textos - Central Galeria

Transcrição

textos - Central Galeria
centralgaleria.com
central
[email protected]
+55 11 2645 4480
mourato coelho, 751
pinheiros 05417 011 / são paulo
pg 1/12
textos
Dias de lua, noites de tinta
A lua é um ponto iluminado no céu cuja simbologia é plena de sentidos e representações criados pela humanidade. Buraco negro de deuses e medos, a lua é Jaci e Magritte. A lua é o amor
romântico, o delírio das tribos, o desafio da guerra fria. A lua é uma bola redonda branca-amarela-vermelha-dourada que paira no ar, que organiza vidas zodiacais, que muda marés, que
fica ao alcance da mão onírica da criança (quem quer ir ao Sol? A criança sempre quer ir à lua).
A lua é oriental, ocidental, cruza classes, semeia transes, explode poemas. Crescer, minguar,
ser nova ou cheia, a lua é parte do dia a dia de todos – talvez a nossa maior referência visual, já
que, ao contrário do astro-rei, podemos fita-la pelo tempo infinito. Na base mais profunda disso
tudo, talvez no grau zero desse amor imenso que temos por ela, a lua é uma bola de luz. Cheia
ou não, é essa esfera cobrindo a noite que nos fascina.
A pintura de Gisele Camargo apresenta uma operação bem específica e, ao mesmo tempo,
generosa em sua busca de imagens e motivos que movam sua obra. Durante um período
recente de sua vida, a lua tornou-se uma dessas imagens capturadas pelo seu olhar e transformadas em uma forma quase íntima. Do alto de um edifício com janelas debruçadas sobre a
baía de Guanabara e sobre as cadeias de montanhas da cidade, a lua cheia que surgia mensalmente para Gisele foi aos poucos tornando-se parte de uma composição que transcendia
qualquer mito romântico. Era a fixação de uma bola perfeita em contraste com edifícios da
cidade e suas luzes apontadas pra cima. Gisele passou a ver a lua imponente se articulando
com as formas do mundo. A dialética histórica entre Natureza e Cultura se manifesta aqui em
mais uma de suas muitas versões contemporâneas. Afinal, Gisele é, fundamentalmente, uma
pintora de paisagens. E quando a lua vira de vez sua paisagem, novos planos, novas perspectivas, novas superfícies e novos recortes precisam surgir.
Em uma fusão sugestiva de forma e conteúdo, a flutuação do satélite também se torna uma
flutuação das telas em sua montagem compartimentada – formato que aponta cada vez mais
um caminho sólido de pesquisa e consistência na obra de Gisele e cujo passo decisivo foi o
início de suas Cápsulas (2013). Sem lugar fixo em um suposto céu, sem necessidade de representar a luz, sem ter que reivindicar uma alegoria pictórica, a lua aqui assume sua força gráfica
e torna-se elemento narrativo em sutis jogos de aproximação e rasura entre os outros planos
da pintura. Nuvens, sólidos, líquidos, todos modulam a lua, assim como modulam as cores.
Ampliando outro dado central em sua pintura, Gisele também escava o espaço, cria buracos
sem fundo, insinua saídas para o nada, cria planos que não se estendem para além de seus
limites abruptos. Suas retas produzem uma arquitetura onírica em paisagens que nos deixam
no impasse entre estarmos vendo a lua no céu ou estarmos pisando na própria superfície
lunar.
As telas dessa Noite Americana são, portanto, um convite para um passeio do olhar em suas
múltiplas perspectivas. Gisele nos apresenta pontos de vista que conservam a cena, porém
nos oferecem a possibilidade livre da edição – ou síntese – dessa paisagem. A lua, mais do
que assunto das pinturas, é um tema a mais de fruição da aventura e do experimento que é
pintar. Sem esconder o fascínio pelo ícone, não se furta em apontar para o seu lado escuro,
pleno de vazio e mistério. As solidões e fundos negros das telas são a marca de uma pintura
que se guia por procedimentos, por um pensamento muito pessoal sobre forma, plano, superfícies, volumes, atingindo um equilíbrio entre figuração e abstração. Aqui, temos jogos entre
profundidades, tonalidades, texturas (diferentes tintas, diferentes técnicas), em um mundo que
muita coisa acontece e nos permite mergulhar sem foco obrigatório. Talvez o que nos faça
centralgaleria.com
[email protected]
+55 11 2645 4480
mourato coelho, 751
pinheiros 05417 011 / são paulo
pg 2/12
encontrar uma unidade no conjunto é a disposição de Gisele em se aprofundar em uma abordagem autoral de pintura, em propor situações ao nosso olhar a partir de uma geometria que,
ao invés de esquadrinhar o mundo, o abre para novos espaços poéticos.
Em nossas conversas ao redor desta exposição, Gisele falou algumas vezes do filme de
François Truffaut que a batiza. Não pelo filme em si, mas pela ideia do cineasta de jogar com o
nome da técnica que simula em um estúdio de filmagem durante o dia uma cena que precisa
ocorrer à noite. Ter como mote esse efeito de noite simulada, de uma lua que não precisa da
noite para surgir, de um dia que pode perfeitamente ter a lua em seu céu, ou até mesmo de
uma lua que simula noite no dia claro do ateliê, é a força central da exposição. Gisele exercita
uma forma (a esfera / a lua), aprofunda os múltiplos sentidos que essa forma sugere dentro de
seu vocabulário pictórico, experimenta conexões e aproximações entre diferentes aspectos
espalhados em suas telas ao longo de sua trajetória. Se foi Truffaut e seu filme quem deram o
título da exposição, trago por fim a frase de outro cineasta, o brasileiro Ivan Cardoso, quando
em seu filme Nosferatu no Brasil (1972), precisava filmar a história de um vampiro no Rio de Janeiro. Em super-8 e sem recursos para criar “noites americanas”, Cardoso resolveu o impasse
orçamentário e estético com a seguinte frase na abertura do filme: “Onde se vê dia, veja-se
noite”. Que seja feita simultaneamente dias e noites de Gisele nas telas amplas dessa exposição.
Texto escrito por Frederico Coelho.
centralgaleria.com
central
[email protected]
+55 11 2645 4480
mourato coelho, 751
pinheiros 05417 011 / são paulo
pg 3/12
textos
Panavision
A cena se desloca. Interna e externamente. Sua projeção quebra a ordem natural da própria
tela. Trata-se de uma pintura cinemascope e também de uma pintura de fotogramas. Sua escala e sua dinâmica guardam consigo algo moderno: ela é afim com o cinema, tanto pela força
hipnótica da imagem quanto pela estrutura segundo a qual se organiza - sequências nascidas
por montagens, idas e vindas em traveling, cortes e intercâmbios, às vezes serpenteando motivos misteriosos e suspensos; mas há também uma outra aproximação do cinema via história
da pintura moderna, uma reverberação cubista, que desmantela o ajuste pacífico do trabalho
no espaço e prefere ângulos truncados, impedindo a linearidade narrativa. Doze quadros por
segundo, doze quadros por metro.
A pintura de Gisele Camargo assimila de maneira intuitiva uma espécie de metalinguagem,
que não é estritamente da pintura nem do cinema, mas do encontro de ambos no tecer de um
imaginário e de um “situar-se” da visualidade. Há neles uma janela condensando os limites entre o para além e o para aquém que tanto mobilizaram a cultura moderna e a contemporânea.
Algumas telas sugerem elementos formais e arquitetônicos que parecem replicar o local onde
se instalam, mas cujo funcionamento como tal é sempre permutativo - seu sentido transita
entre um plano pictórico austero e a menção aos ângulos de uma sala ou de uma fachada
somente a partir de sua circunstância no conjunto exercendo diferentes significados conforme a inserção. Outros casos exploram o atrito entre planos substancialmente físicos, quase
objetuais, de uma pintura límpida, com imagens que pairam dentro da mesma tela ou logo ao
lado e que somem novamente, reaparecendo através de frestas. Aqui poderia se ensaiar outro
paralelo entre o cinema e a pintura: como eles necessitaram solucionar o problema da visualização da memória - ambos recorreram à sobreposição (dupla exposição) e à justaposição;
uma profundidade mental se inscreve em um tempo múltiplo e de densidade incerta (pode-se
divagar até que ponto esta ambiguidade não se transfere para as cores utilizadas pelo artista,
como os pretos, o prateado e o laranja, cuja presença espacial oscila entre conter-se e irradiarse na fronteira da superfície), quando figura e fundo, matéria e memória se mesclam. São,
portanto, pinturas da memória universal, que transbordam.
Percorrendo as paredes da galeria, elas levam o visitante a se mover de um set ao outro, tal
como de uma reminiscência a outra. A pintura se aciona como um espaço em história e em
análise - de si mesmo, da imagem, do espectador. O trem de Lumière refaz seu itinerário de
uma tela rumo a outra. A potência incisiva desse trajeto reside na perpétua incerteza acerca do
elo entre realidade e literalidade mediado por um elemento que não poderia ser mais abstrato:
o plano. Problema mais do que familiar à pintura. Não nos jogamos mais debaixo das cadeiras,
mas ainda assistimos ao trem a cada passo dado.
Texto escrito por Guilherme Bueno.
centralgaleria.com
central
[email protected]
+55 11 2645 4480
mourato coelho, 751
pinheiros 05417 011 / são paulo
pg 4/12
textos
Metrópole
As imagens construídas por Gisele Camargo suscitam uma dúvida sobre aquilo que está
diante de nós. E não estou argumentando apenas sobre a sua pintura mas sobre o espaço
como um todo. Não sabemos se trata de um espaço imaginário ou construído a partir de um
dado real. Se apostarmos nessa última possibilidade, torna-se curioso o fato de como a artista
transforma esses frames de paisagens desimportantes, pelo fato de serem da ordem do cotidiano, em um mundo estranho, suavemente melancólico e bruto. Uma construção de mundo
que se torna visível através de uma economia de gestos e em uma alternância entre poucas
cores (preto, branco e as nuances do cinza), com exceção do momento em que uma tonalidade distinta dessa paleta se confunde entre a paisagem e aumenta esse grau de mistério. O
verde, elemento supostamente estranho àquela paisagem, transmite uma ideia de aparição da
natureza (ele é inspirador para que percebamos uma mata – e essa sensação se dá exclusivamente pelo contraste entre o preto e o verde - ou uma depressão que desemboca em uma
espécie de lago) apesar de ser uma tonalidade irreal para aquela situação. Como dizia Artaud,
não é real, mas terrivelmente verdadeiro.*
Sua obra quer dar margem ao devaneio e, portanto, visibilidade a um mundo caótico que é
organizado pela falta, pelo corte, pela fratura. Nunca temos a percepção de um todo, mas de
uma perspectiva oblíqua. Adoto esse termo pelo fato da artista nos oferecer uma metrópole
recortada, que nunca se deixa ver por completa. A perspectiva poucas vezes é frontal, nos
dando a sensação de uma paisagem fugidia. E ainda, pelo fato de sua pintura incorporar estrategicamente o espaço da galeria, a fratura (dessa perspectiva) reaparece, agora criando um
diálogo com a arquitetura em que está instalada.
O seu compartilhamento sobre uma idéia de mundo nos revela uma paisagem sinistra, e que
não possui exatamente um posicionamento claro sobre lugar e tempo. Existem frações de
torres e céus, signos que nos lembram uma cidade, mas essa imagem é logo deslocada para
um território inóspito e ausente de figuras humanas. O que sobressai é uma sensação de melancolia diante de uma paisagem desértica e da promessa de um “acontecimento” que nunca
se concretiza. Em uma de suas telas, diante de uma ampla nulidade, assistimos ao céu sendo
deslocado do seu lugar natural e comprimido em um território que ambiguamente continua a
oferecer o que ele sempre foi: vastidão. Paira sobre esse conjunto de obras a imagem de um
nevoeiro, ou aquilo que dificulta a compreensão, ou ainda a imagem que necessita de seguidas visitas para ter as suas veladuras decifradas. Essa fabricação de lugares é advinda do
ambiente taciturno de suas paisagens.
Há um duplo movimento ocorrendo na exposição. Em paralelo à discussão da imagem
pictórica, Camargo constrói uma pintura instalativa. As falhas (ou divisões) em suas pinturas
são correspondidas pelo espaço da galeria. São continuidades interrompidas. Contudo, é
uma paisagem apresentada por meio de módulos. A sua obra nos oferece a possibilidade de
vislumbrarmos diferentes ordens e sequências, como um Cortázar (de “O jogo da amarelinha”)
pictórico. O nosso olhar se perde nessa quase obsessão de compor uma integralidade por
meio dos intervalos oferecidos por sua pintura. A construção desse espaço por meio de interrupções ou “colagens” de fragmentos de paisagens - que em si é a própria pintura - transmite
à obra de Camargo um senso de investigação e notabilidade não apenas sobre o lugar da
pintura na contemporaneidade, mas como ela alcança e se comporta no mundo.
Texto escrito por Felipe Scovino.
centralgaleria.com
central
[email protected]
+55 11 2645 4480
mourato coelho, 751
pinheiros 05417 011 / são paulo
pg 5/12
textos
A Capital
Não estamos diante de paisagens desabitadas, mas de espaços ansiosos, sempre na imanência de quem os habite, de quem os signifique. Eis uma questão de ponto de vista. Trata-se
em reconhecer qual será o nosso: fixo ou móvel, constante ou permutável, distante ou próximo. Aqui, pintura e galeria correlacionam-se mediante a ideia de acontecimento e, pelo breve
instante de sua duração, são continuidade uma da outra. Deduzimos, então, que esperam por
nós, seja para habitá-las, seja para que nelas tenhamos a percepção de nossa própria presença, reforçando o sentimento de coexistência.
De meros sujeitos contemplativos, somos compelidos a nos tornar olhos-corpos, nos movimentar por esses espaços, aproximar, recuar, inquirir a superfície, buscar detalhes, imaginar.
Vertov referiu-se a um cine-olho (kino-glaz), assinalando que a câmera era capaz de capturar
algo que a visão humana não apreendia – o que Benjamin posteriormente chamou de inconsciente óptico. Hoje poderíamos falar em ‘olho-cine’, ressaltando um modo peculiar de perceber, registrar e organizar aquilo que nos cerca. Através de nossos olhos, passamos a ‘cinematizar’ o mundo.
Alguma coisa da ordem da relação entre pintura e cinema, já presente em outras pesquisas de
Gisele Camargo, transparece de modo mais intenso em A Capital. A escala ampliada dessas
pinturas, juntamente com seu horizonte alto, assinala a passagem de um descontínuo posicionar-se diante da paisagem: ora estamos distantes, ora pisando no mesmo solo, ora olhando
tudo através de um ponto de vista de sobrevôo. Estamos rodeados por alguma coisa que
acontece ao mesmo tempo, mas da qual só podemos apreender um instante a cada vez. Não
é pintura em plano-sequência, como nos antigos panoramas, mas um mundo conscientemente editado, fragmentado, construído por camadas, enquadramentos, ângulos e elipses, e
mesmo assim, um mundo tão real quanto aquele que está ‘lá fora’.
Representação e realidade coexistem. Uma não antecede a outra, pois ao mesmo tempo em
que percebemos o mundo, o imaginamos. Assim, a representação só pode ser a continuidade
daquilo que anteriormente é uma subjetivação de tudo que nos cerca. Construir a imagem é
construir a realidade. Eis aí o momento em que nós, no ato de observar (capturar), compartilhamos com a artista a capacidade de apreensão, elaboração e significa- ção daquilo que
transcende a mera forma, a mera superfície da imagem. Artista e espectadores, somos todos
um pouco criadores.
Texto escrito por Ivair Reinaldim.
centralgaleria.com
central
[email protected]
+55 11 2645 4480
mourato coelho, 751
pinheiros 05417 011 / são paulo
pg 6/12
textos
Falsa Espera
Uma linha completa toda feita de horizonte...
Trata-se aqui de viver lugares que sempre conhecemos, espaços onde raro parámos, tolhidos
pela leitura fraca e escassa desse nunca ficar!
Como numa boémia de luxo, prolífica e doce, entramos aqui numa deriva simultaneamente aberta e direccionada, tanto conduzidos pela artista quanto pelas leituras íntimas que os
ambientes e lugares que atravessamos nos inspiram e permitem; esqueletos/sinopse que são
estes de um presente/passado importante, feitos gritos sem eco rumando ao futuro.
Cada parte, cada quadro, apresenta-se-nos como o indício pleno da sua própria totalidade, e
parte que é também de um todo, maior outro. Cada um tem uma “vontade no mundo”, observa a artista. Esse laranja aberto que amua depois, mas convive de perto com um negro bem
maior e fechado...
Podemos ler ao longo desta estrada/história uma depuração do que é a relação de proximidade enquanto vivência da dinâmica da diferença. Nesse sentido esta obra é um esqueleto
sumário da diversidade do relacionamento enquanto encontro e convivência de opostos, de
semelhantes, de concordantes, de inconciliáveis...
Este tema, universal e complicado, é aqui enunciado simplesmente e brevemente resolvido,
na progressiva e ondulante fluídez do seu próprio acontecer.
Como uma amostra estratégica e amoral da completude maravilhosa que reside nesse encontro/colisão de diferentes, aqui nos é dado sentir um corpo de voz que grita infinito - feito de
partes que se vão suportando e vivendo juntas, feito exemplo de um maior colectivo.
Representativo e múltiplo, englobante e ambicioso, este trabalho obriga a um percurso afirmativo e exteriorizante porque interiormente único, individualizante, interrogativo!
Aqui também acontece uma apuração formal e sumária que nos mostra o retrato mágico do
espírito dramatúrgico de cada espaço - uma cenografia última sem drama, disfarce ou encenação. São então lugares estes de onde o falso e o acessório foram expulsos ou nunca
entraram, inconciliação fatal decorrida da pureza absoluta reinante em cada recanto, entrada,
passagem...
Estas paisagens pós-humanas apontam abrangentes para a escolha íntima, para o caminho
próprio, devolvendo a cada um a luta com o seu pontual mistério.
A ausência que se desprende daquela paz calma exige a consciência da paisagem escolhida,
e a coragem clara de a percorrer. Aqui ao segredo se responde com o desejo; ao medo da
vida com a força da mudança; à tragédia com o crescimento; à pequena morte com a completude, bem maior...
Porque tudo permanecerá exactamente ali, muito tempo depois, mesmo...
Este minimalismo expressivo, parco em cores e forte em raciocínio, trata assim do lugar interior
centralgaleria.com
[email protected]
+55 11 2645 4480
mourato coelho, 751
pinheiros 05417 011 / são paulo
pg 7/12
plural, transformando uma longínqua aventura numa privada e maravilhosa odisseia. Dá-nos na
tela em branco dessa comum pluralidade a exigência e a oportunidade de reconhecimento e
conquista de um lugar próprio, nosso, exclusivo.
Numa das cenas do filme Stalker, de Tarkovsky, os três personagens partem enfim para a Zona,
rodando sobre carris, a câmara captando os seus rostos, a paisagem difusa em pano de fundo
alternando, sempre a preto e branco, com o cenário deserto dos arredores decadentes da
cidade. Partem em busca de sentido, de si próprios, do seu lugar interior. A artista refere esta
cena como uma das chaves possíveis para o seu trabalho.
Longe de uma postura de mera contemplação, o que aqui se espera de nós, se exige mesmo;
é uma acção de descoberta, vivência e preenchimento deste lugar interior que é de todos,
feito aqui seu por cada um. Ponto de partida para a desconstrução activa do mistério que lhe
assiste - qual é a sua natureza? o que se segue mais à frente? -, Gisele Camargo dá-nos a viver
neste exercicio de liberdade o acto criativo em teoria apenas reservado ao artista.
É-nos aqui dada a paleta básica de espaço/cor/forma da qual se nos exige, em livre mas produtiva participação, que construamos um caminho que apenas nós percorreremos. Conquista
doce e trabalhosa, progressiva aventura de avançar num querer sentir, ser e criar...
Chamar a esta experiência de reticência aberta talvez nomeie um carácter principal que lhe
assiste. Ela configura, na beleza complexa que habita na sua rica linearidade - paisagens, lugar,
momentos, côr, desejo e memória – os pontos de partida de um olhar o futuro; devolvido que é
esse olhar num pouco colorido registo de forte e convidativo encorajamento.
Esta categoria múltipla, transversal e colectiva, desdobra-se tanto mais quanto mais se projecta nesse futuro. Um segredo a que vamos chegando ao avançar - alvo do nosso desejo feito
movimento - pelo caminhar dentro e alargar da nossa única perspectiva.
A linearidade formal da obra esconde e contém a explosiva multiplicidade de acontecimentos
e simbologias que ali moram, exactamente como os mais belos e obscuros horizontes espalhados pela natureza.
Humana ou não.
Seremos assim aqui todos criadores, respondendo - inventando - à chamada em aberto, vinda
do nosso mais ambicioso e receptivo futuro.
Texto escrito por Jorge Emannuel Espinho.
centralgaleria.com
central
[email protected]
+55 11 2645 4480
mourato coelho, 751
pinheiros 05417 011 / são paulo
pg 8/12
textos
Dia e noite a um só tempo
Na obra de Gisele Camargo, em exposição na Galeria Luciana Caravello, no Rio de Janeiro,
pintura e cinema rompem a hierarquia dos meios e debruçam sobre si mesmos, em mútua
reflexividade.
Noite americana é o nome do efeito outrora utilizado no cinema para transformar imagens
filmadas durante o dia em cenas noturnas. A Noite Americana (1973) intitula o filme de François
Truffaut sobre a realização da obra cinematográfica A Chegada de Pamela. Um metafilme em
que se alternam a câmera estática em Pamela e os movimentos panorâmicos de seu set de
filmagem em A Noite. Atravessando-os, uma cena em preto e branco que se repete ao longo
dos filmes nos sonhos de seu diretor (Ferrand/Truffaut): um menino caminha no meio da noite
com uma bengala.
Noite Americana ou Luas Invisíveis intitula a exposição de Gisele Camargo, a partir de 14 de outubro na Galeria Luciana Caravello, no Rio de Janeiro. Uma série de pinturas em que não apenas o efeito e o filme de Truffaut são referências, como também a série L’Empire des Lumières
(1953-1954), de René Magritte. Nas telas de Magritte, dia e noite convivem a um só tempo no
quadro. Um encontro paradoxal, do qual emergem estranheza e melancolia. Um plano d’água,
uma lagoa à margem de uma casa iluminada, opera ainda como um espelho, como a face
invertida da cena insólita.
Não fosse a lua também uma espécie de duplo especular: privada de luz própria, ela apenas
reflete o sol – sua luz noturna é paradoxalmente diurna. Talvez por isso ela encerre a mística
das passagens, dos subterrâneos e dos mortos, dos auspícios e das loucuras. Lilith e Perséfone, entre outros, partilham de seu mistério. No interior da noite, os limites se esvaem, erramos
sob um horizonte infinito e invisível. A lua, com suas cintilações prateadas, é tanto a promessa
do resgate da cegueira da noite quanto o risco do extravio pelos delírios oníricos e descomedimentos por ela despertados.
Colapso entre imagens
Já há algum tempo, para Gisele Camargo, a tela é o encontro insólito entre pintura e cinema,
entre o plano (fixo) de uma e as imagens-movimento do outro, entre espaços e tempos, entre
corpo e imagem, entre distância e proximidade, entre materialidade e virtualidade. Opera-se
por “metalinguagem”, como escreveu certa vez Guilherme Bueno. É a metalinguagem desse
encontro em que se “trama e se situa a visualidade”. Se pintura e cinema debruçam sobre si
mesmos, interrogando funcionamento e sentidos, o fazem também sob mútua reflexividade,
sob mútuo rebatimento especular: um filme dentro de um quadro, um quadro dentro de um filme, como espelhos internos à obra que rompem a hierarquia dos meios, a especificidade dos
processos de cada um, e as articulações ordinárias entre superfície material e reflexiva, entre
percepção e apresentação. A luz de um reflete a do outro, e ambos são essa janela pictórica/
cinematográfica em que paisagens do mundo são descerradas. Um corte na pele da noite
para que pequenos vislumbres cintilem. Frações da cidade e de seus ocasos, um skyline aqui,
uma nuvem acolá, um céu que talvez seja chão, uma lua que pode ser um sol. Como saber?
Por isso a artista correlaciona os procedimentos artesanais da pintura aos de montagem e
edição próprias do cinema e das tecnologias eletrônicas, em que o colapso – entre imagens e
sentidos, olhar e narrativa, o instante paralisado e o contínuo espaciotemporal – é gerador de
choques e estranhamentos, mas também de imprevisíveis articulações.
centralgaleria.com
[email protected]
+55 11 2645 4480
mourato coelho, 751
pinheiros 05417 011 / são paulo
pg 9/12
Agrupadas em conjuntos que se constituem tanto como obras individuais quanto uma instalação pictórica, suas pinturas se formam a partir da fragmentação e dessas conexões inusitadas.
Pedaços de paisagens que se oferecem à sua percepção e imaginação, resíduos da memória,
frames desenhados em seus cadernos ou capturados pela fotografia. Perspectivas fracionadas, planos que insinuam e negam a terceira dimensão; uma paleta econômica, na qual a prata
– que no sistema de correspondências entre astros e metais é vinculada à lua – está presente;
cores que alteram seu sentido de acordo com sua inserção no conjunto. Nada se dá por inteiro
ou sem certa ambivalência, cada fragmento apenas alude, mas não mostra nada além da extensão e do tempo que o ultrapassam. Por isso cada fragmento arremessa o desejo para além
daquilo que é dado ver: à junção de fragmentos corresponde o cotejamento desses extracampos invisíveis e imaginários, como noites intocadas.
Se cada obra é composta de fragmentos, também se constitui como um fragmento que a
artista insere em uma ordem heterogênea ao mostrá-las: cada espaço expositivo demanda
uma montagem específica determinada por paredes, quinas, tetos. Será o espectador em
deslocamento que restituirá (ou não) a continuidade espaciotemporal, é ele a câmera móvel
que percorre o set-galeria. Ele próprio é essa inatualidade que talvez coincida com aquela do
mundo que (o) habita. Pois o que está em questão, afinal, é a potência da arte em fazer cintilar
mundos na noite, suas aparições e desaparições. Mas, se luas (em que sóis se refletem) vêm
rasgar a pele invisível da noite pela força da arte, não há arte sem a dubiedade da lua, a cegueira da noite e a dolorosa ferida em sua pele.
Texto escrito por Marisa Flórido Cesar, para revista Select, 2014.
centralgaleria.com
central
[email protected]
+55 11 2645 4480
mourato coelho, 751
pinheiros 05417 011 / são paulo
pg 10/12
textos
Although she has exhibited photographs and videos in the past, Gisele Camargo (b. 1970, Rio
de Janeiro) has devoted her artistic practice to the possibilities of painting. A er grad- uating from
the School of Fine Arts at the Federal University of Rio de Janeiro, she worked as an assistant for
the accomplished painter Elizabeth Jobim until she established her own career through numerous group and solo exhibitions in Rio and São Paulo.
Her most signifcant works to date have been grouped into series of paintings that function as
much as installations as individual canvases. e exquisitely cropped urban landscapes that she
paints are framed so tightly that they verge on abstraction. But the shapes that Camargo gravitates toward in the landscapes—and throughout her work—are recognizable Rio environments,
the natural world viewed through the prism of modernist overhangs or the geometric obstructions of anonymous architecture.
The Cruzamentos exhibition marks the rst time Camargo has shown her work outside of Brazil
and the debut of two paintings from her ambitious new Capsula (Capsule) series. Intended to
begin with Capsula A and end with Capsula Z, the series could be seen as establishing a language—an alphabet—of ways to portray and perceive landscapes. But if the entire series is an
alphabet, each individual work is more like a rebus—although one that exists beyond language
and remains perpetually unsolvable. Each Capsula is a large work consisting of numerous
smaller rectangles of painted boards of varying sizes and depths, making each work almost its
own series within the larger series. e backdrop of a Mondrianesque sliding tile puzzle gives Camargo an erratic grid-based structure to play with and against, and the problem-solving aspect
of the works’ creation also produces a sense of play for viewers willing to join in the perceptual
paradoxes and quests to make meaning.
Capsula A boldly sets the tone for the project with simple geometries that complexly combine
together to alluring and disorienting effect. Precise landscapes aren’t repre- sented, as this
Capsula is more interested in perspectives and perspectives on landscapes. Opposing angles
collide to create impossible, simultaneous perspectives that recall cubism. Capsula B expands
on the curtain-raising ideas in A by adding more concrete geometries, solid planes, and color
elds, along with other irreconcilable elements. Whereas A had an all-over visual eld, B displays
an almost narrative trajectory—one that leads the viewers’ eyes in a pattern that suggests the
letter B. A push-pull of perspectives, pictorial planes, and viewer reactions begins in the upper
le corner with a sturdy gray building that recalls a windowless fortress designed by Marcel
Breuer. Through a dexterous use of a variety of devices—receded frames, blank frames, edges
painted to create a subtle halo around the frame—Camargo’s compositions induce viewers’
eyes to glide across B, rather than to plunge into a vertiginous vortex of perspectives as in A.
But some enigmatic elements give pause to the glide and invite further scrutiny—of both themselves and the work as a whole. A delicately dangling line descends across an expanse of green (now a more solid, natural, deeper green than the dayglo of A) as a whatsit—a tail? a twig? just
a line? Whatever it is, it provides a di erent, more meandering and sensual line than the rigidity
in many of the other panels. It’s mirrored by two faint circular shapes in the lower le panel. ese
forms exist between presence and erasure, containing elements of both, and are palimpsests
that give evidence of Camargo’s process in creating the finished works.
If Capsulas A and B work precisely yet dynamically within carefully controlled parameters,
Capsula C explodes those parameters while maintaining the same concerns and rigors.
Its dimensions approach those of a CinemaScope movie screen, allowing the density and
abeyances that are only possible in an epic form. Motifs from the previous Capsules play out
centralgaleria.com
[email protected]
+55 11 2645 4480
mourato coelho, 751
pinheiros 05417 011 / são paulo
pg 11/12
in the sprawling vista and new elements emerge. A color bar pops out across the upper left. An
intense red dominates the opposite corner in a way that the green did in previous canvases.
The twig is now a branch (or a river). ere are windows within windows. Expanses. Deceptive
perspectives, both real and fabricated. Capsula C articu- lately highlights the series’ balance
between isolation and harmony.
Camargo’s greater project breaks ways of looking at landscapes and painting down unto discrete, modest components that ower into a symphonic consonance in their accu- mulation. e use
of the word symphonic is not accidental; the burgeoning Capsula series makes viewers aware
of composition, construction, dynamics, and scale to a heightened degree. e rigorous yet intuitive ambition of the Capsulas, combined with the sense of play, make the project a welcome
extension of how painting can portray the world, ourselves, and how one perceives the other.
by Chris Shults
centralgaleria.com
central
[email protected]
+55 11 2645 4480
mourato coelho, 751
pinheiros 05417 011 / são paulo
pg 12/12
textos
Given that Gisele Camargo’s career began in the context of 1990s Rio de Janeiro, her urban
typology—for example, deadpan painterly fragments of window views or rear facades—is both
characteristic of the renewed attention devoted to the city by artists of her generation, such
as Ronald Duarte, Alexandre Vogler, and Romano, and strikingly at odds with the widespread
presumption that the medium of painting cannot address the urgent contradictions of life in
Rio. But while the practice of urban intervention eventually crystallized into yet another artistic
orthodoxy, the distance that Camargo’s paintings maintain from a direct engagement with the
hustle-bustle of the streets has actually helped hone her work’s persistent critical edge.
Camargo has cultivated a form a artistic autonomy, but not in the modernist sense of the world.
The geometry of her architectural structures is blatantly indifferent to metaphysilcal reaffirmations of either the grid or the picture plane. Instead, the bulky polyhedrons and incongruent
vanishing points in her paintings can be likened to the unsettling geometric landscapes that Robert Smithson so much admired in Lorenz Stoer’s Mannerist woodcuts, in that they frustrate the
viewer’s search for a unifying perspective or privileged vantage point. In her recent exhibition
“Falsa Espera” (False Wait), Camargo hung her paintings in a single, uninterrupted line at eye
level, like a horizon line dysfunctionally operating as a film strip. Instead of grounding one’s spatial orientation, the line-which was 125 feet long and sisteen inches wide, except for a few parts
where it widened-created a temporal sequence, contracting the various geometric objects into
a hasty succession of shapes and textures. As the line finally reached the back wall and turned
to face us from a distance, the paintings themselves seemed broaden and offer a calmer view
before disappearing behing the protruding right wall.
Traversing this lineup, the eye could not rest for long i a ny single panel. In part this was because
the painted forms bear no structural relation to the shape or limits of the panels; their framing
seems somewhat arbitrary. It’s not that the panels are awkwardly composed, but that they actively aim to dispel any sense of spatial self-sufficiency so as to invite us to notice similar surfaces and textures across the sequence. Everything seems slightly out of place, but this
perception sparks a rhythmic relay in which the objects become so many variations of the
same, uncannily familiar setting. Camargo’s austere palette is crucial in this respect. A similar
silver surface or a white impasto may play one role in a given panel and a very different one
elsewhere (standing for water in one scene and sky in another, for example), but repetition nevertheless pulls those different moments together.
These is a fundamental link between Camargo’s cinematic articulation of fragmentary scenes and her commitment to landscape painting. The latter is a charged subject in Rio, whose
emblematic vistas have been ideologically mobilized ever since the 1920s in representations
of the city as a whole. In this sense, the artist’s fleeting painterly stills of anonymous terraces,
rooftops, chimneys, and rain gutters-images not of famous sights but of the rather melancholic
views one gets from the back windows of high-rise apartment blocks-position her work critically
against the backdrop of the city’s aggressive process of self-branding over the last decade or
so, as it has pushed to compete for tourism and mega-events. There may be no ideal viewpoint
for Camargo’s geometries, but this ambiguity is what tells us that there is still something unexpected to be seen, even in painting.
by Sérgio Martins, ArtForum, 2012.

Documentos relacionados