Entre fios, meadas e tramas: Emília des(a)
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Entre fios, meadas e tramas: Emília des(a)
E ntre fios, meadas e tramas: Emília des(a)fia a palavra escrita e tece suas memórias Eliane Santana Dias Debus [email protected] Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) - Brasil Abstract Resumo A proposta deste artigo é analisar The purpose of this paper is to como o dialogismo se instaura no livro analyze how dialogism occurs in Emília’s infantil Memórias da Emília (1936), do Memoirs (1936), a children’s book by the escritor brasileiro Monteiro Lobato (1882- Brazilian writer Monteiro Lobato (1882- 1948). Cientes de que não conseguiremos, 1948). As it would not be possible within nos limites deste texto, abarcar as várias the extent of this paper to consider the formas de manifestação do diálogo, levan- several ways of presenting dialogism, we tamos, no conjunto das diferentes lingua- chose, among the gens que compõe a narrativa, algumas ma- which build the narrative, some representa- nifestações do modo pelo qual a palavra do tions of the ways through which the other’s outro é incorporada ao discurso do autor. A voice articulação manifesta-se Dialogism expresses through the charac- pela representação da voz das persona- ter’s voice, the narrator’s voice, either in gens, da voz do(s) narrador(es); ora pelo direct or indirect speech, using inverted discurso direto, ora pelo indireto, no uso de commas, the speech within the speech, aspas, pelos discursos moldurados em ou- different styles, etc. Monteiro Lobato does tros discursos; pela inclusão de gêneros not keep out of his text the intentions and diversos, etc. Enfim, Monteiro Lobato não the voice of the other. The plurality of purifica seu texto das intenções e voz do narrative voices in the text presents a outro. A pluralidade de vozes narrativas variety of world-views that offers the reader inseridas no texto assinala uma diversida- a horizon other than the usual, along with de de concepções de mundo que apresen- different points of view. do dialogismo embodies different the languages author’s speech. tam ao leitor um horizonte diverso do habitual, oferecendo-lhe outros pontos de vista. Palavras-chave: Monteiro Lobato, Memórias da Emília, literatura infantil, dialogismo. Key words: Monteiro Lobato, Emília’s Memoirs, children’s literature, dialogism. Texto original recebido em Setembro de 2006; revisão recebida em Janeiro de 2007. Debus, E. (2007). Entre fios, meadas e tramas: Emília des(a)fia a palavra escrita e tece suas memórias. LIBEC Line – Revista em Literacia e Bem-Estar da Criança, 1, 1-15. ISSN 1646-7329 www.libecline.pt.tp 1 Introdução própria voz do escritor em consonância e/ou dissonância com estes discursos. O A proposta deste artigo é analisar escritor sempre expressa na sua constru- como o dialogismo se instaura na obra ção literária um ponto de vista, assume infantil Memórias da Emília, do escritor posições. Como observa Bakhtin: “cada brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948). gênero literário, nos limites de uma época Cientes de que não conseguiremos, nos e de um movimento, se caracteriza por sua limites deste texto, abarcar as várias concepção particular do destinatário da formas de manifestação do diálogo, propo- obra literária, por uma percepção e uma mo-nos compreensão particulares do leitor” (Bakh- levantar, diferentes no linguagens conjunto que das compõe a tin, 1992: 324). narrativa, algumas manifestações do modo No caso de Lobato a intenção pelo qual a palavra do outro é incorporada estética e a ideológica estão visceralmente ao discurso do autor. interligadas. Esteticamente o autor tinha Para tal, consideraremos a concep- um projeto literário voltado ao público ção dialógica de Mikhail Bakhtin (1993), infantil, que visava romper com as narra- que se consolida na idéia de que na tivas que circulavam pelo País no início do tessitura de qualquer enunciado sobre século XX, respeitando um estilo e uma determinado objeto já se encontram outros linguagem própria para criança, contribu- fios, outras vozes que se fiam, desfiam e indo para a formação de um público leitor. desafiam a existência de um discurso Ideologicamente o autor crê no papel que a neutro e singular. Nega-se, portanto, a leitura pode desempenhar na formação existência de palavras puras, virgens de cidadã dos leitores, pois deposita todas as significado, pois elas já estão envoltas e suas cartadas nas crianças, enjoado que vivem em ressonância com outras vozes. É estava de escrever para os adultos: “escre- necessário perceber que todo texto está ver para crianças é semear em terra roxa em sua origem “habitado”, “povoado” por virgem – e não praguejada. Cérebro de outras adulto é solo já praguejado” (Nunes, 1986: vozes, por outro(s) texto(s) já 122). escrito(s). A noção bakhtiniana de que o Dividido em quinze capítulos, se Memórias da Emília é uma narrativa que fundamenta numa relação de alteridade narra a si mesma, ou seja, des(a)fia o entre o eu e o outro, ou seja, faz-se processo de escrita da memória. Lobato necessário “ouvir”, considerar e até mesmo mantém alguns dos princípios da narrativa chocar-se com a voz do outro. O outro memorialística, mas os rearticula de forma assume paródica. discurso é por uma natureza essência dialógico múltipla: outro enquanto voz antecedida - outros textos; Se pensarmos o discurso paródico outro enquanto voz (im)previsível - o leitor; como aquele em que o autor fala a lingua- as várias vozes sociais que ecoam no meio gem do outro, revestindo-a de orientação em que circula o escritor e, por que não, a oposta à orientação do outro, devemos ter Debus, E. (2007). Entre fios, meadas e tramas: Emília des(a)fia a palavra escrita e tece suas memórias. LIBEC Line – Revista em Literacia e Bem-Estar da Criança, 1, 1-15. ISSN 1646-7329 www.libecline.pt.tp 2 em conta que a presença desse novo texto o ofício do historiador e o do poeta, pressupõe a presença do texto ausente. A pertencendo o discurso do primeiro ao primeira voz, para servir ao fim paródico, universo do sucedido e o do segundo ao precisa fazer parte do repertório do leitor. universo do que poderia suceder; a poesia O gênero memorialístico seria conhecido pertenceria ao campo do universal e a dos leitores? história ao campo do particular (Aristóteles, Eliane Zagury (1982), em estudo 1973: 451). Nesse campo do particular sobre a escrita do eu, responde-nos ao ficaria circunscrito o discurso da memória fazer contraponto com a moda dos livros enquanto registro do acontecido. de base autobiográfica (principalmente de Nas palavras de Eduardo Portella, Graça Aranha, Medeiros de Albuquerque e contudo, memórias são “entidades literá- Humberto de Campos, publicados entre rias autônomas, que se situam no meio 1931 e 1935) e as Memórias da Emília caminho entre a autobiografia e a história” (concluído em 10 de agosto de 1936), (1958: 191). O entre-lugar, o meio caminho observando que a paródia se instala pela destinado ao gênero, possibilita o seu efervescência do gênero no período e o deslocamento tanto no campo do verídico reconhecimento pelo leitor do discurso como no do verossímil. A tradição da escrita do gênero parodiado. Parece admissível, então, dizer que memorialístico é questionada pela boneca, o leitor daquele período, ao se deparar que resolve compor as suas memórias da com a leitura do livro, poderia compreendê- maneira mais inusitada. Frente ao discurso lo ativamente, percebendo-o como um de que o sujeito do ato memorialístico só discurso de questionamento. E os leitores pode redigi-lo se já viveu bastante, Emília de hoje? Em tempos de biografias, auto- solapa o tempo e “finge” uma possível mor- biografias e memórias que inundam o te, eliminando a gravidade do discurso. Se mercado livreiro, podemos dizer que o para a Emília a verdade “é uma espécie de leitor contemporâneo interage com o texto mentira bem pregada, das que ninguém e na maioria das vezes pergunta onde desconfia”, nada mais justo que ficciona- começa e/ou termina a “verdade”/“mentira” lizar o seu relato. 1 desses relatos . A transgressão dos domínios da O autor põe em foco a movência lógica habitual, característica marcante das das fronteiras entre história e literatura, obras de Monteiro Lobato, não se dá só no real e ficcional, questionamentos estes que sentido da criação das personagens e de permeiam o discurso teórico desde a suas ações. Temos aqui a contestação do Antigüidade. Aristóteles (1973) já distinguia próprio gênero memorialístico, que aparece como norteador da narrativa. A dessacrali- 1 Em 1997 Luciana Sandroni escreveu o livro Minhas memórias de Lobato contadas por Emília, Marquesa de Rabicó e pelo Visconde de Sabugosa que adota o mesmo processo de criação de Monteiro Lobato num jogo intertextual em que a boneca de pano e o sabugo de milho misturam dados reais e ficcionais para construção da biografia do escritor. zação do gênero memória já é apontada no primeiro capítulo quando Emília adverte que a escrita da memória nunca é neutra: Debus, E. (2007). Entre fios, meadas e tramas: Emília des(a)fia a palavra escrita e tece suas memórias. LIBEC Line – Revista em Literacia e Bem-Estar da Criança, 1, 1-15. ISSN 1646-7329 www.libecline.pt.tp 3 Quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que o leitor fique fazendo uma alta idéia do escrevedor. Mas para isso ele não pode dizer a verdade, porque senão o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros. Logo, tem de mentir com muita manha, para dar idéia de que está falando a verdade pura (p.239). Defoe é apreendido e reinterpretado dinamicamente por Emília que reveste a palavra do outro de um colorido paródico ao ditar ao Visconde: “Nasci no ano de... (três estrelinhas), na cidade de... (três estrelinhas), filha de gente desarranjada...” (p.242). Resolvida a escrever suas memóri- Tal saída se faz com o objetivo de as, Emília convoca o Visconde de Sabu- ludibriar os futuros historiadores, “gente gosa como secretário, a princípio sob sua mexeriqueira”. Aparece aqui a crítica à orientação. Envolvida pelas dificuldades do prática comum dos pesquisadores que começo, a boneca ganha tempo mostrando buscam nos registros da memória maior preocupação fundamentação com a materialidade do para sua pesquisa. A impresso, exigindo tinta cor do mar, papel transgressão se apresenta quando, nova- cor do céu, e pena de pato “com todos os mente, Emília desassocia a idéia de suas seus patinhos”. Exigências estas permea- memórias como documento legado à das de duplicidade, pois podemos entender posteridade . A desobediência ao discurso como mais uma das irreverências da memorialístico se processa também pelo boneca; por outro lado, podem ser lidas modelo escolhido: Emília. Ela não pertence como uma crítica às trivialidades que a um grupo seleto, ao mundo das celebri- muitas vezes rodeiam o imaginário da dades, das pessoas públicas. Sua árvore escrita ou ainda mais, como uma reflexão genealógica, ab ovo, se restringe a “uma sobre os aspectos físicos do livro e sua saia velha de Tia Nastácia” costurada e contribuição para o resultado final da publi- enchida de macela. Por outro viés, ela tem cação. o poder da fala. Nem tanto boneca, nem 2 A imprevisibilidade da narrativa já tanto gente (ser híbrido); nesse limiar se apresenta no início, dada por Emília, somente ela entre as personagens do Sítio com seis pontos de interrogação demons- assume esse papel distanciador, de quem trando está fora e de quem está dentro, questio- uma perplexidade frente às dificuldades da escrita. O elemento gráfico nando e subvertendo o discurso canônico. do ponto de interrogação preenche os vazi- No segundo capítulo o Visconde os e, porque não, reproduz fenômenos da assume dupla função: de escriba que assu- oralidade, num entrecruzamento das duas me o papel do outro (Emília) e ordena as modalidades de uso da língua que são suas próprias memórias, dentro de um desaconselhadas pelo Visconde que exem- limite imposto pela boneca “as coisas que plifica o caminho tradicional das narrativas aconteceram no Sítio e ainda não estão memoralísticas com a citação do livro As Aventuras de Robinson Crusoé: “Nasci no ano de 1632, na cidade de Iorque, filho de gente arranjada, etc.” O discurso de Daniel 2 O historiador Jacques le Goff (1992) argumenta que: “Durante muito tempo os historiadores pensaram que os verdadeiros documentos históricos eram os que esclareciam a parte da história dos homens, digna de ser conservada, transmitida e estudada” (p.106). Debus, E. (2007). Entre fios, meadas e tramas: Emília des(a)fia a palavra escrita e tece suas memórias. LIBEC Line – Revista em Literacia e Bem-Estar da Criança, 1, 1-15. ISSN 1646-7329 www.libecline.pt.tp 4 nos livros” (p.243). O Visconde seleciona a das alturas”, que no ar livre do pomar história do anjinho de asa quebrada e tenta aprende os “mistérios da língua”. Emília dar veracidade às memórias colocando-se aponta para a multiplicidade de sentidos como integrante do episódio vivido. Na das palavras, como a do vocábulo “cabo”: qualidade de registro do vivido (aqui o vivido ficcional) o Visconde relata ao leitor a descrição das circunstâncias do fato narrado enumerando as peripécias realizadas na Viagem ao Céu, de onde trouxeram a figura celestial. A estratégia comercial de propagandear seus títulos anteriores dentro das – Cabo é uma perna só por onde a gente segura. Faca tem cabo. Garfo tem cabo. Bule tem cabo (e bico também). Até os países têm cabo, como aquele famoso Cabo da Boa Esperança que Vasco da Gama dobrou; ou aquele Cabo Roque, da Guerra de Canudos, um que morreu e viveu de novo. Os exércitos também têm cabos. Tudo tem cabo, até os telegramas. Para mandar um telegrama daqui à Europa os homens usam o cabo submarino (p.245). novas narrativas é freqüente em toda a produção de Monteiro Lobato, como já As relações entre o significado da destacamos em trabalho anterior (Debus, palavra cabo (objeto, lugar e pessoa) e a 2004). No caso específico de Memórias da introdução de conteúdos de História que Emília o diálogo com o leitor se dá por adentram na narrativa foram destacadas títulos que aparecem ao longo da narrativa por Janice Theodoro (2001) como possibili- e explicitamente em trechos como este: dade de introduzir conteúdos de História “As crianças que leram as Reinações de escapulindo de uma visão linear de ensino Narizinho com certeza também leram a reorganizando o conteúdo quando relacio- Viagem ao Céu, aonde vêm contadas as na “os fatos através da palavra e constrói aventuras dos netos de Dona Benta, da uma linha invisível do caráter nacional bra- Emília e também as minhas no país dos sileiro”. astros” (p.244). O Emília brinca com as formas e Visconde a possibilidades dialógicas de transmissão escrita os fatos acontecidos, colocando-os da palavra, do uso cotidiano ao uso no literário: a cobra como animal odiado e a discurso marcado direto transporta das graficamente para personagens, travessão; serpente como motivo de sedução; o tigre contudo, entre aspas para confirmá-lo cruel e o seu significado de bravura. As enquanto representação de um diálogo, suas informações sobre as coisas cotidia- isto é, que assume o papel de imitação de nas vão se imbricando de poeticidade, um desautomatizando as informações de sua discurso entre pelo personagens. Um discurso dentro do discurso. rotina, do contexto usual: “Raiz é o nome A presença no Sítio de um anjo de das pernas tortas” (p.244); “Machado é o asa quebrada que desconhece as coisas mudador das árvores” (p.244); “Frutas são da terra propicia à Emília oportunidade bolas que as árvores penduram nos ramos” para introduzir as “aulas peripatéticas”, ao (p.247). gosto e modelo aristotélico, como método O anjo, Flor das Alturas, parece ter de ensino da língua portuguesa para “Flor aprendido bem a lição: num primeiro mo- Debus, E. (2007). Entre fios, meadas e tramas: Emília des(a)fia a palavra escrita e tece suas memórias. LIBEC Line – Revista em Literacia e Bem-Estar da Criança, 1, 1-15. ISSN 1646-7329 www.libecline.pt.tp 5 3 mento, quando demonstra a Alice (a do obra de Monteiro Lobato . Contudo, temos País das Maravilhas) sua aprendizagem, no terceiro capítulo das memórias, um repete ao pé da letra os ensinamentos de grupo de crianças favorecido por uma Emília; mas, num segundo momento, apre- escolha democrática: os “inglesinhos” que, senta a sua própria interpretação, ao falar como dos bolinhos de Tia Nastácia: estavam curiosos para ver o anjo de asa – Ela amassa esse pó com gema de ovo e gordura - continuou o anjinho. – Enrola os bolinhos entre as palmas brancas de suas mãos pretas e os põe em lata num buraco muito quente chamado forno. Passado algum tempo os bolinhos ficam no ponto – e é só comer (p.259). as outras crianças do mundo, quebrada. O escritor enumera os soberanos pelas suas titulações honoríficas (o Rei da Inglaterra, o Presidente Roosevelt, Fuehrer na Alemanha, Duce na Itália, o Imperador no Japão e Negus na Etópia). Por trás do episódio da escolha Assim, as palavras adquirem novos democrática entre os governantes de paí- significados; desprovidas do significado ses diversos (Alemanha, Itália, Etiópia, neutro do dicionário, elas assumem seu Japão, EUA e Inglaterra), podemos ler a papel de elemento vivo e concreto na ironia do autor, pois historicamente isto comunicação. não poderia acontecer haja vista que a Emília reflete, também, sobre a Alemanha nazista, sob o comando de evolução histórica e social da linguagem, Hitler, vivia numa ditadura, bem como a os contextos em que as palavras são Itália fascista de Mussolini que, em 1936, empregadas conquista, a força, à Etiópia. e sua pluridimensão. No entanto, Emília vincula as calamidades do Juntamente com as crianças ingle- mundo à língua. Para aquele ser ingênuo sas e o Almirante Brown, vêm Alice e Peter que desconhece a língua e seu uso, Emília Pan, duas personagens da literatura infantil adverte: “Você vai custar a compreender inglesa. Lobato, ao citar os dois livros de os segredos da língua” (p.247). Mais ainda, Lewis Carrol, Alice no país das maravilhas ao final da narrativa, quando está a fechar (1865) e Alice através do espelho (1872), a suas memórias com uma autodefesa, dialoga com objetos da sua tradução . Não expõe o poder da leitura pelo seu aspecto se deve esquecer que em 1931, mesmo ideológico: ano da tradução do primeiro Alice, Lobato Eu era uma criaturinha feliz enquanto não sabia ler e portanto não lia os jornais. Depois que aprendi a ler e comecei a ler os jornais, comecei a ficar triste. Tanta guerra, tantos crimes, tantas perseguições, tantos desastres, tanta miséria, tanto sofrimento [...] (p.290). A ruidosa visita de crianças do mundo real ao Sítio não é novidade na 4 dava ao público Robinson Crusoé, citado no início d´As Memórias da Emília. Os autores ingleses e norte-americanos foram seus preferidos e na “Coleção Terrama3 No livro O circo de escavalinhos várias criançasleitores de Lobato são introduzidos no mundo ficcional, ao participarem das apresentações do circo montado pelos netos de Dona Benta. Em O Picapau Amarelo, 24 crianças visitam o Sítio, mas seus moradores estão em outras aventuras; também em Reforma da natureza Emília conta com o auxílio da amiga Ranzinha da Silva para reformar a natureza. 4 Os dois livros foram traduzidos para o português por Monteiro Lobato na década de 1930. Debus, E. (2007). Entre fios, meadas e tramas: Emília des(a)fia a palavra escrita e tece suas memórias. LIBEC Line – Revista em Literacia e Bem-Estar da Criança, 1, 1-15. ISSN 1646-7329 www.libecline.pt.tp 6 rear” deu vazão ao exercício de tradução, polvilhadas uma constante na sua carreira. segunda Quando Emília apresenta a personagem inglesa à Tia Nastácia, o faz como se fosse uma velha conhecida: “– Esta aqui, Tia Nastácia, é a famosa Alice do País das Maravilhas e também do País do Espelho, lembra-se?” (p.271). O jogo entre o que se sabe sobre e a tradução é destacado na argumentação da Emília frente ao espanto de Tia Nastácia, que ao ser apresentada à menina descobre que ela se comunica na língua portuguesa: – Muito boas tardes, Senhora Nastácia! - murmurou Alice cumprimentando de cabeça. – Ué! – exclamou a preta. – A inglesinha então fala a nossa língua? – Alice já foi traduzida em português – explicou Emília (p.271). com farinha consiste na de trigo. manutenção A do Almirante Brown como refém durante a estada no Sítio, situação na qual um adulto e responsável por uma tripulação é subordinado ao poder das crianças. O celestial (anjo) e o poder (almirante) são rebaixados de suas posições. Os cuidados tomados para a segurança do anjo são ameaçados por outras duas personagens do mundo maravilhoso: o Capitão Gancho e o marinheiro Popeye. Mas Pedrinho e Peter Pan, auxiliados por Emília, conseguem derrotá-los. Ao introduzir uma personagem da 6 história em quadrinhos , Lobato tenta dialogar com esta linguagem, é claro que não através dos dois códigos de signos gráficos que compõem o sistema narrativo dos Peter Pan, por sua vez, já é uma quadrinhos (a imagem, obtida pelo dese- personagem conhecida no Sítio do Picapau nho e a linguagem escrita em balões), mas Amarelo, ora na possibilidade de ser o pela descrição da ação da luta em movi- Peninha, ora como Peter Pan. A história do mento contínuo, necessidade primordial eterno menino da terra do nunca, criada dos quadrinhos: Popeye versus Capitão pelo Gancho; Popeye versus Peter Pan e Pedri- romancista e dramaturgo inglês James M. Barrie, foi adaptada por Lobato nho. em 1930, na sua linha de introduzir Dona Não podemos esquecer que a pri- Benta contando as histórias em pequenos meira aparição de Popeye no Brasil se dá serões para os moradores do Picapau justamente em 1936, o que nos leva a 5 Amarelo . concluir que Lobato dialoga com um A chegada das crianças inglesas fenômeno novo, mas conhecido do público. propicia duas inversões de papéis provoca- Popeye é duplamente ridicularizado, pri- das por Emília e pelos netos de Dona meiro por sua descrição de bêbado e, Benta. A primeira consiste no mascara- segundo, por sua derrota que coincide com mento do Visconde em anjinho, quando o o desmascaramento de seu próprio artifício divino é vulgarizado ao ser travestido com - o uso do espinafre que Emília troca por uma camisola de Emília e asas de gavião couve amassada. 5 Assim também foi realizado com As aventuras de Hans Staden (1927); História do mundo para as crianças (1933); História das invenções (1935), Dom Quixote das Crianças (1936). 6 Popeye, personagem das histórias em quadrinhos americana (comics), foi criado por Elzie Segar, em 1929. Debus, E. (2007). Entre fios, meadas e tramas: Emília des(a)fia a palavra escrita e tece suas memórias. LIBEC Line – Revista em Literacia e Bem-Estar da Criança, 1, 1-15. ISSN 1646-7329 www.libecline.pt.tp 7 Do capítulo terceiro ao nono o “jeitinho”. A esperteza emiliana pela Visconde narra, sem a interferência de exploração do mais fraco, a possibilidade Emília, “toda a estória do anjinho, a vinda de tomar do outro o que lhe é proveitoso, das crianças inglesas, a luta de Popeye caracteriza personagens ontológicos como com o Capitão Gancho, com os marinhei- Macunaíma (Mário de Andrade) e Pedro ros do Wonderland e depois com Pedrinho Malazartes (narrativa popular) e a eles a e Peter Pan [...]” (p.274). boneca de pano foi muitas vezes compa- No décimo capítulo, a narrativa se rada. Ao transgredir os códigos (tanto da desenvolve com o diálogo entre Emília e o língua como sociais) Lobato aponta para Visconde. Emília aprova os capítulos escri- as contradições do mundo. tos admitindo que agora poderá dizer que No décimo primeiro capítulo, o sabe escrever memórias. Sob esta afirma- fluxo das memórias da boneca mistura-se ção, o Visconde interroga: com a do Visconde, provoca a descontinui- – Sabe escrever memórias, Emília? Repetiu o Visconde ironicamente. – Então isso de escrever memórias com as mãos e a cabeça dos outros é saber escrever memórias? – Perfeitamente, Visconde! Isso é que é o importante. Fazer coisas com a mão dos outros, ganhar dinheiro com o trabalho dos outros, pegar nome e fama com a cabeça dos outros; isso é que é saber fazer as coisas. [...] Olhe, Visconde, eu estou no mundo dos homens há pouco tempo, mas já aprendi a viver. Aprendi o grande segredo da vida dos homens na terra: a esperteza! Ser esperto é tudo (p.274). A reação do Visconde é de indignação e insinua a interrupção do processo de escrita, mas mostra-se resignado diante dos argumentos da boneca de que qualquer outro poderá continuá-la, inclusive o Quindim. Destaca-se a crítica ferrenha à escrita da memória encomendada, prática comum na década de 1930 e que persiste até hoje. Não se discute aqui o papel de escriba, pois o Visconde cumpre a dupla função: não só redige como cria a memóri- dade da narrativa e coloca em contradição a escrita da memória. O próprio percurso seqüencial do relato é rompido com a terceira interrupção de Emília, que vem “espiar” suas memórias, mas sempre parte com a desculpa de estar ocupada, deixando ao encargo do Visconde a continuidade do relato. Outro fator que auxilia como suporte de interrupção, bem que ilusória, é a disposição da estrutura textual em capítulos. Porém, os subtítulos de cada capítulo orientam o leitor sobre o episódio a seguir, como que exercendo a função de sinopse do que está por vir, atam-se os fios da narrativa e a sua ilusória descontinuidade/interrupção. No décimo segundo capítulo, o Visconde descobre o poder da escrita e resolve ir contra o mandonismo e autoritarismo de Emília do “Faça o que eu mando e não discuta”, descrevendo como ele realmente a vê: “tirana de coração”, “criatura mais interesseira do mundo”, “criaturinha incom- a. O humor de Lobato leva o leitor a refletir e perceber a verdadeira condição humana velada pela prática capitalista e individualista do ter sempre mais, dar um preensível”. Tais características, no entanto, revelam a ambivalência de Emília que se encontra no limiar da loucura e da sensatez, que diz asneiras e coisas sábias. Debus, E. (2007). Entre fios, meadas e tramas: Emília des(a)fia a palavra escrita e tece suas memórias. LIBEC Line – Revista em Literacia e Bem-Estar da Criança, 1, 1-15. ISSN 1646-7329 www.libecline.pt.tp 8 Na impossibilidade de defini-la, o Visconde O destino de Emília na cidade busca as próprias palavras da boneca no americana é Hollywood e para alcançá-lo dia em que lhe perguntou o que realmente tem que ludibriar o Almirante que quer lhe ela era: “– Sou a independência ou morte” apresentar o Presidente Roosevelt, desvi- (p.280). ando o percurso da boneca para Washing- Emília, ao descobrir que o Viscon- ton. “Não discuti. Fingi que ia para de quer lhe impingir uma mentira, exige Washington e fui parar em Hollywood, de que ele leia o que realmente escreveu e, avião” (p.51). Assim, o universo do maravi- para espanto deste, ela não se zanga: lhoso inserido em sua totalidade nas – O senhor me traiu. Escreveu aqui uma porção de coisas perversas e desagradáveis, com o fim de me desmoralizar perante o público. Mas, pensando bem, vejo que sou assim mesmo. Está certo (p.282). memórias abre a possibilidade de interferência do (im)possível, daquilo que não exige explicações. – Como isso? – Perguntará alguém; e eu responderei: – ‘Não me amolem com comos. Comigo não há como. Fui e acabou-se’ (p.283). A preocupação com o leitor, condição primeira de quem escreve, é aludida por outra lógica, pois a imagem, o testemunho de vida do memorialista é aviltado e Emília aprova esquecendo a possível desmoralização. No décimo terceiro capítulo a narrativa das memórias recebe o contorno das mãos de Emília que decide redigi-la, sob o prisma do que poderia ter acontecido se o anjo não tivesse retornado ao céu. Emília, ao descrever sua fuga no navio inglês, subverte o estatuto do gênero memorialístico enquanto condição de documento do real vivido (no seu caso o real ficcionalizado nas aventuras do Sítio). O navio Wonderland, que trouxe os personagens maravilhosos da Inglaterra, pode transportar para outras terras o maravilhoso: uma boneca falante, um anjo do céu e um sabugo científico. Esta aventura adquire foro de independência, pois não traz nenhum outro personagem “humano”, nem sequer Narizinho e Pedrinho, presentes sempre nas aventuras escritas por Lobato. A boneca reinstaura a presença do público leitor ao antecipar sua indagação, respondendo-lhe e, ao mesmo tempo, puxando-lhe a orelha. Alerta o leitor desavisado para a construção do jogo imaginativo da narrativa. A narrativa, dessa forma, não esquece o leitor a que se destina; presentifica-se aqui a afirmação de Bakhtin (1981) de que “todo discurso literário sente com maior ou menor agudeza o seu ouvinte, leitor, crítico cujas objeções antecipadas, apreciações e pontos de vista ele reflete” (p.170). Lobato, admirador incondicional dos Estados Unidos, entusiasta do cinema falado gênero americano, introduzindo dialoga com personagens esse da fábrica de sonhos nas memórias de Emília. A inserção desses personagens, bem como do diretor da Companhia cinematográfica Paramount, multiplica o espaço do maravilhoso. O contato com Shirley Temple não se faz à revelia. Atriz mirim do cinema norte americano nos anos de 1930, assu- Debus, E. (2007). Entre fios, meadas e tramas: Emília des(a)fia a palavra escrita e tece suas memórias. LIBEC Line – Revista em Literacia e Bem-Estar da Criança, 1, 1-15. ISSN 1646-7329 www.libecline.pt.tp 9 me características de um duplo maravilho- mesmo ano da publicação de Memórias da so: o mundo da infância e o mundo do Emília, publica Dom Quixote das crianças. cinema, ambos com o poder de subverter a Ensaio para a adaptação da obra ou lógica real pelo nonsense. As duas perso- divulgação de seu próximo trabalho? nagens, a de carne e osso e a de papel e A referência das Memórias da Emí- tinta, embora não se conhecessem pes- lia é sempre um real já ficcionalizado nos soalmente, conheciam cada qual as faça- “episódios aventurescos” do Sítio do Pica- nhas da outra: Emília, pela tela do cinema; pau Amarelo. Quando foge do duplo real e Shirley, pela leitura dos livros de M. (Sítio/memória) para um duplo ficcional Lobato: “– Ora, Emília! Quem não conhece (Hollywood/memória), a Marquesa de Rabicó? Fique sabendo contestado tanto por Dona Benta (o adulto) que em Hollywood todos sabemos de quanto pelo Visconde (a ciência). seu registro é No décimo quarto capítulo Emília corzinho aqueles livros aonde vêm conta- interrompe suas aventuras em Hollywood das as suas histórias [...]” (p.283). Questionada pela menina sobre o pela presença de Dona Benta, que fica motivo da visita, Emília conta os planos de perplexa quando a boneca afirma estar empregar-se na Paramount. Shirley, então, concluindo suas memórias que o Visconde sugere o ensaio de uma “fita”, e Emília por iniciou, e descreve o episódio naquela ci- sua vez escolhe como enredo a história de dade: Dom Quixote de La Mancha, livro conhecido também de Shirley. Os elementos cinematográficos como cenografia, figurino e montagem aparecem no momento de ensaiar a “fitinha”. A desmitificação picaresca do cavaleiro da triste figura é construída – Emília! – exclamou Dona Benta. – Você quer nos tapear. Em memórias a gente só conta a verdade, o que houve, o que se passou. Você nunca esteve em Hollywood, nem conhece a Shirley. Como então se põe a inventar tudo isso? – Minhas Memórias – explicou Emília – são diferentes de todas as outras. Eu conto o que houve e o que devia haver. parodicamente: uma tampa de lata vira o elmo, lata de vagõezinhos quebrados, a couraça; mais lata para o escudo e um cabo de vassourinha como lança. Instalamse, assim, elementos do sério-cômico da caracterização do Quixote-Visconde, já acontecida quando do travestimento em anjo. Por outro lado, presencia-se o jogo imaginativo da infância que re-significa objetos e por meio do jogo simbólico anima o estático, o inanimado. O termo “ensaio” pode ser lido numa relação intrínseca com o fazer literário do escritor Monteiro Lobato, que no – Então é romance, é fantasia... 286). – São memórias fantásticas [...] (p. A instauração da “memória fantástica” permite que novas aventuras sejam interpoladas ao texto, acomodando-se na unidade do narrado. A memória torna-se um texto aberto. O deslocamento para fronteiras além do vivido, além do espaço do Sítio, acaba por provocar um deslocamento da narrativa. Cansada de escrever as memórias, a boneca pede novamente o auxílio do Visconde, que questionando o ponto da Debus, E. (2007). Entre fios, meadas e tramas: Emília des(a)fia a palavra escrita e tece suas memórias. LIBEC Line – Revista em Literacia e Bem-Estar da Criança, 1, 1-15. ISSN 1646-7329 www.libecline.pt.tp 10 narrativa, fica espantado ao ouvir a história Emília, nascida na comunidade de Hollywood e argumenta a impossibili- singular do Sítio do Picapau Amarelo, não dade de falar de fatos que não viveu e nem pode tecer a sua história de forma fechada, lhe foram contados. A boneca não se aper- haja vista que ela só pode ser reconstruída ta e diz ao Visconde: “– E que tem isso, no plural, ou seja, inserida nos limites do bobo? Eu também não estive lá e estou grupo a que pertence . Assim, Emília contando tudo direitinho. Quem tem miolo levanta na sua autodefesa, no último capí- não se aperta” (p.287). Confirmando a tulo, a descrição e idéias sobre cada ele- inventividade do narrado. mento do grupo. 7 A transgressão do Visconde em dar O discurso de Emília, no último o fim à narrativa com ponto final, após o capítulo, é um reflexo gerado pelo discurso juramento de Emília que poderia terminar do outro (no caso o Visconde), e pode ser de qualquer maneira, é corrigida com um inserido naquele tipo que Bakhtin denomi- rabinho que transforma o ponto em vírgula. na de “diálogo de consciências” isto é, Ele tenta novamente impor-se à boneca indivíduos que se tornam consciência em pela escrita, entrando agora no jogo do relação à consciência que o outro tem possível e registrando que Emília não foi dele; bem como a autoconsciência da contratada pela empresa cinematográfica, personagem em relação aos discursos e que somente ele e o anjinho ascenderam externos e à realidade que o cerca. O texto à constelação dos astros. Contudo, a bone- permite também compreender a autodefe- ca, ao ler, afirma ser sabotagem e faz com sa da personagem como uma autodefesa que pelas próprias mãos, o Visconde regis- do próprio Lobato no que diz respeito à tre o fim das aventuras de forma inversa, insensibilidade da boneca às questões ficando ele fora dos estúdios da Para- sociais e ao preconceito étnico-racial na mount. representação de Tia Nastácia . 8 – Agora, sim. Agora a coisa está direita, exatinho como se passou. Dizem todos que não tenho coração. É falso. Tenho, sim, um lindo coração – só que não é de banana. Coisinha à-toa não o impressionam; mas ele dói quando vê uma injustiça. [...] (p.290) – Passou, nada! – disse o Visconde num resmungo. – Você nunca esteve em Hollywood... – Estive, sim – em sonho. E tudo quanto vi em sonho foi exatamente como acabei de ditar. Eu e flor das Alturas viramos estrelas da tela. Você foi para uma lata de lixo. Só não compreendo por que Deus faz uma criatura tão boa e prestimosa nascer preta como carvão. É verdade que as jabuticabas, as amoras, os maracujás também são pretos. Isso me leva a crer que a tal cor preta é uma coisa que – Isso não escrevo! – protestou o Visconde. – Escreva ou não, foi o que aconteceu [...] (p.289). A persistência da boneca se torna condizente, pois o sonho, ao ser registrado, transforma-se em parte do vivido. 7 Tomamos aqui a idéia de Halbwachs (1990) de que “a memória individual constrói-se na medida em que está simultaneamente ligada a uma existência social, ou seja, nas relações entre o indivíduo e o ‘grupo social’ no qual este se desenvolve” (p.10). 8 A representação de Tia Nastácia em todas as narrativas de Lobato é esteriotipada: negra beiçuda, ignorante, etc. Nesta narrativa ela é apresentada como sábia nas coisas práticas da vida em oposição à Dona Benta. Debus, E. (2007). Entre fios, meadas e tramas: Emília des(a)fia a palavra escrita e tece suas memórias. LIBEC Line – Revista em Literacia e Bem-Estar da Criança, 1, 1-15. ISSN 1646-7329 www.libecline.pt.tp 11 só desmerece as pessoas aqui neste mundo. Lá em cima não há essa diferença de cor. Se houvesse como havia de ser preta a jabuticaba, que para mim é a rainha das frutas? (p.291). Inserem-se as Memórias da Emília 9 no contexto das narrativas de viagens , na medida em que o narrado se entrecruza com suas aventuras além do espaço do Sítio: no Reino das Águas Claras a fala se instala; da viagem ao céu traz o anjinho Flor das Alturas; na geografia de Dona Benta, o conhecimento de países distantes; do País das Fábulas de La Fontaine emerge o burro falante; na viagem a Hollywood, aprende a arte e as artimanhas do mundo cinematográfico. A linguagem utilizada por Lobato é pluridiscursiva porque abarca a linguagem da vida ideológica e verbal de sua época, tanto no que se refere à camada social, como à idade dos seus leitores. Destacamse no texto as gírias utilizadas pelas personagens: “mas é peta”, “ ali na batata”, “cambada”, “repimpadas”, “pílulas” “munhecaços”, “turumbamba”, “peteleco”, “patavina”... Vocábulos que contribuem para o tom coloquial da narrativa. Os vestígios da oralidade se instalam pelas expressões populares: “Quando chega o nosso dia, o gancho da morte nos pesca, sejamos reis ou mendigos”, “não sobrou uma só laranja para remédio”; bem como pela inserção de provérbios, gênero produzido e popularizado, também, pela linguagem oral em forma de citação literal: “sua alma, sua palma”, “Quem vai buscar lã sai tosquiado”, “Boa romaria faz quem em casa fica em paz” e pelo provérbio revestido de um novo sentido: “Quem moinhos apetece é isso que acontece”. A língua em constante transformação dá vida a novas palavras; daí a introdução de neologismos como: “quebramento”, “descomem”, “escrevedor”, “mudador”, “encouvado”, “comedorias”; “depenar” em outro sentido que aquele de tirar penas e, sim, as pernas e os braços do visconde. Ao vestir o anjo de Sancho Pança, instalase o verbo “sanchar”. Destaque também para as criativas justaposições: “dasno”, “antes sesse”, “homessa”, “elissimo”. O diálogo com a língua estrangeira do outro por meio de introduções de palavras em inglês no discurso em português: “shocking”, “yes”, “oranges”, “mariners”, “shakehand”, “good bye”, “driver”, além da famosa frase do marinheiro Popeye: “I am sailor man!”. A heterogeneidade de gêneros do discurso (primário e secundário) na construção literária de Lobato é representada na fala filosófica de Emília com seus conceitos e filosofia de vida: a vida é um pisca-pisca; no discurso solene do Almirante Brown, pela poeticidade das definições da boneca. Discursos diversos que entram em confronto no jogo da narrativa, como no discurso cerimonioso de agradecimento do Almirante em choque com a sem-cerimônia de Emília, que lhe pede como gratificação pelo embate vencido contra Popeye uma caixa de leite condensado. 9 Walter Benjamin (1994) discorre que as melhores narrativas escritas são aquelas que mais se aproximam das histórias orais, transmitidas pelos narradores anônimos, que têm como representantes arcaicos o camponês sedentário e o marinheiro comerciante. Debus, E. (2007). Entre fios, meadas e tramas: Emília des(a)fia a palavra escrita e tece suas memórias. LIBEC Line – Revista em Literacia e Bem-Estar da Criança, 1, 1-15. ISSN 1646-7329 www.libecline.pt.tp 12 Últimas impressões 10 mimetizar o oral. A sugestão da estrutura formal já convencionalizada do registro das No Sítio do Picapau Amarelo Memórias, no caso a de Robinson Crusoé brincar e aprender são sinônimos e essa adotada no início, é lida aqui como a possi- aprendizagem se dá por dois caminhos: o bilidade de proporcionar situações que da erudição e o das coisas práticas; o envolvam a reescritura. Isto é, aquele que primeiro representado por Dona Benta e o não conhece o gênero aproxima-se do seu segundo por Tia Nastácia, como destaca processo de escrita por um modelo a ser Emília ao final de suas memórias. seguido e, por que não, reorganizado. O discurso explícito de que o Sítio Em especial no título analisado, é local de aprendizagem remete à nossa verifica-se uma dimensão avaliativa na reflexão inicial de que o escritor buscava utilização através de suas narrativas apresentar desembocam estrategicamente para um outra possibilidade de ensino menos sisu- direcionamento de opinião. O questiona- da, em que se pudesse aprender brincan- mento do discurso memorialístico, por do. Por outro lado, ele também apresenta exemplo, leva o leitor a duvidar da palavra outro encaminhamento de literatura para escrita, questionar a “verdade”. de técnicas estruturais que infância, pois seu texto é endereçado a um A pluralidade de vozes narrativas leitor ativo, capaz de duvidar, questionar. inseridas no texto assinala uma diversida- Um discurso marcado pelo tratamento de de concepções de mundo que apresen- dado a linguagem e o respeito à infância, tam ao leitor um horizonte diverso do habi- rompendo com o monologismo do escrever tual, oferecendo-lhe outros pontos de vista. “para” e tecendo pela escrita um diálogo A articulação do dialogismo em Memórias “com” a criança. da Emília, manifesta-se pela representação A aprendizagem da língua portu- da voz das personagens, da voz do(s) nar- guesa por um alienígena, um anjo de asa rador(es); ora pelo discurso direto, ora pelo quebrada, se dá nos contextos informais indireto, no uso de aspas, pelo discursos do cotidiano do Sítio, no pomar, entre moldurados em outros discursos; pela laranjeiras, jabuticabeiras e pitangueiras, inclusão de gêneros diversos, etc. Enfim, na cozinha de Tia Nastácia, entre panelas Lobato não purifica seu texto das intenções e bolinhos de frigideira. Uma aprendizagem e voz do outro. que assume forma de inserção cultural e Este texto se finda na indecisão de de socialização do ser celestial nos usos escolha entre as sugestões da bonequinha práticos da língua. de pano – ponto final (sinal de pontuação), A preocupação em deixar as mar- do FINIS (língua latina) ou do “tenho dito” cas da oralidade registradas em seus (expressão de cunho coloquial) – e, sim- escritos é uma constante na produção plesmente, se coloca como um interstício, lobatiana; há uma intenção concreta em um repouso que aguarda a réplica de seus 10 Este subtítulo é tomado de empréstimo da parte inicial do título do décimo quinto capítulo (e último) das Memórias da Emília. interlocutores, quem sabe, para outro reinício. Debus, E. (2007). Entre fios, meadas e tramas: Emília des(a)fia a palavra escrita e tece suas memórias. LIBEC Line – Revista em Literacia e Bem-Estar da Criança, 1, 1-15. ISSN 1646-7329 www.libecline.pt.tp 13 Referências bibliográficas Aristóteles (1973). Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural. Assis, M. de (1994). Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Scipione. Bakhtin, M. (1992). Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes. Bakhtin, M. (1992). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC. Bakhtin, M. (1981). Problemas da poética em Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Bakhtin, M. (1993). Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernadini. 3.ª ed. São Paulo: HUCITEC. Benjamin, W. (1994). O narrador: considerações sobre a arte de Nikolai Leskov. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7.ª ed. São Paulo: Brasiliense. Brait, B. (Org.) (1997). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 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