11 de Setembro

Transcrição

11 de Setembro
Outono | Inverno
O
2011
53
06
AUMENTAR
NÚMERO
DE
ESTUDANTES
AMERICANOS
EM
PORTUGAL
Boas razões para estudar
numa universidade portuguesa
Maria de Lurdes Rodrigues
Mais uma forma de fortalecer
a relação luso-americana
Allan J. Katz
Um contributo importante
para o “Business in Portuguese”
Rui Boavista Marques
Um país para viver,
um país para aprender
Luís Patrão
António Rendas
ESPECIAL
Programa pioneiro
11 de Setembro
Uma década depois
Fundação Luso­‑Americana
Conselho Directivo:
Teodora Cardoso (Presidente)
Embaixador dos EUA
Jorge Figueiredo Dias
Jorge Torgal
Luís Braga da Cruz
Luís Valente de Oliveira
Michael de Mello
Vasco Pereira da Costa
Vasco Graça Moura
Conselho Executivo:
Maria de Lurdes Rodrigues (Presidente)
Charles Allen Buchanan, Jr
Mário Mesquita
Secretário­‑Geral: José Sá Carneiro
DIRECTORes: Fátima Fonseca, Paulo Zagalo
e Melo, Miguel Vaz
subdIRECTORes: Rui Vallêra
Responsável pelos Serviços Financeiros:
Maria Fernanda David
Responsável pelos Serviços Administrativos:
Luiza Gomes
Assessores: João Silvério, Paula Vicente
Rua do Sacramento à Lapa, 21
1249­‑090 Lisboa | Portugal
Tel.: (+351) 21 393 5800 • Fax: (+351) 21 396 3358
Email: [email protected] • www.flad.pt
Paralelo
DIRECTORa: Maria de Lurdes Rodrigues
EDITORA: Sara Pina
coordenadora: Paula Vicente
Colaboram neste número: Allan J. Katz, Álvaro
Rosendo, Ana Curtinhal, Ana Maria Silva, Ana
Marques Gastão, António Rendas, Carla Maia
de Almeida, Carla Martins, Carlos Leone, Clara
Pinto Caldeira, Claudia Colla, Catarina Martins,
Cátia Soares, Charles Buchanan, E. Mujal­‑Leon,
Eduardo Pereira Correia, Fábio Rodrigues, Isabel
Marques da Silva, Isabel Nery, Isabel Carreto,
João Miranda, José Carlos Carvalho, Luís Patrão,
Kathleen Gomes, Manuel Silva Pereira, Maria de
Lurdes Rodrigues, Marina Almeida, Marta Rocha,
Mónica Carvalho, Patrícia Fonseca, Paula Vicente,
Pedro Faro, Raquel Duque, Raquel Ubach
Trindade, Rui Boavista Marques, Rui Ochôa, Sara
Pina, Sandra Pereira, Susana Almeida Ribeiro,
Susana Brito, Susana Neves, Vanessa Rodrigues
Design: José Brandão | Susana Brito [Atelier B2]
Revisão: António Martins
Impressão: www.textype.pt
tiragem: 3000 exemplares
NIF: 501 526 307
Nº de Registo na ERC: 125
Periodicidade: semestral
563
[email protected]
Depósito legal: 269 114/07
ISSN 1646­‑883X
© Copyright: Fundação Luso­‑Americana
para o Desenvolvimento
Todos os direitos reservados
2
Caro leitor
O
s dez anos passados sobre o 11 de Setembro de 2001 foram
intensamente relembrados nos Estados Unidos e testemunhados
pelos jornalistas do programa “José Rodrigues Miguéis 2011”,
da flad. Em Lisboa, organizámos um ciclo de conferências agora publicadas
em livro, pela Almedina, de que damos conta neste número.
Uma das grandes apostas da Fundação foi o lançamento do programa
“Study in Portugal”, em parceria com o Conselho de Reitores das
Universidades Portuguesas (crup), a Agência para o Investimento e Comércio
Externo de Portugal (aicep), o Turismo de Portugal e a Fullbright, que visa
atrair para Portugal mais alunos universitários norte­‑americanos. Cerca de
140 mil estudam fora do seu país e mais de metade escolhe a Europa.
Portugal quer ficar entre os primeiros mais procurados e, por isso, esta
edição é especialmente dedicada ao “Study in Portugal”.
Para o próximo ano, preparamos a realização do III Fórum Roosevelt,
cuja temática será o mar, a sua importância histórica, estratégica e cientí‑
fica. O encontro transatlântico decorrerá entre 27 e 29 de Abril na Horta,
ilha do Faial, com vista privilegiada para a ilha do Pico e a sua montanha,
a mais alta de Portugal, aqui reproduzida por Lucina Ellis, pintora luso­
‑americana que vive na Califórnia. SAra Pina
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
Outono | Inverno
índice
O
2011
53
06
AUMENTAR
NÚMERO
DE
ESTUDANTES
AMERICANOS
EM
DO EDITOR
04 |
Editorial de
Maria de Lurdes Rodrigues
Mobilizar a memória
para construir o futuro
Imagem da
campanha
“10 reasons” por
www.ideia.pt
PORTUGAL
COMPLIMENTARY
COPY
Boas razões para estudar
numa universidade portuguesa
Maria de Lurdes Rodrigues
Mais uma forma de fortalecer
a relação luso-americana
Allan J. Katz
Um contributo importante
para o “Business in Portuguese”
Rui Boavista Marques
Um país para viver,
um país para aprender
Luís Patrão
Programa pioneiro
António Rendas
ESPECIAL
OFERTA
capa
11 de Setembro
Uma década depois
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
14-27 | Ciclo de Conferências
11 de Setembro – Uma década depois
08 | O 11 de Setembro e a
memória colectiva americana
por Kathleen Gomes
12 | Uma década
de terrorismo global
por Patrícia Fonseca
44-49 | Study in Portugal
44 | Boas razões
para estudar numa
universidade portuguesa
48 | Um país para viver,
um país para aprender
por Luís Patrão
por Maria de Lurdes Rodrigues
46 | Mais uma forma de fortalecer
a relação luso‑americana
49 | Programa pioneiro
por António Rendas
por Allan J. Katz
47 | Um contributo importante
para o “Business in Portuguese”
por Rui Boavista Marques
[POLÍTICA]
32 | “Transatlantic Trends” 2011
A Ásia ganha terreno na opinião
pública norte‑americana
por Ana Maria Silva
[Sociedade]
50 | Não há glória sem riscos
Entrevista a Paul Jerde
52 | Perder para ganhar
Entrevista a Michael Fernandez
53 | Antes oportunidades
que dinheiro
Entrevista a Mario Calderini
por Sara Pina
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
3
editorial
Mobilizar a memória
para construir o futuro
maria de lurdes rodrigues
1. Quando se assinalam dez anos sobre o 11
de Setembro de 2001, a flad não podia deixar
de participar no vasto movimento de mobili‑
zação da memória sobre os acontecimentos
daquele dia, bem como nas múltiplas activi‑
dades de debate e reflexão que, a propósito,
permitiram lembrar e celebrar os valores da
liberdade, da razão e do universalismo. Estes
valores, premissas fundamentais da democracia,
foram ameaçados tanto pelos atentados como
pelas leituras que destes foram feitas como
tempo como de orientações convergentes que
permitem a construção de um futuro comum.
As percepções partilhadas em matérias como
o papel dos eua na liderança das relações tran‑
satlânticas, a evolução da construção da ue, as
dinâmicas da crise económica e financeira
internacional e as relações com as economias
emergentes, como a China e o Brasil, consti‑
tuem uma base comum de entendimento, de
partilha de valores e de ambições, que permi‑
tem sustentar a vida democrática para além
das naturais divergências
político­‑ideológicas.
3. Finalmente, a referência
ao novo programa da
Fundação, que designámos
“Estudar em Portugal” [...] O objectivo
por “Estudar em Portugal”.
Trata­‑se de um projecto que
é trazer para Portugal mais alunos
visa apoiar as universidades
que possam beneficiar do muito
portuguesas no esforço de
divulgação e promoção das
de bom que Portugal e as universidades
suas actividades junto dos
portuguesas podem oferecer.
alunos e das famílias norte­
‑americanas. O objectivo é
trazer para Portugal mais
alunos que possam benefi‑
expressão de confronto civilizacional. Mobilizar ciar do muito de bom que Portugal e as uni‑
a memória para lembrar o 11 de Setembro é, versidades portuguesas podem oferecer. A
por essa razão, indispensável para promover o
exportação de serviços de ensino superior é
entendimento dos trágicos acontecimentos que um desafio que enfrentam todas as universi‑
se assinalam. Aprofundar o nosso conhecimen‑ dades do mundo, sobretudo na Europa e nos
to sobre o que se passou, reflectir sobre as eua. Nesse desafio, Portugal pode apresentar­
‑se com recursos específicos, com vantagens
causas e as consequências dos factos é indis‑
pensável para seguir em frente, construindo o únicas, sobretudo as que resultam da sua inclu‑
são no espaço da cplp e as consequentes opor‑
futuro com base em escolhas partilhadas em
lugar do conformismo com o destino que tunidades de acesso a países como Angola,
Cabo Verde, Moçambique e Brasil. O trabalho
outros nos tracem.
a fazer é aproximar os eua e Portugal, apre‑
2. Os resultados de mais uma edição do
“Transatlantic Trends Survey” permitem con‑ sentando as universidades portuguesas e a lín‑
firmar a existência, entre os cidadãos dos dois gua portuguesa como portas abertas ao mundo,
lados do Atlântico, tanto de uma visão comum através das quais se pode ter acesso a mais
oportunidades profissionais.
sobre alguns dos grandes problemas do nosso
‘
’
4
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
REVISTA DE IMPRENSA
por Ana Maria Silva*
Lastro de guerra
e dívida
A realidade
ultrapassou a ficção
“Dez anos depois, os ataques de 11 de Setembro deixaram um
lastro de guerra e dívida. Um estudo do Instituto Watson estima
que até Junho, as duas guerras – Iraque e Afeganistão – custaram
pelo menos 225 mil vidas, entre as quais 6.000 militares dos
EUA e 1.200 aliados. A guerra ao terrorismo, levada a cabo por
George W. Bush, terá uma factura que o Congresso dos EUA
estima ser entre os 3,6 e 4,4 biliões de dólares. Só as despesas
em serviços secretos, responsáveis pela captura de Osama bin
Laden este ano, aumentaram 250% e cerca de 30 mil pessoas
trabalham nos EUA só nos serviços de escuta.”
[ Diário Económico, 7 de Setembro, Lionel Barber ]
“No 11 de Setembro, a realidade ultrapassou a ficção, com
os atentados mais improváveis de sempre, e nos dez anos
seguintes vimos a ficção a querer superar essa realidade, par‑
tindo dela para refletir sobre o que mudou no mundo.
Escritores como os norte­‑ americanos Philip Roth, Don
DeLillo e John Updike, o britânico Ian McEwan ou o portu‑
guês Pedro Guilherme­‑Moreira foram apenas alguns dos que
publicaram romances sobre a realidade excessiva desse dia,
em que uma organização terrorista infligiu aos Estados Unidos
o maior número de vítimas civis da sua história, ao fazer
embater nas torres gémeas do World Trade Center, em Nova
Iorque, e no Pentágono [...].”
[ Lusa, 10 de Setembro ]
Ser muçulmano
nos EUA
“Ser muçulmano nos Estados Unidos naqueles tempos ainda não
era estar sob suspeita – a maior barreira era a da ignorância. Depois
aconteceu o 11 de Setembro. [...] Nenhuma comunidade sofreu
um maior impacto com o 11 de Setembro do que a muçulmana.
Muçulmanos começaram a ser questionados e impedidos de via‑
jar por causa da sua aparência [...] O legado do 11 de Setembro
produziu diferentes reacções dentro da comunidade muçulmana
nos Estados Unidos, estimada em 2,4 milhões de pessoas.”
[ Público, 7 de Setembro, Kathleen Gomes ]
Na América
e no Afeganistão
“Os EUA, especialmente Washington e Nova Iorque, estão
hoje em estado de alerta. Isto após terem sido recebidas infor‑
mações ‘específicas, credíveis mas não confirmadas’ de que a
Al­‑Qaeda estaria a preparar um atentado [...].
‘Cada 11 de Setembro lembra aos afegãos um acontecimen‑
to no qual não desempenharam qualquer papel, mas que
serviu de pretexto ao colonialismo americano para verter o
sangue de milhares de afegãos inocentes e miseráveis’, dis‑
seram os talibãs.”
[ Diário de Notícias, 11 de Setembro, Susana Salvador ]
Obras de arte
destruídas
“Um número significativo de obras de arte [...] perdeu­‑se para
sempre com o colapso do World Trade Center, em resultado dos
atentados do 11 de Setembro, em Nova Iorque, faz domingo dez
anos. [...] Ainda hoje não há certezas sobre a verdadeira dimensão
de obras de arte e documentos históricos que desapareceram para
sempre devido aos atentados. Entre os registos, contam­‑se cartas e
40 mil negativos de fotografias do ex­‑presidente americano John F.
Kennedy.
O World Trade Center acolhia a sede de mais de 400 empresas
e pelo menos 21 bibliotecas com documentos foram destruídas. Na
biblioteca Ferdinand Gallozzi havia uma coleção de documentos
relacionados com o comércio dos Estados Unidos desde 1840.”
[ Lusa, 9 de Setembro ]
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
O mundo mudou
“Que o mundo mudou desde o 11 de Setembro de 2001 é
praticamente indiscutível. O ataque às Torres Gémeas em Nova
Iorque pela Al­‑Qaeda veio transformar conceitos, opiniões e
a década seguinte, que se concluiu este fim­‑de­‑semana. Os
ataques empurraram os EUA para duas guerras, para uma crise
financeira que a potência nunca tinha vivido, e hoje pode
arriscar­‑se a afirmação de que o país já não é hegemónico
como até 2001.”
[ Jornal i, 10 de Setembro, Joana Azevedo Viana ]
5
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
EUA mais fortes
Bush e Obama
“Dez anos depois dos atentados de 11 de Setembro o mundo
está ‘mais seguro’ e os Estados Unidos são um país ‘mais forte’,
disse hoje o embaixador norte­‑americano em Portugal, Allan
J. Katz. Falando num encontro com jornalistas sobre o 10.º
aniversário dos atentados, que se cumpre no domingo,
o diplomata disse pensar que ‘o mundo está mais seguro’
atualmente.”
[ Lusa, 6 de Setembro ]
“George W. Bush e Barack Obama encerraram ontem juntos
a primeira década marcada pelos atentados do 11 de Setembro.
[...] o antigo e actual presidentes dos eua passearam pelo memo‑
rial às vítimas dos ataques, com ar de pesar. [...] Juntos, numa
aparição inédita em Nova Iorque, o homem que levou os norte­
‑americanos para a guerra no Afeganistão e no Iraque, e o que
promete tirá­‑los de lá [...].”
[ Diário de Notícias, 12 de Setembro, Patrícia Viegas ]
Catarse colectiva
“Estamos atentos e vemos gente de mapa na mão. Há con‑
tingente policial, operações stop, raio­‑x nas principais estações
de metro de Nova Iorque, ruas interditas, militares de armas,
caixotes do lixo inspeccionados. Há sirenes, buzinas, passos
apressados, turistas e gente de cá, ao redor do novo centro
de negócios de Manhattan. [...] E hoje é ‘dia de caridade’,
lê­‑se no cartaz nas costas do Ground Zero, onde o Memorial
9/11 abre portas, numa cerimónia privada [...].
É a memória com a onomástica do mundo: 2983 nomes,
geometricamente gravados em bronze – há, pelo menos, 1100
ainda por identificar. [...] O 11 de Setembro é, por isso, uma
catarse colectiva: hoje somos todos nova­‑iorquinos.”
[ Diário de Notícias, 11 de Setembro, Vanessa Rodrigues
– nos EUA pelo programa “José Rodrigues Miguéis” da FLAD ]
Nascimento
de uma geração
“A administração americana afirma que os ataques marcaram
‘o nascimento de uma geração’. Os EUA acreditam ter saído mais
fortes e unidos do que nunca dos atentados terroristas que atin‑
giram Nova Iorque e Washington no dia 11 de Setembro de
2001. [...] ‘Posso dizer, sem receio de contradições ou de ser
acusado de exagero, que a geração do 11 de Setembro está entre
as melhores que o nosso país jamais produziu. E nasceu aqui
mesmo, nesse dia’, disse Joe Biden.”
[ Diário Económico, 12 de Setembro, Pedro Duarte ]
Cerimónia
no Pentágono
Estratégia revisionista
O mundo não mudou a 11 de Setembro de 2001. Ele mudou
em 1989 e 1991, com a queda do muro de Berlim e a implo‑
são da União Soviética. [...] Todavia, a América mudou a 11
de Setembro de 2001. Alterou­‑se a sua perspectiva de segu‑
rança e a sua política externa. [...] Assistiu­‑se então a uma
mudança de fundo na política externa da América, com a
passagem de uma estratégia conservadora [...] para uma estra‑
tégica revisionista.”
[ Público, 11 de Setembro, Tiago Moreira de Sá ]
6
“Cerca de 1600 pessoas, incluindo cem sobreviventes ao aten‑
tado, estiveram na cerimónia, que inclui a exibição de uma
enorme bandeira dos EUA na parede do edifício que sofreu o
embate do avião.
Os dez anos dos atentados do 11 de Setembro foram assi‑
nalados ontem em todo o mundo, de diversas formas. Em
Lisboa, o Presidente Cavaco Silva fez uma declaração na qual
lembrou ‘a necessidade de cooperação internacional face ao
terrorismo’.”
[ Público, 12 de Setembro, Marco Vaza – nos EUA pelo programa “José
Rodrigues Miguéis” da FLAD ]
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
Três locais
emblemáticos
Tributo no
Ground Zero
“No 10.º aniversário do 11 de Setembro de 2001, enquanto a
nação reflectiu sobre as suas perdas, milhares de famílias reuniram­
‑se no novo World Trade Center, na baixa de Manhattan, no
Pentágono e num campo de flores silvestres, na Pensilvânia, para
comemorar quase três mil mortos naquela manhã infame, quan‑
do aviões foram transformados em mísseis e uma nova era de
terrorismo nasceu. O momento central do dia teve lugar no Ground
Zero, onde mais de dez mil membros das famílias das vítimas
[...], reunidos num parque com carvalhos brancos e jardins de
esmeraldas – uma praça estranhamente futurista com árvores pro‑
positadamente espaçadas, passando por um terrenos de cinco
hectares de granitos, rodeado por um terreno baldio de arranha­
‑céus inacabados e guindastes de construção silenciosos.”
[ New York Times, 11 de Setembro, Robert McFadden ]
“Os nomes dos mortos do 11 de Setembro, alguns pronun‑
ciados por crianças que mal têm idade para lembrar as mães
e pais perdidos, ecoaram no Ground Zero no domingo, num
tributo assombrado mas esperançoso, sobre o 10.º aniversário
do ataque terrorista. [...] Familiares das vítimas, chorosos,
entraram num memorial recém­‑inaugurado e colocaram foto‑
grafias e flores ao lado dos nomes gravados em bronze. Obama
e o seu predecessor, George W. Bush, inclinaram a cabeça e
tocaram as inscrições.”
[ Washington Post (Associated Press), 12 de Setembro ]
10 anos de guerra
A superpotência
esgotada
“É difícil decidir se o mundo muda num instante ou se os
grandes momentos históricos são apenas o culminar de um pro‑
cesso longo e profundo que decorre de forma quase invisível. É
difícil determinar se o 11­‑S transformou os Estados Unidos e se
foi o catalisador para um declínio já inevitável. Os 10 anos desde
os ataques confirmaram, em todo o caso, que a grande superpo‑
tência está esgotada. Não só sofre sozinha para continuar a assu‑
mir o seu papel de guardiã dos valores universais defendidos, mas
também perde terreno em concorrência com outras nações, num
novo século que deixa de ser exclusivamente americano.”
[ El País, 11 de Setembro, Antonio Caño ]
Simplicidade, unidade
e devoção
“Simplicidade, unidade, devoção. O décimo aniversário dos
atentados do 11 de Setembro foi marcado por inúmeras come‑
morações, quando o povo norte­‑americano, liderado por Barack
Obama, honrou a memória das cerca de 3.000 pessoas que
morreram em Nova Iorque, Washington e Shanksville, Pensilvânia,
a 11 de Setembro de 2001. [...] Num silêncio surreal, os traba‑
lhos pararam pela manhã e o tráfego foi interrompido nesta área
de Manhattan, Barack Obama tocou os nomes das vítimas gra‑
vados em pedra, antes de cumprimentar os familiares das vítimas
e personalidades. Tomou então a palavra, lendo o Salmo 46, que
afirma ‘Deus é o nosso refúgio e fortaleza’.”
[ Le Monde (Agence France Press e Reuters), 11 de Setembro ]
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
“A América sofre, reflecte. [...] A América parou no domingo
para lembrar o que foi perdido e como a América mudou para
sempre, uma década após quatro aviões sequestrados terem
derrubado as Torres Gémeas de Nova Iorque, aberto o Pentágono
e furado o chão, num campo tranquilo da Pensilvânia.
O aniversário dos ataques terroristas de 11 de Setembro de
2001 proporcionou um momento para fazer um balanço dos
10 anos de guerra e para se preocupar, enquanto ao mesmo
tempo presta homenagem às acções honrosas realizadas não só
nos primeiros momentos após o ataque, mas também nos anos
que se seguiram.”
[ The Wall Street Journal, 12 de Setembro, Michael Howard Saul ]
Memorial 9/11
“Algumas pessoas choravam. Algumas abraçavam­‑se. Outras
olham em silêncio para as piscinas escuras onde as Torres
Gémeas uma vez existiram, à medida que o memorial 09/11
no Ground Zero abriu as suas portas ao público. Cerca de 7.000
pessoas tinham bilhetes para visitar o memorial, que foi inau‑
gurado na segunda­‑feira, e outras 400 mil inscreveram­‑se onli‑
ne para visitar o local nos próximos meses.”
[ Chicago Tribune (Associated Press), 13 de Setembro, Samantha
Gross e Verena Dobnick ]
*LPM
7
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
O 11 de Setembro
e a memória colectiva americana
Do Holocausto ao 11 de Setembro, porque precisamos de memoriais para nos recordarem
acontecimentos trágicos? A memória alguma vez pode ser excessiva?
Por Kathleen Gomes
fotografias Sandra pereira e vanessa rodrigues
no World Trade Center, em Nova Iorque,
inaugurado a 11 de Setembro, no 10.º
aniversário dos ataques.
Os memoriais intersectam a forma como
queremos ser recordados no futuro com
a nossa necessidade de consolo mais ime‑
diata. Eles “dizem mais sobre nós e os
nossos tempos do que sobre os aconteci‑
mentos que é suposto comemorarem”,
afirma Brent Glass.
[Paralelo] Do massacre de Columbine ao 11 de
Setembro, a construção de memoriais parece ser
uma indústria em crescimento nos Estados
Unidos. Porquê?
[Brent Glass] Recordar é um atributo
Sandra Pereira
Brent Glass, director do Museu Nacional
da História Americana em Washington,
faz também parte da Comissão do
Memorial do Voo 93, cujo objectivo foi
construir um memorial em Shanksville,
na Pensilvânia, no local da queda de um
avião sequestrado por terroristas a 11 de
Setembro de 2001. Tal como o memorial
As unidades do Memorial estão posicionadas de maneira a distinguir‑se as que simbolizam as vítimas que estavam no Pentágono das que vinham no avião.
Aquelas em que se lê o nome da vítima e, na mesma linha do olhar, se vê o Pentágono, correspondem às pessoas que se encontravam no edifício.
As que se encontram no sentido oposto, em que para ver o nome da vítima temos o céu como pano de fundo, dizem respeito aos passageiros.
8
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
11 DE SETEMBRO
humano. É o que nos define, de certo
modo, como seres humanos. Para um
indivíduo, a perda de memória é uma
catástrofe. Para uma sociedade, é igual‑
mente importante possuir uma memória
colectiva. E uma forma de fazer isso é
através da memorialização – em que ten‑
tamos captar, reconhecer e homenagear
um acontecimento ou pessoas pelos seus
actos ou pela sua experiência. O que pode
tomar uma variedade de formas: pode
ser uma paisagem, uma estátua, ou algo
mais abstracto.
Já alguma vez visitou o Ground Zero,
em Nova Iorque? Há um posto de bom‑
beiros do outro lado da rua que se far‑
tou de esperar e criou o seu próprio
memorial. Que é bastante figurativo:
vemos os bombeiros a correr para um
edifício, vemos as torres a arder. No dia
em que visitei o local tinha um pai e
um filho ao meu lado, e o rapaz teria
uns oito ou nove anos, portanto não
tinha nascido quando o 11 de Setembro
aconteceu. O pai explicou para que ser‑
via o memorial e o rapaz não parava de
perguntar: “O que os levou a fazer
isto?”; “Porque é que os aviões foram
contra as torres?”; “Porque sequestraram
os aviões?”; “Porque não estavam con‑
tentes com os Estados Unidos?”.
O rapaz não parava de perguntar porquê.
Dei‑me conta de que é isso que temos de
fazer com os nossos museus e centros
interpretativos – responder aos porquês.
E isso é o que os memoriais não fazem
necessariamente. Não têm essa obrigação.
Cabe‑lhes evocar a perda que ocorreu e
têm uma função terapêutica.
[P] Os memoriais são diferentes dos factos his‑
tóricos. São mais sentimentais.
[BG] Sim. Os piores memoriais são aque‑
les que tentam contar uma história. Alguns
dos memoriais do Holocausto no mundo
e nos eua são bastante evocativos sem
apresentarem uma longa narrativa sobre
o que aconteceu. Alguns falharam porque
tentam ser enciclopédicos e contar essa
história.
A mensagem não é necessariamente
objectiva. Aliás, por definição é subjectiva
porque é patrocinada ou por um Estado
ou por um grupo de pessoas que querem
lembrar indivíduos ou um acontecimen‑
to de uma forma particular.
[P] O que é que o memorial do 11 de Setembro,
planeado para o World Trade Center, pretende
comemorar?
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
Vanessa Rodrigues
Uma década depois
“Hidden constellations” assim caracteriza o Memorial do Ground Zero o seu arquitecto Michael Arad.
Os nomes das pessoas foram agrupados em razão das suas relações familiares e de amizade.
‘
[P] É habitual estes memoriais
incorporarem a contagem das
vítimas. Nesse sentido, não
representam uma certa vitimi‑
zação, ou mesmo martírio?
[BG] É uma questão inte‑
ressante porque no
memorial do voo 93 pre‑
ferem usar a palavra
“heróis”. Porque os pas‑
sageiros, ou pelo menos
muitos deles, resistiram e
tentaram impedir os pla‑
nos dos sequestradores.
Talvez tenham tentado recuperar o con‑
trolo do avião – não sabemos exactamen‑
te o que se passou naqueles trinta
minutos, do que deve ter sido puro caos
e puro terror.
Mas em Nova Iorque a história é mais
complexa. Temos os passageiros, temos as
pessoas que estavam a trabalhar nos seus
escritórios, temos as equipas de socorro.
Há pessoas que sobreviveram, há bombei‑
ros que morreram, há pessoas que perde‑
ram a vida sem sequer saber o que lhes
aconteceu.
O Memorial da II Guerra Mundial, em
Washington, é claramente um memorial
aos soldados – que foram para a batalha
sabendo que corriam o risco de morrer,
inteiramente conscientes de estarem a
lutar pelo seu país.
No caso das Torres Gémeas é diferente.
Há pessoas que morreram sem saber a
causa. Tanto quanto conseguiram perce‑
ber, foi um acidente: um avião terá voado
Recordar é um atributo humano.
É o que nos define, de certo modo,
como seres humanos. Para um
indivíduo, a perda de memória
é uma catástrofe. Para uma sociedade,
é igualmente importante possuir
uma memória colectiva.
’
[BG] Acho que a primeira preocupação é
homenagear as pessoas que morreram.
No memorial projectado para o local onde
o voo 93 se despenhou [no mesmo dia],
vamos ter 40 nomes, dos passageiros e da
tripulação que morreram nesse voo. Mas os
nomes dos quatro sequestradores que tam‑
bém morreram não serão incluídos.
É uma questão interessante: O que é que
se faz com os nomes dos terroristas? Como
é que reflectimos a tragédia se não os men‑
cionamos?
É como ir ao Ford’s Theatre em
Washington sem mencionar John Wilkes
Booth [actor que assassinou Lincoln
naquele teatro durante uma representa‑
ção]. Mas parece‑me correcto não men‑
cionar estes indivíduos num memorial
porque não são os homenageados; os
homenageados são as vítimas. Mas um
museu talvez encontrase alguma forma
de apresentar os nomes dos 19 seques‑
tradores.
9
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
acidentalmente em direcção à sua torre,
pelo menos o primeiro.
Suponho que é uma morte diferente.
Parece‑me legítimo perguntar: porque
precisam de um memorial? Há quem acre‑
dite que honrar um ente querido dessa
‘
Os memoriais não terão, em última análise, mais a ver
com as nossas sensibilidades contemporâneas do que
com os acontecimentos dramáticos que evocam?
Sandra Pereira
’
forma proporciona algum alívio, e os
familiares [das vítimas] costumam ter um
papel muito activo nisso.
Quase imediatamente depois da Guerra
Civil – mesmo antes do conflito terminar
– alguns dos combatentes voltaram aos
campos de batalha e começaram a plane‑
ar a construção de memoriais. Existem
mais de 1300 memoriais em Gettysburg.
[P] Até muito recentemente, uma cidade como
Berlim, bombardeada durante a II Guerra
Mundial, não tinha memoriais. Eles pareciam
supérfluos num lugar onde as ruínas da destrui‑
ção ainda são visíveis. Mas na última década
Berlim viu surgir um museu e um memorial
dedicados ao Holocausto. Os memoriais não terão,
em última análise, mais a ver com as nossas
sensibilidades contemporâneas do que com os
acontecimentos dramáticos que evocam?
[BG] Penso que sim. Quando estive em
Portugal recentemente, dei uma conferên‑
cia sobre “Memória Pública nos EUA” em
quatro universidades. Uma estudante pôs
a mão no ar e perguntou: “Não acha que
há demasiadas evocações do Holocausto?”
Ela teria talvez uns 20, 25 anos. Eu respon‑
di que depende do país e da sensibilidade
actual em relação ao impacto do Holocausto
no nosso país ou na nossa comunidade.
Não sei se alguma vez a memória pode
ser excessiva ou se o passado se pode tor‑
nar um fardo e impedir‑nos de seguir em
frente. Mas concordo que [os memoriais]
dizem mais sobre nós e os nossos tempos
do que sobre os acontecimentos que é
suposto comemorarem.
[P] Uma questão que se pode colocar em relação
ao Memorial do 11 de Setembro é a escala.
Apesar de representar menos de três mil pessoas,
ele irá ultrapassar a dimensão de outros memo‑
riais dedicados a milhões de vítimas. O que pensa
sobre isso?
[BG] Bem, é em Nova Iorque, que faz tudo
em grande. Tem de ter uma escala que os
nova‑iorquinos sintam que está de acordo
com a sua identidade. É a maior cidade
do país, uma capital mundial... E há a
questão moral de construir um memorial
ou fazer alguma coisa num local onde
pessoas morreram e onde provavelmente
os seus restos ainda se encontram. Sei que
isso é uma questão na Pensilvânia.
O Memorial do Pentágono é constituído por 184 unidades: uma por vítima, com o seu nome.
Passageiros e pessoas no edifício do Pentágono morreram na sequência da queda do avião,
do voo 77 da American Airlines, às 9h37 de 11 de Setembro de 2001.
10
[P] Para muitos familiares, aquele é o seu
cemitério.
[BG] Exacto. Apesar de terem encontrado e
identificado restos humanos, acho que só
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
marido ou a mulher, mas é
mais complicado quando o
parentesco é mais distante.
Mas sim, esse é o público
principal.
No caso de Nova Iorque,
em que tem quase três mil
mortos, não vai ser possível
um consenso. Mesmo em
Shanksville não houve con‑
senso total em relação ao
design do memorial. O avião
caiu num terreno onde em
tempos existiu uma mina de
carvão e apesar de a paisa‑
gem ter sido restaurada, o
local ainda mantinha um
certo declive. O arquitecto do projecto ven‑
cedor aproveitou isso para recomendar um
semicírculo de árvores. Creio que são 40
árvores por cada vítima, portanto, ao todo,
Não sei se alguma vez
a memória pode ser excessiva
ou se o passado se pode tornar
um fardo e impedir‑nos de seguir
em frente. Mas concordo que
[os memoriais] dizem mais
sobre nós e os nossos tempos
do que sobre os acontecimentos
que é suposto comemorarem.
conseguiram identificar um terço das pes‑
soas que morreram em Nova Iorque. Sei
que ainda existe uma polémica em relação
ao cofre onde os restos serão preservados
no local. Há uma inscrição que está pro‑
jectada para a parede junto ao cofre, mas
alguns dos familiares disseram: “Não que‑
remos nada nessa parede porque não que‑
remos que o cofre se torne parte de uma
exposição ou uma atracção turística em que
as pessoas tirem fotografias.”
A Comissão do Memorial do Voo 93
reúne‑se quatro vezes por ano, e em cada
reunião há sempre um grupo de familia‑
res das vítimas que participa e ainda há
muitas lágrimas e muita emoção. O cho‑
que já passou, mas tem sido um processo
de luto prolongado no tempo. Não me
parece que alguma vez tenha fim. Mas
julgo que com o décimo aniversário, em
Setembro, irão sentir que a sua missão foi
cumprida. “OK, fizemos a nossa parte para
lembrar os nossos familiares.”
[P] Falando com nova‑iorquinos, tem‑se a sen‑
sação de que o memorial, em termos individuais,
não é importante para eles. A reconstrução do
World Trade Center, o facto de estarem a reerguer
torres no mesmo local, parece ter um poder sim‑
bólico muito maior para eles. Portanto, a função
do memorial parece ser, sobretudo, a de consolar
as famílias das vítimas.
[BG] Sim, toda gente é muito deferente
para com os familiares porque estão mais
directamente ligados ao acontecimento. Em
relação ao voo 93, que envolve um núme‑
ro de pessoas muito menor, muitas vezes
pergunto‑me: O que é que define se
alguém é ou não um membro da família?
É preciso ter um elo de sangue? Até onde
é que se pode ir – um primo em segundo
grau, uma tia ou um tio? É uma questão
política: quem fala em nome das vítimas?
É fácil se for um filho ou uma filha, o
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
[P] O que aconteceu depois?
[BG] O arquitecto tornou o memorial mais
parecido com um círculo, prolongando
os dois extremos do crescente.
Vanessa Rodrigues
’
serão plantadas 1600 árvores nesse semi‑
círculo. E ele chamou ao memorial “Um
Crescente de União”. E houve uma pessoa
que reagiu imediatamente, dizendo: “Ah‑ha,
isto é um tributo ao islão”. Porque eram
aceres vermelhos e, no Outono, as folhas
ficam vermelhas. Sempre que um avião
sobrevoasse o local, pareceria um crescen‑
te vermelho visto do céu. Isso gerou algu‑
ma controvérsia, e um familiar de uma das
vítimas declarou que nunca aprovaria. As
famílias tinham estado muito unidas até
então e isto foi duro porque queriam que
toda a gente estivesse de acordo.
Sete mil pessoas com bilhete puderam visitar o Memorial do Ground Zero no dia 11 de Setembro
deste ano. Mais de 400 mil compraram bilhetes para os próximos meses.
Glass em Portugal
Guardião da memória. Assim pode ser descrito Brent Glass
que acredita que "a maneira como recordamos o passado
revela muito sobre o presente". Durante a sua primeira visita
a Portugal, Glass partilhou a sua visão da história e experiência
musiológica com curadores e funcionários em Lisboa, Porto,
Coimbra, Madeira e Açores. No seu esforço de gestão da
lembrança e do esquecimento, o planeamento, as parcerias,
a divulgação e o feedback são, segundo Glass, instrumentos
fundamentais nos museus de hoje em dia.
D.R.
‘
11
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
Uma década de terrorismo global
Há dez anos, o mundo tremeu com o impacto
dos aviões contra as Torres Gémeas.
E não mais seria o mesmo, dessa manhã em diante.
TEXTO Patrícia Fonseca INFOGRAFIA Álvaro Rosendo
18
1
2
14
11
5
4
6
23
1 11 de Setembro de 2001
(EUA, Nova Iorque, Washington,
Pensilvânia)
Torres Gémeas – 2752 mortos
Pentágono – 169 mortos
Voo 93 – 44 mortos
2 26 de Outubro de 2001
(EUA, Washington)
George Bush assina o polémico “USA
Patriot Act”, acrónimo para “Uniting
and Strengthening America by Providing
Appropriate Tools Required to Intercept
and Obstruct Terrorism”, que retira
muitos direitos aos cidadãos, em nome
da luta contra o terrorismo
O Grupo Salafista para a Pregação
e Combate decide unir esforços com
a organização de Bin Laden, passando
oficialmente a designar-se por Al-Qaeda
do Magrebe Islâmico a partir de 2007
3 7 de Outubro de 2001
6 11 de Abril de 2002 (Tunísia)
(Afeganistão)
A invasão do Afeganistão, realizada
à revelia das Nações Unidas, marca
o início da guerra declarada pelo Governo
Bush contra o terrorismo global
4 2002 (Guantánamo)
Os primeiros prisioneiros da guerra
no Afeganistão são levados para a prisão
de Guantánamo, em Cuba. Outras prisões,
algumas geridas pela CIA e com
localizações secretas, são usadas para
interrogar suspeitos de terrorismo,
um pouco por todo o mundo
1
12
Sublinhados a amarelo os atentados
atribuídos à Al-Qaeda
5 2002 (Argélia)
Um bombista suicida-se na sinagoga
de Ghriba, em Djerba, matando
21 pessoas (14 alemães)
7 12 de Outubro de 2002
(Indonésia, Bali)
Um carro-bomba e um bombista suicida
lançam o caos em Bali, matando
202 pessoas (164 eram turistas
estrangeiros). O ataque foi atribuído
a um grupo radical islâmico com ligações
à Al-Qaeda
8 28 de Novembro de 2002
(Quénia)
Um suicida faz-se explodir num hotel
de Mombaça que alojava um grupo
de israelitas, matando 18 pessoas
9 20 de Março de 2003 (Iraque)
Aviões norte-americanos iniciam
os bombardeamentos sobre Bagdade,
enquanto forças britânicas ocupam
o Sul do país regido por Saddam Hussein.
O Iraque que, com o Irão e a Coreia
do Norte, constituía o que Bush designava
como “Eixo do Mal”, era atacado
por alegadamente possuir armas
de destruição maciça
10 12 de Maio de 2003
(Arábia Saudita)
Um triplo atentado provoca 35 mortes,
numa zona residencial de Riade
11 16 de Maio de 2003 (Marrocos)
Quatro bombistas suicidas matam
33 pessoas em Casablanca
12 15 e 20 de Novembro de 2003
(Turquia)
Quatro carros-bomba explodem
em Istambul junto a duas sinagogas,
ao consulado britânico e ao banco inglês
HSBC, provocando 63 mortos, entre eles
o cônsul-geral britânico
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
Revolução a bordo
Os atentados de 11 de Setembro alteraram radicalmente as regras de segurança da aviação mundial
Facas proibidas
Todos descalços
Set 2001 Os passageiros passam
a ter de comparecer com três horas
de antecedência no aeroporto, para
voos internacionais. Os canivetes
suíços ficam proibidos, e até os
isqueiros e os corta-unhas passam
a ser vistos como armas perigosas
Dez 2001 Após um passageiro
ter conseguido transportar
explosivos nos sapatos, com
a intenção de fazê-los explodir
num voo Paris-Miami, todo
o calçado passa ser
vistoriado ao raio-x
Lista negra
Líquidos banidos
Set 2004 Os EUA analisam
os dados biométricos dos
passageiros e instituem uma
No-fly list com milhares de
nomes suspeitos de ligações
terroristas (o que gera
inúmeros mal-entendidos)
Nov 2006 Um atentado
frustrado, usando uma
combinação de líquidos para
criar uma bomba a bordo,
levou à proibição quase total
do transporte de líquidos
na bagagem de mão
Fontes TSA - Transportation Security Administration (USA); EASA/European Aviation Safety Agency
12
15
22
9
13
10
16
21
3
25
26
19
17
24
8
7
13 2004 (Iraque)
18 7 de Julho de 2005
Uma série chocante de fotografias
é publicada, revelando que militares
norte-americanos praticavam actos
de tortura na prisão de Abu Ghraib
(Reino Unido, Londres)
A Al-Qaeda consegue fazer explodir
três bombas na rede de metropolitano
de Londres, matando 52 pessoas
14 11 de Março de 2004
19 23 de Julho de 2005 (Egipto)
Uma série de atentados suicidas contra
locais turísticos de Sharm el-Sheikh causa
68 mortos
(Espanha, Madrid)
A Al-Qaeda reivindica os atentados
coordenados a comboios das cercanias
de Madrid, que matam 191 pessoas
15 8 de Outubro de 2004 (Egipto)
20 1 de Outubro de 2005
Três atentados em locais turísticos
da península do Sinai fazem 34 mortos
(Indonésia, Bali)
Três bombistas suicidas fazem mais
23 mortos em Bali
16 6 de Dezembro de 2004
21 9 de Novembro de 2005
(Arábia Saudita)
O consulado dos EUA em Jeddah
é atacado: nove mortos
17 14 de Fevereiro de 2005
(Filipinas)
No mesmo dia, três atentados provocam
12 mortes e deixam mais de 130 feridos
em Manila, General Santos e Davao
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
(Jordânia)
A Al-Qaeda reivindica um triplo
atentado suicida contra hotéis em Amã:
60 mortos
22 24 de Abril de 2006 (Egipto)
Três bombistas atacam a zona balnear
de Dahab (mar Vermelho), causando
20 mortos
20
23 11 de Dezembro de 2007
(Argélia)
Argel é abalada por dois atentados
suicidas, reivindicados pela Al-Qaeda
do Magrebe: 62 mortos, entre eles
17 funcionários da ONU
24 17 de Setembro de 2008 (Iémen)
Um atentado com carros-bomba faz
16 mortos na Embaixada dos EUA
em Sanaa
25 20 de Setembro de 2008
(Paquistão)
Um camião explode junto ao hotel
Marriott de Islamabad: 60 mortos
26 1 de Maio de 2011 (Paquistão)
Osama Bin Laden é morto por militares
norte-americanos, em Abbottabad,
no Paquistão. Segundo documentação
encontrada na casa onde se escondia,
estaria a preparar novos atentados
nos EUA para coincidirem com
o 10.º aniversário dos ataques
às Torres Gémeas
13
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
O 11 de Setembro de 2001
analisado dez anos depois
Dez anos após os atentados da Al‑Qaeda aos Estados Unidos é possível uma análise mais clara
destes acontecimentos. Para discutir as repercussões dos atentados não apenas na América,
mas em todo o mundo, a flad organizou um ciclo de cinco conferências intitulado
“10 Anos do 11 de Setembro”, comissariado por Sara Pina.
Por Marta Rocha*
“Propiciar a reflexão e o debate sobre algu‑
mas das grandes temáticas decorrentes dos
atentados terroristas que, de forma tão bru‑
tal, marcaram o início do século xxi”, o
objectivo das conferência sintetizado por
Mário Mesquita, administrador da FLAD.
Outrora the land of the free, os Estados Unidos
assumiram‑se mais tarde como the land of the
powerfull, tendo a implosão formal da União
Soviética em 1991 cimentado esta linha de
pensamento estratégico. A 11 de Setembro
de 2001, e pela primeira vez na sua história,
os Estados Unidos foram surpreendidos e
atacados no seu território continental por
um agente externo, acto que destruiu ine‑
quivocamente a intocabilidade de que os
Estados Unidos pensavam ser detentores e,
tal como Mário Mesquita salientou na pri‑
meira conferência do ciclo, “nos mega‑aten‑
tados dos Estados Unidos, confrontámo‑nos
com o profissionalismo de uma estratégia
minuciosa e cinicamente planificada”.
E não apenas foram atingidos implacavel‑
mente no seu território nacional como o
alvo da mensagem do grupo extremista foi
o coração dos Estados Unidos, o símbolo
do mundo livre e emblema do Ocidente,
Nova Iorque. Contudo, o que concede uma
maior brutalidade e desumanidade aos ata‑
ques, como afirmou Mário Mesquita, foi
“não estarem apenas em causa símbolos,
mas seres humanos”.
Um mundo diferente?
Na primeira conferência do ciclo, o embai‑
xador norte‑americano em Lisboa, Allan J.
Katz, e Francisco Seixas da Costa, embai‑
14
xador português em França e em 2001 Al‑Qaeda e o 11 de Setembro nasceram num
chefe da diplomacia portuguesa nas Nações
estranho caldo de cultura, gerado em mun‑
Unidas, em Nova Iorque, destacaram que
dos por onde perpassava, como constante,
é possível falar num mundo antes do 11
um permanente discurso anti‑israelita, aliás
de Setembro e num mundo pós‑11 de o único verdadeiro cimento de ilusória
Setembro.
união dentro do mundo árabe”. Após deli‑
O embaixador nor‑
te‑americano referiu‑se ao
11 de Setembro “como o
A 11 de Setembro de 2001,
tipo de momento que
e pela primeira vez na sua história,
todas as nações têm, um
momento seminal, um
os Estados Unidos foram
momento a partir do qual
surpreendidos e atacados no
tudo é diferente”. Na sua
perspectiva, e numa análi‑
seu território continental por um
se de primeiro plano, os
agente externo, acto que destruiu
atentados terroristas opera‑
ram um muito necessário
inequivocamente a intocabilidade
wake up call para os nor‑
de que os Estados Unidos
te‑americanos, um ganho
de consciência de que “não
pensavam ser detentores.
resta mais nenhum lugar
no mundo onde a acção de
pessoas determinadas em destruir possa ser near o mapa no qual surgiram os atentados
impedida”.
terroristas, considerou essencial destacar que
Francisco Seixas da Costa focou a sua aná‑ o “11 de Setembro acabou por ser um teste
lise inicial na conjuntura internacional que positivo à unidade de princípios estratégicos
motivou os atentados terroristas, frisando em que assenta o mundo transatlântico”,
que “esse acto havia tido lugar porque exis‑
uma vez que originou de imediato “uma
tia um contexto internacional, perante o
reacção muito alargada e solidária na luta
qual os Estados Unidos eram vistos, em lar‑ contra o terrorismo”.
gos sectores do mundo árabe e não só, como
muito complacentes com a política seguida
por Israel face aos territórios e aos direitos O sentido do conceito
dos palestinianos”, o que justifica o aplauso
de guerra contra o terrorismo
com que estes actos terroristas foram aco‑
Mitchell Cohen, politólogo norte‑ameri‑
lhidos em algumas zonas da “rua árabe”. O cano e antigo editor da revista Dissent, e
embaixador Seixas da Costa realçou que “a
Nuno Severiano Teixeira, professor de
‘
’
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
11 DE SETEMBRO
RUI OCHÔA
Uma década depois
O Grémio Literário abriu as portas ao público para as conferências sobre os dez anos do 11 de Setembro.
Muita assistência, entre a qual estudantes universitários, encheu o seu salão nobre.
Ciência Política e Relações Internacionais
na Universidade Nova de Lisboa e antigo
ministro da Administração Interna e da
Defesa, debateram, na segunda conferên‑
cia do ciclo, a nova concepção estratégica
implementada por George W. Bush (Global
War on Terrorism), o seu impacto nas políti‑
cas assumidas pelos eua desde os atenta‑
dos bem como as soluções encontradas
para o combate ao terrorismo nos dife‑
rentes contextos governamentais. Foi dis‑
cutida a percepção da segurança como um
fenómeno global que exige medidas,
estratégias e políticas articuladas entre
países e a natureza do terrorismo contem‑
porâneo, cuja principal dissemelhança em
relação ao dito terrorismo tradicional se
prende com o alvo dos ataques civis.
Mitchell Cohen analisou o conceito ino‑
vador introduzido por George W. Bush
(Global War on Terror) que consistia generi‑
camente numa guerra contra “grupos
terroristas de alcance global e os seus aju‑
dantes”.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
Já Nuno Severiano Teixeira referiu que
com o 11 de Setembro teve a confirma‑
ção da sua percepção de que “a segu‑
rança, a natureza da segurança tinha
mudado e era absolutamente global”. A
sua intervenção deu especial atenção ao
eixo segurança/liberdade e à relação
conflitual, porém inalienável, entre estes
dois conceitos uma vez que “o terroris‑
mo neste modelo transnacional levanta
problemas entre os valores fundamentais
das sociedades democráticas, dois dos
valores fundamentais das sociedades
democráticas, que são a liberdade e a
segurança […] esta relação entre a liber‑
dade e a segurança depois do 11 de
Setembro alterou‑se e a questão é que
para garantir a segurança, que é um
direito fundamental de todos os cida‑
dãos, se calhar, houve que […] transigir,
modelar alguns dos direitos, liberdades
e garantias que são também eles pró‑
prios constitutivos de uma sociedade
democrática”.
No Afeganistão
e no Iraque
A terceira conferência contou com a pre‑
sença de Carlos Gaspar, do Instituto
Português de Relações Internacionais
(ipri), do general Loureiro dos Santos e
de François Lafond, do German Marshall
Fund (gmf). O principal tópico em dis‑
cussão foi o presente e o futuro do
Afeganistão e do Iraque, nomeadamente
o seu protagonismo na política interna‑
cional, que se constitui como um dos
temas principais da agenda da ordem e
da estabilidade da política mundial, bem
como as mudanças e as implicações na
governação destes dois países. Os orado‑
res procederam a uma análise da justifi‑
cação dos eua das estratégias militares
adoptadas e da invasão do Afeganistão e
do Iraque. François Lafond debruçou‑se
ainda sobre a dificuldade de os países
democráticos desenvolverem e operacio‑
nalizarem estratégias democráticas para
travar o terrorismo.
15
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
RUI OCHÔA
‘
“Fazer prevalecer o diálogo, a reflexão e o pensamento lógico sobre a irracionalidade das acções
violentas” – Maria de Lurdes Rodrigues, presidente da FLAD, com Sara Pina (FLAD) e Walter Dean
(jornalista) e Adelino Gomes (jornalista), da esquerda para a direita.
Carlos Gaspar afirmou que os Estados
Unidos da América “estiveram concen‑
trados numa questão relativamente
secundária e presos em duas guerras peri‑
féricas” o que correspondeu a “um perí‑
odo atípico na política externa
norte‑americana que se pode resumir em
três palavras: GWOT (Global War on Terrorism),
Afeganistão e Iraque”. Sob as repercus‑
sões destas duas guerras, salientou que
“a invasão do Iraque provocou a pior
crise da história da nato e as dificulda‑
des de missão da Aliança Atlântica no
Afeganistão prolongaram as tensões entre
os Aliados nos anos seguintes”.
O general Loureiro dos Santos abordou
essencialmente o desenvolvimento das
duas guerras que sucederam o 11 de
Setembro assim como as estratégias mili‑
tares “notáveis” arquitectadas pela
Administração Bush nos dois palcos de
guerra no Médio Oriente. O caso da
invasão do Afeganistão, país onde se loca‑
lizava a Al‑Qaeda, constituiu a resposta
imediata aos ataques, acto que foi pela
primeira vez reconhecido pelas Nações
Unidas como legítimo quando declarou
que “se aplicava à situação o artigo 5.º do
tratado fundador”.
Uma das principais reflexões de François
Lafond, do German Marshall Fund, foi
“que é sempre difícil para as democracias
encontrar as soluções correctas contra os
terroristas de uma forma democrática”, o
que nos coloca a questão de “Como é que
devemos reagir face a pessoas que estão a
16
utilizar ferramentas não democráticas se
queremos continuar a agir de uma forma
democrática?”.
Civilizações, ideologias
e religiões
O modo como a religião e as ideologias
fundamentalistas estão associadas à géne‑
se dos atentados, a influência das crenças
religiosas nas questões políticas e a rele‑
vância da fé no contexto social do mundo
ocidental em comparação com o mundo
árabe e islâmico foi uma temática explo‑
rada pelo reverendo Kevin Madigan, padre
católico da capela do Ground Zero,
António Dias Farinha, professor de estudos
árabes, e Esther Mucznik, responsável da
comunidade israelita em Lisboa.
O padre António Rego presidiu à con‑
ferência e alertou que “A 10 anos do 11
de Setembro temos uma carga invulgar de
imagens e emoções” o que torna “difícil
perceber e aprofundar uma reflexão sere‑
na sobre o lugar das civilizações, ideolo‑
gias e religiões”.
Kevin Madigan referiu que o ataque às
Torres Gémeas em Nova Iorque para os
terroristas “não foi apenas um ataque a
um símbolo do poder americano mas
também o esmagamento de um falso
ídolo, de uma representação blasfémica
de uma Meca de comércio”. Relativamente à
sua experiência pessoal na manhã de 11
de Setembro de 2001, o reverendo contou
que após o choque inicial nas ruas da
“É sempre difícil para
as democracias encontrar
as soluções correctas
contra os terroristas de
uma forma democrática”,
o que nos coloca
a questão de “Como é
que devemos reagir face
a pessoas que estão a
utilizar ferramentas não
democráticas se queremos
continuar a agir de uma
forma democrática?”.
’
François Lafond, German Marshall Fund (gmf)
cidade que nunca dorme, a sua atenção
focou‑se em “procurar os feridos a fim
de ser de alguma ajuda”.
António Dias Farinha frisou que os aten‑
tados do 11 de Setembro exigem “uma
análise da ideologia desse grupo [da
Al‑Qaeda] e o entendimento dos pressu‑
postos que levaram à sua larga aceitação
em lugares e países muito diversos e à
programação de numerosos atentados”.
Porém, é fundamental não homogeneizar
o mundo árabe como uma amálgama de
fundamentalistas radicais adeptos de atro‑
cidades como a perpetrada pelo grupo
terrorista dirigido por Bin Laden.
Esther Mucznik pensa que “o mundo
muçulmano foi a principal vítima do 11
de Setembro e de Bin Laden”, uma vez
que “o terrorismo causou um imenso
desgaste da imagem do mundo islâmico
que se reflecte no medo e na rejeição de
que é frequentemente alvo”.
Na comunicação social
e na opinião pública
O ciclo foi encerrado com Abderrahim
Foukara, director da Al Jazeera em
Washington, Wally Dean, do Committee
of Concerned Journalists, e Adelino
Gomes, professor e jornalista, que deba‑
teram a cobertura mediática e o impacto
do 11 de Setembro na opinião pública.
Maria de Lurdes Rodrigues, presidente
da flad, reiterou o empenho da Fundação,
que este ciclo de conferências sobre os
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
atentados do 11 de Setembro manifesta, nas a cores”. Até o jornal desportivo Record
“de fazer prevalecer o diálogo, a reflexão assinalou no seu editorial “a urgência de
e o pensamento lógico, sobre a irraciona‑ construir um mundo mais justo e de
lidade de acções violentas”.
distribuir melhor a riqueza” como forma
Abderrahim Foukara tocou num ponto de evitar “o desespero”. A cobertura
sensível ao referir não ter a certeza em mediática foi intensa nos meios televisi‑
concordar com quem frequentemente vos com, por exemplo, a rtp a prolongar
afirma que “os ataques de 11 de Setembro “o seu noticiário da hora de almoço até
mudaram o mundo irrevogavelmente”, ao jornal da hora de jantar… 7 horas,
uma vez que “muitos dos problemas do 59 minutos e 52 segundos”.
mundo continuam na mesma se não fica‑
* Aluna finalista do Curso de Ciências da Comunicação
ram ainda piores”.
Wally Dean afirmou que “o jornalismo da Universidade Nova e estagiária da FLAD para a área da
alterou‑se dramaticamente na última déca‑ Comunicação
da […] mas acredito que essa
alteração se deve a forças
muito maiores e que ocorreria
independentemente dos ata‑
ques do 11 de Setembro”.
A Al‑Qaeda e o 11 de Setembro
Adelino Gomes referiu a
nasceram num estranho caldo
extensiva cobertura mediáti‑
ca dada aos acontecimentos
de cultura, gerado em mundos
nos jornais portugueses, com
por onde perpassava, como
o Público a “cobrir” o tema na
primeira página “entre 12 de
constante, um permanente
Setembro e 30 de Dezembro”,
discurso anti‑israelita, aliás o único
e com a decisão da Visão de
“fazer capa semana após
verdadeiro cimento de ilusória
semana, durante três meses
união dentro do mundo árabe.
ininterruptos – 14 semanas”,
e com o Correio da Manhã a
Seixas da Costa, embaixador
fazer “uma edição especial
logo no dia 11, com 16 pági‑
‘
RUI OCHÔA
’
11 de Setembro
Dez anos depois em livro
Textos dos vários especialistas que
participaram nestas conferências da FLAD
foram publicados em livro pela Almedina
e apresentados nos seguintes capítulos:
11 de Setembro: um mundo diferente?
• Mário Mesquita
Arcaísmo fundamentalista e modernidade
tecnológica
• Allan J. Katz
Um mundo diferente
• Francisco Seixas da Costa
O 11 de Setembro na história
contemporânea
O SENTIDO DO CONCEITO DE GUERRA
CONTRA O TERRORISMO
• Mitchell Cohen
A guerra contra o terrorismo
• Nuno Severiano Teixeira
O terrorismo transnacional
AFEGANISTÃO E IRAQUE
• Carlos Gaspar
Dez anos depois
• José Loureiro dos Santos
•
Os Estados Unidos e as duas guerras
do Afeganistão
François Lafond
Democracia e terrorismo
CIVILIZAÇÕES, IDEOLOGIAS E RELIGIÕES
• António Rego
•
•
•
Elementos comuns na procura
do transcendente
António Dias Farinha
A evolução política do moderno islão
Esther Mucznik
O 11 de Setembro e o “choque
de civilizações”
Kevin Madigan
Uma voz da rua
OPINIÃO PÚBLICA
E COMUNICAÇÃO SOCIAL
• Maria de Lurdes Rodrigues
•
•
Na discussão do tema “11 de Setembro: Um mundo diferente”. Na primeira fila, da esquerda
para a direita, o embaixador António Monteiro e o presidente do Grémio, José Macedo e Cunha.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
Fazer prevalecer o diálogo
Abderrahim Foukara
Um património civilizacional comum
Adelino Gomes
11 de Setembro revisitado
• Walter C. Dean
O 11 de Setembro mudou o jornalismo
norte‑americano?
17
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
[
visto pelos estudantes universitários
]
Todas as conferências organizadas pela FLAD no âmbito dos dez anos do 11 de Setembro foram participadas por alunos de várias
universidades portuguesas que fizeram trabalhos sobre o tema. Os melhores textos são publicados nas páginas seguintes.
Um mundo diferente
“Todos os países têm um momento em que tudo passa a ser diferente.”
Por Fábio Rodrigues e João Miranda*
Quando Allan Katz, embaixador dos
Estados Unidos da América ( EUA) em
Portugal, materializou a sua convicção
sobre o instante que alterou o curso do
seu país, estava longe de imaginar que,
menos de um mês depois, toda a dis‑
cussão em torno do 11 de Setembro
voltaria às primeiras páginas dos jornais,
depois da captura de Bin Laden.
Não que, no entender de Katz, fosse a
Al‑Qaeda, e muito menos o seu líder,
a grande preocupação com que a
Administração Obama lidava naquele
dia. Dez anos são muito tempo. E como
o embaixador fez questão de sublinhar,
o mundo conheceu novas e extasiantes
realidades.
Foi, de resto, esta a ideia que atraves‑
sou toda a discussão que a Fundação
Luso‑Americana levou ao Grémio
Literário de Lisboa, no primeiro de um
ciclo de seis conferências em torno do
décimo aniversário do ataque ao World
Trade Center (wtc) e ao Pentágono.
Mas se o mundo está diferente, tudo se
deve àquele dia de 2001, que apanhou
toda a América de surpresa. “Acreditávamos,
inocentemente, que nada nos podia atin‑
gir”, lembra o embaixador, para quem o
ataque se traduziu num duro despertar
para a questão da segurança global. “Hoje,
não resta um lugar seguro no mundo.”
Na opinião de Katz, tratou‑se de um
despertar difícil com um caminho erran‑
te e, sobretudo, errado. “Antes, íamos
para o aeroporto e não tínhamos que
tirar os sapatos.” Agora tudo se trans‑
formou: “A América tornou‑se um país
preocupado com a segurança de forma
incompatível com os valores‑base da
sociedade.”
18
Fria, aproximar Washington e Moscovo
– Putin consentiu a presença americana
em águas russas –, eles tiveram também
como resultado a fragmentação do apoio
europeu. “A União Europeia estava
expectante e existia ainda uma falta de
eficácia nas relações entre a Europa e os
países árabes, com a falência do Pacto
de Barcelona”, considerada a primeira
tentativa séria de criar um marco insti‑
tucional nas relações entre a União
Europeia e os países árabes.
Para Seixas da Costa, as reper‑
cussões acabaram por fragilizar
“Acreditávamos, inocentemente,
o peso simbólico dos ataques
ao wtc. Por um lado, “o trauma
que nada nos podia atingir”,
do 11 de Setembro foi atenua‑
lembra o embaixador, para
do pela imensidão de mortes
iraquianas e pela violação dos
quem o ataque se traduziu
direitos humanos”; por outro
num duro despertar para
lado, as consequências do con‑
flito revelaram‑se contraditó‑
a questão da segurança global.
rias: “do vazio do Iraque
“Hoje, não resta um lugar
emergiu o Irão”, defende o
embaixador português.
seguro no mundo.”
Para Seixas da Costa, o Irão,
juntamente com a Arábia
Saudita, assumem‑se como o
cerne do que deve ser hoje a
Também na mesa do debate, Seixas da
discussão internacional no plano árabe.
Costa, nessa altura o representante por‑
Com efeito, refere o actual embaixador
tuguês na Assembleia das Nações Unidas
português em Paris, “ninguém ousa ter
( onu) e actual embaixador português
uma palavra sobre a ditadura da Arábia
em Paris, vai mais longe nesta análise.
Saudita, por causa do petróleo”.
Em seu entender, “existia uma postura
Por seu lado, Allan Katz, está mais opti‑
conservadora e agressiva na Administração
mista em relação ao mundo muçulmano.
americana” que rompeu com todo o
Os acontecimentos no Magrebe, no Egipto
plano ocidental até então estabelecido.
e na Síria são uma questão de valores
Se, por um lado, os acontecimentos de
humanos: “Trata‑se de países que escolhe‑
11 de Setembro conseguiram, depois
ram a democracia.” Contudo, alerta para a
de quarenta e quatro anos de Guerra
possibilidade do crescimento dos movi‑
Mas, para o embaixador americano,
a maior inflexão no caminho que os eua
percorreram deu‑se no plano interna‑
cional. Se o ataque ao Afeganistão se
afigurava, então, como “a única respos‑
ta possível”, a Guerra do Iraque derivou
de informações erradas da Administração
republicana. “Com os democratas no
poder, o Iraque não aconteceria, Obama
tentaria uma solução multilateral” –
considerou Allan Katz.
‘
’
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
mentos radicais na zona, uma vez que, para
o embaixador, os eua estão “sobretudo
preocupados com a questão da segurança”.
Movimentos radicais que Seixas da Costa
e Allan Katz são unânimes em considerar
que baseiam toda a sua acção no apoio à
causa palestiniana, no ataque a Israel e, por
arrasto, à complacência norte‑americana.
Mas não se pense que é no islamismo
que reside o núcleo ideológico do extre‑
‘
Na opinião de Katz, “A América tornou‑se um país
preocupado com a segurança de forma incompatível
com os valores‑base da sociedade.”
mismo árabe. Katz faz questão de deixar
isso claro. “A problemática da Mesquita
no Ground Zero é uma discussão infeliz.
Não foi o mundo muçulmano que pro‑
vocou o ataque”, defende o embaixador
americano. Mas acrescenta: “Acreditamos
na liberdade religiosa e somos tolerantes,
mas não em todas as situações.”
* Alunos do 2.º ciclo em Comunicação e Jornalismo,
da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
RUI OCHÔA
’
Para Seixas da Costa (embaixador português em Paris e em 2009 em Nova Iorque) “as repercussões acabaram por fragilizar o peso simbólico
dos ataques ao WTC”. Ao lado de Seixas da Costa, Mário Mesquita (administrador da FLAD) e Allan Katz (embaixador dos EUA em Lisboa).
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
19
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
[
visto pelos estudantes universitários
]
Um novo conceito de terrorismo
Mitchell Cohen, cientista político e antigo co‑editor da revista Dissent,
e Nuno Severiano Teixeira, ministro da Administração Interna de Portugal na altura do ataque
de 11 de Setembro de 2001, foram convidados a reflectir sobre a “guerra ao terror”, dez anos
volvidos sobre esta data. Num debate presidido por Mário Mesquita, membro do Conselho
Executivo da FLAD, e moderado por Abigail Dressel, representante da Embaixada dos EUA.
Por Cátia Soares e Joana Isabel Carreto*
Era terça‑feira, 11 de Setembro de 2001.
A semana começara com o regresso de
milhares de alunos portugueses às aulas.
O País preparava‑se para mais um duelo
entre o S. L. Benfica e o F. C. Porto ainda
no antigo Estádio da Luz. A terceira edição
do polémico “Big Brother” acabara de
estrear na tvi. Havia poucos meses que a
ponte de Entre‑os‑Rios ruíra, fazendo tre‑
mer a Nação e o Governo chefiado por
António Guterres. Em Agosto, um avião
vindo do Canadá aterrara de emergência
no aeroporto das Lajes por falta de com‑
bustível. O País preparava‑se para se des‑
pedir do velhinho escudo e adoptar a
moeda única, efectivando a União
Europeia.
A palavra “recessão” ecoava nos noticiá‑
rios. O mundo estava a mudar.
Em Nova Iorque, o dia 11 de Setembro
amanheceu límpido. Era apenas mais um
dia de trabalho. Mas, para os Estados
Unidos e o resto do mundo, nada mais
seria o mesmo.
Quatro aviões. Duas torres. O Pentágono.
Mais de três mil mortos. Os números não
dizem tudo sobre o horror das imagens
do maior ataque terrorista de sempre,
semelhantes aos efeitos especiais de um
filme de Hollywood. O que estava em
causa era não só as perdas, incalculáveis,
mas também o simbolismo da acção. Em
poucas horas, os ícones económicos, mili‑
tares e políticos da maior potência mun‑
dial foram atacados,
mostrando a sua vul‑
nerabilidade.
Ainda antes do fim
O terrorismo não é um fim em si,
do dia, a autoria dos
mas um meio para atingir outros
atentados foi atribuída
a uma organização de
objectivos, nem sempre claros. [...]
terroristas fundamen‑
E combater um meio não suprime
talistas islamitas,
Al‑Qaeda, personaliza‑
o problema dos fins.
da na figura do seu
líder, Osama bin
2001 – Odisseia no Espaço, a obra de Clarke Laden. Bush declarava uma “guerra ao
e o filme de 1968, preconizaram que este terror” de contornos difusos a um inimi‑
seria o ano do início das viagens turísti‑ go transnacional.
cas espaciais. Apareceu a Wikipedia, o
Uma década volvida, tudo mudou.
primeiro filme de Harry Potter e o Windows Existe um “antes” e um “depois”, uma
XP. Por terras norte‑americanas, George
marca que assinala a vermelho sangue a
W. Bush subira ao poder em Janeiro, após data dos atentados. O líder da Al‑Qaeda
uma disputa polémica que deu mais está morto. Mas a luta contra o terroris‑
votos populares ao candidato Al Gore. mo não tem fim à vista.
‘
’
20
Por não estar prevista, a morte de Bin
Laden veio, de certa forma, boicotar aqui‑
lo que estava delineado – a figura do líder
da Al‑Qaeda e a organização em si torna‑
ram‑se os temas‑chave deste debate.
Mitchell Cohen referiu que o conceito de
terrorismo, tal como o de democracia, é
utilizado indiscriminadamente na actuali‑
dade. O que o distingue de outras formas
de violência (como a guerra ou o crime)
é o facto de qualquer cidadão ser um pos‑
sível alvo. Nuno Severiano Teixeira acres‑
centou que o terrorismo do século xxi visa
“a maximização da capacidade de causar
sofrimento”. O grande impacto das acções
terroristas torna‑as simbólicas e reprodu‑
zidas mediaticamente por todo o mundo,
criando uma atmosfera de terror.
A questão pode enquadrar‑se como
meios e fins. O terrorismo não é um fim
em si, mas um meio para atingir outros
objectivos, nem sempre claros. Até onde
os terroristas estão dispostos a ir e até
onde se torna justificável chegar para
travá­‑los são perguntas cuja resposta não
é consensual entre os governos, entre os
países e entre os cidadãos. E combater um
meio não suprime o problema dos fins.
Nuno Severiano Teixeira considera que
o 11 de Setembro mudou a natureza da
segurança e do terrorismo, globalizando­
‑os. O que a nova noção de terror põe em
causa já não é a disponibilidade para
matar, mas para morrer por parte daque‑
les que se entregam a uma causa, levando
com eles milhares de inocentes. O antigo
ministro remete ainda para a surpresa que
este atentado foi para toda a gente – ele
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
me contornos de mártir, revestindo‑se
de um simbolismo mítico que encoraja
os seus seguidores.
O politólogo alerta ainda para as possí‑
veis represálias que se poderão vir a sen‑
tir, provocadas por uma organização que
promete vingança. Além disso, acentua a
improbabilidade de se saber aquilo que
realmente vai acontecer: “Eles [terroristas]
não me vão ligar!”, afirmou com humor
à pergunta de um dos participantes no
debate, que foi assistido por estudantes
de Ciências da Comunicação e de Ciência
Política da Universidade Nova de Lisboa.
Mas que modelo conceptual deve ser
utilizado para lidar com o terrorismo? Um
modelo criminal, de matriz na justiça, ou
estratégico, fundado na guerra? Estas são
questões que, perante a inevitabilidade do
seguimento da “guerra ao terror”, impor‑
ta pensar e discutir.
Cohen salientou que a abordagem adop‑
tada pelo Presidente Barack Obama pro‑
cura distinguir entre a Al‑Qaeda e o
mundo árabe e islâmico, ao qual “tem
tentado estender a mão”, nomeadamente
no seu célebre discurso no Cairo. Certo é
que a popularidade do Presidente nor‑
te‑americano cresceu vertiginosamente
junto da população nos dias que se segui‑
ram à execução de Bin Laden.
O cientista político alerta, porém, que
as questões internas e a resposta a pos‑
síveis retaliações podem enegrecer o
caminho para a reeleição. Os recentes
acontecimentos e a forma como o
Governo norte‑americano irá lidar com
esta nova forma de terrorismo, global e
organizada em rede, são talvez os desafios
actuais mais determinantes do futuro
político de Barack Obama.
Bin Laden pode estar morto, mas a
Al‑Qaeda continua viva. O principal rosto
da guerra desapareceu e a questão reside
agora nos contornos obscuros desta “guer‑
ra ao terror” com fim indeterminado. Uma
década depois, as perguntas continuam a
ultrapassar largamente as respostas. E, em
Nova Iorque, o vazio deixado pelas duas
torres continua tão visível como naquela
negra manhã de Setembro.
* Alunas do 1.º ano de Ciências da Comunicação da Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
RUI OCHÔA
próprio, quando soube, ainda pensou em
acabar de almoçar antes de responder ao
apelo de António Guterres, então primei‑
ro‑ministro, para que fosse rapidamente
para o Palácio de Belém – pois só após a
visualização das imagens do acontecimen‑
to conseguiu ter noção das repercussões
que, através dele, o mundo iria sofrer.
O terrorismo, fenómeno antigo na his‑
tória da humanidade, exerce‑se agora em
rede, com grande disponibilidade de
meios e alvos indiscriminados. Valores
essenciais são postos em causa, criando
necessidade de articular segurança interna
e externa. Em nome deste valor, algumas
liberdades são sacrificadas num combate
a um inimigo sem rosto.
A morte recente do dirigente da
Al‑Qaeda reveste‑se, para Severiano
Teixeira, fundamentalmente de simbo‑
lismo, pois a estrutura horizontal da
organização confere‑lhe autonomia para
continuar a funcionar. Mitchel Cohen
concordou, considerando, porém, que
os pretendentes ao vazio deixado por
Bin Laden não possuem o carisma do
líder. Depois da morte, a sua figura assu‑
Mitchell Cohen, professor em Nova Iorque, e Nuno Severiano Teixeira, professor na Universidade Nova, participaram na conferência
dedicada ao sentido do conceito de guerra contra o terrorismo.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
21
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
[
visto pelos estudantes universitários
]
Afeganistão e Iraque:
a global war on terrorism
A conferência “11 de Setembro: O Afeganistão e o Iraque”
mostra‑nos como um assunto americano se tornou uma guerra global.
Por Raquel Ubach Trindade*
No Grémio Literário, esteve em debate “11
de Setembro: O Afeganistão e o Iraque”,
em que se pretendeu analisar o presente
e o futuro destes dois países face às guer‑
ras neles travadas.
O general José Loureiro dos Santos, um
dos oradores, caracterizou as duas guerras
sucessivas no Afeganistão e no Iraque
como “consequência directa do ataque do
dia 11 de Setembro”, faseando os desen‑
laces das guerras.
A primeira fase, afirma, inicia‑se com o
lançamento da guerra ao Afeganistão jus‑
tificado pela nato (invocando o artigo
5.º do Tratado de Washington), ao que
acorrem 14 dos 19 aliados da nato com
forças armadas. O general Loureiro dos
Santos, apesar de reconhecer o direito dos
Estados Unidos em contra‑atacar após o
atentado, confessa que “Não houve a habi‑
lidade de malhar o ferro enquanto estava
quente para trabalhar a vontade dos ame‑
ricanos”, enquanto os Estados Unidos
entenderam não ser necessário avançar
com mais forças militares, pois o assunto
estaria resolvido, o exército afegão trei‑
nava. Ainda nesta fase, em 2003, os eua
invadem o Iraque segundo razões que
mais tarde se provaram inexistentes –
armas de destruição maciça e ligações à
Al‑Qaeda – com a intenção de tomarem
uma posição mais central na zona e con‑
trolarem o petróleo. Esta invasão carece
de suporte político uma vez que a nato
fica de pé atrás. Três semanas depois o
regime político iraquiano é baqueado e
surgem insurreições.
22
A segunda fase estabelece um pós‑domí‑
nio político no Afeganistão com a disper‑
são dos talibãs, principalmente para o
Paquistão. O general Loureiro dos Santos
afirma que “as forças americanas estavam
distraídas no Iraque”, não sobrando forças
para enviar para o Afeganistão, o que
resulta no regresso dos talibãs que iniciam
uma política de domínio de territórios e
de actos terroristas. No Iraque, o reforço
das milícias xiitas confere‑lhes um poder
formidável, salientando o general que
“o Estado iraquiano xiitizou‑se com milí‑
cias”, transformando‑se de tal maneira
que o Presidente Bush não tinha possibi‑
lidade de aumentar as forças.
a questão das guerras”. Concluindo a sua
participação nesta conferência, o general
Loureiro dos Santos afirmou que a solu‑
ção do problema no Afeganistão passa
pelo Paquistão.
O orador Carlos Gaspar, do Instituto
Português de Relações Internacionais
(ipri), centrou a sua participação em qua‑
tro palavras, como ele mesmo resume:
Global War on Terrorism. Esta é a política exter‑
na dos norte‑americanos que, defende
Carlos Gaspar, “estiveram os últimos 10
anos presos em questões secundárias”,
pagando o alto preço da política seguida
que se traduziu na crise transatlântica e
numa crise de legitimidade com a oposi‑
ção nas democra‑
cias aliadas à
política americana
– deixaram o
O general José Loureiro dos Santos [...]
campo livre para
uma emergência
caracterizou as duas guerras sucessivas
das novas potências
no Afeganistão e no Iraque como
internacionais.
O papel dos ame‑
“consequência directa do ataque
ricanos face aos
do dia 11 de Setembro”.
atentados de 11 de
Setembro reflec‑
tiu‑se no que Carlos
A terceira e quarta fase englobam a reti‑ Gaspar, citando Philip H. Gordon, carac‑
rada dos norte‑americanos dos países
teriza como “a guerra certa e a guerra
invadidos e o fim da guerra. Estas guer‑ errada”. A guerra certa é vista como a
ras conduziram os eua a um enfraque‑ resposta ao atentado às Torres Gémeas,
cimento natural, tanto militar quanto a guerra contra o terrorismo da Al‑Qaeda.
económico, afirmando o general que A guerra errada é a Guerra do Iraque – linha
“hoje em dia os Estados Unidos gastam que queria democratizar o Médio Oriente.
por mês 10 mil milhões de dólares com
Estes anos atípicos terminam com a eleição
‘
’
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
‘
O assassinato de Bin
Laden tornou possível
A morte política da Al‑Qaeda
uma tripla negociação,
em movimento, com o
e a sua separação dos talibãs deixa
e o Irão, com a
o caminho livre para uma negociação Paquistão
Índia (estabelece relações
importantes com os
directa entre os americanos
Estados Unidos e com o
e os talibãs.
Irão) e em terceiro lugar
com a China (principal
aliado do Paquistão). A
morte política da Al‑Qaeda
e a sua separação dos tali‑
bãs deixa o caminho livre
para uma negociação
presidencial de 2008, confessando Carlos directa entre os americanos e os talibãs.
Gaspar que “a política externa de Obama é
“É difícil para as democracias encon‑
desfazer tudo o que o antecessor fez”. Na trarem uma solução democrática para o
narrativa de Philip H. Gordon a retirada terá
terrorismo que não usa maneiras demo‑
de ser feita mas uma de cada vez: primeiro cráticas de agir”, afirma François Lafond,
o Iraque e depois o Afeganistão.
o terceiro orador desta conferência.
* Estudante do Curso de Comunicação Social e Cultural da
Universidade Católica Portuguesa
RUI OCHÔA
’
Lafond declara também que não se trata
de uma luta entre dois blocos, nem
sequer da conquista de territórios, mas
sim da implantação do sistema capita‑
lista. A responsabilidade da luta contra
o terrorismo não é de um só país –
Sarkozy apoia Obama e segue a mesma
linha de luta contra o terrorismo inter‑
nacional.
A mesa moderada por Rui Vallera, sub‑
director da Fundação, finalizou a confe‑
rência com um espaço para debate em
que se levantaram questões como o con‑
flito israelo‑palestiniano. A sessão presi‑
dida por Rui Machete, ex‑presidente da
flad, terminou com a expectativa das
conferências que se seguiriam no ciclo
em questão.
Da esquerda para a direita: Carlos Gaspar (IPRI), general Loureiro dos Santos, Rui Machete (antigo presidente da FLAD),
François Lafond (German Marshal Fund) e Rui Vallêra (FLAD) discutiram a situação no Afeganistão e no Iraque.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
23
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
[
visto pelos estudantes universitários
]
Deus não se mete em religiões
Por Ana Curtinhal*
e da religião na origem do atentado às
Torres Gémeas.
Esther Mucznik, vice‑presidente da
Comunidade Israelita de Lisboa e fun‑
dadora da Associação Portuguesa de
Estudos Judaicos, iniciou as intervenções
afirmando que “o século xxi começa
com o 11 de Setembro”, tal é a impor‑
tância deste marco. A instrumentalização
da religião, o crescimento de forças fun‑
damentalistas e o extremismo religioso
em que política e religião se fundem
num desfecho de violência, foram as
questões abordadas. “O mundo muçul‑
mano foi a principal vítima do 11 de
Setembro”, comentou, uma vez que a
facção extremista não é representativa
de todo o povo árabe e islâmico. O islão
RUI OCHÔA
Miguel Vaz, subdirector da flad e mode‑
rador do debate, iniciou a sessão dedi‑
cada ao tema “11 de Setembro:
Civilizações, Ideologias e Religiões”. Na
sala ladeada de pesados armários, coro‑
ados com bustos de Eça e Camilo, com
os seus tectos altos e grandes janelas por
onde passava a luz pálida do dia chuvo‑
so, falou‑se do papel do fundamentalismo
Kevin Madigan, padre de uma das capelas do Ground Zero, atingida nos ataques, deixou um relato comovente dos acontecimentos.
Da esquerda para a direita: Miguel Vaz (FLAD), Esther Mucznik (vice‑presidente da Comunidade Israelita de Lisboa), António Rego (cónego),
Kevin Madigan (padre) e António Dias Farinha (professor de Estudos Árabes e Islâmicos).
24
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
11 DE SETEMBRO
RUI OCHÔA
Uma década depois
“O mundo muçulmano foi a principal vítima do 11 de Setembro, já que a facção extremista não é representativa de todo o povo”,
foi uma das ideias em debate nesta conferência.
‘
O islão é compatível com o exercício da democracia,
apontando a Turquia como um caso de sucesso
devido à autonomia da esfera política e à liberdade
Esther Mucznik, Comunidade Israelita de Lisboa
religiosa.
’
é compatível com o exercício da demo‑
cracia, apontando a Turquia como um
caso de sucesso devido à autonomia da
esfera política e à liberdade religiosa.
O exemplo turco também foi mencio‑
nado pelo professor catedrático António
Dias Farinha, director do Instituto de
Estudos Árabes e Islâmicos da
Universidade de Lisboa, no seu apaixo‑
nado enquadramento histórico dos
acontecimentos que culminaram nesse
dia de Setembro de 2001.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
Esta iniciativa contou também com a
presença do católico Kevin Madigan, reve‑
rendo da capela do Ground Zero. O seu
sentido relato dos acontecimentos que
viveu no fatídico dia que mudou o mundo
impressionou a audiência. Recordou epi‑
sódios como o pedido de desculpas de
um médico judeu que rasgou as toalhas
do altar para fazer torniquetes para os
feridos, as pessoas que saíram das suas
casas para acudir e dar água aos feridos,
os “relatórios de finanças e fotografias de
família” que voavam pelo céu, espalhan‑
do‑se pelas ruas. O padre Madigan propôs
um olhar diferente sobre os acontecimen‑
tos: tendo descoberto que o edifício do
World Trade Center, no seu interior, imi‑
tava dois locais em Meca, sugeriu que uma
possível motivação passe por “esmagar um
falso ídolo, uma Meca do comércio”. No
fim, salientou a bondade dos nova‑ior‑
quinos que encontraram “uns nos outros
a sua força”.
A penúltima conferência, que ficou mar‑
cada pelo tom positivo, pela perspectiva
de entendimento e paz, com o Cónego
António Rego questionando se “vale a
pena a distância que nos separa?”, acabou
em tom de brincadeira com uma anedo‑
ta sobre um homem que questiona Deus
sobre qual a religião verdadeira tendo
como resposta: “Não sei, não me meto
em religiões”.
* Aluna do Curso de Ciências da Comunicação e Cultura
da Universidade Lusófona
25
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
[
visto pelos estudantes universitários
]
O atentado visto pela imprensa
Maria de Lurdes Rodrigues, presidente da flad, iniciou a última das cinco conferências
sobre os dez anos do 11 de Setembro sublinhando que este ciclo de debates foi uma forma
de a Fundação “afirmar o seu desejo e a sua vontade de fazer prevalecer o diálogo, a reflexão,
o pensamento lógico sobre a irracionalidade de acções violentas e contribuir para valorizar
as ideias e a razão no debate político e, dessa forma, valorizar a democracia”.
Por Catarina Martins*
O primeiro orador foi Adelino Gomes, que
fez uma breve reflexão sobre a forma
como o campo jornalístico respondeu aos
múltiplos desafios que o mundo enfrentou
desde o 11 de Setembro.
pelas novas tecnologias, mas também à
perda de credibilidade de alguns jornais
e jornalistas. No entanto, e centrando‑se
nos media portugueses, elogiou o traba‑
lho desenvolvido por parte de alguma
imprensa escrita na
cobertura do 11 de
Setembro de 2001.
Publicações como o
Público e a Visão mobi‑
Os meios de comunicação tradicionais
lizaram grande parte
dos seus recursos e
estão a viver “uma crise dramática”,
capacidades para dar
que se deve não apenas às vantagens
ao espaço público
uma multiplicidade
oferecidas pela internet e pelas novas
de olhares sobre o
tecnologias, mas também à perda
que se passava, diz.
Adelino Gomes viu
de credibilidade de alguns jornais
algum desse “fulgor
e jornalistas. Adelino Gomes
jornalístico” na cober‑
tura das revoltas no
mundo árabe, no iní‑
cio deste ano. Mas,
O jornalista referiu que, no campo medi‑
afirma, “depois da queda de Ben Ali, após
ático, “o início e o fim deste ciclo de dez
a demissão de Mubarak e desde o momen‑
anos é delimitado por dois marcos sim‑ to em que Khadafi susteve o avanço dos
bólicos: o ecrã da televisão ao longo rebeldes, deixámos de ter os nossos olhos
daquela terça‑feira, 11 de Setembro de
e ouvidos no terreno”.
2001, e as redes sociais, em particular os
Num momento em que se fala de um
140 caracteres dos tweets de um desconhe‑ “next journalism, um jornalismo por‑
cido cidadão de Abbotabad através dos vir”, Adelino Gomes considera funda‑
quais o mundo soube da operação que mental que os “utilizadores tenham uma
levou à morte de Bin Laden”.
perspectiva crítica” para que as poten‑
Nas suas palavras, os meios de comu‑ cialidades da internet, enquanto força
nicação tradicionais estão a viver “uma transformadora do campo jornalístico,
crise dramática”, que se deve não apenas possam ser usadas. Utilizadores capazes
às vantagens oferecidas pela internet e de exigir um “jornalismo que forneça
‘
’
26
informação testada, investigada, organi‑
zada, confirmada, analisada e apresen‑
tada de forma credível”, conclui.
O 11 DE SETEMBRO MUDOU
A AMÉRICA, MAS NÃO MUDOU
O JORNALISMO AMERICANO
“Terá o 11 de Setembro e as reacções que
se lhe seguiram alterado os processos ou
o conteúdo dos meios de comunicação
noticiosos nos Estados Unidos?” – foi a
pergunta colocada por Wally Dean, jorna‑
lista e director do Committee of Concerned
Journalists. A resposta foi simples: “Nem
por isso.”
O norte‑americano lembrou que o impac‑
to dos atentados terroristas de 2001 na opi‑
nião pública americana é frequentemente
considerado equivalente ao impacto de Pearl
Harbor ou do assassinato de Kennedy.
O ataque japonês à base americana no
Pacífico concentrou as famílias em torno
da rádio. A morte do Presidente deixou o
país colado à televisão e tornou Walter
Cronkite, o célebre pivô da cbs, na pessoa
em quem os americanos mais confiavam.
No entanto, o 11 de Setembro não foi
responsável por nenhuma mudança sig‑
nificativa na forma de fazer jornalismo.
“Forças mais poderosas, incluindo opiniões
acerca daquilo que as audiências querem, e
também o efeito disruptivo das novas tec‑
nologias foram demasiado fortes. O 11 de
Setembro pode ter mudado a América, mas
fez muito pouco para mudar o jornalismo
americano”, afirma Wally Dean.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
ser consideradas simples vírgulas na
História”.
O jornalista considera que, apesar do 11
de Setembro e do debate sobre as suas
causas e consequências, “os seres humanos
têm a oportunidade de pensar sobre o
futuro e voltar à crença de uma herança
civilizacional comum, mesmo numa altu‑
ra em que os sons de tiros e de explosões
os empurrem na direcção oposta”.
O jornalista marroquino expressou a sua
felicidade por estar em Portugal e afirmou
estar convencido de que os povos do
Médio Oriente e do Norte de África res‑
ponsáveis pela “Primavera Árabe” irão
concentrar a sua atenção nas experiências
portuguesa e espanhola de transição para
a democracia.
* Aluna do 2.º ano do curso de Jornalismo da Escola Superior
de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa
‘
Entusiasmado com os
recentes acontecimentos
no mundo árabe,
o jornalista marroquino
[Abderrahim Foukara]
lembra que a região
vive um período único
em que árabes
e não­‑árabes lutam
pela liberdade e pela
dignidade – valores
que os americanos
compreendem bem.
’
RUI OCHÔA
UMA HERANÇA
CIVILIZACIONAL COMUM
Abderrahim Foukara, chefe da delegação
americana da Aljazeera em Washington,
afirmou não estar totalmente convencido
de que o 11 de Setembro tenha mudado
o mundo de forma irrevogável.
Entusiasmado com os recentes aconte‑
cimentos no mundo árabe, o jornalista
marroquino lembra que a região vive um
período único em que árabes e não­‑árabes
lutam pela liberdade e pela dignidade –
valores que os americanos compreendem
bem, afirma.
Para Foukara, “a forma pacífica e cria‑
tiva como milhões de egípcios tentaram
recuperar o controlo do seu destino polí‑
tico e a forma como milhões de ameri‑
canos receberam e celebraram a notícia
da morte de Bin Laden, não podem
No âmbito das conferências foi inaugurada uma exposição, cedida pela Embaixada dos EUA em Lisboa, de edifícios emblemáticos de Nova Iorque.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
27
11 DE SETEMBRO
Uma década depois
Exposição “Transições: Honrar
o Passado, Seguir em Frente”
Obras da Colecção FLAD assinalam o futuro, depois do 11 de Setembro
Inaugurada a 11 de Setembro de 2011, a exposição
“Transições: Honrar o Passado, Seguir em Frente” assinalou dez anos
dos atentados às Torres Gémeas.
RUI OCHÔA
Por ana maria silva*
Abertura da exposição de arte comemorativa promovida pela FLAD em parceria com a Embaixada americana.
Da esquerda para a direita: Maria de Lurdes Rodrigues, presidente da FLAD, Allan Katz, embaixador dos EUA em Portugal, Paulo Portas,
ministro português dos Negócios Estrangeiros, e Luís Santos Ferro, membro da administração da Fundação Arpad Szenes­‑Vieira da Silva.
28
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
11 DE SETEMBRO
“Assinalamos hoje dez anos sobre os
actos terroristas de 11 de Setembro.
Também hoje – com a inauguração da
exposição ‘Transições: Honrar o Passado,
Seguir em Frente’ – prestamos homena‑
gem às vítimas do terrorismo e olhamos
o futuro, resolutos, esperando que a pró‑
xima década seja tão vibrante e cheia de
esperança como as obras de arte que hoje
aqui vão ver.”
Foram estas as primeiras palavras de
Allan Katz, embaixador dos eua em
Portugal, na inauguração da exposição
“Transições: Honrar o Passado, Seguir em
Frente”, que a Embaixada norte‑america‑
na promove em parceria com a Fundação
Luso‑Americana e com a Fundação Arpad
Szenes‑Vieira da Silva (fasvs).
Com o objectivo de assinalar os dez
anos cumpridos desde 11 de Setembro
de 2001, a mostra é composta integral‑
mente por obras da colecção de arte da
flad, entre as quais se encontram obras
de Álvaro Lapa, Fernando Calhau, Joaquim
Bravo e José Pedro Croft, artistas portu‑
gueses, e também do norte‑americano
Joel Shapiro.
Focada no conceito de memória e de
transição, a mostra evoca uma reflexão
sobre as transformações que o mundo
tem atravessado desde o 11 de Setembro
de 2001 – como as pessoas mudaram a
sua forma de estar no mundo e de enca‑
rar o futuro. Assumindo‑se como uma
homenagem ao passado, a exposição
pretende incentivar uma nova forma de
ver o futuro, uma noção reforçada pela
presidente da flad , Maria de Lurdes
Rodrigues: “mobilizar a memória é hoje
indispensável para promover o entendi‑
mento dos trágicos acontecimentos que
se assinalam, condição necessária para
se poder seguir em frente, construindo
um futuro que seja mais do que um
destino.”
Dadas as motivações na génese desta
iniciativa e a carga simbólica da expo‑
sição, a sessão de abertura contou com
a presença de convidados como Paulo
Po r t a s , m i n i s t ro d o s N e g ó c i o s
Estrangeiros, Álvaro Pereira, ministro da
Economia, entre vários outros represen‑
tantes oficiais, cujas intervenções evi‑
denciaram a relevância desta homenagem
e o impacto que o 11 de Setembro
demonstra ter, ainda hoje, na forma
como o mundo se tem governado ao
longo da última década.
Neste contexto, Maria de Lurdes
Rodrigues assinalou esta homenagem
prestada, afirmando ser “uma forma de
celebrar os valores da liberdade e do
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
RUI OCHÔA
Uma década depois
João Silvério, curador da Colecção FLAD, Allan Katz, embaixador dos EUA, e Paula Vicente,
assessora da FLAD, da esquerda para a direita.
‘
Focada no conceito de memória e de transição,
a mostra evoca uma reflexão sobre as transformações
que o mundo tem atravessado desde o 11 de Setembro
de 2001 – como as pessoas mudaram a sua forma
de estar no mundo e de encarar o futuro.
’
universalismo na construção do nosso
mundo comum”. No mesmo sentido,
também Luís dos Santos Ferro, adminis‑
trador da fasvs, reiterou a vertente sim‑
bólica da exposição e, por conseguinte,
da presente data: “Celebramos a vida e
a criação, contra a morte, a violência e
a destruição. A força regeneradora da
arte sobre as cinzas inertes do desastre.
A convivência e a tolerância em liber‑
dade, opostas ao fanatismo e à opressão.
[…] Também a escolha de obras da
Colecção da Fundação Luso‑Americana,
permite conferir à data amarga um
pouco daquela Luz, criadora, limpa e
matinal, da qual a Arte é portadora.”
A exposição inclui um conjunto alar‑
gado de obras da colecção de arte da
flad , da autoria de Joaquim Bravo,
Fernando Calhau, José Pedro Croft, Álvaro
Lapa e Joel Shapiro. A selecção das obras
esteve a cargo de João Silvério, respon‑
sável pela colecção da flad e comissário
da exposição.
* LPM
29
POLÍTICA
Why can't we cross the line?
Apesar de Portugal e os Estados Unidos serem aliados históricos, com uma sólida relação
de amizade que se afirma numa cooperação cada vez mais ampla e diversificada,
é relevante compreender que estamos longe de atingir o vasto potencial de cooperação
ao nível das políticas públicas de segurança.
Por RAQUEL DUQUE* e EDUARDO PEREIRA CORREIA**
A segurança, como bem comum, é divul‑
gada e assegurada através de um conjunto
de convenções sociais, denominadas medi‑
das de segurança. Pese embora diversas
alterações do paradigma de segurança esta‑
belecido desde Vestefália, as políticas de
segurança não podem actualmente ser tidas
em consideração como medidas repressivas,
mas como um sistema integrado e optimi‑
zado ao longo dos anos, envolvendo desde
logo complexos instrumentos de preven‑
ção, justiça e inclusão social. Se admitirmos
então que a ordem pública se baseia num
estado de apaziguamento e tranquilidade
pública, em consonância com a justiça e
as leis que regulam um Estado de direito,
então podemos alcançar um conceito de
segurança pública.
Apesar de, em 1974, Portugal se afirmar
perante o mundo como um Estado em
D.R.
Na última década, o tema central da essên‑
cia dos estados centrou‑se na defesa e na
segurança interna. O poder público dese‑
ja manter o estatuto de Estado protector
uma vez que se tem deparado com o esva‑
ziamento das suas funções, restando pou‑
cas alternativas de se afirmar enquanto
garante da coisa pública, sendo a segurança
um dos pilares mais marcantes da sua
institucionalização.
Surgiram novos conceitos como community policing e problem‑oriented policing, como garantia da necessidade de uma resposta rápida.
30
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
POLÍTICA
processo de consolidação democrática, sobre dois caminhos: o policiamento de
foram precisos vários anos para imple‑ proximidade (de influência gaulesa), e
mentar um verdadeiro espírito democrá‑ o policiamento comunitário (natural dos
tico na estrutura burocrática e nas países anglo‑saxónicos). Porém, proble‑
instituições policiais. Com a adesão à mas materiais como a complexidade dos
Comunidade Económica Europeia em
sistemas informáticos, incompatibilidade
1986, surge a necessidade de o País adap‑ dos sistemas de comunicações, sobrepo‑
tar as forças de segurança às actuais con‑
sição do nível territorial das forças de
dições, de acordo com os novos níveis de
segurança e investigações não comple‑
exigência e de segurança comunitários. mentares continuam a ditar as dificulda‑
Contudo, somente na última década do des entre as duas forças de segurança
século xx, Portugal adopta políticas de (psp/gnr) em Portugal.
segurança verdadeiramente transformado‑
E se foram feitas diversas reestruturações
ras da realidade policial, com mutações na organização das instituições, nomea‑
organizacionais decisivas em relação ao damente ao nível da formação de agentes
que conhecemos hoje enquanto força de e oficiais, esta realidade é contrastante
segurança.
com a realidade norte‑americana, onde os
O modelo policial português é forte‑ concursos públicos são uma raridade,
mente influenciado pelo sistema dualis‑ dando seguimento a uma estratégia com‑
ta francês, caracterizado pela Police provada de contratações em programas
Nationale e Gendarmerie Nationale que abertos quase em permanência (e.g. LAPD
Hiring), e onde os limites de idade de
interagem permanentemente com os res‑
admissão são mais extensos do que os
tantes corpos de segurança. Portugal
adopta, respectivamente, o sistema de verificados em Portugal para pessoal não
uma força de segurança civil (psp) e uma policial.
de car iz militar
(gnr). Não obstante
diversas considera‑
ções sobre o tema, é
Enquanto Portugal enfrentava
vulgarmente aceite
que se este sistema
as dificuldades naturais de
dualista de forças de
transformação do Estado em pleno
segurança é baseado
num princípio de
processo revolucionário democrático,
complementaridade,
os EUA punham em prática alguns
poderá também
exercer um efeito
estudos de concepção das políticas
contrário de compe‑
de segurança.
titividade e sobrepo‑
sição de funções,
atingindo um resul‑
Enquanto Portugal enfrentava as dificul‑
tado contrário ao pretendido. Subjacente
a este sistema acreditou‑se durante mui‑ dades naturais de transformação do Estado
tos anos que uma única força policial em pleno processo revolucionário demo‑
poderia concentrar poderes excessivos e crático, os EUA punham em prática alguns
colocar em causa o regular funcionamen‑ estudos de concepção das políticas de
to das instituições democráticas. Contudo, segurança. Por forma a atravessar diversas
limitações, surgiram novos conceitos
veja‑se, a título de exemplo, o caso da
como community policing e problem‑oriented
Áustria que mantinha até 2005 o sistema
policing, como garantia da necessidade de
dualitário, através de uma complexa rede
policial e que perante a inevitabilidade uma resposta rápida, bem como a adopção
das abundantes disfunções no sistema, de uma atitude policial dirigida também
passou a adoptar em larga medida para os problemas sociais e comunitários
evoluções oriundas do modelo nor‑ e não estritamente de natureza criminal,
te‑americano, apelando à concentração a diversificação de métodos de investiga‑
ção para corrigir problemas recorrentes e
policial.
No caso português, algumas mudanças sobretudo uma forte participação da
têm ocorrido no sentido de reestruturar comunidade na avaliação do papel policial
em programas constantes de apreciação.
as forças de segurança, designadamente
Desde a década de 1980, países como
a actualização das estratégias de seguran‑
os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália
ça. É seguro afirmar que as políticas de
segurança em Portugal tendem a evoluir e alguns países escandinavos, têm desen‑
‘
’
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
volvido programas integrados nas polí‑
ticas públicas de segurança, aplicando‑os
a uma larga escala de problemas de crime
e de desordem pública, procedendo à
transformação das suas organizações.
Estes programas centraram a sua atenção
sobre a avaliação dos problemas, a
importância da análise contínua, o
desenvolvimento de respostas pragmá‑
ticas, e a necessidade de acoplar estra‑
tégicas a outros países.
A adopção do modelo de examinação
dinâmica para desenvolver e avaliar de
forma rigorosa respostas eficazes utili‑
zado na América do Norte ( SARA –
Scanning, Analysis, Response and
Assessment), baseado numa complexa
identificação das consequências do pro‑
blema para a comunidade e para a polí‑
cia, determinando quão frequentemente
o problema ocorre, compreendendo os
eventos e as circunstâncias que precedem
e acompanham o problema, identifican‑
do os dados relevantes e progredindo
numa avaliação e construção de bases de
dados qualitativos e quantitativos dos
objectivos específicos, é actualmente
ignorado pela burocracia das estatísticas
policiais dos países da Europa do Sul.
Esta importante reprovação não se resu‑
me a um problema político ou governa‑
mental situacionista, mas a uma questão
estrutural das dinâmicas de influência e
cooperação interestadual.
Apesar de Portugal e os Estados Unidos
serem aliados históricos, com uma sóli‑
da relação de amizade que se afirma
numa cooperação cada vez mais ampla
e diversificada, é essencial compreender
que estamos longe de atingir o vasto
potencial de cooperação ao nível das
políticas públicas de segurança. Nesse
sentido, é importante ultrapassar a linha
imaginária que nos separa, e reforçar o
diálogo e a cooperação, com base no
Acordo de Defesa e Cooperação assina‑
do em 1995 entre os dois estados, e que
permanece como o enquadramento ins‑
titucional do nosso relacionamento.
Portugal deverá reforçar os laços para lá
do Atlântico, adoptando políticas públi‑
cas de segurança revigoradas, capazes de
responder de forma eficaz aos desafios
e às ameaças que se colocam, hoje, à
segurança interna. Perante estes factos,
subsiste a questão: “Why can’t we cross
the line?”
* Politóloga e investigadora do Observatório Político da
Universidade Nova de Lisboa
** Politólogo, professor universitário no Instituto Superior de
Ciências Policiais e Segurança Interna
31
POLÍTICA
“Transatlantic Trends” 2011
A Ásia ganha terreno
na opinião pública norte‑americana
A Fundação Luso‑Americana divulgou os resultados da edição 2011
do estudo “Transatlantic Trends”, um inquérito mundial que todos os anos dá conta
de como o mundo se vê. O projecto, promovido pelo German Marshall Fund (GMF),
inclui a participação de 14 países e analisa o estado da opinião pública em relação
aos principais temas que marcam a actualidade global.
Por Ana Maria Silva*
Este ano, a divulgação dos resultados con‑
vergiu com as comemorações dos dez anos
do 11 de Setembro, tema incontornável que
desde então passou a integrar o projecto.
A partir de 2002, o estudo “Transatlantic
Trends” incluiu um conjunto de questões
ligadas ao terrorismo e à governação das
várias potências mundiais, numa perspecti‑
va relacionada com a defesa da nação, como
a ameaça e a luta contra o terrorismo.
Pode dizer‑se que as conclusões deste ano
não são polémicas, ainda que o perfil por‑
tuguês nos dê a conhecer alguns números
interessantes do ponto de vista nacional (ver
caixa). De uma forma geral, o que se reve‑
la mais notório nestes resultados são algu‑
mas posições mais acentuadas, e que até
agora não eram tão evidentes de uma pers‑
pectiva global e comparada.
Liderança norte‑americana
De acordo com esta sondagem internacio‑
nal, realizada nos eua, na Turquia e em 12
Estados‑membros da União Europeia (ue)
incluindo Portugal, 54 por cento dos entre‑
vistados dos países da ue querem que os
eua exerçam uma liderança forte no que
diz respeito aos principais temas globais.
De todos os países participantes, o maior
apoio é registado pelos próprios america‑
nos, com 85 por cento dos inquiridos a
manifestarem um claro desejo de lideran‑
ça do seu país. Em conformidade – e no
seguimento do que já se registou em 2010
– a popularidade dos eua permanece ele‑
vada nos dois lados do Atlântico: na ue, 72
por cento dos inquiridos têm uma opinião
favorável dos eua, a par com 83 por cento
dos americanos, mas contra apenas 30 por
cento dos turcos.
32
Neste contexto, os eua, na figura de
Barack Obama, continuam a ter o apoio
da ue, uma vez que 73 por cento dos
entrevistados aprovam a forma como o
Presidente norte‑americano tem gerido a
luta contra o terrorismo internacional: um
valor ao qual se juntam 68 por cento dos
americanos inquiridos, e que revela uma
subida considerável em relação a 2009.
No entanto, é evidente uma grande dife‑
rença transatlântica de opinião quando se
aborda a questão da necessidade da guer‑
ra para obter justiça, um conceito com o
qual concordam 75 por cento dos inqui‑
ridos americanos, em comparação com
apenas 33 por cento dos europeus.
China conquista juventude
norte‑americana
Neste contexto, os eua apresentam agora
uma nova perspectiva face ao panorama
mundial, onde 51 por cento dos inquiridos
afirmam que a Ásia (em particular países
como a China ou o Japão) foram mais rele‑
vantes para os seus interesses nacionais do
que a Europa. Este valor, ainda que numa
maioria pouco significativa, constitui uma
inversão a assinalar na opinião pública nor‑
te‑americana, podendo iniciar alterações de
comportamento ou de importância estraté‑
gica da ue para os eua.
Importa, contudo, afirmar que este favori‑
tismo face aos países asiáticos assenta, essen‑
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
POLÍTICA
cialmente, na juventude norte‑americana;
cerca de três em cada cinco norte‑americanos
(59 por cento), com idades entre os 18 e os
24 anos, têm uma opinião favorável da
China, um valor que é significativamente
mais baixo nos restantes grupos etários (por
exemplo, 33 por cento no grupo etário
45‑54 anos, ou 37 por cento no grupo
55‑64 anos). A mesma diferença em termos
de idade torna‑se tão mais evidente quando
se trata dos interesses nacionais dos eua,
onde os 66 por cento dos jovens (no grupo
18‑24 anos) identificaram os países da Ásia,
como a China, o Japão ou a Coreia do Sul,
como sendo mais importantes do que os
países da ue (17 por cento).
Apesar de tudo, são os europeus que reve‑
lam uma maior tendência para acreditar que
a China é uma oportunidade económica e
não uma ameaça, algo que se inverteu nos
eua, onde 63 por cento dos inquiridos con‑
sideram a China uma ameaça económica e
onde são mais propensos a ver a China como
uma ameaça militar, do que os europeus.
NATO mantém‑se “essencial”
para a segurança transatlântica
No que diz respeito às questões relacionadas
com as políticas de segurança, americanos e
europeus demonstram opiniões muito seme‑
lhantes: 62 por cento dos entrevistados dos
eua e da ue sentem que a nato é essencial,
e 66 por cento consideram que o número
de soldados deve ser reduzido ou pura e
simplesmente anulado no Afeganistão.
Paralelamente destaca‑se, pela primeira vez,
o pessimismo norte‑americano em relação
às perspectivas de estabilização da situação
no Afeganistão (56 por cento), um valor que
na Europa se manteve desde anos anteriores
(66 por cento).
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
Crise económica: redução
da despesa e impacto do euro
Quando se fala da situação económica, as
opiniões são maioritariamente convergentes.
No decorrer das medidas de austeridade
tomadas nos vários países, cerca de 50 por
cento dos entrevistados da ue preferem dimi‑
nuir a despesa, a par de 61 por cento dos
americanos, que demonstram maior tendên‑
cia para a redução do que para qualquer
outra opção.
No caso específico da ue, importa desta‑
car os 67 por cento dos inquiridos que
consideram a adesão à ue como algo “bom
para a economia”, o que já não acontece
quando questionados sobre o impacto do
euro: apenas 40 por cento dos inquiridos
em países da Zona Euro afirma que a moeda
única foi algo de bom para a economia do
seu país. Na esteira destes resultados está
também o descontentamento que os euro‑
peus revelam face à gestão económica dos
seus governos – 56 por cento dos inquiri‑
dos na ue não aprovam.
Da mesma forma, a sondagem demonstra
também os efeitos da crise: 82 por cento dos
americanos afirmam que foram pessoalmen‑
te afectados pela crise económica, o que cor‑
responde a um aumento de sete por cento
face ao ano passado. Por sua vez, a ue apre‑
senta um valor mais reduzido (61 por cento),
revelando estabilidade em relação a 2010.
A capacidade de aferir e analisar anualmen‑
te a opinião pública mundial através do estu‑
do “Transatlantic Trends”, tem permitido aos
especialistas traçar padrões de comportamen‑
to e prever tendências no que diz respeito
às principais linhas estratégicas internacionais
que marcam a actualidade económica, polí‑
tica e social. Neste contexto, e apesar de se
reconhecer que “em ambos os lados do
Atlântico há a consciência de que os eua e
a ue partilham valores comuns fundamen‑
tais”, conforme afirmou Craig Kennedy, do
German Marshall Fund, em comunicado, os
resultados da sondagem em 2011 permitem
assinalar “uma potencial mudança de fundo
nas relações transatlânticas”.
*LPM
Opinião pública portuguesa reforça Obama
As respostas dos cerca de mil inquiridos
portugueses, que integram este estudo
internacional devido à parceria da FLAD,
demonstram, em grande parte, que o País
está em linha com a Europa, apresentando
resultados semelhantes.
No entanto, podem destacar‑se algumas
questões onde Portugal tem valores mais
altos ou mais baixos em relação aos
restantes países que integram a sondagem.
É o caso da aprovação face à gestão de
Obama da política internacional, em que
o nosso país apresenta a percentagem
mais alta entre todos os países inquiridos
– 82 por cento dos portugueses aprovam
a sua actuação nesta matéria. Verifica‑se
a situação em relação à adesão da Turquia
à UE, em que 56 por cento dos portugueses
afirmam que não seria boa nem má, a mais
alta percentagem entre todos os países,
um valor que corrobora os 52 por cento
que têm uma opinião favorável sobre
a Turquia (um aumento de 11 pontos
percentuais desde 2010).
No que diz respeitos aos novos poderes
mundiais emergentes, Portugal mantém uma
opinião favorável do Brasil (85 por cento,
que se destacam como a percentagem mais
alta entre todos os países). Quanto à China
e à Índia, apenas 37 e 26 por cento,
respectivamente, têm uma opinião
desfavorável, ambos os valores mais baixos
do que os registados em 2010.
No âmbito económico, 80 por cento dos
portugueses consideram que o Governo
português deveria reduzir as despesas para
reduzir o défice, mais uma vez a maior
percentagem entre todos os países inquiridos.
Neste sentido, apenas seis por cento pensam
que o Governo deveria aumentar as despesas,
um valor que ascende aos 10 por cento quando
se refere às despesas na área da defesa –
ainda assim, é a percentagem mais baixa, a
par com a Espanha e a Eslováquia.
33
POLÍTICA
Howard Dean
O Presidente é o melhor gestor
de campanhas dos Estados Unidos
“A morte de Bin Laden favoreceu Obama”, considerou Howard Dean, um importante
membro do Partido Democrata que deixou a actividade profissional de médico para ser
governador do Vermont tendo não só implementado um programa inovador nos cuidados
de saúde para todos como equilibrado o orçamento deficitário.
Por Sara Pina e Charles Buchanan*
Na política americana, Dean salientou‑se
pela recolha de fundos para a campanha
do actual Presidente, nomeadamente atra‑
vés da internet e do facebook, e conside‑
ra que a fraca projecção na área da defesa
e segurança que a Administração Obama
sofria se tornou um trunfo para a reelei‑
ção do Presidente graças à morte do líder
da Al­‑Qaeda.
do movimento Tea Party. Os americanos
esperavam alguém que fosse capaz de
resolver o problema orçamental e votaram
nele, mas não aceitam ataques contra os
trabalhadores americanos, e é isso que se
tem visto em todo o país – no Ohio, na
Florida e em muitos estados, incluindo a
Pensilvânia.
[P] E quais são as componentes da estratégia?
[HD] Vamos ocupar‑nos do emprego e da
criação de empregos. É disso que o povo
americano quer ouvir falar. Muito since‑
ramente, penso que o povo americano se
assustou com algumas das experiências
‘
Chris Graeme
[Paralelo] Considera que o Partido Democrata
está preparado e organizado para conseguir ree‑
leger o Presidente Obama?
[Howard Dean] Penso que está muito bem
preparado. Como sabe, temos um
Presidente democrata e é o Presidente que
assume a organização do partido. Neste
caso, o Presidente é o melhor gestor de
campanha que existe actualmente nos
Estados Unidos e vai dirigir a “rede de
reeleição”. Portanto, julgo que estamos em
muito boa forma em termos da mecânica
de vencer as eleições.
A vitória nas eleições
vai ser decidida
pelos independentes.
’
[P] Então considera que o movimento Tea Party
vai ajudar o Partido Democrata a conquistar votos
dos republicanos?
[HD] O movimento é uma vantagem para
os republicanos porque mobiliza o elei‑
torado. Mas assusta os independentes, e
são os independentes que vão decidir
quem ganha as eleições.
[P] Como é que a Organização dos 50 Estados,
criada por si, vai ajudar os democratas a vencer
em estados conservadores?
[HD] Tudo depende daquilo que o
Presidente quiser fazer. Mas, basicamente,
quando eu estava no Comité Nacional
Democrata, tínhamos uma estratégia para
cada estado. Investimos em todos os esta‑
dos sem excepção, para garantir que esti‑
vessem actualizados e que houvesse
pessoas qualificadas no terreno. E julgo
Charles Buchanan (esq.) e Howard Dean no almoço organizado pelo American Club of Lisbon.
34
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
Chris Graeme
DR
POLÍTICA
[P] O que pensa do poder da internet?
[HD] A internet funciona para ambos os
partidos. Os republicanos têm estado a
fazer um bom trabalho copiando o que
vamos fazer na internet, tal como eu
copiei algumas das coisas que os republi‑
canos estavam a fazer bem em 2004 quan‑
do me tornei presidente do Comité
Nacional. Portanto, os dois partidos vão
ambos usar a Internet.
[P] A juventude e as minorias étnicas do país
são muito poderosas (segundo Obama). Não acha
que vai ser um enorme desafio mobilizá‑las nova‑
mente?
[HD] O desafio é precisamente esse!
O Presidente ganhou porque teve uma
enorme vaga de apoio, sobretudo por
parte dos jovens, e é necessário repetir
isso. E não vai ser fácil.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
A crise: houve alguns
comportamentos
muito, muito errados
por parte dos bancos
internacionais.
’
da função pública e, portanto, Portugal
está numa situação bastante melhor do
que a Irlanda e a Grécia, por exemplo. No
entanto, Portugal é um país muito peque‑
no e vai evidentemente sofrer alguns
abanões. Portugal vai ter de fazer o que
todos os outros países têm de fazer: vai
ter de fazer cortes. Mas não se podem
introduzir demasiados cortes nem fazê‑lo
demasiado depressa, porque isso pode
prejudicar a economia em vez de a ajudar.
Mas não há dúvida de que no Ocidente
– tanto na Europa como nos Estados
Unidos – se tem gasto demasiado, e
houve, evidentemente, alguns comporta‑
mentos muito, muito errados por parte
dos bancos internacionais. Não estamos a
falar dos bancos portugueses, estamos a
falar dos grandes bancos multinacionais.
Alguns destes problemas não têm nada a
ver com Portugal. Têm a ver com o facto
de os grandes bancos multinacionais terem
especulado e apostado nas bolsas de valo‑
res. E depois há, evidentemente, a questão
das sociedades de notação de risco de
crédito…
[P] Mas a utilização intensiva da internet foi
instituída por si. Porque escolheu esse método?
[HD] Aprendemos com os jovens que o
estavam a fazer. A nossa capacidade para
organizar uma campanha com lógica base‑
ada na internet foi fruto de termos obser‑
vado o que os jovens estavam a fazer e a
forma como consultavam a internet.
[P] Portugal está em crise devido ao seu orça‑
mento. O orçamento do estado de Vermont foi
equilibrado por si, e conseguiu fazê‑lo sem
aumentar os impostos. Que sugestões faria ao
nosso país?
‘
[HD] Penso que o primeiro‑ministro José
Sócrates começou a tentar resolver o pro‑
blema muito antes de alguns dos outros
países. Introduziu muito cedo mudanças
na idade da reforma, alterou os salários
Chris Graeme
que isso ajudou a aumentar o número de
estados em que os democratas puderam
competir.
O Presidente [Obama] ganhou porque teve uma enorme
vaga de apoio. Dean espera que isso se repita.
* Com André Sebastião
35
POLÍTICA
EUA: a história deste país
é também a nossa
É uma história de amor em quatro actos. Como em todas as histórias de amor houve
paixões, desencontros, mal‑entendidos, arrufos e fúrias. E sobretudo muita influência mútua.
É assim a relação entre os EUA e a Europa, contada na exposição “America – It’s Also
Our History”, uma iniciativa da presidência belga da União Europeia.
Por Susana Almeida Ribeiro
fotos Tempora
Perante os nossos olhos vai desfilando o
melhor e o pior da Humanidade. A colo‑
nização da América e a escravatura; a inde‑
pendência dos Estados Unidos e o dizimar
da população nativa americana; as con‑
quistas científicas e tecnológicas e a bomba
atómica... Desde que os Estados Unidos
emergiram como uma das mais impor‑
tantes potências mundiais que o país este‑
ve na linha da frente dos principais
capítulos da história moderna.
A exposição – com artefactos riquíssimos
e artigos museológicos de grande enver‑
gadura, como carros de combate e um
pedaço do Muro de Berlim – está dividi‑
da em quatro movimentos.
O primeiro destes movimentos conta a
história da “América Europeia”. Ou seja,
descreve o período da história (1620‑1783)
em que os europeus atravessaram o Atlântico
e rumaram ao grande continente desconhe‑
cido, um pedaço de terra vinte vezes maior
que a Velha Europa Ocidental. De Inglaterra,
França e Espanha sai o grosso dos emigran‑
tes. Os portugueses também emigram para
a América, mas para o Sul do continente.
Estima‑se que entre 1600 e 1760, cerca de
um milhão de cidadãos nacionais tenha
partido para o Brasil.
As potências europeias foram conquis‑
tando o vasto continente e as forças bri‑
tânicas acabaram vitoriosas neste mosaico
de ocupação. Ideologicamente, os filósofos
europeus olharam para este admirável mundo
novo como o laboratório ideal para pôrem
em prática os seus ideais. As mesmas que
acabaram por contagiar a própria Europa,
dando origem à Revolução Francesa de
1789. “Se Locke e Montesquieu ditaram,
por assim dizer, aos americanos a sua
Constituição, Jefferson ajudou os franceses
a escrever a sua própria Declaração dos
36
Direitos dos Homens e dos Cidadãos”,
pode ler‑se no catálogo da exposição.
No final deste primeiro movimento, os
Estados Unidos eram independentes.
Com o advento do dia 4 de Julho de 1776,
a América entra numa segunda era: a da
América Americana. Neste acto II (1783‑1917),
fala‑se da epopeia dos europeus que come‑
çaram a partir de uma Europa com fome e
socialmente estática – onde um sapateiro
não podia aspirar a ser nobre – para abrir
os braços à Estátua da Liberdade, uma ofer‑
ta francesa (1886) ao povo americano.
“Nasce assim uma nação do tamanho de
um continente”, resume o catálogo.
À medida que os colonizadores se vão
instalando no vasto território, a popula‑
ção indígena vai sendo dizimada. Quando
os primeiros colonos chegaram ao terri‑
tório hoje identificado como eua, esti‑
ma‑se que existissem entre quatro e 12
milhões de nativos. Em 1900, estes eram
apenas 250 mil.
Chegados à I Guerra Mundial começa o
terceiro movimento – o da Europa Americana
– durante o qual os americanos regressam
à Europa uma primeira e, mais tarde, uma
segunda vez (durante a II Guerra Mundial)
para ajudar a livrar os velhos europeus
dos seus ditadores.
Entretanto, os eua vão contagiando o
velho mundo com os seus ritmos de jazz
e a génese do star system. Mesmo durante
a Grande Depressão os Estados Unidos são
Em Bruxelas, a exposição sobre os EUA foi organizada em quatro movimentos.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
POLÍTICA
‘
O período de 1989 até
hoje assinala o quarto
e último movimento desta
extraordinária exposição
em que Europa e América
se afirmam por si e tentam
redefinir a sua relação.
’
O período de 1989 até hoje assinala o quarto e último movimento
desta extraordinária exposição.
já uma potência em quase todos os domí‑
nios. Tornam‑se refúgio de alguns dos
principais pensadores do nosso tempo,
como Einstein e Claude Lèvi‑Strauss.
Depois da derrota de Hitler e das bombas
atómicas de Hiroxima e Nagasáqui, os eua
emergem, em definitivo, como a maior
potência mundial, que vai crescendo dian‑
te do seu rival: a urss.
À semelhança da Alemanha, o mundo
divide‑se em dois blocos: o Ocidente e o
Leste. Chegamos assim à Guerra Fria (sim‑
bolicamente tratada nesta exposição como
um tabuleiro de xadrez), mas também a
uma América do pós‑guerra. Uma América
próspera e com subúrbios ricos; com elec‑
trodomésticos e televisão; com um carro
para cada família e uma juke box em cada
bar. Estamos na era dourada do rock, do
Elvis, e depois da Febre de Sábado à Noite e da
Coca‑Cola. Mais tarde chegaríamos a
Madonna e a Michael Jackson; aos micro‑
ondas e aos videojogos; ao ET – O Extraterrestre
e à Queda do Muro.
O mundo deixa então de estar bipolari‑
zado. Com a derrocada da Cortina de Ferro
enterra‑se a Foice e o Martelo. O período
de 1989 até hoje assinala o quarto e últi‑
mo movimento desta extraordinária expo‑
sição em que a Europa e a América se
afirmam por si e tentam redefinir a sua
relação. Os Estados Unidos vivem o seu
estatuto de verdadeira superpotência e de
hegemonia militar, económica e cultural
num mundo pós‑11 de Setembro e que
começa a ver um novo “rival” económico
no horizonte: a China. Por seu lado, a
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
União Europeia continua a fazer o seu
caminho de reunificação e união, lamben‑
do ainda as feridas de guerra nos Balcãs.
eua e Europa são hoje aliados e parceiros.
Os seus destinos começaram cruzados e é
assim que permanecem hoje. Prova disso é
a grave crise financeira mundial que come‑
çou do outro lado do Atlântico e cujas reper‑
cussões cruzaram O Charco com efeitos ainda
hoje visíveis, especialmente em Portugal.
A exposição termina da mesma forma que
a aventura dos colonos começou: no mar.
A derradeira sala da exposição foi transfor‑
mada – literalmente – numa praia, marcan‑
do o “atlanticismo” desta relação. Tal como
as marés, que vão recuando e avançando ao
longo dos séculos, assim se mantém a rela‑
ção entre os dois continentes. Uma relação
de influência e de contágio.
Retratada a divisão da Alemanha e do mundo em dois blocos.
37
POLÍTICA
É preciso falar da República
sem falar só da questão religiosa
As relações entre o Estado e a Igreja são um dos temas que fixam a agenda analítica da
I República mas, na opinião do historiador José Medeiros Ferreira, essa agenda deve alargar­‑se
ao impacto na sociedade da institucionalização de um Estado que se pretendeu laico.
“É preciso falar da República sem falar só da questão religiosa”, desafiou, no lançamento
de Repúblicas em Paralelo: Portugal e os Estados Unidos da América.
Por Carla Martins
Catroga (Universidade de Coimbra) e José
Esteves Pereira (Universidade Nova de
Lisboa) entregaram‑se ao “desafio inova‑
dor” e “risco calculado”, nas palavras de
Mário Mesquita na nota introdutória, de
realizar uma análise comparada das revo‑
luções americana e portuguesa.
As relações entre o Estado e a Igreja, na
viragem para o republicanismo, domina‑
ram a parte inicial do comentário de
Medeiros Ferreira à obra, que salientou,
no caso americano, a rejeição da experi‑
ência de Cromwell e o acolhimento de
uma ética inspirada no período republi‑
cano da civilização romana. Outra influ‑
ência relevante foi, claro, o princípio da
RUI OCHÔA
Numa sessão intimista presidida por Maria
de Lurdes Rodrigues e moderada por
Mário Mesquita, o historiador José
Medeiros Ferreira, da Universidade Nova
de Lisboa, apresentou Repúblicas em Paralelo:
Portugal e os Estados Unidos da América. A obra
integra as intervenções dos historiadores
portugueses e norte‑americanos que par‑
ticiparam no colóquio homónimo, que
teve lugar o ano passado, na flad, que
assim se associou às comemorações do
Centenário da República Portuguesa.
Alexander Keyssar (Universidade de
Harvard), António Reis (Universidade
Nova de Lisboa), Horst Mewes
(Universidade do Colorado), Fernando
“Falar da República sem colocar a questão religiosa no centro do debate” foi o desafio
de José Medeiros Ferreira que apresentou o livro sentado entre Mário Mesquita
e Maria de Lurdes Rodrigues, presidente do conselho executivo da FLAD.
38
tolerância de John Locke, que deveria
guiar a secularização da instância política
face ao religioso. Os constituintes ameri‑
canos beberam directamente as concep‑
ções do iluminismo – como sublinha
António Reis, “os republicanos portugue‑
ses são filhos do positivismo e netos do
iluminismo, enquanto os pais fundadores
da república norte‑americana são, eviden‑
temente, filhos directos do iluminismo”
(p. 31).
Cem ANOS DEPOIS, UMA IGREJA
MAIS ABERTA
Os eua instauraram a primeira república
contemporânea e o primeiro sistema de
separação de igrejas, o que foi “muito
importante, porque contrariava a ideia de
que teria de haver uma religião do
Estado”.
Tratou‑se de um processo com particu‑
laridades, como observou Mário Mesquita
na sessão: nos Estados Unidos a seculari‑
zação faz‑se “num quadro deísta, remeten‑
do, é certo, para um Deus esvaziado do
conteúdo que lhe desse ligação a um culto
religioso concreto”. Recorrendo a um
enunciado de Fernando Catroga, “se toda
a laicidade é uma secularização, nem toda
a secularização é (ou foi) uma laicidade e,
sobretudo, um laicismo” (p. 65).
No que toca à lei da separação, em
Portugal houve diferenças quer em relação
aos eua, quer à França. Se o período
monárquico‑constitucional dera sinais de
alguma abertura (como o artigo 6.º da
Carta Constitucional, pelo qual se permi‑
tia a prática de outras religiões por estran‑
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
geiros, desde que os seus lugares de culto
não tivessem forma exterior de templo),
a Revolução de 1910 introduziu as noções
de Estado laico e de laicismo. Por outras
palavras, veio terminar com o Estado con‑
fessional, através da lei da separação da
Igreja e do Estado, e instituir a liberdade
religiosa.
Em Portugal, o anticlericalismo dos
republicanos cruza‑se, de forma conflitu‑
osa, com uma Igreja Católica traumatiza‑
da pela anexação dos Estados Pontifícios
e pelo laicismo da III República Francesa,
mais dogmática e fechada às instituições
do republicanismo e seu ideário.
Posteriormente, muitos católicos portu‑
gueses recusaram participar nas institui‑
ções republicanas (não sendo, ainda assim,
essa a visão de Oliveira Salazar).
“Depois do 25 de Abril, encontramos
não só protagonistas políticos que perce‑
beram as lições da I República mas a pró‑
pria Igreja Católica já era outra, aquela
saída do Concílio Vaticano II, mais aberta
a entender os princípios democráticos e
a separação entre a Igreja e o Estado”. O
professor Medeiros Ferreira lembra que,
na sua visita a Portugal, o Papa Bento XVI
fez um elogio à separação Igreja‑Estado.
RUI OCHÔA
POLÍTICA
“Na prática, a República portuguesa vai viver sozinha até 1917, num continente marcadamente
monárquico e até imperial”, disse Medeiros Ferreira.
Portuguesa no contexto europeu”, que
explica nos seguintes termos: “Gostamos de
acentuar que o 25 de Abril de 1974 foi um
movimento precursor da
queda das ditaduras no con‑
tinente europeu e na
Os EUA instauraram a primeira
América do Sul, o que é
república contemporânea e o primeiro verdade, mas a República
também teve as mesmas
sistema de separação de igrejas,
características pioneiras em
relação à difusão dos regi‑
o que foi “muito importante, porque
mes republicanos europeus
contrariava a ideia de que teria
depois da I Guerra Mundial”.
À época, existiam na Europa
de haver uma religião do Estado”.
apenas as repúblicas france‑
sa e suíça, “mas, fora isso,
podemos dizer que a
República Portuguesa não
PRECURSORA COMO O 25 DE ABRIL
foi implantada por indução ou por causas
Não obstante a importância deste tema exteriores”. Sublinha que, “na prática, a
para pensar a génese republicana – na
República Portuguesa vai viver sozinha até
terminologia moderna, foi de facto uma 1917, num continente marcadamente
“questão fracturante” –, Medeiros Ferreira monárquico e até imperial”.
considera essencial “falar da República
Como segundo ponto, o professor assi‑
sem colocar a questão religiosa no centro nala o programa modernizador do Estado
do debate”. Em seu entender, há aspectos republicano. “Vamos assistir, na República,
da República Portuguesa que têm sido
ao crescimento das funções do Estado libe‑
pouco acentuados porque os temas histo‑ ral em Portugal. O Estado penetra no ter‑
riográficos e analíticos se fixaram nas
ritório”, sustenta. Surgem novos serviços
relações entre a Igreja e o Estado e na públicos, como o registo civil, a instrução
instabilidade política. “Estes dois temas pública e o serviço militar obrigatórios e
tomaram conta da agenda analítica da
uma nova filosofia contributiva.
I República”.
Como terceira ideia fundamental, Medeiros
Preconiza que “vale a pena realçar as outras Ferreira aponta a singularidade do Partido
questões que ficaram soterradas”, como o
Republicano Português (prp), que revela
características diferentes e únicas, ao assen‑
“carácter pioneiro da Revolução Republicana
‘
tar a sua acção tanto numa táctica eleitoral
como numa táctica insurreccional. “Não
houve na altura nenhum partido que tives‑
se tomado o poder – estou a falar em termos
europeus – da forma como o Partido
Republicano Português o fez, pelas armas,
pela força. Não há!” O prp não era o parti‑
do bolchevique mas também não era pro‑
priamente um partido clássico, parlamentar,
como os partidos da III República. O prp
foi um partido de massas, eleitoralista, mas
também insurreccional.
’
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
39
POLÍTICA
Angola:
o “Vietname invertido” da América
Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola é o mais recente livro
de Tiago Moreira de Sá que analisa, na perspectiva americana, a luta pelo poder
depois da independência do país em 1974.
Por Marta Rocha
Kissinger: os Estados Unidos e a Revolução Portuguesa,
com o Dr. Bernardino Gomes. Percebi que
não era possível trabalhar toda a questão
da revolução portuguesa num só livro e
decidi fazer mais tarde a análise do pro‑
cesso de descolonização e em particular
na jóia da coroa do império colonial por‑
tuguês, Angola. Sob a perspectiva dos
Estados Unidos, não só porque esta é a
minha área de estudos mas também por‑
que os norte‑americanos têm uma polí‑
tica de disponibilização dos arquivos o
Marta Rocha
[Marta Rocha] Em que contexto surgiu este livro?
A que se deve a escolha dos anos de 1974 a
1976?
[Tiago Moreira de Sá] Bem, a ideia para este
livro surgiu ainda no período em que
estava a fazer o livro anterior, Carlucci vrs
O autor Tiago Moreira de Sá assina os livros na sessão de apresentação.
40
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
POLÍTICA
que permite ter acesso a uma grande
quantidade de documentação de fontes
primárias. O livro começa basicamente
com a Revolução Portuguesa de 25 de
Abril de 1974 e vai terminar, no caso
de Angola, em Fevereiro‑Março de 1976,
pois é o momento em que o mpla ganha
a primeira fase do conflito angolano.
[MR] O que é que fez com que, na fase da deténte, a Guerra Fria se estende‑se para a periferia
do sistema internacional, mais especificamente
para Angola?
[TMS] A Guerra Fria já tinha sido estendi‑
da para a periferia do sistema internacio‑
nal muito antes, aqui a extensão é para a
África Austral. Num primeiro momento,
no caso de África, a Guerra Fria tinha sido
estendida para o Congo, durante a guerra
civil do Congo, em 1960‑1965, aí com a
vitória dos Estados Unidos, e depois no
final de 1974 vai ser estendida para a
África Austral, para Angola. Porquê numa
altura da deténte bipolar? Por duas razões.
No caso dos Estados Unidos tem a ver,
sobretudo, com o que eu chamo no livro
de efeito do Vietname invertido. Isto é, os
norte‑americanos vão intervir em Angola,
não porque Angola tivesse per si uma gran‑
de importância geopolítica para os Estados
Unidos mas porque a Administração nor‑
te‑americana de Ford, e em particular
Henry Kissinger, o secretário de Estado,
vai chegar à conclusão de que depois de
terem perdido no Vietname têm de vencer
os soviéticos naquilo que eles consideram
a periferia do sistema internacional, para
demonstrar ao resto do mundo que, ape‑
sar do Vietname, ainda têm a força e a
vontade para derrotar os soviéticos no
chamado Terceiro Mundo.
[MR] Durante muito tempo, os Estados Unidos
decidiram não intervir em Angola. No lançamen‑
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
‘
O Zaire vai ser o principal informador
dos Estados Unidos sobre Angola, ou seja,
a visão que os Estados Unidos têm do conflito
angolano é, em grande parte, a visão que
lhe é transmitida por Mobutu.
’
to do seu livro o embaixador António Monteiro
afirmou que Mobutu, de certo modo, “conduziu
a política norte‑americana”.
[TMS] Os Estados Unidos, durante muito
tempo, não intervieram em Angola.
Podemos dizer que há quatro fases na
política norte‑americana. A primeira fase
é uma fase de praticamente indiferença,
que vai até Janeiro de 75. É quase como
se Angola não existisse para o secretário
de Estado, Henry Kissinger. Depois, em
Agosto de 1975, começam a chegar aos
Estados Unidos informações de que os
soviéticos estariam a apoiar, com armas
e dinheiro, o mpla e também por causa
da pressão do Zaire, de Mobutu, nesse
sentido. Numa terceira fase, os Estados
Unidos vão, finalmente, adoptar uma
estratégia ofensiva, é a fase que começa
em Julho de 1975 com a aprovação do
programa secreto para Angola, a chama‑
da a operação IAfeature, em que os
Estados Unidos vão apoiar maciçamente
a fnla e a unita, e finalmente a última
fase, que começa na prática em Novembro
de 75 – a fase da derrota norte‑america‑
na. O papel do Zaire é muito importan‑
te. O Zaire vai ter uma grande influência
na política dos Estados Unidos para
Angola, não porque seja Mobutu a con‑
duzir a política norte‑americana para
Angola mas porque o Zaire vai ser o prin‑
cipal informador dos Estados Unidos
sobre Angola, ou seja, a visão que os
Estados Unidos têm do conflito angolano
é, em grande parte, a visão que lhe é
transmitida por Mobutu. Em segunda
instância, como os Estados Unidos que‑
rem evitar aparecer publicamente como
estando envolvidos em Angola – por isso
é que o programa é secreto – o que vão
fazer é canalizar todo o programa via
Zaire. Os fundos são canalizados via Zaire,
o armamento concedido é também via
Zaire, inclusive com a preocupação de
esse armamento aparecer como sendo
armamento do Zaire e não armamento
norte‑americano.
[MR] A operação IAfeature foi um ponto de
mudança na política norte‑americana para
Angola. Em que consistiu exactamente?
[TMS] Consistiu sobretudo em três tipos
de medidas: um apoio de 32 milhões
de dólares à fnla e à unita, segundo
alguns autores estas verbas terão sido
até maiores. Uma segunda medida:
a concessão de armamento à fnla e à
unita via Zaire – e armamento signifi‑
cativo e pesado. Uma terceira medida,
o recrutamento de mercenários em
Portugal, no Reino Unido, em França e
41
POLÍTICA
‘
A FNLA era “uma marioneta do Mobutu”,
e portanto o MPLA era o que tinha melhores
condições para garantir a viabilidade do Estado
angolano pós‑independência, e é também,
neste sentido, o que ia mais ao encontro
dos próprios interesses portugueses.
’
em alguns países africanos. Para além
disso, apesar das instruções dadas pelo
Governo norte‑americano à cia – que é
quem vai ficar com a responsabilidade
de conduzir este programa secreto – ins‑
truções no sentido de não haver milita‑
res americanos ou dirigentes americanos
envolvidos no conflito angolano, a cia
– como está provado nas memórias do
seu dirigente nesta operação em Angola,
John Stockwell – vai desobedecer a estas
ordens e enviar paramilitares para o ter‑
reno.
[MR] Os Estados Unidos da América só real‑
çaram a incompatibilidade das acções soviéti‑
cas em Angola com a política da deténte
muito tarde.
[TMS] Verdade. Esse é um dado funda‑
mental. A minha opinião é que só vão
fazê‑lo em Novembro de 1975. A con‑
clusão a que cheguei é que os Estados
Unidos estão convencidos, até muito
tarde, que vão ganhar, que a fnla vai
ganhar. E só quando se convencem que
a fnla está a perder é que suscitam a
incompatibilidade do envolvimento sovi‑
ético em Angola com a deténte.
Curiosamente, até muito tarde os sovi‑
éticos estão disponíveis – apesar de esta‑
rem claramente na ofensiva – para
negociar – e é preciso não esquecer que
a deténte é também uma prioridade para
Brejnev. A União Soviética vai inclusive
quando os Estados Unidos suscitam a
incompatibilidade entre a deténte e Angola
suspender, durante parte do mês de
Dezembro, a ponte aérea soviética que
transferia os soldados cubanos para
Angola. E só quando é aprovada a Emenda
Tunney – quando os soviéticos percebem
que os norte‑americanos já não têm con‑
dições para apoiar a fnla e a unita – é
42
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
POLÍTICA
que retomam a ponte aérea e, a partir
daí, recusam‑se a negociar com os
Estados Unidos em relação a Angola.
reentrar em Luanda depois de ter sido
expulsa pelo mpla e, segundo as infor‑
mações dos serviços secretos norte‑ame‑
ricanos em particular – informações
essas que são negadas pelos oficiais por‑
tugueses com quem eu falei – alguns
militares portugueses combatem ao lado
do mpla para impedir a reentrada da
fnla em Luanda. A terceira questão é a
questão do esforço negocial que Portugal
leva a cabo em dois momentos: o
momento do Acordo do Alvor em Janeiro
de 75 e um segundo momento, uma
tentativa de aliança entre o mpla e a
unita contra a fnla em Agosto de 75.
Nos dois casos, as superpotências, no
caso particular que me interessa no
livro, os Estados Unidos, vão empe‑
nhar‑se em destruir estes esforços diplo‑
máticos portugueses e vão conseguir.
te‑americanos que estavam em Angola,
que conheciam a realidade angolana.
Os que não estavam em Angola, tal como
Kissinger, não tinham propriamente essa
visão. Porque sabia‑se muito pouco, mas
A intervenção portuguesa
os que estavam lá, os que conheciam a
e os apoios de Melo Antunes
realidade no terreno achavam exactamen‑
te isso. A fnla era – a expressão é esta
mesmo – “uma marioneta do Mobutu”,
[MR] E Portugal? Como é que se processavam
e portanto o mpla era o que tinha
as relações diplomáticas entre os Estados Unidos
melhores condições para garantir a via‑
da América, Portugal e Angola?
bilidade do Estado angolano pós‑inde‑
[TMS] Portugal foi um actor relevante.
pendência, e é também, neste sentido, o
A ideia de que Portugal não foi um actor
que ia mais ao encontro dos próprios
relevante é falaciosa. A partir do momen‑
interesses portugueses. Depois há outras
to em que as superpotências entram “em
questões. No caso de um grupo, repre‑
cena” todos os outros actores ficam com
sentado em Angola pelo almirante Rosa
um espaço de manobra muito reduzido,
Coutinho, há, na minha opinião, outras
o que não significa que não sejam acto‑
motivações inclusive ideológicas e geo‑
res também relevantes. No caso de
políticas mas, independentemente de
Portugal, há três ou quatro questões que
toda esta questão, ele beneficiou
são muito importantes no
sempre a União Soviética. Eu reve‑
contexto de Angola. Em pri‑
lo no livro – penso que pela pri‑
meiro lugar, segundo as
meira vez – que Melo Antunes,
informações dos norte‑ame‑
a determinada altura, começou a
ricanos, grande parte do
apoiar Jonas Savimbi e a unita mas
armamento das forças arma‑
fê‑lo no contexto do projecto de
das portuguesas é deixado
aliança entre o mpla e a unita.
para o mpla. Aliás, Kissinger
vai chegar a fazer uma chan‑
E a ideia era conseguir uma Angola
Portugal foi um actor relevante.
tagem com o Governo por‑
independente governada por uma
tuguês – e a expressão
aliança mpla/unita, com prevalên‑
A ideia de que Portugal não foi
cia do mpla – que era, de longe,
“chantagem” é dele, não é
um actor relevante é falaciosa.
o movimento mais forte – mas
minha – dizendo que o
equilibrando o poder do mpla – e
Governo português ou garan‑
A partir do momento em que
do próprio Agostinho Neto – com
te que não há armamento
as superpotências entram “em cena”
a unita e com Jonas Savimbi, isto
deixado para o mpla ou os
Estados Unidos acabam com
por um lado. Por outro lado, redu‑
todos os outros actores ficam
toda a ajuda que estão a con‑
zir a dependência – o que se acha‑
com um espaço de manobra muito
ceder no contexto da chama‑
va ser a dependência – do mpla
da “ponte aérea”, a ponte
reduzido, o que não significa que não em relação à União Soviética, aju‑
dando a estabelecer outros canais
aérea para transferir os colo‑
sejam actores também relevantes.
diplomáticos, como por exemplo
nos portugueses para
junto da Argélia e da Jugoslávia.
Portugal. É preciso ver tam‑
Melo Antunes vai tentar convencer
bém que Portugal está pro‑
os norte‑americanos a manter o
fundamente dividido. Há
mínimo das boas relações com o
várias políticas e vários cen‑
mpla – e mesmo a apoiar o mpla
tros de poder. A segunda
– de modo a reduzir a dependên‑
questão, que é uma questão
cia do movimento face a Moscovo.
muito importante mas que não é pos‑ [MR] Os próprios Estados Unidos da América
sível esclarecer porque as fontes primá‑ consideravam que o mpla era realmente o único Revelo, também, “em primeira mão”,
movimento com representatividade em Angola, que Agostinho Neto “não fecha a porta”
rias não são suficientemente boas, é a
a ter boas relações com os Estados
questão da célebre Batalha de Luanda, o único que representava o povo angolano.
de Julho de 75, quando a fnla tenta [TMS] Consideravam os elementos nor‑ Unidos, pelo contrário.
‘
’
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
43
Boas razões
para estudar numa
universidade portuguesa
www.ideia.pt
Por Maria de Lurdes
Rodrigues*
Hoje, um dos critérios de avaliação do grau de
internacionalização das universidades é o número
de alunos e de professores estrangeiros que inte‑
gram as suas actividades.
Neste domínio, as universidades portuguesas
progrediram muito em resultado, por um lado,
de mais de vinte anos do programa Erasmus e,
por outro, de medidas específicas de apoio à mobi‑
lidade de investigadores e à cooperação científica.
Em relação à internacionalização do sistema cien‑
tífico o patamar alcançado é notável: 48 por cento
da produção científica portuguesa é realizada em
co‑autoria com instituições estrangeiras. Porém,
em relação à internacionalização do sistema de
ensino superior, os dados revelam que a percen‑
tagem de alunos estrangeiros é de apenas cinco
por cento, existindo ainda um enorme potencial
de crescimento.
De facto, Portugal tem hoje uma infra‑estrutura
de ensino superior de elevada qualidade, com capa‑
cidade para acolher muito mais alunos. O aumen‑
to de alunos nacionais está fortemente
dependente da melhoria da performance do ensino
secundário e da diminuição do abandono escolar
precoce, bem como da capacidade de atracção de
adultos, designadamente para os cursos dos segun‑
do e terceiro ciclos. Todavia, as características socio‑
demográficas de um e de outro segmento,
embora por razões diferentes, permitirão apenas
crescimentos muito limitados.
Uma fonte possível e inesgotável para o recru‑
tamento de novos alunos reside em outros países
cuja língua oficial é o português, mas também
nos países estrangeiros da diáspora, como é o caso
dos eua. A nossa vizinha Espanha atrai anualmen‑
te mais de 20 mil alunos norte‑americanos. O
mesmo se passa em todos os países da Europa: a
colaboração com universidades norte‑americanas
em cursos de Verão, em programas de study abroad,
44
programas de troca de estudantes e de professores,
entre outros, permite manter na generalidade das
universidades europeias uma capacidade de atrac‑
ção de milhares de alunos estrangeiros que em
muito contribui para a sua internacionalização.
Portugal, embora tenha já inúmeros alunos estran‑
geiros, maioritariamente do programa Erasmus,
dos eua tem atraído apenas cerca de 150 alunos
por ano.
Todavia, visto do lado de lá do Atlântico,
Portugal e o seu sistema de ensino superior ofe‑
recem várias vantagens competitivas que podem
ser exploradas numa campanha mais forte de
promoção das universidades portuguesas no
estrangeiro.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
www.ideia.pt
Em primeiro lugar, a qualidade e a ino‑
vação: a qualidade das instalações, da inves‑
tigação científica, dos recursos de acesso ao
conhecimento e à informação coloca muitas
das nossas instituições em lugares honrosos
dos rankings internacionais. Por outro lado,
Portugal foi um dos países europeus que
mais cresceu nos indicadores de inovação.
Em segundo lugar, os custos das propi‑
nas e o nível de vida. No nosso país, o
esforço financeiro das famílias com a edu‑
cação, quando comparado com o esforço
realizado em média pelas famílias nor‑
te‑americanas, para qualidade equivalen‑
te, dá a Portugal uma enorme vantagem,
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
tornando as nossas universidades verda‑
deiramente atractivas.
Em terceiro lugar, a integração de
Portugal no espaço europeu. O facto de
os nossos certificados e diplomas, no qua‑
dro do Processo de Bolonha, permitirem
o reconhecimento automático e a livre
circulação para efeitos de prosseguimen‑
to de estudos em qualquer universidade
da Europa, tem em si um enorme valor.
Finalmente, a oportunidade de aprender
português, língua que abre as portas tam‑
bém para o Brasil e os palop, alargando
enormemente as possibilidades de reali‑
zação profissional.
Tendo presentes estes argumentos, a
flad iniciou um programa de promoção
das universidades portuguesas nos eua,
tendo em vista a atracção de alunos nor‑
te‑americanos, designadamente jovens
emigrantes portugueses de segunda ou de
terceira geração. A iniciativa “10 Reasons
to Study at a Portuguese University” con‑
tou com o apoio do Turismo de Portugal,
do crup, da Fulbright e da aicep, tendo
estas instituições firmado entre si um pro‑
tocolo de colaboração para lançar outras
iniciativas com o mesmo objectivo.
* Presidente do Conselho Executivo da FLAD
45
Mais uma forma
de fortalecer a relação
luso‑americana
Por Allan J. Katz*
Enquanto embaixador dos Estados Unidos em Portugal
tenho, com frequência, o prazer de conhecer estu‑
dantes e académicos portugueses, muitos dos quais
estudaram nos eua. Estes indivíduos – através de pes‑
quisa conjunta, laços pessoais, e intercâmbios entre
estudantes e professores – ajudam a fortalecer, ainda
mais, os fortes laços entre os nossos dois países. Tenho
a esperança que novas iniciativas como as da Comissão
Fulbright, da Fundação Luso‑Americana, da aicep,
do Turismo de Portugal e do Conselho de Reitores
proporcionem um aumento do número de estudan‑
tes americanos em Portugal. Dados recentes mostram
que o número total de americanos que estudaram
no estrangeiro no ano lectivo de 2008‑2009 foi de
260 327, valor que continua a assinalar uma década
de crescimento sem precedentes no que respeita ao
número de estudantes americanos que recebem cré‑
ditos académicos pela sua experiência além‑fronteiras.
Se analisarmos as últimas duas décadas, a participação
de estudantes americanos em programas de estudo
no estrangeiro mais do que triplicou.
Nesse mesmo ano lectivo, 240 estudantes america‑
nos escolheram Portugal como país de destino, o que
constituiu um aumento de 61 por cento em relação
ao ano anterior. Estes números mostram, uma vez
mais, que o intercâmbio educacional entre os Estados
Unidos e Portugal está a aumentar e fico muito satis‑
feito pelo facto de cada vez mais estudantes america‑
nos decidirem estudar em Portugal.
Enquanto presidente honorário da Comissão
Fulbright em Portugal, tenho o privilégio de teste‑
munhar em primeira mão a estreita cooperação entre
o Governo americano e o Governo de Portugal, atra‑
vés do Programa Fulbright, para apoiar o intercâmbio
académico entre os nossos dois países. A Comissão
Fulbright tem reforçado, particularmente nos últimos
anos, a atribuição de bolsas que permitem a coloca‑
ção de estudantes americanos em universidades por‑
tuguesas como assistentes de língua inglesa, assim
como o apoio a projectos de investigação conducen‑
tes a mestrado e doutoramento desenvolvidos em
Portugal por estudantes americanos.
Numa parceria recentemente instituída entre a Fulbright
e a Fundação Luso‑Americana foram também criadas
condições para que o número de bolseiros americanos
46
de investigação venha a crescer num futuro próximo.
As iniciativas do Programa Fulbright inserem‑se no
objectivo mais abrangente do Governo e das institui‑
ções americanas de aumentar o número de estudan‑
tes americanos a viver uma experiência de estudo no
estrangeiro, quer seja participando em programas de
Verão, levando a cabo projectos de investigação, ou
frequentando programas de atribuição de grau, que
neles desenvolvam capacidades valiosas para colaborar
além‑fronteiras, num ambiente multicultural e de
desafios globais.
Este é, pois, o momento de aproveitar a oportuni‑
dade e tentar recrutar em número cada vez maior de
estudantes americanos para universidades e centros
de investigação portugueses, que dispõem de todas
as condições para os acolher da melhor forma.
Neste contexto, a Comissão Fulbright acredita e apoia
o programa “Study in Portugal”, que visa contribuir
para a promoção nos Estados Unidos das instituições
de ensino superior portuguesas e, nessa medida,
aumentar o número de estudantes americanos que
escolhem Portugal como destino de formação.
A Comissão Fulbright empenhar‑se‑á nas acções a
desenvolver no âmbito deste programa, com especial
destaque para a iniciativa, já agendada para 2012, que
pretende enviar a primeira representação de um grupo
de universidades portuguesas para participar na con‑
ferência e exposição anual da NAFSA – Association of
International Educators. A nafsa é uma associação
pioneira a nível mundial no sector da educação inter‑
nacional e de intercâmbios e a sua conferência anual
atrai milhares de profissionais de todo o mundo para
promover o intercâmbio com os seus países. É o local
ideal para apresentar aos representantes das instituições
académicas americanas e aos profissionais da área da
educação internacional todas as potencialidades que
as universidades e os centros de investigação portu‑
gueses têm para oferecer aos estudantes americanos.
O programa “Study in Portugal” representa uma
forma de aproximar ainda mais os Estados Unidos e
Portugal. Assim, é com orgulho que vejo a Comissão
Fulbright, juntamente com os nossos estimados par‑
ceiros, a apoiar este inestimável programa.
* Embaixador dos Estados Unidos da América em Portugal,
presidente honorário da Comissão Fulbright
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
Um contributo
importante para
o “Business in Portuguese”
Por Rui Boavista
Marques*
A imagem de um país é um complexo puzzle em
que entram componentes variadas e tão reais como
a da dívida soberana, o reconhecimento das mar‑
cas, as quotas de mercado globais e regionais, o
potencial do turismo e a arte e cultura, entre mui‑
tas outras.
No entanto, no caso
A relação bilateral Portugal­‑EUA
do puzzle Portugal, a lín‑
gua tem uma dimensão
não só é uma das mais antigas,
e parcela maior, por‑
como está recheada de casos
quanto põe Portugal em
rede com a sua história,
de excelência.
os seus parceiros e o
futuro.
A valorização da língua portuguesa como um
activo no mundo dos negócios (como noutros)
tem vindo a ser acarinhada pela AICEP, sendo muito
encorajador saber que
o número de estudan‑
tes de português nos
EUA tem crescido a
dois dígitos.
Temos sido testemu‑
nhas da importância do
intercâmbio entre estu‑
dantes portugueses e
norte­‑ americanos, a
todos os níveis da
cadeia de valor acadé‑
mica, que tem resultado
das parcerias entre o
Estado português e qua‑
tro das mais reputadas
instituições de investi‑
gação científica aplica‑
da: o Massachusetts
Institute of Technology,
a Carnegie­‑ Mellon
University, a University
of Texas in Austin e a
Har vard Medical
School.
A um outro nível tem
a AICEP vindo a apostar
neste tipo de intercâm‑
‘
www.ideia.pt
’
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
bio através do programa INOV­‑CONTACTO, ao enviar
anualmente 550 jovens licenciados para estagiarem
em empresas por esse mundo fora, tendo, em 2010,
65 tido a experiência de estagiar nos EUA.
A relação bilateral Portugal­‑EUA não só é uma das
mais antigas, como está recheada de casos de exce‑
lência. A título de exemplo, podemos mencionar a
Efacec que tem vindo a trazer dezenas de forman‑
dos norte­‑americanos à sua sede em Portugal para
aprendizagem de tecnologia state­‑of­‑the­‑art no seu
sector.
É igualmente relevante mencionar que o nível
da credibilidade de Portugal como destino de
investimento directo norte­‑americano tem vindo
a aumentar, como o confirmam os seguintes casos:
inauguração em Maio pela Xerox do Global Delivery
Center Lisbon, o primeiro centro fora dos EUA da
Microsoft R&D Center for Speech Recognition,
o Microsoft Language Development Center (para o
Brasil e Portugal), o centro de BPO da IBM, e os
cinco centros de competências da CISCO, todos em
operações de outsourcing ou de desenvolvimento de
novas aplicações de software, que confirmam o reco‑
nhecimento do nível de competitividade e patamar
de excelência existente em Portugal.
Acreditamos que chegou agora a hora de apos‑
tarmos também no incremento de mais norte­
‑americanos a estudarem em Portugal. O impacto
que este intercâmbio pode ter numa melhor inser‑
ção global da economia portuguesa é muito signi‑
ficativo. A AICEP saúda o envolvimento de vários
parceiros no projecto “Study in Portugal” e está
apostada em contribuir para o sucesso desta ini‑
ciativa, nomeadamente através de uma participação
alargada e digna na NAFSA 2012.
Mais norte­‑americanos a aprender português em
Portugal é um dos melhores contributos que pode‑
mos dar para o desenvolvimento de um conceito
mais alargado que queremos promover, o do “Doing
Business in Portuguese Language”, num reconhe‑
cimento à presença de ligações portuguesas em
todos os continentes, com um potencial que exis‑
te e ainda pode ser mais concretizado.
* Director coordenador para a América do Norte,
AICEP Portugal Global, Nova Iorque
47
Um país para viver,
um país para aprender
Por Luís Patrão*
‘
’
RUI OCHÔA
O programa “Study in Portugal” é uma
oportunidade relevante para promover Portugal
enquanto destino turístico e atrair ao nosso país
um maior número de alunos e investigadores
norte‑americanos.
A escolha de um destino pelos jovens que procuram
um programa de estudos no estrangeiro não se
baseia apenas em critérios meramente académicos.
Muitas vezes, paralelamente à qualidade de ensino,
é a atractividade do país de acolhimento que muito
influencia a decisão.
Entra‑se em linha de conta com vários factores,
como o clima, o património, a beleza natural, o
estilo de vida, o povo, a segurança, a animação e
a oferta cultural que os países proporcionam.
Escolhe‑se um país para viver, e não só um país
para aprender.
Portugal apresenta bons argumentos e pode com‑
petir par a par com qualquer outro destino.
Especificamente para os jovens norte‑americanos,
o nosso país proporciona experiências claramente
distintas e diferenciadas, que enriquecem e com‑
plementam os excelentes programas académicos
disponíveis nas universidades portuguesas.
A aposta nestes públicos, jovens e exigentes, é,
em si, um acréscimo de responsabilidade e acima
de tudo uma clara visão de futuro. É uma respon‑
sabilidade porque exige que se reforce o desenvol‑
vimento de ofertas dedicadas aos interesses destes
públicos, e uma visão de futuro pelo potencial de
dinamismo que incorporam no país e por serem
agentes de promoção externa por excelência.
A capacidade de disseminação e veiculação da
imagem de Portugal e das qualidades do destino
turístico junto das suas famílias e comunidades de
origem é uma mais‑valia para a captação de mais
e melhores fluxos turísticos para o nosso país.
Mas é igualmente um grande investimento na
criação de laços emocionais com potenciais con‑
sumidores, que queiram voltar uma e outra vez e
dar a conhecer, aos amigos e família, o sítio onde
foram felizes.
O programa “Study in Portugal” é pois uma
oportunidade relevante para promover Portugal
enquanto destino turístico e atrair ao nosso país
um maior número de alunos e investigadores
norte‑americanos.
* Presidente do Turismo de Portugal
48
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
Programa pioneiro
‘
A mobilidade académica, com períodos
de estada variáveis e com objectivos diversos
destinada a multiplicar os fluxos de estudantes,
professores e investigadores, constitui um factor
de progresso, de alargamento de horizontes,
e de corte transfronteiriço que tem permitido
o cruzamento de identidades culturais,
de partilha de valores e de experiências.
RUI OCHÔA
Por António Rendas*
’
Portugal conta com uma rede de 16 universidades
públicas que oferecem formação em todos os níveis
do ensino superior, incluindo programas de pós‑dou‑
toramento e investigação em todas as áreas científi‑
cas. Devido às exigências de internacionalização, as
universidades portuguesas oferecem programas e
planos curriculares para alunos estrangeiros, ensi‑
nados em língua inglesa, em variados domínios
científicos e graus académicos.
Portugal tem, assim, particulares vantagens para
o estudo de temas diversificados que vão desde
a história à biologia marinha e oceanografia, da
economia e direito à literatura comparada,
da medicina às engenharias e à arquitectura, entre
tantas outras. A experiência internacional é de
grande relevância para a troca de saberes entre as
instituições e representa um importante passo para
o crescimento das universidades. Neste sentido, o
programa “Study in Portugal”, cujo protocolo foi
assinado recentemente pelo Conselho de Reitores
das Universidades Portuguesas ( crup ) com a
Fundação Luso‑Americana, o Turismo de Portugal,
a aicep e a Comissão Fulbright deverá contribuir
para a promoção das universidades e centros de
investigação portugueses, junto das universidades
americanas.
Este programa pioneiro representa um contribu‑
to decisivo para a divulgação das universidades e
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
centros de investigação portugueses, nos Estados
Unidos, visando ainda aumentar o número de alu‑
nos norte‑americanos que escolhem as universida‑
des portuguesas como destino de formação. Neste
contexto, as parcerias estratégicas entre as univer‑
sidades portuguesas e prestigiadas universidades
norte‑americanas ganharam força nos últimos anos.
A mobilidade académica, com períodos de estada
variáveis e com objectivos diversos destinada a
multiplicar os fluxos de estudantes, professores e
investigadores, constitui um factor de progresso,
de alargamento de horizontes, e de corte transfron‑
teiriço que tem permitido o cruzamento de iden‑
tidades culturais, de partilha de valores e de
experiências.
O crup, criado em 1979, aposta na mobilidade
e na formação pós‑graduada em parceria com ins‑
tituições estrangeiras de referência. Promover a
mobilidade académica significa compartilhar conhe‑
cimentos, e ampliar a visão de cooperação multi‑
lateral entre os países, com especial enfoque no
ensino, na investigação científica e na extensão
universitária.
* Presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP)
49
SOCIEDADE
Não há glória sem riscos
O empreendedorismo pode e deve ser ensinado. Paul Jerde faz disso um modo de vida
na Universidade do Colorado e noutros centros de ensino, como o Unreasonable Institute,
porque a inovação também é ir além do razoável. Os administradores da Fundação
Luso‑Americana, Charles Buchanan e Mário Mesquita, reuniram‑se com o professor
norte‑americano de visita a Portugal.
texto e fotografias de Sara Pina
[Paralelo] Há quem ache que o empreendedoris‑
mo não pode ser ensinado. Ou se tem ou não se
tem... Como é que se ensina?
[Paul Jerde] Será possível ensinar alguém a ser
um empresário e será possível ensinar o
empreendedorismo? Estabeleço uma dife‑
rença entre as duas coisas. Não creio que se
possa ensinar alguém a ser um empresário.
Isso é algo que vem de dentro. Mas creio
firmemente que é possível ensinar as com‑
petências, transmitir o conhecimento e ensi‑
nar as metodologias do pensamento crítico,
de modo que as pessoas aprendam a reco‑
nhecer os desafios e a identificar oportuni‑
dades, agindo depois com base nas suas
ideias. É nisso que consiste o ensino do
empreendedorismo.
[P] Quais são as características pessoais que
permitem que uma pessoa se torne um empre‑
sário bem­‑sucedido?
[PJ] Há várias coisas. Para uma pessoa efec‑
tivamente dar o passo e dizer “Vou come‑
çar algo de novo” é sempre um acto muito
pessoal. Mas costumo dizer aos meus alu‑
nos que algumas pessoas o conseguem
fazer, têm jeito para isso. Outras não.
E essas pessoas necessitam de outras para
as ajudar. Necessitam de ter na sua equi‑
pa pessoas empreendedoras que as ajudem
a construir aquilo que têm em mente.
E essas pessoas precisam de ter compe‑
tências complementares. Têm de ser pes‑
soas que não só são peritas em assuntos
como finanças, ou marketing, ou operações,
ou estratégia, ou gestão, mas também pes‑
soas que saibam funcionar em ambientes
muito difíceis. Metade de todos os ambien‑
tes não dispõem de capitais suficientes e
mudam rapidamente. Por isso, as pessoas
têm de ser muito flexíveis, saber aceitar a
mudança e conseguir mexer‑se num
ambiente muito ambíguo. Na minha opi‑
nião, é este o conjunto de competências
50
“Para uma pessoa efectivamente dar o passo e dizer ‘Vou começar algo de novo’
é sempre um acto muito pessoal.”
que deve ter uma pessoa que quer ser um
empresário ou funcionar num ambiente
empresarial.
[P] É possível ser‑se um empresário sem correr
riscos?
[PJ] Não creio. Mas, surpreendentemente,
deveria discutir‑se muito mais esse assun‑
to nos Estados Unidos. Curiosamente, assim
que uma pessoa tem uma ideia empresarial,
aquilo que faz é tentar reduzir os riscos.
Portanto, a pessoa aceita o risco, mas depois
disso concentra todos os seus esforços em
reduzir os riscos. E isto significa riscos tec‑
nológicos, riscos de mercado, riscos de
liderança… todos os riscos a que as empre‑
sas estão expostas. Os empresários estão
sempre, persistentemente, a tentar reduzir
os riscos. Mas assumem efectivamente um
risco quando iniciam a sua actividade.
[P] Pode partilhar connosco algum caso de empre‑
endedorismo por parte de um aluno?
[PJ] Vou contar‑lhe o meu caso preferido.
Há cinco anos, havia uma jovem chamada
Sara Shude a tirar o nosso curso de empre‑
endedorismo. Identificou uma ideia que
tinha a ver com o facto de as universidades
terem dificuldade em comunicar eficazmen‑
te com os pais dos seus alunos. Publicam
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
SOCIEDADE
material informativo, mas não têm muito
jeito para comunicar. Portanto, aquela jovem
identificou essa área e disse: “E se eu me
tornasse editora do material que a univer‑
sidade quer publicar e começasse a editar
uma publicação intitulada University Parents?”
A ideia teve tanto êxito que ela acabou por
alargar o serviço. Penso que actualmente tem
contratos com cerca de 160 universidades.
E fê‑lo com muito pouco capital.
[P] Como concilia o empreendedorismo com a
sustentabilidade?
[PJ] Conseguimo‑lo depois de sermos reco‑
nhecidos, durante vários anos, como um
dos principais cursos de empreendedoris‑
mo. Portanto, tivemos de pensar seriamen‑
te em que direcção o futuro iria avançar.
O que descobrimos foi que, cada vez mais,
os consumidores estavam a mudar a forma
como exerciam a sua actividade de modo
a tornarem‑se mais sustentáveis. E, tal como
os empresários fazem sempre, considerá‑
mos mudanças fundamentais. Quando as
empresas mudam de rumo, ainda que ligei‑
ramente, isso cria oportunidades para os
empresários, porque as grandes empresas
necessitam de novas soluções.
[P] Ensinar os portugueses a assumirem riscos é
diferente de ensiná‑lo aos americanos?
[PJ] Penso que há muitas diferenças. Quando
penso na história de Portugal, vejo que é
um dos melhores exemplos de empreende‑
dorismo baseado no risco movido pelo
desejo de tirar partido de novas oportuni‑
dades. É uma coisa natural, é uma coisa que
está no ADN aqui em Portugal. Na verdade,
para mim, à medida que aprendo mais sobre
o país, parece‑me uma anomalia.
Eu diria que há várias coisas que são
muito diferentes, e não sou um economis‑
ta, não sou um político do governo – estou
a observar isto de longe. Porque muitos
empresários tendem a ser bastante apolíti‑
cos. Estamos no terreno a criar empresas.
E temos um ambiente que nos permite
adaptar‑nos, um ambiente que muda quan‑
do se trata de sectores regulamentados.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
Portanto a energia e muitas outras coisas
ajudam‑nos, cada vez mais, a sermos ino‑
vadores, e as respostas que encontramos
estão a tornar‑se mais importantes para as
gerações vindouras nos Estados Unidos.
É tudo muito dinâmico.
Quais são então as diferenças? A primei‑
ra coisa que digo sempre é que nunca
devemos pensar nos Estados Unidos como
um país em que toda a gente faz a mesma
coisa. Há áreas nos Estados Unidos que
são muito empreendedoras. Nós estávamos
numa dessas áreas, portanto, isso fazia
parte da nossa cultura. No entanto, há
muitas áreas nos Estados Unidos que não
são nada empreendedoras.
Mas as semelhanças surgem ao nível
estadual. Todos sabemos o que a Califórnia
fez. É preciso que haja líderes com um
plano, líderes que preparem o cenário de
modo a que as empresas possam funcio‑
nar com confiança. Isso faz toda a dife‑
rença. Temos isso no Colorado. Portanto,
a diferença é que não o podemos fazer a
nível federal. Penso que Portugal tem
a possibilidade de ser muito mais eficaz,
definindo políticas a nível federal.
[P] É preciso não estar no seu perfeito juízo ou
ter um parafuso a menos para se ser um líder?
Ou ser emocional e impulsivo? E o que tem a
dizer sobre o Unreasonable Institute?
[PJ] Sem dúvida, sim. [Ri‑se.] Faz parte da
natureza humana resistir à mudança. Há uma
característica que define os empresários,
nomeadamente o facto de procurarem algu‑
ma coisa – vivem no limiar do que é sen‑
sato. Eu sei que eu vivo. Acredito que
quando não mudamos, ficamos para trás,
porque o mundo está a mudar. Está a mudar
[bate com os dedos na mesa] a cada segun‑
do. Qualquer pessoa que deseje manter
o status quo está a ficar para trás, porque o
mundo está a avançar rapidamente. Há sem‑
pre uma maneira melhor, uma maneira
diferente; há sempre uma nova oportunida‑
de. Há sempre uma mudança para identifi‑
car e para adoptar e da qual se pode tirar
partido de uma maneira ou outra.
Os empresários assumem riscos que a
maioria das pessoas não assume, e, depois,
põem‑se imediatamente a trabalhar no
sentido de reduzir esses riscos. Não gos‑
tam de viver num estado de risco cons‑
tante, mas têm as competências necessárias.
E isto conduz‑nos à educação. Se conse‑
guirmos ensinar uma pessoa a avaliar um
risco e quais são as coisas que é necessá‑
rio considerar para reduzir esse risco,
então conseguiremos colocá‑la numa posi‑
ção em que se sente confortável e diz:
“Creio que isto é um risco razoável que
posso assumir. Não é insensato da minha
parte assumi‑lo, porque há uma boa pro‑
babilidade de eu conseguir superar os
outros riscos. E, se eu conseguir fazê‑lo,
então vou aprender com isso”.
* Com André Sebastião
Sobre o Centro
de Educação
do Empreendedorismo
em Portugal (Ceep)
O Centro de Educação do Empreendedorismo
em Portugal (CEEP) é uma associação sem
fins lucrativos, na qual participam indivíduos,
organizações de educação, empresas,
entidades governamentais e da sociedade
civil. A missão do CEEP é apoiar o
desenvolvimento e a implementação de
programas nacionais de apoio à educação
e formação para o empreendedorismo
através de projectos de investigação,
educação e formação e ao processo de
desenvolvimento de políticas. O CEEP foi
criado em 2010 e tem acordos com
entidades nacionais incluindo: Universidade
de Lisboa, Universidade Católica Portuguesa,
Centro Regional do Porto, Universidade do
Algarve e a ISCTE‑Audax – Centro de
Investigação e Apoio ao Empreendedorismo
e Empresas Familiares.
51
SOCIEDADE
Perder para ganhar
Michael Fernandez dirige em São Francisco uma empresa que apoia outras empresas
e indivíduos a criarem novos negócios e a investir em áreas inovadoras, a JMF & Co. Fundou a
Little Kids Rock, uma das maiores organizações não lucrativas que ensina música nas escolas
públicas americanas a mais de 100 mil crianças. Explica que para ganhar geralmente
se começa por perder e que isso justifica que os californianos corram mais riscos.
SARA PINA
Por Sara Pina e Claudia Colla*
[Paralelo] O que é a inovação?
[Michael Fernandez] Segundo a minha pers‑
pectiva, inovação significa ter novas ideias.
E isso não é muito fácil, porque todas as
pessoas se sentem muito confortáveis com
aquilo que estão a fazer. Na verdade, ser
inovador é um estado de espírito. Ser ino‑
vador é correr alguns riscos, é correr o
risco de fracassar e, por outro lado, tam‑
bém, pôr em risco a forma como os outros
nos vêem.
[P] Se a inovação é um estado de espírito, como
se pode aprender a ser inovador?
[MF] Estou firmemente convencido de que
não é possível ensinar alguém a ser um
empresário. Mas, em parte, trata‑se de
ajudar uma pessoa a perceber que pode
correr um risco, e a primeira coisa que
ela dirá será talvez: “Curioso. Estou cons‑
tantemente a ter percepções que não me
deixam fracassar. E sou capaz de tomar
decisões mesmo que as pessoas não este‑
jam de acordo comigo.”
A outra parte consiste em ensinar‑lhes
um conjunto de competências diferentes.
A primeira é compreenderem a imagem
que têm de si mesmas – aliás, a compre‑
enderem as decisões que tomam. Quando
uma pessoa pensa que não é capaz de fazer
qualquer coisa, ou se tem um diálogo
interior negativo, então está como que a
limitar a sua capacidade de agir.
[P] Qual é a diferença entre lançar uma nova
empresa na Europa e na América?
[MF] Quanto a esse aspecto, os Estados
Unidos são diametralmente opostos à
Europa, pelo menos em São Francisco. Em
São Francisco não se pode dizer que o
fracasso seja considerado uma coisa boa,
mas é geralmente aceite – embora não
seja fácil sair de uma situação de fracasso,
é preciso todo um processo para compre‑
ender “Fiz isto e falhei”. Quando uma
52
“Os Estados Unidos são directamente opostos à Europa” no que diz respeito
a lançar uma nova empresa.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
SOCIEDADE
pessoa fracassa, sente‑se perfeitamente
confortável com isso. Na Europa, há a ideia
de que as pessoas não podem fracassar.
Em termos de empreendedorismo, os
investidores reconhecem que aprendemos
mais se reflectirmos sobre os erros que
cometemos. Isto é o extremo oposto do
que se passa na Europa e é o maior desafio
da Europa. É o maior desafio da Europa
porque penso que, para o mercado europeu
ser inovador ou experimentar coisas novas,
tem de haver algum gosto pelo risco, algum
gosto pelo fracasso. Não se pode pensar
que se uma pessoa tentar fazer qualquer
coisa e fracassar a sua vida acabou. Tanto
mais que as probabilidades de sermos bem­
‑sucedidos à primeira tentativa são extre‑
mamente remotas. Por vezes, alguns dos
casos mais interessantes são aqueles em que
as pessoas fracassam muitas vezes.
‘
Na Europa, há a ideia
de que as pessoas
não podem fracassar.
’
[P] Acha que os americanos são mais inovadores
do que os europeus?
[MF] Penso que os americanos estão dispos‑
tos a correr riscos que lhes permitem ser
mais inovadores. Não creio que sejam mais
inteligentes ou mais criativos, nem mais
inovadores. Penso que há uma cultura que
lhes permite correr riscos, uma cultura que
diz que não faz mal uma pessoa sair de onde
está e começar algo de novo.
[P] E o que tem a dizer sobre a Little Kids Rock?
[MF] A Little Kids Rock é uma sociedade
sem fins lucrativos que lançámos em finais
de 1999 e princípios de 2000. Havia uma
professora que tinha um programa de músi‑
ca para as escolas e fizemos uma parceria.
Ela sabia ensinar as crianças a tocar música
e eu sabia juntar pessoas. Arranjámos pes‑
soas com competências de contabilidade, de
gestão e jurídicas e formámos um conselho
de administração, e depois, juntos, come‑
çámos a angariar fundos. Começámos com
apenas 25 crianças nos Estados Unidos, e
agora já temos mais de cem mil crianças.
Temos mais de mil escolas no país, em 20
estados diferentes. Somos actualmente uma
das quatro principais organizações sem fins
lucrativos dos Estados Unidos em termos
de eficiência e impacto.
* Com André Sebastião
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
Antes oportunidades
que dinheiro
Por Sara Pina*
Professor de Estratégia e Gestão de Inovação
do Instituto Politécnico de Turim, em Itália,
e membro da direcção da Agência Nacional
Italiana para a Inovação, Mario Calderini
considera que, para incentivar a inovação,
os governos não podem concentrar‑se ape‑
nas no financiamento da investigação.
[Paralelo] Como é que as políticas públicas podem
criar as condições necessárias para que os países
se tornem mais inovadores?
[Mario Calderini] As políticas públicas devem
deixar de conceder dinheiro e financiamen‑
tos directamente às empresas e ser orien‑
tadas, principalmente, para a criação de
novas oportunidades de negócios e novos
mercados, baseando‑se na procura por
parte do público. Devemos obter consumi‑
dores para as empresas e proporcionar‑lhes
oportunidades de mercado, em vez de lhes
darmos dinheiro. Dessa maneira, as empre‑
sas assumem mais riscos e tornam‑se mais
inovadoras. Se lhes dermos dinheiro, tor‑
nam‑se preguiçosas.
[P] Já disse em várias ocasiões que a inovação é
gerada de cima para baixo. Pode explicar essa
ideia?
[MC] Se o modelo considerar grandes
empresas com grandes laboratórios de
investigação ou grandes universidades a
fazer muita investigação, então a inovação
é simplesmente gerada por essas actividades
de investigação. Mas, hoje em dia, penso
que os utilizadores finais/consumidores são
fontes de inovação muito importantes.
Muitas das inovações que temos, por exem‑
plo, no sector automóvel e no sector do
desporto devem‑se aos consumidores e não
à investigação. São fruto da procura.
Portanto, creio que devemos considerar a
investigação como apenas uma das muitas
fontes de inovação. Por que havemos de
descurar todas as outras?
[P] Considera que a Itália está a investir dema‑
siado nas universidades e na investigação?
[MC] Na minha opinião, não se devem
conceder fundos para investigação a
empresas que não fazem investigação. Seria
talvez mais útil dar esse dinheiro às uni‑
versidades e a umas quantas empresas que
se dedicam efectivamente à investigação.
O problema é que temos 77 universidades,
mas só dez, provavelmente, é que conse‑
guem gerar conhecimentos verdadeiramen‑
te avançados e novas empresas. A escolha
é muito clara. Ou concentramos os nossos
financiamentos nessas dez universidades,
ou se reparte o dinheiro pelas 77. Se repar‑
tirmos o dinheiro, temos um modelo de
educação e investigação com uma orienta‑
ção mais social, e todas as universidades
poderão fazer um pouco de investigação.
Mas nunca ninguém atingirá a massa crí‑
tica necessária para produzir um grau de
conhecimento elevado.
[P] Considera importante aprender sobre empre‑
endedorismo desde muito cedo? Desde a escola
primária ou secundária?
[MC] A minha opinião pessoal é que não
se deve começar com o empreendedoris‑
mo muito cedo. É necessário criar estu‑
dantes com uma mentalidade muito
flexível; é necessário que eles se apaixo‑
nem por assuntos como a engenharia e a
ciência. O que é importante é que o sis‑
tema educacional os ajude a terem um
espírito mais aberto do que voltado para
o empreendedorismo. O empreendedo‑
rismo vem mais tarde.
[P] Não acha que o sistema educacional na
Europa é em certa medida contrário a esse tipo
de mentalidade aberta?
[MC] Estou inteiramente de acordo. De um
modo geral, se pegarmos em estudantes
universitários europeus e lhes concedermos
fundos para fazerem um doutoramento ou
programas de pós­‑graduação nos Estados
Unidos eles têm um excelente desempenho,
porque têm uma óptima formação. Mas o
lado negativo é, evidentemente, que se o
seu ensino tiver sido muito rigoroso e vie‑
rem de programas muito rígidos, muitas
vezes, não estão habituados a ser flexíveis.
Se pegarmos num estudante inglês ou –
mais ainda – num estudante americano, é
provável que ele tenha passado menos tempo
a estudar o que vem nos livros e mais tempo
a divertir‑se e a ser criativo. Portanto, há
aspectos negativos e positivos.
* Com André Sebastião
53
SOCIEDADE
Anita Catlin
“O cuidado paliativo é como fazer
um parto do processo de morrer”
“Esta é Anita Catlin. Convidámo‑la para falar, embora não acreditemos
em nada do que diz.” Foi deste modo que em 1996 a investigadora americana
Anita Catlin foi apresentada a uma plateia de médicos de uma grande unidade perinatal
num importante hospital dos Estados Unidos.
Por MÓnica Carvalho*
Na ocasião, a doutora em enfermagem
materno‑infantil e especialista em ética
perinatal foi convidada para falar sobre o
fim de vida dos recém‑nascidos, então
uma espécie de tabu entre os profissionais
da área. “As pessoas não queriam falar;
não acreditavam que houvesse qualquer
outro modo de tratar um recém‑nascido
que estava a morrer.” Anita Catlin esteve
em Portugal para dar um curso aos alunos
do doutoramento em Bioética, na
Universidade Católica Portuguesa, onde
nos falou do seu trabalho.
No início dos anos 1990, Anita Catlin
interessou‑se pelo estudo dos direitos da
mãe e da criança ao observar que o tra‑
tamento das grávidas focava‑se mais no
feto do que na mãe. Narra o caso de uma
mulher de origem indígena que desen‑
volveu diabetes gestacional e foi atendida
na unidade em que trabalhava. É‑lhe recei‑
tada insulina, tratamento que a mulher
recusa. Sem mais argumentos para con‑
vencê‑la a tomar insulina, os médicos
ameaçam denunciá‑la por abuso do seu
futuro filho. “Ninguém lhe perguntou o
que significava a insulina para ela. Teria
medo da injecção? Teria conhecido alguém
que morrera por causa da insulina?
Estavam tão focados no feto, nas suas
necessidades, que me pareceu que não
pensavam na mãe”, diz Catlin.
Além do direito da mãe e da criança,
Anita Catlin também começa a estudar ética
nos cuidados paliativos neonatais. Catlin foi
uma das pioneiras nesta área. De facto, nos
eua, em meados dos anos 1990, os deba‑
tes sobre os cuidados paliativos neonatais
ainda não eram muito considerados pelos
54
profissionais de saúde. “Vi médicos muito
las de enfermagem é comum haver um
irritados porque eu dizia que se devia olhar capítulo sobre o fim de vida. Contudo,
para o contexto da família.”
o mesmo não acontece em medicina,
Para a investigadora, as tecnologias cos‑
embora haja crianças que morrem com
tumam ser aplicadas de forma muito ampla
frequência nas unidades neonatais e nos
sem qualquer reflexão ética acerca da sua cuidados intensivos pediátricos. “Se abrir
utilização. Dá o exemplo da nutrição arti‑ qualquer livro usado na formação dos
ficial por sonda. A prin‑
cípio, esta técnica
destinava‑se aos que
recuperavam das lesões
causadas pela ingestão
Se abrir qualquer livro usado
de veneno ou que
na formação dos médicos – conheço
tinham cancro no esó‑
fago. Actualmente é uti‑
todos, também são usados em Portugal
lizada em qualquer
– a palavra morrer não aparece.
doente que não tenha
apetite. Segundo Anita
Não há nada nos livros que ensine
Catlin, “No meu país,
ao médico como retirar um tratamento,
põe‑se uma sonda em
muitas pessoas e come‑
como limitar o uso da tecnologia,
ça‑se a alimentá‑las arti‑
como proporcionar um fim de vida
ficialmente, de modo a
mantê‑las vivas por
digno. Nenhuma palavra.
muito tempo, embora
não se consiga alterar o
seu prognóstico. Na bioética as pessoas médicos – conheço todos, também são
preocupam‑se com essas questões. Já que usados em Portugal – a palavra morrer
se sabe o que fazer, deve‑se fazê‑lo? Será o
não aparece. Não há nada nos livros que
benefício maior que o malefício?”
ensine ao médico como retirar um tra‑
tamento, como limitar o uso da tecno‑
logia, como proporcionar um fim de vida
Ignorar a morte na saúde
digno. Nenhuma palavra”.
Anita Catlin destaca que a dificuldade em
Declara, porém, que o cenário tem vindo
lidar com a morte nas unidades pediá‑ a alterar‑se, inclusive em Portugal, que
tricas ou neonatais se deve, em grande considera estar em grandes mudanças.
parte, à própria formação em saúde, em Destaca o Hospital de São João, no Porto,
especial na medicina. Afirma que nos que se prepara para criar uma unidade de
livros de enfermagem neonatal das esco‑ cuidados paliativos pediátricos, a primeira
‘
’
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
SOCIEDADE
do País. Apesar deste passo importante,
inquieta‑se por ainda existirem em Portugal
muitos casos de crianças que vivem em
Angola, nos Açores ou na fronteira com a
Espanha, e que são transferidas para hos‑
pitais centrais, na esperança de obterem a
cura ou a melhora do seu estado. Contudo,
muitas dessas crianças têm prognósticos
graves e acabam por morrer longe da sua
comunidade, por vezes afastadas também
dos seus familiares. “Creio que se houves‑
se bons cuidados paliativos talvez isso não
acontecesse tanto”, diz.
Para a investigadora, os cuidados palia‑
tivos envolvem um grande esforço de
equipa, onde cada profissional tem um
papel. Para os que estudam ou querem
trabalhar nesta área, destaca que os cui‑
dados paliativos pressupõem que diferen‑
tes pessoas possam trabalhar em conjunto,
de modo que todos se sintam bem com
o próprio trabalho. “Certa vez ouvi alguém
dizer que os cuidados paliativo são como
fazer um parto. A parteira e a equipa tra‑
zem a pessoa à vida. Há a parteira e o
médico, o assistente social, o nutricionis‑
ta, o farmacêutico, muitos estão envolvi‑
dos em trazer para a vida. E eu creio que
o cuidado paliativo também é como fazer
um ‘parto’ do processo de morrer.”.
* Psicóloga e jornalista. Doutora em Comunicação e Cultura.
Investigadora do Instituto de Bioética da Universidade Católica
Portuguesa
DR
Pensar menos na eutanásia
Embora a eutanásia não seja permitida
nos eua , nos estados de Oregon,
Washington e Montana há o suicídio
assistido – Physician aid‑in‑dying ou pad. No
suicídio assistido, o médico, a pedido do
doente, prescreve medicamentos que
antecipam a sua morte. Mas Anita Catlin
acrescenta que entre aqueles que solici‑
tam a prescrição ao médico, a maioria
não toma esses medicamentos. Portanto,
conclui a investigadora, o suicídio assis‑
tido parece mais uma questão de contro‑
lo sobre o próprio destino, “controlo
sobre como morrer”.
Catlin acha que as pessoas tenderão a
pensar cada vez menos na possibilidade
da eutanásia ou do suicídio assistido se
puderem tratar os sintomas desconfortá‑
veis da morte e ter um fim de vida com
qualidade. A sua ideia tem por base o
aumento dos cuidados paliativos no esta‑
do de Oregon desde que o suicídio assis‑
tido passou a ser legal. Uma reacção,
segundo ela.
Anita Catlin esteve em Portugal para falar dos cuidados paliativos.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
55
PERFIL
Donald Finberg, primeiro presidente da FLAD
Um espírito independente
com sentido de missão
“Finberg representava todas as qualidades que eu identifico nos EUA:
simplicidade, mérito, solidariedade”, refere um ex‑funcionário da Embaixada dos EUA
que trabalhou com o primeiro presidente da FLAD. O diplomata e administrador
Donald Finberg regia a sua actividade profissional por uma elevada bitola ética,
que deixou marcas indeléveis na Fundação Luso‑Americana. O sentido de solidariedade,
o humor e a cortesia deixaram outras tantas na vida dos seus colaboradores e amigos,
que o recordam com saudade e deferência.
Os mais desavisados podiam interpretar o
“tome assento” que Donald Richard Finberg
dirigia à secretária, Luiza Gomes, como
uma solicitação para anotar instruções e
dados para uma qualquer tarefa. Mas não,
o primeiro presidente do Conselho
Executivo da Fundação Luso‑Americana
para o Desenvolvimento estava apenas a ser
cortês na sua forma bem humorada, con‑
vidando a actual chefe dos serviços admi‑
nistrativos para confortavelmente take a seat
num sofá ou cadeira do gabinete. “Era
muito competente, seguro, organizado.
Também era muito teimoso, directo e não
guardava esqueletos no armário. E aprecia‑
va que as pessoas também fossem assim
com ele”, descreve Luiza Gomes que, em
três curtas frases, resume muito do que
pensavam os mais próximos do diplomata
que morreu, no passado dia 25 de Abril,
em McLean (Virgínia).
A personalidade, educação e experiência
do homem nascido a 23 de Novembro de
1931, em Baltimore (Maryland), terão con‑
corrido em doses complementares para
formar o espírito livre, de arreigada inde‑
pendência e firmes princípios éticos que
caracterizavam Donald Richard Finberg.
Formado na Universidade de Princeton nas
áreas da administração pública e relações
internacionais, ingressou em 1960 na
Agency for International Development,
entidade do Departamento de Estado nor‑
te‑americano para a cooperação económi‑
56
DR
Por Isabel Marques da Silva
Mário Soares com Donald Richard Finberg nos anos 1980.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
PERFIL
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
‘
cepção funcional criou
raízes que perduraram:
Finberg era um pedagogo no sentido
“Dava muita importân‑
cia à avaliação dos resul‑
de veicular uma certa ética na forma
tados, criou grelhas
de fazer os projectos. Questões como
muito claras e fazia
questão de difundir
o não conflito de interesses e a boa
junto dos media os pro‑
gestão de dinheiro público eram
jectos que estavam no
terreno e de fazer o
José Luís Almeida Pinheiro, consultor
sagradas.
balanço do que tinha
sido realizado. Era um
entusiasta do projecto flad e isso era con‑ peia, pessoa muito honrada, com visão
tagiante para todos os que trabalhavam com aberta da vida e do mundo, muito inteli‑
ele”, recorda Fernando Durão, que ocupa‑ gente, democrata e de enorme integrida‑
va na altura a direcção da Educação.
de”. Tal como o colega da Educação,
Outro director, na área da Ciência e o actual eurodeputado socialista destaca
Tecnologia, António Correia de Campos, o papel fundamental de Finberg na criação
também recorda com saudade “o diplo‑ de mecanismos que credibilizaram a acção
mata polido, conhecedor da cultura euro‑ da flad. “Acreditava na desburocratização
’
DR
ca com países em desenvolvimento. Passou
pelo Brasil, Paraguai e Peru até chegar à
Embaixada dos eua em Portugal onde ficou
até 1985. Com o estatuto de ministro‑con‑
selheiro, reformou‑se da carreira diplomá‑
tica para regressar pouco depois a Lisboa
e lançar a flad, presidindo ao primeiro
Conselho Executivo. Vinha lançar as semen‑
tes de uma instituição para a cooperação
de tipo novo num país marcado pela dita‑
dura mais longa da Europa. Com ele tra‑
balhar ia estreitamente o ainda
administrador Charles Buchanan, incondi‑
cional admirador do seu espírito de missão.
“Era muito convicto das suas ideias e per‑
sistente, porque era muito trabalhador e
sustentatava as decisões com base em tra‑
balho intenso. Algumas pessoas considera‑
vam até que era um workaholic, porque não
descansava até terminar uma tarefa ou uma
investigação. Fez muitas consultas com
peritos e muitas visitas a instituições para
que fosse feito o melhor projecto de fun‑
dação, para conceber o melhor sistema de
gestão”, afirma.
A sua rectidão e rigor destacaram‑se
desde sempre aos olhos dos mais próxi‑
mos. “Ele traçava a direito, dizia o que
tinha a dizer e seguia os seus critérios.
Tinha a percepção que em Portugal a ges‑
tão de lugares de poder era feita na base
da cunha e da filiação partidária, o que
lhe fazia muita confusão. Finberg era um
pedagogo no sentido de veicular uma certa
ética na forma de fazer os projectos.
Questões como o não conflito de interes‑
ses e a boa gestão de dinheiro público
eram sagradas. Ele costumava dizer que
mais do que uma democracia, Portugal
precisava de uma meritocracia e traduziu
isso no seu projecto para a flad”, expli‑
ca o consultor José Luís Almeida Pinheiro,
que trabalhou para Finberg na Embaixada
dos eua em Lisboa e que ajudou a con‑
ceber a orgânica da Fundação.
Em 1986, Portugal tinha pouco mais de
uma década de experiência democrática e
estava a iniciar a aventura como membro
da comunidade europeia, mas sofria de um
grande atraso ao nível das competências
para evoluir para uma sociedade mais aber‑
ta e competitiva. A educação, a ciência e a
tecnologia, o desenvolvimento regional, o
apoio à sociedade civil e ao sector privado
eram prioridades fundamentais. Finberg
queria que os mais de 100 milhões de
dólares de dotação financeira fossem
empregues de forma muito criteriosa, em
menos de uma década, para acelerar esse
processo, mas a flad acabou por ter um
estatuto perpétuo. A sua tese sobre a lon‑
gevidade da flad não venceu, mas a con‑
“Finberg representou todas as qualidades que eu identifico nos EUA: simplicidade, mérito,
solidariedade”, caracteriza Almeida Pinheiro que trabalhou com ele.
57
PERFIL
Um democrata teimoso
Charles Buchanan regressou recentemen‑
te dos eua onde foi convidado a fazer
mais uma apresentação sobre a forma
como foi concebida e implementada a
flad, tal o carácter inovador e de sucesso
do projecto. Muito desse sucesso deve‑se,
como se viu já, ao rigoroso espírito de
missão de Finberg, mas essa sua determi‑
nação exigia um certo travão externo. “Era
muito centralizador e logo no início tive
de ter uma conversa com ele porque não
gostava de delegar e eu exigia ter mais
autonomia. Ele entendeu o meu ponto de
vista e aceitou”, afirma Fernando Durão,
que reconhece na teimosia a faceta mais
difícil de gerir nas relações com o primei‑
ro presidente da Fundação. “Finberg repre‑
sentava todas as qualidades que eu
identifico nos eua: simplicidade, mérito,
solidariedade. Mas era muito teimoso e
tinha que se lhe fazer frente. E ainda assim
era difícil fazê‑lo mudar de opinião, por‑
que era muito impaciente e decidido”,
acrescenta Almeida Pinheiro.
Nem sempre Finberg conseguiu levar a
sua avante e como democrata de cepa que
era acabava por aceitar a vontade da maio‑
ria e, até, reconhecer mais tarde o mérito
de ideias que ao início lhe desagradavam.
“Devido às suas convicções, ele não tinha
sempre a concordância dos outros mem‑
bros do conselho executivo. Era teimoso,
mas acabou por rever a sua posição em
alguns casos. Havia muito debate sobre
algumas áreas, como por exemplo a coo‑
peração com a África lusófona. Ele achava
que não era a vocação da flad, mas mais
tarde reconheceu que foram bons os resul‑
tados dos projectos trilaterais que eu tanto
defendera”, refere Charles Buchanan.
Correia de Campos recorda outras duas
áreas onde a famosa teimosia de Finberg
acabou por não se traduzir no terreno:
“Votou vencido na compra deste edifício
e tinha enorme reserva sobre a colecção
de arte da Fundação, mas era muito demo‑
58
crata e respeitava a
decisões do Conselho
Executivo.
Para José Luís Almeida
Dava muita importância à avaliação
Pinheiro, esta rectidão
dos resultados, criou grelhas muito
e teimosia não se coa‑
dunavam muito com
claras e fazia questão de difundir junto
uma certa tradição do
dos media os projectos que estavam
“politicamente correc‑
to” que marcava as
no terreno e de fazer o balanço do que
decisões e relações de
tinha sido realizado. Era um entusiasta
poder em Portugal. “Ele
chamava os bois pelos
do projecto FLAD e isso era contagiante
nomes e acabou por
para todos os que trabalhavam
sair de Portugal em
parte por razões políti‑
Fernando Durão
com ele.
cas. Ele disse ‘não’ a
algumas figuras de
muito poder em
sido reconhecida oficialmente a sua con‑
Portugal. Além disso, os três primeiros
tribuição para o desenvolvimento do País:
mandatos deveriam ter sido presididos por
norte‑americanos, para desampatar as situ‑ “Uma das coisas que mais me magoou
foi ele nunca ter sido condecorado pelo
ações mais complicadas entre os adminis‑
tradores portugueses ligados aos dois Estado português, tendo em conta que fez
principais partidos (ps e psd) e ele fez um trabalho importante. Mas na altura
esse desempate várias vezes. Mas quando
ninguém gostou muito de que o primei‑
saiu da flad, o princípio da não partida‑ ro presidente da flad tivesse sido um
rização da presidência deixou de ser res‑ norte‑americano e não um português. Isso
peitado.” Correia de Campos reconhece foi uma fonte de dificuldade, mas ele
que Finberg nunca se preocupou em dei‑ merecia ter sido mais reconhecido. Os seus
xar uma marca ideológica, em “ficar na
três anos de trabalho moldaram a Fundação
História”, porque “pensava operacional‑
numa cultura de independência e aparti‑
mente face à missão que lhe foi entregue”. darismo, que funcionava sem filtragem
Mas o ex‑director lamenta que não tenha ideológica.”
‘
’
DR
e na avaliação interpares e independente.
Criou um pequeno papel, uma espécie de
folheto, que dava toda a informação sobre
os concursos e, depois de uma primeira
triagem, entregavam‑se as candidaturas a
peritos para fazerem pareceres de não mais
de 20 páginas. Só depois os directores
pegavam nos projectos e estruturavam o
processo de subsídio. Ao fim de um ano
o projecto era avaliado por alguém con‑
vidado externamente e com visitas ao
terreno para aferir das reais transforma‑
ções”, refere.
Finberg e Buchanan, dois americanos em Lisboa enquanto administradores da FLAD, nos anos 1980.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
Paula Vicente
PERFIL
Em Junho de 2010, Donald e Hela Finberg visitaram Portugal.
Do humor
e dos pequenos gestos
Mas Portugal tinha conquistado definitiva‑
mente o coração de Finberg, que ao fim
do seu mandato regressa aos eua para tra‑
balhar de novo na área das relações com a
América Latina, na Pan American
Development Foundation e na Partner of
the Americas. Mas não sem deixar de com‑
prar um apartamento na Praia Maria Luísa,
no Algarve, onde continuou a receber os
seus amigos portugueses nas férias. Com
eles podia discutir muitos dos problemas
nacionais porque continuou a assinar o
semanário Expresso e com certeza pergunta‑
va pela qualidade do programa musical da
Fundação Gulbenkian. “Não perdia os con‑
certos e organizava idas em grupo, fazendo
circular o programa. E também tinha muito
sentido de humor, embora um bocadinho
corrosivo. Tenho saudades daquele tempo
em que trabalhávamos muito, em espaços
pequenos e de forma muito profissional
mas também familiar. Por vezes trazia bolo
de casa, feito pela mulher”, recorda Luiza
Gomes, que se tornou amiga de Finberg.
Almeida Pinheiro também considera um
privilégio ter podido continuar a convi‑
ver com o seu chefe na Embaixada dos
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
eua em Lisboa e recorda com saudade
as corridas pelas tasquinhas da cidade
“porque ele adorava a nossa comida”, as
conversas temperadas com um bom vinho
e o “notável espírito de humor, com um
sarcasmo muito queirosiano. Mas debai‑
xo do seu sarcasmo era de uma ternura
comovente”, refere.
da Paula Vicente, que trabalhou como
secretária de Finberg desde os primeiros
dias de formação da flad . Apesar da
grande exigência profissional, o bem‑estar
dos colaboradores e oportunidades para
o seu crescimento eram uma divisa.
“Engravidei logo no arranque da
Fundação, quando ainda trabalhava aqui
há poucos meses, mas
Finberg fez questão
que depois da licença
Tenho saudades daquele tempo em
regressasse ao meu
posto. Aprendi muito
que trabalhávamos muito, em espaços
com ele porque ajuda‑
pequenos e de forma muito profissional va as pessoas a valori‑
zarem‑se e não queria
mas também familiar. Por vezes trazia
que estagnassem”, refe‑
bolo de casa, feito pela mulher.
re a actual assessora
junto da administração.
Luiza Gomes
Paula Vicente relembra
ainda a visita que
Finberg fez ao seu
“Dizia ‘Our house is your house’, e bebé, o sorriso com que perguntava pela
via‑se que sentia isso mesmo. Aliás, todos família de todos, e de como passava pelos
os anos enviava cartões de boas­‑festas corredores com os auscultadores na cabe‑
acompanhados de uma carta detalhada ça a ouvir música clássica. “E às vezes
que dava conta dos principais aconteci‑ perguntava: ‘Any news? When the cat is
mentos do ano na sua vida. Era uma
away...’, e eu respondia ‘the mice will
espécie de newsletter da sua família”, recor‑ play!’”, recorda.
‘
’
59
SOCIEDADE
Entre Tires e Rhode Island, USA
Histórias de reclusas
Um dos poucos estudos que existem sobre mães presas foi publicado
por uma norte‑americana, neta de portugueses. Sandra Enos, de 61 anos,
recebeu‑me na sua casa tipicamente americana de Providence, Rhode Island.
Por Isabel Nery
DR
Mais do que as origens lusas, temos em
comum o interesse pela maternidade atrás
das grades, que deu origem ao seu livro
Mothering from the Inside – Parenting in a Women’s
Prison (A Maternidade a Partir de Dentro
– Ser Mãe numa Prisão de Mulheres).
O estabelecimento prisional onde Sandra
Enos entrevistou as reclusas para o seu
estudo fica a pouco mais de 40 quilóme‑
tros. Deixamos a casa da socióloga e entra‑
mos na movimentada Interstate 95, uma
das maiores auto‑estradas do país, que liga
Rhode Island a Nova Iorque.
Sandra Enos estudou a maternidade das reclusas em estabelecimentos prisionais americanos.
60
No Centro de Detenção
A prisão é um aglomerado de edifícios
em tijolo burro, adaptados e aumentados
ao longo dos anos para albergar 3400
presos, dos quais apenas 181 são mulhe‑
res. O conjunto que nos interessa – o
feminino – abriu em 1936 como hospital
psiquiátrico. Hoje tem dois edifícios para
reclusas.
Assim que chegamos sou apresentada à
directora responsável pela área de reinser‑
ção, Roberta Richman, que nos aguardava.
Embora não seja de segurança máxima, o
estabelecimento tem prisioneiras com
sentenças que vão dos três meses à prisão
perpétua.
O calor húmido, típico da costa leste
americana, fez subir os temómetros acima
dos trinta graus. Para lá das paredes do
velho prédio chega‑se facilmente aos qua‑
renta. A temperatura no edifício dispara à
medida que deixamos os serviços e segui‑
mos em direcção às celas.
Talvez por isso, mas também porque
não há trabalho para muitas reclusas,
vejo várias estendidas na cama, num
estado que só parece oferecer duas esco‑
lhas: letargia e depressão ou depressão
e agressividade.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
As prisioneiras com quem me cruzo
parecem mais derrotadas do que assusta‑
doras. Vestem andrajos laranja ou caqui,
consoante sejam condenadas ou aguardem
julgamento. Algumas usam t‑shirt branca
por debaixo do uniforme. As fardas têm
apenas duas peças: umas calças de elásti‑
co e uma camisa de gola em bico.
Sempre com o argumento da segurança,
até a lingerie vinda de fora da cadeia foi
proibida, como recorda a guarda Miller,
de 50 anos. “Uma reclusa conseguiu pas‑
sar droga na bainha das cuecas. A partir
daí deixaram de poder trazer a própria
roupa.”
Aquele que é considerado o maior esca‑
pe legal para qualquer prisioneiro – o
tabaco – é completamente interdito em
todos os espaços da penitenciária, inte‑
riores ou exteriores.
A única proibição que admitem não
levar tanto à letra é a que impede o toque
físico, embora nos eua, não levar tanto à
letra signifique apenas isto: “Se for um
abraço curto fechamos os olhos, mas se
ficarem nisso muito tempo são castigadas.
É proibido tocarem‑se!”
Nas visitas repete‑se o espírito proibi‑
cionista. Abraçar os filhos, só sentadas.
Durante duas horas, as reclusas não se
podem levantar. Nem para brincar com as
crianças, aliciadas com doces para prolon‑
gar ao máximo o raro momento de pro‑
ximidade física entre mãe e filho.
Para evitar entrada de drogas, as conde‑
nadas são obrigadas a despir‑se ao serem
admitidas ou ao regressarem de uma saída.
Por vezes, a revista implica também o
“controlo das cavidades”.
A guerra contra a droga, em crescendo
nos eua desde a Administração Reagan, sem
efeitos práticos na redução do crime e con‑
sequências brutais para as mulheres – em
2008, havia 2821 reclusas no estado de
Nova Iorque e uma em cada três estava
presa por crimes relacionados com narcó‑
ticos –, sente‑se há muito nas cadeias.
Mães reclusas
Já percorremos vários corredores de celas
e reparo que nada as distingue. Ao con‑
trário do que acontece em Tires, não há
corações nem fotografias nas divisórias.
Explicam‑me que é assim – limpo e des‑
personalizado – para evitar incêndios.
Penduradas nas paredes só as câmaras de
videovigilância instaladas nas celas.
Servem para controlar, mas não inibem
a repetição da contagem de reclusas seis
vezes por dia.
No próximo apuramento já todas as
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
José Carlos Carvalho
SOCIEDADE
Estendal com roupa de crianças, mostra‑nos que aqui não vivem só condenadas.
país democrático, as pri‑
sões são os espaços com
mais analfabetos por metro
Sempre com o argumento
quadrado. Deste lado do
da segurança, até a lingerie vinda
Atlântico, 58 por cento das
reclusas não terminaram
de fora da cadeia foi proibida, como
sequer o ensino secundá‑
recorda a guarda Miller, de 50 anos.
rio. Petra, porém, concluiu
“Uma reclusa conseguiu passar droga um curso de Marketing.
Um número elevado de
na bainha das cuecas. A partir daí
criminosos queixa‑se da
falta de trabalho regular –
deixaram de poder trazer a própria
74 por cento das america‑
roupa.”
nas estavam desempregadas
antes de serem condenadas.
Ela tinha um bom empre‑
go, ganhava 15 dólares por hora e ainda
mulheres deverão ter regressado às cama‑
ratas. Devo aproveitar este intervalo para aspirava a progredir na carreira. Proprietária
entrevistar as prisioneiras que aceitaram de casa e carro, até estava economicamen‑
falar comigo. Disponibilizaram‑nos uma te acima dos excluídos do costume.
Não é um caso óbvio, mas isso não a
sala climatizada, o que explica os sorrisos
de alívio à entrada. Reflectindo a ciência impede de ter um passado afectivo com
dos dígitos – o número de reclusas cres‑ ajuste perfeito nos estudos sobre crimi‑
ceu 138 por cento nos últimos dez anos nalidade. Várias investigações concluíram
devido à guerra contra as drogas – a esma‑ que mais de 50 por cento das prisioneiras
gadora maioria cumpre pena por tráfico. foram vítimas de abusos físicos ou sexu‑
Comecemos pela excepção. Quem se ais antes da reclusão. Para os homens a
encontrasse com ela na rua apostaria tudo taxa ronda os 15 por cento. Antes de fazer
menos um percurso criminal. Ela própria vítimas já Petra o era. O namorado abu‑
perderia a aposta. Petra, 27 anos, tem um sava sexualmente dela. Roubou‑lhe a
belo cabelo louro enrolado com esmero auto‑estima.
Mais do que confessar crimes, custa‑lhe,
em forma de novelo. Os óculos estreitos,
que se antecipam a profundos olhos azuis, como a todas as outras mulheres, confessar
maternidades interrompidas. Quando lhe
dão‑lhe um ar intelectual.
Nada da sua biografia encaixa em esta‑ pergunto com quem deixou os filhos de 4
tísticas ou sequer estereótipos. Nos eua, e 7 anos, responde com prantos. “Na altu‑
a maioria da população prisional é negra. ra da detenção o mais novo tinha 3 anos.
Ela é loura, de olhos claros. Em qualquer Com o desgosto caiu‑lhe o cabelo todo.”
‘
’
61
SOCIEDADE
‘
Na maior parte dos estabelecimentos prisionais dos EUA
as mães reclusas e os filhos não podem estar juntos.
Algumas mulheres são incapazes de pôr a maternidade
em primeiro lugar, mas entre as reclusas encontrei
boas mães e famílias estáveis.
’
que tem vivido tão depressa como fala.
De rajada, ficamos a saber que o filho de
11 meses nasceu viciado no mesmo pó
que fazia a mãe prostituir‑se.
Sophy, condenada por tráfico de droga,
é o fim de uma linha de exclusão e ins‑
titucionalizações familiares. Vítima de
abusos em criança, antes de ser apanhada
pela polícia vendia‑se por 20 dólares. Não
lhe custa admitir que precisava da ajuda
encontrada na cadeia: “Estar aqui sal‑
vou‑me a vida. Se não fosse a consulta a
que me obrigaram a ir depois de ser presa,
o meu filho teria nascido cego!”
Menos insegura, Tricha, condenada a
uma curta pena de 18 meses, personifica
o papel da pobreza e do crime geracionais
nas vidas destas reclusas. Viciada desde os
13 anos, mãe dependente de heroína, pai
de álcool. Dois fugazes encontros mater‑
nais durante uma vida foi o mais próximo
que teve de relação familiar.
As palavras partilhadas com dureza soam
a autoflagelação. Como se merecesse o
sofrimento e não precisasse de ninguém
para lhe dizer como tudo está errado. “Sou
uma junky de 22 anos e estou presa.
Sou incapaz de ser mãe. Sinto muitos
José Carlos Carvalho
O outro filho está perto de perdido para
a custódia do pai, que se nega a trazê‑lo
à visita. Uma vez iniciada uma guerra
judicial, o sistema americano será impla‑
cável. Ao pai não custará provar que é
melhor educador do que uma mãe delin‑
quente. Petra não vê este filho há quase
um ano porque o ex‑companheiro boi‑
cota todas as visitas.
Depois das entrevistas feitas na peniten‑
ciária, Sandra Enos concluiu que o crime
no feminino tem dupla penalização. Além
do castigo legal, as mulheres perdem,
muitas vezes, a custódia dos filhos. “Na
maior parte dos estabelecimentos prisio‑
nais dos eua as mães reclusas e os filhos
não podem estar juntos. Algumas mulhe‑
res são incapazes de pôr a maternidade
em primeiro lugar, mas entre as reclusas
encontrei boas mães e famílias estáveis.”
De acordo com o Prison Activist Resource
Center, todos os dias há 90 mil detidas
nos eua e 167 mil crianças são obrigadas
a crescer longe das mães.
Quando se ouve Sophy, de 24 anos, sen‑
tada mesmo ao lado de Petra, percebe‑se
Jesufina, na ala da “Casa das mães”.
62
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
remorsos, mas isso não muda nada. Antes,
se me dessem a escolher entre a cocaína
e a bebé, entregava‑a no momento em
troca de umas linhas.”
De acordo com o Departamento de
Justiça dos eua, cerca de dois milhões de
menores de 18 anos têm o pai ou a mãe
na cadeia. Os quilómetros que separam as
reclusas da sua descendência é um dos
efeitos do aprisionamento mais gravoso
para as mulheres, e um daqueles que é
uma consequência de género.
O estado de Nova Iorque foi inovador
ao permitir a presença de crianças junto
das mães em 1902, data em que abriu a
primeira creche numa prisão. Levou quase
um século até que outros estados seguis‑
sem o exemplo.
Mesmo assim, Nova Iorque manteve‑se
excepção até 1994, quando o Nebrasca
repetiu a iniciativa. Desde o final dos anos
1990, abriram mais sete estabelecimentos
deste tipo no sistema prisional norte‑ame‑
ricano.
Embora Portugal tenha uma experiência
longa – a prisão feminina de Tires, inau‑
gurada em 1953, sempre permitiu a pre‑
sença de menores – não há estudos que
avaliem estas medidas.
A somar a todos os constrangimentos
sociais comuns à maternidade atrás das
grades, as reclusas americanas têm ainda
de ultrapassar um obstáculo menospreza‑
do pelos sistemas prisionais, todos eles
com uma visão demasiado masculina – os
quilómetros.
DR
SOCIEDADE
“Mais de metade das presas nunca foram visitadas pelos seus filhos durante a reclusão”,
conclui Sandra Enos no seu estudo.
reclusas que deu toda uma vida ao sistema
de justiça. Trança negra a fazer de bande‑
lete, tem o ar zangado que uma vida de
cinquenta e quatro anos a entrar e sair de
prisões lhe merece. Está detida por causa
de “um acidente com drogas”. Da sua
história faz parte um filho de 12 anos que
anda em pais adoptivos
desde os 18 meses – por
causa da cocaína.
Tráfico para consumir,
Em Rhode Island as grávidas
sustentar a família, calar o
vício do companheiro.
ficam livres de algemas durante
Sempre o tráfico na vida
o trabalho de parto, o que não
das reclusas. Em Portugal,
como do outro lado do
impede as autoridades de as
Atlântico. Em Portugal, um
acorrentarem à cama do hospital
dos países mais pobres da
União Europeia. Como nos
por um tornozelo logo que
EUA, um dos mais ricos do
o bebé nasce.
mundo.
Augustine voltará a ser
livre já daqui a quatro meses,
mas o que a espera lá fora
Sandra Enos lembra uma investigação são cinco filhos e 12 netos. Uma das rapa‑
de 1993 indicando que “mais de metade rigas já esteve presa, um dos rapazes cumpre
das presas nunca foram visitadas pelos pena por duas condenações à morte.
Tem o discurso ensaiado à custa da expe‑
seus filhos durante a reclusão”. A distân‑
cia entre a casa e a cadeia era o principal riência prisional acumulada: “Eduquei os
meus filhos o melhor que pude. Se fazem
factor desencorajador das visitas, já que
“60 por cento das reclusas estavam a mais o que fazem é responsabilidade deles. Peço
a Deus que me perdoe e tento avançar,
de 150 quilómetros das suas famílias”.
Augustine é apenas uma das muitas mas estou dentro e fora desde miúda.”
‘
’
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
O relato é tão duro que me lembra uma
das ironias destes modos de vida: quanto
mais brutais as memórias, mais urgente
é resumi‑las. A maior parte das mulheres
que me rodeia na sala do estabelecimen‑
to prisional de Rhode Island retrata‑se
como Augustine. Arremessam a sua histó‑
ria de vida com uma crueza que parece
querer neutralizar o ouvinte, esvaziá‑lo de
crítica.
Já perto do gradão de ferro que se abri‑
rá para eu sair quase tropeço numa negra
grande e sorridente. Parece‑se com Adília,
a reclusa portuguesa que acompanhara
no início do trabalho de parto, no
Estabelecimento Prisional de Tires, antes
de partir para os eua. Imagino‑a a arfar
de dores nestas celas de temperaturas
irrespiráveis. E decido saber mais sobre
partos e cadeias.
Em Rhode Island as grávidas ficam livres
de algemas durante o trabalho de parto,
o que não impede as autoridades de as
acorrentarem à cama do hospital por um
tornozelo logo que o bebé nasce. É assim
neste estabelecimento prisional. Noutros
estados as mulheres condenadas ainda são
obrigadas a dar à luz algemadas.
1. Os nomes de reclusas e guardas prisionais foram alte‑
rados para sua protecção.
2. Este artigo é o excerto de um livro sobre mães nas prisões,
a publicar pela Livros de Seda, da Plátano Editora, e de uma
grande reportagem a publicar na revista Visão.
63
CULTURA
As sementes viajantes
Aplaudimos o gigantismo do tulipeiro­‑da­‑virgínia. Fomos contagiados pela euforia de
produzir duas “super‑árvores”, a catalpa e a robínia, mas nunca elas nos conseguiram
colonizar. A presença destas três belíssimas árvores índias, em Portugal, evoca o tempo
dos caçadores de plantas cuja correspondência era feita de sementes.
Texto e fotografias de Susana Neves*
Tulipeiro­‑da­‑virgínia, Parque de Monserrate, Sintra, 2009.
64
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
CULTURA
‘
A febre de plantar
catalpas nos EUA,
iniciada em 1870 [...]
foi noticiada no Jornal
de Horticultura Prática,
em finais do século
XIX, mas não existem
informações quanto
à sua aplicação maciça
em Portugal.
’
Ao atingirem mais de 40 metros de altura,
os dois tulipeiros, plantados por George
Washington, em 1785, no Mount Vernon,
Virgínia, tornaram‑se proibitivos mesmo
para a mais audaciosa das abelhas, de tal
forma que, a partir de 1989, foi necessário
recorrer a uma grua para proceder à poli‑
nização das suas flores: “Perante as câmaras
televisivas retransmitindo as imagens a
milhões de espectadores, a grua ergueu ao
topo das árvores uma ‘abelha’ humana, que
polinizou as flores à mão”1.
Ultrapassada a surpresa face ao aparato
mediático, o gigantismo dos tulipeiros ou
tulipeiras, espécie que remonta ao período
Cretáceo, apenas confirma a sua natureza de
“Gran Diva”, da floresta dos eua, cuja bele‑
za merecia, em meados do século xix, as
palavras apaixonadas na imprensa de horti‑
cultura norte‑americana: “Árvore Celestial”:
o seu tronco é “de belas proporções e macio
como uma coluna grega”, as folhas “artís‑
ticas”, “recortadas como os arabescos de um
palácio mouro”, as flores “semelhantes aos
lírios e agradáveis de ver […] douradas e
sombreadas”. E a defesa da sua plantação
enquanto árvore ornamental, apesar das
reconhecidas dificuldades em transplantá‑la:
“Precisamente, é mais fácil andar do que
dançar e tal como todas as pessoas que dese‑
jam ter graça nos seus movimentos apren‑
dem a dançar […] também todos os
plantadores que desejem ter uma árvore
particularmente elegante, têm que aprender
a plantar o liriodendron [tulipeiro].”2
Em Portugal, a imprensa especializada
oitocentista partilha o mesmo entusiasmo
por uma árvore que ainda era invulgar no
País e suscitava “admiração” pela desme‑
sura e qualidade da madeira. Na Segunda
Exposição Agrícola, realizada no Porto, a
20 de Novembro de 1860, ”um grande
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
Tulipeiro­‑da­‑virgínia, Parque Nacional da Pena, Sintra.
65
CULTURA
‘
Apesar dos méritos
reconhecidos ao tulipei‑
É impossível não associar a presença ro (árvore dos estados
do Indiana, Kentucky e
destas árvores norte‑americanas,
Tennessee, a partir da
em Portugal, aos interesses botânicos qual os índios faziam
canoas de uma só peça),
da elite inglesa residente no nosso
bem como a outras
país e empenhada em fazer jardins,
árvores norte‑america‑
nas, entre elas, a mag‑
representativos das espécies, cuja
nólia‑branca, a robínia
descoberta tinha sido promovida
e a catalpa, introduzidas
em Portugal ao longo
pela aristocracia, os botânicos
dos séculos xvii, xviii e
e a própria monarquia inglesa.
xix, nunca se procedeu
à sua generalização e
menos ainda a um plan‑
tio intensivo.
pranchão de um Tulipeiro da Virginia per‑
A febre de plantar catalpas nos eua, ini‑
tencente ao Sr. Visconde de Samodães” ciada em 1870 – em virtude de se ver nesta
imobiliza os visitantes e leva o repórter do árvore, muito resistente e de crescimento
Archivo Rural a declarar: “Era notável esta rápido, conhecida dos índios Muskogee (da
larga tábua pela qualidade do lenho, isen‑ tribo Creek), um recurso indispensável
to de nós, ou inflexões; a sua madeira imita
usado nas travessas da via férrea em expan‑
a da acácia sem todavia ter a venação desta, são – foi noticiada no Jornal de Horticultura
nem a sua rijeza […] É uma espécie digna Prática, em finais do século xix, mas não
existem informações quanto à sua aplicação
de generalizar.”3
’
maciça em Portugal. Apesar da primeira
viagem de comboio ter sido realizada a 28
de Outubro de 1856, a ruralidade do País
dispunha os articulistas a propor a plantação
da catalpa de “mistura com o Eucalyptus”
porque “sanearia as terras humidas, daria
variedade à paisagem e contribuiria larga‑
mente para a riqueza material do paiz”4.
De certa forma, porventura inconscien‑
te, tornavam‑se cúmplices da destruição
da paisagem levada a cabo nos eua, devi‑
do ao crescente desenvolvimento indus‑
trial. Deslumbrados com a possível
rentabilidade destas “super‑árvores” nem
sequer se questionavam sobre o impacto
da sua introdução em Portugal.
Em 1886, num artigo publicado no Jornal
de Horticultura Prática, M. de Freitas começa por
fazer um elogio do valor ornamental da
robínia – uma árvore nativa dos montes
Apalaches, cujo “effeito encantador” da
folhagem e o “odor suave” das flores lem‑
brava as flores da “laranjeira”, e por isso, à
semelhança do que observara em Paris,
merecia ser plantada nos “bosques”, “ave‑
nidas” e “jardins públicos” nacionais – para
depois, feitas as contas, entrar em delírio
Catalpa, pormenor da flor, 2006.
66
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
CULTURA
Robínia, 2009.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
67
CULTURA
‘
Tal como Thomas Jefferson [...] e John Adams tinham
podido constatar, numa visita a vários jardins londrinos
famosos, no final do século XVIII, ironicamente
o jardim inglês era de facto americano.
e defender a sua plantação por todo o lado:
“O interesse dos proprietários, despertado
pela certeza do lucro, não deve desprezar
estas indicações úteis, e torna‑se‑lhe mister
multiplicar por toda a parte esta árvore, hoje
a mais preciosa de todas.”5 Neste caso, a falta
de empreendedorismo contribuiu para que
as robínias, actualmente consideradas inva‑
sivas (espécie proibida, pelo Decreto‑Lei
565/99), não tivessem, qual praga, coloni‑
zado o nosso território, encontrando‑se, à
semelhança dos tulipeiros e catalpas, disper‑
sas como espécies ornamentais de jardins
públicos e privados, parques e avenidas.
É impossível não associar a presença des‑
tas árvores norte‑americanas, em Portugal,
aos interesses botânicos da elite inglesa
residente no nosso país e empenhada em
fazer jardins, representativos das espécies,
cuja descoberta tinha sido promovida pela
aristocracia, os botânicos e a própria
monarquia inglesa, investindo e patroci‑
nando continuamente as explorações de,
entre outros, dois caçadores de plantas
incansáveis: o americano John Bartram,
que introduziu a magnólia‑branca na
Europa, e Mark Catesby, naturalista inglês,
ilustrador e autor de Natural History of Carolina,
Florida and the Bahama Islands (1731‑1743),
primeiro livro com gravuras coloridas
sobre a flora e fauna da América do Norte,
a quem se deve a descoberta da catalpa,
no interior da Geórgia e do Alabama.
Não é por acaso que um dos articulistas
regulares do Jornal de Horticultura Prática, autor
de vários textos sobre árvores norte‑ame‑
ricanas, é justamente o inglês William C.
Tait, cujo jardim no Porto era essencialmen‑
te uma colecção botânica e tem hoje um
dos tulipeiros mais antigos do País, com
250 anos. Em Sintra, o Parque de Monserrate,
propriedade de Sir Francis Cook
(1817‑1901), onde também podemos
encontrar um grande tulipeiro, magnólias
e outras árvores provenientes de vários con‑
tinentes, foi concebido com o apoio do
pintor paisagista William Stockdale, o botâ‑
nico William Nevill e James Burt, mestre
jardineiro do Kew Garden.
Não parece de todo indiferente o facto
de encontrarmos no Parque Nacional da
Pena, em Sintra, algumas espécies nor‑
te‑americanas, entre outras, um tulipeiro
68
’
majestoso, uma sequóia e uma tuia gigan‑
te, tendo em conta que D. Fernando II e
a condessa D’Edla, cultivando o interesse
pela botânica – desde logo simbolizado
pela plantação de um eucalipto no Parque
da Pena, no dia do seu casamento, 10 de
Junho de 1869 – beneficiavam do con‑
tacto com um silvicultor americano, John
Slade, cunhado da jovem esposa do
monarca português.
Tal como Thomas Jefferson, enquanto
ministro dos eua em França, e John
Adams tinham podido constatar, numa
visita a vários jardins londrinos famosos,
no final do século xviii, ironicamente “o
jardim inglês era de facto americano”6.
Muitos dos arbustos e árvores provinham
da América do Norte e tinham sido envia‑
dos por John Bartram, cujas caixas de
sementes levaram muitas espécies nor‑
te‑americanas até à Europa, sobretudo, e
uma vez mais à Inglaterra, onde, em
1765, o rei George III, lhe atribuiu uma
pensão anual de £50, enquanto “Botânico
do Rei na América do Norte”, cargo que
manteria até ao fim da vida.
A partir de Filadélfia, John Bartram tro‑
cava correspondência com Mark Catesby
enquanto ele viajava pelo interior da
América no tempo da colonização ingle‑
sa e descobria árvores que ninguém
conhecia, como a catalpa que, para os
Creek, quer dizer “cabeça alada”, devido
à forma das flores.
Catesby era conhecido por ser de poucas
falas o que devia agradar bastante aos povos
nativos da América do Norte, cujos conhe‑
cimentos agrícolas e botânicos não dispen‑
sava. Vários comentadores da sua obra,
recordam, no entanto, o seu desaponta‑
mento ao perceber o desinteresse dos colo‑
nos europeus face a uma natureza que já
tinham começado a destruir.
1. PAKENHAM, Thomas, Le Tour du Monde en 80 Arbres,
Éditions du Chêne, 2002, p. 100.
2. Shade‑Trees in Cities, Rural Essays, DOWNING, A. J., Geo.
A. Leavitt, New York, 1869, pp. 316‑318 [Google
Livros].
3. “Impressões da Exposição Agrícola Portuense”, LAPA,
J. L. Ferreira, Archivo Rural, 1860, vol. 3, p. 373 [Google
Livros].
4. “As catalpas”, KNOTT, Edmond, Jornal de Horticultura Prática,
vol. X, 1879, pp. 66, 67 e 68. Outro artigo interessante:
“A catalpa bignonioides como árvore económica”, TAIT,
William C., Jornal de Horticultura Prática, vol. XVIII, 1887,
p. 153. [online: FUNDO ANTIGO, Faculdade de Ciências
Universidade do Porto].
5. “Robinia Pseudo‑Acacia”, FREITAS, M. de, Jornal de
Horticultura Prática, vol. XVII, 1886, pp.198‑200 [online:
FUNDO ANTIGO, Faculdade de Ciências Universidade
do Porto].
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
CULTURA
Catalpa, árvore de folha em forma de coração, com flor e frutos suspensos, Rua Barata Salgueiro, Lisboa, 2009.
6. “The Founding Fathers and Their Gardens”, DEITZ,
Paula, Sunday Book Review, NYTimes.com, May 6, 2011,
recensão do livro Founding Gardeners – The Revolutionary
Generation, Nature, and the Shaping of the American Nation, WULF,
Andrea, Alfred A. Knopf, New York, 2011.
Os nomes científicos e respectivas famílias das três árvo‑
res estudadas neste artigo são: tulipeiro (Liriodendron
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
Tulipifera L., Magnoliaceae), catalpa (Catalpa Speciosa e Bignonioides,
Bignoniaceae) e robínia (Robinia Pseudoacacia L. Fabaceae).
* Susana Neves assina, desde 2007, uma crónica mensal sobre
histórias de árvores em Portugal, publicada na revista Tempo
Livre, Fundação Inatel. Desde 2010, está a desenvolver, no Museu
do Douro, “As Árvores que Comiam Papel”, um projecto de etno‑
botânica e fotografia sobre o património arbóreo duriense.
Representou Portugal na Kulturnatten, Noite da Cultura, em
Copenhaga, mostrando “Trip To the South Pollen – Photographic
Work, 2007‑2009”, com mais de 100 fotografias, apresen‑
tadas em várias exposições individuais, em Lisboa, e na pri‑
meira edição da Land Art Cascais.
[email protected]
69
CULTURA
Novos Dabney
despertam para a história da família
Fred Dabney folheia o livro, onde se alinham palavras, frases, capítulos em português.
Apesar das oito décadas de vida dos seus antepassados nos Açores, este americano
de 65 anos não consegue ler as páginas do volume que tem nas mãos,
mas reconhece uma palavra na capa: Dabney. Pega no livro como num bebé e sorri:
“É uma coisa maravilhosa este livro, esperamos que seja traduzido para inglês...”
DR
Por Marina Almeida
Fred e Kate Dabney receberam a edição portuguesa da antologia dos Anais da Família Dabney. Esperam
entusiasmados pela versão inglesa, que está a ser preparada e deverá ser lançada nos EUA em 2012.
70
Fred e a mulher, Kate, estão na Sala Açores
do New Bedford Whaling Museum num
evento onde foi apresentada a edição por‑
tuguesa da antologia dos Anais da Família
Dabney, em Março. A sala é dominada pelo
enorme Lagoda, o maior modelo de navio
baleeiro do mundo. Há relatos de vida no
mar e da faina baleeira que durante déca‑
das uniu os dois lados do Atlântico. Nas
vitrinas, vários objectos documentam a
ligação entre a América e Portugal. Fred é
sobrinho em terceiro grau do segundo dos
três cônsules que entre 1806 e 1892 repre‑
sentaram os eua no Faial, Charles William
Dabney. Naquelas vitrinas estão pedaços
da história da sua família e, também, dos
Açores. Um rasto de história que atraves‑
sa o Atlântico.
A antologia dos Anais desta família ame‑
ricana, editada pela Tinta‑da‑China com
apoio à investigação da flad, é um resumo
dos três volumes de cartas que constituem
a versão original, compilada por Roxana
Dabney. Esta prima antiga de Fred empe‑
nhou‑se, depois do regresso definitivo da
família aos eua, em 1892, em juntar a
correspondência dispersa: quando acabou
tinha 1797 páginas, distribuídas por três
volumes. Muita informação difícil de dige‑
rir nos dias que correm, reconhece Fred
Dabney, empenhado em aproximar‑se de
uma realidade de que o pouco tempo e a
pressa da vida moderna o afastaram.
“Temos lá em casa uma cópia da versão
original dos Anais, mas é muito difícil para
mim persuadir as minhas filhas a lê‑la, é
muita leitura! É interessante, mas difícil
de ler. Estou desejoso de ler a versão abre‑
viada”, diz com os olhos azuis reluzentes
de curiosidade. Ao seu lado, Kate partilha
do mesmo entusiasmo.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
CULTURA
DR
‘
Uma coisa é saber a
história da família, outra
é estar lá, ir aos locais.
Fiquei emocionado com a
forma como a minha família
foi tratada nos Açores.
Sentimo‑nos honrados,
sentimos que não temos
prestado atenção suficiente
e que é preciso abanar
os familiares mais novos
para ir lá e ver.
Fred Dabney
’
Do outro lado do oceano, àquela hora,
talvez os investigadores Maria Filomena
Mónica e Paulo Silveira e Sousa estivessem
debruçados sobre as imensas páginas ori‑
ginais dos Anais da Família Dabney. Estão a
fazer uma nova edição das cartas que a
família, amigos e conhecidos trocaram nos
oitenta e seis anos de presença nos Açores
para fazer nascer a edição inglesa e assim
tornar a obra mais acessível. A selecção é
distinta da edição portuguesa porque há
um outro “leitor ideal”.
O prefácio de Maria Filomena Mónica
está pronto e já a ser traduzido, a selecção
das cartas a incluir nesta edição está feita:
“Já estive a rever a tradução para inglês
do meu prefácio para a versão a sair nos
eua. A tradutora está a ultimar a tradução
das notas. O Paulo já cortou tudo o que
havia a cortar – a selecção das passagens
é naturalmente diferente, dando nós agora
mais ênfase às cartas sobre a guerra civil
americana – e está a introduzir as notas”,
disse a investigadora.
Ganha assim corpo o volume que Fred
Dabney conseguirá ler e com o qual ten‑
tará cativar as filhas para a história da
família. Vai chamar‑se The Dabney’s – A
Bostonian Family in Portugal e será dirigida a
luso­‑descendentes e americanos que se
interessem pelo tema, aponta Mário
Mesquita, administrador da flad. A nova
antologia com cerca de 400 páginas deve‑
rá ser lançada em 2012.
Este lançamento é aguardado com muita
curiosidade. Muitos Dabney parecem estar
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
Na Sala Açores do New Bedford Whaling Museum estão objectos dos Dabney do Faial.
Como o chapéu e os galões do segundo cônsul dos EUA no Faial Charles William Dabney (1794‑1871),
de quem Fred é sobrinho em terceiro grau.
a despertar para a história dos antepassa‑
dos do Faial. O casal Fred e Kate já esteve
nos Açores em 2007 e deverá voltar para
o ano, numa das viagens que o Museu da
Baleia de New Bedford promove. “Uma
coisa é saber a história da família, outra
é estar lá, ir aos locais. Fiquei emociona‑
do com a forma como a minha família
foi tratada nos Açores. Sentimo‑nos hon‑
rados, sentimos que não temos prestado
atenção suficiente e que é preciso abanar
os familiares mais novos para ir lá e ver”,
disse Fred Dabney, apostado em organizar
uma excursão de filhos e primos no pró‑
ximo Verão.
Fred tem uma estufa e dedica‑se à horti‑
cultura a poucos quilómetros de New
Bedford, Massachusetts. Por isso, as ilhas e
o passado da família têm um interesse
muito especial: “Os Açores são um local
magnífico para visitar porque há plantas
de quase todos os continentes levadas pelos
capitães de navios que pararam nos Açores
ao longo dos anos.” Este Dabney contem‑
porâneo descobriu recentemente o gosto
dos seus antepassados insulares pela botâ‑
nica e das novas plantas que levaram para
o Faial. Esteve numa das casas da família
na Horta, a Bagatelle, e os sentidos ficaram
presos nos jardins: “Fiquei fascinado por
ver que muitas das plantas originais ainda
lá estão, apesar do abandono.” Não lhe foi
difícil imaginar, talvez, um cenário seme‑
lhante ao descrito pelo também americano
Thomas Wentworth Higginson quando
esteve no Faial entre 1855 e 1856.
“Dificilmente se pode exagerar a singular
beleza dos jardins dos Dabney; cada degrau
era uma nova incursão nos trópicos – uma
palmeira, uma magnólia, uma canforeira,
um dragoeiro...” O Dabney horticultor gos‑
tava de juntar passado e presente à sua
maneira: “Adorava recuperar a ligação com
as sementes originais e plantá‑las aqui.”
Em particular uma: a recém‑baptizada
Veronica Dabney, uma espécie endémica que
existe actualmente no banco de sementes
raras no Jardim Botânico do Faial.
Fred Dabney foi, sem saber, a figura cen‑
tral do jantar que juntou portugueses e
americanos na Sala Açores do Museu da
Baleia de New Bedford – um espaço que,
nas palavras da cônsul Graça Fonseca,
“celebra o mundo falante português”. Fred
ouviu dizer que os Dabney foram a “força
da economia nos Açores naquela época”
e que os Anais são “um trabalho polifóni‑
co”. O jantar foi precedido de uma visita
ao museu, feita pelo próprio director,
James Russell. Deve ter regressado a casa
orgulhoso da sua família e, seguramente,
desejoso de voltar aos Açores. “Há tanta
história que não conhecemos!”, diz Fred
Dabney.
Crescer com “objectos
invulgares”
A curiosidade não dá tréguas a Sally
Dabney Parker. Há anos que se dedica a
estudar a história da família e recebeu com
agrado o e‑mail repleto de perguntas da
71
CULTURA
DR
‘
Sally cresceu numa espé‑
cie de filme, em que não
faltavam caixotes no sótão
com objectos estranhos
para os pequenos Dabney.
Tal como Sally, muitos
familiares da sua geração
passaram a infância e
juventude a ouvir falar da
vida dos antepassados do
Faial. “Muitas casas dos
Dabney tinham uma foto‑
grafia da Bagatelle, talvez
um retrato (no nosso caso
era de Francis Oliver
jornalista: “São boas notícias saber que há Dabney [irmão de Roxanna Dabney]) e
alguém interessado nos Dabney e nos seus objectos invulgares, como uma Bagatelle
descendentes.” Sally tem 72 anos. Conta de porcelana, meio tabuleiro de xadrez
que está a terminar a biografia do bisavô, em marfim, uma pequena caixa de cos‑
Frank Dabney (1873‑1934), e que passou tura completa (que veio da Fredónia),
“anos” a estudar os objectos que herdou panos de linho bordados em crivo (dese‑
e a colocar documentos e materiais em nhos bordados numa técnica muito com‑
“museus adequados”.
plexa).” No sótão lá de casa, no estado do
Massachusetts, havia “caixas
misteriosas contendo o cha‑
péu e a espada de cerimónia
do cônsul, um modelo do
barco baleeiro português e
muitos pacotes com cartas
que foram enviadas de
barco”. Conta Sally que,
quando era criança, recebera
da tia‑avó Edith Dabney Ford
muitos dos objectos das casas
do Faial que foram para os
Estados Unidos. A Sally calha‑
vam‑lhe muitas coisas que
eram de Sariha Dabney, uma
irmã da tia que morreu com
16 anos e com quem parti‑
lhava as iniciais (sd).
E terá sido assim entre
objectos misteriosos, caixotes
no sótão e a colecção de
memorabilia com as suas ini‑
ciais que ganhou a imensa
curiosidade que alimentou
ao longo da vida. Depois de
educar os filhos, começou a
trabalhar num gabinete de
arquitectura e começou a
escavar a história da família.
Quando regressaram do Faial
em 1892 os Dabney instala‑
ram‑se na zona da Califórnia
onde “o clima fazia lembrar
A Câmara da Horta doou, em 1862, uma parcela de terreno
onde os Dabney fizeram o jazigo da família. Permanecem no Faial
os Açores”, relata Sally. Um
14 campas, entre as quais as dos dois primeiros cônsules,
destes Dabney construiu uma
John Bass e Charles William. Este ano a autarquia reabilitou
casa chamada Fayal Ranch. As
o local e editou uma pequena brochura sobre os Dabney,
gerações seguintes (Frank,
com enfoque no cemitério.
No sótão lá de casa, no estado
do Massachusetts, havia “caixas
misteriosas contendo o chapéu
e a espada de cerimónia do cônsul,
um modelo do barco baleeiro português
e muitos pacotes com cartas que foram
enviadas de barco”.
Sally Dabney Parker
72
Sally Dabney tem 72 anos e dedica‑se a estudar
o património e a história da família. Todos
os anos reúne‑se com dois primos e trocam
recordações e fotografias antigas. Está a terminar
a biografia do bisavô, Frank Dabney.
Bert e John) tiveram um papel importan‑
te: um construiu uma vinha e depois uma
linha de caminho‑de‑ferro na Califórnia,
outro dedicou‑se à importação e expor‑
tação, outro à arquitectura. “Todos os
jovens rapazes tinham educação superior,
a maior parte em Harvard e dois no MIT
(Massachusetts Institute of Technology)”.
Sally Dabney conta‑nos que doou a maior
parte dos seus objectos e cartas ao Peabody
Essex Museum, em Salem. Não quer deixar
apagar este passado tão rico. Todos os anos
faz, com dois primos, uma verdadeira via‑
gem no tempo. Juntam‑se para contar
histórias, trocar pequenos tesouros da
família e fotografias antigas. E, tal como
Fred, também fez a sua “peregrinação
familiar” ao Faial. Mas trinta e três anos
antes, em 1974. “Fui com a minha mãe,
irmão e primo, todos Dabney. Fizemos
belas viagens ao interior da Bagatelle e da
Cedars. Mas houve uma ocupação comu‑
nista durante aquela semana e fomos acon‑
selhados a deixar a ilha de imediato. Foi
uma bela aventura!”, relata‑nos a partir da
casa de férias, no Maine, onde passa os
meses de Verão.
DR
’
Medalha de 1862 ganha pela C.W. Dabney&Sons
do Faial num concurso de vinhos em Londres.
É um dos tesouros guardados por Sally.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
CULTURA
Bagatelle
pode ser classificada
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
me estar “naturalmente
preocupada com o estado de
conser vação deste como
de outros imóveis históricos
da cidade da Horta. Inclusive,
ao longo dos anos, tem vindo
a trabalhar no sentido de não
só delimitar a zona histórica
da cidade, mas também a con‑
ceber uma estratégia para a
sua reabilitação”.
A Câmara da Horta também
parece ter despertado para o
potencial “diamante” que tem
em mãos: incrementar o turis‑
mo cultural na cidade, desen‑
volvendo a ligação à herança
dos Dabney e a faina baleeira
que ligou o Faial e New
Bedford. E se em Setembro de
2009 denunciámos o abandono
do talhão Dabney no Cemitério
do Carmo, fonte do gabinete
do presidente adianta que a
autarquia “procedeu à reabili‑
tação do talhão da família
Dabney no Cemitério Municipal
do Carmo e procedeu à elabo‑
ração de uma pequena brochu‑
ra que regista esse memorial.
Esta brochura foi distribuída,
inclusive, a uma comitiva do
N ew B e d fo r d W h a l e u m
Museum que esteve recente‑
mente na ilha do Faial, a desen‑
volver um turismo cultural.”
A família americana repousa
na memória e na terra preta
do Faial: 14 campas no canto
mais recôndito do cemitério.
Para as encontrar é preciso
subir até ao topo do cemitério,
deixando‑se guiar pela palmei‑
ra que se alimenta da história
da família para chegar mais
perto do céu.
‘
A Bagatelle marcou uma mudança
de estilo, com a importação
da arquitectura típica das casas
da Nova Inglaterra, com três
andares, uma generosa varanda
sobre o alpendre, janelas
de guilhotina e as bay windows,
com vista privilegiada para o canal
e para a ilha do Pico.
’
DR
A Bagatelle é a casa mítica dos Dabney
na Horta. Foi a primeira e para a cons‑
truir, entre 1812 e 1814, viajaram mes‑
tres carpinteiros dos eua. Marcou uma
mudança na cidade e na ilha com a fixa‑
ção de uma cosmopolita e bem‑sucedi‑
da família americana. Marcou uma
mudança de estilo, com a importação
da arquitectura típica das casas da Nova
Inglaterra, com três andares, uma gene‑
rosa varanda sobre o alpendre, janelas
de guilhotina e as bay windows, com vista
privilegiada para o canal e para a ilha
do Pico. Ainda resiste no número 19 da
Rua de São Paulo, mas é impossível
vê‑la, pois a vegetação cresce desenfre‑
ada. A enorme casa cor‑de‑rosa está a
degradar‑se, mas os actuais proprietários
puseram­‑ na à venda para lhe dar um
novo rumo – como tiveram a Fredónia,
actualmente uma creche, a Cedars, que
é a residência oficial do presidente da
Assembleia Legistativa Regional dos
Açores, e mesmo a casa de férias de
Porto Pim, que passou de ruína a obra
e deverá receber um núcleo museológi‑
co sobre as nove ilhas, da responsabili‑
dade da Secretaria Regional do Ambiente
e do Mar.
A Câmara da Horta, através do gabine‑
te do presidente, esclarece que o imóvel,
que ocupa um quarteirão na malha da
cidade, na freguesia dos Mártires, não
está classificado, mas “o plano de urba‑
nização da cidade da Horta, que entrou
em vigor no ano passado, prevê a pos‑
sibilidade de classificação”. Em tempo
útil não foi possível perceber que clas‑
sificação é esta e que consequências terá
para eventuais novos usos a atribuir ao
casarão.
Questionada sobre a degradação do
imóvel e do abandono de todo o nobre
quarteirão em que está implantada a casa
– 500 metros quadrados de área cober‑
ta e 1500 de jardins – a autarquia assu‑
A Bagatelle foi a casa mítica dos Dabney e hoje está
em ruínas. A Câmara da Horta admite estar preocupada
com o estado de conservação da casa e pondera
a possibilidade de classificação.
73
CULTURA
A casa da escrita
Desde 1992 que a Ledig House, perto de Nova Iorque, recebe centenas de criadores
de todo o mundo em regime de residência artística. Entre eles, escritores e tradutores
que ali encontram as condições indispensáveis para desenvolver o seu trabalho.
O tempo para pensar faz a palavra certa.
Por Carla Maia de Almeida
Outono”, diz, em resposta por correio
electrónico. “Além disso, recordo‑me dos
jantares, dos momentos em que estávamos
juntos e acabávamos por partilhar algo do
que íamos fazendo. Depois havia o quar‑
to, onde passava grande parte do tempo
a escrever.”
A casa, o tempo estendido, a aventura
humana. Nove anos depois da Ledig
House, José Luís Peixoto fala das três
coisas mais importantes que a memória
reteve; comuns aos outros escritores,
como se verá a seguir. “Recordo sobre‑
tudo as pessoas que tive oportunidade
de conhecer”, acrescenta. “A escocesa Ali
Smith, que ainda encontro, ou a ameri‑
cana Ellen Miller, prematuramente desa‑
parecida.” Não se lembra das rotinas nem
do desenrolar metódico das oito semanas
em que trabalhou no esboço do roman‑
ce Cemitério de Pianos, concluído quatro
anos depois. “Nem me recordo qual foi
DR
Passaram‑se já nove anos e a memória de
José Luís Peixoto começa a resistir ao
escrutínio das perguntas. Em 2002, foi o
primeiro escritor português a usufruir de
uma residência na Ledig House, ao abrigo
do programa da Direcção‑Geral do Livro
e das Bibliotecas (dglb). Contrariando o
ritmo non‑stop de quem não tem mãos a
medir para tantas solicitações, insistimos.
“Recordo‑me de uma casa rodeada de
belas paisagens, todas as tonalidades do
Ledig House: a casa, o tempo estendido, a aventura humana foram vividos por vários escritores portugueses em residência artística.
74
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
a fase mais produtiva”, confessa. Para trás,
ficavam dois livros de poesia e o roman‑
ce revelação Nenhum Olhar, publicado nos
Estados Unidos sob o título The Implacable
Order of Things.
Tal como José Luís Peixoto, também Rui
Zink e Inês Pedrosa viram livros seus
vertidos para inglês depois da passagem
pela Ledig House. “Com estes programas,
há o intuito de ter um pé no mercado
norte‑americano e naquele meio literário,
por causa da importância da língua ingle‑
sa”, explica Ana Castro, responsável da
dglb . Não sendo esse o aspecto mais
marcante das residências, pelo menos
para experiência pessoal para quem escre‑
ve, os programas de apoio à tradução
fazem parte da mesma política de divul‑
gação de autores portugueses no estran‑
geiro. Ou faziam. Em Outubro de 2010,
a Direcção‑Geral do Livro e das Bibliotecas
viu o seu funcionamento normal inter‑
rompido, após um ano que já tinha sido
de forte contenção orçamental. As coisas
pioraram em 2011, com a queda do
Governo e o estado de impasse geral que
se abateu sobre o País. Tal como outros
programas da dglb – caso das históricas
“Itinerâncias”, ligadas à promoção da
leitura –, este ano não houve residências
literárias, apesar de os pedidos terem
aumentado. “Cresceram nos últimos dois
anos”, confirma Assunção Mendonça,
outro elemento da dglb a quem cabe
acompanhar de perto estes processos. “É
o passa‑a‑palavra a funcionar.”
No ano em que José Luís Peixoto deu
início às residências na Ledig House,
Paulo Moreiras estreava‑se no romance
histórico com A Demanda de D. Fuas Bragatela,
precursor de Os Dias de Saturno. Foi um
dos últimos escritores a usufruir do
apoio da dglb, juntamente com João
Tordo, o ano passado. Na altura, tinha
em mãos o terceiro romance histórico
(ainda por publicar), situado na época
das guerras liberais em Portugal. Aquele
mês revelou‑se essencial para o avanço
da obra. “Quando parti, já ia com a ideia
toda do romance. Tinha desenvolvido as
minhas investigações históricas e algu‑
mas linhas alinhavadas. Na Ledig con‑
segui escrever muitos capítulos e dar‑lhes
uma densidade que, de outra forma,
seria mais difícil e morosa. O facto de
dispor de tantas horas de trabalho per‑
mitiu‑me limar as arestas do texto que
ia compondo. Escrevia, revia o texto e
escrevia, revendo sempre. Havia tempo
para tudo. Uma bênção.”
Até mesmo os escritores que confiam
nessa entidade incorpórea a que se cos‑
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
DR
CULTURA
“Quando cheguei senti logo aquele silêncio, tudo muito calmo, muito sereno”,
David Machado esteve um mês em residência artística.
todos nos reuníamos para
confraternizar. Por tudo
isto, tinha longas horas
Com estes programas,
para trabalhar e burilar o
há o intuito de ter um pé no mercado meu texto.”
Também David Machado
norte‑americano e naquele meio
é um escritor persistente
literário, por causa da importância
e metódico nas suas
rotinas: “Levava escrito o
Ana Castro, DGLB
da língua inglesa.
primeiro capítulo do
Deixem Falar as Pedras e tinha
ideias já muito concretas
tuma chamar “inspiração” sabem que não sobre o resto do livro. Acordava entre as
há livro que se eleve das trevas da gaveta 7h00 e as 8h00 e trabalhava oito horas
para os céus da visibilidade pública sem
seguidas, com uma pausa rápida para o
um trabalho aturado, cansativo, esforçado, almoço. De vez em quando dava uns pas‑
desgastante e, vamos lá dizê‑lo, rotineiro. seios pela quinta e pelos bosques à volta.
Se não é exactamente como ter um empre‑ Não trabalhava à noite, porque não
go nos Correios, também não se trata de gosto.” Ficou um mês na Ledig House, a
uma vida romântica à la Lord Byron, na média habitual, e só lá para a quarta
maior parte dos casos. Mas serão as rotinas
semana começou a ver esmorecer o
facilmente recuperáveis quando se muda ânimo. “O mais produtivo foi o início.
de quarto, de casa, de país, de fuso horá‑ Quando cheguei, senti logo aquele silên‑
rio? A resposta depende de vários factores, cio, tudo muito calmo, muito sereno.
incluindo a organização mental do escri‑ Percebi isso e comecei a trabalhar inten‑
tor e a fase em que se encontra a obra. sivamente. Faço sempre aqueles planos,
Paulo Moreiras não teve dificuldade em género ‘se todos os dias escrever quatro
voltar a acordar às seis da manhã, tal como páginas daqui a um mês tenho x páginas’.
sempre faz em Portugal. “Era sempre o Depois não aconteceu bem isso, porque
primeiro a levantar‑me, a ver os veados a
o ritmo variou.”
passear no jardim, tomar o pequeno‑almo‑
Com excepção de José Luís Peixoto, que
ço e assistir ao nascer do sol. Por volta das não considera “particularmente benéfico”
sete horas, começava a escrever. O único
escrever fora de casa, todos os escritores
compromisso na casa era o jantar, quando contactados pela Paralelo vêem vantagens
‘
’
75
CULTURA
‘
Recordo sobretudo as pessoas que tive
José Luís Peixoto
oportunidade de conhecer.
tempo num sítio ‘estra‑
nho’. Durante aquelas
quatro semanas dedi‑
quei‑me sobretudo a ler e
a pensar no alinhamento
do romance que estava
então em preparação [A
Mão Esquerda de Deus, 2009].
Contactar com uma outra
realidade foi obviamente
benéfico, mais para a parte
mental e emocional do
que para a escrita propria‑
mente dita.” Recorda o
Paulo Moreiras numa paragem do seu trabalho na casa.
sítio, “que é belíssimo”, e
também as noites, “quan‑
do os escritores se reuniam
para o seu processo criativo nessa espécie
à mesa para conversar e jantar as excelên‑
de “estranhamento” que advém da mudan‑ cias feitas pela cozinheira portuguesa”.
ça de cenário. David Machado já ia bastan‑ Saudades? “De nada. Às vezes faz‑me é
te adiantado na concepção de Deixem Falar falta não estar lá de novo.”
as Pedras, mas foi nos Estados Unidos que
De 2002 a 2004, a parceria da dglb com
teve a ideia para o seu quinto livro para a Ledig House resultou na atribuição anual
crianças, A Mala Assombrada, publicado quase de uma residência, começando por José
Luís Peixoto. Seguiram‑se Rui Zink e José
ao mesmo tempo. “A distância ajuda‑me
Riço Direitinho, em 2003 e 2004, respec‑
muito, sobretudo numa fase antes da escri‑
ta, enquanto estou a ter ideias e a pensar tivamente. A partir de então, passaram a
sobre as coisas, porque proporciona uma ser concedidas duas vezes por ano, uma
na Primavera e outra no Outono. Em
reflexão diferente daquela que temos no
2005, foi a vez de Jacinto Lucas Pires e
lugar habitual”, explica.
O caso de Pedro Almeida Vieira, que Pedro Rosa Mendes. Em 2006, Pedro
chegou à Ledig em Maio de 2006, seis Almeida Vieira e Ondjaki. Em 2007, Inês
meses depois de ter publicado O Profeta do Pedrosa e Filipa Melo.
“Às vezes havia dificuldade para que as
Castigo Divino e terminado O Vermelho e o Negro,
também foi especial. “Geralmente escrevo pessoas se mobilizassem para estar um mês
inteiro fora, mas nunca ficámos um ano sem
um romance de forma intensa em seis
meses, mas talvez estranhasse estar tanto atribuir residências”, revela Ana Castro. Uma
das razões do sucesso tem a ver com “a
desburocratização a nível de candidaturas e
requisitos”, acrescenta Maria Carlos Loureiro,
também responsável da dglb. Ao contrário
das antigas bolsas de criação literária, em
que era dado um valor monetário para a
prossecução de determinada obra, aqui
acharam‑se outros moldes de funcionamen‑
to menos rígidos e institucionais. “O pro‑
grama surgiu de acordo com as necessidades
de os escritores terem o seu espaço. Nunca
foi uma candidatura muito procurada, não
são ‘sete cães a um osso’. Só tivemos de fazer
escolhas duas ou três vezes, porque havia
mais do que uma pessoa para o mesmo
período.” A liberdade não desvinculou os
escritores de honrarem o seu compromisso.
“Toda a gente produziu obra e toda a gente
fez relatório à chegada”, conclui Maria
Carlos Loureiro. Aquando da impressão e
publicação do livro, surge uma referência
ao apoio da dglb.
David Machado esteve um mês na Ledig
House, durante a Primavera de 2009, um
ano partilhado com Luísa Costa Gomes.
“Estive apenas quinze dias, em Setembro”,
conta a escritora. Levava na bagagem a tra‑
dução de um conto que acumulou com a
dramaturgia de O Príncipe de Hamburgo. “A fase
mais produtiva foi a segunda semana. Fiz
tudo o que levava para fazer e ainda me
sobrou tempo para começar outra coisa.”
Talvez quinze dias pareça pouco, se medir‑
mos o tempo pelo calendário; mas quinze
dias com o mínimo de dispersão, sem
interrupções, telefonemas e e‑mails – e tudo
o que faz com que o quotidiano de um
DR
DR
’
‘
Era sempre o primeiro a levantar‑me,
a ver os veados a passear no jardim,
tomar o pequeno‑almoço e assistir ao nascer
do sol. Por volta das sete horas, começava
a escrever. [...] Por tudo isto, tinha longas
horas para trabalhar e burilar o meu texto.
Paulo Moreiras
’
“Talvez quinze dias pareça pouco se medirmos o tempo pelo calendário;
mas quinze dias [...] podem valer três ou quatro vezes mais”,
recorda Luísa Costa Gomes acerca da Ledig House onde esteve.
76
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
CULTURA
‘
A distância ajuda‑me muito,
sobretudo numa fase antes da escrita,
enquanto estou a ter ideias e a pensar
sobre as coisas, porque proporciona
uma reflexão diferente daquela
que temos no lugar habitual.
’
DR
David Machado
A mesa para jantar os petiscos da cozinheira portuguesa.
‘
’
escritor se pareça com a gestão de um
império solitário –, podem valer três ou
quatro vezes mais. “Uma bênção”, como
diria Paulo Moreiras. Luísa Costa Gomes
subscreve: “Para mim é comovente ouvir:
‘diga‑nos do que precisa que nós vamos
buscar, o seu trabalho é escrever’. Mulher
não ouve muito disso. Basta dizer que eu
na altura andava com uma sede de mirtilos
frescos, e que eles nunca faltavam no fri‑
gorífico! Eram o ‘velho Jim’ e o ‘Jim filho’
quem fazia as compras. Em certo momen‑
to, um grupo de escritoras e poetisas de
todas as nacionalidades teve de se dirigir
ao mall [centro comercial], para matar sau‑
dades do supermercado.”
Além do tempo livre, que classifica como
“extremamente benéfico”, Luísa Costa
Gomes recorda a disponibilidade constan‑
te das pessoas que gerem a Ledig House:
D.W. Gibson (“jovem, culto, alegre, empe‑
nhado, afectuoso”), dinamizador das acti‑
vidades e principal elo de ligação entre a
instituição e os residentes; e a cozinheira
de ascendência portuguesa, Rita
Soares‑Kern. Agradou‑lhe também o “con‑
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
DR
Tínhamos no grupo uma crítica da Wine
Spectator, o que aumentava a exigência,
mas os vinhos portugueses foram muito
Paulo Moreiras
elogiados.
“Portentosa experiência”, assim caracteriza Paulo Moreiras
a sua estada na Ledig House.
forto austero” da casa, “velhos móveis
essenciais, muitas janelas, muitas árvores,
muito animalejo. A pessoa sente‑se quase
um autor americano”.
Quem também não esquece Rita
Soares‑Kern é Paulo Moreiras, a quem se
conhece a queda hermenêutica – uma
queda redentora, é certo – para a gastro‑
nomia. “Aprendi muitos truques e troquei
algumas receitas com a Rita”, diz o autor
de Elogio da Ginja. D.W. Gibson confirma:
“Ele ajudava‑a muitas vezes e habituá‑
mo‑nos a vê‑lo na cozinha. É um bom
exemplo de como o sentido de comuni‑
dade funciona na Ledig House.” Como
coroas de glória, Paulo Moreiras refere a
confecção de um jantar colectivo de favas
com chouriço e entrecosto, e o achado
providencial de algumas marcas de vinho
portuguesas em lojas próximas. “Tínhamos
no grupo uma crítica da Wine Spectator, o
que aumentava a exigência, mas os vinhos
portugueses foram muito elogiados.”
Além dos jantares em grupo, uma obriga‑
ção diplomática que rapidamente se trans‑
forma em gosto e até em terapia informal
– afinal, no fim de um dia de rotina, escri‑
tores e tradutores partilham as mesmas
angústias e dilemas –, a Ledig House pro‑
move, aos fins‑de‑semana, encontros infor‑
mais com convidados do meio editorial de
Nova Iorque. Foi esse espírito de intercâm‑
bio literário que presidiu à sua fundação,
na continuidade do trabalho desenvolvido
pelo editor alemão Heinrich Maria
Ledig‑Rowohlt, cujo apelido baptizou a casa.
Os escritores e tradutores residentes – sem‑
pre no máximo de dez – também são desa‑
fiados a apresentar‑se junto da comunidade
local. “Participei numa leitura pública e
apercebi‑me do grande interesse e curiosi‑
dade que existe pela língua portuguesa”,
afirma Paulo Moreiras. O mais difícil pode
ser mesmo voltar para casa, apesar das sau‑
dades da família e até de “um bom baca‑
lhau”. O autor de Os Dias de Saturno sofreu
mais com o jet lag da chegada. “Mas após
duas semanas voltei em força ao trabalho,
com saudades daquela portentosa experiên‑
cia.” Não parece haver divergências nesta
matéria. Afinal, sem viver, um escritor terá
sempre muito pouco para contar.
77
D.R.
CARTA BRANCA
“Laureana”,
o teatrophone e o Rei pioneiro
Manuel Silva Pereira*
Sentado no cadeirão régio, D. Luís I acompanha deliciado as
aventuras da marquesa Laureana, sedutora inveterada por uma vez
seduzida por Giovellino, máscara lírica do conde de Florença.
A trama, em quatro actos e seis quadros, dá corpo à ópera de
Augusto Machado (1845‑1924) com libreto de Jean‑Jacques
Magne e A. Guiou, inspirado por seu turno no romance Les Beaux
Messieurs de Bois‑Doré de Georges Sand e Paul Maurice. Dedicada a
Sua Majestade, estreia a 1 de Março de 1884 no Teatro Nacional
de São Carlos, figurando hoje em lugar de honra nos livros de
história das... telecomunicações em Portugal.
as etiquetas cortesãs nem as luvas gris perle do camarote real,
sentado no trono, de manto de arminho, ou metido na cama,
de barretinho de algodão, consoante os seus apetites ou as
suas necessidades corporais”.
Inspirado no sucesso, o Teatro de São Carlos publicita a tem‑
porada líríca de 1885 com a novidade das assinaturas por tea‑
trophone: por 180 mil réis, 90 récitas ficam ao alcance do
ouvinte, morador que seja em Palhavã, Olivais ou Braço de
Prata, onde as ondas geradas pelo aparelhómetro de Ader che‑
gam em perfeitas condições.
Reza a edição de época do Le Times que,
por tal feito, o director da companhia
Edison Gower Bell, responsável pela insta‑
lação da linha telefónica dedicada entre o
Sua Majestade pôde ouvir toda a ópera muito
Teatro de São Carlos e o Palácio da Ajuda,
mais tarde a ser distinguido com a
alegremente, com toda a comodidade do lar doméstico, viria
Ordem Militar de Cristo!
sem as etiquetas cortesãs nem as luvas gris perle
Ainda que pouco lembrado – o sistema
só foi comercializado em França cinco anos
do camarote real, sentado no trono, de manto de
mais tarde, em 1890 –, o capricho do
arminho, ou metido na cama, de barretinho de algodão, melómano D. Luís I é conhecido e está
relatado em fontes várias. Menos divulga‑
consoante os seus apetites ou as suas necessidades
do é todavia o interesse e admiração da
revista António Maria, 6 de Março
corporais.
Metropolitan Opera de Nova Iorque pelo
pioneirismo luso.
Com quase oito décadas de transmissões
radiofónicas, em directo e ao vivo, colocan‑
Inibido de aparecer em público, de luto por sua irmã Maria
do ao dispor de milhões de ouvintes as suas melhores produções,
Ana de Bragança, princesa da Saxónia, o rei decide “encomendar” o teatro lírico mais importante do mundo iniciou em 2003 as
a audição da ópera via teatrophone, recorrendo à mais recente emissões televisivas em alta definição, hoje captadas e difundi‑
invenção de Clément Ader, posta à prova em Paris em 1881.
dads em cerca de 40 países, vistas e ouvidas num sem‑número
Colocados em arco à boca de cena, assentes em pedestais com de teatros e salas de espectáculo.
pés em borracha, para uma eficaz absorção das vibrações, alimen‑
Interessados em documentar este novo ciclo de globalização,
tados por três conjuntos de baterias, conectadas em série e alter‑ fidelizando audiências e conquistando novos públicos para a
nando a cada vinte minutos, assegurando a estabilidade da
ópera, o met e em particular os responsáveis pelo “Live in HD
program” ressuscitaram o teatrophone de Ader e a ousadia do rei
corrente eléctrica, seis microfones operam o milagre da captação
português. Em contacto pessoal, para solicitarem contactos e
e transmissão, permitindo ao rei e à rainha seguir a ópera do
princípio ao fim, de pouco valendo as distorções, espasmos sono‑ intermediação para uma investigação aprofundada nos arquivos
do nosso único teatro lírico, argumentariam perante a minha
ros ou eventual desafinação da orquestra, cantores ou coro.
No António Maria de 6 de Março, Rafael Bordalo Pinheiro incredulidade e espanto, com a frase mortífera de “não me diga
que vamos escrever‑vos a história”. Assim será?
assina a caricatura que imortaliza o evento, enquanto Pan
* Antigo assessor na Embaixada de Portugal em Washington e na Missão de Portugal em Nova
legenda que “Sua Majestade pôde ouvir toda a ópera muito
Iorque
alegremente, com toda a comodidade do lar doméstico, sem
‘
’
78
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
CULTURA
Gente de Escrita
Sylvia Plath,
o falso mito suicida
Quando penso em Sylvia Plath (n. 1932),
vejo‑a encoberta pelo falso mito suicida
– à maneira de Marylin ou James Dean –
repetido até à exaustão pela autodevo‑
radora máquina mediática e/ou literária.
Suicidou‑se, de facto, em 1963, aos 30
anos, num Fevereiro glacial, em Londres,
em Primrose Hill, na casa que sonhou
habitar, a do poeta Yeats. Mas viveu e
escreveu; não só morreu. Acabara de se
divorciar de Ted Hughes, poeta fascina‑
do pela astrologia e as ciências ocultas,
mais tarde acusado de lhe amputar a
obra, embora lha publicasse: poemas,
diário, contos e correspondência. Como
Dylan Thomas, outro autor que admira‑
va, nascera num 27 de Outubro, em
Boston, Nova Inglaterra. Era jovem, pele
de tulipa e mãos velozes de veias
azuis.
Imagino‑a a voar de bicicleta sobre a
espessura das folhas, erguendo‑se sobre
as pedras como quem cavalga um peixe.
Oiço‑a rir, obsessiva, a intervalos metá‑
licos, já “com água pela cintura”, quan‑
do o amor, demasiadamente material,
chega tarde, destroçado em “bocados de
sangue adocicado”. Vejo a sombra e o
desejo de luz que a fez partir, mas não
só porque os amantes não se pertencem,
mas porque os pés eram sudários de um
mundo oco e os olhos “bolas vazias”,
oscilando entre o estudo/leitura, volta‑
do para a escrita, e as palavras e os ges‑
tos dos outros que, de ausência, não
vinham.
Sylvia não se bastava, em seu narcisis‑
mo negativo, e demasiado talento.
Dizia‑se, no entanto, genial, confirma‑o
uma carta à mãe. Racionalizava a fuga,
queria escrever com “mais inventivida‑
de que Deus”, desejava o berço da per‑
dida consolação paterna, acreditava que
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
Corbis/ VMI
Por Ana Marques Gastão
Sylvia Plath.
o trabalho e o sonho movem o mundo,
escutava passos, ouvia vozes, era habi‑
tada por um grito lunar: “Se não me
mexo, se não faço nada, o mundo con‑
tinua a soar como um tambor mal esti‑
cado, desprovido de sentido” (Diário, 25
de Fevereiro de 1956).
Sabia, como Fausto, que “há um pân‑
tano aos pés do monte”, mas não supor‑
tou o esforço da realização da obra,
excesso de fogo. A vida ficou para trás,
sem purga nem bálsamo; lírio branco o
do seu lápis feroz e sublime que escreve
o corpo ferido em lágrimas de fel e abis‑
mos sem fundo. O aparente confessiona‑
lismo da escritora d’A Campânula de Vidro,
na verdade simbólico, tão coloquial como
espesso de metáfora, transformava o desa‑
justamento e a estranheza em algo que
lhe não pertencia. Por isso se deixou ir,
escolhendo entre escrever, “segundo o
legado poundiano entre a emoção e o
intelecto” (Mário Avelar, Sylvia Plath, O Rosto
Oculto do Poeta com uma antologia poética bilin‑
gue, Edições Cosmos, 1997), e morrer:
“Ó Meu Deus, o que sou eu / para que
estas derradeiras bocas gritem / numa
floresta de geada, num amanhecer de
centáureas” (Papoilas em Outubro, 27 de
Outubro de 1962, trad. do mesmo).
Se alguém pode ser poema, Sylvia Plath
era Lady Lazarus, título de um seu monólo‑
go escrito onze dias mais tarde que Daddy,
em Outubro de 1962, e que constrói uma
falsa agonia: “Dying / Is an art, like
everything else, I do it exceptionally well”
(Morrer / É uma arte, como outra coisa
qualquer / Executo‑a excepcionalmente
bem). Há dor, inteligência e ironia nestes
versos, mas trespassa‑os uma alegria mór‑
bida, um clamor sulfúrico, uma altivez
que a voz denuncia: há que ouvi‑la e não
só lê‑la. Na verdade, como sublinha Maria
Filomena Molder, em A Imperfeição da Filosofia
(Relógio d’Água, 2003), comentando um
texto de Paul Valéry, Lázaro “só volta à
vida porque está vivo ainda”, não é um
agonizante, mas um Cristo.
Lady Lazarus é o relato de uma crucificação,
após a qual, morrendo, se revive. Pele,
osso, joelhos, mãos, cicatrizes, a coroa e
o ouro são elementos simbólicos de um
caminho espiritual que a ficção de vidro
denuncia. Numa aproximação arquetípi‑
ca a uma linguagem das profundezas, mas
em dualidade irresoluta, o poema termi‑
na numa teia labiríntica de cabelo ruivo.
Sylvia renasce das cinzas como a Fénix
– da náusea a uma oculta escatologia.
Deixou‑se arrastar, no entanto, para um
não‑tempo. Mais róseo?
79
LIVROS
George Steiner
em The New Yorker
George Steiner
(org. Robert Boyers)
Gradiva, Lisboa, 2010.1
A cornucópia
da abundância
Mas, lendo‑o, mesmo quando se discorda
(o que não é estranho, tamanha é a sin‑
gularidade do autor), a sensação que fica
pode bem ser descrita noutro termo:
sobreabundância.
Nascido em Paris em 1929 mas com
educação académica nos Estados Unidos
(comentada pelo próprio no último ensaio
deste volume, cujo título, “Vida examina‑
da”, não é contudo autobiográfico),
Steiner é actualmente académico de
Oxbrigde – literalmente divide o seu
tempo entre Oxford e Cambridge. Passou
Por Carlos Leone
Apesar de muito falada, a “morte do inte‑
lectual” está ainda por demonstrar. Um
pouco como outrora sucedeu com a não
menos comentada “traição”, a figura
pública do “intelectual”, típica da moder‑
nidade, persiste no meio do declínio
generalizado das condições que lhe deram
protagonismo e, mesmo, possibilidade de
existência. Findo o optimismo iluminista,
finda a crença generalizada na neutralida‑
de da ciência, finda a cultura letrada
tendencialmente universalizável, e quando
mesmo aqueles acquis civilizacionais do
Ocidente surgem ameaçados (direitos
humanos, desde logo), essa figura ambí‑
gua e polimórfica que o intelectual sem‑
pre foi persiste. Dificilmente, em regra,
mas com situações de estrelato mediático
assinaláveis: Eco, Savater, Habermas,
Bloom, e, para não alongar demasiado
(ainda que sempre imperfeitamente) esta
lista, George Steiner. Seria de esperar que
a crítica de sobreexposição fizesse aqui
sentido, tantos são os seus títulos publi‑
cados, mesmo em tradução para circulação
em pequenos mercados como o portu‑
guês: desde a conferência ocasional
“A Ideia de Europa” ao ensaio erudito
(Antígonas), passando por recolhas como
esta organizada por Robert Boyers, cen‑
trada na colaboração de décadas de Steiner
com a célebre revista nova‑iorquina. Aliás,
é o próprio organizador que refere a crí‑
tica há muito movida a Steiner (e a outros
como ele) de se aventurar em áreas que
não domina, justamente nesse processo
de sobreexposição editorial e mediática.
80
‘
Parecia ilustrar a intuição
de Nietzsche da existência
nos homens e mulheres
de uma motivação mais forte
do que o amor, o ódio ou o
medo: o estar‑se interessado
– num corpo de conhecimento,
num problema, num hobby,
no jornal de amanhã.
George Steiner
’
por muitas outras universidades europeias
e americanas de prestígio e, além dos seus
livros, escreveu assiduamente em publi‑
cações prestigiadas de língua inglesa.
A recolha dos textos publicados na New
Yorker serve também de ilustração do que
permite uma linha editorial efectivamen‑
te apostada na qualidade e atenta ao valor
dos seus leitores, em vez de simplesmen‑
te interessada em contar caracteres e dimi‑
nuir tudo ao nível de um “leitor médio”
aliás inexistente. É por isso instrutiva para
o leitor português a publicação desta
colectânea, se se pensar em que jornal ou
revista portuguesa se poderia encontrar
semelhante acervo. A falta de um equiva‑
lente é sintomática das diferenças culturais
de fundo, bem mais fundas do que a habi‑
tual dicotomia entre a suposta “pressa
americana” e a “lenteur europeia”. Isto,
claro, dando de barato a nossa “europei‑
dade”, que a avaliar pela não referência
de Portugal ou autores e obras portugue‑
ses por Steiner também é questionável
(quando esteve em Lisboa, numa confe‑
rência na flad em 2002, Steiner produziu
aliás declarações bem claras sobre a sua
visão dessa questão). E o que esta liber‑
dade de escrita permite é uma diversida‑
de de interesses e uma prodigalidade de
perspectivas que compõem a sobreexpo‑
sição ou sobreabundância, em termos que
o próprio Steiner magistralmente expõe
ao escrever sobre Koestler: “Parecia ilustrar
a intuição de Nietzsche da existência nos
homens e mulheres de uma motivação
mais forte do que o amor, o ódio ou o
medo: o estar‑se interessado – num corpo de
conhecimento, num problema, num hobby,
no jornal de amanhã” (p. 350). Esta cita‑
ção parcial de um parágrafo brilhante
de um dos melhores ensaios do livro,
“Le Morte d’Arthur”, não só se adequa a
Steiner no seu melhor como identifica
a matriz dos textos: uma conexão sempre
renovada entre o filosófico, o literário,
o político e o histórico, mantendo sempre
uma perspectiva pessoal muitas vezes
baseada (como no caso de Koestler) num
relacionamento privado com o tema de
cada ensaio.
Há limitações, de resto comuns à gene‑
ralidade dos ensaios de Steiner: o foco no
Ocidente e uma redução da contempora‑
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
SUSANA BRITO
LIVROS
neidade à alta cultura (a tv e a publici‑
dade são alvos de remoques constantes,
aliás divertidos, a música rock ou a net
não existem). Mas estamos aqui mais no
domínio da idiossincrasia do que no do
defeito. E, quanto ao tom, este é bem mais
equilibrado do que acontece noutras peças
do autor, sem nunca incorrer em pater‑
nalismo ou pretensiosismo, mesmo quan‑
do recorre ao velho tropo professoral do
lamento pela degradação do ensino.
Subdividido em quatro secções, este
livro de cerca de 400 páginas lê‑se como
um todo e praticamente de um fôlego.
A afinidade com autores tão diferentes
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
como Cioran, Orwell, Céline ou Brecht,
o cuidado posto no comentário de temas
como o do julgamento de Nuremberga
(vide “Da Casa dos Mortos”, notável crí‑
tica aos diários de cárcere do ex‑ministro
do Reich Albert Speer), a sensibilidade
para o significado cultural de obras não
literárias (como a de Webern, no contex‑
to da cultura centro‑europeia, e depois
no contexto do Ocidente em geral),
enfim, a unidade criada pelo autor para
um conjunto tão grande de temas,
impressionam mesmo quem já se habi‑
tuou a lê‑lo. Assim, “História e Política”,
“Escrita e Escritores”, “Pensadores” e
“Estudos de Uma Vida” são divisões razo‑
áveis, mas longe de decisivas ou sequer
necessárias; correspondem a uma orga‑
nização do volume cujo principal méri‑
to consiste em não desvirtuar a riqueza
dos textos. O que, como qualquer leitor
interessado não tardará a confirmar, difi‑
cilmente seria possível.
1. A tradução a duas mãos é de Joana Pedroso Correia e
Miguel Serras Pereira. Pequenas e raras “gralhas” ou difi‑
culdade de transpor a expressividade da prosa de Steiner
não maculam o resultado final. Pena é a ausência da data
de publicação original dos textos, embora isso não impeça
a sua leitura e talvez já esteja em falta na edição original.
81
LIVROS
A Letra Encarnada
Nathaniel Hawthorne
Dom Quixote, Biblioteca Lobo Antunes,
2009
O escritor
mais impopular
da América
Por Clara Pinto Caldeira
É um dos livros escolhidos por António
Lobo Antunes para integrar a colecção que
pretende tornar acessível ao grande públi‑
co obras incontornáveis da literatura inter‑
nacional de todos os tempos. Com
prefácio do escritor que dá nome à colec‑
ção, introdução de Georges Monteiro,
e tradução do poeta Fernando Pessoa.
Publicado originalmente em 1850,
A Letra Encarnada é considerada a obra‑pri‑
ma de Nathaniel Hawthorne. Escritor
errático e indeciso, que se dedicou obses‑
sivamente à escrita em longos períodos
da sua vida, arredando‑se dela noutros,
é‑lhe atribuída a frase: “Quem se atreve‑
ria a publicar um livro escrito por mim,
o escritor mais impopular da América?”
Quem o conta é James T. Fields, encora‑
jador da obra, sócio da editora que apos‑
ta num manuscrito ainda incompleto
chegando mesmo a anunciá‑lo como um
conjunto de contos, género em que
Hawthorne já se tinha destacado, em Twice
Told Tales. Quando A Letra Encarnada vê a luz
do dia, em forma feliz de romance, os
primeiros 2500 exemplares esgotam em
dez dias. Uma história dentro da história,
ou além dela. É que, neste livro,
Hawthorne ofereceu ao seu público um
capítulo semi‑autobiográfico, intitulado
“A Alfândega”, um relato da sua passa‑
gem por aquela instituição de Boston,
82
‘
Quando A Letra Encarnada
vê a luz do dia, em forma feliz
de romance, os primeiros 2500
exemplares esgotam em dez dias.
Uma história dentro da história,
ou além dela. É que, neste livro,
Hawthorne ofereceu ao
seu público um capítulo
semi‑autobiográfico, intitulado
“A Alfândega”, um relato da sua
passagem por aquela instituição
de Boston, numa época em que
lhe parecia impossível escrever.
’
numa época em que lhe parecia impos‑
sível escrever. Mas é precisamente no
capítulo sobre o velho porto, cujo
ambiente evoca os primórdios da América
e remete simultaneamente para o fun‑
cionalismo público da actualidade, que
Hawthorne revela como nasceu A Letra
Encarnada – a partir do acaso que leva o
escritor até um pedaço de trapo velho
com um bordado e um manuscrito assi‑
nado por um inspector do século xvii.
O romance passa‑se, pois, na Nova
Inglaterra puritana dessa época, e é ali‑
ciante acreditar que as personagens prin‑
cipais possam ter existido. Uma mulher
condenada a exibir um símbolo de infâ‑
mia no peito, bordado pela própria com
talento, rigor e uma quase vaidade, na
pequena cidade que a estigmatiza, da
qual aceita todas as humilhações, entre
a resignação e o orgulho. Uma criança
tocada pela beleza e pela transcendência,
ora angélica ora diabólica, prova viva e
despudorada do adultério da mãe, esta
digna no silêncio que insiste em manter
sobre o homem que a fez pecar. Um
pároco bondoso e exemplar, adorado por
uma população cruel e de falsa moral,
consumido por sofrimentos insondáveis.
E um estrangeiro enigmático que turva
de escuridão uma história, uma época,
uma dor já de si tenebrosos.
A Letra Encarnada poderia ser apenas uma
história de crime e castigo, de bem e de
mal, de pecado e redenção. Mas é, no
estilo sublime de Hawthorne, um docu‑
mento sobre a natureza humana, um
elogio das subtilezas da dignidade, uma
arrebatadora história de amor, um con‑
vite à reflexão sobre o simbólico e sobre
a relação entre o individual e o colectivo.
É também uma reconstrução vívida,
quase sufocante, da sociedade fundadora
de uma identidade nacional. “Curioso o
facto de uma novela tão americana na
sua trama essencial tocar o leitor de uma
cultura muito diferente pelo jogo de
emoções e tramas”, escreve Lobo Antunes
no prefácio. Curioso também que
Nathaniel Hawthorne, nascido exacta‑
mente quarenta anos depois da declara‑
ção de independência do seu país, seja
descendente de um juiz do famoso jul‑
gamento das Bruxas de Salem.
Sobre A Letra Encarnada, Henry James afir‑
mou ser “a peça mais distintiva de ficção
em prosa que tem produzido o solo ame‑
ricano”. Intemporal e universal.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
LIVROS
Cem Poemas
Emily Dickinson
Tradução, posfácio e organização
de Ana Luísa Amaral
Relógio d’Água, 2010
O ofício
do silêncio
enxuta, sendo que a relativa regularidade
métrica dissimula violações sintácticas e
jogos bruscos de palavras: a geada per‑
corre os versos que transformam o fogo
em figura. A pontuação é errática e os
travessões são linhas, seres invisíveis, isto
se os virmos à luz de uma geometria
sagrada, rastos de pontos em movimento
que nascem da imobilidade do ponto,
imaterial e comparável ao zero: união
entre silêncio e palavra.
Por Ana MaRques Gastão
A circunferência é o contorno do círculo,
lugar geométrico de todos os pontos de
um plano que estão a uma certa distância
(o raio) de um certo ponto chamado
centro. A definição é oblíqua ao tentar
desvendar‑se a poesia de Emily Dickinson
(1830‑1886), como oblíquo dir‑se‑ia o
seu discurso, quer nos poemas, quer nas
cartas: silencia‑se o que se diz porque não
pode ser dito. Quando Emily Dickinson
escreve: “O meu Ofício é a circunferência”
(carta 268, Julho de 1862) reformula a
ideia de Nicolau de Cusa: “Ele [Cristo]
é o centro e a circunferência da natureza
intelectual, e, porque o intelecto abraça
todas as coisas, está para lá de tudo”
(A Douta Ignorância, Fundação Calouste
Gulbenkian, 2003, tradução, introdução e
notas de João Maria André). A poeta estava
consciente daquilo que Pascal lembra,
citando Hermes Trismegisto: “Deus é uma
esfera cujo centro está em todo o lado
e a circunferência em lado nenhum.”
A presença‑ausência divina, porque
ilimitada, só poderia estar no centro
invisível do ser, algo que justificaria a vida
silente da autora. O “elemento branco”
da sua esotérica poesia fala de uma coisa
querendo dizer outra.
Influenciada pela herança da teologia
negativa – num certo sentido neoplató‑
nica –, Emily Dickinson vive entre a ten‑
são interna do poema e a sua desfiguração
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
‘
A presença‑ausência divina,
porque ilimitada, só poderia
estar no centro invisível do ser,
algo que justificaria a vida
silente da autora. O “elemento
branco” da sua esotérica poesia
fala de uma coisa querendo
dizer outra.
’
Ana Luísa Amaral, em Cem Poemas (Relógio
d’Água, 2010, tradução, posfácio e orga‑
nização da autora), explica que, “ao uti‑
lizar, para definir a sua poesia, a figura da
circunferência, Emily Dickinson privilegia
[…], do ponto de vista estilístico, a elip‑
se”, acrescentando que a poeta subverte
duplamente a figura de círculo, “quer
substituindo‑a pela distorção do centro
no abaixamento e descentramento presen‑
tes na geometria da elipse, quer pelo que
é ausente do centro”. Em ambos os casos
trabalha‑se a alusão e, conforme salienta,
o paradoxo na definição do “excesso pela
própria presença do limite”, quer no que
se refere à visualidade do poema, quer à
sua significação.
Na verdade, Emily Dickinson, cuja ousa‑
dia experimental ainda hoje surpreende,
viu apenas publicados dez poemas em
vida. Se Lavinia, sua irmã, tivesse respei‑
tado o pedido de destruição de tudo quan‑
to escreveu (Max Brod também não
cumpriu a solicitação de Kafka), que
conheceríamos desta mulher, enclausura‑
da entre a casa e um jardim coroado de
ausência? E porque não terão eles pró‑
prios, os autores, feito desaparecer os seus
papéis? A ambiguidade mantém‑se, bem
como a questão ética; obras extraordiná‑
rias teriam sido aniquiladas, mas hon‑
rar‑se‑ia a vontade de ambos.
O trabalho de Ana Luísa Amaral (que faz
justiça à descoberta de Sena e Cesariny, bem
como a tradutores como Hatherly, Llansol
ou Júdice) não só constitui a mais rigoro‑
sa e poética tradução da intraduzível obra
de Dickinson (a partir da edição de
Johnson) como resulta na mais vasta anto‑
logia publicada em Portugal. O leitor é
ainda brindado com um elucidativo e
denso prefácio – em torno de uma autora
de contornos imprecisos e certamente vio‑
lentados –, uma minuciosa tábua cronoló‑
gica (não meramente enunciadora, mas
aproximada de um consistente registo bio‑
gráfico, porque apoiada em informações
extraídas de cartas e escritos memorialís‑
ticos), sendo‑lhe ainda fornecida uma lista
exaustiva do material bibliográfico sobre a
poeta produzido entre nós.
83
LIVROS
Carlucci versus
Kissinger
Bernardino Gomes
e Tiago Moreira de Sá
Dom Quixote, 2008
Os portugueses
vistos pelos
americanos
Por E. Mujal­‑Leon
O Department of Government e o BMW
Center for German and European Studies
da Universidade de Georgetown tiveram o
prazer de promover a apresentação do livro
Carlucci versus Kissinger, da autoria de
Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá.
Presentes na cerimónia estiveram a antiga
embaixadora dos Estados Unidos em
Portugal, Elizabeth Bagley, e o actual embai‑
xador de Portugal nos Estados Unidos,
Nuno Brito, bem como Miguel Vaz, repre‑
sentante da Fundação Luso­‑Americana para
o Desenvolvimento. Foi um privilégio espe‑
cial para nós podermos contar, naquela
ocasião, com a presença de um dos prota‑
gonistas do livro, o embaixador Frank
Carlucci.
Carlucci versus Kissinger é um livro impor‑
tante, original e oportuno. Não só nos
recorda quanto esteve em jogo naqueles
anos cruciais em Portugal, como também
oferece ao leitor um relato perspicaz e
minucioso da Revolução, das acções dos
principais actores e grupos, e da transição
extraordinária para a democracia que se
seguiu à Revolução. Já foram escritas
outras obras sobre este período. O livro
Carlucci versus Kissinger representa um con‑
tributo com dois aspectos únicos. Em
primeiro lugar, oferece uma análise muito
84
‘
Passados quase quarenta anos,
este livro torna muito claro
o significado da Revolução
portuguesa e conta a história
da luta intensa de uma nação
pela democracia.
’
válida da Revolução portuguesa vista de
Washington pelos responsáveis pela polí‑
tica externa americana. Em segundo lugar,
apresenta um relato íntimo dos debates
que tiveram lugar ao nível da Administração
americana e das divergências que surgiram
entre Henry Kissinger e Frank Carlucci
sobre a forma de responder aos aconteci‑
mentos em Portugal.
Passados quase quarenta anos, este livro
torna muito claro o significado da
Revolução portuguesa e conta a história
da luta intensa de uma nação pela demo‑
cracia. Quem teria imaginado que um
pequeno país da periferia europeia iria
despertar do torpor de uma ditadura que
durava há quase cinquenta anos, rechaçar
os esforços dos radicais do Movimento
das Forças Armadas e do Partido
Comunista no sentido de instaurar uma
democracia “popular”, e, depois, num
escasso número de anos, assumir o seu
destino democrático? Este processo his‑
tórico levou uma das grandes figuras da
ciência política americana, Samuel
Huntington, já falecido, a identificar a
Revolução portuguesa como o ponto de
origem da Terceira Vaga que, no espaço
de duas décadas, acabaria com as dita‑
duras do Sul da Europa e da Europa
Oriental, e, também, da América Latina.
Carlucci versus Kissinger ajuda­‑nos a compre‑
ender por que razão Portugal esteve no
epicentro da política mundial durante os
meados e os finais da década de 1970.
Durante a Revolução portuguesa, gerou­‑se
alguma incerteza quanto à futura confi‑
guração da segurança europeia e ao papel
da Aliança Atlântica. E, também, quanto à
forma como se iria processar a descolo‑
nização da África Austral. A própria Guerra
Fria e o equilíbrio de poder entre os
Estados Unidos e a União Soviética seriam
profundamente influenciados pela luta
bem­‑ sucedida pela democracia neste
pequeno país.
Este livro contém uma análise penetran‑
te da política externa americana durante
um período tumultuoso e realça a impor‑
tância da liderança nos processos políti‑
cos. Acontece com demasiada frequência
os historiadores e os cientistas políticos
concentrarem­‑se em processos amplos e
estruturais. Este livro recorda­‑nos que são
os indivíduos que fazem a história.
Qualquer pessoa que esteja interessada em
saber como é feita a política externa ame‑
ricana deve ler este livro. Os documentos
e entrevistas que contém são um verda‑
deiro manancial de informação. O livro
conta a história absorvente de duas gran‑
des figuras da política externa americana
– Henry Kissinger e Frank Carlucci –, os
seus confrontos e as suas divergências de
opinião em relação aos acontecimentos
em Portugal.
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
BREVES
À Procura da Grande
Estratégia – de Roosevelt
a Obama e Fórum Roosevelt
apresentados na Califórnia
Retomar os contactos da FLAD com as
comunidades portuguesas na Califórnia
foi um dos objectivos da visita de lan‑
çamento do livro À Procura da Grande
Estratégia – de Roosevelt a Obama e apresen‑
tação do Fórum Roosevelt.
Tony Goulart, empresário e livreiro de
grande projecção junto da comunidade
portuguesa da costa oeste, planificou as
sessões nos departamentos de Português
e em associações comunitárias de luso­
‑descendentes, num total de 12, de São
Francisco a São Diego.
Mário Mesquita, administrador da
FLAD , António Vicente, até recentemen‑
te responsável na Fundação pelo ensino
do português nos Estados Unidos, e
Sara Pina, coordenadora das edições por‑
tuguesa e inglesa do livro À Procura da
Grande Estratégia – de Roosevelt a Obama, parti‑
ciparam em sessões e encontros na
California State University, na biblioteca
J.A. Freitas, na San Jose High School
e State University, no Portuguese
Atheletic Club, na conferência da Luso­
‑American Education Foundation, no San
Diego Portuguese Hall, entre muitos
outros.
Um protocolo de empréstimo de obras
da colecção de arte da FLAD, destinadas a
serem expostas nos Açores, no quadro do
projecto cultural denominado “Arquipélago
– Centro de Artes Contemporâneas”,
sediado na Ribeira Grande foi assinado
em Julho passado.
Jorge Paulus Bruno, director regional
da Cultura dos Açores (DRaC) e Mário
Mesquita, representando a FLAD, realçaram
a importância desta parceria, que vai per‑
mitir que o acervo da Fundação Luso­
‑Americana possa figurar, por empréstimo
temporário, em várias mostras e exposi‑
ções, a realizar na Região.
Para cada exposição prevista, a DRaC vai
apresentar à FLAD o tipo de projecto e os
artistas que pretende ver representados.
A FLAD compromete­‑se a satisfazer os
pedidos apresentados e a avançar com
sugestões, sempre que possível.
Com este acordo o Governo Regional
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
D.R.
FLAD assina Protocolo
de Cooperação Cultural
com o Governo Regional
dos Açores
dos Açores e a FLAD pretendem dar con‑
tinuidade a uma iniciativa que entre 2007
e 2008 permitiu realizar três exposições
– “Sinais”, “Corpo Intermitente” e
“Passagem” – em Ponta Delgada, Angra
do Heroísmo e Faial.
85
COLECÇÃO FLAD
Jorge Molder
en garde
Por vezes só. Outras acompanhado. O mundo já lá está antes de fias mostram­‑nos poses obtidas directamente), concentra, de modo
qualquer reflexão? Pequenos enquadramentos exploram saturada‑ quase seminal, algumas das qualidades, temas e eixos fundamentais
mente a imagem de uma relação enigmática de um duplo contra da discursividade desenvolvida em diferentes momentos, desde
ou perante o seu duplo, isolam as figuras duplicando­‑as, questionam­ 1977 até à actualidade, por Jorge Molder. Essencial, desde logo, é
‑nos sobre a paradoxal originalidade do outro, daquele que se o conceito de “série” que, como refere o próprio, alicerça o seu
replica infinitamente, manifestando subtilezas, tensões e fragilida‑ significado num “bem conhecido conceito filosófico”, com alusões
des enganadoras, num jogo corporal sedutor e potencialmente temporais, de pertença e de outros atributos difíceis de clarificar.
agressor. Aproximamo­‑nos. Através da relativa opacidade das ima‑ “Sei perfeitamente quando começa, acabo por conseguir descobrir
gens, espessas, densas, sombrias, obscuras, matizadas, quase des‑ quando termina, consigo compreender os seus elementos consti‑
focadas – destrói­‑se a nitidez pela nitidez? –, pouco definidas ou tutivos, mas escapa­‑me totalmente o seu modo de funcionar e a
precárias, entre o fainting, falling, fading and faking (título do texto de sua ocorrência” (tradução livre de texto no website do artista).
Delfim Sardo, in Luxury Bound), Jorge Molder, cujo trabalho, essen‑ Inacabada, com alpha e sem omega, esta série de obras em torno do
cialmente fotográfico, trata, segundo os seus vários críticos, da universo da esgrima permite­‑nos perceber algumas das suas obses‑
“duplicidade”, esgrime, com uma impressionante economia de sões, sobretudo, em torno da temática do conceito de doppelgänger:
recursos, os argumentos que se digladiam sobre a inevitável e uncanny criatura dividida ou réplica vagueante?
divisão do ser. O que vemos são pequenas imagens polaroids, obti‑
Nestas obras, a figura do esgrimista – “são seres um bocado
das a partir de vários registos em vídeo que Molder realizou sobre especiais”, segundo Jorge Molder –, as suas roupas, o movimento
os movimentos de um duelo de esgrima. Dois corpos ou figuras dos seus gestos, a anatomia de uma rotina nos limites do ritual,
(ou o mesmo corpo duplicado?), vestidos com os habituais fatos ensaiam sobre a ideia ou sobre a memória de um arquétipo essen‑
brancos, com máscaras protectoras que escondem e revelam o rosto, cial que se confronta com a impossibilidade do golpe mestre, da
as mãos descobertas, relacionam­‑se em diferentes momentos atra‑ estocada perfeita, imparável, a mais depurada criação iluminada
vés de diferentes poses/gestos numa arena, cujo fundo indistinto, pelo talento humano, modelo de inspiração e eficácia, desvelando,
iluminado por um foco circular, permite um recorte expressivo de por isso, um certo espírito de agonia, num silencioso duelo com
um aqui e de um agora – hic et nunc –, de natureza quase arcaica, a própria imagem, cujo reflexo parece escapar aos limites impos‑
fundadora, inicial e indicial, mas que nos remete automaticamen‑ tos pelo artista, entre rejeição e retenção, obsolescência e ritual,
te para um antes e um depois sem tempo: “ainda não e já não”. numa constante variação aprisionada. Para George Kubler, “a repli‑
Um passado que é futuro? Para João Miguel Fernandes Jorge, “as cação que enche a história prolonga efectivamente a estabilidade
polaroids potenciam o lance possível desse passado vivido”, subli‑ de muitos momentos passados, permitindo que sentido e modelo
nhando, quando ensaia sobre o trabalho de Molder, a relevância de possam emergir sempre que atentamos nesses momentos. No entan‑
“um ‘estar em guarda’. Os Esgrimistas são o seu domínio. Neles, a to, esta instabilidade é imperfeita. Qualquer réplica feita pelo
fotografia é precisamente o seu pensamento. Os golpes certeiros homem difere do seu modelo devido a divergências mínimas e
levam a um constante voltar a olhar a fotografia. Estabelecem uma não premeditadas. Os efeitos acumulados destas divergências são
necessidade de tempo, e de mais tempo ainda, para se provar a como que uma lenta deriva em relação ao arquétipo” (A Forma do
consistência de um rosto que se recolhe a cada instante em fuga Tempo). Tocar e evitar ser tocado? Pedro Faro
(e em fusão) com o negro do fundo” (João
Miguel Fernandes Jorge, texto para o catálogo
Algum Tempo Antes/Algun Tiempo Antes, 2006).
Licenciado em Filosofia, Jorge Molder ganha forma a partir de 1987, através
Enuncia­‑se discretamente uma certa dialéctica
(Lisboa, 1947) iniciou o seu percurso de várias séries de obras. Em 1999,
paradoxal do espelho, num sedutor jogo de
em 1977 com uma exposição indivi‑ Jorge Molder foi convidado por Delfim
revelação e ocultação, através de duas perspec‑
dual dedicada a Vilarinho das Furnas Sardo para representar Portugal na 48.ª
tivas, em cada um de nós – “Il faut que je sois
– “Vilarinho das Furnas (Uma Encena‑ Bienal de Veneza, confirmando­‑o como
mon extérieur, et que le corps d’autrui soit lui­
‑même” (M. Merleau­‑Ponty, Phénoménologie de la
ção), Paisagens com Água, Casas e Um um dos nomes mais importantes da
Perception) –, sem tempo e espaço objectivos.
Trailer”. Em 1980, em colaboração com arte contemporânea portuguesa. Foi
Constantemente citada nos vários textos sobre
os poetas João Miguel Fernandes Jorge director do Centro de Arte Moderna da
a obra e percurso de Jorge Molder, mas pouco
e Joaquim Manuel Magalhães, realiza Fundação Calouste Gulbenkian, de 1993
explorada para além da sua razão essencial, a série
“Uma Exposição”. A auto­‑representação, a 2009. O trabalho de Jorge Molder está
de polaroids Esgrimistas, de 1986, com 8 x 8 cm,
complementada por um pequeno conjunto de
aliada a fortes referências cinemato‑ representado em importantes colecções
duas fotografias, a preto e branco (as polaroids
gráficas, do quotidiano e da literatura, de arte portuguesas e internacionais.
são feitas a partir de registos vídeo e as fotogra‑
86
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
COLECÇÃO FLAD
“Não te mexes. Não te mexerás. Um outro, um sósia,
um duplo fantomático e meticuloso talvez faça,
por ti, um a um, os gestos que tu não fazes.”
Laura Castro Caldas e Paulo Cintra
Georges Perec, Um Homem Que Dorme
Sem Título (da série “Os Esgrimistas”) 1986, Polaroid colada em papel Canson, 8×8 cm
Paralelo n.o 6
| OUTONO | INVERNO 2011
87
D.R.
Lua sobre o Pico
Lucina Ellis, 1996, 48"×54", óleo sobre tela
Cresci a ouvir contar histórias sobre
o meu avô. Era um pintor, um homem
severo. Partiu do Faial rumo ao Brasil,
deixando para trás a mulher, que esperava
um bebé, uma filha mais velha, um filho
que se preparava para entrar para
o exército e o meu pai, então com
13 anos. Deslocaram‑se todos à Terceira,
com as suas melhores roupas, para se
despedirem do meu avô no cais. A família
iria esperar que ele se instalasse no Brasil,
e depois iria ter com ele.
Passaram‑se anos à espera – talvez o meu
avô tivesse adoecido, constituído uma nova
família, ou sido morto!
Ele nunca soube até que ponto faz parte
de mim e, no fundo do meu coração,
também eu esperei por ele.
Hoje, tenho uma fotografia do Pico
na parede do meu ateliê. Um dia o meu
pai subiu o caminho até à minha porta
trazendo uma fotografia escura e cinzenta.
Queria que eu lhe fizesse uma pintura
da fotografia.
O meu pai ansiava pela vida que em
tempos vivera com o seu pai, quando era
jovem, e pintava igrejas no Faial e no Pico.
Pintei um dia luminoso que perdurasse,
grandes manchas de amarelo, texturas e
pinceladas visíveis, e o Pico ornamentado
com nuvens de tons suaves, recordando
um passeio de barco do Pico ao Faial,
com a água do oceano a bailar à volta
dos meus dedos.
Lucina Ramos Ellis, pintora

Documentos relacionados