Livros escritos por Mulheres - 1947/1990 - Primeira

Transcrição

Livros escritos por Mulheres - 1947/1990 - Primeira
Exposição
8e o
de
Livros
•
escritos
por
Mulheres
1947/1990
EDIÇÃO DO
MOVIMENTO DEMOCRÁTICO DE MULHERES PORTUGUESAS
8 •MARÇO• 1990
CAD
Exposição
de
Livros
•
escritos
por
Mulheres
1947/1990
Do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas
ao Movimento Democrático de Mulheres
- momentos de uma mesma história
Helena Neves
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CAD
ANO DE 1946 -
O TRABALHO
E começou-se. Uma da s mai loucas aventuras das organizações de
mulheres. Recordem como, no tempo, era ainda mais cruamente verdadeiro que « ó uma metade da humanidade se manifestou, até hoje, a outra
A metade fala em voz baixa e na sombra », como denunciam Susanne Morer e
W'Jeanne Socquet em «A criação sufocada».
Tentar ouvir es tas vozes em surdina, encontra, na sombra~ os vultos,
trazê-los à fala, à vista, aos sentidos despe1·tos das mulheres. Ávidos.
Lendo as actas das reuniões, pressente- e o frémito daquelas mulheres.
De mês para mês, elas dão forma ao sonho, corpo ao projecto. Escrevem a
livreiros, esc ritores, embaixadore , instituições.
Maria Lamas contar-nos-á, nos anos 70: «Fez-se um plano. O Conselho
dirigiu uma carta a todas as delegações e embaixadas e trangeiras em Li boa, dizendo o que tencionávamos fazer, e pedia que cada uma delas fornecesse uma li ta, quanto possível documentada, com livros e fotografias das
esc ritoras mais notáveis, mais importantes no se u país. Arranjaram-se traduções das obras de Alexandra Kollontai e de outras mulheres de paí es com
os quais o governo português não tinha relações diplomáticas. O nosso apelo
foi compreendi do e houve países que mandaram dezenas de livros em caixotes ».
De todo o país chegam colaborações. O Conselho crescera, entretanto, e
continua a ampliar-se. Atinge 2000 sócias e formam-se comissões por todo o
pais. O trabalho da exposição envolve mais e mais mulheres. Estudantes de
Bela -Artesefectuam retratos de mulheres célebres. Outras recolhem docu mentação, filmes, livros. U m imenso e apaixonado trabalho colectivo.
«Ao dar possibilidades de colaborar na orgarrização ela Exposição de
"Livros Escritos por Mulheres" em qualquer dos cus aspectos ( . .. ) o Conselho Nacional concedeu às mulheres portuguesas uma oportunidade talvez
única no nosso país: o trabalharem grupo ... » . Assim «Um renascer pcrma-
e
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º
nente de energias, uma noção mais justa do valor da responsabilidade, um
natural domínio nas atitudes irreflectidas, o afastamento para um plano
sec undário das sempre prejudiciais visões individualistas - eis o que foi
também para as mulheres do Conselho a Exposição de "Livros Escritos por
Mulheres" » (4), escreverão depois.
A sua preocupação não é , nem pode ser selectiva. «Seria impossível seleccionar, adoptar um critério valorativo de tantos países-e alguns deles
para nós tão alheios! - com o conhecimento perfeito do que estava a fazer!, W
escrevem (4) . Apenas procuram agrupá-las por autoras, em cada país.
Pensarão fazê-lo por géneros, mas os tempos da chegada das obras não o
permitem.
Pensarão também «publicar uma obra que fosse um elemento co'mpleto,
seriamente informativo de bibliografia feminina mundial» mas o Conselho
não tem dinheiro. Publicarão, porém, um catálogo que é " ªº mesmo tempo
um guia da exposição e uma obra para futuras consultas » (1). Continua a sêlo.
Um belíssimo cartaz da autoria de Maria Keil dá a imagem da Exposição:
U m livro aberto que uma mão feminina segura. Subversiva imagem!
a
1947/1990- SOMENTE UMA EXPOSIÇÃO?
e
Retomar um ge to é já outro ge to.
N m igual , nem sequer idêntico , mas já outro. Diferente.
Ma retomar um gesto é aceitar uma tran missão. Tomar como e u, ine rir no seu co rpo, na sua história, incorporar a lgo que tornamo nosso.
Este o entido da mo tra da Exposição que oMDM vai realizar, de8 a 15
de Março, sobre a Exposição de «Livro E cri tos por Mu lhere » organizada
pelo Con elho Nacional da Mulhere Portuguesa , em Janeiro de 1947, na
ociedade Nacional de Bela -Artes.
Trata- e, apena , de uma mostra de algo que, no tempo, foi um acto de
radical subver ão.
Porque a Expo ição de «Livros E critos por Mulheres» foi, na realidade, um acontecimento diverso. Exactamente porque não surge como um
acontecimento sofrido pelas mulheres, atingindo-a de fora, ma ante um
acontecimento produzido, criado por ela , tornado tal, pela suas vozes, o,
e u ges to , a ua acção.
Teremos, hoje, a mecüda exacta do que este acontecimento ignificou?
Saberemos encontrar o sina i da revolução imanente no ges to da mulheres do Conselho acional da Mulheres Portuguesas?
Pre senti remo a nece sidade que levou o governo fa ci ta a encerrar, a
de truir, de imediato, o Con e lho? O eu temor?
É que e os trabalhadore nas sua revolta e in urgem co ntra a o rdem
política, a mulhere rebeldes põem em cau a não ó a ordem mas também a
«própria natureza». A ua rebeldia a tinge não a pena as instituiçõe , a e fera imediata do político, ma também a imbologia do poder, a representação
do domínio.
Eis o que as mulheres do Conselho fazem, em 1947, ao criar e se acontecimento que é a Exposição de «Livro E e rito por Mulhere » . Partindo do
que Althusser chama a sua «temporalidade diferencial» - expressa no
facto de serem as primeiras atingidas pela opressão e as últimas no acesso à
liberdade-as mulheres ousam tomar a iniciativa. E num domínio mais do
que cerceado. O da criatividade, o da criação (não de filhos, mas de obras).
Elas ousam. Assumir, expor a palavra das mulheres, o seu fazer, o seu
saber, a sua arte, a sua ciência« ... numa demonstração total de colaboração
da mulher no domínio intelectual da vida humana» (1). A uma escala quea
pretendem planetária. Sem fronteiras. Porque, como dirá décadas maisW
tarde Benolt Groult «a fe minilidade é uma pátria».
As mulheres do Conselho Nacional da Mulheres Portuguesas fazem,
assim, em 1947, emergir o acontecimento. Uma exposição? Não! Uma ruptura. Uma revolta. Uma imanência revolucionária. U m momento único na
história do movimento feminino, nos gestos multiplicados de que encontrareis expressão em «Apontamentos para a História do MDM- O retomar
dos gestos» (2).
A realização do MDM, hoje, é a penas uma mostra de algo que foi imenso.
Mas é, também, mais do que uma mostra.
É uma memória.
E não é a memória um fundamento da identidade?
Esta realização doMDM constitui, as im, também a afirmação da identidade do movimento de mulheres, da sua imensa criatividade-entre nós,
tão fluente, tão múltipla depois do 25 de Abril, graças ao 25 de Abril.
«Agora que a revolução está em curso, é tempo de a mulher encontrar
sua expressão, a sua palavra», dizia Alexandra KolJontai. Assim foi, em
Abril, depois de Abril ... e ntre nós, também. E podeis vê-lo na mostra
si mbólica de livros esc rito , hoje, po r mulheres ... Se rá mais ainda, um
ae
dia ...
E ntretanto, este retomar do ges to pelo movimento de mulheres. Pela libertação da mulher.
«Darei memória aos teus e q uecimentos. Arra ncar-te-ei às tuas visões
de a usente, aos teus lugares desertos, as tuas palavras mudas » (3) .
CAU
HISTÓRIA DE UMA EXPOSIÇÃO
e
e
ANO DE 1945 -
A I DEIA
A ideia surgiu a 15 de Outubro de 1945. Realizar uma Expo ição Bibliográfica de todas as mulheres portuguesas. Uma jovem, Cecília Simões
(Areosa Feio) lança-a numa reunião do Conselho que uma inesperada e numerosa assistência de mulheres transforma numa Assembleia Geral Extraordinária.Levantou-se e disse: «Proponho .. . ». Como se fosse fácil. E como
se fosse fácil, as mulheres aplaudiram.
Estava-se em pleno renascimento do Conselho N acional das Mulheres
Portuguesas, organização fundada em 1914 sob a presidência de Adelaide
Cabete, que realizara dois Congressos Feministas e de E ducação e filiara diversas organizações de mulheres.
Reprimido, dissolvido na prática, com o fascismo que erigira como filosofia de Estado o mais puro patriarcalismo (recorde-se só a Constituição . .. ),
o mais grosseiro machismo (lembre-se a política educativa, o sexismo da
«Escola, oficina de almas»), o Conselho ressurgiu, no após guerra, com o
regime tentando retomar fôlego após a derrota do nazi-fascismo na Alemanha e na Itália e com o impul o de um grupo de mulheres rebeldes, subversivas. E ntre elas Maria Lamas, eleita como presidente do CNMP, em 1945,
talvez o centro do encontro e movimentação fe mininas. E as mulheres
afluíam.
Trazem a impaciência de quem mui to calou. A sa turação de demasiados
silêncios, murmúrios e sombras. E uma vitalidade transbordante. Dizem
palavras, antes sonhadas e não ditas. Dizem palavras com paixão. Com voos
de esperança. E têm gestosexactos, medidos. Intencionais. Ac reditam nelas
CAD
próprias. Uma experiência que as mulheres atravessam apenas nos grandes
momentos.
E o final da guerra é um grande momento. O fascismo vacila. Em Maio de
1945, ao mesmo tempo que o governo proclama luto nacional por Hitler,
manifestações de alegria pela derrota do exército hitleriano sacodem Lisboa. Ousam-se greves. Alastram greves. E em Outubro, em Lisboa e no
Porto, multidões com~moram o 5 de Outubro e exigem eleições livres.
A
Funda-seoMUD. E um tempo de fermentação política. Respira-se uma W
es perança cuja realização, afinal, seria ainda tão adiada . .. Lutava-se esperando que, em breve, também em Portugal o fascismo cairia. Era somente
uma ilusão, uma quase utopia, mas assim se gerava um formidável impulso
à luta popular, à luta de mulheres.
Quando a jovem Cecília lança a ideia da E xposição - desafio imenso
num regime que se teme de organização de mulheres tanto quanto de organização de proletários, aliás umas e outro já unidos por vários autores no
mesmo símbolo de perigo-houve mulheres que acharam muito , mas quase
toda acharam pouco.
Não bastava a obra das mulheres portuguesas. Era necessário ir mais
longe e desvendar a obra oculta de mulheres escritores de todo o mundo.
Mais: não bastava as esc ritoras. E então as cientistas, essas que ousavam
uma a ventura do saber ainda mais interdito , ess as que não seguiam o exemplo de Madame Berthelot Pasteur que fez glória sua o apagar-se face ao
marido, mas antes o de Madame Châtelet intrometendo-se nas ciências 9
fí icas na es teira de Newton?
A Ex posição seria, antes, de «Livros E scritos por Mulheres ».
Esta a sua ambição.
Este o seu destino.
O seu nome.
8
C
D
ANO DE 194 7 - A EXPOSIÇÃO
Maria Lamas sabe - e outras saberão também - que, como dirá Annie
Leclerc «toda a literatura feminina foi passada à mulher através do homem», que os critérios oficiais, masculinos, são diferentes.
A
Então, se não é po sível seleccionar, tentar-se-á, pelo menos, destacar a
Wliteratura feminina que corresponde a uma busca de expressão, de identidade da mulher, que revela uma palavra diferente, que é uma «linguagem do
corpo, linguagem do grito» como dirá, magnificamente, Simone de Beauv01r.
Será possível, também, destacar e sa outra forma com que as mulheres
abordam a ciência - a «infidelidade» ao modelo dominante? Duvidam?
Leiam a biografia da bióloga Barbara Maclintock, prémioNobelem 1975, e
talvez se interroguem sobre esta velha questão dos géneros e da ciência ...
Há uma consciência desta diferença - uma diferença social, cultural,
em que secularmente, no domínio do saber, a mulher se debateu no conflito
entre o desejo de criar e a hostilidade social, entre o apetecido e o consentido. E se esta consciência não pode expressar-se através da impossível selecção, expor-se-á através do possível destaque na Exposição que abre a 4 de
Janeiro e se prolonga até dia 12.
N as palestras e nos filmes, as mulheres evocadas são as mais audazes, as
e que mais se assumem como mulheres no combate pela libertação das mulheres.
Virgínia Woolf, Sally Salminem e Florbela Espanca na Literatura; Marie
Curie na ciência; Clara Barton no filantropismo; Florence Nightingale na
enfermagem; Amelia Earhartnas pioneiras da aviação; Hellen Keller eAnn
Sulivan na tenacidade heróica contra a deficiência; Ilarriet Stone na luta
abolicionista; Danielle Casanova na resistência, na luta pela libertação.
O impacto da Exposição é enorme. Dia após dia, a gente aflui às Belas-Artes, torna-se multidão. Os jornais dão primeiras páginas ao aconteci-
CAD
mento. Ora louvando-o . Ora, mai frequentemente atacando o Con elho,
acu ando a mulheres de subverter a ordem , o costume , a natureza ...
É lançada uma campanha na qual se põe em dúvida que tal trabalho
pude e ter ido organizado por mulhere , argumentando que por detrás de
uma tal organização teria de e tar uma outra, « inistra, subversiva, verme-
lha ».
a realidade, o poder teme- e da mulhere , da imen a potencial ida- A
de da ua acção, da radical ub e r ão do eu movimento. E, qua e de •
imediato, Maria Lama é pr ionada a deixar o Seculo, onde de 1928 a
1945, dirigira a «Modas e Bordado » . O Conselho é encerrado.
Mas nada poderia já apagar o ge to. Mulhere , num paí reprimido,
haviam tomado a palavra. A sua. E a de mulheres de todo o mundo, recordando-lhe a palavra , o ge to .
Há um reconhecimento . Uma tran mi ão . U ma memória . Um ac to de
amor.
É também, o fundamento de uma identidade. De movimento de mulhere . Como nó . Hoje.
( 1) Ca tálogo da Expo ição de «Livros Escritos por Mulheres» ;
(2) Bro<'hura editada pelo MDM em Outubro de 1988, por o<'asião do 3." Congresso;
(3) De .. Femmes en Mouvement»;
(4) «Mulher» - Boletim do C MP , 1947.