Chiado Editora, 2014.

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Chiado Editora, 2014.
COLECÇÃO
compendium
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Um livro vai para além de um objeto. É um encontro entre duas pessoas
através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a
Chiado Editora procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedicação
de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe tudo
quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio
para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida.
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© 2014, Fellipe de Andrade Abreu e Lima, Pedro Luís Alves Veloso
e Chiado Editora
E-mail: [email protected]
Título: Nós da Arquitetura
Editor: Rita Costa
Composição gráfica: Ricardo Heleno – Departamento Gráfico
Capa: Ana Curro
Imagem de capa: Pedro Veloso
Revisão: Fellipe de Andrade Abreu e Lima
e Pedro Luís Alves Veloso
Impressão e acabamento: Chiado Print
1.ª edição: Agosto, 2014
ISBN: 978-989-51-1730-7
Depósito Legal n.º 376832/14
Fellipe de Andrade Abreu e Lima
Pedro Luís Alves Veloso
da
Nós
Arquitetura
Chiado Editora
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A todos os alunos com os quais tive a satisfação de
compartilhar as aulas.
Ao Professor e Arquiteto José Tadeu de Azevedo Maia.
Ao Professor e Arquiteto Sylvio Barros Sawaya.
Para Lara Yasmim e Rafaella Sofia, minhas filhas,
que sempre me encontrarão nos meus textos.
Fellipe de Andrade Abreu e Lima
Aos meus avós: Leandro, Vera e Conceição.
Pedro Luís Alves Veloso
Prefácio: Quatro temas sobre o pecado do
conhecimento
De um instante de prazer, de uma explosão, princípio de
tudo, ele, o ser, percorre um espaço e mergulha no paraíso.
Ao crescer, estabelece a primeira relação com o meio em que
vive, o seu paraíso, e busca conhecer. Conhecimento que
nele constrói o diálogo. Não um monólogo com o seu existir
e, sim, um diálogo com o ao redor. Tendo consciência de
sua dimensão, ele sai do seu paraíso. O sentido dessa perda
o persegue por toda a existência. O diálogo com outro meio
acende nele a vontade de conhecer outra vez o conhecer
que o expulsou daquele paraíso em que antes vivia. E novo
diálogo tem início entre aquele ser e o seu novo redor. O
pecado do conhecimento se instala. Penso, logo existo será
sua derrota. Melhor seria não penso, e existo em meu paraíso
perdido, pelo menos na memória dele. E se constrói nele o
sentido da relação. O diálogo com esse novo paraíso, onde
ele tem de pensar, vai dar vida à sua nova existência. Ele de
princípio se deixa envolver com o que mais lhe parece com
aquele interior cheio de prazer.
A inconstância e a vontade de conhecer o afastarão daquele
espaço natural e, diferentemente de tantos outros seres que
o cercam, ele quer construir um novo espaço, no qual possa
reproduzir aquele perdido. Medir. Ele vai materializar o ato
no instante em que não é somente um espaço, um vazio a
ser edificado, mas muitos outros para seus semelhantes. A
primeira maneira de medir é construída com seu próprio
corpo. Será seu andar, sua mão, o polegar e seus braços,
abertos em cruz. A medida está nele, como aquela primeira,
7
Nós da Arquitetura
na qual a consciência de ser desperta na dimensão do lugar.
Ele construirá espaços e, cada vez mais, este se distancia da
natureza que o envolve. Cria, nesse instante, outro diálogo
entre a razão e a emoção. Uma razão que busca codificar a
natureza envolvente em matemática. Matemática, princípio
da razão criada e não da emoção sentida. E ela rege tudo.
O voo dos pássaros que, por natural, se busca incluir no
processo do conhecimento. Medir, medir e medir, tudo é
medida. A razão é medida e vista, não à luz da emoção, e
sim do número.
A construção daquele espaço se faz com medidas e a
escala se materializa no diálogo da representação com a
realidade. De princípio, a medida é encontrada nele mesmo,
o ser. Depois ela será referenciada até mesmo em uma
relação contida no próprio estojo edificado com paredes,
aberturas, colunas e traves. Mas no ser estão presentes, em
seu mais recôndito lugar, as duas formas o ele e o outro.
Ele, na medida das coisas, e o outro, na medida da coisa
edificada com ela mesma.
O primeiro texto, de autor que tem se dedicado à medida
da razão, discorre sobre o antropomorfismo contido do Renascimento, que, de maneira contraditória, se diz inspirar
não no experiencial de um Da Vinci e, sim, no platônico da
medida de um templo Grego. Um diálogo que esse momento
histórico despertou e colocou em evidência. O texto, por sua
natureza, se explica ele mesmo e não por meu intermédio. O
autor comete, assim, o pecado do conhecimento. Mas vale
a pena!
No segundo texto, o ser, consciente de sua situação
enquanto construtor de estojos de espaços, dialoga com os
demais sobre os caminhos dos conceitos dessa construção no
seu hoje. Sobre o imaginário reflete diante do individualismo
do ato criador. Ele, mais uma vez, comete o desejo de saber
até onde ele se encontra em meio à sua atividade e à sua
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Nós da Arquitetura
condição, então definida como de criador daqueles estojos e,
como tal, diferenciado. Na oportunidade, joga com História
e com os referenciais da criação, em tempo de construção da
cronologia do ato criador, tendo a consciência de que ele é
indivíduo e não um ser medido pela coletividade da criação,
isto naquele ato da edificação do espaço de viver, de seus
princípios da razão e emoção e da não natureza, que busca
restabelecer a relação com o meio em que viveu e deseja
reviver. A liberdade do criar é o centro nervoso daquele
ato de conceber o não criado e no qual o criador deseja se
aproximar daquele momento primeiro, daquele prazer e
se descobrir no ato do conhecimento de tudo. Um ato de
criação, e ele tem presente, não para ele ou seu prazer, mas
para um coletivo perseguido e ignorado tanto. O individual
e o coletivo, em um diálogo que não tem aproximação, mas,
sim, linhas em paralelo, em um encontro no infinito. Um
infinito não construível na esfera do existir. Um individual
no criar, descoberto no Renascimento e parte integrante
daquele ser, que a necessidade de explicação do existir faz
coletivo.
No terceiro escrito, o autor procura dialogar com outro
pensador. Ele e Vilém Flusser. Entre o seu modo de ver e
o de alguém que vive em seus pensamentos. Uma série de
considerações sobre a construção coletiva do conhecimento
científico. Uma análise, nas próprias palavras desse autor,
das nuances e contradições do pensamento do filósofo a
partir de uma revisão temática, organizando a sua multifacetada teoria dos jogos em uma simples sequência de
tópicos. E acrescenta, entretanto, esse esforço de revisão
e reorganização não tem por finalidade a reconstituição
cronológica do jogo no pensamento flusseriano, mas a
compreensão das possibilidades de ação no mundo contemporâneo, em meio às suas radicais transformações técnicas.
Isto é, interessa-nos estabelecer, nessa leitura, um debate
9
Nós da Arquitetura
sobre o papel do jogo como uma forma ampliada de diálogo
que parece ser cada vez mais possível e necessária nos dias
de hoje – e daí a justificativa do presente histórico como
tempo verbal adotado.
Embora não tratando da arquitetura e do ato criador,
o tema se torna instigante, uma vez que busca no jogo a
explicação da existência e isto tem, indiretamente, relação
com o todo do livro.
Um quarto texto vai além do refletir do ser com ele
mesmo. Ele se utiliza da cibernética, entendida por meio do
estudo da retroalimentação, da comunicação e do controle
na teoria da comunicação, que seria a base capaz de lidar
com os fenômenos, entre outros, biológicos, psicológicos e
sociais. Ele, o ser, talvez procure a explicação com o uso
das ciências por ele criadas, além da simples observação de
sua natureza. E talvez daí possa ele criar uma explicação
do existir com os meios das novas ciências que, no final,
se encontram, na verdade, no âmago dele mesmo. É a
cibernética e a arte cibernética o interesse do autor do texto.
Seria uma leitura transversal dos fenômenos a partir de suas
interações e de seus comportamentos, caracterizando-os de
modo abstrato como sistemas.
Uma visão cibernética do ato criador que, ao se aproximar da arquitetura, pretende estabelecer um espaço para
ininterruptas atividades de lazer e aprendizagem, fomentando a cooperação dos usuários em prol do engajamento
em uma subjetividade livre e criativa. O autor então trata
do que, em determinado tempo, foi o implantar um sistema
cibernético capaz de assimilar os interesses dos usuários e
os padrões de uso na configuração dos espaços. Um diálogo
que ele mesmo, o autor, declara: infelizmente, esse diálogo
se restringiu aos diagramas de Pask, uma vez que (o objeto
desejado) o Fun Palace nunca foi construído.
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Nós da Arquitetura
Quatro textos e uma soma de ideias, todas elas carregadas do pecado do conhecimento e explicando, fundamentalmente, aquele ser inicial e suas dúvidas existenciais, se
redescobrindo a todo instante.
Março de 2014.
José Luiz Mota Menezes
11
Prefácio dos autores
Nós da Arquitetura, assim denominamos nossa contribuição às questões que permeiam essa disciplina, que trata
da produção e interpretação do espaço. Em muitos níveis, o
termo ‘nós’ se mostrou apropriado para conceber o livro que
você tem agora em mãos.
Nós somos arquitetos, professores e pesquisadores, mas
nossos temas de interesse parecem, à primeira vista, muito
distintos. Grosso modo, cada um investe e estuda campos
específicos do conhecimento, mas entrelaçados entre si. Os
interesses compreendem os tratados renascentistas e barrocos, a investigação da linguagem clássica e a formulação de
uma crítica social à prática profissional. Em outro extremo,
também abarca a teorização e produção da arquitetura contemporânea, a questão do gesto humano, a interação, e o uso
de processos computacionais na prática de projeto.
Mas o que ganhamos com essa aparente amplitude, frente
a um mundo dominado pela especialização?
Convém lembrar que o conhecimento não se desenvolve
apenas pela transmissão e aperfeiçoamento de ideias restritas e bem definidas – embora essa também seja uma
condição sine qua non. Sem o fator da diversidade ou sem o
que poderíamos definir em um sentido amplo como diálogo,
não haveria saltos criativos ou mudanças de paradigma, e
acabaríamos consumidos pela entropia ou pelo dogmatismo.
Se, nesse primeiro olhar, o livro pode soar como uma compilação de retalhos de pensamentos sobre arquitetura, uma
exploração mais atenta logo revela os fios que costuram os
territórios de reflexão por nós propostos.
13
Nós da Arquitetura
Não apresentaremos aqui os diversos temas que unem dois
pesquisadores tão distintos em uma abordagem comum, pois
pressupomos que a busca que fazemos já fala por si. Apenas
para fomentar o diálogo com nossos leitores, podemos
formular algumas perguntas iniciais que pautam nossos
esforços daqui para frente. Qual o papel da individualidade
na cultura? Quais as implicações do indivíduo-autor como
figura central na produção artística e arquitetônica? Em meio
a esses processos de produção, qual o papel do corpo e da
técnica?
Entre textos que se ancoram no humanismo de Alberti
e outros que abordam a possibilidade de simbiose criativa
com as novas tecnologias ou mesmo na criação baseada na
cognição distribuída, a resposta não poderia ser unívoca. Ao
problematizar a figura do indivíduo criador, amarramos um
‘nó’ que nos obrigou a extrapolar temas cotidianos e nos
estimulou a desenvolver diversas frentes, lidando com disciplinas e campos de conhecimento usualmente separados da
arquitetura, como a sociologia ou a cibernética. Nesse sentido, frente aos diversos ‘nós’ que propusemos, poderíamos
compreender esse livro como uma tessitura – cada capítulo
estabelece conexões em torno de temas comuns, estabelecendo um espaço para a reflexão crítica.
E, para finalizar essa breve apresentação, um último aviso: apesar de haver uma insinuação cronológica entre os capítulos, eles podem ser lidos em qualquer ordem. Com essa
configuração esperamos nos afastar brevemente da estrutura
linear da escrita, além de unir leitores de diferentes áreas em
torno dos ‘nós’ que apresentamos.
Aproveitemos esse diálogo.
Fellipe de Andrade Abreu e Lima
e Pedro Luís Alves Veloso
14
SUMÁRIO
Prefácio: Quatro temas sobre o pecado do conhecimento....7
Prefácio dos autores............................................................13
A Ideia de Antropometria na Tratadística do Renascimento
Italiano...............................................................................17
1. A Tratadística do Renascimento Italiano.....................17
2. A Ideia de antropometria............................................32
3. Individualismo e genialidade.....................................40
4. Conclusões.................................................................52
Bibliografia..................................................................55
Os conceitos de imaginário e individualismo na teoria social
da arquitetura.....................................................................67
1. Introdução: Imaginário arquitetônico........................67
2. Uma Compreensão Individualista..............................72
3. Individualismo na arquitetura...................................87
4. Imaginário da arquitetura..........................................92
5. Conclusões: O Individualismo como Genialidade na
Arquitetura.........................................................................98
Bibliografia.................................................................101
Vilém Flusser e a aposta no jogo......................................113
1. O jogo como modo de vida......................................116
2. A língua como jogo...................................................119
3. O jogo como conceito.............................................122
4. O jogo brasileiro......................................................126
5. O jogo pós-histórico.................................................128
6. Jogando com a pós-história.....................................134
7. O xadrez como modelo de jogo complexo...............137
8. Notas sobre a teoria dos jogos..................................141
Referências bibliográficas...........................................144
AArte da Conversação......................................................147
1. Breve origem da cibernética....................................148
2. Gordon Pask e a construção de uma arte-cibernética..151
3. Cybernetic Serendipity.............................................157
4. Estética informacional e arte permutacional...........159
5. Colloquy of mobiles e o desenvolvimento da Teoria da
conversação...................................................................164
6. Um diagrama para a conversação...........................171
7. Uma comparação e alguns desdobramentos............174
Referências bibliográficas...........................................178
A Ideia de Antropometria na Tratadística do
Renascimento Italiano
Fellipe de Andrade Abreu E Lima
1. A tratadística do Renascimento italiano
O desenvolvimento científico e artístico do Renascimento
marcou toda a Idade Moderna que a sucedeu. Dentre as mais
importantes contribuições da teoria da arquitetura estão o
uso da perspectiva1 como modelo de desenho espacial e a
teorização do estudo da cidade por Alberti, dando início à
cultura de se escrever tratados de arquitetura e urbanismo2.
Leon Battista Alberti (1404-1472), considerado o primeiro
tratadista do Renascimento italiano, publicou seu tratado
de arquitetura, o “De Re Aedificatoria”, em 1452, fundando
um método de abordagem sistemática e abstrata em que
arquitetura e a cidade estavam contidas dentro de um
processo de pensamento único e inseparável.
Neste volume escrito por Alberti, a “metodologia de
projeto”3, que abrange o estudo da cidade, faz dele, o primeiro
1
Segundo consagrados autores, o modelo linear de perspectiva foi “redescoberto” por Filippo Brunelleschi, em meados de 1413. KEMP, Martin. The
Science of Art.New Haven ed Londres: Yale University Press, 1990. cap. 1,
p.9-11.
2
O termo “Urbanismo” surge de 1890 em diante entre os especialistas.
Town Plannin” em inglês, Urbanizacíon em espanhol e Urbanisme em francês. A palavra francesa atinge maior aceitação.
3
Apesar de este termo ser contemporâneo, Alberti inaugurou os conceitos de lineamenti – (lineamenta – em Latim), numerus,finitio,collocatio e
concinnitas, reforçando a ideia do estabelecimento de um método próprio
de pensar a arquitetura, ou seja, o primeiro momento em que se aborda
a cidade de modo abstrato. Usaremos neste estudo o termo em italiano:
Lineamenti.
17
Nós da Arquitetura
teórico da arquitetura a ressaltar a importância da relação
entre a obra construída e o espaço que a encerra. Alberti não
via distinção entre arquitetura, engenharia ou urbanismo.
Todas estas ciências estavam contidas dentro de uma única: a arquitetura. Ao longo dos dez livros que compõem
seu tratado, Alberti menciona ideias sobre uma cidade
ideal, principalmente no Livro 4, em que estão contidas
as maneiras pelas quais devem ser projetadas as cidades:
iniciando com a escolha das regiões propícias, a descrição
das mais adequadas maneiras de construí-las, a forma das
suas muralhas, a escolha dos materiais e a disposição dos
edifícios, pontes e praças. Contudo, as descrições métricas
não foram alvo das atenções de Alberti, salvo em alguns
casos nos quais menciona medidas aproximadas a serem
respeitadas. Baseando-se em duas premissas, primeiro que
a sociedade é produto das condições naturais e segundo que
forma urbana é produto da sociedade, ele conclui que as
condições geográficas influenciam na morfologia da cidade.
Um dos objetos de estudo do tratado de Alberti é um
grupo de conceitos intitulado “lineamenti”. Os lineamenti
e a tríade numerus, finitio e collocatio são as partes que
compõem o objeto arquitetônico e os “princípios de projeto”, respectivamente, que devem reger o pensamento de
um arquiteto quando na elaboração de um projeto. O que
ele chamou de lineamenti está descrito no Livro 1 como as
partes componentes da arquitetura material: regio (local),
area (terreno), compartitio (divisão), parties (partes), tectum
(coberturas) e apertio (aberturas). Estes seis conceitos são
complementares dentro da visão abstrata de Alberti, na
medida em que qualquer projeto pode ser construído a partir
da derivação de seus arranjos.
18
Nós da Arquitetura
Apesar de classificar as ruas e ter sido influenciado pelo
livro de Vitrúvio, Alberti não concorda, enfaticamente,
com os cardus e decumanus. Segundo ele, havia mais de
duas grandes vias principais que cortam uma cidade. O
ornamento (elementos decorativos como fontes, obeliscos
ou esculturas) e a conveniência (posições estratégicas de
defesa, principais ruas em linhas retas e aproveitamento do
declive do terreno) são considerados importantes para a sua
cidade ideal, até nas grandes vias que ligam cidades, fazemse necessários monumentos que as embelezem. A forma
circular seria a mais perfeita, apesar dele considerar que
devem se adequar às condições do terreno e também à ideia
de Aristóteles para as defesas militares, segundo a qual, é
necessário que as cidades se unam ao sítio, na maioria das
vezes, com formas irregulares. Talvez o grande número de
variáveis estabelecido por Alberti seja a própria resposta à
pergunta do por que não haver ilustrações no seu tratado, fato
que nos faz imaginar que Alberti já previa a impossibilidade
de se criar uma “Cidade Ideal”4.
Junto a Alberti, no rol de autores que consideravam a
arquitetura e cidade como entes a serem pensados juntos,
baseados sempre na ideia de corpo humano, estão Antonio di
4
No primeiro momento, no qual Alberti explicita a ideia de antropometria
no seu tratado ele afirma que: “Antes de tudo, consideramos que o edifício
é um corpo, e, como todos os outros corpos, consiste em desenho e matéria: o primeiro elemento é neste caso obra do engenho – mental –, o outro
é produto da natureza; o primeiro precisa de uma mente racional, para o
outro, coloca-se o problema da procura e da escolha justa.” ALBERTI. L’Architettura. Prólogo. Volume 1. p.14. Tradução Nossa. Texto original: “Nam
aedificium quidem corpus quoddam esse anima dvertimus, quodlineamentis veluti alia corpora constaret et materia, quorum alterum istic ab ingenio
produceretur, alterum a natura susciperetur: huic mentem cogotationemque, huic alteri parationem selectionemque adhibendam; sed ultrorumque
per se neutrum satis ad rem valere intelleximus, ni et periti artificis manus,
quae lineamentis materiam conformaret, acesserit”. ALBERTI.De Re Aedificatori.Prólogo.Volume 1.p.15.
19
Nós da Arquitetura
Pietro Averlino (1400-1465), cognome Filarete, e Francesco
Giorgio di Martini (1439-1501), os quais escreveram e
ilustraram seus tratados seguindo algumas diretrizes
estabelecidas pelo seu antecessor. Estas diretrizes defendiam
a aplicação dos conceitos enunciados de numerus, finitio
e collocatio, como as bases epistemológicas do projeto
arquitetônico, ou seja, os “princípios de projeto”. Filarete
publicou o Tratato di Architettura5 em 1464 e Francesco
Giorgio di Martini escreveu Trattati di Architetura, Igegneria
e Arte Militare6 entre 1470-1490.
Ao contrário de Alberti, Filarete não se apoia na visão
vitruviana de que a cidade deve manifestar a tríade utilitas,
firmitas e venustas. Seu tratado é composto por vinte
e cinco livros; sendo que os quatro últimos não tratam
da arquitetura ou da cidade. Dos vinte e um livros, que
dissertam sobre arquitetura, pode-se dividir em três partes.
Nos Livros 1 e 2 é discutida a teoria da arquitetura em si.
Nos Livros 3 a 11 é discutida a construção da sua cidade
ideal, chamada “Sforzinda”, dedicada ao Duque Sforza de
Milão, financiador de suas obras. Finalmente, do Livro 12
ao 21 são descritos os edifícios que devem fazer parte de sua
cidade ideal, bem como uma justa relação entre a cidade e os
edifícios, manifestada através do uso de um mesmo módulo
para elaboração das colunas, edifícios, praças e demais
espaços urbanos.
O plano das quadras centrais da cidade segue uma malha
ortogonal, porém, as ruas principais que se projetam até
5
FILARETE.Filarete’s Treatise on Architecture. New Haven e Londres: Yale
University Press, 1965. Trattato di Architettura. A Cura di Anna Finoli e Liliana Grassi. Milão: Edizioni il Polifilo, 1972.
6
MARTINI, Francesco di Giorgio. Trattati di Architettura, Ingegneria e Arte
Militare. A Cura di Corrado Maltese, Trascrizione di Livia Maltese. Milão: Edizioni Il Polifilo, 1967.
20
Nós da Arquitetura
a muralha estrelada seguem um formato heliocêntrico,
cortando a cidade no ponto central da circunferência que
tangencia as pontas da muralha. No centro desta cidade
circular e, também, da mais importante praça está o monumento principal. A intenção de usar um mesmo módulo
para as praças, ruas, palácios e outros edifícios que compõem
a cidade de “Sforzinda”, é de acordo com este grupo de
tratadistas, uma das maneiras de se relacionar arquitetura
e cidade. Esta prática defendida por Filarete já tinha sido
anunciada por Alberti como uma das condições para se
atingir a qualidade espacial de uma cidade.
Segundo Filarete, os edifícios mais importantes da cidade
devem estar localizados ao redor das praças e as residências
populares na periferia ou junto à muralha. Formando uma
circunferência interna à muralha e, também, seccionada
pelas ruas principais, estão os 16 templos desta cidade. Suas
plantas e fachadas também devem, segundo Filarete, seguir
o mesmo módulo do plano urbano, para demonstrar uma
maior relação entre cidade e arquitetura.
21
Nós da Arquitetura
Imagens no Tratado de Filarete relacionando o Módulo com o Edifício
e a cidade7. De acordo com Filarete, desde a coluna que compõe um
edifício até o plano urbano de uma cidade deve seguir um mesmo
Módulo, baseado nas relações métricas do corpo humano.
O terceiro tratadista, que seguiu as ideias iniciadas por
Alberti, foi Francesco di Giorgio Martini (1439-1501). Seu
tratado surge quase meio século depois dos seus dois antecessores. Martini é um arquiteto-engenheiro, especializou-se na construção de fortalezas para os duques de Urbino,
Montefeltro e trabalhou na canalização e construção de pontes em várias cidades italianas. A partir do século XVII, o
tratado de Martini foi esquecido, tendo em vista que seus
estudos abordam sobre técnicas construtivas da engenharia
civil e militar, pertencente ao século anterior, tornando-se
obsoletas. Seu tratado impõe à arquitetura o domínio de
muitas ciências, da mesma forma como os de Alberti e Filarete. Ao longo dos sete livros são aprofundados os estudos
da arquitetura em vários aspectos. O Livro 1 trata dos materiais de construção. No Livro 2 as casas, os palácios e o
sistema de abastecimento de água. No Livro 3 são descritas
as formas das cidades e o “urbanismo” como uma ciência
que coordena a relação dos edifícios com o espaço urbano.
No Livro 4 os templos. No Livro 5 as fortalezas. No Livro
6 os portos em rios e em mar. No Livro 7 as máquinas. Ao
7
FILARETE. Volume 1, Cap. Ilustrações.
22
Nós da Arquitetura
contrário de Alberti, Martini faz uso intenso de ilustrações
ao longo destes sete livros. Estreitamente relacionados entre
si, textos e imagens apresentam a cidade como um grande
corpo humano que deve funcionar harmonicamente: o uso
de um módulo baseado nas proporções do corpo humano; as
máquinas usadas para mover água e objetos pesados; soluções de plantas de casas adaptadas à sua contemporaneidade
e até as fortalezas com suas variações morfológicas.
Nos Livros 5 e 6, Martini explica a importância do “disegno” para o bom entendimento da arquitetura. Para ele,
o desenho é a maior ferramenta que os arquitetos possuem
para se expressar: “Sem o desenho, – diz Martini –, o arquiteto não pode exprimir suficientemente seus conceitos.”
Não há, contudo, em seu tratado, uma única cidade ideal
como a “Sforzinda” de Filarete. O importante para Martini é
o estabelecimento e o uso de proporções harmônicas provenientes das relações antropométricas. Esta é a maior relação
possível que, segundo ele, pode haver entre o “Homem” e a
cidade.
23
Nós da Arquitetura
Imagens no Tratado de Giorgio Martini. 1. A cidade como um corpo
humano, onde todas as partes devem estar harmonizadas entre si. 2. O
módulo proveniente das relações métricas do corpo relacionado com
os edifícios e a cidade. 3. As máquinas8.
Durante o século XV, estes três tratadistas do Renascimento
italiano pensaram a arquitetura e a cidade sempre juntas.
Cada um dentre estes três tratadistas contribuiu de forma
pessoal para a teoria da arquitetura. O mais importante é que
cada um deles estabeleceu suas diretrizes para se pensar toda
uma cidade, desde uma colunata até uma praça, seguindo um
mesmo módulo, baseando-se em relações antropométricas.
8
MARTINI, Francesco di Giorgio. Imagem 1: Folio 3, Imagem 2: Folio 42 e
Imagem 3: Folio 60.
24
Nós da Arquitetura
Imagens no Tratado de Giorgio Martini. 1. Algumas plantas descritas
no seu tratado que seguem o mesmo módulo. 2. Um, dentre muitos,
exemplos de fortaleza9.
Ao longo do século XVI, a ideia de corporalidade transformou-se. Dentre os que rompem com a tradição deste conceito citamos Sebastiano Serlio (1475-1554) que publicou o
Tratato di Architettura; Giacomo Barozzi da Vignola (15071573), que publicou o Li Cinque Ordini Di Architettura; e
Andrea Palladio (1508-1580) que publicou seu tratado em
1570, intitulado I Quattro Libri della Architettura. São
os mais conhecidos por terem atingido maior repercussão
como teóricos e como arquitetos. Serlio, Palladio e Vignola,
dentre outros, não pensaram mais na “Cidade Ideal” como
um corpo vivo, mas iniciam um intenso estudo sobre “tipos
arquitetônicos” ou fórmulas estandardizadas, unificando as
ideias antropométricas com os diversos elementos arquitetônicos de um edifício.
9
Idem. Imagem 1: Folio 18 e Imagem 2: Folio 60.
25
Nós da Arquitetura
Durante os séculos XV, XVI e XVII, a atenção dos
teóricos da arquitetura sai da cidade como um ente único e
volta-se para a planta e a volumetria das edificações. Apesar
de seus tratados estarem plenos de imagens, apresentando
plantas, fachadas ou módulos que devem reger os desenhos,
não há relação ou menção ao espaço exterior ou urbano
onde estes edifícios estariam, ou deveriam ser implantados.
Obviamente, estes autores continuaram defendendo a ideia
de que se deve construir em locais adequados, mas não
ultrapassam estas linhas gerais.
Sebastiano Serlio escreveu, ao todo, nove livros sobre a
arquitetura ou construção. Estes livros não foram pensados
como um conjunto que compõe um tratado, pois foram
publicados em tempos e locais diferentes. O título “tratado”
se dá ao conjunto de sua obra, que foi escrita entre 1510
e 1540. Serlio não se limitou a divulgar apenas os seus
projetos, colocando nos seus livros observações e imagens
de alguns projetos de Bramante, Rafael, Peruzzi e até de
obras romanas e medievais consideradas importantes por
ele.
26
Nós da Arquitetura
Imagens retiradas do Tratado de Sebastiano Serlio, onde se observa
que são ressaltados apenas os edifícios isolados, sem nenhuma
menção ou relação com o espaço urbano nem com a ideia de se
pensar toda a cidade como um corpo10
Nos Livros 1 e 2, Serlio trata da perspectiva, da geometria e
do desenho, dando muita ênfase à geometria como ferramenta
de desenho do arquiteto. Este fato demonstra a mudança que
o caminho da teoria da arquitetura estava percorrendo. A
relação com a cidade não estava mais sendo o objetivo dos
tratados, que caminhavam cada vez mais para os métodos de
desenhos variados das regras e postulados da matemática e
da geometria. O Livro 3 é amplamente ilustrado de obras de
arquitetura antigas, compondo-se de mais de 150 páginas de
desenho e dando-lhes uma importância nunca antes tida. Nos
Livros 4, 5 e 6, Serlio trata das cinco ordens arquitetônicas
10
SERLIO, Sebastiano. The Five Books on Architecture. Nova York: Dover
Publications, 1986. SERLIO, Sebastiano. On Architecture: Books I-V and VIVII of Tutte L’Opere d’Architettura et prospective. New Haven: Yale University Press, 1996.
27
Nós da Arquitetura
(Toscana, Dórica, Jônica, Coríntia e Compósita) e da arquitetura civil residencial. O Livro 7 trata das vilas, palácios e
outros edifícios importantes. O Livro 8 não foi publicado
e trata de construções antigas. O último de seus escritos, o
Livro 9, é denominado “Libro Extraordinario” e trata dos
diversos tipos de janelas, portais e arcos. Os nove livros
de Serlio abordam os métodos de desenho, as regras da
perspectiva, os fundamentos matemáticos e geométricos,
que devem ser seguidos para a execução destes desenhos e
também várias plantas de tipos arquitetônicos isolados do
espaço urbano que os encerra. O módulo continua sendo um
importante princípio para construção de colunas, capitéis e
edifícios, mas não há mais menção à relação entre o edifício
e o espaço urbano, como faziam os seus três antecessores.
Um dos últimos tratadistas do Renascimento italiano,
Giacomo Barozzi da Vignola, publicou o Li Cinque Ordini Di
Architettura em 1562, tornando-se um dos mais difundidos
manuais desde então. Sua influência principal está no fato
de ter sido proposto como um léxico sobre medidas para a
construção. Originalmente composto por uma série de 32
pranchas comentadas de maneira sistemática, as imagens já
se sobressaem fortemente ao texto. O conjunto deste tratado
pretende canonizar as cinco ordens clássicas em partes
separadas: o entrecolúnio, os arcos, os pedestais simples,
os pedestais particulares e os embasamentos. Apesar de não
se limitar, unicamente, às ordens arquitetônicas isoladas
do contexto urbano, Vignola estabelece um cânone de
proporções antropométricas de fácil aplicabilidade.
Considerado o último tratadista do Renascimento, Andrea Palladio e seu tratado tiveram tanta repercussão que
fizeram surgir um estilo próprio que atravessou fronteiras:
o palladianismo. Palladio aprendera a profissão de pedreiro
28
Nós da Arquitetura
ainda jovem, fato que o fez dedicar o primeiro dos quatro
livros do seu tratado aos materiais de construção. Ter dedicado todo um livro aos materiais de construção enuncia
quais eram as novas preocupações da teoria da arquitetura. A
difusão de informações sobre estes materiais levou os tratadistas a se preocuparem mais com a sua justa aplicação e até
com as questões estéticas como: cor, textura e durabilidade.
Apesar de se ater a questões menos exploradas nos tratados
do século XV, Palladio absorveu importantes contribuições
de seus antecessores. O tratado de Alberti, por exemplo, já
era encontrado em língua italiana e ilustrado desde a sua
reedição em 1565. Além de Alberti e de Vitrúvio, Palladio
foi influenciado pelos seus contemporâneos Serlio, que publicou seu Livro 3 antes da edição dos I quattro libri della
arquitettura, em 1570, e Vignola. Palladio foi, com o passar
do tempo, tornando-se o mais renomado e requisitado arquiteto da Itália. A simetria e o módulo, importantes na maioria
de seus projetos, estão presentes nos inúmeros desenhos que
compõem seu tratado. A maior parte de sua obra foi incluída
e comentada ao longo do Livro 2. O Livro 3 trata das basílicas, igrejas, edifícios públicos e pontes; e o Livro 4 dos
templos, incluindo projetos gregos e romanos. As imagens
que compõem seus quatro livros são desenhadas de uma
maneira particular. Não há cotas ou diferença nas linhas de
planta, fachada ou corte. A intenção de Palladio de descrever
os módulos dos desenhos demonstra aos seus leitores, a valorização dada às relações proporcionais em uma obra de arquitetura. O módulo e sua respectiva ideia de antropometria
estão presentes em todos os tratados que são objetos deste
estudo, mesmo tendo cada um deles, características que os
tornam particulares.
29
Nós da Arquitetura
Imagens do Tratado de Andrea Palladio, onde apenas o edifício
isolado, com suas plantas, fachadas e cortes, é observado. Não
há diferença entre as espessuras das linhas vistas ou cortadas;
característica única de Palladio.11
11
PALLADIO, Andrea. I Quattro Libri della Architettura. Milão: Ulrico Holephi, 2000. (Edição Fac-Simili 1570.)
30
Nós da Arquitetura
Durante mais de um século (1452-1570), entre a publicação do primeiro e do último tratado do Renascimento italiano, a dinâmica social e econômica transformou o modelo de
pensamento arquitetônico. A especialização das profissões,
o desenvolvimento das engenharias e artes militares, a revalorização da cultura greco-romana, e consequentemente, do
texto vitruviano, fizeram a atenção dos tratadistas se distanciar da cidade e focalizar nos tipos arquitetônicos, nos métodos de desenho e nos materiais de construção, rompendo
uma relação de equilíbrio entre cidade e arquitetura. A sofisticação das ciências e métodos construtivos, surgidos por
motivos militares e pela constante difusão de livros, conduziu à enunciada especialização das profissões.
Alberti, Martini e Filarete escreveram seus respectivos
tratados considerando a arquitetura como ente inseparável
da cidade. Já Serlio, Vignola e Palladio desenvolveram tipos
arquitetônicos ou entablamentos e entrecolúnios, ou seja,
edifícios ou partes de edifícios sem relação com o ambiente
urbano, dando maior ênfase aos materiais e às técnicas
construtivas. Estes seis tratados são os mais significativos
para se entender a ideia de antropometrismo, que surgiu antes
mesmo da publicação do De Re Aedificatria de Alberti, em
1452, e a paralela fragmentação entre arquitetura e cidade
na teoria da arquitetura do Renascimento italiano. Apesar
desta mencionada fragmentação, o ideal antropométrico não
desapareceu, apenas deixou de ser abordado nas questões
urbanas, especificamente no campo da teoria da arquitetura,
sendo enfaticamente aplicado no âmbito projetual da
arquitetura dos edifícios.
31
Nós da Arquitetura
2. A Ideia de antropometria
A ênfase dos autores gregos, a exemplo de Aristóteles,
e romanos, a exemplo de Vitrúvio, ressaltam a importância
do estabelecimento de um módulo (métron), como uma
espécie de responsabilidade social que os artistas têm para
com a sociedade. Esta concepção deve-se ao ideal de que
estas “belas medidas” transformam a percepção estética
do homem e conduzem ao engrandecimento do “espírito”.
Como mencionou Aristóteles, o estabelecimento de um
módulo (métron) tem “o poder de afetar o nosso caráter”12.
Da mesma forma, Vitrúvio reforçou esta ideia dizendo
que a “arquitetura depende da ordem, que em grego se diz
τάξις, simetria, que em grego se diz διάθεσιν, propriedade,
economia e ritmo, que em grego se diz οἰκονομία”13.
É no Renascimento que se percebe pela primeira vez o
florescer desta “teoria artística”, que viveu adormecida na
Idade Média. A pintura dos séculos XIV e XV já demonstra o
renascer deste ideal estético que, ao modo de ver do filósofo
alemão Georg Hegel, é fruto de um processo dialético que
envolve o devir do saber do homem. Como observou Hegel,
as transformações sociais são, ao mesmo tempo, causa e
consequência das mudanças deste juízo estético. O processo
dialético do conhecimento dentro do campo da teoria da
arquitetura produziu unidade e fragmentação a partir da
própria consciência social14.
12
ARISTÓTELES. Política, 1340 a. Madrid: Alianza, 1986. Apud: D’AGOSTINO,
Mário Simão. Geometrias Simbólicas da Arquitetura. São Paulo: Hucitec,
2006, p.23.
13
VITRÚVIO. Texto Original: “Architectura autem constat ex ordinatione,
quae graece τάξις dicitur, et ex dispositione, hanc autem Graeci διάθεσιν vocitant, et eurythmia et symmetria et decore et distributione, quae graece
οἰκονομία dicitur”. Livro 1, Capítulo 2. (Tradução Nossa.)
14
HEGEL, Georg W.F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2000.
32
Nós da Arquitetura
É difícil compreendermos a transformação de um ideal
estético no seio social. Neste sentido, deve-se considerar que
as transformações sociais emergem gradual e lentamente,
fruto de forças sociais complexas, mas atuantes. Assim, para
compreensão da transformação deste ideal estético entre
o fim da Idade Média e início do Renascimento devem-se
levar em consideração as contribuições da sociologia do
conhecimento, a qual procura compreender o pensamento
dentro da moldura concreta de uma situação histórico-social.
Destarte, podemos adotar a visão de Karl Mannheim quando
afirma que:
“Não há a menor dúvida de que só o indivíduo é
capaz de pensar. Não existe esta entidade metafísica
denominada espírito grupal, que pensa acima das
cabeças dos indivíduos, ou cujas ideias estes se limitam a produzir. Mas nem por isso se deve concluir
que todas as ideias e sentimentos que motivam a
conduta de um indivíduo tenham exclusivamente nele
suas origens e possam ser adequadamente explicadas
apenas à luz da sua própria.”15
A base epistemológica para a compreensão deste novo
ideal estético surge com muita ênfase após a edição do tratado
de Alberti, que se inspirando no texto de Vitrúvio e sendo
um indivíduo a pensar isoladamente dentro do seu contexto,
defende que “mente et animo aliquas aedificationes, corpus quaddam veluti alia corpora”16, ou seja: mente e corpo
formam juntos a beleza da edificação, e o corpo é o reflexo
desta perfeição. A primeira passagem do tratado de Vitrúvio,
que se refere à analogia com o corpo humano, está no
15
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Porto Alegre: Globo, 1952. p.2.
16
ALBERTI. L’Architettura. Traduzione di Giovanni Orlandi. Introduzione e
note di Paolo Portoguesi. Milão: Edizioni Il Polifilo. 1989.p.15. Texto original.
(Tradução Nossa.)
33
Nós da Arquitetura
segundo capítulo do primeiro livro, quando escreve que:
“Simetria é a concordância correta entre as partes da obra
e a relação entre partes diferentes com o esquema todo da
obra. Assim, existe um tipo de simetria no corpo humano
entre o braço, o pé, o dedo, a mão e outras partes pequenas.
Isso deve ser a mesma coisa com um edifício perfeito”.17
Nestes mesmos termos antropométricos pode-se entender
a harmonia e a beleza (concinnitas) pretendidas por Alberti:
entre o tecido urbano e os edifícios que compõem sua cidade
ideal. A ars aedificandi não pode ser vista, dentro da sua
teoria, separada da ars urbs18. Do mesmo modo, é importante
relembrar a ideia de que a arquitetura precede o desenho,
ou seja, de que a verdadeira arquitetura está na mente do
arquiteto (perscriptio). Há uma visão quase fenomênica
dentro desta teoria. Pode-se verificar esta idealização nos
painéis de cidades ideais, que incluem o de Urbino.
17
VITRÚVIO. Texto original: “Item symmetria est ex ipsius operis membris
conveniens consensus ex partibusque separatis ad universae figurae speciem ratae partis responsus. Uti in hominis corpore e cubito, pede, palmo,
digito ceterisque particulis symmetros est eurythmiae qualitas, sic est in operum perfectionibus”. Livro 1, Capítulo 2. (Tradução Nossa.)
18
Mesmo que tenha sido de forma superficial, a visão de que a cidade é
muito mais que uma simples construção e aglomeração de pessoas já tinha
sido afirmada por Vitrúvio no século I (Civitas est fabrica et ratiocitanatio) e
no século VII por Isidoro de Sevilha (Civitas est metaria et ratio).
34
Nós da Arquitetura
Imagem da “Città Ideale” no Painel de Urbino. Composição feita
entre 1470 e 1480, segundo os conceitos de Leon Battista Alberti.
Na composição percebe-se o Palazzo Rucellai (segundo edifício à
esquerda) e fachada de Santa Maria Novella (fundo à direita). Galleria
Nazionale delle Marche, Urbino.
Alberti entende que a relação íntima entre as escalas do
ambiente construído, ou a ideia de que cidade e edifício são
um mesmo ente em escalas diferentes, é resumida quando
ele afirma que “Se a cidade, como disseram os filósofos, é
uma grande casa e a casa não é nada mais que uma pequena
cidade, por que não dizer que também as pequenas partes
de uma casa são as mesmas coisas que as pequenas partes
de uma cidade? Deste modo, também o átrio, o jardim ou
a sala de jantar ou a entrada são também partes menores
de uma cidade?”19 A ideia de antropometrismo arquitetônico
e urbanístico permeia o imaginário intelectual de Alberti e
dos tratadistas que o seguem, cada um deles de um modo
específico. A métrica de Palamedes20 agrega valor semiótico
à ideia de antropometrismo, da mesma forma como dá margem à interpretação de uma valoração associada a um determinado tempo e espaço. A inclusão destas duas variáveis
no processo de compreensão do ideal de antropometrismo
arquitetônico e urbanístico ao longo da história nos remete à
concepção estética Hegeliana. Em Vorlesungen über die Ästhetik 21 Hegel demonstra a relação entre matéria e espírito,
ou seja, entre corporalidade e ideal. A estética, para Hegel, é
19
ALBERTI. L’Architettura. Livro 1, Capítulo 9. p. 22. (Tradução Nossa.)
20
Palamedes: Notório criador da métrica e de sua constante relação com
números. Nos alfabetos grego e hebraico, por exemplo, as letras possuem
valores numéricos que expressam sua base de valor e importância. O nome
de Deus em hebraico, por exemplo, possui valor numérico 10 e se escreve
.(‫)הוהי‬
21
HEGEL. G.W.F. Cursos de Estética. v. II. São Paulo:EDUSP, 2000. O texto
“Vorlesungen über die Ästhetik” foi escrito na década de 1920 do século
XVIII. De forma unívoca, o entendimento de körper – pensado essencialmente como corpo humano – toma na filosofia de Hegel o papel fundamental
para explicação da relação entre matéria e espírito.
35
Nós da Arquitetura
a porta de entrada para a perfeita compreensão da realidade
material, para o real significado e entendimento da arte (a
arquitetura está neste campo). Hegel também menciona que
a arte possui duas dimensões: uma corpórea e outra espiritual. A primeira está relacionada com telas, tintas, tijolos e
qualquer outro material que venha a ser usado pelo artista. A
segunda está relacionada com o conteúdo intrínseco: com o
espírito do autor-artista. É exatamente na relação entre estes
dois momentos em que se encontra a αισυησις: a percepção
harmônica. A beleza perfeita é a adequada percepção deste
momento.
Neste momento, a espiritualidade é materializada, transformando o infinito em finito. É fato que esta relação matéria-espírito não é sempre perfeita, de modo que o artista não
percebe sempre o espírito de modo completo, nem consegue materializá-lo perfeitamente em sua obra de arte. Há, ao
longo da história, exemplos de predomínio de uma sobre a
outra e vice-versa. Há momentos, ao longo da história, nos
quais a materialidade predomina sobre a espiritualidade e
outros onde o espírito reina sobre a matéria. Neste percurso,
o ser humano busca a si mesmo através da arte.
No período grego, segundo o próprio Hegel, já se podia
observar o uso da perspectiva22 para demonstrar a capacidade
de compreensão do ser humano de si mesmo, ou seja, o
reconhecimento de si mesmo enquanto ser pensante. Antes
do Renascimento, ao longo da Idade Média, o corpo humano
foi reduzido às deformidades, demonstrando a imperfeição
da apreensão humana de si mesmo. Durante a formação do
Renascimento o ser humano tornou-se referência para si
mesmo, inclusive na arte. Esta relação dialética entre matéria
22
Um dos exemplos mencionados por Hegel é o desenho de Exekias, feito
em meados de 540 a.C..
36
Nós da Arquitetura
e espírito atingiu seu equilíbrio máximo nos séculos XV e
XVI. Para Hegel, a única forma de se atingir o Divino, ou
Deus, é através da arte perfeita, que surgiu no Renascimento.
Hegel defende que: “A antropomorfização da divindade – um
processo que só pode ser plenamente compreendido através
do simples, mas definitivo, fato de que o Deus possui – ao
menos em suas representações estéticas (e elas são de fato
a única e verdadeira fonte de acesso ao Divino) – um corpo
humano (körpe)”.23
Enfim, a arte perfeita, para Hegel, é a arte realista, que
representa da forma mais similar possível a realidade e o
ser humano. Apenas neste contexto podemos atingir a máxima compreensão de nós mesmos e, consequentemente da
divindade que nos encerra. É no Renascimento que podemos
perceber a arte com um momento de transformação do espírito do homem. É onde percebemos que a matéria é encarada
de forma divina, onde surge a verdadeira poesia da arte na
materialidade da vida24.
Além do tempo histórico do Renascimento, podemos
mencionar outros momentos históricos nos quais o ideal antropométrico reinou sobre as concepções arquiteônicas e urbanísticas, mesmo que não de forma generalizada. O século
XVII recebeu as contribuições de Claude Perrault; o século
XVIII as ideias de François Blondel e de Robert Morris; o
século XIX as ideias de modulação de Jean-Nicholas-Louis
Durant e de Étienne-Louis Boullée; e o longo século XX viu
por vários momentos o renascer de estilos neoclassicistas,
23
HEGEL. G.W.F. Ibidem. p.214.
24
Neste momento do estudo, abrimos parêntesis para o fato de que a unidade entre arquitetura e cidade, presente nos tratados do início do Renascimento, é a materialização de uma ideologia social, concretizada muito mais
pela apreensão que a sociedade tem de si mesma do que pela injustificada
criação de uma nova teoria da arquitetura.
37
Nós da Arquitetura
desde o seu início, passando pelos governos centralizadores
da Alemanha, Itália e Rússia até as concepções arquitetônicas e urbanísticas de Le Corbusier.
Nestes contextos de complexidade de apreensão espacial
ao longo do tempo, a teoria da arquitetura diferencia-se da
prática num ponto fundamental: a noção de espaço. Após
as concepções hegeliana, outra difundida veia de apreensão
social foi feita por Immanuel Kant, defendendo que a noção
de espaço é uma ideia, a priori, apreendida em nossa capacidade como sendo passível de medida. A concepção kantiana
de que o espaço matemático é uma apriorística, mesmo que
podendo apenas ser pensada dentro do próprio espaço25, reforça a ideia de Mannheim de que e a concepção de tempo e
espaço é parte do sistema dialético do conhecimento, observando que o saber segue aspirações e variações ao longo do
tempo e do espaço.
O processo de apreensão da realidade pode ser alterado,
tanto por indivíduos quanto por forças sociais mais complexas, levando em conta que “não são os homens em geral que
pensam, nem mesmo os indivíduos isolados, mas os homens
dentro de certos grupos que elaboram um estilo peculiar de
pensamento, graças a uma série interminável de reações a
certas situações típicas, características de sua posição comum”26. A apreensão e a realidade, a sensibilidade e o entendimento, categorias que dominam nossa concepção espacial
e temporal, manifestada através de uma ideia de antropometrismo desde Vitrúvio até os dias atuais, em algumas épocas
com muita força, em outros momentos sem muita convicção.
25
KANT. Crítica da Razão Pura. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural,
1997. p.41-43.
26
Ibidem. MANNHEIM, Karl. p.3.
38
Nós da Arquitetura
A visão estética social baseia-se em princípios matemáticos,
mesmo que estes sejam guiados por ideias apriorísticas.
39
Nós da Arquitetura
3. Individualismo e genialidade
É necessário ressaltarmos que o conceito de “liberdade
de criação” não deve ser confundido com o de gênio, estudado pela corrente da fenomenologia ou pelos psicólogos sociais. Embora conhecendo a opinião de Massimo Canevacci,
segundo a qual “a história do indivíduo ainda não foi escrita”27, constatamos que o tema do individualismo tem explícita autonomia no âmbito das ciências sociais, como podemos
constatar pelo exame da relação bibliográfica apresentada
no final deste trabalho. O vocábulo latino individuum deriva
do grego atomom, ambos denominando aquilo que não pode
ser dividido; este conceito de “originária indivisibilidade e
singularidade” atravessa todo o pensamento ocidental e chega até Leibniz, que, com seu conceito de mônada, “fornece
a especificidade definitiva ao indivíduo da era burguesa”28.
Acerca da inserção do conceito de individualismo na
teorização sociológica, cabe destacar inicialmente que a
noção de individualismo, na teoria social, designa não a
doutrina moral que traz o mesmo nome, mas a propriedade
que alguns sociólogos reconhecem como “característica de
certas sociedades e particularmente das sociedades industriais
modernas: nessas sociedades, o indivíduo é considerado
uma unidade de referência fundamental, tanto para si mesmo como para a sociedade. É o indivíduo que decide sobre
sua profissão, que escolhe seu cônjuge. Sua autonomia é
maior do que nas sociedades tradicionais”29. Na realidade,
o gênero de individualismo a que se pode referir o substrato
ideológico dos praticantes da profissão da arquitetura não é
27
CANEVACCI, Massimo. Dialética do indivíduo. São Paulo: Brasiliense,
1981. p.41.
28
Idem. Dialética do indivíduo. p.8.
29
BOUDON, Philippe et BOURRICAUD, François. Dicionário crítico de sociologia. São Paulo: Ática, 1993. p.285.
40
Nós da Arquitetura
apenas o das sociedades industriais modernas, mas, como
desenvolvo no último item, igualmente aquele tipo de individualismo que caracteriza a emancipação dos artistas no
advento da Renascença.
Em princípio, a análise sociológica repele a perspectiva
individualista. Louis Dumont expõe a principal dificuldade
desta análise: “A apercepção sociológica atua contra a visão
individualista do homem. Consequência imediata: a ideia do
indivíduo constitui-se num problema para a sociologia.”30
Podemos verificar em Émile Durkheim referências ao
fenômeno do individualismo, porém sob o nome de egoísmo;
“por egoísmo, palavra que não se deve (ou antes, que nem
sempre se deve) entender no sentido moral, Durkheim designa a importância da autonomia concedida ao ego, isto é,
ao indivíduo, na ‹escolha› de seus atos e crenças”.31
Segundo a concepção durkheimiana, algumas culturas
impõem aos indivíduos normas, regras e valores transcendentes; nessas sociedades, o egoísmo enfrentará mais obstáculos que aqueles encontrados nas coletividades que outorgam à liberdade de escolha ao indivíduo, subentendida
a submissão deste a normas, regras e valores de conteúdo
mais geral, que não lhe retirem inteiramente a capacidade
de operar algumas escolhas. Todavia, o desenvolvimento do
egoísmo não depende somente de variáveis culturais, mas é,
geralmente, uma função do grau de integração dos grupos
sociais de que o indivíduo faz parte.
Apesar destas concepções acerca do individualismo,
mesmo sob a roupagem de um processo criativo, há o
30
DUMONT, Louis. Homo hierarquicus. O sistema de castas e suas implicações. São Paulo: EDUSP, 1992. p.56..
31
Idem. Dicionário crítico de sociologia. p.285.
41
Nós da Arquitetura
envolvimento de um sentido de dominação, uma inclinação
para a preponderância, o triunfo num conflito de vontades.
A ideia de que exista um egoísmo da criação pode conflitar
com certas concepções ideológicas do fenômeno artístico.
É neste aspecto que recorremos à interpretação de Friedrich
Nietzsche e seu Übermensch (super-homem). Vontade e
poder, vontade de poder: Wille zur Macht. Fora do quadro
da coexistência civil, no plano específico do imaginário do
artista, a vontade de poder de Nietzsche torna-se a ideologia
do criador. Assim, a autossuficiência do artista moderno,
instaurada na época do Renascimento, converte-se, na sua
visão, numa forma própria de heroísmo. Há um nexo entre
os conceitos de “individualismo”, “egoísmo-do-criador” e
“vontade-de-poder”, como pode ser demonstrado.
Comecemos pelo último conceito. Dependendo da ótica
da abordagem, o estudo do fenômeno “poder” pode ter um
cunho sociológico ou metafísico. Falamos aqui de uma
metafísica do poder e de sua incorporação à arquitetura.
Os conteúdos metafísicos não são estranhos à arquitetura
erudita, e esta observação vale para todas as épocas. Mesmo
de modo não-intencional, o arquiteto muitas vezes incorpora
à matéria inanimada certos significados que transcendem
ao mero registro da pauta programática. Por outro lado,
também a sintaxe construtiva se presta, às vezes, ao papel de
comunicar significados que escapam ao âmbito dos requisitos
de racionalidade mecânica. A história da arquitetura erudita
de todas as épocas está repleta de exemplos que ilustram
essa percepção. Pode acontecer que, sem que seja intenção
do construtor, a forma arquitetônica suscite associações de
imagens e de temas abstratos vinculados à filosofia, aos
costumes predominantes, à hierarquia social e, enfim, à
estrutura política vigente.
42
Nós da Arquitetura
De acordo com Herbert Read, quando discorrendo sobre
as diferenças entre a arquitetura erudita e a arquitetura
primitiva, observa que “o ponto em que o intelecto deve
animá-la e inspirá-la – aí temos a introdução de um fator
que já não é materialista e cuja influência é imperativa. A
arquitetura, para fugir ao primitivo, ao infantil, ao arcaico,
deve ser inspirada pelas condições intelectuais, abstratas,
espirituais – considerações que modificam as exigências
rigorosas da utilidade”32.
Não é estranho, portanto, que estudiosos da arquitetura
procurem discernir, nos edifícios mais representativos
de cada ciclo histórico, o conteúdo temático abstrato que
veiculam – ou deveriam veicular –, mesmo que este conteúdo
seja uma criação do próprio estudioso. Erwin Panofsky,
por exemplo, pretendia que a construção da catedral gótica
fosse uma transcrição, sobre a pedra, do sistema escolástico
e da doutrina da Summa Theologica, de São Tomás de
Aquino. Para Panofsky“...foi na arquitetura onde o hábito
da clarificação logrou seus maiores triunfos. Assim como o
princípio da manifestatio regia a alta escolástica, o que se
pode chamar ‘princípio da transparência’, regeu a arquitetura
do alto gótico”33.
No início de seu estudo, o autor faz um paralelismo temporal entre a arte medieval e a filosofia escolástica; a seguir, observa que tanto a arquitetura gótica e o pensamento
escolástico surgiram numa região que forma um círculo de
cento e cinquenta quilômetros que tem Paris como centro.
No segundo capítulo do livro, Panofsky estabelece uma
32
READ, Herbert. As origens da forma na arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
p.105.
33
PANOFSKY, Erwin. Arquitetura gótica e escolástica. São Paulo: Martins
Fontes, 1991. p.35.
43
Nós da Arquitetura
conexão entre filosofia e arte que transcende ao simples paralelismo temporal, a saber, uma relação de causa e efeito.
Partindo da concepção de que a escolástica teria monopolizado a “formação intelectual”, nosso autor enuncia a tese de
que esta circunstância teria produzido um «hábito mental»
que influenciava o ensino e as letras, e que tinha um alcance abrangente, que atingia, inclusive, os mestres-de-obras
medievais, que seriam dotados de significativa formação
intelectual. Na realidade, segundo a teoria de Panofsky,
os mestres-de-obras medievais eram os precursores da escolástica. O que Panofsky tem em mente é o pensamento
consciente dos escolastas, bem como dos mestres-de-obras
medievais, que, segundo ele, brota de um mesmo modus
essendi. Como Panofsky não exibe evidências da conexão
que alega existir entre arquitetura gótica e escolástica, busca
demonstrar tal conexão de uma tertium comparationes. Por
meio desta argumentação, nosso autor refere-se à preocupação como uma característica do pensamento escolástico,
isto é, à “explicação” (manifestatio) da coerência dos conteúdos da fé e da razão, e defende a ideia segundo a qual tal
princípio comparece também na arquitetura das catedrais,
materializando-se por intermédio de uma “lógica visual”.
A metafísica do poder se expressa na arquitetura erudita
quando esta reflete certos aspectos da estrutura política e
social. O papel comunicativo da arquitetura é um fenômeno
demasiado estudado e permite o estabelecimento de um
vínculo temático com a questão do poder. Há uma identidade
teleológica entre a manifestação visível do poder instituído
e determinados conteúdos temáticos da arquitetura hierática
de todos os tempos. A socialização de suas finalidades
estabelece um vínculo entre política e arquitetura erudita;
como observa Thomas Ransom Giles:
44
Nós da Arquitetura
“A manifestações do fenômeno do poder são
incalculáveis, mas todas elas assumem caráter político
em função da socialização da sua finalidade. O poder
é um instrumento que só encontra sua razão de ser
no objetivo ou nos objetivos em função dos quais a
sociedade é constituída.”34
Considero que, neste mesmo sentido, Geoffrey Scott
afirmou que “o ideal do Renascimento foi o poder: uma
ampliação da consciência do poder e um alargamento de
seu âmbito; e Grécia e Roma se converteram quase por
necessidade em sua imagem e símbolo”35. Scott pensava
na Grécia e em Roma como protótipos de uma expressão
mais refinada do poder, que se materializa no conceito de
autoridade; por que poucos sistemas arquitetônicos espelham
tão bem o conceito de autoridade como o Classicismo. Já
Max Weber ensina-nos que “toda dominação se manifesta
e funciona em forma de governo”36. Mas o conceito de
autoridade não exaure a ideia do poder, principalmente
quando falamos nas diversas formas de autoridade despótica
que se inscrevem no quadro das instituições políticas. No caso
do poder despótico, penso que o sistema barroco produziu a
arquitetura mais adequada a lhe servir de cenário. Eugenio
D’Ors, desenvolvendo a tese segundo a qual “...as formas
arquitetônicas de um período histórico dado constituem uma
nova manifestação política do mesmo”37, afirmava que as
duas grandes criações do primeiro Renascimento seriam a
34
GILES, Thomas Ranson. Estado, poder, ideologia. São Paulo: EPU, 1985.
p.1.
35
SCOTT, Geoffrey. Arquitectura del Humanismo. Barcelona: Barral, 1970.
p.159.(Tradução Nossa.)
36
WEBER, Max. Economia y sociedad. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1992. p.701. (Tradução Nossa.)
37
D’ORS, Eugenio. Las ideas y las formas. Madrid: Aguilar, 1966. p.19.
(Tradução Nossa.)
45
Nós da Arquitetura
cúpula e a monarquia. A tese é atraente, mas não se sustenta
sob pilares sólidos. Nem o Renascimento inventou a cúpula,
nem a monarquia foi inventada nesta época. As cúpulas dos
séculos XV e XVI cobriam igrejas, não palácios. Nem as
intrigantes cúpulas das vilas de Palladio cobriam tronos,
mas as cadeiras de cidadãos abonados. No Renascimento,
a arquitetura reflete um gênero de busca do poder, aquele
aspirado pelo estamento burguês:
“O humanismo representa neste caso uma ideologia
que realiza uma função muito determinada na luta
pela emancipação e a conquista do poder pela camada
social burguesa em progressão ascendente.”38
O despotismo monárquico, forma por excelência do
poder, é um fenômeno que se manifesta na sua plenitude
nos séculos XVI e XVII. E a arquitetura palaciana desta
época refletia essa realidade. De fato, como já resumiu
David Jacobs, “a arquitetura da Renascença e do Barroco
transformou-se na arquitetura da autoexaltação; ela foi
construída por príncipes, papas, reis e aristocratas para seu
próprio conforto”39. Principalmente, no sistema barroco
a arquitetura é marcada pelo sentido teatral e cenográfico,
concebida para servir de palco para uma perpétua representação, que é a ostentação do poder. A temática das
relações entre arquitetura e poder – poder do cliente e poder
do arquiteto – encontra uma ramificação na concepção da
arquitetura como “cenário” para o exercício da autoridade,
vista como a representação de papéis. Isto é bem visível no
uso exemplar que a monarquia e a aristocracia francesa dos
38
VON MARTIN, A. Sociología del Renacimiento. México: Fondo de Cultura
Econômica, 1992. p.46.
39
JACOBS, David. Architecture. Nova York: Newsweek Books, 1974. p.130.
(Tradução Nossa.)
46
Nós da Arquitetura
séculos XVII e XVIII fizeram da arquitetura barroca; E. H.
Gombrich refere-se a esta disposição da seguinte forma:
“Usar os prestígios da arte para manifestar seu próprio poderio não era monopólio da Igreja Romana. Os
príncipes soberanos da Europa do século XVII estavam igualmente desejosos de apregoar seu poder para
afirmar sua ascendência sobre os seus povos. Eles
desejam parecer, em sua glória, criatura de espécie
superior, elevados por direito divino bem acima do
comum dos mortais. Isto se aplica particularmente ao
mais poderoso monarca dessa época, o rei Luís XIV.
Magnificência e pompa real eram para ele a própria
essência do poder.”40
Neste contexto, não se pode negligenciar o fato de a
sociedade e o indivíduo – genial ou não – terem a mesma
matéria-prima, diferindo apenas no que diz respeito à
quantidade e à combinação, ou seja, “as duas coordenadas
cultura e sociedade se encontram no mesmo ponto zero:
o indivíduo. O lugar que ocupa o indivíduo, no tipo de
mundo que descrevem os antropólogos, é, evidentemente,
de importância teórica fundamental”41. Temos, igualmente,
a conhecida concepção de Weber que afirmou que:
“... se finalmente me tornei sociólogo, o motivo
principal é pôr fim a esses exercícios com bases
em conceitos coletivos cujo espectro está sempre
rondando. Em outras palavras: a sociologia também
só pode ter origem nas ações de um, de alguns,
40
GOMBRICH, Eric. L’art et son histoire. Paris: René Juliard, 1967. p.156.
(Tradução Nossa.)
41
NADEL, S.F. Fundamentos de antropología social. México: Fondo de Cultura Econômica, 1985. p.106. (Tradução Nossa.)
47
Nós da Arquitetura
ou de numerosos indivíduos distintos. É por isso
que ela é obrigada a adotar métodos estritamente
individualistas.”42
Assim, a partir das contribuições de Weber, constitui uma
observação interessante aquela feita por Wright, ao referirse à plausibilidade de um “individualismo metodológico
marxista”, como desenvolvimento da ideia segundo a qual
“o que vale a pena ser levado a sério no pensamento marxista
possa ser reconstruído segundo o modelo do individualismo
metodológico”43.
Dentro de uma perspectiva individualista, entretanto, pode-se considerar que “a própria sociedade existe apenas na
medida em que é evidenciada e compreendida pelos indivíduos. O que determina o comportamento do indivíduo não
são tanto influências sociais que o moldam diretamente e
o manipulam como se fosse um fantoche, e sim sua interpretação e percepção dessas influências”44. Desenvolvendo
esta ideia, constatamos, na pesquisa exploratória antes aludida, que o imaginário da profissão na arquitetura tem um
componente essencial: a noção de que essa é uma atividade
de criação. Procurando sintetizar a manifestação dessa autoimagem, Eugene Raskin explica que:
“No que diz respeito ao arquiteto, arquitetura é acima
de tudo um processo criativo. Ele tem uma ideia em
sua mente, um efeito, uma emoção, podemos dizer,
42
Ibidem. WEBER, Max. p.1. (Tradução Nossa.)
43
WRIGHT, Erik O., LEVINE, Andrew et SOBER, Elliot. Reconstruindo o marxismo: Ensaios sobre a explicação e teoria da história. Petrópolis: Vozes,
1993. p.190.
44
BERRY, David. Ideias centrais em sociologia – Uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. p.29.
48
Nós da Arquitetura
que ele quer expressar em termos de estrutura. Sua
intenção de avançar além da mera utilidade para expressar algo com um maior significado humano é
arquitetura, para ele, a despeito do êxito ou malogro
de sua consumação. Para o arquiteto, em síntese,
arquitetura é um assunto subjetivo, que depende de
seu propósito. O elemento propósito, assim sendo,
deve encontrar seu lugar em nossa definição de
arquitetura.”45
É fácil verificar que a profissão do arquiteto, ao implicar
a transformação intencional da matéria e do ambiente, exige
criatividade. E a criatividade é uma qualidade valorizada
na cultura ocidental moderna. A atividade de criação aqui
referida – que combina espontaneidade com expressão da
personalidade – é a conceituada na cultura ocidental a partir
do século XV, como resultado do processo de emancipação
do artista: “a espontaneidade do indivíduo é a grande
experiência, o conceito de genialidade e o ideal da obra de arte
como expressão da personalidade genial, a grande descoberta
do Renascimento”46. É interessante observar que, de modo
mais manifesto, o individualismo se integra à personalidade
do profissional da arquitetura justamente no Renascimento,
quando o incipiente capitalismo italiano começa a configurar
a cultura da época, com ênfase na cultura artística. Como
sintetiza Elias Cornell, “já na época de Brunelleschi se dão
feitos que rapidamente transformam hábitos de construção
no seu oposto. A arte de construir é atribuída a indivíduos
individualistas”47. Podemos identificar, no pensamento
45
RASKIN, Eugene. Architecturally speaking. Nova York: Reinhold, 1954. p.89. (Tradução Nossa.)
46
HAUSER, Arnold. A arte e a sociedade. Lisboa: Presença, 1984. p.50.
47
CORNELL, Elias. A expressão arquitetônica da contradição entre a cidade
e o campo no capitalismo pré-industrial. In: Arquitetura e conhecimento.
Brasília: Alva, n.3, 1996. p.93.
49
Nós da Arquitetura
humanista dos séculos XV e XVI, o embrião daquilo que
hoje denominamos pensamento moderno, por oposição ao
pensamento medieval e arcaico. Efetivamente, Alberti, no
prólogo de seu De Re Aedificatoria, texto instaurador da
literatura temática da arquitetura, estabeleceu um sintético
“perfil” do profissional a que designa como arquiteto:
“Mas antes de prosseguir, entretanto, devo explicar
exatamente a quem me refiro como arquiteto: pois não
será um carpinteiro que eu equipararei aos mais capacitados mestres em outras ciências; o carpinteiro nada
mais é que um instrumento nas mãos do arquiteto.
Chamarei de arquiteto aquele que, através de acurados
e maravilhosos razão e método, é capaz, com o pensamento e a invenção, de conceber e, com execução,
de realizar todas estas obras as quais, por intermédio
do movimento de grandes massas, e da conjunção e
reunião dos corpos, podem, com a maior beleza, se
adaptar ao uso do gênero humano; e, para estar apto
a fazê-lo, ele deverá ter um pleno conhecimento das
mais nobres e mais curiosas ciências. Assim deve ser
o arquiteto.”48
Seu texto não requer exegese, pois expressa claramente
o que nosso autor pretende dizer. Um profissional dotado
dos atributos que Alberti visualiza no seu arquiteto seria, na
sua capacidade criativa, para todos os efeitos, infalível, e
digno de inveja e êmulo para os colegas. E, como enfatiza
Alberti, em nada comparável a pedreiros ou carpinteiros.
Como enunciei acima, encontramos também no discurso dos
humanistas uma primeira ideia do pensamento moderno, a
separação entre dois reinos ontológicos: o mundo natural,
objeto de contemplação e transformação pelo homem, e o
48
ALBERTI, Leon Battista. Texto Original de 1485. p. 3.(Tradução Nossa.)
50
Nós da Arquitetura
mundo humano, que consiste em um conjunto de liberdades
individuais, destinadas a construir, com sua ação, seu próprio mundo. Como resume Luis Villoro, “essa ideia entranha
a ideia do homem como indivíduo inamovível. Um dos
rasgos do pensamento moderno será, desde então, esse
individualismo”49.
49
VILLORO, Luis. El pensamiento moderno. Filosofía del Renacimiento. México: Fondo de Cultura Econômica, 1992. p.34. (Tradução Nossa.)
51
Nós da Arquitetura
4. Conclusões
Para o indivíduo que cria a diferença, ou que se vê como
capaz de fazê-lo, ou que espera ser reconhecido como
alguém apto a fazê-lo, marcar sua própria individualidade,
ainda que romanticamente, é um recurso de sobrevivência.
Sem exagero, podemos afirmar que na arquitetura, como
em outros campos que exigem criatividade, o modelo por
excelência do arquiteto é o gênio. O gênio é sempre uma
individualidade. O uso deste conceito na caracterização de
artistas provém, como nota Erwin Panofsky da revolução
cultural ocorrida nos séculos XV e XVI:
“A teoria da arte do Renascimento, vinculando a
produção da Ideia à visão da natureza, e situando-a
doravante numa região que, sem ser ainda a da
psicologia individualista, já não era a da metafísica,
dava o primeiro passo em direção ao reconhecimento
daquilo que nos habituamos a chamar de ‘Gênio’.
Aliás, os pensadores do Pré-Renascimento desde
o início havia pressuposto, em face da realidade do
objeto de arte, a realidade subjetiva do artista...”.50
O conceito de gênio é útil para fins de explicarmos o caráter
normativo dos grupos de referência. A essa circunstância se
aplica, mutatis mutandi, a observação de Merton sobre a
abordagem teórica do papel do gênio no campo da ciência,
enfatizando que:
“Ao conceber o gênio científico como um indivíduo
que representa por si só o equivalente funcional a uma
quantidade e uma variedade de talento frequentemente
50
PANOFSKY, Erwin. Idea: A evolução do conceito do belo. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p.67.
52
Nós da Arquitetura
menor, a teoria sustenta que o gênio desempenha
um papel destacado no avanço da ciência e às vezes
também, pela excessiva autoridade que lhes atribui,
trava seu ulterior desenvolvimento.”51
Concluindo o presente estudo, podemos dizer que a
incorporação à sociedade através do individualismo é a
mesma modalidade de incorporação de que nos fala Agnes
Heller:
“Com efeito, a individualidade humana não é simplesmente uma ‘singularidade’. Todo homem é singular,
individualmente, e, ao mesmo tempo, ente humano-genérico. Sua atividade é, sempre e simultaneamente,
individual-particular e humano-genérica. Em outras
palavras: o ente singular humano sempre atua segundo seus instintos e necessidades, socialmente formados, mas referidos ao seu Eu, e, a partir dessa perspectiva, percebe, interroga e dá respostas à realidade;
mas, ao mesmo tempo, atua como membro do gênero
humano e seus sentimentos e necessidades possuem
caráter humano-genérico.”52
O percurso feito pela teoria da arquitetura no Renascimento pode ser tomado como referência e parâmetro para
uma plena compreensão da relação entre o homem e a sociedade na atualidade. As concepções arquitetônicas e urbanísticas dos tratadistas dos séculos XV em diante sofreram
influência das concepções de tempo e espaço desde então.
Os princípios arquitetônicos do Renascimento foram inspirados em conceitos que pretendiam darunidade à arquitetura
51
MERTON, Robert King. Sociología de la ciencia. Madri: Alianza Universidad, 1977. p.476. (Tradução Nossa.)
52
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
p.80.
53
Nós da Arquitetura
e relacioná-la com a cidade e a natureza ao seu redor. Isto só
foi possível graças à mudança do juízo estético, ocorrida ao
longo dos séculos XV e XVI. A ideia de tornar o homem o
centro do universo refletiu um novo ideal, no qual a unidade
entre este e a natureza incorporou também a cidade e a arquitetura. Neste mesmo grupo de pensadores estão Alberti,
Filarete e Giorgio Martini. Nos tratados de Serlio, Palladio e
Vignola, não se encontra mais a ideia de a unidade entre arquitetura e cidade que havia nos tratados de Alberti, Filarete
e Martini, contudo, mantém-se a ideia de antropometrismo
arquitetônico e urbanístico. A constante relação entre edifício e espaço urbano e entre arquitetura e cidade deve fazer
parte do entendimento e da apreensão social. A cidade é a
expressão máxima da capacidade humana. A questão posta
neste estudo pretende reacender a ideia de que há uma qualidade na arquitetura e na cidade que está além dos estilos e
linguagens arquitetônicas; algo que variam com o tempo e o
espaço, que é a sine qua non da qualidade urbana: a relação
arquitetura e cidade, pensada como um corpo único, indivisível e completo.
54
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Os conceitos de imaginário e individualismo
na teoria social da arquitetura
Fellipe de Andrade Abreu E Lima
1. Introdução: Imaginário arquitetônico
Este estudo pretende examinar os significados dos conceitos de “imaginário” e de “individualismo” no contexto do
movimento moderno na arquitetura, iniciado nos primórdios
do século XX, isto é, na acepção que exibem quando relacionadas com o substrato ideológico da profissão do arquiteto.
Para tal escopo, recapitularei alguns conceitos pertinentes à
caracterização daquela profissão, tendo em vista seus componentes inventivo e pragmático originários desde o Renascimento, quando o arquiteto passa a exercer sua profissão
com um grau de superioridade em relação ao antigo operis
medieval. Também farei alusão à associação do conceito de
“liberdade de criação”, como entendido no discurso estético,
com o conceito de individualidade e individualismo, identificando este binômio com a base do que se denomina “imaginário da profissão na arquitetura”.
Este estudo pretende esclarecer que, mesmo no campo da
produção arquitetônica, onde a obra concebida e realizada
tem um compromisso com certas exigências socialmente
objetivas, o conceito de liberdade de criação subjaz à ideia
de validade e relevância. Prosseguindo, tratarei do conceito
de imaginário, complementado o exame feito nos itens
precedentes, enfatizando a importância desta categoria no
processo de identificação recíproca dos membros de um grupo
caracterizado pelo exercício da mesma profissão. A seguir,
67
Nós da Arquitetura
faço a análise sociológica do fenômeno do individualismo,
examinando suas variantes de exteriorização e destacando o
teor de perturbação que o estudo deste tema contém, quando
se trata de enquadrá-lo na perspectiva sociológica.
Concluindo, tratarei de associar o conceito de individualismo como parte do complexo constituído pelo imaginário
da profissão na arquitetura, especificamente aquele que diz
respeito à personalidade artística do arquiteto ideal, também
nascido das concepções renascentistas iniciadas pelos tratadistas do século XV na Itália.
Como sabemos, a profissão do arquiteto é caracterizada
pelos conteúdos técnico, especulativo e criativo do projeto,
isto é, do processo de concepção das edificações que formam
o patrimônio arquitetônico da civilização. A constatação da
existência destes conteúdos técnico, especulativo e criativo,
não envolve qualquer juízo de valor. Devo registrar que –
como expressão de fundo ideológico – arquitetos gostam
de referir-se à sua atividade como “ofício”, recuperando
uma designação usual na cultura medieval53. Também
esclarecerei que o vocábulo “ofício” deriva do substantivo
latino officium, traduzível por “trabalho, execução de uma
tarefa ou tarefa a executar”; por sua vez, officina, em latim,
traduz-se como “oficina, fábrica, laboratório”, isto é, local
de trabalho, de execução de tarefas. A arquitetura implica um
inventar e um fazer. Na origem grega do termo, arquitetura é
a técnica (o fazer) do arquiteto, – αρχιτεκτονικε τεχνη.
Neste contexto epistemológico, deverei considerar a
arte ou ofício de projetação como uma arte social que não
refuta o papel do indivíduo ou dos métodos individuais.
Efetivamente, todo processo coletivo na arquitetura é
feito de indivíduos representando os arquitetos, clientes,
consultores, conselhos regulamentadores e, às vezes, os
53
Conceito de “ofício”, na arquitetura, foi inicialmente desenvolvido por:
GRASSI, Giorgio. La arquitectura como ofício y otros escritos. Barcelona:
Gustavo Gili, 1980. (Tradução Nossa.)
68
Nós da Arquitetura
usuários. Em cada projeto o peso de cada um dos vários
papéis difere, mas arquiteto e cliente permanecem centrais
no processo, conforme nos esclareceu Dana Cuff54.
O culto ao individualismo, patente desde o Renascimento
italiano e início do profissionalismo arquitetônico, não existe
apenas no campo da ficção: encontramo-lo no plano real,
e bem próximo de nós, inclusive nos dias de hoje. Oscar
Niemeyer, por exemplo, refere-se a um elogio recebido de
Le Corbusier (1887-1965), que se notabilizou pelo empenho
na difusão da doutrina modernista da arquitetura, sendo
inspirador de duas gerações de arquitetos do século XX.
Segundo o testemunho de Niemeyer, Le Corbusier, aludindo
à obra de Niemeyer em Brasília, teria dito que “cada uma
de suas decisões é válida, porque é um ato de vontade e
liberdade total” 55. Ora, com este comentário, Le Corbusier
está associando o atributo validade com a vontade e com a
liberdade total. Não há referência a aspectos objetivos da
realização sob exame, às suas características, mas apenas
às circunstâncias de sua proposição: se foi produzido num
contexto de liberdade total, é válido. Le Corbusier faz uma
paráfrase do juízo de Émile Durkheim, segundo o qual a arte
“... é absolutamente refratária a tudo que o que se assemelhe
a uma obrigação, pois ela é o domínio da liberdade”56.
Segundo o raciocínio de Le Corbusier e Niemeyer, o
artista só tem compromisso consigo mesmo. A vontade e a
liberdade total seriam, destarte, o fundamento de legitimação
de qualquer proposta criadora. O critério de excelência
arquitetônica, neste caso, seria a irrestrita liberdade de
54
CUFF, Dana. Architecture: The story of practice. Cambridge: The MIT
Press, 1993. p.195. (Tradução Nossa.)
55
NIEMEYER, Oscar. A forma na arquitetura. Rio de Janeiro: Avenir, 1978.
p. 45.
56
DURKHEIM, Émile. A divisão do trabalho social. Lisboa: Presença, 1984.
p. 66.
69
Nós da Arquitetura
proposição e a autonomia em relação às circunstâncias
externas ao ímpeto expressivo do projetista. Ou seja, sem que
se empregue explicitamente o conceito, há aí uma defesa do
individualismo, “... uma ideologia que valoriza o indivíduo
e negligencia ou subordina a totalidade social”57. Aquela
fortuita concepção do mestre suíço é um paradoxo, pois,
como se explica abaixo, contradiz frontalmente os principais
pontos da doutrina do funcionalismo arquitetônico, base
reconhecida da modernidade arquitetônica delineada pelo
próprio Le Corbusier}. E também contraria as concepções
marxistas da teoria da arte, que repelem o individualismo
radical e a ideia da irrestrita liberdade de criação: como
resume a estudiosa marxista inglesa Honor Arundel:
“A liberdade que o artista requer não é a liberdade
da voluntariedade individualista, mas a liberdade de
desafiar a dificuldade. [...] A liberdade absoluta de
que falam os idealistas não pode existir para nenhum
membro da sociedade, seja ou não artista. Sua liberdade
se vê limitada pelos circundantes tempo ou lugar, por
seu temperamento e talento e, sobretudo, por seus
ineludíveis compromissos com seus congêneres.”58
Este comentário prende-se ao fato de ser Niemeyer um
comunista declarado que, em princípio, deveria compartilhar do pensamento estético marxista, mesmo que isto representasse uma contradição relativa à sua prática profissional
exercida predominantemente no mundo capitalista. Segundo
os mais insignes próceres da vanguarda arquitetônica do século XX – aos quais faremos referência nos próximos itens –,
57
DUMONT, Louis. O individualismo. Uma perspectiva antropológica da
ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p.279.
58
ARUNDEL, Honor. La libertad en el arte. México: Grijalbo, 1967. p.134.
(Tradução Nossa.)
70
Nós da Arquitetura
a arquitetura é importante por seu potencial de interferência
positiva no âmbito da vida social, que implica engajamento
dos arquitetos em causas identificadas com a promoção social – ainda que não seja claro o significado desta última expressão. Falando sobre o ideário dos arquitetos da vanguarda
modernista, Anatole Kopp, participante do movimento e
propagador convicto da doutrina modernista da arquitetura, enaltece “a crença nas virtudes pedagógicas do ambiente
construído considerado como instrumento de transformação
social – como um ‘condensador social’, dirão os arquitetos
da vanguarda soviética – mas, sobretudo, fé na iminência
das transformações sociais”59.
Tal crença supunha um espírito de engajamento com um
sentido de socialização, que é antitético ao individualismo
egocêntrico defendido por Le Corbusier e Niemeyer. Como
já fiz referência em item anterior, Walter Gropius, líder do
movimento de modernização da arquitetura representado
pela experiência da Bauhaus, afirmava que, no século XX,
o principal objetivo da profissão construtiva, tanto âmbito
técnico quanto no social, consistiria em estruturar um
serviço adequado para prover a coletividade de suficiente
quantidade de habitações decorosas e modernas. Outros
documentos reiteram este compromisso dos arquitetos
modernistas com este conteúdo social da arquitetura, às
vezes com algum exagero, tanto no plano do discurso como
no plano da práxis.
59
KOPP, A. Quando o moderno não era um estilo e sim uma causa. São Paulo: Nobel-Edusp, 1990. p.17.
71
Nós da Arquitetura
2. Uma Compreensão Individualista
Tratarei agora do componente individualista no imaginário
da profissão da arquitetura, retomando o tema da “liberdade
de criação” como, nos termos do discurso que emerge deste
imaginário, condição sine qua non da validade do trabalho
do arquiteto e do artista de modo geral. Ressalta-se que o
conceito de “liberdade de criação” não deve ser confundido
com o de gênio, estudado pela corrente da fenomenologia
ou pelos psicólogos sociais. Embora conhecendo a opinião
de Massimo Canevacci, segundo a qual “a história do
indivíduo ainda não foi escrita”60, constatamos que o tema
do individualismo tem explícita autonomia no âmbito das
ciências sociais, como podemos constatar pelo exame da
relação bibliográfica apresentada no final deste trabalho.
O vocábulo latino individuum deriva do grego atomom,
ambos denominando aquilo que não pode ser dividido; este
conceito de “originária indivisibilidade e singularidade”
atravessa todo o pensamento ocidental e chega até Leibniz,
que, com seu conceito de mônada, “fornece a especificidade
definitiva ao indivíduo da era burguesa”61.
Acerca da inserção do conceito de individualismo na
teorização sociológica, cabe destacar inicialmente que a
noção de individualismo, na teoria social, designa não a
doutrina moral que traz o mesmo nome, mas a propriedade
que alguns sociólogos reconhecem como “característica de
certas sociedades e particularmente das sociedades industriais
modernas: nessas sociedades, o indivíduo é considerado
uma unidade de referência fundamental, tanto para si
mesmo como para a sociedade. É o indivíduo que decide
sobre sua profissão, que escolhe seu cônjuge. Sua autonomia
60
CANEVACCI, Massimo. Dialética do indivíduo. São Paulo: Brasiliense,
1981. p.41.
61
Idem. Dialética do indivíduo. p.8.
72
Nós da Arquitetura
é maior do que nas sociedades tradicionais”62. Na realidade,
o gênero de individualismo a que se pode referir o substrato
ideológico dos praticantes da profissão da arquitetura não é
apenas o das sociedades industriais modernas, mas, como
desenvolvo no último item, igualmente aquele tipo de
individualismo que caracteriza a emancipação dos artistas
no advento da Renascença.
Em princípio, a análise sociológica repele a perspectiva
individualista. Louis Dumont expõe a principal dificuldade
desta análise: “A apercepção sociológica atua contra a visão
individualista do homem. Consequência imediata: a ideia do
indivíduo constitui-se num problema para a sociologia.”63
Podemos verificar em Émile Durkheim referências ao
fenômeno do individualismo, porém sob o nome de egoísmo;
“por egoísmo, palavra que não se deve (ou antes, que nem
sempre se deve) entender no sentido moral, Durkheim designa a importância da autonomia concedida ao ego, isto é,
ao indivíduo, na ‹escolha› de seus atos e crenças”64.
Segundo a concepção durkheimiana, algumas culturas impõem aos indivíduos normas, regras e valores transcendentes; nessas sociedades, o egoísmo enfrentará mais
obstáculos que aqueles encontrados nas coletividades que
outorgam à liberdade de escolha ao indivíduo, subentendida
a submissão deste a normas, regras e valores de conteúdo
mais geral, que não lhe retirem inteiramente a capacidade
de operar algumas escolhas. Todavia, o desenvolvimento do
egoísmo não depende somente de variáveis culturais, mas é,
geralmente, uma função do grau de integração dos grupos
sociais de que o indivíduo faz parte.
62
BOUDON, Philippe ; BOURRICAUD, François. Dicionário crítico de sociologia. São Paulo: Ática, 1993. p.285.
63
DUMONT, Louis. Homo hierarquicus. O sistema de castas e suas implicações. São Paulo: Edusp, 1992. p.56.
64
Idem. Dicionário crítico de sociologia. p.285.
73
Nós da Arquitetura
Apesar destas concepções acerca do individualismo,
mesmo sob a roupagem de um processo criativo, há o
envolvimento de um sentido de dominação, uma inclinação
para a preponderância, o triunfo num conflito de vontades.
A ideia de que exista um egoísmo da criação pode conflitar
com certas concepções ideológicas do fenômeno artístico.
É neste aspecto que recorremos à interpretação de Friedrich
Nietzsche e seu Übermensch (super-homem). Vontade e
poder, vontade de poder: Wille zur Macht. Fora do quadro
da coexistência civil, no plano específico do imaginário do
artista, a vontade de poder de Nietzsche torna-se a ideologia
do criador. Assim, a autossuficiência do artista moderno,
instaurada na época do Renascimento, converte-se, na sua
visão, numa forma própria de heroísmo. Há um nexo entre
os conceitos de “individualismo”, “egoísmo-do-criador” e
“vontade-de-poder”, como pode ser demonstrado.
Comecemos pelo último conceito. Dependendo da ótica
da abordagem, o estudo do fenômeno “poder” pode ter um
cunho sociológico ou metafísico. Falamos aqui de uma
metafísica do poder e de sua incorporação à arquitetura.
Os conteúdos metafísicos não são estranhos à arquitetura
erudita, e esta observação vale para todas as épocas. Mesmo
de modo não-intencional, o arquiteto muitas vezes incorpora
à matéria inanimada certos significados que transcendem
ao mero registro da pauta programática. Por outro lado,
também a sintaxe construtiva se presta, às vezes, ao papel de
comunicar significados que escapam ao âmbito dos requisitos
de racionalidade mecânica. A história da arquitetura erudita
de todas as épocas está repleta de exemplos que ilustram
essa percepção. Pode acontecer que, sem que seja intenção
do construtor, a forma arquitetônica suscite associações de
imagens e de temas abstratos vinculados à filosofia, aos
costumes predominantes, à hierarquia social e, enfim, à estrutura política vigente.
74
Nós da Arquitetura
De acordo com Herbert Read, quando discorrendo sobre
as diferenças entre a arquitetura erudita e a arquitetura
primitiva, observa que “o ponto em que o intelecto deve
animá-la e inspirá-la – aí temos a introdução de um fator
que já não é materialista e cuja influência é imperativa. A
arquitetura, para fugir ao primitivo, ao infantil, ao arcaico,
deve ser inspirada pelas condições intelectuais, abstratas,
espirituais – considerações que modificam as exigências
rigorosas da utilidade”65.
Não é estranho, portanto, que estudiosos da arquitetura
procurem discernir, nos edifícios mais representativos
de cada ciclo histórico, o conteúdo temático abstrato que
veiculam – ou deveriam veicular –, mesmo que este conteúdo
seja uma criação do próprio estudioso. Erwin Panofsky,
por exemplo, pretendia que a construção da catedral gótica
fosse uma transcrição, sobre a pedra, do sistema escolástico
e da doutrina da Summa Theologica de São Tomás de
Aquino. Para Panofsky“... foi na arquitetura onde o hábito
da clarificação logrou seus maiores triunfos. Assim como o
princípio da manifestatio regia a alta escolástica, o que pode
chamar-se ‘princípio da transparência’ regeu a arquitetura
do alto gótico”66. No início de seu estudo, o autor faz um
paralelismo temporal entre a arte medieval e a filosofia
escolástica; a seguir, observa que tanto a arquitetura gótica
e o pensamento escolástico surgiram numa região que
forma um círculo de cento e cinquenta quilômetros que tem
Paris como centro. No segundo capítulo do livro, Panofsky
estabelece uma conexão entre filosofia e arte que transcende
ao simples paralelismo temporal, a saber, uma relação de
causa e efeito. Partindo da concepção de que a escolástica
65
READ, Herbert. As origens da forma na arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
p.105.
66
PANOFSKY, Erwin. Arquitetura gótica e escolástica. São Paulo: Martins
Fontes, 1991. p.35.
75
Nós da Arquitetura
teria monopolizado a «formação intelectual», nosso autor
enuncia a tese de que esta circunstância teria produzido
um «hábito mental» que influenciava o ensino e as letras,
e que tinha um alcance abrangente, que atingia, inclusive,
os mestres-de-obras medievais, que seriam dotados de
significativa formação intelectual. Na realidade, segundo a
teoria de Panofsky, os mestres-de-obras medievais eram os
precursores da escolástica. O que Panofsky tem em mente
é o pensamento consciente dos escolastas, bem como dos
mestres-de-obras medievais, que, segundo ele, brota de
um mesmo modus essendi. Como Panofsky não exibe
evidências da conexão que alega existir entre arquitetura
gótica e escolástica, busca demonstrar tal conexão de uma
tertium comparationes. Por meio desta argumentação, nosso
autor refere-se à preocupação que caracteriza o pensamento
escolástico, isto é, à “explicação” (manifestatio) da coerência
dos conteúdos da fé e da razão, e defende a ideia segundo
a qual tal princípio comparece também na arquitetura das
catedrais, materializando-se por intermédio de uma “lógica
visual”.
A metafísica do poder se expressa na arquitetura erudita
quando esta reflete certos aspectos da estrutura política e
social. O papel comunicativo da arquitetura é um fenômeno
demasiado estudado, e permite o estabelecimento de um
vínculo temático com a questão do poder. Há uma identidade
teleológica entre a manifestação visível do poder instituído
e determinados conteúdos temáticos da arquitetura hierática
de todos os tempos. A socialização de suas finalidades
estabelece um vínculo entre política e arquitetura erudita;
como observa Thomas Ransom Giles:
“A manifestações do fenômeno do poder são incalculáveis, mas todas elas assumem caráter político
76
Nós da Arquitetura
em função da socialização da sua finalidade. O poder
é um instrumento que só encontra sua razão de ser
no objetivo ou nos objetivos em função dos quais a
sociedade é constituída.”67
Considero que, neste mesmo sentido, Geoffrey Scott
afirmou que “o ideal do Renascimento foi o poder: uma
ampliação da consciência do poder e um alargamento de seu
âmbito; e Grécia e Roma se converteram quase por necessidade
em sua imagem e símbolo”68. Scott pensava na Grécia e em
Roma como protótipos uma expressão mais refinada do
poder, que se materializa no conceito de autoridade; por que
poucos sistemas arquitetônicos espelham tão bem o conceito
de autoridade como o Classicismo. Já Max Weber, ensinanos que “toda dominação se manifesta e funciona em forma
de governo”69. Mas o conceito de autoridade não exaure a
ideia do poder, principalmente quando falamos nas diversas
formas de autoridade despótica, que se inscrevem no quadro
das instituições políticas. No caso do poder despótico, penso
que o sistema barroco produziu a arquitetura mais adequada
a lhe servir de cenário. Eugenio D’Ors, desenvolvendo
a tese segundo a qual“...as formas arquitetônicas de um
período histórico dado constituem uma nova manifestação
política do mesmo”70, afirmava que as duas grandes criações
do primeiro Renascimento seriam a cúpula e a monarquia.
A tese é atraente, mas não se sustenta sob pilares sólidos.
Nem o Renascimento inventou a cúpula, nem a monarquia
67
GILES, Thomas Ranson. Estado, poder, ideologia. São Paulo: EPU, 1985.
p.1.
68
SCOTT, Geoffrey. Arquitectura del Humanismo. Barcelona: Barral, 1970.
p.159. (Tradução Nossa.)
69
WEBER, Max. Economia y sociedad. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1992. p.701. (Tradução Nossa.)
70
D’ORS, Eugenio. Las ideas y las formas. Madri: Aguilar, 1966. p.19. (Tradução Nossa.)
77
Nós da Arquitetura
foi inventada nesta época. As cúpulas dos séculos XV e XVI
cobriam igrejas, não palácios. Nem as intrigantes cúpulas das
vilas de Palladio cobriam tronos, mas as cadeiras de cidadãos
abonados. No Renascimento, a arquitetura reflete um gênero
de busca do poder, aquele aspirado pelo estamento burguês:
“O humanismo representa neste caso uma ideologia
que realiza uma função muito determinada na luta
pela emancipação e a conquista do poder pela camada
social burguesa em progressão ascendente.”71
O despotismo monárquico, forma por excelência do poder, é um fenômeno que se manifesta na sua plenitude nos
séculos XVI e XVII. E a arquitetura palaciana desta época
refletia essa realidade. De fato, como já resumiu David Jacobs, “a arquitetura da Renascença e do Barroco transformou-se na arquitetura da autoexaltação; ela foi construída
por príncipes, papas, reis e aristocratas para seu próprio conforto”72. Principalmente no sistema barroco a arquitetura é
marcada pelo sentido teatral e cenográfico, concebida para
servir de palco para uma perpétua representação, que é a ostentação do poder. A temática das relações entre arquitetura
e poder – poder do cliente e poder do arquiteto – encontra
uma ramificação na concepção da arquitetura como «cenário» para o exercício da autoridade, vista como a representação de papéis. Isto é bem visível no uso exemplar que a
monarquia e a aristocracia francesa dos séculos XVII e
XVIII fizeram da arquitetura barroca; E. H. Gombrich refere-se a esta disposição da seguinte forma:
71
VON MARTIN, A. Sociología del Renacimiento. México: Fondo de Cultura
Econômica, 1992. p.46.
72
JACOBS, David. Architecture. Nova York: Newsweek Books, 1974. p.130.
(Tradução Nossa.)
78
Nós da Arquitetura
“Usar os prestígios da arte para manifestar seu
próprio poderio não era monopólio da Igreja Romana.
Os príncipes soberanos da Europa do século XVII
estavam igualmente desejosos de apregoar seu poder
para afirmar sua ascendência sobre os seus povos. Eles
desejam parecer, em sua glória, criatura de espécie
superior, elevados por direito divino bem acima do
comum dos mortais. Isto se aplica particularmente ao
mais poderoso monarca dessa época, o rei Luís XIV.
Magnificência e pompa real eram para ele a própria
essência do poder.”73
Exemplificando essa condição com a menção do arquiteto
como protótipo do artista individualista que se coloca a
serviço do poder constituído, citemos o arquiteto francês
François Mansart (1598-1666). Leonardo Benevolo referese a Mansart como “o mais genial artista deste momento –
século XVII”74. Costumam compará-lo com seu predecessor
Jacques Lemercier, criador da arquitetura clássica francesa.
De acordo com Anthony Blunt:
“François Mansart era em quase todos os aspectos, um
completo contraste em relação a Lemercier. Lemercier
nada mais era que um competente projetista, cuja
importância residia em sua introdução de um novo
idioma estrangeiro. Mansart era um arquiteto de uma
sutileza e gênio sem paralelo, que pouco aprendeu
de seus contemporâneos, mas que trouxe a tradição
genuinamente francesa a um alto nível de perfeição.”75
73
GOMBRICH, Eric. L’art et son histoire. Paris: René Juliard, 1967. p.156.
(Tradução Nossa.)
74
BENEVOLO, Leonardo. Historia de la arquitectura del Renacimiento. Barcelona: Gustavo Gili, 1984. p.924. (Tradução Nossa.)
75
BLUNT, Anthony. François Mansart and the origins of French classical Architecture. Londres: Penguin Books, 1941. p.142. (Tradução Nossa.)
79
Nós da Arquitetura
Mansart é o modelo de artista individualista. Segundo
Pevsner, “se bem que tivesse uma consciência artística
escrupulosa, infelizmente não era só arrogante, como pouco
firme em suas relações de negócio, e a inabilidade em fazer e
manter um plano final naturalmente enraivecia seus clientes.
Devido a isso, perdeu muitas encomendas, e nos últimos
anos de vida esteve virtualmente sem trabalho”76. Tais
características são corroboradas por John Gloag: “ele podia
exibir levianamente as excentricidades de seu gênio, embora
seus clientes devessem pagar por elas; nunca se preocupou
com o custo de suas obras, era indiferente às considerações
econômicas de qualquer ordem, preocupando-se apenas
com a busca da perfeição nos projetos”77.
Tratando do individualismo, encarado dentro da perspectiva da teoria sociológica, os amplos conceitos de “sociedade”, “sistema social”, “classes sociais” – até por conterem
o étimo “socius” que designa a disciplina –, surgem imediatamente como o objeto por excelência da sociologia. Os
teóricos sociais, incluindo alguns da classe dos arquitetos,
naturalmente, têm consciência da necessidade de impregnar
seu trabalho com temas marcados pela relevância requerida
à ciência. É sugestivo confrontar esta assertiva com a concepção de Cornelius Castoriadis, segundo a qual:
“Para começar e dizer o essencial, o indivíduo nada
mais é do que a sociedade. A oposição indivíduo/
sociedade, tomada rigorosamente, é uma falácia. A
oposição, a polaridade irredutível e inquebrável é a da
psique e da sociedade. Ora a psique não é o indivíduo;
a psique torna-se indivíduo unicamente na medida em
76
PEVSNER, Nikolaus. Dicionário Enciclopédico de Arquitetura. Rio de Janeiro: Artenova, 1976. p.172. (Tradução Nossa.)
77
GLOAG, John. Guide to Western Architecture. Londres: Spring Books,
1969. p.224. Tradução nossa.
80
Nós da Arquitetura
que ela sofre um processo de socialização (sem o qual,
aliás, nem ela nem o corpo que ela anima poderiam
sobreviver sequer por um instante).”78
Também constatamos que, de forma grosseira, pode-se
dizer que, embora manipulando a mesma matéria-prima –
o comportamento humano –, sociologia e história diferem
pela importância que concedem ao papel da individualidade
no campo das ações humanas. A história se concentraria
no indivíduo – Alexandre Magno, Átila, Napoleão – os
capitalistas de origem calvinista, os burgueses, os suicidas.
Discorrendo sobre as diferenças entre as duas disciplinas,
Peter Burke chama atenção para o fato de que“... muitos
historiadores rejeitavam a sociologia por ser demasiado
científica, no sentido que era abstrata e reducionista e
não levava em conta a singularidade dos indivíduos e dos
fatos”79. Há também a conotação negativa atribuída ao
individualismo em algumas concepções sociológicas, como
certa interpretação do marxismo, na sua antítese à cosmovisão
burguesa: ao individualismo burguês o marxismo antepõe o
holismo. Neste sentido cito Wright, mencionando que:
“A visão que o marxismo deve, sem embaraço, sujeitar-se aos padrões convencionais da ciência social
e da filosofia analítica implica uma rejeição da tese
de que o marxismo, como ciência social, possui uma
metodologia distinta, que a diferencia radicalmente da
‘ciência social burguesa’.Tais pressupostos metodológicos implicam uma lista conhecida de contrastes: o
marxismo é dialético, histórico, materialista, antipositivista e holista, enquanto que a teoria social burguesa
78
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1962. p.57.
79
BURKE, Peter. Sociologia e história. Lisboa: Afrontamento, 1970. p.14.
81
Nós da Arquitetura
é não-dialética, a-histórica, idealista, positivista e individualista.”80
Sobre uma interpretação marxista do fenômeno do individualismo, Bottomore apontou para alguns aspectos dignos
de menção. Segundo Bottomore, Marx tem relativamente
pouco a dizer sobre o micronível da interação humana, sobre
a natureza do psiquismo humano, sobre as relações interpessoais, sobre as relações entre Estado e indivíduo e entre o
público e o privado:
“Como filosofia da história, então, o marxismo propõe
uma teoria do desenvolvimento do indivíduo. Como
ciência social, rejeita as explicações elaboradas em
termos dos propósitos, atitudes e crenças individuais,
preferindo considerá-las, elas próprias, como matéria a
ser explicada. Por outro lado, como toda macroteoria,
ela precisa de uma microteoria para trabalhar; mas
não focaliza a atenção sobre detalhes dessa teoria.”81
Ainda na ótica de Bottomore, o marxismo, como visão
da boa sociedade e da realização humana, postula – revelando ligações com o romantismo alemão – uma noção de
individualidade polifacética e plenamente desenvolvida,
que não pode ser medida por nenhum padrão predeterminado (embora só seja realizável sob condições de unidade
social e de controle coletivo sobre a natureza). Deste modo,
posso já mencionar a pluralidade dentro da própria visão do
individualismo, ou seja, há várias compreensões acerca do
que é individualismo. Citando alguns: O individualismo uti80
WRIGHT, Erik O.; LEVINE, Andrew; SOBER, Elliot.Reconstruindo o marxismo: ensaios sobre a explicação e teoria da história. Petrópolis: Vozes, 1993.
p.22.
81
BOTTOMORE, Tom. A dictionary of Marxist thought. Cambridge: Harvard
University Press, 1983. p.228. (Tradução Nossa.)
82
Nós da Arquitetura
litarista (que propõe a visão de uma sociedade de átomos
equivalentes movidos pela busca de seus interesses); O individualismo romântico (aquele dos indivíduos incomensuráveis, no qual cada um é insubstituível); O individualismo
de mercado (que evoca o homem liberado de suas paixões e
entrando numa nova comunidade moral formada pelo ‹doce
comércio›, e deste modo um meio – o da ciência econômica
– para melhor analisar seu comportamento); O individualismo ético (a consciência coletiva deve ser o tribunal supremo
da validade das normas morais, e a avaliação das sociedades
deve ser fundada exclusivamente sobre a felicidade e autonomia dos indivíduos ou sobre valores que não são objeto
de cálculo deles); O individualismo sociológico denota a
multiplicação e a diferenciação dos papéis sociais e a emancipação – ou tomada de distância – do ‹eu› em relação aos
papéis que ‹detém› e, também, a tendência para o retiro para
a ‹vida privada› em detrimento do ‹engajamento público›);
O individualismo epistemológico faz do indivíduo um sujeito conhecedor separado de seu objeto – que ele tem que
construir –, duvidando daquilo que a realidade lhe propõe,
e procurando fundar as condições de um conhecimento verdadeiro.
De modo geral e em sentido doutrinário, o individualismo é um sistema de convicções e preceitos para a ação,
segundo o qual o indivíduo não está sempre e necessariamente subordinado aos interesses coletivos e, frequentemente, justifica a atitude oposta. Este sistema é identificado
com a cosmovisão burguesa, a que já aludimos. Com efeito,
mesmo antes do século XIX,
“... o individualismo tinha tido uma longa história no
pensamento burguês, tanto secular como religioso.
Um dos efeitos da Ilustração sobre a cultura secular
foi o desenvolvimento de um conceito de homem
83
Nós da Arquitetura
como indivíduo racional ‹escravizado por algumas
instituições e costumes que violavam os princípios
estabelecidos pela razão›. A ignorância e o governo
autoritário estavam unidos e ambos podiam ser der-.
rubados mediante a difusão do conhecimento e da
educação; uma vez superada a ignorância, o homem
seria capaz de construir uma sociedade livre e igualitária baseada na razão.”82
É justamente como doutrina que o individualismo assume
seu aspecto pejorativo já mencionado. O individualismo
burguês é associado ao egoísmo e à falta de solidariedade:
Régis Jolivet conceitua o individualismo como a “doutrina
segundo a qual o indivíduo é a unidade social e não tem
como múltiplos senão pluralidades de indivíduos justapostos
por sua livre vontade. Doutrina segundo a qual o indivíduo
não tem mais que direitos”83.
No sentido metodológico, o vocábulo individualismo
designa uma forma de abordagem dos fenômenos sociais,
que procura explicá-los através do estudo dos indivíduos
que constituem uma coletividade. Conforme Wright, “o
individualismo metodológico é uma reivindicação sobre o
caráter da explicação”84.
Podemos arrolar uma série de argumentos favoráveis à
adoção dessa abordagem. Boudon & Bourricauld, por exemplo, afirmam que “é verdade que explicar um fenômeno
social consiste, em todos os casos, em remontar às ações
82
ABERCROMBIE, Nicholas; HILL, Stephen; TURNER, Bryan S. La tesis de la
ideología dominante. México: Siglo Veintiuno, 1987. p.118. (Tradução Nossa.)
83
JOLIVET, Regis. Vocabulário de Filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 1975. p.123.
84
Ibidem.WRIGHT, Erik O. ; LEVINE, Andrew ; SOBER, Elliot. p.190. (Tradução
Nossa.)
84
Nós da Arquitetura
individuais elementares que o compõem, tome esse fenômeno a forma, por exemplo, de um acontecimento, de um
dado singular, de uma distribuição ou de uma regularidade
estatística, ou em qualquer outra”85. Linton é outro cientista
que destaca a dificuldade de abstrair o estudo do indivíduo
do estudo da sociedade, “embora qualquer indivíduo particular seja raramente de grande importância para a sobrevivência e funcionamento da sociedade a que pertence ou da
cultura que participa, o indivíduo, com suas necessidades e
potencialidades, jaz na base de todos os fenômenos sociais
e culturais”86.
Deste modo, não se pode negligenciar o fato de sociedade
e indivíduo terem a mesma matéria-prima, diferindo apenas
no que diz respeito à quantidade e à combinação, ou seja,
“as duas coordenadas cultura e sociedade se encontram
no mesmo ponto zero: o indivíduo. O lugar que ocupa o
indivíduo no tipo de mundo que descrevem os antropólogos
é, evidentemente, de importância teórica fundamental”87.
Temos, igualmente, a conhecida concepção de Max Weber
que afirmou que:
“... se finalmente me tornei sociólogo, o motivo
principal é pôr fim a esses exercícios com bases
em conceitos coletivos cujo espectro está sempre
rondando. Em outras palavras: a sociologia também
só pode ter origem nas ações de um, de alguns,
ou de numerosos indivíduos distintos. É por isso
85
Ibidem. BOUDON, Philippe ; BOURRICAUD, François. p.1. (Tradução Nossa.)
86
LINTON, Ralph. Cultura e personalidade. São Paulo: Mestre Jou, 1973.
p.19.
87
NADEL, S.F. Fundamentos de antropología social. México: Fondo de Cultura Econômica, 1985. p.106. (Tradução Nossa.)
85
Nós da Arquitetura
que ela é obrigada a adotar métodos estritamente
individualistas.”88
Assim, a partir das contribuições de Weber, constitui uma
observação interessante aquela feita por Wright, ao referirse à plausibilidade de um “individualismo metodológico
marxista”, como desenvolvimento da ideia segundo a qual
“o que vale a pena ser levado a sério no pensamento marxista
possa ser reconstruído segundo o modelo do individualismo
metodológico”89.
88
Ibidem. WEBER, Max. p.1. (Tradução Nossa.)
89
Ibidem.WRIGHT, Erik O; LEVINE, Andrew; SOBER, Elliot.p.190.
86
Nós da Arquitetura
3. Individualismo na Arquitetura
Dentro de uma perspectiva individualista, entretanto,
pode-se considerar que “a própria sociedade existe apenas
na medida em que é evidenciada e compreendida pelos
indivíduos. O que determina o comportamento do indivíduo
não são tanto influências sociais que o moldam diretamente
e o manipulam como se fosse um fantoche, e sim sua
interpretação e percepção dessas influências”90.
A concepção que adotamos para este estudo é a que trata
da coletividade de arquitetos como grupo de referência
simultaneamente comparativo e normativo. Além da maioria
formada por arquitetos anônimos, integram essa coletividade
profissional arquitetos de êxito e renome, e estes podem
ser considerados como modelo para aqueles que aspiram
conquistar semelhante condição. Assim, no âmbito de uma
teorização sociológica, cabe estudar as circunstâncias nas
quais as atitudes peculiares aos arquitetos de renome servem
de referência para os demais integrantes do grupo.
Desenvolvendo esta ideia constatamos, na pesquisa exploratória antes aludida, que o imaginário da profissão na
arquitetura tem um componente essencial: a noção de que
essa é uma atividade de criação. Procurando sintetizar a
manifestação dessa autoimagem, Eugene Raskin explica
que:
“No que diz respeito ao arquiteto, arquitetura é acima
de tudo um processo criativo. Ele tem uma ideia em
sua mente, um efeito, uma emoção, podemos dizer,
que ele quer expressar em termos de estrutura. Sua
intenção de avançar além da mera utilidade para
expressar algo com um maior significado humano é
90
BERRY, David. Ideias centrais em sociologia. Uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. p.29.
87
Nós da Arquitetura
arquitetura, para ele, a despeito do êxito ou malogro
de sua consumação. Para o arquiteto, em síntese, arquitetura é um assunto subjetivo, que depende de
seu propósito. O elemento propósito, assim sendo,
deve encontrar seu lugar em nossa definição de
arquitetura.”91
É fácil verificar que a profissão do arquiteto, ao implicar
a transformação intencional da matéria e do ambiente, exige
criatividade. E a criatividade é uma qualidade valorizada
na cultura ocidental moderna. A atividade de criação aqui
referida – que combina espontaneidade com expressão da
personalidade – é a conceituada na cultura ocidental a partir
do século XV, como resultado do processo de emancipação
do artista: “a espontaneidade do indivíduo é a grande
experiência, o conceito de genialidade e o ideal da obra
de arte como expressão da personalidade genial, a grande
descoberta do Renascimento”92.
É interessante observar que, de modo mais manifesto, o
individualismo se integra à personalidade do profissional da
arquitetura justamente no Renascimento, quando o incipiente
capitalismo italiano começa a configurar a cultura da época,
com ênfase na cultura artística. Como sintetiza Elias Cornell,
“já na época de Brunelleschi se dão feitos que rapidamente
transformam hábitos de construção no seu oposto. A arte de
construir é atribuída a indivíduos individualistas”93. Podemos identificar, no pensamento humanista dos séculos XV e
XVI, o embrião daquilo que hoje denominamos pensamento
91
RASKIN, Eugene. Architecturally speaking. Nova York: Reinhold, 1954. p.89. (Tradução Nossa.)
92
HAUSER, Arnold. A arte e a sociedade. Lisboa: Presença, 1984. p.50.
93
CORNELL, Elias. A expressão arquitetônica da contradição entre a cidade
e o campo no capitalismo pré-industrial. In: Arquitetura e conhecimento, n
3. Brasília: Alva, 1996. p.93.
88
Nós da Arquitetura
moderno, por oposição ao pensamento medieval e arcaico.
E, no que concerne ao tema destas notas, é sugestivo informar que igualmente encontramos no século XV, nos termos
enunciados por Leone Battista Alberti, o conceito ideal-típico do arquiteto criador por excelência. Efetivamente, Alberti, no prólogo de seu De Re Aedificatoria, texto instaurador
da literatura temática da arquitetura, estabeleceu um sintético “perfil” do profissional a que designa como arquiteto:
“Mas antes de prosseguir, entretanto, devo explicar
exatamente a quem me refiro como arquiteto: pois
não será um carpinteiro que eu equipararei aos mais
capacitados mestres em outras ciências; o carpinteiro
nada mais é que um instrumento nas mãos do
arquiteto. Chamarei de arquiteto aquele que, através
de acurados e maravilhosos razão e método, é capaz,
com o pensamento e a invenção, de conceber e, com
execução, de realizar todas estas obras as quais,
por intermédio do movimento de grandes massas, e
da conjunção e reunião dos corpos, podem, com a
maior beleza, se adaptar ao uso do gênero humano;
e, para estar apto a fazê-lo, ele deverá ter um pleno
conhecimento das mais nobres e mais curiosas
ciências. Assim deve ser o arquiteto.”94
Este texto não requer exegese, pois expressa claramente
o que nosso autor pretende dizer. Um profissional dotado
dos atributos que Alberti visualiza no seu arquiteto seria, na
sua capacidade criativa, para todos os efeitos, infalível, e
digno de inveja e êmulo para os colegas. E, como enfatiza
Alberti, em nada comparável a pedreiros ou carpinteiros.
Como enunciei acima, encontramos também no discurso dos
94
ALBERTI, Leon Battista. L’Architettura. Edited by Giovanni Orlandi:
Il Polifilo, 1966. p.3. (Tradução Nossa.)
89
Nós da Arquitetura
humanistas uma primeira ideia do pensamento moderno, a
separação entre dois reinos ontológicos: o mundo natural,
objeto de contemplação e transformação pelo homem, e o
mundo humano, que consiste em um conjunto de liberdades
individuais, destinadas a construir, com sua ação, seu próprio mundo. Como resume Luis Villoro, “essa ideia entranha
a ideia do homem como indivíduo inamovível. Um dos
rasgos do pensamento moderno será, desde então, esse
individualismo”95.
Assim, é moeda corrente nas teorias estéticas ocidentais
a noção de que o ato de criação – seja da obra de arte,
seja de um aperfeiçoamento na cultura material – é um
ato individual. Daí decorre a problemática de encontrar o
vínculo entre o indivíduo criador e o meio social onde se
insere; Arnold Hauser reconhece-o quando observa que
“o indivíduo e a coletividade interpenetram-se de tantas
maneiras e tão confusamente na produção artística, que
as suas relações são impossíveis de exprimir sob a forma
de um dualismo simples”96. Mas encontrar esse vínculo é
uma necessidade da teoria sociológica, mormente em se
tratando da sociologia do conhecimento: Karl Mannheim
desenvolvendo o tema, diz-nos que:
“Não há a menor dúvida de que só o indivíduo é
capaz de pensar. Não existe esta entidade metafísica
denominada espírito grupal, que pensa acima das
cabeças dos indivíduos, ou cujas ideias estes se
limitam a produzir. Mas nem por isso se deve concluir
que todas as ideias e sentimentos que motivam a
conduta de um indivíduo tenham exclusivamente nele
95
VILLORO, Luis. El pensamiento moderno. Filosofía del Renacimiento. México: Fondo de Cultura Econômica, 1992. p.34. (Tradução Nossa.)
96
Ibidem. HAUSER, Arnold. p.45.
90
Nós da Arquitetura
suas origens e possam ser adequadamente explicadas
apenas à luz da sua própria.”97
Uma ampla discussão do assunto encontra também um
obstáculo nos conceitos e hábitos individualistas imperantes
nos meios de arquitetos e artistas em geral. Em muitos de
nós existe o conceito de que a arquitetura é uma questão de
talento individual exclusivamente. Persegue-se a originalidade a todo custo, a criação de formas novas passa a ser um
objetivo em si. Ser diferente dos demais e, se fosse possível,
inventar uma nova arquitetura. Este estado de espírito que,
voltando as costas a toda história, vê na arquitetura uma arte
individual, traduz-se em teorias mais ou menos coerentes,
baseadas na noção da arte pela arte. Não faltam os que defendem a tese de que a arquitetura e as outras artes, na sua
essência, naquilo que as diferencia das outras atividades, independem dos fatores sociais, históricos e ideológicos. Essa
posição estética conduz na prática muitos artistas, arquitetos
inclusive, a desprezarem o estudo da realidade social e cultural do meio.
97
Ibidem. MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Porto Alegre: Globo, 1952.
p.2.
91
Nós da Arquitetura
4. Imaginário na Arquitetura
O comportamento humano visado pela sociologia é,
por definição, o comportamento peculiar aos grupos, mais
que o comportamento peculiar ao indivíduo. Contudo, é
fácil verificar que a perspectiva holista da sociologia não
é suficiente para explicar todos os fenômenos relativos aos
comportamentos sociais, e isto não deve ser interpretado sinal
de inutilidade. Há situações que requerem uma abordagem
dentro da perspectiva individualista, e o tema do imaginário de
algumas profissões, como é o caso da profissão do arquiteto,
recomendam este gênero de análise. Uma hipotética análise
sociológica da produção da arquitetura erudita, por exemplo,
será incompleta se descartarmos o ponto de vista conhecido
como individualismo metodológico – nos termos definidos
por Wright –, já que atitudes de indivíduos isolados nesse
contexto exercem um papel normativo no âmbito do grupo
de referência formado pelos que exercem a atividade. Os
arquitetos constituem um grupo com características que o
diferenciam de outros grupos, e essas características têm
uma visível universalidade dentro do grupo. Uma dessas características é a consciência, manifesta na literatura temática,
de que há um papel do arquiteto na sociedade.
A consciência desse papel, como acontece em tantos outros contextos, condiciona a conduta do arquiteto e as expectativas que os outros têm sobre seu trabalho: assim, na
síntese de Ralf Dahrendorf, “o que reaviva a estrutura das
posições sociais é o comportamento ligado aos papéis. Em
virtude de ser alguém, fazemos certas coisas; mais precisamente, nossa posição social não só nos situa num campo
com outras posições, mas também concedem aos outros
indivíduos expectativas mais ou menos específicas a nosso
92
Nós da Arquitetura
respeito”98. Ao mesmo tempo, a consciência do papel social
o insere no mundo social, que assim se torna objetivo.
O papel social do arquiteto é algo que diz respeito à
competência que ele alega e quase sempre demonstra
possuir, e diz respeito à concordância da sociedade quanto
à consistência da pretensão. Numa sociedade desenvolvida,
essa concordância é uma decorrência da inevitabilidade
da divisão do trabalho. Giddens resume essa relação ao
referir-se, como já vimos em item anterior, na confiança
que tanto o arquiteto quanto o construtor recebem do cliente
que lhes contrata os serviços, mercê da competência que
é atribuída àqueles que têm o conhecimento perito99. Ora,
para o arquiteto – como para qualquer profissional de um
campo disciplinar complexo e incomum –, é importante
ter certeza de que o julgarão detentor de um conhecimento
que o qualifica como um especialista, e dessa forma está
exercendo com qualidade e unicidade o seu papel social.
Aquela autonomia concedida a Mansart não se configuraria
se esse arquiteto não tivesse sua competência reconhecida;
o “conhecimento perito” referido por Giddens é a base da
autoridade de quem reivindica liberdade de ação.
Assim sendo, podemos dizer que, como desenvolvemos
até então, o papel social do arquiteto é o elemento-chave
para a explicação da persistência do individualismo no
imaginário da profissão; aliás, como afirma Dahrendorf descobrir os papéis sociais é o objeto da sociologia:
“No ponto de intersecção entre indivíduo e sociedade
encontra-se o ‘homo sociologicus’, o homem enquanto
portador de papéis sociais pré-formados. O indivíduo
98
DAHRENDORF, Ralf. Ensaios de teoria da sociedade. Rio de Janeiro: Zahar,
1974. p.109.
99
GIDDENS, Anthony. Consequências da modernidade. São Paulo: Unesp,
1991. p.35.
93
Nós da Arquitetura
é constituído por seus papéis sociais, mas estes são por
sua vez o fato ‹irritante› da sociedade. Para a solução
de seus problemas, a sociologia necessita sempre
da referência aos papéis sociais como elementos de
análise; seu objeto consiste no descobrimento dos
papéis sociais.”100
O tema da importância social do indivíduo devolve à cena
a questão da mentalidade burguesa, já discutida. Romero
observa que:
“Se supõe que o indivíduo tem um destino distinto
que servir à sociedade. Em uma sociedade coerente,
em que as estruturas oferecem ao indivíduo uma série
de caminhos que este reconhece como legítimos, o
serviço da sociedade aparecia sempre, na mentalidade
burguesa, justificação suficiente para a existência. O
serviço implicava transcedência na medida em que
se fazia para alguém considerado mais valioso que o
indivíduo.”101
O individualismo romântico, que subjaz no imaginário da
profissão da arquitetura, vincula-se ao papel social atribuído
ao arquiteto modernista. Por outro lado, aqueles “fatores
sociológicos que introduzem complicações”, mencionados
por Ehrenzeig, são indicadores do compromisso do arquiteto
com a relevância social102. Os edifícios são elementos da
cultura material que transcendem ao plano utilitário de sua
ocupação: eles carregam, em maior ou menor intensidade,
conteúdos expressivos com os quais a coletividade pode
100
Ibidem. DAHRENDORF, Ralf. p.41-42.
101
ROMERO, José Luis. Estudio de la mentalidad burguesa. Madri: Alianza
Editorial, 1987. p.153. (Tradução Nossa.)
102
EHRENZEIG, Anton. A ordem oculta da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.
94
Nós da Arquitetura
se identificar. Num momento inspirado, Eugene Raskin
escreveu que “quando o arquiteto coloca seu lápis sobre o
papel, ele está fazendo mais que projetar um edifício. Ele
está descrevendo sua sociedade para si mesmo e para o
futuro”103.
Com efeito, há mais que uma mera descrição nesse
processo: há, igualmente, uma operação hermenêutica, há
uma interpretação da sociedade, do sistema de valores e
símbolos, e do contexto onde a mesma está inserida. Tais
descrições e interpretações, naturalmente, serão marcadas
pela ótica de quem as elabora, que não será, necessariamente,
a mesma adotada pelos demais componentes do grupo; mas,
também, não será, necessariamente, um ponto de vista que
não possa ser compartilhado. Estas alternativas constituem o território para análises sociológicas interessantes
quando se trata de certas profissões, como a do arquiteto.
Ao falarmos nesse aspecto hermenêutico do projeto –
que poderíamos estender outras modalidades de criações
artísticas – aludimos à concepção de Berry, segundo a qual
“a interpretação é produzida pelo indivíduo e não pela
sociedade, embora coações sociais ainda estejam operando
sobre o mesmo. Todavia, na perspectiva individualista, não
se trata apenas de que o indivíduo age de acordo com a sua
definição da situação. Em suas ações, ele procura influir no
modo pelo qual outras pessoas interpretam e definem os
acontecimentos”104.
Este papel hermenêutico é explicitamente reivindicado
nos manifestos pela universalização da concepção modernista na arquitetura do século XX. A tarefa de criador, que
se confere aos artistas e arquitetos, implica reconhecer a
103
RASKIN, Eugene. Architecture and People. Englewood Cliffs: Prentice
Hall, 1974. p.5. (Tradução Nossa.)
104
BERRY, David. Ideias centrais em sociologia. Uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. p.30.
95
Nós da Arquitetura
importância da individualidade no processo de invenção:
Acerca deste tema, Linton nos esclarece que:
“Como simples unidade no organismo social, o indivíduo perpetua o status quo. Como indivíduo, ajuda a
mudar o status quo, quando a necessidade surge. Uma
vez que nenhum ambiente social é jamais completamente estático, nenhuma sociedade pode sobreviver
sem o inventor ocasional e sua habilidade de encontrar soluções para novos problemas”.105
Do indivíduo criador, ou da coletividade de indivíduos
criadores, se esperam atos que impliquem o acréscimo, a
realização da diferença, “a ação depende da capacidade do
indivíduo de criar uma diferença em relação do estado de
coisas ou curso de eventos preexistente. Um agente deixa de
o ser se perde essa capacidade para criar uma diferença, isto
é, para exercer alguma espécie de poder”106.
Há outras maneiras de enunciar este elemento de diferenciação do indivíduo que se sobressai no grupo. Bertrand
Russel, por exemplo, nota que “são muitas as maneiras pelas
quais o indivíduo chega a diferir da generalidade dos membros de sua comunidade. Pode ser excepcionalmente anárquico ou criminal, pode estar dotado de raro talento artístico,
pode ter o que, com o tempo, chegue a ser reconhecido como
uma nova concepção religiosa ou moral, e pode ser sido favorecido com uma capacidade intelectual extraordinária”107.
Cabe antes de tudo, registrar uma consideração pertinente
105
LINTON, Ralph. Cultura e personalidade. São Paulo: Mestre Jou, 1973.
p.34.
106
GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p.11.
107
RUSSEL, Bertrand. Autoridad y individuo. México: Fondo de Cultura
Econômica, 1992. p.45.
96
Nós da Arquitetura
na questão do individualismo feita por Castoriadis, quando
coloca que:
“Um individualismo metodológico seria, por oposição
a um individualismo substancialista ou ontológico,
um procedimento que – como faz o faz explicitamente
Weber – se recusa a fazer perguntas do tipo: O que
vem ‘primeiro’, o indivíduo ou a sociedade? A
sociedade produz os indivíduos ou então os indivíduos
produzem a sociedade? E afirma que a estas questões
‘ontológicas’ não somos obrigados a responder, pois a
única coisa que nos é eventualmente compreensível é o
comportamento do indivíduo efetivo ou ideal-típico –
sendo esse comportamento tanto mais compreensível
quanto é racional pelo menos instrumentalmente
racional. Mas o que é um indivíduo efetivo – e o que
é racionalidade efetiva.”108
108
CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto III: O mundo fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p.57.
97
Nós da Arquitetura
5. Conclusões: O Individualismo como Genialidade na
Arquitetura
A racionalidade de que trata o presente texto é aquela que,
salvo indicação em contrário, figura no âmbito discursivo
da profissão do arquiteto, e que serve de suporte para
enunciados que, mesmo não o reconhecendo, são derivações
do substrato ideológico da atividade. Para o indivíduo que
cria a diferença, ou que se vê como capaz de fazê-lo, ou que
espera ser reconhecido como alguém apto a fazê-lo, marcar
sua própria individualidade, ainda que romanticamente,
é um recurso de sobrevivência. Sem exagero, podemos
afirmar que na arquitetura, como em outros campos que
exigem criatividade, o modelo por excelência do arquiteto é
o gênio. O gênio é sempre uma individualidade. O uso deste
conceito na caracterização de artistas provém, como nota
Erwin Panofsky da revolução cultural ocorrida nos séculos
XV e XVI:
“A teoria da arte do Renascimento, vinculando a
produção da Ideia à visão da natureza, e situando-a
doravante numa região que, sem ser ainda a da
psicologia individualista, já não era a da metafísica,
dava o primeiro passo em direção ao reconhecimento
daquilo que nos habituamos a chamar de ‘Gênio’.
Aliás, os pensadores do Pré-Renascimento desde
o início havia pressuposto, em face da realidade do
objeto de arte, a realidade subjetiva do artista...”109
O conceito de gênio é útil para fins de explicarmos o caráter
normativo dos grupos de referência. A essa circunstância se
aplica, mutatis mutandi, a observação de Merton sobre a
109
PANOFSKY, Erwin. Idea: a evolução do conceito do belo. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p.67.
98
Nós da Arquitetura
abordagem teórica do papel do gênio no campo da ciência,
enfatizando que:
“Ao conceber o gênio científico como um indivíduo
que representa por si só o equivalente funcional a uma
quantidade e uma variedade de talento frequentemente
menor, a teoria sustenta que o gênio desempenha
um papel destacado no avanço da ciência e às vezes
também, pela excessiva autoridade que lhes atribui,
trava seu ulterior desenvolvimento.”110
Isto pode ser confirmado no emotivo depoimento de
Reyner Banham, autor de diversas obras sobre a arquitetura
do século XX, quando mencionou que:
“.. into-me comprometido para sempre com os mestres do movimento moderno. Tive a grande felicidade
de entrar em contato com quase todos eles – Le Corbusier, Frank Lloyd Wright, Walter Gropius, Richard
Neutra, Mies van der Rohe – e para mim, assim como
para três gerações de arquitetos, se converteram em
uma espécie de pais que infundiam temor e suspicácia, afeto, respeito e o sofrimento lógico derivado das
diferenças entre gerações. Agora, quando todos eles
já morreram, se experimentam quase inevitavelmente alguns sentimentos de liberação e de perda a um
mesmo tempo. Enquanto estavam vivos vinham a ser
os tiranos do movimento moderno que monopolizavam para si toda a atenção e impediam o reconhecimento de outros talentos – nem sempre de inferior
qualidade.”111
110
MERTON, Robert King. Sociología de la ciencia. Madri: Alianza Universidad, 1977. p.476. (Tradução Nossa.)
111
BANHAM, Reyner Guía de la arquitectura moderna. Barcelona: Blume,
1979. p.1. Tradução nossa.
99
Nós da Arquitetura
Os arquitetos que se arvoram na condição porta-vozes de
uma nova doutrina e, nesta condição, de membros de grupos de referência, podem não estar conscientes do papel que
representam no cenário da cultura da profissão? Este papel
não pode ser exercido fora do quadro do individualismo. No
modo de verem a si próprios, os arquitetos não entendem
esse individualismo como forma de alienação, mas como
modalidade de incorporação com a sociedade; na verdade,
essa incorporação é a conceituada por Durkheim quando nos
fala da solidariedade orgânica, no seu estudo acerca da “divisão do trabalho social”. Neste contexto, Boudon e Bourricaud observaram que, para Durkheim, “o individualismo
não contradiz o acordo e a cooperação: chega a ser uma condição para que ocorram”112.
Concluindo o presente estudo, podemos dizer que a
incorporação à sociedade através do individualismo é a
mesma modalidade de incorporação de que nos fala Agnes
Heller:
“Com efeito, a individualidade humana não é simplesmente uma ‘singularidade’. Todo homem é singular,
individualmente, e, ao mesmo tempo, ente humano-genérico. Sua atividade é, sempre e simultaneamente, individual-particular e humano-genérica. Em outras palavras: o ente singular humano sempre atua segundo
seus instintos e necessidades, socialmente formados,
mas referidos ao seu Eu, e, a partir dessa perspectiva,
percebe, interroga e dá respostas à realidade; mas, ao
mesmo tempo, atua como membro do gênero humano e seus sentimentos e necessidades possuem caráter
humano-genérico.”113
112
113
Ibidem. BOUDON, Philippe et BOURRICAUD, François. p.83.
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p.80.
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Vilém Flusser e a aposta no jogo
Pedro Luís Alves Veloso
Ainda que o filósofo Vilém Flusser (1920-1991) não esteja
mais entre nós, não há dúvidas que ele permaneça como um
dos nós fundamentais do pensamento contemporâneo. Se
pretendemos neste texto estabelecer um diálogo com Flusser,
não o fazemos com nenhuma pretensão mediúnica, mas
apenas levando adiante a possibilidade de nos realizarmos
nos outros – proposta não apenas defendida pelo filósofo,
como também comprovada pela construção coletiva do
conhecimento humano. Se, por um lado, estamos limitados
pela estrutura linear e discursiva que a tessitura de um texto
impõe, por outro, acreditamos que a conexão de nossas
ideias com as propostas de Flusser e de nossos leitores possa
estimular novos diálogos.
Em termos práticos, nos dedicaremos a analisar as nuances
e contradições do pensamento do filósofo a partir de uma
revisão temática, organizando a sua multifacetada teoria dos
jogos em uma simples sequência de tópicos. Entretanto, esse
esforço de revisão e reorganização não tem por finalidade
a reconstituição cronológica do jogo no pensamento flusseriano, mas a compreensão das possibilidades de ação no
mundo contemporâneo, em meio às suas radicais transformações técnicas. Isto é, interessa-nos estabelecer, nessa
leitura, um debate sobre o papel do jogo como uma forma
ampliada de diálogo que parece ser cada vez mais possível e
necessária nos dias de hoje – e daí a justificativa do presente
histórico como tempo verbal adotado.
113
Nós da Arquitetura
Vilém Flusser é um filósofo tcheco-alemão que se torna
um migrante após sua cultura “de nascimento” ter sido
despedaçada pelo nazismo. Pensador polemista e instigante,
Flusser trabalha em uma agenda intelectual por toda a vida:
a construção de uma síntese filosófica que confronte a
fenomenologia e o existencialismo a modos de pensamento
“calculantes”114. Ao diagnosticar a crise de uma realidade
fundamentada na objetivação do homem e no desprezo do
mundo concreto, Flusser se dispõe a “existenciar” os diversos
campos do conhecimento como atividade de resistência.
Nessa tensão constante entre um pensamento poético e
um calculante115, Flusser estabelece um modus operandi
que recorre aos diversos campos disciplinares disponíveis,
apropriando-se e reconstruindo diversos conceitos alheios.
Migrante situado em um mundo “sem chão”, Flusser se
apropria do conceito de jogo em duas frentes: como estratégia para lidar tanto com sua (a) própria condição existencial,
quanto com a (b) condição existencial do homem contemporâneo ou, nas palavras de Flusser, o homem “pós-histórico”.
Nota-se que ambas as apropriações são interdependentes e
Flusser revela em sua autobiografia que sua formação intelectual em Praga o estimula a “absorver todas as tendências disponíveis dialeticamente,
em especial as tendências aparentemente não dialéticas, ‘fenomenologia e
existencialismo’, de um lado, e ‘lingüística e neo-positivismo’” (2007a, p.28).
Afirmações como “existenciar o neopositivismo” (p.96), “unificar existencialmente Wittgenstein e Husserl” (p.137), e “a possibilidade de uma síntese
entre fenomenologia, lógica formal e marxismo como método filosófico do
futuro” (p.155) revelam o esforço de sintetizar um pensamento capaz de
lidar com uma condição existencial emergente. Seus ensaios transitam entre
temas como a linguagem, a comunicação e as novas mídias, adotando, como
componente calculante, a semiótica, a teoria da informação e a cibernética.
Uma vez que a fenomenologia defende a irredutibilidade do ser à ciência e à
tecnologia, a adoção desses componentes situa sua filosofia em um campo
de tensão constante. Ao longo desse capítulo, alguns aspectos dessas transições serão debatidos. Para explorar a relação específica entre Flusser e a
cibernética, ver artigo “Pensamento Poético e Pensamento Calculante”, de
Erick Felinto (2013).
115
Termos utilizados por Erick Felinto (2013).
114
114
Nós da Arquitetura
tratam o jogo como território sobre o qual (a) Flusser ou (b)
o homem pós-histórico podem negociar sua liberdade ou se
deparar com limites para sua existência. Essas duas frentes
indicam também a posição ambígua do jogo: é tanto (a) método de seu pensamento116 quanto (b) conceito constituinte
de sua análise do mundo contemporâneo. Em ambos os casos, evidencia-se o jogo como um sistema de determinação
e de emancipação em um mundo dominado pela técnica. Em
uma síntese apropriadamente ambígua: o jogo é o domínio
no qual se deve buscar a liberdade.
116
No âmbito do pensamento de Flusser como jogo, vale destacar o trabalho da pesquisadora Eva Batlicková, em particular seu artigo “A insustentável
leveza de pensar” (2006). A atualidade do tema jogo se revela também no
recente artigo “O filósofo que gostava de jogar”, de César Baio (2013).
115
Nós da Arquitetura
1 O jogo como modo de vida
Não é incidental que Vilém Flusser tenha intitulado sua
autobiografia filosófica de “Bodenlos” (2007a [1973]117),
que significa sem chão ou sem fundamento. Após ter a
vida marcada pelo desmanche da cultura tcheca e pelo
holocausto, ele se contamina por um sentimento de perda
de sentido das coisas, da razão humana e da própria história
(FLUSSER, 2007a, p.58). Desvinculado de sua pátria, família, posição social, estudo da filosofia, vocação de escritor
e fé no marxismo, Flusser atesta uma ruptura do solo que
o sustentava. Essa perda aproximou Flusser de uma visão
sistêmica radicalmente esvaziada de significados e valores.
Como descreve o filósofo,
(...) quando isto se dá, é preciso que se esconda o novo
entusiasmo que isto cria. O entusiasmo da observação distanciada. Não a desvalorização dos valores,
nem muito menos a transvaloração dos valores, mas
a indiferença dos valores. Tudo é indiferente, portanto
tudo tem o mesmo valor para ser observado. Isso entusiasma. Os nazistas são tão interessantes quanto as
formigas, a física nuclear tanto quanto a Idade Média
inglesa, o próprio futuro tanto quanto o futuro da parapsicologia. Isto lembrava Schopenhauer. Mas lembrava também a atitude científica e o inferno. Abria
os horizontes. Abria, por exemplo, a cultura inglesa e
americana, até então ignoradas. Mas abria mais radicalmente a convicção de que todo provincianismo é
resultado não de situação geográfica, mas de enquadramento. Não importa se praguense ou londrina, a
117
Embora o livro tenha sido publicado em 1992 e, provavelmente tenha
sido escrito ao longo da vida de Flusser, enquanto narrador autobiográfico,
ele se situa explicitamente na França, em 1973 (p.55), olhando para sua trajetória brasileira (1941-1972)
116
Nós da Arquitetura
gente é provinciana se tem fundamento. Mas quem foi
arrancado da ordem vê o mundo todo.
O que vê não é ordem, mas caos sobre o qual se imprimem, ridiculamente, várias ordens. É um prazer
observar como tais ordens, quais amebas em solução
líquida, se devoram mutuamente, se dividem, e como
cada qual se toma por centro (FLUSSER, 2007a,
p.37).
Ao diagnosticar o desmantelamento dos “modelos de
vivência, do conhecimento, e dos valores de Praga” e “da
estrutura que ordena tais modelos” (a estrutura do Ocidente),
Flusser (2007a, p.50) atesta a ascensão de uma realidade
caótica que se move automaticamente. Nota-se que esse
esmagamento de sentido da realidade parece promover uma
visão a tal ponto distanciada e indiferente, que possibilita
a compreensão dos eventos circundantes, a exemplo da
própria guerra, como um jogo arbitrário ou como “amebas
em solução líquida”. Ao situar os acontecimentos enquanto
possibilidades inerentes a esse jogo arbitrário e às suas regras
de funcionamento, o filósofo aponta para sua autonomia em
relação a causas externas e aos propósitos humanos.
Em “Bodenlos”, o jogo não apenas é utilizado para descrever os acontecimentos que circundam o filósofo em sua
trajetória de migrante (da guerra à cultura brasileira), mas
também se torna uma estratégia explícita para construir seu
pensamento. Afinal, para Flusser, se a realidade opera sistemicamente e ludicamente, caberia à filosofia compreender
também o jogo como seu princípio de funcionamento.
Citaremos brevemente a proposta de uma Filosofia-Jogo, que Flusser empreende no Brasil. Basicamente, ele
busca um posicionamento filosófico acima dos diversos
pensamentos, extraindo e articulando seus diversos trechos
para o próprio proveito, de maneira distanciada, passiva e
117
Nós da Arquitetura
irresponsável. Portanto, esse filosofar “de cima” pretende
situar os diversos modos de pensamento como peças da
Filosofia-Jogo. Segundo Flusser (2007a, p.46),
Não se duvida de nada, mas as dúvidas dos outros são
objetos de jogo. Os problemas filosóficos são como
problemas enxadrísticos, apenas mais divertidos,
porque escondem melhor o caráter lúdico que o
caracteriza. É desta maneira que se filosofava em
São Paulo. Os filósofos não passavam de pedras no
tabuleiro da filosofia.
Em experimentos filosóficos, Flusser se apropria obsessivamente de argumentos divergentes de modo experimental, seja sequencial ou simultaneamente, para promover
a dissolução de suas ideologias e valores118. Mas esses experimentos de deslocamento logo são abandonados devido
ao excessivo teor reducionista que adquirem em relação à
cultura (FLUSSER, 2007a, p. 69). Entretanto, essa relação
entre filosofia e jogo (em particular, o xadrez) será um tema
recorrente da produção teórica do filósofo.
118
Por exemplo, ao compreender, a partir de Ludwig Wittgenstein e de
Franz Kafka, que a razão pura é um sistema fechado e autorreferente, incapaz de acessar a vida, Flusser se propõe a “separar o pensar do próprio viver,
e assumir distância perante o próprio pensamento” (2007a, p. 48). Nesse
projeto inicial, ele utiliza o pensamento oriental como método de “transformação do pensamento em objeto do não-pensamento” (2007a, p. 52).
118
Nós da Arquitetura
2 A língua como jogo
Em seguida, Flusser decide se engajar na cultura brasileira.
Ao reconhecer a língua brasileira como produto e produtora
da própria cultura brasileira, Flusser decide articular seu
pensamento em um jogo com a língua. Segundo ele,
A decisão em prol de um engajamento na cultura
brasileira era, fundamentalmente, decisão em prol
do engajamento na língua brasileira. Isto significava
que a gente absorvia tal língua não para usá-la nos
contatos diários com os brasileiros, mas para usá-la
como instrumento para articular-se. Em outros termos:
o português brasileiro não era vivenciado como língua
falada no Brasil, mas como matéria prima que a gente ia
trabalhar para realizar a vida. Estabelecia-se, destarte,
desde o início, aquela dialética característica para a
relação entre o sujeito que visa informar a matéria e
a matéria a ser trabalhada (FLUSSER, 2007a, p.71).
Nesse sentido, seu pensamento passa a operar em uma
via de mão dupla, modificando a língua ao mesmo tempo em
que é modificado por ela. Essa reciprocidade aponta para um
tema fundamental do pensamento flusseriano: a estruturação
do pensamento e da própria realidade a partir da língua119.
Explorando essa dialética, Flusser (2007a, p.75-78) passa
a caracterizar e diferenciar o português de outras línguas,
como o inglês e o alemão. Esse processo aponta para
estratégias filosóficas específicas que devem ser utilizadas
119
A relação entre língua e pensamento/realidade acompanha duas obras essenciais de Flusser. Em seu livro “Língua e realidade” (2007b [1963]), Flusser
tensiona a teoria linguística de Ludwig Wittgenstein com a fenomenologia de
Edmund Husserl, estabelecendo um método de análise linguístico próprio.
Na obra “A Fenomenologia do brasileiro” (1998[1972]), essa dialética entre
língua e realidade é apresentada em um estudo da cultura brasileira.
119
Nós da Arquitetura
frente aos seus aspectos sintáticos, semânticos, ortográficos,
fonéticos e frente à estabilidade de suas regras constituintes.
A descrição da língua portuguesa é, nesse momento,
sinônimo do próprio campo de ação da filosofia flusseriana,
da estrutura aberta sobre a qual deve atuar.
Prosseguindo com essa descrição de seu campo de ação,
Flusser (2007a, p.83) define o ensaio como forma adequada
de escrita, reconhecendo-o como possibilidade de manipular
a língua e a cultura de modo pleno. Em seguida, investe no
estabelecimento específico das regras rítmicas, semânticas,
silábicas e das mensagens dos textos que pretende escrever.
Não é necessário aqui detalhar tais ritmos, mas apenas
constatar a formulação de um território para um jogo
filosófico adequado à realidade identificada pelo filósofo.
Segundo ele:
Isto ia ser, doravante, o “estilo” da gente: três níveis
rítmicos, com jogo praticamente ilimitado de simpatias
e antipatias entre os níveis [silábico, semântico e da
mensagem]. Destarte, a língua portuguesa passou
a ser instrumento apaixonante para jogo infinito,
instrumento este que mudava, ele próprio, ao longo
do jogo. E com isto a própria gente mudava. Em
outros termos: a gente se transformava, disciplinada e
entusiasticamente, em ensaísta brasileiro.
(...)
Recapitulando: a escolha dos ritmos foi imposta pela
dialética entre a língua portuguesa e a estrutura linguística
que informava a gente, e os temas dos ensaios que resultavam
de tal escolha foram impostos pelo ritmo. Mas dado o ritmo,
todos os temas têm sido e continuarão a ser variações de
um único: o problema do engajamento a partir de uma
situação sem fundamento. Isto é assim porque a própria vida
120
Nós da Arquitetura
da gente (vida-ensaio) é variação desse único tema, o qual
pode aforisticamaente ser formulado como: “busca da fé na
desgraça” (FLUSSER, 2007a, p.82-83).
121
Nós da Arquitetura
3 O jogo como conceito
Na década de 1960, o “Suplemento Literário” do “Estado
de São Paulo” se torna um laboratório privilegiado para
o desenvolvimento dos ensaios de Flusser120. O filósofo
justifica tal fato tanto pela importância do suplemento no
contexto brasileiro, quanto pela sua estrutura, que era
adequada ao seu jogo linguístico. Mais do que levantar
detalhes históricos dessa relação, pretende-se, aqui, apontar
que, nesse laboratório, Flusser desenvolve o jogo não
apenas como método de pensamento/escrita, mas também
como objeto de suas especulações. Nesse sentido, marca
um processo de ampliação do jogo como tópico de suas
investigações.
Em clara referência ao elogio ao jogo proposto pelo
historiador Johan Huizinga (1949 [1938]), Flusser publica o
ensaio “Jogos” (1967)121. Enquanto Huizinga resgata, na sua
obra “Homo Ludens”, a importância cultural da atividade
lúdica na formação do homem pré-industrial, como atividade que se contrapõe ao trabalho, Flusser se situa em uma
posição prospectiva, utilizando o homo ludens e o jogo para
definir um modo de vida “pós-histórico”.
Como é recorrente em toda a sua filosofia, Flusser se
apropria de categorias objetivas de análise em função de
uma perspectiva fenomenológica. Flusser se aproxima dos
movimentos de objetivação da arte, tomando como marco a
120
Ver, por exemplo, a coletânea de ensaios “Ficções Filosóficas” (1998).
121
O ensaio “Jogos” não é o primeiro a lidar com o tema do jogo ou do jogador, mas é apresentado por tratar explícita e detalhadamente o tema. Como
exemplo anterior, ver o ensaio “Do Empate”, de 1963, ou o ensaio“5...C x B?“
de 1964 (in FLUSSER, 1998).
122
Nós da Arquitetura
teoria da informação122. Em sua origem, a teoria da informação
se baseia na definição de um modelo matemático para compreender e analisar a transmissão de uma mensagem em um
canal de comunicação. Ela adquiriu grande importância no
campo da estética, como instrumento para propor estratégias de subversão às estruturas convencionais da linguagem,
para debater o comportamento e alienação dos indivíduos na
sociedade de massa, ou mesmo, para medir as probabilidades
comunicativas dos processos artísticos. Flusser (1967, p.6)
também se apropria e subverte a teoria da informação,
associando-a à compreensão do potencial existencial do
jogo.
O aspecto analítico da compreensão dos jogos se
evidencia na sua decomposição em categorias advindas da
teoria da informação. Como afirma Flusser (1967, p.2):
Definirei termos. Que “jogo” seja todo sistema
composto de elementos combináveis de acordo com
regras. Que a soma dos elementos seja o “repertório
do jogo”. Que a soma das regras seja a “estrutura do
jogo”. Que a totalidade das combinações possíveis do
repertório na estrutura seja a “competência do jogo”.
E que a totalidade das combinações realizadas seja o
“universo do jogo”.
Nota-se que os quatro atributos principais dos jogos –
elemento/repertório, regra/estrutura, competência e universo
– são apropriações explícitas ou desdobramentos da teoria
da informação. A abrangência de tais categorias é notada nos
122
Destaca-se aqui a estética informacional desenvolvida por Max Bense
e Abraham Moles nas décadas de 50 e 60. Flusser não apenas conhece a
obra de Moles, mas também é seu amigo (ver VILÉM FLUSSER, 2010). Vale
ressaltar que a teoria da informação aproxima-se da arte também por meio
de pesquisadores da semiótica, como é o caso das pesquisas do semioticista
Umberto Eco ou de Décio Pignatari.
123
Nós da Arquitetura
próprios exemplos de jogos utilizados no texto: o xadrez, o
pensamento brasileiro e a ciência natural.
Seguindo a análise, Flusser caracteriza os jogos a
partir de sua mutabilidade e limites. Por definição, um
jogo tem que ser limitado, o que garante a “especificidade
da sua competência”, afinal, o jogo ilimitado é injogável.
Aproximando-se da leitura de Umberto Eco (1991 [1962])
da teoria da informação e de seu conceito de obra aberta,
Flusser classifica os jogos como fechados ou abertos123. Em
jogos fechados, a imutabilidade do conjunto de elementos e
de regras (repertório e estrutura), faz com que a competência
tenda a coincidir com seu universo – isto é: o jogo se torna
facilmente esgotável. A definição de Flusser de jogo aberto
apresenta uma clara afinidade com o debate de Eco sobre
a poética da abertura proposta pela arte contemporânea124.
Para Flusser, a ideia de jogo aberto aponta justamente
para a possibilidade de superar modificar os elementos e
a própria estrutura do jogo, com o intuito de subverter sua
competência – isto é: ampliar as possibilidades de jogadas
possíveis. Portanto, a ambiguidade do jogo aberto é que ele
passa a se caracterizar como um agir limitado por regras que
são alteradas pela própria ação.
Essa ampliação de um jogo envolve dois processos:
o meta-jogo e a modificação do jogo. Uma vez que cada
jogo ocorre dentro de outro jogo (o meta-jogo), ele pode
apontar para a ampliação da competência do próprio metajogo, contaminando-o com suas possibilidades. Ao mesmo
123
Vale destacar novamente um processo de ampliação. Enquanto a teoria
de Umberto Eco opera no campo poético das artes e da literatura, Flusser
compreende a existência humana em suas diversas manifestações.
124
Além de reconhecer o caráter de abertura inerente à obra de arte e à sua
interpretação (abertura de 1º grau), Umberto Eco se dedica a analisar o ímpeto da arte contemporânea de subverter os sistemas linguísticos convencionais em prol de mensagens estéticas ambíguas que permitam estimular a
participação do fruidor (abertura de 2º grau).
124
Nós da Arquitetura
tempo em que o xadrez ocorre no âmbito do pensamento,
ele se coloca como possibilidade de ampliação do próprio
pensamento. Desse modo, a transformação se coloca como
um processo bottom up que transita entre os diversos
níveis de hierarquia (jogo, meta-jogo, meta-meta jogo
etc.). O segundo processo remete a uma transformação
informativa que ocorre de fora para dentro do jogo. Por
meio da incorporação de elementos externos (ruído) ou por
meio da crítica aos elementos correntes, o jogador modifica
a fronteira do próprio jogo. Nesse sentido, se coloca a
interação e contaminação horizontal entre jogos distintos
como procedimento para a modificação de suas estruturas.
Em suas diferentes formas, a abertura do jogo é um processo
que se vincula necessariamente aos demais jogos e aos
próprios jogadores, tornando-se uma plataforma para uma
ação coletiva livre.
Essa oscilação de um jogo que tanto pode dominar como
libertar o jogador aponta para “uma nova visão sobre os
problemas da liberdade e do engajamento” (FLUSSER, 1967,
p.5). Portanto, a aposta de Flusser parte da compreensão
da existência como um jogo e da definição de estratégias
que reivindiquem a liberdade. Mais especificamente, essas
estratégias se associam à disposição para participar de vários
jogos, à interação com outros sujeitos por meio desses jogos
e, principalmente, à abertura de tais jogos. A liberdade se
coloca como conquista humana intersubjetiva (lida com
outros sujeitos) que ocorre no território sistêmico dos jogos
(lida com suas regras e determinações).
125
Nós da Arquitetura
4 O jogo brasileiro
Na conclusão de seu livro “Fenomenologia do brasileiro”
(1998 [1972]), Flusser retoma o tema da crise na cultura
ocidental, associando-o à sua eminente teoria dos jogos.
Vale lembrar que, em sua biografia, Flusser associa a guerra
a uma a ampla crise que estaria despedaçando a ordem ou
a racionalidade subjacente à sua realidade. Por sua vez,
na “Fenomenologia do brasileiro”, ocorre uma inversão e
essa razão se torna a essência da crise. Ele se proxima dos
diagnósticos da fenomenologia e da filosofia da linguagem,
caracterizando um “erro fatídico” da racionalidade ocidental
que, embora escondido por milênios (desde Platão e desde
o advento da teoria), teria vindo à tona e se propagado no
mundo contemporâneo. Afinal, segundo o autor, o mundo
estaria dominado por uma estrutura de objetivação do
homem e de encobrimento da realidade concreta, levando a
humanidade a um abismo.
Embora o pensamento formal/calculante seja parte da
ideologia progressista do ocidente, Flusser reconhece que
modos específicos de apropriação do mesmo apontam para
a possibilidade de superação dessa crise. Nesse sentido, ao
estabelecer uma relação superficial e subversora com a
ideologia progressista, a cultura brasileira disponibilizaria
elementos do pensamento de resistência. Entre esses elementos, se destaca o jogo como fundamento tácito da cultura brasileira, e o brasileiro como protótipo de um novo tipo
humano: o jogador ou o homo ludens.
Para compreender as peculiaridades desse homo ludens,
Flusser (1972, p.169-170) descreve três possíveis estratégias
do jogador: (1) jogar para ganhar, arriscando-se a perder (2)
jogar para não perder, diminuindo seus riscos, ou (3) jogar
para mudar o jogo. As duas primeiras apontam para uma
integração ao universo do jogo, situando-o como campo de
126
Nós da Arquitetura
determinação. O homo ludens se emancipa do pensamento
linear pela estratégia três, que reafirma a possibilidade de
modificar a estrutura do jogo por meio de sua abertura.
Essa abertura só se torna possível quando o jogador se
coloca acima do jogo, compreendendo-o como um elemento
constituinte de seu próprio universo e não mais como o
próprio universo.
Portanto, essa teoria existencial dos jogos já adquire aqui
um caráter de síntese das diversas propostas já elaboradas.
Podemos delinear, preliminarmente, os elementos básicos
que definem sua estrutura: a existência de uma crise, a
definição do jogo como campo de dominação, a possibilidade
de posicionamento acima desse jogo e, por fim, o modelo
existencial do jogador, capaz de subverter o jogo em prol da
liberdade.
127
Nós da Arquitetura
5 O jogo pós-histórico
Após seu retorno à Europa em 1972, Flusser passa por
um período de reconstrução de sua filosofia. Até então,
grande parte de seus esforços intelectuais se voltavam à
filosofia da linguagem e à questão da tradução. A ascensão
de uma economia pós-industrial em paralelo à difusão das
tecnologias da informação e comunicação nos diversos
campos do conhecimento humano lhe apresenta um cenário
com novas questões. Flusser extrapola suas inquietações
com a linguagem, tensionando sua abordagem existencialista
com as teorias da comunicação e a cibernética. A dimensão
fenomenológica continua sendo o motor de suas análises,
de modo que, quando trata da propagação das novas mídias
e do computador, o faz tendo em vista a formação de um
tecido artificial que modifica a existência do homem.
Na década de 80, ele lança a trilogia composta pela “Póshistória” (2011 [1983]), pela “Filosofia da Caixa-preta”
([1983]) e pelo “O universo das imagens técnicas” ([1985]),
que sintetiza as ideias do filósofo nessa nova etapa125.
Voltemos aqui a um dos elementos básicos propostos
por Flusser em suas teorias dos jogos: a crise. Se na
“Fenomenologia do brasileiro”, Flusser define a crise a
partir de uma razão objetiva que desemboca no pensamento
linear e histórico, com o livro “Pós-história”, ele incorpora
as questões da sociedade pós-industrial. Ao atualizar sua
filosofia, Flusser desloca o limite dessa crise para um
pensamento que teria se desdobrado do modelo linear e
histórico: o pensamento sistêmico (ou pós-histórico). Ele
inicia essa redefinição da crise, buscando estabelecer um
esquema teórico capaz de abranger tanto o holocausto
quanto os recentes processos de massificação telemática.
125
Tais obras sintetizam diversos temas desenvolvidos ao longo da década
de 70, como sua teoria da comunicação e teoria dos gestos.
128
Nós da Arquitetura
Segundo Flusser (2011, p.25), os processos de manipulação
técnica do homem
São todos, tal qual Auschwitz, caixas pretas que funcionam com engrenagens complexas para realizarem
um programa. Funcionam, todos, segundo a inércia
que lhes é inerente, e tal funcionamento escapa, a partir de um dado momento, ao controle dos seus programadores iniciais. Em última análise tais aparelhos
funcionam, todos, no sentido de aniquilarem seus funcionários, inclusive seus programadores. Necessariamente, porque objetivam, deshumanizam o homem.
Esse novo esquema teórico de uma crise e sua relação
com a técnica se torna ainda mais evidente no “Universo das
imagens técnicas”. Nesta obra, Flusser propõe um esquema
simplificado, em que associa as revoluções técnicas a
estruturas específicas de pensamento e de organização do
mundo. Ele chama esse esquema de escalada de abstração.
Podemos estabelecer aqui um breve resumo:
Para Flusser, o homem é originalmente um ser solitário,
imerso nas diversas dimensões do mundo natural (4d). Mas
ele possui um ímpeto de se afastar dessa natureza solitária
por meio de gestos que artificializam sua existência.
O homem artificializa-se ao manipular objetos, transformando o mundo circundante em circunstância (3d). Ele
estabelece o gesto da manipulação que o estimula a criar
instrumentos e modificar o seu ambiente.
Em seguida, a relação entre os olhos e as mãos distancia
o homem de tais objetos, por meio da produção de imagens
(2d) desses objetos ou circunstâncias. Tais representações
em superfícies se tornam mediações entre o homem e o
mundo a partir da abstração da profundidade e asseguram a
possibilidade de projetar alguma ação futura.
129
Nós da Arquitetura
O próximo passo consiste na explicação dessas imagens
(2d) por meio de registros unidimensionais (1d), abstraindo a
superfície em linha. O homem passa a ordenar sua existência
por meio de um fio que articula conceitos, como no caso da
escrita, da história e da ciência. Em essência, tal redução
de dimensões refere-se, para Flusser, ao ato de interpretar o
mundo como um processo, isto é, como uma estrutura causal
e progressiva.
Por meio de uma nova revolução técnica, os conceitos
soltam-se do fio (da ciência e da história), configurando um
mundo regido por um código sem dimensões (0d): o cálculo
e a computação. Com o predomínio do pensamento formal e
sistêmico, aparelhos operam o jogo de mosaico do cálculo,
produzindo um mundo nulidimensional construído por
imagens artificiais ou imagens técnicas (0d).
Fig. 01. a escalada de abstração
Nota-se que essa última etapa da escalada de abstração
evidencia os aspectos fundamentais da crise da pós-história.
No livro “Pós-história”, essa crise é associada a uma cultura
ocidental programadora, que se instancia na reconfiguração
sistêmica do modo de existência do homem. Por sua vez, no
“Universo das imagens técnicas”, essa cultura ocidental é
representada dentro de uma sequência de gestos de abstração
pelo mundo linear da história e da ciência que, em um dado
momento, reorganiza-se e adquire autonomia em relação ao
130
Nós da Arquitetura
próprio homem, através de aparelhos. Reforça-se, portanto,
a concepção de um mundo automático que manipula o
comportamento do indivíduo e da sociedade, por meio de
aparelhos, tal qual um programa sem propósito nem causa.
Mas qual a relação de tudo isso com o jogo? Uma chave
para compreender melhor essa relação são dois termos
específicos da pós-história: aparelho e programa. Flusser
(1985, p.9 e 77; 2011, p.40) define os programas como jogos
que operam ao acaso de forma precisa e os aparelhos são
caixas-pretas que instanciam esses jogos. Uma vez que o
programa (jogo) ocorre de modo oculto no aparelho (caixapreta), estabelece-se uma relação de interdependência.
Nota-se que essa interdependência entre os conceitos se
reforça pelo fato deles funcionarem em diversas escalas, delimitando, como a “armação” de Martin Heidegger (2007),
um modo técnico específico de existência. Ora a definição
de pós-história se amplia para caracterizar, por exemplo, a
cultura ocidental (programa) e o holocausto (aparelho), ora
se torna mais específica para tratar dos instrumentos inteligentes, como máquinas fotográficas e computadores (aparelho) e de seu modo de funcionamento (programa). Mas,
além de denotar um amplo território semântico (significam
várias coisas), o funcionamento em diversas escalas indica
também uma sintaxe específica entre os elementos. Tal relação pode ser compreendida a partir do modelo da autossimilaridade dos fractais. Trata-se de uma organização que, a
partir de uma função recursiva, se realiza com a mesma forma nas mais diversas escalas. Essa relação retoma uma proposição já esboçada no ensaio “Jogos”: um programa (um
jogo) existe dentro de um meta-programa (um meta-jogo),
que opera dentro de um meta-meta-programa (um meta-meta-jogo) etc.
Nota-se que esse funcionamento transversal sugere uma
estrutura de dominação em que o aparato técnico se liberta
131
Nós da Arquitetura
do homem e de seus desígnios e adquire uma existência autônoma – isto é: em prol de uma funcionalidade automática
e deshumanizadora -, adquirindo o status de uma quase natureza. E tal estrutura autossimilar aponta para a impossibilidade do homem se deparar com os limites do programa
e, portanto, para a impossibilidade de atuar totalmente fora
do programa. Nesse “totalitarismo aparelhístico”, Flusser
(2011, p.53) define a sociedade como um “sistema cibernético composto de funcionários e aparelhos” e caracteriza
os homens como “cifras a serem inseridas em vários jogos
formais”.
Uma vez que o jogo (programa) se instaura nas diferentes
escalas da experiência humana, o filósofo prontamente o
define como “terreno ontológico”, de modo que “toda futura
ontologia é necessariamente teoria dos jogos” (FLUSSER,
2011, p.128). Ao compreender esse modo de existência
lúdica, a filosofia flusseriana reconhece que o poder e a
capacidade de escolha estão associados ao programa. E
somente sobre tal território do programa que podem se
estabelecer as condições da liberdade. Ao situar o jogo como
território de ação do homem com os aparelhos, Flusser
retoma o arcabouço teórico elaborado no ensaio “Jogos”.
Segundo ele,
Em suma: o que devemos aprender é assumir o absurdo,
se quisermos emancipar-nos do funcionamento. A
liberdade é concebível apenas enquanto jogo absurdo
com os aparelhos. Enquanto jogo com programas.
É concebível apenas depois de termos assumido a
política, e a existência humana em geral, enquanto
jogo absurdo. Depende se aprenderemos em tempo
de sermos tais jogadores, se continuaremos a sermos
132
Nós da Arquitetura
“homens”, ou se passaremos a ser robôs: se seremos
jogadores ou peças de jogo (FLUSSER, 2011, p.44 e
45).
133
Nós da Arquitetura
6 Jogando com a pós-história
Para compreender com mais detalhes essa possibilidade
de liberdade, faz-se necessário recorrer à “Filosofia da caixa
-preta” e ao “Universo das imagens-técnicas”. Nestas obras,
Flusser discorre exaustivamente sobre a relação entre o homem e os aparelhos que o emancipam do trabalho e simulam
seu pensamento (a máquina fotográfica e o computador), liberando-o para o jogo.
Fig. 02 .a relação entre homem e aparelho
Nessa concepção literal, aparelhos são caixas-pretas
que, funcionando a partir de conceitos científicos (cálculo
e computação), computam virtualidades, concretizando
situações absurdas – as imagens técnicas. Uma vez que seu
modo de funcionamento é fenomenologicamente inacessível
ao homem, este se torna receptor de seus outputs (as
imagens-técnicas), modificando seus inputs com as pontas
de seus dedos. Essa estrutura evidencia o risco da liberdade
se programar por escolhas e acasos embutidos no aparelho.
Utilizando como pretexto a fotografia, Flusser discorre
sobre essa relação de liberdade programada, afirmando que:
134
Nós da Arquitetura
(...) o aparelho funciona em função da intenção do
fotógrafo. Mas sua escolha é limitada pelo número de
categorias inscritas no aparelho: escolha programada.
O fotógrafo não pode inventar novas categorias, a
não ser que deixe de fotografar e passe a funcionar
na fábrica que programa aparelhos. Nesse sentido, a
própria escolha do fotógrafo funciona em função do
programa do aparelho (FLUSSER, 1985, p.34).
O argumento de Flusser não se restringe ao tema comum
da derrota do homem frente à capacidade do aparelho – tal
qual Garry Kasparov derrotado pelo Deep Blue –, mas à
constatação de uma programação da liberdade que ocorre
no próprio jogar com o aparelho. Ilustrando esse cenário de
submissão humana, Flusser apresenta a figura do nazista, do
funcionário, do fotógrafo, do operador do aparelho, da peça
de jogo, do robô, do receptor, do músico de orquestra, da
marionete, do fantoche, ou do chimpanzé que aperta teclas.
Ainda mais radical é a figura da minhoca que, segundo
Flusser, serve como modelo para caracterizar a redução
da estrutura corporal do homem ao mínimo necessário
na sociedade de consumo e na cultura de massa. Nesse
modelo, o homem seria composto de boca para consumir as
imagens-técnicas e de ânus, que completaria o feedback com
os aparelhos ao devolver os excrementos indigestos dessas
imagens (FLUSSER, 2008, p.68 e 69). Frente à autonomia
dos aparelhos, tais papéis assumem a constatação de que
“nenhum homem pode mais controlar o jogo. E quem dele
participar, longe de controlá-lo, será por ele controlado”
(FLUSSER, 1985, p.75).
Como contraponto, Vilém Flusser retoma a figura do
homo ludens desenvolvida em seus trabalhos anteriores.
Anteriormente, o homo ludens ainda era um rascunho, seja
na descrição genérica do homem pós-histórico ou no modelo
135
Nós da Arquitetura
de comportamento do brasileiro. Agora o filósofo estabelece
precisões, definindo-o como agente libertário que adquire
consciência do jogo para enfrentar o determinismo aleatório
dos aparelhos e subvertê-lo. No papel de programador, de
músico de câmara, do poeta ou, propriamente de jogador,
esse homem deve politizar o funcionamento do aparelho,
desviando o programa em prol da humanidade. Uma vez
que o aparelho é uma caixa-preta inacessível e lhe impõe
um jogo absurdo, tal homem deve ser capaz de pilotar
sistemas complexos, de desocultar seu programa, lutar
contra sua automaticidade, subverter seu programa, injetar
valores e improvisar. Na condição de um corpo atrofiado
pela emancipação do trabalho (realizado pelos aparelhos),
tais estratégias de subversão reconhecem a possibilidade de
superar o domínio dos aparelhos rumo a uma existência livre
das determinações do mundo objetivo. Nesse cenário, a arte
e a criatividade se tornam fundamentos – a vida se torna um
jogo criativo.
136
Nós da Arquitetura
7 O xadrez como modelo de jogo complexo
Fig. 03. Kasparov contra Deep Blue: o risco do xadrez como
jogo de soma zero. (Foto: Chess Player Garry Kasparov
in Match. Créditos: Najlah Feanny / Corbis / Latinstock).
Como exemplo dessa dimensão intersubjetiva do jogo,
há o modelo do xadrez apresentado por Flusser. O xadrez,
como definido no artigo “Jogos”, é um jogo simples,
com restrito repertório de elementos (peças e tabuleiro) e
limitada estrutura de regras. Flusser sugere, até mesmo, que
o xadrez seja um jogo facilmente esgotável, em que todas
as partidas jogadas (seu universo) tendam a se aproximar
de todas as partidas jogáveis (sua competência). Apesar
da definição do xadrez como um jogo fechado, Flusser
esboça uma possibilidade de ampliação no próprio modo
de se jogar. Uma vez que o xadrez é jogo inserido dentro
do meta-jogo do pensamento, mesmo que seja um sistema
fechado, ele possibilita a inovação no âmbito do pensamento
137
Nós da Arquitetura
– inovação bottom up que se realiza a partir de um modo de
uso específico.
A sugestão de ampliação ganha ainda mais relevância
no “Universo das imagens técnicas”, caracterizando um
modelo de criatividade adequado ao universo dos aparelhos.
Primeiramente, Flusser propõe a superação do xadrez tal
qual um jogo de soma zero, em que o ganho de um jogador é
inversamente proporcional ao quanto o outro jogador perde.
Ao utilizar a Teoria dos jogos para questionar a própria
atividade do enxadrista, enquanto um jogar que visa ganhar
do outro, Flusser sugere que os termos da liberdade não
devam se limitar à questão do enfrentamento direto de outro
sujeito. Ao subverter o objetivo do jogo (a vitória), o modelo
flusseriano se ancora na possibilidade de utilizar o xadrez
como plataforma para a produção de jogadas inovadoras,
como um jogar para mudar o jogo.
O desafio é tirar das situações (dos “problemas enxadrísticos”) o máximo de suas virtualidades. Aproveitar-se do “acaso” (da situação imprevista pelas
duas estratégias em luta) para dela tirar um máximo
de informação nova. O xadrez se transforma de zero
sum game em zero plus game, já que no final da partida nova informação terá sido produzida (FLUSSER,
2008, p.105).
Mas vale notar que essa ampliação do repertório do jogo
e o aumento de produção de informação nova não é condição
suficiente para o jogo criativo. O componente intersubjetivo
torna-se elemento fundamental, demandando não apenas que
se jogue, mas que se jogue com e em função do outro. Afinal,
nesse modelo, a possibilidade de situações imprevistas aumenta com a quantidade de participantes. Um jogador pode
simular dois adversários, realizando uma disputa imaginária
138
Nós da Arquitetura
que promova situações inovadoras. Mas se esse jogo for
realizado por dois jogadores, as possibilidades de estratégias
criadoras duplicam, no caso de três jogadores, triplicam, e
assim por diante. Portanto, Flusser insinua que, na condição
do zero plus game, a competência do jogo é diretamente
proporcional ao número de partícipes.
Nesse modelo, o xadrez possibilita a superação do gênio
criador e da criação introspectiva, indicando um “método
explícito, disciplinado e fundado sobre teoria” para a produção de informações. Ao situar a estratégia como “arte de
distribuir ‘dados’ em jogo com parceiros”, Flusser (2008,
p.106) expõe a possibilidade do jogo se tornar uma aventura,
uma conversação lúdica. Ao externalizar e compartilhar sua
criatividade, o homo ludens se torna um jogador que supera
a figura do gênio individual, constituindo uma coletividade,
como os “nós” de uma rede, como “nós”. Inovação se torna
sinônimo de diálogo livre e significativo.
Aqui se faz pertinente apresentar o contraponto entre o
aparelho e o xadrez. Segundo Flusser, os dois acompanham
duas categorias de complexidade distintas: complexidade
estrutural, na qual os elementos do sistema apresentam
relações muito complexas entre si; complexidade funcional,
em que o sistema propicia uma utilização complexa126.
Segundo Flusser, o aparelho (exemplos: máquina fotográfica,
televisão etc.) é um jogo cuja estrutura apresenta uma
complexidade impenetrável, mas seu uso é muito simples.
Em sua leitura, essa pobreza funcional se manifesta nos
diversos sintomas de dominação que já foram apresentados:
cultura de massa, sociedade de consumo, propagação de
funcionários, diminuição do nível moral, ético e estético
126
Flusser apresenta a definição da complexidade funcional na “Filosofia
da Caixa-Preta”(1985, p.59) e na entrevista “On writing complexity and the
technical revolutions” de 1988, publicada no dvd “We shall Survive in the
memory of others” (2010).
139
Nós da Arquitetura
etc. Em contraponto, o xadrez é um jogo estruturalmente
simples, mas funcionalmente complexo, “é fácil aprender
suas regras, mas difícil jogá-lo bem” (FLUSSER, 1985,
p.59). Nesse caso, o jogo possibilita o desenvolvimento de
uma complexidade que decorre de seu uso e apropriação –
complexidade funcional.
Em defesa da complexidade funcional, Flusser sugere
que o jogo se torne aberto no momento em que suas regras
sejam colocadas em função do consenso, da cooperação
e do diálogo em rede, isto é: no momento em que sua
complexidade seja resultado de articulação intersubjetiva.
Portanto, a aposta de Flusser na liberdade se realiza pela
subversão da técnica em política, que se dá tanto pela
reconfiguração do homem em homo ludens, como pela
reconfiguração sociopolítica dos aparelhos em infraestrutura
para jogos criativos e intersubjetivos.
imagem 04. o jogo do totalistarismo apalherístico e o jogo
do diálogo criativo.
140
Nós da Arquitetura
8 Notas sobre a teoria dos jogos
Em parte, a utilização do jogo como possibilidade de
uma utopia pode ser compreendida como um argumento
ingênuo127. Como alguns de seus contemporâneos, Flusser
supõe que uma infraestrutura técnica configurada para usufruto de muitos participantes propiciaria uma ampliação da
arena pública e, mesmo, um modo de vida livre, baseado na
arte coletiva128. Em oposição a essa previsão, o advento e a
apropriação dos diversos aparatos de comunicação (internet,
jogo em rede, redes sociais etc.) e de produção (máquinas
de controle numérico e modelos paramétricos) não parecem
ter alterado significativamente a existência do homem, nem
tampouco superado os sintomas do totalitarismo diagnosticado por Flusser.
Como demonstra a revisão do jogo, a pertinência do filósofo
no contexto contemporâneo não pode ser compreendida
por uma leitura parcial, que elimine a ambiguidade de seus
textos129. Como afirmamos na introdução, a compreensão de
uma crise que despreza a existência concreta do homem e o
consequente esforço de tensionamento existencial de teorias
formais-calculantes são aspectos essenciais do pensamento
de Flusser. Nesse sentido, ele utiliza, de fato, a teoria da
informação, a teoria dos jogos e a cibernética como base
127
Ver, por exemplo, a crítica às insuficiências do diálogo, realizada por Ciro
Marcondes Filho (2006), que se baseia em uma leitura quantitativa e estrutural das teorias flusserianas.
128
Por exemplo, ver a utopia proposta por Gordon Pask e S. Curran (1982).
129
A ambiguidade do jogo possibilita distintas aproximações. Comparar, por
exemplo, nossa abordagem (2011a), que lidava com a crítica ao determinismo técnico no campo do projeto de fundamento computacional, com
as abordagens de Marcela Almeida (2011) e de Rodrigo P. Santiago (2011),
que retomam o jogo como possibilidade criativa. Trata-se aqui da riqueza do
termo, que pode operar tanto como jogo de dominação quanto como jogo
criativo e libertador.
141
Nós da Arquitetura
para definir o jogo com os aparelhos. Mas é importante
atentar-se tanto para o esforço de operar sobre tais teorias
formais, como, principalmente, de subvertê-las em prol de
uma agenda existencial: a definição de um jogo de liberdade-determinação.
Consequentemente, a figura do homo ludens não se
limita a um investimento na simples capacitação do homem
(se tornar programador) ou na multiplicação de fluxos de
comunicação. No caso do programador, embora o estrito
domínio técnico seja condição sine qua non, ele não assegura
a superação do jogo como horizonte de seu próprio universo.
No segundo caso, o jogo criativo seria consequência direta
do advento de uma estrutura participativa – a formação
de uma rede. Restritas às infraestruturas técnicas, essas
mudanças podem levar a um jogo populista e irresponsável
que, baseando-se na multiplicação da “conversa fiada”,
criaria obstáculos à liberdade – fato que pode ser verificado
na massificação do comportamento dos indivíduos nas redes
sociais.
Quando Flusser aponta para a subversão do determinismo
tecnológico em prol da liberdade e para a transformação dos
aparelhos em prol do diálogo, ele sugere mais do que um
processo de capacitação ou um incremento tecnológico, ou
ainda, ele reivindica que a técnica se coloque como uma
atitude que reposicione o próprio homem acima do jogo. E
mais, configurada a partir de uma dimensão ética, a aposta
no homo ludens evoca também a redefinição do próprio
sujeito enquanto sujeito que se realiza nos outros, como os
“nós” de uma rede. O jogador deve ser capaz de produzir,
intersubjetivamente, situações inovadoras que transformem
a sociedade.
Feitas essas considerações, nos parece que a aposta de
Flusser apresenta algumas indicações importantes para compreender o mundo contemporâneo e, mais precisamente, a
142
Nós da Arquitetura
complexidade dos jogos dos quais participamos. Se por um
lado nos limitamos a agir “de dentro” dos jogos e nos comportamos de modo restrito sobre a infraestrutura da rede, por
outro, a relevância de temas, como o movimento open-source, a emergência de fenômenos sociais organizados em rede
e os debates sobre gamificação e big data indicam possibilidades de mudança. Portanto, acreditamos ser bastante pertinente a recente retomada da teoria de jogos de Flusser tanto
entre os estudiosos do filósofo, quanto entre pesquisadores
e artistas130. Essa retomada aponta para o desafio iminente
de se politizar os diversos aparelhos e, em seu horizonte,
aponta para uma utopia em que conseguiremos nos redefinir
enquanto homo ludens.
130
Na confecção do presente capítulo, utilizamos textos que compartilham
o recorte temático dos jogos (como, por exemplo, BATLICKOVÁ, 2006).
Entretanto, na reta final do processo, nos surpreendemos com o lançamento
da revista Flusser Studies #15 (Maio de 2013), que conta com dois textos
muito relevantes sobre o tema (ver BAIO, 2013 e FELINTO, 2013). No campo
da arquitetura já produzimos um trabalho utilizando a crítica do jogo
(VELOSO, 2011a e 2011b) e acreditamos que exista um interesse mais amplo
no tema, como indicam os artigos de Marcela Almeida (2011) e Rodrigo
P. Santiago (2011). É notório que esse interesse conceitual acompanhe
também a retomada de uma discussão arquitetônica da década de 1960: a
possibilidade de emancipação por meio da criação coletiva e da tecnologia.
Esse aspecto é evidente em trabalhos recentes, como o de Theodora
Vardouli (2011).
143
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WE SHALL SURVIVE IN THE MEMORY OF
OTHERS: Flusser Lectures. Direção: Miklós Peternák.
Budapest: C³ Center for Culture and Communication
Foundation, 2010. 1 DVD (87 min).
A Arte da Conversação
Pedro Luís Alves Veloso
Neste capítulo, discorreremos sobre o legado do ciberneticista Gordon Pask e seus possíveis desdobramentos no
campo da produção artística contemporânea. Pretendemos
resgatar um horizonte de atuação almejado em seus experimentos e escritos cibernéticos nas décadas de 1950 a 1970
– que também apresenta uma clara afinidade com a defesa
do jogo, proposta por Flusser no capítulo anterior. Além de
abordarmos algumas definições gerais sobre cibernética e
sobre a trajetória de Pask, investigaremos, especificamente,
a obra interativa Colloquy of Mobiles, apresentada na exposição Cybernetic Serendipity (1968) e sua relação com o
desenvolvimento da Teoria da Conversação. Esse esforço se
mostra necessário frente à incipiência da arte conversacional
nas últimas décadas – fato surpreendente se considerarmos
diversos fatores: a consolidada domesticação e ubiquidade
da tecnologia da informação; a consolidação da infraestrutura de rede; o advento de movimentos sociais e de código livre na rede e o desenvolvimento do campo da arte interativa.
147
Nós da Arquitetura
1 Breve origem da cibernética131
Antes de tratarmos da produção de Gordon Pask, é
necessário estabelecer uma compreensão do termo cibernética. A cibernética é uma ciência e sua origem situa-se em
uma tensão entre (pelo menos) duas matrizes de pensamento:
uma abstrato-bélica e outra psiquiátrica.
A primeira está associada à impactante simbiose entre
o homem e os novos equipamentos bélicos, experimentada
na Primeira Guerra Mundial, que legou ao entreguerras e
à Segunda guerra extensas demandas bélicas sobre a ciência e a tecnologia. Nos Estados Unidos, essas demandas
culminaram na criação de um comitê e de um instituto de
pesquisa e desenvolvimento de sistemas militares132, que
uniram conhecimentos científicos e técnicos de várias áreas.
O historiador da tecnologia David Mindell (2002) destaca,
em meio a essas pesquisas, o papel das culturas de engenharia de comunicação e controle para o desenvolvimento
de equipamentos e armamentos militares baseados em retroalimentação. Devido à natureza informacional desses
novos artifícios bélicos, tais pesquisas lidavam com fluxos
de informação entre homem, máquina e ambiente. Segundo
Mindell (2002, p.4), o matemático americano Nobert Wiener (1894-1964) participou de pesquisas sobre os mecanismos de retroalimentação, buscando estabelecer, a partir da
131
O matemático Nobert Wiener apresenta uma história intelectual da
cibernética, que se fundamenta na cibernética como receptáculo e síntese
das ideias de grandes pensadores ocidentais (Leibniz, Pascal, Maxwell
e Gibbs). Entretanto, neste estudo, adotamos a leitura proposta pelo
historiador David Mindell (2002) e pelo sociólogo Andrew Pickering (2010)
sobre as origens da cibernética, por entendermos que tais autores a inserem
em um contexto social e histórico específico, vinculando-a às trajetórias
técnicas e biográficas do período.
132
O National Defense Research Committee foi criado em 1940 e o Office of
Scientific Research and Development, em 1941.
148
Nós da Arquitetura
união entre controle e comunicação, princípios operacionais
comuns entre homem e máquina. No pós-guerra, ele propôs
uma ciência que ampliava o escopo de tais princípios rumo
aos sistemas sociais e, mesmo, ao campo da cultura, cunhando, então, o termo cibernética.
Em contraponto a essa matriz bélica, o sociólogo Andrew
Pickering (2010) alerta que, entre os quatro pioneiros da cibernética, somente Wiener não desenvolveu suas pesquisas
no meio psiquiátrico. Enquanto o matemático havia contribuído (sem sucesso) para o desenvolvimento de sistemas de
controle para armamentos antiaéreos, os outros ciberneticistas formularam suas definições a partir de investigações em
torno do cérebro humano. Na Inglaterra, o fisiologista Grey
Walter (1910-1977) e o zoologista Ross Ashby (1903-1972)
propunham, paralelamente, teorias sobre o cérebro como um
sistema adaptativo e construíam modelos eletromecânicos
que pretendiam simular esse comportamento, contribuindo
para a matriz psiquiátrica da cibernética.
Em meio a essas matrizes, a cibernética se consolidou
como ciência a partir da década de 1940, nas publicações
dos diversos pesquisadores interessados no tema e, principalmente, nos diálogos estabelecidos nas conferências
Macy, organizadas, nos EUA, pelo neurofisiologista Warren
McCulloch (1898-1969 – o quarto pioneiro). O esforço para
sintetizar aspectos essenciais a partir dos diversos campos
do conhecimento e estabelecer um corpo teórico comum à
cibernética foi bem sucedido. E, nas décadas seguintes, ela
se tornou uma ciência trans ou mesmo antidisciplinar, interferindo em diversos campos do conhecimento sem, no entanto, consolidar-se formal ou institucionalmente.
O fato da cibernética se fundamentar no estudo da retroalimentação, da comunicação e do controle decorria de
sua defesa da informação como base para lidar com todos
os tipos de fenômenos – biológicos, psicológicos, sociais
149
Nós da Arquitetura
ou artificiais. Os ciberneticistas compreendiam a informação como o conteúdo que um sistema trocaria com o mundo
exterior e que possibilitaria o seu ajuste e adaptação às contingências (WIENER, 1968, p.17 e 18). Tal compreensão
estabelecia uma leitura transversal dos fenômenos a partir
de suas interações e de seus comportamentos, caracterizando-os de modo abstrato como sistemas. Nesse sentido é que
Nobert Wiener afirmava que as pessoas – ou quaisquer outros sistemas – eram “padrões” informacionais, isto é, “remoinhos num rio de água sempre a correr” (1968, p.95).
Andrew Pickering (2010, p. 18 e 19) caracteriza essa abordagem ontológica e instrumental da cibernética como uma
visão performativa do mundo, que subvertia tanto a abordagem causal e preditiva da ciência moderna, quanto a cisão
que essa instaurava entre o homem, as coisas que o cercam
e os artefatos que inventa.
150
Nós da Arquitetura
2 Gordon Pask e a construção de uma arte-cibernética
Andrew Gordon Speedie Pask (1928-1996) possuía uma
formação incomum, que abarcava a engenharia de minas
e a fisiologia, e manifestava precoce interesse em diversas
áreas – entre elas, aprendizagem, teatro, música e artes
visuais. Seu encontro com Norbert Wiener, na Universidade
de Cambridge, no começo da década de 1950, revelou-lhe
o campo da cibernética, no qual viria a desenvolver seus
diversos interesses e se tornar um dos principais proponentes.
Após esse encontro, seu engajamento com a cibernética inaugurou-se na “tradição” da matriz psiquiátrica da
cibernética, isto é: por meio de experimentos eletromecânicos ligados à adaptação e aprendizagem. Ao longo de sua
graduação em Cambridge, e junto com seu colega Robin
McKinnon-Wood, Pask empreendeu a construção de diversos aparelhos interativos. Esses experimentos culminaram no Musicolour (1953-1957), que almejava processos
de sinestesia entre música e luz (PASK, 1971). As diversas
versões do Musicolour eram transdutores que lidavam com
performances, predominantemente, musicais, captando,
como inputs, as manifestações sonoras e respondendo por
outputs, na maior parte das vezes, projeções luminosas. Nas
suas variadas configurações, o Musicolour utilizava filtros
sobre os atributos do som captado, dividindo-os em faixas de frequência ou mesmo em ritmos, com o intuito de
medir os vários atributos da performance ao longo de sua
execução.
151
Nós da Arquitetura
Fig.1 a) Musicolour; b) apresentação do Musicolour em
sincronia com marionetes c) um dos projetores ativados
pelo Musicolour (Fonte: Gordon Pask Archive at the Dept
of Contemporary History, University of Vienna/Austria).
Extrapolando o aspecto instrumental da sinestesia entre
música e luz, Pask incorporou no dispositivo uma capacidade de aprendizagem e adaptação, que viria a se tornar
a essência de seu funcionamento. Caso algum aspecto da
performance se tornasse repetitivo, o mecanismo de aprendizagem alteraria a relação entre as medidas dos filtros e,
por conseguinte, reduziria seus dados de saída. Em outros
termos, o Musicolour ficaria “entediado”, reduzindo sua
sensibilidade aos estímulos sonoros e, consequentemente, a
intensidade de sua reação luminosa. Seu comportamento e
suas regras de funcionamento regulavam a interação com
o músico, criando padrões, mas sem se mostrar totalmente
previsível. O experimentador (o músico) se deparava com
uma caixa-preta (o Musicolour), à qual tinha acesso apenas
pelos terminais de entrada (microfone) e pelos terminais de
saída (projeções luminosas). O desenrolar dessa relação não
ocorria por meio da tentativa de abrir ou mapear o funcionamento do aparelho, seguindo o ímpeto fundamental das
ciências modernas, mas de modo diverso, ou seja, pela experimentação com as entradas e saídas de dados.
152
Nós da Arquitetura
Por um lado, o Musicolour apresentava afinidades com as
investigações da primeira geração de ciberneticistas. Mas,
em um olhar mais atento, podemos afirmar que Pask já reivindicava uma considerável expansão da teoria cibernética.
Grosso modo, a primeira geração de ciberneticistas estabelecia uma relação de distanciamento com a caixa-preta, colocando-se como observadores externos que deveriam analisar de modo distanciado o comportamento do sistema, além
de tentar compreender sua relação com algum propósito. Por
sua vez, Pask fomentava um diálogo ativo entre observador
e caixa-preta. O músico controlava o Musicolour ao mesmo
tempo em que o aparelho controlava o músico, estabelecendo um processo de retroalimentação que estimulava o improviso e a inovação contra a mesmice da performance. Portanto, o Musicolour não se propunha a ampliar a capacidade
musical do performer. Ele funcionava em diversos níveis
de interação com o músico, estimulando-o a realizar performances distintas de suas apresentações individuais. Em um
extremo, o sistema funcionaria por uma simbiose dos dois
subsistemas – músico e Musicolour – que diluiria a fronteira
do controle cibernético.
Durante o desenvolvimento do Musicolour, Pask criou,
junto com Elizabeth Pask e Robin McKinnon-Wood, a firma
de pesquisa e consultoria System Research (1953). Na década
que se seguiu, além de se envolver no desenvolvimento de
máquinas de treinamento, Pask investiu em experimentos de
diversas ordens, como computadores químicos e simulações
numéricas, ampliando sua contribuição à cibernética.
Particularmente interessante é sua aproximação da arquitetura, quando, no começo da década de 1960, foi convidado
pela diretora teatral Joan Littlewood e pelo arquiteto Cedric
Price para participar do projeto do Fun Palace, organizando
seu comitê cibernético (PRICE, 2001; LOBSINGER, 2000;
MATHEWS, 2007). O Fun Palace (1960-1976) era um
153
Nós da Arquitetura
experimento arquitetônico e social lançado por Littlewood,
que pretendia estabelecer um espaço para ininterruptas atividades de lazer e aprendizagem, fomentando a cooperação
dos usuários em prol do engajamento em uma subjetividade
livre e criativa. Nesse sentido, Price desenvolvia para Littlewood uma infraestrutura arquitetônica que deveria possibilitar reconfigurações espaciais decorrentes de diversos
usos e interações, ao longo do tempo. Junto ao subcomitê,
Pask se dedicava a implantar um sistema cibernético capaz
de assimilar os interesses dos usuários e os padrões de uso
na configuração dos espaços. Em 1965, Pask apresentou um
diagrama do sistema de controle que, analisando as preferências dos usuários e o número de partícipes, se encarregaria de ajustar os parâmetros para adaptação da estrutura do
Fun Palace, promovendo, novamente, um diálogo cibernético. Infelizmente, esse diálogo se restringiu aos diagramas
de Pask, uma vez que o Fun Palace nunca foi construído.
O experimento do Musicolour, assim como o sistema
de controle do Fun Palace, evidenciava a possibilidade
de uma transgressão dos comportamentos rotineiros e,
mesmo, a valorização de uma subjetividade fundamentada
na capacidade de promover jogadas e relacionamentos
inesperados com outros “sistemas” – sejam os sistemas
eletromecânicos ou outras pessoas. Além de contribuir para
uma expansão significativa da cibernética, tais experimentos
também apontavam para uma redefinição do próprio campo
da Arte e Arquitetura.
Em 1961, Pask lançou seu tratado sobre cibernética (An
Approach to Cybernetics), no qual, novamente, seguia a
tradição dos pioneiros, estabelecendo as definições gerais
sobre a ciência, utilizando notações rigorosas e diagramas
para representar a organização dos sistemas, além de apresentar seus experimentos como suporte empírico de seus
argumentos. Interessa destacar nessa obra a transversalidade
154
Nós da Arquitetura
da noção de sistema, que possibilitava a abstração dos mais
diversos fenômenos e dos comportamentos do ambiente,
tendo em vista a análise e o interesse do observador
(1961, p.18-23). Pask retirava, portanto, a caracterização
de um sistema do âmbito objetivo, fundamentando-o
nas expectativas do observador e na sua interação com o
sistema. Assim, um sistema poderia ser imprevisível ou
auto-organizado para um observador, enquanto não o seria
para outro. Além disso, já era explícita, em sua teorização, a
importância da participação, como indica a sua compreensão
do “observador participante” e de sua linguagem como partes
integrantes dos diversos sistemas que ele pode observar ou
experimentar (1961, p. 33-35).
Na esteira de sua aproximação com a arquitetura, Pask
publicou também o manifesto Architectural Relevance of
Cybernetics (1969) na célebre revista Architectural Design.
Nesta, ele considerava urgente desenvolver sistemas dinâmicos capazes de lidar com a performance dos homens e
das organizações sociais emergentes. Ao defender a adoção
da cibernética como teoria holística para a arquitetura, Pask
aproximava o projeto arquitetônico do desenvolvimento de
sistemas adaptativos. E, ao adotar uma compreensão abstrata
de sistema, Pask sugeria abarcar o ambiente construído em
suas diversas escalas (edifícios, estruturas urbanas ou cidades), além de envolver diversas modalidades de interações:
entre o projetista e o sistema que ele está projetando; entre o
projetista e o sistema que o auxilia no desenvolvimento do
projeto; entre uma estrutura construída e o contexto dinâmico da cidade; entre os diferentes profissionais planejando a
cidade como um sistema; entre os habitantes e o invólucro
construído etc.
Em suma, seu tratado cibernético e seu manifesto arquitetônico tornaram explícitos dois temas fundamentais de
sua obra: os sistemas adaptativos e o observador ativo. O
155
Nós da Arquitetura
primeiro possui clara filiação à definição clássica de cibernética, reivindicando a necessidade de compreender e desenvolver sistemas capazes de se ajustar às contingências
do mundo exterior. O segundo expande o papel do observador no âmbito dos experimentos cibernéticos, reconhecendo a participação como elemento constituinte das trocas
informacionais.
156
Nós da Arquitetura
3 Cybernetic Serendipity
A exposição Cybernetic Serendipity: the computers and
the arts foi exibida no Institute of Contemporary Arts (ICA)
em Londres, em 1968. Ela foi organizada pela curadora Jasia
Reichardt, tendo o artista Peter Schmidt como consultor
musical, o designer de sistemas Mark Dowson (associado
de Gordon Pask na System Research) como consultor
tecnológico, e foi projetada pela cenógrafa Franciszka
Themerson. Tinha por objetivo “apresentar formas criativas
engendradas pela tecnologia” (REICHARDT, 1968, p.5) na
intersecção entre ciência e arte.
A exposição foi fundamental na difusão da cibernética e
na definição de um horizonte para a arte, um horizonte que
deveria se tornar palpável ao longo das décadas seguintes.
Mas aqui cabe uma ressalva sobre o uso do termo cibernética
como adjetivo no título da exposição, ao longo do catálogo,
e nos textos e descrições das obras. A princípio, o termo
abarcava propriamente a ciência cibernética, apresentando,
como fundamento da exposição, uma síntese da definição da
cibernética proposta por Norbert Wiener (falecido quatro anos
antes), além da participação de importantes ciberneticistas
da segunda geração, como Stafford Beer e Gordon Pask.
Mas, por outro lado, Reichardt também utilizava o termo
para tratar do que era (e ainda é) vulgarmente compreendido
por cibernética: o uso de computadores e dispositivos eletrônicos. Nota-se que, no âmbito curatorial, essa ampliada
definição cibernética era coerente com a proposta de apresentar formas “criativas” suportadas pelas novas tecnologias
(REICHARDT, 1968 e 1971). Nesse sentido, a exposição
funcionava como um grande guarda-chuva para sistemas
cibernéticos, experimentações computacionais e eletrônicas
(e mesmo mecânicas) no âmbito da música conceitual, da
157
Nós da Arquitetura
instalação, da poesia e da arte visual, além da exibição de
novos dispositivos tecnológicos.
158
Nós da Arquitetura
4 Estética informacional e arte permutacional
Antes de apresentarmos a participação de Gordon Pask
na Cybernetic Serendipity, investigaremos outro espectro
de manifestações artísticas que se fundamentavam em
premissas distintas.
Em termos teóricos, Jasia Reichardt apontava o filósofo
alemão Max Bense como importante influência intelectual
por trás da idealização da exposição (1968, p.05). Max Bense
possuía uma grande afinidade com abordagens estruturalistas
da arte, como indica sua proximidade com a poesia concreta
e com a semiótica. Ele assimilou, pioneiramente, a teoria
da informação e da comunicação no campo da arte, com
o intuito de construir uma teoria estética gerativa de base
informacional. De modo geral, podemos afirmar que a
estética informacional inseria a arte no campo da teoria da
informação e da comunicação como um tipo específico de
mensagem, portadora de um tipo específico de informação,
a informação estética (BENSE, 1971; GIANNETTI, 2002,
p.38-47). Ao submeter a arte a uma leitura informacional e
mensurável, tal estética promovia o desmanche de qualquer
fundamento metafísico, material ou autoral de autenticidade,
situando o alto teor de originalidade das mensagens como
objetivo dos processos artísticos.
O desenvolvimento de uma estética informacional
contou com o suporte de diversos teóricos, entre eles, o
engenheiro francês Abraham Moles133. Este desenvolveu
o caráter operacional da nova teoria estética, investigando
a interferência dos computadores nos diversos processos
inerentes à arte (criação, crítica e recepção) e classificando
algumas possíveis atitudes artísticas. Em consonância com a
133
Para reforçar a proximidade ideológica da estética informacional com a
Cybernetic Serendipity, vale notar que tanto Bense quanto Moles publicaram textos sobre a estética informacional no livro Cybernetic, art and ideas
(1971), editado por Jasia Reichhardt após a exposição.
159
Nós da Arquitetura
centralidade da informação e o uso dos computadores, Moles
utilizou instigantes diagramas de fluxos para caracterizar
essas atitudes estéticas. Vale destacar, aqui, a terceira
atitude estética proposta por Moles, que trata de sistemas
que utilizam um algoritmo combinatório para amplificar o
campo de exploração artística e, consequentemente, a complexidade da obra. Nesse esquema permutacional, o artista
seria responsável pela criação do algoritmo, ou seja, pela
definição de instruções capazes de gerar uma obra. Por sua
vez,
Só a máquina será capaz de explorar sistematicamente
a totalidade desse campo dos possíveis e fazer passar
pelo crivo de um valor qualquer cada uma das milhões
de obras realizadas, para delas conservar as melhores.
É a arte permutacional.
A máquina comportará um código simbólico, que
fabrica um repertório, e um algoritmo dado pelo
esteta, que é aqui um artista, porque cria seu algoritmo
e é por ele responsável (MOLES, 1973, p.166).
Fig.2 Atitude estética três: “sistema envolvendo amplificador de complexidade trabalhando sobre um algoritmo”.
Diagrama desenvolvido pelo autor a partir do diagrama de
Moles (1971, p.67).
160
Nós da Arquitetura
Na Cybernetic Serendipity, havia trabalhos pioneiros
de arte produzida por meio da programação e permutação
e que estavam classificados como trabalhos de computação
gráfica. Entre esses, são particularmente importantes as obras
do engenheiro dos laboratórios de telefonia da Bell, Michael
Noll, e dos matemáticos alemães (e alunos de Bense), Georg
Nees e Frieder Nake. Tais trabalhos apresentavam clara
afinidade com a visão objetiva da estética informacional,
reiterando, explicitamente, o princípio da permutação e o
uso da programação como partes integrantes do processo
artístico.
Para cada obra, instruções rigorosas eram criadas para
a geração das formas, tais regras eram descritas na linguagem de programação e, em cada execução do programa, o
computador gerava uma das possíveis variações estabelecidas pelas instruções, que seria impressa no tamanho desejado. Por exemplo: a obra 8-corner, de George Nees, definia
aleatoriamente oito pontos no espaço de um quadrado e os
conectava sequencialmente por linhas; a obra Rectangular
hatching, de Frieder Nake, tinha como parâmetros o número de retângulos ortogonais, suas coordenadas de origem, o
número de linhas para preencher cada retângulo, a direção
das linhas de preenchimento (vertical ou horizontal) e o estilo das linhas de preenchimento (espessura e cor), gerando
uma composição randômica de retângulos preenchidos por
linhas ortogonais; Michael Noll, por sua vez, se apropriou
dos princípios geométricos da obra Composition with lines
(Piet Mondrian, 1917) para gerar variações automáticas, tomando como parâmetro uma quantidade determinada de linhas horizontais e verticais, que seriam distribuídas na área
de um círculo.
161
Nós da Arquitetura
Fig.3 Arte gerativa permutacional. Os exemplos acima são
interpretação das obras 8-corner(George Nees); Rectangular
hatching (Frieder Nake); variações computacionais de
Michael Noll sobre Composition with lines (Piet Mondrian)
– a partir das descrições em Reichardt (1968, p.74-79).
Imagens geradas por algoritmos desenvolvidos pelo autor
na linguagem Processing.
Nessas obras, a programação se colocava como o domínio
da liberdade e da originalidade. A complexidade da obra era
decorrente do rigor de regras gerativas, que eram definidas
pelo artista e inseridas como input no computador. Uma vez
que o belo era definido na estética informacional como um
fator estatisticamente controlável, o computador deveria
acelerar o surgimento de obras significativas e improváveis
162
Nós da Arquitetura
por meio do teste aleatório das variações possibilitadas pelo
algoritmo. Embora Moles ainda estivesse preso ao valor
do output como obra de arte (visível no complexo sistema
de filtros para output e “consumo” estético do diagrama),
nota-se que, nesse processo, a essência da obra é o próprio
princípio de permutação, responsável pelo repositório virtual
de variações paramétricas.
Por um lado, era evidente uma afinidade instrumental
entre a estética informacional e a cibernética, no que dizia
respeito à centralidade do tema informação ou à produção de
sistemas gerativos para criar novidade. Aliás, Moles recorria
à cibernética e a seus termos com frequência, como fica explícito no texto em que apresenta as atitudes estéticas computacionais: Art and cybernetics in the supermarket (1971).
Entretanto, tendo em vista o desenvolvimento da cibernética de Pask, nota-se que a predominância de fundamentos
da teoria da informação tornava as divergências ainda mais
notórias.
163
Nós da Arquitetura
5 Colloquy of mobiles e o desenvolvimento da Teoria da
Conversação
Como visto, na produção de Gordon Pask da década de
1950 e 1960, já se manifestava uma compreensão de arte
muito peculiar, que orbitava em torno do tema da interação.
Nos dois textos que acompanham sua participação na
Cybernetic Serendipity (1968 e 1971), essa compreensão
se desdobrava em esboços de uma teoria estética de base
cibernética.
Segundo essa teoria, o ser humano possuiria uma
tendência rumo à novidade, isto é, uma tendência a investigar
e aprender sobre sistemas que – independentemente de seu
conteúdo – lhe parecessem ambíguos. Nos diversos papéis
que o homem poderia assumir no campo da arte – como
criador de uma obra tangível, como criador de prescrição para
uma obra (ex: partituras), como intérprete da transcrição de
uma obra, ou mesmo como observador de uma obra -, a arte
deveria ser compreendida como um ambiente de potência
estética (1971, p.76). E, por potência estética, Pask entendia
o potencial da arte em se situar em um nível de discurso
compatível com o homem, estimulando-o a interagir com
os seus diversos patamares de abstração. Nesse sentido, a
arte estimularia um tipo de controle cibernético mútuo que
Gordon Pask denominava de conversação, além de promover
um campo de ambiguidade entre os papéis de partícipe e
observador (1971, p.77).
Mas vale destacar que, embora Pask situasse as diversas
modalidades artísticas como potencialmente interativas, ele
estabelecia uma importante nuance. Em manifestações estáticas ou sequenciais, como a pintura, ou convencionalmente
a música, a interação ocorreria interna ou psicologicamente. Isto é, o observador dialogaria com uma representação
interna da obra, expandindo os limites da obra. Esse nível
164
Nós da Arquitetura
de interação corresponderia, portanto, ao caráter de abertura
inerente à produção da obra de arte e à sua interpretação – o
que Umberto Eco define como abertura de 1º grau (1991).
Para além dessa característica de abertura inerente à
interpretação, os experimentos de Pask propunham uma
interação que não se limitava ao âmbito psicológico. A
modalidade de interação defendida por Pask reivindicava a
plena participação do próprio observador. Ele considerava
necessário que a obra se fundamentasse em uma interação
explícita e tátil, não limitada pelo diálogo interno com
a obra nem por processos comunicativos134. Isto é, tais
experimentos promoviam um ambiente de potência estética
que efetivamente reagia e se adaptava aos participantes –
como o Musicolour ou o Fun Palace.
Na exposição Cybernetic Serendipity, Gordon Pask apresentou a obra Colloquy of Mobiles, exposta sob a categoria
máquinas e ambientes. A obra se compunha de cinco mobiles
(esculturas móveis), que, por meio do movimento e de sinais
sonoros e luminosos, deveriam ser capazes de promover a
conversação, lembrando que o termo “colóquio” indica
justamente conversações ou debates entre duas ou mais
pessoas.
Com o intuito de promover a conversação entre os
mobiles, Pask definiu cinco pré-requisitos:
134
Vale destacar aqui algumas semelhanças e diferenças entre a proposta
de obra aberta de Umberto Eco e a arte conversacional de Gordon Pask. Em
termos gerais, a proposta de uma arte interativa de Pask possui uma clara
afinidade com a noção de abertura de 2º grau proposta por Eco, na qual
o artista intencionalmente produziria uma obra como um território aberto
à participação. Entretanto, a ênfase semiológica de Umberto Eco o leva a
compreender essa obra aberta como um processo artístico que subverte
as convenções linguísticas e cria um campo de possibilidades para que o
próprio fruidor finalize a obra. Para Pask, a participação do observador não
remete a um jogo de fruição nem se atém a sistemas linguísticos, como
descrevemos neste texto.
165
Nós da Arquitetura
1 Os objetivos dos diversos mobiles devem ser parcialmente incompatíveis, para que eles compitam
entre sí.
2Alguns dos objetivos devem ser inalcançáveis por
um só mobile. Com o intuito de alcançar tais objetivos, pelo menos um par de mobiles deve cooperar e,
para cooperar, esse par deve se comunicar.
3 As metas principais de ummobile devem ser decompostas em sub-metas para que qualquer mobile contenha uma organização hierárquica.
4 Interação cooperativa deve envolver objetivos principais e sub-objetivos,de modo queexistam váriosníveis de comunicaçãono sistema.
5 A busca do menor nível sub-objetivos deve ser realizada por programas embebidos em cada mobile e
agindo autonomamente. Enquanto a seleção desses
programas depende de feedback mediado por comunicação, a sua execução não. Esta é uma maneira
(incidentalmente, uma forma biologicamente significante) de dissociar os mobiles e manter suas integridades
individuais (PASK, 1971, p.88 e 89).
Nota-se que os cinco pontos defendiam que cada mobile tivesse objetivos próprios e acesso a uma quantidade limitada da informação do ambiente e dos demais mobiles.
O funcionamento do conjunto seria tributário dos mobiles,
competindo ou cooperando para alcançarem seus objetivos
individuais. Assim, a inteligência desse conjunto se baseava
na sua capacidade de comunicação e ação em meio a metas
distintas.
166
Nós da Arquitetura
Para desenvolver esse jogo de competição e cooperação,
Pask estabeleceu uma distinção de gênero entre os mobiles.
Fig.4 Colloquy of mobiles. a) mobile macho; b) mobile
fêmea; c) diagrama de Pask sobre o funcionamento dos
mobiles; d) mobiles em funcionamento; e) contato entre
mobile macho e fêmea (Fonte dos itens a-e: Gordon Pask
167
Nós da Arquitetura
Archive at the Dept of Contemporary History, University of
Vienna/Austria); f) diagrama (vista superior e vista frontal)
do funcionamento dos móbiles, feito pelo autor135.
Os dois mobiles centrais eram denominados de machos.
Eles eram suportados por um mastro pivotante comum que se
bifurcava em dois mastros individuais. Cada mobile macho
se configurava por vários elementos pendurados nesse
mastro individual. Além de displays que mostravam o seu
estado em relação às variáveis O(range) e P(uce), no corpo
principal, havia três elementos: um projetor energético no
meio (m) e dois receptores energéticos, um na parte superior
(s) e outro na inferior (i). Em suma, o comportamento de
cada macho se baseava nos níveis das variáveis O e P, que
cresciam ao longo do tempo e demandavam recorrente
redução. Ambas as variáveis se amenizariam caso o projetor
central do mobile conseguisse emitir um sinal luminoso (B)
para seu próprio receptor. No caso da variável O, uma luz
laranja (orange) deveria ser recebida pelo receptor superior
(s) e no caso da variável P, uma luz roxo-marrom (puce)
deveria ser captada pelo receptor inferior (i). Esse processo
caracterizaria uma espécie de dança, ativando sinais
luminosos e sonoros e reiniciando a variável envolvida no
processo. Mas, sozinho, o macho não conseguiria realizar
esse processo, visto que o ângulo de seu projetor luminoso
não alcançaria o seu próprio receptor.
135
O diagrama proposto por Pask (c) se estrutura a partir de um triângulo isóscele. Entretanto, após analisarmos diversas fotos da instalação, antevemos a possibilidade dele ser estruturado em um triângulo equilátero.
Reparem, nas fotos, que o eixo central dos mobiles machos não está alinhado com nenhum par de mobiles fêmeas (como no diagrama de Pask).
Provavelmente, o diagrama de Pask propunha essa distorção para tornar mais
legível o corte esquemático que ele utilizou para descrever os componentes
dos mobiles (ver PASK, 1971, p.90). O diagrama que desenvolvemos (f) demonstra como o triângulo equilátero propicia oportunidades iguais para os
mobiles nas disputas e acordos mútuos.
168
Nós da Arquitetura
Completando o conjunto, havia três mobiles fêmeas, que
possuíam uma forma bulbosa. Cada fêmea estava suportada
por um mastro pivotante próprio na periferia do ambiente
e equidistante ao mastro central dos mobiles machos. Na
faixa central de seu corpo, havia um refletor (r), que tinha
a capacidade de girar em um eixo transversal, assegurando
uma variedade de ângulos de reflexão. Sua forma e seu
comportamento permitiam completar a dança do mobile
macho, recebendo seu feixe de luz e refletindo em seu
receptor. Evidentemente, essa dança se comprovou mais
efetiva em um ambiente escuro com pouca interferência nos
sinais luminosos.
Cada mobile possuía um programa com as regras de seu
gênero embutidas, estabelecendo, para si, uma hierarquia
de objetivos. Não é incidental que, na descrição de Pask
do Colloquy of Mobiles (PASK, 1971), a quantidade de
diagramas de fluxos de decisão superava a de representações
geométrica da obra (planta e corte esquemáticos) ou mesmo
o número de fotos.
Mas, apesar do caráter individual desses protocolos de
decisão, o mobile deveria lidar com relações de cooperação,
como na dança entre um mobile macho e fêmea, ou competição, como no caso dos dois mobiles machos disputando o
movimento de rotação do mastro central em prol da atenção
das fêmeas. Nesse sentido, cada programa individual continha protocolos para lidar com os demais mobiles, por meio
de processos de comunicação e ações específicas. Ou seja,
apesar de cada programa ser executado individualmente, seu
funcionamento se suportava nas possíveis relações entre os
mobiles.
E, além da capacidade conversacional dos mobiles,
com suas danças e divergências, o ambiente interativo era
aberto à participação dos diversos observadores. Uma vez
que Pask almejava uma potência estética fundamentada na
169
Nós da Arquitetura
participação explícita, os meios de comunicação utilizados
pelos mobiles deveriam ser acessíveis à intervenção
humana. Assim, o observador poderia transgredir o nível
de envolvimento psicológico e interagir fisicamente com
o ambiente. Não apenas essa aposta estava presente na
descrição do Colloquy (PASK, 1971, p.91), como também
existem relatos de que diversas pessoas utilizavam espelhos
de maquiagem para redirecionar os feixes luminosos dos
mobiles e de que, em certos casos, alguns observadores se
detinham horas perante o colóquio136.
136
Pickering (2010, p.360) se refere a esses relatos a partir de uma comunicação pessoal do arquiteto John Frazer e de um artigo de Zeidner, J., D.
Scholarios e C. D. Johnson.
170
Nós da Arquitetura
6 Um diagrama para a conversação
Ao longo da década de 1970, esse interesse em uma
teoria sobre interação se desdobrou em uma contribuição
fundamental para a cibernética e para a arte: a Teoria da
Conversação.
Por um lado, a Teoria da Conversação inseria-se em um
amplo movimento de revisão realizado pela nova geração
de ciberneticistas. Esse movimento se fundamentava em
uma série de pressupostos teóricos que aqui não iremos
explorar137. E, em termos cronológicos, vale citar que, em
1972, Pask apresentou a Teoria da Conversação no European Meetings on Cybernetics and Systems Research. Em
1975(b) e 1976, Pask consolidou a Teoria da Conversação,
publicando dois livros fundamentais: Conversation, cognition and learning e Conversation Theory. Na virada da década, Pask apresentou algumas revisões e desdobramentos
da Teoria da Conversação, como no artigo Developments in
Conversation Theory-Part 1(1980).
Em meio a essa série de publicações, Pask escreveu
Artificial Intelligence que, elaborado em 1972, viria a ser
publicado como introdução a um capítulo do livro Soft
Architecture Machine (in NEGROPONTE, 1975). Esse artigo foi desenvolvido para contribuir para a idealização e
137
Vale apontar, por exemplo, a teoria da autopoiese – que tratava de sistemas autônomos, organizacionalmente fechados e estruturalmente ligados
ao ambiente – desenvolvida pelos biólogos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana, ou ainda a importante contribuição de Heinz von Foerster
para a construção de uma epistemologia circular que partia do domínio fenomenológico do observador e dos domínios de consenso estabelecidos em
comunidades de observadores. Ao inserir o observador como fundamento
do conhecimento, von Foerster definia uma cibernética dos sistemas observadores, que cunhou de cibernética de 2ª ordem, subordinando a cibernética convencional (1ª ordem), e sua observação e análise objetiva dos sistemas a um tipo específico de consenso. Para uma revisão sobre a cibernética
de 2ª ordem e a contribuição de Pask, ver, por exemplo, Haque (2007), Scott
(2004), Glanville (2004) e Lopes (2009).
171
Nós da Arquitetura
desenvolvimento de computadores inteligentes que colaborariam com o projeto arquitetônico – as máquinas arquitetônicas que Nicholas Negroponte investigava no Architectural
Machine Group do MIT. Mas, além desse suporte, ele foi a
grande oportunidade de Pask unir os experimentos, máquinas e teorias até então desenvolvidos, sintetizando aspectos
centrais da Teoria da Conversação (PANGARO, 2001).
Em Artificial Intelligence, Pask formalizou diversos
conceitos e relações da Teoria da Conversação com o
intuito de propor um esquema geral da conversação capaz
de abranger quaisquer sistemas. Ao longo do artigo, ele
desenvolveu, com o suporte de uma série de diagramas, um
modelo para caracterizar uma relação entre dois indivíduos
(α e β), mediada por uma interface (linha vertical). Nesses
diagramas, ele também estabeleceu uma linha horizontal
para caracterizar dois níveis de procedimentos referentes ao
próprio indivíduo: o superior, que abarcaria a aprendizagem
e a posse de objetivos, e o inferior, que consistiria na
operacionalização e realização dos objetivos (métodos). A
importância do último diagrama de Pask consiste no fato de
apresentar tais mecanismos de feedback em três categorias:
(1) os loops verticais, que conectam os objetivos e os métodos
próprios de um indivíduo; (2) os loops horizontais, que
conectam os métodos e os objetivos de dois indivíduos; (3) os
loops cruzados, que conectam os objetivos de um indivíduo
com os métodos do outro. Gordon Pask associa esse terceiro
loop à possibilidade de um indivíduo compreender o outro
como um meio (1975a, p.30). Por sua vez, seu discípulo,
Paul Pangaro (2001), relaciona essa ligação à metáfora
paskiana da dança, na qual cada indivíduo induziria o outro
a agir em prol de seus próprios objetivos. Nesse sentido, as
ligações cruzadas ativariam um loop contínuo de controle
que dissolve os limites de cada indivíduo (linha vertical da
interface), estabelecendo uma simbiose.
172
Nós da Arquitetura
Fig.5 Diagrama de conversação. Interpretação do autor
a partir dos esquemas propostos por Pask (1975a) e da
descrição realizada por Pangaro (2001).
173
Nós da Arquitetura
7 Uma comparação e alguns desdobramentos
Como já vimos ao longo do texto, Gordon Pask investigava
obsessivamente um dos tipos mais refinados de interação: a
conversação (DUBBERLY, HAQUE e PANGARO, 2009).
Para ele, a interação com os participantes e com o ambiente
não apenas eram aspectos centrais de suas obras, como
se tornaram fundamentos para muitas de suas definições,
como a inteligência ou a potência estética. Essas definições
reforçam o posicionamento teórico de Pask e sua divergência
com abordagens causais e preditivas associadas à ciência
moderna. Aqui, pretendemos apontar alguns contrastes dessas definições de Pask em relação a outros campos e abordagens, ressaltando as particularidades de uma possível arte
conversacional.
Por exemplo, para o nascente campo da inteligência
artificial, tanto o computador quanto a mente humana eram
vistos como sistemas de tratamento de símbolos. Nessa
acepção, os processos cognitivos deveriam lidar com um
repositório simbólico de representações do mundo e seriam,
portanto, suscetíveis à reprodução e automatização por
meio de operações lógicas (PESSIS-PASTERNAK, 1992,
p.207-232; PICKERING, 2010, p. 5 e 6; HAYLES, 1999,
p. 238). Em contraste, Pask não considerava a inteligência
um atributo objetivo nem individual, mas um fenômeno
observado na interação e no agenciamento entre diversos
sistemas, capazes de dialogar e manifestar entendimento
(PASK, 1975a, p.7-8; PANGARO, 1990).
Quanto à definição de estética, vale lembrar que Abraham
Moles adotava uma polêmica visão da arte, delimitando
princípios probabilísticos para avaliar e produzir mensagens estéticas. Uma vez que a originalidade da mensagem
estética poderia ser definida objetivamente tanto em termos
de análise (medida de informação) quanto de produção
174
Nós da Arquitetura
(funções com argumentos randômicos), seus desdobramentos se inseriam no espaço restrito da causalidade. Nesse sentido, tal teoria privilegiava uma estrutura de criação artística
linear e distanciada, na qual o produtor se encarregava de
desencadear a capacidade computacional para criar variações. Apesar de tais variações serem imprevisíveis, elas não
estimulavam a interação entre o algoritmo e outros sistemas
(o observador ou o ambiente), restringindo-se ao uso de iterações computacionais para investigar o espaço proposto
por regras bem definidas de geração de uma forma. Nesse
sentido, a arte permutacional não promovia espaços propícios a interações mais complexas do que entrada e saída de
dados.
Tanto o Colloquy quanto a Teoria da Conversação se
contrapunham ao esquema permutacional proposto por
Abraham Moles. Para Pask, a beleza não era um tipo de
mensagem que poderia ser determinada nem produzida por
métodos probabilísticos. Como afirmamos anteriormente,
Pask defendia o potencial de a arte situar-se em um nível de
discurso compatível com o homem, estimulando-o a interagir
com os seus diversos patamares de abstração. Nota-se que
Pask definia a beleza no território da interação, como uma
ambiguidade que deveria ser investigada pelo observador,
a partir da interpretação do que os sistemas circundantes
expõem. Portanto, para Pask, a potência estética se realizaria
entre diversos sistemas com definições e comportamentos
distintos, de modo que significados seriam formulados
internamente às entidades envolvidas, mas ativados pelas
trocas da conversação.
Ao contrário dos algoritmos da arte permutacional ou
da inteligência artificial, os protocolos dos mobiles não
pretendiam definir o escopo das ações, da beleza ou da
inteligência do sistema. Eles deveriam assegurar suficiente
variedade de comportamentos e hierarquias de objetivos para
175
Nós da Arquitetura
subsidiar uma performance. Nesse caso, era garantido que
as trocas da conversação perpassariam todos os elementos
do sistema, não se limitando ao campo de exploração de um
algoritmo.
Assim como na teoria dos jogos de Flusser (ver capítulo
anterior), quando Pask definiu uma Teoria da Conversação,
ele extrapolou o campo da transformação técnica. Podemos
induzir, inclusive, o reposicionamento do próprio homem,
que se tornaria capaz de superar os limites epistemológicos
da ciência, de uma natureza objetiva do conhecimento e de
uma visão autônoma sobre o sujeito. O termo sujeito póshumano, proposto por N. Katherine Hayles, evidencia traços
dessa superação. Segundo ela,
Na visão pós-humana (...) o agenciamento consciente
nunca esteve “em controle”. De fato, a própria ilusão
de controle evidencia uma ignorância fundamental sobre a natureza dos processos emergentes pelos quais
a consciência, o organismo, e o ambiente são constituídos. Controle pelo exercício da vontade autônoma
é somente estória da consciência contada para si com
o intuito de explicar resultados que surgem, na realidade, através de dinâmicas caóticas e estruturas emergentes. (1999, p. 288).
Para Hayles, o sujeito pós-humano se dissolve em uma
interação dinâmica com o ambiente, que inclui tanto agentes
humanos quanto inumanos, substituindo o sujeito humanista
e seu ímpeto de dominação por uma cognição distribuída.
Partindo dessa formulação, podemos reconhecer na Teoria
da Conversação esboços da definição de um sujeito que se
realiza nos outros, como os nós de uma rede. Portanto, a
complexidade da estrutura de interação almejada por Pask
parece apresentar não apenas um desafio tecnológico – hoje
176
Nós da Arquitetura
talvez superado –, mas, principalmente, o desvelamento de
uma camada pouco perceptível da realidade e, portanto, um
desafio para a arte e arquitetura.
177
Referências Bibliográficas
BENSE, Max. The projects of generative aesthetics. In:
Reichardt, J. (Ed.), Cybernetics, Art and Ideas. London:
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