Carnaval, Carnival - LeMetro/IFCS-UFRJ

Transcrição

Carnaval, Carnival - LeMetro/IFCS-UFRJ
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
IARA GOMES DE BULHÕES
CARNAVAL, CARNIVAL:
UMA ABORDAGEM COMPARATIVA ENTRE O
CARNAVAL BRASILEIRO E O CARNAVAL INGLÊS
ORIENTADOR: PROF. DR. MARCO ANTONIO DA SILVA MELLO
Niterói
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
IARA GOMES DE BULHÕES
CARNAVAL, CARNIVAL:
UMA ABORDAGEM COMPARATIVA ENTRE O
CARNAVAL BRASILEIRO E O CARNAVAL INGLÊS
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação
em Antropologia
da
Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre.
Vínculos Temáticos
Linha de Pesquisa do Orientador: Ritual e Simbolismo
Projeto do Orientador: Cultura, Identidade, Simbolismo e Rituais Afro-Brasileiros
Niterói
2007
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Banca Examinadora
___________________________________________
Prof° Orientador: Dr° Marco Antônio da Silva Mello
PPGA/ ICHF/ Universidade Federal Fluminense e
LeMetro IFCS/ Universidade Federal do Rio de Janeiro
___________________________________________
Prof° Dr° Julio Cesar Tavares
PPGA/ ICHF/ Universidade Federal Fluminense
___________________________________________
Profª Drª Patrícia de Araújo Brandão Couto
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
___________________________________________
Profª Drª Mônica Dias de Souza
Universidade Federal do Rio de Janeiro
3
Bulhões, Iara Gomes de.
Carnaval, Carnival: uma Abordagem Comparativa entre o Carnaval Brasileiro e o
Carnaval Inglês / Iara Gomes de Bulhões
148 pp.
Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal Fluminense –
UFF, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Programa de Pós-Graduação em
Antropologia – PPGA, 2007.
Orientador: Marco Antonio da Silva Mello
1. Carnaval. 2. Notting Hill. 3. Steelpan. 4. Social Drama. 5. Ritual. 6. Etnicidade.
7. Identidade Étnica. 8. Grupos Étnicos.
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Resumo:
Carnaval, Carnival: uma Abordagem Comparativa entre o Carnaval Brasileiro e o
Carnaval Inglês
Esta dissertação apresenta o carnaval de Notting Hill, realizado em Londres, na
Inglaterra, descrevendo-o e focalizando alguns de seus aspectos. Aponta questões acerca
da inserção no campo e da realização de trabalho de campo etnográfico, tanto em meio
aos grupos formadores do carnaval londrino, quanto junto às Escolas de Samba do
Grupo Especial do Rio de Janeiro, integrantes do desfile da Avenida Marquês de
Sapucaí. A partir da contraposição dos dois rituais carnavalescos, assinala algumas das
especificidades encontradas em tais rituais que acontecem em sociedades urbanoindustriais contemporâneas, e analisa alguns de seus significados. O objetivo principal é
lançar luz sobre o carnaval londrino. Estabelecido a partir de um drama social, ele traz
em seu bojo a co-presença de diversos grupos étnicos e pessoas de distintas
nacionalidades, o que proporciona uma conjuntura privilegiada para se observar e
analisar processos e situações sociais que ocorrem em metrópoles cosmopolitas das
dimensões de Londres. Encontram-se aí presentes a (re)construção, a manutenção, a
manipulação de aspectos distintivos por determinados grupos sociais e a afirmação das
chamadas identidades étnicas, que aparecem enfatizadas nesses rituais, por meio de
sinais diacríticos.
Palavras-Chave: Carnaval; Notting Hill; steelpan; social drama; ritual; etnicidade;
identidade étnica; grupos étnicos.
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Abstract:
Carnaval, Carnival: a Comparative analysis of the Brazil and English Carnivals
This dissertation presents the Carnival of Notting Hill that happens in London, England,
as it focuses and describes some of its aspects. Questions are pointed out on the field
insertion and on the ethnographic fieldwork inside the groups which constitute the
Carnival of London as well inside the Samba Schools of the Special Groups of Rio de
Janeiro which are members of the Avenida Marques de Sapucaí Parade. It emphasizes
some of the specifications of this ritual that happens in urban-industrial contemporary
societies, and analyses some of its meanings. The main purpose of this dissertation is to
understand the anthropological sense of the Carnival of London. As it is established as
a social drama, it shows the mutual presence of ethnic groups and people of different
nationalities. This a privileged conjuncture to observe and analyse social processes and
situations that occour in cosmopolitan metropolis such as London. It may be found in it
the (re)construction, maintenance, and manipulation of characteristic aspects of the
ritual by some specific social groups and the consolidation of the so called ethnic
identities which are stressed in these rituals, by means of diacritic signs.
Key words: Carnival; Notting Hill; steelpan; social drama; ritual; ethnicity; ethnic
identity; ethnic groups.
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Agradecimentos
“O que existe... além do horizonte?
Sigo cantando... enfeitiçado
Esta viagem... é uma ponte
Que vai ligar dois hemisférios e revelar
O tesouro escondido que lá está”
“What lies beyond the horizon?
Sing with me a spell
This voyage is a bridge
That is going to link two hemispheres and reveal
All the buried treasure that is there”
(Samba Enredo de John Hicks, Cesar Filho,
Lilliane Santos para a London School of Samba, 2006)
Agradeço e dedico este trabalho à minha Família: Ana, Ignacio, Barbara e a pequena
Sophia, que me ensinaram a Amar as letras, os papéis, os livros, os mapas, as viagens e,
na mobilidade, o gosto pelo novo e pelo “outro”; família que mostra e incentiva, na
prática, o movimento, a mistura, a adaptação; e ainda pelo longo financiamento. Às
avós Maria e Sulamita, pela sabedoria frente à vida e pelo precoce estímulo aos estudos.
Ao querido Orientador Prof° Marco Antônio da Silva Mello, que, com toda a
habilidade, sabedoria, experiência em pesquisas etnográficas, na arte da escrita e
inclusive na sua peculiar ‘dureza’, me ‘deu a mão’. Ensinamentos e sugestões que me
permitem estar aqui; me fazem alimentar o interesse específico e a satisfação encontrada
no exercício da antropologia, da pesquisa etnográfica e da escrita e que vão além do
campo acadêmico.
Ao Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense,
que abriga a pesquisa desde o início, fomenta e possibilita sua realização.
Aos professores do curso de graduação em Ciências Sociais do IFCS/UFRJ, que
permitiram a descoberta o prazer e o sabor da ‘arte de pesquisar’.
Ao LeMetro e aos pesquisadores vinculados, onde e com os quais pude expor e discutir
algumas das indagações iniciais que se apresentam neste texto. Ao amigo Zé Renato
Baptista, que desde a primeira vez em que conversamos sobre o tema, estimulou seu
aprofundamento, deu dicas, ajudou a fazer trabalhos e ainda leu alguns pré-escritos. Ao
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Zé Colaço, que do mesmo modo, estimulo-me a problematizar a situação encontrada em
Londres e, quando em viagem, cumpriu meu papel junto ao PPGA/UFF.
À Beryl Eclair Taves, que tantas vezes leu, corrigiu, deu sugestões à meus escritos. À
Priscilla Gershon, pelo abrigo, em Niterói e no coração, no período final do trabalho e à
Adriana Valença, pelas preciosas sugestões e correções.
À Luciana Brandão, querida comadre, que me levou para a primeira viagem ao “mundo
do samba” e que tantas vezes foi meu porto seguro. Aos amigos de graduação e vida:
Tiffany Klaim, Rodrigo Folhes, Lucio Braga, Filipe Costa Coelho. À Adriana Gomes
do Nascimento, prima e madrinha, que tantas vezes me acolheu e estimulou. A Luciano
Saturnino Braga, com quem conversei inúmeras vezes por telefone enquanto estava em
Londres e sempre me estimulou e tranqüilizou, afirmando que era possível e bom. Ao
cão Bagulhinho, fidelíssimo companheiro durante todo o tempo em que me dediquei à
realização deste trabalho.
A querida e fundamental Verônica Gebara Muraro, suporte e norte, sem a qual não teria
chegado até aqui e agora.
Por fim, a todos as Instituições, Grupos, Organizações, Pessoas, que abriram suas portas
e permitiram minha entrada para a realização da pesquisa: no Brasil a Unidos do
Viradouro, LIESA, Estácio de Sá, em Londres a Paraíso, London School of Samba, Yaa
Asantewaa, Mangrove, Nostalgia, BAS, UEL, SOAS, New Bacon Books. A Marcelo
Sellaro que lá me recebeu em 2005 e fomentou meu interesse pela pesquisa sobre aquele
carnaval. Ao amigo John e Bárbara Hicks, que me receberam e hospedaram em
Londres, a Morgan, Frank Crichlow, Gerald Williams, Yan, Arthur Peters, Marshup,
Debi Gardner, Michael La Rose, Gregory Habess, Haroun Shan, Lionel McCalman e
por fim a Gerald Forsyth, que além de tudo, me abrigou nos dias finais de minha estada.
E a todos que não estão citados, entretanto fizeram-se imprescindíveis neste percurso e
empreendimento.
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Sumário
INTRODUÇÃO
A Propósito de Um Carnaval Chamado Notting Hill ................................................ 11
CAPÍTULO I
Trabalho de Campo – “Familiares” e “Exóticos”
I. Trabalho de Campo e Escrita do Texto Etnográfico .................................................. 14
II. O Problema e seu Cenário - Entrada em Campo em Dois Tempos ......................... 24
II. a. Grupos Carnavalescos Cariocas – Participação Junto ao
Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Viradouro
- Bateria e Barracão Inserção e Aprendizado.................................................................25
II. b. Participação Junto à Uma Escola de Samba Inglesa em 2005 ............................. 38
II. c. Campo e Inserção Junto aos Grupos Carnavalescos de
‘Origem Caribenha’ em 2006 ....................................................................................... 46
III. ‘Tambores de Aço’ - Mangrove e Nostalgia Steelbands –
Primeiro Contato com os Steelpans ............................................................................ 52
IV. ‘Panorama’ ........................................................................................................... 56
V. Carnaval ‘On The Road’......................................................................................... 58
VI. Alguns Comentários Acerca da Criação dos Steelpans ........................................ 63
CAPÍTULO II
Carnaval: fantasia? Sedução?
Tempos do extraordinário e a abertura de um “mundo especial”
I. Carnaval Carioca – Desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial na
Avenida Marquês de Sapucaí – Sambódromo – Espaço Ordinário para
dar vez ao Extraordinário ............................................................................................. 65
II. Carnaval de Notting Hill – Uma Descrição Sumária - Trajetos que se Entrecruzam
– o Percurso das Bandas e o Espaço Reservado para o Carnaval e para o Desfile em
Notting Hill no Ano de 2006 ........................................................................................ 69
III. Algumas Competições Carnavalescas em Londres
III. a. Competição entre os Grupos Musicais Steelbands – Panorama ....................... 73
III. b. Best Mas Band on the Road - Competição entre os Grupos de Fantasias ......... 75
III. c. A Rivalidade Entre as Escolas de Samba no Carnaval de Notting Hill ............. 76
9
IV. Um Breve Histórico Acerca do Notting Hill Carnival ........................................ 78
IV. a. Claudia Jones - Uma Personagem .................................................................... 84
V. Reflexões Acerca dos Significados do Carnaval .................................................. 85
VI. O “Mundo da Loucura” – Impressões Iniciais .................................................... 99
VII. Drama Social – Londres dos anos 50 –
Considerações Acerca do ‘Início’ do Carnaval de Notting Hill................................. 101
CAPÍTULO III
Afirmação de Identidades Culturais e Pertencimento aos “Grupos Étnicos”
I. O Carnaval de Notting Hill Enquanto Local Propício para se Observar e
Discutir a Construção e a Afirmação das Chamadas Identidades Étnicas.
Nação, Origem, Tradição e Relações Sociais: a Construção de uma
“Comunidade Imaginada” .......................................................................................... 105
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................141
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 144
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INTRODUÇÃO
A PROPÓSITO DE UM CARNAVAL CHAMADO NOTTING HILL
Neste estudo apresento o carnaval de Notting Hill, que acontece em Londres, na
Inglaterra, e procuro descrever, em linhas gerais, o contexto onde se realiza, oferecendo
uma perspectiva histórica acerca do mesmo. Busco expor, além disso, a competição
entre as bandas musicais, compostas por ‘tambores de aço’ (steelbands),1 e o desfile
carnavalesco. Em acréscimo apresento, de forma sucinta, as demais etapas do ciclo
carnavalesco londrino, compreendendo uma série de competições e elementos, que,
num crescendo, culmina com os dias de carnaval de rua.
Abordo o desfile das escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro,
relatando como se deu minha inserção na Escola de Samba Unidos do Viradouro e o
processo de aprendizado de (tocar) um instrumento musical, junto à ala da bateria
daquela agremiação. A contraposição entre os dois rituais carnavalescos contribui para
uma primeira entrada no tema, sabendo que tal contraposição pode ser enriquecida a
partir de investigações adicionais e da continuidade da pesquisa.
Tenho como objetivo principal discutir o ritual carnavalesco londrino - como
momento de afirmação das chamadas identidades étnicas -, e estabelecer uma
problemática com relação à inserção e permanência desses grupos, originários
principalmente do Caribe, no contexto de uma metrópole considerada multicultural.
Na cidade de Londres, minha inserção no campo etnográfico se deu em meio aos
grupos que compõem a parade (sejam eles escolas de samba, masbands2 ou steelbands),
durante o período de sua preparação para o carnaval de 2005 e 2006 e também na
ocasião do desfile; descrevo diversos aspectos dessa jornada que teve início no Rio de
Janeiro, desembocou em Londres e parece não ter, ainda, final definido. Minha reflexão
1
Steelbands são formações ou orquestras musicais compostas principalmente por “tambores de aço”. Os
steelpans foram criados na década de 30 em Trinidad, instrumentos cilíndricos, metálicos, percussivos,
feitos de galões de petróleo e compostos por diferentes séries e números de notas musicais.Outros
instrumentos conformam as bandas, entre eles o brake iron, confeccionado a partir de partes de motor de
automóveis e utilizado como ponto de partida das melodias, chamando a atenção dos músicos e marcando
o tempo. Em Londres a maioria das bandas é formada por cerca de dez a cinqüenta ou sessenta tambores
(pans), dependendo da banda e do motivo da apresentação a que se refere. Os instrumentos, as fantasias e
os diferentes elementos que compõem o Carnaval serão descritos em maiores detalhes nos capítulos I e II
e eventualmente expostos por meio de imagens.
2
Mas bands são grupos ou “bandas de fantasias”, as pessoas que integram tais grupos são conhecidas
como “mascarados” ou mascaraders, tomando parte de algumas das etapas do Carnaval londrino. Esses
blocos carnavalescos, como grande parte dos elementos constituintes daquele ritual, são inspirados,
nomeados e fazem referência ao o carnaval de Trinidad e Tobago. Instrumentos, fantasias e outros
aspectos do Carnaval serão abordados novamente nos capítulos I e II e eventualmente expostos por meio
de imagens ao longo do texto.
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acerca da prática etnográfica baseia-se nessa experiência fundamental (no Brasil e na
Inglaterra).
No primeiro capítulo, abordo minha participação junto às escolas de samba
cariocas – principalmente na Unidos do Viradouro -, além de junto aos grupos que
formam o carnaval de Notting Hill – nomeadamente: Paraíso School of Samba, London
School of Samba, Yaa Asantewaa Mas Band, Mangrove Steelband & Mas Band e
Nostalgia Steelband. Relato também minha chegada ao ‘mundo do carnaval’, no Rio de
Janeiro, e os caminhos que me conduziram à Londres. Descrevo ademais, com detalhes,
o trabalho de campo desenvolvido em ambas as situações. Levanto ainda, neste
capítulo, questões relativas à prática etnográfica em campos ‘familiares’ e ‘exóticos’,
com as quais me deparo ao longo da pesquisa.
No segundo capítulo, abordo os contrastes entre os significados do carnaval
carioca e do londrino. Considero-os um momento especial de afrouxamento de
determinadas normas - experiências empíricas exemplificam o que se pode entender
como ‘momento extraordinário’-, podendo também exacerbar questões silenciadas ao
longo
vida
quotidiana
e
enfatizar
atritos,
fricções,
conflitos,
diálogos,
complementaridades entre os diferentes grupos sociais nelas implicados. Apresento,
ainda, um breve histórico acerca do carnaval de Notting Hill, no intuito de facilitar o
entendimento de alguns dos caminhos que vem percorrendo e dos processos sociais nos
quais está envolvido, desde seu início até os dias atuais: o que representa para aquela
sociedade e para os diferentes grupos sociais nela inseridos.
Em Londres, a pesquisa de campo apresenta dia-a-dia matizes indicativas da
importância das relações estabelecidas entre os diferentes grupos (étnicos) que
conformam aquela capital. O Carnaval observado, cada vez mais se revela
multifacetado, apresentando, além de seu caráter festivo, dramático, desafiador e
ritualístico, elementos que indicam que está conectado às intrincadas relações
interétnicas presentes naquele contexto. Por força de informações e depoimentos
obtidos em campo, essas questões não podem ser ignoradas, representando a ampliação
da abordagem inicialmente proposta.
No terceiro e último capítulo, levanto questões relativas aos diferentes grupos
presentes na cosmopolita Londres. Busco oferecer algumas pistas para a melhor
compreensão de como, no ambiente da metrópole inglesa, ocorrem as relações entre os
diferentes grupos sociais, nos quais coexistem etnias e nacionalidades distintas. A partir
de um contexto etnográfico, como o de Notting Hill, pode-se perguntar o que leva
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determinados grupos a estabelecerem distinções tão marcantes entre si, escolhendo e
afirmando ostensivamente tais distinções por meio de sinais diacríticos. De que modo
símbolos e referências nacionais são construídos e exibidos, manipulados e a eles são
dadas novas significações, no confronto e território de outras nações? O investimento e
a expressividade de símbolos culturais no contexto de Notting Hill visam a quais fins
específicos? No carnaval londrino o que são, como se estabelecem e se articulam as
chamadas ‘fronteiras étnicas’? Ademais, o que representa ‘pertencer’ a este ou àquele
grupo social; onde um começa, onde outro tem origem; onde este ou aquele se
extingüem? São estas algumas das indagações que permeiam principalmente esta parte,
mas também a dissertação como um todo. A partir das questões apontadas, busco
oferecer algumas pistas para a melhor compreensão de como se dão, no contexto
citadino da metrópole inglesa, as relações entre alguns dos vários grupos que a
compõem, marcados pela co-presença de grupos sociais de etnias e nacionalidades
distintas. Nesta seção, portanto, procuro evidenciar tais indagações com a intenção de
tê-las como ajuda para melhor compreender os sentimentos, pensamentos e idéias,
implicados na ação e performance ritual, que procuro estabelecer com o exercício
etnográfico a respeito do carnaval de Notting Hill.
Deixo o leitor a sós com o texto. Espero que seja de leitura agradável e que
realmente alcance meu desejo de proporcionar perspectivas múltiplas acerca dos
carnavais como um todo, além de mostrar a diversidade de relações sociais que se
estabelecem entre diferentes indivíduos e grupos sociais envolvidos nesses processos.
Meu objetivo é evidenciar seus aspectos contrastantes, buscando a emersão da diferença
específica de que se revestem, mesmo a partir da apresentação de apenas dois desses
aspectos, entre inúmeros realizados nas mais diferentes localidades no mundo de hoje.
Que todos são carnavais, não se discute, mas o que os torna particulares - suas história,
contextos sociais, econômicos e políticos -, são elementos distintivos que os tornam
únicos.
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CAPÍTULO I
“FAMILIARES” E “EXÓTICOS”
I. Trabalho de Campo e Escrita do Texto etnográfico
Afim de que o leitor possa ter um melhor entendimento da situação, apresento
minha participação junto às agremiações cariocas e aos grupos ingleses na seqüência em
que essa aconteceu, enfatizo como se deu meu percurso e inserção no ‘mundo do
carnaval’ e ofereço algumas considerações acerca do trabalho de campo. Comento as
dificuldades, dúvidas e inseguranças presentes no curso da pesquisa de campo; no
período de organização do material coletado; na audição de entrevistas gravadas; nas
leituras de textos, livros e materiais diversos; na elaboração e escrita do texto
etnográfico.
Em um flashback, volto ao início de meu envolvimento com escolas de samba, o
primeiro lugar onde percebi o ‘mundo do carnaval’ como objeto de estudos. Retorno à
cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro, onde morava nos idos de 1999 - naquele
ano, pela primeira vez, visitei a ‘quadra’ de uma escola de samba. A partir de então, por
insistente convite de minha comadre, Luciana Brandão, começo a freqüentar
regularmente os ensaios do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Viradouro.
No meu primeiro ‘ensaio’, um dos diretores da ala da bateria, ‘Seu’ Arídio,
oferece-me um chocalho para tocar. Meu arremedo de incorporação se fez através
daquele inusitado instrumento, que integra a orquestra de percussão da Escola. Aceito
prontamente o convite, quase uma imposição para incorporar-me ao grupo, do qual a
partir de então não mais me afasto. Meu envolvimento crescente junto ao grupo musical
- muitas horas e dias de participação em ensaios, festas, almoços comunitários,
apresentações públicas, gravações em estúdio e quadra, assim como em quase sempre
infindáveis e previsíveis reuniões de quadra e desfiles em aparato - possibilita-me a
inserção no campo de forma gradual.
Ao mesmo tempo em que me reconheço como “nativa” e me reconhecem como
tal – enfrento, inclusive, dificuldades para me estabelecer como ritmista, (categoria pela
qual são tratados os percussionistas que integram as alas de bateria) e conseguir desfilar
como indivíduo pertencente à agremiação, parte integrante do grupo – tenho o olhar
questionador adquirido em minha consentânea graduação em ciências sociais.
14
No curso da pesquisa, que inicio em 2003, conheço bem e encontro-me situada e
familiarizada com o local que pretendo observar e em contato com as pessoas que
planejo entrevistar. Assim, resolvo trazer o assunto à consideração do grupo, com a
intenção de estabelecer um diálogo mais franco, sobretudo com os responsáveis e
integrantes da bateria; também desejo, é claro, entrar em contato com membros das
mais altas posições na hierarquia da escola. Até então jamais me dirigira diretamente ao
presidente da agremiação, somente a pessoas que ocupavam cargos de diretoria, de
conselheiros, de intérprete ou outros. Estes se viam com agrado a pesquisa e com ela
concordavam, no entanto, apesar de considerar-se a possibilidade e necessidade de falar
com o presidente, nunca se encontrara um momento adequado ou ideal. Este exercício
de mudança revela-se muito enriquecedor, pois me obriga a mudar e distanciar-me da
posição de ritmista. Assumo, portanto, papel, status e principalmente olhar de
pesquisadora.
Como pesquisadora, ao tratar de conversar com atores sociais locais ou
entrevistá-los, advém uma série de facilidades, pois já está estabelecida uma confiança
por meio de relações sociais prévias ao longo do tempo. Entretanto, há momentos em
que o estágio anterior – de simples integrante da agremiação – predomina e confunde a
posição de pesquisadora com a de integrante da estrutura local: na quadra, apesar de ser
reconhecida como pesquisadora, sou identificada, de forma inalienável, como ritmista.
Posteriormente, a pesquisa se estende ao barracão da agremiação - isso ocorre
em 2005, ao voltar, pela primeira vez, de Londres, onde trabalhara na confecção de
fantasias e alegorias junto a uma escola de samba lá existente. Quando ingresso no
barracão da Viradouro, a realização da pesquisa torna-se explícita para um número
maior de atores; nesse ambiente, sou reconhecida como ritmista por algumas pessoas,
contudo, a maioria delas não me identifica como tal. Esse fato possibilita-me assumir
uma posição mais vinculada ao papel de pesquisadora, embora muitos me perguntem se
sou repórter, ou se escrevo um livro: assim constroem imagens a meu respeito.
No contexto do barracão, estão presentes, de forma mais ostensiva e constante,
pessoas ligadas aos altos postos da agremiação - até por ser um ambiente fechado e
presumir-se que quem está lá, trabalha. Nesse local, também se realizam as mais altas
transações financeiras, por conta da compra de materiais e pagamento dos funcionários3.
Desde o primeiro momento em que converso com o mestre da bateria, Ciça, sobre meu
3
Ver também Castro, 1994.
15
interesse pelo trabalho de campo no barracão, este prontamente se coloca à disposição
para me apresentar ao administrador local. Assim marca-se uma reunião, à qual o
administrador, Ciça e eu comparecemos. O administrador não se opõe ao trabalho: fica
acertado que posso freqüentar aquele espaço para tal finalidade. A seguir, na quadra de
ensaios, quando tenho a oportunidade de me dirigir ao novo presidente –assumira o
cargo após o falecimento do anterior -, esclareço ser a mesma pessoa que iniciara na
quadra, há algum tempo, a pesquisa que prossegue, agora, no barracão.
O trabalho, tanto no barracão quanto na quadra, estende-se até o final de 2005,
culminando com o desfile carnavalesco de 2006. Posteriormente, deixo de freqüentar o
barracão e a quadra, já que necessito dar andamento à parte escrita da dissertação, assim
como dedicar maior atenção às questões concernentes ao trabalho de campo e à
pesquisa desenvolvida na Inglaterra, o que passo a relatar.
Em junho de 2005, pela primeira vez, surge a oportunidade de minha ida a
Londres. Soubera da existência de um carnaval local ali, por intermédio de algumas
pessoas com as quais convivo, ligadas às escolas de samba cariocas, algumas delas
viajam todos os anos para participarem do carnaval inglês, do mesmo modo que, por
ocasião do carnaval carioca, muitos estrangeiros, principalmente ingleses e franceses,
deslocam-se para o Rio de Janeiro, a fim de freqüentarem os ensaios das escolas de
samba e participarem do desfile de tais agremiações na Avenida Marquês de Sapucaí.
O carnaval de Notting Hill pode ser visto como um ritual eminentemente urbano
que teve início no contexto daquela metrópole considerada ‘multicultural’ ou
‘multiétnica’ e é organizado anualmente,. Assim, a etnografia se dá em um universo
complexo e ‘exótico’ tanto em relação aos grupos sociais com os quais interajo, quanto
em relação à cidade e nação onde tal carnaval se realiza.
Devo lembrar que, no curso de 2005, envolvo-me fundamentalmente com uma
escola de samba londrina, Paraíso School of Samba. Nela, além de ter contato com
vários ingleses, passo grande parte do tempo trabalhando na confecção de fantasias,
como dito anteriormente, bem como integrando a ala da bateria, que conta também com
a presença de outros brasileiros. Em meu retorno a Londres, no ano de 2006, apesar de
freqüentar alguns ensaios de uma outra escola de samba, a London School of Samba,
meu envolvimento se dá basicamente com os grupos considerados caribenhos.
As pessoas que compõem tais grupos – steelbands e mas bands - vieram, em sua
maioria, de antigas colônias britânicas das ilhas do Caribe e Guiana Inglesa. Surgem,
em tal cenário, como uma primeira geração de imigrantes, por volta dos anos 50.
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Atualmente, as gerações posteriores, filhos, netos ou bisnetos, nascidos na Inglaterra,
dão continuidade a tal representação carnavalesca, que também se coloca como um
local de afirmação de determinadas identidades étnicas.
Em Londres, não me é possível observar os grupos carnavalescos “da porta da
minha barraca”, (Evans-Pritchard, 1978); afinal a observação se dá em um complexo
contexto citadino, hospedada no bairro de Richmond, a cerca de 40 minutos de distância
do local onde se concentram as sedes das bandas. Além desse fato, ao realizar a
etnografia em uma sociedade estrangeira, com os escassos recursos de linguagem que
possuo, não me é possível aquitalar bem os significados lingüísticos, ou seja, sou
testemunha da dificuldade encontrada em ajustar meus “próprios significados aos
significados correntes da sociedade investigada” (Vidich, 1955, in: Cicourel, 1969 –
1980) - exercício duplicado, já que se repete, incessantemente, quando necessito
traduzir termos do inglês para o português e vice-versa, ou compreender frases e
expressões em entrevistas ou filmagem. Como ajustar os significados e, a seguir, relatálos de forma acadêmica?
Desejo lembrar, principalmente aos leitores brasileiros, ou a participantes de
tipos específicos de carnaval - que eventualmente possuam um determinado
entendimento acerca de termos e categorias utilizadas em análises destes e também na
vida quotidiana – o quão fundamental é exercitar um distanciamento e evitar qualquer
rigidez com relação aos termos empregados. Uma vez que se impõe traduzir termos
como parade, band, e outros, é muito importante o empenho em não se enquadrar,
dentro dos padrões de carnavais brasileiros e, mais especificamente, das escolas de
samba do Rio de Janeiro, o que aqui denomino ‘desfile’, ‘blocos’, ‘bandas’, assim como
outros termos que emprego ao referir-me ao carnaval londrino. É fundamental estar
ciente que cada carnaval apresenta, além de algumas semelhanças gerais,
especificidades e singularidades.
Naquele mundo novo, sobre o qual possuo informações esparsas, onde tudo faz
parte de um sistema mais amplo, que pode se encaixar em algum lugar do quebracabeça, preciso estabelecer os limites da pesquisa. Quais indagações devem ser
respondidas? O que é o foco, o alvo? Como posso eu, etnógrafa iniciante, estabelecer o
recorte que define o que é relevante ou não para a pesquisa, de modo a evitar construir
um grupo social inexistente e por demais fechado?
No decorrer dessa experiência, percebo claramente a diferença entre desenvolver
trabalhos com grupos familiares, como no caso da Unidos do Viradouro - um grupo ao
17
qual, de certa forma, pertenço e venho observando há aproximadamente sete anos - e
trabalhar com grupos ou sociedades ditas exóticas: uma realidade ímpar sobre a qual é
imprescindível construir conhecimentos. Portanto, urge seguir desbravando a situação
social de novo e intrigante mundo ocidental contemporâneo.
De acordo com a perspectiva de Victor Turner, (1980) quando um antropólogo
se coloca em um campo de pesquisa, que a princípio é radicalmente diferente da cultura
à qual está conectado por meio de sua memória (no meu caso, também pelo contato com
alguns conhecidos que falam português, além de pelo uso do telefone e da internet), é
preciso “chegar a um acordo com aquilo que o envolve e o invade”.
“Ele é lançado nos acontecimentos da vida de um número de pessoas,
que não só falam uma língua diferente, como também classificam o que
nós chamaríamos de ‘realidade social’ de maneiras que, de início, são
extremamente inesperadas. Ele é compelido a aprender, embora de
modo hesitante, os critérios que proporcionam a ‘visão de dentro’”.
Durante minha estada em Londres e no decorrer do trabalho de campo, haver-me
disposto e, de fato, aventurar-me além mar a fim de realizá-lo, traz-me constantes
inquietações: convivo com a necessidade de concentrar-me na busca por informações,
porém, ao mesmo tempo, enfrento dúvidas com relação ao caminho estar sendo
construído de maneira correta; preocupo-me com a incerteza de o material coletado ser
suficiente para a elaboração da dissertação; e ainda com o fato de, ao retornar para casa,
aos meus pensamentos e indagações, sentir-me sozinha ao procurar soluções para
minhas questões e lidar com a ansiedade e a angústia, com os estímulos e a
necessidades de decisões, mesmo após haver estado entre muitas pessoas no campo.
Além da questão de ver-me inserida em um contexto onde a maioria dos atores é
desconhecida, tenho que me adaptar à cidade, língua, linguagem, aos modos de agir e
interagir e, com isso, delinear os contornos da pesquisa. Com o passar dos dias planejo,
decido aonde ir, busco maneiras de acessar a internet, tanto para estabelecer e manter
contato com pessoas que me indicam este meio de comunicação, quanto para obter
endereços e informações a respeito de bandas que devo conhecer, bem como para
acessar histórias sobre o carnaval caribenho em Londres, e também para me comunicar
com meu diretor de estudos, M.Mello, solicitando orientações.
Apesar de meu domínio na língua inglesa e, portanto capacitada a entender boa
parte do que é dito, começo a perceber que não compreendo tudo quanto me é
18
necessário apreender. Junto aos caribenhos e seus descendentes, defronto-me com
gírias, expressões e musicalidades peculiares do accent do black britsh english, na plena
expressividade de suas construções, na exuberante oralidade de uma língua viva. A
despeito da saborosa experiência e das dificuldades com as quais realmente me
defronto, necessito comunicar-me, apresentar-me, estabelecer conversação, formular
questões, ouvir as respostas e, sobretudo, assegurar-me que efetivamente as
compreendo. Como se isso não bastasse, pelos mesmos motivos e razões, sou obrigada
a responder perguntas que a mim endereçam, às vezes embaraçosas para a etnógrafa, em
especial quando se trata de estabelecer comparações ou contraposições relativas ao
nosso carnaval (brasileiro).
Outro fator determinante para a maneira como a pesquisa se delineou, foi o
modo através do qual chego aos grupos caribenhos: em conversas com pessoas de uma
escola de samba de Londres (London School of Samba, LSS ou Unidos de Londres),
consigo referências, nomes e informações a respeito da existência de alguns grupos. Por
incrível que pareça, no entanto, foi a partir da propaganda de um concurso chamado
London Calypso Tent, que sozinha chego, em 2006, ao Yaa Asantewaa mas band,
primeiro grupo de fantasias (mas band), de estilo caribenho com o qual faço contato. A
partir daí, estabeleço algumas relações, que ao longo do tempo revelam-se importantes,
pois, por seu intermédio sou levada a outros grupos, tanto de fantasias, como musicais,
todos eles integrantes da concorrida parade de Notting Hill. As visitas freqüentes e a
especificidade de meu interesse como pesquisadora acabam me levando a estabelecer,
mais tarde, boas e bem esclarecidas relações com os administradores e lideranças dos
diferentes grupos. Descrevo os locais, ocasiões e situações, com maiores detalhes, nas
considerações do tópico seguinte.
Anoto algumas observações acerca do trabalho de campo. Definitivamente, este
se impõe em sua forma de exercício solitário do ofício. Como pesquisadora, por vezes
tenho algumas expectativas, o campo, porém, coloca-se à sua maneira, eventualmente
frustrando-as, embora em outras ocasiões as estimule, ao mostrar-me novos caminhos.
Acredito, em minha chegada àquele novo contexto, que devo ‘nadar a favor da
correnteza’, sem tentar impor-me: preciso obter determinadas informações, de um lado;
em contraposição, necessito observar e respeitar o tempo dos interlocutores, para criar
uma atmosfera de respeito e cumplicidade.
Freqüentemente as conversas acontecem de maneira informal, já que, em sua
maioria, as pessoas estão tendo contato comigo pela primeira vez. Considero assim não
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ser apropriado, num primeiro momento, solicitar a gravação de entrevistas; permito que
falem à vontade e deixo-as mais confiantes com a minha presença. Outro fato que
corrobora esta decisão é a questão de todos estarem em constante movimento,
trabalhando na confecção das fantasias e nos preparativos para as apresentações, não só
para o dia de carnaval, mas também para a competição entre fantasias.
Uma série de competições compõem aquele carnaval. A primeira elege os trajes
masculino e feminino mais representativos daquele ano e chama-se Costume Splash ou
Gala - em geral acontece em um final de semana anterior ao carnaval e dá aos
vencedores o título de Rei e Rainha, Príncipe e Princesa do carnaval. Uma segunda
competição acontece entre as steelbands, e denomina-se Panorama, realiza-se na noite
de sábado e antecede a abertura do carnaval. Por sua vez esta ocorre desde o início da
manhã de domingo até, aproximadamente, onze horas da mesma manhã; chama-se
Jouvay ou J’Ouvert (Jour Ouvert, termo vindo das raízes da língua francesa de
Trinidad). O carnaval, propriamente dito, começa com o desfile dos grupos infantis, a
partir do meio-dia até o início da noite de domingo. Por fim, o clímax se dá ao longo da
segunda-feira, com a apresentação competitiva dos desfiles dos grupos adultos. Tanto os
nomes quanto as estruturas das competições são ‘importadas’ do carnaval de Trinidad e
Tobago. Em geral, os grupos ‘brasileiros’ participam apenas do Splash e do desfile de
segunda-feira.
Ao término de minha estada em Londres, peço a alguns interlocutores a
permissão (verbal) para gravar algumas entrevistas. Ao perceber que a maioria
concorda, sinto-me muito bem, contudo preocupava-me pensar que deveria ter gravado
algumas conversas anteriores: fica a lição de tentar ser um pouco mais incisiva em
próximas ocasiões, porém sempre cuidando para não parecer coercitiva ou invasiva.
Algo semelhante acontece em relação às fotografias e à filmagem: geralmente
sou bastante cuidadosa no sentido de evitar assustar ou pressionar as pessoas com as
quais estou me relacionando; considero importante perguntar se permitem fotografar ou
filmar determinada circunstância. Não obstante o registro de diversas situações,
questiono-me se não teria possível um melhor aproveitamento com o equipamento
obtido com o intuito de complementar minha pesquisa, principalmente com imagens de
personagens importantes e pessoas entrevistadas.
Durante os dias de desfile, por exemplo, observo e filmo mais do que entrevisto
e fotografo. Há momentos em que me sinto extenuada: é preciso observar, caminhar,
carregar a mochila com os materiais necessários para os longos dias, procurar ângulos
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para as fotos e eventualmente trocar de câmera para filmar. Considero importante e
proveitosa a experiência, já que resulta em material fotográfico - ao ilustrar o trabalho
com fotografias, o leitor pode entender melhor o texto e o contexto. Há também material
em vídeo, brevemente disponível, embora não esteja finalizado para a primeira
apresentação desta dissertação. O material coletado, além de importante na elaboração
de descrições sobre o desfile, as danças, o ambiente, colabora na recuperação de alguns
aspectos que eventualmente possam ter sido esquecidos.
Em algumas circunstâncias, sinto-me constrangida ao solicitar permissão para
realizar registros com as câmeras: percebo, no correr do trabalho, que as legislações da
Inglaterra parecem ser mais restritivas quando se referem ao uso de imagens de pessoas,
sobretudo de crianças. Cito, como exemplo, um dia de ensaio do grupo infantil e juvenil
da Mangrove Steelband, no interior de The Tabernacle, sede da banda. Ao pedir
permissão à regente, arranger, para fotografar, ela me informa que devo dirigir-me ao
administrador da banda, band leader, Matthew Phillip. Sigo para o exterior do prédio
para encontrá-lo, indago sobre a possibilidade de fazer as fotografias e ele me responde
que não é possível fazer imagens de crianças dentro do Tabernacle, por haver legislação
que regulamenta e restringe o uso de imagens de menores de idade; acrescenta, porém,
que estando o grupo mais heterogêneo, durante os ensaios na rua, seria possível
fotografar ou filmar sem problemas.
Outro fato, que devo mencionar, ocorre alguns dias antes do desfile: ao chegar
ao Tabernacle, observo muitas fantasias prontas sobre as mesas e algumas pessoas
experimentando-as. Desejo fazer fotos daquele momento, que simboliza e parece
demonstrar que o grupo está pronto para o carnaval, depois de todo o tempo dedicandose ao trabalho. Pergunto a Athur, um dos designers da banda e participante antigo
daquele carnaval, se me permite fazer as fotos. Ele, diferentemente de outros dias em
que me dera permissão, informa-me que: “agora só pagando”. Fico muito
desconcertada, não insisto, nem pergunto a razão e dirijo-me a outra sala, onde estão
diversas pessoas.
Passam-se alguns dias e pergunto a outra pessoa se posso fotografá-la; a resposta
é idêntica: “só se você pagar”. Como já ouvira resposta similar, não fico mais tão
desconcertada; sinto-me intrigada com aquela colocação e considero fundamental e
viável, desta vez, perguntar se aquilo realmente se trata de uma condição. Sorrindo, ela
diz-me que não e se junta a um amigo, próximo dali, posando para a foto. Assim,
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percebo que provavelmente Arthur brincara de modo similar, porém eu não o entendera
e me retirara por conta de minha reação de total embaraço.
Ao chegar a Londres, necessito introduzir-me junto aos grupos caribenhos para
buscar mais informações acerca do carnaval por eles desenvolvido. Portanto, a
construção do corpus que embasa as discussões a respeito daquele ritual toma-me certo
tempo. Tal fato permite que a minha concepção daquele carnaval seja tecida in loco,
junto aos participantes e aos grupos que o compõem, no momento mesmo em que os
fatos estão acontecendo e não a uma distância abstrata.
Estar junto aos atores sociais locais no contexto ao qual pertencem, permite-me
situar-me, de certa forma, em posição próxima a eles. Percebo seus relacionamentos,
contradições e acusações, o modo como relatam sua história: como constroem, no
presente, acepções relativas a seu passado, seja ele mais próximo, quando já em
Londres, seja ele mais remoto, quando se referem a Trinidad, ou a outras ilhas do
Caribe; como justificam, ou não, suas atitudes, posições e alianças, de acordo com tais
circunstâncias.
Devo ressaltar que, embora tenha contato com os membros de órgãos do
governo que organizam tal ritual, com estes não estabeleço, com a mesma constância e
intensidade, relacionamento igual ao que mantenho com os participantes dos grupos
caribenhos. Dessa forma, as perspectivas aqui explicitadas fundamentam-se,
principalmente, nos pontos de vista destes últimos e, em menor proporção, a partir de
uma composição entre os diversos atores sociais, ou instituições, envolvidos no
Carnaval de Notting Hill. Para tanto, seria necessário permanecer maior tempo em
Londres, a fim de conseguir relações mais aprofundadas com os diferentes órgãos e
associações que fizeram, ou fazem parte, daquele evento.
Em poucas ocasiões, ao sair com a intenção de prosseguir com o trabalho de
campo, deixo a caderneta de notas ou as câmeras de lado, porém tal fato só ocorre em
algumas circunstâncias, principalmente no início. Em alguns momentos, sinto-me
inquieta com tal situação, preocupa-me saber se serei capaz de lembrar-me de tudo ao
chegar em casa e retomar à escrita do caderno de campo; não fazê-lo, entretanto,
implicaria sem dúvida algum tipo de não-participação, de não-integração. Em outros,
vejo-me diante da necessidade de perceber, ao mesmo tempo, os momentos apropriados
para formular perguntas, após selecioná-las, além de anotar, filmar ou fotografar –
algumas pessoas nunca permitem o uso de gravadores ou câmeras em conversas
profissionais. Porém, quando me encontro integrada como ‘participante’, como ‘igual’,
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as conversas acontecem mais abertamente e me tratam com maior familiaridade, não
obstante sentir dificuldades, algumas vezes, para entender tudo o que se diz, sobretudo
quando há um grupo maior de pessoas conversando ao mesmo tempo, falando aquele
inglês de forma muito rápida.
Durante todo o período em que estive em Londres, deparo-me, somente em uma
ocasião, com alguém que diretamente me diz não concordar com a pesquisa. Tal fato se
dá no Tabernacle, um dia, em conversa com várias pessoas, todos sentados ao redor de
uma mesa. Pergunta-me uma mulher quem sou e o que faço ali – porém ela já sabia a
resposta. De modo um tanto ríspido, observa que outras pessoas, supostamente para
fazer pesquisas, haviam entrado em contato com o grupo, para depois se aproveitaram
da situação, ganhando dinheiro às suas custas com a venda de livros ou fotografias. Fico
muito surpresa e explico não ter essa intenção, assinalando ainda o fato de não ser
provável eu vir a ganhar muito dinheiro com fotos ou publicações. Felizmente, outro
integrante do grupo intervém em meu favor; garante que eu não tenho tal intenção, por
ela considerada nefasta, e acrescenta que sou ‘bacana’, ou algo do gênero. Acredito que
essa explicação se deva mais a simpatia pessoal por mim, do que por conhecimento
acerca de minha intenção profissional. Contudo, mediante sua intervenção, a mulher
para de argumentar e o ambiente volta à configuração anterior.
Como diria Foote-White, ter explicações por demais elaboradas em determinado
ponto da pesquisa não adianta; para minha aceitação, importam mais as relações
pessoais que desenvolvo, do que explicações minuciosas e profissionais acerca do que
pretendo fazer: “Se eu fosse uma boa pessoa, o projeto era bom, se não fosse, nenhuma
explicação poderia convencê-los (...) de que era uma boa idéia” (1980, p. 79). Assim, os
próprios integrantes do grupo avalizam, perante todos, minha permanência e
confiabilidade.
Em uma outra situação, ao redor da mesma mesa, já as vésperas do carnaval e
em um momento de tranqüilidade de todos que ali estão, em sua maioria pessoas mais
velhas, que não se encontram tão envolvidas no corre-corre dos preparativos, uma
mulher oferece um prato de fish and chips (peixe e batatas fritos), e pãezinhos variados
para todos saborearem. Com meu cuidado habitual, agradeço, mas não como. Ela então,
com toda assertividade, diz algo como – “Ou você está com a gente, ou não está. Está
ou não?”. Asseguro, evidentemente, que estou. Sorrio e saboreio aquele prato,
considerado típico em Londres, além dos pãezinhos, é claro! Interessante é perceber
que, ao mesmo tempo em que sou ‘de fora’, esse fato parece indicar uma maneira de me
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‘chamarem para dentro’ e demonstrarem que de fato permitem, ou aceitam de alguma
forma, minha entrada e permanência.
Em algumas ocasiões, como no próprio dia de carnaval, ao chegar em casa
extenuada, não consigo escrever nada. No dia seguinte, tenho que acordar cedo e me
deparo novamente com uma incrível quantidade de informações e acontecimentos;
algumas vezes, portanto, gravo minha própria fala acerca do que observo.
No que se refere à escrita do texto etnográfico, há demanda, por um lado, de
algum entendimento acerca do que se escreve e, por outro, de habilidade e esforço que
permitam dar às experiências empíricas uma forma antropológica e acadêmica, com a
intenção de transpor a distância entre o material coletado no campo e a apresentação
formal de tais observações. Assim, as descrições que aqui apresento estão detalhadas da
maneira mais clara possível.
II. “O Problema e seu Cenário” - Entrada em Campo em Dois Tempos
Apresento, em continuação, dois momentos que considero, de certa forma,
distintos na pesquisa. Primeiro, descrevo minha participação junto às agremiações que
tomam parte no carnaval do Rio de Janeiro, uma vez ser naquele contexto que introniza
meu contato mais íntimo com tal ambiente e é essa experiência, justamente, que me
possibilita, mais tarde, ter contato e conhecer melhor carnavais não-brasileiros. Em
seguida, retomo o relato de minha inserção junto ao setting inglês.
Sem dúvida, minha estada em Londres em 2005, além de me propiciar maior
facilidade de localização espacial e locomoção na busca de locais, informações, pessoas,
grupos, em visitas a bibliotecas, assegura-me certa tranqüilidade: desde o princípio,
sinto que não vou me perder definitivamente e que posso ficar bem, embora sozinha.
Ademais, não me disperso ‘fazendo turismo’, ou seja, tenho sempre presente o fato de
não estar ali para visitar monumentos e locais pitorescos, concentro-me no intuito de
realizar um trabalho de campo, para o qual não disponho de mais do que quarenta e
cinco dias.
Desse modo, focalizo as duas ocasiões em que estive em Londres e relato-as da
forma como se deram no tempo, não em grau de importância. Apesar de concentrar
minhas atenções no trabalho de campo desenvolvido em 2006 e nos grupos caribenhos,
são igualmente relevantes os momentos anteriores da pesquisa, tanto no Brasil quanto
em Londres, por imprimirem estímulo, e despertarem em mim confiança na
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possibilidade de viajar à Inglaterra pela primeira vez para, em seguida, retornar à
metrópole londrina, ocasião em que observo o carnaval com um olhar ampliado, ao
mesmo tempo em que percebo que algumas distâncias não são tão intransponíveis
quanto parecem ser.
II. a. Grupos Carnavalescos Cariocas – Participação Junto ao
Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Viradouro
Bateria e Barracão – inserção e Aprendizado
“Com seus instrumentos bárbaros,
as escolas conseguem verdadeiros
milagres, efeitos impressionantes”
(Convocação do “Mundo Esportivo” para o
primeiro desfile das Escolas de Samba do
Rio de Janeiro, na Praça Onze, Carnaval de 1932).
Vista por muitos atores sociais como ‘o coração da escola’, é na bateria que o
samba pulsa e é, a partir dela, que a música e o ritmo se expandem, aglutinando em seu
entorno todos os demais componentes da agremiação e os foliões em geral.
Na Escola de Samba Unidos do Viradouro, como em tantas outras, a ala da
bateria é a primeira que começa a ensaiar. Geralmente, a partir do mês de maio, todas as
terças-feiras do ano movimentam a quadra da agremiação, por conta dos chamados
‘ensaios técnicos’ que se seguem até o carnaval: é por volta desse período inicial que
pessoas ligadas à bateria – os ritmistas, os diretores e o mestre – assim como as pessoas
da chamada comunidade e os outros componentes reaparecem na quadra da Escola.
O período inicial do novo ciclo carnavalesco torna aquele espaço um local de
reencontros, conversas, aproximações e contatos; reestrutura-se o grupo e aparecem os
novos atores sociais que pretendem nele inserir-se. Os diretores e o mestre da bateria
podem ser ‘de fora’, ou seja, podem vir de outros bairros ou agremiações, mas a maioria
das pessoas que participa dos ensaios e freqüenta a quadra é integrante ‘da Viradouro’,
torce e é apaixonada pela escola. Geralmente, mas não exclusivamente, essas pessoas
moram nas cercanias da quadra.
Pessoas que pretendem tornar-se ritmistas, muitas vezes dirigem-se ao mestre
Ciça, ou a algum dos diretores, a fim de obterem o aval para a sua participação.
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Comumente, permite-se que ensaiem, contudo sem promessas de que elas efetivamente
participem do desfile oficial do ano.
Durante o período inicial dos ensaios, poucas pessoas freqüentam a quadra.
Alguns homens participam de jogos de futebol, as ‘peladas’ semanais; outros entretêmse com a ‘sueca’, jogo de cartas que ocorre ao longo de quase todo o ano, sempre antes
da realização dos ensaios. Com o futebol jogado após o ensaio, o mesmo não acontece,
pois é interrompido com o decorrer do tempo e com a proximidade das eliminatórias
dos sambas-enredo, previstas para o final de julho ou início de agosto.
Como relato anteriormente, minha ida a uma escola de samba, pela primeira vez,
deve-se a convite de minha amiga e comadre Luciana (sou madrinha de sua filha), que
conhece algumas pessoas de lá: o diretor de bateria, ‘Seu’ Arídio, além de alguns
ritmistas. Logo no primeiro dia, cumprimentamos algumas pessoas, entre elas, Seu
Arídio. O ensaio estava para começar e ele entrega um chocalho a cada uma de nós,
sinalizando para que nos juntemos ao grupo, já posicionado no local de ensaios. Nessa
ocasião, ainda não entendo o real significado e a dimensão de tudo aquilo. Começo a
tocar de forma bastante desajeitada, pois nunca havia tido contato com o instrumento,
nem com aquele contexto. Luciana me avisa: “seu braço vai começar a doer, não liga
não, esquece, que daqui a pouco passa”. De fato, os músculos do braço, não
acostumados ao peso da madeira e das platinelas, nem ao hábito do esforço repetitivo e
rítmico, começam a arder, porém ‘não podemos parar’: todos nos observam. Com o
tempo, felizmente, os músculos se acostumam e a dor cessa.
A atenção dos diretores, ajudantes do mestre (diretor principal, ocupante do
degrau mais alto na hierarquia da bateria), volta-se toda para os ritmistas. Há um diretor
para os chocalhos, outro para os tamborins, além de mais sete ou oito para a ‘cozinha’,
denominação empregada para os instrumentos mais pesados, pertencentes ao acervo da
escola, que se localizam na parte de trás da bateria; são estes, os repiques (ou
repiniques), as caixas (caixas-de-guerra) e os diferentes surdos (de primeira, de segunda
e de terceira). O mestre comanda as ‘paradinhas’, bossas ou convenções, que podem
acontecer por naipe de instrumentos, por mais de um naipe ao mesmo tempo, ou por
toda a bateria. O mestre é a pessoa que “dá a última palavra sobre assuntos referentes à
bateria” (CUNHA, 2001).
Certo dia, Mestre Ciça percebe que há pessoas que não sabem tocar muito bem;
toma o chocalho de uma ritmista em suas mãos, diz: “não é assim, não”, e imita o toque
atrapalhado dos novatos. “É assim, ó!”, mostra, tocando com força e ritmo, de modo a
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ensinar quem não sabe tocar – meu caso – a perceber perfeitamente o ritmo e o
movimento que seus braços descrevem; observo a demonstração de Mestre Ciça e,
finalmente, entendo como se deve tocar. Naquele local, apesar das brincadeiras e da
amizade, não se poupa seriedade para o trabalho que se realiza no curso dos ensaios –
leva quase um ano para tudo estar pronto e ser apresentado de forma impecável na
avenida Marquês de Sapucaí, a ‘Passarela do Samba’.
Tanto a imitação quanto a repetição são elementos fundamentais para a
aprendizagem na escola de samba; a repetição de trechos e músicas inteiras é uma
estratégia constante. Além do exercício de aprender a tocar e de tocar, é preciso suportar
a pressão psicológica que o mestre e os demais diretores empregam para que os
ritmistas alcancem seu melhor desempenho e para assegurar sua assiduidade aos
ensaios, sem falar na dor e no esforço físico, cada vez mais intensos, à medida que se
aproxima o carnaval (PRASS, 1998).
Consigo também superar outra grande dificuldade: coordenar o andar e o tocar
ao mesmo tempo. Verificando minha dificuldade em manter o ritmo do instrumento e
caminhar ao mesmo tempo, Luciana indaga: “você não está conseguindo tocar (e andar
ao mesmo tempo)?” Ao responder que não, ela me diz para prestar mais atenção ao
tocar e andar mecanicamente. Vejo que ela tem razão, sigo as instruções e consigo
realizar a manobra, nada fácil – é preciso ter persistência, disposição física e vigor para
permanecer de pé, tocando por mais de uma hora consecutiva.
Durante o período inicial dos ensaios de terça-feira, os ‘ensaios técnicos’, até a
escolha do samba enredo, somente a bateria participa. Posteriormente, também estão
presentes os dois casais, de mestre-sala e porta-bandeira, as alas de comunidade, as
baianas e os passistas. O tempo de ensaio aumenta gradativamente, de acordo com a
proximidade do carnaval. Por volta de julho ou agosto, iniciam-se os ‘ensaios abertos’
aos sábados, que começam por volta da meia-noite e se estendem até as quatro ou cinco
horas da manhã. Há ainda um ensaio semanal, a partir de dezembro, que se realiza aos
domingos, em ruas da cidade, totalizando três ensaios semanais fixos. Atualmente,
desde 2005, acontecem mais um ou dois ensaios na própria Marques de Sapucaí. No
ano de 2006, ocorrem ainda ensaios em algumas segundas-feiras na ‘Cidade do Samba’,
onde se localizam os barracões de todas as agremiações do Grupo Especial.
Durante os ensaios na quadra, a ala da bateria é alocada sobre uma espécie de
tablado, localizado na área lateral, à direita do palco principal. O tablado possui quatro
ou cinco degraus bastante largos, que são ocupados pelas pessoas que compõem a ala,
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com seus instrumentos. O primeiro degrau tem uma altura aproximada de 40cm e o
último fica a cerca de um metro e meio do chão.
Na parte da frente da ala, localizam-se os naipes de cuícas e chocalhos, que se
posicionam no chão; no primeiro degrau, ficam geralmente duas filas de tamborins; e
nos degraus posteriores, instalam-se as caixas, os repiques, taróis e surdos. Quando há
muitos ritmistas, os que tocam tamborins também ficam no chão. Em geral, os
instrumentos que dão início ao ensaio são as caixas-de-guerra, os repiques e os surdos,
depois entram os tamborins, os chocalhos e as cuícas. No começo dos ensaios, a bateria
toca sozinha, incessantemente, durante cerca de trinta ou quarenta minutos, sem
acompanhamento do intérprete e dos músicos; estes participam dos ensaios e se
apresentam no palco somente a partir da escolha do samba enredo. O momento inicial
(conhecido como ‘esquente’) é também uma demonstração: escuta-se apenas o ‘ritmo’,
(período em que apenas a ala da bateria toca) e as ‘paradinhas’, bossas ou convenções.
Quando a bateria pára, as pessoas que estão na quadra aplaudem, e o mestre, os
diretores, os ritmistas e o presidente da escola ficam satisfeitos e orgulhosos.
Nos ensaios abertos, os ritmistas ficam sobre o tablado, e o mestre fica sobre um
pequeno ‘palanque’, na frente da bateria, para melhor controlar a situação e ser mais
visível para os ritmistas. Quando acontecem os ensaios de rua, o mestre e os integrantes
da ala da bateria vem no chão, caminhando na frente e conduzindo o grupo. Os diretores
de cada naipe posicionam-se na frente dos ritmistas, ou de maneira estratégica, de modo
a poderem ser vistos, quando repassam as instruções e os comandos dados pelo mestre.
Aos sábados, a bateria geralmente tem menos integrantes, cuja presença é
cobrada de forma menos incisiva; algumas pessoas participam do início do ensaio e
depois saem para ‘curtir’ outros ensaios de escolas de sambas, ou tocar em baterias de
diferentes agremiações. Há pessoas que tocam em mais de uma bateria e, portanto,
desfilam em mais de uma escola. No entanto, caso sejam promovidos a diretores, devem
optar pela agremiação à qual se dedicarão com maior afinco ou exclusividade.
Há ritmistas fiéis a uma escola; outros acompanham a dinâmica dos mestres. Por
essa razão, quando um mestre de bateria passa a reger a ala de uma outra agremiação,
pode levar ou ser acompanhado por muitos ritmistas da agremiação anterior. Circular
entre as escolas é de grande importância para a versatilidade no aprendizado de breques,
bossas ou diferentes ‘macetes’ técnicos para lidar com os instrumentos. Esses fatores
formam cada grupo e definem sua identidade sonora, que não é estática e sim fluida,
transformada na proporção da circulação dos atores entre as escolas (PRASS, 1988).
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As eliminatórias dos sambas-enredo começam em meados de julho, ao mesmo
tempo em que se iniciam também os ensaios aos sábados. No primeiro dia, todos os
concorrentes apresentam seus respectivos sambas; nos ensaios subseqüentes, há uma
divisão dos sambas em duas ‘chaves’, por meio de sorteio. Em um dos sábados,
concorre a primeira metade dos sambas, no outro, a segunda. A cada eliminatória, duas
ou três composições são desclassificadas, até que restem cerca de cinco em cada sábado.
Nesse ponto, elas se unem novamente em uma só chave, com cerca de dez composições.
Assim, acontece a semifinal e, posteriormente, a final, geralmente com quatro sambas.
Dia de final é dia de festa!
Como acontece na maioria dos anos, em 2003 há uma camisa específica para tal
data, confeccionada especialmente para a ala da bateria. Dentro da sala onde se alocam
os instrumentos, com exceção das cuícas, tamborins e, atualmente, parte dos chocalhos,
que são pessoais, Ulisses e Seu Arídio (diretores de bateria), com mais duas pessoas,
organizam uma fila e retêm, uma a uma, a carteirinha dos ritmistas, enquanto outra
pessoa entrega as camisas, a serem usadas naquele momento. Após a verificação da
carteirinha, esta é devolvida e deve-se voltar para continuar tocando; no entanto, quem
porventura a esquece, não pode pegar a vestimenta naquele momento. Naquele 19 de
outubro, quando chego à quadra com o ensaio já iniciado, olho a bateria e fico
maravilhada com seu brilho – os ritmistas, com suas camisas estampadas, formam um
conjunto afinado, tanto audível quanto visualmente.
Embora a bateria deva ser imparcial, sempre há um samba considerado melhor,
por ter mais ritmo e ‘suíngue’ para ‘levantar o público na avenida’. Naquele ano, não foi
diferente; alguns dias antes da final, o mestre Ciça avisa que, mesmo que o samba
vencedor não seja o preferido pela maioria, devemos continuar tocando com
entusiasmo. A razão desse aviso deve-se ao fato de, na final do concurso dos sambasenredo de 2002, o primeiro colocado não ser o preferido, portanto vários ritmistas,
indignados, abandonaram os instrumentos sobre o tablado e se retiraram – a bateria
esvaziou-se, do mesmo modo que a quadra. O presidente então chamou a atenção de
Ciça, que repassa o recado para evitar a repetição daquela situação.
Com relação às carteirinhas, os ritmistas antigos, ou que desfilaram no carnaval
anterior, têm prioridade, e nem todos os que participam dos ensaios conseguem ter uma.
Em 2000, ano que começo a ensaiar no Viradouro, não consigo receber minha
carteirinha durante todo o ano; apesar de ensaiar o maior número possível de vezes, não
tenho certeza de recebê-la e tampouco a fantasia para desfilar. Um dos motivos para
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essa situação foi o fato de ser novata, torna-se necessário algum tempo para que me
aceitem como ritmista. A possibilidade de permanência na bateria passa a ser uma
construção quotidiana; requer, além de habilidade técnica, disciplina com relação à
freqüência, sendo de grande valia a concentração quando da participação nos ensaios
(PRASS, 1998).
Em todos os anos, percebe-se como alguns ritmistas barganham para
conseguirem a carteirinha, nem sempre a obtendo, porém. Estar de posse de uma
carteira oficial de escola de samba dá direito ao indivíduo de entrar nos ensaios das
demais escolas de samba, salvo em raras exceções.
Mesmo sem ter a carteira da Viradouro no dia da entrega das camisas, recebo
uma. Fico muito satisfeita e, nos ensaios seguintes, passo a usá-la: vestir a camisa da
bateria da escola confere status dentro do próprio grupo, além de afirmar o sentimento
de pertencimento a ele.
Logo começam os ensaios de rua, que acontecem no centro de Niterói, na
avenida Ernani do Amaral Peixoto e, eventualmente, em uma rua no Paraíso, em São
Gonçalo. A prefeitura da cidade fecha a avenida aos domingos, desde o primeiro de
janeiro até o último, antes do carnaval. Todo o conjunto da escola deve estar presente
nesses ensaios, desde a comissão de frente, passando pelas alas da comunidade, de
passo marcado, aos dois casais de mestre-sala e porta-bandeiras, à ala das crianças, à
velha guarda e aos passistas, à ala da bateria e, ao lado dela, ao grande caminhão de
som, que leva sobre ele os intérpretes, ou ‘puxadores’ do samba, e os demais músicos,
cavaquinista, percussionista, coro etc.
Ao contrário dos integrantes de outras alas que pagam pelas suas fantasias, os
integrantes da bateria as recebem de graça. O ritmista ‘compra’ seu passe para o desfile
com muito suor e trabalho (CUNHA, 2001). Há ritmistas que não ensaiam muito, como
os mais antigos, ou as mulheres, esposas ou ‘parceiras’ de alguém que tenha posição
mais elevada na hierarquia local. Esse direito não me cabe, evidentemente – além de
novata, não sou ‘local’, nem da ‘comunidade’.
Persisto ensaiando até o dia da entrega das fantasias, marcado para uma
segunda-feira, duas semanas antes do carnaval. Ciça avisa-me para ir à tarde, pois
entregaria pela manhã as roupas de quem estava com a ficha em situação regular (nas
fichas são preenchidos os dados dos integrantes e o tamanho ou medidas das fantasias).
Por estar apreensiva e desejar acabar logo com aquela situação e com a sensação de
incerteza, resolvo ir pela manhã. Ao chegar à quadra, posso visualizar as fantasias que
30
estão penduradas ou deitadas no chão dos camarotes, colocadas em grandes sacos
pretos. Os camarotes abrangem um amplo espaço, de cerca de quarenta metros de
comprimento por oito ou dez de largura, situado em um nível superior ao restante do
espaço.
Seu Arídio logo se dirige a mim: “Não falamos para vir à tarde?” “Que droga”,
penso, volto meus olhos para cima e Ciça acena, indicando-me com gestos para voltar
mais tarde. Parto com Luciana, que me acompanha desde a manhã na situação descrita,
com ela retornando no início da tarde. O mestre olha lá de cima, sorri e acena para
irmos até ele.
Sinto meu coração disparar durante a subida, que me parece interminável. Ciça,
sentado junto a uma mesa, anota quem já recebera, ou não, a fantasia. Pergunta nossos
nomes e brinca, sorrindo, ciente de nosso nervosismo, tal como todos os outros diretores
que lá estão. Anota nossos nomes e explica que devemos pegar as fantasias com
Ulisses, Arídio ou Mauro, diretores de bateria, posicionados um pouco mais atrás.
Como nossas medidas não estão tomadas, perguntam o tamanho da roupa que usamos
(P, M, G ou GG) e o número que calçamos. Como se trata de bota, lembramos de pedir
um número maior, dica que nos deram ritmistas mais antigos – calçados apertados
provavelmente nos causem ferimentos nos pés durante o desfile. Ciça nos alerta também
para evitarmos consumir muita bebida alcoólica no dia do desfile.
Carregamos, desajeitadas, os grandes sacos (utilizados geralmente para coleta de
lixo, são feitos de plástico preto, com capacidade de 100 litros), contendo as fantasias, e
descemos para experimentá-las – havendo algum problema, uma costureira, no local,
encarrega-se do conserto. Vamos ao banheiro para vestir a calça, o casaco-capa e, por
cima de tudo, o resplendor, que se apóia nos ombros, com penas e uma espécie de
‘babador’, todo enfeitado. O chapéu tem uma estrutura de arame, que deve ficar bem
justo e preso à cabeça, para impedir que, no momento das coreografias, haja qualquer
risco de cair ou soltar-se, o que acarreta perda de pontos para a escola. O peso e a
pressão do chapéu incomodam e podem chegar a ferir. Tudo, porém, está em ordem
com nossas fantasias, mesmo sendo a roupa bastante quente, considerando as elevadas
temperaturas do verão carioca.
No dia do desfile, vários ônibus são cedidos, provavelmente pela prefeitura e por
empresas privadas, para transportar os componentes das escolas até a Marquês de
Sapucaí. Seguimos também em um dos ônibus, em direção ao nosso primeiro desfile
como ritmistas da bateria da Unidos do Viradouro.
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A concentração da escola realiza-se ao lado do ‘Balança’, prédio localizado à
esquerda do sambódromo, na esquina da Rua de Santana com a Avenida Presidente
Vargas; em determinado momento, os integrantes das escolas e os carros alegóricos
entram em uma área fechada, por uma espécie de alambrado, formando as alas da escola
na ordem estabelecida para o desfile – a bateria posiciona-se na frente desta formação.
É realmente emocionante ‘entrar na avenida’: sinto mesclarem-se ao tempo de
quase um ano de preparativos, tensão, responsabilidade; ao mesmo tempo, vibro com
sentimentos de euforia, de união do grupo, de disputa com as outras escolas, de
expectativas – é minha primeira vez! Não faço idéia de como acontecem os desfiles, não
conheço a dimensão da própria Passarela do Samba: seu tamanho, as luzes, o som, o
público ali presente.
A escola anterior deixa a avenida e, em seguida, é nossa vez de entrar. A bateria
da Unidos do Viradouro tem Mestre Ciça no comando e Luma de Oliveira como
Rainha. Passamos pela primeira arquibancada, viramos à direita, onde há um recuo;
nesse local a bateria se posiciona, enquanto uma parte do conjunto desfilante atravessa a
avenida. São muitos sons, muitas luzes; sentimos aumentar a expectativa acerca do que
o Mestre nos indicará fazer: apesar de todos os ensaios, a apresentação somente fica
‘pronta’ na hora do desfile oficial – tanto os diretores quanto os ritmistas devem prestar
muita atenção.
Em circunstâncias como as que envolvem as escolas de samba, pode-se perceber
o sentido de grupo e uma grande solidariedade entre todos. Diferentes trajetórias tecem
a história da escola: são experiências individuais, que formam uma história coletiva.
“Enquanto grupo, a escola de samba dá conta das diferenças, e permite que sejam
diferenças exercidas sob a aura da unidade carnavalesca” (PRASS, 1998).
A bateria desfila como um grupo compacto, com fantasias idênticas; reproduz o
que a escola possui de mais individual, embora eventualmente possa imprimir algumas
modificações na sonoridade, sua marca registrada: seu ritmo musical, produzido pela
percussão, e acompanhado pelo canto dos componentes da agremiação e dos intérpretes
(DAMATTA, 1997, p. 130).
É impressionante ver a enorme quantidade de pessoas que aplaudem e cantam o
samba! Uma parte do público fica bem próxima dos desfilantes e é possível olhar de
perto o rosto das pessoas que vibram, emocionadas com o espetáculo do carnaval. A
emoção do público mistura-se com a emoção dos componentes da escola; produz-se
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uma sensação indescritível; como bem coloca Prass, “era a maior platéia da minha vida”
(1998).
Após a passagem de boa parte do conjunto da escola, a ala sai do primeiro recuo
e se integra ao corpo desfilante, com ele evoluindo até parar para entrar no segundo
recuo, desta vez em uma rua à esquerda. Depois de o restante da escola passar, a ala
então se reintegra ao grupo, e fecha o desfile.
Na ‘dispersão’, um caminhão aguarda, com as pessoas responsáveis pelo
recebimento das ‘peças’ (instrumentos) a serem devolvidas pelos ritmistas. Alguns
ônibus esperam os integrantes da escola que desejam retornar à quadra, enquanto outros
deles permanecem nas imediações do Sambódromo; lá existem inúmeras barracas onde
se vendem bebidas, comidas variadas, camisas de escolas e onde ocorrem eventuais
‘encontros’. Existem, ainda, as pessoas que desfilam em mais de uma escola e ficam à
espera dos próximos desfiles – cansativo, porém gratificante.
Na ocasião posterior, no que diz respeito a minha inserção em campo, volto-me
ao barracão da Escola. Sou apresentada ao assistente do carnavalesco por uma também
ritmista do naipe de chocalhos - esposa de um dos diretores da ala da bateria e também
funcionária temporária da agremiação como ‘aderecista’ -, acompanho-o em meio à
aparente confusão e faço perguntas que são pacientemente, mas sem delongas,
respondidas.
Naquele espaço, estão presentes e desempenham diferentes e complementares
funções (utilizo as categorias nativas em relação aos cargos e funções desempenhadas):
o administrador do barracão; o conferente geral do barracão; o carnavalesco; o
figurinista; a confecção, o projetista que faz os desenhos dos carros e demais alegorias,
calculando materiais e maneiras de colocar os diferentes mecanismos em ação; o
responsável pela ferragem; o responsável pela madeira e carpintaria; pela pintura,
considerado pintor de arte; pela costura; pela resina e fibra; pela parte elétrica; pela
mecânica; pela placa; pelos adereços. Cada uma dessas pessoas, responsáveis por
determinados setores, tem sob seu comando outros funcionários.
Quando o enredo se refere a um fato histórico contratam um historiador que
realiza uma pesquisa acerca do tema (enredo). O enredo deve ser defensável frente aos
jurados, devendo convencê-los, a partir das fantasias e alegorias - que representam os
elementos presentes no desenvolvimento do enredo, apresentados ao júri por meio de
um texto e também de um mapa contendo não só a descrição, mas também a estrutura
da apresentação e as imagens das fantasias e alegorias -, que a agremiação apresenta e,
33
por meio delas, traduzir o tema escolhido. A boa nota depende da capacidade de uma
‘tradução’ plausível.
Segundo o assistente do carnavalesco, convidado por este para integrar sua
equipe, pois trabalharam juntos em outra agremiação, há um trabalho de cerca de seis
meses que antecede a apresentação do enredo aos responsáveis pela agremiação.
Período necessário para a realização da pesquisa, escrita da sinopse - posteriormente
entregue aos compositores, que elaboram os sambas enredo baseados nela, sambas que,
por sua vez, participam das eliminatórias - e ainda para elaborar os figurinos. Neste
caso, o carnavalesco apresenta a idéia e os figurinistas a executam: primeiro em forma
de desenho, depois em moldes de papel e por fim, recortam tecidos e dão forma às
roupas.
Um enredo patrocinado leva a ‘escola’ a solicitar ao carnavalesco que apresente
um patrocinador. O carnavalesco contrata um ‘captador de recursos’, que recebe pelo
seu trabalho 20% do valor arrecadado. Além da verba dos patrocinadores, as escolas
recebem uma ‘subvenção’ da prefeitura e da LIESA (Liga das Escolas de Samba),
segundo relata o assistente. O montante ‘cedido’ por meio da subvenção depende da
colocação da escola no carnaval do ano anterior, quanto melhor a colocação, maior o
valor, podendo, (ainda de acordo com o relato), chegar a sete milhões de reais,
oferecidos à campeã do ano anterior. As escolas precisam justificar a utilização do
dinheiro da subvenção e também do originado a partir de contratos com empresas ou
instituições, principalmente se estiver vinculado a alguma lei de ‘incentivo à cultura’,
como a Rouanet4.
Atualmente enquadrar: a execução dos enredos; o quadro de trabalhadores
contratados pelas agremiações; as ‘fundações’ criadas pelos patronos e ‘sem fins
lucrativos’, voltadas ao atendimento da ‘comunidade’; o apoio aos funcionários, que
pode representar o trabalho nos quadros da escola, são alguns dos recursos utilizados
como justificativas para a necessidade e importância de liberação da verba. O governo
aceita as justificativas e leva organizações dessa categoria a angariar fundos
provenientes de ‘leis de incentivo à cultura’, dinheiro este, que é abatido das taxas
cobradas pelo governo às empresas, dinheiro público, portanto.
4
O Ministério da Cultura apóia projetos culturais por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei nº
8.313/91), Lei do Audiovisual (Lei nº 8.685/93) e também por editais para projetos específicos, lançados
periodicamente.
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O exemplo da Mangueira é citado. A Escola recebe do patrocinador, em 2005,
uma verba de cinco milhões de reais. O enredo sobre ‘energia’: “Mangueira Energiza a
Avenida. Carnaval é Pura Energia e a Energia é o Nosso Desafio” é bancado pela
Petrobrás. Além dessa soma, acrescenta-se a subvenção. Expender quatro milhões e
meio de reais ou cinco milhões de reais pode levar uma agremiação ao campeonato,
com (dois milhões e quinhentos mil reais é possível fazer uma apresentação em aparatos
que a mantenha no Grupo Especial. O assistente diz que “aquela Sapucaí pode ser a
glória ou a derrota total do carnavalesco”.
No barracão, se trabalha com uma carga horária estipulada mais as horas extras.
O profissional avalia que essas compensam o não recebimento do décimo terceiro
salário. A maioria dos trabalhadores não é regularizada e é contratada na medida em que
o grupo necessita de seus serviços, configurando postos de trabalho sazonais que
crescem em número com a aproximação do carnaval.
Edward, assistente do carnavalesco, não pode ficar parado, precisa estar atento
ao encaminhamento dos afazeres e ao empenho dos trabalhadores. Conversamos
enquanto o acompanho em sua aturdida andança e cautelosa verificação ao longo
daquele amplo espaço. O andar inteiro abriga diferentes setores implicados na produção
e na confecção das fantasias e das alegorias ou ‘cenários móveis’, como bem coloca um
dos entrevistados.
Carnavalesco e projetista trabalham juntos, o projetista é um engenheiro que
pensa em como realizar as idéias do carnavalesco; resolve como instalar canos e
ferragens; determina como manter o carro equilíbrio, por exemplo, quando há uma peça
que deixa a alegoria mais pesada de um lado, precisa fazer algo do outro lado para
compensar o desequilíbrio; cria soluções para o amortecimento e a tração dos carros
alegóricos; e ainda resolve como e onde instalar extintores e proporcionar um sistema
contra incêndio eficiente, visto que materiais extremamente voláteis (como as madeiras
e os isopores), estão muito próximos das estruturas que são soldadas.
A ‘costura’ é composta por uma equipe de 18 costureiras, agregadas em um dos
cantos de um andar superior do barracão, que fazem tanto a ‘base’ das roupagens,
quanto alguns dos elementos que as compõem, também podendo incrementar as
alegorias. Uma ampla mesa fica instalada ao lado da equipe, instalada junto às máquinas
de costura, e nela são recortados os moldes em papel e também os tecidos, que, em
seguida, são trabalhadas pelas costureiras manualmente ou à máquina.
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O ‘adereço’ emprega os ‘aderecistas’. Esta categoria compreende cerca de até
duzentas e cinqüenta pessoas, que ornamentam e dão o acabamento final em todas as
fantasias e parte das alegorias confeccionadas no barracão: colam, encaixam, rasgam,
separam materiais, penas e plumas, sejam elas de avestruz, ganso, galinha, cegonha,
faisão ou sintéticas, cortam tecidos já preparados para serem itens das roupas, lidam
com pedrarias, fitas e toda sorte de material utilizado na composição das indumentárias.
A ‘placa’ é conduzida pelo ‘plaqueiro’, responsável por fazer as peças de resina.
As estruturas são aquecidas e amolecidas, podendo assim ser moldadas. De diferentes
tamanhos e formatos, são utilizadas como bases e decoradas tanto para composição de
fantasias, quanto para a composição de alegorias. A resina manipulada pode ainda
funcionar como molde para o que será, na seqüência, esculpido em gesso ou fibra de
vidro. As esculturas, na maioria das vezes, são partes ou detalhes dos carros alegóricos e
também podem integrar outras alegorias – estruturas menores que os carros, sem motor
e empurradas ou carregadas pelos próprios desfilantes, aparecem no desfile em meio ou
à frente da escola.
No ‘isopor’ inicia-se o processo de feitura de todas as esculturas, segundo relato
da artista plástica, a ‘escultora’ responsável por esse setor. A planta dos carros e dos
demais elementos componentes é recebida e então os escultores põem-se a dar forma a
pedaços de isopor compacto. Grandes ou pequenos bocados são manuseados,
recortados, serrados, lixados, queimados, colados, entalhados, até que aqueles angulosos
sólidos geométricos se transformem em alvos artefatos, são taças, pilares, cavalos,
palhaços gigantes, cristas de ondas, que trazem em sua brancura uma tranqüila palidez.
Prontas e acabadas, colocadas em seus devidos lugares, a transformação em objetos
coloridos e ornamentados provocam o contraste. Num espaço, horizontal e vertical, que
não comporta as por vezes enormes estruturas (de, por exemplo, oito metros de altura),
os artefatos são realizados em partes e conforme uns são levados em direção às suas
bases de sustentação (localizadas no andar térreo), outros ocupam seus lugares.
A ‘fibra’, pode ser o passo seguinte à manipulação do isopor. Segundo os atores
locais é o trabalho mais insalubre do barracão. O cheiro exalado pela composição
química expande-se por todo o lugar e a fibra de vidro em sua volatilidade é aspirada,
pela respiração, por quem trabalha nas imediações. Duas pessoas são responsáveis pelo
setor. As esculturas de isopor estando de posse dos ‘fibreiros’, são envolvidas por
aquela forma líquida, que endurece e dá ao material inicial uma resistência que não lhe é
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peculiar. A feitura dessa ‘capa’ mais adequada à pintura, à colagem de materiais e a
suportar intempéries climáticas, é acompanhada de perto pela escultora.
A ‘madeira’ e a ‘ferragem’ ficam localizadas no primeiro pavimento. Os carros
alegóricos são completamente ‘despidos’ dos apetrechos relativos ao carnaval anterior e
então podem começar a ser (re)montados, de acordo com as plantas referentes ao
carnaval do ano seguinte. O tempo do carnaval é vivido um ano à frente e com pressa.
No processo de desmontagem as madeiras (MDF), quase todas são jogadas fora, com a
exceção das mais amplas que não estão danificadas. Somente as maiores ferragens são
reutilizadas, a maior parte dos tubos e estruturas de metal é também descartada, o
mesmo acontecendo com os adereços (deles poucas penas são aproveitadas) e isopores.
O processo de reutilização ou venda de alguns materiais para escolas de samba menores,
de outras cidades, assim como doações ou trocas são possibilidades presentes.
O ano de 2006 é o meu último desfile, mas ainda não sei disso. Presente no
início da temporada de ensaios, deixo a quadra ao final de julho, quando vou para
Londres pela segunda vez. Aviso ao Mestre o meu afastamento, temporário e
necessário, ele compreende e diz aguardar a minha volta, reservando assim o ‘meu
lugar’. Na volta já não sei mais se é possível freqüentar os tantos ensaios semanais, virar
noites e ‘perder’ dias, tendo que concluir a elaboração da parte escrita da pesquisa.
Todas as informações de Londres fervilhando na cabeça, caderneta de campo, diários,
fotografias, fitas de áudio, vídeo, materiais publicitários, revistas, artigos, livros para
ler, informações para buscar... Não retorno mais à quadra, tampouco ao barracão.
Apenas vou à Cidade do Samba em duas ocasiões, dois ensaios com a ala da bateria e
músicos.
Não mais volto ao ‘território imaginado’ do samba. Território que se faz
presente, desde então, por meio dos dados, das observações lembradas, das inúmeras
anotações, objetivas ou fugidias, dos pensamentos, dos dedos e dos computadores e dos
papéis (milhares), no exercício da escrita. Território que me cerca e envolve, juntando
duas experiências intensas e reveladoras. A capital inglesa aparece como novo
momento, inusitado e complementar. Ver uma escola de samba desfilar pelas ruas de
Londres, desfilar em uma escola de samba em Londres... no primeiro ano aquilo me
parece uma intrincada confusão. No segundo ano, entretanto, observar a quantidade de
grupos que integram o carnaval, conhecer as pessoas que ‘fazem’ o carnaval, me
absorve. Carnaval multifacetado que apresento a seguir.
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II. b. Participação Junto a Uma Escola de Samba Inglesa em 2005
No ano de 2005 participei de um concurso de redação promovido pela produção
de um músico brasileiro, Lenine, e veiculado por uma rádio no Rio de Janeiro. Assim
conquistei o primeiro prêmio - passagens aéreas de ida e volta e alguns dias de estadia
em Paris, para assistir ao show do artista. Encontrava-me, inesperadamente, em uma
situação com a qual não havia contado. Considerando tal oportunidade irrecusável,
organizei minha vida acadêmica junto aos professores do mestrado da Universidade
Federal Fluminense, arrumei as malas e fui.
Contava com a possibilidade de alojar-me na casa de uma prima, Adriana
Nascimento, que estava em Paris por conta da realização de seu doutoramento
‘sanduíche’. De tal maneira estendi a data de retorno do bilhete aéreo e comuniquei-me
com o mestre de bateria da escola de samba Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, por meio
de correio eletrônico, acreditando que ele estivesse em Londres, pois havia viajado para
lá, por conta de seu envolvimento com a escola londrina Paraíso School of Samba,
como faz todos os anos. De fato, ele ainda ia passar alguns dias naquela cidade e
sinalizou que eu podia me receber, pois contava com um local para me hospedar, mas
que dentro de dois dias estaria voltando para o Brasil.
A partir do ano de 2002, passei a freqüentar e participar dos ensaios da bateria
da Escola de Samba Estácio de Sá. Assim como era ritmista na Unidos do Viradouro,
conquistei a mesma posição tocando chocalho na ‘Estácio’. Posteriormente, por volta de
2004, um grupo de pessoas, inclusive eu, fundamos nesta agremiação um grupo
batizado de ‘Memória Berço do Samba’. Nossas atividades estavam voltadas para a
busca, reunião, recuperação e organização de fotografias, textos, músicas, depoimentos,
filmes e materiais diversos sobre a agremiação. Apesar de nosso desejo explícito de não
nos
vincularmos
politicamente
a
determinados
grupos
dentro
da
estrutura
organizacional da escola, em determinado momento, no ano de 2005, viemos a nos
tornar o ‘departamento cultural’ da escola. Mantivemos durante cerca de dois anos uma
sala na quadra da agremiação, aberta à visitação do público, de estudantes e
pesquisadores, onde ficava reunido o material que coletávamos e produzíamos. O
projeto realizou ainda, em parceria com a empresa ‘Bogotá Filmes’, um filme de média
metragem que explorou aspectos da história da agremiação, permeado com entrevistas,
fotografias, músicas, narrativas, imagens de desfiles e ensaios, chamado “O Rugido do
Leão”, visto que o símbolo da escola é um leão. Desta vivência, se deu minha relação
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com o mestre de bateria, também participante do grupo, e que ora me recebia em
Londres.
Acreditando que não passaria mais de dois dias naquela cidade, arrumei uma
pequena mochila, deixando grande parte da minha bagagem na casa da Adriana e
apressei-me em comprar a passagem mais barata que pude encontrar. No dia seguinte,
embarcava para Londres em um ônibus da Eurolines, que levaria cerca de oito horas
para chegar ao destino final.
O mestre havia explicado para levar e apresentar minha passagem de volta ao
Brasil, cartão de crédito e dinheiro, e “tentar a sorte” junto aos responsáveis pela
imigração, na fronteira da Inglaterra, que em determinadas circunstâncias veta a entrada
de estrangeiros. Assim, após uma agradável travessia de barco (ferry boat) sobre o
Canal da Mancha, tive que explicar o que estava indo fazer, onde ia ficar, se tinha
dinheiro, quem tinha pagado minhas passagens aéreas e coisas do gênero.
Cheguei à Londres por volta do dia 27 de junho de 2005. O mestre foi me buscar
na coach station pela manhã (algo como uma rodoviária). Fomos em direção ao
apartamento onde me instalei, no bairro de Chelsea. Chegando lá, percebi que o lugar
também era utilizado como espaço para confecção de objetos para a escola de samba.
Eu, o mestre - que na Paraíso ocupa a posição de ‘presidente de honra’ -, e seu
irmão caçula – carnavalesco e intérprete -, ficamos por ali até completarmos a
confecção das alegorias . Um carro veio buscá-las e também a nós. Fomos até o centro
comunitário onde fica o ‘barracão’. Naquele local – como um sótão - são guardados os
materiais que compõem as alegorias e fantasias, bem como são ali confeccionadas.
Alocamos as esculturas e rumamos para a casa do irmão mais velho, presidente da
agremiação e também carnavalesco. A organização da escola é arranjada, sobretudo, por
esses três irmãos brasileiros. O primeiro é o mestre de bateria e presidente de honra,
mora no Rio de Janeiro, os dois últimos moram em Londres.
Eu havia conhecido anteriormente algumas pessoas que participam daquela
escola, pois vão ao Brasil participar de ensaios e desfilar no carnaval carioca quase
todos os anos. Do mesmo modo, pessoas da agremiação carioca vão para Londres
participar e auxiliar na confecção das fantasias, alegorias, bem como dar aulas e realizar
workshops de percussão. Meu interesse era conhecer um pouco daquilo de que falavam
e participavam. Até então eu não sabia que o desfile carnavalesco aconteceria ao final
do mês de agosto. Apresentou-se mais essa oportunidade, mas não sabia se poderia
aproveitá-la.
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Naquela noite o meu anfitrião partiu de volta ao Rio, dando continuidade em
seus trabalhos junto à bateria da Estácio de Sá. Eu, recém chegada, estava receosa.
Porém o presidente da escola, e outros amigos e participantes da agremiação, inclusive
algumas pessoas que havia conhecido no Brasil, indicaram que estavam de saída para
um ensaio e me convidaram para acompanhá-los.
Fomos até o centro da cidade, onde haveria o ensaio em uma casa noturna e
restaurante, o Havana (Fiesta Havana). Lá chegando, percebi que era bastante diferente
do que vemos no Brasil. Tratava-se de uma aula para ritmistas, da qual participavam
alguns membros da Paraíso. Ocorreria também uma aula de dança. Ambas as aulas eram
pagas.
Toquei chocalho junto a eles durante pouco tempo. A situação era bastante
diferente das que eu havia participado no Brasil, tanto no G.R.E.S. Unidos do Viradouro
quanto no G.R.E.S. Estácio de Sá. Por conta do pequeno número de ritmistas, do
tamanho, da acústica, e por ser um local fechado, o toque tinha um volume
relativamente baixo e um ritmo um pouco mais lento. O fato de haver poucos tamborins
no conjunto da bateria fazia com que o som do chocalho sobressaísse. Na ocasião, eu
era a única pessoa a tocar aquele instrumento. Então, toquei apenas por um algum
tempo e saí do grupo a fim de observar para compreender melhor o funcionamento
daquele, para mim, novo esquema.
Durante aquela semana pude participar de um outro ensaio, em Liverpool (bairro
localizado na parte nordeste de Londres). Apesar de serem noturnos, em geral os
ensaios acabam por volta de 22:30h, pois os estabelecimentos fecham e um pouco mais
tarde o metrô, meio de transporte da maioria, pára de circular. Neste ensaio, que se
repetia semanalmente, também havia aula de dança. O número de pessoas era maior,
bem como o de ritmistas. De certa forma, tínhamos mais liberdade para tocar. Era
possível executarmos os sambas e convenções com maior vigor.
Por essa época, fiquei sabendo que o carnaval aconteceria no último final de
semana de agosto. Era início de julho e não sabia se poderia prolongar minha estada na
Europa por mais dois meses. No dia seguinte, eu voltaria a Paris e, além de não ter
disponibilidade financeira para nova viagem a Londres, minhas aulas do curso de
mestrado, iriam recomeçar no início do mês de agosto, sendo necessário ainda conseguir
remarcar a data da passagem de volta ao Brasil.
Passei cinco dias junto aos organizadores e integrantes da agremiação,
trabalhando junto a eles no barracão e nas apresentações da escola, como ritmista. O
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presidente gostou da minha presença e empenho, me incentivando a retornar e retomar
as atividades até o carnaval. Comprometeu-se a me apoiar, providenciando um local
para me hospedar, financiando minha alimentação e custeando meus gastos com
transporte dentro da cidade. Por fim, me deu cinqüenta pouds (libras) para o caso de
precisar comprar a passagem de Paris a Londres.
Depois de algumas conversas com meus pais e alguns malabarismos financeiros,
troquei minha passagem de retorno ao Brasil, remarcando minha saída direto de
Londres, em 30 de agosto de 2005. No dia seguinte ao desfile.
No dia 06 de agosto, desembarquei em Londres pela segunda vez. Ficaria no
mesmo apartamento onde já me hospedara. Ao chegar, o presidente da escola, o vice, o
carnavalesco e mais um destaque masculino me aguardavam com uma saborosa
feijoada. Senti-me reconfortada, pois percebi que estavam gostando da minha presença,
convivência e colaboração.
Na segunda-feira, fui ao ensaio no Havana. Eu me sentia mais à vontade e
conhecia um pouco melhor alguns dos integrantes do grupo e a cidade. Quando a aula
de dança acabou, a bateria continuou tocando, inclusive eu. O diretor - irlandês -,
responsável pela ala passou a indicar uma pausa para determinados instrumentos para
que apenas um naipe seguisse tocando. Silenciava surdos, tamborins, caixas, cuíca e
chocalho, mantendo apenas os repiques tocando e assim sucessivamente. Em dado
momento, sinalizou para mim - o único chocalho. Fiquei um pouco nervosa, mas não
tinha escolha, era o momento solo do chocalho. A bateria parou e eu segui tocando, com
um foco de luz sobre mim. Senti-me um tanto embaraçada. O intérprete que estava
cantando - também carnavalesco -, anunciou: “A ritmista da Escola de Samba Unidos
do Viradouro, do Rio de Janeiro: Iara”. Todos aplaudiram e a bateria voltou a tocar em
conjunto.
Ao final dos ensaios, os responsáveis pela agremiação oferecem uma bebida aos
ritmistas, prática corrente nas escolas cariocas, e os instrumentos são levados de volta
para as casas dos responsáveis, pois na casa noturna não há um local reservado para
alocá-los.
Um outro local de ensaios era no porão de uma igreja em Brixton, ao sul de
Londres. Bairro que em certo período também recebeu grande número de imigrantes
negros, vindos do Caribe e de outras áreas. Um bairro mais pobre, onde se vêem pelas
ruas pessoas vendendo drogas, com roupas surradas, e fui orientada a tomar cuidado
(“ficar esperta”), pois poderia ser um local ‘mais perigoso’, também conhecido (como
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alguns outros lugares) como “hot spot”. Naquele local, havia espaço para guardar alguns
dos instrumentos maiores, como os surdos. Os mais leves, em geral, são levados pelos
diretores de bateria, para as suas casas ou pertencem aos próprios ritmistas.
Retomei os trabalhos no barracão, recortando, colando, pintando, separando
materiais. Desta maneira, conheci mais sobre como confeccionam objetos
carnavalescos. Realizando funções que jamais havia realizado no Brasil. Aprendi a lidar
com a cola quente, a perceber que é utilizada para determinados tipos de materiais e não
para outros, que utilizam diversos tipos de colas para diferentes fins, aprendi a lidar com
arames, lonas, tecidos, pedrarias, plumas e penas, paetês, entre outros. Percebi que
muita coisa é feita habilmente, na base do improviso.
Os dias que seguiram foram de trabalho intenso. Eu e outro brasileiro – que
mora em Londres -comparecíamos com mais freqüência ao barracão. Os demais
trabalhadores eram inconstantes, porém sempre havia mais umas três pessoas realizando
atividades naquele local, sem contar com os integrantes que confeccionavam as
fantasias nas suas casas.
Apesar de não receber remuneração em dinheiro vivo, eu e o presidente
estabelecemos uma moeda de troca. De um lado meu trabalho, de outro minha estadia,
alimentação e transporte semanal. Desta forma, tive alguns dias livres para andar pela
cidade, visitar alguns museus, universidades, parques e outros. Acredito que foi
interessante também para eles, pois muitas vezes levam pessoas do Brasil para
executarem tais funções, pagando, além de estadia e alimentação, as passagens
internacionais.
A Paraíso realiza um show de lançamento do carnaval, Launch Carnival, que
aconteceria no Havana, era a última apresentação da escola, antes do desfile. Eu e o
presidente andamos pela cidade colando em muros e pilastras os cartazes de divulgação.
Como aquilo era uma atividade irregular, tivemos que tomar a devida cautela. Enquanto
ele colava os cartazes, eu (!) observava se havia movimentação policial.
Em 22 de agosto, o que seria o último dia de ensaio e aula, deu-se espaço ao
show de abertura do carnaval daquela agremiação. O intérprete, Dominguinhos do
Estácio, convidado vindo do Brasil especialmente para o carnaval, foi apresentado ao
público, cantando além do samba enredo da escola diversas músicas, de sua autoria ou
não, entre sambas e pagodes. Parece ter sido a exibição em forma de show, mais
completa da agremiação no período pré-carnavalesco. Excluídas a parada do Gay Pride
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(Parada Gay, que aconteceu nos primeiros dias de julho) e a competição entre as
fantasias, Gala.
Ao contrário das segundas-feiras anteriores, a entrada foi cobrada. O show
tomou conta da noite e contou com a participação dos presidentes, do carnavalesco, dos
intérpretes e músicos, de destaque e rainha de bateria - que foi escolhida em um
concurso promovido pela agremiação, entre várias candidatas, no dia 18 daquele mês -,
da ala da bateria, uniformizada, e do mestre de bateria brasileiro, que a conduzia.
Estavam presente ainda, um pai de santo e seu ajudante, que são convidados a irem a
Londres nessa época do ano para acompanhar a agremiação (e seus ‘filhos de santo’) e
preparar a feijoada que é servida após o desfile.
A sexta-feira, o sábado e o domingo que precederam o desfile foram um período
de trabalho ainda mais intenso. Como eu era integrante da ala da bateria da Estácio de
Sá e o presidente de honra em Londres era meu mestre no Rio de Janeiro, nos últimos
dias me voltei à confecção e, melhor dizendo, reparação das fantasias daquela ala. As
roupas e chapéus (‘cabeças’) da bateria foram ‘importados’ prontos do Brasil. Tinham
sido utilizados no desfile oficial da Estácio de Sá. A diretora de bateria e eu ficamos
responsáveis por passar a ferro todas as capas, desamassar as ferragens que formam as
estruturas dos chapéus, retirar palhas, colar penas e pedras, e, por fim, aprontar todas as
fantasias para o desfile.
No sábado e no domingo houve ensaios com a ala de passistas, bateria,
intérpretes e músicos. Algumas das pessoas que participariam do desfile usavam as
fantasias permanentemente. Meu lado ritmista achou engraçado. Causa estranheza aos
brasileiros que participam de escolas de samba, pois as vestimentas, apesar de
representarem um trunfo, uma participação e pertencimento, são associadas a uma
sensação de desconforto, algo desajeitadas. Geralmente são pesadas, grandes, quentes, e
feitas de materiais e maneiras que com o tempo de uso acabam machucando.
Os últimos ensaios foram durante o dia e do lado de fora do centro comunitário.
Nesses dias, havia mais gente do que nos anteriores, num clima de expectativa e
envolvimento com os preparativos para o desfile.
No domingo, dia anterior ao desfile, passei a manhã no barracão. Algumas
pessoas lidavam com fantasias, distribuição de crachás de identificação, venda de
camisas, objetos com o nome da agremiação, de CDs, de bebidas e de comidas, feitas
pelo pai de santo e seu ajudante. Haveria uma feijoada como almoço, vendida e servida
depois do percurso concluído.
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Após o trabalho no barracão, colando penas, pedras, plumas, espelhos,
recortando isopores e lidando com as colas, (inescapavelmente queimando mais do que
apenas os dedos), e desempenhando uma série de funções de um ‘aderecista’ (pessoa
que trabalha na parte final da confecção de fantasias e de alegorias), fui até o float dar
continuidade à sua preparação.
Dois carros alegóricos foram preparados para o desfile. Conhecidos como milk
float, pequenos caminhões originalmente utilizados para a entrega de leite nas casas da
cidade e movidos por meio de grandes baterias, carregadas com energia elétrica.
Movem-se lentamente, mas são respeitado justamente por serem milk floats, os demais
automóveis dão e aguardam sua passagem.
A pintura já estava pronta desde a apresentação na Parada Gay. Faltavam ser
adicionadas as esculturas e ser concluído seu adereçamento. Os ferros deveriam ser
cobertos com tecidos; a parte da frente iluminada; as esculturas bem presas na parte de
trás; seriam acrescentados flores e ornamentações ao longo do carro e longos panos
cobrindo as laterais; presas e instaladas as caixas de som; a bubble machine, máquina
que viria soltando bolhas de sabão durante o desfile e toda a instalação elétrica do carro.
As pessoas que cuidavam da confecção das estruturas de ferragens e madeiras,
discutiam o que estava sendo terminado. A equipe responsável pela instalação do
equipamento de som já estava lá iniciando seu trabalho.
Os pequenos caminhões haviam sido pintados de maneira uniforme e tiveram
suas estruturas preparadas de forma resistente, com as ferragens e as bases de madeira
soldadas ou parafusadas. A estrutura deveria suportar o peso e apoiar as esculturas e
demais adereços e as pessoas (destaques) que viriam sambando sobre ele. Eu, que em
princípio não me sentiria à vontade nas alturas, me vi sobre um dos carros, envolvendo
as ferragens com panos vermelhos, decorando suas laterais com os tecidos que
havíamos preparado durante os dias anteriores e utilizando tintas em spray para pintar
alguns objetos. Os carros são concluído no final da noite.
Na segunda-feira, retornei de manhã cedo ao local da concentração, o centro
comunitário e toda área ao seu entorno. Deveríamos deixar o lugar e rumar em direção
ao local das apresentações, por volta das dez da manhã. Por conta do longo percurso, os
organizadores da agremiação preferem desfilar cedo, a fim de realizarem o trajeto em
um tempo mais curto.
Não há uma ordem pré-estabelecida para a entrada dos grupos no percurso
oficial do desfile. Podendo haver mais do que cem grupos na competição, com variados
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números de componentes em cada um. Chegam ao local do desfile por meio de diversas
ruas e convergem e se encontram em um ponto um pouco antes de onde fica a cabine
dos jurados. Neste ponto, há cercas que separam o público das bandas. Dependendo do
horário que deixam suas concentrações e de entrada nesta área, o percurso pode ser
concluído de forma mais rápida ou mais demorada. Policiais e stewards, responsáveis
pela organização do carnaval, indicam o momento em que o grupo está liberado para
entrar na área do desfile. Quanto mais tarde a agremiação se coloca em posição para a
entrada no circuito, mais parece demorar a conseguirem essa entrada. Há um
‘engarrafamento’ dos blocos.
A Paraíso entrou no circuito oficial e parou em frente à plataforma dos jurados.
Apresentando a coreografia da comissão de frente; do casal de mestre-sala e portabandeira; as convenções e bossas da bateria e soltou balões e ‘fogos de artifício’ pequenos pedaços de papel jogados para o alto por um mecanismo de ar comprimido
(fogos de artifício convencionais não são permitidos, por conta da insegurança que
representam).
Durante o longo trajeto, os desfilantes ficaram separados do público por meio de
uma grade de proteção, que se estendeu ao longo das ruas. Os integrantes da escola
estavam descontraídos e animados com a apresentação e com a recepção do público,
que foi bastante calorosa. Poucos grupos apresentam música e percussão ao vivo, a
maioria apresenta som mecânico. Ao final voltamos para o centro comunitário, para
devolvermos os instrumentos, conversar, ficarmos mais um tempo juntos e comermos a
feijoada ‘à brasileira’. Algumas pessoas passaram o resto do dia naquele local. Algumas
voltaram para o circuito carnavalesco aberto, para assistir aos outros grupos, encontrar
ou procurar amigos, comer e andar pelos arredores.
A Paraíso School of Samba, toma para si, em seu discurso, o papel de apresentar
e representar em Londres o ‘verdadeiro’ carnaval carioca. A verdadeira intenção e
formação de uma escola de samba do Rio de Janeiro. Porém é mais recente do que a
Unidos de Londres. Esta agremiação comemorou, em 2004, seu aniversário de vinte
anos. Seus integrantes a apresentam como a primeira escola de samba de Londres. A
Paraíso tem três ou quatro anos.
As funções desempenhadas dentro da agremiação, apesar de parecem bem
definidas, revelam-se variáveis. Além de desempenharem os papéis estabelecidos, o
presidente realiza ainda funções de carnavalesco e também é professor de dança, o
carnavalesco cumpre o papel de intérprete quando este ainda não está presente, os
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diretores de bateria se empenham na confecção das fantasias da ala. Trocam de papéis,
sobrepondo e circulando entre diversas das esferas daquela situação.
Como minha participação e observação, mais aprofundada, nas escolas de samba
cariocas deteve-se, sobretudo, em aspectos definidos da agremiação, como a bateria, eu
não havia tomado como objeto de estudos o trabalho de arregimentação de uma escola
de samba para o carnaval, O que de certo modo aconteceu junto à agremiação londrina,
seja pela dimensão do grupo, seja pela maneira pela qual me coloquei frente a eles e
pela maneira como fui recebida e envolvida dentro daquela estrutura.
Meu olhar sobre o carnaval, sobre as escolas de samba e os grupos
carnavalescos, jamais voltaria a ser o mesmo. Eu não estava interessada apenas em me
apaixonar pelos grupos e temas, participar com vistas ao campeonato, mas
principalmente estava percebendo as ligações, os fios invisíveis, mas sensíveis, que
tecem as infindáveis redes das relações sociais. Não há apenas o momento do carnaval,
há uma série de vidas, anos, inúmeras relações e mecanismos de funcionamento e
controle compassados (eventualmente descompassados?), geridas de maneira local, em
sua menor escala, ou em níveis transoceânicos. O fim do período carnavalesco é apenas
uma diminuição no ritmo daquelas relações, que muito em breve voltam a serem
aquecidas.
No ano de 2005, participando do carnaval londrino pela primeira vez, estive
muito envolvida com as atividades de apenas uma das escolas que tomam parte das
apresentações. Assim, pouco pude ver dos outros grupos que compõem o carnaval e
também do conjunto como um todo. Não tinha condições para descrever a área ou os
mecanismos mais abrangentes da organização e realização do carnaval. Isto pôde ser
feito a partir do meu retorno no ano seguinte. A explanação subseqüente trará mais
detalhes acerca do carnaval de Londres, de forma mais abrangente e também acerca de
diferentes grupos que dele participam.
II. c. Campo e Inserção Junto aos
Grupos Carnavalescos de “Origem Caribenha” em 2006
Em 2006 pude planejar com antecedência minha segunda viagem a Londres.
Ainda no Brasil, busquei informações acerca do carnaval londrino. Sabia da
participação de grupos de origem caribenha e que, provavelmente, haviam fundado tal
carnaval. Para entender o que ele representava, precisava me inserir junto a tais grupos.
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O retorno apresentava como finalidade última, fundamentar e dar corpo etnográfico às
discussões elaboradas nesta dissertação.
Com vistas a atingir a finalidade proposta, buscaria realizar um levantamento
bibliográfico; trabalho de campo de caráter etnográfico e pretendia estabelecer contato
com integrantes de órgãos e agências públicas e privadas que se ocupassem da
organização e realização do carnaval, além de realizar entrevistas com integrantes de
grupos participantes. Para tanto, acompanharia e observaria o período final de
arregimentação do carnaval e os desfiles dos chamados ‘grupos étnicos’.
Tendo estabelecido uma agenda preliminar, embarquei para Londres no dia 28
de julho. Fiquei grande parte do tempo hospedada em um bairro chamado Richmond, ao
sudoeste da cidade. Meu anfitrião, John Hicks, é músico e o compositor do samba
enredo oficial da Unidos de Londres para o carnaval de 2006. John viera algumas vezes
ao Brasil participar do carnaval carioca junto à Estácio de Sá e de ensaios e outras
atividades, como festas e almoços, nas demais escolas de samba.
Tive a oportunidade de recebê-lo na quadra da Unidos do Viradouro, quando lá
esteve pela primeira vez, cerca de dois anos antes. Em uma segunda ocasião, hospedá-lo
por alguns dias em minha casa, no Rio de Janeiro. Desta vez, ele me recebia em sua
cidade, casa e agremiação. John foi me buscar no aeroporto, jantamos em sua casa e ele
sugeriu que eu descansasse após as longas horas de vôo e conexões nos aeroportos.
Naquela noite, haveria uma festa da Unidos de Londres, entretanto eu só acordaria no
dia seguinte, Fomos a um ensaio da Unidos onde ele me apresentou a alguns dos
participantes e amigos. No outro dia, retornou à França, onde mora e trabalha
atualmente, deixando-me sozinha.
A Unidos de Londres é considerada a primeira escola de samba daquela cidade,
fundada no ano de 1984. Bosco de Oliveira - brasileiro e um de seus fundadores relatou em entrevista, que o nome ‘Unidos de Londres’ foi escolhido porque desejavam
demonstrar que a escola estava aberta à participação de qualquer pessoa. No primeiro
ano, não participaram como concorrentes, segundo Bosco, em respeito aos grupos
caribenhos. Desta maneira, o grupo de pessoas, portando seus instrumentos de
percussão, circulou livremente pelas ruas da área de Notting Hill, que são reservadas
para o carnaval.
O ensaio (workshop) da Unidos de Londres, de que participamos, aconteceu em
um centro comunitário, ao lado da estação de Waterloo, na área central da cidade. Como
John era o compositor do samba de enredo que seria apresentado pela agremiação
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naquele ano, perguntei se havia ganhado a competição entre os sambas de enredo. Ele
explicou que não. O campeão havia sido um compositor da Mangueira, escola do Rio de
Janeiro, que havia cobrado cinco mil libras para ceder os direitos de utilização do
samba. Alguns dos responsáveis pela LSS disseram que não podiam pagar tal quantia.
Procuraram John e propuseram a utilização de sua composição sem encargos
pecuniários, ele aceitou.
Na minha primeira visita à escola, conheci algumas pessoas que participam
daquele carnaval, assisti ao ensaio e toquei junto à ala de bateria. Os workshops de
percussão e dança são pagos, assim como as fantasias para o dia do desfile, entretanto
eu sempre fui eximida desses pagamentos. Algumas pessoas propuseram que eu
desfilasse junto deles, mas agradeci o convite, considerando que seria bastante
improvável e justificando que, por conta da pesquisa, precisava estar mais livre para
andar e observar diversos aspectos do carnaval, o que eu não havia feito no ano anterior.
O ensaio estava para começar e John se posicionou para cantar o samba.
Empunhando seu cavaquinho e acompanhado de outras duas pessoas, que formavam o
coro, entoaram o samba, repetindo-o por umas duas vezes. Em seguida, a bateria os
acompanhou. Fiquei sentada assistindo e quando dei por mim só eu estava parada. As
demais pessoas que estavam presentes tocavam, dançavam ou cantavam. Senti-me um
pouco constrangida e levantei-me para dançar.
Ao responder que não poderia desfilar e mesmo ao observar o ensaio, percebi
que algo havia mudado em relação a minha posição frente à situação carnavalesca. Eu
não era mais participante da agremiação, não era mais uma entusiasta, ao contrário de
todos os outros ensaios de escola de samba, dos quais eu havia participado até então em
tinha feito questão de tocar, - pois aquele era o ‘meu lugar’, eu era uma ritmista. Na
posição de observadora, ainda que tateando, às apalpadelas ou entrando ‘com passo
desajeitado’, minha posição havia mudado. Tomei consciência de que aquele seria um
grande treino e desafio de adaptação a tal posição. Ainda assim, após um breve intervalo
no ensaio, peguei um chocalho e fui tocar.
Ao final do ensaio algumas pessoas foram para um pub, em frente ao centro
comunitário para beber e conversar, como de costume. Em dado momento, juntou-se a
nós uma jovem jamaicana, de nome Chlöe. Trabalhava no workshop de fantasias da
mesma agremiação junto a Lynn, responsável por algumas tarefas ligadas à confecção
de fantasias. Estimulei este assunto e, por fim, combinamos um encontro durante a
semana, para irmos juntas até o ‘barracão’ da escola.
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Fiquei animada com esta ida até o local de ensaio da escola e principalmente por
ter estabelecido alguns contatos, passíveis de desdobramentos. Além de perceber que
conseguia me comunicar, verbalmente em inglês, relativamente bem.
Encontrei Chlöe na quarta-feira e fui conhecer o workshop de fantasias.
Chegando ao atelier me dirigi a Lynn, explicando que estava fazendo uma pesquisa
sobre o carnaval de Notting Hill e que gostaria de conversar sobre a LSS. Ela não
hesitou em pegar um rolo de tecido e dar para Chloë e eu recortarmos em tamanhos
diversos para as fantasias. Realizei a tarefa, mas confesso que fiquei um tanto entediada,
pois havia realizado um trabalho semelhante no ano anterior. As pessoas que
trabalhavam naquele local, muitas vezes foram evasivas e pouco objetivas ao dar
respostas. Pareciam mais interessadas em me fazer explicitar o que eu sabia sobre o
carnaval carioca do que me ajudar a entender o londrino.
Percebi que não estava onde desejava chegar, ou seja, junto aos grupos
fundadores e maioria naquele carnaval, os grupos de origem caribenha. Continuei a
minha busca e foi então que, em um panfleto falando sobre as atividades do período
carnavalesco, encontrei uma referência à London Calypso Tent, uma competição festiva
entre músicos que tocam e cantam calipsos, que elege o ‘Monarca’ do carnaval. As
eliminatórias aconteceriam em várias sextas-feiras durante o mês de agosto. Não sabia o
que encontraria naquele local, mas considerei que poderia ser um bom ponto de partida
em relação ao encontro que buscava junto aos grupos de origem caribenha.
Este festival tinha como sede o Yaa Asantewaa Arts and Community Centre, um
centro comunitário que abriga a Associação de Calipsonianos Britânicos, Association of
British Calypsonians, e é o local de confecção das fantasias da banda de mesmo nome,
Yaa Asantewaa mas band. Segundo dados que constam do livro “Claudia Jones, A Life
in Exile”, a primeira competição que daria o título de Monarca em Londres, se deu em
1957 (1999, p. 205). Assim como a maioria das atividades que acontecem no período do
carnaval, carnival season, esta também segue os padrões das competições que se
realizam em Trinidad.
Em uma tarde agradável, ensolarada e com um vento suave, dirigi-me ao local a
fim de saber o que era aquela associação e, principalmente, conhecer pessoas que dela
participavam, contando que eventualmente poderiam auxiliar na minha busca. Uma
simpática jamaicana, de nome Talibah, foi quem me recebeu. Apresentei-me e expliquei
o motivo de estar ali. Ela sugeriu que eu voltasse por volta das sete horas da noite, pois,
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a partir daquele horário, mais pessoas envolvidas com o carnaval estariam por ali, e
assim, poderia sentir melhor aquela atmosfera e ver como fazem as fantasias.
Quando eu voltei, ela me mostrou o local, disse para eu ficar a vontade e foi para
outra sala cuidar de seus afazeres, deixando-me novamente sozinha. Fiquei andando
pelo salão e pelas salas do local, me perguntando por onde começar. Foi quando
encontrei Morgan (artista plástico, professor e escultor daquela banda), em um salão no
segundo andar. Ele confeccionava algumas grandes cabeças de papel machê, que
comporiam algumas das fantasias do grupo. Iniciamos um diálogo enquanto ele colava
folhas de papel ensopadas de cola em uma das cabeças.
Morgan falou sobre as cinco formas de arte, arts carnival, que compõem aquele
carnaval. Apresento-as de forma extremamente simplificada: steelbands, bandas
musicais; mas bands, grupos voltados para a confecção de fantasias e participação no
desfile carnavalesco onde seus integrantes as utilizam - são chamados de masqueraders;
apresentações de calipso, música, geralmente satírica, considerada tradicional de
Trinidad, que é tocada e cantada pelos calipsonianos, nas ruas, associações e clubes,
antes e durante os dias do carnaval; os static sound systems, sistemas de som que ficam
alocados ao longo das ruas por toda a área reservada para o carnaval, animando e
sonorizando a região e os mobile DJs. Posteriormente voltarei minha atenção, com
maior acuidade, sobre as steelbands, as mas bands e suas respectivas competições.
Conversamos a respeito do início daquela festividade, principalmente em
Trinidad, e por fim combinamos que eu voltaria na quinta-feira, para que ele me levasse
para conhecer alguns “mas camp”. Passei os dias que seguiram a me perguntar: “o que
vem a ser um mas camp”?
Saí de casa, em direção ao Yaa Asantewaa, onde havia combinado o encontro
com Morgan, portando meu gravador de áudio, embora sem ter a certeza de que teria a
oportunidade de utilizá-lo. Cheguei atrasada, pois havia tomado o ônibus errado, o que
aconteceu diversas vezes, pois trocara o meio de transporte que utilizava. Passei de trem
e metrô, mais rápidos e caros, para ônibus, que demoravam mais, mas eram mais
baratos e me davam a chance de observar a cidade.
Entrei lentamente no espaço sede da Yaa Asantewaa, empurrando suas pesadas
portas. Havia crianças brincando, pessoas trabalhando e eu avistei, dentro da primeira
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sala à direita, meu ‘conductor’ Morgan. Ele indicou que eu devia ir até ele. Perguntou se
eu tinha vindo para ir conhecer os mas camp. Eu disse que se ele pudesse, sim5.
Naquele dia fomos até o mas camp – local onde se confeccionam as fantasias da Flamboyan Community Association; da Mangrove Steelband, da Glissandos Steel
Orchestra e da Metronomos Steel Orchestra. A primeira é de fato uma mas band, as
demais são mas e steelbands, ou seja, também voltadas para a música tocada em
tambores de aço, steel drums ou steel pans.
Antes de passar para o tópico seguinte, apresento o que me é relatado por
Morgan, em uma ocasião posterior, acerca da organização e estruturação de um mas
camp. No segundo andar do Yaa Asantewaa Comnunity Center, observo as pessoas que
confeccionam as diferentes e multicoloridas fantasias. Digo que não levantei
informações a respeito da organização interna da rede de trabalho dos grupos de
fantasias, como se conectam os diversos elementos que engendram o funcionamento
daquele ‘mecanismo’.
Morgan, além de artista plástico é professor em escolas em Londres, revela que
também dá aulas nas quais explica a ‘estrutura’, structure, dos mas camp. Toma minha
caderneta de campo em suas mãos e esboça um esquema, com um dos tipos de
organização possível, enquanto o explica verbalmente. Ressalta, todavia, que a Yaa
Asantewaa é diferente, nela as decisões são tomadas de forma coletiva pelos ocupantes
das posições ‘chave’. A Mangrove também possui uma estrutura mais ‘flexível’,
brevemente relatada no Capítulo I, parte III.
A estrutura, mapeada pelo artista plástico, responsável pela confecção das
esculturas do grupo, sculptor, começa pelo ‘líder da banda’, band leader. O ‘elo’ inicial
do grupo, a ‘ponta’ do esquema o organiza e representa, dá comandos e está em contato
direto com o administrador. O administrador, manager of mas camp, aparece em
seguida, esta figura faz o registros dos mascarados que vão participar do desfile e é
responsável pela aquisição do material utilizado pelo grupo na execução das fantasias,
lidando também com a parte financeira que se relaciona a esses assuntos. O tema,
5
Na ocasião, conheci Gregory Rabess, integrante da Nostalgia Steel Band, que me levaria até ela e me
apresentaria a alguns de seus componentes. Posteriormente abriria para mim as portas da “Primeira
Conferência Internacional Européia sobre steellpans”, onde participei como ouvinte.
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theme, é escolhido por ambos e a decisão é repassada ao artista, artist, que idealiza os
costumes, develop costumes ideas. Segundo a explanação, algumas das bandas
contratam artistas ‘de fora’, outros, entretanto, fazem parte do grupo, seja por razões
afetivas ou de parentesco.
O administrador aparece novamente, desta vez, transformando a idéia concebida
em ‘realidade’, “artist who being the concept to reality”, pensa e decide que materiais
utilizar. Os técnicos vêm em seguida, profissionais ou artistas (não encontrei um termo
exato para traduzir craft people) que concretizam, dando forma e volume aos esboços e
desenhos. Esses se dividem em algumas especialidades, primeiro há os que executam as
estruturas de metal, fortes armações que sustentam toda a parafernália que pode compor
a fantasia – não posso afirmar com precisão que materiais são utilizados na confecção
dos costumes, pois, na maioria das vezes, meu singelo vocabulário não permitiu o
entendimento de alguns dos termos empregados -, essas estruturas – parecidas com
‘coletes de aço’ - são semelhantes para todas as fantasias maiores, que precisam de
sustentação, as menores e mais leves não utilizam esse apetrecho. A base de apoio e
fixação, dos demais elementos que compõem a indumentária, estando pronta, é levada à
complementação e finalização. Entram em cena o designer, structural person –
designer, e os decoradores de superfície, surface decorators, que, respectivamente, têm
a idéia do que será feito e executa as idéias. Os decoradores dão o feitio final aos
costumes, complementando-os com tecidos coloridos, estampados ou tingidos,
amarram, penduram, costuram panos, pedras, esculturas, revelando toda sua beleza e
esplendor.
III. “Tambores de Aço” - Mangrove e Nostalgia Steelband –
Primeiro Contato com os SteelPans
A primeira banda que visitamos foi a Mangrove. Sua sede fica localizada em
frente a Powis Square, em uma grande edificação, que outrora fora uma igreja Inglesa e
parece ter ficado abandonada durante certo período. Segundo informações dadas por
Clive ‘Mashup’ Phillip – antigo administrador e atualmente um dos responsáveis pela
banda, participante e organizador daquele carnaval desde seus primórdios, e que
atualmente cedeu o posto de administração da banda para seu filho Matthew Phillip –,
aquele espaço começou a ser reutilizado e restaurado pelos próprios caribenhos,
moradores daquela área e posteriormente passou por uma grande reforma. Chama-se
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The Tabernacle, local que abriga, na época de carnaval, o mas camp e o local de
ensaios, pan yard, da banda.
Segundo o artigo “40 years of the Notting Hill Carnival – an assessment of the
history and the future” escrito por Michael La Rose (2004), a banda foi fundada no
início dos anos oitenta, por Frank Critchlow um radical ativista político. Mashup relatou
em entrevista que alguns integrantes da Mangrove foram quem primeiro organizou a
competição Panorama em Londres, na All Saints Road. Portanto, nos primeiros anos não
participava como competidora e sim como organizadora.
Fiquei bem impressionada com a recepção que tive. Morgan, que conhecia
várias pessoas dali, explicou, ao seu modo, a alguns integrantes da banda o que eu
estava fazendo. Logo o jovem Gerard Williams chamou-me para junto dele, a fim de
explicar o tema do grupo e mostrar os desenhos e as fantasias que estavam em fase de
confecção e seriam utilizadas no desfile. O tema era The Victory of Rome, the Building
of one Empire.
A Mangrove possui tanto uma steelband quanto uma mas band. A primeira foi o
foco das atenções, no ano de 2006, no que diz respeito a um maior empenho com vistas
a atingir o campeonato do Panorama. A banda musical ensaiava constantemente e
também havia várias pessoas envolvidas na confecção das fantasias, que seriam
utilizadas no dia do carnaval on the road. O grupo não participaria da competição Gala,
então não estavam confeccionando as grandes fantasias para concorrer a Rei e Rainha
do carnaval.
Segundo Gerard, o tema foi pensado por Rudy, Mashup e Arthur Peters (Attah).
Em seguida, eles passaram a idéia para Ann, a designer do grupo, que após um
brainstorm (que pode acontecer em conjunto com outros integrantes), idealiza e desenha
as fantasias. Não há a apresentação de nenhum texto ou sinopse a respeito do tema aos
jurados, que avaliam a apresentação baseados apenas no visual e na consonância das
fantasias com o tema proposto. Não há a preparação de textos nem para eles mesmos, as
idéias permanecem no pensamento e se concretizam apenas nas fantasias.
Gerard explicou que aquela era uma das bandas mais antigas do carnaval, que há
algum tempo alguns de seus componentes haviam deixado a banda, para ir para outras,
consideradas mais proeminentes. Porém, atualmente estavam retornando. Ele mesmo
havia circulado por outros grupos, mas acabara retornando para a Mangrove, onde estão
seus amigos, seu povo. Ocupava uma posição na banda musical, como panplayer, mas
atualmente não estava tocando, estava responsável por alguns aspectos relativos à
53
criação das fantasias e da organização do grupo. Seus companheiros de trabalho
solicitaram sua presença e eu atendi ao chamado de Morgan para irmos até o segundo
andar assistir ao ensaio da banda.
Eu jamais havia visto um único steel pan, muito menos uma steelband. Não
tinha noção do que encontraria. Por conta do bom tratamento acústico do espaço, do
lado de fora do salão de ensaios - um anfiteatro -, praticamente não se ouve som algum.
Morgan abriu uma pesada porta de madeira que dava acesso ao salão e aquele som
(então) estridente invadiu-me com toda sua novidade e vigor. Havia uma orquestra
inteira de steel pans. Cerca de uns cinqüenta instrumentos, tocados por moças e rapazes.
Fiquei muito impressionada com aqueles grandes e lindos instrumentos, de um prata
reluzente.
Há uma série de tambores diferentes, todos com formato circular e feitos do
mesmo material metálico. Porém, como uns são mais altos, outros mais baixos,
possuem diferentes números, disposição e escalas de notas, uns tocados com um só pan
(tambor), enquanto outros formam conjuntos de dois, três, ou até doze tambores. Há
uma enorme variedade sonora, dos mais agudos aos mais graves, sempre tocados com
duas baquetas. Os músicos, panistas, tocam, lado a lado, os mesmos conjuntos de
instrumentos. Como são feitos de grandes círculos metálicos, e apoiados (pendurados)
sobre cavaletes, os músicos ficam de pé. Além de balançarem o corpo de acordo com a
melodia, viram-se constantemente, para atingirem as diferentes notas que compõem
cada instrumento, que podem ter de duas a mais de dez notas cada um, e também para
alcançar os outros tambores, que porventura compõem o instrumento. Além dos
tambores, a formação possui uma bateria e mais dois ou três pequenos instrumentos
metálicos, um deles se chama brake iron, que dá a marcação para a entrada do restante
da banda.
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O grupo era regido por um rapaz, chamado Kyron, que ocupa a posição de
regente ou arranjador (arranger). Kyron nasceu em Londres, sua mãe chegou à cidade
aos nove anos, vinda de Barbados e seu pai da Guiana. Ele rege a banda, propõe a
música conhecida e faz seu rearranjo para a competição Panorama. Os ensaios se dão
com bastante intensidade e constância naquela época, pois no sábado anterior ao dia do
carnaval aconteceria a importante competição entre as bandas, como no carnaval de
Trinidad. Segundo alguns deles relataram, o termo utilizado não deveria ser ensaios ou
rehearsal, pois as practices são mais intensivas e constantes. Concentram sua atenção
em um rearranjo musical, que deve ser apreendido por cada músico até o dia da
competição.
Não há partitura nem nada escrito que possa guiar os músicos. As melodias e
exercícios são aprendidos e memorizados ‘de ouvido’, a partir das práticas musicais e
das muitas repetições. A melodia é iniciada e, em determinado ponto, Kyron sinaliza
uma pausa. Tocando algumas vezes o brake iron, batendo uma baqueta na outra ou uma
baqueta na borda de um dos tambores, dá a partida para o reinício. Assim seguem os
longos ensaios, parando e recomeçando, de diferentes pontos da melodia.
Estava estupefata e envolvida com aquele ambiente, quando Morgam me
perguntou se estava “allready?”. De fato poderia ficar ali por muito mais tempo, mas
havia outras bandas para conhecer, respondi que sim e nos retiramos. Naquela noite,
andamos pelas redondezas de Notting Hill, as mesmas onde se dá o espaço
carnavalesco. Morgam me mostrou o local exato onde seria o início das competições.
No final da noite, agradeço imensamente o mais que agradável e fundamental,
tour pela região e bandas. Morgan me acompanha até o ônibus, que me levaria de volta
para o sudoeste. Vou embora satisfeita com o proveitoso dia de trabalho, havia
descoberto, nada mais, que um ‘admirável mundo novo’.
Faltam apenas quatorze dias para o carnaval de rua quando tenho clareza, (ainda
que com alguma dúvida), que deveria me envolver com menos grupos ao invés de
saltear entre um e outro. Acreditava que, ao passar mais tempo com as mesmas pessoas
e no mesmo local, teria melhor chance de conhecer um pouco mais sobre eles e o sobre
carnaval. A partir desse pressuposto, passo a freqüentar mais a Mangrove, porém
continuo me encontrando e conversando com Morgan, bem como com as pessoas da
Nostalgia Steelband e estabelecendo contatos com integrantes de associações ou
instituições locais como a British Association on Steelbands (BAS) e o Arts Council
England, e pessoas como Gerald Forsythe, fabricante e afinador (tune) daqueles
55
tambores, músico que introduziu o ensino de tais instrumentos, no sistema formal de
ensino inglês.
A Nostalgia é outra banda com a qual travo contato, embora de forma menos
sistemática. Havia conhecido Gregory Rabess, integrante do grupo, na sede da Yaa
Asantewaa e ele me convidou para acompanhar um de seus ensaios. Esta é a primeira
banda a que tenho acesso em minhas pesquisas, ainda no Brasil, uma das mais antigas
participantes daquele carnaval. Durante o período em que permaneço na cidade, seu
mais conhecido e antigo fundador, Stearlin Betancourt, não está atuando junto dela.
É em um ensaio da Nostalgia, ao lado de Gregory, que tenho a oportunidade de
tocar, pela primeira vez, um steelpan. Ele toca um guitar pan quando faz uma pausa e
me cede suas baquetas, sticks, para que eu tome seu lugar. Tamborilo sobre o
instrumento quando ele me mostra uma seqüência de notas. Aponta a localização de
cada nota com o dedo e eu sigo com a baqueta. Uma seqüência de cerca de onze toques
que eu repito lentamente, até que posso realizar a série sozinha. O ensaio começa, eu
devolvo as baquetas e fico observando. Esta banda não participa do campeonato como
competidora, por conta de seu pioneirismo e história no carnaval de Notting Hill, é
reconhecida como ours concours.
IV. Panorama
A Mangrove realizara, nos dias anteriores, os ensaios finais na rua. O caminhão
de som, que também leva sobre ele instrumentos e músicos, ficara estacionado, a rua
fechada ao trânsito e muitas pessoas assistindo. Na mesma All Saints Road, que outrora
fora palco de algumas das histórias que me contaram e sobre a qual li, me interando a
respeito dos primórdios daquele carnaval. Ali também foi realizado o primeiro
Panorama.
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A participação nos ensaios e a observação da confecção das fantasias da
Mangrove; minha circulação entre algumas outras bandas e pessoas, fazem os dias
passarem rapidamente. Logo chega o dia da competição entre as bandas. Gerard havia
dito para eu chegar mais cedo ao Tabernacle, pois poderia ir com eles até a área da
competição. Assim procedo.
No dia da competição, chego ao Tabernacle, e sinto que a movimentação é
diferente dos dias anteriores. O clima é festivo e todos se preparam para a saída. Vou até
a All Saints Road, onde o carro de som está estacionado e fico por ali até a hora da
partida. Um pequeno trator azul puxa a grande carroceria que abriga os instrumentos.
Os maiores e mais graves (bass) seguem em duas ou três pequenas carretas, que os
próprios músicos empurram, acompanhando o carro de som. Algumas pessoas,
inclusive eu, seguem a pé.
Duas ou três pessoas vão à frente do trator, indicando a direção para o motorista
e sinalizando, para os demais veículos, que vem aí um cortejo. Carros param para dar
passagem, ônibus se espremem em um dos lados da rua, pessoas param para olhar.
Saímos da All Saints Road, passamos pela Talbot Road e por fim chegamos a Ladbroke
Grove, uma rua maior e mais larga, por onde subimos lentamente até a Kensal Road.
Neste ponto, encontramos outros carros de som, de mesmo estilo, alguns também
puxados por um trator azul. Há muitas pessoas que vão se apresentar e espectadores.
Nove bandas participam da competição, que acontece de frente para uma grande praça,
chamada Horniman’s Pleasance Park, na Kensal Road.
Circulo pela área para ver e ouvir as outras bandas, que, assim como a
Mangrove, ainda ensaiam e fazem alguns ajustes. Quando o grupo se coloca em
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movimento, para entrar na área de apresentação, Gerard avisa que eu devo ajudar a
empurrar uma das carretas com os instrumentos. Assim posso entrar na área de
competição. Sorrio, pois não sei se era, de fato, para tomar tal atitude. Ele reforça: “é
sério, senão não te deixam entrar”. Entro na área de competição, junto a eles,
empurrando uma das carretas.
O caminhão fica estacionado na rua, permitindo que a banda fique disposta de
frente para a cabine de jurados. Esta, por sua vez, fica de frente para a rua e de costas
para a praça. Poucas pessoas assistem frente a frente às apresentações. Além de haver
uma pequena elevação atrás da cabine dos jurados, o público é contido por meio de
grades de ferro, de cerca de um metro e meio, instaladas ao redor da área. Há um telão
na praça, por meio do qual, a maioria dos espectadores acompanha as performances.
As apresentações começam por volta das sete horas da noite e duram cerca de
dez minutos cada uma. Ao final da apresentação da Mangrove, ouvimos muitos
aplausos e parece-me que todos estão satisfeitos. Fico por ali mais alguns instantes,
enquanto o grupo se dispersa. Afasto-me para comer um saboroso e peculiar frango
apimentado, considerado uma comida típica e vendido por inúmeras barracas ao longo
da área, mas não me demoro.
Muitas das pessoas com as quais converso, relatam que ficarão pela área, pois
nessa noite há uma série de festas e clubes, para onde se dirigem à espera do amanhecer,
para participarem do Jouvay, a abertura ou o ‘grito de carnaval’. Não considero
adequado permanecer sozinha pelas ruas ou clubes ao longo da madrugada. Além disso,
na manhã seguinte aconteceriam os desfiles infantis e eu precisava estar de volta.
V. Carnaval ‘on the road’
Tanto no domingo, desfile infantil, quanto na segunda-feira, saio de casa por
volta das nove horas da manhã. Oficialmente o carnaval de domingo tem início às
10:00h da manhã e duraria até o final da tarde. Vou munida de água, sanduíches, casaco
impermeável para o caso de chuva, gravador, máquina fotográfica, câmera de filmar e
caderneta de campo. Sei que serão longos dias, de atenção e multidão.
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Desfile infantil
Nas duas ocasiões utilizo o metrô como meio de transporte e a estação de
Latimer Road como destino, pois é próxima à área de início do desfile. O domingo é
mais vazio do que a segunda feira e, de fato, é possível circular mais livremente pelas
ruas. A impressão que tenho é de uma grande área, que compreende inúmeras ruas e
avenidas, fechadas ao trânsito e tomadas por milhares de pessoas, dos mais diferentes
tipos, com diferentes fantasias, que brincam o carnaval, pulam, e dançam ao som dos
sound sistems, DJs e bandas, há também repórteres, muitos policiais e stewards e ainda
o público que assiste, filma, fotografa.
No primeiro dia circulo livremente por toda a área, desde a Powis Square, onde
se localiza a sede da Mangrove até a Western Road, local do início das apresentações,
onde permaneço até os grupos infantis começarem a desfilar. Assisto aos primeiros
grupos, fotografo e filmo e depois vou ao encontro de meu anfitrião John Hicks e de
outras pessoas da Unidos de Londres. Estão abrigados em uma escola. Voltamos até a
Powis Square, assistimos à apresentação do bloco de samba ‘Verde Vai’ e novamente
nos separamos.
Mas uma vez adentro a sede da Mangrove, converso com as pessoas que haviam
dito que cederiam uma camisa da banda para que eu participar, junto deles, por todo o
percurso do desfile e para reafirmar minha presença no dia seguinte. A camisa está
sendo vendida por cerca de trinta libras, mas eu não pago por ela. Solicitam que eu
chegue cedo para poder apanhá-la. Sigo a andar pelas ruas e a observar a movimentação
das pessoas.
Na segunda feira, chego à área do carnaval por volta das 10:00h da manhã. Há
poucas pessoas nas ruas e cai uma chuva fina, que se torna granizo. As barracas que
vendem comidas já estão armadas (desde o dia anterior?), em funcionamento e suas
fumaças se espraiam adensando o tom acinzentado do dia. Há também policiais no
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local, alguns deles abrigados sob as árvores. As autoridades contam que os festejos
acabem por volta das 21:30h, com a suposta dispersão da multidão.
No Tabernacle, há muitos integrantes da Mangrove fantasiados ou vestindo
camisas da banda. Todos com ar festivo e na expectativa de irem para as ruas brincarem
o carnaval. O grupo de pessoas responsável pela organização da banda está, por sua vez,
muito atarefado. Andam de um lado para o outro tentando resolver o que falta. Precisam
conferir se todas as fantasias foram entregues; distribuir camisas ou fazer fantasias para
retardatários; entregar pulseiras de plástico que: identificam os integrantes do grupo,
permitem a entrada na área restrita aos componentes da banda no Tabernacle e também
na área fechada de desfile e vêm com tíquetes para almoço e bebidas dadas durante o
percurso.
Espero por algum tempo até que Gerard me entrega a camisa para desfilar,
recebo também a pulseira de identificação. Permaneço no local por algum tempo, mas
saio em seguida para ver outras bandas, andar e observar a movimentação nas ruas,
tomadas por foliões, espectadores, vendedores ambulantes ou não, policiais, bandas.
A minha caminhada por uma grande rua principal, Ladbroke Grove, começa pela
parte baixa. Ao chegar à parte mais alta, olho na direção oposta e fio assombrada com a
quantidade de pessoas que ali está, muitas bandas e inúmeras pessoas circulam com as
exuberantes fantasias. É interessante o fato de as pessoas poderem acompanhar as
bandas dançando ao seu lado, por uma grande parte do percurso. A barreira que separa o
público dos integrantes das bandas é, literalmente, um cordão, que depois que a banda
deixa a Ladbroke Grove, deixa de existir. O público é impedido de penetrar apenas na
área onde acontecem as competições, ainda assim não paga para assisti-las.
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Nesta primeira caminhada, não consigo chegar até o local onde se encontram os
jurados, por conta da distância e da multidão, muitas vezes maior do que a do dia
anterior. Também é necessário voltar até onde estava a Mangrove, o que não é rápido,
pois muitas vezes é difícil vencer a multidão circulante e fotografar, filmar e falar com
as pessoas.
No caminho de volta, encontro a ‘minha banda’, que percorre a mesma rua na
qual estou. As pessoas vêm dançando animadamente ao som de socas e calipsos,
tocados por um DJ no carro de som. O carro vem com a mesma formação e
instrumentos do dia do Panorama, porém ninguém toca, todos querem brincar. Além de
trazer e exibir os instrumentos, o caminhão serve como base para alocação das bebidas e
algumas pessoas, quando se cansam, sentam-se sobre ele e seguem o percurso desta
maneira. Na hora do almoço ainda abriga os recipientes com os alimentos. Fazemos
uma fila, ou melhor, uma aglomeração, para pegarmos nossas quentinhas. Os
mascarados destacam um tíquete da pulseira, dada no Tabernacle, entregam ao
responsável pela distribuição e recebem o almoço.
A banda inicia o percurso por volta de 13:00h e retorna ao ponto de partida
apenas por volta das 23:00h. Ao passarmos pelo local onde ficam os jurados, já é noite e
não há mais nenhum árbitro por ali, todos haviam ido embora. Contudo, isto não parece
ser problema, segundo o discurso de diversos integrantes, a intenção maior naquele dia,
é pular o carnaval (jump up). Alguns dos integrantes mais antigos dizem que o carnaval
tem a ver com liberdade, questões sociais, poder, “ser rei por um dia”, e não com
competições. Neste ponto, enfatizam a freqüência altamente competitiva do carnaval
das escolas de samba cariocas, considerando que sua posição era diferente.
Algumas pessoas da banda, com os quais eu tinha maior intimidade, repetiamme a todo momento: “enjoy yourself”, insistem para que eu fique à vontade, como eles.
Esta frase vinha sendo repetida por diferentes pessoas e em diferentes circunstâncias,
mas nesse dia são mais insistentes. A intenção, segundo eles, é “fazer o que der vontade
de fazer”, “fazer o que seu corpo quiser fazer, não pensar sobre isso, apenas fazer”, “just
do it!”, “it’s carnival!”.
A maneira como dançam me parece extremamente sensual. As mulheres
mechem os quadris vigorosamente, os homens as acompanham, muitas vezes de forma
libidinosa. Em algumas circunstâncias, um homem e uma mulher juntam seus corpos e
realizam movimentos que lembram movimentos sexuais, outras vezes uma mulher pode
61
ficar no meio de mais de um homem ou o inverso, realizando movimentos de mesma
conotação.
Em certa altura, deixo minha mochila dentro do caminhão de som, com algumas
das mulheres que estavam sentadas sobre ele, para tentar ficar mais à vontade e afinal
“enjoy myself!”, porém percebo que para isso preciso me acostumar com aquele tipo de
música e de dança, não compartilho de determinados códigos que estão se apresentam
naquele momento. Sinto-me constrangida de executar tais movimentos e não sei se
dançar junto com alguém implica numa possível continuação da relação, depois de
findo o desfile.
Passam das 21:30h quando, por três vezes, policiais tentam desligar ou abaixar o
som do carro da Mangrove. Mashup revida aos brados e consegue que o som permaneça
ligado até o final do trajeto, de volta a All Saints Road. Apesar do longo dia e percurso,
as pessoas não param de dançar. Ao contrário das referidas escolas de samba, que dão
grande importância ao campeonato, como diversos grupos caribenhos, e procuram
concluir o percurso num curto período de tempo, os integrantes da Mangrove têm outra
perspectiva, desejam permanecer nas ruas pelo maior tempo possível. Se carnaval de rua
tem apenas um dia, deve ser aproveitado ao máximo. Em entrevista posterior, Debi
Gardner, integrante da BAS, considera que apesar de o grupo ter podido continuar a
desfilar, é possível que sofra algum tipo retaliação ou sanção no ano seguinte, 2007.
Vou para casa por volta de meia noite, poucas pessoas e muito lixo pelo chão
das ruas, não há latas de lixo. O proclamado sistema de transportes me parece precário.
O metrô está fechado e há uma longa caminhada até um ponto de ônibus, veículo raro
naquela ocasião.
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VI. Alguns Comentários Acerca da Criação e dos Steelpans
Pan oil drums, steelpans, tambores de aço, em Trinidad, a história deste
instrumento parece nos levar ao período colonial. Os escravos utilizavam instrumentos
de percussão, mas em determinado período sua utilização parece ter sido proibida. Com
a introdução de elementos religiosos cristãos, como dias santos e festas nos calendários
locais, os escravos passaram a utilizar tais períodos, como a quarta-feira de cinzas, para
celebrar, tocavam os tambores e outros objetos que pudessem ser utilizados como
instrumentos musicais.
No início de cada ano, havia uma celebração pela colheita da cana-de-açúcar.
Antes da noite de corte da cana, havia festejos processionais, ritmados sob sons
percussivos e iluminados por luzes de velas, candlelight, o Cannes Brulle ou
Camboulay parece ter sido, eventualmente, celebrado junto ao carnaval. Seu
remanescente atual parece ser, tanto em Trinidad quanto em Londres, o Jouvay, que
marca a abertura dos dias carnavalescos. Os participantes utilizam fantasias que eles
mesmos confeccionam e não há divisão pré-estabelecida entre os grupos. Tem um
caráter mais livre.
No início do século XX, havia em Trinidad banda de Tamboo Bamboo,
compostas por instrumentos feitos de bambus, este material parece ter sido lentamente
substituído pelo metal e algumas das bandas se tornariam famosas steelbands. Por volta
dos anos trinta nasce o steel pan. Algumas pessoas teriam percebido que se amassassem
de um dos lados de latões de metal, em diferentes graus, poderiam produzir uma
variedade de notas. Para a confecção dos instrumentos, ocorre um processo que
podemos considerar como bricolagem, pois utilizavam refugos de materiais.
Determinadas pessoas e bandas são proclamadas como inventoras dos steel pans ou
como precursoras das steelbands.
Em meio a um cenário onde se apresentava uma diversidade de instrumentos,
feitos dos mais diferentes materiais, o steel pan foi confeccionado a partir de latas de
óleo (petróleo) e de biscoito, que eram descartadas pelas fábricas. Isto acontecia em
uma área da cidade denominada John John, onde havia diversas fábricas de biscoitos,
velas, sabão e outras pequenas indústrias.
Serrados na horizontal, em diversas larguras, apresentam uma face que, por meio
de calor, se dilata e forma uma base côncava. Essa base é amassada por meio de
marteladas e cada uma das elevações criadas, de diferentes tamanhos e profundidades, é
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afinada, o que dá origem às diferentes notas, que compõem cada instrumento. Alguns
são mais altos, outros mais baixos, mais agudos ou mais graves. Na primeira vez que vi
e pude escutar um deles, no panyard da Mangrove, os grandes e brilhantes instrumentos
me pareceram não apenas lindos, mas incrivelmente intrigantes. Alguns são tocados em
tambores individuais, outros conformam conjuntos de dois, quatro, ou até doze
tambores.
Winston ‘Spree’ Simon aparece em alguns textos, como o inventor do
instrumento. Porém, não há concordância acerca de tal fato entre as diversas fontes que
pude consultar. O instrumento, inventado no século XX, primeiramente foi convexo e
não côncavo, como vemos nos dias atuais. O ping pong produzia duas notas musicais,
num segundo momento, teriam descoberto uma outra nota entre elas e posteriormente,
no início dos anos quarenta, fariam o melody pan, com oito e depois com quatorze
notas. A quantidade e disposição das notas e escalas continua mudando, dando aos pans
um caráter peculiar de constante movimento.
Atualmente podem ter duas, três, seis, doze ou mais notas, realizando melodias
das mais variadas. Originais, rearranjadas, calipsos, reggaes, músicas pop e mesmo
clássicos. Os instrumentos são definidos como: ping pong ou primeiro pan, double
second pan, guitar pan, triple cello, five bass entre outros. Os baixos são os mais graves
e sobem até os tenores altos, high tenor.
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CAPÍTULO II
CARNAVAL: FANTASIA? SEDUÇÃO? TEMPOS DO EXTRAORDINÁRIO E A
ABERTURA DE UM “MUNDO ESPECIAL”
“Carnaval doce ilusão
dê-me um pouco de magia
de perfume e fantasia
e também de sedução.”
(Trecho do samba “Os cinco bailes da história do Rio”
de Silas de Oliveira, Dona Ivone Lara e Bacalhau)
Nesta seção, apresento um olhar comparativo inicial sobre os dois carnavais. O
primeiro tópico descreve sumariamente o carnaval observado no Rio de Janeiro, o
segundo descreve da mesma maneira o carnaval londrino, acompanho a mesma forma
de apresentação, de acordo com minha inserção nos campos investigados. Em seguida,
apresento algumas reflexões acerca dos significados que podem ter o ‘carnaval’
enquanto ritual e abordo a questão dos dramas sociais.
I. Carnaval Carioca
Desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial na
Avenida Marquês de Sapucaí – Sambódromo Espaço Ordinário para dar vez ao Extraordinário
No Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, pensar no desfile
carnavalesco das escolas de samba, nos remete à imagem do sambódromo, localizado na
Avenida Marquês de Sapucaí, no Centro da Cidade. O desfile do grupo especial
acontece em dois dias, e dura geralmente de por volta das sete da noite às sete da
manhã. Em cada dia, se apresentam seis ou sete agremiações.
As apresentações são regidas por normas estabelecidas pela LIESA (Liga
Independente das Escolas de Samba), e devem ser seguidas para que as agremiações
desfilantes possam atingir uma boa pontuação, buscando, cada uma, a conquista do
campeonato. A cada desfile, diversos juízes observam aspectos distintos das
performances e dão notas de acordo com os critérios (quesitos) estabelecidos pela Liga.
Tem-se um local de entrada restrita. Só adentra a avenida, para participar do desfile
quem faz parte de uma das agremiações. Além dessas pessoas, participam com
credenciamentos específicos alguns segmentos da imprensa - principalmente da Rede
65
Globo, detentora de todos os direitos de imagem e transmissão do carnaval realizado na
Marquês de Sapucaí6 -, e convidados considerados vips, que margeiam as escolas. Nas
arquibancadas, fica o público, que precisa comprar ingressos relativamente caros e para
cuja compra encontram-se certas dificuldades. São colocados à venda em dias
específicos e geralmente se esgotam em poucos minutos. No ano de 2007, os ingressos
disponibilizados no dia 05 de janeiro e vendidos por telefone, esgotaram-se em um
minuto! Não há como afirmar que essas vendas sejam feitas de forma equânime. Muitos
dos ingressos acabam nas mãos de cambistas e de empresas de turismo.
O espaço do Sambódromo, construído em 1984, foi especificamente destinado a
acolher os desfiles das escolas de samba. Seu formato estabelece, por si só, uma forma
específica para as apresentações. Podemos dividir a organização e seqüência das
apresentações em três partes: a concentração, o desfile e a dispersão. Para cada
momento, há tempos determinados, geralmente estabelecidos em minutos. Fugir aos
tempos determinados acarreta a perda de pontos no cômputo geral da agremiação.
Podemos imaginar esta área como um grande T, onde a linha horizontal seria a área de
concentração das agremiações (Avenida Presidente Vargas) e a vertical seria a área do
desfile (Avenida Marquês de Sapucaí). Na base, teríamos a dispersão.
De acordo com a maneira como as apresentações se desenrolam, a única
possibilidade de os grupos percorrerem a avenida é em linha reta, com um mesmo local
de entrada e de saída para todas as agremiações. Há apenas dois locais denominados
recuos, feitos para o abrigo da ala de bateria de cada escola durante a apresentação e
assim dar passagem às demais alas, saindo e voltando a incorporar-se.
6
A empresa Globo, bem como outras instituições formais, assume posições ambíguas. Por um lado,
divide o espaço carnavalesco com as escolas de samba – estabelecendo acordos com setores
governamentais e com associações carnavalescas como a Liga, sejam eles diretos ou indiretos -, promove
este estilo de carnaval e obtém retornos financeiros. Monopoliza (com consentimento de organismos
oficiais) os direitos sobre as imagens de todo o carnaval que acontece no Sambódromo, inclusive sobre as
transmissões internacionais. Por outro, eventualmente publica notícias sobre os contraventores, bicheiros
que podem então, serem enquadrdos como “foras da lei”. Fatos esses que não implicam sua mudança de
posição, nem estímulo a um amplo debate acerca do envolvimento de setores formais aos setores
informais e ilegais. Tem sido noticiada a recente prisão do presidente da LIESA, Ailton Guimarães Jorge,
o Capitão Guimarães; de Anísio Abraão David, presidente da Beija-Flor, várias vezes campeã do carnaval
dos últimos anos e de Turcão, que parecem ser associados em jogos ilegais e patrocinadores de algumas
agremiações. Prisões que podem parecer surpreendentes, pois muitas vezes são considerados intocáveis.
Como bem coloca Cavalcanti (1994), é possível vermos - na inversão carnavalesca das escolas de samba
cariocas - o patrono deixar seu ‘trono’ em direção à prisão; ou vê-lo ser cumprimentado com irreprimível
admiração pelas autoridades oficiais e ser fervorosamente aplaudido por uma população maravilhada com
o desfile de ‘sua’ escola; ou ainda, no caso do Capitão Guimarães, ser aplaudido pela ‘irrepreensível’
organização do espetáculo carnavalesco realizado no Sambódromo, carnaval ‘de nível internacional’.
66
No dia do desfile, a movimentação das escolas começa muitas horas antes do
que é visto pelo público, tanto nas quadras quanto nos barracões. Muitos ônibus partem
das quadras levando grande número de componentes para o Sambódromo. Por
morarem, em sua maioria, nas cercanias da quadra, se dirigem para lá a fim de tomar a
condução gratuita para o desfile, com direito a ida e volta. Os carros alegóricos, na
maioria das vezes, são levados dos barracões para a Avenida Presidente Vargas, na
madrugada anterior ao desfile. Ao chegarem na ‘Avenida’ recebem os retoques finais,
têm seus funcionamentos checados e são vigiados por funcionários contratados pela
escola por todo o tempo.
A seqüência da entrada das agremiações na área de desfile é estabelecida por
meio de um sorteio organizado e realizado pela LIESA7. As escolas que são sorteadas
em posição de número par se armam de um lado da avenida Presidente Vargas,
enquanto as de número ímpar se colocam do outro, sobrando um espaço vazio entre elas
– o início da Av. Marquês de Sapucaí. Os lados são conhecidos como Balança e
Correios - respectivamente um grande prédio conhecido como “Balança, mas não cai” e
um edifício sede dos Correios no Rio de Janeiro. As escolas entram no espaço de desfile
uma após e de frente para a outra, a partir dos lados opostos.
A concentração é o local onde a agremiação se estrutura para o desfile. Neste
espaço, os diretores responsáveis pela harmonia, um dos quesitos avaliados, colocam
em ordem os setores que representam cada parte da história que se pretende contar, de
acordo com a sinopse do enredo. Cada carro alegórico, geralmente em número de oito,
vem seguido de diversas alas, formadas por pessoas fantasiadas de acordo com o tema.
Com a organização da escola, o grupo começa a caminhar, em conjunto, e entra na área
do desfile.
A Unidos do Viradouro, por exemplo, apresentou em 2006, um tema sobre a
arquitetura nacional, cujo título era Arquitetando Folias. O carro alegórico de número
sete representava uma favela contemporânea, o nome: Destruídos e Excluídos – Favela
dos meus Horrores. Após a alegoria que representava o título, seguiam as alas,
7
Não me aterei sobre este aspecto, mas apesar da aparente neutralidade do sorteio, há muitos rumores e
comentários sobre se de fato o é. Levar em consideração a liderança de contraventores e banqueiros do
jogo do bicho e talvez não só por esse fato, não permite afirmar ou concordar que a aparente neutralidade
exista. Há agremiações ligadas ao tráfico de drogas, geralmente este comanda a área onde estão sediadas.
E outras lideradas por integrantes de forças policiais. Para ver mais sobre a ligação entre jogo de bicho e
as escolas de samba cariocas ver: Chinelli e Machado da Silva 2004; Queiroz, Maria Isaura P. de, 1999;
Cavalcanti, Maria L. V. de Castro, 1994; Leopoldi, José Sávio, 1977, além de periódicos como jornais de
circulação nacional.
67
explicando o tema, como um tópico frasal e seu posterior detalhamento. Este é, mais ou
menos, o padrão de ordem seguido por todas as escolas.
Uma vez iniciado o percurso, a escola não tem como voltar atrás, parar ou
dispersar-se, a não ser ao final da Passarela do Samba. Problemas com o andamento da
agremiação podem acarretar a perda de pontos em quesitos como ‘evolução’ ou
‘conjunto’, podendo comprometer todo aquele desfile e seu respectivo resultado.
Quando a escola se posiciona na Avenida e soa o sinal que estabelece o tempo do
desfile, há oitenta e cinco minutos para que cada agremiação finalize o trajeto. A
apresentação não pode ser descontinuada, nem em relação à sua uniformidade visual e
musical, nem em relação ao tempo, que jamais pode ser restabelecido.
Ao final do percurso, no espaço chamado dispersão há, novamente, um lugar
para a alocação temporária dos carros alegóricos, que devem ser retirados dali o mais
rápido possível, caso contrário, pode haver perda de pontos. Os desfilantes, por sua vez,
devem sair para a rua, uma área aberta que não mais pertence àquele espaço de controle,
ou podem dirigir-se ao interior da área reservada para o público, assistindo às demais
apresentações – no caso de possuírem ingressos ou credenciais – ou para retornarem à
área de concentração para desfilarem (“saírem”) novamente, em outra agremiação.
As regras estabelecidas pela Liga parecem ser bastante rígidas em alguns
sentidos. Uma delas impõe o fato de desfilarem no Grupo Especial, nos últimos anos,
apenas quatorze escolas afiliadas. Sete desfilam domingo e as outras sete na segunda.
Eventualmente o número de agremiações que participa em cada dia pode sofrer
alterações. As demais escolas de samba, pertencentes aos grupos inferiores, são afiliadas
à Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro (AESCRJ), outra
organização também majoritariamente gerida por contraventores. Atualmente, somamse ao espectro de pessoas vinculadas ao esquema carnavalesco (das escolas de samba)
policiais, que estão presentes em ambas as cenas.
Muitas vezes gira em torno dos resultados finais, tanto no que diz respeito ao
grupo gerido pela LIESA quanto pela Associação, uma suspeição em relação à
colocação das agremiações. Durante os últimos anos, eu presente em diferentes
agremiações dos vários grupos e também em outros espaços correlatos ao samba e ao
carnaval, obtive relatos e soube de casos de inúmeros atores sociais - inclusive alguns
representantes de agremiações, de outros tipos de associações carnavalescas, cantores e
artistas do gênero -, que questionam os resultados finais. Acreditam, muitas vezes, que o
68
bom ou mau relacionamento – seja pessoal, seja familístico8, seja por associações nos
jogos ilegais, nos bingos, ou máquinas de caça-níqueis instaladas ao longo da cidade, do
estado ou mesmo do país - entre o presidente da Liga e o presidente da agremiação são
decisivos.
Uma ou duas agremiações ‘descem’ ou ‘sobem’ de um grupo para outro. Então,
apesar de estarem submetidas a um sistema hierarquizado, há possibilidades graduais e
eventuais de reclassificação. A competição abre espaço para uma fuga do ordinário,
visto que aparentemente imprime a possibilidade de um concurso igualitário, promotor
de igualdade e oportunidades idênticas, oposto ao sistema social brasileiro, tantas vezes
marcado pela hierarquização (DAMATTA, 1997).
Em 2006, duas agremiações ‘desceram’ para o grupo de acesso A, enquanto
apenas uma ‘subiu’ ao grupo de elite, reduzindo o grupo especial para treze afiliadas. A
atual intenção é a de que esse formato seja mantido até que haja apenas doze escolas no
grupo. Somam-se ao Grupo Especial os Grupos: A, B, C, D e E, além das ‘Escolas
Mirins’ que desfilam na sexta-feira. Os grupos A e B desfilam na Marques de Sapucaí,
respectivamente no sábado e na terça-feira, as demais apresentações foram levadas para
fora do Centro da Cidade. Realizam seus desfiles em Campinho, na Avenida Intendente
Magalhães. Os mecanismos de ascensão e decesso seguem, em todos os grupos, de
maneira semelhante.
II. Carnaval de Notting Hill – uma Descrição Sumária –
Trajetos que se Entrecruzam –
O Percurso das Bandas e o Espaço Reservado para o
Carnaval e para o Desfile em Notting Hill no ano de 2006
Retomemos às observações do ano de 2006, em Londres, quando minha inserção
se deu de forma mais constante junto aos grupos caribenhos.
8
“Nessa situação (das escolas de samba) é praticamente impossível fixar um regulamento interno
simples, havendo grande dificuldade com a interpretação das regras” DaMatta 1997, p. 133, 134. Há
estatutos internos nas agremiações e regras que gerem a totalidade, “iguais para todas”. Porém, como
observamos, a interpretação das regras e a existência de um poder ‘absoluto’ dos presidentes ou dos
patronos, eventualmente fazendo do presidente um ‘testa-de-ferro’, fará com que as normas possam ser
seguidas de diferentes maneiras, modificadas arbitrariamente ou mesmo ignoradas. Eventualmente um
grupo oponente, em relação ao grupo dominante, pode tomar o poder com ‘mão de ferro’, expulsando o
grupo anterior ou mesmo eliminando alguns de seus personagens principais, como é possível perceber no
caso de assassinatos de presidentes e outras figuras de algumas agremiações.
69
Em Notting Hill, no último feriado do mês de agosto, uma grande área fica
fechada ao trânsito, configurando o amplo espaço reservado para o carnaval. Os únicos
automóveis autorizados a circular são os grandes caminhões de som que levam os DJs;
os pequenos tratores que puxam as longas carretas com os instrumentos – no caso das
steelbands –, ou que levam grandes sistemas de som – com amplificadores e demais
aparatos - e vêm seguidos pelos foliões que dançam no chão no entorno dos veículos;
além dos carros alegóricos e de som das escolas de samba.
Cada banda possui algumas pessoas responsáveis por manterem separados os
integrantes das bandas, masqueraders, do público geral, por meio de um cordão de
isolamento. Algumas vezes parece difícil conter a animação dos foliões mantendo cada
um onde, supostamente, deveria estar.
Segundo dados fornecidos por um relatório do Westminster City Council, a
administração regional, nos dois dias do carnaval de 2005, oitenta mas bands, quarenta
e cinco DJs móveis e quinze steelbands participaram das apresentações e tomaram
parte do carnaval e da competição on the road, que tem um percurso de cerca de cinco
quilômetros. Nos arredores, houve ainda quarenta e um sistemas de som, static sound
systems que animam as ruas da localidade e concentram grandes aglomerações nos
locais onde estão instalados.
Com diferentes tamanhos e estilos, as steel e as mas bands podem representar
diferentes “identidades” – no sentido de se basearem em diferentes carnavais, (como o
caribenho, ou o brasileiro) -; estilos musicais e estéticos, e aspirações. Alguns dizem
verbalmente que se empenham no sentido de vencer a competição. Outros dizem que o
mais importante do carnaval é “ser rei por um dia”, brincar o carnaval, “enjoy yoursel”.
Para outros, existe a preocupação em afirmar as chamadas identidades étnicas.
Desde o seu início, o carnaval de Notting Hill tem reunido mais e mais pessoas.
Indivíduos de diferentes nacionalidades participam das atividades e das artes que
envolvem tal celebração. É importante reafirmar que é um carnaval baseado
fundamentalmente no estilo caribenho, ainda que haja grupos como as escolas de
samba.
Diversos locais do mundo possuem carnavais com estilo semelhante,
principalmente cidades que possuem um grande número de imigrantes das Ilhas do
Caribe e Guiana. Como exemplo, podemos citar o Caribana que acontece em Toronto,
no Canadá; em Nova York o Labor Day; na Inglaterra, além do Notting Hill Carnival
outros como em Leicester, Nottingham, Reading e Manchester.
70
Algumas das pessoas que conheci estavam em Londres especificamente para
julgar as competições daquele período carnavalesco. Algumas viajam ao redor do
mundo para participar de mais de um carnaval, que, em muitas das vezes, acontecem em
diferentes períodos. Alguns dos árbitros, tanto da competição entre as steelbands quanto
das mas bands, são convidados pelos organizadores e vêm, em geral de Trinidad, para
julgar as apresentações, são chamados ‘juízes internacionais’, adquirem tal reputação e
participam, muitas vezes, de vários desses carnavais, bandas, músicos e artistas que
fazem o mesmo.
Nos dias de desfile (domingo desfilam as crianças e segunda-feira os adultos), as
bandas deixam os centros comunitários, as escolas e demais locais de concentração e se
dirigem, em cortejo, vindas de diferentes direções, ruas paralelas, perpendiculares,
diagonais, até atingirem o local de entrada oficial do desfile, na Great Western Road. A
partir deste ponto, entram em uma área fechada ao público, onde cavaletes de ferro, de
cerca de um metro e meio de altura, estabelecem a barreira. Logo adiante do ponto
inicial do desfile, se localiza a tenda que abriga os jurados, judging point. O público se
debruça sobre as grades, para assistir às apresentações.
De forma processional, as bandas iniciam esta parte do percurso na Great
Western Road, passam pela Westbourne Park Road, em seguida pela Chepston Road e
Westbourn Grove, Kensinton Park Road, pela Elgin Crescent, continuando o percurso
até retornarem à Ladbroke Grove ou deixarem a área cercada em pontos que facilitem
seu retorno às suas sedes ou locais onde se concentram os foliões e integrantes, antes e
geralmente depois do desfile. Os foliões também não são obrigados a permanecerem
junto ao grupo durante todo o tempo.
Como dito anteriormente, não há uma ordem pré-estabelecida para a
apresentação das bandas aos jurados. As apresentações acontecem de acordo com a
ordem de chegada. Deixam os locais de concentração, tomam as ruas, espalhando-se ao
longo de toda a área, formando algo como enormes ‘filas’ de grupos carnavalescos,
confluindo, um após o outro, para o mesmo lugar. Quando surge um novo grupo, vindo
de uma rua transversal, os que já estão alinhados precisam abrir espaço para o recém
chegado. Parando e andando, parando, cedendo passagem e andando novamente, os
grupos se dirigem lentamente ao local das apresentações.
No domingo de carnaval, o “dia das crianças”, Children’s day, permaneci em
frente à tenda dos jurados por algum tempo, observando e filmando a entrada e
apresentação das bandas. Já na segunda feira, fiquei por perto do grupo da Mangrove,
71
primeiramente com a intenção de conquistar minha camisa para participar ao longo de
todo o percurso, mas principalmente por querer observá-los e me integrar no momento
do desfile. Deixei de ir a alguns lugares por conta da imensa multidão que lotava a área,
por receio e precaução.
Os números indicam que nos dois dias de carnaval cerca de dois milhões de
pessoas circulam por aquela área. As ruas ficam surpreendentemente lotadas,
apresentando um ambiente ruidoso e muitas vezes enfumaçado pelas churrasqueiras das
centenas de barracas que vendem apimentados frangos marinados, arroz com ervilha,
cervejas vindas do Caribe e outras comidas típicas, além da fumaça dos variados tipos
de cigarro.
72
Parece haver uma grande preocupação com a segurança e o sistema de transporte
das pessoas que ali se aglomeram. Segundo um boletim das administrações distritais,
The Royal Borough of Kensington and Chelsea e do City of Westminster, todos os anos
o Kensington and Chelsea Council e o Westminster City Council, trabalham juntos ao
London Notting Hill Carnival Ltd. (LNHC), à Polícia Metropolitana, ao corpo de
bombeiros, London Fire Brigade, à London Ambulance Service e St John Ambulance, à
Health Protection Agency, ao British Transport Police, ao Transport for London e à
Greater London Authority, a fim de garantirem a segurança e bem estar social. Há,
durante todos os dias, um grande contingente de policiais, Metropolitan Police, nas
ruas. Algumas estações de metrô permanecem fechadas, outras funcionam apenas como
saídas e, segundo proclamam, pode haver mais ônibus circulando, inclusive durante a
noite, o que na prática parece não se realizar.
III. ALGUMAS COMPETIÇÕES CARNAVALESCAS EM LONDRES
III. a. Competição entre os Grupos Musicais Steelbands - Panorama
Segundo a British Association of Steelbands (BAS), as competições, como a
Panorama, são um importante veículo de expansão e desenvolvimento da “cultura do
steel pan”, tanto em Londres quanto na Inglaterra. Essa competição entre as steelbands,
que acontece em Londres desde o ano de 1978, tem como modelo uma competição
semelhante que acontece em Trinidad.
Na competição de Trinidad, há diferentes segmentos de bandas, divididos por
número de participantes. Cada segmento é composto por um número de bandas, que por
sua vez, são compostas por diferentes números de pessoas. As maiores bandas podem
ser compostas por cerca de 120 participantes.
Em Londres, há apenas um grupo de competidores. No ano de 2006, era
composto por nove bandas com cerca de trinta a cinqüenta integrantes cada uma. Foram
elas: Croydon Steel Orchestra, com a música Good Times; Ebony Steelband, com
Colours Again; Mangrove Steel Band, com Soca Warrior; Metronomes Steel Orchestra,
com This one’s for you, Bradley; Pantasia Steel Orchestra, com Max It Up; Real Steel,
com High on the Pan; Southside Harmonics, com Musical Treat e Stardust Steel
Orchestra, com This one’s for you, Bradley.
73
A participação de uma banda, nesta competição, por custar entre oito mil e vinte
mil libras ou mais. Durante o ano, elas se empenham em angariar fundos, que podem vir
de fontes variadas para cobrir seus custos. Segundo relatório cedido pela BAS, no ano
de 2006, algumas das bandas foram patrocinadas pela Polícia Metropolitana, pelo
Exército e pela Marinha, entre outros.
O National Panorama Championships acontece no sábado, anterior aos dois dias
de carnaval de rua. As bandas ensaiam arduamente para tal apresentação, que tem
repercussão na Inglaterra, em Trinidad e nos demais locais onde há carnavais
caribenhos, por conta da circulação dos atores sociais e das informações. Algumas
steelbands se dedicam mais a esta competição, do que à competição Best Steelband on
The Road – a competição específica entre essas bandas, no dia de carnaval. Os
campeões ganham reputação e prestígio, sabendo que o reconhecimento se dá também,
segundo relatos, em relação ao carnaval “original”, de Trinidad.
Esta competição, ao contrário de outras que requerem composições originais ou
clássicas, é baseada em rearranjos de calipsos. O regente escolhe uma música,
geralmente conhecida e faz um novo arranjo para ela. A partir daí, a banda irá ensaiá-la
constantemente, até o dia da apresentação. Os ensaios ganham maior ênfase – em
quantidade de dias e horas - quanto mais se aproxima a competição.
No ano de 2006, a competição contou com três jurados considerados
internacionais, pois participam de outras competições entre steelbands em outros
lugares do mundo. Podem morar em Londres, Caribe ou outro lugar, e vir como
convidados para a competição. Todas as bandas possuem representantes que participam
de reuniões e conversas, a fim de estabelecerem um acordo entre os juízes que irão
arbitrar a disputa. É necessário que todos concordem com a indicação dos jurados, caso
contrário o juiz deve ser substituído por outro.
Em uma entrevista posterior, com integrantes da BAS e em conversas com
participantes dos grupos, ficou claro que pode haver dificuldades em conseguir opinião
unânime entre os grupos e ao mesmo tempo encontrar juizes hábeis, dispostos a
despender algumas horas - ou eventualmente viajar a Londres - em função da
competição.
De acordo com as cópias das planilhas utilizadas pelos jurados, eles levam em
conta diferentes critérios e dentro de cada critério diferentes quesitos. São eles: arranjo;
performance geral; performance do músico; tom; ritmo e apresentação. São ainda
observados quesitos como introdução, execução e balanço, perfeita entonação,
74
rearmonização, desenvolvimento melódico; interpretação, dinâmicas como cor e
textura, criatividade e balanço; harmonização dos instrumentos, qualidade do som;
tempo, coesão, a habilidade de tocarem juntos com precisão e balanço e aplicação
respectivamente, aos quais são feitos comentários e dadas notas.
Apesar de haver um espaço para as justificativas dos jurados, estas não são
obrigatórias. Após a divulgação dos resultados, ao conversar com uma integrante da
BAS e responsável pela convocação do júri, ela revelou que as justificativas geralmente
são consideradas insuficientes. Vários espaços são deixados em branco e nem sempre as
justificativas expressam com clareza o motivo das notas. Sempre há satisfação para uns
e insatisfação para outros.
III. b. Best Mas Band on the Road –
Competição entre os Grupos de Fantasias
Os grupos que participam da competição por meio da apresentação de seus
integrantes em fantasias, são denominados mas bands. Seguem padrões organizacionais
e de desenvolvimento dos costumes baseados no carnaval de Trinidad. Os foliões,
mascarados usam a expressão “playn mas”, para se referirem ao fato de “brincarem” ou
“pularem” o carnaval.
Somam-se às menores, utilizadas pela maior parte dos mascarados, as grandes
fantasias que necessitam de estruturas de ferro para sustentá-las. As estruturas parecem
coletes de aço e são forradas com algum tipo de borracha e outros materiais para
protegerem o corpo da pessoa que a veste. Assim os resistentes coletes podem
comportar a parafernália que completa e dá forma à fantasia. Diferentes tamanhos,
cores, formas de materiais, tecidos e esculturas concluem as fantasias, se for necessário,
são implementados “carrinhos” com rodas na parte de trás, para auxiliar na sustentação.
Algumas delas participam da competição Splash, ou Gala, onde as vencedoras são
intituladas Rainha e Rei, Princesa e Príncipe do Carnaval.
75
Na carnaval parade, são julgados aspectos como o tema, as fantasias, se as
fantasias se articulam bem com tema, o impacto visual, a apresentação do grupo, o
espírito dos participantes e o melhor grupo histórico. No ano de 2006 - segundo dados
obtidos junto ao guia para o carnaval de Notting Hill de 2006, da Unidos de Londres -,
pela primeira vez foram introduzidos quesitos específicos para as escolas de samba.
Entre eles, a avaliação da comissão de frente, do casal de mestre-sala e porta-bandeira,
da evolução, da harmonia, da bateria e do samba enredo e representação do tema
(enredo). Todos estes critérios existem no carnaval do Rio de Janeiro. Acredito que
algumas pessoas envolvidas em ambos os carnavais devem ter proposto tal alteração.
Para que possam fazer suas avaliações, os julgadores se baseiam nos aspectos
visuais, pois não há sinopse dos temas nem explicação dos mesmos. Geralmente as
bandas trazem à sua frente uma grande faixa com o título do tema escolhido, que é
sustentada por alguns de seus componentes ou disposta na frente do carro/caminhão que
abre o desfile. Em seguida vem o carro de som, geralmente com um DJ e por fim, atrás
dele, os mascarados. Excetuando-se as escolas de samba, não há critérios de julgamento
para as músicas utilizadas pelos grupos, a avaliação se dá exclusivamente sobre os
aspectos relativos às fantasias.
III. c. A Rivalidade Entre as Escolas de Samba no Carnaval de Notting Hill
Em relação às agremiações brasileiras, em Notting Hill, além da rivalidade entre
elas e as bandas de modo geral, adversárias que são na competição, há uma rivalidade
76
entre uma escola e outra. Disputam além da primeira colocação no desfile, status e
reconhecimento acerca de qual é a mais brasileira, a mais antiga, a que melhor
representa a suposta identidade de Brasil e brasilidade, a que traz para a Inglaterra o
“espírito” e a “tradição” brasileiras, supostamente representados pelas escolas de samba
do Rio, consideradas legítimas espécimes (representantes) da cultura nacional.
A Paraíso School of Samba toma para si o papel e o discurso de apresentar e
representar em Londres o verdadeiro carnaval carioca, com a mesma intenção e
estrutura organizacional quase idêntica a de uma escola de samba do Rio de Janeiro.
Porém é mais recente do que a Unidos de Londres, que comemorou em 2004 o
aniversário de vinte anos de sua fundação e é apresentada como a primeira escola de
samba fundada em Londres, em 1984, contra três ou quatro anos da anterior.
A Paraíso é apresentada como uma organização comunitária sem fins lucrativos
e ligada a grandes escolas de samba do Rio de Janeiro as quais lhe oferece apoio. Por
isso, a agremiação acredita que ocupa uma posição única na Europa. Além disso, seria
conduzida por artistas que cresceram “dentro da cultura carnavalesca carioca”, como
descrito em um texto escrito por seus organizadores.
Colocam como objetivos do grupo conduzir a “autêntica cultura das escolas de
samba cariocas a Londres”, considerando que esta cultura inclui uma excelência
artística e um envolvimento muito próximo ao que entendem por comunidade. Em
seguida, apresentam o objetivo de tornarem-se um “centro de excelência para o
desenvolvimento do autêntico samba brasileiro no Reino Unido”, aí estariam incluídos
os ensinos de percussão, música, dança e confecção de fantasias de carnaval.
Esta agremiação recebe recursos financeiros do Conselho de Artes da Inglaterra,
Arts Council England. Entretanto a maior parte dos fundos parece ser adquirida por
meio de atividades e apresentações da agremiação, bem como pela continuidade das
aulas de samba (samba dance) ao longo do ano e dos workshops de percussão, além de
projetos de educação infantil, que consideram parte importante do seu trabalho
comunitário.
No ano de 2005, após algum tempo de volta ao Brasil, fui informada de que a
Paraíso havia sido a campeã daquele carnaval. O presidente, orgulhoso, disse que pela
primeira vez o Brasil escreveu seu nome na história do carnaval londrino.
Apesar da rivalidade latente entre as escolas, algumas das pessoas envolvidas
com o carnaval, com o samba e algumas expressões culturais brasileiras correlatas, tanto
em Londres quanto na Europa, muitas vezes não deixam de se relacionarem por conta
77
de tal rivalidade. Desfilam em associações semelhantes, trabalhando, estudando e
viajando juntas. Há pessoas, entretanto, inclusive de outros grupos carnavalescos, que
não se relacionam com e até mesmo discordam da maneira pela qual alguns atores lidam
com o carnaval e com determinados aspectos dessa festividade, estilo musical e de vida,
bem como com suas posições em relação ao samba, às escolas e aos demais grupos que
se referem ao samba.
IV. Um Breve Histórico Acerca do Notting Hill Carnival
O carnaval de Notting Hill, como vimos anteriormente, é um ritual que acontece
todos os anos no mês de agosto, desde aproximadamente 1959 ou 1965,
respectivamente, se considerado, o início nos festivais organizados pela West Indian
Gazzete, WIG, ou se considerado o início o carnaval nas ruas da área.
Desde seus primeiros anos até os dias atuais, sua forma de organização,
participação, número de implicados e variedade de instituições e organizações
envolvidas mudaram bastante. Naquela época, acontecia em halls e na mesma época
que o carnaval de Trinidad, organizado por editores e participantes do periódico West
Indian Gazzete. Em 1965, foi levado às ruas durante o período do verão.
Atualmente compreende um espaço de tempo chamado de Carnival season, que
abrange cerca de dois meses de atividades e culmina com o dia da apresentação das
bandas pelas ruas abarcando uma grande variedade de cidadãos de diferentes
78
nacionalidades, grupos que representam diferentes “identidades nacionais” e
organizações.
No final do século XIX, a área de Notting Hill, próxima ao centro da cidade,
começou a receber maior contingente populacional, principalmente imigrantes da
Irlanda e trabalhadores ingleses da área têxtil. Por volta dos anos 50, depois da II Guerra
Mundial, era uma região que compreendia cortiços, casas degradadas e intensamente
povoadas, vielas e ocasionalmente esgoto a céu-aberto.
Os proprietários ou senhorios, landlord e landladies dessas casas por muitas
vezes discriminavam determinados imigrantes e não os aceitavam em muitas das suas
moradias, eventualmente apresentando os dizeres: “No coloureds, no dogs, Irish not
require”. Tais imigrantes eram, então, obrigados a se instalarem nas áreas pobres, num
tempo em que não havia leis contra discriminações raciais na Inglaterra. Proprietários e
senhorios exploravam seus inquilinos e muitas vezes os expulsavam de suas moradias.
Havia ali uma população transitória, vinda da Polônia, da Europa Oriental e da Ásia e
parte dos habitantes era composta pelos imigrantes do Caribe9.
Atualmente a área de Notting Hill comporta cerca de 150.000 habitantes, de
diversos segmentos sociais e étnicos, sendo conhecida por sua diversidade. Cortada por
duas das maiores ruas comerciais da cidade, abriga também o mercado de antigüidades
e inúmeros objetos na Portobello Road. Recebe inúmeros londrinos e turistas, que
visitam as suas lojas, as barracas do mercado aberto, os restaurantes, os pubs e as casas
noturnas ali localizadas.
No início do verão de 1958, em meio a problemas de desemprego, com uma
classe trabalhadora empobrecida e prejudicada e sob influências do fascismo, os
ingleses – chamados ou auto-intitulados Englishman ou Briton - tinham que conviver
nas ruas, com seus vizinhos caribenhos. Por volta de julho daquele ano, começaram a
aparecer, nas cercanias de Notting Hill, pichações de cunho fascista. As agressões
seguiram um ritmo crescente até se traduzirem em violências físicas e morte.
A primeira geração de imigrantes caribenhos que habitavam a área de Notting
Hill sofreu diversos ataques racistas de grande violência (conhecidos como race riots),
geralmente organizados e iniciados por jovens e trabalhadores brancos contra os negros.
Os ataques contavam pichações, ofensas verbais e a utilização de armas, como garrafas,
tijolos, facas, navalhas, correntes, pernas de mesa, barras de ferro e coquetéis molotov.
9
London Psychogeography (1998); La Rose (2004); Cohen (1993); Encyclopediae Britannica (1977).
79
No início, esporádicos e inesperados, tornaram-se mais constantes, violentos e em maior
escala.
Os ataques contra os negros começaram por volta de julho de 1958.
Compreendendo o período em que hoje acontece o carnaval. Em agosto gangues,
principalmente as conhecidas e formadas por Teddy Boys, atacaram casas ocupadas por
negros e também pessoas nas ruas. Determinada noite, deixou um saldo de cinco
homens negros inconscientes no chão das ruas da localidade de Notting Hill. Os
agressores estavam armados e declaravam o início de uma ‘caçada aos negros’, nigger
hunting, no caso os moradores de Notting Hill e Notting Dale.
Segundo a declaração de um policial, publicada pelo jornal The Guardian10,
cerca de trezentas ou quatrocentas pessoas brancas (seguindo o princípio: “Keep Britain
White”) ocuparam as ruas da área gritando: “Nós queremos matar todos os negros
bastardos. Por que não os mandam para casa?”. Além disso, alguns teriam dito aos
policiais: “Prestem atenção em seu próprio trabalho, policiais. Fiquem fora disso. Nós
vamos colocar esses negros no seu lugar. Nós vamos matar esses bastardos”.
Com o passar dos dias e a continuidade das violências, alguns imigrantes
passaram a revidar. A ferocidade das brigas chocou a Inglaterra e as confusões
continuaram a acontecer. Alguns dos órgãos ligados à Polícia Metropolitana,
reivindicavam o fim da política das “portas abertas” para a imigração negra. O National
Labour Party defendia uma nação de classe-média inglesa, a ‘Mosley’s Union
Movement’ convocava a população britânica a “agir agora”, a “lutar pelo seu país”, a
“proteger seus trabalhos”, e pedia para “pararem com a imigração de negros”11,
revelando - ao contrário do que pregam alguns atores sociais que dizem que os tumultos
eram gerados por jovens, desorganizados ou espontâneos - o seu caráter político.
Um dos fatos marcantes daquele período, já em 16 de maio de 1959, foi a morte
do antiguano Kelso Cochrane, um carpinteiro de 33 anos. Seis homens brancos o
cercaram e apunhalaram, causando sua morte. Seu funeral aglomerou um cortejo de
mais de mil pessoas e foi descrito como “o grande evento que encerra os anos 50 e
inicia a década caribenha de Notting Hill” (em Notting Hill in the 60’s, de Mike
Phillips).
10
Texto de Alan Travis (home affairs editor), publicado no “The Guardian” de sábado, 24 de agosto de
2002.
11
London Psychogeography.
80
O carnaval aparece, para alguns autores e atores sociais, como uma estratégia
social e política de um grupo estrangeiro no solo britânico. Diversos povos vindos das
ilhas do Caribe se uniram em torno de uma forma de expressão cultural, entre outros
tipos de associações, a fim de se tornarem mais coesos e poderem se expressar em sua
nova – e por vezes hostil - pátria.
Em janeiro de 1959, a West Indian Gazette, maior jornal “negro” editado na
Inglaterra no período pós-guerra, fundado por Cláudia Jones, organiza o primeiro
carnaval caribenho de Londres. Com o princípio: “A arte do povo é a gênese de sua
liberdade”. O St. Pancras town hall abrigou, naquela tarde, o encontro entre diversos
caribenhos, seus amigos, companheiros e familiares, cantaram calipsos, dançaram,
fizeram e comeram comidas típicas. Depois desse ano, o carnaval, Caribbean Carnival,
foi transferido para o Seymour Hall, alternando entre este e o Lyceum até 1963 e
tornando-se maior a cada ano12.
Russ Henderson, músico de steelbands, havia tocado no primeiro carnaval
organizado por Claudia Jones. Posteriormente participou com sua banda de um festival
organizado pela ativista comunitária Rhaune Laslett, que morava em Notting Hill. Era
verão e o festival acontecia na rua.
Laslett não conhecia Jones nem os carnavais caribenhos, quando foi falar com
um policial local sobre a possibilidade de organizarem uma festividade de rua. Com
uma festa inglesa em mente, convidou diversos grupos étnicos – ucranianos, espanhóis,
portugueses, irlandeses, caribenhos, africanos – para contribuírem com o festival,
programado para o último final de semana de agosto, o mesmo feriado que o abriga até
os dias atuais. A festividade organizada por Laslett (Notting Hill Fair Parade, ou
inspirada em uma festividade antiga de mesmo nome), era mais identificada com
Notting Hill do que com os caribenhos. Certamente há imprecisões e discrepâncias nos
relatos e literatura a respeito do tema13.
Em 1965, depois da morte de Claudia Jones (em 1964), Rhaune Laslett propôs
aos organizadores do carnaval caribenho, que engajassem seus elementos aos do festival
que ela organizava, mais insulanos teriam se agregado e nesse ano as festividades
12
Sherwood, 1999.
Diversos atores sociais apontam em suas narrativas Claudia Jones como uma pessoas chave daquela
situação, enquanto Rhaune Laslett aparece como personagem secundária. Cohen (1993), por sua vez,
apresenta Laslett como organizadora dos primórdios do carnaval.
13
81
acontecidas em conjunto14. Em 1970, Rhaune Laslett teria assumido a liderança do
carnaval15.
O número de participantes cresceu até cerca de 10.000 pessoas e uma mistura de
interferência policial e o crescimento da afirmação do movimento negro fizeram com
que diferentes grupos se interessarem. A polícia, com receio de perder o controle das
ruas naquele dia, se colocava em posição contrária.
“O carnaval, no estilo trindadense, sem cobrança de entrada,
era aberto para todos. As linhas entre espectadores e participantes eram
indistintas, o que impulsionava tanto o carnaval, quanto a sua
organização. Massivo no tamanho, composto pela classe trabalhadora,
espontâneo em sua forma, subversivo na sua expressão e natureza
política – os ingredientes do carnaval eram explosivos. As autoridades
tinham que contê-lo, controlá-lo ou cancelá-lo”.16
Segundo reportagem do The Guardian, o corpo de policiais informou que o
carnaval de 1975 atraiu 150.000 pessoas, lembrando que foi a primeira vez que a
presença policial se impôs. Para Michael La Rose17, a enorme concentração de pessoas
fez aumentarem as vozes contra o carnaval, reclamavam que o governo parasse ou
banisse aquele festejo. As pessoas envolvidas na produção e organização e partidárias
da sua continuidade fundaram o primeiro corpo administrativo do carnaval, chamado de
“Carnival Development Committee” (CDC), a primeira organização das Carnival
Bands.
De acordo com entrevistas e conversas com atores sociais locais, algumas das
organizações criadas com o intuito de organizarem o carnaval eram de fato a favor dele.
Outras teriam sido fundadas por membros de instituições governamentais ou ligadas a
elas e tinham o intuito de melhor dominá-lo ou contê-lo. Entre as organizações posso
citar: o Carnival Arts Committee, o Carnival Enterprise Committee, o Notting Hill
Carnival Trust, o Notting Hill Carnival Ltd (NCL) e atualmente o London Notting Hill
Carnival Ltd. (LNHC)18.
14
Sherwood, 1999.
De La Rose (2004).
16
Texto de Gary Younge para o jornal The Guardian de sábado, 17 de agosto de 2002.
15
17
18
De La Rose (2004).
Ver também: De La Rose (2004); Cohen (1993).
82
Kwesi Owusu e Jacob Ross explicitam em seu livro ‘Behind the Mascarade: the
story of Notting Hill Carnival’ que
“o carnaval sofre um constante processo de negociação, há
inevitáveis conflitos acerca de sua orientação econômica e sua função
política. É o mais expressivo e volátil território cultural, onde há a
batalha entre as posições da comunidade negra e do Estado, que são
ritualizadas”.
No final dos anos 50, a primeira geração de imigrantes caribenhos teria utilizado
o carnaval para protestar contra o racismo e a utilização de leis com aquela conotação.
Nos anos 70, havia outras questões envolvidas. Em meados daquela década, 40% da
população negra havia nascido na Inglaterra. Para eles, o carnaval não era apenas uma
herança cultural, ou uma lembrança de um lar diferente e distante, significava um
clamor acerca do único lar que conheciam. Não havia outro episódio com conotação
racial maior que o carnaval de Notting Hill. Um oficial da polícia Metropolitana
declarou a um repórter do The Guardian que: “O carnaval é o dia deles”. “Durante o
resto do ano, a polícia os pára em um ou dois pelas ruas, onde eles são a minoria. Mas
por um final de semana eles são a maioria e tomam as ruas”. Também esses “novos
ingleses”, em entrevistas e conversas, muitas vezes se referem aos países das Antilhas
como home.
Tensões e questões diversas sempre envolveram o carnaval. O que é? Deve ser
descartado? Está sendo estrangulado e próximo da morte por conta dos recursos
financeiros ou da inércia burocrática? Deveria ser realizado em outra parte de Londres?
Atualmente a linguagem dos questionamentos parece estar mais “moderada”. Os
organizadores apontam algumas necessidades para que as condições de realização do
carnaval melhorem, entre elas estão: a cooperação entre organizadores e as autoridades
responsáveis pela ordem e problemas civis - como a Polícia Metropolitana -, as
administrações dos bairros envolvidos – Westminster, Kensington e Chelsea e a Greater
London Authority, consideram que seria necessário ainda estabelecer: melhores relações
com autoridades como o Arts Council; maneiras de angariar fundos; investir no
treinamento dos stewards; estabelecer uma discussão sobre o futuro do carnaval;
desenvolver estudos sobre seu impacto econômico, pois estimam que possa se auto
financiar e repensar questões como merchandising e turismo.
83
IV. a. Claudia Jones – Uma Personagem
Ofereço, de forma breve, informações sobre a personagem Cláudia Jones,
visando uma melhor compreensão das posições que ocupava no contexto londrino e
como se deu sua participação nos períodos de estabelecimento inicial do carnaval.
Claudia Jones nasceu em Trinidad, foi morar nos Estados Unidos ainda criança,
lá vivendo seus anos de formação. Comunista e organizadora política foi exilada pelos
Estados Unidos e do Harlen vai para Londres por volta de 1955. Os contextos políticos
e raciais dos países eram diferentes. Nos EUA, ela defendia grupos de afro-americanos
e, como estavam em uma época de início dos direitos civis, os afro-americanos e negros
em geral começavam a ter novas perspectivas e esperanças.
Jones vai para a Inglaterra e busca encontrar os grupos imigrantes caribenhos.
Divididos pelas lealdades às ilhas de origem, tinham como pano de fundo a “unidade da
identidade racial”, eram estigmatizados por parte dos ingleses, que os reconheciam
como um grupo único e indiferenciado, west indians. Em março de 1958, Jones lança a
West Indian Gazette (WIG), com a intenção de dar coesão aos grupos dispersos a partir
de suas experiências com o racismo.
Em 18 de agosto de 1958, em meio aos atos de violência que aconteciam em
Nottin Hill, a Ku Klux Klan enviou uma carta WIG dizendo que: “Nós, os cavaleiros
arianos, não perdemos nada”. Poucas noites depois uma mulher sueca seria
“descoberta” por uma gangue de jovens brancos, perseguida e agredida, porque era
noiva de um jamaicano. Havia se iniciado a “caçada aos negros” (nigger hunting). Para
Stuart Hall, “1958 foi um grande momento. Antes os indivíduos tinham que suportar a
discriminação. Mas naquele ano o racismo se tornou massivo, uma experiência coletiva
além do já visto”.
Merika Sherwood (biógrafa de Cláudia Jones) considera que Jones tinha uma
combinação de confiança e maturidade política que a impulsionaram a lançar um
carnaval naquelas circunstâncias. “Sua experiência de campanha contra o racismo e o
macarthismo na América a colocaram em um nível diferente dos caribenhos daqui”, se
referindo à Inglaterra.
Trevor Carter, um dos organizadores do primeiro carnaval concorda:
84
“Claudia era diferente de nós, entendia o poder da cultura
como instrumento de resistência política. O espírito do carnaval veio do
seu conhecimento político, para tocar um momento particular onde
estávamos amedrontados por conta das confusões”. Carter relembra que
“este é o nosso caminho para dizer à cultura dominante, ‘nós estamos
aqui – vejam, nós estamos aqui’”.
V. Reflexões Acerca dos Significados do Carnaval
Ambos os carnavais observados acontecem em sociedades contemporâneas,
industriais e complexas. O curso da pesquisa apresentou algumas similaridades entre
eles e também uma série de contrastes e contradições, levando-me, no processo da
descoberta (que segue), a exercitar um olhar dinâmico sobre as diferentes sociedades
envolvidas e a ousar no sentido de tentar desmistificar alguns dos aspectos observados.
Ressalto, entretanto, que para uma discussão mais aprofundada é necessário mais tempo
de convivência, principalmente na sociedade inglesa, além do alargamento das
discussões teóricas.
Em seu trabalho comparativo acerca do carnaval brasileiro e do carnaval de
Nova Orleans, DaMatta se pergunta se, por estarem em sociedades diferentes, eles
seriam o mesmo fenômeno, “o que acontece quando temos dois ‘carnavais’ em
sociedades visivelmente diferentes em termos de instituições, história e ideologia?”
(1997, p. 156). Por minha vez, apresento algumas peculiaridades concernentes a ambos
e às sociedades da qual fazem parte, para que possamos estabelecer uma reflexão e
contraposição preliminar a respeito de tais rituais.
A palavra carnaval pode nos remeter a uma série de perspectivas, diferentes
emoções, possibilidades e ainda teorias sobre sua origem, funcionamento e motivos de
permanência. No Brasil, conhecemos diversos tipos de celebrações carnavalescas, que
acontecem em diferentes cidades ou estados. Na maioria das vezes, acontecem no
período que compreende os dias precedentes à quarta-feira de Cinzas, mas há ainda uma
série de “carnavais fora de época” em diferentes cidades.
A principal e mais recorrente definição ou entendimento sobre o carnaval,
pressupõe a consonância deste com o calendário litúrgico. Os dias imediatamente
anteriores à quarta-feira de Cinzas, que compreendem o período carnavalesco, são um
período onde determinadas normas sociais são afrouxadas, invertidas ou neutralizadas19.
19
Turner, 1974; Van Gennep, 1978; Leopoldi, 1977; DaMatta, 1997.
85
Segundo a definição do dicionário brasileiro Novo Aurélio Séc XX:
“CARNEVALE – 1. No mundo cristão medieval, período de festas
profanas que se iniciava, geralmente, no dia de Reis (Epifania) e se
estendia até a quarta feira de Cinzas, dia em que começavam os jejuns
quaresmais. [Consistia em festejos populares e em manifestações
sincréticas oriundas de ritos e costumes pagãos, como as festas
dionisíacas, as saturnais, as lupercais, e se caracterizava pela alegria
desabrida, pela eliminação da repressão e da censura, pela liberdade de
atitudes críticas e eróticas]. 2. Os três dias imediatamente anteriores à
quarta feira de cinzas, dedicados a diferentes sortes de diversões, folias
e folguedos populares, com disfarces e máscaras, tríduo de momo
(entrudo)”.
Durante o período que precede o carnaval, os grupos, as bandas, os blocos ou as
escolas de samba movimentam-se e preparam-se para o festejo. O período pode
compreender poucos dias, meses, ou quase o ano todo, reservado para a definição e
preparação dos enredos, themes, das fantasias, das coreografias e também para a
captação de recursos financeiros, culminando nos dias do “reinado de momo”.
Em Londres, ao contrário do Rio de Janeiro, o carnaval de Notting Hill acontece
no último final de semana do mês de agosto. O final de semana é prolongado até a
segunda feira, configurando o último feriado do ano, antes do Natal. É designado como
um bank holiday (feriado bancário)20.
O carnaval londrino de estilo caribenho, em princípio, acontecia no mesmo
período que o carnaval de Trinidad, em consonância com o calendário litúrgico, porém
era restrito, realizado em halls, durante o frio período do inverno Inglês. Depois da série
de atentados e violências, que tiveram como um dos palcos principais as ruas de Notting
Hill, cometidas contra os negros e nos anos seqüentes, o carnaval passou a acontecer
durante período de verão, nas mesmas ruas de Notting Hill, que outrora foram arena
dos conflitos e também da resistência da população imigrante. Esse é um dos motivos
principais - indicados pelos atores sociais – para sustentarem sua posição contra o
deslocamento do carnaval para algum parque ou outro local de Londres: a importância
de lembrar por que o carnaval acontece ali.
20
Denominação estabelecida em 1871 e 1875 pelo Bank Holidays Act, havia um número maior de feriados
no Reino Unido, mas com o passar dos anos este número foi reduzido. Encyclopediae Britannica, volume
I. The University of Chicago, 1977.
86
Muitas festividades são embaladas ao som de músicas ritmicamente
estimulantes, levando os foliões a danças coletivas ou individuais e configurando um
período de maior licenciosidade, erotismo e sátira. Além da dança e da performance, a
imagem que surge quando pensamos em pessoas ‘brincando’ o carnaval, são indivíduos
vestidos em trajes característicos – as fantasias –, que podem revelar desejos e
peculiaridades e inversões individuais, ou, se utilizados de forma coletiva, podem
revelar as ‘identidades’, inversões e desejos dos grupos.
Carnavais de rua, como o do Rio de Janeiro, o de Trinidad e Tobago ou o de
Londres, se dão em espaços públicos. Ruas, avenidas, parques e praças se transformam
em grandes áreas de lazer, encontros e relações sociais recebendo inúmeros foliões,
grupos carnavalescos e bandas musicais. Transformam determinadas áreas das cidades,
em grandes centros de aglomeração e folia. Preocupação e organização, entretanto,
também estão sempre presentes.
O espaço reservado para abrigar o carnaval precisa ser preparado, fechado ao
trânsito e às atividades rotineiras, blocos, escolas de samba, foliões, grupos
carnavalescos e demais envolvidos ocupam aquele espaço “sem problemas”. Podendo
participar de diversos tipos de encontros, as pessoas convergem àquele ponto da cidade
para brincar o carnaval. As diversas ruas fechadas ao trânsito de automóveis muitas
vezes abrigam diferentes palcos, shows, barracas de comidas, pontos de encontro, todos
eles tendendo seguir o bem humorado, espetaculoso, satírico e contestador, por vezes
grotesco, mas fundamentalmente festivo estilo carnavalesco. Em Londres, algumas ruas
residenciais ficam fechadas inclusive ao público, vigiadas por policiais que indicam ao
transeunte a necessidade de tomar outra direção.
Ainda que haja momentos nos quais as pessoas se dirigem para um ponto
específico – como quando precisam se encontrar com um determinado grupo para
participar de um desfile -, em geral caminham com destino aleatório, gozando do prazer
da viagem e das horas ali despendidas. Olham-se com uma “cumplicidade
carnavalesca”, de prazer e alegria de poder participar daquele tempo e espaço especiais,
tempo de inversão, de folia e também de afronta e desafio21.
O carnaval cria seu próprio plano, que embora possa estar determinado dentro de
um tempo e espaço segue uma lógica própria. Pode esta lógica ser oposta à do mundo
quotidiano, reforçando-o e confirmando-o (DAMATTA, 1997), visto que em longo
21
Vogel, Mello, Barros, 2001.
87
prazo salientar as definições daquele grupo tende ratificá-las (TURNER, 1974). Para
este autor a eficácia do rito depende da “dramatização” ou da “representação” de um
conflito empírico. A eficácia da ação simbólica é confirmada na medida em que permite
esclarecer o conflito – sendo reconhecido coletivamente – e a sua natureza. DaMatta
bem assinala, que inverter não quer dizer aniquilar com as hierarquias ou igualdades
sociais, mas sim submetê-las a uma breve recombinação. Experimenta-se um mundo
invertido, sem que se corra, entretanto, o risco da inversão ser permanente (1997).
Como observa Turner, rituais fixados pelo calendário, como nos casos
observados, geralmente ocorrem entre grandes grupos sociais, podendo configurar
rituais totais e ainda, freqüentemente, serem de inversão de posição social. O rito indica
uma contradição estrutural que “regras” e processos políticos não conseguem resolver,
dependendo, sua eficácia, da “dramatização” ou “representação”, de um conflito
empírico (1974).
A eficácia da representação é provocada na medida em que esta consegue deixar
claro e coletivamente reconhecido o conflito e a sua natureza, apontando, inclusive, para
responsabilidades, sanções e reparações. O rito, portanto, “desmascara”, “revela”,
“torna público o que é privado e oculto” (TURNER, 2005), uma vez que, segundo a
abordagem de Leach (1996), as sociedades reais nunca estão em equilíbrio; os processos
rituais, por meio de uma linguagem especial, dizem coisas acerca da ordem da qual
fazem parte e geram, ainda, estruturas peculiares às situações práticas.
Em geral os foliões, carnavalescos ou brincantes22 desejam extravasar, “perder
as estribeiras”, “curtir”, “se acabar”, - enjoy yourself’, como me diziam em Notting Hill
-, num tempo que congrega fantasia e ambigüidade e, por isso mesmo, permite maior
liberdade. Nessa ocasião, as pessoas estão livres para transgredir normas sociais ativas
na vida quotidiana. O homem pode se vestir de mulher, a mulher pode vestir-se de
forma libidinosa, provocativa e tem licença para demonstrar seu interesse e desejo pelo
sexo e pelos prazeres da carne sem sofrer retaliações. O pobre pode se fantasiar de rei, o
rico pode se vestir de pobre e brincar o carnaval junto à massa disforme que ocupa as
ruas e alamedas da cidade.
Indivíduos que ocupam posições subalternas, discriminadas ou inferiores
mobilizam símbolos e revertem seus status. Ocupam as ruas e se tornam predominantes,
22
Para ver mais sobre algumas das categorias utilizadas nas análises acerca do carnaval carioca ver, entre
outros: Goldwasser, 1975; Leopoldi, 1977; Cavalcanti, 1994; DaMatta, 1997.
88
poderosos, reis, num reinado que dura um, dois ou três dias. Os estruturalmente
dominantes, por sua vez, aguardam o fim daquela “loucura”, suportando “pacientemente
a agressão simbólica (...) praticada contra eles pelos estruturalmente inferiores. (...) o
grupo ou a categoria a que se permite agir como se fosse estruturalmente superior (...)
está de fato situado perpetuamente com um status mais baixo” (TURNER, 1974, p.
212). Rituais de reversão de status, ao mesmo tempo em que confirmam a estrutura,
parecem também restaurar as relações entre os grupos sociais envolvidos, expurgando
os sentimentos provenientes das relações estruturais acumulados durante o ano.
As ruas não estão ocupadas por veículos, os sinais de trânsito podem ser
esquecidos ou desligados, pois a rua é invadida pelos pedestres. A maioria das lojas,
escritórios e estabelecimentos comerciais das áreas reservadas para o carnaval, fica
fechada. Anualmente o carnaval permite a abertura de um “mundo especial”, um tempo
e um espaço extraordinários. Para DaMatta (1997), a invenção de um espaço social,
onde há regras e lógicas diferentes das ordinárias, muitas vezes nos faz parecer um
mundo da loucura23.
O ritual observado, “carnaval”, marca as diferenças e processos históricos nos
quais os diversos grupos, que daquela sociedade fazem parte, estão inseridos. Rituais
desse tipo revelam, definem e acentuam fronteiras sociais, exaltando as relações entre os
atores a partir de sua carga afetiva. Oferecem, portanto, uma perspectiva e leitura
privilegiada acerca das relações sociais ali travadas, pois “a compreensão do conflito
como dimensão positiva do processo de elaboração, reprodução e representação dessas
identidades é incontornável” (VOGEL, MELLO, BARROS, 2001, p. 127, 128).
A ocupação massiva de um espaço público, a presença sonora de potentes
decibéis, os múltiplos estilos musicais, as variadas melodias, a performance executada
pelos mascarados, a variedade de sensações olfativas, a inversão de normas usualmente
praticadas na vida quotidiana, expressam um desafio24. A maneira pela qual caminham,
dominando as ruas, sua expressão corporal, o desejo explícito de chamar atenções e
olhares, a imposição visual, tátil, sonora e olfativa, e ainda a presença concreta de vários
estímulos disponíveis ao paladar, lembram e ressaltam o confronto entre as diversas
23
Para ler mais sobre ritos de passagem, processos, deslocamentos: Turner, 1974; Van Gennep, 1978;
Vogel, Mello e Barros, 2001; Leopoldi, 1977; DaMatta, 1997.
24
Vogel, Mello e Barros, 2001.
89
identidades sociais. O carnaval londrino explicita e marca ordens sociais construídas ao
longo dos séculos.
O desafio, portanto, se refere à ordem social expressa na vida quotidiana, se
refere a uma série de papéis desempenhados pelos atores sociais e a posições que
ocupam ordinariamente, e, de certa forma, é também o reconhecimento desses papéis.
Um ritual de tal magnitude é um “tapa na cara”, é o despertar de um sono às categorias
sociais que se deparam e convivem com ele. E não há como ficar indiferente.
A co-presença de muitos imigrantes faz de Londres uma capital marcada por um
cosmopolitismo exuberante, que coloca frente a frente diferentes grupos sociais. Sob o
manto da convergência e da hospitalidade, revela-se, em momentos como esse, a
existência de conflitos latentes. “Na romaria (...) revela-se de modo brusco, e
desconcertante, o avesso desse idílio de acolhimento e convergência. A romaria reabre,
pois, uma das mais profundas feridas simbólicas da nossa sociedade” (brasileira), e
também da londrina, “marca de seus inícios e estigma de sua formação. De um só golpe
esse rito singulariza uma identidade problemática (‘estrangeiros de dentro’) e define os
limites de suas relações com a identidade social dominante” (VOGEL, MELLO,
BARROS, 2001, p. 153).
A situação londrina, por sua vez, é igualmente marcada por encontros e misturas,
diálogos, confrontos e conflitos. No carnaval, estão presentes e representados, ‘ingleses
do caribe’, amparado pela Commonwealth, e seus descendentes, verdadeiros
“estrangeiros de dentro”, marcados pela sua ancestralidade.
É necessário, portanto, que haja arrogância25 suficiente para o grupo minoritário
sair às ruas e clamar pelo seu acomodamento legítimo na ordem vigente. Lugar social
impossível de ser atingido por outros meios, é ostensivamente reivindicado por meio da
espetacularização da própria condição do grupo. Não há meios pelos quais não se possa
perceber, no momento ritual, a eventualmente silenciada distância que separa os
diferentes grupos componentes da sociedade da metrópole inglesa.
Os dias de carnaval de rua, em Londres, representam a situação de culminância
ritual. Além deles, nos dias que antecedem a “afronta” final, uma série de ritos parecem
compor o quadro. Esse carnaval, assim como o de Trinidad, compreende uma série de
competições e festejos, momentos de clímax que agregam os participantes daquele
25
Vogel, Mello, Barros, 2001.
90
”ciclo de ritos”. Cada uma das etapas parece ter uma função simbólica (emocional,
valorativa) peculiar.
No primeiro encontro do período carnavalesco que também é a competição
inaugural entre os grupos e acontece cerca de uma ou duas semanas antes do desfile, o
Costume Splash ou Gala, tomam parte os grupos relativos às fantasias, mas bands. No
interior de um grande salão, acontecem as apresentações, nos seus arredores imediatos
se reúne um número não muito grande de pessoas que podem ou fazer parte das bandas,
ou ter comprado ingressos para assistirem às competições.
O Costume Splash elege o Rei e a Rainha, o Príncipe e a Princesa do carnaval.
Oferece, com isso, a máxima (ou dominante26) titulação simbólica em relação às
fantasias. Naquele momento, são exibidos os mais ricos, luxuosos e elaborados
costumes, conferindo reconhecimento ao designer e ao artista plástico, responsáveis,
respectivamente, pela concepção e execução dos mesmos e também às bandas das quais
os campeões fazem parte.
Na circunstância do National Panorama Championship, realizado em praça
pública e franqueado ao público, no sábado que antecede os dias de carnaval de rua,
aglomera-se grande número de pessoas, tanto integrantes das bandas musicais, quanto
amantes do gênero e curiosos. O Panorama elege a melhor apresentação e banda
musical daquele ano, conferindo o reconhecimento mais desejado pelos integrantes das
steelbands. O arranger, que escolhe e rearranja uma melodia e lidera os ensaios, e os
instrumentistas, pan players, são os elevados, na vitória, ao ponto máximo dessa etapa.
A banda, por sua vez, é alçada à primeira colocação frente às demais, o que fica inscrito
e armazenado nos anais e no ranking da BAS e memorado na história do carnaval.
O J’Ouvay, Jour Ouvert, Jouvert é o momento simbólico de abertura do
carnaval, porém, como não estive presente, não tenho meios para relatar minha
impressão acerca da participação quantitativa (nem de outra natureza) de público e de
foliões. O que posso dizer, de acordo com diversos relatos, é que no “grito de carnaval”
os mascarados vão para as ruas com fantasias elaboradas ou escolhidas por eles
próprios, muitas vezes demônios azuis, máscaras e adornos que imitam figuras políticas
e representam uma crítica bem humorada, mas não pouco contundente, à atitude de
governantes e altos personagens políticos da atualidade, ou ainda lambuzados por todo o
26
Turner, 2005.
91
corpo com uma substância marrom que aparenta, mas não é, chocolate derretido. Tudo
leva a crer que este é o momento mais livre, irreverente e satírico27 do carnaval.
O Jouvert, que acontece no início da manhã de domingo, situado entre o
Panorama e o desfile das crianças, tem um histórico de acontecimento intermitente ao
longo dos anos. Muitas vezes é questionado pelas autoridades e residentes da área, pois
“perturba a ordem”, levando muitos foliões a ficarem pelas ruas ao longo da noite,
depois do término da competição entre as bandas musicais, aguardando o Jouvert.
Ressalto, todavia, que não é possível afirmar que este seja o único motivo de sua
intermitência, para tal são necessárias investigações adicionais. Em alguns anos, foi
realizado pelo bastante fato do desejo de explosão simbólica dos indivíduos no
momento de abertura de um período de licenciosidade, de liberdade, de afrouxamento
de regras sociais e de tomada ostensiva do espaço público. Eventualmente há jurados
avaliando os grupos presentes, como no caso de 2006. Indico, entretanto, que - pelo
menos até agora e a partir de informações diretas que obtive junto aos participantes - a
competição não parece ser, para a maioria, o ponto focal daquela ocasião.
A competição infantil, no domingo, acontece nas mesmas ruas e conta com o
mesmo espaço reservado para o carnaval de segunda–feira. Há cerca de um milhão de
pessoas circulando pela área, entre elas crianças, desfilantes, foliões, curiosos, policiais,
mercadores ocasionais, que transformando suas varandas, portarias e halls de entrada
em stands, vendendo desde comidas e bebidas, até camisas e panôs com motivos que
fazem referência às ilhas caribenhas e às bandeiras desses países ou com estampas do
Bob Marley e outras figuras consideradas representativas como cachimbos, boinas,
entre outros itens -, e inúmeros barraqueiros – formalmente registrados e autorizados -,
que fazem e vendem comidas conhecidas como oriundas das nações do Caribe,
acrescentando a todo o clima festivo, sonoro, visual e tátil, o aroma e o sabor do “local”
que ali representam. São vendidas também cervejas e spirits importados – formal e
informalmente – diretamente das ilhas e há ainda ambulantes oferecendo e vendendo
apitos aos passantes, objetos que também marcam presença na cena, espalhando aos
quatro ventos seu som característico.
O desfile infantil, organizado e liderado por adultos e por jovens, insere,
incentiva e “ensina” as crianças a participarem dos festejos, a representarem – vestindo
27
Explicitamente satíricos também são os calipsos.
92
fantasias e dançando apropriadamente ao som de músicas peculiares – os países e a
cultura de seus ancestrais, incentivando a permanência do ritual.
A segunda-feira conta com a mesma configuração do dia anterior, porém há
menos crianças e uma multidão de mais de um milhão de pessoas circulando pela área.
De acordo com dados veiculados por autoridades locais, pela imprensa e demais
associações e grupos envolvidos no festejo, os dois dias de carnaval de rua somam cerca
de dois milhões de pessoas nas redondezas. Além dos elementos descritos em domingo,
e dos inúmeros grupos de desfilantes, marcam sua participação: os sistemas e carros de
som instalados pelas ruas - como no dia anterior, mas aparentemente em menor número
-; e os músicos calipsonianos, que fazem suas animadas apresentações, alegrando e
fazendo rir o público presente, geralmente em coretos ou palcos abrigados nas praças.
O desfile dos adultos, que aglomera a maior multidão da qual já participei, por
sua vez, mistura e destaca o ideal desejado de liberdade, a transgressão e crítica social e
a folia que o carnaval pode representar; a forma estabelecida pela parade; a
possibilidade de atingir o campeonato; a representação de um povo e de sua história
dentro de um determinado contexto; bem como, a mélange e a oposição entre os grupos
(étnicos) que dele participam, na sua forma mais contemporânea.
Há ainda competições entre os sistemas de som, static sound sistems, - que ficam
instalados em diversos locais ao longo da área -, e entre os DJs móveis, mobile DJs, que
parecem participar do desfile, entretanto, como não tive tido acesso a informações
suficientes em relação a este ponto, não o abordarei em maiores detalhes.
É importante lembrar que, em ambos os dias de desfile, os carros de som que
integram as steelbands permanecem com configuração semelhante ao da noite de
sábado, abrigando em sua carroceria os instrumentos que formaram o conjunto utilizado
na apresentação do Panorama. Em ambos os dias, a presença policial e de stewards é
notável e ostensiva, revelando uma grande preocupação das autoridades com a “ordem”
e o “bem estar” social.
Em relação ao percurso, na vida quotidiana em geral, o que mais importa é o
ponto de chegada e o de partida. Nos momentos rituais sobre os quais nos detivemos, é
justamente a marcha que se torna importante. A caminhada ritualizada é o momento
onde se dá a plena consciência dos atores envolvidos. “No caminho consciente do ritual,
o alvo e a jornada se tornam mais ou menos equivalentes” (DAMATTA, 1997, p. 103).
Invertendo a norma quotidiana, onde o alvo geralmente é o ponto de chegada, aqui
93
também será o próprio caminhar, marcando em ambos os carnavais, o brasileiro e o de
Notting Hill, o clímax de um longo processo carnavalesco.
Ao abrandar as formalidades das situações sociais quotidianas, o período
carnavalesco propicia um momento de communitas (TURNER, 1974). Não podemos
esquecer, todavia, que a communitas carnavalesca compreende ainda relações
estruturadas, como é o caso das escolas de samba, dos grupos presentes no carnaval de
Notting Hill e das demais instituições, associações e organizações implicadas. Dessa
maneira, este momento ambíguo não revela necessariamente a ausência de status ou de
relações sociais estruturadas. Pelo contrário, como ressalta Leopoldi (1977), a
ambigüidade pode se mostrar como uma marca de status evidente.
Se o caráter da estrutura é modificado, há relações estruturadas subjacentes ao
contexto carnavalesco que afloram naquele período. Uma série de mecanismos de
controle e normas regulamenta o communitas, revelando múltiplos status que
diferenciam os participantes entre si, apesar de, sob o olhar da sociedade mais
abrangente, vivenciarem um mesmo papel e desfrutarem de um mesmo status.
O carnaval consiste em um tempo especial onde a maioria dos participantes,
muitas vezes marginalizados na sociedade na qual estão inseridos, podem se tornar os
atores principais daquela representação, daquele espaço e tempo especiais. Pode parecer
paradoxal, no entanto, que ao ser uma construção social, a situação carnavalesca, livre,
se erija sob o controle e influências do sistema social do qual faz parte. Sistema este que
imprime a ela, ao longo do processo histórico, político, social, econômico, determinada
forma e conteúdo.
Ambos os carnavais observados, apesar de serem momentos extraordinários,
estão sob o jugo de instituições, órgãos, mecanismos sociais que os influenciam. A
respeito do carnaval do Rio de Janeiro, diz-se que é um momento de communitas, de
congregação e igualdade, entretanto, se por um lado há uma participação de pessoas de
diferentes segmentos sociais e uma inversão nos papéis desempenhados, por outro lado
os integrantes das agremiações (escolas de samba, por exemplo) devem subordinar-se a
uma série de hierarquias e comandos internos e, apesar de muitas vezes não estarem de
acordo, tendem à obediência.
Na situação apresentada, é imperativo o risco de as pessoas serem seriamente
repreendidas, sofrerem sanções, serem afastadas da agremiação ou mesmo mortas no
caso de assumirem posições ou atitudes discordantes em relação à dominante,
controversas, ou ainda, por cometerem algum “erro” – ainda que mecânico - dentro do
94
esquema carnavalesco, circunstâncias que puderam ser observadas de perto e em
diferentes situações, ao longo do período de meu envolvimento com as escolas de
samba. Retaliações e repreensões podem aparecer de forma mais ou menos explícita,
mas em geral são veladas, sabidas, mas pouco ditas, ou ditas “à boca miúda”.
Em Londres, em uma conversa com um integrante da London School, falamos a
respeito de alguns dos mecanismos de funcionamento e administração do carnaval. Ele
considerou, o que tendo a concordar inteiramente, que se no Rio de Janeiro o carnaval
está irremediavelmente atrelado (pelo menos atualmente) a “jogos ilegais” (“ilegal
games”) – que estão, por sua vez, direta e indiretamente unidos a instituições formais e
governamentais -, em Londres o carnaval está atrelado a “jogos burocráticos”
(“bureaucratic games”).
Ainda que de forma geral aquela sociedade pareça ser organizada, no sentido de
os direitos e deveres atingirem com maior igualdade, seus membros; capital social,
redes de parentesco e outros tipos de influências contam para o resultado final das
situações. Pude perceber, entretanto, principalmente durante a Conferência sobre
steelpans, que as pessoas parecem poder falar mais abertamente e diretamente, a
indivíduos situados em diferentes posições e status, que não concordam com
determinadas decisões ou atitudes. Parece-me não ser possível, como acontece no Rio
de Janeiro - e no Brasil em diversas situações -, estariam correndo o risco de tão graves
sanções por terem posições divergentes à da maioria ou à de um indivíduo em
particular, ou por cometerem algum erro mecânico.
Apesar de serem momentos especiais, acompanho a perspectiva proposta por
DaMatta (1997), que afirma os momentos rituais não possuírem matérias-primas
divergentes das matérias-primas do quotidiano. Se o mundo ritual é um universo de
relacionamentos, ele está inexoravelmente relacionado ao sistema social abrangente
dessas sociedades complexas, em uma longa disputa por poder.
A categoria ritual possui o aspecto de momento especial, entretanto não é
inteiramente deslocado do sistema social total. Se virmos a sociedade como um mar
relativamente calmo, com pequenas ondulações, o momento ritual pode ser visto como
uma vaga mais proeminente. Em seu conteúdo, permanecem a mesma água salgada,
peixes e substâncias de toda a amplitude marinha, ainda que eventualmente deslocados.
A busca se volta à tentativa de compreender “como os elementos triviais do mundo
social podem ser deslocados e, assim, transformados em símbolos que, em certos
contextos, permitem engendrar um momento especial ou extraordinário” (1997, p. 76).
95
Um dos elementos do ritual é destacar determinados aspectos do mundo social,
tornando-os mais salientes do que outros, levando, nesse vai-e-vem, as “coisas do
mundo” a assumirem diferentes sentidos e a exprimirem mais do que exprimem nas
situações quotidianas. Sob esta perspectiva os momentos rituais colocam em close-up
elementos do mundo social, podendo revelar o que é marginal em determinados
sistemas e evidenciando com maior coerência alguns de seus aspectos. Os rituais
aparecem como instrumentos que possibilitam “maior clareza às mensagens sociais”
(DAMATTA, 1997, p. 83).
Além de ajudar a construir e a criar o tempo, os rituais também possibilitam
cortes nas rotinas sociais, portanto as situações extraordinárias ou especiais sempre são
acompanhadas de uma consciência sobre elas. Segundo DaMatta, “não há ritualização
que não esteja utilizando um mecanismo cujas intenções são neutralizar, reafirmar ou
pôr tudo ‘de cabeça para baixo’” (1997, p. 83), como é o caso do carnaval.
No caso de Notting Hill, tanto no capítulo II quanto no III, apresento algumas
perspectivas históricas e dos atores sociais envolvidos em tal processo, que justificam,
de certa forma, a existência e o surgimento e desse carnaval ao final dos anos 50. Os
imigrantes caribenhos, percebidos como marginais no sistema social inglês, no curto
espaço de tempo que compreende aquele período ritual, tornam-se o centro das
atenções, os personagens principais, os dominantes.
Não há como dissociar o período carnavalesco do contexto social no qual se
situa, o que ressalta a importância de “prestarmos mais atenção às relações sociais e aos
sistemas dessas relações do que aos efeitos de suas combinações, como parece ser o
caso dos rituais” (DAMATTA, 1997, p. 84).
Formas observáveis e concretas, utilizadas como símbolos rituais, como os
surdos e os tamborins, no caso das escolas de samba e os steelpans no caso dos grupos
caribenhos, foram criados e utilizados inicialmente em seus contextos nacionais, sob
condições históricas peculiares, tornando-se, em ambos os locais, marcadores de grupos
subalternos. Naquelas situações sociais, passaram a representar a resistência, a
importância e a existência de determinados grupos frente aos dominantes, marcando um
lugar e momento ‘seus’. O símbolo ritual, é algo encarado “pelo consenso geral como
tipificando ou representando ou lembrando algo através da posse de qualidades análogas
ou por meio de associações em fatos ou pensamentos. (...) empiricamente, objetos,
atividades, relações, eventos, gestos e unidades espaciais em uma situação ritual”
(TURNER, 2005, p. 49).
96
Nas sociedades estudadas, muitas vezes as pessoas que tocavam os instrumentos
e participavam de associações correlatas, podiam ser vistas como malandros, trapaceiros
ou de má índole. Os instrumentos – e não só os instrumentos -, foram (e são) entendidos
como remanescentes de uma herança cultural africana e também indígena,
simbolizando-as, portanto – em ambos os contextos.
Não apenas os instrumentos podem ser vistos como simbólicos. As fantasias
lembram máscaras utilizadas por “tribos” africanas, remetendo a uma brava
ancestralidade guerreira e às origens do grupo; os calipsos tecem comentários satíricos à
ordem mundial e às elites dominantes, desnudando o escárnio dos praticantes em
relação a ambas; a sensual dança desempenhada pelas mulheres, colocam-nas numa
posição mais livre do que a praticada no dia-a-dia, acentuando a dominação que
exercem momentaneamente. Esses também figuram como tipos simbólicos no ritual
carnavalesco inglês.
Até os dias atuais, o “povo” é quem faz o carnaval, quem toca os instrumentos,
quem executa as fantasias, quem lava o chão das quadras e dos banheiros. As elites,
entretanto, assistem, promovem, administram, financiam e lucram com o festejo popular
- afirmativa que se refere especificamente ao carnaval das Escolas de Samba do Grupo
Especial carioca. Não posso afirmar que o mesmo aconteça, de forma idêntica, em
Londres.
Levados à Inglaterra, os instrumentos, as danças, os estilos musicais e
dramáticos, os sentimentos e os valores, as formas de expressão e de percepção se
transformam e são reafirmados (no contexto mundial) como símbolos de culturas
nacionais, tendo sido e sendo trabalhados ao longo do tempo e de acordo com as
circunstâncias e as conjunturas nas quais se inserem – no que diz respeito aos artefatos e
elementos que remetem tanto às nações caribenhas, que acabam por misturar-se como
se, uma, (como já foi dito e será retomado no capítulo III), quanto no que diz respeito à
brasileira.
O encadeamento temporal, nas quais os elementos simbólicos estão envolvidos,
deve ser levado em conta, pois ao longo do tempo, os grupos se ajustam e se adaptam
tanto às mudanças externas, quanto às internas, como coloca Turner (2005). Os próprios
rituais revelam e representam determinadas fases dos processos sociais, assim como
eles, também os símbolos fazem parte dos mesmos processos. Dessa maneira,
“transformam-se em um fator de ação social, em uma força positiva num campo de
97
atividade. (...) A estrutura e as propriedades de um símbolo são as de uma entidade
dinâmica, ao menos dentro de seu contexto de ação apropriado” (2005, p. 49, 50).
Ao abordar a proposição de Van Gennep sobre os ritos de passagem e os
conceitos de movimento, processo e deslocamento, DaMatta considera importante
percebermos os momentos rituais como algo construído, assim como os símbolos. A
questão pertinente é como tais objetos se transformam em símbolos, que condições
proporcionam tal fato e tornam um conjunto de ações sociais em um rito. Uma vez que
ambos os processos (de simbolizar e ritualizar) andam juntos e implicam num processo
consciente de deslocamento do objeto, trazem “uma aguda consciência na natureza do
objeto, das propriedades do seu domínio de origem e da adequação ou não do seu novo
local” (1997, p. 99). O mundo social dos atores é o que está sendo ali representado, por
isso os mobiliza.
Na luta e nas contradições dos processos e das esferas sociais, os processos de
deslocamento possibilitam o exagero, a inversão e a neutralização, permitindo a tomada
de consciência acerca tanto dos processos quanto das esferas sociais. Os processos
rituais – deslocamentos de objetos – nas sociedades industriais criam símbolos que
servem como referência para todo o sistema.
Em relação aos componentes simbólicos significativos nas situações rituais,
Turner pergunta, a partir de sua observação acerca dos Ndembu, para quem são
significantes (2005). Um símbolo pode ser pensado como uma “expressão possível de
um fato relativamente desconhecido, um fato, entretanto, que é, não obstante, postulado
como existente”, (o autor cita Jung, 1949). Turner continua sua argumentação,
ressaltando que, se o antropólogo pode “situar esse ritual no seu campo significante e
descrever a estrutura e as propriedades desse campo” (2005, p. 57), por sua vez, os
atores sociais, que tomam parte do processo, encaram-no, cada qual, de acordo com seu
ponto de vista. Cada ator envolvido no ritual o percebe a partir de seu ângulo de
observação, a partir da posição específica que ocupa, ainda que ocupe várias posições e
mesmo que estas sejam situacionalmente conflitantes. Sua percepção está, dessa
maneira, circunscrita tanto pelos papéis que desempenha na ocasião ritual, quanto pelas
posições que ocupa na estrutura social. O autor entende que por estar o ator atrelado a
uma série de sentimentos e interesses, que mais uma vez estão sujeitos as posições, fica
comprometida a sua compreensão da situação total. Os atores tendem a encarar “como
98
axiomáticos os ideais, valores e normas que são abertamente expressos ou simbolizados
no ritual” (TURNER, 2005).
Apresentarei a seguir mais alguns dos aspectos fundamentais relativos aos
carnavais estudados, de modo a complementar as descrições anteriores e buscando
auxiliar a compreensão e problematização de tais rituais.
VI. O “Mundo da Loucura”? Impressões Iniciais
O fato de não estar familiarizada com a performance, a dança, a música, as
fantasias, a quantidade de pessoas, tanto civis quanto policiais, espectadores e
desfilantes, crianças e adultos dos mais diferentes tipos e aspectos, presentes no
carnaval londrino, fê-lo, em alguns momentos, assustador e também fascinante, fazendo
o carnaval parecer o “mundo da loucura28”.
Assustador, pois sabia que com uma quantidade tão grande de pessoas, se
irrompesse alguma grande briga, se houvesse correrias, se explodisse uma bomba ou
algo do gênero, apesar do enorme número de policiais presentes na área, seria muito
difícil conter a multidão, somado a massa e ao volume sonoro, as danças e as
performances. Fascinante e intrigante, pois a participação da população é mais contígua
em relação ao que a que estou acostumada a ver no carnaval carioca. As fantasias, as
músicas, as maneiras de dançar e dramatizar, as expressões corporais, a utilização de
apitos pelos foliões, as comidas e bebidas são peculiares, naquele momento, uma
novidade para mim.
Apesar de as pessoas precisarem pagar por uma fantasia para desfilarem junto a
um determinado grupo, o público tem a oportunidade de caminhar junto deles por um
longo percurso, aberto, antes de o grupo entrar no circuito fechado do desfile. A única
contenção entre desfilantes e público, naquele momento, é o cordão de isolamento, que
seguro por suas extremidades por integrantes do grupo, cria uma espécie de retângulo
que contém os foliões, limitando as fronteiras de quem pertence ou não ao determinado
bloco.
O público acompanha os blocos por todo o percurso que precede a área fechada,
e também depois que saem dela, mantendo-se equipamentos de som ligados, nesse
ponto, a maioria dos mascarados e o público continuam dançando animadamente.
28
DaMatta, 1997.
99
Fiquei impressionada ao ver que, após o longo dia de esperas e caminhadas, bebidas,
comidas e fumaças, sob potentes decibéis e uma dança intensa e constante, as pessoas
ainda tinham energia, muitos não paravam de dançar e seguiam os carros de som até que
fossem desligados.
No caso do carnaval brasileiro, quanto mais me entranhei nas organizações das
escolas de samba, o que poderia parecer apenas uma grande festividade, cada vez mais
me apresentou situações ambíguas, opressivas, ditadas por comandos variados,
quebrando uma visão romantizada e positivamente apoteótica daquela situação.
Nas escolas estudadas, em geral o Presidente da agremiação imprime seu mando
a todos. Cada subdivisão de comando – diretoria de carnaval, carnavalescos,
administrador do barracão, administrador da quadra, representantes na Liga ou
Associação, presidente da velha-guarda, diretoria de harmonia, intérpretes, presidentes
de alas, diretoria dos compositores, diretoria da bateria, diretoria da ala das baianas, das
alas de comunidade, da ala de passistas, da comissão de frente, mestre-sala e portabandeiras, diretoria da ala da força, de destaque, de composição de carros, entre outras -,
apresenta por sua vez a autoridade de quem ocupa um posto mais elevado sobre os
demais integrantes do núcleo. Aprendi a me comportar dentro de tal esquema, a fim de
não causar a impressão de dúvida ou desconfiança.
Como exemplo de uma situação onde determinado indivíduo utilizou-se de
mecanismos opressivos para tentar desmobilizar algum tipo de resistência ou
discordância, citarei o caso específico da criação do departamento cultural na Estácio de
Sá, onde vim a me tornar diretora cultural. Eu e um dos integrantes, que ocupava na
situação uma posição de status mais elevado e há mais tempo na agremiação, entramos
em desacordo. Parte do grupo desejava fundá-lo sob bases democráticas – no caso os
idealizadores do projeto -, acreditando que seria possível resistir à estrutura
hierarquizada da escola de samba, todos teriam os mesmos direitos e deveres, mesmo
poder e abertura para sugestões e questionamentos. Por ingenuidade nossa em relação à
estrutura das escolas, ou por um desejo pessoal de tentar estabelecer (em geral) relações
igualitárias, nos vimos depois de certo tempo, sob a pressão de tal integrante. Diversas
vezes o ouvimos dizer que se não fizéssemos as coisas da maneira que ele entendia
como corretas, colocaria sua mão de ferro sobre o grupo e tomaria o comando. O que de
fato nunca aconteceu, criou uma série de desentendimentos entre os demais integrantes
e fomentou um clima quase permanente de desconforto e divisão em dois grupos
opostos dentro daquela equipe.
100
Um momento de grande preocupação e clareza em relação ao tipo de
conseqüências que podem levar à firmação de posições discordantes ou não claras em
relação a um determinado segmento foi o assassinato do presidente da agremiação. A
investigação policial parece ter concluído que a morte foi decorrente de um assalto ou
não houve como determinar os motivos da morte. O histórico da agremiação é marcado
pela morte de algumas pessoas que ocupavam postos de comando e em algum momento
sofreram algum tipo de motim, não necessariamente declarado. No caso abordado,
alguns dos integrantes da agremiação, que permaneceram em posições de alto comando,
consideraram que a “saída” do presidente foi melhor para a escola, segundo eles, o
mesmo não participava aos demais diversas das transações financeiras que estabelecia,
dividindo apenas os problemas.
Uma outra circunstância se deu em outra agremiação. No ano de 2005, houve
uma falha do motorista de um dos carros alegóricos. Ao conduzir o carro para o local do
desfile, houve um choque (batida) que quebrou o eixo das rodas. Danificada por conta
do acidente, a alegoria não pode participar do desfile, o que acarretou a perda de pontos
no somatório das notas e levou a agremiação a ser classificada em uma posição
insatisfatória, na concepção de seus integrantes e gestores. Quando fui ao barracão no
ano seguinte e após receber essa explicação, indaguei sobre o que havia acontecido ao
motorista. Responderam-me (à “boca miúda”): “nem existe mais...”. Aquela pessoa não
voltaria jamais a representar problemas para a escola.
Situações como as descritas acima revelam como pode ser delicada a relação
entre integrantes e setores de escolas de samba. Não digo que todas funcionam de forma
idêntica, mas há muitos casos semelhantes em diferentes agremiações.
Tais considerações passaram cada vez mais a estarem presentes nas minhas
avaliações e a ressaltarem a ambigüidade de um momento da vida social brasileira
considerado imensamente festivo, porém permeado por tamanhas atrocidades e
ambigüidades.
VII. Drama Social – Londres Nos Anos 50
Retomando as questões apresentadas em relação ao estabelecimento do carnaval
de Notting Hill, e me dirigindo especificamente àquele contexto, acompanho a
perspectiva proposta por Victor Turner (1980), onde os rituais, as linhas de conduta dos
atores nos eventos observáveis, assim como os cenários e seus estilos de desempenho
101
cultural, são influenciados por características já firmadas das estruturas sociais de
determinadas sociedades. Segundo sua abordagem, os “dramas sociais” são elementos
que se apresentam de forma espontânea nos processos sociais, estão presentes na vida
de qualquer sociedade humana e na vida de qualquer pessoa e dividem os dramas
sociais em quatro fases discerníveis: ruptura, crise, reforma e reitengração. Ocorrem
entre grupos que possuem um mesmo background histórico real ou suposto e que
compartilham valores e interesses comuns.
O momento de tensão e a exacerbação dessas tensões tornam visíveis, de uma
forma cada vez mais nítida, a crise que se coloca. “Uma vez tornada visível,
dificilmente essa ruptura pode deixar de ser reconhecida. Seja como for, a crise vai num
crescendo e configura um momento de tensão ou de decisão nas relações entre os
componentes do campo social – no qual a paz aparente se transforma em evidentes
conflitos, tornando visíveis os antagonismos latentes” (TURNER, 198029).
Os mecanismos acionados a fim de restabelecer certa ordem variarão de acordo
com a profundidade, o significado, a abrangência social da crise, e por outro lado a
natureza e a autonomia do grupo social nela implicado. Segundo ele, os líderes dos
grupos atingidos pelas rupturas disporiam de “mecanismos adaptativos e reformadores,
informais e formais”, que seriam postos em funcionamento em contraposição à crise.
Entre esses mecanismos adaptativos ou afirmadores estaria o desempenho de rituais
públicos.
Se “a maquinaria tradicional de conciliação e coerção pode mostrar-se
inadequada para lidar com novos tipos de assuntos e problemas e com novos papéis e
estatutos. E, naturalmente, a reconciliação pode ter sido alcançada apenas na aparência,
com conflitos reais encobertos, mas não resolvidos”, o estabelecimento do carnaval de
Notting Hill - que sucede à série de violências contra os negros -, cada vez mais o firma
como um ritual daquela sociedade (inglesa) e garante, num certo sentido, a conquista de
um espaço de representação social do grupo de origem caribenha.
Na ritualização, entretanto, as fronteiras tendem a ser mais uma vez e
exacerbadamente marcadas, conferindo seu caráter de permanência. De forma explícita,
todos os anos (as fronteiras) são simbolicamente ratificadas e desta maneira se
reafirmam as oposições entre os grupos sociais, mesmo que em outras situações os
29
As demais citações deste tópico se referem ao mesmo texto.
102
atores interajam “intergrupos”, durante o carnaval a dualidade é colocada em evidência.
Nessa circunstância, quem ressalta suas diferenças e qualidades é o grupo minoritário.
Diversos atores sociais ou mesmo de determinadas instituições, inclusive órgãos
do governo como o Arts Council England, têm a intenção de transferir o carnaval das
ruas para um parque (provavelmente o Hyde Park, localizado na área central da cidade),
que imaginam - os proponentes - ter dimensões e condições ideais para abrigar a
festividade. Tendo a concordar com o autor quando este afirma que os dramas sociais
representam um desafio ao anseio das sociedades em relação a uma suposta
possibilidade de perfeição na sua organização social e política, tornando aparente a
conexão dialética entre dramas sociais e gêneros de desempenho cultural.
Em relação ao desempenho cultural, Turner coloca que “os vencedores de
dramas sociais positivamente requerem desempenhos culturais para continuar a
legitimar seu sucesso” assim sendo criam seus “tipos simbólicos”, desde os heróis até os
vilões. Como desempenho cultural, temos o próprio carnaval; como personagens
destacados que aparecem na sua história, faço referência a Claudia Jones, em
contraposição a grupos como os Teddy Boys e a Mosley’s Union Movement, que
aparecem como importantes grupos vilões.
Para o autor, os dramas sociais continuam a existir, mesmo nas sociedades
complexas, apesar de os modos de atribuição de significados dados a eles poderem
multiplicar-se: “o drama permanece até o fim, simples e inextinguível, como um fato da
experiência social de todos e um nódulo significativo no ciclo de desenvolvimento de
todos e quaisquer grupos que aspiram à continuidade”. Continuidade esta marcada pela
dinâmica que envolve e é produzida pelos atores e grupos implicados, e posicionados,
nas diferentes situações sociais que se apresentam no curso da vida.
Até que ponto se pode classificar vitórias e derrotas, não estou certa. Mas é fato
que um número de caribenhos instalou-se em Londres e obteve o reconhecimento de
seus direitos legais (do tipo dos juridicamente regulamentados), como cidadãos
ingleses. Porém, ao longo do tempo transcorrido, as ilhas tenderam a se tornar
independentes e com este acontecimento (somados às demais questões concernentes à
imigração), passaram a serem tratados legalmente como estrangeiros.
Atualmente muitos caribenhos enfrentam as mesmas dificuldades que os
cidadãos de grande parte dos países não europeus ao tentarem entrar na Inglaterra – que
costuma ser mais restritiva, nesse sentido, do que os demais países da União-Européia -,
e principalmente em permanecerem naquele país por mais de alguns meses, tendo que
103
deixar oficialmente o território em um curto período de tempo, segundo relato de um
ator local que passou por tal situação.
O fechamento de fronteiras e o estabelecimento de normas, que permitem ou não
a entrada de determinados indivíduos ou grupos, são o desdobramento de um amplo
processo histórico que levou à construção da idéia das comunidades nacionais, Anderson (2006) as reconheceu como “comunidades imaginadas”, termo que viria a ser
dilatado para os demais grupos humanos que se sentem pertencentes, de alguma
maneira, a um mesmo mundo, compartilhando a idéia de fazerem parte desse algo crido
como sólido que os pode amparar, envolver e situar dentro do contexto mundial - e da
expansão da idéia do nacionalismo e dos estados-nação.
O estabelecimento de fronteiras jurídicas precisas (delimitadas) e fechadas, não
só na Inglaterra, marca de forma bastante incisiva um entendimento do que seja o
nacional frente ao estrangeiro. Parece pressupor que exista alguma maneira – e inclusive
há sua exegese concreta, traduzida e fincada na forma das leis e regulamentos – de
algumas pessoas estabelecerem quais seres humanos fazem, ou não fazem e podem, ou
não podem fazer parte daquele pedaço de terra, pertencente – sabe-se lá por que razões
– a um determinado contingente populacional.
A luta atual parece ser mais em função de se repensar a questão das fronteiras
nacionais, de o quanto e para quem são cerradas e as maneiras pelas quais lidamos com
as diferenças presentes num mesmo território, do que de defender o cerramento das
fronteiras e limitar a entrada de estrangeiros para continuar soberano. Alternativa que
vem sendo largamente empregada e não tem ajudado a equilibrar – na medida do
possível – ou a pacificar a relação entre os seres humanos. Mudanças nas políticas de
imigração poderiam estabelecer mecanismos maleáveis para o fluxo de pessoas,
gerando diferentes e novos tipos de relações. Parece ser marca de alguns tipos de
dramas, conflitos e relações sociais o gosto pelo poder; pela valorização de um
determinado sentimento de poder e pelo status que lhe é peculiar.
O cabo de guerra estabelece um elo entre os poderosos que instituem as leis e as
fazem cumprir – somados a outros tipos de poderes, que podem se sobrepor às
regulamentações, tomando decisões a despeito delas -, e por outro lado e de forma
complementar na dinâmica social, os que procuram ser ouvidos e levados em conta no
resultado final das situações e tramas sociais.
104
CAPÍTULO III
AFIRMAÇÃO DE IDENTIDADES CULTURAIS E
PERTENCIMENTO AOS “GRUPOS ÉTNICOS”
I. O Carnaval de Notting Hill Enquanto Local Propício para se Observar a
Construção e Afirmação das Chamadas Identidades Étnicas. Nação, Origem e
Relações Sociais: a Construção de uma “Comunidade Imaginada”
Trato agora da questão do estabelecimento do carnaval londrino anteriormente
descrito, observando-o e considerando-o como um ritual realizado em uma metrópole
contemporânea. A partir de tal pressuposto, serão apresentadas perspectivas de diversos
autores que tratam de temas sobre a formação das chamadas identidades étnicas em
contextos citadinos considerados multiculturais ou poliétnicos. O aspecto central de
suas análises são os grupos que compõem tais sociedades e as relações estabelecidas
entre si; aspectos relativos à migração de diferentes grupos para tais contextos urbanos
industriais; o agrupamento de indivíduos em um meio complexo e nem sempre
hospitaleiro; além, é claro, de levantar questões concernentes às relações sociais
estabelecidas entre os grupos locais, de certa forma já estabelecidos naquele espaço, e
os novos grupos imigrantes. As questões atinentes ao estabelecimento dos imigrantes
caribenhos em Londres, e às suas relações com o grupo majoritário local, bem como os
novos tipos de atividades e agrupamentos que surgem entre os próprios caribenhos das
diversas ilhas, serão então colocados frente às demais teorias apresentadas e discutidos à
luz delas.
O carnaval de Notting Hill se revela um local propício para se observar e discutir
algumas das dinâmicas que envolvem os chamados grupos étnicos que dele participam.
Permite investigar o que poderiam ser considerados processos de (re)construção de
identidades étnicas, uma vez que estes perpetuam, reforçam e constroem aspectos
distintivos que se referem a carnavais tidos como “originais”; nações e lugares dos quais
as pessoas que deles participam são naturais ou descendentes de. Esse Carnaval é
composto por diversos imigrantes das ilhas caribenhas, antigas colônias inglesas,
seguidos por descendentes de segunda e terceira geração e imigrantes de épocas
posteriores.
Esses imigrantes foram trazidos à Inglaterra, ou estimulados a se deslocarem
para lá na década de cinqüenta, após a Segunda Guerra Mundial. Eram mão-de-obra
105
para ocupar cargos como funcionários de meios de transporte, dos correios, da
construção civil e principalmente ocupações sem necessidade de qualificação, apesar de
no contexto anterior (ilhas do Caribe) muitos serem considerados mão-de-obra
especializada. Ao chegarem à antiga metrópole enfrentaram a resistência de grupos
sociais locais, que se opunham ao seu estabelecimento, não obstante os caribenhos
estarem amparados pela Commonwealth, considerados, portanto, ingleses. A série de
conflitos foi seguida por diversos acontecimentos, entre estes a formação de associações
étnicas, algumas das quais estavam presentes e organizaram o primeiro carnaval
caribenho (Caribbean Carnival) em Londres. Um acontecimento marcante, que desde
seu início vem conquistando crescente atenção, mantendo-se até os dias atuais na forma
do Carnaval de Notting Hill.
Antes de prosseguir, acredito seja profícuo apontar algumas definições acerca do
termo ‘étnico’ e após, abordar as perspectivas oferecidas pelos autores em relação às
indagações sobre o ‘étnico’. 1) etn (o) – do grego ethnos – raça, povo; ethinikós –
étnico. Dele se derivam outros termos introduzidos na linguagem científica, a partir do
séc. XX: etnia, etnografia, etnocentrismo, etnologia etc. 2) a. étnico – [do grego
ethnikós, do latim ethnicu.] Relativo ou pertencente a uma etnia. Idólatra, pagão (nos
autores eclesiásticos). b. Derivado da palavra ethnikós, que originalmente significa
gentio, idólatra, selvagem ou pagão. 3) ethnikós – (adjetivo) particular a uma nação, a
um povo. 4) éthnos – (substantivo) povo; raça, classe de homens; tribo, sexo. Perguntase se o termo não tem sua raiz em éthos (costume, uso, instituição) que por sua vez
poderia ter sua raiz no verbo étho (ter costume, fazer habitualmente)30.
Na língua inglesa, é utilizado com este sentido, de meados do século XIV a
meados do século XIX. A partir de então, sua significação aparenta tender a uma
conotação com características raciais. Nos Estados Unidos, o termo passou a ser
utilizado por volta da Segunda Guerra Mundial, como um termo “polido” para se fazer
referência a judeus, italianos, irlandeses, assim como a outros grupos considerados
inferiores pelo grupo dominante, majoritariamente descendente de ingleses. Na
antropologia social, o termo se refere a aspectos de relacionamentos entre grupos, que
são considerados por outros grupos, e se consideram também, culturalmente distintos.
Está sempre relacionado à classificação de povos ou pessoas e às relações de grupos.
30
Respectivamente: Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua
Portuguesa, 2ª ed rev e ampliado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997; Novo Dicionário Aurélio da
Língua Portuguesa/ Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 3ª edição. Curitiba: Positivo, 2004; 3 e 4
Bailly, Dic de Grego-francês. Citações 1, 3 e 4 com alterações.
106
Tais tipos de relação podem ser observados em todas as sociedades (T. ERIKSEN,
1993, p. 4).
O autor considera que é na interação cotidiana que a etnicidade é criada e
recriada. Antropologicamente é a observação de aspectos da vida social que nos habilita
a explorar os caminhos pelos quais tais relações são definidas e estabelecidas. Ao
observar como as pessoas envolvidas falam e pensam a respeito dos grupos dos quais se
consideram membros, bem como dos demais grupos, pode-se apontar de que maneira
uma visão de mundo particular é mantida e contestada.
Principalmente após a Segunda Guerra Mundial, cresceu em escala mundial a
importância política de conceitos como etnicidade e nacionalismo - isso porque
fenômenos relacionados a eles passaram a ser observáveis em diversas sociedades.
Segundo Eriksen, os conflitos étnicos podem aparecer de formas violentas ou não. A
construção de nações, com uma coesão política e uma identidade nacional nas colônias,
ao longo do mundo, se tornou altamente pertinente, inclusive no que diz respeito aos
fluxos migratórios, incluindo o de refugiados para a Europa e América do Norte. Tais
fluxos estabeleceram minorias étnicas permanentes naquelas áreas. Quando identidades
étnicas se tornam status imperativos, não é possível escapar inteiramente delas, porém
raça e cor de pele não são variáveis decisivas em todas as sociedades. (T. ERIKSEN,
1993, p. 6).
Fredrik Barth (199531) argumenta que os grupos étnicos se formam a partir de
diferenças culturais, o contraste entre “nós” e “eles” é basilar e intrínseco às questões
concernentes à etnicidade. Em seu ponto de vista, a cultura é algo (ou tudo) que é
aprendido, gerada ininterruptamente por meio de experiências que produzem
aprendizados.
Barth sustenta que a cultura, além de ter uma grande variação, é contínua. As
idéias que compõe cada cultura extravasam seus limites e se disseminam sem seguir
modelos pré-estabelecidos, gerando uma variedade de “agregados” e “gradientes”; ela é
também distribuída por meio das pessoas, tornando-se diferentemente difundida entre os
grupos e os indivíduos; flui, em movimento constante, gerado a partir de experiências
pessoais.
31
Texto traduzido para o português por Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto. Originalmente apresentado na
conferência “Rethinking Culture”, sob o título “Etnicidade e o Conceito de Cultura”, na Universidade de
Harvard, 1995.
107
Assim, o autor afirma que o objeto da organização cultural pode ter fronteiras
bem definidas. Os grupos sociais podem ter claras distinções em relação aos outros,
enquanto que o objeto da cultura, não. Dentro de um grupo a participação dos atores
pode ser uniforme, todos possuem os mesmos direitos e deveres. A despeito da
mudança de pessoal, o grupo pode ser estável em relação a sua estrutura, tendo como
base um sistema específico de recrutamento de seus membros (1995).
As fronteiras são permanentes e também implicam processos de exclusão e
incorporação, mesmo com o fluxo de pessoas que as atravessam, das distinções entre
categorias étnicas e mudanças individuais de participação e pertencimento. Relações
sociais, muitas vezes estáveis e vitais, podem atravessar fronteiras étnicas mesmo que
estejam baseadas essencialmente na dicotomia entre os grupos (2000).
Barth considera que os grupos étnicos são uma forma de organização social.
Uma auto-atribuição e uma atribuição pelos outros, que tem como fundamento, uma
identidade básica geral, entendida como algo que gira em torno de sua origem e
conformação. Quando a finalidade é a interação, os indivíduos utilizam identidades
étnicas para consegui-la, categorizam a si mesmos e aos outros, formando os grupos
étnicos.
Nessa perspectiva, as características a serem levadas em conta em relação aos
grupos étnicos são justamente aquelas que os integrantes dos grupos consideram
significativas. As pessoas buscam e exibem sinais e signos diacríticos a fim de
manifestarem suas identidades, em geral por meio de vestimentas, da língua, do estilo
de vida. Complementarmente as performances são julgadas com base em valores e
padrões de moralidade peculiares e relevantes ao grupo.
A atenção do pesquisador deve se deitar sobre as fronteiras sociais e a partir daí,
sobre as formas de recrutamento dos membros do grupo, bem como sobre as maneiras
pelas quais este se expressa e o que valida, conforme salienta o autor. Pressupõe-se que
os componentes de um mesmo grupo étnico estejam “jogando o mesmo jogo”, dentro de
uma mesma fronteira étnica que estabeleça, internamente, o compartilhamento de
modelos de comportamento, de valores, de performances, de critérios de avaliação e de
julgamento.
Para Tomas Eriksen a etnicidade é um aspecto de relacionamento e suas
fronteiras não correspondem necessariamente às fronteiras culturais, as quais não são
precisas por sua vez. O propósito é investigar como algumas pessoas podem ser
108
classificadas como étnicas e outras não; onde se estabelece o final de um grupo étnico e
o começo de outro.
A etnicidade vincula semelhanças e diferenças entre categorias de pessoas,
complementarização e dicotomização. Nesse sentido, pode-se perceber que o critério
que constitui a etnicidade varia. Barth, por exemplo, delimita o status étnico com
fundamento em uma permanência duradoura e em uma clara identidade cultural,
baseada em um parentesco ou semelhança imaginada (ERIKSEN, 1993).
Na perspectiva de Barth, a dicotomização pressupõe que estar diante dos
“outros” é estar frente ao estranho: as formas de compreensão são limitadas e a
interação é restrita a setores específicos. Porém, a manutenção das fronteiras implica,
necessariamente, situações de contato entre indivíduos de diferentes culturas. É
justamente a interação, em algumas situações da vida social e não em outras, que
assegura a manutenção de elementos culturais que não se modificam. As “diferenças
culturais persistentes” são comportamentos marcantes, específicos e mantenedores de
cada grupo étnico. As relações entre os grupos são regidas por uma série de prescrições
e interdições, as quais limitam o tipo de relação que pode haver entre os grupos e os
indivíduos nas diferentes situações sociais, e ainda que situações são ou não permitidas.
Integrar um grupo étnico é ter uma identidade étnica imperativa, da qual não se pode
escapar, pois forma estereótipos acerca de tal identidade.
Partilhar a perspectiva sobre grupos étnicos possuírem fronteiras culturais
definidas traz dois problemas, apontados por Eriksen sobre o argumento de Barth:
primeiro, ao estabelecer uma falsa proposição no sentido de aparecerem como entidades
isoladas fatores primordiais dos grupos, quando ao contrário, sob a perspectiva destes, a
cultura pode ser vista como implicação de processos sociais de longo prazo, ou deles
resultante. Segundo, as definições baseadas nesse tipo de noção de cultura estabelecem
um pressuposto enganoso: a de que a manutenção de fronteiras culturais não é
problemática. Considera Barth ser necessário levar em conta tanto a manutenção quanto
as conseqüências das fronteiras étnicas; os grupos estão em contato contínuo e sob este
ponto de vista o fato persistente da variação cultural deve ser considerado (1993).
A abordagem de Barth ressalta que a acepção de um grupo étnico deve partir da
sua perspectiva êmica e que a etnicidade é uma descrição categórica que classifica os
indivíduos em termos de sua “identidade básica, mais geral”. Sob esta visão, a
descontinuidade entre os grupos é mais social do que cultural. O grupo étnico é definido
por conta das suas relações com os outros e é reforçado pela delimitação das fronteiras
109
que, por sua vez, são também produtos sociais, podem ter importância variável e sofrer
mudanças ao longo do tempo. Tanto as formas de organização social quanto a cultura
podem mudar, sem que isso implique remoção da fronteira étnica. Algumas vezes,
fronteiras culturais adormecidas são acionadas por conta de situações específicas, em
que são apresentadas diferenças culturais relevantes, que se presumiam anteriormente
irrelevantes. Portanto, a variação cultural pode ser um efeito e não uma causa das
fronteiras. Assim, diferenças culturais se relacionam com etnicidade apenas se tais
diferenças forem importantes na interação social (ERIKSEN, 1993).
No caso londrino, os diversos grupos imigrantes, dispersos na cidade, por
contingências da organização social encontrada, se viram submetidos a residirem em
áreas degradadas, ocupar habitações precárias, enfrentar a necessidade de se colocar no
mercado de trabalho, conviver em meio a grupos oponentes e inospitaleiros e se
acomodar na vida social, passaram a se organizar de diferentes maneiras, a fim de ali se
estabelecerem.
Ao falar em um carnaval típico, onde se representam simbolicamente
determinadas nações ou grupos, é perceptível a existência de um número de símbolos
culturais acionados e utilizados como sinais diacríticos. O emprego das fantasias,
confeccionadas de determinadas maneiras e a partir de certos materiais, o uso de
músicas características e a utilização de instrumentos musicais, além das comidas
servidas naquele período, materializam um amplo processo histórico e social.
Determinadas imposições contextuais – inclusive a relação enfrentada frente a
grupos como os Teddy Boys, ou a Oswald Mosley’s White Defense League -,
colocavam o grupo numa situação de opressão, levando-o a elaborar, naquela
conjuntura e de acordo com seus backgrounds, maneiras que pudessem fazê-lo mais
aparente e reconhecido. Impelidos a criarem alternativas, passaram a realizar encontros
e a criarem associações que buscavam reforçar suas semelhanças e os aproximar.
A festividade organizada pela West Indian Gazzete, caribbean carnival, em
1959, aparece como centelha inicial de um processo que estabeleceria marcas, símbolos
e principalmente, um novo grupo social. Uma nova comunidade imaginada32 que, ao
longo do tempo, utiliza símbolos culturais como elementos distintivos do grupo e ao
mesmo tempo como objetos e elementos passíveis de implicarem na sua valorização.
32
Como proposto por Anderson (2006).
110
A participação de indivíduos de diferentes grupos sociais no carnaval é
crescente, mas nem por isso os elementos culturais deixaram de ser reconhecidos como
étnicos. Pelo contrário, diferentes símbolos remetem às nações a que se referem – como
os instrumentos e fantasias peculiares às escolas de samba brasileiras e os steelpans e
costumes referentes ao carnaval caribenho. Mesmo havendo mudanças nas relações e na
organização social carnavalesca, os grupos seguem reconhecidos como étnicos, distintos
e com fronteiras mais ou menos flexíveis, que os distinguem e separam. Como aponta
Eriksen, fronteiras étnicas são antes sociais e não necessariamente territoriais. Fronteiras
entre grupos são mantidas a despeito dos fluxos contínuos de informações, interações,
trocas e inclusive pessoas.
Parece a Barth que a existência de características étnicas, consideradas básicas, é
o ponto de partida para a propagação de outras características culturais que tornam os
grupos distintos. Em sociedades poliétnicas, possivelmente os atores sociais agem de
modo a manter tais dicotomias e diferenças. Assim, a interdependência e a
complementaridade dos grupos se dá de acordo com o sistema social abrangente do qual
fazem parte e onde se estabelecem as “áreas de articulação”. Sistemas poliétnicos
complexos são baseados na existência de diferenças culturais padronizadas e
estereotipadas, importantes e complementares. Características que devem ser estáveis
para, apesar dos contatos interétnicos, os grupos interagirem com base nas identidades
étnicas (2000).
O foco dos estudos étnicos se coloca sobre a relação entre os grupos, a partir do
estabelecimento do conceito de fronteira étnica, uma linha divisória invisível entre eles.
Os diferentes grupos se relacionam e marcam suas identidades frente ao outro. Por um
lado, a etnicidade pode funcionar como categoria descritiva ou como rotulação para
classificar indivíduos; por outro, a organização étnica pode arranjar aspectos
fundamentais da vida do indivíduo e ter grande importância social (ERIKSEN, 1993).
Exponho três análises paradigmáticas, pioneiras e inspiradoras acerca das
relações sociais baseadas em diferenciações étnicas em sistemas sociais complexos.
Proponho que, ao lermos as considerações acerca das situações estudadas, nos
remetamos, permanentemente, ao caso londrino. Uma situação onde também se
apresentam: mobilidade e fluxos sociais e culturais, estabelecimento de categorias
étnicas, conflitos e complementaridades entre indivíduos e grupos. Utilizo os conceitos
relativos à raça e cor do mesmo modo como os autores os empregam em seus textos.
111
O primeiro deles é o importante estudo sobre relações sociais entre diferentes
grupos étnicos, cuja pesquisa apresentada em “Análise de uma Situação Social na
Zululândia Moderna” (1958), se dá em uma seção territorial da África do Sul. A análise
situacional se estabelece a partir da observação da cerimônia de inauguração de uma
ponte. O autor ressalta, entretanto, que padrões observados naquela área são parecidos
com os de qualquer outra reserva daquele país.
A cooperação entre os grupos zulu e europeu, com a finalidade da inauguração
da ponte, ocorria pela primeira vez, colaboração interpretada como a explicitação de
uma comunidade única, com relações e modos de comportamentos próprios. A
concomitância de ambos os grupos explica-se pela união em torno de um interesse
particular comum.
Na época em que Gluckman permaneceu na Zululândia, cerca de dois quintos
dos africanos da África do Sul moravam em áreas de reservas ao longo do país. Poucos
europeus - administradores, técnicos do governo, missionários, comerciantes e
recrutadores - viviam em tais áreas. Os homens africanos que moravam nas reservas
muitas vezes migravam para trabalharem para industriais, fazendeiros brancos ou para
serem empregados domésticos. Ao final do período trabalhado, retornavam às suas
casas.
A cerimônia de inauguração da ponte é considerada importante, justamente por
ter envolvido grupos diversos. O autor nomeia o acontecimento como uma situação
social, pois considera que “uma situação social é o comportamento, em algumas
ocasiões, de indivíduos como membros de uma comunidade, analisado e comparado
com seu comportamento em outras ocasiões” (GLUCKMAN, 1958, p. 238).
A organização da cerimônia foi baseada pelo limite de determinadas tradições e
também pela inserção de inovações de acordo com as condições locais. Os grupos se
dividiam com base na questão racial e as relações entre eles eram marcadas por
separação e reserva. Era impossível confrontarem-se em condições de igualdade.
De acordo com Gluckman, a cisão entre os grupos era em si o fator de sua
maior integração em uma só comunidade, baseada em posições de dominância e
dominação. Por meio de tais relações, pode-se apresentar separação, conflito e
cooperação em formas de comportamentos socialmente definidos.
Em situações onde brancos e negros necessitavam se associar, adaptavam seus
comportamentos dentro de padrões socialmente estabelecidos. Há uma maneira regular
no que diz respeito à reação de um grupo frente às práticas costumeiras do outro.
112
Alguns costumes zulus, assim como europeus, estavam sempre marcados pelas relações
que transpassam os grupos - os zulus sob a égide de um governo europeu, e a cultura
européia marcada por sua inescapável relação social com os africanos.
O autor enfatiza que, dentro da complexidade das relações que conectam zulus e
europeus, os integrantes dos dois grupos podiam, ainda, pertencer a diferentes
segmentos. Cada grupo abrangente estava subdividido em conjuntos secundários,
formais ou não, que levavam a alianças distintas, de acordo com interesses, valores e
motivos peculiares a cada situação. As pessoas modificavam suas participações de
acordo com as situações.
O autor deixa claro o sentido situacional da evocação de identidades. Os
indivíduos participam de situações em posições que os permitam estar em consonância
com os motivos e valores que o influenciaram em tal circunstância. “Os indivíduos
podem, assim, assumir vidas coerentes através da seleção situacional de uma miscelânea
de valores contraditórios, crenças desencontradas, interesses e técnicas variadas” (1958,
p. 261).
Por estarem, os dois grupos, inseridos em um sistema social em que ocupavam
lugares socialmente definidos, com fronteiras que os mantinham em posições opostas, o
grupo zulu, na posição de dominado, apresentou resistências ao sistema. A
contraposição às inovações trazidas pelos europeus, levou ao renascimento de antigos
costumes e provocou intensas mudanças na estrutura social local - o intento das
oposições era angariar vantagens para o grupo zulu. Por outro lado, o governo europeu
passou a estimular tal atividade, a fim de fortalecer suas políticas de segregação e
desenvolvimento paralelo.
Em relação aos grupos sociais, quando indivíduos possuem culturas
características e quando um conflito se estabelece, aparecem novos tipos de cooperação,
que possibilitam diferentes formas de relação entre os envolvidos e geram novos grupos
e posições individuais. Tais movimentos ressaltam aspectos culturais, ou uma cultura
em particular, a fim de estabelecer seus limites e, dessa maneira, expressar e definir o
foco de seus interesses. As mudanças sociais são proclamadas em termos de cultura.
Os movimentos sociais, segundo tal perspectiva, aparecem na superfície das
estruturas sociais, sob novas configurações, e constituem valores mediante os quais os
integrantes do movimento racionalizam forças e interesses, mesmo sem deles terem
consciência - em todas as sociedades, as culturas tendem a se manter. Provavelmente
cada costume continuará a ser praticado, assumindo tanto novas formas de expressão
113
quanto desenvolvendo novos valores sociais que estejam de acordo com o sistema
social do qual faz parte, também em mudança. Em qualquer sociedade que passa por
transformações, “os conflitos entre os grupos tendem a ser equilibrados pela cooperação
dos membros destes grupos em outros agrupamentos” (GLUCKMAN, 1958, p. 294).
Em sua tese, Edmund Leach (1996) procura demonstrar que sistemas sociais
geralmente não são estáveis e, com o intuito de subsidiar tal argumentação, analisa
rituais e relações entre grupos sociais da Região das Colinas Kachin. Em sua visão, a
cultura é o produto de um acidente histórico e aparece como forma de uma determinada
situação social. Por tal razão, diversidades culturais serão expressas por meio de ações
rituais compostas por traços e elementos culturais, como vestimentas e língua, para
sinalizarem as diferenças. Os elementos que compõe o ritual aparecem como conjuntos
delimitados de símbolos33.
Para Leach, ambientes sociais, em constante mudança, assinalam o fato de as
sociedades reais existiram no tempo e no espaço. Todas as sociedades são processos no
tempo, e as mudanças resultantes desses processos podem ser coerentes com a
continuidade da ordem formal já existente, ou podem fomentar alterações que
efetivamente reflitam mudanças nas estruturas sociais formais.
O uso das tradições geralmente é empregado como justificativa para
determinadas situações sociais, como casos de brigas, validação de costumes, ou
acompanhamento de performances religiosas. Para o autor, cada conto tradicional terá
diferentes versões, dependendo do tipo de interesse que esteja inclinado a legitimar.
Portanto, não se pode dizer que haja uma “versão autêntica” das tradições: é importante
ter em mente que, além da diferença entre os grupos envolvidos nas situações, há
diferenças internas em cada grupo, os indivíduos também não são uniformes. Em tais
processos, os atores se defrontam permanentemente com uma série de alternativas e
provavelmente, sob tais circunstâncias, fazem escolhas de acordo com as vantagens que
cada uma delas possa lhes oferecer.
Sob a ótica de Leach, o tipo de relação entre a estrutura social e a cultura34
decorre de tal fato - as situações culturais são dadas a partir de acidentes da história, e a
33
Para uma reflexão acerca dos símbolos e rituais, ver capítulo II.
Leach (1993) utiliza a definição de Firth (1951, p. 27), onde os conceitos de cultura e sociedade são
absolutamente distintos. “Se se considera a sociedade como um agregado de relações sociais, então a
cultura é o conteúdo dessas relações. A sociedade encarece o componente humano, o agregado de pessoas
e as relações entre elas. A cultura enfatiza o componente dos recursos acumulados, tanto imaterial quanto
material, que as pessoas herdam, empregam, transmutam, aumentam, transmitem”.
34
114
cultura fornece a “roupagem” das situações. A manutenção das diferenças culturais e a
insistência nessas diferenças podem fazer que as ações rituais sejam expressivas no que
diz respeito às relações entre grupos de culturas diferentes. A forma é cultural e a
expressão é ritual.
Uma vez mais, a questão da diferenciação interna dos grupos é aparente. O autor
considera que a questão é concernente às dinâmicas sociais e aos diferenciais distintivos
de uma categoria e da outra, que não são fixos. Em relação às referidas tribos o autor
salienta que muitas destas, encontradas por antropólogos, não passam de ficções
etnográficas, no sentido de eles terem pressuposto a existência de fronteiras nítidas,
quando na realidade tal não acontecia.
Outro estudo esclarecedor e, de acordo com seu autor, inspirado nos contornos
do anterior, é o “The Kalela Dance – Aspects of Social Relationship among Urban
Africans in Northern Rhodesia”, de Clyde Mitchell (1956), onde é apresentada a
formação, ou reestruturação de grupos étnicos em contextos urbanos industriais. O autor
apresenta a dança Kalela como um elemento de agregação de indivíduos pertencentes a
determinados grupos ou tribos, e pretende compreender inteiramente seu significado.
Ao buscar aspectos de relacionamentos entre os africanos na área do Cooperbelt,
considerou que seria, antes, necessário compreender as relações entre os brancos e os
negros que interagem em tal situação, do mesmo modo que Gluckman, contextualizam
a situação observada.
Nas cidades recém criadas, situações sociais específicas que nelas se
desenvolviam reforçavam os sentimentos tribais. A mão-de-obra para o trabalho,
angariada em regiões vastas, no Cinturão de Cobre era recrutada, principalmente, em
certas localidades. O significado do tribalismo nas relações cotidianas era visível,
podendo-se observar, em diversas ocasiões, a oposição entre tribos (MITCHEL, 1956).
Quando o indivíduo chegava à cidade, de sua vila ou tribo, nenhum dos padrões
anteriores, como afinidade ou parentesco, era seguido, principalmente no que diz
respeito ao estabelecimento das moradias: os indivíduos eram distribuídos de acordo
com listas de espera em seus postos de trabalho. Cada vez que mudavam de emprego,
mudavam também de local de moradia; dessa maneira, as tribos eram desarticuladas e
espalhadas pelo tecido urbano. Com a composição do distrito em constante mudança,
havia também poucas chances de se estabelecerem estruturas comunitárias definitivas.
A conjuntura colocava em relevo a distinção entre os povos. A língua era o fator
fundamental de diferenciação, mas vestimentas, alimentação, músicas e danças também
115
forneciam indicadores, ou símbolos de pertencimento étnico. Classificar por tribos
permitia a um africano qualificar qualquer outro africano - ambos em uma situação onde
os contatos deviam ser, por necessidade, superficiais. “Definir a situação” permitia a
cada indivíduo saber como agir em relação ao outro, a partir da categoria na qual aquele
é classificado. Mitchell ressalta, todavia, que quanto maior a distância entre um grupo e
outro, social e geograficamente, maior é a tendência de reconhecê-lo como uma
categoria indiferenciada e colocá-lo sob uma rubrica geral, apesar de abarcarem
diferentes grupos e pessoas.
Especificar a categoria a que uma pessoa pertence pressupõe um reconhecimento
preliminar em relação a ela. Assim, similaridades culturais e familiaridades são capazes
de unir pessoas em um contexto onde existem tantos desconhecidos, mesmo que, em
uma situação anterior, ocorressem hostilidades entre eles. O autor relaciona dois
princípios que funcionavam como classificadores das relações entre membros de tribos
distintas em uma área urbana: a similaridade e a familiaridade cultural. Porém, em um
local onde fronteiras culturais são pouco nítidas, as culturas tendem a se misturar,
fazendo com que, na prática, estes dois princípios estejam sobrepostos.
A categoria mais significativa nas relações sociais entre os africanos era o
“tribalismo”; ela se referia, no entanto, a agrupamentos formados com base em grandes
diferenças culturais. Essa tendência de reduzir a diversidade de tribos em poucas
categorias aparecia como parte de um amplo processo sociológico, por meio do qual as
relações superficiais entre os povos eram determinadas por categorias principais, dentre
as quais não se reconheciam as diferenças.
As distinções étnicas específicas da situação rural, quando no contexto urbano,
eram prontamente substituídas ou modificadas, pela multiplicidade de tribos que
estavam em contato. As distinções étnicas tinham, portanto, na cidade, sua importância
exacerbada e, a partir daí, formavam uma base sobre a qual os indivíduos interagiam
com integrantes de outros grupos. No caso de haver um retorno ao contexto rural, as
categorias peculiares a esse espaço viriam à tona novamente.
No contexto rural, falar em tribo indicava a referência a um grupo de indivíduos
integrantes de um mesmo sistema político e social, onde eram compartilhados crenças e
valores. Por outro lado, ao falar em tribalismo em áreas urbanas, a referência não fazia
alusão a um grupo de pessoas unidas por um dado sistema social, mas sim, a uma
subdivisão de pessoas em termos de seus sentimentos em relação ao pertencimento a
certas categorias comuns, estabelecidas a partir de discernimentos étnicos. Neste
116
sentido, o tribalismo aparece como categoria de interação que faz parte de um sistema
mais amplo.
No Cinturão de Cobre, o tribalismo fornecia um mecanismo por meio do qual as
relações sociais com estranhos podiam organizar-se segundo a situação social fluida;
dessa forma, era uma categoria na interação social cotidiana. Em um local onde muitos
homens, de diversas tribos, estavam alocados em uma área restrita, os sindicatos, o
Congresso
Nacional
Africano
e
instituições
afins
reuniam
africanos
-
independentemente de sua origem tribal - e operavam em um campo no qual estavam,
fundamentalmente, em oposição aos europeus.
A dança Kalela se apresenta como o resultado contemporâneo de diversos
aspectos daquela sociedade, aparecendo como uma característica da vida urbana no
sudoeste africano. A dança enfatiza a unidade dos Bisa frente às demais tribos da área.
Mitchell considera um aparente paradoxo a Kalela ser tribal, enfatiza (a dança) as
peculiaridades da tribo, e ao mesmo tempo utiliza, na linguagem de suas canções e nas
vestimentas dos dançarinos, elementos retirados da vivência urbana, o que tende a
abafar as diferenças tribais e a revelar uma mobilidade social fictícia.
“Misturando caricaturas e roupas dos executivos superiores brancos,
textos de cantos de caráter jocoso interétnico, ritmos e sons militares do
exército colonial britânico – que, reunidas, produzem uma dança
“étnica”, na medida em que a “tribo” (...) se tornou uma categoria
híbrida própria ao sistema social do Cooperbelt”35.
Três situações são apontadas por Mitchell quando trata de afiliações tribais.
Estas podem se dar: em locais onde a população foi retirada de muitas tribos diferentes,
algumas pessoas terão vindo de mesmo local ou áreas correlatas, possuindo um mesmo
background geral podem organizar suas relações com base em padrões comuns; quando
se trata de relações com outras tribos, características como língua e estilo de vida
permitem aos indivíduos enquadrarem uns aos outros; e por fim, onde o pertencimento
tribal pode funcionar como meio de se aproximar da autoridade local. O tribalismo
permanece sendo uma categoria importante na interação social no campo social das
relações entre os africanos, embora este campo conviva simultaneamente com muitos
outros.
35
Angier, 2001, p. 3.
117
Eriksen ressalta que o estudo acerca das relações sociais no Cinturão de Cobre é
esclarecedor, pois indica que, em casos como o descrito, a categoria “nós” pode ser
expandida ou contraída de acordo com as circunstâncias (1993), de forma semelhante
Gluckman também enfatiza essa questão. Cada indivíduo pode possuir identidades e
status diversos, acionados a partir de situações empíricas, quando e como as identidades
étnicas se tornam relevantes.
A questão ressaltada por Eriksen, é que fatos como o relatado, exemplificam a
fluidez e ambigüidade da vida social, podendo ser as categorias sociais, de certa forma e
até certo ponto, manipuladas pelos próprios indivíduos. Portanto, a etnicidade é um
aspecto relevante para a vida social em contextos onde ela “faz a diferença” (1993).
Tanto indivíduos como pequenos grupos podem mudar lealdades, moradia,
formas de subsistência e políticas, por conta de situações econômicas e políticas em
relação à sua posição original e em meio ao grupo que o assimila. Ainda que tais
situações modifiquem as identidades étnicas, elas não afetam a dicotomia entre os
grupos. Em diferentes ocasiões, as performances utilizadas pelos grupos podem, ou não,
serem favorecidas. Barth lembra que, quando os limites que tornam as performances
cabíveis são ultrapassados, as identidades étnicas tendem a não se manterem, pois as
performances aparecem de forma inadequada (2000).
Recorro ao exemplo, apresentado por Barth (1995), de uma situação, que ocorre
na Noruega e diz respeito aos grupos de imigrantes paquistaneses, na qual pessoas de
uma determinada nacionalidade se agrupam como semelhantes por conta da
especificidade de serem do Paquistão. Uma nova identidade é provocada e construída
em solo estrangeiro, ela estabelece (procura estabelecer) modos de ação para seus
integrantes, ativos nas situações inter-grupos e também dentro do próprio grupo.
A experiência comum a todos os paquistaneses, apesar das diferenças existentes
entre eles, é o fato de serem diferentes dos demais noruegueses e convergirem a uma
comunidade paquistanesa, que serve como refúgio, solidifica a rede de solidariedade
entre eles e ajuda a construir uma auto-imagem mais positiva. Barth considera que, sob
tais circunstâncias, forma-se o mito central da etnicidade (o non sequitur36), que induz o
“nós” - ao compartilhar inúmeras diferenças em si próprio, “nós” minoritário, em
contraposição ao “eles" dominante -, a aceitar, ou acreditar, que possui semelhanças
36
Non sequitur: “inferência que não deriva das premissas; falácia”. Conforme esclarece Paulo Gabriel
Hilu da Rocha Pinto, para melhor evidenciar o problema.
118
entre si. Semelhanças estas que estabelecem uma cultura compartilhada e oposta à
“deles”.
A tendência é haver, dentro da comunidade “nós” e dos grupos étnicos em geral,
formas de controle e mecanismos de pressão coletiva que modelem os comportamentos
e as atitudes dos seus membros (BARTH, 1995). Cada grupo possui diversidades
internas, em relação às identidades individuais, que também podem mudar; estas se
estabelecem a partir da relação entre o conjunto de características herdadas das culturas
“originais” e as culturas atuais, gerando variações e ambigüidades. Apesar da
possibilidade de uma grande variação objetiva, do feedback entre as experiências
individuais e das categorias empregadas, são mantidas dicotomias étnicas simples e
reforçados diferenciais acerca dos comportamentos estereotípicos. Isso porque os atores
lutam para manterem as definições convencionais no curso das incidências sociais
(BARTH, 2000).
Mudança e fluxo são constantes sobre a cultura, porém as variações não são
ilimitadas, pois aquela (a cultura) está submetida a formas de controle e estas
(variações) são balizadas por tais mecanismos. A cultura da população imigrante –
Barth se refere às crianças paquistanesas, mas podemos considerar outros tipos de
imigrantes e sociedades - é balizada por três artifícios: processos de controle,
silenciamento e apagamento das experiências.
Processos de controle podem se apresentar na tentativa da diminuição dos
contatos interétnicos, fontes permanentes de conflito, por exemplo, quando os pais
negam aos filhos a possibilidade de freqüentarem a casa de colegas de escola
noruegueses. No silenciamento, as pessoas tendem a esconder as experiências que
passam junto a indivíduos de outros grupos étnicos, tentando minimizar os contatos e
experiências intergrupais, o que pode gerar sérios conflitos. Se este mecanismo não
funciona, podem recorrer ao apagamento ativo, quando efetivamente negam tanto a
participação em determinadas atividades ou contatos, quanto a possibilidade de falarem
de tais experiências (BARTH, 1995).
Não posso dizer que o mesmo ocorra no caso dos imigrantes das Índias
Ocidentais, em relação aos princípios indicados por Barth, entretanto, podemos observar
similaridades no que diz respeito à formação de um grupo único, diferenciado
internamente, que reúne pessoas cujo pano de fundo comum é sua nacionalidade.
Caribenhos que vão e são estimulados a ir para a Inglaterra não são enquadrados
exatamente à nacionalidade comum, mas sim a uma categoria geral, como se. O
119
pertencimento a este espaço imaginário que compreende, abriga e situa os diferentes
nacionais, incentiva o compartir de determinados elementos simbólicos, que podem
configurar sinais diacríticos, utilizados e matizados de acordo com as situações.
Ao chegarem à cidade de Londres, como força de trabalho para serviços não
especializados, geralmente procuravam bairros onde os preços de habitações não eram
caros: assim era o bairro de Notting Hill, uma área degradada e basicamente composta
por uma série de cortiços e moradias deterioradas (slums), que não possuíam água
encanada ou banheiros individuais. Ao se estabelecerem em tais moradias, ficavam à
mercê dos landlords, proprietários ou senhorios, que eram responsáveis pelos aluguéis,
e os submetiam a uma série de constrangimentos e opressões, podendo inclusive retirálos do espaço que estavam ocupando, caso atrasassem os aluguéis, ou agissem de modo
que não os agradasse, em alguns, casos nem mesmo eram aceitos como inquilinos.
De maneira consentânea, ocorria uma série de reações de grupos britânicos,
formados principalmente por uma classe média trabalhadora empobrecida, que se
opunha à presença dos imigrantes e tentava, de forma ostensiva, enviá-los de volta “para
casa”. Grupos nacionalistas deram início à série de ataques racistas, que se espraiaram
pela Inglaterra nos finais dos anos 50, mais especificamente por volta de 1958 - época
em que não havia leis contra práticas racistas naquele país. Uma série de reações se
seguiu até que as autoridades locais conseguissem acalmar tais manifestações violentas.
Na seqüência desses fatos, os grupos vindos do Caribe, marginalizados e
colocados sob uma mesma categoria indiferenciada – de imigrantes west indians
(expressão usada para nomear antilhanos ou caribenhos) - intensificaram sua união.
Assim, além de diversas atitudes auto-afirmativas, surgiu a proposta de realizarem um
carnaval que reunisse as pessoas das diferentes ilhas e as colocasse em um espaço de
reunião, confraternização e resistência.
Vindos das diversas ilhas e dispostos em uma nova situação urbana, constroem e
vêem ser construídas novas identidades. Em suas conjunturas anteriores, reportavam-se
às identidades nacionais em oposição às demais ilhas, entretanto, ao se depararem, com
um contexto onde aparecem em oposição ao grupo dominante, por serem vistos como
west indians, em uma categoria geral de semelhança, passam, de certa forma e em
algumas situações, a se ver da mesma maneira e a se apresentar como um grupo único.
O ritual desempenhado em Notting Hill materializa e ressalta o que é percebido
como “semelhança e igualdade” e o que se entende como “diferença”: no que diz
120
respeito ao que o “outro” percebe acerca deles, ao que eles entendem por si próprios, e
também em relação à maneira pela qual se colocam frente ao “outro” majoritário.
Com o passar dos anos e com a permanência e o crescimento do episódio
carnavalesco, os grupos passaram a ter maior visibilidade, mas nem por isso deixaram
de ter problemas e conflitos com o dominante. Os carnavais “originais” foram
transplantados, por assim dizer, para uma outra sociedade e ali se estabeleceram em
relação a ela. Em consonância e por conta daquela realidade social, gerou-se mais um
peculiar carnaval.
Atualmente, no momento das apresentações durante o período do carnaval,
também aparecem outros grupos étnicos, como chineses, indianos e brasileiros, que
podem exibir, durante todo o tempo, bandeiras dos países de origem. Pessoas de um
mesmo grupo caribenho podem levar bandeiras de diferentes nações do arquipélago.
Apesar das dificuldades enfrentadas naqueles tempos, das contendas presentes
na vida social inglesa e ainda, de seus membros nem sempre serem tratados com
igualdade, (apesar de ser baseada em normas que devem ser igualmente seguidas e
quando não, igualmente julgadas), algumas das pessoas entrevistadas consideraram
Londres, em sentidos como serviços públicos, respeito aos direitos individuais,
qualidade de vida, o melhor lugar para se viver.
Processos sociais como os citados, na Noruega e em Londres, corroboram na
criação de descontinuidades culturais e
“de uma isomorfia relativamente maior entre o social e suas divisões, e
o cultural com sua tendência inconveniente em transbordar, variar e
misturar. O campo desordenado de variações e interrupções ocasionais
das descontinuidades resultante é adicionalmente distorcido em termos
conceituais pelo mito da homogeneidade e compartilhamento cultural,
de modo a permitir que ele ofereça um melhor mapeamento e
justificativa para a construção das identidades sociais e dos
pertencimentos ao grupo” 37
Assim sendo, alguns itens culturais são selecionados e utilizados como marcas
distintivas das identidades étnicas, e a variação cultural é manipulada e serve como base
dos diferentes grupos como fenômeno social. A construção do pertencimento a um
grupo étnico é realizada sem fazer referência à real diversidade cultural,
37
Barth, 1995, p. 9.
121
“mas por meio de um mito exagerado de contraste e compartilhamento
(...), dramatizado por (...) emblemas culturais contrastivos e um certo
grau de seleção, relatos históricos de situações nas quais grupos (e não
‘culturas’) entraram em conflitos e praticaram injustiças uns contra os
outros”38.
Sob a perspectiva de Eriksen, as identidades étnicas são cunhadas a partir de
seleções situacionais e de imperativos impostos de fora, são uma inter-relação entre
escolhas e constrangimentos ou obrigações impostos aos atores. O caráter das
identidades é relativo e situacional, resultante da complexa relação entre variações
culturais e formações de grupos étnicos. Assim, diferenças culturais e processos de
manutenção de fronteiras advêm de aspectos da organização social e não, de “diferenças
culturais objetivas” (1993).
No caso das situações onde se encontram minorias étnicas, provavelmente há
traços da rejeição fomentada pela população receptora, como no caso da imigração
caribenha para a Inglaterra. Porém, há atividades que colocam em contato e interação os
grupos. Os valores e facilidades organizacionais, entretanto, são díspares, e geralmente
os objetivos mais valorizados não estão dentro do campo cultural e das categorias das
minorias.
Fredrik Barth avalia que é importante analisar os agentes das mudanças - quando
há mudanças no grau das diferenças culturais e na sua correlação com as identidades
étnicas - observando-se as estratégias que aparecem como significantes, e quais
implicações organizacionais fomentarão tais escolhas.
Em busca de novas formas de participação na sociedade mais ampla, os agentes
provavelmente têm maior acesso aos bens e organizações daquela e podem ser
chamados de “novas elites”. O autor identifica algumas estratégias que os citados
agentes podem seguir e seus prováveis resultados: a) tentarem incorporar-se ao grupo
cultural e à sociedade dominante, o que acarretará a perda da diversificação interna e a
tendência a serem conservadores, pouco articulados e a estarem situados em baixa
posição hierárquica na sociedade; b) participarem em alguns setores da sociedade
quando possível, e quando não, a se referirem aos diferenciais culturais de seu grupo,
aceitando o status de minoria, o que implica o não-surgimento de uma organização
poliétnica explicitamente dicotomizada; e c) enfatizarem sua identidade étnica e, dessa
forma, criarem e ampliarem posições e padrões, a fim de atenderem novos objetivos,
38
Ibidem.
122
resultando no que se pode observar como os movimentos nativistas e os novos Estados
(BARTH, 2000).
Algumas formas, mediante as quais as identidades étnicas podem assumir maior
relevância organizacional dentro do novo contexto no qual se inserem, são descritas
pelo autor como tendo duas vertentes possíveis. Na primeira, em geral, os inovadores
optam por ressaltar determinados níveis de identidade, dentre os conhecidos no interior
das sociedades tradicionais. Algumas dessas características são potencialmente
ajustadas à finalidade de se tornarem referências básicas para o grupo. A possibilidade
de serem aceitas por outras pessoas, além de algumas questões táticas, definirão qual
delas será adotada. Por outro lado, as formas pelas quais as identidades étnicas assumem
relevância criam variações, tanto na maneira pela qual o grupo está organizado, quanto
na articulação interétnica. Movimentos contemporâneos, baseados no campo político,
não são menos étnicos: são maneiras de se tornar as diferenças culturais relevantes, no
que diz respeito ao aspecto organizacional, bem como de se criarem formas de articular
os grupos dicotomizados.
A direção da mudança cultural é afetada por essa opção do grupo étnico pelo
caráter de oposição política. Tende, assim, a se tornar estruturalmente semelhante aos
demais partidos, com vistas a estabelecer um debate de fato, deixando as diferenças se
estabelecerem por meio de alguns sinais diacríticos. Por conta do estabelecimento de
tais sinais, os inovadores se ocupam em selecionar quais marcas identitárias serão
utilizadas e em afirmá-las em detrimento de outras. É provável que se atenham ao
reavivamento de aspectos culturais tradicionais e que estabeleçam tradições históricas, a
fim de justificar e aclamar as identidades adotadas (BARTH, 2000).
Eriksen, por sua vez, questiona o fato de - ao terem os grupos étnicos, ou
categoria, a noção de uma cultura comum compartilhada - tenderem a se reportar a uma
ancestralidade comum, como justificativa para sua unidade - perguntando até que ponto
se poderia recuar, para falar de uma ancestralidade compartilhada. Traços culturais
tendem a ser utilizados como provedores de identidade e legitimam, por sua vez,
reivindicações por direitos, ou estratégias na competição por bens ou recursos escassos
(1993).
Noções de origens comuns são, em geral, cruciais para o estabelecimento de
uma identidade étnica particular; interpretações da história, portanto, são fundamentais
para ideologias que procuram justificar, reforçar e manter identidades étnicas - assim o
passado é utilizado como fornecedor de sentido para o presente. A partir daí, o autor
123
argumenta que classificações étnicas, além de produtos sociais, são também culturais, e
estão diretamente relacionadas às necessidades dos classificadores. Funcionam como
ordenadores do mundo social e criam mapas cognitivos padronizados acerca de
categorias relevantes de “outros”. Estas classificações podem ser consideradas como
maneiras de criar ordem no universo em que estão inseridas. Sistemas de classificação e
princípios de inclusão e exclusão criam ordem; o tipo de ordem criada, porém, está
sempre relacionado a determinados aspectos de amplos sistemas sociais (ERIKSEN,
1993).
O autor refere-se ao Cinturão de Cobre, argumentando que, naquela situação,
indivíduos pertencentes a diferentes “tribos” foram englobados em categorias gerais. Na
Europa, da mesma forma, é comum pensar a respeito de “africanos”, ou de “índios
norte-americanos”, como categorias étnicas, sem levar em conta que cada um desses
“grupos” compreende muitas categorias étnicas mutuamente exclusivas.
Uma
classificação
genérica
ocorre
em
relação
aos
caribenhos.
O
estabelecimento, no passado, de categorias que perduram até hoje, como west indians,
foi imposto a tais grupos. No ambiente social londrino, são colocados sob esta mesma
categoria étnica e assim classificados. Passam a ter interesses políticos compartilhados e
a realizar atividades com objetivos comuns, também em virtude do tratamento idêntico
e estigmatizante,que recebem. Um elemento presente na construção de tal identidade foi
a aceitação, ou melhor, a utilização de tal classificação pelos próprios integrantes do
grupo em determinadas situações. Eventualmente apresentam-se sob tal papel, como no
caso do carnaval estudado, mas sem deixar de lado a lealdades às suas categorias de
origem (trindadenses, barbadianos, jamaicanos, etc), que aparecem em diferentes
situações em Londres, e no retorno a seus países de origem, por eles tratados como
home”.
A categoria “imigrante” pode englobar, como ocorre na Inglaterra, categorias
étnicas altamente discrepantes, podendo alocar grupos chilenos, vietnamitas,
caribenhos, etc. Eriksen, reforçando minhas considerações anteriores, ressalta a
utilização da categoria west indian: ela vem sendo aplicada há décadas aos imigrantes
das diversas ilhas do Caribe, ainda que seu background cultural seja bastante diferente.
Sob essa perspectiva, são considerados, mas necessariamente não se consideram,
membros de um mesmo grupo étnico. Eventualmente, essa categoria atributiva britânica
pode tornar-se parte de sua própria identidade, o que os levaria a considerarem a si
124
próprios como west indians, ainda que, como dito anteriormente, tal classificação não
tenha a menor relevância em seus países de origem (1993).
O autor usa o termo “anomalias étnicas”, seguindo Mary Douglas, para se referir
a grupos, categorias ou indivíduos aos quais considera difícil atribuir determinada
identidade étnica. Pode aparecer algo como “nem isso, nem aquilo” (neither-nor), ou
“ambos, e” (both-and), dependendo da situação. Segundas e terceiras gerações de
imigrantes, na Europa, podem constituir um ótimo exemplo do que considera categorias
étnicas “anômalas”: os filhos, netos e bisnetos dos imigrantes podem considerar-se, e
serem considerados por outros, como integrantes do mesmo grupo étnico que seus pais;
podem julgar-se, em adição, bem adaptados à cultura majoritária. Muitos são bilíngües e
têm, inúmeras vezes, dupla cidadania, enfrentando situações de conflito entre lealdades
aos diferentes grupos - são minorias permanentes (1993).
Com relação a estes grupos, podem ocorrer alguns tipos de desdobramento de
tais situações: assimilação ao grupo dominante, ou incorporação étnica. A segunda
alternativa, por sua vez, desdobra-se em outras duas: podem separar-se e declararem a si
mesmos como uma categoria étnica, ou continuarem leais à categoria étnica de seus
ascendentes, apesar de terem consciência de variações culturais. Como exemplo da
primeira alternativa, o autor aborda a questão da formação de uma categoria étnica,
conhecida como “black British”, que abrange pessoas que não são africanas nem
caribenhas, embora seus ancestrais o fossem. Essas pessoas não têm outro país senão a
Grã-Bretanha, não possuem outra língua vernácula a não ser aquela classificada pelos
lingüistas como “black British English”; tais pessoas freqüentam os mesmos clubes e
associações informais, além de muitas vezes compartilharem um senso comum de
solidariedade, fato este que leva Eriksen a considerá-las, portanto, como uma categoria
étnica.
Continuando sua análise, o autor sugere que a perspectiva de Barth, relativa à
auto-atribuição mutuamente exclusiva de categorias étnicas, seja ligeiramente
modificada, apontando para a questão de as atribuições empreendidas pelos “outros”
também poderem contribuir na criação de identidades étnicas, como no caso de
indivíduos serem “obrigados” a aceitarem determinada identidade étnica, mesmo que
preferissem não o fazer.
Pessoas colocadas entre categorias já reconhecidas são nomeadas “pelo sistema”
como anômalas, podendo ser identificadas como “outsider”, moralmente suspeitas.
Pessoas em tais posições (between and betwixt), podem tomar tais ambigüidades em
125
proveito próprio, passando a serem chamadas de entrepreneur”, ou empreendedores
culturais (ERIKSEN, 1993).
Ao contrário do que se supôs na antropologia (o eventual desaparecimento de
categorias étnicas, ou da própria questão da etnicidade), Eriksen assinala que o fato de
muitas sociedades estarem submetidas a amplos e rápidos processos de mudança social
acabou por criar novas formas de etnicidade, muitas vezes mais poderosas, claras e
articuladas.
Um conjunto de símbolos, referente a antigas línguas, religião, sistema de
parentesco ou estilo de vida, é considerado por Eriksen como fundamental para a
manutenção de uma determinada identidade étnica em tempos de mudança social.
Fatores como migração, alterações demográficas, industrialização, ou outras mudanças
econômicas - integração ou encapsulamento a um sistema político mais abrangente podem aparecer como ameaças a determinadas identidades étnicas: nos casos onde as
fronteiras estão sob pressão, as formas de mantê-las se tornam mais importantes. Assim
identidades étnicas, ao corporificarem um sentido de continuidade com o passado,
podem servir individualmente como tranqüilizadores em momentos de convulsão social.
De acordo com tal pressuposto, a formação de novas categorias étnicas pode
ocorrer de duas maneiras: a primeira, com a extensão das identificações existentes; a
segunda, com a redução do grupo, presumindo-se uma ancestralidade compartilhada. Se
uma identidade étnica pressupõe uma ancestralidade compartilhada, a quantas gerações
se pode voltar a fim de se encontrar a semente (embrião) das identidades atuais? O autor
esclarece que não há resposta modal - ambas delineiam suas identidades a partir de uma
invariável reinterpretação do passado. Dessa maneira, descortina-se o importante caráter
de as identidades étnicas serem “construídas”: são invenções sociais.
Agrupar diferentes grupos sob uma mesma categoria étnica, bem como
presumir uma ancestralidade compartilhada, acaba por reduzir o número de grupos
étnicos que poderiam existir e se formar a partir das novas configurações da vida social
nas diferentes sociedades ou processos sociais. Variações étnicas não correspondem a
variações culturais, contudo é primordial para o seu funcionamento que sejam
convincentes para os integrantes dos grupos; por outro lado, estes devem ser
reconhecidos como tais pelos não membros. Para que um grupo mais contido possa
existir em determinado contexto, ele precisa ser “socialmente relevante”: precisa ter
bens ou benefícios para distribuir, e estes devem ser percebidos como valiosos pelo
grupo alvo (ERIKSEN, 1993).
126
Tendo em vista tais considerações, o autor avalia que a interpretação da cultura,
com relação aos grupos sociais de modo geral, pode torná-la manipulável. Conhecer sua
própria história e imputar aboriginalidade e continuidade com o passado podem ser
formas importantes de modelagem étnica e legitimação política, respectivamente.
Razões políticas delineiam a forma como será escrita determinada genealogia, seja ela
cultural ou pessoal. Eriksen aponta para o importante aspecto, ressaltado pelos estudos
de Leach (1956), que revela nunca haver uma adequação perfeita entre ideologias e
práticas sociais. Sob tal perspectiva, Eriksen considera que não se está olhando para o
passado, mas sim para uma construção do passado, dos dias atuais. O autor interpreta a
afirmativa de Barth - devemos “perguntar a nós mesmos o que é preciso para fazer
distinções étnicas surgirem em uma área” - como uma forma de chamar atenção para a
perspectiva histórica da etnicidade, embora enfatize que o próprio Barth não o faz
(1993).
Eriksen (1993) apresenta alguns aspectos da análise de Don Handelman (1997)
acerca da etnicidade e sua variabilidade organizacional, por considerar pertinente a
tipologia, criada por este último, relativa aos diversos graus de incorporação étnica.
Descreverei-as brevemente, por acreditar que possam ser uma boa maneira de se pensar
as relações entre os imigrantes caribenhos, seus descendentes nascidos em solo inglês e
os britânicos brancos que se opunham, ou seguem opondo-se a eles. Eriksen considera
que tais tipologias lidam com a etnicidade como um tipo de organização social, portanto
exemplificam a questão central de Barth, na qual o conteúdo social da etnicidade é
altamente variável.
“Categorias étnicas” contrastivas são utilizadas para identificar membros do
grupo e outsiders. Nelas se colocam, na perspectiva dos integrantes do grupo,
comportamentos apropriados, conhecimentos acerca de suas origens e legitimação da
existência da categoria étnica, esta precedendo os demais tipos de incorporação étnica.
A rede étnica, além dos atributos da primeira, possui a habilidade de distribuir recursos
entre seus integrantes e é acionada, por exemplo, quando se dá preferência a membros
do grupo para determinados tipos de trabalho. Ela é descentralizada e, ao contrário da
primeira, articula canais de interação ao longo de linhas étnicas. Podem-se tratar, como
associações
étnicas,
categorias
que
identificam
interesses
compartilhados
e
desenvolvem aparatos organizacionais para expressá-los. Esse tipo de associação
corporifica os interesses da categoria étnica em um nível coletivo. Por fim, as
comunidades étnicas são o mais alto grau de incorporação étnica. Além das redes
127
étnicas e das organizações políticas compartilhadas, este grupo possui um território com
fronteiras mais ou menos permanentes.
Na perspectiva de Eriksen, sistemas poliétnicos podem conter tanto aspectos
verticais quanto horizontais, no que diz respeito à classificação social. Ao considerar o
aspecto horizontal da etnicidade, parece ser importante focalizar a competição por
recursos escassos, e no processo de dicotomização e manutenção de fronteiras, por outro
lado, o vertical imputa maior relevância na observação das relações de poder. Ambos os
aspectos variam em sua importância situacional, histórica e entre sociedades.
Hierarquias sociais podem ser justificadas a partir de ideologias étnicas, porém o
pertencimento étnico não estabelece por si só o nível hierárquico que o indivíduo ocupa;
a etnicidade será acrescida de gênero, classe, idade e outros critérios para que se possa
definir a posição da pessoa. Apesar de haver uma alta relação entre pertencimento à
classe social e à identidade étnica em algumas sociedades poliétnicas, como é o caso de
imigrantes não europeus em sociedades industriais européias, onde geralmente ocupam
postos de trabalho em posições hierárquicas mais baixas. As hierarquias sociais se
referem a diferentes categorizações e se articulam diversamente em diferentes
sociedades (ERIKSEN, 1993).
Na ótica de Barth, para lidar com os conflitos étnicos em suas configurações
contemporâneas, é necessário analisar os processos por meio dos quais alguns líderes
acionam as identidades étnicas na ação política coletiva. O autor defende que este fato
aparece como resposta das pessoas a determinados arranjos do Estado e às
oportunidades políticas criadas por tais arranjos. Uma vez que o conflito étnico gera
dinâmicas políticas em relação a ele, é fundamental perceber que tais dinâmicas são
resultantes de ações estratégicas realizadas pelos agentes políticos.
Barth ressalta que as mobilizações étnicas que surgem como respostas a tipos de
interação dentro de determinados contextos, os quais abrangem relações com
instituições estatais e internacionais, não são necessariamente como as do nacionalismo,
onde a competição por liderança política é mais aberta e o campo de ação dos agentes
políticos tende a ser maior. O autor argumenta que fomentar a criação de grupos étnicos
e sustentá-los tende a ressaltar suas oposições e separações, ao invés de gerar
aproximação. Por fim, propõe que a expansão de aspectos comuns aos grupos e a
exploração de questões compartilhadas poderiam gerar a superação das fronteiras
étnicas (1995).
128
Em cada caso, as fronteiras étnicas são estabelecidas e mantidas por meio de
determinadas características culturais. Barth ressalta que a manutenção de tais
características e diferenças é o que permite que haja a persistência da unidade do grupo.
As matérias culturais, contudo, não são estáticas e tampouco limitadas pelas fronteiras
entre os grupos. Elas variam, são modificadas e também aprendidas, nem por isso
desmantelando as fronteiras dos grupos étnicos. Portanto, reconstituir a história de tais
grupos não é descrever a história de uma cultura. O autor acredita que os aspectos
culturais atuais não são simples reconstituições de aspectos culturais de momentos
anteriores daquele grupo (2000).
Barth considera, ainda, que pode ser esclarecedor pensar em termos de correntes
(streams) de tradições culturais, apesar de elas poderem se misturar, cada uma agrega
elementos de maneiras diferentes, formando conjuntos de características que geralmente
persistem ao longo do tempo, todas possuindo dimensões históricas. O critério
fundamental, para o estabelecimento e a manutenção das diferentes correntes de
tradição, é que apresentem um determinado grau de coerência em relação ao tempo
histórico e, também, que possam ser reconhecidas nos demais locais em que se
apresentam e convivem com outras correntes diferentes. As questões fundamentais a
serem respondidas dizem respeito ao “tipo” de consistência que pode ser encontrada nos
padrões específicos e no “porquê” de, justamente nesse local e momento, essa forma
ter-se desenvolvido.
Em consonância, Ulf Hannerz (1997) considera que a cultura aparece, também,
como um processo no tempo, não estanque e em constante movimento, que deve
carregar e tornar duradouros significados e formas significativas. Para se manter em
movimento os atores, que formam os grupos sociais, devem a todo o momento
interpretá-la, recriá-la, pensar sobre ela recordá-la e transmiti-la.
Hannerz considera palavras como fluxos, fronteiras e híbridos, algumas das
palavras – chave da antropologia que trata de assuntos transnacionais que abordam o
encontro de pessoas de diferentes pátrias e culturas. Termos como hibridismo aparecem
freqüentemente quando se trata de comunidades diaspóricas e das fronteiras, que ao
invés de estancar movimentos, são atravessadas, permeadas, vencidas, como é o caso
observado. Na perspectiva do autor, os fluxos sempre têm direções e no caso dos fluxos
culturais, percebemos que o que a cultura “original” ganha em seu novo local, não
necessariamente a faz perder o que possuía anteriormente, sendo reorganizada a partir
dos novos elementos e situações com os quais se depara. A partir dessa perspectiva não
129
é possível deixar de distinguir os centros das periferias “Esse complexo de assimetrias
tomou forma séculos atrás na Europa e tendo-se acelerado neste século, também criou
por si mesmo algumas das condições para os posteriores contrafluxos e fluxos
entrecruzados” (HANNERZ, 1997).
Barth, por sua vez, oferece um script acerca da abordagem das correntes
identificadas. Cada corrente identificada deve ser tomada como um universo de discurso
e devemos distinguir seus padrões mais enfatizados; devemos mostrar como mantém
suas fronteiras e como se produz e reproduz; a partir daí, descobrir o que leva tal
sistema a ter coerência, o que será solucionado de modo empírico. “Devemos (...)
identificar os processos sociais pelos quais essas correntes se misturam, ocasionando
por vezes interferências, distorções e mesmo fusões. Além disso, pode ser que cada
corrente siga uma dinâmica básica diferente. (...) Temos que tentar mostrar como se
geram socialmente as formas da cultura” (2000, p.127). Isso é o que venho tentando
fazer nesta dissertação, quando perpasso aos aspectos do contexto atual, alguns
episódios que constituem a sua história social e seus desdobramentos.
Para Barth questões acerca da cultura e da sociedade, enquanto categorias
utilizadas nas análises antropológicas, estão marcadas por pressupostos questionáveis de
holismo e integração. Vemos a cultura como algo que possui muitos detalhes e que é
imensamente emaranhada, o etnógrafo deve dar conta de entendê-la e explicá-la, por
outro lado existe um ideal de ousadia ao se abstrair e revelar a essência subjacente a tais
detalhes e emaranhados. Na perspectiva do autor é mais proveitoso explorarmos os tipos
e graus de conexão observados no campo da cultura, que se apresenta em diferentes
sociedades, sabendo que “não há cultura que não seja um conglomerado resultante de
acréscimos diversificados” (Linton 1936, citado por Barth 2000, p. 109).
Em “A Palavra dos Dogon”, publicado em Social Sciences Information n° 7, N.
6 (1968, 55, 61), pela primeira vez como uma resenha do famoso texto de Calane –
Griaule, “Etnologie et Langage, la Parole chez le Dogon”, Victor Turner, a propósito de
sua extensa e bem fundada etnografia realizada na década de 50 entre os Ndembu
declara:
“Na realidade encontrei entre os Ndembu tão pouca coerência no nível
da cultura abstrata que tendi a considerar o sistema [social] como
principalmente resultante de interesses concretos e volições interativas
ao invés de algo existente ‘lá fora’ em um mundo de crenças e valores.
Tendi, antes a considerar estes últimos como flutuando livremente e
desencaixados. Esta mesma qualidade permitiu-lhes mais prontamente o
130
serem recombinados em Gestalten que variavam segundo a situação, de
acordo com os objetivos e desígnios de facções e grupos de interesse
‘no terreno’. Em resumo, vi a ação social como sistemática e
sistematizadora, mas a cultura como mero estoque de itens desconexos.
A ordem vinha do propósito e não da connaissence”.
Parafraseando o etnógrafo, “este ponto de vista” alerta o próprio Turner sobre si
mesmo, “é obviamente extremo e portanto falso, mas”, tal como a ele ocorreu,
“possibilitou a mim, no campo, voltar a minha atenção para os processos sociais, para o
movimento e o conflito nas relações concretas”, tal como afigurou-se estrategicamente
como dispositivo de estranhamento permitindo colocar sob descrição o que de outro
modo poderia ter se perdido no emaranhado de considerações culturalistas precipitadas.
Integrantes dos diferentes grupos sociais agem e reagem a partir da sua
percepção de mundo, e impregnam-no com os produtos de suas construções culturais.
Tais construções são sustentadas por meio do consentimento mútuo, incrustado nas
representações coletivas, e também por causas materiais. Barth (2000) argumenta que
possivelmente são determinados processos sociais que levam ao estabelecimento de
padrões culturais. Ademais, há uma gama de padrões parciais, além dos tidos como
fundamentais, que se sobrepõem e se interferem mutuamente.
A construção cultural que as pessoas fazem acerca da realidade, não surge de
uma só fonte, nem é monolítica. Os atores sociais fazem parte de diferentes universos e
constroem mundos diversos entre os quais se movimentam. Para Barth, ao estudar
sociedades complexas o pesquisador deve procurar a interdependência entre os fatores
que fazem parte de tais conglomerados.
Tanto o desenvolvimento da etnicidade com base em organização política,
quanto movimentos de massa fundamentados em identidades étnicas são recentes.
Nesse sentido, geralmente há emergência de movimentos étnicos em contextos políticos
coloniais ou do Estado-nação. Lutas e migrações conectam diferentes grupos ao redor
do mundo, levando categorias estabelecidas em períodos coloniais a estarem ativas até
os dias atuais (Eriksen, 1993). A relação entre identidade étnica e nacionalismo também
é bastante complexa, mesmo porque, ambos os termos possuem uma importante
variedade de sentidos.
O nacionalismo assinala similaridades culturais, que reverberam na delimitação
de fronteiras entre o grupo “nacional” e os “outros”, que podem ser considerados
outsiders. Em relação ao nacionalismo, sua marca distintiva será, por definição, sua
131
relação com o Estado. Muitos grupos étnicos não demandam o comando de um Estado,
mas algumas fronteiras políticas ligadas à questão do nacionalismo podem ter fronteiras
culturais que coincidam com elas. A partir do momento que lideranças políticas de
caráter étnico demandam políticas nesse sentido, o movimento passa a ser nacionalista e
assim deve ser considerado. (ERIKSEN, 1993).
Eriksen expõe que seguindo a integração de populações chamadas tradicionais
nos modernos Estado-nação, há também a integração de diversos aspectos de seus
universos simbólicos. Tais pessoas se tornam mais semelhantes em termos de
representações e práticas sociais. Assim passam a refletir mais e objetivar seus estilos de
vida como uma cultura ou uma tradição, se tornando um povo, no sentido de terem tanto
um senso abstrato de comunidade, quanto uma história compartilhada. As sociedades
complexas contemporâneas parecem implicar processos de identidade e de manutenção
de fronteiras que são sentidas de maneira mais aguda e que são modeladas de forma
mais auto-consciente do que em outros tipos de sociedades.
Devemos levar em conta que, apesar de as identidades, os grupos étnicos e suas
histórias serem “criadas”, seguindo a perspectiva de Eriksen, é necessário ter em mente
que são criadas sob determinadas circunstâncias históricas, por atores estratégicos ou
como conseqüências não intencionais de determinados projetos políticos. Nesse sentido,
a construção de categorias étnicas terá lugar em espaços restritos, onde algumas das
novas categorizações serão viáveis, enquanto outras não. A história cultural dos povos
pode iluminar as origens da etnicidade contemporânea e não devem ser vistas
meramente como aspectos do presente.
O autor cita o trabalho de Benedict Anderson acerca do nacionalismo e sua
definição de nação como sendo uma “comunidade política imaginada”, e ressalta o fato
de que não devemos pensar que “imaginada” signifique “inventada”, mas sim que
signifique que seus membros constituintes se imaginam como integrantes de uma
mesma comunidade, num espaço onde supostamente vivem em comunhão. Anderson
argumenta que o nacionalismo é derivado da combinação entre legitimação política e
poder emocional. No nacionalismo as organizações políticas podem ter caráter étnico. O
Estado-nação forja um importante aspecto de sua legitimidade política ao convencer as
massas que as representam como unidade cultural. Dessa maneira não é possível
imaginar um nacionalismo não-étnico (ERIKSEN, 1993, p. 100, 101).
Anderson ressalta que após a Segunda Guerra Mundial, todas as revoluções
triunfantes se basearam em termos nacionais e que na atual conjuntura política a
132
nacionalidade é vista como o valor mais universalmente legítimo. Assim como Eriksen,
o autor também considera termos como nação, nacionalidade e nacionalismo, altamente
difíceis de definir e analisar. Em seu livro “Comunidades Imaginadas – reflexiones
sobre el origem y la difisión del nacionalismo” (2006) procura traçar, a partir da
perspectiva da emergência histórica do nacionalismo, uma interpretação “mais
satisfatória” do que considera uma “anomalia”.
Define por nação: “uma comunidade política imaginada como inerentemente
limitada e soberana” (Anderson, 2006, p. 23). Considera-a imaginada, pois por menor
que seja a nação, é bastante provável que seus membros não se conheçam entre si e
talvez nem mesmo tenham ouvido falar a respeito uns dos outros, mas ainda assim
consideram e vivem com a imagem de sua comunhão.
Podemos pensar nos “estados nacionais” como construções sociais mais novas e
históricas; a nação por sua vez remete a um passado imemorial e na possibilidade de
buscar um futuro ilimitado. Este ponto de vista propõe que o nacionalismo seja
entendido a partir de seu alinhamento aos grandes sistemas sociais que existiam antes de
seu aparecimento, de onde emergiu por oposição. Apesar de muitas nações se
imaginarem como antigas, na verdade são modernas.
O nacionalismo enfatiza solidariedades entre pobres e ricos, entre despossuídos e
capitalistas. Sua ideologia tem como base um princípio de inclusão e exclusão política
que segue as fronteiras da nação, que comporta categoria de pessoas definidas como
membros de uma mesma cultura. O uso de símbolos étnicos no nacionalismo presumidos como típicos -, intentam estimular a reflexão de sua própria distinção
cultural e desse modo criar o sentimento de nacionalidade. O nacionalismo reifica a
cultura no sentido em que habilita as pessoas a falarem dela como se fosse constante.
Sob a perspectiva de Anderson (2006) a nacionalidade ou “qualidade de nação”
são aspectos culturais de uma determinada classe. A criação de tais artefatos, aos fins do
século XVIII, se deu em conseqüência de um complexo arranjo de forças históricas.
Uma vez criados se tornaram “modulares” e puderam ser transplantados para diversos
campos sociais, mesmo que cada terreno tivesse grandes diferenças políticas e
ideológicas. Assim nações seriam inventadas em locais onde antes não existiam.
Todas as comunidades seriam imaginadas e deveriam distinguir-se pelo estilo
pelo qual são imaginadas. Cada nação se imagina limitada, pois possui fronteiras finitas,
ainda que mais ou menos flexíveis, nas quais se encontram outras nações. A despeito de
desigualdades e explorações mais ou menos incisivas, a nação é concebida como tendo
133
um profundo e horizontal companheirismo. “Em última instância, é esta fraternidade
que tem permitido, durante os últimos séculos, que tantos milhões de pessoas matem e,
sobretudo, estejam dispostas a morrer por imaginações tão limitadas” (ANDERSON,
2006, p. 25).
No nacionalismo, como nos movimentos étnicos, aparecem mecanismos de
manutenção de fronteiras. Da mesma forma estão presentes em ambos usos inventivos
da história que criam uma impressão de continuidade. A discrepância entre ideologia
nacional e prática social é tão aparente no caso da nação quanto no caso de outros
grupos étnicos, o que é peculiar ao nacionalismo é sua relação com o Estado e sua
abrangência que atinge larga escala (ERIKSEN, 1993).
O contexto histórico onde emerge o nacionalismo o coloca como uma ideologia
que surge em reação à industrialização e ao deslocamento de populações de suas
comunidades locais. A industrialização gerou uma grande mobilidade geográfica e um
vasto número de pessoas se tornou participante de um mesmo sistema econômico e
posteriormente político. Sob tais condições tornou-se necessário estabelecer uma
ideologia capaz de criar coesão e lealdade entre indivíduos que participavam de
sistemas sociais tão amplos. O nacionalismo era capaz de atender a tais necessidades. A
existência de uma comunidade imaginada baseada em uma cultura compartilhada,
embebida no Estado, era bastante funcional para o próprio. Em contrapartida, a noção
de nacionalismo parece oferecer segurança e estabilidade num momento de
fragmentação social (ERIKSEN, 1993).
A imprensa aparece, na análise de Anderson, como um elemento de fundamental
importância e uma das bases para o estabelecimento de uma consciência nacional. A
imprensa escrita - ao evocar elementos comuns ou familiares aos seus integrantes,
remetendo a lugares e a questões sociais relevantes ou sedutoras -, proveria a
confirmação da solidez daquela comunidade imaginada. Oferece “el embrión de la
comunidad nacionalmente imaginada” (2006, p. 73) ao dar maior consistência à
linguagem e permitir a construção de uma imagem de antiguidade daqueles grupos
sociais, que seria fundamental para a idéia subjetiva de nação.
Recentemente, meios de comunicação como jornais, televisão e rádio têm sido
elementos importantes na padronização de representações e linguagens, bem como os
meios de transporte modernos, que facilitam a integração das pessoas em vastos
sistemas sociais, levando-as a se sentirem como membros de uma nação. Ao fazerem
134
parte de uma nação, estão, como no caso dos grupos étnicos, em oposição aos outros
(ERIKSEN, 1993).
Seguindo a perspectiva abordada, acredito que podemos dimensionar a
importância da fundação e das edições periódicas da West Indian Gazette, o principal
jornal inglês escrito e dirigido à população negra no período pós-guerra39. Não a
considerando como um episódio de um passado remoto, mas sim como algo com força e
possibilidades de, nesse sentido, dar coesão e representar a união daquelas pessoas,
desmobilizadas como grupo, constrangidas, ameaçadas e perseguidas pelos grupos
ingleses.
O nacionalismo pode ainda reforçar ou impor determinadas ideologias. Baseado
mais nos “direitos civis” do que nas raízes culturais compartilhadas. Certas categorias
de pessoas ficam em uma zona “cinza”, entre as categorias étnicas e a nação. Ao serem
politicamente conduzidas por determinados grupos, algumas nações trazem à tona o
conflito entre dominantes e dominados (ERIKSEN, 1993).
A modernização e os sistemas de Estado-nação são conjunturas que têm criado
condições para a emergência novas formas de etnicidade, as “minorias étnicas” e os
“povos indígenas”. As minorias étnicas são definidas como “um grupo numericamente
inferior ao do resto da população em uma sociedade, este não é politicamente dominante
e pode ser reproduzido como uma categoria étnica” (ERIKSEN, 1993, p. 121). Os
termos utilizados são relativos e relacionais, uma minoria só existe “em relação a” um
grupo majoritário e da mesma sociedade, podendo ser maioria aqui e minoria acolá.
Como é o caso dos imigrantes, minorias nos países que os recebem, mas, muitas vezes e
provavelmente, maiorias nos seus países de origem (1993).
A identidade nacional, como coloca Stuart Hall, é um aspecto da vida social que
se forma e transforma a partir das representações (2005, p. 48). No carnaval de Notting
Hill, a identidade que está sendo apresentada, articulada e rearticulada constantemente
(conscientemente ou não), e que por fim, cria parâmetros de identificação e
reconhecimento deste grupo em relação à sociedade em que está inserido e em relação
aos demais grupos com os quais interage, é uma identidade que se refere a um conjunto
de nações. Baseia-se e faz referência principalmente ao carnaval de Trinidad, mas que
acaba por criar e sustentar um elo entre as ilhas caribenhas, enfatizado no contexto
inglês.
39
Sherwood, 1999.
135
Naquela sociedade, ser west indian é representar simbolicamente e ser
reconhecido socialmente por meio de uma série de aspectos particulares e de sinais
diacríticos peculiares. A dança, a música e as fantasias utilizadas no momento da
expressão dramatizada representam empiricamente aquela “comunidade imaginada”,
que de maneira efêmera emerge com vultuosidade.
Em um primeiro momento os grupos - vindos das diferentes ex-colônias
britânicas - estavam dispersos, parecem ter se aproximado e integrado com maior
intensidade, por causa dos conflitos raciais dos anos 50. A partir daí, o grupo mais
coeso constituiria uma nova comunidade imaginada, referente a um local de origem que
não apenas uma nação. Comunidade, em determinadas situações, vista como derivada e
representante de uma mesma fonte.
Desde que algumas formas de variação cultural e étnica aparecem como
“questão fora de lugar” (matter out of place) para os nacionalistas, a variação étnica é
definida pelos grupos dominantes como um problema, como algo que se tem que
vencer, opor ou aturar, (cope with). Os Estados geralmente usam alguns tipos de
procedimentos para lidar com as minorias. No primeiro procedimento, o Estado pode
insistir na assimilação e, em último caso, levar ao desaparecimento da minoria; o Estado
pode optar pela dominação, que geralmente gera segregação e acarreta a remoção física
das minorias; na terceira opção o Estado opta por assumir uma política de
multiculturalismo, transcendendo a ideologia nacionalista baseada no caráter étnico da
população, então a cidadania e os direitos civis não estão sujeitos a identidades culturais
particulares (ERIKSEN, 1993, p. 123).
Como conseqüência da primeira alternativa, a assimilação – que aparece como
um processo bastante comum e à qual geralmente os grupos não podem escolher -,
muitas pessoas se tornam vítimas das classificações étnicas; a segunda opção pode levar
as minorias a se submeterem à subordinação ou a tentar coexistir pacificamente com o
Estado-nação, em alguns casos alguns grupos podem reproduzir suas identidades e
fronteiras de maneira informal; a opção final de saída ou êxodo da minoria é sempre
incompatível com as políticas do Estado. O autor ressalta que tais definições são típicasideais, e salienta que, empiricamente, as relações entre minorias e Estados podem ser
diferentes arranjos entre as opções descritas, levando à participação das minorias em
diversas instituições sociais, ao mesmo tempo em que reproduzem fronteiras étnicas e
identidades do grupo. Quando a integração é mais ou menos realizada, ela pode
conduzir a ações complementares de assimilação e incorporação étnica. Após a Segunda
136
Guerra Mundial e em algumas sociedades, status étnicos e assertivas do tipo “nós temos
nossa própria cultura” puderam conduzir a vantagens políticas para as minorias
(ERIKSEN, 1993).
Grupos migrantes tendem a ocupar posições mais baixas na divisão do trabalho,
conflitos entre imigrantes e trabalhadores domésticos (nacionais) podem levar a racismo
e distúrbios. O autor enumera cinco aspectos acerca das situações das minorias que têm
recebido maior atenção: a discriminação e desqualificação por parte da população
dominante; as estratégias de manutenção de identidade do grupo; as competições entre
os grupos, o conflito étnico e a mudança cultural por parte dos grupos imigrantes; e a
quinta alternativa e a menos estudada, se refere às relações entre o país de origem e o
país que recebe os imigrantes.
Nas sociedades modernas, cada indivíduo possui os mesmos direitos, por outro
lado, as minorias étnicas podem ser habilitadas a reterem suas identidades, o que dá luz
à questão acerca da igualdade e da diferença. A segunda e a terceira geração de
imigrantes nas cidades européias - não europeus considerados culturalmente distintos experimentam problemas de identidade causados pelo fato de “viverem duas culturas”,
podendo ser considerados anomalias, pois não se ajustam às categorias dominantes da
classificação social.
Quando diferenças culturais acarretam diferenças sociais contribuem para a
criação da etnicidade. A questão que se coloca é acerca dos usos que se fazem dos
símbolos culturais. Os recursos culturais de um grupo imigrante são transformados a
partir do contato com a cultura e o grupo dominante, levando a novos usos de aspectos
culturais do grupo, possibilitando a modificação de sua importância social (ERIKSEN,
1993).
Em muitas sociedades multiculturais, o Estado pode ser acusado de injustiça,
tanto quando promove a igualdade quanto quando promove a diferença. Freqüentemente
é negado às minorias o direito de serem iguais e às elites o direito de serem diferentes.
Eriksen ressalta que isto pode ser conhecido como o paradoxo do multiculturalismo.
Conseqüentemente os cidadãos não só tem o direito de “ter uma cultura”, como muitas
vezes são positivamente forçados a se adornarem com marcas étnicas, podendo haver
tratamento desigual baseado em distinções étnicas.
No que diz respeito aos imigrantes urbanos, as migrações e situações sociais das
quais fazem parte criaram condições para a articulação da etnicidade. A dicotomização
étnica e os processos de manutenção de fronteiras são variáveis presentes em todos os
137
casos. Muitas comunidades locais estão integradas em grandes sistemas globais, num
nível político, econômico e cultural.
O autor ressalta que, a existência das anomalias ou categorias étnicas liminares,
a existência de grupos que estão betwixt and between, que não são nem isso nem aquilo,
ou um pouco de ambos, relembram que a manutenção da fronteiras entre os grupos é
problemática. O pertencimento a determinado grupo pode ser situacional, pode ser
atribuído pelo grupo dominante ou o grupo pode estabelecer uma categoria étnica
separada. Além disso, o critério de pertencimento a grupos não-étnicos é
situacionalmente relevante em qualquer sociedade e nas sociedades modernas
complexas eles proliferam e podem ser identificados com múltiplas identidades. Formas
diferentes de lealdades e pertencimento a grupos podem ser congruentes com o
pertencimento étnico, ou podem cruzá-lo.
Na vida real, em geral as pessoas não se identificam exclusivamente a partir de
sua cidadania, há outros critérios relevantes. As pessoas são um pouco disso e um pouco
daquilo. As identidades sociais são negociáveis, fluidas, situacionais, analógicas ou
graduais e segmentarias, porém esta elasticidade não é infinita. Todas as categorizações
acerca de determinados grupos, para ter sentido, são feitas em relação aos outros.
Apesar de aparecerem nos mais diversos contextos, o meio urbano seria o lugar
mais fecundo para o aparecimento das identidades étnicas, pois ali se erigem
construções híbridas, bricoladas e heterogêneas, resultados do encontro de diversos
indivíduos, grupos ou redes, que desejam e geralmente encontram dificuldades em
mostrar aos outros o que realmente reivindicam. Também para Angier, a identidade
cultural tem um “caráter construído, processual e situacional” (2001). O autor aponta o
processo de “criatividade cultural” que se daria dentro das relações dialéticas de
determinados contextos e situações. Tais relações seriam um componente das atividades
culturais do mundo globalizado.
O carnaval de Notting Hill é uma construção social que, se entendida como uma
resposta às violências, com o decorrer do tempo, passou a fazer parte de uma agenda
política de demandas por direitos civis, por educação, pelo acesso a bens variados e
subsídios financeiros e organizacionais, inclusive para efetivar a realização da
festividade.
No contexto citadino, o objeto identitário se tornou um recurso político (e
possivelmente também econômico) de afirmação de um grupo (ou rede) em uma
sociedade moderna. Este carnaval teria se transformado na “expressão cultural de uma
138
nova declaração de identidade” (HALL). Os steel pans e as fantasias, trazidas do
carnaval de Trinidad, se tornariam grandes “emblemas identitários” do carnaval de
Notting Hill.
Os contextos aparecem como “base e precondição” (termos de Mintz e Price
1992, p. 82, assim utilizados por Angier) das trocas simbólicas, e é aí que as
identidades, que poderiam ser esquecidas ao longo do tempo, não deixam jamais de
modificar e “trabalhar” profundamente a cultura dos lugares em questão.
Na Inglaterra, que apresentava contornos estabelecidos ou desejados por conta
de uma identidade nacional, o aparecimento de novas culturas constituiu movimentos
contrários ao seu estabelecimento. Dificuldades, entraves, diálogos e conflitos inerentes
ao contexto, trouxeram à tona a resistência britânica em relação à diversidade cultural e
às pressões impostas pela diferença e pelas alteridades (HALL, 2005, p. 83). A
afirmação e a permanência dos grupos caribenhos - assim como de grupos provenientes
de diferentes fluxos migratórios -, colocaram em cheque antigas hierarquias e certezas
da identidade britânica.
As violências praticadas por grupos ingleses, explicitam o quanto tais grupos
desejavam a exclusão dos imigrantes. Hall identifica em atividades dessa natureza, o
que chama de “racismo cultural” e assinala que as comunidades afetadas poderem
produzir identidades defensivas e re-identificações relativas às culturas de origem
(2005).
O drama vivido à época e o estabelecimento desse ritual carnavalesco, se por um
lado revela a possibilidade - ou conquista - da permanência desse grupo no Reino
Unido, por outro, desnuda o fato de o sistema formal britânico permanecer tentando
regular, conter, dar forma a essa representação coletiva.
O constante ir e vir de pessoas, individualmente ou em grandes números, entre
nações e através das fronteiras, tornaram as sociedades contemporâneas, sociedades em
mudança permanente (HALL, 2005). As experiências de convivência em ambientes
múltiplos possibilitam formas altamente reflexivas de vida, levando as práticas sociais a
movimentos contínuos. Os deslocamentos, ao abalarem as estruturas - tidas como
estáveis - de um passado não distante, possibilitam novas articulações, como a criação
de novas identidades, novos sujeitos e a rearticulação daquelas estruturas.
A sociedade é algo em constante movimento, não seria diferente com a
identidade. Formada ao longo do tempo, permanece incompleta, sempre em formação,
“em processo”. “Tudo que dizemos tem um “antes” e um “depois” – uma “marge”’ na
139
qual outras pessoas podem escrever. O significado é inerentemente instável: ele procura
o fechamento (a identidade), mas é constantemente perturbado (pela diferença)”
(HALL, 2005, p. 38).
A estabilidade relativa dos significados parece ser o que se pretende em
situações como o carnaval estudado, os grupos buscam constantemente demonstrar uma
determinada identidade, onde deseja estabilizar o significado tanto daquele ritual,
quanto dos próprios grupos e atores que dele fazem parte, mesmo que haja posições
internas divergentes. Dentro dessa representação se estabelece uma identidade caribenha
na cidade inglesa.
Aspectos distintivos daquele grupo são reforçados ao contarem histórias sobre
suas pátrias de origem, (home, como pude escutar em suas falas, inúmeras vezes). Tais
histórias proporcionam e constroem, tanto para si mesmos quanto para os outros,
aspectos distintivos que os tornam identificáveis. Ao produzirem sentidos a respeito de
suas terras pátrias, contam histórias e estabelecem uma permanente conexão entre
passado e presente.
Em uma sociedade considerada multicultural, os grupos que participam do
carnaval devem apresentar aspectos distintivos, afirmando diferenças, peculiaridades e
exotismo, ao mesmo tempo em que apresentam, internamente, certa coerência e
homogeneidade. Nos desfiles, são apresentados características e sinais diacríticos
utilizados para exibirem tais identidades à sociedade. Músicas, danças, vestimentas,
performances caracterizam o estilo e remetem aos grupos sociais.
Na ocasião do desfile, entretanto, os grupos carnavalescos são submetidos a
critérios de avaliação sob os quais são julgados. Apresentam-se como peculiares,
referentes a uma ancestralidade comum que os diferencia de outros grupos presentes
naquela situação. Marcas de peculiaridade e diferença são reforçadas por critérios de
avaliação, que também pontuam referências à história do grupo (best historical group).
No caso observado, a maioria dos grupos é de origem caribenha, mas há também
outros grupos, entre eles os brasileiros, que para a ocasião do desfile se agregam em
torno das escolas de samba. Além dos (novos) ingleses, imigrantes de primeira geração
e seus filhos ou parentes, participam das apresentações brasileiros, europeus, cidadãos
ingleses de ascendência britânica e pessoas de diferentes nações.
Podemos tomar as considerações de Gustavo Lins Ribeiro, sobre sua observação
acerca do Carnaval Parade, Califórnia, como um reforço e estímulo ao lançar olhar
sobre carnavais, que acontecem por todo o mundo na atualidade. Esses locais são
140
cenários ótimos “para estudar a (re) construção de essencialismos e hibridismos típicos,
por sua vez, dos processos de (re) construções identitárias” (1998, p. 246).
Para Ribeiro a identidade nacional brasileira, em um contexto como o
apresentado, se transforma em identidade étnica, onde também os participantes
brasileiros colocam os grupos integrantes daquele carnaval como grupos étnicos. Essa
situação, assim como a londrina, faz com que a alteridade dos grupos se imponha como
fator fundamental para a participação no desfile.
Tais lugares sociais agregam brasileiros que estão envolvidos em suas vidas
cotidianas e na situação de imigrantes. As agremiações têm um papel importante na
construção e na reprodução de imagens sobre o Brasil, bem como apresentam uma
reinvenção ou reinterpretação da identidade de brasileiro dentro de parâmetros
britânicos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As observações apresentadas nessa dissertação dizem respeito a dois carnavais,
mas se atêm principalmente a um deles, um carnaval majoritariamente de estilo
caribenho. Realizado em Londres desde os finais dos anos 50, atualmente agrega
diferentes grupos étnicos, que se articulam e relacionam naquela metrópole urbana.
Em certo período da história mundial, países como a Inglaterra invadem e
colonizam inúmeros outros territórios. Impõem-se, saqueiam, pilham, dominam política
e economicamente, desestruturam e reestruturam, a partir da interação com as
populações locais, as sociedades nas quais se inserem.
As colonizações européias, ao longo de diversos territórios no mundo, levaram à
coexistência grupos colonizadores e contingentes populacionais locais. Em seguida, a
recorrente utilização de mão de obra escrava, insere em diferentes localidades, grupos
majoritariamente formados por negros de origem africana.
Os grupos nativos se somam, agregam, re-combinarm, imbricam, de formas
variadas, aos europeus e africanos. Novos tipos de relações sociais, trocas, disputas,
conflitos, sociabilidades se apresentam nas diversas sociedades receptoras e a mesma
coisa ocorreu com rituais e simbolismos. Floresceram novas formas culturais, frutos do
encontro e do confronto, permanentemente re-combinadas e atualizadas.
141
No período pós-colonial, é inescapável que países europeus se vejam obrigados
a lidarem com as conseqüências de suas invasões e apoderamentos. Entre os
desdobramentos desses longos processos históricos, figuram os fluxos migratórios, mais
ou menos intensos, que partem de diferentes (ex) colônias em direção às cidades
metropolitanas.
Governos e grupos metropolitanos procuram, mais cedo ou mais tarde e de
diferentes maneiras, controlar e regular a entrada e o estabelecimento dos grupos
estrangeiros no seu território e sociedade. No processo de influência mútua dos grupos
imigrantes e locais, nas conjunturas das grandes cidades, ambos aprendem, mesmo que
forçadamente, a lidarem uns com outros - em relação às formalidades legais, e também
no que concerne aos contatos empíricos travados nas relações e situações quotidianas.
Novamente
foram
geradas,
diferentes
formas
de
sociabilidade
e
complementaridade. Desde então (ou desde sempre?) as relações sociais entre os
ingleses e os estrangeiros, bem como a relação do governo Inglês frente à imigração e
aos grupos imigrantes segue se modificando.
Os carnavais observados, tanto no Brasil quanto na Inglaterra, revelam o saldo
(não estanque) das interações, fricções, conflitos, arranjos, entre os diferentes grupos
implicados nas colonizações. Situações geradas naquela época são percebidas na
atualidade. Os carnavais estudados explicitam, em sua forma performática e observável,
o desdobrar de tais processos em uma brilhante roupagem contemporânea.
No Brasil, o carnaval aparece como uma articulação entre elementos culturais
europeus, africanos e eventualmente indígenas. Em Trinidad, segundo a literatura e as
narrativas (por mim escutadas em Londres) ocorre de maneira semelhante, guardadas as
peculiaridades dos locais e das populações envolvidas. Ao ser “levado” para Londres,
estabelece-se como marca de uma população e com o decorrer do tempo, agrega grupos
que representam, naquela situação, diferentes nacionalidades. As novas relações e
situações, presentes em tal conjuntura, abarcam indivíduos, grupos minoritários e
majoritários e poder central. Mais uma vez a mistura provoca formas culturais inéditas.
Um acontecimento que me proporciona reconforto e acolhimento, mas também
indagações, se dá quando um dos integrantes da Mangrove dirige-se a mim e diz:
“pronto, agora a sua banda é a Mangrove”. Havia transposto aquela linha imaginária
que separa o “nós” do “eles”, de certa forma era também parte “deles”, ainda que ao
mesmo tempo, “outro”. Não sou caribenha, tampouco explicitamente negra, dessa
maneira o caso deixa claro a permeabilidade da fronteira étnica.
142
O que os faz considerarem que, ainda que de maneira fugaz, fiz (ou faço) parte
do grupo? A participação nos ensaios, a observação durante a confecção das fantasias,
estar presente durante a competição entre as steelbands, participar do desfile junto à
banda naquela segunda-feira de carnaval, ser nativa de um país colonizado, que também
apresenta um carnaval grandioso. Detalhes e peculiaridades que me permitem tal
integração.
Acredito que o material aqui disposto se integra no sentido de tornar explícitos
os caminhos por mim percorridos do começo ao final da pesquisa, mostrar
especificidades encontradas nos campos observados, auxiliar na compreensão dos
rituais carnavalescos no Rio e em Londres e abordar a problemática acerca dos
diferentes grupos étnicos na metrópole inglesa.
As experiências relatadas se somaram em um grande tirocínio em relação à
realização da pesquisa de campo etnográfica e suas nuances, revelando diferenças no
realizar pesquisas etnográficas, em meio a grupos familiares, ou em meio a grupos
quase completamente desconhecidos. Percebo, ainda, a importância do afastamento dos
campos observados e dos atores sociais neles envolvidos, o que permite ao pesquisador,
se concentrar nos dados obtidos, na literatura e na análise do problema estudado e, por
fim, na escrita do texto.
A coleta de materiais variados, a tentativa de organizá-los e analisá-los, acaba
por deixar lacunas, dúvidas e imprecisões. Indagações apresentadas no curso da
pesquisa desdobram-se e necessitam de maior aprofundamento, ressaltado a
importância de investigações adicionais acerca do tema.
A possibilidade de realizar uma continuidade no trabalho, indo também para
Trinidad, a fim de poder contrapor o escopo aqui prenunciado, melhor e mais
apropriadamente, estaria em uma tese de doutorado.
143
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– Tom Vague – It happened here. Vague 30: Ladbroke Grove 1998. Londres.
1998.
2. MAS Notting Hill – documents in the struggle for a representative
and democratic carnival 1989/90. Compilada por Michael La Rose. New
Beacon Books e People War Carnival Band. Londres. 1990.
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3. Steel Pan History & Heritage Trinidad All Steel Percussion
Orchestra (T.A.S.P.O.) performing at the Festival of Britain – 26th July,
1951, the first steelband to visit England! Londres.
4. PanPodium – The Official Magazine of the British Association of
Steelbands. Londres.
Publicações (issue):
11 – verão 2005
12 – primavera 2006
13 – verão 2006
5. Soca News. Londres. Agosto de 2006.
6. Time out London. The essential Guide to Notting Hill Carnival
2006. Londres. 2006.
7. Matchbox – West London. Publicação (issue) 03 agosto
/setembro. Londres. 2006.
Revista: “G.R.E.S. Unidos do Viradouro”. Ed. Ala dos Artistas, 2001.
Revista Ensaio Geral – informativo da Liesa:
Ano X – n° 15 – setembro 2005
Ano X – n° 16 – dezembro 2005
Ano VII – n° 9 - setembro 2002
DICIONÁRIOS E ENCICLOPÉDIAS:
Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua
Portuguesa, 2ª ed rev e ampliado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997
Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa/ Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira. 3ª edição. Curitiba: Positivo, 2004.
Bailly, Dic de Grego-francês.
Encyclopediae Britannica, volume I. The University of Chicago, 1977.
SITES PESQUISADOS:
µwww.liesa.com.br§
µwww.paraisosamba.co.uk§
µwww.unidosdoviradouro.com.br§
µwww.mynottinghill.co.uk§
µwww.theguardian§.
µwww.bbc.co.uk§
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