo transcendental – algo aliás muito bem lembrado
na Introdução de Oliver Tolle a Fé e Saber – e no que tange ao dualismo
daí advindo, em especial a recrudescência do antagonismo ou ao menos
da justaposição do empirismo e o formalismo, bem como sua conseqüente
renúncia ao pensamento especulativo propriamente dito. Talvez por isso, já
mesmo nesses textos, Hegel comece como que, senão a ensaiar algum tipo
de crítica mais explícita também a Schelling, a ficar mais comedido na defesa e no desenvolvimento das teses do amigo, bem como a vislumbrar certa
forma de mediação entre a esfera lógico-metafísica e a esfera filosófico-real.
Mediação essa que lhe exigirá sobretudo levar a sério o lado da diferença ou
da não-identidade – já indicada em 1801 – como um dos elementos constituintes essenciais do próprio Absoluto.
Publicado praticamente seis meses antes do Artigo sobre o Direito
natural, o ensaio Fé e Saber leva a termo a verificação da presumida vitória
. G. W. F., HEGEL, Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural, tradução e apresentação de Agemir Bavaresco e Sérgio B. Christino. São Paulo: Loyola, 2007. 134 p.
. G. W. F., HEGEL, Fé e Saber, introdução e tradução de Oliver Tolle. São Paulo: Hedra, 2007.
174 p.
. G. W. F., HEGEL, A Arquitetura, introdução e tradução de Oliver Tolle. São Paulo: Edusp,
2008. 206 p.
. Ver, O. TOLLE, Introdução. In: G. W. F., HEGEL, Fé e Saber, op. cit., p. 9-15.
. Enquanto Fé e Saber (Band II, Heft, 1) é publicado em meados de julho de 1802, o artigo
sobre o Direito natural vem à luz em duas partes, a primeira em meados de dezembro de 1802
(Band II, Heft, 2) e a segunda em maio de 1803 (Band II, Heft, 3). Ver, a respeito, HARTMUT
BUCHNER, Nachwort für Neuausgabe, in: Kritisches Journal der Philosophie, herausgegeben
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Em 2007 vieram à luz as versões brasileiras de Sobre as maneiras
científicas de tratar o direito natural (1802-1803), com tradução e apresentação de Agemir Bavaresco e Sérgio B. Christino, pelas Edições Loyola, e
Fé e Saber (1802), com tradução e introdução de Oliver Tolle, pela Editora Hedra. Também com tradução, introdução e notas de Oliver Tolle, pela
Edusp, veio à luz no primeiro semestre de 2008 as preleções concernentes
à Arquitetura, da primeira seção da terceira parte da Estética; intitulada A
Arquitetura, versão cujo mérito é jogar luz – em o considerando com exclusividade – sobre um momento fundamental da elaboração de Hegel no que
tange ao conceito da Arquitetura enquanto forma de arte e o começo mesmo
da Arte. Infelizmente, pelo momento, não poderemos aqui nos alongar em
torno dessa obra, tomá-la-emos em consideração em outra oportunidade.
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Editorial
da razão – transformada em simples Entendimento – sobre uma suposta
positividade da religião, essa deixada de lado em seu caráter ideal ou em
seu aspecto propriamente autêntico. O intento de Hegel parece ser o de
mostrar em que medida – para além de sua vitória de Pirro –, de ora avante,
a razão não pode senão “olhar para si, chegar ao seu conhecimento de si,
reconhecendo o seu não-ser ao pôr, já que é apenas entendimento, o que é
melhor do que ela em uma fé fora e acima de si, como um para-além (...),
e reconhecendo que ela se fez novamente criada de uma fé”. Para Hegel,
em última instância, especialmente nos casos de Kant, Jacobi e Fichte, isto
significa sobretudo que o dogmatismo do ser da metafísica de outrora foi refundido no dogmatismo do pensamento presumidamente crítico e, assim, a
metafísica da objetividade na metafísica da subjetividade, fazendo com que
o dogmatismo antigo – o da metafísica wolffiana – e a metafísica da reflexão se refundissem. Da mesma forma, pode-se dizer que, “por meio dessa
revolução completa da filosofia, primeiramente apenas com a cor do interior
ou da cultura nova e da moda”, de um lado, “a alma como coisa se transformou em Eu, como razão prática em absolutidade da personalidade e da
singularidade do sujeito”, enquanto o mundo, ao contrário, transformara-se
“no sistema de fenômenos ou afecções do sujeito e efetividades cridas”; de
outro lado, “como um objeto [Gegenstand] e o objeto [Objekt] absoluto da
razão”, o Absoluto fora por sua vez transformado “em um para-além absoluto do conhecimento racional”. De onde a necessidade da filosofia verdadeira, na medida em que ela surge desta formação [que a precede] e aniquila a
absolutidade das finitudes da mesma, se apresentar simultaneamente como
manifestação acabada; isso, de modo a “restabelecer (...) a idéia da absoluta liberdade” e “ressuscitar a suprema totalidade”. Essa a tarefa que daí em
diante – sobretudo em função do “sofrimento absoluto” ou da “sexta-feira
santa especulativa” – não será senão a da Filosofia especulativa ela mesma.
Por seu turno, publicado originalmente em duas partes – nos cadernos 2 e 3 do segundo tomo do Jornal Crítico de Filosofia, respectivamente
de dezembro de 1802 e maio de 180310 –, embora ainda se posicione como
que em favor da filosofia de Schelling e, por isso, com a pretensão de levar
a cabo a crítica das concepções empirista e formalista do Direito natural,
o chamado Naturrechtsaufsatz já marca um distanciamento importante de
Hegel em relação ao seu amigo de então11. Isto sobretudo pelo fato de aí,
von Friedrich Wilhelm Joseph Schelling und Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Band II, mit einem
Anhang herausgegeben von Hartmut Buchner, Hildeshein: Georg Olms, 1967, p. XXI.
. G. W. F., HEGEL, Fé e Saber, op. cit., p. 20.
. G. W. F., HEGEL, Fé e Saber, op. cit., p. 172. Alguns termos, nas citações deste período e do
seguinte, foram ligeiramente modificados. Ver o original: G. W. F., HEGEL, Glauben und Wissen (1802), in: Jenaer Schriften (1801-1807). Auf der Grundlage der Werke von 1832-1845
neu edierte Ausgabe. Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1970 [TWA 2], p.430 ss.
. G. W. F., HEGEL, Fé e Saber, op. cit., p. 174.
10. Veja-se acima, nota 6.
11. Para um resumo das discussões acerca desse ponto, veja-se HÖSLE, V. Hegels System. Der
Idealismus der Subjektivität und das Problem der Intersubjektivität, 2 Bde, Hamburg: Felix
Meiner, 1987, p. 51, p. 133-138. Na tradução brasileira (Loyola, 2007), p. 69, p. 160-165. Mais
adiante, também comentaremos esta edição.
Manuel Moreira da Silva
No que diz respeito às traduções propriamente ditas, pode-se dizer
que tanto o ensaio Fé e Saber quanto o Artigo sobre o Direito natural contextualizam adequadamente os textos traduzidos, apresentando-os segundo
um viés histórico-sistemático e fornecendo ao leitor uma chave de leitura
consentânea ao espírito dos textos e do universo ao qual será iniciado ou
– caso já tenha sido iniciado – ao qual dará prosseguimento à sua iniciação, isto é, ao universo do chamado Jovem Hegel19. Quanto aos critérios
de tradução, as duas versões se esforçam na tentativa de apresentar um
texto legível em Língua portuguesa, buscando aliar fidelidade conceitual,
transposição de estilo, semântica e, sobretudo, rigor metodológico; contudo,
levando-se em conta algumas opções de tradução ou de pontuação, as quais
– não obstante – não foram esclarecidas, bem como problemas de revisão
12. G. W. F., HEGEL, Über die wissenschaftlichen Behandlungsarten des naturrechts, seine
Stelle in der praktischen Philosophie und sein Verhältnis zu den positive Rechtswissenscgaften
(1802-1803), in: Jenaer Schriften (1801-1807). Auf der Grundlage der Werke von 1832-1845
neu edierte Ausgabe. Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1970 [TWA 2], p.503. Na edição brasileira, à p. 106. De ora avante, para ambas as
versões: Naturrechtsaufsatz, 503/106.
13. Differenzschrift, p. 107-113.
14. Naturrechtsaufsatz, 456ss/58ss.
15. Ver, HÖSLE, V. Hegels System, op. cit., p. 136; ed. bras., p. 163.
16. A. BAVARESCO.; S. B. CHRISTINO, Um direito de natureza ética e o método especulativo
hegeliano. In: G. W. F., HEGEL, Sobre as maneiras...., op. cit., p. 7-34; aqui, p. 9-10, p. 31.
17. Differenzschrift, p. 96.
18. Naturrechtsaufsatz, 456ss/58ss.
19. Lembramos ao leitor que textos de juventude, como A diferença dos sistemas de Fichte e
Schelling (1801), Como o senso comum compreende a filosofia (1802), O sistema da vida ética
(1802), já se encontram vertidos para o Português, seja do Brasil ou de Portugal, respectivamente em 2003, 1995 e 1991.
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pela primeira vez, Hegel reconhecer que “o espírito é superior à natureza”12
e que, portanto, para além de um projeto de sistema – como o esboçado em
1801 no Differenzschrift13 – cujo momento sintético se daria no âmbito da
filosofia da religião e da arte enquanto retorno à Idéia pura e como organização da intuição do espírito, caberia ao próprio espírito a função sintética da
configuração de um terceiro momento do sistema14, compreendendo assim
também a arte e a religião anteriormente concebidas em um quarto momento como tal distinto do terceiro15. Esse ponto, contudo, não é abordado
pelos tradutores em sua apresentação do texto ora comentado; os quais, no
entanto, explicitam de modo bastante interessante a emergência do método
especulativo hegeliano no âmbito do Direito natural, então concebido enquanto um Direito de natureza ética, – desse modo, na medida em que teria
por norte já aí (neste Direito de natureza ética) a suprassunção das contradições, o método especulativo também como que anteciparia a matriz filosófica da intersubjetividade16. De onde o Artigo não poder limitar-se a refutar o
empirismo e o formalismo ou, neste último caso, não só Kant e Fichte, mas
de certo modo – ainda que muito timidamente – também Schelling; é o que
nos mostra sobretudo esse que pode ser visto como desdobramento da tese
do Absoluto como a identidade da identidade e da não-identidade17 nessa
outra: a unidade da indiferença e da relação, ou melhor, a unidade absoluta
da indiferença e da identidade relativa18.
Editorial
técnica e gramatical, certos termos, conceitos e mesmo construções poderiam ter sido apresentados de forma a melhor exprimir o que para Hegel,
precisamente em tal ou tal momento, estava em jogo. Mas isto, longe de ser
uma espécie de advertência, tem aqui o caráter de um convite ao debate sobre a necessidade de os hegelianos lusófonos se articularem em torno de um
projeto comum para a tradução concertada do conjunto da Obra de Hegel.
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III.Sobre as traduções de Hegel II:
A reedição da Fenomenologia do Espírito (5ª. Edição em 2008)
Ponto de partida fundamental e marco importante na literatura hegeliana mais recente em Língua portuguesa, a Fenomenologia do Espírito
chega agora em 2008 à sua 5ª. Edição20. Em tradução de Paulo Meneses,
com a colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado, a Fenomenologia do Espírito mantém-se inalterada desde sua 2ª. Edição (2003),
quando foram introduzidas várias alterações; em especial: o volume único,
a publicação em parceria (da Editora Vozes e a Editora da Universidade São
Francisco) e a revisão completa do texto em Português. Fato curioso, se
contarmos as cinco reimpressões da 1ª. Edição (essa em dois volumes), de
1992, a 2. Edição (revista) pode ser tomada como a 7ª. Edição (o que foi
inclusive grafado na ficha catalográfica dessa edição); de onde a 5ª. Edição
poder ser considerada na verdade como a 11ª. Edição. O que, de 1992 a
2008, apresenta a marca surpreendente de uma edição a cada 18 meses
aproximadamente.
Não obstante, nos reportando à nota do tradutor à 2ª. Edição (corrigida) de 2003, sobretudo quando ele aí afirma tratar-se quase de uma
nova tradução, com o original alemão cotejado e as versões francesas de
Jean-Pierre Lefebvre (Aubier, 1991) e Pierre-Jean Labarrière (PUF, 1993),
além das “traduções preferidas”, a inglesa de Miller (Oxford University Press,
1977) e a italiana de Negri (La Nuova Italia, Firenze, 1973)21, - parece-nos
que – salvo as indicações expressas do tradutor quanto às suas opções
terminológicas –, a título de sugestão, alguns melhoramentos de ordem sistemático-especulativa se fazem necessários. Referimo-nos em geral à tradução de ‘in sich’ em diversos contextos por apenas ‘em si’, quando Hegel
distingue especulativamente essas expressões: a primeira indicando a Coisa
mesma enquanto ainda não se manifestando a nós ou à consciência, e a
segunda exprimindo justamente o fato de algo ser ‘em si’ (an sich) tão somente na medida em que é ‘para nós’ (für uns); o mesmo ocorrendo com
20. G. W. F., HEGEL, Fenomenologia do Espírito, tradução de Paulo Meneses, com colaboração
de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado, – 5. Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes: Bragança Paulista: USF, 2008. Do original: Phänomenologie des Geistes (1807), neu hrsg. von Hans-Friedrich Wessels u. Heirinch Clairmont. Mit e. Einleitung von Wolfgang Bonsiepen. Hamburg: Meiner, 1988. Texto citado de ora avante, conforme o caso, em conjunto com a edição brasileira,
segundo o exemplo: PhG, § 1 (p. 3-4), onde ‚§‘ reenvia à edição brasileira e os números das
páginas, entre parêntesis, reenviam ao original alemão.
21. P. MENESES, Nota do tradutor, in: G. W. F., HEGEL, Fenomenologia do Espírito, tradução
de Paulo Meneses, com colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado, – 7. Ed.
Rev. [ou 2. Ed., 2003] – Petrópolis, RJ: Vozes: Bragança Paulista: USF, 2002, p. 9.
10
Manuel Moreira da Silva
Neste último caso, ao fim do primeiro parágrafo em que trata da
consciência infeliz, Hegel reporta-se diretamente ao início do mesmo, no
qual está em jogo – para o filósofo ou para nós – o fato que “dieses unglückliche, in sich entzweite Bewusstsein muss also, weil dieser Widerspruch
seines Wesens sich Ein Bewusstsein ist, in dem einen Bewusstsein immer
auch”. Isto é, que “esta consciência infeliz, cindida dentro de si, pois essa
contradição de sua essência é a si Uma consciência, tem que ter numa das
consciências sempre também a outra (...)” e não que “essa consciência infeliz, cindida dentro de si, já que essa contradição de sua essência é, para
ela, uma consciência, deve ter numa consciência sempre também a outra
(...)”. Embora justificável, a opção seguida pelo tradutor (ou melhor, pelos
tradutores) deixa de lado o problema da essência mesma e de como, em
seu processo de manifestação na (ou à) consciência, ela – enquanto algo
objetivo (irreflexivo, um mero ser em si e por si) – cede lugar ao seu vira-ser essência consciente de si mesma como essência, reduzindo-a a uma
determinação entre outras no movimento de figuração espácio-temporal do
espírito que aparece. Talvez por isso, mas em vista de suas opções, os tradutores brasileiros da Fenomenologia também não assumem as distinções
de Labarrière e Jarczyk entre os termos ‘Autoconsciência’ [Selbstbewusstsein] e ‘Consciência-de-si’ ou ‘Consciência a propósito de si’ [Bewusstsein
seiner, Bewusstsein von sich], permanecendo por conseguinte – em sua
interpretação e tradução dos termos referidos unicamente por ‘Consciênciade-si’ – naquilo que os tradutores franceses designaram como “uma compreensão de si a partir de um ponto de exterioridade”, fazendo com que
na versão Meneses, vertido por ‘Consciência-de-si’, ‘Selbstbewusstsein’ não
diga essencialmente “a reduplicação interior e imediata do Eu; o que – para
Labarrière e Jarczyk – quer significar o neologismo ‘autoconsciência’”26 . Ainda que, em certos contextos, Hegel não se refira a tal significado, mas sim
ao de ‘Consciência-de-si’, essas distinções parecem-nos não só necessárias
e não representam apenas um progresso nas investigações em torno da
22. G. W. F. HEGEL, Phänomenologie des Geistes (1807), op. cit., p. 259.
23. G. W. F., HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 275.
24. G. W. F. HEGEL, Phänomenologie des Geistes (1807), op. cit., p. 144.
25. G. W. F., HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 159.
26. G. W. F., HEGEL, Phénoménologie de L’Esprit I, traduction et notes par Gwendoline Jarczyk et Pierre-Jean Labarrière. Paris: Gallimard, 1993, p. 694, nota 1.
11
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‘sich’, no caso, quando aparece sozinho, como em: “Die Individualität, welche sich an und für sich selbst reel ist”22 (vertido por ‘para si’ em: “A individualidade que é para si real em si e para si mesma”23) e em “(...) aber es für
sich ist sich noch nicht dieses Wesen selbst, noch nicht die Einheit beider”24
(praticamente sumindo na versão brasileira: “Contudo, para si, ainda não é
a essência mesma; ainda não é a unidade das duas”25. Esse ‘sich’, sozinho,
pode ser traduzido por ‘a si’, significando um momento do processo de determinação, ou mesmo uma determinidade, que – embora já não seja mais
in sich ou an sich (dentro de si ou em si) – ainda não se tornara für sich
(para si); de onde, nos casos acima, poder-se verter: (1) “A individualidade
que é a si efetiva em si e para si mesma” e (2) “(...) mas, para si, ela ainda
não é a si a essência mesma, ainda não é a unidade de ambas”.
Editorial
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Fenomenologia do Espírito, mas também se mostram como fundamentais
para a auto-compreensão de nós mesmos, pelo menos na medida em que
ainda hoje devemos – como sempre – passar pelo caminho da experiência
da consciência a fim de nos despojarmos de nossas aparências contingentes
e nos reconhecermos como Essência autoconsciente ou Conceito livre em si
e para si mesmo.
Embora isso não deponha contra a legibilidade e a plasticidade da
versão brasileira da Fenomenologia do Espírito, as constatações elencadas
acima nos indicam a necessidade de se investir em versões alternativas
– como já é de praxe em outros países – enquanto forma adequada de se
promover o debate e a interpretação em ato das obras filosóficas. Do ponto
de vista do público leitor, esse tipo de investimento é até mesmo exigido;
sobretudo quando – no caso da Fenomenologia do Espírito – o público leitor
mostra-se hoje tão multifacetado que em boa parte já não se reconhece
mais naqueles princípios que foram os orientadores da primeira edição brasileira, nos já distantes idos de 1992, da obra considerada a mais famosa de
Hegel. O que pode ser, enfim, confirmado mediante uma simples verificação
de teses, dissertações, livros e artigos produzidos em Português; os quais,
em boa parte, vêm se utilizando da Fenomenologia em pelo menos duas ou
mais versões.
IV. Sobre as traduções de comentários a Hegel:
Em especial de O sistema de Hegel e Hegel e o hegelianismo
Publicaram-se quatro traduções de comentários sobre a obra de Hegel e o hegelianismo no período aqui considerado; entretanto, por motivo
de espaço tomaremos em questão apenas os textos mais gerais, deixando
para outra oportunidade os que tocam em aspectos parciais do Sistema hegeliano. Assim, nos limitaremos a uma rápida indicação destes últimos – no
caso, Sofrimento de indeterminação, de Axel Honneth27, e Hegel e o Estado,
de Franz Rosenzweig28 –, passando imediatamente à discussão de O sistema
de Hegel, de Vittorio Hösle29 , e Hegel e o hegelianismo, de Jean-François
Kervégan30 . Pode-se dizer que os textos de Honneth e Rosenzweig se completam; pois, se um pretende reatualizar – como que empiricamente – a Filosofia do Direito, o outro reconstrói criticamente o processo de sua gênese,
mas objetando justamente seu ponto de partida idealístico-especulativo.
Em Sofrimento de indeterminação, Honneth aborda o problema de
uma fundamentação normativa da Teoria da Justiça nos quadros da impossibilidade da dedução de princípios abstratos e universalistas sem nenhuma
vinculação a contextos práticos determinados; vale dizer, sem levar em con27. A. HONNETH, Sofrimento de indeterminação: Uma reatualização da Filosofia do Direito de
Hegel. Trad. Rúrion Soares Melo. São Paulo: Singular, 2007. 145 p.
28. F. ROSENZWEIG, Hegel e o Estado. São Paulo: Perspectiva, 2008. 656 p.
29. V. HÖSLE, O sistema de Hegel: o idealismo da subjetividade e o problema da intersubjetividade. Trad. Antonio Celiomar Pinto de Lima. São Paulo: Loyola, 2007. 802 p.
30. J.-F. KERVÉGAN, Hegel e o hegelianismo. Trad. Mariana Paolozzi Sérvulo da Cunha. São
Paulo: Loyola, 2008. 127 p.
12
Manuel Moreira da Silva
Apesar dos diversos méritos dessa obra e das manifestações de apreço das quais ela e seu autor se fizeram dignos, parte-se aí de suposições
completamente outras que as de Hegel, a começar por tomá-lo como filósofo
transcendental e, então, como idealista objetivo. Isso não quer dizer que a
leitura de Hösle não seja correta naquilo que ela se propõe; contudo, embora se possa verificar o Sistema de Hegel como uma filosofia transcendental
absoluta e, assim, enquanto uma sorte de Ontologia transcendental ou um
Idealismo objetivo, também não se pode negar que isto não é senão um
momento, um nível ou um aspecto do Sistema da Filosofia tal como este é
concebido por Hegel; o que, em sendo absolutizado, termina por amputar
justamente aquele momento, nível ou aspecto mais abrangente e como tal
reconhecido enquanto distintivo da própria filosofia hegeliana, esse que Hegel designara como o elemento especulativo. Quanto a isso – embora tão
cioso dos desenvolvimentos sistemáticos de Hegel anteriores a 1830 –, Hösle negligencia por exemplo o texto da Enciclopédia de 1817, precisamente a
anotação ao § 17 dessa obra31, na qual – como que a título de um novo programa – Hegel fala explicitamente dos três níveis ou momentos sistemáticos
da Lógica, ou ainda, de modo mais rigoroso, de sua tríplice determinação
enquanto Filosofia especulativa pura; e isso na esfera do próprio Especula31. G. W. F. HEGEL, Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1817).
In: G. W. F. HEGEL, Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse und andere Schriften aus der Heidelberg Zeit, neue herausgegeben von Hermann Glockner, Heidelberg: Frommanns Verlag, 1956, p. 37-38. Texto citado de ora avante conforme se segue: E.,
1817, § 17, A. [onde ‚A‘ indica as Anmerkungen – anotações – de Hegel].
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
ta as conseqüências de uma realização insuficiente da vontade livre e sem
assumir a tarefa de superar os limites institucionais meramente formais de
relações intersubjetivas aquém da esfera da eticidade, – o que não significa
que o autor tão somente reafirme essa instância fundamental da Filosofia do
Direito de Hegel, a qual na verdade também é criticada em função de uma
suposta superinstitucionalização. Por seu turno, em Hegel e o Estado [obra
clássica originalmente escrita em 1912 (e apresentada como tese doutoral), mas publicada apenas em 1920, portanto, depois da I Guerra Mundial,
como que – aos olhos do autor – após a confirmação de suas reservas em
relação à filosofia da história de Hegel], Rosenzweig busca reconstruir a gênese histórica do conceito hegeliano do Estado, dando ênfase justamente a
certos problemas de detalhe, sobretudo os de cunho político-institucional,
nos quais opções teóricas parecem decididas em confronto com questões
políticas circunstanciais, das quais o filósofo tem que se despojar – ainda
que gradualmente – para então se concentrar no que realmente lhe importa,
o conteúdo propriamente especulativo e sua coerência sistemática. Neste
sentido, relembrando o dito acima, na medida em que tanto Honneth (com
a sua reatualização), quanto Rosenzweig (com a sua reconstrução) se posicionam de modo crítico em relação à Filosofia do Direito e seu ponto de partida idealístico-especulativo, poderíamos aí também mencionar O sistema
de Hegel, de Hösle, cuja tese principal é justamente que, entre a Lógica e a
Filosofia real, não há uma relação contínua de correspondência e de principiação, havendo assim, neste caso, a necessidade de sua crítica imanente e
sua renovação idealístico-objetiva.
Editorial
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
tivo puro, também negligenciado por Hösle justamente em função de sua
redução ao Transcendental e ao Idealístico-objetivo. Redução essa justificada no sentido em que afeta, supostamente, “a variante especificamente
hegeliana do Idealismo absoluto, que pode ser designada como Idealismo
absoluto da Subjetividade”32.
Esta variante não se impõe senão na medida em que o Lógico não
pode ser reduzido à sua simples forma objetiva (meramente a priori), essa
mediante a qual ele se apresenta para nós em si e para si. Desse modo,
a variante especificamente hegeliana do Idealismo absoluto compreende o
próprio conteúdo lógico-efetivo cujas determinações são as puras formasdo-pensar que ele próprio põe e assume como as suas, enquanto as mesmas são consideradas em si e para si, em si e para si mesmas33. Em sendo
recusada e assim levando consigo o conjunto da concepção rigorosa de um
Idealismo especulativo, essa variante impõe a Hösle – tal como antes a
Rosenkranz, a quem na verdade ele retoma – a recusa da determinaçãode-conceito da Objetividade34, isto é, o Conceito objetivo e seus momentos
particulares – o Mecanismo, o Quimismo e a Teleologia –, e a Idéia da Vida
enquanto determinações da esfera da Lógica e, sobretudo, o modo como
elas se desenvolvem ou se efetivam no âmbito da Filosofia do Espírito; determinações essas sem as quais, por exemplo, dificilmente se poderia levar
a cabo a “negação que, na elevação do espírito a Deus, é exercida contra as
coisas contingentes do mundo, como contra a própria subjetividade”35. De
onde, mais que levar à consumação o programa de Fichte, como quer Hösle,
Hegel retomar as instâncias mais profundas do Neoplatonismo e da Mística
alemã, algo já constatável – inclusive por Rosenkranz36 –, desde os projetos
sistemáticos de Iena.
Finalmente, à diferença de O sistema de Hegel, em seu Hegel e o
hegelianismo, Kervégan limita-se a uma sucinta apresentação de Hegel.
Buscando posicionar-se para além de certas posturas consideradas como
“alguns lugares comuns” que dominam a percepção disso que – muito vagamente – ele denomina ‘hegelianismo’ –, Kervégan passa em revista o período da formação de Hegel e as articulações fundamentais da Fenomenologia
do Espírito e da Ciência da Lógica, bem como da Filosofia do Direito e da
Filosofia do Espírito absoluto. Interessante que, se levarmos a sério a crítica
dos chamados lugares comuns detectados pelo autor – a saber: (1) a concepção da dialética como comportando os momentos da tese, da antítese
32. V. HÖSLE, O sistema de Hegel, op. cit., p. 24.
33. PhG, § 25 (p. 18); E., 1817, § 17, §§ 109-111. Confronte-se com: G. W. F. HEGEL,
Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830), trad. Paulo Meneses e Pe. José
Machado, São Paulo: Loyola, 1995, I, p. 292-295, de ora avante. E., 1830, §§ 160-162.
34. V. HÖSLE, O sistema de Hegel, op. cit., p. 271-282.
35. E., 1830, § 204 A. Para uma verificação desse ponto, veja-se: G. W. F. HEGEL, Leçons sur
lês preives de l’existence de Dieu, traduction, présentation et notes para Jean-Marie Lardic.
Paris: Aubier, 1994, p. 359-379 [edição crítica estabelecida a partir da edição Glockner, da
qual também se utiliza a paginação].
36. K. ROSENKRANZ, Hegels Leben. Berlin: Dunckler und Humblot: 1844, p. 102 ss. Versão
eletrônica: <http://www.google.com.br/books?id=9GkRAAAAYAAJ&pg=PR8&dq=Hegels+Lebe
n#PPA102,M1>.
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Manuel Moreira da Silva
V. Comentários a Hegel e sua obra, escritos originalmente em
Língua portuguesa I: Sobre o Sistema em geral e a Fenomenologia do Espírito em especial
Os estudiosos brasileiros de Hegel não deixaram passar em branco as
comemorações dos 200 anos da publicação da Fenomenologia do Espírito,
ocorrida efetivamente em fins de abril e inícios de maio de 1807, mas tendo
seus primeiros exemplares já impressos em fins de março e inícios de abril
desse ano. Entre nós, de janeiro de 2007 a maio de 2008, foram publicados
três comentários à Fenomenologia, sendo um volume coletivo – com trabalhos de renomados estudiosos do Brasil e do exterior – um comentário
ao conjunto da obra e um comentário à Seção Consciência; além disso,
apareceram também duas edições menores, introdutórias à filosofia de Hegel. Não discutiremos aqui estas últimas, limitar-nos-emos a indicá-las: (1)
Compreender Hegel, 4a edição em 2007, de Francisco Nóbrega37; (2) Hegel,
com autoria de Olavo de Carvalho38. Passemos então aos comentários à Fenomenologia.
Fruto de um congresso realizado na primeira semana de dezembro
de 2006, em Fortaleza, Ceará, com a organização de Eduardo Chagas, Konrad Utz e James Wilson de Oliveira, veio a lume em 2007 a obra intitulada
Comemoração aos 200 anos da “Fenomenologia do Espírito” de Hegel39.
O importante dessa obra é a confrontação consciente e equilibrada de interpretações às vezes bastante divergentes, mas também de certo modo
complementares, da Fenomenologia do Espírito; o que mostra o vigor dos
estudos hegelianos mais recentes em nosso país e a maturidade filosófica
alcançada pela comunidade que se debruça sobre o Sistema de Hegel e seus
desenvolvimentos os mais cruciais. Pode-se dizer que o volume em questão,
ao mesmo tempo em que celebra a grandeza da Fenomenologia, não se furta
a apontar de modo conseqüente seus limites e mesmo suas contradições;
37. F. P. NÓBREGA. Compreender Hegel. – 4. ed. – Petrópolis: Vozes, 2007. 80 p.
38. O. CARVALHO, Hegel. Rio de Janeiro. E Realizações, 2008. 72 p.
39. E. F. CHAGAS; K. UTZ; J. W. J. OLIVEIRA, (Org.). Comemoração aos 200 anos da “Fenomenologia do Espírito” de Hegel. Fortaleza: UFC edições, 2007. 441 p.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
e da síntese, (2) a fórmula “[tudo] o que é real é racional”, (3) a dialética
do senhor e do escravo, (4) a astúcia da razão e, enfim, (5) o fim da história –, o leitor sensato seria obrigado a aplicar o procedimento descritivo
utilizado pelo autor à própria percepção deste acerca do hegelianismo. Da
mesma forma, portanto, poderíamos considerar lugares comuns (digamos
alternativos): (1) a consideração de Hegel como o Aristóteles moderno, (2)
a inconsciência de Hegel quanto ao projeto especulativo da Fenomenologia
do Espírito no início de sua redação, (3) a Lógica especulativa em geral
como “ontologia conceitual” e em especial enquanto dialética, (4) a rejeição
hegeliana da teologia negativa, (5) o Idealismo absoluto enquanto filosofia
da consciência, etc. Não obstante, o texto em questão realiza um balanço
importante e mesmo equilibrado das principais instâncias da elaboração hegeliana da Idéia da Filosofia.
Editorial
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
algo já constatado pelo próprio Hegel, mas que, no âmbito das vicissitudes
de sua obra, vem dividindo seus intérpretes desde a própria época de Hegel.
Além dos organizadores, o volume em tela ainda conta, entre outros, com
os seguintes colaboradores: Alfredo Moraes, Anton F. Koch, Christian Iber,
Leonardo Vieira, Manfredo Oliveira, Manuel Moreira e Marcelo Aquino.
O segundo comentário é O trabalho do negativo, com autoria José
Henrique Santos40. Obra cujo aspecto mais importante parece-nos a decisão
de correr o risco “de querer dizer o que se deve calar”; por conseguinte, sua
lúcida compreensão dos limites do tempo presente e, para além deste, a da
necessidade de retomar e desenvolver, ou rememorar, o caminho da experiência do Absoluto na disciplina do conceito. Assim, fiel ao caminho rememorado, tanto quanto lhe é possível, o autor se põe a desenvolver – segundo
ele mesmo, numa série de círculos concêntricos, indo do menor ao de maior
diâmetro – o que chama a dialética do objeto (capítulo I ao III da Fenomenologia), passando à dialética do sujeito, do eu que é um nós (capítulos IV,
V e VI) e, concluindo seu movimento na dialética do absoluto (capítulos VII
e VIII), cada uma comportando círculos menores. Por fim, há que se ter em
conta que o autor concebe tais círculos apenas como fenomenologias de
valor e peso desiguais, mas fenomenologias, mediante as quais o espírito se
eleva ao “infinito posto no finito”, a partir do qual ele “pode então confrontar-se com o espírito divino”, considerado como “o nec plus ultra”41.
Enfim, o terceiro comentário como que se desenvolve no mesmo
patamar que O trabalho do negativo; porém, ao contrário deste, posicionando-se criticamente em relação a Hegel e à sua descrição e interpretação das
experiências da consciência. Intitulado A desdita do discurso, de autoria de
Leonardo Vieira42, o comentário ora apresentado busca articular linguagem
e discurso a partir da convergência entre (a) um estudo sistemático sobre a
Fenomenologia do Espírito de Hegel, sobretudo da seção Consciência e (b)
a magnitude alcançada pelas investigações atuais sobre os temas referidos.
Entretanto, o interesse do autor consiste, mais especificamente, no confronto das teses de Hegel e as de Ken Wilber em torno do desenvolvimento dos
níveis de consciência e sua relação com a linguagem, pressupondo como
que uma homologia entre os níveis de consciência e um uso específico da
linguagem, que é assim associado a cada um desses níveis. Na verdade,
pode-se dizer que o estudo em questão pretende uma espécie de verificação
entre a pretensão hegeliana e a sua realização efetiva no que diz respeito
aos resultados a que Hegel chegara – enquanto consciência que descreve
e interpreta as experiências da consciência natural – em sua investigação
sobre a correspondência entre linguagem e discurso em cada um dos níveis
de consciência por ele tematizados.
Se Hegel investiga os discursos em jogo em cada um dos níveis de
consciência em questão para o autor, bem como sua correção pelo resul40. J. H. SANTOS. O trabalho do negativo. Ensaios sobre a Fenomenologia do Espírito. São
Paulo: Loyola, 2008. 356 p.
41. J. H. SANTOS. O trabalho do negativo, op. cit., p. 68.
42. L. A. VIEIRA, A desdita do discurso, São Paulo: Loyola, 2008. 142 p.
16
Manuel Moreira da Silva
Sobre esse ponto, o autor afirma que “a consciência natural consegue
no saber absoluto apoderar-se do saber e, portanto, do nosso discurso”43,
isto é, do discurso do filósofo acerca de sua experiência. Parece-nos que há
aí um deslocamento sobretudo pelo fato de, segundo Hegel, enquanto se
restringe ao momento da imediatez, a consciência natural jamais poderá
atingir o Saber absoluto, pois este só é atingido na medida em que a consciência se desfaz justamente de seu aspecto natural, determinado, particular,
e se eleva à universalidade, em seus progressivos níveis de consumação
enquanto essência consciente. Pois bem, esse deslocamento parece emergir
justamente da interpretação do autor em relação às figuras da consciência tomando-as – a partir de Ken Wilber44 – como estações e, por isso, em
última instância, como que formalizando e naturalizando tais figuras (pensando-as em conjunto ou reduzindo-as ao chamado eu formal-reflexivo e
ao eu vinculado à lógica de sistema de rede tematizados originalmente por
Wilber), quando, na verdade, estaria em jogo para Hegel precisamente a
fluidificação e a dissolução daquelas figuras e, se fosse o caso, destes eus45.
Exemplo disso é que, quando, no § 77 da Fenomenologia, Hegel fala da série de figuras como estações pré-estabelecidas pela natureza da alma, ele
quer mostrar justamente que não é meramente a consciência natural, mas o
próprio espírito que, para se reconciliar consigo mesmo, deverá purificar-se
precisamente de tais figuras (tanto as da consciência ou do espírito enquanto ele aparece, quanto as do espírito ele mesmo enquanto mundo efetivo).
Sendo que de tal reconciliação resultará precisamente a liberação do espírito
em relação à “diferença não-superada da consciência”, quando, ganhando o
conceito, seus momentos não serão mais “figuras determinadas da consciência”, mas conceitos determinados, e “o movimento orgânico fundado den
43. L. A. VIEIRA, A desdita do discurso, op. cit., p. 135 ss.; ver também, p. 137.
44. L. A. VIEIRA, A desdita do discurso, op. cit., p. 15 ss.
45. A título de exemplo, veja-se, PhG, §§ 32-34, §§ 77-80 (p. 25-27, p. 60-63).
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
tado da experiência levada a cabo em cada nível de consciência considerado; o autor ele mesmo, por sua vez, pretende, senão corrigir os resultados
da “experiência da consciência” que em Hegel emerge, pelo menos indicar
que uma pretensa perfeita adequação entre saber e linguagem destina-se
francamente a ser refutada. Mas essa refutação de Hegel pelo nosso autor
não ocorre na obra aqui comentada; inclusive porque isso não só seria algo
unilateral, como também o material investigado – uma pequena fração do
que na Fenomenologia está em jogo para Hegel – não é capaz de dar consistência a conclusões que demonstrem seja a insuficiência do tratamento
hegeliano das figuras da consciência nessa obra, seja mais propriamente da
concepção hegeliana de uma “ciência da experiência da consciência” ou de
uma “ciência da fenomenologia do espírito”. Acrescente-se a isso o fato de o
autor passar diretamente das figuras em jogo na seção Consciência, por ele
tratadas, para uma discussão sobre o Saber absoluto como a última estação
da consciência natural; o que, de certo modo, parece-nos um deslocamento
da concepção de Hegel sobre o que seja ‘consciência natural’, ‘Saber absoluto’, ‘estação’, etc.
Editorial
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
tro de si mesmo”46; isso de modo que, atingido o Saber absoluto, a própria
Fenomenologia terá que ser deixada para trás.
Enfim, embora o autor reconheça a limitação de seu trabalho à seção
Consciência, o que contribuíra para a exterioridade e a generalidade das
conclusões quanto ao Saber absoluto, ele postula que sua afirmação em
torno da presumida convergência cognitiva e discursiva entre a posição da
consciência natural e a do filósofo no Saber absoluto é pelo menos plausível.
Aqui, ele como que identifica a consciência natural qua consciência natural
e a filosófica (já instalada no Saber absoluto), dando a entender que o que
diferenciava uma da outra era apenas o grau de seu saber e não a inverdade
do saber de uma em face à verdade absoluta do da outra; assim, o autor
parece indicar que, mesmo em alcançando o Saber absoluto, a consciência
não deixa de ser natural. O que justificaria suas interrogações acerca de o
Saber absoluto ser o fim de certo tipo de ilusão ou o fim de todas as ilusões,
bem como de a desdita do discurso encontrar aí o seu termo final; interrogações estas cujo ponto de partida preciso é a pressuposição da tese oposta
de Plotino e Shamkara em torno da linguagem e do discurso como formas
de não-saber.
Por fim, em vista destes se fixarem justamente na consciência natural, reduzindo a ela toda forma de linguagem e discurso, bem como de exigirem sua dissolução para então se elevar ao saber propriamente dito, talvez
fosse o caso de o autor já partir explicitamente de uma crítica à concepção
hegeliana do Saber absoluto. Para isso, ele haveria de levar em conta que a
Fenomenologia do Espírito investiga experiências circunscritas ao fenomênico (as figuras da consciência) e ao fenomenológico propriamente dito (as
figuras do espírito), mas não já experiências situadas além da esfera fenomenológica (as quais, em sua Lógica e em sua Filosofia da Religião, Hegel
concebera sob o Especulativo puro ou o Místico). Estas, ao invés de aquém
de um êxtase como o de Plotino e Shamkara, são antes desenvolvimentos
do mesmo – enquanto conceito imediato – no seio do próprio Absoluto.
VI. Comentários a Hegel e sua obra, escritos originalmente em
Língua portuguesa II: Sobre o Sistema em geral e a Ciência
da Lógica em particular
Finalizando nossa descrição dos textos publicados em torno de Hegel
e sua filosofia entre janeiro de 2007 e maio de 2008, passamos agora à discussão de Lógica e Realidade em Hegel, de autoria de Diogo Falcão Ferrer47
e de Depois de Hegel, de Carlos Cirne-Lima48. Ambos os textos tratam da
relação entre a Lógica e a Realidade (esta compreendida aqui em seu sentido amplo), com a diferença fundamental que, para Cirne-Lima – pelo menos
46. PhG, § 805 (p. 528-529).
47. D. F. FERRER, Lógica e Realidade em Hegel. A Ciência da Lógica e o problema da fundamentação do Sistema. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007. 615 p.
48. C. CIRNE-LIMA, Depois de Hegel. Caxias do Sul: Educs, 2006. 183 p. [lançado e distribuído em 2007].
18
Manuel Moreira da Silva
em parte, concordando com V. Hösle –, Hegel teria hesitado e mesmo se
contradito mais de uma vez no tocante ao que Cirne-Lima designa ‘dialética
descendente’. Por seu turno, Diogo Ferrer propõe-se a um trabalho compreensivo, cujo ponto fulcral consiste na busca de uma justificação teórica,
lingüística e histórico-filosófica para a identificação proposta por Hegel entre
essência e negatividade, que, aos olhos do autor, se mostra fundamental
para se pensar a relação entre a essência e a existência, isto é, a própria
concretização da primeira49. Comecemos então por esse aspecto.
49. D. F. FERRER, Lógica e Realidade em Hegel, op. cit., p. 16-17.
50. D. F. FERRER, Lógica e Realidade em Hegel, op. cit., p. 14.
51. D. F. FERRER, Lógica e Realidade em Hegel, op. cit., p. 534-551 ss.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Diogo Ferrer parte de um problema até certo ponto central para toda
a filosofia, em todos os tempos: “a questão sobre o que é pensar e como se
relaciona ele com a realidade”. Trata-se de um complexo de questões que
o autor põe-se a si próprio, identificando na filosofia sistemática de Hegel
a concepção que de modo mais completo e influente buscou dar-lhes uma
solução satisfatória e consistente segundo a Coisa mesma; de onde o autor
propor-se justamente a reconstituir o projeto hegeliano, reconhecendo-o
como um pensamento que permanece vivo e atual, sobretudo em função
de sua marca dialética, seu profundo realismo e, pode-se dizer, a sua abertura ao momento particular e contingente50, – na esfera do qual o conceito
se determina, aí assumindo e mantendo suas próprias determinações, de
modo a que então retorne dentro de si mesmo. Infelizmente não poderemos
aqui aprofundar-nos nas articulações principais do estudo em questão, mas
registre-se o fato de Diogo Ferrer não partir dos lugares comuns que, alternativamente ou não, mais impedem do que promovem a compreensão adequada de Hegel e sua elaboração do Sistema da Filosofia; este que, em não
sendo senão a própria ampliação do método especulativo, é levado a sério
tanto no âmbito das determinações do conceito quanto em sua articulação
no interior do Sistema. O que, apesar de alguns problemas terminológicos,
sobretudo quanto ao termo ‘Aufhebung’, e certas opções interpretativas e
seus desdobramentos na terminologia, se comprova de modo especial na
discussão a respeito dos silogismos da Filosofia, tematizados ao fim das
edições da Enciclopédia de 1817 e da de 1830; discussão essa na qual o
autor não só passa em revista as elaborações enciclopédicas de 1817, 1827
e 1830 concernentes ao “retorno a si da idéia”, mas também busca esclarecer, a partir de seu ponto de vista, certas dificuldades e mesmo algumas
objeções levantadas contra Hegel em torno dessa matéria, em especial, supostas incongruências presentes na exposição hegeliana dos silogismos da
Filosofia51 . Enfim, pode-se dizer que, embora se limitando ao problema da
fundamentação do Sistema, por conseguinte, atendo-se à Lógica apenas enquanto Ciência primeira, o mérito principal de Lógica e Realidade em Hegel
é justamente levar a termo uma reconstituição do próprio Sistema de Hegel,
a qual se mostra distinta em relação àquelas de V. Hösle e Cirne-Lima entre
outras; assumindo pois as instâncias fundamentais do próprio elemento especulativo, não se limitando portanto às do transcendental ou do analítico.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
Editorial
Por seu turno, em Depois de Hegel, Cirne-Lima pretende levar a cabo
uma reconstrução crítica do sistema neoplatônico. Desse modo, reconhecendo em Hegel o último dos grandes neoplatônicos, mas também assumindo as críticas que este recebera, Cirne-Lima se propõe à tarefa de apontar
e corrigir, ou pelo menos evitar os grandes erros que, segundo ele, Hegel
cometera. O problema disso é que, em tomando como ponto de partida o
caminho de uma transliteração da Ciência da Lógica, mais especificamente,
de sua formalização em lógica simbólica (no caso, de seus trechos considerados os mais representativos), Cirne-Lima termina por reduzir o Sistema
da Filosofia – e sobretudo a Lógica – a seus limites formais e, como diria
o próprio Hegel, a um conjunto de determinações-de-pensamento reunido
histórica ou empiricamente52. De onde, embora se alegue a reconstrução
crítica de um sistema neoplatônico e mesmo neohegeliano – que seja aberto
à contingência e à história enquanto produto de nossas decisões –, em última instância, do ponto de vista do conteúdo propriamente especulativo, tal
reconstrução recaí facilmente numa espécie de filosofia da reflexão.
Isso fica patente justamente quando, enfim, ao discutir a Lógica do
Conceito, em fazendo suas as instâncias do pensamento contemporâneo e
o caráter incompreensível – para este – de uma Lógica especulativa, CirneLima afirma que é justamente a Doutrina do Conceito a parte da Lógica que
ficou mais obsoleta, interessando apenas ao historiador da filosofia, mas que
do ponto de vista da verdadeira filosofia não tem mais nenhum valor especulativo. O que, não obstante sua pretensão neohegeliana, essa ilustrada
nos termos ‘ponto de vista da verdadeira filosofia’ e ‘ valor especulativo’, nos
parece um diagnóstico que se coloca em franca oposição àquele bastante
sensato, proferido por Lima Vaz, segundo o qual “a única tentativa que conhecemos, certamente grandiosa, de recuperar de alguma forma a teoria da
Idéia no mundo do filosofar pós-cartesiano é a teoria do conceito da Lógica
de Hegel, justamente a parte do hegelianismo que se mostrou inassimilável pela filosofia posterior, como atesta nossa atual filosofia”53. Diagnósticos
estes frente aos quais os que ainda se querem hegelianos têm que tomar
posição; em suma: Pode-se ser neoplatônico, hegeliano ou neohegeliano
hoje rejeitando justamente o cerne do neoplatonismo e do hegelianismo?
VII. A guisa de conclusão
Ao fim de nosso balanço crítico em torno da bibliografia hegeliana
em Língua portuguesa – à qual tivemos acesso –, publicada entre janeiro de
2007 e maio de 2008, podemos verificar sobretudo não só a consolidação do
interesse por Hegel e seu Sistema enquanto objetos de investigação, mas
principalmente o renascimento mesmo das instâncias as mais profundas do
pensar hegeliano entre os falantes e pensantes de Língua portuguesa. Neste
sentido, por mais divergentes que sejam as perspectivas desenvolvidas pelos autores aqui considerados, o certo é que todos eles – sem exceção –,
52. E., 1830, § 82.
53. H.C. DE LIMA VAZ, Escritos de filosofia VII: Raízes da modernidade, São Paulo: Loyola,
2002, p. 224.
20
Manuel Moreira da Silva
Ainda que sucinta, a análise dos textos publicados mais recentemente sobre a filosofia hegeliana, bem como os textos de Hegel traduzidos em
Língua portuguesa no período em questão, aponta justamente para o reconhecimento – progressivo – de que só se pode falar por exemplo em
Linguagem e em Intersubjetividade como um novo princípio epocal se, de
fato, estivermos avançando para um novo patamar civilizatório-cultural que,
tanto científica e espiritualmente, quanto cultural e materialmente, deverá
ser – necessariamente – mais elevado que aquele que emergira entre os
modernos e que, de certo modo, ainda hoje persiste. Caso contrário, se a
emergência de novos princípios – supostamente epocais, mas circunscritos
meramente a tal ou tal região do ser e do saber, ou da essência e seu aparecer – implicar de algum modo em perda de dignidade ontológica, como é
o caso de muitas das instâncias do pensamento contemporâneo, o que de
certo modo já ocorrera quando da emergência da subjetividade concebida
como princípio epocal entre os modernos, não se poderá falar em novos
princípios, mas tão só em degenerescência do que ainda se mantém presente; este cujos ganhos se apresentaram como maiores que as perdas,
pois (à diferença do chamado pensamento pós-metafísico) não se excluíra
a substância ou o ser, sendo estes que se elevaram à autoconsciência ou
ao saber espiritual de si enquanto espirituais. De onde a necessidade de se
reconhecer como a tarefa mais fundamental dos hegelianos, pelo menos
dos que ainda se querem ortodoxos, a delimitação – mesmo que preliminar
– de uma esfera propriamente lógico-efetiva ou racional-efetiva, concebida
mediante o conceito ele mesmo em sua atividade como espírito livre e a sua
efetivação, a partir da qual se dão relações propriamente livres entre os sujeitos que a constituem em sua efetividade.
Para isso, contudo, sobretudo em terras cujos falantes se exprimam
em Língua portuguesa, não basta haver excelentes estudos críticos sobre
Hegel ou, principalmente, tentativas de renovação, reatualização, reconstrução, etc., do pensamento ou do Sistema de Hegel. Há que se tenham
também, prioritariamente, versões em língua nacional (em nosso caso a Língua portuguesa) de toda a obra hegeliana e seus principais interlocutores,
sobretudo daqueles que Hegel retomara e desenvolvera de modo explícito,
bem como daqueles que sinceramente buscaram retomá-lo e desenvolvê-lo
segundo suas próprias instâncias. Sem isso não se pode ainda celebrar– em
21
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
posicionem-se contra ou a favor de Hegel, demonstram que o interesse por
Hegel e a filosofia especulativa desenvolvida por este permanecem atuais
ou que, no caso disso vir ser questionado, mesmo para uma época que se
quer pós-metafísica, pós-moderna, etc., Hegel e o Sistema da Filosofia especulativa permanecem como que incontornáveis. Isso demonstra que certa
condição de possibilidade (real) de uma nova época do espírito (ou da humanidade) jamais poderá ser efetivamente pensada ou levada a cabo se não
se voltar para o legado hegeliano e nele demorar-se, como que aguardando
seu renascimento, para então fazer florescer adequadamente o novo tempo,
esse que, de modo mais rigoroso, só poderá vir-a-ser se e somente se elevar-se a uma nova esfera ou a um novo plano propriamente lógico-efetivo.
Editorial
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
terras lusófonas – o efetivo renascimento do espírito que habita a filosofia de
Hegel; para o que também – ainda que fundamental para um estudo científico verdadeiramente consistente – não basta ler e estudar Hegel ou com
ele discutir tão somente no original, este que só o é na escrita propriamente
hegeliana, nos limites de seu tempo vivido, com seus acertos e desacertos.�
22
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 5, nº8, Junho-2008: 23-24
REH, NOTA SOBRE O NÚMERO 8
Manuel Moreira da Silva
Editor REH
Em A Crítica e Transformação da “Filosofia da Subjetividade” na Fenomenologia do Espírito, Christian Klotz busca esclarecer a relação entre a
função crítica do capítulo “Consciência-de-si” e a crítica à filosofia da subjetividade formulada por Hegel em escritos anteriores à Fenomenologia, sobretudo em Fé e Saber. O autor defende a tese segundo a qual a crítica hegeliana a concepções filosóficas de subjetividade (como as de Kant, Jacobi e
Fichte) e a reconstrução de figuras da autoconsciência são correspondentes
entre si; o que contribui à compreensão da função sistemática do capitulo
“Consciência-de-si”, sobretudo em razão de tal capítulo criticar figuras da
autoconsciência que se opõem à concepção do saber na qual a separação da
certeza de si e da referência a objetos é superada. Por seu turno, em Hegel
leitor de Goethe: Entre a física da luz e o colorido da arte, Márcia Cristina
Ferreira Gonçalves pretende tratar de algumas teses hegelianas, desenvolvidas na Filosofia da Natureza e na Estética, relacionadas ao fenômeno da
luz e da cor; caso em que, segundo a autora, Goethe serviria não apenas
de inspiração teórica a Hegel, mas também de exemplo prático. Isso, de um
lado, porque a doutrina goethiana das cores se mostra a Hegel enquanto
muito mais completa e rica do que a newtoniana e, de outro, pelo fato de
Goethe, enquanto artista e poeta, compreender o fenômeno da cor – aos
olhos de Hegel – de modo muito mais apropriado à sua aplicação no campo
da pintura e da arte.
Já em Hegel, variantes do fragmento “Die Liebe”, Joãosinho Beckenkamp fornece-nos a apresentação e a tradução do fragmento hegeliano
da época de Frankfurt, intitulado “Die Liebe”. Tal versão se justifica sobre23
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Neste número 8 da Revista Eletrônica Estudos Hegelianos – REH –
publicam-se dois artigos e duas traduções acerca de temas fundamentais
do hegelianismo. O primeiro artigo, de Christian Klotz (UFSM), discute o
tema da crítica e a transformação da “Filosofia da Subjetividade” na Fenomenologia do Espírito de Hegel; o segundo, de Márcia Cristina Ferreira
Gonçalves (UERJ), volta-se para o tema: Hegel leitor de Goethe: Entre a
física da luz e o colorido da arte. Já a primeira tradução, de Joãosinho Beckenkamp (UFPEL), disponibiliza entre nós as duas variantes do fragmento
hegeliano “Die Liebe”, da época de Frankfurt (1787-1800), preenchendo assim uma importante lacuna entre nós no que diz respeito ao acesso a uma
edição crítica do mesmo; a segunda, de Erick Calheiros de Lima (UNICAMP),
nos torna disponível o chamado “Fragmento 22” dos Jenaer Sytementwürfe
(1803/04). Enfim, além do editorial – em que se consideram os lançamentos mais recentes (2007/2008) sobre Hegel em Língua portuguesa –, com o
qual se abre esta edição de nossa Revista, ainda publicamos a versão resumida de nossas Normas de Submissão.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
REH, Nota sobre o número 8
tudo porque, de acordo com Beckenkamp, os textos da época de Frankfurt
ainda não receberam uma edição crítica, permanecendo portanto uma lacuna importante no que concerne a esses textos na edição crítica (em andamento) da obra completa de Hegel. Diante disso, partindo de uma rápida
contextualização da edição dos escritos de Hegel e do lugar do fragmento
“Die Liebe” na mesma, especialmente no que tange à situação de impasse
na investigação do período de Frankfurt, o tradutor apresenta a tradução
de um fragmento na edição de Nohl (até agora considerado como texto
de referência), seguido das duas versões originais do mesmo texto, publicadas por Ch. Jamme. Enfim, O Fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe
(1803/1804): apresentação e tradução, de Erick C. de Lima, parte de uma
contextualização do referido fragmento no que tange aos escritos de Hegel em torno da eticidade e aos fragmentos precedentes a este, de modo
a explicitar a articulação hegeliana da tese da constituição do conceito de
espírito, pela dialética não reducionista de consciência teórica e prática, em
uma gênese intersubjetiva dos nexos comunitários. Logo após a mencionada
contextualização, apresenta-se a tradução do fragmento em questão.
Com essas duas traduções, a Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
– REH – se mantém firme no projeto de contribuir para a disponibilização
de textos clássicos ou raros que se mostrem fundamentais para o desenvolvimento dos estudos hegelianos em Língua portuguesa. Isto significa que,
embora o centro de gravidade de nossa política editorial para traduções seja
a publicação de versões brasileiras dos próprios textos de Hegel, nossa pretensão é ampliar cada vez mais o espaço para artigos, documentos e outros
tipos de textos ainda inéditos em Português que, de um modo ou de outro,
estejam em consonância com a retomada e o desenvolvimento do Idealismo especulativo nos dias de hoje. Apesar disso, infelizmente, pela própria
dificuldade em se produzir e, sobretudo, em se avaliar traduções com alto
padrão técnico, crítico e científico, a disponibilização de materiais que inclusive já foram submetidos à REH permanece lenta. Finalmente, esperando
contar com a benevolência de nossos leitores – e, em especial, de nossos
colaboradores, justamente em vista de certa lentidão na publicação de seus
materiais –, reafirmamos o propósito de uma revista filosófica tematicamente específica de alto padrão técnico e científico.
24
Artigos
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 5, nº8, Junho-2008: 25-35
A Crítica e Transformação da “Filosofia da Subjetividade” na Fenomenologia do Espírito
Christian Klotz
Palavras-chave: Hegel, Fenomenologia do Espírito, Filosofia da Subjetividade
ABSTRACT: In the Phenomenology of Spirit Hegel aims at justifying a conception of knowledge
in which the separation of self-certainty and objective reference is superseded. The function of
the chapter “Self-consciousness” in this project is to criticize figures of self-consciousness which are opposed to this conception, insofar as the certainty of itself here excludes all objective
reference from its essence and tries to manifest itself as “absolute negativity” in relation to the
entire sphere of objective-natural being. The aim of this paper is to clarify the relation between this critical function of the self-consciousness chapter and the critique of the philosophy of
subjectivity formulated by Hegel in his earlier writings, in particular in Faith and Knowledge. It
is argued that the Hegelian critique of philosophical conceptions of subjectivity and the reconstruction of the figures of self-consciousness, even if they are situated on different theoretical
levels, correspond to each other in such a way that taking into account their correspondence
contributes to understanding the systematic function of the self-consciousness’ chapter. This
chapter can be understood as continuing the critique of the fichtean conception of subjectivity
by other methodological means, superseding thereby the dualism of form and matter which
in Faith and Knowledge had been considered the epistemological nucleus of the philosophy of
subjectivity.
Keywords: Hegel, Phenomenology of Spirit, Philosophy of Subjectivity
I. Considerações preliminares
No Prefácio à primeira edição da Ciência da Lógica, cinco anos depois
do acabamento da principal obra do seu período ienense, Hegel caracteriza
a Fenomenologia do Espírito como exposição de um determinado desenvolvimento da “certeza de si”. Segundo isto, a Fenomenologia expõe as transformações pelas quais a certeza de si supera sua separação dos objetos e
. Doutor em Filosofia pela Ludwig Maximilian Universität München e professor adjunto da
UFSM. Submetido em 15 de janeiro de 2008 e aprovado para publicação em 15 março de
2008.
25
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
RESUMO: Na Fenomenologia do Espírito, Hegel pretende justificar uma concepção do saber na
qual a separação da certeza de si e da referência a objetos é superada. A função do capítulo
“Consciência de si” é criticar figuras da autoconsciência que se opõem a esta concepção, na
medida em que nelas a certeza de si exclui da sua essência qualquer referência a objetos e
pretende manifestar-se como “negatividade absoluta” em relação a toda a esfera do ser objetivo-natural. O propósito do trabalho é esclarecer a relação entre esta função crítica do capítulo
“Consciência-de- si” e a crítica à filosofia da subjetividade formulada por Hegel nos seus escritos
anteriores, em particular em Fé e Saber. Defende-se a tese de que a crítica hegeliana a concepções filosóficas de subjetividade e a reconstrução de figuras da autoconsciência, apesar delas
estarem situadas em planos diferentes, correspondem uma a outra, tal que este fato contribui
à compreensão da função sistemática do capitulo “Consciência de si”. Este capítulo pode ser
entendido como uma continuação metodicamente alterada da crítica à concepção fichtiana da
subjetividade, cuja superação implica ao mesmo tempo a do dualismo de forma e matéria, que
Hegel considerara em Fé e Saber como núcleo epistemológico da filosofia da subjetividade.
A Crítica e Transformação da “Filosofia da Subjetividade”...
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
do pensamento que se refere a estes. Assim, o propósito sistemático da
Fenomenologia é demonstrar a possibilidade e, num certo sentido, a necessidade da absorção completa do saber objetivo na certeza de si.
Este propósito exige a demonstração de que o projeto de integrar a
referência a objetos surge da própria estrutura da consciência-de-si. É exatamente esta a tese que, no decorrer da Fenomenologia, se expressa pela
passagem para a razão. Pois por “razão” Hegel entende a consciência-desi, na medida em que ela se orienta pelo projeto da apropriação – teórica
e prática – de “toda a efetividade”. No entanto, o ponto de vista da razão
é estabelecido na Fenomenologia como resultado de uma transformação
da consciência-de-si – aquela que Hegel reconstrói no capítulo que finalmente recebeu o título “Consciência-de-si”. Neste capítulo Hegel pretende
considerar figuras da certeza de si que ainda não estão caracterizadas pelo
projeto da apropriação total de objetos, sendo até opostas a este projeto.
Por isso, aqui Hegel descreve o caráter das figuras da certeza de si consideradas como “absoluta negatividade”, o que significa que a auto-concepção
da consciência operante aqui exclui da certeza de si todo o ser de objetos e
o saber referido a estes. Assim, o ponto de vista da razão é estabelecido na
Fenomenologia como resultado da superação de certas figuras da consciência-de-si que ainda não estão dirigidas para o fim próprio do desenvolvimento fenomenológico, sendo até opostas a este fim.
A função crítica que, com isso, o capítulo sobre a consciência-de-si
possui, sugere uma vinculação deste capítulo com a crítica de concepções
filosóficas da subjetividade que Hegel formulara em seus escritos anteriores do seu período ienense, em particular em Fé e Saber. No entanto, as
posições de Kant, Fichte e Jacobi consideradas ali como principais representantes da filosofia da subjetividade não são mencionadas na reconstrução
fenomenológica das figuras da consciência-de-si. E por certo, a crítica de
concepções teóricas da subjetividade e a exposição fenomenológica de figuras da consciência estão situadas em planos bem diferentes. Que exista,
apesar disso, uma vinculação estreita entre elas, cuja investigação contribui
para a compreensão da função sistemática do capítulo “Consciência-de-si”,
é o que quero mostrar no que segue. Minha tese principal será que a exposição das figuras da consciência-de-si é uma continuação da crítica à filosofia
da subjetividade, efetuada através de outros meios metódicos.
Minha exposição terá três partes: primeiro considerarei a concepção
teórica de subjetividade que segundo Hegel está pressuposta em Kant, Fichte
e Jacobi. Nesta parte, Fé e Saber estará em foco. Como núcleo da concepção
de subjetividade evidenciar-se-á um modelo dualista de conhecimento, a
cuja versão fichtiana Hegel também atribui uma importância positiva para o
seu projeto filosófico. Num segundo passo quero mostrar que a concepção
da certeza de si da qual parte o capítulo sobre a consciência-de-si corres. Ver G. W. F. HEGEL, Wissenschaft der Logik, Hamburg: Meiner, 1975, p. 30.
. G. W. F. HEGEL, Fenomenologia do Espírito. – 2. Ed. – Tradução de Paulo Meneses, Petrópolis:
Vozes, 2003 (no que segue: FdE), p. 173.
. FdE, p. 146.
26
Christian Klotz
ponde à imagem do princípio da Doutrina da Ciência de Fichte que surge
em Fé e Saber. Na parte final considerarei a vinculação entre a superação
da concepção fichtiana do sujeito e a revisão do modelo de conhecimento,
vinculação esta que tem uma função decisiva na passagem fenomenológica
para o ponto de vista da razão.
II. Subjetividade e consciência de si em Fé e Saber
No entanto, existem observações de Hegel em Fé e Saber que explicitamente dizem respeito às premissas fundamentais compartilhadas por
todas as posições consideradas. Estas apontam para um determinado modelo de conhecimento – um modelo que pode ser chamado “dualista” – que
caracteriza de modo geral a filosofia da subjetividade.O núcleo desta concepção consiste na suposição de que o conhecimento surge da referência do
pensamento a um conteúdo dado independentemente dele. Os dois elementos desta relação são concebidos como sendo diferentes na sua essência – o
pensamento fornece os aspectos gerais ou formais do conhecido, os dados o
conteúdo concreto, para a relação própria do conhecimento com a realidade.
Ambos, a contribuição formal do pensamento e o conteúdo fatual dado, são
irredutíveis entre si e não podem ser entendidos a partir de um princípio
mais fundamental. Assim, o conhecimento tem uma estrutura definitivamente dualista, e o modo como seus dois componentes se relacionam tornase o assunto central da teoria do conhecimento. Segundo Hegel, a exposição
do papel do entendimento no conhecimento dada por Jacobi, tanto no seu
livro sobre Espinosa, quanto no David Hume, mostram que ele – como Kant
e Fichte – aceita este modelo. A diferença entre o “dogmatismo”, isto é, o
realismo epistemológico de Jacobi, e o “idealismo” de Kant e Fichte, segundo
Hegel, apenas diz respeito a variações dentro deste modelo, que resultam
de concepções diferentes a respeito da dependência ou independência do
“material” dado do sujeito.
. Ver G. W. F. HEGEL, Gesammelte Werke, Hamburg: Meiner, 1986 ss., vol. 4 (no que segue:
FS), p. 315.
. Ver FS, pp. 389, 390 e 392. Assim, a intenção da critica do jovem Hegel à filosofia da subjetividade corresponde à crítica ao dualismo de esquema conceitual e conteúdo, como esta foi
formulada por D. Davidson e J. McDowell. Esta vinculação tem sido discutida recentemente em
várias contribuições, no entanto, mais com referência à Fenomenologia do que aos escritos
27
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Em Fé e Saber, Hegel pretende apresentar e criticar “na completude
das suas figuras” posições que consideram a subjetividade como princípio
da filosofia. No entanto, Hegel subsume sob o conceito geral de “filosofia da
subjetividade” posições muito diferentes e aparentemente até opostas entre
si – além das posições de Kant e Fichte, a de Jacobi, crítico rigoroso de Kant
e Fichte. O conceito hegeliano de filosofia da subjetividade refere-se então
a uma característica muito geral de teorias, que pode ser comum a posições
consideradas como opostas até por seus autores. Aquilo que dificulta ainda
mais a identificação desta característica de teorias é o fato de que Hegel
em Fé e Saber enfatiza mais as diferenças entre as teses fundamentais de
Kant e Fichte, por um lado, e Jacobi por outro, do que o que elas têm em
comum.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
A Crítica e Transformação da “Filosofia da Subjetividade”...
Assim, mesmo que Jacobi critique a Doutrina da Ciência de Fichte,
há um consenso implícito com ela a respeito da concepção dualista do conhecimento. É esta concepção compartilhada por Kant, Fichte e Jacobi que
Hegel tem em mente ao falar deles como representantes do mesmo tipo de
teoria, da “filosofia da subjetividade”. Por “subjetividade”, ele entende aqui
a propriedade do pensamento, pressuposta por estas teorias, de referir-se
no conhecimento a uma realidade que é absolutamente dada, sendo essencialmente não-conceitual. Então, subjetividade não é nada mais do que a
finitude do pensamento no sentido da sua referência a algo essencialmente
outro. Aqui fica claro por que Hegel caracteriza as teorias que pressupõem
a subjetividade do pensamento como produto da “reflexão”. Pois já no seu
escrito sobre a diferença entre os sistemas de Fichte e Schelling ele entendera por “reflexão” o operar com concepções dualistas, o ponto de vista do
“entendimento”, que atribui a oposições – como aquela entre pensamento e
realidade dada – validade última.
A concepção de um pensamento que se refere a uma realidade nãoconceitual, que segundo Hegel caracteriza todas as versões da filosofia da
subjetividade, deixa espaço para exposições teóricas muito diferentes. Como
já observei, Hegel enfatiza que tal concepção pode ser combinada com ambas as afirmações da dependência ou independência da realidade “dada”, e
assim admite o realismo de Jacobi bem como o subjetivismo epistemológico
de Kant e Fichte. No entanto, ao distinguir “formas” diferentes que a filosofia da subjetividade pode adotar, Hegel tem outros aspectos em mente.
Pois sua distinção refere-se a modos diferentes como a própria concepção
de subjetividade é concebida. No entanto, a questão de como Hegel divide
a filosofia da subjetividade sob este aspecto não é fácil de responder. A divisão explícita do texto segue uma tripartição, segundo a qual Kant, Jacobi
e Fichte representam cada qual uma das figuras possíveis da concepção de
subjetividade como princípio da filosofia. No entanto, encontra-se também
uma divisão da filosofia da subjetividade em duas formas, a concepção da
subjetividade de Jacobi sendo contrastada com a de Kant e Fichte. Esta última divisão recebe cada vez mais importância ao longo do texto. Assim, na
conclusão do escrito, Hegel diz que a filosofia de Jacobi, sob o aspecto da
sua concepção de subjetividade, é a que carece mais de uma relação “imediata” e positiva com a filosofia verdadeira. Em contraste com isso, Hegel
encontra em Kant e Fichte uma concepção de subjetividade que possui uma
vinculação imediata e positiva com a especulação. A divisão bipolar é sistematicamente decisiva para Hegel, de modo tal que ela também vai cunhar a
exposição da consciência-de-si na Fenomenologia do Espírito, como pretendo mostrar no que segue.
A divisão bipolar da filosofia da subjetividade diz respeito à questão
de como a consciência-de-si, e com isso o sujeito, tem que ser explicitada e
localizada dentro do quadro epistemológico da filosofia da subjetividade.
críticos do jovem Hegel (ver Chr. HALBIG et al. (org.), Hegels Erbe, Frankfurt 2004, p. 10 s.).
. Ver, FS, p. 13 ss.
. Ver FS, p. 413.
28
Christian Klotz
O fato de que Hegel reconhece na primeira concepção, atribuída a
Kant e Fichte, uma relação positiva com o pensamento especulativo, se torna compreensível pelo conceito especulativo da infinitude como característica do absoluto, que Hegel expõe em Fé e Saber com referência a Espinosa
e ao mesmo tempo no sentido da sua própria posição. Segundo ele, a infinitude verdadeira tem que ser pensada como todo-abrangente, e assim,
como incluindo o finito. No entanto, isso significa que o infinito também tem
que ser distinguido do finito, o qual ele envolve, sem simplesmente coincidir
com ele. O infinito envolve o finito como o outro de si. Neste sentido Hegel
diz que o infinito é “a identidade do infinito e do finito mesmo; a saber, do
infinito na medida em que este se opõe ao finito ...”. Conseqüentemente, o
infinito, mesmo que inclua o finito, é ao mesmo tempo caracterizado por um
“lado negativo”, seu não-ser-finito11.
É exatamente esta relação negativa com o finito, constituindo um
. Ver FS, p. 387.
10. Ver FS, p. 349 (tradução minha).
11. Ver FS, p. 358/359 (tradução minha).
29
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Dentro da concepção da estrutura dualista do conhecimento, que segundo
Hegel constitui o núcleo da filosofia da subjetividade, aparecem duas opções
para isso. Por um lado, pode-se localizar a autoconsciência na parte do pensamento operativo formal, que enfrenta uma realidade dada e não-conceitual. Neste caso, a autoconsciência é concebida como referência a um sujeito
pensante que, como tal, é diferente de qualquer realidade dada. O “eu” aqui
é caracterizado por indeterminação e pela exclusão de diversidade. Ele possui uma identidade distanciada do mundo. Mas o modelo dualista permite
também uma outra concepção da consciência-de-si: pode-se atribuir à autoreferência a função de localizar o sujeito na realidade dada ao pensamento.
Neste caso, a consciência-de-si é concebida como auto-familiaridade empírica, que diz respeito a um ser singular entre outros. Este ser singular ainda
é sujeito, e assim distinguido de “coisas”, na medida em que é um indivíduo
consciente que vive sentimentos e sensações. Assim, duas concepções contrastantes da consciência-de-si são possíveis no quadro da filosofia da subjetividade, que resultam pelo modo como se localiza o si-mesmo consciente
na assumida estrutura dualista do conhecimento – no lado do pensamento
formal, ou da realidade pré-conceitualmente dada. A exposição hegeliana
das concepções do sujeito encontradas em Kant e Fichte, por um lado, e em
Jacobi, por outro, pode facilmente ser entendida a partir desta alternativa.
Desse modo, Hegel atribui à filosofia teórica de Kant a concepção de um
“eu vazio”, que exclui qualquer diversidade; e o conceito fichtiano do “eu”
refere-se, segundo Hegel, a uma atividade pura, que se opõe a qualquer
“ser” ou “realidade”. Por isso, o caráter fundamental do eu fichtiano é sua
“negatividade” em relação com qualquer determinação. Em contraste com
isso, o conceito de sujeito adotado por Jacobi refere-se ao ponto de vista da
“individualidade” e da “sensação”, a “seres singulares que se revelam para
si mesmos” e se encontram numa relação originária com objetos dados na
experiência10.
A Crítica e Transformação da “Filosofia da Subjetividade”...
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
aspecto subordinado mas essencial do absoluto como infinito, o que Hegel
considera expresso pela concepção kantiana e fichtiana do sujeito. Assim,
o eu “puro” distanciado de qualquer determinação representa, dentro do
quadro da filosofia da subjetividade, o aspecto do absoluto de encerrar uma
diferença com qualquer determinação; e por isso a filosofia da subjetividade de Kant e Fichte, em contraste com a de Jacobi – que coloca o sujeito
no lado da determinação – possui uma relação positiva com o pensamento
especulativo.
Hegel considera que este pensamento destaca-se “com contorno
mais nítido” em Fichte12. Assim, ao apreciar positivamente a filosofia da subjetividade na conclusão do seu escrito, Hegel pensa sobretudo em Fichte. De
acordo com isso, a exposição sobre Fichte em Fé e Saber enfatiza a relação
negativa com qualquer determinação como característica fundamental do eu
fichtiano. Segundo Hegel, a idéia da exclusão de determinação está desde
o início presente na formulação fichtiana do seu princípio. Isso se mostra,
por exemplo, no fato de que o acesso metódico ao eu é realizado através da
abstração de todas as determinações dadas na consciência. Pois, como Hegel comenta, “o que é resultado da abstração ... está imediatamente numa
relação negativa com aquilo do qual se abstrai”. Conseqüentemente, a relação negativa com determinações não é um aspecto extrínseco do conceito
fichtiano do eu, mas um elemento essencial deste conceito.
A exposição, em Fé e Saber, da relação entre a concepção fichtiana
do eu e o conceito especulativo do absoluto difere neste ponto da exposição
defendida no escrito anterior sobre a diferença entre os sistemas de Fichte
e Schelling. Ali, Hegel ainda reconhece que Fichte parte da idéia de uma
auto-referência que não envolve qualquer oposição, e com isso de um absoluto que não é originalmente definido pela exclusão do finito, mas como
todo-abrangente. Conseqüentemente, Hegel considera ali o ponto de vista
da especulação presente na exposição fichtiana do princípio da Doutrina
da Ciência, mesmo que este não seja mantido na construção do sistema,
a determinação não sendo incorporada no “eu”. Assim, surge neste escrito
a imagem da Doutrina da Ciência como uma teoria com duas faces, uma
delas estando de acordo com a intenção do pensamento especulativo de
superar a oposição entre o finito e o infinito, a outra estando caracterizada
pela oposição entre o infinito e o finito, correspondendo ao entendimento.
No entanto, segundo Fé e Saber a concepção fichtiana do eu tem uma única
face. Ela refere-se desde o início a uma auto-referência que exclui qualquer
determinação e assim é essencialmente caracterizada por “negatividade”.
Na concepção fichtiana do “eu”, diz Hegel aqui, “domina completamente o
entendimento”. Portanto, a suposição de uma relação positiva entre a concepção de Fichte e o conceito especulativo do absoluto é enfraquecida em Fé
e Saber, mas – como se mostrou – ainda se mantém. A concepção fichtiana
do “eu” corresponde ao momento subordinado do conceito do absoluto que é
concebido pelo entendimento, a saber, sua relação negativa em relação com
qualquer determinação.
12. Ver FS, p. 388 (tradução minha).
30
Christian Klotz
III. A exposição hegeliana da consciência-de-si
na Fenomenologia do Espírito
No entanto, a exposição introdutória com a qual Hegel abre o capítulo
“consciência-de-si” sugere uma correspondência sistemática com a discussão da filosofia da subjetividade dada em Fé e Saber13. Hegel começa aqui
com uma caracterização da estrutura fundamental da consciência-de-si, estrutura comum às figuras da autoconsciência a serem investigadas. Sem a
concepção geral da consciência-de-si exposta aqui, a posterior apresentação
das suas “figuras” não seria compreensível. Segundo ela, o caráter original
da consciência-de-si consiste em ser um “ser-para-si puro”, que se refere a
um “eu puro” livre de toda determinação objetiva ou natural14. Conseqüentemente, a certeza de si é caracterizada por uma distância com qualquer
determinação dada – mesmo que ela seja a “própria” –, que ela exclui da
sua identidade como algo não essencial para ela. Hegel chama esta exclusão
da determinação, na medida em que ela domina o ponto de vista da consciência-de-si, sua “absoluta negatividade”15. Esta imagem da situação original
da autoconsciência é pressuposta em toda a exposição hegeliana das suas
figuras. Assim, Hegel interpreta o desejo, bem como a luta de vida e morte,
não como conseqüências de alguma necessidade natural ou da concorrência
por posse, mas como manifestações da relação negativa com qualquer determinação dada, seja esta externa ou interna, que caracteriza a consciência-de-si16.
Obviamente, a imagem da consciência-de-si da qual Hegel parte corresponde àquela que Hegel tinha atribuído a Fichte em Fé e Saber. Ali, a
relação negativa do eu com toda determinação foi considerada o caráter
fundamental do eu fichtiano. Ao basear a exposição fenomenológica da própria perspectiva da consciência-de-si e das suas experiências nesta concepção, Hegel reconhece que o distanciamento de toda determinação realmente
constitui um aspecto essencial da consciência-de-si. Foi exatamente com
relação a esta característica da consciência-de-si que Hegel falou em Fé
e Saber de uma “relação positiva” da concepção fichtiana com o conceito
especulativo do absoluto. No entanto, isso não significa que a exposição da
autoconsciência dada na Fenomenologia pretende confirmar a posição de
Fichte. Em vez disso, a função do capítulo “Consciência-de-si” consiste em
13.
14.
15.
16.
Ver FdE, p. 135 ss.
FdE, p. 140.
FdE, p. 188.
Ver FdE, pp. 137, 140 e 145/46.
31
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Ao voltar-se para a consciência-de-si na Fenomenologia, Hegel não
pretende – como em Fé e Saber – criticar certa posição teórica. Segundo
o programa da obra, trata-se aqui de explicitar o próprio ponto de vista da
consciência-de-si. O propósito é o de considerar as “experiências” – para
mencionar o termo chave da metodologia da obra – que a consciência faz,
na medida em que ela entende todo o seu saber como um saber de si mesma.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
A Crítica e Transformação da “Filosofia da Subjetividade”...
mostrar que uma consciência-de-si que se considera como sendo exaustivamente caracterizada por sua relação negativa com toda determinação
não pode conseguir nenhum “saber” de si. Este “insight” é estabelecido a
partir da própria perspectiva da consciência-de-si – como resultado das suas
“experiências”. A reconstrução hegeliana destas experiências baseia-se na
análise da consciência – presente já na Introdução da obra – pelo par de
conceitos “saber” e “verdade”, análise segundo a qual o saber da consciência
refere-se essencialmente a um objeto diferente dele17. A autoconsciência
pura, que diz respeito a um sujeito que exclui qualquer determinação, ainda
não cumpre esta condição. Ela é uma mera “certeza de si”, que, para ser
“saber” de si no sentido próprio, precisa fazer referência a objetos e, com
isso, à realidade determinada. Portanto, o saber de si tem que incluir referência a uma instância objetiva correspondente a ela, que ultrapassa a mera
certeza de si. Ela precisa de algo que é sua expressão ou representação
objetiva. É exatamente esta condição que Hegel indica no título desta seção
– “A verdade da certeza de si” – como seu assunto próprio18.
A condição de que deve haver uma realização objetiva da certeza de
si por si não exclui a possibilidade de manter um saber de si cunhado pela
idéia da relação negativa com qualquer determinação objetiva. Pois ela poderia ser cumprida pelo fato de que o caráter não essencial do ser objetivo
para o eu puro se manifesta nos objetos ou no modo como se faz a referência a objetos. Como tentativas de conseguir expressar um si-mesmo nãoobjetivo em sua referência a objetos, Hegel interpreta figuras da consciência
tão diferentes como a do desejo e da atividade do cético, que suspende
qualquer afirmação de uma referência objetiva dos seus juízos e assim manifesta-se como um sujeito para o qual uma tal referência não é essencial19.
Que tais casos limite de uma auto-manifestação não possibilitam um saber
de si coerente – é exatamente esta a tese que a exposição das experiências
da consciência visa mostrar. Assim, seu resultado é o de que a consciência
tem que incorporar positivamente a determinação objetiva na sua auto-referência, mesmo que o sujeito consciente nunca coincida simplesmente com
ela, e que com isso certa distância de qualquer determinação permanece
sendo um aspecto essencial da consciência-de-si20.
Pode-se dizer então que o resultado das experiências expostas no
capítulo “Consciência-de-si” significa uma revisão radical do modo como a
autoconsciência pura se relaciona com objetos como tais. A certeza de si,
que subjaz a qualquer referência a objetos, é incluída na transformação das
figuras epistêmicas da consciência, e assim não é mais o negativo imutável
dos objetos, como o que é concebido em Fichte. Esta dinamização da cer17. Ver FdE, pp. 77/78.
18. FdE, p. 135. A distinção hegeliana entre “certeza de si” e “saber de si” corresponde a distinções envolvidas já na análise da auto-referência em Kant e Fichte: à distinção entre a “mera
consciência” Eu penso e o autoconhecimento em Kant, e à distinção entre a autoconsciência
“imediata” e a reflexão em Fichte.
19. Ver FdE, pp. 141 e 155/156.
20. Corresponde a isso o fato de que na concepção especulativa do infinito – o que segundo Fé
e Saber tem uma estrutura análoga à consciência de si - a diferença com o finito é conservada
como um momento subordinado.
32
Christian Klotz
Hegel, portanto, no capítulo “Consciência-de-si”, de fato parte de uma
imagem da autoconsciência que corresponde à concepção atribuída a Fichte,
em Fé e Saber. A certeza de si é concebida aqui como uma consciência-desi “pura” e distanciada de qualquer determinação natural, que só pode se
manifestar pela negação de objetos. No entanto, a intenção sistemática do
capítulo é estabelecer, a partir do próprio ponto de vista da certeza de si, a
necessidade de passar para uma outra imagem da relação entre atividade
espontânea e determinação objetiva – a saber, para a idéia de que “toda
realidade” na sua determinação independente corresponde positivamente
às estruturas que são essenciais para o pensamento e agir auto-determinado. Uma tal estratégia crítica contra a concepção fichtiana da autoconsciência pura ainda não se encontrava em Fé e Saber, onde o ponto de vista
especulativo estava pressuposto desde o início. Sua possibilidade surgiu só
pela concepção fenomenológica de experiências epistemicamente radicais,
que podem transformar nossa auto-concepção como sujeitos espontâneos,
e com isso também o modo como nos relacionamos como tais sujeitos com
a realidade22.
IV. A Guisa de conclusão: Auto-concepção e modelo de conhecimento na passagem à Razão
O resultado de que a concepção fichtiana do “eu” pode ser identificada como o alvo implícito do capítulo “Consciência-de-si” ainda não deixa
claro em que medida este capítulo também envolve uma crítica do modelo
de conhecimento que, segundo a exposição em Fé e Saber, constitui o núcleo das formas da “filosofia da subjetividade”. Então, deve-se perguntar em
que medida a Fenomenologia continua a crítica da filosofia da subjetividade
como crítica de determinado modelo de conhecimento, e, se for assim, em
que consiste o procedimento particular adotado na Fenomenologia para fundar uma tal crítica.
Estas questões exigem voltar-se para o método que a investigação
21. FdE, p. 140.
22. Na medida em que Hegel busca revisar, e não eliminar, a concepção do eu puro, existe ainda uma continuidade entre seu projeto especulativo e a fundamentação da filosofia por Kant
e Fichte. Cf. R. PIPPIN, Hegel’s Idealism, Cambridge 1989, p. 16 ss.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
teza de si é explicitamente indicada por Hegel como idéia chave do capítulo
“Consciência-de-si”, quando logo no início do capítulo ele afirma que o “eu
puro” vai “enriquecer-se” e receber um “desdobramento”21. O enriquecimento e desdobramento da certeza de si consiste no fato de que ela desenvolve
com cada vez mais sucesso modos de relacionar-se com objetos que captam a constituição independente deles e, ao mesmo tempo, envolvem sua
atividade espontânea. A tese de que a possibilidade de uma tal síntese de
conhecimento objetivo e auto-expressão só é compreensível se uma posição
monista é aceita, concebendo o próprio pensamento e a estrutura da realidade como momentos do desdobramento da mesma instância absoluta, será
a tese final de Hegel na Fenomenologia.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
A Crítica e Transformação da “Filosofia da Subjetividade”...
crítica de concepções do conhecimento segue na Fenomenologia. Hegel considera aqui modos de relacionar-se com objetos sob o aspecto de como eles
conseguem evidenciar o que neles é concebido como “a verdade”, isto é, o
caráter fundamental da realidade. Tais modos em consideração de relacionar-se com objetos podem ter um caráter teórico ou prático; em todo caso
eles visam corresponder ao que é concebido como caráter fundamental da
realidade. Na medida em que são dirigidos para uma tal relação de adequação, eles são (ou envolvem), num sentido amplo, práticas epistêmicas, isto
é, práticas que visam a conseguir “saber”. Enquanto práticas, as figuras da
consciência não se ocupam explicitamente de concepções de conhecimento
– elas pretendem realizar um relacionar-se com objetos que corresponde ao
assumido caráter fundamental da realidade, e com isso, a realizar “saber”.
No entanto, elas pressupõem nisso certa concepção da relação de adequação e, com isto, certa concepção de conhecimento. Pode-se dizer que as
figuras da consciência consideradas praticam certos modelos de saber. Agora, a estratégia metódica de Hegel na Fenomenologia consiste em examinar concepções de saber ao considerar as práticas epistêmicas que tentam
pô-las em ação. As experiências feitas nestas práticas, e não investigações
gerais sobre o conceito e as condições de conhecimento, mostrariam como
se devem avaliar os modelos de conhecimento em consideração. Assim, a
Fenomenologia pode ser vista como o substituto hegeliano da epistemologia; ela é uma continuação deste projeto por outros meios23.
Para a exposição fenomenológica das práticas epistêmicas em consideração é decisiva a idéia de que estas são caracterizadas por certa autoconcepção do sujeito que as exerce. A partir disso entende-se o foco na
consciência-de-si, presente no resumo da obra que Hegel faz mais tarde
no prefácio à primeira edição da Ciência da Lógica. No entanto, isso não
significa apenas que a consciência possui, além de uma concepção geral da
realidade a ser conhecida, uma concepção de si como a instância cognoscente. Ao invés disso, a tese de Hegel é que a auto-concepção é constitutiva
para o modo como são concebidas a realidade a ser conhecida e a procurada
correspondência com ela. No seu relacionar-se com o mundo natural e social
a consciência procura realizar o que ela considera seu próprio caráter fundamental. O que a consciência busca em sua referência a objetos é, no fundo,
um saber de si mesma. A afirmação da assim concebida egocentricidade das
práticas epistêmicas consideradas, que Hegel introduz na passagem para a
consciência-de-si, é a tese fundamental para todas as partes restantes da
Fenomenologia. Essa afirmação tem como conseqüência que Hegel, a partir
deste ponto, descreve as práticas epistêmicas em questão primariamente
com referência à auto-concepção que lhes subjaz. O conceito de saber que
orienta uma prática epistêmica é reconstruído como implicação da auto-concepção do sujeito cognoscente.
Dada esta estratégia, é plausível considerar que a superação do modelo de conhecimento que caracteriza a “filosofia da subjetividade” é efe23. De acordo com isso, Hegel diz no Auto-anúncio da Fenomenologia que a obra substitui “as
abordagens abstratas sobre a fundamentação do conhecimento” (Gesammelte Werke (cf. nota
rodapé 4), vol. 9, p. 446).
34
Christian Klotz
Assim, a Fenomenologia do Espírito continua, de um modo metodicamente alterado, a crítica à filosofia da subjetividade no sentido da crítica de um determinado modelo de conhecimento. Seu propósito é mostrar
que a superação deste modelo é necessária para se conseguir uma prática
epistêmica coerente. Como foi anteriormente mostrado, a crítica fenomenológica deste modelo baseia-se na vinculação das práticas que o aplicam
com uma auto-concepção que corresponde à concepção fichtiana da consciência-de-si. Tal crítica baseia-se na idéia hegeliana de uma possível revisão
da consciência-de-si pura, que abandona seu caráter negativo, introduzindo
modos de relacionar-se com objetos que implicam o reconhecimento do modelo especulativo do conhecimento. Assim, a crítica hegeliana da filosofia da
subjetividade não significa a marginalização do papel epistêmico da autoreferência; ao contrário, ela emprega a estratégia de criticar o modelo de
conhecimento adotado pela filosofia da subjetividade através da exposição
de um desenvolvimento ideal da certeza de si que possibilita o saber verdadeiro. A tese de Kant e Fichte de que a auto-referência é fundamental para
o conhecimento é transformada na Fenomenologia, mas não abandonada.
“Filosofia da subjetividade”, nesta acepção, não é o alvo da crítica hegeliana,
mas um elemento constitutivo do próprio projeto hegeliano24.
24. Agradeço a Thiago Santoro pela revisão preliminar do texto.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
tuada pelo fracasso daquelas práticas que se baseiam na auto-concepção
fichtiana. Conseqüentemente, deve-se considerar o capítulo “Consciênciade-si” como reconstrução da superação “prática” do modelo dualista de conhecimento que a filosofia da subjetividade faz valer. Esta vinculação manifesta-se na descrição hegeliana do resultado positivo deste capítulo, isto é,
do ponto de vista da razão no sentido da certeza de ser “toda realidade”. Por
“razão” Hegel entende aqui uma auto-concepção segundo a qual a própria
essência não consiste mais na exclusão de qualquer determinação objetiva
e da referência a ela, mas na apropriação completa das determinações objetivas – uma apropriação que só torna manifesto o caráter conceitual que a
realidade “em si” já tem. Em práticas que se baseiam nesta auto-concepção,
o dualismo de “forma conceitual” e realidade dada não-conceitual é abandonado; ela já visa colocar em ação sua alternativa especulativa, mesmo que
inicialmente por meios conceituais inapropriados.
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 5, nº8, Junho-2008: 37-56
Hegel leitor de Goethe:
Entre a física da luz e o colorido da arte
Márcia Cristina Ferreira Gonçalves
ZUSAMMENFASSUNG: Im Rahmen dieser Arbeit beabsichtige ich, einige der Hegelschen Thesen zu behandeln, die sowohl in seiner Naturphilosophie als auch in seiner Kunstphilosophie
entwickelt wurden und auf die Licht- und Farbphänome bezogen sind. In verschiedenen Zusammenhängen dient Goethe nicht nur der theoretischen Inspiration Hegels – in dem Maße,
dass er eine Farbenlehre präsentiert, die reicher als die Newtonsche Theorie ist, die öfter in der
Wissenschaft akzeptiert wurde –, sondern auch als praktisches Beispiel, weil er als Künstler und
Dichter das Phänomen der Farbe in einer adäquateren Weise begriff, um es auf dem Gebiet der
Malerei und der Kunst der Einbildungskraft (einschliesslich der Dichtkunst) zu verwenden.
Schlüssel-Worte: Hegel, Goethe, Kunst, Farben, Licht.
Neste ensaio, pretendo demonstrar a influência de Goethe sobre Hegel não apenas na formulação de uma filosofia da natureza, mas também
em sua filosofia da arte. O primeiro aspecto que pretendo destacar para
defender esta dupla influência está no fato de que as principais teses goethianas sobre a natureza perpassam também o domínio da arte. Sem dúvida
a maior parte das referências que Hegel faz ao pensamento teórico de Goethe se encontram em sua Filosofia da Natureza, publicada em 1830 como
parte da obra intitulada Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Nos Cursos de
Estética, o nome de Goethe é bastante citado, mas em geral como exemplo
da boa arte, do excelente poeta, enfim, como parâmetro da poesia universal que Hegel tanto elogia. Na Filosofia da Natureza, Goethe também serve
como parâmetro: aquele que poderá um dia finalmente superar uma forma
inadequada de se fazer ciência, fundada nas práticas abstratas da empiria
e da análise, típicas do chamado entendimento. Contudo, uma das teorias
de Goethe sobre a natureza que mais ocupam o autor da Enciclopédia das
Ciências Filosóficas consiste em sua doutrina das cores. Meu objetivo neste
ensaio é ao menos indicar como a leitura de Hegel da Doutrina das Cores de
Goethe foi fundamental não apenas para sua própria concepção de uma física especulativa, capaz de superar uma visão mecanicista da natureza, mas
também para sua concepção estética sobre o fenômeno das artes plásticas,
. Doutora em Filosofia pela Freie Universität Berlin e professora adjunta do Programa de PósGraduação em Filosofia da UERJ. Submetido em 5 de fevereiro e aprovado para publicação em
15 de março de 2008.
37
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
RESUMO: Neste trabalho, pretendo tratar de algumas teses hegelianas desenvolvidas tanto
em sua filosofia da natureza quanto em sua filosofia da arte relacionadas ao fenômeno da luz
e da cor. Em ambos os diferentes contextos, Goethe serve não apenas de inspiração teórica
para Hegel – na medida em que teria oferecido uma doutrina das cores muito mais completa
e rica do que a teoria newtoniana mais freqüentemente aceita pela ciência –, mas também de
exemplo prático, por que, enquanto artista e poeta, compreenderia o fenômeno da cor de modo
muito mais apropriado à sua aplicação no campo da pintura e da arte da imaginação em geral,
incluído a poesia.
Palavras-chave: Hegel, Goethe, Arte, Cores, Luz.
Hegel leitor de Goethe: Entre a física...
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
em especial da arte da pintura. Pretendo por fim demonstrar como este
diálogo entre o ensaísta da natureza e poeta classicista e o idealista absoluto
– que concebeu além de uma filosofia do espírito, uma filosofia da natureza e uma filosofia da arte – se constrói em função da idéia de que tanto o
fenômeno da luz quanto o fenômeno da cor transitam e fluem da esfera da
natureza para a esfera da arte.
Quando no § 246 da Introdução de sua Filosofia da Natureza Hegel
cita Goethe pela primeira vez nesta obra, sua intenção é provar como a ciência de cunho analítico e mecanicista, predominante em sua época, acabava
por realizar uma cisão aparentemente inconciliável entre o aspecto universal de sua teoria sobre a natureza e a particularização ou finitização de sua
prática empírica. A passagem de Goethe citada por Hegel não pertence a nenhum de seus ensaios de filosofia da natureza, mas sim à sua mais famosa
obra poética: Fausto. Esse fato curioso revela já de antemão a conscientização que Hegel parece querer despertar em seus leitores sobre a relação
intrínseca entre a filosofia da natureza, praticada no início do século XIX por
pensadores como Goethe e Schelling, e uma concepção estética ou, mais
precisamente, poética da mesma. Uma conscientização que eu pretendo
também resgatar com este ensaio.
Essa primeira passagem de Goethe citada por Hegel é retirada de um
diálogo, ambientado no gabinete de Fausto, entre Mefistófeles e um jovem
estudante. Disfarçado no mestre, o demônio passa a aconselhar o estudante
ainda indeciso sobre o objeto de seu estudo. Deveria inicialmente estudar a
lógica, pois depois deste inicial “adestramento”, estaria pronto para a ciência, fundada, segundo ele, em duas práticas fundamentais: a redução e a
classificação. Comparando o ensino da ciência com uma “fábrica de idéias”,
Mefistófeles pronuncia então o trecho citado em parte por Hegel:
Wer will was Lebendigs erkennen und beschreiben,
Sucht erst den Geist heraus zu treiben,
Dann hat er die Teile in seiner Hand,
Fehlt, leider! nur das geistige Band.
Encheiresin naturae nennt’s die Chemie,
Spottet ihrer selbst und weiß nicht wie. (GOETHE, 1986, p. 54)
Quem quer conhecer e descrever algo vivo
Busca primeiro expulsar-lhe o espírito
Então tem na mão todas as partes
Falta-lhe – infelizmente! – o laço espiritual.
Encheiresin naturae chama-o a química,
Zomba de si mesma e não sabe como (HEGEL, 1993, p. 21; 1997, p. 23)
. A palavra grega Encheiresin significa “ter em mãos”, dominar. A expressão inteira, formada
também com a palavra em latim naturae significa “o domínio da natureza”. Encheiresin naturae
é uma expressão alquímica que se refere à suposta ligação entre corpo e alma, ou seja, ao
chamado “laço espiritual”. Os alquimistas esperavam encontrar na natureza uma força análoga
a esta ligação e com a sua ajuda, produzir a chamada “pedra dos sábios” ou “pedra filosofal”.
Mefistófeles ironiza esta pretensão de “saber” presente também, segundo ele, nas ciências da
natureza modernas. Cf. PAUL BRIAN. Study Guide for Goethe’s Faust. In: http://www.wsu.
edu:8080/~brians/hum_303/faust.html.
. Os quatro últimos versos são citados por Hegel (em ordem invertida) no § 246 de sua
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Márcia Cristina Ferreira Gonçalves
Alles gibt sie reichlich und gern;
Natur hat weder Kern
Noch Schale,
Alles ist sie mit einem Male;
Dich prüfe du nur allermeist,
Ob du Kern oder Schale seist. (GOETHE, 1820, p. 304; HEGEL, 1993, p. 22)
A natureza ricamente e de bom grado tudo dá;
Ela não tem núcleo
Nem casca,
Filosofia da Natureza.
. Já que não se pode “ver” imediatamente na natureza isto que Goethe quer afirmar.
. Este poema de Goethe foi reeditado na coletânea Gott und Welt com o título „Allerdings“ e
subtítulo „Dem Physiker“.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Ilustrando esta passagem do Fausto, Hegel apresenta (quem diria!)
uma imagem bastante romântica: a de uma flor, que analisada pela ciência
da química, perderia o chamado “laço espiritual” (geistigen Band), transformando-se em partes sem vida, ou em um agregado de substâncias: “ácidos
cítricos, óleo etérico, carbono, hidrogênio, etc”. A solução para tal problema,
que Hegel diagnostica como uma tentativa “da reflexão do entendimento” de
se impor sobre o espírito, surge quase que “naturalmente”, já que segundo o
próprio Hegel “o espírito não pode (kann nicht) permanecer neste modo da
(chamada) Verstandensreflexion”. Entretanto, a saída que o espírito encontra
para libertar-se dessa finitude do entendimento se bifurca, segundo o filósofo, em duas vias distintas – uma mais correta que a outra. Ambas podem
começar (e em geral começam) com uma apreensão imediata do fenômeno
da natureza, ou com a chamada “intuição” (Anschauung). Em Goethe, essa
intuição recebe um significado muito mais espiritual e (podemos mesmo
afirmar) muito mais poético do que propriamente sensível. Segundo Hegel,
Goethe apresenta como condição fundamental para o surgimento da filosofia
da natureza uma espécie de “pressentimento” (Ahnung) de que o universo
consiste em um “todo orgânico” (ein organisches Ganze) ou numa “totalidade racional” (eine vernünftige Totalität). Esse pressentimento é complementado pelo “sentimento” (tanto no sentido sensível, quanto no sentido
espiritual) de que há uma unidade própria em cada um dos indivíduos que
habitam este universo – o que aqui poderíamos interpretar como uma certa evidência da individuação. A primeira via de libertação do espírito de
seu aprisionamento pela reflexão do entendimento – que é capaz de cindir
analiticamente a evidente unidade dos seres vivos individuais, arrebentando-lhe seu laço espiritual – seguiria com a tentativa de aplicar a intuição
relativamente imediata da natureza de novo à esfera da reflexão. Como se
fosse então possível reagrupar as várias partes cindidas pelo entendimento
novamente em um único todo ou – voltando à imagem poética de Hegel
– reconstruir ou sintetizar novamente a totalidade de uma flor a partir dos
fragmentos resultantes da análise promovida pela química do entendimento.
A segunda via, ao contrário, retorna da intuição para o conceito ou para a
razão. Este retorno da intuição à via do conceito teria sido alcançado justamente pelo maior poeta do classicismo alemão, a quem Hegel novamente
cita, ainda no § 245 da Enciclopédia, só que agora com uma passagem de
seu ensaio Sobre a Morfologia, de 1820. Neste ensaio, Goethe expressa de
forma poética a idéia de uma totalidade orgânica da natureza:
Hegel leitor de Goethe: Entre a física...
Ela é tudo de uma vez;
Experimenta-te a ti sobretudo
[E apenas vê] se tu és [só] núcleo ou [só] casca. (HEGEL, 1997, p. 24)
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
A elevação da intuição ao conceito, traçada então por esta segunda
via, dá-se assim como reconhecimento de que a totalidade orgânica que
confere aos seres da natureza sua vitalidade necessária ou sua alma universal é a mesma que em nós possibilita a “experiência” de que somos um e o
mesmo, no interior e no exterior de nossa existência no mundo.
Essa parece ser a maior lição aprendida por Hegel de toda a teoria
da natureza de Goethe: superar a aparente oposição entre interior e exterior, entre objetivo e subjetivo em relação aos fenômenos da natureza que
preenchem não apenas o mundo que nos cerca, mas também e principalmente o nosso mundo interior. No fundo só existe um único mundo, uma
totalidade absoluta e complexa que serve de palco, ao mesmo tempo em
que é o ator principal, deste grande teatro que é a natureza.
Neste sentido, Goethe se empenha por revelar que não apenas o
pensamento conceitual e racional é capaz de operar em harmonia com a
ordem do universo, desvendando e compreendendo os antigos mistérios do
mundo, mas também a intuição, se bem compreendida, é capaz de demonstrar uma série de conexões antes desconhecidas. O maior e mais complexo
trabalho de Goethe neste sentido consiste em sua doutrina das cores, elaborada entre 1790 e 1810. Longe de tentar resumir as linhas fundamentais
deste tratado, importa-me apontar alguns aspectos desta teoria de Goethe
que mais do que provocar uma influência sobre a ciência da ótica e da cromatografia, representa uma interessante alternativa teórica para se compreender o fenômeno da pintura.
Logo na Introdução desta obra, Goethe chama atenção para o fato
de que ela também incluirá o “lado da pintura”, ou ainda, o “lado da coloração estética das superfícies”, e que principalmente a sexta seção, intitulada
Sinnlich-sittliche Wirkung der Farbe (algo como “O efeito ético-sensível das
cores”) deverá interessar em especial aos pintores. A relação do fenômeno das cores com a subjetividade é de fato uma espécie de eixo axial da
doutrina de Goethe. Por mais que as cores sejam apresentadas em seu aspecto material, como fenômeno físico e químico, passível de ser reproduzido
e controlado, Goethe concebe este fenômeno a partir da ação da luz não
propriamente sobre um corpo, mas principalmente sobre o olho humano,
apontando, surpreendentemente, a semelhança ou o “parentesco” (Verwandschaft) entre o órgão da visão e própria luz. De modo que – observa o
próprio Goethe – somos capazes de “ver” claramente uma imagem mesmo
estando de olhos fechados e mais ainda quando estamos sonhando graças
à chamada “força da imaginação” (Einbildunskraft) (Goethe, 1992a, p.57).
Já na primeira seção de sua Doutrina das Cores Goethe descreve uma série
de experimentos a fim de demonstrar o aspecto subjetivo da percepção da
cores.
40
Márcia Cristina Ferreira Gonçalves
Esse experimento demonstra a existência de uma categoria de cores que não são nem físicas nem químicas,
mas fisiológicas, como indica o título da primeira seção da Doutrina das
Cores.
Não devemos, entretanto, confundir a constatação de Goethe do aspecto fisiológico envolvido no fenômeno das cores, com sua descoberta do
aspecto subjetivo na apreensão deste fenômeno. O primeiro aspecto pode e
deve ser considerado como objetivo, e mesmo como intersubjetivo, ou seja,
aplicável a todo o olho humano “saudável”. Já o aspecto subjetivo das cores,
diz respeito ao fenômeno das cores físicas, como se pode, por exemplo,
comprovar através de um simples experimento, descrito na segunda seção
da Doutrina das Cores sob o título Subjektive Versuche (Experimentos subjetivos). Trata-se de um disco preto posto sobre um fundo branco e de um
disco branco posto sobre um fundo preto. A impressão que se tem é que o
disco preto é muito menor do que o branco.
A impressão que se tem é que ela é mais escura no primeiro caso e
mais clara no segundo.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Um deles, por exemplo, consiste em preparar uma pequena placa escura
com um orifício de 3 polegadas, o qual pode ser aberto e fechado. Através
deste orifício, deixa-se que a luz do sol passe e incida sobre uma superfície branca. À certa distância, ver-se-á, projetado sobre esta superfície, um
círculo luminoso. Em seguida, deve-se fechar o orifício da placa e voltar o
olhar para o lado escuro do quarto. O resultado é que surgirá uma aparição circular
flutuante diante do observador. Esse fenômeno aparece inicialmente sem cor, apenas como um círculo claro. Pouco a pouco,
torna-se amarelo com um aro púrpura em
sua borda. Este aro vai então se alargando
e penetrando o círculo que se torna inteiramente púrpura. Imediatamente, a borda
do círculo começa a tornar-se azul e este
azul passa a penetrar no círculo púrpura
até que este se torne totalmente azul. Em
seguida surge uma borda escura e sem cor
que vai penetrando no interior do círculo
azul, até que este se torne inteiramente
sem cor.
Hegel leitor de Goethe: Entre a física...
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
Figura 2
Certamente, a constatação do fator subjetivo na apreensão das cores
é fundamental inclusive para que Goethe possa, na última parte de sua obra,
sustentar os efeitos “ético-sensíveis” das cores sobre os seres humanos. E
esta teoria é também fundamental para uma aplicação estética das mesmas. Contudo, há uma outra tese fundamental defendida e demonstrada por
Goethe neste seu tratado que irá igualmente influenciar a concepção estética sobre as cores, especialmente a concepção hegeliana. Trata-se da tese
de que o fenômeno das cores, pensado em sua totalidade, como fenômeno
físico, químico e fisiológico, surge a partir de uma espécie de jogo entre o
claro e o escuro ou entre a luz e a sombra.
Goethe demonstra esta tese novamente através de um experimento,
no qual ele utiliza duas substâncias químicas, para obter duas cores básicas,
e uma forma tridimensional, que realiza o efeito de uma escala em degradé.
O experimento consiste no seguinte: Uma pequena escada branca é pintada
com uma solução azul de sulfato de cobre ou com uma solução amarela de
dicromato de potássio. Em cada um dos degraus inferiores, aparece um tom
mais forte de azul ou de amarelo.
Figura 3
Este experimento serve para demonstrar que as cores surgem não
da decomposição da luz (como afirmava a teoria de Newton), mas “no claro
42
Márcia Cristina Ferreira Gonçalves
e escuro” (am Hellen und am Dunkeln). Na verdade, Goethe vai ainda mais
longe quando afirma que tudo o que se vê surge exatamente deste jogo
entre o claro e o escuro. No parágrafo 849 de sua Farbenlehre, ele afirma:
Chamamos de claro-escuro (Helldunkel), Clair-obscur, a aparição (Erscheinung) dos
objetos corpóreos, quando apenas o efeito da luz e da sombra são neles observados.
(...) A separação do claro-escuro de todas as aparições das cores é possível e
necessário. O artista só irá solucionar o enigma da exposição (Darstellung) quando
pensar o claro-escuro independente das cores e conhecê-lo em sua total extensão
(GOETHE, 1992a, p.295).
Uma teoria das cores que leva em conta a complexidade do
olho humano; que discute a percepção de cada cor em função de sua
contextualização no espaço em que está sendo percebida; que leva em
conta o princípio do claro-escuro, e que, principalmente, observa o efeito
psicológico de cada cor sobre a subjetividade humana é obviamente a mais
adequada ao uso das cores pela arte da pintura.
A explicação de Hegel para esta aplicabilidade da teoria de Goethe
à arte não se baseia no argumento, freqüentemente utilizado pelos físicos
newtonianos, de sua pouca cientificidade, mas – muito pelo contrário – no
reconhecimento de sua superioridade conceitual. Hegel chega a chamar
esses físicos newtonianos de “cegos”, por permanecerem presos à “reflexão”
e a “ossificação da representação”. Ao contrário, a descrição das cores de
Goethe é, segundo ele, adaptada ao conceito. É essa capacidade que Goethe
teve de, saindo da intuição, retornar ao conceito, superando assim a fixidez
e a limitação da reflexão do entendimento, que o possibilita também unificar
uma ciência da natureza com uma ciência da arte.
Em sua Doutrina das Cores Goethe apresenta uma espécie de história
do Kolorit, ou seja, do uso das cores nas artes plásticas. Como momento
inicial desta história, Goethe discute a hipótese levantada por Plinius de que
. No original: “Das Helldunkel, Clair-obscur, nennen wir die Erscheinung körperlicher Gegenstände, wenn na denselben nur die Wirkung des Lichtes und Schattens betrachtet wird” (...)
Die Trennung des Helldunkels von aller Farbenerscheinung ist möglich und nötig. Der Künstler
wird das Rätsel der Darstellung eher lösen, wenn er sich zuerst das Helldunkel unabhängig von
Farben denkt und dasselbe in seinem ganzen Umfange kennen lernt”.
. Ou seja: em como a percepção de um objeto de determinada cor depende da cor e da
luminosidade do fundo em que ele se encontra.
43
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Este é um ótimo exemplo de como a doutrina das cores de Goethe
está muito mais voltada para um uso prático das cores pela arte do que
propriamente para uma consideração meramente teórica da ciência. Hegel
observa muito bem esta diferença e a comenta de modo enfático em sua
Filosofia da Natureza: “Nenhum pintor é tão louco a ponto de ser newtoniano”,
ironiza ele no § 320, após reconhecer o “mérito de Goethe” em ter “derrubado”
a teoria de Newton – deduzida a partir do suposto experimento com o prisma
– de que a luz seria composta por sete cores básicas (índigo, azul, verde,
amarelo, alaranjado e vermelho). Segundo Hegel, “qualquer criança sabe”
que o verde não é uma cor primitiva e se origina da mistura do amarelo e do
azul.
Hegel leitor de Goethe: Entre a física...
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
a pintura teria sua origem no esboço traçado em torno da sombra de um
corpo humano, o qual por sua vez teria sido motivado não propriamente pela
idéia de fazer uma silhueta, mas sim pela tentativa de desenhar pela primeira
vez uma figura (Gestalt) sobre uma superfície. Com esta hipótese Plínio
descreve não apenas a origem histórica da pintura, mas também a técnica
inicial utilizada pelos primeiros pintores gregos, ainda sem a utilização das
cores. A aplicação destas últimas teria surgido da necessidade de imitar, por
exemplo, a cor da pele humana, provavelmente através do uso de caco de
cerâmica ou lascas de determinadas rochas, como forma primitiva de lápis
de cor (Cf. GOETHE, 1992d, p. 72s).
Um dos primeiros indícios da arte da pintura se encontra nas figuras
em preto sobre os antigos vasos gregos. Essas figuras, que em geral retratam
corpos humanos, já envolvem (principalmente se comparadas às pinturas
egípcias) uma noção inicial sobre a perspectiva, o que poderia demonstrar a
hipótese de Plinius sobre a origem da pintura a partir da técnica de projeção
de sombras.
Figura 4
Por mais hipotética que seja esta origem do ponto de vista histórico,
Goethe considera-a em sua conceitualidade, ou seja, para ele todo o
fenômeno das cores, não apenas na pintura, mas em toda a esfera da
intuição humana, baseia-se no jogo de luz e sombra, ou na dialética entre
claro e escuro. Por isso, segundo ele, a evolução da arte da pintura se dá,
não com o acréscimo de diferentes cores, mas sim com o refinamento do
próprio desenho a fim ampliar o campo de perspectivas e conferir maior
volume às figuras inicialmente pintadas em preto.
Esse objetivo é alcançado, por exemplo, nos vasos pintados com
figuras alaranjadas sobre um fundo negro e através do desenvolvimento
da técnica do degradé, onde as partes mais claras refletem mais a luz,
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Márcia Cristina Ferreira Gonçalves
enquanto as mais escuras concentram mais a sombra.
A partir deste hipotético começo, Goethe descreve o desenvolvimento
da técnica da pintura ao longo da história a partir do uso de diferentes
materiais. Entretanto esta pequena história narra de fato a aplicação da sua
própria teoria de que o fenômeno das cores surge do jogo entre o claro e
o escuro. As bases desta teoria já tinham sido fundadas por Johan Kepler
(1571- 1630), como esclarece o próprio Goethe na Parte Histórica de sua
Doutrina das Cores. “Color est lux in potentia”, expressa a máxima de Kepler
que Goethe traduz para o alemão como “Farbe ist Licht in Wirksamkeit” (“Cor
é luz em sua eficácia”). A partir desta concepção, Kepler teria explicado a
diferença das cores a partir dos diferentes níveis de claridade, à qual a matéria
está submetida, ou ainda devido à maior densidade ou maior porosidade de
sua própria matéria e, conseqüentemente, devido à sua maior transparência
ou opacidade. Neste sentido – interpreta Goethe –, segundo Kepler, a cor
surgiria exatamente do limite entre a luz e a sombra (Cf. GOETHE, 1992d,
p.194).
Em sua Estética, Hegel também compreende o jogo do claro e escuro
presente na pintura como proveniente de sua própria “matéria” – ou seja,
da cor aplicada à superfície da tela – e interpreta este fenômeno como o
responsável pela criação da forma neste tipo de arte – uma forma obviamente
apenas “aparente” ou ainda “supérflua” (überflüssig), ou seja, criada da
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Figura 5
Hegel leitor de Goethe: Entre a física...
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
aparência de tridimensionalidade em uma superfície plana. Para explicar
este fenômeno, Hegel provoca um jogo semântico e poético envolvendo a
palavra “Schein”, que significa ao mesmo tempo “aparência” e “brilho”.
Na pintura, o claro e escuro pertencem, eles mesmos, com todas as
suas gradações e transições as mais sutis, ao princípio do material artístico
e apenas produzem a aparência intencional daquilo que a escultura e a
arquitetura configuram para si mesmas de modo real. A luz e a sombra, o
aparecer dos objetos em sua iluminação, são provocados pela arte e não
por meio da luz natural, a qual por isso apenas torna visível aquele claro e
escuro e a iluminação que aqui é produzida pela pintura. Este é o fundamento
positivo que provém do próprio material mesmo, motivo pelo qual a pintura
não necessita das três dimensões. A forma é feita por meio da luz e da
sombra e como forma real é por si supérflua (HEGEL, 2002, p.206).
Nesta passagem, Hegel deixa clara a idéia de que a luz responsável
pelo fenômeno da pintura não é de fato a mesma luz que se pode considerar
natural, aquela, por exemplo, que incide sobre uma folha de árvore deixandose refletir o verde que comumente vemos. A luz que gera a pintura é muito
mais uma luz espiritual, pois ela é capaz não apenas de refletir as cores e as
formas dos objetos, mas de criar objetos em uma superfície onde antes nada
mais existia além da mera superfície. A superficialidade das formas então
criadas contrasta com a sua profundidade aparente ou com a aparência de
sua profundidade. A capacidade de gerar formas através do jogo de luz e
sombras e, conseqüentemente, através do uso correto das cores assemelhase ao próprio processo de individuação presente na natureza. No âmbito da
pintura, entretanto, o domínio das cores estende este processo de criação das
formas para uma singularização cada vez mais subjetiva. Esta tese sobre o
processo de subjetivação através da arte da pintura tinha sido de certo modo
antecipada por Goethe em sua Doutrina das Cores. Um de seus principais
interesses nesta obra é constatar que os pintores que dominaram a técnica do
claro e escuro e conseqüentemente que alcançaram uma exposição perfeita
da luz através do uso das cores, atingiram também o nível da singularidade
na apresentação de suas figuras. Em sua breve história da pintura, Raffael
ganha um importante destaque, especialmente porque a singularidade da
qual Goethe fala, se expressa também na individualidade e personalidade
das figuras deste importante pintor renascentista.
Tomo aqui como exemplo um quadro produzido entre 1505 e 1506,
intitulado Retrato de uma jovem mulher com unicórnio. Aqui a história da
pintura parece alcançar finalmente a sua verdadeira profundidade. Cada
prega do vestido da donzela, cada cacho de seus fios de cabelo, a delicada
marca em sua pele alva deixada pelo peso da pedra que lhe pende do
pescoço, a mistura de brilho e de sobriedade de um olhar um tanto rígido,
talvez distante e alheio, sequer contrastam com o exótico e improvável
animal que se acomoda confortável entre os braços dessa virgem – única
capaz, segundo o mito medieval, de domesticar este selvagem. O filhote
de unicórnio se mostra manso, de pêlos rebeldes porém macios ao tato,
46
Márcia Cristina Ferreira Gonçalves
as patas se entrelaçam às mãos da donzela em sinal de aliança, e o chifre
afiado parece não servir de qualquer ameaça. Esta harmonia completa
só é conquistada graças ao uso correto das cores, ao equilíbrio do azul
contraposto ao vermelho e mediados por um tom de terra esverdeado. Tudo
se fecha em um círculo seguro e calmo de uma luz tenra e tranqüila, própria
de uma subjetividade espiritual que começa a interiorizar-se.
Em sua Estética Hegel observa a importância da luz na arte da pintura
para a construção desta interioridade:
Mas na arte o Conteúdo espiritual não pode ser separado do modo da exposição. Se
a este respeito questionamos por que a pintura foi alcançada à sua peculiar altura
apenas por meio do conteúdo da Forma de arte romântica, então são justamente
a intimidade (Innigkeit) do sentimento, a beatitude e a dor do ânimo este Contudo
mais profundo que exige uma animação espiritual, o qual abriu o caminho para
a perfeição artística pictórica mais elevada e a tornou necessária (HEGEL, 2002,
p.198).
Em seguida, Hegel propõe uma comparação interessante, na qual em
um dos lados encontramos novamente Raffael. Trata-se da famosa imagem
da madona com o menino Jesus. No outro lado da comparação Hegel põe
uma obra de arte que se insere, segundo sua própria designação, na forma
de arte simbólica: A rainha Isis segurando o filho Hórus.
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Figura 6
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
Hegel leitor de Goethe: Entre a física...
Figuras 7-8
Embora se trate aparentemente do mesmo sujet, ou seja, do mesmo
motivo, as duas diferentes obras se distinguem não apenas pela forma
de exposição, mas principalmente, segundo Hegel pela sua profundidade
e interioridade na exposição do sentimento materno: “A Isis egípcia (diz
Hegel) (...) não tem nada de materno, nenhuma ternura, nenhum traço da
alma do sentimento” (HEGEL, 2002, p.198).
Já em relação à Madona de Raffael, Hegel exclama com entusiasmo:
Que profundidade do sentimento, que vida espiritual, que intimidade e plenitude,
que majestade ou graça, que ânimo humano e todavia inteiramente penetrado pelo
espírito divino nos dizem em cada traço! (HEGEL, 2002, p.198).
O mágico enriquecimento das figuras da pintura romântica em relação
à escultura simbólica deve-se certamente ao poder do uso das cores e ao
domínio por parte dos pintores a partir da época renascentista da técnica do
claro e escuro. Como observará ainda Hegel, o “elemento físico do qual se
serve a pintura” é de fato “a luz como aquilo que torna universalmente visível
a objetualidade em geral” (HEGEL, 2002, p. 205). Seguindo uma dialética que
lembra em parte aquela expressa por Schelling em sua filosofia da natureza,
Hegel descreve o “princípio da luz” como oposto ao princípio denominado
“matéria pesada” (schwere Materie) – o mesmo princípio que servia de base
para a arte simbólica, especialmente para a arquitetura. Enquanto para
Schelling matéria e luz são a primeira e a segunda potências da natureza, de
cuja síntese surge o organismo enquanto terceira e mais elevada potência do
mundo real, Hegel considera em seus Cursos de Estética a matéria pesada
como um princípio ideal da arte, inferior ao princípio da luz, simplesmente
porque possuiria o seu centro ou o ponto de sua unidade fora de si. A luz,
ao contrário, é para Hegel absolutamente leve e não oferece resistência, é
48
Márcia Cristina Ferreira Gonçalves
“pura identidade consigo mesma”, pura relação consigo mesma”, consistindo
assim na “primeira idealidade da natureza”, ou no seu “primeiro Si” (Selbst)
(HEGEL, 2002, p. 205). Isso explicaria a tese de que quando a arte passa a
ter como princípio a luz e sua leveza e não mais a matéria e sua gravidade,
iniciar-se-ia um ciclo de subjetividade na história da arte, característico da
chamada forma de arte romântica:
Quando em sua Doutrina das Cores, Goethe trata do efeito ético do
uso das cores na arte, ele enfatiza exatamente a importância do domínio
da técnica de luz e sombra para o êxito da pintura: “Apenas por meio da
concordância de luz e sombra, da atitude, da verdadeira e característica
aplicação das cores, a pintura pode aparecer (...) como completa” (GOETHE,
1992a, p.306). O interesse e admiração de Goethe pelos pintores holandeses,
compartilhada também por Hegel, está exatamente no reconhecimento do
domínio desta técnica do claro e escuro.
Vejamos como exemplo a obra de um famoso pintor holandês do
século XVII citado por Goethe e muito respeitado também por Hegel. Em seu
quadro intitulado Lição sobre Anatomia, de 1632, Rembrandt supera o que
segundo Goethe é um dos maiores desafios da pintura: expressar a carne
humana. Aqui se nota claramente o contraste entre a cor da pele dos curiosos
e aplicados estudantes de medicina com a palidez exacerbada da carne morta
sobre a mesa de exame autopsial. De fato, as faces dos estudantes recebem
um gradiente de cores, que vai do esverdeado do provável choque diante da
carne exposta, ao púrpura da indisfarçável excitação com a nova descoberta.
Estando no centro das atenções, ainda que sobre ele não repouse nenhum
dos vários olhares que ali circulam, o cadáver recebe um foco extra de luz,
com exceção da região de seus próprios olhos, que, duplamente mortos, se
recolhem murchos na interioridade profunda de uma alma alienada de si.
. No original: “Nur durch die Einstimmung des Lichtes und Schattens, der Haltung, der wahren
und charakteristischen Farbengebung kann das Gemälde von der Seite, von der wir es gegenwärtig betrachten, als vollendet erscheinen”. (Farbenlehre, Letzter Zweck § 901).
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Na luz a natureza começa pela primeira vez a ser subjetiva e é, pois, o eu universal
físico, que certamente não se impeliu nem para a particularidade nem se contraiu
para a singularidade e para o fechamento pontual em si mesmo, mas para isso
supera a mera objetividade e exterioridade da matéria pesada e pode abstrair da
totalidade sensível, espacial, dela (HEGEL, 2002, p. 205).
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
Hegel leitor de Goethe: Entre a física...
Figura 9
Outro exemplo do uso adequado da luz e conseqüentemente do
equilíbrio perfeito das cores podemos encontrar nas obras de um não menos
famoso pintor italiano do mesmo século.
Na impressionante pintura de 1601-1603, intitulada A Incredibilidade
de São Tomé, Caravaggio expõe também o corpo humano sob um fascinante
jogo de luz e sombra, sendo que no grupo dos quatro homens o mais exposto
é o corpo do cristo ressuscitado. De uma vitalidade misteriosa, ele emana
luz mais intensamente que os outros e ainda mais clara do que a refletida
pelo manto branco que o envolve. Todo entorno do mundo, responsável
definitivamente pela morte do salvador, se encontra, entretanto, mergulhado
em trevas profundas.
Figura 10
50
Márcia Cristina Ferreira Gonçalves
Essa aparência de vida, uma vida espiritual, mais poderosa e brilhante
do que a vida natural ou corpórea,é conquistada pela pintura dita romântica
exatamente através de um estágio elevado de subjetividade interior. Hegel
afirma repetidas vezes em sua Estética a importância do domínio da utilização
da cor na pintura, que segundo ele “leva a plenitude da alma à sua aparição
propriamente viva” (HEGEL, 2002, p.232):
Contudo, a interioridade subjetiva que marca o início espiritual da
forma de arte romântica, representada de modo paradigmático pela pintura
renascentista italiana, teve que “evoluir” dialeticamente para o extremo da
exterioridade do particular, no qual, ao contrário de ser penetrada e maculada
pela não-liberdade da chamada “prosa do mundo”, afirmou ainda mais a sua
autonomia e liberdade. É assim que Hegel explica a evolução da pintura como
apresentando desde a natureza mais interior, com suas imagens religiosas
de martírio e amor espiritual (Figura 11) até a natureza mais exterior, com
a apresentação de paisagens (Figura 12); da apresentação do “humano”
mais subjetivo (Figura 13), “até o que é mais fugaz nas situações e nos
caracteres” (Figura 14). Podemos ilustrar estes momentos de evolução da
pintura através dos seguintes quadros:
Figura 11
51
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
(...) o objeto da pintura (...) é apenas um parecer / brilhar [Scheinen] do interior
espiritual que a arte expõe para o espírito, a autonomia se separa da existência
efetiva, espacialmente dada, e alcança uma relação muito mais estreita com o
espectador do que na obra da escultura (HEGEL, 2002, p. 203).
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
Hegel leitor de Goethe: Entre a física...
Figura 12
Figura 13
52
Márcia Cristina Ferreira Gonçalves
A pintura permite-se assim apresentar o que é mais contingente,
mais cotidiano, mais prosaico, sem, no entanto, perder a liberdade subjetiva
por ela conquistada. A aparência na liberdade se revela assim como o
desdobramento e a multiplicação dos “brilhos” na pintura:
Com suprema arte vemos serem fixados os brilhos [die Scheinen] mais fugazes do
céu, das horas do dia, da iluminação da floresta, a aparência e o reflexo [Scheine
und Widerscheine] das nuvens, das ondas, dos lagos, dos rios, o cintilar e reluzir
do vinho no copo, o brilho do olho, o aspecto momentâneo do olhar, do sorriso etc
(GOETHE, 1992a, p. 201).
Este último momento da pintura descrito por Hegel revela-se em
especial através dos pintores holandeses a partir do século XVII. Considerados
também por Goethe como os mestres no uso da cor, por dominarem o
conceito do claro e escuro, eles alcançaram este domínio, segundo Hegel,
em parte por viverem em um ambiente geográfico privilegiado, “próximos
ao mar, numa terra baixa, cortada por pântanos, águas e canais” (HEGEL,
2002, p. 232). Em parte, entretanto, o desempenho excepcional dos
holandeses se explica para Hegel por meio de sua história política. Este povo
desenvolvera um tal senso de liberdade, de modo que a expressão das cenas
mais prosaicas de sua pintura e a aparência mais fugaz de seus objetos
exteriores provocam no espectador aquela mesma intimidade já plenamente
desenvolvida e cultivada pelo espírito. A pintura agora se permite inclusive
apresentar como tema a própria objetivação da vida pela ciência moderna.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Figura 14
Hegel leitor de Goethe: Entre a física...
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
O quadro de Rembrandt de 1632, aqui já citado, expõe um dos mais
radicais exemplos desta prática analítica da ciência. A objetivação e alienação
total do ser humano se expressa através do fascinante contraste entre luz
e sombra, sublinhado pelo sugestivo jogo dos olhares em fuga. Mas o olhar
do espectador – podemos aqui interpretar seguindo o ensinamento de Hegel
– não se deixa alienar por essa ciência reducionista. Através de um pacto
secreto com a própria subjetividade livre do pintor, ele consegue penetrar no
mágico jogo de luz, reatando assim o laço espiritual anteriormente perdido.
Com a pintura moderna, a arte atinge assim o seu lugar de autonomia diante
das práticas alienantes do mundo. Isso graças ao fortalecimento de um
sujeito espiritualmente autoconsciente:
Na pintura (...), cujo conteúdo constitui a subjetividade e, na verdade, a interioridade
ao mesmo tempo particularizada em si mesma, este lado da cisão tem igualmente
também de aparecer na obra de arte como objeto e espectador, mas imediatamente
se dissolver de modo que a obra, expondo o subjetivo, também apresente a
determinação, segundo todo o seu modo de exposição, de existir essencialmente
apenas para o sujeito, para o expectador e não autonomamente para si. O
expectador, por assim dizer, participa desde o início, é levado em consideração, e a
obra de arte apenas é para este ponto firme do sujeito (HEGEL, 2002, p.203).
Figura 15
Essa consideração da subjetividade do outro, ou da possibilidade da
intersubjetividade através do fenômeno da pintura corrobora para a principal
tese da estética de Hegel, a de que a arte promove o reconhecimento do
espírito pelo espírito. Mas este mesmo processo de espiritualização por
meio da arte, iniciado com a pintura renascentista, serviu de base para um
processo dialeticamente contrário: o da secularização e do prosaísmo da
arte. E foi este processo que possibilitou que a arte ousasse lançar-se em
abismos cada vez mais profundos, em cisões cada vez mais graves, a ponto
de dissolver-se no radicalismo de uma prática inteiramente livre de fixações
54
Márcia Cristina Ferreira Gonçalves
de objetos determinados. Faz parte desta contradição dialética, entretanto,
um movimento reflexivo contrário, que muitas vezes é interpretado como
um sinal de grande crise na esfera das artes. Devemos nos perguntar
se nossa atual cultura do espetáculo, com seus brilhos demasiadamente
fugazes, sua formas cada vez mais estetizadas e seu excesso de cores, não
nos deve obrigar a um novo mergulho em uma nova interioridade, a fim de
purificarmos o nosso olhar dessa multiplicidade enlouquecida dos objetos do
mundo.
1 – Recorte do Quadro de número 1 (Tafel 1) impresso na edição citada
da Doutrina das Cores de Goethe: Johann Wolfgang Goethe: Farbenlehre.
Mit Einleitungen und Kommentaren von Rudolf Steiner. Editores: Gerhard
Ott und Heirich O. Proskauer. Stuttgart 1992 (ISBN 3-7725-0702-6).
Imagens digitais dos quadros da Doutrina das Cores de Goethe podem
ser encontrados no site: http://www.farben-welten.de/farbenlehre/tafeln/
tafeln_zur_farbenlehre.htm.
2 – Recorte do Quadro de número 2a (Tafel 2a), impresso na edição citada
da Doutrina das Cores de Goethe: Johann Wolfgang Goethe: Farbenlehre.
Mit Einleitungen und Kommentaren von Rudolf Steiner. Editores: Gerhard
Ott und Heirich O. Proskauer. Stuttgart 1992 (ISBN 3-7725-0702-6).
Imagens digitais dos quadros da Doutrina das Cores de Goethe podem
ser encontrados no site: http://www.farben-welten.de/farbenlehre/tafeln/
tafeln_zur_farbenlehre.htm.
3 – Fonte: http://www.seilnacht.com/Lexikon/goethe2.htm
4 - Guerreiros. Detalhe de Ânfora com black-fugure da Ática, ca. 570-565
a.C. Departamento de antiguidades gregas, etruscas e romanas do Museu
do Louvre, Paris. (Imagem de domínio público) Fonte: http://en.wikipedia.
org/wiki/Image:Amphora_warriors_Louvre_E866.jpg.
5 – Red-figure: Hydria (jarro de água) com Hércules menino e Hera the
infant Herakles strangling snakes sent by the goddess Hera), ca. 460-450
a.C., atribuida a Nausicaä (pintura). Metropolitan Museum of Art, New York.
Fonte: Site do Museu: http://www.metmuseum.org/toah/hd/hera/ho_25.28.
htm#.
6 – Rafael: Retrato de uma jovem com unicórnio (1505-1506). Galeria
Borghese, Roma. Fonte: http://www.zeno.org/Kunstwerke/B/Raffael%3A+
Portr%C3%A4t+einer+jungen+Frau+mit+dem+Einhorn.
7 - Ísis amamentando Hórus. Estátua de Bronze da Era Ptolomaica. Encontrase no Museum Egpyptisches Museum (Domínio Público). Fonte: http://
upload.wikimedia.org/wikipedia/en/1/15/ MaryAndHorus.JPG.
55
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Índice das Imagens:
Hegel leitor de Goethe: Entre a física...
8 – Raffael (Raffaelo Santi, 1483-1520): Madona Sixtina (Madonna di San
Sisto) (1512-1514) - Gemälde Galerie Alte Meister, Dresden. Fonte: http://
commons.wikimedia.org/wiki/Image:Raffael%2C_Sixtinska_madonnan.jpg.
9 – Rembrandt: Lições de Anatomia (The Anatomy Lecture of Dr. Nicolaes Tulp,
1632). The Hague, Mauritshuis. Fonte: http://www.zeno.org/Kunstwerke/B/
Rembrandt+Harmensz.+van+Rijn%3A+Anatomie+des+Dr.+Tulp.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
10 – Caravaggio: A incredulidade de São Tomé (The Incredulity of Saint
Thomas) (1601-02). Neues Palais, Postdam. Fonte: http://en.wikipedia.org/
wiki/Image:Caravaggio_incredulity.jpg.
11– Ludovico Carracci (1555-1619): “A lamentação” (ca. 1582). Metropolitan
Museum of Art, New York. In Timeline of Art History. New York: The
Metropolitan Museum of Art, 2000. http://www.metmuseum.org/toah/
ho/08/eustn/ho_2000.68.htm. (October 2006).
12 - Caspar David Friedrich (1774-1840): “O Verão” (1807). Fonte: http://
commons.wikimedia.org/ wiki/Image:Caspar_David_Friedrich_010.jpg.
13 – Johannes Gumpp (1626-?): Auto-retrato (Self-portrait) (1646). Fonte:
http://en.wikipedia.org/ wiki/Image:Johannes_gumpp.jpg.
14 – Jan Vermeer van Delft (1632-1675): The Milkmaid (Het melkmeisje)
(1658-1660). The National Art Centre. Fonte: The Yorck Project: 10.000
Meisterwerke der Malerei. DVD-ROM, 2002. ISBN 3936122202. Distributed
by DIRECTMEDIA Publishing GmbH: http://en.wikipedia.org/wiki/Image:
Jan_Vermeer_van_Delft_021.jpg.
Bibliografia:
Johann Wolfgang Goethe: Farbenlehre. Mit Einleitungen und Kommentaren
von Rudolf Steiner. Editores: Gerhard Ott und Heirich O. Proskauer. Stuttgart
1992.
___: Faust. Der Tragödie erter Teil. Philipp Reclam: Stuttgart, 1986.
___: Zur Morphologie, 1 Bd., 3. Heft, Stuttgart u. Tübingen 1820.
Georg Wilhelm Friedrich Hegel: Enzyclopädie der philosophischen
Wissenschaften 1830. Zweiter Teil. Die Naturphilosophie. In: Werke in 20
Bänden. Suhrkamp: Frankfurt am Main, 1993.
___: Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830). Volume
II: A Filosofia da Natureza. Trad. J. Noqueira Machado. São Paulo: Loyola,
1997.
___: Cursos de Estética. Volume IV. Trad. M. A. Werle. São Paulo: Edusp,
2002.
56
Traduções
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 5, nº8, Junho-2008: 57-74
Hegel, variantes do fragmento “Die Liebe”
Apresentação e tradução de Joãosinho Beckenkamp
ZUSAMMENFASSUNG: In der kritischen Ausgabe von Hegels Werk besteht eine wichtige Lücke
bezüglich der Texten aus der Frankfurter Periode, die bis jetzt noch nicht in der historisch-kritischen Edition der Rheinisch-Westfälischen Akademie der Wissenschaften erschienen sind. Da die
bis heute benutzte Ausgabe von Nohl nicht mehr den gegenwärtigen Standards einer kritischen
Edition entspricht, steht die Untersuchung dieser Periode vor einer unumgänglichen Schwierigkeit. Um das Ausmass dieser Schwierigkeit dem brasilianischen Publikum sichtbar zu machen,
wird hier die Übersetzung des von Nohl so benannten Fragments “Die Liebe” gebracht, nebst
zweier Fassungen dieses Fragments, von Ch. Jamme 1982 in den Hegel-Studien mit kritischer
Sorgfalt ediert.
Schlüssel-Worte: Hegel, Liebe, Nohl, Jamme.
1. Apresentação do material
Na pesquisa voltada para o desenvolvimento juvenil de Hegel, foi
possível realizar um significativo avanço desde que se iniciou, no ano de
1968, a edição crítica do conjunto dos textos legados por Hegel. Hoje os
pesquisadores interessados no jovem Hegel têm à sua disposição tudo o
que sobreviveu de seus escritos, desde o ginásio em Stuttgart até o período
de Iena, com uma lamentável exceção: os textos do período de Frankfurt.
Esses textos, fundamentais para a compreensão da formação originária das
idéias sistemáticas de Hegel, deverão sair no segundo volume da edição crítica (GW 2), cuja edição ficou sob a responsabilidade de F. Nicolin.
Até agora, o texto de referência na investigação do período de Frankfurt têm sido os Escritos teológicos juvenis de Hegel, uma seleção dentre
os primeiros escritos de Hegel publicada por H. Nohl em 1907. Junto com o
trabalho pioneiro de W. Dilthey, cujo livro A história da juventude de Hegel
é de 1905, a edição de Nohl marcou profundamente a recepção dos textos
juvenis de Hegel. Na linha da filosofia da vida, ainda em voga na passagem
para o século XX, formou-se a imagem de um jovem filósofo aberto às questões da vida, ao irracionalismo, à teologia etc., uma imagem que se prestava
à contraposição com o sistema fechado e racionalista do Hegel maduro. Essa
imagem do jovem Hegel só começou a ser desfeita a partir da edição crítica
de seus textos de juventude. Hoje é possível formar uma idéia bem mais
realista do desenvolvimento de Hegel em Tübingen, Berna e Iena. Falta só o
. Doutor em Filosofia pela Unicamp e professor adjunto da UFPel. Submetido em 15 de dezembro de 2007 e aprovado para publicação em 17 de março de 2008.
57
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
RESUMO: Na edição crítica da obra de Hegel, permanece uma lacuna importante no concernente a seus textos do período de Frankfurt, ainda não publicados na edição histórico-crítica da
academia. Como a edição de Nohl, única referência até hoje, não atende aos critérios editoriais
mais atualizados, criou-se uma situação de impasse na investigação do período mencionado.
Para tornar clara a extensão do problema, apresenta-se aqui a tradução de um fragmento na
edição de Nohl, seguido das duas versões originais do mesmo texto, publicadas por Ch. Jamme.
Palavras-chave: Hegel, Amor, Nohl, Jamme.
Hegel, variantes do fragmento “Die Liebe”
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
período de Frankfurt.
Ora, no período de Frankfurt ocorre a inflexão essencial no desenvolvimento do jovem Hegel, aquela que lança os primeiros fundamentos de seu
pensamento sistemático – tanto é possível dizer, apesar de toda a precariedade do material até hoje disponível. A lacuna que permanece é, portanto,
significativa.
Uma contribuição importante para lançar alguma luz sobre o terreno
que deverá ser investigado melhor a partir da edição crítica dos escritos do
período de Frankfurt (em GW 2) foi feita por Ch. Jamme com a publicação,
segundo os critérios editoriais mais atualizados, do material que resultou
no fragmento “Die Liebe” na edição de Nohl. O que o trabalho editorial de
Ch. Jamme tornou claro é a existência de duas versões substancialmente
distintas dos textos daquele período. Nohl fundiu essas versões num texto
único sem nenhuma menção de seu procedimento, o que torna o resultado
de seu trabalho bastante problemático. Com o intuito de chamar a atenção
dos estudiosos de Hegel no Brasil para a situação problemática em que se
encontra a investigação de seu desenvolvimento no período de Frankfurt,
publico aqui a tradução do material pertinente.
Concebido inicialmente (mas retirado por razões de espaço) como
apêndice ao livro O jovem Hegel: Formação de um sistema pós-kantiano,
em vias de publicação, o material que se segue consiste na tradução do fragmento que leva o título “Die Liebe” na edição de Nohl (A), seguida da tradução das duas versões (B1 e B2) encontradas nos manuscritos e publicadas
por Ch. Jamme na Hegel-Studien em 1982. Na tradução dessa edição crítica
por antecipação do mencionado fragmento, procurei ser o mais fiel possível
ao cuidadoso trabalho do editor, preservando todas as suas indicações editoriais.
2. Tradução
A) “Die Liebe” (NOHL, p. 378-379)
... a cujo fim, pois, serve todo o restante, nada se encontra em luta com
esse, com o mesmo direito; – como, p. ex., Abraão se põe como fim último
a si mesmo e sua família, e mais tarde seu povo – ou toda a cristandade, a
si mesma – Mas, quanto mais é estendido este todo, quanto mais é reduzido
à igualdade da dependência – quando o cosmopolita abrange todo o gênero
humano em seu todo – tanto menos recai sobre cada um do domínio sobre
os objetos, e do favorecimento do poder reinante; cada um individualmente
perde tanto mais em seu valor, em suas exigências, em sua auto-suficiência;
sem o orgulho de ser o centro das coisas, o fim do todo coletivo constitui
para ele o supremo e despreza a si mesmo, como uma parte tão ínfima
quanto todos os indivíduos.
. H. NOHL (ed.). Hegels theologische Jugendschriften, nach den Handschriften der Kgl. Bibliothek in Berlin. Tübingen, Mohr, 1907.
58
Joãosinho Beckenkamp
Uma vez que este amor por causa do morto está cercado apenas de matéria,
a matéria lhe é em si indiferente, e sua essência consiste em que o homem é
em sua natureza mais íntima um contraposto, auto-suficiente, que tudo lhe
é mundo exterior, o qual, portanto, é tão eterno quanto ele mesmo, assim
certamente mudam seus objetos, mas eles não lhe faltam jamais; tão certo quanto ele é, são eles e sua divindade; daí sua tranqüilidade no caso de
perda e seu consolo certo de que a perda lhe será compensada, porque ela
lhe pode ser compensada.
Verdadeira união, genuíno amor, somente se dá entre vivos que são iguais
em poder, e, portanto, são de todo vivos um para o outro, de nenhum lado
mortos um para o outro; o amor exclui toda contraposição, ele não é entendimento, cujas relações deixam o múltiplo sempre ainda um múltiplo e cuja
unidade ela mesma são contraposições; ele não é razão, a qual simplesmente contrapõe seu determinar ao determinado; ele não é algo limitante,
nem algo limitado, não é algo finito; ele é um sentimento[a], mas não um
sentimento singular; do sentimento singular, porque apenas uma vida parcial, não toda a vida, a vida rompe através da dissolução, até a dispersão na
multiplicidade dos sentimentos, e para se encontrar neste todo da multiplicidade; no amor, esse todo não está contido como na soma de muitos particulares separados; nele se encontra a própria vida, como uma reduplicação
de si mesma, e unidade da mesma; desde a unidade não desenvolvida, a
vida percorreu, através da formação, o círculo de uma unidade completa[b] ;
à unidade não desenvolvida contrapunha-se a possibilidade da separação e o
mundo; no desenvolvimento, a reflexão produzia cada vez mais contraposto, o qual era unido no impulso satisfeito, até que ela contrapôs ao homem
[a] no qual, entretanto, não se pode distinguir o que sente e o que é sentido, de maneira tal
que esse pudesse ser contraposto àquele, que esse pudesse ser apreendido pelo entendimento e tornar-se objeto. Ele é um sentimento do vivo. Como vivos, os amantes são um. Eles só
podem se distinguir em vista do mortal. **[NT: as notas aqui referidas por letras minúsculas
são do próprio texto de Nohl, que assim já incluía algumas variantes.]
[b] Esta unidade é vida completa, porque nela foi satisfeita também a reflexão; à unidade não
59
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Desta maneira, a matéria é para o homem absoluta; mas certamente, se ele
mesmo já não fosse, também nada mais seria para ele, e por que ele então
teria de ser? É bastante compreensível que ele gostaria de ser; pois fora de
sua coleção de restrições, de sua consciência, encontra-se, não a união em
si completa e eterna, tão-somente o estéril nada, mas certamente o homem
não pode suportar pensar-se nesse nada. Ele é apenas como um contraposto; o contraposto é para si reciprocamente condição e condicionado; ele tem
de se pensar fora de sua consciência, nenhum determinante sem determinado, e vice-versa, nenhum é incondicionado, nenhum traz em si a raiz de seu
ser, cada qual é apenas relativamente necessário; um é para o outro e, portanto, também para si mesmo tão-somente através de um poder estranho;
o outro lhe é atribuído através de seu favor e de sua graça; não se encontra
em parte alguma um ser independente, a não ser em um estranho, de cujo
estranho o homem recebe tudo de presente, e ao qual ele tem de agradecer
por si mesmo e pela imortalidade, pela qual suplica com tremor e temor.
Hegel, variantes do fragmento “Die Liebe”
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
a totalidade do próprio homem, até que o amor supera a reflexão em total
ausência de objeto, subtrai ao oposto todo o caráter de um estranho, e a
vida se encontra a si mesma sem outra carência. No amor o separado ainda
é, mas já não como separado – como uno, e o vivo sente o vivo.
Uma vez que o amor é um sentimento do vivo, os amantes só podem distinguir-se na medida em que são mortais, na medida em que pensam esta
possibilidade da separação, não como se efetivamente algo estivesse separado, como se o possível ligado a um ser fosse algo efetivo. Em amantes não
há matéria, eles são um único todo vivo; amantes possuem auto-suficiência,
e princípio vital próprio significa apenas: eles podem morrer. A planta tem
elementos salinos e terrosos que trazem em si leis próprias de sua eficácia,
ela é a reflexão de um estranho, o que quer dizer apenas: a planta pode
decompor-se. Mas o amor também procura superar essa distinção, essa
possibilidade como mera possibilidade, e unir até mesmo o mortal, tornálo imortal[a]. O separável, enquanto ainda é algo próprio antes da completa
união, causa embaraço aos amantes, ele constitui uma espécie de conflito
entre a entrega total – o único aniquilamento possível, o aniquilamento do
contraposto na união – e a auto-suficiência ainda existente; aquela se sente
impedida por essa – o amor se irrita com o ainda separado, com uma propriedade; essa irritação do amor com a individualidade é o pudor; ele não
é estremecimento do mortal, uma expressão da liberdade de se conservar,
de subsistir; num ataque sem amor, um ânimo cheio de amor é ofendido
por essa hostilidade mesma, seu pudor torna-se cólera, que agora apenas
defende a propriedade, o direito. – Se o pudor não fosse um efeito do amor,
que tem a forma da irritação tão-somente sobre o fato de que há algo hostil,
mas fosse ele mesmo, segundo sua natureza, algo hostil que quisesse sustentar uma propriedade contestável, ter-se-ia de dizer dos tiranos que eles
têm o máximo de pudor, assim como de garotas que não entregam seus encantos sem dinheiro – ou dos vaidosos que querem cativar por eles. Ambos
não amam, sua defesa do mortal é o contrário da irritação com o mesmo
– eles lhe atribuem em si um valor, eles são despudorados. Um ânimo puro
não se envergonha do amor, mas se envergonha por esse não ser perfeito,
ele se repreende por ainda existir um poder, algo hostil que constitui um
obstáculo para a perfeição. O pudor somente ocorre pela recordação do corpo, pela presença pessoal, no sentimento da individualidade – ele não é um
temor pelo mortal e próprio, mas perante o mesmo, um temor que, como o
amor, diminui o separável e com ele desaparece; pois o amor é mais forte
do que o temor e não teme seu temor, mas dele acompanhado supera separações, com o receio de encontrar uma contraposição resistente e mesmo
firme, o amor é um mútuo dar e receber; temeroso de que seus dons posdesenvolvida opunha-se a possibilidade da reflexão, da separação; nessa [unidade desenvolvida], a unidade e a separação estão unidas, algo vivo que tinha sido contraposto a si mesmo
(e se sente agora a si mesmo), mas não tornava esta contraposição absoluta. No amor, o vivo
sente o vivo. No amor, portanto, estão resolvidas todas as tarefas, a unilateralidade autodestrutiva da reflexão, e a contraposição infinita do inconsciente, unidade não desenvolvida.
[a] para superar a intuição, na qual ainda se encontra o separado, ele se toca, se apalpa e
penetra um no outro
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60
Joãosinho Beckenkamp
[a]
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torna-se planta, do mais unido ele passa pelo animal até a vida humana – Mas o separável
retorna ao estado da separabilidade; mas os espíritos tornam-se mais unidos do que jamais, e
o que ainda era separado de consciência determinada é tudo posto de lado; todos os pontos em
que um tinha tocado o outro ou tinha sido por ele tocado, portanto apenas sentido e pensado,
são compensados, os espíritos são substituídos.
[b] A criança é os próprios pais
[c] mas tão-somente entre os próprios amantes
[d] enquanto o separado é capaz de uma união no sentimento
[e] uma parte de um
[f] Neste caso, o mais pobre hesita em receber do mais rico, em pôr-se em igualdade de pos-
61
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
sam ser desprezados, temeroso de que um contraposto poderia não ceder a
seu receber, ele experimenta, se a esperança não o enganou, se ele mesmo
se encontra de todo; aquilo que recebe não se torna com isto mais rico do
que o outro; certamente enriquece, mas igualmente o outro; da mesma
maneira, aquilo que dá não se torna mais pobre; ao dar ao outro, aumentou
outro tanto seus próprios tesouros; Julieta em Romeu: quanto mais dou,
tanto mais tenho etc. O amor adquire esta riqueza da vida na troca de todos
os pensamentos, de todas as multiplicidades da alma, ao procurar infinitas
diferenças e achar para si infinitas uniões, voltando-se para toda a multiplicidade da natureza, a fim de sorver o amor de cada uma de suas vidas.
O mais próprio se une no contato, no apalpar, até a inconsciência, a superação da diferença; o mortal abandonou o caráter da separabilidade, e um
germe da imortalidade, um germe do que eternamente desenvolve e gera a
partir de si , um vivo se fez. O unido já não volta a se separar; a divindade
operou, criou – Mas esse unido é apenas um ponto, o germe[a], os amantes
nada lhe podem conferir, para que nele se encontrasse um múltiplo, pois na
união não foi tratado um contraposto, ela é destituída de toda separação; o
próprio recém-gerado tem de ter contraído em si, contraposto e unido em si
tudo aquilo pelo qual ele pode ser um múltiplo, ter uma existência. O germe se solta cada vez mais na contraposição, e começa, cada etapa de seu
desenvolvimento é uma separação, a fim de voltar a ganhar toda a riqueza
da vida. E assim é, agora: o unido, os separados e o reunido[b]. Os unidos
voltam a se separar, mas na criança a própria união tornou-se inseparável.
Essa união do amor é certamente completa[c], mas ela só pode sê-lo[d] até
onde o separado é contraposto apenas de tal maneira que um é o amante
e o outro o amado, sendo, assim, cada separado[e] um órgão de um vivo;
além disto, entretanto, os amantes ainda estão em ligação com muita coisa
morta, a cada qual pertencem muitas coisas, quer dizer, encontra-se em
relação com contrapostos, os quais ainda são contrapostos, objetos, também para aquilo mesmo que relaciona; e assim eles ainda são capazes de
uma múltipla contraposição na múltipla aquisição e posse de propriedade e
direitos[f]. O morto que se encontra sob o poder de um está contraposto a
ambos, e a união acerca disso parece poder ocorrer tão-somente ao se submetê-lo ao domínio de ambos. O amante que vê o outro na posse de uma
propriedade tem de sentir esta particularidade do outro, a qual ele quis, mas
não pode ele mesmo suprimir o domínio exclusivo do outro, pois isso seria
novamente uma contraposição contra o poder do outro, uma vez que não
pode encontrar também uma outra relação ao objeto a não ser a dominação
do mesmo; assim ele contraporia uma dominação ao domínio do outro e�
Hegel, variantes do fragmento “Die Liebe”
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
suprimiria uma relação do outro, sua exclusão de todos; e, se a posse e a
propriedade constituem uma parte tão importante do homem, de suas preocupações e pensamentos, assim também os amantes não podem se abster
de refletir neste lado de suas relações; e, se o uso já é comum, o direito à
posse permaneceria assim indecidido; o pensamento do direito certamente
não seria esquecido, porque tudo o que os homens possuem agora tem a
forma jurídica da propriedade; mas, se o possuidor também coloca o outro
em igual direito de posse, então a comunidade de bens é apenas o direito
de ambos sobre a coisa.
se com ele, porque esse realizou uma ação da contraposição, pôs-se fora do círculo do amor,
demonstrou sua auto-suficiência, mas a este temor que sua propriedade desperta o possuidor
se antecipa, suspendendo ele mesmo em relação ao amante seu direito da propriedade, que
lhe assistiria em relação a qualquer um, presenteando-o. Presentes são renúncias de uma coisa
que simplesmente não pode perder o caráter de um objeto; apenas o sentimento do amor, o
gozo é comum; o que é meio para o gozo, está morto, é apenas propriedade, e, uma vez que o
amor nada faz de parcial, assim ela não pode receber nada que permaneça ainda um meio, uma
propriedade mesmo na ocupação, na união da dominação; uma coisa, algo que se encontra
fora do sentimento do amor, não pode ser algo em comum, precisamente por ser uma coisa;
ou não pertence a nenhum dos amantes, ou a cada um pertence uma certa parte. Comunidade
de bens significa o direito de cada um sobre a coisa, ou a participação igual ou a participação
indeterminada; ela envolve sempre uma divisão, e na verdade a necessidade dessa divisão,
algo particular, propriedade, decerto não o meio passivo do inutilizado, morto, mas a necessária
divisão do mesmo no uso; com aquela não separação da propriedade, enquanto não é usada,
a comunidade de bens ilude com uma aparência da total supressão dos direitos, mas no fundo
é mantido também um direito sobre aquela parte da propriedade que não é consumida imediatamente, mas apenas utilizada, só que disso não se fala. Na comunidade de bens as coisas não
são propriedade, mas nela está oculto o direito, a propriedade de uma parte das mesmas. De
acordo com isso deve-se julgar a maneira usual entre amantes de suspender mutuamente os
direitos dos amantes sobre coisas – direito pessoal é excluído do amor já por seu nome como
um serviço que lhe é abominável – e de ver isso como uma demonstração do amor.
62
Joãosinho Beckenkamp
B2) “welchem Zwekke denn alles dient, ...”, segunda versão
(Schüler n. 84; outono/inverno de
1798/1799)
[9 frente]
a cujo fim, pois, serve todo o restante, nada se encontra em luta com
esse, com o mesmo direito; – como,
p. ex., Abraão se põe como fim último a si mesmo e sua família, e mais
tarde seu povo – ou toda a cristandade, a si mesma – Mas, quanto mais
estende este todo, mesmo quando,
como cosmopolita, abrange todo o
gênero humano em seu todo, tanto
menos recai sobre cada um do domínio sobre os objetos <deren Spf
[= de sua criação?]> e do favorecimento do poder reinante; cada um
individualmente perde tanto mais em
seu valor, em seus direitos, em sua
auto-suficiência; pois seu valor era a
participação no domínio, que agora
é cada vez mais restrito. E assim ele
despreza profundamente, e na verdade, sem o orgulho de ser o centro das
coisas, <ele tem> <o coletivo> o fim
do todo coletivo constitui para ele o
supremo <,> e despreza a si mesmo
<e> bem como todos os indivíduos.
Uma vez que a matéria é em si indiferente para este amor por causa do
morto,
e sua essência consiste em que o
[9 frente]
a cujo fim, pois, serve todo o restante, nada se encontra em luta
com esse, com o mesmo direito; – como, p. ex., Abraão se põe
como fim último a si mesmo e sua
família, e mais tarde seu povo – ou
toda a cristandade, a si mesma
– Mas, quanto mais <é> estendido
este todo, quanto mais é reduzido
à igualdade da dependência, quando o cosmopolita abrange todo o
gênero humano em seu todo, tanto
menos recai sobre cada um do domínio sobre os objetos, e do favorecimento do poder reinante; cada
um individualmente perde tanto
mais em seu valor, em suas exigências, em sua auto-suficiência;
sem o orgulho de ser o centro das
coisas, o fim do todo coletivo constitui para ele o supremo e despreza
a si mesmo, como uma parte tão
ínfima quanto todos os indivíduos.
Uma vez que este amor por causa
do morto está cercado apenas de
matéria, <e para ele> a matéria
lhe é em si indiferente,
e sua essência consiste em que o
. Cf. Ch. JAMME, “Hegels Frankfurter Fragment welchem Zwekke denn”, in: Hegel-Studien 17 (1982), p. 11-23. A datação dos escritos
juvenis de Hegel, com base sobretudo em sua
caligrafia, encontra-se em: G. SCHÜLER. “Zur
Chronologie von Hegels Jugendschriften”, in:
Hegel-Studien 2 (1963), p. 111-159.
. Seguindo o editor, indicam-se com <> e
<<>> as partes riscadas por Hegel (respectivamente, riscado e riscado originalmente dentro
do riscado posteriormente); com [] indicam-se
acréscimos do editor e do tradutor. No caso de
partes riscadas com sentido impreciso, deixase o original alemão, com eventual hipótese de
explicitação.
. Cf. Ch. JAMME, “Hegels Frankfurter Fragment welchem Zwekke denn”, in: HegelStudien 17 (1982), p. 11-23.
63
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
B1) “welchem Zwekke denn alles
dient, ...”, primeira versão (Schüler
n. 69; novembro de 1797)
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
Hegel, variantes do fragmento “Die Liebe”
[9 verso]
que o homem é em sua natureza
mais íntima um contraposto, autosuficiente, para o qual tudo é mundo
exterior, o qual, portanto, é tão pouco
quanto ele mesmo, assim certamente
mudam seus objetos, mas eles não
lhe faltam jamais; tão certo quanto
ele é, são eles e sua divindade; daí
sua tranqüilidade no caso de perda
e seu consolo certo de que a perda
lhe será compensada, porque ela lhe
pode ser compensada.
Desta maneira, a matéria é para o
homem absoluta; mas certamente,
se ele mesmo já não fosse, também
nada mais seria para ele, e por que
ele então teria de ser? Ele é apenas
como um contraposto, o contraposto
é para si reciprocamente condição e
condicionado; nem um simplesmente
determinante, nem um simplesmente
determinado, e vice-versa, nenhum é
incondicionado, nenhum traz em si a
raiz de seu ser, cada qual é apenas
relativamente necessário; um é atribuído ao outro e, portanto, também
a si mesmo tão-somente através <do
poder> de um poder estranho
64
[9 verso]
que o homem é em sua natureza
mais íntima um contraposto, autosuficiente, que tudo lhe é mundo
exterior, o qual, portanto, é tão
pouco quanto ele mesmo, assim
certamente mudam seus objetos,
mas eles não lhe faltam jamais;
tão certo quanto ele é, são eles e
sua divindade; daí sua tranqüilidade no caso de perda e seu consolo
certo de que a perda lhe será compensada, porque ela lhe pode ser
compensada.
Desta maneira, a matéria é para o
homem absoluta; mas certamente,
se ele mesmo já não fosse, também nada mais seria para ele, e
por que ele então teria de ser? É
bastante compreensível que ele
<quer> gostaria de ser; pois fora
<de sua consciência, fora de sua
contraposição> de sua coleção de
restrições, de sua consciência, encontra-se <apenas o>, não a união
em si completa e eterna, <mas>
tão-somente o estéril nada, <e
nesse o homem certamente não se
pode suportar> mas certamente o
homem não pode suportar pensarse nesse nada. Ele é apenas como
um contraposto, o contraposto é
para si reciprocamente condição e
condicionado; ele tem de se pensar
fora de sua consciência, nem algo
determinante, nem determinado, e
vice-versa, nenhum é incondicionado, nenhum traz em si a raiz de
seu ser, cada qual é apenas relativamente necessário; um é para
o outro e, portanto, também para
si mesmo tão-somente através de
um poder estranho
Joãosinho Beckenkamp
[10 frente]
o outro lhe é atribuído através de
seu favor e de sua graça; não se
encontra em parte alguma um ser
independente, a não ser em um estranho, de cujo estranho o homem
recebe tudo de presente, e ao qual
ele tem de agradecer por si mesmo
e pela imortalidade, pela qual suplica com tremor e temor.
Verdadeira união, genuíno amor,
somente se dá entre vivos que são
iguais em poder, e, portanto, são
de todo vivos um para o outro, de
nenhum lado mortos um para o outro; o amor exclui toda contraposição, ele não é entendimento, cujas
relações deixam o múltiplo sempre
ainda um múltiplo e cuja unidade
<é contraposição> ela mesma são
contraposições; ele não é razão, a
qual simplesmente contrapõe seu
determinar ao determinado; ele
não é algo limitante, nem algo limitado, não é algo finito; ele é um
sentimento, mas não um sentimento singular; do sentimento singular,
<porque <<nenhum>> todo sentimento> porque <todo sentimento>
<é> apenas uma vida parcial, <e>
não toda a vida, a vida rompe através da dissolução, até a dispersão
na multiplicidade dos sentimentos,
<, e da vida> <devido> <o amor>
<<; no amor é>> e para se encontrar neste todo da multiplicidade;
<mas o> no amor, esse todo não
está contido como na soma de muitos particulares separados; nele <é
um e todos> encontra-se a própria
vida, <ele> como uma reduplicação
de si mesma, e unidade da mesma;
desde a unidade não desenvolvida,
a vida percorreu, através da formação, o círculo <du> de uma unidade <total> completa; <esta unidade é vida completa, porque nela
foi satisfeita também a reflexão; à
65
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
[10 frente]
e através de seu favor e de sua graça; não se encontra em parte alguma um ser independente, a não ser
em um estranho, de cujo estranho o
homem recebe tudo de presente, ao
qual ele deve a si mesmo e sua imortalidade, pela qual suplica com tremor e temor.
Verdadeira união, genuíno amor, somente se dá em relação ao vivo; o
amor exclui toda contraposição, ele
não é entendimento, cujas relações
deixam o múltiplo sempre ainda um
múltiplo; ele não é razão, a qual simplesmente contrapõe seu determinar
ao determinado; ele não é algo limitante, nem algo limitado, não é algo
finito; ele é um sentimento, no qual,
entretanto, não se pode distinguir o
que sente e o que é sentido, de maneira tal que esse pudesse ser contraposto àquele, que esse pudesse
ser apreendido pelo entendimento e
tornar-se <um> objeto – ele é um
sentimento do vivo. Como vivos, os
amantes são um. Eles só podem distinguir-se <em vista de> na medida
em que
Hegel, variantes do fragmento “Die Liebe”
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
unidade não desenvolvida opunhase a possibilidade da reflexão, da
separação; <aqui> nessa [a saber,
na unidade completa ou desenvolvida], a unidade e a separação estão unidas, algo vivo que tinha sido
contraposto a si mesmo <e se sente <<agora>> a si mesmo>, mas
<porque> não tornava esta contraposição <diferente> absoluta.
No <sentimento do> amor, o vivo
sente o vivo. No amor, portanto,
<está> estão resolvidas todas as
tarefas, a unilateralidade autodestrutiva da reflexão, e a contraposição infinita <da inconsciência> do
inconsciente, <da> unidade não
desenvolvida.>
[9 verso]
<a> à unidade não desenvolvida
contrapunha-se a possibilidade da
separação e o mundo; no desenvolvimento, a reflexão produzia cada
vez mais contraposto, o qual era
unido no impulso satisfeito, até que
ela contrapôs ao homem a totalidade do próprio homem, <a qual> até
que o amor supera a reflexão <supera> em total ausência de objeto,
<d um> subtrai ao oposto todo o
caráter de um estranho, e a vida
se encontra a si mesma sem outra
carência. No amor <é <<tudo>>
para todo <<para>> separado> o
separado ainda é, mas já não como
separado, como uno, e o vivo sente
o vivo.
66
Joãosinho Beckenkamp
[10 verso]
<Os amantes só podem se distinguir> Uma vez que o amor é um sentimento do vivo, os amantes só podem se distinguir na medida em que
são mortais, na medida em que pensam esta possibilidade da separação,
não como se efetivamente algo <esteja> estivesse separado, como se o
possível ligado a um ser fosse algo
efetivo. Em amantes não há matéria,
eles são um único todo vido; amantes
possuem auto-suficiência, e princípio
vital próprio significa apenas: eles
podem morrer.
A planta tem elementos salinos e terrosos que trazem em si leis próprias
de sua eficácia, ela é a reflexão de
um estranho, o que quer dizer apenas: a planta pode decompor-se. Mas
o amor também procura superar essa
distinção, essa possibilidade <mesma como meramente pensada, não>
como mera possibilidade, e unir até
mesmo o mortal, torná-lo imortal <,
mm [nota do editor: palavra ilegível]
superar a possibilidade da separação>.
[11 frente]
do mais unido ele passa <pelo animal> por algo hostil até a vida humana – <Mas o separável separa>
<mas os amantes se dividem disto
a separação> Mas o separável retorna ao estado da separabilidade;
mas <esse é> os espíritos tornamse mais unidos do que jamais, e
<es a> <es> <o que ainda era
<<ela>> separado de consciência determinada <<ela põe>> é
tudo posto de lado> <<todos os
pontos da consciência determinada>> toda consciência, todos os
[11 frente]
O separável, enquanto ainda é algo
próprio antes da completa união, causa embaraço aos amantes, ele constitui uma espécie de conflito entre a
entrega total – o único aniquilamento
possível, o aniquilamento do contraposto na união – e a auto-suficiência ainda existente; aquela se sente
impedida por essa – o amor se irrita com o ainda separado, com uma
propriedade; essa irritação do amor
com a individualidade é o pudor; ele
não é estremecimento do mortal, não
[é] uma expressão da liberdade de se
67
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
[10 verso]
<do mortal> são mortais, na medida em que separação é possível,
não enquanto algo está efetivamente separado –
[Em] Amantes <possuem auto-suficiência> não há matéria, eles são
um único todo vido; amantes possuem auto-suficiência, e princípio
vital próprio significa apenas <,>:
eles <são mortais> podem morrer
<,>. A planta tem elementos salinos e terrosos que trazem em si
leis próprias de sua eficácia, o que
quer dizer apenas: a planta pode
decompor-se. <Também o mortal> Mas o amor também procura
unir o mortal, torná-lo imortal;
<ele se toca e se apalpa, penetra
um no outro,> a fim de superar a
<B> intuição, na qual <ainda separado> se encontra o ainda separado, ele se apalpa, penetra um
no outro; o <separável> mortal
abandonou o caráter da separabilidade e tornou-se um vivo. O unido já não volta a se separar; a divindade operou, criou – Mas esse
unido é apenas <Em> um ponto,
<vai> <de> <torna-se de> o germe se torna planta,
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
Hegel, variantes do fragmento “Die Liebe”
momentos em que um tinha tocado
<sem> o outro ou tinha sido por ele
tocado, <portanto> apenas sentido e
pensado, <são <<foram>> compensados> são substituídos – este separável, o fato de que antes da completa união ainda há algo próprio, causa
embaraço aos amantes <que ainda
não se du inteiramente>, ocorre uma
espécie de conflito entre a entrega total – e a auto-suficiência ainda
existente; aquela se sente impedida
por essa – o amor <zü> se irrita com
o ainda separado, com uma propriedade; essa irritação do amor <é>
com a individualidade é o pudor; ele
não é um estremecimento do mortal,
não [é] uma expressão da liberdade
de se conservar, <ainda> de subsistir; num ataque sem amor, um ânimo
amável é ofendido por essa hostilidade, seu pudor torna-se cólera, que
agora apenas defende a propriedade,
o direito.
conservar, de subsistir; num ataque sem amor, um ânimo amável é
ofendido por essa hostilidade mesma, seu pudor torna-se cólera, que
agora apenas defende a propriedade, o direito.
[11 verso]
Se o <próprio> pudor <mesmo> não
fosse um efeito do amor, que tem a
forma da irritação tão-somente sobre
o fato de que há algo hostil, mas fosse ele mesmo, segundo sua natureza
<se>, <sua> algo hostil que quisesse
sustentar uma propriedade contestável, então os tiranos seriam os mais
pudicos, assim como as garotas que
não entregam <simplesmente> seus
encantos sem dinheiro – ou os vaidosos que nos querem agradar com
eles. – Ambos não amaram, nunca,
sua referência ao mortal é o contrário
<de> da irritação com <seu> o mesmo – eles são despudorados. <No
amor, o pudor é> Um ânimo puro não
se envergonha do amor, mas se envergonha por esse não ser perfeito,
por ainda existir um poder, algo hostil que <lhe> constitui um obstáculo
[11 verso]
Se o pudor não fosse um efeito do
amor, que tem a forma da irritação
tão-somente sobre o fato de que há
algo hostil, mas fosse ele mesmo,
segundo sua natureza, algo hostil
que quisesse sustentar uma propriedade contestável, ter-se-ia de
dizer dos tiranos que eles têm o
máximo de pudor, assim como de
garotas que não entregam seus encantos sem dinheiro – ou dos vaidosos que querem cativar por eles.
Ambos não amam, sua defesa do
mortal é o contrário da irritação com
o mesmo – eles lhe atribuem em si
um valor <encontrado> <em si>,
<que se encontraria <<em mortalidade>> nos próprios mortais>
eles são despudorados. Um ânimo
puro não se envergonha do amor,
mas se envergonha por esse não
68
Joãosinho Beckenkamp
ser perfeito, ele se repreende por
ainda existir um poder, algo hostil
que constitui um obstáculo para a
perfeição. – O pudor somente ocorre pela recordação do corpo, pela
presença pessoal, no sentimento
da individualidade – ele não é um
temor pelo mortal e próprio, mas
perante o mesmo, um temor que,
como o amor, diminui o separável
e com ele desaparece; pois o amor
é mais forte do que o temor e não
teme seu temor, mas dele acompanhado supera separações, com o receio de encontrar uma <separação>
contraposição resistente e mesmo
firme, o amor é um mútuo dar e receber; temeroso de que seus dons
possam ser desprezados, temeroso
de que <seu receber possa o separado> um contraposto poderia não
ceder a seu receber, <experimentando> ele experimenta, se <sua>
a esperança não <se> o enganou,
se ele mesmo se encontra de todo;
aquilo que recebe não se torna com
isto mais rico do que o outro; certamente enriquece, mas igualmente
o outro; da mesma maneira, aquilo
que dá não se torna mais pobre; ao
dar ao outro, aumentou outro tanto seus próprios tesouros; Julieta
em Romeu: quanto mais dou, tanto
mais tenho etc.
[10 verso]
<Dand so> O amor adquire <para
si> esta riqueza da vida <ao> na
troca de todos os pensamentos
<totalmente>, de todas as multiplicidades da alma, ao procurar
infinitas diferenças e achar para si
<fin [certamente o início de “finden”, encontrar]> infinitas uniões,
voltando-se para toda a multiplicidade da natureza, a fim de sorver o amor de <sua> cada uma de
69
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
para a perfeição. – O pudor somente
ocorre <b> pela recordação do corpo, pela presença pessoal, no sentimento da individualidade – ele não é
um temor pelo mortal, mas perante
o mesmo <–>, um temor que, como
o amor, <afasta o mesmo> diminui o
separável e com ele desaparece; pois
o amor é mais forte do que o temor e
não teme seu temor.
Hegel, variantes do fragmento “Die Liebe”
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
suas <E> vidas. O mais próprio se
une no contato, no apalpar, até a
inconsciência, a superação da diferença.
o mortal abandonou o caráter da
separabilidade, e um germe da
imortalidade, um germe do que
eternamente desenvolve e gera
a partir de si , um vivo se fez. O
unido já não volta a se separar;
a divindade operou, criou – Mas
esse unido é apenas um ponto,
os amantes <nada lhe conferem>
nada lhe podem conferir, para que
<ele> nele <pudesse ser que> se
encontrasse um múltiplo, pois na
união não foi tratado um <múltiplo> contraposto, ela é <totalmente> destituída de toda separação;
<ele> o próprio recém-gerado tem
de ter <unido> contraído <nele>
em si, contraposto e unido em si
tudo aquilo pelo qual ele pode ser
um múltiplo, ter uma <determinada> existência. o germe
[11 frente]
se solta cada vez mais na contraposição, e começa, cada etapa de
seu desenvolvimento é uma separação, a fim de <ele mesmo>
voltar a ganhar <tudo para> toda
a riqueza da vida: <Assim é, agora,> E assim é, agora, o unido, os
separados e o reunido <tudo> <a
própria criança é para os pais união
<<em>> de>. Os unidos voltam a
se separar, mas na criança a <sua>
própria união tornou-se <permanente> inseparável.
70
Joãosinho Beckenkamp
71
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
[12 frente?]
Essa união do amor é certamente
completa, mas <ela pode> ela só
pode sê-lo até onde <o separado
é capaz de uma união no sentimento> o separado é contraposto
apenas de tal maneira que um é o
amante e o outro o amado, sendo, assim, cada separado <uma
parte de um> um órgão de um
vivo; <pois tão-somente o vivo é
capaz> além disto, entretanto, os
amantes ainda estão em ligação
com muita coisa morta, a cada
qual <pertence> pertencem muitas coisas, <são> quer dizer, cada
qual se encontra em relação com
contrapostos, os quais ainda são
contrapostos, objetos, também
para aquilo mesmo que relaciona. e assim eles ainda são capazes de uma múltipla contraposição
na múltipla <posse e aquisição>
<aquisição e posse> aquisição e
posse de propriedade e direitos
– o morto que se encontra sob o
poder de um <morto> está contraposto a ambos, e a união acerca disso <poderia> <ocorrer>
parece poder ocorrer tão-somente ao se submetê-lo ao <poder>
domínio de ambos. <O que> O
amante <que não> que vê o outro na posse de uma propriedade
<tem de sentir-se vexado, mas>
tem de sentir esta particularidade
do outro, a qual ele quis, mas não
pode ele mesmo suprimir o domínio exclusivo do outro, pois isso
seria novamente uma contraposição, <contra o poder do outro,
uma vez que também não pode
encontrar uma outra relação ao
objeto,>
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
Hegel, variantes do fragmento “Die Liebe”
[12 verso]
<uma vez que não <<poderia>>
encontrar também uma outra relação ao objeto a não ser a dominação do mesmo, assim teria
de> ele contraporia <sua> uma
dominação ao domínio do outro;
< <<a si mesmo ele pode>> e
mesmo assim ele não pode por
outro lado <<sentir>> sentir de
outra maneira a não ser como
<restringido> separado pela separação do outro>
[12 frente]
Não obstante a união ser completa
no amor, ela o é entre os próprios
amantes. O amor é um mútuo dar
e receber, mas, ao receber, um dos
amantes não se torna mais rico do
que o outro; certamente enriquece,
mas igualmente o outro; da mesma
maneira, aquilo que dá não se torna mais pobre; ao dar ao outro, deu
igualmente a si mesmo e aumentou
seus próprios tesouros; Julieta em
Romeu: quanto mais <tenho> dou,
tanto mais tenho, <o> etc.
Uma vez que <embora> esta união
do amor <du> é completa, mas
ocorre tão-somente entre os amantes, eles são capazes <fora de si>
ainda de uma múltipla contraposição, de uma múltipla posse de propriedade e direitos – Neste caso, o
mais pobre hesita em receber do
mais rico, em pôr-se em igualdade
de posse com ele, porque esse realizou uma ação da contraposição,
pôs-se fora do <domínio> círculo do
amor <e> demonstrou sua auto-suficiência;
mas a este temor que <a> sua propriedade desperta o possuidor se
antecipa, suprimindo logo em relação <amante> ao amante seu direito da propriedade, que lhe assistiria
em relação a qualquer um; presen72
[12 frente]
<mas a este temor que sua propriedade desperta o possuidor se
antecipa, <demonstrando logo>
ab-rogando perante o amante
seu direito da propriedade, que
lhe assistiria em relação a qualquer um.
. Como o que se segue, até “... só que
disso não se fala”, foi riscado por Hegel, o
raciocínio continua mais adiante, a partir
de “e suprimiria uma relação...”.
Joãosinho Beckenkamp
teia-o.
[12 verso]
Presentes são renúncias de uma coisa que não pode perder o caráter de
um objeto; o que é morto é tão-somente propriedade, e, uma vez que
o amor nada faz unilateralmente,
não pode receber nada que também
na ocupação, na união do domínio,
ainda permaneça um meio, uma
propriedade. Uma coisa, algo que
se encontra fora do sentimento do
amor, não pode ser algo em comum,
precisamente por ser uma coisa; se
deve ser algo em comum, então não
pertence a nenhum dos amantes
ou a cada um pertence uma certa
parte. Comunidade de bens significa
o direito de cada um sobre a coisa,
seja a participação igual, seja a participação indeterminada; ela sempre
pressupõe uma divisão, e na verdade a necessidade dessa divisão,
pressupõe algo particular, direitos,
propriedade, certamente não o meio
parado do inutilizado, morto, mas
sua necessária divisão no uso; com
aquela não separação da propriedade <não usada>, a comunidade de
bens ilude com uma aparência da
total supressão dos direitos, mas no
fundo é mantido também um direito sobre <a> <uma> aquela parte
da propriedade <que propriamente
tinha sido pensada como comum,
a qual> que não é consumida imediatamente, mas apenas utilizada, só que disso não se fala.> <O
mesmo> e suprimiria uma relação
<Aus> <Akt> do outro, sua exclusão <auf> de todos; e, se a posse e
a propriedade constituem uma parte tão importante de suas preocupações e pensamentos, assim também
os amantes <têm de> não podem
se abster de refletir neste <esta re73
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
[12 verso]
Presentes são renúncias de uma
coisa que <simplesmente> não
pode perder o caráter da propriedade; apenas o sentimento do
amor, o gozo é comum; <uma vez
que> o que é meio para o gozo
é <uma> apenas propriedade, e,
uma vez que o amor nada faz de
parcial, assim ela não pode receber nada que permaneça ainda
um meio, uma propriedade mesmo na ocupação; uma <d> coisa,
<etwas inso> algo que se encontra fora do sentimento do amor,
não pode ser algo em comum,
precisamente por ser uma coisa;
ou não pertence a nenhum dos
amantes, ou a cada um pertence
uma certa parte. Comunidade de
bens significa o direito de cada um
sobre <uma> a coisa, ou a <pobreza> participação igual ou a participação maior ou menor; e inclui
<portanto> uma divisão, <algo>
particular, direitos, propriedade –
De acordo com isso deve-se julgar
a maneira usual entre amantes de
suspender mutuamente os direitos dos amantes sobre coisas (direito pessoal é excluído do amor
já por seu nome como <algo que
lhe é abominável> um serviço que
lhe é abominável) e de ver isso
como uma demonstração do amor.
Transfere-se ao outro <um igual>
direito <a seu> que o possuidor
de propriedade transferiu ao outro, <mas como o> <Na comunidade de bens> a comunidade de
bens ilude <por> pelo fato de que
<nela> <<como o za>> as coisas
não são propriedade, mas nela
está oculto o direito, a propriedade de uma parte das mesmas.
Hegel, variantes do fragmento “Die Liebe”
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
lação> lado de suas relações; e, se
o uso já é comum, o direito à posse <continua> permaneceria assim
indecidido; <e, caso a posse desta
coisa seja comum, <<assim cada um
teria>> o possuidor teria abandonado seu direito em relação ao outro,
de tal maneira> <o direito> o pensamento do direito certamente não seria esquecido, porque tudo o que os
homens possuem agora tem a forma
jurídica da propriedade; mas <assim
tem>, se o possuidor também coloca o outro em igual direito de posse,
então a comunidade de bens <significa> é apenas o direito <sobre> de
ambos sobre <coisa> a coisa.
74
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos
Ano 5, nº8, Junho-2008: 75-98
O Fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe
(1803/1804): apresentação e tradução
Erick C. de Lima
Palavras-chave: Consciência, Reconhecimento, Espírito, Eticidade, G. W. F. Hegel
Abstract: This paper aims at presenting fragment 22 of Hegel´s Jena project of system, written
between 1803 and 1804. This extensive fragment concludes the part of the project dedicated
to the philosophy of spirit. The first task is to contextualize the fragment, not only in relation
to Hegel’s earlier and later writings on ethical life, but also within the ensemble of fragments.
To begin with I discuss the well-known thesis of a peculiar systematic structure, according to
which Hegel´s conception of spirit would be constituted by a non-reducionist dialectic of theoretical and practical consciousness, the later comprehended not only as oposition of the singular consciousness to the world, but also as its formative process through the relationship with
other individuals. Then I argue that Hegel intends, in fact, to articulate this peculiar systematic
structure in a intersubjective development of community ties. Finally, I propose a translation of
the fragment 22 into portuguese.
Keywords: Consciousness, Recognition, Spirit, Ethical Life, G. W. F. Hegel
Contextualização do Fragmento 22
1. A tese de uma sistemática peculiar
O fragmento 22 é o último dos fragmentos reunidos por H. Kimmerle
e K. Düsing sob o título Jenaer Systementwürfe I – Das System der Spekulativen Philosophie – Fragmente aus Vorlesungsmanuskripten zur Philosophie
der Natur und des Geistes, compilação dos fragmentos oriundos dos manuscritos utilizados por Hegel para a preparação de suas aulas entre 1803
e 1804. Tal reunião consiste em uma edição crítica daquela obra editada
anteriormente por G. Lasson, com o título Jenenser Realphilosophie I, pelo
qual se tornou conhecida na Hegel-Forschung (ver HEGEL, 1986).
. Doutor em Filosofia pela Unicamp e pesquisador colaborador da mesma Universidade. Submetido em 15 de fevereiro de 2008 e aprovado para publicação em 3 de maio de 2008.
75
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar o fragmento 22 dos Esboços de Sistema de
Jena, escritos por Hegel entre 1803 e 1804. Este extenso fragmento conclui a filosofia do espírito nos referidos esboços. Primeiramente, a intenção é contextualizar o fragmento, tanto com
respeito aos escritos anteriores e posteriores de Hegel sobre eticidade, quanto em relação ao
próprio encadeamento dos fragmentos precedentes. Para isso, tomou-se como ponto de partida
desta contextualização a célebre tese de uma sistemática peculiar, segundo a qual o conceito
hegeliano de espírito se constituiria pela dialética não reducionista de consciência teórica e
prática, esta compreendida como defrontação da consciência singular tanto ao mundo quanto
às outras consciências. Em seguida, procura-se mostrar como Hegel pretende, na verdade,
articular esta sistemática peculiar em uma gênese intersubjetiva dos nexos comunitários. A
partir desta breve contextualização, apresenta-se, a seguir, uma tradução para o português do
mencionado fragmento.
O Fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe (1803/1804)
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
Tais textos se tornaram mais debatidos na década de 1970, ao terem sido retomados mais intensamente no âmbito da pesquisa especializada
(principalmente por L. Siep e H. Kimmerle), em parte graças ao ensejo criado pela reivindicação de sua sistemática peculiar, proposta por Habermas, a
fim de renovar a teoria crítica e o materialismo histórico. A postura teórica
de Habermas, além de delimitar as intuições embrionárias de sua teoria
da ação comunicativa, acentuou a impressão de que Hegel tenha, com seu
comprometimento sistemático da maturidade, abandonado intuições de vasto alcance, presentes nos textos de Jena.
A respeito principalmente das “potências” constitutivas do espírito
no esboço de 1803/1804 (fragmentos 19 a 22), Habermas sustenta que
Hegel “pôs como fundamento para o processo de formação do espírito uma
sistemática peculiar, que fora depois renunciada.” (HABERMAS, 1974, pp.
786/787) Para Habermas, a diferença fundamental em relação à sistemática
definitiva da filosofia hegeliana do espírito está em que, nos Jenaer Systementwürfe, “não é o espírito no movimento absoluto de reflexão de si mesmo, que se manifesta, dentre outros, também na linguagem, no trabalho e
na relação ética, mas antes a conexão dialética de simbolização lingüística, trabalho e interação que determina o conceito de espírito”(HABERMAS,
1974, p. 786).
É justamente esta conexão dialética entre o trabalho, o reconhecimento e a mediação lingüística que Habermas acredita ter sido perdida no
desenvolvimento subseqüente do sistema, com a substituição da mesma
pelo processo de formação auto-reflexiva de um espírito “solitário”, o qual
recobra, tanto nas instituições político-jurídicas e sociais, quanto na arte, na
religião e na filosofia, apenas os elementos de sua auto-produção. Paradoxalmente, entretanto, Habermas entende que é a relação do espírito a seu
outro, plasmada segundo o modelo do reconhecimento de si mesmo, isto
é, a transformação da relação ética em célula do sistema, que representa o
estopim desta reviravolta (HABERMAS, 1974, p. 787).
A postura interpretativa de Habermas foi, como mencionado, extremamente influenciada pela intenção de revisar o materialismo histórico de
Marx – e sua tendência à “absolutização” do processo de reprodução material como elemento sócio-explicativo determinante – através do resgate da
“alternativa” hegeliana de aglutinar à “potência do instrumento e do trabalho”, ao agir instrumental, o valor próprio das relações intersubjetivas e da
mediação lingüística como elementos irredutíveis do espírito e, por conseguinte, momentos imprescindíveis para a formação de identidade estável do
eu, para a integração social e para a reprodução cultural. Apesar das inú. Abstraindo da plausibilidade da leitura de Habermas em seu projeto de renovação do marxismo, no que tange a Hegel, pode-se dizer que, em primeiro lugar, é extremamente difícil
considerar, com base nos Systementwürfe 1803/1804, linguagem, trabalho e interação como
momentos de formação do espírito independentes uns dos outros (SCHNÄDELBACH, 2000, p.
157). Entretanto, o fato de que Habermas tenha se aproveitado de uma intuição a partir de sua
leitura de Hegel não constitui, por si só, objeção contra sua compreensão do próprio Hegel, e
muito menos contra seu projeto intelectual amplamente baseado nesta intuição. Para uma relativização da interpretação de Habermas no contexto da recente Hegel-Forschung, (ver WILDT,
76
Erick C. de Lima
meras críticas, suscitadas por sua tentativa primeva de oferecer, com base
em uma suposta irredutibilidade, colhida nos Systementwürfe 1803/1804 de
Hegel, de trabalho e interação, de agir instrumental e agir comunicacional,
uma renovação da teoria social de Marx – críticas dirigidas tanto no âmbito
da Hegel-Forschung, quanto pelos marxianos –, Habermas voltou recentemente ao tema tão significativo para o direcionamento de seu projeto filosófico (HABERMAS, 1999, p. 199).
Para além de uma sistematização não reducionista – a qual talvez
pudesse, ao contrário do que sustenta Habermas, ser problematizada – das
potências que formam o “espírito teórico” no fragmento 19 (linguagem e
memória), o “espírito prático” no fragmento 20 (trabalho e instrumento) e
a interação no fragmento 21 (família), o encadeamento da eticidade absoluta, no fragmento 22, possui extrema importância ao explicitar, a partir do
conceito de reconhecimento, a gênese intersubjetiva da comunidade e da
autoconsciência universal. Portanto, a despeito de uma sistematização não
1983, p. 326-333)
. Para uma apreciação da crítica a Habermas a partir dos estudiosos de Marx, veja-se, SCHMIED-KOWARZIK, 1981. Entretanto, a crítica mais virulenta à posição habermasiana vem do
lado dos “hegelianos”. Wildt concorda, de maneira geral, com a tese de Habermas de que a
sistemática definitiva da filosofia hegeliana é marcada pela redução dos media do esboço de
1803/1804 a um denominador comum: a forma lógica da auto-reflexão (ver WILDT, 1983, 326;
HABERMAS, 1974, pp. 807-809). Wildt também endossa a tese habermasiana de que o caráter
irredutível dos media não tem somente um sentido estrutural, mas também um papel dinamizador do desenvolvimento. A crítica de Wildt diz respeito, sobretudo, à relação entre os media
concebida por Habermas no âmbito da conexão estrutural ou pré-societária dos mesmos. Habermas permanece, segundo Wildt, apenas no âmbito impreciso da questão acerca da mediação entre sujeito e objeto, passando ao largo da questão para ele fundamental: a possibilidade
da identidade do eu estar vinculada à conexão entre linguagem, trabalho e reconhecimento.
. A tese da independência de trabalho e interação, enquanto formas de socialização humana
não redutíveis uma à outra, implica em que as relações de produção e a superestrutura institucional e cultural da sociedade não podem ser apenas reconduzidas a um determinismo ferrenho
por parte do trabalho e das forças produtivas. No horizonte da teoria social da “Escola de Frankfurt”, a derivação de todas as formas de opressão a partir da lógica da dominação da natureza
por uma razão instrumentalizada seria um programa crítico insuficiente, pois a interação teria
de integrar o quadro geral de onde poderia provir a racionalização social.
77
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
No contexto da sistematização não reducionista das potências, supostamente abandonada, o fragmento 22 se apresenta como leitura estratégica. O referido fragmento conclui a parte dos esboços referentes à filosofia
do espírito, agrupando temas que, na sistemática definitiva, pertencem ao
“Espírito Subjetivo”, como o reconhecimento intersubjetivo das consciências
singulares e ainda um interessante tratamento dado ao problema da linguagem que, ao contrário do que se encontra no posterior desenvolvimento
do “Espírito Teórico” na Enciclopédia, sublinha a conexão lingüística entre a
razão teórica e os nexos societários formativos da consciência; mas também
temas que serão desenvolvidos na filosofia do “Espírito Objetivo”, como a
noção de substância ética, uma incipiente teoria da propriedade e do conceito jurídico de pessoa, e também pormenores da organização econômicojurídica e produtiva da sociedade, os quais antecipam a posterior teoria da
sociedade civil e seu sistema de dependência omnilateral na satisfação das
carências.
O Fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe (1803/1804)
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
reducionista entre consciência teórica, consciência prática e interação, fato
é que Hegel propõe uma articulação destas esferas na gênese intersubjetiva
do nexo comunitário. Na filosofia do espírito de Jena, Hegel tornou o modelo de interação social, assimilado a partir de Fichte (LIMA, 2006, p. 67s), a
base para sua teoria social e política, fundamento para a constituição processual de seu conceito de Volksgeist.
Na verdade, o fato de que as diversas instituições e práticas sociais
modernas apareçam aí em uma conexão muito mais viva do que aquela que
se deixa ver na Filosofia do Direito, isto é, de que a estrutura social, formativa, econômica e política da comunidade sejam engendradas no processo
pelo qual os indivíduos se socializam, é não uma fonte de enorme confusão,
mas parte inconteste da riqueza deste material não publicado por Hegel. Talvez seja possível, no futuro, esperar por propostas de leitura que estreitem
a cooperação entre os pólos da produção hegeliana.
A originalidade comumente atribuída à teoria jenense da eticidade
gravita em torno de dois temas relacionados: por um lado, a compreensão
da intersubjetividade, desenvolvida como parte integrante de sua filosofia
social pela via do conceito de reconhecimento; por outro lado, o tratamento
coeso daquilo que, nas Grundlinien, teria sido separado em direito abstrato,
moral e eticidade, de maneira que sua conexão interna e interdependência,
mais visível em Jena, teria sido perdida e apenas a impressão de uma sobreposição de esferas independentes teria restado. Na esteira da inovadora
interpretação fornecida por Ludwig Siep, para o qual o conceito jenense
de reconhecimento conecta ética, política, a moral e direito, propiciando,
pela superação da distinção entre filosofia política clássica e moderna, uma
renovação da filosofia prática, também Roth interpreta, mais recentemente,
a sistemática definitiva da filosofia hegeliana como desvirtuamento desta
integração.
. A reflexão de Ludwig Siep é o marco que permite superar a predominância da influente interpretação feita por Kojève do conceito hegeliano de reconhecimento como centrado na relação
entre senhor e escravo (KOJÈVE, 1947). Siep vê a importância do reconhecimento para a filosofia prática de Hegel na capacidade de permitir uma renovação da filosofia prática tradicional em
bases pós-modernas, pós-liberais e intersubjetivas. Desta maneira, Hegel superaria o quadro
conceitual individualista do direito natural moderno, inadequado a uma plena compreensão da
liberdade individual em sua necessária mediação intersubjetiva e em sua significação plenamente positiva. Esta superação teria, de acordo com Siep, o resultado de fornecer uma reconciliação entre a tradição aristotélica e a filosofia transcendental (SIEP, 1976).
. Hegel teria chegado a uma teoria da sociedade civil e do estado que, calcada no conceito
de reconhecimento, abrangia aspectos jurídico-morais e salientava os momentos conectivos
das esferas político-social e jurídico-moral, ao passo que a sistemática definitiva da filosofia do
espírito objetivo, tornaria, graças ao obscurecimento do elemento intersubjetivo, os temas de
filosofia prática aparentemente independentes uns dos outros (ROTH, 2001, p. 18-19). Especialmente confuso se torna, para Roth, o modo como as diversas esferas do espírito objetivo
se relacionam umas às outras, principalmente como direito abstrato e moral devam ser compreendidos enquanto momentos não-éticos ou pré-éticos a serem “suspensos” na eticidade e
conservados nela. Mas Roth critica a visão, defendida por Theunissen, dos capítulos iniciais das
Grundlinien apenas como “preâmbulo desconstrutivista” do panorama teórico jurídico-moral
pré-hegeliano (THEUNISSEN, 1982): neste caso, não se compreende como Hegel espera que os
elementos positivos desenvolvidos neste capítulo possam ser conservados na eticidade e como
nexos que lhe são constitutivos.
78
Erick C. de Lima
2. Eticidade e formação da consciência
Entretanto, em face tanto das obras posteriores – como Fenomenologia, Enciclopédia e Filosofia do Direito –, quanto das produções anteriores
de Hegel sobre ética e política – como o Naturrechtsaufsatz e o System der
Sittlichkeit –, a peculiaridade fundamental dos fragmentos que integram
os esboços de sistema de 1803/04 é uma íntima relação entre o desenvolvimento conceitual da eticidade e a teoria da consciência, a tal ponto que
a gênese da eticidade absoluta nestes fragmentos pode ser compreendida
como uma teoria da formação prático-cognitiva da consciência individual.
. Esta interpretação é amplamente apoiada no estudo introdutório feito por Marcos Müller,
no qual examina a tese desenvolvida por Theunissen acerca do escamoteamento do momento
intersubjetivo na exposição das Grundlinien (veja-se, M. L. MÜLLER, Apresentação: Um roteiro
de leitura da Introdução [à Filosofia do Direito]. In: G. W. F. HEGEL, Introdução à Filosofia do
Direito, Clássicos da Filosofia: Cadernos de tradução, nº 10, IFCH/UNICAMP, 2005, p. 19-23).
Contudo, para Müller, há em Hegel uma direcionamento peculiar do “estatuto supra-individual”
do “conceito positivo de direito”. No §29, há uma contraposição entre o “conceito positivo de
direito”, vinculado à sua “base substancial supra-individual”, que reúne as condições comunitárias da realização da liberdade de todos; e a concepção formalista do direito, que se refere
à multiplicidade atomista das vontades individuais em mútua coerção. À “base substancial” se
pode relacionar a figura da universalidade imanente às vontades singulares enquanto núcleo
normativo de uma “sociabilidade positiva”, um paradigma não limitativo de intersubjetividade,
o qual se relaciona com a “sociabilidade negativa” como compaginação de relações não limitativas pelas quais a mútua coerção recebe seu sentido social.
. Neste ponto se encontram não somente os elementos mais gerais de nosso desacordo em
relação à interpretação de Honneth, baseada em seu conceito aristotelizante de individualização, como também de nossa maior aproximação à interpretação defendida por Habermas
(1999). Habermas parece não partilhar da posição de Honneth de que os esboços de sistema
de Jena, embora continuem a manter a força de seu viés socializador, sacrifiquem seu nexo
individualizante com a adesão à teoria da consciência e o conseqüente afastamento em relação
ao ponto de partida aristotélico do System der Sittlichkeit (HABERMAS, 1999), segundo o qual
a progressiva intensificação dos laços sócio-integradores possui, como contrapartida, um processo de individualização e sofisticação da relação a si graças à prévia imersão do indivíduo no
estofo originário de relações comunicacionais, que caracteriza a eticidade natural (HONNETH,
1992, 42 e seg). Para Honneth, Hegel teria compensado sua adesão à teoria da consciência com
uma renúncia ao intersubjetivismo em sentido forte que residia no recurso ao ponto de partida
79
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Os textos não publicados de Jena vinculam, de fato, a realização social
do espírito à socialização ativa dos indivíduos, os quais, ao reconstituírem a
partir de sua individualização uma unidade político-estatal, engendram as
normas, práticas e instituições que dão corpo à autoconsciência universal e
ao espírito do povo. O procedimento hegeliano nestes textos se caracteriza, sobretudo, pela gênese das relações concretas, costumes e normas que
mediatizam a vida social a partir do intercâmbio social dos indivíduos; ao
passo que as Grundlinien perseguiriam o processo de efetivação do espírito
de uma maneira destacada da práxis social, isto é, como sucessão de figuras derivadas exclusivamente da “lógica” do desenvolvimento imanente do
espírito universal, compreendido de maneira solitária, de forma que o agir e
querer dos indivíduos nada mais constitui do que um pressuposto. Em face
da filosofia de Jena, a submissão da eticidade ao movimento de auto-reflexão de um einsamer Geist acarreta uma perda de conexão entre as esferas
que possa convencer sem a pressuposição da estrutura lógico-especulativa
do conceito tardio de espírito.
O Fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe (1803/1804)
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
Tal interpretação pode ser corroborada a partir de uma consideração do
percurso dos fragmentos 15 a 22, dedicados à filosofia do espírito. A introdução da conexão entre eticidade e teoria da consciência os diferencia não
somente dos escritos anteriores, mas também das obras de maturidade, na
medida em que a forma definitiva da filosofia do espírito se caracteriza pela
rígida separação entre espírito subjetivo e objetivo.
A adoção da teoria da consciência como diretriz da filosofia do espírito conduz à não pressuposição da eticidade absoluta, como ocorre antes de
1803 (WILDT, 1983, p. 325). A universalidade da consciência é de tal forma
inscrita em sua essência de “ser o contrário imediato de si mesma” que o
procedimento como um todo ganha o contorno de uma argumentação “reconstrutiva” guiada pelo pleno desdobramento da essência da consciência.
Neste contexto, cabe ao fragmento 22 descrever a gênese intersubjetiva
desta universalidade.
O System der Sittlichkeit se apresenta como a primeira tematização
do desenvolvimento conceitual da eticidade (LIMA, 2007, p. 36s). Entretanto, tal opúsculo ainda não evidencia o vínculo entre a gênese intersubjetiva
da eticidade, fundada no conceito de reconhecimento, e a teoria da consciência, que caracteriza o fragmento 22. A partir dos primeiros escritos de
Jena, notadamente o Naturrechtsaufsatz e a Differenzschrift, é sugerida, a
partir da noção de um Einssein entre universal e singular, a necessidade de
uma compreensão da realização institucional gradual da liberdade individual
e, por conseguinte, a idéia de um vínculo entre a formação de instituições
e a progressiva aquisição, por parte do indivíduo, de uma auto-compreensão correspondente a níveis desta realização comunitária de sua liberdade
(HONNETH, 1992, p. 27).
No System der Sittlichkeit, primeiro esboço do que Hegel entende
como uma teoria do desenvolvimento da eticidade, embora o singular, no
elemento societário pré-político de seu defrontamento com a natureza como
ambiente da satisfação de suas carências mediante o trabalho, seja posto
como ponto de partida da “reconstrução” (HEGEL, 2002, p. 5) da eticidade
comunitária, Hegel faz uso da pressuposição da eticidade enquanto povo
(HEGEL, 2002, pp. 3 e 50). Os fragmentos 15 a 22 dos Jenaer Systementwürfe seguem, na medida em que fundamentam a “reconstrução” da comunidade ética sobre uma teoria da consciência, a tendência de romper com
esta pressuposição. Pode-se interpretar esta tendência, que se aprofunda
em Jena, como o afastamento gradual em relação ao modelo clássico de
eticidade e maior reaproximação com as teorias modernas do direito natural e a moral da autonomia (RIEDEL, 1969), as quais tornam a consciência
condição incontornável da realização plena da liberdade. Do ponto de vista
de uma teoria do desenvolvimento da eticidade, Hegel tende gradualmente à percepção de que o projeto de mediação entre a liberdade moderna e
a filosofia política clássica depende de um processo de auto-efetivação da
consciência no quadro institucional da consciência universal e que não seja,
“teórico-comunicativo” aristotélico (HONNETH, 1992, 90s.)
80
Erick C. de Lima
portanto, simplesmente um pressuposto exterior à consciência.
Assim, ainda que Hegel flertasse, antes de 1803, com o princípio fundamental a ser operacionalizado na teoria da consciência – a inteligência,
cuja essência é, enquanto conceito absoluto, passar ao contrário imediato
de si, somente o alinhamento entre o movimento da consciência e a gênese
do espírito ético de uma comunidade suscita a necessidade de um processo
pelo qual a consciência individual faça a experiência de como ela, enquanto
totalidade para si, suspende a si mesma na identidade com o espírito do
povo. Portanto, o vínculo entre consciência, reconhecimento e gênese da
eticidade (SIEP, 1979, p. 180) reside na compreensão do reconhecimento
como auto-movimento da consciência individual pelo qual ela passa da singularidade à universalidade, vendo a “aspereza” de sua pretensão à totalidade sendo gradativamente suspensa até desembocar na união comunitária
com outras consciências singulares. Com isso, o movimento da consciência
individual em direção ao espírito ético ganha a feição de um desenvolvimento dotado de uma necessidade interior, inscrito na estrutura da própria consciência individual. Se a essência da consciência é a unidade dialética de si
mesma e de seu outro, a consciência que é espírito absoluto – em 1803/04,
idêntico ainda ao espírito de um povo – é unidade desdobrada de sujeito e
objeto da qual a filosofia do espírito parte enquanto imediata, mas agora
como “espírito ético”, auto-conhecimento do espírito, apresentação real da
idéia na unidade absoluta de universal e particular.
Na medida em que “faz preceder à filosofia prática, compreendida
enquanto filosofia da eticidade, uma derivação de seu objeto no âmbito da
teoria da consciência, uma derivação que não é já componente do sistema
da eticidade” (SCHNÄDELBACH, 2000, p. 139), Hegel acaba por tornar prescindível a pressuposição do télos do desenvolvimento da eticidade e a conseqüente exterioridade do método de reconstrução deste movimento. Com
a diferenciação categórica entre espírito e natureza (KIMMERLE, 1970, p.
260), Hegel formaliza sua peculiaridade frente aos seus predecessores: que
o espírito seja qualitativamente diferente da natureza, eis o ponto comum
de Hegel com Kant e Fichte; mas que, todavia, o ponto de partida para o
desenvolvimento do espírito pressuponha o ambiente de conexões naturais
suspensas no conceito de uma consciência efetiva, eis sua ruptura com os
81
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
A partir dos esboços escritos em 1803/04, Hegel começa a se afastar
da orientação schelliniana de uma concepção de eticidade direcionada pelo
conceito de natureza, orientação à qual se conecta também seu aristotelismo
da primeira fase em Jena (DÜSING, 1994), e que marca o Naturrechtsaufsatz e o System der Sittlichkeit. Neste sentido, a filosofia prática passa a integrar aquela parte do sistema que constrói o retorno do absoluto enquanto
espírito a partir de sua exteriorização na natureza. Com esta prefiguração da
apresentação enciclopédica, mas operando ainda com uma vinculação muito
íntima entre eticidade e formação da consciência, a filosofia do espírito de
1803/04 se incumbe de construir o desenvolvimento pelo qual a consciência
empírica se desdobra em consciência absoluta.
O Fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe (1803/1804)
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
mesmos. É na concepção da consciência como simultaneamente universal e
individual que reside a suspensão da cisão fichtiana entre consciência pura
e empírica (HABERMAS, 1968, p.789s).
O fio condutor do desenvolvimento do espírito em 1803/1804, marcado justamente pela ligação originária da consciência individual e da autoconsciência universal do espírito ético – ligação originária cujo meio de desdobramento será justamente o “termo médio”, o âmbito comum a ambos,
ou como diz Hegel, o “meio” (Mitte) entre eles (HEGEL, 1986, p. 219), o reconhecimento –, prefigura-se na definição da consciência como conceito do
espírito (HEGEL, 1986, p. 195). Tal definição, empreendida nos fragmentos
15 a 17, estabelece a intuição fundamental de que os “lados” da consciência,
das Bewusstseiende e das, dessen es sich bewusst ist, são imediatamente
um e, por isso, constituem a forma da universalidade. Com efeito, o movimento da consciência como espírito é a suspensão da contraposição, do
“para si” da infinitude exterior em direção à posição de si neste ser-outro.
Ao contrário do que se dá no System der Sittlichkeit e no Naturrechtsaufsatz, a unidade ética do povo é tratada aqui como um objeto a ser
construído através de um desenvolvimento vinculado à teoria da consciência. “Ele existe como objeto (Gegenstand) de sua consciência singular,
enquanto um exterior, no qual eles, tal como são nele absolutamente um,
desligam-se (sich abscheiden) e são para si. É a unidade universal e o meio
absoluto (absolute Mitte) da mesma, e onde eles estão postos idealmente,
enquanto suspensos; e este seu estar-suspenso (dies ihr Aufgehobensein)
é, ao mesmo tempo, para eles mesmos.” (HEGEL, 1986, p. 188) É esta ligação originária entre espírito e consciência que prepara, enquanto distinção
entre determinações subjetivas da individualidade efetiva e a organização
ou auto-configuração do espírito, a distinção entre espírito subjetivo e objetivo (SCHNÄDELBACH, 2000, p. 119).
Neste sentido, o movimento que define a filosofia do espírito em
1803/1804 é o movimento pelo qual a consciência vai apreendendo aquilo
de que é consciente como sendo ela mesma, tornando-se, ao término do
movimento, realidade absoluta da consciência, o contrário do que ela imediatamente é. “Este é o fim, a realidade absoluta da consciência, à qual nós
temos de elevar seu conceito. É a totalidade que ela tem enquanto espírito
de um povo, o qual é absolutamente a consciência de todos, que eles intuem
(anschauen) e que contrapõem a si enquanto consciência, mas, do mesmo
modo, conhecem imediatamente sua contraposição, sua singularidade como
individualidade nele suspensa, ou sua consciência como um absolutamente
universal.”(HEGEL, 1986, p. 190) O desenvolvimento do espírito a partir de
sua célula – não a “autoconsciência pura”, mas a unidade imediata de universalidade e singularidade –, coincide com o movimento de auto-suspensão
da singularidade, processo cuja característica propriamente filosófico-social,
o descentramento da perspectiva individualista da singularidade excludente, será realçada pelo reconhecimento. Somente no povo, ao ser suspensa
como singular, a atividade consciente adquire existência duradoura, tornan82
Erick C. de Lima
do-se universalidade de uma obra comum (HEGEL, 1986, pp. 187/188).
3. Reconhecimento e intersecção das potências
Com efeito, a grande novidade introduzida por Hegel nos Systementwürfe 1803/04 em sua compreensão da luta por reconhecimento em relação
ao System der Sittlichkeit, diz respeito à revogação de seu desencadeamento
na esfera da eticidade natural de família e a fundamentação do mesmo em
uma determinação da consciência, a qual, no fragmento 21, chegando na
família à totalidade da consciência prática formal, marca o nítido encapsulamento do singular em face da universalidade do povo. Ao contrário do princípio aristotélico no System der Sittlichkeit, os esboços de 1803/04 orientam
a exposição pela constituição da universalidade ético-jurídica social a partir
do conflito dos indivíduos entre si e de suas relações com a natureza, sem
recorrer a um estofo intersubjetivo primário de relações de reconhecimento
inseridas na própria natureza humana como algo pressuposto (HONNETH,
1992, p. 49-51): tal estofo é, pela primeira vez, parte do desenvolvimento
da consciência e, como tal, condição da individualização pressuposta pela
luta. Questão que deixamos aqui em aberto é a de se há que se entender
aqui que Hegel perca, com isso, a possibilidade de desenvolver o processo
de reconhecimento tendo como pano de fundo o estofo originário de uma
existência social intersubjetivamente engendrada e que, por conseguinte,
abandone o “intersubjetivismo em sentido forte”(HONNETH, 1992, p. 90)10.
Ao contrário de Hobbes, que fundamenta a necessidade de uma luta
potencialmente generalizada por poder na necessidade de todos de dominar tudo (direito a tudo), ou seja, justamente no fato de que toda posse e
poder servem, em última instância, para submeter ou lesar o outro; Hegel
. Originalmente: põe. Modificação do tradutor.
10. Ver nota 7 acima.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Em íntima relação com o direcionamento fornecido pela teoria da
consciência, o movimento do reconhecimento tem seu necessário desencadeamento imediatamente na evolução da consciência segundo as formas
assumidas nos media e, de uma maneira remota, na conexão desta evolução com o télos do desenvolvimento da consciência estabelecida na soleira
da filosofia do espírito: a consciência universal no espírito de um povo. É
no importante fragmento 22 que Hegel estabelece a relação entre os media
língua, trabalho e interação com o télos do desenvolvimento da consciência,
uma intersecção cujo medium é o próprio movimento do reconhecer. Em
termos da teoria da consciência e do estágio de sua evolução alcançado pela
potência da família, tal movimento consiste em que “cada um ponha a si
mesmo na consciência do outro, suspenda a singularidade do outro, ou seja,
cada qual ponha em sua consciência o outro como uma singularidade absoluta da consciência. Isto é o reconhecer recíproco em geral, e nós vemos
como este reconhecer simplesmente como tal, como posição (Setzen) de si,
enquanto uma totalidade singular da consciência, pode existir em uma outra
totalidade singular da consciência.”(HEGEL, 1986, p. 217)
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
O Fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe (1803/1804)
preserva a figura desta pretensão de totalidade no quadro de sua compreensão de consciência como o ser-ideal do mundo, mas não admite que a luta
possa ter, como em Hobbes, um encaminhamento evasivo que não seja sua
necessária radicalização, isto é, que possa se resolver na forma de um pacto de submissão: na própria estrutura formal da consciência de pretender
expandir seu caráter de totalidade intensiva sobre tudo já está prefigurada
a necessidade incontornável da luta. Como para Hobbes a morte não é uma
necessidade – talvez antes o motivo que suscita uma opção pelo subterfúgio (WILDT, 1983, p. 337) –, também a luta não é condição positiva para a
superação do estado de natureza. Justamente a transformação da luta em
condição positiva de suspensão do estado de natureza é o que caracteriza a
radicalização do modelo hobbesiano em Hegel pela sua contextualização no
processo de constituição recíproca da subjetividade no modelo transcendental do conceito fichtiano de Aufforderung (HONNETH, 1992).11
Seguindo Fichte, Hegel pressupõe que uma “auto-compreensão desenvolvida e consistente”(WILDT, 1983, p. 339) somente é possível pela
experiência de um reconhecimento intersubjetivo. Sendo assim, Hegel atribui à consciência singular enquanto totalidade um impulso para o ser-reconhecido, uma vontade de ser reconhecida em suas prerrogativas, direitos,
peculiaridades e capacidades. Assim, Hegel potencializa, através do caráter
positivo da luta para a superação do estado de mútua impenetrabilidade dos
singulares enquanto totalidades, a tese fichtiana de que a relação de mútua
aprovação contenha a possibilidade de uma auto-constituição da identidade,
que torna significativa a vida conjunta dos indivíduos. Com efeito, em uma
nítida mediação da filosofia antiga com a teoria fichtiana da intersubjetividade, Hegel passa a compreender que a consciência singular somente pode
alcançar sua realidade mais adequada na conexão cultural intersubjetivamente partilhada que Hegel denomina de Volksgeist. Portanto, originariamente, o impulso, contido na vontade singular, para o ser-reconhecido se
refere à compreensão de si mesmo como totalidade, compreensão que se
deixa mediar pelo conflito com outro na medida em que este pode estorvá-la
(WILDT, 1983, pp. 340/341).
Com a referência do processo à aquisição pela consciência singular
de sua mais adequada realidade no espírito do povo, Hegel torna evidente
que o pleno desenvolvimento da identidade singular se dá somente na tessitura da vida comunitária definida pelo mútuo reconhecimento de direitos e
deveres (WILDT, 1983, 340). Como para Hegel a consciência somente tem
uma existência genuína como reconhecida, só há vida social sob a pressuposição de um reconhecimento intersubjetivamente partilhado de um tecido
normativo comum. Mostrar como uma tal pressuposição reside no próprio
movimento da consciência é o sentido primordial da inserção do reconhecimento na filosofia do espírito em Jena. É neste sentido que, para Hegel, a
luta perde todo apelo a um raciocínio hipotético e é desprovida, mesmo, de
todo significado social efetivo: trata-se somente da contrapartida necessá11. Schnädelbach difere de Honneth acerca da mediação alcançada por Hegel das teses de
Hobbes e de Fichte. (SCHNÄDELBACH, 2000, 153)
84
Erick C. de Lima
ria do estado de sociedade, quando este é mostrado em sua gênese a partir
de uma teoria da consciência, isto é, o negativo do mesmo que contém a
condição de sua positivação, a experiência da consciência de sua destinação
ético-social. A luta propicia, portanto, a “auto-experiência das estruturas da
razão prática e das condições interpessoais da identidade do eu.” (WILDT,
1983, p. 342).
Em uma nota à margem dos manuscritos, Hegel polemiza a tese contratualista, quer em sua tradição jusnaturalista, quer em seu registro jusracionalista, como o “contrato originário” na perspectiva anti-voluntarista de
Kant: “nenhuma composição, nenhum contrato, nenhum contrato originário
tácito ou expresso. O singular renunciar a uma parte de sua liberdade, mas
toda [ela]. Sua liberdade singular é somente seu egocentrismo (Eigensinn),
sua morte.”12 Trata-se de uma crítica mordaz à tese fundamental do contratualismo segundo a qual o contrato seria erigido sobre o consentimento
de seres humanos plenamente formados, isto é, os quais, em abstração de
um exitoso processo de individualização e tomada de consciência de sua
liberdade, estariam plenamente aptos a dar seu consentimento a um estado
civil. Para Hegel, um “estado civil” pressupõe, no mínimo, a formação da individualidade, não somente seu destacamento na esfera da educação, mas
sua recondução a padrões ético-jurídicos e simbólicos de uma aquiescência
intersubjetivamente gerada. Neste sentido, não somente a razão pura prática plenamente formada no quadro da racionalidade procedimental em que
se baseia o contrato originário, mas também o voluntarismo e decisionismo
peculiares ao assentimento arbitrário em submeter-se a uma regulação civil da liberdade, bem como a promessa em permanecer sob tal regulação
(HEGEL, 1986, pp. 218/219), são postas em xeque: em suma, para Hegel,
o contrato não é possível, pois suas próprias condições de possibilidade não
são alcançáveis no estado de natureza (PATTEN, 1999, cap.4).
12. HEGEL, 1986, p. 223, nota, Na margem lateral em cima.
85
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Neste sentido, Hegel alcança, com a inserção do processo de reconhecimento na gênese do nexo comunitário, um nível diferenciado de argumentação em relação à tese contratualista do estado civil como a necessária
eliminação de conflitos: na medida em que o reconhecimento se dirige àquela
situação em que os indivíduos se deparam, após o rompimento do círculo de
proximidade responsável pela formação coesa de sua individualidade, até o
ponto do forjamento de uma auto-identidade problemática como totalidade
intensiva e excludente, enquanto sustentando uma recíproca exigência por
serem a totalidade, o querer ser-reconhecido é ele mesmo o fundamento de
conflitos inevitáveis, já que, sob esta perspectiva de uma reivindicação levada ao paroxismo, ambas têm necessariamente de se estorvar. Em comparação com o argumento contratualista da superação do estado de natureza,
Hegel compreende que a constituição dialética da autoconsciência, capaz de
ser o contrário imediato de si mesma, implica que a conflituosa socialização
de seres livres independentes colapse no seu contrário, isto é, no espírito
ético enquanto unidade contraditória de ser e estar-suspenso da totalidade
da consciência.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
O Fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe (1803/1804)
Finalmente, nos fragmentos de 1803/1804, Hegel compreende nitidamente, em vista do estágio de mútua exclusão deflagrado na luta de vida
e morte, a gênese do espírito do povo em duas etapas distintas: primeiramente, como uma genuína gênese intersubjetiva do Einssein; e somente em
um segundo momento, Hegel aborda, a partir desta gênese intersubjetiva,
a relação entre singular e universal como uma relação concernente à substância ética (HEGEL, 1986, p. 223). Apesar de diferenças consideráveis, esta
dupla direção do movimento é preservada na Fenomenologia, como se pode
ver no início do desenvolvimento da “razão ativa” – e, principalmente, no
prólogo incluído sob “B. A Efetivação da consciência-de-si racional através
de si mesma”(HEGEL, 1970, III, p. 262-269).
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217 / Fragmento 22
É absolutamente necessário...
13
É absolutamente necessário que a totalidade, à qual a consciência
chegou na família, conheça-se a si mesma, numa outra tal totalidade, [numa
outra tal] consciência, como a si mesma. Neste conhecer (Erkennen) cada
um é para o outro imediatamente um absolutamente singular. Cada um põe
a si mesmo na consciência do outro, suspende (aufhebt) a singularidade do
outro, ou seja, cada qual põe em sua consciência o outro como uma singularidade absoluta da consciência. Isto é o reconhecer recíproco em geral,
e nós vemos como este reconhecer simplesmente como tal, como posição
(Setzen) de si, enquanto uma totalidade singular da consciência, pode existir (existieren) em uma (in eine) outra totalidade singular da consciência. O
singular é somente uma consciência na medida em que cada singularidade
de sua posse e de seu ser (seines Besitzes und seines Seins) aparece ligada
à sua inteira essência (Wesen), é acolhida (aufgenommen) em sua indiferença – na medida em que ele põe como si mesmo cada momento; pois
isto é a consciência, o ser-ideal (das Ideellsein) do mundo. A lesão a qual-
13. Em E, o começo do parágrafo (depois riscado) dizia o seguinte: cada forma entre absolutamente singulares é uma [forma] indiferente: é da mesma forma indiferente presentear ao outro
ou lhe roubar e o abater. E não há nenhum limite entre a menor e a mais alta lesão.
O singular é um todo, todo o diferenciável nele está posto nesta inteireza (Ganzheit):
ele é sem o surgir do universal. A relação dos singulares uns aos outros é uma relação dos
mesmos como todos; pois o universal que surge seria mesmo o findar de sua singularidade. Ao
não poderem, desta forma, desmembrar-se em sua relação, então cada negação singular da
posse é uma negação de sua totalidade, e, ao mesmo tempo, esta negação tem de aparecer
(eintreten).
87
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
SCHNÄDELBACH, H.. Hegels praktische Philosophie: Ein Kommentar der
Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
2000.
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
O Fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe (1803/1804)
quer de suas singularidades é, portanto, infinita, [é] um dano (Beleidigung)
absoluto, um dano dele como um todo, um dano de sua honra. E o embate
(Kollision) por cada singular é uma luta (Kampf) pelo todo14. A coisa, a
determinidade, /218 enquanto valor, enquanto uma coisa, não vem de maneira nenhuma ao caso: ela é antes inteiramente nadificada (vernichtet), é
totalmente ideal. Trata-se somente disso: que ele está relacionado a mim,
que eu sou uma consciência, que ele perdeu sua oposição a mim. Enquanto
esta totalidade, ambos, que querem se reconhecer e se saberem reconhecidos como esta totalidade de singularidades, entram em cena um em face
do outro. E o significado, que eles a si conferem frente ao outro, consiste
em que cada um apareça na consciência do outro /219 como um tal que o
exclua de toda a extensão de suas singularidades; β) que ele neste seu excluir seja efetivamente totalidade. Isto nenhum deles pode demonstrar ao
outro através de palavras, asseguramentos, ameaças ou promessas; pois a
linguagem é somente a existência ideal da consciência: mas aqui estão um
contra o outro, [seres] efetivos, i.e. [seres] absolutamente contrapostos,
absolutamente sendo-para-si, e sua relação (Beziehung) é uma [relação]
puramente prática, mesmo uma [relação] efetiva: o meio de seu reconhecer tem de ser ele mesmo um [meio] efetivo. Eles têm então de lesar um
ao outro. Que cada um, na singularidade de sua existência, ponha-se como
totalidade excludente, isto tem de se tornar efetivo. O dano (Beleidigung) é
necessário: somente quando eu perturbo o outro em seu ser aparecente, ele
é capaz de tornar efetivo seu excluir de um outro, pode ele se apresentar
14. Em E dizia o seguinte até pôr (setzen), (219, linha 38), depois modificado. E aquela colisão
tem e deve surgir, pois que o singular como tal seja uma indiferença racional somente pode
ser sabido ao ser posta nela cada singularidade de sua posse e de seu ser, relacionando-se [o
singular] a ela como um todo. Isto somente pode se mostrar ao empregar ele, por sua conservação, toda a sua existência, ao não se dividir ele pura e simplesmente. E a prova tem seu
término somente com a morte. O aparecimento de um singular contra o outro é um múltiplo
ter, o bem (das Gut), o meio exterior. Este é, segundo sua natureza, enquanto um exterior, um
universal, e nele os singulares irrelacionados se relacionam uns aos outros. Mas é o bem de
um deles; a relação de vários àquele [bem] é uma [relação] negativa, que exclui. Que a relação excludente de um deles àquele seja uma [relação] racional, que ela seja em verdade uma
totalidade, é deste reconhecer que se trata na relação dos singulares. Cada um somente pode
ser reconhecido pelo outro, na medida em que seu aparecimento múltiplo é nele indiferente,
em cada singularidade de sua posse se corrobora como infinita e vinga cada dano até a morte.
E este dano tem de surgir, pois a consciência tem de se dirigir a este reconhecer, os singulares
têm de fazer dano um ao outro, para tomarem conhecimento (um sich zu erkennen) se eles
são racionais. Pois a consciência é essencialmente tal que a totalidade do singular se contrapõe a si e permanece a mesma neste tornar-se-outro (Anderswerden), tal que a totalidade do
singular está numa outra consciência e seja a consciência do outro, e nesta [consciência] seja
justamente este absoluto permanecer da mesma [totalidade], o qual ela tem para si; ou tal
que elas são reconhecidas pelo outro. Mas que minha totalidade, enquanto [totalidade] de um
singular, seja, na outra consciência, justamente esta totalidade sendo-para-si – que ela seja
reconhecida, respeitada –, isto eu não posso saber a não ser através do aparecimento do agir
do outro contra a minha totalidade; e da mesma forma tem o outro que aparecer a mim ele
mesmo como uma totalidade, tal como eu o sou. Se eles se comportam negativamente, deixam
um ao outro, então nenhum deles apareceu ao outro como totalidade, e também não [apareceu] o ser de um na consciência do outro, nem o apresentar (Darstellen), nem o reconhecer. A
linguagem, explicações, promessas não são este reconhecimento, pois a linguagem é somente
um meio ideal: ela desaparece tal como aparece, não é um reconhecimento que permanece,
um reconhecimento real. Este somente pode ser um [reconhecimento] real, ao se pôr cada
singular de tal forma como totalidade na consciência do outro,
88
Erick C. de Lima
15. Em E se seguia (mais tarde sublinhado): afirma-se em sua posse, o significado negativo
excludente, como uma totalidade. Ambos corroboram isto somente com sua morte enquanto a
totalidade negativa, tanto para si, como em consideração ao outro;
16. Em E dizia o seguinte até se dirige para a Morte (Tod geht) (221, linha 11), mais tarde modificado: eu arrisco nisso minha vida, assim como me dirijo à morte; e da mesma maneira o outro somente pode aparecer a mim como totalidade racional, na medida em que ele se põe para
mim desta forma, e eu tenho de me revelar assim a ele e de ter precisamente a prova dele.
Este reconhecer absoluto contém com isso imediatamente em si mesmo uma contradição: ele se suspende a si mesmo somente de maneira infinita (es ist nur unendlich sich selbst
aufhebend). A singularidade enquanto totalidade deve ser reconhecida, deve ser tanto para
mim, como na consciência do outro. Cada relação (Beziehung) do outro à minha singularidade
é ela mesma uma [relação], e, por causa da necessidade do reconhecer, tais relações têm de
surgir. Eu me revelo nesta singularidade como totalidade, eu torno a relação imediatamente
infinita e, no que concerne ao outro, eu me dirijo à posição de mim nele (und gehe in Ansehung
des andern darauf, mich in ihm zu setzen), α) enquanto o suspendendo como totalidade, em
direção à sua morte; pois αα) ele tem de me reconhecer, [reconhecer] que eu respeito a vida,
tampouco em mim quanto nele, se relacionando ela mesma somente à singularidade; ββ) eu
tenho de reconhecer para mim se ele é um ser racional, o qual em sua defesa e ataque chega
até a morte, β) a mim mesmo como suprimindo igualmente a totalidade, αα) pois eu tenho de
me revelar a ele como sendo eu mesmo totalidade.
�
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como consciência de que este é seu ser, que a singularidade é indiferente, de
que este exterior está nele próprio. Em sua posse cada um tem de ser perturbado de maneira particularmente necessária, pois na posse jaz a contradição de que um exterior, um coisa, um universal da terra, de que isto deva
estar em poder de um singular, o que vai contra a natureza da coisa como
um universal, exterior; e trata-se aqui do universal contra a singularidade
imediata da consciência. Através do necessário dano, que deve conduzir
ao reconhecer, ambos estão na relação (im Verhältnisse) em que se põem
um frente ao outro (gegeneinander) como singularidade absoluta negativa,
como totalidade. Ao excluir violentamente o outro e suspender a posse tomada para si na lesão, cada um lesa, ao mesmo tempo, o outro, nega algo
no outro que este pôs como o seu. Cada um tem de afirmar aquilo que foi
negado pelo outro como estando em sua totalidade, como algo que não é
exterior, suspendendo-o no outro. E na medida em que, neste singular simplesmente, cada um afirma sua totalidade como [totalidade] de um singular,
então vem ao aparecimento (so kommt es zur Erscheinung) que cada um
nega a totalidade do outro. O reconhecer recíproco da totalidade singular
de cada um, ao ser esta [totalidade] singular negada, torna-se uma relação
negativa da totalidade: cada qual tem de pôr a si mesmo de tal forma enquanto totalidade na consciência do outro que ele emprega15 contra o outro
toda a sua totalidade aparecente, sua vida na conservação de qualquer singularidade,/220 e cada um tem igualmente de se dirigir à morte do outro.
Eu somente posso conhecer a mim mesmo como esta totalidade singular na
consciência do outro, na medida em que eu me ponho na sua consciência
como um tal, que eu seja, no meu excluir, uma totalidade do excluir16 , que
eu me dirija à morte dele. Dirigindo-me à sua morte, exponho-me eu mesmo à morte, eu arrisco minha própria vida, eu cometo a contradição de querer afirmar a singularidade do meu ser e da minha posse. E esta afirmação
passa ao seu contrário: eu sacrifico toda esta posse e a possibilidade de toda
posse e gozo, sacrifico a própria vida. Ao me pôr como totalidade da singu-
O Fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe (1803/1804)
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laridade, eu suspendo a mim mesmo enquanto totalidade da singularidade. Eu quero ser reconhecido nesta extensão da minha existência, em meu
ser e minha posse; mas, ao suspender esta existência, eu os transformo,
e somente me torno em verdade reconhecido enquanto racional, enquanto
totalidade, ao dirigir-me eu mesmo à morte do outro, ao arriscar minha própria vida e esta /221 extensão de minha existência mesma, ao suspender a
totalidade da minha singularidade.
Este reconhecer da singularidade da totalidade engendra, portanto, o
nada da morte. Cada um tem de conhecer do outro se ele é uma consciência
absoluta; α) cada um tem de se pôr numa tal relação frente ao outro, por
meio do que isto vem à luz: ele tem de lesá-lo, e cada um somente pode saber do outro se ele é totalidade, ao impeli-lo até a morte. E cada um somente se revela, da mesma forma, como totalidade para si, ao se dirigir consigo
mesmo para a morte. Se ele em si mesmo se demora nos limites da morte
(innerhalb des Todes), se ele se revela ao outro somente como pondo em
jogo nisso a perda (Verlust) de uma parte ou de toda a posse, como chaga e
não como a vida mesma, então ele é para o outro imediatamente uma nãototalidade, ele é não absolutamente para si, e se torna o escravo
do outro. Se ele, nos limites da morte, se demora contíguo ao outro (wenn
er an dem andern innerhalb des Todes stehenbleibt) e suspende o conflito
antes da morte, então ele nem se revelou como totalidade, nem conheceu
o outro como tal.
17
Este reconhecer dos singulares é, portanto, absoluta contradição
nele mesmo. O reconhecer é somente o ser da consciência enquanto uma
totalidade numa outra consciência, mas, ao se tornar efetivo, então ele suspende a outra consciência e com isso se suspende o próprio reconhecer: ele
não se realiza, mas antes cessa (sondern hört vielmehr auf zu sein, indem es
ist) no momento mesmo em que tem lugar. E realmente a consciência é, ao
mesmo tempo, somente como um tornar-se-reconhecido por uma outra (ein
Anerkanntwerden von einem Andern); e ela é, ao mesmo tempo, somente
consciência enquanto um uno numério absoluto, e tem de ser reconhecida
como tal, isto é, ela tem de se dirigir à morte do outro e à sua própria, e é
somente na efetividade da morte.
Que nós tomamos conhecimento de que o reconhecido somente é
17. A passagem seguinte até si mesmo em si mesmo, (linha 34) dizia em E (mais tarde modificado): este reconhecer diz respeito, portanto, a se revelar para o outro como totalidade
da singularidade, a ver-se desta forma no outro e igualmente este [em si mesmo]. Mas neste
realizar (realisieren) a totalidade da singularidade se suspende a si mesma. Ela adquire toda
sua posse e põe a lesão, o não-ser-reconhecido (das Nichtanerkanntwerden) de seu excluir,
como infinita. Ela se apresenta a si mesma como sustentando (vertretend) cada singularidade
com sua inteireza. Mas ela somente pode se apresentar como todo ao se suspender como ente
nos singulares, ao sacrificar (hingibt), na defesa de si mesma, sua posse à destruição e a vida
como o simples aparecimento que compreende em si todos os lados da totalidade da singularidade. Portanto, ela somente pode ser totalidade da singularidade na medida em que renuncia
a si mesma como totalidade da singularidade e da mesma forma à outra na qual ela quer ser
conhecida.
Este reconhecer é absolutamente necessário, seu lado puramente negativo é, ��
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totalidade, consciência ao se suspender, é agora um conhecer desta própria
consciência: ela mesma faz esta reflexão de si mesma em si mesma de que
a totalidade singular, ao /222 se conservar como tal [totalidade], quer ser,
sacrifica-se a si mesma de maneira absoluta, se suspende e com isso faz o
contrário daquilo a que se dirige. Ela mesma somente pode ser como uma
[totalidade] suspensa; ela não pode se conservar como uma [totalidade]
sendo (als eine seiende), e sim somente como uma [totalidade] posta enquanto suspensa: com isso ela se põe a si mesma como uma [totalidade]
suspensa e somente como uma tal [totalidade] pode ser reconhecida, este
imediatamente Uno e o mesmo. Ela é uma [totalidade] que se suspende a
si mesma, e é uma [totalidade] reconhecida, a qual é em outra consciência
que não ela mesma: ela é com isso consciência absolutamente universal.
Este ser do estar-suspenso (Aufgehobensein) da totalidade singular é a totalidade como [totalidade] absolutamente universal, como espírito absoluto: é
o espírito como consciência absolutamente real. A totalidade singular vê a si
mesma enquanto uma [totalidade] ideal, suspensa, e ela não é mais [totalidade] singular, e sim é para si mesma este estar-suspenso de si mesma, e
ela é somente reconhecida, é somente universal enquanto esta [totalidade]
suspensa. A totalidade como singularidade está posta nela mesma enquanto
uma [totalidade] meramente possível, não [enquanto] sendo-para-si (nicht
fürsichseiende), em seu subsistir somente uma tal [totalidade] que sempre está pronta para a morte, que renunciou a si mesma, que certamente
é enquanto totalidade singular, como família e na posse e na fruição, mas
de tal forma que esta relação (Verhältnis) é para ela mesma uma [relação]
ideal e se revela como [relação] que se sacrifica a si mesma. Este ser da
consciência, que é enquanto totalidade singular, enquanto uma [totalidade]
que abriu mão de si mesma, vê-se justamente nisso a si mesma em outra
consciência, é imediatamente ela mesma para si enquanto uma outra consciência, ou seja, ela é em outra consciência somente enquanto esta outra
consciência de si mesma (ihrer selbst), i.e como [totalidade] suspensa para
si mesma. Dessa maneira ela é reconhecida: em toda outra consciência ela
é o que é imediatamente para si mesma, ao ser em uma outra [consciência],
uma [totalidade] suspensa, por meio do que a singularidade está salva. Eu
sou totalidade absoluta, estando /223 a consciência dos outros enquanto
uma totalidade da singularidade em mim somente como uma [consciência]
suspensa, mas da mesma forma a minha totalidade da singularidade é uma
[totalidade] suspensa no outro. A singularidade é singularidade absoluta,
infinitude, contrário imediato de si mesma. [É] a essência do espírito: ter
em si, de uma maneira simples, a infinitude, de tal forma que a oposição se
suspenda imediatamente. Estas três formas do ser, do suspender e do ser
como estar-suspenso (als Aufgehobensein) são postos absolutamente como
um. A totalidade singular é, pois as outras totalidades singulares são postas
como [totalidades] suspensas: ela [a consciência E.C.L] se põe assim na
consciência suspensa do outro, torna-se reconhecida. Nestes sua totalidade
é da mesma forma uma [totalidade] suspensa, e, ao se realizar no reconhecer, ela está s u s p e n s a: e ela é neste para si mesma como [consciência]
suspensa; ela conhece-se a si mesma como um suspensa, pois justamente
ela somente é enquanto reconhecida. Como não reconhecida, como não
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
O Fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe (1803/1804)
[sendo] uma outra consciência que não ela mesma, ela simplesmente não
é, seu tornar-se-reconhecida (sein Anerkanntwerden) é sua existência, e
ela somente é nesta existência enquanto uma [consciência] suspensa. Esta
consciência absoluta é, portanto, um estar-suspenso (ein Aufgehobensein)
das consciências enquanto singulares, um estar-suspenso o qual é, ao mesmo tempo, o movimento eterno do chegar-a-si-mesmo de uma delas na outra (Zu-sich-selbst-Werden eines in einem andern) e do tornar-se-outro em
si mesma (Sich-anders-Werden in sich selbt). Ela é uma consciência universal e que persiste, ela não é uma mera forma dos singulares sem substância,
mas sim os singulares não são mais: ela é substância absoluta, é espírito
de um povo, para o qual a consciência como singular é forma somente para
si, a qual se torna imediatamente uma outra, o lado de seu movimento, a
eticidade absoluta. O singular como membro de um povo é um ser ético (ein
sittliches Wesen), cuja essência [é] a substância viva da eticidade universal, [ao passo que] ela como [consciência] singular, como forma ideal de
um ente, [é] apenas como suspensa. O ser (das Sein) da eticidade em sua
multiplicidade viva são os costumes do povo18. /224
O espírito absoluto de um povo é o elemento absolutamente universal, o éter que tragou (verschlungen) em si todas as consciências singulares: a substância única, viva, simples e absoluta. Ele tem de ser igualmente
a substância ativa, contrapor-se como consciência e ser o meio aparecente
(die erscheinende Mitte) dos contrapostos, aquilo em que eles são igualmente um – na medida em que nele eles se contrapõem e contra ele são
ativos, seu Uno nadificante (ihr vernichtendes Eins), cuja atividade contra
eles é sua própria atividade, assim como sua atividade contra o mesmo [é] a
atividade do espírito. O espírito do povo tem de se tornar eternamente
o
b r a19 , ou seja, ele é somente como um eterno tornar-se espírito (als ein
ewiges Werden zum Geiste). Ele fez a si mesmo obra ao ter sido posta nele
atividade, que com isso [é] [atividade] contra ele. E esta atividade contra
ele é imediatamente o suspender de si mesma. Este tornar-se-outro de si
mesmo (dies Anderswerden seiner selbst) consiste em que ele se relacione,
enquanto passivo, a si mesmo enquanto ativo, [que ele] enquanto povo
ativo, um ser consciente de si em geral (ein sich Bewußtseindes überhaupt),
passe ao produto, o igual-a-si-mesmo (das Sichselbstgleiche). E, ao ser esta
obra comunitária de todos a obra de todos eles enquanto seres conscientes (als Bewußtseiender), então nele eles chegam a ser como um exterior
(werden sie sich als ein Äußeres darin). Mas este exterior é o seu ato, ele
é apenas aquilo que eles fizeram dele, ele são eles mesmos como ativos,
suspensos. E nessa exterioridade deles mesmos, em seu ser enquanto [ser]
de suspensos, como meio, eles vêem a si mesmos como Um povo20 , e esta
sua obra é, portanto, seu próprio espírito mesmo. Eles o produzem, mas
18. Na margem lateral em cima: nenhuma composição, nenhum contrato, nenhum contrato originário tácito ou expresso. O singular renunciar a uma parte de sua liberdade, mas toda [ela].
Sua liberdade singular é somente seu egocentrismo (Eigensinn), sua morte.
19. Em E se seguia (depois modificado): Enquanto consciência absoluta é ele somente na medida em que ele se torna um outro e, neste tornar-se outro (Anderswerden), é imediatamente
ele mesmo.
20. Em E se seguia (depois modificado): a razão em geral existe somente em sua obra: ela
vem-a-ser somente em seu produto, vê a si mesma como um outro e como ela mesma.
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Erick C. de Lima
eles o reverenciam como um sendo-para-si (als ein Fürsichseindes). E ele é
para si mesmo, pois a atividade deles, por meio do que eles o engendram,
é o suspender deles próprios, ao que eles se dirigem, é o espírito universal
sendo-para-si.
O devir absoluto desta idéia de espírito a partir de sua natureza inorgânica, [devir] do espírito ético22 (des sittlichen Geistes) é a necessidade de
seu agir na totalidade de sua obra. Ele é, enquanto espírito absolutamente
ético, essencialmente como o infinito, negativo, o suspender da natureza, na
qual ele se tornou somente um outro, o pôr da mesma como de si mesmo e,
em seguida, o absoluto desfrutar de si mesmo ao tê-la re-acolhido adentro
de si.
A primeira é sua obra negativa, seu estar-direcionado (Gerichtetsein) contra o aparecimento do outro que não o que ele mesmo é, ou seja,
sua natureza inorgânica. Entretanto, a natureza inorgânica do espírito ético
não é aquilo que nós denominamos natureza em geral [, a saber]: a natureza como ser-outro do espírito, i. é como um subsistente na totalidade dos
momentos. Esta [natureza] está na consciência em geral, na linguagem,
posta como uma [natureza] suspensa a partir da memória e do instrumento, e este estar-posto da natureza, enquanto suspenso, o espírito em sua negatividade, é a absoluta totalidade da consciência enquanto [absoluta totalidade] da singularidade, ou seja, a família; e, em sua realidade, [a mesma]
enquanto possuindo um patrimônio familiar (Familiengut). Esta totalidade
é o ser-posto negativo da natureza, e o espírito ele mesmo [é] somente
diferente (different), relacionando-se a um contraposto, e sua totalidade
21. N do T. Reproduzimos aqui o original desta passagem de difícil tradução. Der Kreislauf des
sich vom Werk als einem Toten abscheiden und als Tätige, einzelne sich setzen, und es als
allgemeines Werk, ebenso unmittelbar nur sich darin aufheben, und sich nur einen aufgehobne
Tätigkeit, aufgehobne Einzelheit sein.
22. Em E estava (depois modificado): a absoluta organização do espírito ético.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
Sua vida é um expirar e inspirar, seu dispersar (sein Auseinandergehen), entra, como ativa, em contraposição a si mesma como passiva. Ele
se torna um, uma unidade do ativo e passivo, a obra, mas nesta obra /225 o
passivo e o ativo estão eles mesmos suspensos. Ele é o absolutamente universal, ele é somente obra ao ser a oposição do ativo e do passivo. Mas, ao
estar o ativo como tal em face do passivo, então o ativo e o passivo deixam
de ser uma oposição, e há somente o absolutamente universal, a oposição
somente como absoluto desaparecer de si mesma. Tem de ter verdade [a
idéia de] que os singulares põem sua totalidade singular como uma [totalidade] ideal, não [sendo] uma fraude de todos contra o todo. A obra ética do
povo é o estar-vivo (das Lebendigsein) do espírito universal, ele [é] como
espírito ser-um ideal deles, enquanto obra [é] o meio deles – a circulação
(Kreislauf) do [espírito] que se distancia da obra como uma [obra] morta
e que, como ativos, singulares se põem; e esta [obra] enquanto universal,
igualmente suspendem nela imediatamente somente a si mesmos, e são
para si uma atividade suspensa, [uma] singularidade suspensa21.
O Fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe (1803/1804)
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
[é] a realização (Realisierung) desta consciência diferente./226 Mas esta
totalidade é a [totalidade] que, libertada da sua relação diferente, da sua
existência na natureza, tem de se tornar um espírito absolutamente positivo, um [espírito] absolutamente universal; e a família como tal, a realidade
da singularidade, é a natureza inorgânica do espírito, a qual tem de se pôr
a si mesma como uma [natureza] suspensa, tem de se elevar à potência do
universal. Nós consideramos primeiramente como ela é enquanto subsistente, mas designada com o caráter da universalidade.
I. As potências que vieram anteriormente são, em geral, ideais: somente num povo elas são como existentes. A linguagem é somente como
linguagem de um povo, da mesma forma entendimento e razão. Somente
como obra de um povo a linguagem é a existência ideal do espírito, na qual
ele exprime o que ele é segundo sua essência e em seu ser. Ela é um universal, em si reconhecido, que ecoa da mesma maneira na consciência de todos.
Cada consciência falante se torna nela uma outra consciência. Da mesma
maneira, segundo seu conteúdo, somente num povo, ela se torna linguagem
verdadeira, exprimir o que cada um quer dizer. Bárbaros não sabem dizer o
que desejam, dizem somente a metade ou exatamente o contrário do que
querem dizer. Somente em um povo existe aquilo – já posto como suspenso,
presente (vorhanden) como consciência universal, ideal – que a memória, o
tornar-se linguagem (das Werden zur Sprache), torna primeiramente ideal.
A linguagem é, segundo sua essência, presente para si mesma, natureza
posta idealmente, e ela é como que mera forma, ela é um mero falar, uma
exterioridade. Ela não é um produzir, mas a simples forma do tornar-exterior
(die bloße Form des Äußerlichemachens) o que já foi produzido, como isto
tem de ser falado, o formal da pura atividade, o devir imediato do ser-interior em seu contrário (das unmittelbare Werden des Innerlichsein zu seinem
Gegenteile), em um exterior. A formação (Bildung) do mundo em linguagem
está em si presente (ist an sich vorhanden). Tal como o devir da razão e do
entendimento, ela recai na educação, ela existe para a consciência que devém (für das werdende Bewußtsein) enquanto mundo ideal, enquanto sua
natureza inorgânica; e ela [a consciência que devém E.C.L.] não tem de se
destacar desta maneira da natureza, mas sim de encontrar para a idealidade
da mesma a realidade, de procurar para a linguagem o significado, que está
no ser. Este é da mesma maneira para a mesma [consciência], ele permanece somente como que a /227 atividade formal do relacionar dos mesmos,
que já são, uns aos outros.
A linguagem é, portanto, reconstruída de tal maneira em um povo,
que ela é, enquanto o nadificar ideal do exterior, ela mesma um exterior, o
qual tem de ser nadificado, suspenso, a fim de se tornar linguagem significante (um zur bedeutenden Sprache zu werden), tornar-se aquilo o que ela
é em si, segundo seu conceito. Portanto, ela é no povo como um outro algo
morto que não ela mesma, tornando-se totalidade ao ser suspensa enquanto um exterior e ao chegar a seu conceito (zu ihrem Begriff wird).
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B. O trabalho e a posse tornam-se, no povo, da mesma maneira,
Erick C. de Lima
algo outro que não o que são em seu conceito. O trabalho concerne para si
à carência do singular como tal, assim com a posse é pura e simplesmente
a [posse] de um singular. O trabalho se torna, em sua singularidade, ele
mesmo um [trabalho] universal tal como [se torna] a posse.
I. O trabalho, que se dirigia à carência de um singular, nele se torna
α) o trabalho de um singular, β) mesmo quando se dirige somente à sua
carência, um [trabalho] universal.
23
O reconhecer do trabalho e da habilidade (Geschicklichkeit) atravessa /228 mesmo a circulação no universal, a qual ele possui no singular
pelo aprender. Contra a habilidade universal se põe o singular como um
particular, se aparta disso e se faz mais habilidoso que os outros, inventa
instrumentos mais apropriados (tauglichere Werkzeuge). No entanto, o que,
em sua habilidade particular, é um verdadeiramente universal, é a invenção
de um universal, e os outros o aprendem, suprimem sua particularidade e
ela se torna imediatamente patrimônio universal (allgemeines Gut).
O instrumento como tal aparta do ser humano seu aniquilamento
material, mas permanece nisso seu [aniquilar] formal, permanece sua atividade, a qual é dirigida a um morto: e, na verdade, sua atividade é essencialmente o matar (das Töten) do mesmo, removê-lo para fora de seu nexo
vivo (es aus seinem lebendigen Zusammenhange herauszureißen), pô-lo
como um [algo] a ser aniquilado (als ein zu Vernichtendes), como um tal.
Na máquina o ser humano suspende mesmo esta sua atividade formal e a
deixa trabalhar inteiramente para ele. No entanto, qualquer fraude que ele
comete contra a natureza e com a qual ele se mantém fixado (stehen bleibt)
nos limites da singularidade dela, vinga-se contra ele próprio. O que ele dela
obtém, quanto mais ele a subjuga, tanto mais aviltado se torna ele próprio.
Ao permitir que a natureza seja trabalhada por diversas máquinas, ele não
23. Antes disso estava em E (depois riscado): β) o instrumento, no qual o ser humano põe, em
seu aniquilar da natureza, sua razão enquanto uma [razão] suspensa, mantendo-a afastada de
si, transforma-se em máquina. Em geral atravessa
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
α) Para o trabalhar (für das Arbeiten) como tal está igualmente presente agora a exigência: ele quer ser reconhecido, ter a forma da universalidade. Ele é um modo universal (es ist eine allgemeine Weise), uma regra
de todo trabalho, que é algo sendo-para-si, aparece como um exterior, como
natureza inorgânica e tem de ser aprendido. Mas este universal é para o
trabalho a essência verdadeira, e a inabilidade natural tem de se superar
(überwinden) no aprendizado do universal. O trabalho não é um instinto,
mas uma racionalidade (eine Vernünftigkeit), que no povo se faz um universal e está, por isso, contraposta à singularidade do indivíduo, que deve
ser ultrapassada (sich überwinden muß). E o trabalhar, justamente por isso,
não é como instinto, mas está presente no modo do espírito, segundo o qual
ele, enquanto atividade subjetiva do singular, tornou-se, apesar disso, um
outro, uma regra universal; e primeiramente a habilidade do singular vem a
ser através deste processo de aprendizado e retorna a si através do tornarse-outro (Anderswerden) de si mesma.
O Fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe (1803/1804)
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
suprime a necessidade do seu trabalhar, e sim somente o posterga, afasta-o da natureza e, de uma maneira não viva, volta-se não a ela enquanto
[natureza] viva, mas antes esta vivacidade negativa se evade; e o trabalhar
que ainda lhe resta se torna maquinal (maschinenmäßiger). Ele a esmorece
somente para o todo, mas não para o singular, e antes a intensifica: pois
quanto mais maquinal se torna o trabalho, tanto menos valor tem ele, e
tanto mais tem ele, desta maneira, de trabalhar.
γ. Na verdade, seu trabalho é, enquanto trabalhar de um singular
por suas carências, ao mesmo tempo, um [trabalho] universal, ideal: ele
bem consegue satisfazer suas carências com ele, mas não com este [algo]
determinado que é elaborado por ele (nicht mit diesem bestimmten von
ihm Bearbeiteten): se ele satisfaz suas carências, torna-se ele um outro
que não o que ele /229 é. O ser humano não elabora (erarbeitet) a si o que
precisa, ou antes, ele não precisa mais do que ele a si elabora, e sim, ao
invés da efetividade da satisfação de suas carências, isto se torna somente
a possibilidade desta satisfação. Seu trabalho se torna um [trabalho] formal,
abstrato, universal, um [trabalho] singular. Ele se limita ao trabalho por uma
de suas carências e troca por esse [trabalho] o que é necessário para suas
outras carências. Seu trabalho é, para a carência – para a abstração de uma
carência –, como um universal [que] não é sua carência, e a satisfação da
totalidade de suas carências é o trabalho de todos. Entre o alcance das carências do singular e sua atividade [para satisfazê-la] (seine Tätigkeit dafür)
se insere o trabalho do povo inteiro; e o trabalho de cada um é, com respeito ao seu conteúdo, um [trabalho] universal para as carências de todos,
assim como para a adequabilidade (Angemessenheit) à satisfação de todas
as suas carências, isto é, ele tem um valor. Seu trabalho e sua posse não
são o que são para ele, mas sim o que eles são para todos. A satisfação das
carências é uma dependência universal de todos uns dos outros. Desaparece
para cada um toda segurança e certeza de que seu trabalhar enquanto [trabalhar] singular seja imediatamente conforme as suas carências. Enquanto
singular com carências (als ein einzelnes Bedürftiges), ele se torna um universal. Através da singularização (Vereinzelung) dos trabalhos, a habilidade
de cada um para este trabalho é imediatamente maior. Todas as relações da
natureza à singularidade do ser humano recaem mais sob seu domínio, o
conforto aumenta. Esta universalidade à qual a carência singular e o trabalho, a adequabilidade à mesma, são elevados, é uma universalidade formal.
A consciência dela não é uma absolutidade (eine Absolutheit), onde esta
relação se nadificaria: dirige-se a suspender esta singularidade, a libertar o
trabalhador (den Arbeitenden) de sua dependência da natureza. A carência
e o trabalho se elevam à forma da consciência, eles se tornam mais simples,
mas sua simplicidade é a [simplicidade] formalmente universal, abstrata, o
desagregar (das Auseinanderlegen) do concreto, o qual se torna, neste seu
desagregar, a infinitude empírica das singularidades. E, submetendo assim a
si a natureza desta maneira formal e falsa, o indivíduo apenas intensifica sua
dependência em relação a ela.α) A singularização /230 do trabalho aumenta
a quantidade de [elementos] elaborados. Em uma manufatura inglesa, 18
pessoas trabalham em um alfinete. Cada qual exerce apenas uma parte
96
Erick C. de Lima
Estes múltiplos trabalhos das carências enquanto coisas têm igualmente de realizar seu conceito, sua abstração. Seu conceito universal tem
de ser uma coisa da mesma maneira como elas, [uma coisa] que, no entanto, represente, enquanto universal, a todas. O dinheiro é este conceito material e existente, a forma da unidade ou da possibilidade de todas as coisas
da carência.
A carência e o trabalho, elevado a esta universalidade, forma, assim,
para si mesmo, num grande povo, um sistema monstruoso de comunidade
(Gemeinschaftlichkeit) e de mútua dependência, uma vida do [que é] morto, que se movimenta (a)dentro de si mesma, que, em seu movimento, se
move cegamente e de maneira elementar de cá para lá, e que, como um
animal selvagem, necessita de uma contínua e rigorosa dominação e domesticação.
γ. Esta atividade do trabalhar e da carência, enquanto o movimento
do mesmo, tem igualmente seu lado em repouso (seine ruhende Seite) na
/231 posse. Em sua singularidade, a posse se torna igualmente, na totalidade de um povo, uma [posse] universal; ela permanece posse deste singular,
mas, na medida em que ele é posto assim [como singular] pela consciência
universal, ou seja, na medida em que nesta todos possuem o seu, isto é,
ela se torna propriedade. Seu excluir se torna um tal que todos excluem
comunitariamente todo outro igualmente, e na posse determinada todos
têm igualmente sua posse, ou seja, que o possuir do singular é o possuir de
todos. Na posse, há a contradição de que uma coisa enquanto coisa é um
universal e, apesar disso, deve ser somente uma posse singular. Esta contradição é suspensa por consciência, ao ser esta posta em si como o contrário
de si mesma: ela é como [consciência] reconhecida, a posse singular e universal ao mesmo tempo, uma vez que, nesta posse singular, todos possuem.
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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008
particular do trabalho e somente ela. Um singular não poderia talvez fazer
sequer 20, sequer 1. Aquele trabalho dos 18, distribuído entre 10 pessoas,
produzem 4000 por dia. Mas, com o trabalho destes 10, se eles trabalhassem
em 18, resultariam 48000. Entretanto, na mesma proporção em que a quantidade produzida, cai o valor do trabalho. β) O trabalho se torna tanto mais
absolutamente morto, ele se torna trabalho maquinal (Maschinenarbeit), e a
habilidade do singular tanto mais infinitamente limitada, e a consciência dos
trabalhadores da fábrica é rebaixada ao último embotamento (Stumpfheit);
γ) e a conexão da espécie singular de trabalho com a inteira massa infinita
de carências [se torna] incomensurável e uma dependência cega, de tal
maneira que uma operação remota (entfernte Operation) freqüentemente
causa repentinamente obstáculo ao trabalho de toda uma classe de seres
humanos – os quais satisfariam com isso suas carências – tornando-o [o seu
trabalho] supérfluo e sem valor (unbrauchbar); δ) assim como a assimilação
da natureza se torna uma comodidade maior pelo antecipar dos membros
intermediários, da mesma maneira estes níveis de assimilação [se tornam]
divisíveis ao infinito, e a quantidade de comodidades as faz novamente, tal
como antes, absolutamente desconfortáveis.
O Fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe (1803/1804)
REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN-2008
A segurança de minha posse é a segurança da posse de todos, na minha
propriedade todos têm sua propriedade, minha posse adquiriu a forma da
consciência: é determinado como minha posse, mas, enquanto propriedade,
não é relacionado a mim somente, mas universalmente [relacionado].
Assim como, na potência anterior, o trabalho e a carência se singularizaram de maneira absoluta, da mesma forma se singulariza a propriedade
nesta potência. A singularização é o pôr (das Setzen) do concreto no universal. Suas diferenças (Unterschiede), as quais ele detém nele mesmo como
na identidade dos contrapostos, separam-se umas das outras e se tornam
para si, como abstrações. A totalidade da singularidade, que estava, na extensão do seu existir – naquilo de que ela se apoderou – , inteiramente em
cada singular, é como [totalidade] suspensa [da singularidade] somente no
todo do povo; e o singular da carência e da posse recai na natureza de sua
singularidade, a consciência como totalidade do singular era o ser-um de si
mesmo e de sua exterioridade, de sua posse. Ao se separarem ambos um do
outro, então o singular cessa de ter a honra que pôs essência deles em cada
singular24. Nesta singularização, separam-se um do outro imediatamente
(fallen unmittelbar ... auseinander) o que se relaciona imediatamente a ele
enquanto organização e a constitui – o que é denominado sua pessoa – [,por
um lado]; e /232 [por outro] o que aparece a ela exteriormente como coisa
(Sache), já que, para a honra, esta diferenciação não está presente, a qual
se põe em cada relação, em cada posse como todo.
24. Em E estava, no lugar de em cada singular (depois modificado): a qual na perda singular
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REH: NORMAS DE SUBMISSÃO – Versão resumida
1. A REH publica artigos, traduções, etc., em torno de Hegel e a filosofia
especulativa em geral e o Sistema de Hegel e seu desenvolvimento em particular;
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da ABNT, adaptadas para textos filosóficos; materiais submetidos em outras
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6. Quando de sua primeira citação, o texto citado deverá ser referenciado
– em nota – de modo completo; a partir da segunda citação: caso seja em
nota, a referência deverá trazer: INICIAIS DO NOME DO AUTOR, SOBRENOME, título do texto citado, op. cit., páginas referenciadas; caso seja no corpo
do texto (ou citação dentro de nota explicativa), deverá restringir-se ao
exemplo a seguir: (MENESES, 2006, p. 85), sem comentários adicionais;
7. Citações de obras de Hegel (numeradas por parágrafos e já vertidas
para a Língua portuguesa), no corpo do texto, deverão ser referenciadas
[de acordo com suas características próprias] – sem acréscimos adicionais
– conforme o exemplo: (FE, § 394), onde: (a) “FE” é a abreviatura para a
Fenomenologia do Espírito; (b) “§ 394” refere-se ao parágrafo; quando for o
caso, sugere-se o acréscimo da página, de onde, em “FE, § 394, p. 276”, (c)
“p. 276” dizer respeito à página à qual a citação ou referência está vinculada
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2. Exceto resumos, resenhas e notas bibliográficas, todos os materiais submetidos ao Conselho Editorial deverão – obrigatoriamente – conter resumo
e palavras-chave na língua em que forem escritos e em Inglês ou Alemão
(para os textos em línguas de origem latina) ou numa das línguas latinas
(para os textos em Inglês ou Alemão);
(no caso, a segunda edição da versão de Paulo Meneses);
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8. No caso de obras como as Linhas fundamentais da Filosofia do Direito
(FD) e a Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio de 1830 (E.),
sugere-se ainda o uso de ‘A’ para as anotações de Hegel e ‘Ad’ para os adendos de seus discípulos;
9. No caso das obras de Hegel (em alemão) ainda não vertidas ao Português
(sejam paragrafadas ou não), mesmo quando também se faça uso das versões portuguesas ou em outras línguas, sugere-se a manutenção das iniciais
do título no original [por exemplo, ‘WdL’ para a Wissenschaft der Logik],
seguidas das páginas da edição (ou das edições) utilizada(s);
10. Citações de obras clássicas sem tradução brasileira ou citadas preferencialmente conforme o original ou tradução em língua diversa do português
do Brasil, deverão estar de acordo com as convenções internacionais de praxe na área [exemplo: ‘PhdE’ para Phénoménologie de l’Esprit) ou indicadas
em nota;
11. Citações no corpo do texto deverão ser indicadas apenas com (SOBRENOME DO AUTOR, data e página) ou (SIGLA DA OBRA, parágrafo – se paragrafada – e página); qualquer acréscimo deverá ser feito em nota, conforme
as respectivas normas.
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