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APLICAÇÕES MÉDICAS DA NANOFILTRAÇÃO DE TENSIOACTIVOS António Casimiro de Freitas Borges Barreto Archer Licenciado em Engenharia Química e Mestre em Engenharia do Ambiente, UP Professor do Departamento de Ciências do Ambiente da Universidade Moderna do Porto Sumário Este artigo parte de uma exposição teórica sobre os processos de membrana envolvendo tensioactivos e de um trabalho de investigação sobre a separação de um tensioactivo aniónico por nanofiltração, objecto de publicação anterior (Archer et al., 1999). Nele, o autor propõe algumas aplicações médicas da nanofiltração de tensioactivos, descrevendo um novo processo de plasmaferese terapêutica. Este novo processo foi fruto das observações experimentais colhidas durante o trabalho de investigação realizado. Introdução O problema da separação de tensioactivos começou por ser colocado em termos ambientais, face à crescente aplicação destas substâncias, tanto em produtos de uso doméstico como nos mais variados sectores industriais. De facto, sendo utilizados principalmente como agentes de lavagem, os tensioactivos são rejeitados nas águas residuais em grande quantidade e com significativas implicações ambientais, resultantes, quer dos efeitos perversos que estas substâncias têm no meio natural, quer das dificuldades que colocam ao funcionamento eficaz das Estações de Tratamento de Águas Residuais. Em consequência desta realidade, as legislações ambientais dos países industrializados fixaram limites máximos admissíveis para as concentrações de tensioactivos nas águas residuais. Apesar da importância quantitativa que os tensioactivos assumem em águas residuais industriais e domésticas, as Estações de Tratamento de Águas Residuais não são, em geral, dotadas de tecnologias específicas para a sua remoção. Aplicações Médicas da Nanofiltração de Tensioactivos Abril de 2000 A separação por membranas, normalmente associada a sectores de ponta e com uma aplicação generalizada na área ambiental (Mulder, 1994), tem registado um significativo crescimento, enquanto processo de tratamento de águas residuais (Caetano et al., 1995). No que concerne à remoção de tensioactivos presentes em águas residuais industriais, os processos de membrana apresentam a vantagem de poderem ser utilizados no interior da operação industrial que gera a corrente poluída com tensioactivos, permitindo a recuperação do composto em condições de possível reutilização. Para além da importância ambiental stricto sensu, acima referida, a separação de tensioactivos está ainda relacionada com uma nova geração de processos industriais que têm emergido recentemente. Tratam-se de separações baseadas em tensioactivos, ou seja, de novos processos de separação que utilizam os tensioactivos como agentes facilitadores ou promotores da separação a realizar, a qual pode basear-se no transporte através de uma membrana, numa extracção, numa adsorção, na formação de uma fase de espuma ou numa precipitação (Scamehorn e Harwell, 1989). Estes processos têm diversas vantagens sobre os métodos de separação tradicionais. Em geral são menos consumidores de energia e permitem evitar os problemas ambientais associados a outros processos de separação, no caso de se utilizarem tensioactivos biodegradáveis. A biotecnologia é uma das áreas de aplicação mais importante para estes novos processos de separação baseados em tensioactivos, uma vez que a suavidade das condições de actuação dos tensioactivos protege substâncias bioquímicas valiosas e facilmente degradáveis nas frequentes situações em que se pretende recuperá-las a partir de soluções aquosas muito diluídas (Bailey e Ollis, 1986). O primeiro processo de membrana utilizado para separar tensioactivos foi a ultrafiltração, no início da década de 70 (Grieves et al., 1973). Posteriormente, desenvolveram-se processos de dessalinização auxiliada por tensioactivos. Estes consistem em técnicas de remoção de espécies iónicas por osmose inversa, nas quais se António Barreto Archer Pág. 2 / 16 Aplicações Médicas da Nanofiltração de Tensioactivos Abril de 2000 adiciona um tensioactivo à solução aquosa, com o objectivo de melhorar a rejeição iónica através da formação de uma membrana secundária. Esta última resulta da adsorção das moléculas de tensioactivo na superfície da membrana verdadeira. Outro processo de separação por membranas envolvendo tensioactivos, referido na literatura da especialidade, é a concentração de emulsões (Akay e Wakeman, 1994 e 1994b). Mais recentemente desenvolveu-se uma tecnologia de ultrafiltração auxiliada por micelas de tensioactivos (Micellar-Enhanced Ultrafiltration), designada na literatura pela sigla MEUF (Scamehorn e Harwell, 1989). Trata-se de um método eficaz para a remoção de compostos orgânicos dissolvidos em correntes aquosas, no qual se adiciona uma determinada quantidade de tensioactivo à corrente que contém as substâncias orgânicas, que podem ser poluentes a remover (Gadelle et al., 1996), ou compostos valorizáveis a separar (Yagi et al., 1993). Quando a solução resultante, na qual se procura que a maior parte do tensioactivo se encontre na forma micelar, é passada através de uma membrana de ultrafiltração com poros de diâmetro inferior ao das micelas, a maior parte do composto orgânico permanece solubilizado dentro das micelas, sendo retido pela membrana. Deste modo, a corrente de permeado que passa através da membrana é, em muitos casos, água praticamente pura. A MEUF também pode ser usada para remover iões polivalentes dissolvidos em água. Neste caso, adiciona-se à água um tensioactivo de carga oposta à dos iões que se pretendem remover. As micelas de tensioactivo têm um elevado potencial eléctrico, fazendo com que os iões polivalentes se liguem ou sejam sorvidos na superfície das micelas, devido à atracção electrostática. A corrente é posteriormente tratada por ultrafiltração, sendo as micelas rejeitadas. A literatura refere rejeições de 99,8% para catiões metálicos bivalentes, usando membranas de poros largos e operando com fluxos elevados (Scamehorn e Harwell, 1989). Estes processos têm interesse para a remoção de metais pesados de águas residuais descarregadas por indústrias de fabricação de circuitos impressos, de tratamento de superfícies metálicas, de processamento fotográfico ou de refinarias. O tratamento de lixiviados potencialmente contaminantes dos aquíferos subterrâneos ou das águas superficiais é outra das aplicações estudadas desta António Barreto Archer Pág. 3 / 16 Aplicações Médicas da Nanofiltração de Tensioactivos Abril de 2000 tecnologia, bem como, mais recentemente, a remoção de nitratos de águas potáveis (Yildiz et al., 1996). É importante referir que na ultrafiltração o fluxo de permeado em estado estacionário diminui com o aumento da concentração de tensioactivo no seio da solução, atingindo o seu valor mínimo a uma concentração definida, designada por concentração de gelificação (cg). Experiências de determinação do fluxo de permeado em função da concentração de tensioactivo no seio da solução filtrada têm mostrado que a concentração de gelificação parece ser independente da velocidade de fluxo tangencial e do diâmetro dos poros da membrana. O valor de cg é muito superior à Concentração Micelar Crítica (CMC) do tensioactivo (200 a 500 vezes maior) e parece estar relacionado com a formação das fases viscosas estáveis (hexagonal, lamelar e cúbica). Verifica-se ainda que o decaimento do fluxo de permeado é mais rápido para maiores velocidades de fluxo e membranas de poros mais largos (Akay e Wakeman, 1993). É interessante notar que, nas experiências de ultrafiltração de tensioactivos iónicos através de membranas com massas moleculares de corte próximas do limite superior que caracteriza a nanofiltração (1000 u.m.a.), o fluxo de permeado de estado estacionário, quando representado em função da concentração de tensioactivo no retido, regista uma fase inicial de crescimento seguida de planalto, até concentrações de cerca de 50 x CMC (Dunn et al., 1987). Laslop e Staude (referidos por Akay e Wakeman, 1993) indicam que, para tensioactivos mais hidrofóbicos, a colmatação da membrana ocorre a concentrações mais baixas, uma vez que estes tensioactivos começam a formar fases líquidas cristalinas ou fases sólidas, a concentrações também mais baixas. Trabalho de Investigação Realizado e suas Aplicações O trabalho de investigação realizado (Archer et al., 1999) consistiu na montagem de uma unidade laboratorial de nanofiltração e na realização de uma série de ensaios nessa unidade, destinados a avaliar a eficiência de membranas de diferentes materiais e António Barreto Archer Pág. 4 / 16 Aplicações Médicas da Nanofiltração de Tensioactivos Abril de 2000 massas moleculares de corte, na separação de um tensioactivo aniónico em solução aquosa. Correspondendo às diferentes áreas de importância da separação de tensioactivos referidas acima, procurou-se a obtenção de resultados utilizáveis no desenvolvimento de processos de remoção de tensioactivos presentes em águas residuais, de processos de recuperação de tensioactivos de correntes residuais da indústria dos detergentes, ou de processos de separação de outros compostos através da utilização de sistemas micelares. A escolha da nanofiltração ficou a dever-se, por um lado, ao desenvolvimento recente de membranas de nanofiltração de estrutura compósita e com superfícies carregadas (Raman et al., 1994), potencialmente adequadas para a remoção de aniões ou catiões orgânicos com massas moleculares até 500 g/mol. E por outro lado, ao facto de não existirem na literatura referências significativas à utilização de membranas de nanofiltração na separação de tensioactivos, sendo certo que a ultrafiltração não consegue, na maior parte dos casos, rejeitar as moléculas de tensioactivos não agregadas em micelas (Markels et al., 1994). Concluiu-se neste trabalho que a separação depende muito das propriedades físicoquímicas do tensioactivo e das interacções electrostáticas entre a membrana e as espécies iónicas em solução aquosa, o que levou à necessidade de abordar com algum detalhe os fundamentos téoricos do processo. Para explicar as variações do fluxo de permeado com a concentração de tensioactivo na alimentação, nomeadamente, o aumento do fluxo na região micelar crítica, propôs-se um mecanismo baseado nas interacções físico-químicas entre a membrana e o tensioactivo. Os resultados experimentais obtidos (Archer et al., 1999) mostram que o processo estudado se ajusta bem ao pré-tratamento de efluentes industriais com concentrações significativas de tensioactivos aniónicos (≈ 1 g/L). De facto, obtiveram-se valores bastante elevados para o fluxo e para a rejeição (máximos de 3,40 L/m2/min e de 99,5%, respectivamente), os quais viabilizam a aplicação ambiental do processo em operações industriais onde as substâncias tensioactivas tenham um papel relevante. Esta situação pode acontecer na indústria química, em unidades de produção de tensioactivos aniónicos, na indústria dos detergentes ou em grandes unidades industriais de lavagem da indústria automóvel, António Barreto Archer Pág. 5 / 16 Aplicações Médicas da Nanofiltração de Tensioactivos Abril de 2000 aeronáutica ou metalomecânica. A utilização da nanofiltração neste contexto permite reduzir significativamente a carga poluente do efluente a tratar no fim da linha e recuperar uma parte do tensioactivo para reutilização no processo original. Outras aplicações da nanofiltração de tensioactivos poderão tirar partido da capacidade que estas substâncias têm para solubilizar compostos iónicos ou orgânicos e alterar as características superficiais das membranas, algo que já se verifica em tecnologias de ultrafiltração descritas atrás, como a MEUF. Por outro lado, a vantagem da nanofiltração, quando comparada com a osmose inversa e a ultrafiltração, está no facto de permitir uma maior selectividade nas separações a realizar, distinguindo entre subtâncias orgânicas e mesmo entre diferentes sais inorgânicos. Existe uma enorme quantidade de tipos diferentes de tensioactivos e face à riqueza das interacções físicoquímicas que podem ocorrer entre estes e as membranas de nanofiltração, a escolha criteriosa de um par tensioactivo/membrana abre a possibilidade de desenhar sistemas de separação específicos para determinadas aplicações. As Aplicações Médicas do Processo As possibilidades de aplicação do processo estudado não se restringem, portanto, à área ambiental. As características de selectividade acima descritas e a delicadeza dos processos de membrana tornam-nos atractivos para uma grande variedade de aplicações biomédicas e biotecnológicas, que colocam problemas de separação e purificação de substâncias e componentes biológicos extremamente específicos e sensíveis. Realizaram-se ensaios à temperatura de 37°C (Archer et al., 1999), nos quais o processo apresentou um melhor desempenho global, considerando conjuntamente o fluxo de permeado e a rejeição. É conveniente referir que tem sido estudada, por exemplo, a utilização de membranas de ultrafiltração assimétricas no fraccionamento de soluções contendo diversas proteínas (Opong e Zydney, 1991). Nesta área, as aplicações vão desde a separação de António Barreto Archer Pág. 6 / 16 Aplicações Médicas da Nanofiltração de Tensioactivos Abril de 2000 novos produtos farmacêuticos e proteínas de genes recombinantes, até ao desenvolvimento de orgãos artificiais. Neste último campo, refira-se o desenvolvimento do pâncreas bioartificial, que combina tecido pancreático transplantado com uma membrana sintética semi-permeável (Zydney et al., 1994). Neste sistema, as células transplantadas proporcionam o controlo da glicemia e a insulina necessária para o tratamento da diabetes, enquanto a membrana funciona como um escudo que as protege da rejeição imunitária e assegura o transporte dos solutos. Para a descrição das aplicações médicas que aqui se propõem da nanofiltração de tensioactivos, é necessário introduzirmos neste ponto alguns conceitos médicos. Comecemos pela noção de plasmaferese. Trata-se de um procedimento médico através do qual se separa o sangue de uma pessoa nos seu elementos corpusculares (células sanguíneas) e plasma. Começou por ser empregue como forma de obter os derivados plasmáticos necessários para o tratamento de certas doenças, nomeadamente a hemofilia (distúrbios congénitos da coagulação sanguínea provocados por carência ou deficiência de determinadas proteínas plasmáticas denominadas "factores de coagulação"). O sangue continuamente retirado do dador passa através de uma equipamento que realiza a separação e recolha do plasma, sendo as células sanguíneas re-suspendidas e retornadas ao organismo do dador. Trata-se de um processo que demora cerca de 45 minutos e permite a colheita de quantidades significativas de plasma sanguíneo, que, congeladas a -18 ˚C, podem conservar-se durante dois anos. Em Portugal, o primeiro programa de palsmaferese foi iniciado no Hospital de Santo António, no Porto, em 1982 (Justiça, 1991). Mais recentemente, a plasmaferese tornou-se num importante procedimento terapêutico para determinadas doenças resultantes da acumulação no organismo de uma substância patogénica específica, geralmente uma proteína (Mockrzycki e Kaplan, 1994). O objectivo da plasmaferese terapêutica é purificar o plasma do doente, removendo a substância patogénica. Até há pouco tempo, a plasmaferese terapêutica era realizada desperdiçando a totalidade do plasma retirado do doente. Desta forma, sacrificavam-se António Barreto Archer Pág. 7 / 16 Aplicações Médicas da Nanofiltração de Tensioactivos Abril de 2000 grandes quantidades de proteínas normais, para eliminar apenas uma pequena quantidade da espécie patogénica, o que colocava os doentes em risco de contrair patologias resultantes da deplecção de proteínas plasmáticas essenciais, ou infecções veiculadas pelos fluidos de substituição. Os melhoramentos deste tipo de terapêutica consistem na separação e posterior eliminação da substância ou substâncias patogénicas, retornando a restante porção do plasma ao doente. As tecnologias actualmente utilizadas para fraccionar o plasma retirado do doente são: - a imuno-adsorção, que consiste na utilização de um anticorpo específico para a proteína a remover e posterior adsorção do conjunto anticorpo-antigénio numa coluna cromatográfica; - a criofiltração, aplicável quando a proteína patogénica é uma crioglobulina, que precipita a baixas temperaturas e é eliminada posteriormente por filtração; - a ultrafiltração, aplicável quando a proteína plasmática patogénica tem um tamanho diferente do das restantes proteínas fisiológicas, que permite a sua rejeição por uma membrana semi-permeável. A utilização de membranas no fraccionamento de proteínas plasmáticas tem sido dificultada pela ocorrência, antes do processamento do volume de plasma necessário, de fenómenos de polarização e colmatação, causados pelas proteínas, não sendo possível aumentar muito as velocidades tangenciais devido ao risco das tensões de corte elevadas poderem danificar componentes plasmáticos mais sensíveis. A solução poderá estar nos processos de membrana auxiliados por tensioactivos, visto que estes, dado o seu poder de solubilização e de molhagem de superfícies, são capazes de reduzir a incidência da colmatação. Por outro lado, a formação de micelas que solubilizem no seu interior os componentes a separar proporciona uma maior rejeição e a enorme variedade de tensioactivos com diferentes características físico-químicas e sem toxicidade biológica permite uma maior selectividade nas separações a realizar. A partir deste raciocínio e das conclusões do trabalho de investigação realizado no que respeita ao comportamento dos tensioactivos aniónicos face às membranas de António Barreto Archer Pág. 8 / 16 Aplicações Médicas da Nanofiltração de Tensioactivos Abril de 2000 nanofiltração, o autor propõe o esquema processual da Figura 1 para a plasmaferese terapêutica. Este esquema inclui a adição à corrente plasmática de uma quantidade definida de um tensioactivo bio-compatível, com afinidade para a substância a remover, seguida de uma 1ª etapa de microfiltração ou ultrafiltração (consoante o tamanho da substância a eliminar) e de uma 2ª etapa de nanofiltração, destinada a remover quantidades residuais do agente a eliminar e do tensioactivo não micelizado. Tensioactivo Corrente a eliminar Plasma Sangue Substância patogénica retida nas micelas de tensioactivo Vaso sanguíneo do doente Centrifugação Células sanguíneas Microfiltração ou Ultrafiltração Substância patogénica e tensioactivo residuais Nanofiltração Permeado intermédio Recombinação Sangue reconstituído Plasma tratado Figura 1 - Esquema processual proposto para a plasmaferese terapêutica com aplicação da nanofiltração de tensioactivos. Este esquema poderá ser utilizado no tratamento de quaisquer doenças que beneficiem da eliminação de agentes patogénicos que se encontrem dissolvidos no plasma sanguíneo. Para melhor ilustrar as vantagens potenciais do processo proposto, refiramonos brevemente a dois exemplos de patologias desse tipo, a primeira de carácter crónico e a segunda de natureza aguda. António Barreto Archer Pág. 9 / 16 Aplicações Médicas da Nanofiltração de Tensioactivos Abril de 2000 Os distúrbios lipídicos representam um papel chave na patogénese das doenças vasculares ateroscleróticas, em especial da doença coronária. A par com a obesidade, o tabagismo e a hipertensão, a hiperlipidémia pertence ao grupo dos principais factores de risco modificáveis de doença cardíaca coronária (DCC). Para além destes, existem ainda determinantes de risco mais específicos, como a diabetes e o fibrinogénio elevado, e os factores de risco inalteráveis, cujos mais importantes são a existência de doença coronária anterior, a idade acima dos 60 anos e o sexo masculino (Silva, 1993). As gorduras são insolúveis no meio aquoso do sangue. Por isso, o transporte do colesterol, triglicéridos e fosfolípidos, essenciais ao organismo, nomeadamente para a formação das membranas celulares, ocorre exclusivamente sob a forma de complexos lípido-proteicos. Podem classificar-se estas lipoproteínas com base na sua taxa de flutuação numa solução salina ultracentrifugada, em: Quilomicra, lipoproteínas de muito baixa densidade (VLDL), lipoproteínas de baixa densidade (LDL) e lipoproteínas de alta densidade (HDL). Estas quatro classes de lipoproteínas diferem em termos de tamanho, densidade, composição das fracções lipídicas e proteínas específicas (apoproteínas). A Quilomicra transporta os triglicéridos da alimentação (exógenos), que são normalmente catabolizados num período de 12 a 14 horas. As VLDL transportam a maior parte dos triglicéridos endógenos (libertados pelo fígado). As LDL são responsáveis pelo transporte da maior parte do colesterol no sangue. As HDL transportam o colesterol não utilizado pelas células periféricas, de novo para o fígado. Numerosos estudos epidemiológicos e laboratoriais confirmam a correlação contínua e positiva entre níveis séricos elevados de colesterol (superiores a 2 g/L) e o aumento do risco de DCC. Face aos estudos clínicos que mostraram que a diminuição do colesterol sérico das LDL, por meio de dieta ou de fármacos, pode diminuir o risco de incidência destas doenças, o controlo dos níveis séricos de colesterol é hoje uma prioridade no tratamento das dislipidémias e está estabelecido na prática clínica corrente. Neste contexto, existe um grupo de distúrbios lipídicos, designados por "dislipidémias António Barreto Archer 16 Pág. 10 / Aplicações Médicas da Nanofiltração de Tensioactivos Abril de 2000 familiares ou genéticas" que se traduzem em níveis muito elevados de colesterol e triglicéridos, que, para além do elevado risco de DCC, causam graves problemas no organismo em resultado da deposição de gordura nos tecidos. Habitualmente, estas hipercolesterolémias não cedem suficientemente à dieta e à medicação, pelo que a eliminação de plasma é uma alternativa de tratamento. O processo de plasmaferese terapêutica proposto na Figura 1 poderá permitir, nestes casos, um tratamento com menos efeitos secundários e uma maior remoção de colesterol, por força da excelente capacidade das micelas de tensioactivos para solubilizarem lipoproteínas biológicas (Madeira, 1990). Para descrevermos o segundo tipo de patologias em que o processo poderá ter aplicação, comecemos por referir que as bactérias gram-negativas produzem moléculas chamadas endotoxinas, que se fixam na camada externa das suas paredes celulares, criando um escudo que dificulta a penetração dos antibióticos no citoplasma. Para além disso, estas substâncias, no caso de existir uma infecção grave, acumulam-se no sangue, entrando em contacto com células imunitárias chamadas macrófagos, as quais desencadeiam a libertação sistémica de mediadores químicos potentes, capazes de originar um reacção imunitária tão violenta que pode conduzir à morte do doente. As endotoxinas não são intrinsecamente tóxicas, uma vez que o seu efeito depende da resposta do hospedeiro, mas são identificadas pelos nossos tecidos como invasores muito perigosos, levando, através de um mecanismo ainda não totalmente esclarecido, os macrófagos a produzirem três grupos de mediadores químicos: proteínas (interleucinas e factor de necrose tumoral), radicais livres (O2-, H2O2 e NO) e lípidos (prostaglandina, tromboxano e factor de activação plaquetária). Se os níveis destes mediadores forem baixos, os efeitos no organismo são benéficos (febre moderada, estimulação generalizada do sistema imunitário), mas se forem muito elevados provocam febres muito altas e hipotensão e conduzem a situações limite de coagulação intra-vascular disseminada e choque letal. António Barreto Archer 16 Pág. 11 / Aplicações Médicas da Nanofiltração de Tensioactivos Abril de 2000 As endotoxinas são lipopolissacáridos e podem penetrar na circulação sanguínea por si só, a partir dos tecidos afectados, embora os efeitos letais ocorram geralmente quando as bactérias entram no sangue, causando a septicémia. Nestes casos, as bactérias multiplicam-se rapidamente no meio e libertam no sangue do doente grandes quantidades das endotoxinas existentes nas suas paredes celulares, mesmo quando morrem. Estas endotoxinas actuam directamente sobre os macrófagos, provocando os perniciosos efeitos descritos acima. Há situações clínicas em que as doses de antibióticos necessárias são muito grandes, para passar a barreira hemato-encefálica (no caso das infecções do sistema nervoso central, como a meningite) ou para acorrer a casos de infecções pulmonares graves ou mesmo de infecções primárias que evoluem para endocardites e septicémias. Nestas situações, e mesmo no caso de sucesso da terapêutica antibiótica, as bactérias gram-negativas morrem em massa, libertando grandes quantidades de endotoxinas no organismo, que provocam o pânico do sistema imunitário e a sua reacção exagerada, que leva a situações de choque séptico e necrose tecidular (Rietschel e Brade, 1992). É neste tipo de casos clínicos, nos quais a taxa de mortalidade é superior a 90% e os sobreviventes ficam frequentemente com graves sequelas, que o processo de plasmaferese terapêutica apresentado na Figura 1, ao permitir a remoção do sangue do doente das endotoxinas e dos mediadores imunitários, pode aumentar as hipóteses de sobrevivência e diminuir a gravidade das sequelas. Dada a estrutura química anfifílica das endotoxinas, que contêm uma parte lipídica e um polissacárido, os tensioactivos estabelecerão com elas associações micelares homogéneas, facilmente rejeitáveis por membranas de ultrafiltração ou nanofiltração. Perspectivas Futuras Face à complexidade dos resultados obtidos no estudo da separação de tensioactivos através de membranas de nanofiltração, é necessário compreender de um modo mais completo e fundamental as interacções que ocorrem entre os tensioactivos e as membranas de nanofiltração. Para isso, são necessários trabalhos de investigação dirigidos ao estudo das camadas estagnantes e colmatantes, semelhantes aos publicados António Barreto Archer 16 Pág. 12 / Aplicações Médicas da Nanofiltração de Tensioactivos Abril de 2000 por Wakeman (1994) e Tarleton e Wakeman (1994) para a microfiltração, mas aplicados à nanofiltração de tensioactivos. O trabalho de investigação que está na base deste artigo concentrou-se apenas no estudo da separação de um tensioactivo aniónico. Face às vastas e interessantes possibilidades de aplicação do processo na área das aplicações médicas, seria necessário estudar a separação de outros tipos de tensioactivos, designadamente catiónicos, não iónicos e até anfotéricos. Por outro lado, a riqueza das combinações possíveis entre diferentes tensioactivos e membranas de nanofiltração poderá proporcionar o desenvolvimento de processos de nanofiltração auxiliados por tensioactivos, especificamente concebidos para a separação de determinados electrólitos ou compostos orgânicos. Para tal, é necessário estudar a interferência de diferentes electrólitos e compostos orgânicos no processo ensaiado. As perspectivas abertas pelas aplicações médicas sugeridas neste artigo para a nanofiltração de tensioactivos exigem a realização de trabalhos de investigação centrados na separação de soluções bioquímicas complexas, como é o caso do plasma sanguíneo. A modelização do processo proposto, através de um trabalho semelhante ao realizado por Grieves et al. (1973) para a ultrafiltração de tensioactivos aniónicos, permitiria uma melhor compreensão dos fenómenos observados. Com uma instalação laboratorial completamente automatizada, capaz de proporcionar a obtenção de um grande número de pontos experimentais numa grande variedade de condições operatórias, poderia estudar-se a separação em vários andares, com diversos tipos de escoamento (contra-corrente ou fluxo cruzado), envolvendo simultaneamente a ultrafiltração e a nanofiltração. António Barreto Archer 16 Pág. 13 / Aplicações Médicas da Nanofiltração de Tensioactivos Abril de 2000 Bibliografia Citada Akay, G. e Wakeman, R., (1993) Ultrafiltration and Microfiltration of Surfactant Dispersions - An Evaluation of Published Research, Chemical Engineering Research and Design, 71, Part A, 411-420. 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