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APLICAÇÕES MÉDICAS DA NANOFILTRAÇÃO DE TENSIOACTIVOS
António Casimiro de Freitas Borges Barreto Archer
Licenciado em Engenharia Química e Mestre em Engenharia do Ambiente, UP
Professor do Departamento de Ciências do Ambiente da Universidade Moderna do Porto
Sumário
Este artigo parte de uma exposição teórica sobre os processos de membrana envolvendo
tensioactivos e de um trabalho de investigação sobre a separação de um tensioactivo
aniónico por nanofiltração, objecto de publicação anterior (Archer et al., 1999). Nele, o
autor propõe algumas aplicações médicas da nanofiltração de tensioactivos,
descrevendo um novo processo de plasmaferese terapêutica. Este novo processo foi
fruto das observações experimentais colhidas durante o trabalho de investigação
realizado.
Introdução
O problema da separação de tensioactivos começou por ser colocado em termos
ambientais, face à crescente aplicação destas substâncias, tanto em produtos de uso
doméstico como nos mais variados sectores industriais. De facto, sendo utilizados
principalmente como agentes de lavagem, os tensioactivos são rejeitados nas águas
residuais em grande quantidade e com significativas implicações ambientais,
resultantes, quer dos efeitos perversos que estas substâncias têm no meio natural, quer
das dificuldades que colocam ao funcionamento eficaz das Estações de Tratamento de
Águas Residuais. Em consequência desta realidade, as legislações ambientais dos
países industrializados fixaram limites máximos admissíveis para as concentrações de
tensioactivos nas águas residuais. Apesar da importância quantitativa que os
tensioactivos assumem em águas residuais industriais e domésticas, as Estações de
Tratamento de Águas Residuais não são, em geral, dotadas de tecnologias específicas
para a sua remoção.
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A separação por membranas, normalmente associada a sectores de ponta e com uma
aplicação generalizada na área ambiental (Mulder, 1994), tem registado um
significativo crescimento, enquanto processo de tratamento de águas residuais (Caetano
et al., 1995). No que concerne à remoção de tensioactivos presentes em águas residuais
industriais, os processos de membrana apresentam a vantagem de poderem ser
utilizados no interior da operação industrial que gera a corrente poluída com
tensioactivos, permitindo a recuperação do composto em condições de possível
reutilização.
Para além da importância ambiental stricto sensu, acima referida, a separação de
tensioactivos está ainda relacionada com uma nova geração de processos industriais que
têm emergido recentemente. Tratam-se de separações baseadas em tensioactivos, ou
seja, de novos processos de separação que utilizam os tensioactivos como agentes
facilitadores ou promotores da separação a realizar, a qual pode basear-se no transporte
através de uma membrana, numa extracção, numa adsorção, na formação de uma fase
de espuma ou numa precipitação (Scamehorn e Harwell, 1989). Estes processos têm
diversas vantagens sobre os métodos de separação tradicionais. Em geral são menos
consumidores de energia e permitem evitar os problemas ambientais associados a
outros processos de separação, no caso de se utilizarem tensioactivos biodegradáveis. A
biotecnologia é uma das áreas de aplicação mais importante para estes novos processos
de separação baseados em tensioactivos, uma vez que a suavidade das condições de
actuação dos tensioactivos protege substâncias bioquímicas valiosas e facilmente
degradáveis nas frequentes situações em que se pretende recuperá-las a partir de
soluções aquosas muito diluídas (Bailey e Ollis, 1986).
O primeiro processo de membrana utilizado para separar tensioactivos foi a
ultrafiltração, no início da década de 70 (Grieves et al., 1973). Posteriormente,
desenvolveram-se processos de dessalinização auxiliada por tensioactivos. Estes
consistem em técnicas de remoção de espécies iónicas por osmose inversa, nas quais se
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adiciona um tensioactivo à solução aquosa, com o objectivo de melhorar a rejeição
iónica através da formação de uma membrana secundária. Esta última resulta da
adsorção das moléculas de tensioactivo na superfície da membrana verdadeira. Outro
processo de separação por membranas envolvendo tensioactivos, referido na literatura
da especialidade, é a concentração de emulsões (Akay e Wakeman, 1994 e 1994b).
Mais recentemente desenvolveu-se uma tecnologia de ultrafiltração auxiliada por
micelas de tensioactivos (Micellar-Enhanced Ultrafiltration), designada na literatura
pela sigla MEUF (Scamehorn e Harwell, 1989). Trata-se de um método eficaz para a
remoção de compostos orgânicos dissolvidos em correntes aquosas, no qual se adiciona
uma determinada quantidade de tensioactivo à corrente que contém as substâncias
orgânicas, que podem ser poluentes a remover (Gadelle et al., 1996), ou compostos
valorizáveis a separar (Yagi et al., 1993). Quando a solução resultante, na qual se
procura que a maior parte do tensioactivo se encontre na forma micelar, é passada
através de uma membrana de ultrafiltração com poros de diâmetro inferior ao das
micelas, a maior parte do composto orgânico permanece solubilizado dentro das
micelas, sendo retido pela membrana. Deste modo, a corrente de permeado que passa
através da membrana é, em muitos casos, água praticamente pura. A MEUF também
pode ser usada para remover iões polivalentes dissolvidos em água. Neste caso,
adiciona-se à água um tensioactivo de carga oposta à dos iões que se pretendem
remover. As micelas de tensioactivo têm um elevado potencial eléctrico, fazendo com
que os iões polivalentes se liguem ou sejam sorvidos na superfície das micelas, devido
à atracção electrostática. A corrente é posteriormente tratada por ultrafiltração, sendo as
micelas rejeitadas. A literatura refere rejeições de 99,8% para catiões metálicos
bivalentes, usando membranas de poros largos e operando com fluxos elevados
(Scamehorn e Harwell, 1989). Estes processos têm interesse para a remoção de metais
pesados de águas residuais descarregadas por indústrias de fabricação de circuitos
impressos, de tratamento de superfícies metálicas, de processamento fotográfico ou de
refinarias. O tratamento de lixiviados potencialmente contaminantes dos aquíferos
subterrâneos ou das águas superficiais é outra das aplicações estudadas desta
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tecnologia, bem como, mais recentemente, a remoção de nitratos de águas potáveis
(Yildiz et al., 1996).
É importante referir que na ultrafiltração o fluxo de permeado em estado estacionário
diminui com o aumento da concentração de tensioactivo no seio da solução, atingindo o
seu valor mínimo a uma concentração definida, designada por concentração de
gelificação (cg). Experiências de determinação do fluxo de permeado em função da
concentração de tensioactivo no seio da solução filtrada têm mostrado que a
concentração de gelificação parece ser independente da velocidade de fluxo tangencial
e do diâmetro dos poros da membrana. O valor de cg é muito superior à Concentração
Micelar Crítica (CMC) do tensioactivo (200 a 500 vezes maior) e parece estar
relacionado com a formação das fases viscosas estáveis (hexagonal, lamelar e cúbica).
Verifica-se ainda que o decaimento do fluxo de permeado é mais rápido para maiores
velocidades de fluxo e membranas de poros mais largos (Akay e Wakeman, 1993). É
interessante notar que, nas experiências de ultrafiltração de tensioactivos iónicos
através de membranas com massas moleculares de corte próximas do limite superior
que caracteriza a nanofiltração (1000 u.m.a.), o fluxo de permeado de estado
estacionário, quando representado em função da concentração de tensioactivo no retido,
regista uma fase inicial de crescimento seguida de planalto, até concentrações de cerca
de 50 x CMC (Dunn et al., 1987). Laslop e Staude (referidos por Akay e Wakeman,
1993) indicam que, para tensioactivos mais hidrofóbicos, a colmatação da membrana
ocorre a concentrações mais baixas, uma vez que estes tensioactivos começam a formar
fases líquidas cristalinas ou fases sólidas, a concentrações também mais baixas.
Trabalho de Investigação Realizado e suas Aplicações
O trabalho de investigação realizado (Archer et al., 1999) consistiu na montagem de
uma unidade laboratorial de nanofiltração e na realização de uma série de ensaios nessa
unidade, destinados a avaliar a eficiência de membranas de diferentes materiais e
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massas moleculares de corte, na separação de um tensioactivo aniónico em solução
aquosa. Correspondendo às diferentes áreas de importância da separação de
tensioactivos referidas acima, procurou-se a obtenção de resultados utilizáveis no
desenvolvimento de processos de remoção de tensioactivos presentes em águas
residuais, de processos de recuperação de tensioactivos de correntes residuais da
indústria dos detergentes, ou de processos de separação de outros compostos através da
utilização de sistemas micelares. A escolha da nanofiltração ficou a dever-se, por um
lado, ao desenvolvimento recente de membranas de nanofiltração de estrutura
compósita e com superfícies carregadas (Raman et al., 1994), potencialmente
adequadas para a remoção de aniões ou catiões orgânicos com massas moleculares até
500 g/mol. E por outro lado, ao facto de não existirem na literatura referências
significativas à utilização de membranas de nanofiltração na separação de
tensioactivos, sendo certo que a ultrafiltração não consegue, na maior parte dos casos,
rejeitar as moléculas de tensioactivos não agregadas em micelas (Markels et al., 1994).
Concluiu-se neste trabalho que a separação depende muito das propriedades físicoquímicas do tensioactivo e das interacções electrostáticas entre a membrana e as
espécies iónicas em solução aquosa, o que levou à necessidade de abordar com algum
detalhe os fundamentos téoricos do processo. Para explicar as variações do fluxo de
permeado com a concentração de tensioactivo na alimentação, nomeadamente, o
aumento do fluxo na região micelar crítica, propôs-se um mecanismo baseado nas
interacções físico-químicas entre a membrana e o tensioactivo. Os resultados
experimentais obtidos (Archer et al., 1999) mostram que o processo estudado se ajusta
bem ao pré-tratamento de efluentes industriais com concentrações significativas de
tensioactivos aniónicos (≈ 1 g/L). De facto, obtiveram-se valores bastante elevados para
o fluxo e para a rejeição (máximos de 3,40 L/m2/min e de 99,5%, respectivamente), os
quais viabilizam a aplicação ambiental do processo em operações industriais onde as
substâncias tensioactivas tenham um papel relevante. Esta situação pode acontecer na
indústria química, em unidades de produção de tensioactivos aniónicos, na indústria
dos detergentes ou em grandes unidades industriais de lavagem da indústria automóvel,
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aeronáutica ou metalomecânica. A utilização da nanofiltração neste contexto permite
reduzir significativamente a carga poluente do efluente a tratar no fim da linha e
recuperar uma parte do tensioactivo para reutilização no processo original. Outras
aplicações da nanofiltração de tensioactivos poderão tirar partido da capacidade que
estas substâncias têm para solubilizar compostos iónicos ou orgânicos e alterar as
características superficiais das membranas, algo que já se verifica em tecnologias de
ultrafiltração descritas atrás, como a MEUF. Por outro lado, a vantagem da
nanofiltração, quando comparada com a osmose inversa e a ultrafiltração, está no facto
de permitir uma maior selectividade nas separações a realizar, distinguindo entre
subtâncias orgânicas e mesmo entre diferentes sais inorgânicos. Existe uma enorme
quantidade de tipos diferentes de tensioactivos e face à riqueza das interacções físicoquímicas que podem ocorrer entre estes e as membranas de nanofiltração, a escolha
criteriosa de um par tensioactivo/membrana abre a possibilidade de desenhar sistemas
de separação específicos para determinadas aplicações.
As Aplicações Médicas do Processo
As possibilidades de aplicação do processo estudado não se restringem, portanto, à área
ambiental. As características de selectividade acima descritas e a delicadeza dos
processos de membrana tornam-nos atractivos para uma grande variedade de aplicações
biomédicas e biotecnológicas, que colocam problemas de separação e purificação de
substâncias e componentes biológicos extremamente específicos e sensíveis.
Realizaram-se ensaios à temperatura de 37°C (Archer et al., 1999), nos quais o
processo apresentou um melhor desempenho global, considerando conjuntamente o
fluxo de permeado e a rejeição.
É conveniente referir que tem sido estudada, por exemplo, a utilização de membranas
de ultrafiltração assimétricas no fraccionamento de soluções contendo diversas
proteínas (Opong e Zydney, 1991). Nesta área, as aplicações vão desde a separação de
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novos produtos farmacêuticos e proteínas de genes recombinantes, até ao
desenvolvimento de orgãos artificiais. Neste último campo, refira-se o desenvolvimento
do pâncreas bioartificial, que combina tecido pancreático transplantado com uma
membrana sintética semi-permeável (Zydney et al., 1994). Neste sistema, as células
transplantadas proporcionam o controlo da glicemia e a insulina necessária para o
tratamento da diabetes, enquanto a membrana funciona como um escudo que as protege
da rejeição imunitária e assegura o transporte dos solutos.
Para a descrição das aplicações médicas que aqui se propõem da nanofiltração de
tensioactivos, é necessário introduzirmos neste ponto alguns conceitos médicos.
Comecemos pela noção de plasmaferese. Trata-se de um procedimento médico através
do qual se separa o sangue de uma pessoa nos seu elementos corpusculares (células
sanguíneas) e plasma. Começou por ser empregue como forma de obter os derivados
plasmáticos necessários para o tratamento de certas doenças, nomeadamente a
hemofilia (distúrbios congénitos da coagulação sanguínea provocados por carência ou
deficiência de determinadas proteínas plasmáticas denominadas "factores de
coagulação"). O sangue continuamente retirado do dador passa através de uma
equipamento que realiza a separação e recolha do plasma, sendo as células sanguíneas
re-suspendidas e retornadas ao organismo do dador. Trata-se de um processo que
demora cerca de 45 minutos e permite a colheita de quantidades significativas de
plasma sanguíneo, que, congeladas a -18 ˚C, podem conservar-se durante dois anos. Em
Portugal, o primeiro programa de palsmaferese foi iniciado no Hospital de Santo
António, no Porto, em 1982 (Justiça, 1991).
Mais recentemente, a plasmaferese tornou-se num importante procedimento terapêutico
para determinadas doenças resultantes da acumulação no organismo de uma substância
patogénica específica, geralmente uma proteína (Mockrzycki e Kaplan, 1994). O
objectivo da plasmaferese terapêutica é purificar o plasma do doente, removendo a
substância patogénica. Até há pouco tempo, a plasmaferese terapêutica era realizada
desperdiçando a totalidade do plasma retirado do doente. Desta forma, sacrificavam-se
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grandes quantidades de proteínas normais, para eliminar apenas uma pequena
quantidade da espécie patogénica, o que colocava os doentes em risco de contrair
patologias resultantes da deplecção de proteínas plasmáticas essenciais, ou infecções
veiculadas pelos fluidos de substituição. Os melhoramentos deste tipo de terapêutica
consistem na separação e posterior eliminação da substância ou substâncias
patogénicas, retornando a restante porção do plasma ao doente. As tecnologias
actualmente utilizadas para fraccionar o plasma retirado do doente são:
- a imuno-adsorção, que consiste na utilização de um anticorpo específico para a
proteína a remover e posterior adsorção do conjunto anticorpo-antigénio numa coluna
cromatográfica;
- a criofiltração, aplicável quando a proteína patogénica é uma crioglobulina,
que precipita a baixas temperaturas e é eliminada posteriormente por filtração;
- a ultrafiltração, aplicável quando a proteína plasmática patogénica tem um
tamanho diferente do das restantes proteínas fisiológicas, que permite a sua rejeição por
uma membrana semi-permeável.
A utilização de membranas no fraccionamento de proteínas plasmáticas tem sido
dificultada pela ocorrência, antes do processamento do volume de plasma necessário,
de fenómenos de polarização e colmatação, causados pelas proteínas, não sendo
possível aumentar muito as velocidades tangenciais devido ao risco das tensões de
corte elevadas poderem danificar componentes plasmáticos mais sensíveis. A solução
poderá estar nos processos de membrana auxiliados por tensioactivos, visto que estes,
dado o seu poder de solubilização e de molhagem de superfícies, são capazes de reduzir
a incidência da colmatação. Por outro lado, a formação de micelas que solubilizem no
seu interior os componentes a separar proporciona uma maior rejeição e a enorme
variedade de tensioactivos com diferentes características físico-químicas e sem
toxicidade biológica permite uma maior selectividade nas separações a realizar.
A partir deste raciocínio e das conclusões do trabalho de investigação realizado no que
respeita ao comportamento dos tensioactivos aniónicos face às membranas de
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nanofiltração, o autor propõe o esquema processual da Figura 1 para a plasmaferese
terapêutica. Este esquema inclui a adição à corrente plasmática de uma quantidade
definida de um tensioactivo bio-compatível, com afinidade para a substância a remover,
seguida de uma 1ª etapa de microfiltração ou ultrafiltração (consoante o tamanho da
substância a eliminar) e de uma 2ª etapa de nanofiltração, destinada a remover
quantidades residuais do agente a eliminar e do tensioactivo não micelizado.
Tensioactivo
Corrente a eliminar
Plasma
Sangue
Substância
patogénica retida
nas micelas de
tensioactivo
Vaso
sanguíneo
do doente
Centrifugação
Células
sanguíneas
Microfiltração
ou
Ultrafiltração
Substância
patogénica e
tensioactivo
residuais
Nanofiltração
Permeado
intermédio
Recombinação
Sangue
reconstituído
Plasma tratado
Figura 1 - Esquema processual proposto para a plasmaferese terapêutica com aplicação da nanofiltração
de tensioactivos.
Este esquema poderá ser utilizado no tratamento de quaisquer doenças que beneficiem
da eliminação de agentes patogénicos que se encontrem dissolvidos no plasma
sanguíneo. Para melhor ilustrar as vantagens potenciais do processo proposto, refiramonos brevemente a dois exemplos de patologias desse tipo, a primeira de carácter
crónico e a segunda de natureza aguda.
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Os distúrbios lipídicos representam um papel chave na patogénese das doenças
vasculares ateroscleróticas, em especial da doença coronária. A par com a obesidade, o
tabagismo e a hipertensão, a hiperlipidémia pertence ao grupo dos principais factores
de risco modificáveis de doença cardíaca coronária (DCC). Para além destes, existem
ainda determinantes de risco mais específicos, como a diabetes e o fibrinogénio
elevado, e os factores de risco inalteráveis, cujos mais importantes são a existência de
doença coronária anterior, a idade acima dos 60 anos e o sexo masculino (Silva, 1993).
As gorduras são insolúveis no meio aquoso do sangue. Por isso, o transporte do
colesterol, triglicéridos e fosfolípidos, essenciais ao organismo, nomeadamente para a
formação das membranas celulares, ocorre exclusivamente sob a forma de complexos
lípido-proteicos. Podem classificar-se estas lipoproteínas com base na sua taxa de
flutuação numa solução salina ultracentrifugada, em: Quilomicra, lipoproteínas de
muito baixa densidade (VLDL), lipoproteínas de baixa densidade (LDL) e lipoproteínas
de alta densidade (HDL). Estas quatro classes de lipoproteínas diferem em termos de
tamanho, densidade, composição das fracções lipídicas e proteínas específicas
(apoproteínas). A Quilomicra transporta os triglicéridos da alimentação (exógenos), que
são normalmente catabolizados num período de 12 a 14 horas. As VLDL transportam a
maior parte dos triglicéridos endógenos (libertados pelo fígado). As LDL são
responsáveis pelo transporte da maior parte do colesterol no sangue. As HDL
transportam o colesterol não utilizado pelas células periféricas, de novo para o fígado.
Numerosos estudos epidemiológicos e laboratoriais confirmam a correlação contínua e
positiva entre níveis séricos elevados de colesterol (superiores a 2 g/L) e o aumento do
risco de DCC. Face aos estudos clínicos que mostraram que a diminuição do colesterol
sérico das LDL, por meio de dieta ou de fármacos, pode diminuir o risco de incidência
destas doenças, o controlo dos níveis séricos de colesterol é hoje uma prioridade no
tratamento das dislipidémias e está estabelecido na prática clínica corrente. Neste
contexto, existe um grupo de distúrbios lipídicos, designados por "dislipidémias
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familiares ou genéticas" que se traduzem em níveis muito elevados de colesterol e
triglicéridos, que, para além do elevado risco de DCC, causam graves problemas no
organismo em resultado da deposição de gordura nos tecidos. Habitualmente, estas
hipercolesterolémias não cedem suficientemente à dieta e à medicação, pelo que a
eliminação de plasma é uma alternativa de tratamento. O processo de plasmaferese
terapêutica proposto na Figura 1 poderá permitir, nestes casos, um tratamento com
menos efeitos secundários e uma maior remoção de colesterol, por força da excelente
capacidade das micelas de tensioactivos para solubilizarem lipoproteínas biológicas
(Madeira, 1990).
Para descrevermos o segundo tipo de patologias em que o processo poderá ter
aplicação, comecemos por referir que as bactérias gram-negativas produzem moléculas
chamadas endotoxinas, que se fixam na camada externa das suas paredes celulares,
criando um escudo que dificulta a penetração dos antibióticos no citoplasma. Para além
disso, estas substâncias, no caso de existir uma infecção grave, acumulam-se no
sangue, entrando em contacto com células imunitárias chamadas macrófagos, as quais
desencadeiam a libertação sistémica de mediadores químicos potentes, capazes de
originar um reacção imunitária tão violenta que pode conduzir à morte do doente. As
endotoxinas não são intrinsecamente tóxicas, uma vez que o seu efeito depende da
resposta do hospedeiro, mas são identificadas pelos nossos tecidos como invasores
muito perigosos, levando, através de um mecanismo ainda não totalmente esclarecido,
os macrófagos a produzirem três grupos de mediadores químicos: proteínas
(interleucinas e factor de necrose tumoral), radicais livres (O2-, H2O2 e NO) e lípidos
(prostaglandina, tromboxano e factor de activação plaquetária). Se os níveis destes
mediadores forem baixos, os efeitos no organismo são benéficos (febre moderada,
estimulação generalizada do sistema imunitário), mas se forem muito elevados
provocam febres muito altas e hipotensão e conduzem a situações limite de coagulação
intra-vascular disseminada e choque letal.
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As endotoxinas são lipopolissacáridos e podem penetrar na circulação sanguínea por si
só, a partir dos tecidos afectados, embora os efeitos letais ocorram geralmente quando
as bactérias entram no sangue, causando a septicémia. Nestes casos, as bactérias
multiplicam-se rapidamente no meio e libertam no sangue do doente grandes
quantidades das endotoxinas existentes nas suas paredes celulares, mesmo quando
morrem. Estas endotoxinas actuam directamente sobre os macrófagos, provocando os
perniciosos efeitos descritos acima. Há situações clínicas em que as doses de
antibióticos necessárias são muito grandes, para passar a barreira hemato-encefálica (no
caso das infecções do sistema nervoso central, como a meningite) ou para acorrer a
casos de infecções pulmonares graves ou mesmo de infecções primárias que evoluem
para endocardites e septicémias. Nestas situações, e mesmo no caso de sucesso da
terapêutica antibiótica, as bactérias gram-negativas morrem em massa, libertando
grandes quantidades de endotoxinas no organismo, que provocam o pânico do sistema
imunitário e a sua reacção exagerada, que leva a situações de choque séptico e necrose
tecidular (Rietschel e Brade, 1992). É neste tipo de casos clínicos, nos quais a taxa de
mortalidade é superior a 90% e os sobreviventes ficam frequentemente com graves
sequelas, que o processo de plasmaferese terapêutica apresentado na Figura 1, ao
permitir a remoção do sangue do doente das endotoxinas e dos mediadores imunitários,
pode aumentar as hipóteses de sobrevivência e diminuir a gravidade das sequelas. Dada
a estrutura química anfifílica das endotoxinas, que contêm uma parte lipídica e um
polissacárido, os tensioactivos estabelecerão com elas associações micelares
homogéneas, facilmente rejeitáveis por membranas de ultrafiltração ou nanofiltração.
Perspectivas Futuras
Face à complexidade dos resultados obtidos no estudo da separação de tensioactivos
através de membranas de nanofiltração, é necessário compreender de um modo mais
completo e fundamental as interacções que ocorrem entre os tensioactivos e as
membranas de nanofiltração. Para isso, são necessários trabalhos de investigação
dirigidos ao estudo das camadas estagnantes e colmatantes, semelhantes aos publicados
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por Wakeman (1994) e Tarleton e Wakeman (1994) para a microfiltração, mas
aplicados à nanofiltração de tensioactivos.
O trabalho de investigação que está na base deste artigo concentrou-se apenas no
estudo da separação de um tensioactivo aniónico. Face às vastas e interessantes
possibilidades de aplicação do processo na área das aplicações médicas, seria
necessário estudar a separação de outros tipos de tensioactivos, designadamente
catiónicos, não iónicos e até anfotéricos. Por outro lado, a riqueza das combinações
possíveis entre diferentes tensioactivos e membranas de nanofiltração poderá
proporcionar o desenvolvimento de processos de nanofiltração auxiliados por
tensioactivos, especificamente concebidos para a separação de determinados
electrólitos ou compostos orgânicos. Para tal, é necessário estudar a interferência de
diferentes electrólitos e compostos orgânicos no processo ensaiado.
As perspectivas abertas pelas aplicações médicas sugeridas neste artigo para a
nanofiltração de tensioactivos exigem a realização de trabalhos de investigação
centrados na separação de soluções bioquímicas complexas, como é o caso do plasma
sanguíneo. A modelização do processo proposto, através de um trabalho semelhante ao
realizado por Grieves et al. (1973) para a ultrafiltração de tensioactivos aniónicos,
permitiria uma melhor compreensão dos fenómenos observados. Com uma instalação
laboratorial completamente automatizada, capaz de proporcionar a obtenção de um
grande número de pontos experimentais numa grande variedade de condições
operatórias, poderia estudar-se a separação em vários andares, com diversos tipos de
escoamento (contra-corrente ou fluxo cruzado), envolvendo simultaneamente a
ultrafiltração e a nanofiltração.
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