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O detetive como produto da ficção de detetive clássica, do romance Hard-Boiled e do terror em Mr. Mercedes, de Stephen King Diego Moraes Malachias Silva Santos UFMG, Graduando RESUMO: Mr. Mercedes, de Stephen King, apresenta um detetive que se enquadra nos moldes crus e realistas do subgênero hard-boiled. Em certa reverência à ficção de crime clássica, o detetive também apresenta feições de investigadores analíticos e cerebrais como Sherlock Holmes e Auguste Dupin. Ao que o romance progride, King avança nesse trajeto literário e desenvolve a narrativa à luz do thriller policial. Ao final, contudo, Mr. Mercedes apresenta um fechamento que nos remete ao início, simultaneamente ressaltando suas qualidades como romance criminal e nos convidando a uma leitura que o conecta aos livros de terror de King. O terror e o crime se entremeiam em Mr. Mercedes, caracterizando-o como fruto tanto da tradição da ficção de crime quanto da identidade de King como escritor de terror. Palavras-chaves: Stephen King; terror; ficção de crime. ABSTRACT: Meeting the expectations for a novel advertised as hardboiled, Stephen King’s Mr. Mercedes presents a detective who fits the crude and realistic narrative of that subgenre. In a tribute to classical crime fiction, the detective also displays the analytical and rational features of Sherlock Holmes and Auguste Dupin. As the novel progresses, King moves forward in his literary trajectory, developing Mr. Mercedes in the manner of a crime thriller. In the end, however, the novel presents a conclusion that refers to its beginning, simultaneously highlighting its qualities as a crime piece and inviting us to a reading connected to King’s horror novels. In his work, horror and crime are interposed, which hints that Mr. Mercedes is not only product of a tradition of crime fiction, but also of King’s customs as an author. Keywords: Stephen King; horror fiction; crime fiction. 398 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 Há um consenso crítico de que a ficção de detetive clássica tem como centro a busca interna pela verdade. O romance hard-boiled, por outro lado, recorre a um realismo cínico e vê crimes através de lentes obscuras, que revelam uma atmosfera de corrupção. Em Mr. Mercedes, um romance divulgado como hard-boiled, Stephen King se serve também de outras tradições da ficção de crime, mas estrutura o detetive com base em uma terceira alternativa: uma individualidade subjetiva que nos remete principalmente às suas histórias de terror. O detetive aposentado William Hodges se encontra em um ciclo do qual escapar é essencial, porém impossível. O conflito principal é influenciado, mas não é definido pela política defeituosa e pela justiça vã do romance hard-boiled. E mesmo que Stephen King se inspire até mesmo na ficção de detetive clássica para formar seus personagens, a razão por trás da investigação principal não é epistemológica, mas pessoal. O interesse principal do detetive Hodges não é encontrar a verdade, mas sim escapar de um ciclo de tormentos. Mr. Mercedes tem como fundação os detetives clássicos e os do romance hard-boiled, mas seus personagens e conflitos principais se mantêm autocentrados como nas narrativas de terror de King. As ficções de terror e de crime frequentemente caminham juntas. A natureza transgressora de atividades criminais é inseparável de seus horrores, e, em histórias de terror, crimes e seus resquícios evidenciais podem ser as migalhas de pão que guiam o leitor até a revelação de segredos sinistros. O terror de King costuma apresentar crimes que são uma janela para o passado ou para a verdadeira identidade dos personagens. O iluminado (1977) conecta o horror de um hotel assombrado a crimes cometidos por gângsteres durante o início do século vinte. Em Rose Madder (1995), o detetive Norman Daniels usa de sua experiência para caçar sua esposa, fornecendo à narrativa elementos de thrillers policiais. Reciprocamente, o horror está também presente na ficção de crime de King. O homem do Colorado (2005) é um relato de um crime sem solução que convida leitores a considerarem explicações sobrenaturais. Mais explicitamente, em Joyland (2013), um fantasma e uma criança vidente ajudam a desmascarar um assassino em série. Não é surpreendente que Mr. Mercedes apresente traços do gênero do terror junto às suas características vindas do romance de detetive clássico e do hard-boiled. Apresentando-nos importantes cartas e mensagens codificadas, Mr. Mercedes funciona nos moldes do que Tzvetan Todorov identifica como as “duas histórias” da ficção de detetive clássica, uma ideia que Peter Hühn O detetive como produto da ficção de detetive..., p. 397-410 399 (1987) usa para explicar o ato da leitura nesse subgênero. Hühn explora conceitos de narratividade ao examinar romances de detetive como um sistema de leitura e escrita, os ligando à interpretação de signos. Ele baseia sua análise nas duas histórias de Todorov: a história do crime, “escrita” pelo criminoso, e a história da investigação, que consiste na leitura de um crime. “No romance de enigma”, Todorov explica, “há portanto duas histórias: uma ausente mas real, a outra presente mas insignificante” (1971, p. 68). A primeira é o crime e a segunda é a investigação: são opostas, mas complementares. Visto que uma possui traços dos quais a outra carece, elas entrelaçam ação e raciocínio, a atrocidade de um crime e o conforto intelectual de uma solução. Hühn as analisa em relação ao detetive leitor, um papel que Hodges cumpre bem no início de Mr. Mercedes quando ele estuda uma carta escrita pelo assassino. Mr. Mercedes se baseia na ficção de detetive clássica como descrita por Hühn e Todorov, ao apresentar o método usado por Hodges para ler, detectar pistas e traçar um perfil do escritor com base na linguagem. Em sua leitura atenta, Hodges não apenas busca evidências (por exemplo, informações restritas que comprovariam que o real assassino do Mercedes escreveu a carta), mas também examina minuciosamente o texto, listando características linguísticas como parágrafos de uma só frase, metáforas envolvendo beisebol e expressões sofisticadas (KING, 2014, p. 34). Da investigação dessas pistas, transformada em leitura, Hodges traça o perfil do escritor. Adiante, o narrador acrescenta, relatando o progresso do detetive: “Além disso, [o assassino] é astuto. Sua escrita é cheia de falsas impressões digitais” (KING, 2014, p. 35, tradução minha). Estas “impressões digitais” são o que Hühn descreve como pistas que apontam para uma falsa leitura, características da primeira história na ficção de detetive clássica. Segundo o crítico (1987, p. 454), ao cometerem (ou escreverem) um crime (ou história), os criminosos (escritores) organizam pistas (signos) que apontam para uma explicação (leitura) equivocada. Apenas por meio de uma leitura detalhista e astuta é que detetives estabelecem a distinção entre evidências reais e falseadas. Essas são as características da primeira história da ficção de detetive clássica, em Mr. Mercedes representadas pela carta na qual o assassino narra seus crimes e admite a culpa. O crime não resolvido é “um signo ininterpretável, ou seja, um que resiste à integração ao sistema de significados estabelecidos por uma comunidade” (HÜHN, 1987, p. 453, tradução minha). Hodges tenta incorporar esse signo ao “sistema de significados”, estabelecendo, 400 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 assim, sua leitura. Ele lê a carta do assassino como um detetive clássico leria a primeira história, a do crime. Exercendo seu papel tanto de leitor quanto de detetive, figuras análogas para Hühn, Hodges estuda a carta, desenvolvendo o tipo de investigação que, para Todorov, caracteriza a segunda história. Contudo, mesmo que a carta nos remeta à ficção de crime clássica, em Mr. Mercedes as duas histórias se estabelecem de uma forma que foge das regras típicas desse subgênero. Geralmente há uma distância temporal entre o crime (história um) e a investigação (história dois). Não é convencional que crimes sejam cometidos após o início das averiguações de um crime anterior, e, mesmo que sejam, não apresentam ameaça ao detetive. Em Mr. Mercedes, porém, as duas histórias são unidas: é a estrutura do romance hard-boiled,1 “que funde as duas histórias ou, em outras palavras, suprime a primeira e dá vida à segunda” (TODOROV, 1971, p. 68). O detetive e o assassino estão inicialmente separados, mas a distância entre eles é encurtada à medida que a história avança e o assassino comete crimes adicionais. Ao fim do romance, Hodges encontra até mesmo a casa do assassino, tendo acesso a pistas frescas que o guiam até o clímax do enredo, no qual ele e seus assistentes se dirigem até uma apresentação onde o assassino planeja detonar um explosivo. O objetivo prático da investigação não é desvendar um mistério intelectualmente desafiador que pertence ao passado, mas apreender o criminoso e evitar delitos futuros. O conteúdo em Mr. Mercedes aproxima o detetive e o criminoso, a investigação e os crimes, e a forma causa o mesmo efeito, pois o romance é narrado no presente. O tempo verbal não apenas conecta o leitor e a narrativa, encurtando a barreira entre realidade e ficção, mas também une as histórias número um e dois. A investigação se dá logo após o crime, e, frequentemente, como no caso da detonação da bomba, acontece antes mesmo que os crimes possam ser cometidos. Mr. Mercedes, contudo, não é integralmente hard-boiled. Em sua resenha para o New York Times, Megan Abbott identifica que “a premissa de Mr. Mercedes contém as marcas registradas [do romance hard-boiled]”, mas nos alerta que “logo, em grande e pequena escalas, [King] rejeita e substitui os aspectos mais enferrujados do gênero” (2014, tradução minha). Abbott interpreta o chapéu fedora de Hodges como 1 “Thriller” no original de Todorov e “romance noir” na tradução de Claudia Berliner. O detetive como produto da ficção de detetive..., p. 397-410 401 um sinal de tributo. Dado ao detetive por sua cliente Janey Patterson, cuja sedução e firmeza nos lembram de femmes fatales, o chapéu tem presença notável no início da história. Quando Janey inesperadamente morre usando o chapéu, que é destruído em uma explosão, o romance toma um rumo diferente. Abbott (2014) escreve: “O peso simbólico e o notável desaparecimento do fedora assinalam tanto um reconhecimento afetuoso pela tradição do hard-boiled quanto um afastamento” (tradução minha). King, portanto, estabelece laços com o hard-boiled para em seguida cortá-los. Poderíamos esboçar outras conexões entre Mr. Mercedes e a ficção de crime, mas algumas se mostrariam falaciosas. O estilo parece tão cru e direto quanto o de Raymond Chandler, e o charme sombrio inicial e a rotina melancólica de Hodges talvez nos façam imaginá-lo como um Philip Marlowe ou até um detetive clássico. Essas impressões, contudo, são fruto de um argumento superficial. O texto simples e bruto de frases como “‘Você esqueceu uma coisa, otário’” (KING, 2014, p. 167, tradução minha) e “Os olhos de Frankie se moviam para lá e para cá, mas nada mais se mexia. Coitado”2 (KING, 2014, p. 253, tradução minha) estariam conectados com o estilo áspero que Chandler (1950) defende. O problema desse argumento é que a voz do narrador de King em Mr. Mercedes é apenas algo comum à escrita do autor. O tom direto é uma das marcas registradas de King. Em Dança da morte ele escreve: “O Homem da Lata de Lixo virou a lata de cerveja. A cerveja entornou. Ele bebeu descontroladamente, fazendo seu pomo de Adão subir e descer como um ioiô” (KING, 1978, p. 737, tradução minha)3. Ao contrário de “O último caso de Umney”, um pastiche metaficcional das histórias de detetive de Chandler, Mr. Mercedes não contém “a voz de Philip Marlowe” (KING, 1993, p. 962), mas apenas a voz original de seu autor. Já há indícios, então, de que Mr. Mercedes, ao menos em um ponto de vista linguístico, não está distante dos romances de terror de King. O segundo argumento, que conecta a rotina descontente de Hodges aos detetives clássicos artísticos e parcialmente ociosos ou No original, respectivamente, “There’s something you forgot, sucka” e “[Frankie’s] eyes moved back and forth, but nothing else did. Poor Frankie”. 3 No original: “Trashcan Man upended the can. Beer gurgled out. He swallowed convulsively, his Adam’s apple going up and down like a monkey on a stick.” 2 402 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 aos investigadores misteriosos dos romances hard-boiled, é também problemático, já que não considera nem a natureza dessa indiferença ou desse ócio e nem a motivação da investigação que os move. A personalidade excêntrica e quase artística de Sherlock Holmes não justifica seu comportamento recluso e seu uso de drogas, mas os embelezam. Ao invés de desagradável, sua perspectiva de vida se torna carismática e ousada. O charme e a eloquência de Philip Marlowe não existem a despeito de sua indelicadeza, mas por causa dela. São lados opostos da mesma moeda: sua máscara de confiança excessiva. Hodges, a princípio, se encaixa no padrão. No início do romance, ele vê o tempo passar “com uma lata de cerveja na mão (...) [assentado] em sua poltrona” (KING, 2014, p. 15), mas depois, à maneira do romance hard-boiled, ele se encontra na cama de uma charmosa e rica mulher. O detetive, antes desanimado, é agora charmoso e cheio de vida. Não se passa, contudo, de uma ilusão. Como Abbott (2014) explica, a imagem inicial de Hodges, ligada ao hard-boiled, sucumbe com o simbólico chapéu fedora. Quanto à ligação entre Hodges e os detetives clássicos, é necessário lembrarmos que estes desfrutam do descanso e do ócio, mas os abominam por conta da falta de estimulo mental. Em “Os assassinatos na Rua Morgue”, o narrador de Poe descreve o homem “analista” como alguém que “obtém prazer até mesmo das ocupações mais triviais que estimulem seu talento. É fã de charadas, de enigmas” (1841, p. 41, tradução minha). Os cérebros dos detetives representativos da ficção de detective clássica são motores alimentados por quebra-cabeças, mas nada indica que mistérios em si fascinem Hodges, cuja motivação não é epistemológica. Após a destruição do chapéu fedora, Mr. Mercedes limita suas referências aos romances clássicos e hard-boiled, se ligando, ao invés, à ação pesada e ao suspense que nos remetem a thrillers criminais. A ação combinada entre mistério e suspense é central em Mr. Mercedes, e a distância entre o conhecimento do leitor e do narrador ou personagens é apresentada de duas maneiras. De modo característico da ficção de crime, nem tudo é revelado simultaneamente: fatos são camuflados ao olhar do leitor. Por exemplo, após ler a carta do assassino do Mercedes, Hodges entende que está sendo manipulado para desenvolver pensamentos paranoicos. É assim que o autointitulado Assassino do Mercedes (...) quer que ele pense. O detetive como produto da ficção de detetive..., p. 397-410 403 É o sorveteiro! Não, é o homem vestido de mulher no carro compacto! (KING, 2014, p. 28, tradução minha) É apropriado, então, que o assassino do Mercedes de fato seja o sorveteiro local. A menção aos pensamentos paranoicos de Hodges, como o leitor entende adiante no romance, é uma dica, uma pista cuja natureza se torna clara apenas quando a informação é entregue ao leitor. É apenas depois, contudo, que o detetive descobre o que o leitor já sabe. De maneira similar, mas inversa, o narrador esconde clara e propositalmente as características de alguns objetos, como os dispositivos do assassino, a “Coisa Um” e a “Coisa Dois”. A descrição da Coisa Dois em particular é deliberadamente misteriosa, principalmente se comparada à descrição da Coisa Um: A Coisa Um era um controle remoto modificado com um microchip funcionando como seu cérebro. [...] Se você a apontar para um semáforo a uns vinte ou trinta metros de distância, conseguirá trocar vermelho para amarelo com um toque, vermelho para amarelo piscando com dois e vermelho para verde com três. [...] A Coisa Dois era o único de seus dispositivos que havia retornado algum dinheiro. [...] Além do mais, sem a Coisa Dois o Mercedes não faria parte de toda a história. A boa e velha Coisa Dois. (KING, 2014, p. 104-106, tradução minha). Igualmente obscura é a menção à cadeira de rodas do assassino, que é parte de seu disfarce final: o assassino “volta ao seu Subaru, retira de lá um item maior (com certo esforço; ele mal cabe lá), o carrega até seu quarto e o deixa encostado na parede” (KING, 2014, p. 303, tradução minha). Apenas mais tarde o leitor será informado que o “item maior” tão ambiguamente descrito é uma cadeira de rodas, um elemento relevante ao plano do assassino. É mais frequente, contudo, que o leitor disponha de informações às quais o detetive e o assassino não têm acesso. Ao trocar pontos de vista, o romance faz com que o leitor esteja ciente tanto dos planos secretos do assassino quanto da investigação clandestina de Hodges. Nessa ironia dramática se estabelece o suspense: o detetive não 404 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 está ciente do que ocorre, enquanto o leitor está, o que gera desassossego e antecipação. O suspense nos remete aos thrillers criminais, outro gênero cujas características são como tijolos na construção do romance de King, especialmente em relação à ação intensa da segunda metade do romance. Mais que isso, até, o suspense convida leituras de Mr. Mercedes que reconheçam a influência do gênero de preferência de King: o romance de terror. No início de Mr. Mercedes, a motivação de Hodges é estabelecida em relação à cidade, sendo, portanto, tão urbana, social e política quanto no romance hard-boiled; mas, como outros aspectos do romance, essa motivação se evapora ao que a história progride. Abbott escreve: Fundamental ao romance hard-boiled tradicional é a ideia de que um homem, o detetive, é nossa vanguarda contra o mal. Mas King tem algo distinto em mente. Jogando o chapéu fedora para lá e para cá entre seus personagens – Hodges, seu assistente versado em computadores, Janey, todos os personagens “do bem” – ele decide que o chapéu cabe em todos, mas não fica bom em ninguém. (Tradução minha.) Ao adicionar aliados à narrativa do detetive solitário, Mr. Mercedes distancia Hodges dos detetives do romance hard-boiled e estabelece outro padrão. A primeira metade do livro apresenta um homem solitário em uma cidade sem nome que, na década de 1980, fora “infectada” por uma “modinha” envolvendo pessoas que se entretinham pagando sem-tetos para lutarem uns contra os outros (KING, 2014, p. 18, tradução minha). Ao que o romance avança, contudo, a cidade se prova apenas o pano de fundo para um assassino de motivações puramente psicológicas. O detetive, que não trabalha mais sozinho, é impulsionado por motivações de natureza similar. Hodges está preso em um ciclo que envolve uma necessidade pessoal. Após sua aposentadoria, ele se vê destinado a viver uma rotina enfadonha e sem novidades. Após deixar o emprego – parte de sua identidade – Hodges tenta entender seu papel em um mundo cujos costumes e cuja tecnologia parecem incompatíveis com o estilo de vida tradicional de um ludita. Primeiro ele imagina que “no fim das contas, poderia ser um Philip Marlowe” (KING, 2014, p. 118, tradução minha), mas mais à frente revela que a ideia é sem sentido, já que “o que o atrai é apenas não passar o dia todo em sua poltrona, assistindo TV e se O detetive como produto da ficção de detetive..., p. 397-410 405 empanturrando de salgadinhos” (KING, 2014, p. 118, tradução minha). Seu objetivo é menos idealista e mais relacionado a uma sobrevivência baseada em atividade, movimento e trabalho. Em tom debochado, ele considera “praticar jardinagem, observar pássaros, talvez até pintar. Tim Quigley tomou aulas de pintura na Flórida. Em uma comunidade de aposentados. [...] Pelo que diziam, Quigley tinha gostado bastante. [...] Até seu derrame, ao menos” (KING, 2014, p. 19, tradução minha). A mensagem é clara: Hodges como pintor ou jardineiro é um conceito cômico, já que sua identidade no início do romance é primariamente composta de seu papel como investigador. Deixar de ser um detetive, portanto, é abrir mão de sua própria individualidade. Se Hodges busca um retorno aos seus dias de detetive e se seu papel de detetive está ligado à sua identidade, parece lógico que sua investigação não cumpra um papel intelectual ou social, mas um fim pessoal. É como se ele não encontrasse prazer na solução de um mistério, mas no processo de encontrar tal solução. Após ler a carta do assassino do Mercedes, Hodges consegue dormir por tranquilas seis horas antes de sua bexiga o acordar. [...] [Então] ele dorme por mais três horas. Quando acorda, o sol já está entrando pela janela e os pássaros estão piando. Ele vai até a cozinha, onde prepara um café da manhã completo. Enquanto está jogando dois ovos bem fritos em um prato já cheio com bacon e torradas, ele para, assustado. Alguém está cantando. E é ele mesmo. (KING, 2014, p. 32, tradução minha) É o retorno às suas atividades que proporciona a Hodges algum propósito. Segundo Theodore Martin (2012, p. 168, tradução minha): [O romance de detetive] não adquire forma a partir da garantia de um fim, mas sim a partir da indefinida distância entre expectativa e conclusão, ou seja, a partir da lacuna que motiva uma espera, uma leitura. Essa espera, eu sugiro, é a objeto central da ficção de detetive. 406 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 Para Martin, as soluções raramente satisfazem os leitores, e o que permeia a ficção de crime é uma “longa espera,” vista tanto no processo de solucionar um crime quanto nos intervalos entre incessantes investigações. É como Fredric Jameson (1993), citado por Martin (2012, p. 166, tradução minha) descreve: “Os inveterados leitores de Chandler notarão que não o releem por conta das soluções dos mistérios, se é que, para início de conversa, elas solucionam qualquer coisa”. Soluções são apenas parciais, são mais próximas de um fechamento, que não necessariamente resolve, mas encerra. Em Mr. Mercedes, o foco de Hodges é o meio, não o final, o que faz com que nos perguntemos: o que será do detetive ao fim da investigação? Para Abbott, Mr. Mercedes carrega certa qualidade de redenção, mas lê-lo à luz das observações de Martin significa entender que tal redenção, mesmo se presente da maneira específica descrita por Abbott, é apenas momentânea. Ela cita Chandler, que reconhece que “[e]m tudo que chamamos de arte há uma qualidade de redenção” (1950, tradução minha). Em seguida, Abbott (2014, tradução minha) explica: Com essas palavras [Chandler] defende seu detetive Philip Marlowe, honroso e verdadeiro, seu “Galahad de segunda mão”. Nobreza por si só, contudo, não interessa a King. Ao final do romance, com seus personagens encarando a insustentável possibilidade de um segundo e ainda pior ato de violência sem sentido, King localiza sua “qualidade de redenção” em uma mulher com “cabelo grisalho e o rosto de uma adolescente neurótica” e também na família improvisada que Hodges, Jerome e a própria Holly formam. Hodges e Holly de fato se salvam, daí a “qualidade de redenção”. Ele supera tendências suicidas e ela encontra uma “família improvisada” que substitui laços verdadeiros, mas defeituosos. Essa “família”, contudo, se baseia no elo momentâneo da investigação. A caçada pelo assassino é o que une Hodges, Holly e Jerome, e por isso é possível questionar o que será do futuro quando os três perderem aquilo que os conecta. Na penúltima cena do romance, Holly pergunta a Hodges: O detetive como produto da ficção de detetive..., p. 397-410 407 “Bill, por que você está chorando? Está pensando na Janey?” Sim. Não. Os dois. “Estou chorando porque nós estamos aqui”, ele diz. “Em um lindo dia de outono que parece verão.” (KING, 2014, p. 435, tradução minha) À primeira vista, as lágrimas de Hodges parecem expressar o alívio do fim de uma investigação, mas ao considerarmos sua motivação psicológica e a visão de Martin sobre ficção de crime, é possível que Hodges chore para expressar desespero. Ele é, afinal, punido por seu comportamento imprudente durante sua investigação ilegal, perdendo o direito de trabalhar mesmo como detetive particular, de forma que lhe resta apenas um emprego de meio período, rastreando criminosos que quebram as regras da liberdade condicional. O pior aspecto desse emprego é que Hodges “pode quase sempre trabalhar em casa, no computador” (KING, 2014, p. 434). Ele então retorna à esfera doméstica, que não o satisfaz. Ele é reencaminhado à sua rotina de sofrimento e a seus pensamentos suicidas. Padrões cíclicos são comuns tanto na ficção de crime quanto nos romances de King. Martin (2012, p. 166) indica aspectos repetitivos da ficção de crime ao citar Franco Moretti, que defende que o fim dessas histórias “nos traz de volta ao início” (tradução minha). Talvez isso se deva à natureza do assunto, pois a criminalidade nunca deixará de existir, ou talvez se deva à forma das histórias, que apresentam uma revelação final que se refere ao mistério do começo. De qualquer maneira, parece existir uma força responsável por manter o status quo. Por exemplo, “O último caso de Umney”, de King, apresenta um detetive se esforçando para que sua vida não seja roubada pelo homem que a escreve. O fim do conto sugere um recomeço, pois Umney se torna autor e planeja retornar ao seu velho e previsível mundo, composto por dias repetitivos por cuja familiaridade o detetive anseia. Padrões cíclicos, contudo, não estão restritos à ficção de crime de King. Suas histórias de terror retratam a indistinção entre passado e presente, entre começo e fim. Em O iluminado e em sua continuação, Doutor Sono, vícios, medos e ansiedades são herança familiar, criando conflitos entre gerações e revelando a assombrosa e traumática presença do passado no presente. Em Dança da morte, o padrão cíclico é 408 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 exemplificado por Randall Flagg, um vilão que aparece em várias obras de King e que, depois de morto, renasce com os mesmos objetivos doentios e malévolos, representando a persistência do mal. Na série A torre negra (1978-2012), à maneira de Sísifo, um caubói vindo de uma linhagem morta viaja uma distância incalculável apenas para descobrir que a torre mágica que procura apagará sua memória e o enviará de volta ao passado para repetir sua jornada. Nesses romances, a natureza do horror está no encontro assombroso entre o velho e o novo, além de nos movimentos repetitivos traçados pelos personagens. Mr. Mercedes sugere um padrão cíclico similar para Hodges, que está preso em uma situação tão horrenda quanto aquelas do principal gênero de King. Ele começa sua história em uma vida sem esperança e a termina no mesmo tom. Durante sua investigação, encontra companhia na forma de Holly e Jerome, seus amigos e assistentes. Jerome, contudo, é apenas um adolescente com seu próprio futuro à frente, e Holly afirma que não pretende “caçar mais ninguém. Uma vez foi suficiente” (KING, 2014, p. 434, tradução minha). Uma inspeção cuidadosa do fim de Mr. Mercedes revela que a mais clara transformação diz respeito ao assassino do Mercedes, que está livre no início do romance e em coma no fim. Na última cena, contudo, mesmo essa pequena mudança é removida, já que o assassino, que estará presente no terceiro romance da trilogia (MYSTERY WRITERS OF AMERICA), acorda de seu coma. Hodges e sua investigação são responsáveis somente por garantir que o assassino não conclua seus planos. Eles asseguram que todos permaneçam vivos e que tudo permaneça como está. Quase como que mapeando partes da história da ficção de crime de língua inglesa, Mr. Mercedes alude aos romances de detetives clássicos, depois se desenvolve como um romance hard-boiled, mas abandona esse gênero antes de sugerir traços do thriller de detetive. Por fim, é traçada uma relação ainda com o gênero do terror. No centro dessa rota literária está o detetive, que, como um camaleão, se transforma ao longo da narrativa. De início, a atenta leitura de Hodges nos lembra de detetives clássicos, que Hühn identifica como leitores. Uma rotina estagnada e pensamentos suicidas também nos remetem aos hábitos misantropos de detetives clássicos e à inércia impotente comum aos investigadores dos romances hard-boiled. Se considerarmos estes últimos detetives como sujeitos fadados a encarar uma “longa espera”, como Martin descreve, a conexão se torna mais evidente. Após o simbólico fedora de Hodges O detetive como produto da ficção de detetive..., p. 397-410 409 ser destruído e King então interromper sua homenagem, Mr. Mercedes altera seu caminho e focaliza o thriller criminal, gênero com ênfase no suspense e na ação rápida, com o detetive encarando os perigos. Por fim, a natureza repetitiva que Jameson atribui à ficção de crime nos remete aos romances de terror de King, que frequentemente apresentam as aflições de jornadas repetitivas e de trabalhos de Sísifo. King finaliza seu romance com uma reunião falsamente redentora na qual a felicidade de um caso fechado vai de encontro à inutilidade triste de um detetive que novamente perde sua identidade. Como em outras histórias, King nos traz de volta ao início: as condições são apenas levemente diferentes das que induziram a desesperança de Hodges. A cidade permanece a mesma, e talvez Hodges também. É o terror implacável: a busca é em vão e nada é resolvido, afinal. Referências ABBOTT, M. 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