Neve

Transcrição

Neve
A neve é o último nível do desespero humano. Ou do sentido de humor da natureza. A paz a
puxar e a abraçar a morte.
Jurara que não se envolvia mais. A inteligência emocional que lhe impingiram meses a fio
naquela formação que pretensiosamente lhe iria mudar a vida e que tivera o alto patrocínio do
Jornal anunciara milagres. Mas na hora da verdade continuava tudo igual. Gania como um
cãozinho perdido nas ruas da cidade a chafurdar a porcaria e o gelo de cada vez que se
envolvia numa reportagem que invariavelmente acabava sempre por explorar a natureza
humana e as suas facetas malévolas. Também não sabia o que havia de errado nisso!
Preferiam com certeza que fosse como o outro que vai entrevistar um sem-abrigo e lhe
pergunta como é que consegue enfrentar o frio forte e, cumprido o dever, se mete no seu
automóvel climatizado e conduz velozmente para o seu confortável apartamento, não
precisando sequer de acelerar o esquecimento pois a sua natureza prática atua muito mais
rapidamente do que a consciência.
Anuncia-se uma tempestade terrível.
Mas não havia como escapar à Bunkhansan e aos seus ensinamentos sagrados. Ele sabe que a
montanha não ensina nada, ele é que pensa demais, ou sente demais na opinião dos chefes.
Desta vez, o pretexto foi a entrevista que fizera ao pai do homem que apareceu morto nas
margens do rio Han. Especulava-se sobre a sua saúde mental e a hipótese mais plausível era a
de suicídio. Uma entrevista exclusiva com o pai da vítima era uma oportunidade que qualquer
órgão de comunicação da concorrência teria festejado. Explorariam todas as palavras que ele
dissesse e adivinhariam pretensões no seu silêncio. Chin-Hae tinha sido muito claro nas
instruções que lhe transmitira, chegando mesmo a indicar algumas questões que ele deveria
formular e ele sabia tudo. Sabia que não deveria desobedecer a uma autoridade. Sabia que
tinha que ser objetivo e deixar de lado sentimentalismos. Sabia toda a informação que devia
extrair, desde a medicação que o filho tomava até às últimas palavras que ele tinha proferido.
Saber sabia, mas ele não era assim. E bastou que o senhor referisse a enorme consternação
que estava a viver para ele se solidarizar com a sua dor e reverter os papéis, perguntando o
que é que o jornal podia fazer por ele. Foi um falhanço completo. Com direito a repreensão e
ameaça de demissão.
Se ao menos ele não gostasse do que fazia. Se para ele escrever fosse um sacrifício tão grande
como fazer-se à estrada rumo ao interior do dia na festa do Chuseok, aqueles dias de Agosto
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em que o país inteiro celebra os seus ritos mais remotos junto dos entes que salvaguardam a
memória rural da família e entope as autoestradas. Se perscrutar os sentidos das vidas que se
atravessam à sua frente fosse antinatural… mas não, não havia nada que o empolgasse mais.
O problema, refletia ele agora a frio à medida que o vento gelado lhe ia acalmando as ideias, é
que o seu estilo não se adequava ao do jornal e ele não tinha capacidade para abrir o seu
próprio jornal. Nem ele saberia como fazê-lo.
Qual gestão das emoções, qual quê? Isso tudo são ideias ocidentais que podem fazer sentido
para outros, mas ele só queria era saber aproveitar a força do universo, pois o mundo é um
círculo que está em constante evolução e também a vida está sempre em rotação, tudo o que o
homem precisa é de saber fluir como as águas se vão adaptando sempre a novas margens e
respetivas paisagens. No seu caso, deixaria de olhar para a sua emotividade como um
problema, passando a descortinar o que de bom lhe poderia trazer. Não mais seria vítima! Que
humilhação tão grande ter de olhar para os outros como que a pedir desculpa por se ser como
é…
- Sou mesmo um traste, não sou? Peço tanta desculpa por existir e com a minha maneira de
ser diferente da sua colocar em causa e questionar aquilo que é! Sim, porque em si está a
verdade e em mim o ultraje…
Não, nunca mais se obrigaria a isso.
E os caminhos sempre repletos de montanhistas estavam naquele dia desertos. Alguns
pareciam mesmo irreconhecíveis. Mas ele não se importava. Quanto mais medonhamente só a
montanha estivesse mais ele sentia os apelos à perdição que ela emitia. Lembrava uma mulher
bonita e segura de si que passivamente atraía a si mais do que as esfomeadas raparigas que
retocavam a maquilhagem enquanto dançavam frenéticos ritmos K-pop nas discotecas do
moda. Estas eram as personagens das novelas e filmes da onda coreana, ou Hallyu, já prontas
a ser digeridas, a primeira era uma anfitriã que executava na perfeição o cerimonial do chá: o
mistério a seduzir tanto como o conforto das revelações.
Só ele naquele dia optara pela mais difícil tarefa de seduzir, os outros caminhantes preferiram
ficar em casa, a engolir doses industriais da sua preguiça.
E depois vieram mais mil pensamentos à sua cabeça. Oh, quem lhe dera conseguir meditar,
voltar a sentir a paz que o invadia quando se deslocava ao Templo Jogyesa, se descalçava e
ficava vazio de si próprio a deixar que o silêncio atuasse. Depois, saía e ia cumprimentar o
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mestre Sunji que falava naquele tom sereno e inabalável de quem sabe que tem sempre
alguma coisa de interessante para dizer. E ele pensava em como gostaria de ter também uma
voz. Um grito. Um sussurro. Qualquer tipo de expressão que empurrasse caminhos e abrisse
um túnel no entendimento, permitindo que ele e outros comunicassem. Ironicamente, ele é
que era o profissional da comunicação…
O caminho desaparecera de todo e agora só lhe restava seguir a sua intuição para adivinhar o
trajeto a seguir. Finalmente, um assunto sério o conseguiu arrancar das nuvens de
pensamentos que o fizeram flutuar muito acima da realidade concreta cheia de perigos desse
dia. E o medo tomou nele a forma de um animal disforme que ataca ao pressentir a
aproximação do inimigo. No curso tinham-lhe ensinado que devia parar para observar com
neutralidade as suas emoções e as reações físicas que provocavam. Mas na vida as reações
físicas tomavam conta do cérebro e impossibilitavam qualquer raciocínio lógico. Tinha que
descer. De uma maneira ou doutra. Nem que se perdesse mais. Havia que chegar a alguma
estrada ou povoação antes que caísse a noite. Mas a neve estava muito mole, pois era recente,
e não permitia que ele caminhasse sem se enterrar. Tinha mesmo que encontrar o caminho.
Foi experimentando em várias direções até que o seu pé lhe garantiu que encontrara firmeza
naquele mar branco. Foi seguindo, mas volta e meia desviava-se e demorava bastante tempo
até perceber por onde devia seguir. E a escuridão ameaçava tornar-se mais feroz ainda do que
a brancura, cavalgando a grande velocidade. Decidiu gritar. Talvez alguém o ouvisse. Foi
então que se lembrou: não via ninguém há horas… as luzes de Seul distinguiam-se já naquele
entardecer aterrador de janeiro.
Mais meia hora e a escuridão seria completa.
Decidiu correr, mas caiu e bateu com a mão numa rocha. Ouviu o bater seco de um osso a
partir-se e as dores que sentiu indicaram-lhe o local exato da fratura: as falanges da mão
esquerda. Gritou de dor. Uivou como um lobo. Voltou a ser como os homens primitivos antes
de conhecerem na Coreia uma das primeiras civilizações do mundo. Fez da voz sangue e
rebentação.
Surpreendentemente, ouviu uma resposta.
Não percebia o que diziam, mas foi caminhando em direção ao som, sempre a gritar e sempre
a receber resposta. Quando ia ficando mais perto foi fazendo perguntas, mas a resposta era
invariavelmente sempre a mesma:
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- Here!
Apesar de a noite já se ter espalhado totalmente por cima da floresta, quando estava a cerca de
10 metros da pessoa que o salvara, ele avistou finalmente um casaco cor-de-rosa florescente e
uma cabeça loira.
- Oh, queres ver que mais uma vez os americanos vieram para nos salvar? –arriscou-se a
dizer.
- Não gosto de Hollywood, prefiro bom cinema europeu e asiático. Coreano, nomeadamente.
- Então talvez sejas um anjo, perfeito nos gostos e no sentido de oportunidade, que acampou
aqui para me mostrar que ainda existe bondade no cosmos.
- Por acaso, acampei mesmo. É o primeiro inverno que passo aqui e não contava com a
gravidade desta tempestade. Estacionei para vir tirar umas fotografias da cidade vista daqui e
já não consigo sair daqui com a altura da neve, vou pernoitar no carro. E você? Veio contar
anedotas à montanha?
Ele deu uma gargalhada como há já algum tempo não se lembrava de ter dado.
- Nada disso. Sou um sentimentalista que veio chorar as suas mágoas e de tal maneira se acha
especial que não estranhou ser o único a enfrentar a bravura da natureza.
- Sou a Mariana. Vamos para dentro do carro. Assim vai-me custar menos esperar por socorro
e quero acreditar que o gasóleo chega para manter ligado o ar condicionado.
- Sang. Muito grato.
E debruçou-se numa vénia. Ao estender as mãos na direção da sua salvadora sentiu uma forte
dor e foi incapaz de a reprimir.
Entraram no carro, enquanto ele falava da queda. Depois ela explicou que era portuguesa e
estava em Seul a apresentar a sua obra plástica, tinha uma exposição patente na Casa Yi Song.
A conversa encaminhou-se naturalmente para a arte. Nos momentos de rara empatia com
outros seres humanos, ele sabia: a conversa é como o rio que sabe para onde vai, mesmo sem
saber nada. É a falta de consciência que traz a sabedoria.
- Um dia, entrevistei Nam June Paik. Até hoje, não sei como foi possível. Foi alguma coisa de
fantástico conhecer de perto um homem com aquele perfil. Percebi pelas sombras dos seus
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olhos e pelo silêncio que sabia gerir porque é que as suas obras são tão eloquentes,
misturando natureza, tecnologia e consciência humana – discorreu Sang.
- Para ele, a imagem e o som são quase indissociáveis de tudo o resto. A natureza precisa de
ver e ouvir -completou ela.
A fome foi enganada por meia dúzia de bolachas e quando o tema de conversa versou o
bulgogi, o bibimbap ou o boshintang agravou-se o apetite.
- Confesso que inicialmente tinha muita reserva em relação à vossa gastronomia. No meu país
não se come carne de cão e o peixe é sempre cozinhado.
- O cão é sagrado para vocês?
- Não oficialmente ou por preceito religioso. Mas na prática é. Porque é o nosso amigo mais
fiel. Comer cão é como trair um amigo –explicou a Mariana.
Quando avistaram as luzes de uma carrinha limpa-neves, anunciando o fim do intervalo de
encontro na vida daquele homem, ele teve ainda tempo para dizer:
- Hoje, quando gritei sem qualquer intenção e tu me respondeste, senti pela primeira vez na
vida que tinha conseguido comunicar com um ser humano. Nam June Paik era dócil, nada
autoritário, por isso há quem o chame de “mãe”. A minha voz arrancou das profundezas da
minha dor um filho anjo. Sou tua mãe. Hei de recompor-me deste parto para contar a nossa
história. Tu serás a personagem principal de qualquer história que eu conte porque és a minha
voz.
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