Santos - Academia Santista de Letras

Transcrição

Santos - Academia Santista de Letras
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Santos em Prosa e
Versos
pelos membros da
Academia Santista de Letras
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Índice
Adilson Luiz Gonçalves
Um sonho nem tão distante .............................................
Antoine Lascane “Yázigi”
Amada Santos ..........................................................................
Terra dos Andradas ..............................................................
Antonio Taveira
Encontro de Grandes Poetas Santistas .......................
Carolina Ramos
Santos - Terra da Liberdade e da Caridade...............
Retrospecto ..............................................................................
Clotilde Paul
Santos, Cidade Porto ............................................................
Santos de Ontem, Santos de Hoje .................................
Edith Pires Gonçalves Dias
Discurso aos 469 anos de Santos .................................
Élcio Rogério Secomandi
Síntese de uma epopeia reconstruída .......................
Jeanete Maria Octaviano Martins
Três nomes para uma mulher ........................................
À espera de um milagre .....................................................
O dono da livraria ..................................................................
Revelação ...................................................................................
Espargindo alegria ................................................................
Poema à cidade de Santos .................................................
Santos, Cidade-Porto ............................................................
Jo Camaño
A Fonte do Tororó e a roda da vida! ..............................
O Jardineiro e o aprendiz ....................................................
Katya Lais Ferreira Patella Couto
Santos na década de 70 ........................................................
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Maria Araújo Barros Sá e Silva
Ó Minha Santos .........................................................................
Santos de Martins Fontes ....................................................
Palmeiras Imperiais ...............................................................
Soneto para Vicente de Carvalho ....................................
Velhas Árvores ..........................................................................
Exaltação a Santos ..................................................................
Ontem, hoje, amanhà e sempre .......................................
Metamorfose .............................................................................
Santos, “Civitas Mea” .............................................................
A Primavera em Santos ........................................................
Santos Minha Terra ................................................................
Aclamação à Câmara Municipal de Santos ................
Orquidário de Santos ............................................................
xxxxxxx
Santos, Santos, Santos ...........................................................
Maria Zilda da Cruz
Paisagem Sonora de Santos ...............................................
Vento Santista ...........................................................................
Maurílio Tadeu de Campos
O Turista Incidental ...............................................................
Assim como as Gaivotas ......................................................
Peilton Sena
Uma declaração de amor ....................................................
Perseu Lúcio Alexander Helene de Paula
Santos ............................................................................................
Regina Alonso
Santos, berço natal de Martins Fontes .........................
Raízes Aquáticas ......................................................................
De portas abertas ....................................................................
O instante certo ........................................................................
Cantiga da minha rua ............................................................
D. Dorotéa, Vamos Furar Aquela Onda? ......................
Ecos na calçada ........................................................................
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Sergio da Costa Matte
Santos, uma cidade portuária ..........................................
Sergio Fernandes Lopes
Dona Gê ........................................................................................
Silvia Ângela Teixeira Penteado
O sentido de ser santista ..................................................... Taís Curi
Os canais na paisagem e na alma santista ..................
Viviane Pereira
Cantos de Santos ......................................................................
E assim caminha a humanidade: numa caminhada
à beira mar ..................................................................................
Wilma Therezinha Fernandes de Andrade
Santos, um sonho à beira mar........................................... 7
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PREFÁCIO
Qualquer um ficaria tão surpreso e feliz quanto eu ao ser solicitado a
escrever o prefácio do livro SANTOS EM PROSA E VERSO, com textos
de vários autores.
A obra não necessita de apresentação, pois suas páginas
revelam a intimidade de cada escritor, que não carece de louvores,
porque suas produções literárias falam mais alto. Ambos – obra e
escritor - não precisam incitar o leitor, que logo ficará como eu, cativo
da palavra escrita.
Entretanto, é importante destacar a participação dos
acadêmicos que aderiram ao projeto e o esforço incontido de um, em
especial. Não fosse sua iniciativa, a obra não existiria. Contudo, ele não
quer que seu nome seja citado, dizendo ser sua obrigação trabalhar
para o engrandecimento da Casa de Martins Fontes. Uma nobreza que
fica no anonimato!
SANTOS EM PROSA E VERSO vem a lume através de um
concurso do Facult (Fundo de Assistência à Cultura), em 2014,
solicitando que as entidades culturais da cidade apresentassem um
projeto, visando a ganhar um prêmio, em dinheiro, para executá-lo.
A Casa de Martins Fontes, sendo uma entidade cultural que trabalha
com as letras, logo se preparou para a edição de um livro, no qual seus
acadêmicos pudessem mostrar o que sabem fazer.
Pelas regras do concurso, o nome da obra não poderia ser
outro, senão SANTOS. Dessa forma, o projeto foi elaborado com muito
carinho, e para atender às diversas tendências dos acadêmicos, ficou
decidido que os trabalhos deveriam ser em prosa e verso. Surgiu, pois,
o título: SANTOS EM PROSA E VERSO.
A inscrição da Academia Santista de Letras foi efetuada, e a
diretoria ficou aguardando o resultado. No dia 12 de setembro, o jornal
“A Tribuna”, de Santos, publicou a lista dos contemplados e qual não foi
nossa alegria ao ver o nome da Academia Santista de Letras entre os
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premiados.
Todos os acadêmicos foram comunicados e, por que não
dizer, convidados a mandar suas produções, em prosa ou em verso.
Entretanto, não basta ser acadêmico. A persistência no trânsito da
vida e a paciência são passaportes susceptíveis para assegurar a
participação de todos.
Finalmente, aqui está SANTOS EM PROSA E VERSO para deleite
da Casa de Martins Fontes.
MARIA ARAÚJO BARROS DE SÁ E SILVA
Presidente da ASL
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Adilson Luiz Gonçalves
É membro da Academia Santista de Letras desde 4 de maio de 2012,
ocupante da cadeira nº 16, cujo patrono é José de Freitas Guimarães.
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Um sonho nem tão distante
Adilson Luiz Gonçalves
Era o ano de 2020...
Renato ficou surpreso quando Paula, sua noiva, anunciou
que eles haviam ganho a viagem de lua de mel “dos sonhos”: um
cruzeiro marítimo! Esfuziante, ela começou a descrever o roteiro:
passariam três dias em Santos e, depois, seguiriam para Punta del
Leste, Montevidéu e Buenos Aires.
Renato a ouviu atentamente, porém, estava duplamente
frustrado, pois já havia feito um cruzeiro, cinco anos antes, e as
lembranças não eram lá muito agradáveis, não pela viagem, mas pela
experiência do embarque e desembarque, e pela imagem que tivera
de Santos. A chegada à cidade fora sem nenhum “glamour”, tendo
como paisagem apenas terminais portuários, trechos com armazéns
caindo aos pedaços, e o “parto” que havia sido o acesso ao terminal:
despacho das bagagens, com direito a insinuações de “caixinhas”...
“Check-in” demorado... Infinito trajeto entre salões internos... E isso
sempre a pé e com fila para tudo, sem maiores atrativos estéticos ou
distrações que fizessem o tempo passar. Por fim, precisou pegar um
ônibus que, sacolejando em pistas esburacadas entre terminais que
exalavam odor de cereal putrefato, o levou ao seu navio, quilômetros
distante - ele dera o azar de embarcar num dia em que havia cinco
navios de passageiros operando.
Lembrando desse histórico ele se perguntava: “O que a gente
vai fazer três dias em Santos?”.
Mas, olhando para Paula com olhos mistos do fogo da paixão e desejo,
que podem ser efêmeros, e de amor, que tudo prenunciava ser duradouro,
infinito, Renato pensava que tudo valeria a pena, estando ao lado dela.
Enfim, depois da cerimônia e festa inesquecíveis em sua
cidade, no interior de São Paulo, eles passaram a noite de núpcias num
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hotel, na capital. Eles acordaram, tomaram um bem “safadinho” café
da manhã, cujos detalhes ficam por conta da imaginação de cada um,
se arrumaram e, por volta das dez horas, desceram para encontrar os
tios de Paula, responsáveis pelo “presente”, que os levariam a Santos.
Renato continuava sem fazer a mínima ideia do que fariam
na cidade, e sempre que Paula tocava no assunto ele rapidamente
desviava sua atenção para outros aspectos da programação: compras,
locais a visitar, shows de tango... E aproveitava para deixar bem
claro que queria distância de estádios de futebol, mas muita, muita
proximidade de carnes, vinhos e alfajores! Ela aceitava rapidamente
esses desvios, sabendo que teria mais tempo para fazer “turismo” nos
shopping centers portenhos. E lá se foram eles, a caminho do Sistema
Anchieta-Imigrantes.
Do alto da Serra do Mar já era possível ver algumas cidades
praianas. O aspecto era atraente e, ele, que tinha descido ao litoral
uma única vez, para fazer o primeiro cruzeiro, ficou pensando se
Santos era mesmo tão sem graça assim. Afinal, seus amigos falavam
de praia, esportes e outras coisas. Pensando bem, até que a saída do
canal do Estuário mostrara uma bonita paisagem e o próprio porto
tinha lá seus atrativos, apesar do mau odor que sentira no terminal,
e da poeira que saía dos porões dos navios, perto da travessia de
balsas. Essas lembranças o fizeram adormecer.
Quando ele acordou, levou um susto:
Ainda estava no carro, mas só via luzes artificiais!
- Anoiteceu? - perguntou entre bocejos e alongamentos.
O tio de Paula esclareceu que eles estavam no “Mergulhão”,
túnel que tirou o tráfego de caminhões da superfície e também servia
de acesso ao terminal de passageiros, bem como ao hotel onde eles
passariam os próximos três dias.
- Túnel? Desde quando o terminal tem acesso por túnel? E hotel? No
meio de armazéns de carga?
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Os tios de Paula, que eram de Santos, se entreolharam
sorridentes e explicaram a Renato que o terminal antigo não mais
existia. Eles estavam no Terminal do Valongo, recém-inaugurado,
localizado numa área onde antes haviam armazéns desativados.
- Aqueles armazéns caindo aos pedaços, em meio a um trânsito maluco
de caminhões e trens de carga? Aquilo parecia área de bombardeio!
O tio de Paula assentiu com a cabeça, ao mesmo tempo em
que estacionava o carro na entrada subterrânea do hotel.
Ainda era cerca de meio dia e meia, e Renato e Paula, após um merecido
banho, resolveram abrir as cortinas e dar uma olhadela nos arredores.
Surpresa!
A visão do porto era ampla e magnífica! Havia várias navios
atracados nas duas margens e uma intensa movimentação de
caminhões mais adiante, mas que subitamente desaparecia da
superfície. Paula lembrou que aquele era o túnel por onde entraram
no hotel. O terminal de passageiros ficava logo à frente, moderno e
imponente, avançando sobre o canal. Ainda era quarta-feira e não
havia nenhum navio de cruzeiro atracado. Como estavam com fome,
resolveram almoçar.
Perguntaram à recepcionista quais eram as opções nas
cercanias. Ela gentilmente entregou-lhes um guia do Centro Histórico,
dando-lhes algumas dicas e enfatizando que eles estavam na região
do Porto Valongo Santos, abrindo o “folder” na página específica.
Eles saíram e, ao contrário das lembranças de Renato,
encontraram uma esplanada plena de jardins e calçadas, onde
centenas de pessoas caminhavam ou simplesmente estavam sentadas,
conversando e observando a paisagem, tanto da cidade como do
porto. Ao longo do caminho eles passaram por vários restaurantes
e bares, com tantas opções que ficaram um pouco confusos. No
entanto, curiosos com o que viam, resolveram andar mais um pouco,
pois tudo parecia muito próximo.
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Num armazém totalmente restaurado, viram que havia uma
exposição de arte e, na entrada, e que ali também era um ateliê, com
vários artistas trabalhando. Mais adiante, também puderam ter, agora
de terra, uma esplêndida visão do porto. Havia um quiosque de coco
nas proximidades e eles aproveitaram para sentar num dos bancos e
contemplar tudo o que seus olhos alcançavam. E assim ficaram por
meia hora, aproveitando para esmiuçarem o prospecto turístico.
Viram que os navios oceanográficos da USP estavam abertos ao
público até o final de semana, num armazém próximo, que também
servia de sede para Instituto Oceanográfico da Universidade de São
Paulo. Subiram calmamente a passarela existente sobre a via férrea,
que lhes permitiu melhor visibilidade do terminal de cruzeiros, do
hotel onde estavam e dos navios de pesquisa.
Desceram e foram almoçar uma “meca santista”, por sugestão
do proprietário, que os atendeu pessoalmente, antes de passar o
serviço para os funcionários.
- Meca? - em princípio Renato pensou que fosse comida árabe, mas
logo lhe explicaram que era um prato referência da região. A meca, em
verdade, era peixe-espada, e uma das muitas palavras e expressões
que só os santistas usam.
Provaram e aprovaram, ao ponto de pedir maiores detalhes
sobre o prato. Ao pedirem um café, o proprietário sugeriu que eles
dessem um pulinho na Bolsa do Café, apontando-lhes a torre próxima.
- E não esqueçam de visitar o Santuário do Valongo e o Museu Pelé,
mais adiante! - complementou.
E assim eles fizeram, aproveitando para fazer a digestão.
Caminharam entre esculturas, pedestres e veleiros, estes atracados
na marina ao lado do terminal. As placas indicativas mostravam que
ali também havia uma escola náutica. Renato começou a ter ideias
para o futuro.
Ao chegarem à Bolsa do Café, ficaram encantados com
a edificação! Se o exterior já causava admiração, os detalhes e
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acabamentos internos, aliados às histórias contadas pela guia e aos
pinturas de Benedito Calixto fizeram com que eles demorassem
bastante tempo, inclusive visitando o Museu do Café. Depois, Paula
degustou avidamente um sorvete de café, enquanto Renato pediu um
“arábica”, não sem antes torcer o nariz sobre o “jacu”.
Quando entraram no Santuário do Valongo, as luzes já estavam
acesas naquele singular templo do século XVII, uma das mais antigas
construções de Santos. Aproveitaram para renovar suas juras de
amor.
Ao saírem, já anoitecia. A iluminação pública lembrava tempos
distantes, do início do Século XX, quase imperiais. Souberam que
séries e filmes que assistiram aproveitaram aquele cenário. O Museu
Pelé, que abriga o acervo do Rei do Futebol, já estava fechado, mas
Paula lembrou que ele fazia parte da programação do dia seguinte.
Assim, eles foram caminhando pela Rua do Comércio até a Rua XV de
Novembro. Renato imaginou Paula com um longo vestido de rendas
e uma sombrinha, enquanto ela brincava que lhe compraria um
chapéu-palheta e uma bengala.
Cansados mas felizes, voltaram para o hotel, de onde só saíram para
petiscar e bebericar num dos bares da esplanada, todos fervilhantes
de gente animada, ao som de boa música. Até fizeram amizade com
outros turistas e santistas! Quando voltaram para o hotel, já meio
“alegrinhos”, o sono deu lugar a outras intenções...
No dia seguinte, quinta-feira, o receptivo já os esperava. E lá
se foram para o Museu Pelé. A surpresa foi geral quando lá entraram:
se externamente a fachada remetia ao final do Século XIX, por dentro
a construção era moderníssima, cheia de atrações. Renato bateu
alguns pênaltis e Paula tirou uma foto “ao lado” de Pelé, entre outras
brincadeiras interativas.
Dali foram ao Museu de Arte Sacra e, depois, passearam no
“Bonde Café”, veículo elétrico milanês com serviço de “barista”,
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aproveitando para conhecer outros prédios históricos do Centro,
como as Igrejas do Carmo e do Rosário, a Casa de Frontaria Azulejada,
a Casa do Trem Bélico, o Outeiro de Santa Catarina...
Almoçaram num simpático e aconchegante bistrô temático,
após o quê, para renovada alegria de Paula e de outras turistas,
partiram para um shopping center.
- Tem barzinho? - perguntou um dos rapazes. A resposta afirmativa
foi festejada. Como vários iriam partir no mesmo cruzeiro, a
oportunidade foi ótima para já formar grupos de afinidade.
À noite, retornaram ao hotel, jantaram novamente na
esplanada, agora num “sushi bar”, aguardando que o receptivo
os pegasse, por volta de 22:30, para irem a uma “balada” numa
das muitas casas noturnas montadas em edifícios restaurados do
Centro. Lá pelas tantas, os armazéns iluminados, as luzes dos navios
e terminais que nunca paravam de operar, e uma linda lua cheia
convidavam a esperar para ver o nascer do sol. Porém, a programação
do dia seguinte prometia...
A sexta-feira amanheceu ensolarada. Eles esperavam
transporte igual ao do dia anterior, mas a jovem acompanhante pediu
que eles a seguissem até o terminal público de passageiros, próximo
ao hotel. Lá, embarcaram numa enorme lancha, com aspecto futurista.
Seus lugares já estavam reservados e nem todos eram turistas. Os
assentos eram confortáveis e a climatização agradável.
Quando a embarcação partiu, veloz, veio o anúncio pelo sistema
de som: “Próxima parada: Estação Catraias”. Apesar da velocidade,
não se sentia incômodo. Paula, que nunca viajara nem em bote de
borracha, parecia se sentir “em casa”. Em poucos minutos atracaram
e saíram: “Próxima parada: Estação Terminal José Bonifácio”.
Sempre atentos à enormidade e diversidade do porto, rapidamente
chegaram ao destino, que nada mais era do que outro terminal de
cruzeiros!
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Ele havia sido construído ali para, em conjunto com o Terminal
do Valongo, solucionar dois problemas: a má localização e deficiências
do antigo terminal de cruzeiros - o que Renato conhecia muito bem
- e a crônica poluição ambiental em áreas urbanas, provocada pela
extinta operação de grãos, no Bairro Ponta da Praia.
A guia esclareceu que, ao contrário do terminal antigo, os
dois novos terminais operavam de forma integrada, com capacidade
de atendimento para até seis embarcações de grande porte, sem
prejudicar outras operações portuárias.
O novo terminal contava, em acréscimo, com vários
restaurantes, centro de convenções, casa noturna, shopping center
e agências bancárias, abertos todos os dias, e não apenas nas
temporadas de cruzeiros. Aliás, souberam que haviam navios de
passageiros operando o ano todo. A guia explicou que, assim como o
Terminal do Valongo ficava perto de um complexo histórico-cultural,
o Terminal José Bonifácio estava próximo à orla e à travessia Santos
- Guarujá. O transporte terrestre os esperava ali, para cumprir a
programação do dia. Foram ao Museu de Pesca. Depois, fizeram um
passeio de escuna pela baía de Santos. Os prédios altos e a cerveja
gelada disfarçaram os tortos...
Depois do almoço, todos foram ao Aquário e ao Orquidário. O
pôr-do-sol foi apreciado da Plataforma do Emissário, com os últimos
raios de luz diurna iluminando a genialidade eternizada de Tomie
Otake, e sete quilômetros de praias e jardins. E foi nesses jardins que
eles caminharam animadamente, até que, próximo à Av. Ana Costa,
a guia os surpreendeu, convidando-os para um “luau”, que já os
aguardava, na areia.
Renato já não lembrava mais da primeira vinda a Santos!
Parecia que nunca estivera ali! Paula, então, transbordava naturais
alegria e sensualidade.
O clima estava agradável, a conversa amigável... Enfim, fora
mais um dia perfeito!
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O sábado amanheceu com nova saída de lancha, desta vez para
o Canal de Bertioga. Nos fins de semana, as mesmas embarcações
que faziam o transporte de passageiros serviam para atividades
turísticas. Em meia hora, passando por paisagens que pareciam
nada ter mudado desde os primeiros navegantes portugueses, eles
chegaram ao “Portinho” de Caruara.
Parecia outra cidade!
Ali, junto com turistas e nativos que chegaram em várias
escunas, eles assistiram apresentações culturais, conheceram
um pouco da história e costumes caiçaras, comeram comidas
especialmente preparadas e descansaram até o retorno, já pelo final
da tarde, levando algumas lembranças, incluindo bolinhos de aipim
e carne seca. Paula já começara a se preocupar com a balança, mas
Renato a tranquilizou, convidando-a a fazer mais “ginástica”...
Um concerto, no Teatro Coliseu, deu um toque especial àquele
fim de sábado, seguido de um jantar de gala, organizado por todos
os receptivos da cidade, no alto do Monte Serrat, com direito à uma
belíssima visão noturna da cidade. Se já não estivessem casados,
talvez Renato a pedisse ali!
Então, chegou o domingo...
As malas foram despachadas para o navio, que já estava
atracado, no próprio hotel. Depois do café da manhã, Renato e Paula
resolveram dar outra caminhada pela esplanada, onde as mesas, que
ainda tinham alguns “baladeiros” indecisos entre mais um chope e
uma xícara de café sem açúcar, também reuniam os novos amigos
e outros rostos sorridentes, que nesses três dias descobriram uma
cidade que não conheciam e da qual naturalmente se tornaram
íntimos.
O embarque ocorreu de forma organizada e rápida, sem
contratempos. Agora no navio, eles contemplavam o hotel, o terminal,
a torre da Bolsa do Café...
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Alguém lhes perguntou se tinham ido ao Guarujá; se
conheceram o Horto Municipal, com seu esplêndido e badalado
restaurante; se visitaram o Memorial das Conquistas e a Vila Belmiro,
sendo “zoados” pelos amigos corintianos próximos; se tinham feito
passeios ecológico no Vale do Quilombo...
O navio zarpou por volta das 18:00 e seguiu, iluminado e
festivo, pelo canal do porto. Ao longo desse caminho, Paula e Renato
trocaram acenos com trabalhadores portuários, tripulantes de navios,
pessoas que se acotovelavam nos vários píeres do lado de Santos,
visitantes que ainda estavam na Fortaleza da Barra, moradores
de prédios que acendiam e apagavam luzes, pescadores e outros
navegantes que chegavam, saíam ou festivamente acompanhavam
mais um gigante dos mares.
Era 2020, o primeiro ano de sua vida em comum. Com certeza
um ano inesquecível, de muitas memórias! E Santos já fazia parte
delas.
Contemplando as múltiplas torres que se elevavam por toda a
orla, ainda não tão distantes, agora iluminadas, tendo a areia e o mar
como contornos, Paula e Renato sonharam: - Quem sabe, um dia, a
gente vem morar aqui!
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Antoine Lascane “Yázigi”
É membro da Academia Santista de Letras desde 26 de julho de
2006, ocupante da cadeira nº 26 , cujo patrono é Martim Francisco
Ribeira de Andrada, o Terceiro
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Amada Santos
Antoine Lascani “Yázigi”
Deus, ao criar o nosso belo mundo
constatou que Santos já existia
espalhando um sentimento profundo
iluminando mentes e sorria
Para os poetas, para os intelectuais
dando asas de elevada inspiração!
Aqui surgiram os mais sentimentais
e os herois da nossa grande nação
Na minh’alma vive Santos.
Vivem sempre em minha mente
Sua graça, seus recantos
suas praias, sua gente.
Felizes os seres que aqui nasceram
neste deslumbramento entre o céu e mar
Mais felizes que a ti escolheram
Paraíso, mais belo que o luar
Santos merece os nossos amores
Contai: jovens e velhos do passado
E espalhem as rosas e todas as flores
O fruto da glória foi alcançado
Flutue ó formosa bandeira de Santos
Nas asas calorosas da emoção
Abençõe nossos lindos recantos
E balance as cordas do coração
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Nossa Senhora do Monte Serrat
Estenda sua sombra de carinho
Faça reinar a paz e tanta glória
Iluminando o nosso caminho
Amo Santos pelo espírito altaneiro
Que mostrou o repúdio à opressão
Unidos pela dignidade primeiro
Pelo direito e pela ingratidão
Aqui José Bonifácio cantou
O mais belo hino da liberdade
Vicente de Carvalho sussurou
O hino do mar e da serenidade
E nosso Martins Fontes exaltou
O hino da caridade e da bondade
Festejamos juntos com tanta glória
O aniversário da cidade que amamos
Irmanados para erguer sua história
Onde que nossos corações plantamos
Pérola, de recantos celestiais
Tu és, o nosso encanto, a nossa canção
Pra sempre, até nossos dias finais
Santos! Vive no nosso coração!
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Terra dos Andradas
Antoine Lascani “Yázigi”
Numa manhã de esperança
Deus estava sorridente
Nascia em grande festança
Santos, pro gáudio da gente
Aqui se deitam as praias
E sussurra o lindo mar
Aqui recanto celeste
Onde se banha o luar
Navio, barco e emoção
Um violão, praia e jardim
Ah! Quanta recordação
Uma saudade sem fim
Morro Santa Terezinha
Quanta beleza a admirar
Terra de paz e amor
Deus, estenda seu olhar!
Aqui vivem os poetas
espalhando amor e fé
Aqui Terra dos Andradas
Aqui Santos de Pelé
Onde bonitas morenas
Saboreando a caipirinha
E tantas loiras douradas
Desfilando de tanguinha
Por aqui não há pecado
E nem sequer pecador
Há sentimento espontâneo
Perdoado pelo criador
Idoso, jovem, criança
Morena, loira dourada
Todos numa terna aliança
Curtem a folga sonhada
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Antonio Taveira
É membro da Academia Santista de Letras desde 16 de abril de
2015, ocupante da cadeira nº 8, cujo patrono é Galeão Coutinho
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Encontro de Grandes Poetas Santistas
Antonio Taveira
Nossa mente viaja, e imagina um encontro, nos tempos atuais, dos
poetas Martins Fontes (1884
- 1937), Vicente de Carvalho
(1866 – 1934) , Maria José Aranha de Resende (1911 – 1999) , a
Zézinha, ciceroneados por Aristheu Bulhões (1909-2000) .
Encontram-se esses poetas nos jardins da praia de Santos.
─ Ô Martins, que local mais barulhento. Onde estamos? Estamos em
Santos?
─ Ora Vicente, é claro que estamos, essa é nossa cidade, não está
vendo os jardins?
─ Sim mas está muito diferente.
─ Faz muito tempo que vocês se foram, Santos cresceu muito e se
modernizou, mas os jardins continuam lindos e muito bem tratados, com gramas, árvores, flores e plantas ─ comentou Aristheu.
─ Mesmo nós, o Aristheu e eu, fomos a menos tempo que vocês,
mas já percebemos algumas mudanças. Soubemos que os jardins
de nossa orla, entraram nos livros dos recordes como o jardim frontal à praia de maior extensão no mundo ─ falou Zézinha.
─ É realmente continua maravilhoso ─ falou Vicente ─ mas onde
exatamente estamos?
─ Estamos no bairro do boqueirão titio, não reconhece a avenida
Conselheiro Nébias ─ explicou Zézinha.
─ Aproveitando que estamos no boqueirão ─ falou Aristheu ─ vamos ver as homenagens que Santos à vocês Vicente e Zézinha.
─ Que bela homenagem fizeram para mim, foram bastante fiel à minha pessoa.
─ Justa homenagem Vicente, você ficou conhecido como o “poeta
do mar”, você tem belos poemas sobre nosso mar.
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─ Sim, tem um especial que gostaria de recitar:
PALAVRAS AO MAR
Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias!
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pêlo!
Junto da espuma com que as praias bordas,
pelo marulho acalentada, à sombra
das palmeiras que arfando se debruçam
na beirada das ondas – a minha alma
abriu-se para a vida como se abre
a flor da murta para o sol do estio.
Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras:
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro,
E as leves garças, como olhas soltas
Num leve sopro de auras despertadas
Vinham do azul do céu turbilhonando
Pousar o voo à tona das espumas
Mar, belo mar selvagem!
O olhar que te olha só te vê rolando
A Esmeralda das ondas, debruada
Da leve fímbria de irisada espuma...
Eu adivinho mais eu sinto... ou sonho
Um coração chagado de desejos
Latejando, batendo, restrugindo
Pelos fundos abismos do teu peito.
Ah, se o olhar descobrisse
Quanto esse lençol de águas e de espumas
Cobre, oculta, amortalha!... A alma dos homens
Apiedada entendera os teus rugidos,
Os teus gritos de cólera insubmissa,
Os bramidos de angústia e de revolta
De tanto brilho condenado à sombra,
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De tanta vida condenada à morte!
Ninguém entenda, embora,
Esse vago clamor, marulho ou versos,
Que sai da tua solidão na vida...
Que importa? Vibre no ar, acode os ecos
E embale-nos a nós que o murmuramos...
Versos, marulho! Amargos confidentes
Do mesmo sonho que sonhamos ambos!
─ Que lindo Tio Vicente ─ emendou Zézinha.
─ Vamos um pouco mais à frente, para os lados do canal 3, que você
também foi homenageada Zézinha ─ falou Aristheu.
─ Fiquei muito feliz com a homenagem que me fizeram. Em agradecimento compartilho com você o que escrevi sobre minha Santos:
CANTO À MINHA TERRA
Cantei o amor em tantos dos meus versos,
Cantei o sonho azul da mocidade,
Cantei os sentimentos mais diversos
Que vão de uma esperança a uma saudade.
Agora, vou cantar à minha terra
- Ilha de sol, ardente, ensolarada.
Amor maior que minha vida encerra,
De quem sou uma eterna enamorada!
De braços estendido dás abrigo
A todos os que vêm morar contigo,
Espalhas teu amor, prodigamente...
E eu não se qual o maior dos teus encantos:
Se teu mar, se tuas praias, se tua gente.
- Só sei que sou feliz, por ser de Santos!
─ Bravo minha querida sobrinha, maravilhoso testemunho de amor
à Santos.
─ Muito bonito, minha cara Zézinha! Realmente puxastes o sangue
da família ─ exclamou Martins.
─ Bem para completar nossa visita, vamos para próximo ao canal 1,
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onde veremos a estátua de Martins Fontes ─ falou Aristheu.
─ Realmente a cidade de Santos, cultua muito bem seus poetas ─
comentou Martins ─ Gostei muito dessa minha homenagem, e tenho até um cravo vermelho em minha lapela!
─ Sim Martins ─ emendou Zézinha ─ tens um admirador, ou admiradora anônima, que permanentemente coloca um cravo vermelho
na lapela de sua estátua.
─ Realmente Santos tem pessoas fantásticas. Por isso Santos tem
seu lema na “Liberdade e na Caridade” . Tenho um poema que vem
bem a calhar sobre essa generosidade desse meu admirador anônimo:
COMO É BOM SER BOM!
Tu, que vês tudo pelo coração,
Que perdoas e esqueces facilmente,
E, és, para todos, sempre complacente,
Bendito sejas, venturoso irmão.
Possuis a graça como inspiração
Amas, divide, dás,vives contente,
E a bondade que espalhas, não se sente,
Tão natural é a tua compaixão
Como o pássaro tem maviosidade
Tua voz, cantar, no mesmo tom,
Alivia, consola e persuade.
E assim, tal qual a flor contém o dom,
De concentrar no aroma a suavidade,
Da mesma forma, tu nascente bom.
─ Maravilha Martins, realmente esse poema se encaixa no povo
Santista ─ comentou Vicente ─ E tu Aristheu, não tens uma estátua?
─ Ora Vicente, não sou tão conhecido quanto vocês, para ter uma
estátua. Mas tenho uma placa colocada no Posto 6, nos jardins da
Aparecida, onde está instalada a Biblioteca Municipal Mário Faria.
─ Bem merecido Aristheu, essa homenagem está até no local certo,
30
na casa da Literatura. Você é um poeta brilhante como qualquer um
de nós. E diga-se de passagem, tem vários poemas sobre nossa cidade e nossas praias ─ falou Zézinha.
─ Sim, como Alagoano que adotou Santos como lar, fiz vários poemas sobre nossa cidade, praias, porto, pessoas... Inclusive um trecho do poema sobre Santos, está nessa placa, ouçam:
SANTOS
Eu bendigo a primazia
De quem nasceu neste chão!
Aqui o dia é mais dia
E os astros mais lindos são!
Há luz em tal demasia,
Que p próprio inverno é verão!
Cada praia é uma poesia
Que nos fala ao coração.
Deus, que é perfeito e não erra,
Quando formou essa terra,
Esta Santos tão gentil
Teve a primorosa
De fazê-la a mais formosa
Das cidades do Brasil!
− Parabéns Aristheu, bela homenagem à nossa querida Santos – comentou Vicente de Carvalho.
E assim, nossos quatro poetas: Aristheu Bulhões, Martins Fontes,
Vicente de Carvalho e Zézinha Rezende continuam seu passeio pelos jardins das praias de Santos, até retornarem para seu lares, que
deve ser o “céu”, mas com certeza o céu dos jardins, onde continuam criando belos poemas!
31
Carolina Ramos
É membro da Academia Santista de Letras desde 12 de novembro de
1971, ocupante da cadeira nº 30, cujo patrono é Rui Ribeiro Couto.
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Santos – Terra da Liberdade e da Caridade
Carolina Ramos
Vem, forasteiro! Desce comigo a Serra. Olha lá para baixo. Não...não é
miragem! Há de fato, uma linda cidade escondida por detrás da neblina.
A minha cidade! E com que orgulho digo que esta cidade, que é minha,
é também encantamento, história e tradição!
Um dos mais importantes pedaços do nosso Brasil! Por que? A
ti, que vens de fora, evito falar dos seus encantos. Hás de travar contato
com eles, daqui a um nada!
Disse-te que a minha cidade é História. Sim, foi lá que muita
coisa começou! Muita coisa de suma relevância para o destino da
nacionalidade. Para o meu...e para o teu destino!
Minha terra natal tem sangue índio – Enguaguaçu era
chamada, antes que lhe dessem o nome protetor de Todos os Santos.
Por fim, sei que adivinhaste, chamaram-na simplesmente Santos – A
Princesa do Mar! Desse mar que se amansa e que lhe beija os pés de
areia, cobrindo-os de rendas, enciumado do abraço do sol que, lá de
cima, lhe manda o seu carinho ardente!
Santos! Berço augusto de tanta gente ilustre! Não, não citarei
nomes, cujo rol transcende os limites desta folha - filhos insignes que
carregam consigo a nobreza do berço!
Ninho de poesia, minha Santos gerou poetas da mais
alta inspiração! Que menos não lhe permitiria o festival de mago
encantamento que a musa lhes oferecia e até hoje oferece.
Ah! As auroras rosadas desta linda Santos, prenúncio dos
mais cálidos e luminosos dias! E os crepúsculos incomparáveis?! E as
noites?! Veludosas noites refulgentes de jóias! Noites feitas para os
idílios, para os sonhos! Noites feitas para o amor!
Santos! Terra excelsa dos Andradas! Que fidalgo lugar te
reservam os anais da História! Basta lembrar que em teu seio germinou
a semente da liberdade, cujo grito eclodiu à beira do Ipiranga e o
eco estendeu-se aos quatro cantos do nosso imenso Brasil! Santos
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abolicionista, empenhada em quebrar algemas e a secar o pranto de
uma raça valorosa e sofrida!
“Porta aberta para o mar...” Braços amplos, escancaradamente
abertos a quantos adentrem seus limites, em busca de abrigo ou,
simplesmente de descontração, nas horas preguiçosas que o leito morno
e amplo de suas praias lhes oferece. Lá no alto, a Senhora do Monte Serrat
abençoa a paisagem, emoldurada de jardins floridos! E abençoa, também,
a todos que desfrutam dessas benesses e as respeitam como merecem.
O porto de Santos? Turbulento, embora, é nada mais nada
menos, o primeiro e maior porto da América Latina! Colo amigo
onde os navios encostam seus cansaços, após a faina incessante de
transportar sonhos que alimentam esperanças de um povo raçudo e
laborioso, de alma sempre empenhada em vencer.
Nosso brasão, afirma convicto: “À Pátria ensinei Caridade e
Liberdade”.
Pode haver mais nobre tema, para pautar a conduta dos filhos
desta terra, agora e sempre, muito especial?!
Fecha os olhos, forasteiro... Fecha os olhos a tudo que te pareça
de algum modo negativo. Perfeito mesmo, só Deus! E entre Deus e
os admiráveis encantos que nos legou, impossível evitar a ação de
criaturas, por Ele mesmo criadas, nem sempre corretas, nem sempre
santistas e, não raro, nefastas. Esquece-as, por favor! Assim é em
qualquer canto da Terra!
Creio que basta, Se abusei das exclamações admirativas,
perdoa-me, também. Hás de convir, leitor amigo, que não poderia
ser diferente. E não me chames de piegas, peço-te. O excesso de amor
pode, sim, conduzir a pieguismos, mas, põe-te no meu lugar. Farias
certamente o mesmo! Duvidas? Então vem comigo. Desçamos a Serra
juntos. Terás certeza de que não exagero.
Minha Santos pode não ser a “Cidade Maravilhosa”, contudo,
que maravilhosa cidade é a minha Santos!
Vem!... Mas pisa com respeito este chão santista! E,
principalmente, pisa com muito ... muito Amor!
Vem!...
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Retrospecto
Carolina Ramos
Que medão danado eu tinha daqueles olhos cinzentos!
Pétreos! Frios! Olhos que tanto intrigavam meus tenros quatro
anos de idade. Medo que, longe de me afastar deles, mais a eles
me impelia, ajudado pelo empurrão da curiosidade, bichinho
irrequieto, faminto de saber, que mora dentro das crianças e não
sossega enquanto não tira tudo a limpo, tim-tim por tim-tim!
Era uma curiosidade muito especial que todos os dias me
arrastava cada vez para mais perto daquele jacaré de pedra, de
olhos cor de cinza, tão eloquentes dentro da inexpressiva frialdade.
Mágico! Plantado ali, na Praça dos Andradas, naquele tempo um
dos pontos mais nobres da nobre terra santista, lá estava ele,
jorrando água pela bocarra escura, quase que escondido num canto
discreto, rodeado de pedras cobertas de musgo e plantas umbrosas
a bebericar água fresca e cristalina. Tudo acobertado pelo frondoso
dossel dos ficus vetustos, franjados de parasitas, escorados por
vigorosas raízes eu lhes garantia a solidez dos caules e da galharia
espessa, onde bichos-preguiça “preguiçavam“, como se tivessem
pela frente a vida inteira para passar de um ramo para o outro, sem
que ninguém lhes cobrasse pressa.
No meio da Praça, o coreto. Não um coreto qualquer, como
tantos por aí ainda encontrados, a valorizar praças de cidadezinhas
do interior, a oferecer música e singeleza à sensibilidade dos que
habitam o casario ao derredor. A visão infantil não me forneceu à
memória a filigrana dos pormenores, mas, posso garantir que, até
hoje, nenhum outro coreto me pareceu tão bonito, tão fidalgo e
tão digno de despertar saudades quanto aquele! Nenhum! E não
é bairrismo, não! Quando as luzes se acendiam e a retreta iniciava
a função, o povo vinha chegando e era como se um grande teatro,
amoitado à penumbra do arvoredo, abrisse as cortinas, convidando
à seresta! E, então, como que surgidos do nada, pequeninos gnomos,
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travestidos de crianças, corriam à volta dele, brincando de pegapega!
“- Psiu! criançada! Olha o barulho... é hora de música!”
Tinha razão o estrilo dos adultos apinhados à espera dos
primeiros acordes. As crianças aquietavam-se. Trégua curta! Difícil
de ser mantida! Mas, havia sempre aquele ponto de equilíbrio
garantindo interesses de ambas as facções. A meninada acabava
por afastar-se do coreto, estendendo o pega-pega lá para os lados
do jacaré de pedra, que vigiava a brincadeira, caladão, substituindo
o psiu! castrador, pelo alegre e repousante chuá das águas
borbulhantes!
Restaurada, há alguns anos, a Praça ganhou fôlego, mas
perdeu o primitivo encanto. O coreto, banido! Obsoleto? Nunca!
Espaço para a música jamais pode ser assim, pejorativamente,
classificado. E, Deus do céu! - aquele coreto era um símbolo sagrado
e dos mais autênticos da Santos antiga!
A magia da fonte do jacaré de pedra, também não fora
preservada. Expulsa a picaretadas! As preguiças, umas poucas
ainda por lá andavam, “preguiçando”... ou, quem sabe, mais ágeis,
não raro caçadas, mercê das propriedades afrodisíacas atribuídas
pelo folclore ao seu pelo áspero, cor de castanha. Pobre delas!
E ali, ao lado da Praça, às costas do jacaré, o glorioso e
vilipendiado Teatro Guarany, desgastado e em ruínas! Tradições
esmigalhadas pelas mãos do descaso! Apenas o frontispício,
humilhado, lambido pelo fogo, abatido pela indiferença, ainda
sobrevive! Esse teatro, de tão augustas tradições, a meninada de
hoje não conheceu, a não ser a sua carcaça, apossada por ervas
daninhas – velho fantasma da ópera, a lembrar os tempos do
apogeu!
Quem continua firme, inalterado, é o prédio austero da
Cadeia Velha. Sólido! Maciço! Não mais um vulto sinistro. Tombado
e restaurado! Liberto, em definitivo, das funções justiceiras. Celas
dinamizadas, a abrigar artistas, (em breve despejados, e, logo depois,
reintegrados) à mercê das decisões das autoridades competentes.
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Praça dos Andradas! – Com a complacência do Patriarca, dos
seus ilustres manos, e remanescentes da augusta família, dou-lhe o
nome de “Praça da minha Infância”!, já que ela mesma se antecipou,
emprestando seu nome à Vilazinha em que nasci, na casa número
cinco, pequenina, geminada, ao alcance das possibilidades de meus
pais, recém-casados. Na mesma Vila dos Andradas, onde hoje está
instalada a Rodoviária de Santos, na casa 1, Martins Fontes dividia
seu mundo de ternura, seus arroubos poéticos e sua ânsia de amor,
com os braços macios da sua Rosinha, tépidos e pródigos de ternura.
A meninada daquele tempo cresceu. E, assim como eu, envelheceu.
Por onde andará aquela gente boa que, juntamente com as
personagens de Monteiro Lobato encantaram a minha infância?!
Lembro-me de quase todos os nomes, embora com cinco anos de
idade tivesse deixado a Vila.
Vez ou outra, entretanto, reencontro um desses elos
perdidos. E, então, é uma festa! As reminiscências acontecem, há
um retrospecto gostoso, rejuvenescedor!... Depois... bem, depois a
vida nos manda de volta, cada um para o seu canto, que a infância só
acontece uma única vez! Quando ela se vai, os caminhos, múltiplos,
podem cruzar-se... ou, quem sabe, nunca mais!...
Neste outubro, depois de tanto tempo, voltei a visitar a
”minha praça”, a Praça dos Andradas. Agora, reformada uma vez
mais. Valorizada! Sua beleza aflorara com aquela graça de dama
antiga, renascida com toques de modernidade para ser novamente
cortejada! Senti saudade, confesso, da minha praça de ontem,
percorrida por mim, de ponta a ponta, de velocípede e de patinete!
O coreto e o jacaré não sobreviveram. Vitimas do progresso
enterradas no passado!
Mas, o importante, o importante mesmo, é que vencendo
o tempo, a magia voltara a reinar naquele espaço verde, onde
consegui ouvir os ecos de minha longínqua infância! E que festa,
meu Deus! Que festa!...
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Um pequeno adendo, em nome da justiça. Estas
reminiscências foram escritas já há algum tempo. Tempo esse que
não encampara ainda a reforma sofrida pelo velho Teatro Guarany
- hoje, restaurado, modernizado, e, com aparência mais jovem do
que esta mão que escreve, posto a serviço da cultura artística da
terra santista.
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Clotilde Paul
É membro da Academia Santista de Letras desde 1984, ocupante da
cadeira nº 10, cujo patrono é Emília de Freitas Guimarães.
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Santos, cidade porto
Clotilde Paul
A cidade é o Porto, o Porto é a cidade, um caso de amor antigo, uma
união indissolúvel, que se oficializou com a inauguração dos primeiros 260 metros do Cais de Pedra e a atracação do vapor inglês Nasmith em 1892.
Mas essa cumplicidade é muito mais antiga. Para alguns historiadores tudo começou no dia 22 de janeiro de 1502(03?), quando Gonçalo Coelho pensou ter descoberto um rio entre as ilhas de
Guaiaó (atual ilha de São Vicente) e Guaibê (ilha de Santo Amaro), ao
qual denominou Rio de São Vicente, em homenagem ao santo do dia:
São Vicente Mártir. Confundiu-se o navegador português porque não
era um rio, mas apenas um canal marítimo.
Documentos e mapas da época comprovam ter ele fundado
o Porto de São Vicente no local hoje chamado de Ponta da Praia, em
frente à Ponte dos Práticos ou Edgar Perdigão.
Por meio desses documentos, ficamos sabendo que deixou
em Cananéia um degredado português, Cosme Fernandes, também
conhecido por Bacharéu da Cananéia, que mais tarde teria vindo para
a ilha de São Vicente, onde se casou com a filha de um cacique, cujo
nome desconhecemos. Dessa união resultou um pequeno povoado,
onde hoje está a Biquinha (São Vicente) mas o Porto de São Vicente,
continuava na Ponta da Praia, onde faziam escalas as embarcações
vindas da Europa, com destino ao rio da Prata, porque a viagem era
muito longa.
O Porto de São Vicente contudo, não despertava interesse comercial, pois não oferecia mercadorias de retorno. Cosme Fernandes
apenas lhes vendia alimentos frescos e escravos, índios tupinambás
que aprisionava. Por essa razão o Porto de São Vicente passou a ser
denominado Porto dos Escravos.
Na minha opinião pessoal a relação Porto Cidade teve inicio
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com a chegada de Martins Afonso de Souza em 1532 trazia ele 32
sesmeiros aos quais distribuiu terras. Entre eles estava Brás Cubras,
um jovem de 24 anos inteligente e ambicioso. Fundou a Nova Povoação, por volta de 1540. Homem de visão, logo percebeu que o desenvolvimento da povoação estava na dependência do Porto e, então, o
transferiu para o Largamar de Enguaguaçu, próximo ao Outeiro de
Santa Catarina.
Esse porto, contudo, teve pouca importância econômica e,
entre os séculos XVI e XVII, não passou de um modesto entreposto
comercial. Nessa época, o principal produto exportado era o açúcar,
dai a denominação de Porto do Açúcar.
Nas ilhas de São Vicente e Santo Amaro, estabeleceram-se vários engenhos: dentro os quais o mais importante foi o de São Jorge
dos Erasmos, hoje com acesso na altura do nº 600, da avenida Nossa Senhora de Fátima, junto ao Morro da Caneleira. Martim Afonso de
Souza criou uma sociedade para explorá-lo, mas vendeu sua parte a
Erasmo Schetz, da Antuérpia, daí o nome de Engenho dos Erasmos.
A década de 30 do século XVI marcou o início do ciclo do açúcar na região, tornando-a, de certo modo, pioneira da industrialização nacional.
Porém o Nordeste do Brasil, com terras mais férteis e clima
mais apropriado para o plantio da cana de açúcar, iniciou uma produção de melhor qualidade. Como a distância para a Europa era menor,
o preço do frete foi reduzido, o que propiciou um menor custo do
produto. Então, o Porto do Açúcar ficou estagnado.
Entre 1631 e 1801, Portugal decretou o monopólio do Sal, determinando que todo produto consumido no Brasil fosse importado do
Porto de Setúbal. O sal vicentino era estocado nos armazéns do Valongo, situado na Rua do Sal, hoje José Ricardo. A escassez do produto deu origem ao câmbio negro, que lhe elevou o preço, daí a Revolta
do Sal, no início do século XVIII. Liderados por Fernandes Faria, os
moradores de Taubaté armaram seus escravos, desceram a serra e
arrasaram os armazéns da Vila.
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À época, a capitania de São Vicente passou a ser denominada
capitania de São Paulo; e Santos tornou-se Porto do Sal. A descoberta
do ouro em Minas Gerais, em 1693, por Antônio Rodrigues de Arzão,
início o Ciclo do Ouro no Brasil. A produção aurífera passou a ser escoada para o Porto de Santos através de Bragança Paulista. Eis porque
Santos, por pouco tempo, no século XVII, teve uma Casa de Fundição,
onde se fazia o pagamento do Quinto. E Santos passou a denominar-se
Porto do Ouro.
Em 1706, Garcia Paes abriu o “Caminho Novo”, e o ouro das Minas Gerais passou a ser escoado pelo Rio de Janeiro, porque encurtava
as distâncias com o Reino. A capitania de São Paulo, entrou em decadência e perdeu a autonomia. A Vila de Santos tornou-se sua sede durante dezessete anos, porque estava mais próxima do·Rio de Janeiro,
que se tornara a capital do Vice-Reino do Brasil.
Para resolver a grave crise paulista, o Marques de Pombal, ministro de D. José I, nomeou D. Luiz Antônio de Souza Botelho Mourão,
o Morgado de Matheus, para governar a capitania com a tarefa de reerguê-la. Visando superar a crise, ele incentivou o plantio da cana de
açúcar no interior e no litoral. Inicia-se um segundo ciclo de açúcar.
O novo governador, Bernardes José Maria de Lorena, percebeu
a necessidade de uma estrada para trazer o açúcar do planalto para o
Porto de Santos e mandou construir a “Calçada do Lorena”, em 1792.
Era um caminho sinuoso, pela Serra do Mar, pavimentado com pedras,
e que funcionava como um verdadeiro corredor de exportação da época, por onde os tropeiros traziam o açúcar
Bernardes Lorena também proibiu que o açúcar do litoral Norte fosse enviado para o Rio de Janeiro, determinando que deveria ser
escoado pelo Porto de Santos. Com isso, criava-se o monopólio santista
da exportação de açúcar e Santos foi novamente o Porto do Açúcar.
Até a metade do século XIX, Santos foi um porto subsidiário do
Rio de Janeiro, porque todos os produtos que se destinavam à exportação eram para lá enviados. No século XVIII, as atividades portuárias
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concentravam-se em dois ancoradouros: Porto do Consulado, em frente à Rua do Consulado, atual Frei Gaspar, que na verdade não era um
porto mais uma ponte de madeira a beira da qual havia um barracão
onde funcionava a mesa do consulado anexa à alfândega.
Era ali que se arrecadavam os direitos de ancoragem e o Porto
do Bispo também conhecido por Porto das Canoas e esse sim era um
ancoradouro que ficava na altura no atual Largo Marquês de Monte
Alegre, no Valongo. Recebeu o nome de Porto do Bispo por ter nele
desembarcado em 1797, Dom Mateus de Abreu Pereira, o 4º Bispo de
São Paulo. Aos poucos, o açúcar foi sendo suplantado pelo café, graças
à expansão do seu consumo na Inglaterra e nos Estados Unidos, após
a Revolução Industrial. No século XIX, tomar café estava na moda, era
chique. Paris estava cheia de “Cafés”, estabelecimentos próprios para o
consumo da bebida.
O café trouxe, em 1867, a estrada de ferro São Paulo Railway, a
“lnglesa”, que partia de Santos, passava por São Paulo e chegava à Vila
de Jundiaí. O transporte das sacas de café, que chegavam a Santos pela
ferrovia, demorava apenas quatro horas. Era feito por carroças que as
levavam aos trapiches, que ao contrário do que muitos pensam não
eram as pontes de madeira e sim os armazéns junto às margens. A riqueza do café foi responsável pelo desenvolvimento de Santos. Em 26
de janeiro de 1839, foi elevada à categoria de Cidade.
A chegada de imigrantes, principalmente portugueses, espanhóis e italianos, aumentou a população. Organizou-se o comércio do
café com a criação da Associação Comercial e a construção de uma
nova alfândega. Ingleses, alemães, norte-americanos e franceses abriram muitas firmas comerciais e, na década de 60, a cidade embelezou-se com os casarões em estilo neoclássico.
Mas, se o café modificou a fisionomia da cidade, a partir da segunda metade do século XIX, ele também foi responsável pela proliferação da febre amarela, da varíola, da peste bubônica, do tétano e da
tuberculose, epidemias que fizeram de Santos o Porto da Morte.
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A produção cafeeira do Estado aumentou e precisava ser exportada, e a infra-estrutura portuária e urbana necessitava de melhorias. Em 31 de agosto de 1870, o Decreto 4.584 (o primeiro ato
oficial sobre o melhoramento do porto de Santos) deu permissão ao
Conde de Estrela e a Francisco de Andrade Pertence para fazerem
as obras necessárias. Mas a iniciativa fracassou. Doze anos depois,
nova concessão foi feita, agora por iniciativa do Governo da Província
de São Paulo, que também não deu certo. Finalmente, em 1888, um
grupo de empresários entre os quais Cândido Gaffrée, e Eduardo Palassim Guínlle, venceu a concorrência aberta pelo Governo Imperial.
Dessa forma, em 1889, constituía-se a Empresa das Obras dos
Melhoramentos do Porto de Santos e, já no ano seguinte, assentou-se a primeira pedra no Cais, à altura dos armazéns IV e V. O Decreto
9.979 concedeu à empresa o direito de explorar o porto por trinta
e nove anos, prazo esse alterado para noventa. Em 1892, surgiu a
Companhia Docas de Santos. E, a despeito de todas as dificuldades,
inauguraram-se em 2 de fevereiro de 1892, os primeiros 260 metros
de cais com a atracação do navio “Nasmith”. A partir de então, o Porto e a cidade tornaram-se indissociáveis.
Em 1980, com o término do período legal de concessão da
exploração do porto pela Companhia Docas de Santos, o Governo Federal criou a Companhia Docas do Estado de São Paulo - Codesp, empresa de economia mista, de capital majoritário da União.
Em aproximadamente duas décadas, Santos despiu-se das
antigas roupagens coloniais, marcou presença no mercado internacional e fez a fortuna de muitos homens. Era uma cidade cheia de
contrastes: barulho e pobreza, canais e avenidas que separavam ricos e pobres. Grandes contingentes de trabalhadores ligaram-se às
atividades portuárias. Eram homens que enchiam e esvaziavam os
porões dos navios; e o movimento operário de Santos avantajou-se,
sobretudo por meio dos sindicatos portuários e dos trabalhadores da
construção civil, sob a influência do anarcossindicalismo.
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A construção do Porto e o saneamento da cidade são obras interligadas. Coube à Cia. DOCAS a dragagem do lodo negro que a cercava,
o aterro de algumas ruelas à beira-mar e a canalização dos riachos. Em
1893, havia em Santos, uma comissão sanitária do governo estadual,
responsável pelo combate às epidemias, controle dos cortiços, lavanderias públicas, cocheiras e armazéns; respondia também pelos possíveis
focos de peste e pelas vacinações. Seu chefe foi o médico Guilherme Álvaro, que deixou documentação a respeito: Mais tarde foi substituído pelo
engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, responsável pela construção
dos canais. A cidade continuava a crescer e o Porto também que se alongava através da muralha do cais onde se assentava trilhos, erguiam-se
guindastes e armazéns. Os navios de todas as nações encostavam à praia.
Pelas ruas há um corre-corre. Gente de todas as classes, e todas as cores e raças conduzem contas comerciais, cheques bancários,
maços de cédulas do tesouro e latinhas com amostras de café. Grandes
carroções puxados por muares possantes transportavam, da estação
do caminho de ferro para o embarcadouro, os sacos de aninhagem
cheios de café. Homens de força bruta, em sua maioria portugueses, levavam um ou dois sobre a cabeça, em passo acelerado. Os cortiços, nas
zonas mais centrais, albergavam a numerosa imigração. Construídos
nos pátios e nos quintais dos prédios, eram cubículos imundos, feitos
de tábuas de caixote e folhas de zinco.
O número das carroças que transportavam o café cresceu, aumentando o número das cocheiras, construídas ao acaso, com pranchões e telhas de zinco, quase sempre complementando os cortiços,
sem água, sem esgoto, abafados e insalubres. Por todo canto da cidade
encontravam-se portuários: estivador, doqueiro ou conferente. Eles
mantém a cidade, porque a cidade era o Porto que absorvia a maior
parte da mão de obra do município. Somente os trabalhadores da
Companhia Docas de Santos, em 1940, representavam 12,3% da população economicamente ativa. Se o trabalhador portuário parasse,
a cidade parava.
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As greves no Porto acarretavam perdas consideráveis e a rapidez com que se organizavam atesta o domínio que os trabalhadores tinham sobre a cidade.
O Porto transformou-se no Porto Vermelho e Santos na Barcelona brasileira. Exemplo disso é a greve portuária ocorrida em 1946,
durante o governo Dutra, quando os estivadores se negaram a embarcar o café que o governo brasileiro oferecerá ao ditador Francisco
Franco da Espanha. Apesar de toda importância do portuário, eles
somente aparecem na história como símbolos, mas nunca como sujeitos históricos. São sempre representados realizando trabalho braçal, como atores coadjuvantes na criação do grande Porto, carregando, nas costas ou sobre a cabeça, os produtos mais importantes da
economia nacional. Pelas ruas homens corriam, fazendo às pressas a
viragem, as misturas e o reensaque do café. Era um formigueiro humano, que subia e descia as pranchas do cais, levando os sacos para o
convés do navio ou de um navio para outro. Impressionava assistir às
atividades dos carregadores do café, que transportavam vários sacos
de 60 kg sobre a cabeça até os armazéns das Docas.
Um estivador de nome Jacinto chamou a atenção e tornou-se
famoso ao ilustrar postais que circulavam no começo do século XX,
nos quais aparece com cinco sacas de café sobre os ombros e que
totalizavam 300 kg. A presença da classe operária revela-se no Brasil no final do século XIX, a partir das primeiras greves. Em 1877, os
carregadores de café entraram em greve por aumento de salários;
seguindo-se outras greves Em 1891, a primeira greve geral em nível
local e do país, foi significativa para o nascimento do movimento operário santista. Os operários lutavam pela uniformização salarial, pelas 8 horas de serviço e pela humanização do trabalho. Tudo isso nos
aponta, em Santos, uma comunidade operária que lutou pelos seus
direitos. E foi nessa comunidade que o anarcossindicalismo floresceu. Eles se ressentiam de ser tratados como escravos pela poderosa
Cia. Docas e desejavam ver seus sindicatos reconhecidos. Uma ampla
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reforma urbana acompanhou a mudança no Porto, reconstruindo o
espaço público, separando os bairros proletários dos mais refinados,
expressando uma estrutura social mais complexa. Ao mesmo tempo,
a imigração, principalmente de portugueses e espanhóis, mudou a
face mestiça da força de trabalho santista, no exato momento em que
se formava uma classe operária.
Os trabalhadores do Porto ocuparam, então, uma posição de
destaque na comunidade operária local. O Porto era como é hoje o
coração da cidade. A globalização, a liberação dos mercados, baseados nas atividades multifuncionais dos seus recursos humanos,
provocaram uma grande reestruturação no mercado de trabalho. A
sociedade foi atingida pelo desemprego. As mudanças tecnológicas,
advindas da competitividade, reduziram a mão de obra necessária no
processo de produção e a procura concentrou-se nos trabalhadores
qualificados. A partir de 1968 passou-se a utilizar os conteiners. Hoje
Santos é o porto de tudo.
Ao pensarmos no futuro do Porto de Santos, não devemos
examinar apenas as questões de investimento financeiro ou da crescente movimentação portuária. O grande desafio a vencer é dotar
o Porto de Santos de ínfraestrutura, logística, instalações e mão de
obra qualificada, sem esquecer do retroporto, para que ele opere em
condições de competitividade mundial. Nunca será demais lembrar
que a história de um pais é fruto da riqueza do solo, do trabalho do
seu povo e das atividades portuárias e o Porto de Santos pode orgulha-se de muito ter contribuído para escrever a história do Brasil.
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Santos de ontem, Santos de hoje
Clotilde Paul
“Todos cantam sua terra, também vou cantar a minha”
Gonçalves Dias
Velha, sempre nova cidade, de morros casados com o mar. Filha querida de Brás Cubas, Nóbrega e Anchieta. De ti sou testemunha,
parceira, cara de muitas caras, mãos de muito fazer.
Nasci junto ao cais, pertinho da estação. Em mim, o cheiro
gostoso do bom café, em meus ouvidos, o ranger de trilhos, o apito
dos navios levando e trazendo riquezas, porta aberta para o mundo
por onde entraram os imigrantes unidos em um só coração.
Santos dos canais, dos jambolões, das palmeiras imperiais,
das cigarras cantadeiras, das andorinhas que transformavam os fios
elétricos em pautas musicais que tem, no alto do morro, uma Virgem Morenita que cuida de todos nós; Santos dos becos estreitos por
onde passo à sombra da minha sombra, das igrejas barrocas - Carmo,
Ordem Terceira onde a lua nova se casa com a bela talha dourada;
das igrejas tradicionais - Convento de São Bento onde fiz a primeira
comunhão, Santo Antonio do Valongo, Nossa Senhora do Rosário; Coração de Maria onde fui batizada; das procissões, das Filhas de Maria,
Congregados Marianos, do florido maio em louvor a Virgem Maria,
da primeira Igreja Batista onde o pastor Alberto Augusto ensinava,
em linguagem simples, o texto bíblico.
Santos da Rua Direita, hoje Quinze, pisada pelos corretores,
novos ricos do café, escravos forros, abolicionistas e republicanos.
Santos dos armazéns de café, onde meu pai no Aliança de
Armazéns Gerais, fez a primeira máquina beneficiadora do café em
grão, dos carregadores e ensacadores de sacos, costureiras e catadoras de café, da Rua São Bento, da farmácia do Clovis, das pensões, da
quitada do Sr. José e da Dona Maria São Pedro, barbearias, alfaiates
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e da Casa Amado de ferragens e importados de propriedade do Sr.
Manoel Amado.
Santos do palacete Comendador Neto antiga sede do legislativo e executivo da cidade, do luxuoso hotel da estação do Sr. Carolino,
da benemérita Santa Casa, Outeiro de Santa Catarina, marco da fundação da cidade, Associação Comercial, Bolsa do Café, Casa do Trem
Bélico, do Miramar, centro de diversão e esporte “vamos ao Miramar
mesmo que chova”, Vila dos Pássaros, origem do orquidário, da Sociedade Humanitária, dos magníficos salões de mármore do Parque
Balneário, dos saraus elegantes do Clube XV, do baile das debutantes
do Tênis Clube, dos festivos bailes de carnaval, do Clube dos Ingleses
e do Atlético Santista.
Santos dos bondes de tração animal, que faziam mudanças,
enterros e casamentos, depois elétricos, dos lampiões a gás, dos balões das noites de São João.
Santos dos teatros Guarani e Coliseu, onde se apresentaram
artistas internacionais e nacionais Procópio Ferreira, Dulcina e Odilon, Cacilda Becker; dos cinemas de bairro: São José, Dom Pedro,
Carlos Gomes, Astor, Cine Teatro Atlântico o primeiro a ter poltronas estofadas, ar condicionado e a exibir o primeiro filme falado; das
matines dançantes, quando o beijo pedido ou roubado sabia pecado,
que unia os jovens nas tardes de domingo no Palacete Humanitária;
nos cabarés elegantes: Gambrinos e Casa Blanca reduto de filósofos e
políticos onde, também, se vendia amor; do pão sovado da Cirilo, dos
doces da Democrata, do chopp do Nicanor e do elegante chá da tarde
da Confeitaria Rosário.
Santos de Guilherme Álvaro e Saturnino de Brito que salvaram a cidade das epidemias.
Santos da PRB4 pioneira emissora radiofônica de Santos e
PRG5, do Teatrinho de Brinquedo da Dindinha Sinhá, e também de
Querubim Correia, Arnaldo Gonçalves, Caldeira Filho que provocavam suspiros durante as transmissões das novelas radiofônicas dos
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programas: Um Romance para Você e Teatro da Noite.
Santos do Jabuca, da Briosa, do Santos Futebol Clube onde
pontificaram Athie Jorge Cury, goleiro e deputado, Ciro, o gato negro,
Gilmar dos Santos Neves, Pepe e Zito; Santos dos campinhos da várzea onde só havia a disputa sadia dos jovens que desconheciam as
drogas; dos clubes náuticos da Ponta da Praia: Internacional, Vasco
da Gama e Regata Santista.
Santos das noites tranquilas que reuniam os vizinhos para
conversar enquanto os filhos brincavam de ciranda - cirandinha,
estátua, passar anel, biblioque, pião, ioiô, amarelinha, tempo da inocência que se foi quando o pão e o leite eram deixados às portas das
casas que não se fechavam durante o dia; do apito do carrinho de
pipoca e do amendoim, da gaita do afiador de facas e tesouras, da
matraca do vendedor de biju, do tin-tin do funileiro que arrebitava
o fundo das panelas que enchiam o ar das manhãs e das tardes com
uma sinfonia de sons, das confraternizações festivas que reuniam as
famílias e os amigos - Natal sem árvore enfeitada e Papai Noel - quem
trazia os presentes era o Menino Jesus que os colocava nos sapatos
das crianças à beira da cama, Páscoa oportunidade dos padrinhos
presentearem os afilhados com amêndoas confeitadas - não havia
ovo de chocolate.
Santos quando por favor, obrigada (o), com licença levantar-se para ceder lugar aos idosos, grávidas e deficientes faziam parte
das boas maneiras das crianças jovens e adultos.
Santos do centro lento e comércio pujante: Casa Rio Branco, Loja das
Novidades, Papelaria Minerva, Casa Alemã, Casa Lenck, Bazar das
Crianças, Ao Preço Fixo, Casa Sloper, Ferreira de Souza; Bazar Paris
onde comprei romances de M. Delly da coleção das moças e também
Machado de Assis, Honoré de Balzac e André Gide, Casa Moises (no
Gonzaga) onde as alunas da faculdade de Filosofia (FAFIS) compravam o cinto de verniz preto do uniforme de mocinhas bem comportadas; da mercearia Natal e da Casa Haia do Sr. Vicente Tavares que
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disputava os fregueses dos importados com a mercearia Cruzeiro do
Sr. Valdemar, do Mercado Municipal repleto de compradores e vendedores, das bancas de peixe onde se destacava a do
Sr. João
Grottone - o Lúcio Grottone colocava um ramo de arruda atrás da
orelha e cantarolava cançonetas napolitanas, da Açucareira Santista
que vendia o açúcar Perola em vistosa embalagem azul, da Leonesa
cujo gerente o Sr. Prior zelava pela boa qualidade da bananada Cascão, bananada Crioula e deliciosos cristalizados.
Santos das cadernetas onde os caixeiros das vendas registravam os pedidos das compras mensais feitos pelas donas de casa em
suas próprias residenciais.
Santos dos Lambe-Lambe da Praça dos Andradas, dos fotógrafos: Ekman, Boris Kaufman, Oriental e Narciso, dos repórteres fotográficos José Herrera (Zezinho), Pedro Peressim (o Barbado); do
corso carnavalesco na Praça Mauá, das batalhas de confete, do sempre rei momo Waldemar Esteves, dos blocos carnavalescos, Chineses
do Mercado do qual o Sr. Jaime Frias era a alma e o coração, dengosas
do Marapé, Bola Alvinegra, Vassourinhas, Agora Vai e do Banho da
Dona Dorotéia.
Santos das escolas tradicionais: São Joãozinho, Barnabé, Olavo Bilac, José Bonifácio que nos deu a primeira faculdade de Direito
e de Farmácia e Odontologia que lamentavelmente não vingaram,
Coelho Neto, Escolástica Rosa, Carmo, Ginásio Santista, Canadá, Liceu Feminino Santista onde aconteciam os Jogos Florais que premiaram os poetas Paulo Gonçalves e Fábio Montenegro, Casa de Nossa
Senhora, das Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado que de hábito
azul eram educadoras e em trajes leigos evangelizavam os operários
dos armazéns de café, do Porto, os Militares e os encarcerados, do
Instituto Musical Santa Cecília, do Conservatório Musical de Santos
dirigido pelo maestro Tabarin; de professores enérgicos: Tarquínio
Silva, Vicente de Carvalho, Durval Ferreira, Zulmira Campos, Zulmira
Lambert, Zeni de Sá Goulart, nossa primeira vereadora, Paulo Siquei52
ra, Frenor Pereira, Walquíria More, Luís Carranca, Júlio Guimarães
Sampaio, dentre outros, formaram gerações.
Santos de médicos competentes que salvaram muitas vidas:
Martins Fontes (pai e filho), Manoel Gonçalves, Hugo Santos Silva, Rivaldo de Azevedo Filho, Tomás Catunda, Lobo Viana, Guedes Coelho,
Ribeiro Gomes, Domingos Pinto, Júlio Moreno, Tarcísio Loureiro e
dos dentistas Eros Chaves, Sylvio M. Pinto, Pedro Uzzo; dos medicamentos amargos que curavam: Emulsão de Scotch, Óleo de Fígado de
Bacalhau e do Emplastro Sabiá para dores musculares.
Santos libertaria, pioneira do Socialismo de Silvério Fontes,
da primeira greve geral operária do Brasil, José Bonifácio, nosso orgulho maior, Quintino de Lacerda Quilombo do Jabaquara - Santos
Garrafão e Silva Jardim que ensinaram o valor da liberdade; da imprensa livre, do Diário de Santos, da Revista Flama, do Centenário a
Tribuna administrado pela família Santini que nos traz o Brasil e o
Mundo.
Santos dos pintores, poetas, escritores, atores, de Zezé Leone,
a primeira Miss Brasil e Alexandre de Gusmão, cientista das Américas.
Santos Porto do Açúcar - Engenho dos Erasmos, do sal, do
ouro, do café vermelho - Barcelona brasileira, porto de tudo, que modificou a semântica do nosso idioma: bagrinho - estivador, média pão comido no meio da jornada do trabalho portuário e também nos
deu José Gonçalves, atuante e ético vereador e um criminoso famoso
- Antoninho Navalhada.
Santos de ontem, Santos eterno que fez parte da minha mocidade, tempo que em vida não esquecerei nunca.
Santos hoje progressista em transição, do boom imobiliário,
gerador de empregos, do VLT que integrará as cidades da Baixada, do
pré-sal esperança de economia pujante, da ciclovia, facilitadora do
transporte, das policlínicas, que procuram minimizar os problemas
de saúde dos mais carentes, dos ônibus climatizados com wi-fi que
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nos colocam no primeiro mundo, das universidades entre as melhores do pais, células de conhecimento e pesquisa que dão aos jovens
a oportunidade do saber; dos centros comunitários de cultura e esportivos, dos clubes de servir: Rotary e Lions, das Lojas Maçônicas e
instituições sociais: Casa da Esperança, São Vicente de Paula, Lar das
Moças Cegas, Mensageiros da Luz, Projeto Tan-Tan, do Centro Português (hoje Centro Cultural Português) que já nos brindou, no passado, com as apresentações do seu corpo cênico Júlio Dantas dirigido
pelo Sr. Faraco, do Centro Espanhol, das bordadeiras do Morro de São
Bento que com agulha e linha criam verdadeiras obras primas, dos
cruzeiros marítimos que nos trazem o mundo, das tvs regionais onde
se destaca a Tribuna - Eduardo Silva (Diretor de Jornalismo) dos muitos credos religiosos, das pastorais versão moderna da Ação Católica,
dos shoppings, supermercados, pizzarias, temakerias, do pastel do
Carioca, das queijadinhas Praianas, do sorvete Itanhaém, do cafezinho do Bar do Atlântico e do maravilhoso espetáculo pirotécnico da
virada do ano, dos belos jardins da orla, onde caminho sem pressa,
sob o mesmo o sol da minha mocidade, deixando impresso da areia
meus passos de pescadora do asfalto.
Santos de hoje que tem muito para fazer e muito a esperar dos
seus vereadores e do jovem prefeito Paulo Alexandre Barbosa.
Santos minha Santos, os sonhos dos jovens de ontem renascem nos jovens de hoje porque tu és a nossa cidade.
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Edith Pires Gonçalves Dias
É membro da Academia Santista de Letras desde 3 de abril de 2000,
ocupante da cadeira nº 25, cujo patrono é Vicente de Carvalho.
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Discurso aos 469 anos de Santos
Edith Pires Gonçalves Dias
Vinte e seis de janeiro é uma data que esperamos com ansiedade. É a
oportunidade de felicitar nossa querida Santos pelos seus 469 anos,
e dizer-lhe o quanto a amamos.
Voltando ao passado, imaginamos uma cena que nos emociona: os portugueses fundando o povoado de Santos e São Vicente, que
depois se separariam. Ao longo do tempo essa divisão foi consolidada
e passaram a ser vilas vizinhas, cada uma seguindo a sua trajetória.
Em 1543, Braz Cubas fundou a Santa Casa e foi ao seu redor que a vila
de Santos surgiu, em 1546. Até hoje, a Santa Casa, primeiro hospital
do Brasil, é a imagem da nossa tradição.
Um dos fatores que mais concorreu para o desenvolvimento
de nossa cidade, foi a criação do porto, o maior da América do Sul, e
um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento do comércio
entre o Brasil e os demais países do mundo.
Hoje temos uma ideia exata da qualidade de vida de nossa cidade, o que a faz receber muitas pessoas de fora, principalmente os
mais idosos, que nela reconhecem o lugar ideal para viver. Sem dúvida, nossa querida Santos justifica o título de “Terra da Caridade e da
Liberdade”.
A verticalização da cidade começou na década de 1950, e hoje
observa-se um número incalculável de edifícios. A procura por terrenos que viabilizassem essas construções provocou a demolição de
muitas casas e prédios tradicionais, como o Parque Balneário Hotel.
Mas, antes disso, foi construído um edifício de apartamentos que durante muitos anos permaneceu único, o Palacete Olimpia, na Avenida
Presidente Wilson, esquina com a Rua Olavo Bilac. Pela sua importância e tradição, ele é tombado pelo nosso Patrimônio Histórico.
Este ano que findou teve como destaque a inauguração do
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Museu Pelé, que tornou realidade um sonho de muitos anos. Ele trouxe de volta a importância do Valongo, que tem como marco principal
a Igreja de Santo Antônio.
Um dos avanços mais nítidos de nossa cidade está no campo
da educação. Hoje ela pode ser definida como Cidade Universitária. A
existência de várias universidades a tornaram muito procurada por
jovens de outros lugares, que aqui desejam construir sua formação
profissional. Ao longo do tempo, através de incansáveis esforços de
nossa Prefeitura, o analfabetismo foi banido completamente, elevando ainda mais o conceito de nossa cidade. A instrução é a pedra fundamental do sucesso de todos. Merecidamente, nossa cidade sustenta o título de Cidade Educadora.
Temos muito orgulho de saber que Santos ocupa lugar de destaque entre as melhores cidades do Brasil para se viver. Até hoje, os
jardins da praia mantém sua fama e encantam os turistas. O que encanta também é a maneira como são recebidos, o que ficou evidente
por ocasião da Copa do Mundo, quando tivemos a oportunidade de
hospedar duas seleções estrangeiras.
O santista tem uma meta: a renovação constante de suas belezas. Ao observarmos essa qualidade dos santistas, experimentamos
um sentimento de profunda gratidão. O Projeto Alegra Centro é um
exemplo disso, tendo proporcionado investimentos que revigoraram
o nosso centro velho, ajudando a recuperar e manter o nosso patrimônio histórico e cultural.
Temos de ser gratos às gerações que nos antecederam, e ajudaram a construir uma cidade que é orgulho para o Brasil! Ela não ;e
grande no tamanho de sua área urbana ou de sua população, mas é
grande no espírito de solidariedade e na capacidade de trabalho. Não
é fácil conciliar o desenvolvimento econômico com a qualidade de
vida e a defesa do patrimônio cultural. Nosso progresso tem de ser
constante, mas tudo que representa nossa história tem de ser preservado.
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Citamos como exemplo o Casarão Branco onde está a Pinacoteca Benedicto Calixto. Ele esteve ameaçado de desaparecer, para
dar lugar a vários prédios, uma vez que é o maior terreno da orla
da praia. Graças ao saudoso prefeito Oswaldo Justo, foi reconhecida
a importância de uma construção que marcou época, e apesar das
dificuldades financeiras da Prefeitura, foi feito um acordo com seus
proprietários, o que evitou a sua demolição. Hoje ele é referência internacional.
Acreditamos que Santos tem importante papel na missão de
construir um país melhor e mais justo. O amor e a energia de seu
povo alimentam e conduzem a cidade no camiho do futuro. Em homenagem ao nosso porto, que tem importância vital no nosso crescimento, vamos terminar nossa saudação com os dois últimos versos
do poema “Porto de Santos”, do saudoso poeta Dr. Aristeu Bulhões.
“Braz Cubas no mundo, confiante dizia
Ser Santos a porta da praia no mar
a porta por onde a bondade sairia
deixando o progresso do globo chegar
E o Porto de Santos, seguindo o roteiro
que o luso fidalgo traçou-lhe com fé
da Pátria se fez impulso primeiro
ganhando divisas, vendendo café”
Parabéns Santos
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Elcio Rogério Secomandi
É membro da Academia Santista de Letras desde 24 de outubro de
2013, ocupante da cadeira nº 35, cujo patrono é Albertino Moreira.
Clotilde Paul
É membro da Academia Santista de Letras desde 1984, ocupante da
cadeira nº 10, cujo patrono é Emília de Freitas Guimarães.
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Síntese de uma epopeia reconstruída
Elcio Rogerio Secomandi/ Clotilde Paul
Apenas duas capitanias hereditárias prosperaram na América de origem portuguesa, graças à cana-de-açúcar: São Vicente, com Martim
Afonso, e Pernambuco, com Duarte Coelho. Esse fato levou Dom João
III a criar o Governo-Geral do Brasil.
Tomé de Souza, primeiro Governador-Geral, chegou em 1549,
com 900 pessoas e os primeiros jesuítas, chefiados pelo Padre Manoel de Nóbrega. Fundou a cidade de Salvador: primeira capital e
primeiro bispado. O segundo governador, Duarte da Costa, chegou
em 1553, com 250 pessoas, entre elas o noviço José de Anchieta. No
ano seguinte, fundou-se o Colégio São Paulo (25/01/1554), mas o
seu governo fracassou na expulsão de invasores estrangeiro e teve
seu cargo prejudicado com a morte do bispo Dom Pero Fernandes
Sardinha, devorado pelos caetés após naufrágio no litoral de Alagoas, O terceiro Governador-Geral, Mem de Sá, chegou em 1557, com a
missão de expulsar os invasores franceses da Baía de Guanabara.
Por que os franceses invadiram o Brasil?
A reforma protestante na França deu origem às guerras internas. E
a doutrina religiosa de João Calvino (calvinismo), seguida pelos huguenotes (protestantes franceses), levou-os a sofrer terríveis perseguições, as quais resultaram na aprovação, pelo almirante Gaspar de
Coligny, do plano de Nicolau Duran de Villegaignon para fundar no
Brasil uma colônia que abrigasse os calvinistas.
A expedição de Villegaignon ao Rio de Janeiro em 1555
A França Antártica, como foi chamada a colônia implantada na Baía
de Guanabara, provocou a reação portuguesa por meio de um ataque
de Mem de Sá ao Forte Coligny - Ilha de Villegaignon, onde hoje está a
Escola Naval. Essa reação teve início em 15/03/1560. No dia seguin61
te, sábado, os franceses fugiram para o continente - 200 franceses e
800 tamoios - e, no domingo, foi rezada uma missa de ação de graça
naquela ilha.
Mem de Sá determinou que a fortificação francesa fosse arrasada, mas abandonou a área sem ocupar e defender a região. Tal imprudência permitiu o retorno dos invasores e motivou a implacável
guerra dos tamoios, aliados dos franceses, contra a Capitania de São
Vicente.
Em 1563, Estácio de Sá, sobrinho de Mem de Sá, veio de Portugal com navios de guerra e ordens expressas para expulsar definitivamente o invasor. Com os meios que Mem de Sá colocou à sua
disposição em Salvador, Estácio de Sá partiu para o Rio de Janeiro
em princípio de 1564. Hostilizado pelos tamoios, prosseguiu para
São Vicente, já sabendo que alguns índios haviam quebrado a paz de
Iperoig (firmada entre portugueses e tamoios no ano anterior, por
Anchieta e Nóbrega), o que ameaçava a segurança de São Paulo e São
Vicente. Anchieta permaneceu cinco meses aprisionado pelo terrível
cacique Cunhambebe em Iperoig, onde hoje é a cidade de Ubatuba,
no litoral norte do Estado de São Paulo. Segundo a tradição, foi nesse
local que Anchieta escreveu na areia da praia o poema À Virgem.
No dia 22 de janeiro de 1565, a expedição de Estácio de Sá,
com apoio de Nóbrega e Anchieta, partiu do Forte de Santiago, hoje
Forte de São João de Bertioga, com cinco navios, rumo à Baía de Guanabara. A 1o de março, a expedição aportou na várzea entre o Pão
de Açúcar e o Morro Cara-de-Cão e deu início às obras de defesa fortificada e à construção das primeiras casas na “Vila Velha”, origem a
Cidade do Rio de Janeiro.
A expulsão definitiva dos franceses
Após dois anos de luta, as ações ofensivas de Estácio de Sá tiveram
início no dia 20 de março de 1567, com reforços chegados da metrópole, sob comando de Cristóvão de Barros, e da Capitania de São
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Vicente. Na presença de Mem de Sá, travou-se o combate em Uruçu
Mirim, hoje Praia do Flamengo e, em seguida, contra o Forte de Paranapuã, na Ilha dos Maracajás, hoje Ilha do Governador. Os franceses não resistiram e alguns tomaram suas naves e desapareceram da
Baía de Guanabara, estabelecendo-se em Cabo Frio. Com o sucesso
de Estácio de Sá, ficou indiretamente garantida a unidade territorial,
linguística e religiosa da Colônia. Mas Estácio de Sá fora atingido por
uma flecha no rosto e faleceu pouco tempo depois.
Reconstrução da expedição Estácio de Sá, 1565 / 2015
As caravelas dos nossos dias
O Cruzeiro Bertioga-Rio: 450 anos depois... foi promovido pela ABVC
(Associação Brasileira dos Velejadores de Cruzeiros), com apoio da
Prefeitura Municipal de Bertioga, do Comitê Rio 450 Anos, do Exército Brasileiro - por meio da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural e do Centro de Capacitação Física do Exército-, da Marinha do
Brasil, das universidades federais do Rio de Janeiro, coordenadas
pela UFRJ/COPPE/LTDS, do Iate Clube de Santos, da Marina Pratas,
de Angra dos Reis, do Iate Clube do Rio de Janeiro, da FUNCEB (Fundação Cultural Exército Brasileiro), do ICOFORT (International Committe on Fortifications and Military Heritage), da SOAMAR (Sociedade Amigos da Marinha), do IHGS (Instituto Histórico e Geográfico de
Santos) e da ASL (Academia Santista de Letras).
Repetindo a epopeia dos idos de 1565, no dia 20 de fevereiro
de 2015 (1ª etapa), cinco “caravelas dos nossos dias” - mesmo número de caravelas de Estácio de Sá, 450 anos passados - partiram
de Bertioga, ao sabor das ondas e dos ventos, para singrar as águas
do Atlântico Sul a caminho da Baía de Guanabara. Às 07h30 de 1o de
março de 2015 (2ª etapa), os veleiros de cruzeiro, capitaneados pelo
Navio Escola Cisne Branco, da Marinha do Brasil, surgiram diante de
enorme plateia que ocupara o exato lugar em que Estácio de Sá apor63
tou suas cinco naus, na várzia entre os morros Cara-de-Cão e Pão de
Açúcar, nos idos de 1565.
Veleiros e Comandantes
1a etapa: Jazz 4, Volnys Bernal; Kilimannjaro, Philippe Gouffon; Serenata I, Hélio Solha; Triunfo II, João Jorge Peralta e Malago, Jurandir
Andrade (partida).
2a etapa: Jazz 4, Volnys Bernal; Kilimannjaro, Philippe Gouffon; Napoleão, Maurício Napoleão, Serenata I, Hélio Solha, Triunfo II, João
Jorge Peralta e TYR, Matheus Eicler.
O Cruzeiro Forte São João foi realizado por velejadores de
cruzeiro, precedida por cerimônia cívico-cultural, almoço e bênção
de tripulantes e veleiros. Na Ilha Anchieta, os velejadores visitaram
o Parque Ambiental; a seguir, almoço de confraternização. Em Angra, os veleiros foram abrigados na Marina Piratas, entre os dias 22
e 28/02. Ao entardecer (28) a frotilha prosseguiu em navegação noturna, rumo ao Rio de Janeiro.
Emoções revividas
Foi emocionante ver os veleiros, capitaneados pelo Navio Escola Cisne Branco surgirem no costão do Pão de Açúcar, diante da histórica
Fortaleza de São João de Guanabara, sob os acordes da Banda Marcial do Batalhão do Imperador e da Orquestra Violões do Forte, tendo
como “pano de fundo” uma salva de Artilharia, respondida pela Cisne
Branco.
Na manhã do dia 1º março de 2015, o Cruzeiro foi integrado
na programação da Fortaleza de São João de Guanabara como referência às comemorações dos 450 anos da fundação do Rio de Janeiro,
constando de abertura da cerimônia cívico-militar, alocução à data
histórica, encenação do desembarque das caravelas de Estácio de Sá,
por atores, vestidos como navegantes e índios, soerguimento de uma
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cópia do padrão português de posse da terra, ato religioso, bênção e
entregar das chaves simbólicas da Cidade do Rio de Janeiro ao prefeito Eduardo Paes. À tarde, houve uma visita monitorada aos fortes
que compõem a Fortaleza de São João, na Urca; e, à noite, um jantar
de confraternização na Churrascaria Guanabara.
Aspectos culturais
Na parte cultural, no dia 28/02, a Profa. Dra. Marisa Egrejas, do LTDS/
COPPE/UFRJ, o Presidente da ABVC, Prof. Dr. Volnys Bernal e o Cel
Art. Rfm. Elcio Rogerio Secomandi proferiram palestra na Casa Histórica de Deodoro, Campo de Santana, por ocasião da entrega formal
do projeto Roteiros dos Fortes à DPHCEx (Diretoria do Patrimônio
Histórico e Cultural do Exército).
A beleza arquitetônica dos Fortes, Fortins, Fortalezas coloniais nos
inspira a “resgatar uma identidade luso-brasileira tão intensa, permanente e, infelizmente, esquecida” (...). Tão esquecida quanto as
“muralhas de pedras” outrora guarnecidas por “canhões de bronze”,
manobrados por “homens de ferro”.
Nunca será demais lembrar que preservar o passado é a melhor maneira de construir o futuro. E, assim, procuramos dar nossa
modesta contribuição a uma tendência mundial de mudança de postura no uso dos bens patrimoniais de origem militar colonial e que
hoje se voltam para o receber amigos/as.
65
Jeanete Maria Octaviano Martins
É membro da Academia Santista de Letras desde 19 de julho de
2007, ocupante da cadeira nº 40, cujo patrono é Frei Jesuino do
Monte Carmelo.
66
Três nomes para uma mulher
Jeanette Maria Octaviano Martins
A insistente chuva do final de semana se despede na madrugada
do domingo. E o sol pôde, enfim, conquistar a manhã – que estava
linda!
Para minha alegria, e de todos os frequentadores, nossa
barraca estava montada. Na imponente armação em azul e branco,
duas bandeiras elegantemente hasteadas: a Nacional e a do Acaraí
Praia Clube demarcam nosso recanto amigo na Praia do Gonzaga,
em Santos.
Nos finais de semana e feriados de tempo bom, é lá que
restauramos nossas energias. Os poucos metros que caminhamos
para chegar até ela, a areia quente massageia os nossos pés,
absorvendo e aliviando o cansaço do cotidiano. E nesse ambiente
acolhedor, participamos de animadas rodinhas de amigos,
desfrutamos dos encantos da praia e da beleza relaxante do mar.
Estávamos num animado bate-papo, e o cheirinho bom do
frango, do palmito e do camarão faz-me lembrar que, quando meu
marido estava fechando a porta do apartamento, nossa filha pede
em voz alta:
- Mãe, não se esqueça de me trazer duas empadas de Dona Fevereira.
E quero de camarão!
Fevereira... Figura interessante que percorre as praias
santistas oferecendo seus quitutes. Mas por que o nome de
Fevereira? Teria nascido no mês de fevereiro? P e r g u n t a n d o
a um amigo, respondeu-me que seu nome era Januária. E que
certamente teria nascido em janeiro. Entendi. Fevereira era o
apelido carinhoso e brincalhão conferido pelos amigos do Acaraí
àquela mulata alegre, simpática e bondosa. E fui logo chamando: Fevereira! Você tem empadas de camarão?
Veio ao meu encontro carregando uma travessa de louça
com os salgadinhos. feitos por ela. No ombro direito, uma bolsa com
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os objetos essenciais para sua jornada de trabalho. Fiquei fascinada
pela sacola de lona bege, enfeitada com motivos marinhos, que
contracenava com o cheirinho das empadas. E exclamei: - Que bolsa
linda, Fevereira!
- Gostô, fia? Qué ficá com ela?
Hesitei ao responder. - Até compraria, se os motivos fossem
girassóis. Mas é tão linda! Tudo bem. Eu compro.
- Não tô falando em vendê. Dô pra você. Mas antes, venha cá. Vô
contá a história dessa bolsa.
Puxou-me para o lado, e se certificando de que ninguém
estava escutando, confessou baixinho: - No último feriado, eu tava
lá na Ponta da Praia vendendo minhas empadas quando vi esta
sacola. A fila pra entrá no Aquário era grande. Entre um freguês e
outro, esticando o pescoço, eu dava uma oiadinha pra vê se ela inda
tava lá. Tive sorte, fia! Ninguém carrego! Tirei a bolsa de dentro do
lixo, levei pra casa, lavei bem lavadinha, e uso pra colocá as minhas
coisa. Agora é sua.
E pendurando no meu ombro, continuou: - Se tu qué
conservá bege, quando lavá coloca no chá forte. Todo mundo gosta
e pergunta: - Djanira, onde tu comprô essa sacola?
D-ja-ni-ra? Então é esse o seu verdadeiro nome? Djanira.
Nem Januária. Nem Fevereira. Naquele momento fiquei sem saber
a quem agradecer o presente. À Djanira... Januária ou Fevereira?
Pensei bem e resolvi que seria à maneira do Acaraí. E abraçando-a,
gritei entusiasmada:
- Obrigada, Fevereira!
Uma amiga que observava tudo, sem entender muito bem o
que estava se passando, olhando para a bolsa exclamou:- É de uma
marca famosa. Que presentão!
Emocionada com o presente e tantas informações, queria
chegar logo em casa para contar à minha filha.
Percebendo que havíamos chegado, abre a porta e pergunta:E aí, mamãe?
Fui logo mostrando a bolsa e contando toda a história, mas
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ela não participa do meu entusiasmo. E laconicamente responde:Legal. E estão aí dentro?
- O que? – perguntei.
- As minhas empadas de camarão!!!
À espera de um milagre
Jeanette Maria Octaviano Martins
O excesso de informações, a diversidade de opções, associadas a
intensas emoções, seriam as causas de tantas indecisões? As coisas
estão se complicando e gerando significativas confusões. Falta de
discernimento? Nuvem passageira ou coisa de momento?
Já não sei mais se devo continuar, voltar ou se é melhor parar.
Se posso me animar, gastar, gastar... Ou se devo poupar. Se preciso
ligar para os que estão distantes ou esperar ligar. Se trabalhar é
assim tão importante, ou já passou da hora de me aposentar. Se é
bom resolver tudo e para todos... Ou sugerir que cada um faça a sua
parte e esperar, esperar...
Vale a pena fazer tudo em casa ou mais interessante é
encomendar?
Devo levantar tomar café, ler o jornal... Ou seria mais
saudável caminhar? Pelos jardins que já estão floridos, com os pés
na areia, ou à beira-mar? Levar alguma coisa para ler, e na praia
tentar relaxar, ou melhor, seria voltar? Voltar para arrumar o que
está em desordem, fazer telefonemas, pegar a correspondência,
tomar “aquele banho”... Ou interessante seria almoçar? Saborear a
comida que foi feita hoje, ou o que sobrou de ontem, esquentar? Um
prato balanceado, na quantidade certa, razoável, tomar refrigerante,
suco, comer sobremesa... Ou nada disso pra não engordar? Depois,
talvez, tomar um cafezinho. Simples ou capuccino? Com açúcar
ou adoçante? Existe diferença? Preciso pesquisar. Sair da mesa,
esperar a comida assentar e a digestão começar, ou sair para andar,
andar... Não seria melhor deitar pra descansar? Descansar?! Eu fiz
69
alguma coisa que justifique o descanso?
Como estou agitada, antes de começar vou tentar me
acalmar. Deitarei um pouquinho com as pernas dobradas, que é
bom pra coluna, ou as levantarei pro sangue retornar?
Ainda tem o som! Ouvir música clássica para relaxar... um
gregoriano que tanto aprecio... Ou o ideal seria não ligar? Ficar
quieta um pouquinho... Tentar dormir, ou desenhar, ler um bom livro,
desenhar... Ou guardar tudo e sair para andar. Uma academia! Dizem
que é bom malhar! Fazer ioga, meditação, Pilates, hidroginástica ou
nadar?
E à tardinha, depois das quatro. Devo ir pro Boqueirão,
Gonzaga ou pro centro de Santos? É muito bom e adoro agitação!
Mas, como irei? À pé ou de táxi? Com bolsa normal ou com aquele
bolsão? Devo ser clássica? Adoro moda, mas já estou com setenta
primaveras... Primaveras! As flores do jardim da minha avó, flor que
ela tanto gostava! Depois do “cravo de defunto”, que insistia chamar
de cravo-japonês. Saudade, medo, incerteza, indecisão, tédio,
agitação. Já não aguento esta situação! E tenho que fazer alguma
coisa. Algo que me liberte dessa inquietação, desse tormento. Será
temperamento, incompreensão, fadiga, insensatez, monotonia,
depressão? Até quando aceitar essa situação? Ninguém sabe ou
ninguém tem coragem de dizer? Também não sei. O que falta pra
mim? Uma viagem, talvez, pra me livrar do tédio?
Viajar? Vai ser difícil! Resolvi. Vou pintar girassóis, fazer
poesia, e rezar, rezar... Se nada resolver, eu vou tomar remédio. E
tenho que escolher: homeopatia, alopatia, medicina chinesa... Ou
acupuntura, fitoterapia, cromoterapia, aromaterapia... Creio que, no
meu caso, nada adiantaria. Para mim, só um milagre. Este resolveria!
70
O dono da livraria
Jeanette Maria Octaviano Martins
O marido de Gilda, sentado confortavelmente em sua poltrona, é
surpreendido pela voz da mulher:
- Bem, olha o livro que ganhei de uma amiga! “Vivendo
Martins Fontes”, de Edith Pires Gonçalves Dias, uma escritora
santista.
Augusto, que não é o “dos Anjos”, naquele momento devia
estar no meio deles todos. Nas nuvens, nas galáxias, no espaço
sideral. Sem tirar os olhos do livro de ficção científica, pergunta:
- O dono da livraria?
O silêncio de Gilda faz com que ele levante os olhos e encontre
os olhinhos assustados da mulher. Parada e com o livro na mão.
Ainda com a cabeça nas nuvens, Augusto percebendo que
houve algo errado em seu comentário, arriscou:
- O cara do retrato na entrada do hospital?
- Augusto!- disse a mulher- Martins Fontes, o poeta santista, o
poeta-mor, o poeta das flores.
- É verdade! Que cabeça a minha...
Naquele momento, Gilda sente que tinha ficado no “espaço” as
aulas de literatura com o professor dos dois, que entrava declamando:
“Tu, que vês tudo pelo coração
Que perdoas e esqueces facilmente
E és, para todos, sempre complacente
Bendito seja, venturoso irmão.”
Martins Fontes
A resposta de Augusto deixa Gilda preocupada. Não com ele, pois
conhece a cultura do marido e mais ainda, a sua distração.
No final da tarde, sai para a voltinha costumeira. Virando
a esquina do edifício onde mora, no Boqueirão, entra na Avenida
71
Vicente de Carvalho. É um dos trechos da extensa Avenida da Orla
Marítima entre o canal quatro e o três. Passeando pelos jardins
da praia olha o mar e começa “viajar” no acontecido. Passa pelo
monumento em homenagem a Vicente de Carvalho, “o poeta do
mar”. Mais adiante, pelo busto em homenagem à “poetisa das rosas”,
Maria José Aranha de Rezende, a Zezinha.
Já no Gonzaga, passa pelo bondinho turístico, entra na
Avenida Ana Costa e caminha até a Praça Independência, onde
acontecem todas as comemorações santistas. Para e admira o
colossal, belíssimo e histórico monumento. Um pouco mais à
esquerda, ela – a Livraria Martins Fontes. “Como esquecer os poetas
que viveram nesta cidade de explícita poesia! O sol aquece as
emoções. O verde dos jardins renova as esperanças. O mar declama
na sonoridade das ondas...”
Ali parada, imagina-se uma repórter a entrevistar as pessoas
com a pergunta:
-Você sabe quem foi Martins Fontes?
Acredita que poucos respondam: - Um grande poeta! Conheço
suas poesias. Não dispensa as rimas nem as métricas. E apesar de
não aderir ao modernismo, respeitou a opinião dos companheiros.
Outros: - Foi um bom médico e muito querido. Eu vi a placa e o seu
retrato no hospital. Elegante, usava sempre um cravo na lapela.
Mas o que Gilda receia é que a grande maioria associe o nome
do poeta à livraria. E atribuindo-lhe a indevida posse do renomado
estabelecimento, responda com outra pergunta:
- É o dono da livraria?
72
Revelação
Jeanette Maria Octaviano Martins
Vovô vibrou de alegria quando Enzo nasceu. Mais um neto! Agora
são três. Três corinthianos!
Tio Paulão não pode vir no final de semana, mas mesmo
assim mandou o seu presente. O mesmo que mandou para Felipe e
Gustavo quando nasceram: camiseta, macacão, meia, boné, babador
e um pacote enorme de fraldas descartáveis com o distintivo do
Corinthians.
E assim começa a trajetória de mais um futuro corinthiano.
Futuro para a avó, pois para o avô já estava tudo certo. Não tinha
dúvidas. Torceria pelo timão.
O bebê ficava com eles todas as noites. Os pais iam para a universidade,
e no trajeto, entregavam, para o vovô babão, aquela coisa linda, que
crescia em graça e beleza. Com isso tiveram a alegria de cuidar de
um netinho. Quando iam lhe trocar a fralda, vovô engolia seco. A
fralda tinha o distintivo do Palmeiras - time preferido do pai. Jogava
no lixo e substituía por outra com o distintivo do Corinthians.
Toda noite a mesma maratona. E o bebê sorria alheio àquela
confusão toda.
Morando na orla de Santos, cresce vendo as comemorações
de vitória. Ora de um time, ora de outro. Ouve hinos, vê bandeiras
nas janelas dos apartamentos, carros buzinando exibindo faixas,
a alegria dos torcedores na avenida da praia, e, principalmente, a
festa da torcida do Santos Futebol Clube- orgulho da cidade.
Quando começa a balbuciar as primeiras palavras, vovô não
perde a oportunidade de ensinar a cantar: “Salve o Corinthians, o
campeão dos campeões”... Vovó canta junto, apesar de sentir uma
paixão familiar pelo São Paulo. Mas, deixa pra lá. Vovô comanda a
torcida e agita a bandeira. A preocupação da avó era iniciá-lo na
formação religiosa. Trouxe da igreja três “santinhos”: Coração
de Jesus, de Maria, Sagrada Família, e coloca junto com os seus
73
brinquedos. Brincando com os santinhos, a criança reza com ela.
Às vezes, amassa, rasgava, mastiga, come um pedaço... Mas não se
importa. O objetivo está sendo alcançado. Enzo já sabe os versinhos
que ela fez para rezar com ele:
“Santinho, santinho,
O Senhor que é tão bonzinho
Proteja a mamãe, o papai
E o menininho”.
Amém.
Agora já pode participar das orações noturnas com os priminhos,
quando estiverem reunidos. Toda vez que vinham, queria ficar para
dormir, acordar cedo e ir à praia com eles.
Naquela noite estavam todos reunidos, e a tia reza com
Felipe e Gustavo. Eram tantas orações... Para o Anjo da Guarda, Ave
Maria, Pai Nosso, Salve Rainha, Glória ao Pai... E eles sabiam todas.
A última a avó não conhecia:
“Com Deus me deito
Com Deus me levanto
Com a Virgem Maria E o Espírito Santo”.
Achou interessante, e pensou: É a próxima que ensinarei para o
Enzo, pois notei em seu olhar um brilho diferente. Sorriu. Gostou.
Será fácil memorizar.
Depois de um final de semana feliz e agitado, era esperado
que dormisse cedo. Sentadinho na cama e pronto para dormir, vovó
de um lado e vovô de outro, explicam:
- Vamos rezar com você a oração que os priminhos rezam. Preste
atenção. Com a mamadeira pendurada na boca, olha para os dois
com olhinhos de interrogação, expectativa e alegria. Começam
a rezar pausadamente. Ele participa repetindo o finalzinho dos
74
versos.
- Com Deus me deito
- eito
- Com Deus me levanto
- anto
-Com a Virgem Maria
- ia
- E o Espírito Santo.
E o menino:
- Santos! Santos! Santos!
Para surpresa da vovó e desapontamento do vovô, dando à
sua voz uma entonação forte e musical, Enzo revela na oração, o
time da sua preferência- Santos Futebol Clube.
Espargindo alegria
Jeanette Maria Octaviano Martins
Em todas as manhãs de tempo bom, eu a vejo olhando para o mar...
E sempre no mesmo lugar: perto da Concha Acústica e da Praça das
Bandeiras- belos pontos turísticos de Santos, essa cidade linda!
Faz- se notar pelo sorriso largo, pelo semblante calmo, pelos
seus olhos claros, pela cadeira e por sua alegria.
Passar por ela é bom. Ficar deve ser ótimo! Talvez seja
este o motivo pelo qual nunca está só. Há sempre uma rodinha de
amigos à sua volta, beneficiando-se da energia que emana de uma
pessoa que gosta de viver. Da tranquilidade de estar em paz, feliz
com a vida e curtindo a natureza. É uma alegria contagiante, que
atrai e distrai.
Quando alguém se aproxima, sorridente e com voz forte, diz:
- Bom dia, senhora! Bom dia!
Foram muitos os cumprimentos que ouvi e recebi, quando
passei por ela empurrando o carrinho do meu neto, que completa
essa semana, cinco anos.
75
Agora nasceu outro, e volto a fazer o mesmo trajeto todas
as manhãs, na expectativa de ouvi- la repetir aquele cumprimento
tão doce, tão sincero. E caminho até lá, fazendo o mesmo trajeto
empurrando o carrinho.
Encanto-me com a extensão dos jardins, com a visão do
mar, com o barulho das ondas, o colorido das flores e o cheirinho
da grama. Mas as manhãs daquele pedaço já não são tão alegres.
Falta ela. Nunca mais eu a vi, mas ainda ouço ecoando no ar aquele
cumprimento:
- Bom dia, senhora! Bom dia!
Dela não sei nada. Nunca soube o seu nome. Para mim é
a Senhora Bom Dia, que passa suas manhãs espargindo alegria,
sentada confortavelmente, em sua cadeira... De rodas.
76
Poema à cidade de Santos
Jeanette Maria Octaviano Martins
Viver nesta cidade é um privilégio.
Deixar de desfrutar de toda esta beleza
É quase um sacrilégio.
Bronzear-se nestas praias de areias ardentes
Na orla caminhar contemplando os jardins
Banhar-se neste mar de um azul diferente...
Ser coadjuvante nesta história
Testemunha ocular de um passado de glória
Perpetuado em casarões, praças, igrejas
Escolas, museus, monumentos.
Vibrar com teu progresso
Este porto, o esporte, o turismo, e o comércio.
Sentir a hospitalidade desta gente
Gente santista, que aqui nasceu
E que daqui não sai.
Gente que chega e fica
Que não fica e vai
Que vai, mas volta
E que na volta fica
Encanta- se...
E nunca mais se vai.
Santos:
Beleza
Lazer
Progresso
Cultura
Hospitalidade.
Berço gigante da terceira idade!
77
Jô Camaño
É membro da Academia Santista de Letras desde 23 de julho de
2015, ocupante da cadeira nº 18, cujo patrono é Júlio Ribeiro.
78
A Fonte do Tororó e a roda da vida!...
Jô Camaño
Águas puras e cristalinas,
com murmúrios barulhentos,
brincadeiras de ciranda,
lembranças levadas pelos ventos!...
Fui no Tororó,
beber água e não achei...
nostálgicas recordações da travessias da vida!
No sopé do Monte Serrat,
garantia em sua fonte,
que quem dela bebesse,
não deixaria mais a cidade...
Profecia ou verdade?...
Ah! Por onde andará
a bela morena da canção?
Será que ainda existe,
ou foi tudo mera imaginação...
O caminho que leva à Padroeira,
com rústicas pedras, ainda existe
e, quem sabe se ainda anjos
ajudaram a chegar ao cimo do morro,
para ver de perto as estrelas do céu,
ou olhar a vista panorâmica da cidade...
Bem... água tão boa não mais existe,
e nem tal cenário registra,
79
as juras de amor dos apaixonados...
não mais sacia-se a sede...
e não se enchem mais os galões de esperança
Aproveitar que esta noite não é nada,
diz a modinha popular...
Mas o poeta apaixonado não despreza nem a noite nem o luar...
E ... espera a madrugada
fazendo versos para a amada,
que na esperança de sorte,
trazia com o nascer de um novo dia.
E por onde andam as crianças da roda?
E... a água também foi secando devagarzinho.
Hoje, ao vê-la solitária e triste,
é como alma sofrida que se disfarça de vida,
Lagrimas de saudade e desprezo.
Só o passado se torna presente
nas gotas que caem como lágrimas permanentes
de algum poeta apaixonado,
que não esquece a saudade de outrora...
Profecia ou magia, ninguém sabe...
que outrora o levou a ficar na cidade,
pois bebeu das águas do Tororó...
A morena que lá ficou,
Como diz a cantiga está lá...
80
Na figura da Esperança que nos mostra
a roda da vida sempre brincando
com o coração apaixonado,
que não se conforma com a ausência do amor,
e quer continuar brincando,
e chamando a felicidade para seu par...
Não dormindo, nem agora, nem de madrugada,
e chorando como pingos da água da fonte.
81
O Jardineiro e o aprendiz
Jô Camaño
A praça está localizada no centro da cidade de Santos, conhecida
pela maioria dos santistas e turistas. Há anos que é referencia histórica, religiosa e política sendo sempre um local de muito respeito
e reverência.
Um dia, ao entardecer, um certo moço dirigiu-se ao jardineiro que observava no laborioso ofício, e que, por sua expressão
física refletia felicidade, pois cuidava amorosamente dos canteiros
do local. A curiosidade leva-o a perguntar o porquê de tanto devotamento daquele homem de cabelos brancos, rosto imponente,
gestos elegantes e dirigindo-se com certa restrição à normalidade
pergunta:
- Senhor, eu o admiro por seu trabalho humilde e pelo carinho que
cuida das plantas e das sementes, que espalha por todos os canteiros. O senhor tem alguma missão especial no que faz, ou cumpre
seu trabalho por não ter outra opção de vida?
-Não meu filho, eu moro nesta praça. Aqui escolhi para ser meu lar
nem sei auferir os anos que faço o mesmo gesto todos os dias.
-Não entendo, falou o moço. Aqui não é uma praça pública?
Vejo que muitos circulam todos os dias, uns de passagem,
outros descansando nos bancos, outros em grupos conversando assuntos diversos e até às vezes alguém pregando a Bíblia para expectadores ocultos!
-É verdade sim meu caro, nesta praça no passado, o destino do país
foi discutido e muitos rumos foram tomados na vida política dos
brasileiros. Cidadãos de várias cidades se dirigiam para Santos, em
busca de um futuro promissor, já que esta terra é conhecida como
“terra da caridade e da liberdade”. Aqui me sinto à vontade para
continuar minha missão de semeador, profissão escolhida desde jovem... A vida ofereceu-me esta oportunidade e estou exercendo-a
82
com zelo e sabedoria.
Neste local nasceu a 1ª Igreja Batista, o Teatro Coliseu, a Catedral, o Fórum, a Sociedade Humanitária, um comércio discreto
mas efetivo, onde todos são meu amigos, além da antiga sede do
Sindicato dos Estivadores.
- O Senhor fala com tanto orgulho de sua casa e não vejo condições
físicas de moradia. Não está tentando me iludir?
- Não, caro jovem, eu sou do tempo que os homens tinham palavras
e o compromisso era seu mandamento de conduta. Sou do tempo
do respeito, da educação social e política e dos livres pensadores
que colocavam os destinos do país em suas pautas, com objetivos e
construções de pensamentos edificantes. Aqui em Santos nasceram
brasileiros comprometidos com o progresso da nação e política era
tratada com seriedade, sem influencias ou objetivos pessoais. Coisa do passado entristece-me saber que muitas lutas foram em vão,
mas me contento com os poucos honestos que ainda levantam a
bandeira do bem está social deste país.
- E sua vida resume-se a diuturnamente trabalhar espalhando as
sementes? Nada mais lhe dá prazer do que esse valioso e capricho
trabalho?
- Toda tarde não dispenso o gostoso encontro da Confeitaria Domitila, com os amigos Pedro e Domitila, onde proseamos e jogamos
conversa fora, além de rirmos muito.
- Mas... Domitila e Pedro não são personagens históricos, conforme
estudei nos livros escolares?
- Não, mas, meu amigo, são coisas do império envolvendo amores
proibidos e ideais políticas divergentes, que hoje convivem unidos
na realidade desses novos tempos.
Para amenizar as diferenças, nada melhor que os abraços
dos juristas, tanto quanto dos amigos políticos, que ainda sonham
em tornar esta cidade como referencias nacional de nobres ideais
cívicos. Nem o monumento à Revolução e o sangue derramado por
83
nossos irmãos, desvia o olhar dos que pela pressa do dia a dia, apenas observam o semeador.
- Bem... O papo está bom, virei outros dias para ouvir suas histórias,
já sei que o senhor jamais se afastará desta tarefa que lhe dá tanto
prazer, nem tampouco desta praça. Preciso me despedir, pois faço
parte de uma Loja e não posso me atrasar, pois o rigor e o compromisso nos ensinam a ser verdadeiros cidadãos.
- Recomendações minhas a estes homens, que continuam acreditando que o mundo pode ser melhor para nós e nossos filhos, e que
o Brasil precisa de gente que o ame.
- Sim... Mas nem sei seu nome? Como posso mandar seu recado aos
amigos?
- Eles me conhecem bem. Eu sou José Bonifácio de Andrade e Silva. Até...
84
85
Katya Lais Ferreira Patella Couto
É membro da Academia Santista de Letras desde 18 de setembro
de 2014, ocupante da cadeira nº 1, cujo patrono é Agenor Silveira.
86
Santos na década de 70
Katya Lais Ferreira Patella Couto
Passei, faz algumas semanas, pela Rua Alexandre Herculano, por onde
não andava há um bom par de anos. Parei, então, diante do número
159 e, de repente, mergulhei no passado. Ali vivi quase toda infância
e parte da adolescência, mais precisamente no apartamento 26, bloco
B, dos fundos.
Entrei na máquina do tempo, deixei-me conduzir pela emoção
e revi cenas adormecidas na memória. No prédio, morava gente boa,
muito boa. No terceiro andar, havia só o nosso apartamento e o da tia
Ilza (não era minha tia de sangue, mas do coração). Não existiam fronteiras entre os dois apês. As portas, normalmente abertas, permitiam
meu ir e vir entre um e outro.
Rosângela (filha da tia Ilza), bem mais velha que eu, tinha uma
paciência enorme comigo. A todo o momento, eu invadia o quarto
dela com um livro na mão, pedindo-lhe que decifrasse aqueles símbolos, ainda desconhecidos para mim. Foi ela, inclusive, que realizou um
de meus sonhos infantis: comprou-me uma “camisola que voava”, verde, minha cor favorita. Explico: era uma camisola com uma capa, tipo
“Mulher maravilha”. Quando a ganhei, vesti-a de imediato e passei a
correr de um apartamento ao outro, alucinadamente, rindo, cantando
e tentando voar. Foi o Beto (outro filha da tia Ilza, este da minha idade)
que estragou tudo, pois, numa de minhas incursões pela frente da TV,
a que ele assistia de forma compulsiva, literalmente puxou o tapete e
lá fui eu para o chão. Além do tombo, também veio a bronca e o castigo: “Já para o quarto”. Mas com a camisola.
Aliás, esse foi só um dos episódios em que o Beto e eu nos envolvemos. Brigávamos diuturnamente. Também havia o Alexandre,
que morava no bloco em frente. Quando eles se juntavam, pobre de
mim. Entretanto, eu tinha minhas protetoras: Carminha, Claudinha e
Eliana, já “grandes”. O mais legal de tudo é que todas elas me ensina87
ram a andar de bicicleta. Às vezes, discutiam entre si para ver quem
iria me conduzir pela longa garagem. Epa! Outro problema: se o síndico aparecesse, “pernas para que te quero”. Era proibido andar de
bicicleta ali.
Outra peraltice (se é que dá para chamar assim) que nossa
turminha fazia: competição de chicletes. Isso mesmo: o vencedor era
aquele que conseguia colocar mais chicletes na boca (naquela época,
comprávamos 20 chicletes com um cruzeiro). Isso durou até o dia em
que alguém engoliu as gomas de mascar e quase morreu. O prédio inteiro desceu para socorrer o indivíduo. Resultado: algumas semanas
sem nos vermos.
Ainda havia, no térreo, a “casa” da tia Darci (outra tia do coração), que me socorreu: um dia, quando eu subia as escadas com uma
garrafa (de vidro) de fanta laranja, escorreguei e caí com o braço em
cima do vasilhame. Era sangue para todos os lados. Papai, atordoado,
permanecia inerte. Mamãe (que havia acabado de dar à luz a meu irmão), em pânico, tremia por inteiro. Um escândalo, claro, porque eu
berrava incontrolavelmente. Tia Darci surgiu com um pano de prato (o
que estava nas mãos dela na hora do “show”), enrolou meu braço e lá
fomos nós ao hospital. Ganhei 15 pontos no corte e uma cicatriz eterna.
O entorno do prédio constituía mais um núcleo familiar
(acho que posso chamar assim): era a região do comércio. O açougue, que vendia a melhor carne do mundo (hoje, já nem como mais
carne); a lojinha do Adriano, onde comprávamos as “lembrancinhas” para as festas; e a farmácia do Armando e da Inês, que me
aplicaram muitas injeções, mas muitas mesmo, porque sofria de
uma bronquite indescritível.
Uma vez, eu tinha seis anos, mamãe enviou-me ao açougue. Na
hora de atravessar a rua, só olhei para um dos lados (a Alexandre Herculano tinha mão dupla) e, adivinhem só, fui atropelada. Nada sério:
só bati a cabeça e ganhei escoriações pelo corpo. Minha casa parecia
uma romaria: todos – moradores do prédio, comerciantes e o “atropelador” (um motorista de táxi, simpaticíssimo) – foram me visitar.
Ganhei balas e chocolates de montão.
88
Num átimo, a máquina do tempo, na qual entrei no começo
desta crônica, acionou as engrenagens do presente e voltei à realidade, não sem sorrir e suspirar, num lampejo de saudade. Se antes nunca havia pensado nisto, chegara o momento: Santos proporcionou-me
a melhor infância e pré-adolescência do mundo.
Hoje, não sei por onde andam muitas das pessoas citadas.
Creio, porém, que essa cidade, especialmente aquele pedacinho dela,
jamais saiu dos corações de cada um de seus habitantes.
Ali, todos praticavam a solidariedade da forma mais ampla
possível. E era uma solidariedade espontânea, sem o “toma-lá-dá-cá”
do mundo moderno. Todos, também, conversavam muito e havia uma
camaradagem entre as pessoas que chegava a comover. Existia a noção do coletivo, do “podemos dividir o que temos”, e alguns, de fato,
pouco tinham.
Quase todas as famílias dali se empenhavam em formar seus
filhos, tendo como base princípios éticos e morais e, exatamente
por isso, tomavam atitudes parecidas e trocavam experiências. O
diálogo era a mola-mestra daqueles pais e mães de classe média,
que lutavam por um mundo melhor para “suas crianças” e que faziam daqueles apartamentos de sala, cozinha, banheiro e dois quartos um verdadeiro lar.
Essa Santos da década de 70 me fez subverter o significado da
palavra “cidade” apresentado em muitos dicionários: “aglomeração
humana localizada numa área geográfica circunscrita.” Não, de forma
alguma podíamos nos encarar como um aglomerado humano. Víamo-nos como seres humanos, isso sim! E nos queríamos bem. Muito bem.
De tal forma tudo isso ficou entranhado em meu ser que não
poderia escolher outro lugar para criar minha filha, quase vinte anos
depois. Claro é que o mundo, hoje, se apresnta diferente. Todavia, os
sentimentos experimentados por mim pulsam em meu ser e posso
revivê-los quando, de certa forma, os reproduzo com minha família.
Que minha filha também possa reproduzi-los com sua família e assim
continuamente, no eterno ciclo do existir.
89
Maria Araújo Barros Sá e Silva
É membro da Academia Santista de Letras desde 17 de agosto de
1994, ocupante da cadeira nº 6, cujo patrono é Ângelo Souza.
90
Ó Minha Santos
Maria Araújo Barros Sá e Silva
Como eu queria saber construir frases bonitas, para
cantar-te em prosa e verso, como fizeram outros poetas...
Aristheu Bulhões disse com maestria:
“Ó terra de Santos, festiva, formosa,
franjada de rosa, beijada de sol!
É justo o prestigio que sempre tu ganhas
com tuas montanhas, teu lindo arrebol.”
E dessa forma, o inspirado poeta, descreveu teu perfil em vinte e oito
versos, cada um mais perfeito que o outro.
No entanto, minha querida Santos, eu sou apenas uma simples
poeta que tento dizer-te com palavras fáceis, saídas do fundo do meu
ser, o quanto te quero, mas nesta frase falta galhardia para retratar
fielmente o meu amor por ti.
Gostaria, minha cidade querida, de traçar teu espaço
geográfico de Norte a Sul, de Lesta a Oeste, enaltecendo teus pontos
turísticos, históricos e religiosos, desde o Marapé à Ponta da Praia,
com belas palavras como tu mereces.
Faço meus os versos do poeta Bulhões, quando louva tuas belezas:
“As praias de espuma da cor do alabastro
teu céu cheio de astro, jardins dando flor,
e teus edifícios que beijam estrelas
são paisagens belas, recantos de amor!
Na Ponta da Praia, nas noites de lua,
a balsa flutua, parece dançar...
Faróis que cintilam nos barcos pesqueiros,
projetam roteiros de luz sobre o mar!
91
A estátua do Santo, na frente da igreja,
momentos enseja de crença, de fé.
E ali, Santo Antônio falando aos peixinhos,
sugere carinhos e ajuda o Embaré.
Também Boqueirão, que a todos enleia
com praia que é cheia de encanto e magia,
um cromo nos lembra, de infinda ternura,
mostrando a doçura que o mar irradia!
À noite, o Gonzaga parece uma aurora
que a fonte aprimora com jatos de luz!
José Menino abre as cortinas do sonho
e ao mundo risonho da vida conduz!
Assim vemos Santos – cidade feitiço
que nos dá tudo isso sem nada querer
senão que o turista de novo a procure
e amando-a, murmure: “Eu volto a te ver!””
Ó minha Santos, eu me curvo ao poeta Bulhões e, um dia, quem sabe,
eu chegue aos seus pés e consiga seguir seus passos, compondo
versos tão belos quanto os seus. Oxalá essa esperança torne-se
realidade – Oxalá.
92
Santos de Martins Fontes
Maria Araújo Barros Sá e Silva
“Como é bom ser bom!”
Berço de Ribeiro Couto, que nasceu e cresceu junto ao Porto!
Cidade bonita, emoldurada pelo mar...
Pelo “Belo Mar Selvagem”, de Vicente de Carvalho,
Cercada de morros e montanhas...
Em primazia, o histórico Monte Serrat
Que guarda a Virgem Maria – Rainha de Santos,
Onde milhares de fiéis devotos vão pedir proteção:
“Dai-nos a bênção, ó Mãe querida, Nossa Senhora Aparecida”,
Virgem Maria, achada no Rio Parnaíba tão profundo quanto o mar.
Ó Virgem Santa, abençoa Santos e sua gente:
“Derramai sobre nós as suas graças eficazes da Vossa Chama de
Amor”.
93
Palmeiras Imperiais
Maria Araújo Barros Sá e Silva
As Palmeiras Imperiais
Emprestam ar de nobreza à minha cidade.
Cidade de Santos - “a Terra da Caridade”!
Ao longo da Ana Costa,
Do início ao fim, todas enfileiradas...
São chamadas: Real ou Imperial.
Querendo tocar o céu,
Deslumbramento sem igual!
Palmeiras Imperiais,
Belas e ornamentais
São algumas das belezas
Desta “terra de Braz Cubas,”
Neste Brasil de Cabral.
O Hino de Santos
Exalta com muito ardor:
“Os Flamboians florescentes,
Palmeiras imperiais
Tuas paineiras floridas
Salgueiros que choram
Nos velhos canais.
Oh Santos. És linda demais!”
94
Soneto para Vicente de Carvalho
Maria Araújo Barros Sá e Silva
Ó Vicente de Carvalho!
Da terra linda de Santos,
“Poeta do Mar” e do orvalho,
das praias de mil encantos.
Como se fosse um Condor,
vem do “Belo Mar Selvagem”,
num incontido furor
prestar-me esta homenagem.
Erguendo a voz numa prece,
este soneto acontece
para agradecer e louva:
Esta Casa de Cultura,
onde o saber configura
o grande “Poeta do Mar”!
OBS: Este soneto foi composto em 7 de abril de 2008,
por ocasião da homenagem que a Academia Campinense
de Letras prestou à Academia Santista de Letras, em Campinas SP.
95
Velhas Árvores
Maria Araújo Barros Sá e Silva
Velhas árvores centenárias nas ruas e praças de Santos
são abrigo do passaredo nas tardes mornas do outono,
também nos dias chuvosos e nas manhãs do verão.
São tantas espécies lindas, que nem sei enumerá-las...
O velho Chapéu de Sol, o famoso Flamboyant,
Guanandi e Ingazeiro, Ipês: amarelo, rosa e branco
Fazendo Santos mais bonita na época da floração.
E o Manacá da Serra... O jerivá e o Oiti –
são árvores de minha terra! Paineira e Pata-de-Vaca,
Saboneteira e Quaresmeira enfeitam toda a cidade!
Por toda a orla da praia, lindamente arborizada!
Valorizando o jardim florido, o verde e o azul do mar...
No período Natalino com luz de neon a brilhar
é um pedaço do céu, que na Terra de Brás Cubas, o turista vem
saudar!
96
Exaltação a Santos
Maria Araújo Barros Sá e Silva
Ó Santos querida, quem te fez tão bela,
te deu colorido de fina aquarela!
Coberta de flores, de rara beleza,
tu és protegida pela natureza.
Com pincel de ouro tu foste pintada,
e pelos poetas tu és exaltada.
Vejo-te assim, cidade bonita,
cidade praiana de boa acolhida:
de mar tão sereno e gente trigueira,
de rapaz bonito e moça faceira.
De braços abertos tu me deste a mão...
Aqui ficarei, não volto mais, Não!
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Ontem, hoje, amanhã e sempre
Maria Araújo Barros Sá e Silva
Santos, amo-te!
Amar-te-ei para sempre.
Louvo-te!
Louvar-te-ei com fervor.
Sou tua admiradora e serei eternamente
Apaixonada por ti e por tudo que tens:
Teu mar, teu céu, teu ar, teu chão, tua gente...
Ó Santos!
Eu bendigo o dia em que te conheci,
Bendigo o destino que me colocou em teu caminho;
Bendigo até o infortúnio que me fez vir tentar a sorte aqui.
Cheguei, gostei, fiquei e tornei-me:
Santista de coração,
Santista por devoção,
Santista por opção...
ONTEM, HOJE, AMANHÃ, SEMPRE...
98
Metamorfose
Maria Araújo Barros Sá e Silva
Sou um todo que se divide,
metade o Nordeste,
do meu Salgueiro agreste,
a outra metade – São Paulo,
desta Santos tão querida.
Salgueiro, na minha infância,
Santos, minha plenitude,
tenho viva na lembrança
a minha chegada em Santos,
ainda na juventude.
Salgueiro, adolescência,
em Santos tornei-me adulta,
em Santos quero viver e morrer
para, depois,
como, Fênix renascer em Salgueiro,
no sertão de Pernambuco!...
99
Santos, “Civitas Mea”
Maria Araújo Barros Sá e Silva
Todos cantam esta Terra
também vou cantar assim:
É Santos buquê de rosas,
maravilhoso jardim,
lindas praias primorosas,
grande beleza sem fim.
Magia dos namorados
que fazem juras de amor,
nos versos encadeados
é lira do bom cantor.
“Liberdade e Caridade”
não é tema ao trovador
é o lema desta cidade
de Braz Cubas, fundador.
Minha Terra, minha Santos,
minha musa tão querida:
enlaçou-me nos encantos,
arrebatou minha vida.
Feliz, contente e radiante
cantarei sempre ufanista,
numa alegria constante
por ser “Cidadã Santista”
100
A Primavera em Santos
Maria Araújo Barros Sá e Silva
Os campos estão floridos
E Santos toda se agita,
Meu peito canta mais forte.
A cidade se engalana
Toda dourada de sol,
A praia fica risonha
Com o perfume das flores.
O jasmineiro explodindo,
Roseiras que desabrocham
Formando um mundo de rosas
De uma beleza sem fim.
Os namorados felizes
Passeiam pelos jardins,
Como gaivotas no ar
A trocar juras de amor.
O céu parece uma festa,
As nuvens são brancas, lindas!
E o meu coração palpita
Tudo em mim é Primavera
101
Santos Minha Terra
Maria Araújo Barros Sá e Silva
Por que te chamo com orgulho: “Minha Terra”,
Mesmo sabendo que em teu berço não nasci?
Será por causa do amor que o meu peito encerra
Ou pelo afeto que nutro por ti?
Quando pisei teu solo tu me cativaste
Tão de repente, só por ti me apaixonei...
Eu já nem sei se foste tu quem me adotaste
Ou se fui eu quem ternamente te adotei.
Longe de ti, não viverei sem teu calor...
Como te quero, me aconchego em teus recantos
E hei de exaltá-los com desvelo e muito ardor,
Terra querida, dos Andradas, teus encantos
Eu vou cantar, dizer bem alto e com vigor:
Minha Cidade! Minha Terra! Minha Santos!
102
Aclamação à Câmara Municipal de Santos
Maria Araújo Barros Sá e Silva
Sala Princesa Isabel, eu louvo tua beleza e bendigo quem te criou!
Bendita seja: a mão do homem que te fez tão bela,
que te ergueu do rés do chão até ao teto,
que te fez pujante e altaneira...
Bendita seja: a mão do arquiteto sábio, que te projetou,
a do ferreiro rude que vergou o ferro
e a do pedreiro que te fez tão linda!
Bendita seja: a mão do oleiro que amassou o barro,
fazendo a telha e o tijolo forte,
misturando areia com cal e cimento.
E dessa mistura, bonita Princesa, tu foste criada,
e a mão do pintor, que louvo e bendigo,
maquilou de ouro teu rosto perfeito!
Exalto também, o bom tapeceiro que fez o teu manto,
de seda e veludo vestiu o teu corpo
e madeira-de-lei deu um toque final!
Eu louvo e bendigo: a mão do artista que deu esplendor
à nobre coroa de luz e cristal,
que com muito afeto colocaram em ti.
Agora bendigo: todas as mãos que hoje te alimentam
e as que te sustentam, honrando o teu nome.
Exalto, louvo e bendigo: quem te faz especial,
Sala Princesa Isabel – Câmara Municipal.
OBS: este poema foi composto
quando a Câmara de Santos era na Sala Princesa Isabel.
103
Orquidário de Santos
Maria Araújo Barros Sá e Silva
No sossego do Orquidário
A Paz envolve o meu ser,
Sacrossanto, relicário
Que me ajuda a viver.
Abrigo da natureza,
Recanto de fantasias,
Um despertar de beleza
Surgindo todos os dias.
Com lindas aves cantando,
Bonitas flores se abrindo,
Cascatas d’água jorrando,
Belas roseiras florindo.
Um paraíso na terra
Coberto de mil encantos,
Bastante verde se encerra
No Orquidário de Santos!
104
105
Maria Zilda da Cruz
É membro da Academia Santista de Letras desde 22 de novembro
de 2001, ocupante da cadeira nº 38, cujo patrono é Adolfo Porchat
de Assis.
106
Paisagem sonora de Santos
Maria Zilda da Cruz
Admirar uma paisagem requer uma seleção de sentimentos
apoiados em objetos visíveis. E cada qual, senhor de uma beleza própria compõe um todo visual, num espaço demarcado. Constrói-se,
então, a arquitetura do olhar, particular ao observador, gerando preferências pessoais. Torna-se, possível, gostar mais da paisagem marítima ou da campestre; da praia ou da montanha; da urbana ou da
rural. A escolha não é difícil, porque a visão acolhe rápida o mundo
de encanto ou desencanto ao seu redor. E num abrir e fechar de olhos
tudo aparece ou desaparece. Depende do poder da própria vontade.
A paisagem visual tão presente, tão fácil de ser observada, torna-se
parte de nossa vida desde que acordamos até o adormecer.
Porém existe um universo mais amplo, que nos envolve possessivamente. Sua presença dominadora e constante tira-nos uma
parte da liberdade de escolha. Vivemos mergulhados e embalados
pelo mundo dos sons. As ondas sonoras nos atingem, não só pelos
ouvidos: todo nosso corpo vibra com elas. Não temos forma de escapar ao abraço do som! Assim como as casas, as ruas, avenidas e árvores constroem o ambiente urbano, cada cidade cria sua paisagem
sonora. Mas passa pouco percebida, embora estejamos mergulhados
nela. É o mundo dos sons. Não o desprezemos.
Tentemos nos assenhorar, viver e gostar da paisagem sonora
do meio santista, especialmente particular junto ao mar.
Existem usos dos sons que atravessaram o tempo; outros pertencem
ao passado. Não escutamos mais os cascos dos muares puxando os
primeiros bondes da cidade. Menos ainda, os dos pacientes cavalos
das carrocinhas de leite, entregando em cada porta o litro de leite.
Colocado num vidro renovável, vinha a cada dia, direto da fonte, o
líquido branco, cheiroso e gorduroso, colhido diretamente de vacas
107
criadas dentro da cidade. Outros anos, diferentes costumes! Calaram-se os gritos das verdureiras, muitas delas japonesas, com pesados tabuleiros na cabeça, oferecendo uma pequena variedade de legumes
e hortaliças. Isto nas décadas de trinta e quarenta do século XX. Hoje,
poucos caminhões se atrevem por alto falantes, em concorrência aos
supermercados apregoam a venda de frutas, verduras e peixes. Nesse campo, temos os gritos dos feirantes, em chamados alegres, procurando atrair fregueses. Se no primeiro instante, numa mistura de
tantos sons, tudo parece ser um grito de guerra saindo das barracas,
as risadas finais dos vendedores dão o toque de clarim da paz.
Convivemos, também, com os apitos públicos das ruas. São
dos guardas vigilantes do trânsito. Os primeiros a aparecerem entre os santistas, há décadas, se vestiam como londrinos. Uma pesada
roupa de casemira azul escuro queria proteger da neve inglesa, dentro de um calor de verão tropical! Torturante cópia importada! Felizmente se corrigiu o erro com bermudas e roupas leves de algodão. O
apitar deles, também uma cópia, tinha sua linguagem codificada: um
apito breve mais dois prolongados traduzia-se por uma ordem determinada. Ou ao contrário: dois apitos longos mais um breve mandava outro recado e os motoristas aprendiam em suas cartilhas como
obedecê-los. Mesmo na época de poucos carros nas ruas! Hoje, com
trânsito saturado de automóveis, ônibus, motos e bicicletas, o melhor
está no uso do gesticular das mãos e dos braços. Apitar só aumenta a
poluição do buzinar. Mas nas madrugadas da insegurança passam os
guardas-noturnos apitando a própria passagem.
Ainda lembramos e rendemos nossas homenagens ao apitar
dos trens, já quase desaparecidos. Num viajar diário trouxeram passageiros, cargas e até cartas cheias de notícias, pequenos pedaços de
papéis mantendo elos de amizades. Seus apitos insistentes avisavam
a chegada benvinda. Vindos lá do planalto enviavam ao céu a fumaça
cinzenta cheia de emoções dos ocupantes, usufruindo da beleza da
serra. Em vagões apropriados, orgulhosamente, a locomotiva puxava
108
a carga de ouro verde, riqueza do momento: o café. Os que deslizaram pelos trilhos do litoral, atravessaram Santos, apitando em cada
canal, pedindo licença de passagem aos automóveis e pessoas. Para
que a saudade de todo não se complete, apitam, um pouco acanhados, os trenzinhos do nosso cais. E percorrendo o centro velho urbano, quase um primo do apito, corre o velho bonde, na condição de
transporte turístico, tilintando alegremente.
De dia, os sons ofertam o cativar da vida ativa: carros que
buzinam, ônibus que brecam, motocicletas barulhentas de motores
possantes. Pessoas passam e gritam: alôs e bons dias para amigos do
outro lado da rua. Outras silenciam na introspectiva de seus problemas particulares. Os colegiais dão a nota de alegria à parte. Quando
os portões das escolas se abrem, as crianças e os adolescentes soltam
borbotões de sons, emaranhando-se falares e risadas num mesmo
momento. Esse desejo de expansão comunicativa dos sentimentos
vividos com intensidade colhem-se também no aquário, quando cabecinhas infantis quase tocam os vidros das celas dos peixes. Gritos
de admiração e aplauso saúdam os habitantes da água salgada ou
doce. O mesmo acontecer encontra-se no orquidário. Livres, as crianças correm e misturam seus gritos com os dos animais e aves, habitantes do lugar. Parece um cerzir de sons dentro da natureza verde.
Quase sentenciado ao silêncio, cada vez mais raro, ouve-se o chamado para um momento de espiritualidade: poucos sinos repicam lembrando o recolhimento da prece em agradecer a Deus, tantas coisas
boas recebidas. Saudosamente é o badalar da infância para os mais
velhos e uma interrogação do porquê aos mais novos.
Agora escutemos a noite. Ela quase não dorme. Assim, alguns
bares se lotam de adultos com discussões do assunto do momento:
política ou os gols de futebol de campeonatos em andamento. Outros
bares acolhem irriquieta juventude. Ali o som é alto: poucos falam,
riem muito e ninguém se escuta. Mas o que mais atormenta os desejosos de dormir são os locais das baladas. O som se expande além do
109
limite permitido, divertindo uns poucos e atormentando muitos, que
perdem o embalo do sono reparador. Tenta-se encontrar uma solução para enclausurar o barulho desses ambientes, mas nenhum bom
resultado se conseguiu. Se ao menos predominasse o gostoso samba
brasileiro, sem as atuais modernidades pobres de harmonia!
E como não gostar do cochichar do mar em suas mudanças de temperamento. Se agitado, ele estronda as ondas como a brincadeira de
adolescentes em algazarra. Quando grandes, por vezes quase gigantes, desafiam os surfistas para nelas deslizar suas pranchas. Então,
parece que há um pacto entre a água e o atleta. Não se fala. A atenção é
toda para o casamento da prancha e o equilíbrio do desportista. Som
só do mar; as vozes que se guardem para as chegadas vitoriosas na
areia. Se manso, as marolas chegam, mansamente, como mãozinhas
infantis quando se aproximam, sorrateiramente, do doce proibido e
bem à vista. O ambiente interior do oceano é dinâmico e vivo, mas
guarda a interrogação curiosa dos seus sons em segredos profundos
e os homens recebem o silêncio da paz. Só quando se aproxima da
areia, o mar avisa a chegada com ondas sonoras ritmadas, prenhes
de uma cadência bem marcada.
Santos em extensa faixa de areia larga, embelezada por cuidados jardins, proporciona calma a quem dela se aproxima. O marulhar
contínuo da água retira, retalha a tristeza e recoloca na alma o prazer
de viver. Os gritos infantis e de turistas sentindo o conforto de no mar
se banhar animam o querer estar na praia.
Quando o oceano se afunila na Ponta da Praia, vigiado pelo Forte
Santo Amaro de um lado e ampla avenida do outro, um tapete de
água se estende aos navios brasileiros ou estrangeiros, que apitam,
anunciando a amizade distante chegando ou a partida saudosa do ir.
Sendo eles de carga carregam o produto do trabalho humano; sendo de passageiros sobrecarregam-se dos mais diversos sentimentos
pessoais.
Observando as praias santistas, o verde dos canteiros enfei110
tados por algumas flores, encontramos frondosas árvores abrigando
a vida de milhares de pássaros brancos, pretos, amarelos e de tantas
cores misturadas em seus corpinhos. Na claridade do dia, irrequietos
eles dançam, cantam o amor à natureza e aumentam com harmonia
a cascata sonora das folhas caindo e ver o enroscar-se das cores do
arco-íris. À noite silenciam, rendem-se à pausa que restabelece as
forças, para recomeçar a parte da orquestra que lhes cabe.
Como é bom saber ouvir a paisagem sonora de Santos.
111
Vento Santista
Maria Zilda da Cruz
O vento pastoreia negras nuvens
Atropela uma contra outra;
Revoltadas, feridas em sua liberdade
Lançam velosos dardos luminosos
Nessa batalha de quem vencerá
O escuro da noite se apaga, o raio é luz,
O mar santista engole os raios.
Nessa luta da natureza gigante
Os trovões orquestram os estrondos,
Barulhos, clarões e fortes ventos
Disputam a batuta de regente.
Sem vencedor nem vencidos
Adormecem os roncos dos trovões,
As nuvens despem-se de suas águas
A chuva recolhe todos os senões.
Santos de tantos grisalhos amigos idosos
Jogadores de damas no tabuleiro em praça
Santos de alegres e enfeitadas idosas
Que contam suas boas receitas vitoriosas
Sentadas na praia dos jardins ensolarados
Vibra com o viver pleno em pujança.
E o vento manhoso, sutil provocador,
Leva a todos o segredo santista:
Abraçar com amor seus habitantes
Oferecer amizade aos bons visitantes,
Santos generosa expande seus verões
E o vento esperto abranda sua zoeira
Envolve em carícias a jovem faceira.
112
113
Maurílio Tadeu de Campos
É membro da Academia Santista de Letras desde 4 de outubro de
2006, ocupante da cadeira nº 32, cujo patrono é Reynaldo Porchat.
114
O Turista Incidental
Maurílio Tadeu de Campos
Férias. Esperei ansiosamente esse momento para ver outros lugares,
conhecer outras paisagens, mas perdi o interesse em viajar. O
primeiro dia das minhas férias começou estranho, em casa, sem ter
horário para nada. Espantando a preguiça, olhei pela janela: dia de
sol, um convite para aproveitar, esticar as pernas. Aonde ir? Decidi
que melhor seria se eu simplesmente saísse, sem compromisso,
sem rumo. Camiseta, bermuda, tênis e um prático boné, vestuário
adequado para uma caminhada. Moro um pouco distante da praia.
Resolvi que melhor seria andar, deixando o carro na garagem. A falta
de costume de andar a pé pelas ruas proporcionou-me uma visão
nova da paisagem.
Tudo diferente. Eu ia descobrindo coisas nunca antes
observadas: prédios, casas, jardins, a diversidade do comércio, o
movimento das pessoas. Caminhei até a praia, passando por locais
que eu nunca tinha visto direito antes. No belo jardim a beira-mar
uma nova surpresa: a paisagem que antes passava apressada pelo
vidro do meu carro agora estava toda ali, como uma grande tela, rica
em detalhes, em vida, em movimento. E eu, parte integrante desse
cenário, turista incidental na minha própria cidade, boquiaberto
diante de tanta novidade. Comecei a caminhar pelas vielas do imenso
jardim, atento a tudo. Pessoas, muitas pessoas, de todas as idades, uns
correndo, outros, como eu, caminhando ou passeando com os filhos.
Filhos acompanhando pais, ou seus parentes mais idosos. O mar e a
sua grandiosidade, ali, presente, um convite à meditação. Confesso
que o mar me causa medo, por ser desconhecido. Ao mesmo tempo,
ele me atrai. Eu não conseguiria viver em um lugar ser mar. É uma
referência, um ponto de localização.
A partir desse meu primeiro dia de férias fui desvendando
lugares que jamais havia observado com atenção e isso me fez um
bem enorme. Nos dias mais ensolarados, depois que melhor conheci
115
o aquário e o orquidário, fiz diversas caminhadas pelo jardim da
praia, sem pressa, parando algumas vezes para olhar o mar e o
entra e sai de navios, os banhistas, os praticantes de um ou de outro
esporte. Apurava os ouvidos para sons inusitados, resultados da vida
em movimento. Em dias de tempo mais fechado visitei o comércio
local, o centro histórico para um passeio a pé ou no bonde turístico.
Passei por algumas igrejas antigas, pela Bolsa do Café, Museu de Arte
Sacra, pelo prédio da Prefeitura, os Correios. Pude observar bem as
fachadas das edificações antigas, os monumentos, os mosaicos das
calçadas. O centro histórico de Santos é um local em que as atividades
e os serviços ali existentes sugerem dias mais agitados, apressados.
E eu destoava de todos, pois caminhava descontraidamente, como
um turista. Fiz várias fotos e, confesso, gostei do resultado. Um dia,
um dos funcionários do bonde turístico perguntou de que cidade
eu era. Sorri e falei: - Sou daqui mesmo! Horas depois, lembrei do
ocorrido e, pela expressão de espanto do funcionário, imaginei que
ele poderia ter pensado que eu estaria brincando, por informar que
não era, de fato, um turista e sim um morador da cidade que a estava
descobrindo melhor, embora já a conhecesse razoavelmente bem.
No final das férias voltei ao trabalho e a minha correria
recomeçou. Estava feliz, por ter aproveitado as minhas férias de uma
maneira singular, passeando pela minha cidade. E não me arrependo
do que fiz, porque poderia ter ido a muitos lugares do Brasil ou do
exterior. Mas, por pura casualidade, passei meus dias de descanso
conhecendo Santos, onde descobri espaços bastante interessantes.
Nas férias ficamos quebrando a cabeça, imaginando lugares para ir,
quando podemos, sem muito custo, conhecer melhor a nossa própria
cidade e constatar porque tantos turistas a procuram como opção de
lazer e de descanso. Portanto, sem querer ser bairrista, indico Santos
como uma boa alternativa para aliviar as tensões do dia a dia. A partir
das visitas que fiz aos seus diversos e atraentes pontos turísticos,
surpreendi-me com as suas diferentes paisagens, aparentemente
costumeiras, mas que, observadas com mais atenção, revelaram
detalhes ainda não percebidos.
116
Assim como as gaivotas...
Maurílio Tadeu de Campos
Adoro ficar na orla da praia, olhando o movimento das pessoas e
dos barcos, a vida transcorrendo calma naquele ambiente marítimo.
Uma gaivota andava, cuidadosa, pela beira d’água. Estranhei aquele
momento; imaginava que pássaros como as gaivotas voassem
continuamente sobre a superfície da água a procura de peixes, seu
alimento predileto. No entanto essa ave que eu observava andava,
parava e olhava em direção ao mar. Andava mais um pouco e,
novamente parava, atenta, também, para o movimento das pessoas.
Porém, não deixava de cumprir aquele seu ritual. De repente, alçou
vôo. Foi em direção ao mar. Um mergulho brusco e preciso deu a ela
o prêmio esperado: tocou a água e, logo em seguida, levantou vôo
com um peixe no bico, engolindo sua presa rapidamente. Voou mais
algumas vezes e voltou à areia, repetindo o rito, antes de recolherse, provavelmente para um refúgio seguro.
Ao mesmo tempo em que acontecia aquela ação com a gaivota,
pude observar, também, um surfista. Ele chegou à praia e, antes de
entrar na água, fincou sua prancha na areia. Olhou fixamente para
o mar e ali permaneceu, como se estivesse paralisado. Afastando-se
da prancha, caminhou alguns passos em direção a água, abaixouse, molhou os dedos e fez o sinal da cruz. Voltou, em seguida, para
junto da prancha. O dia parecia não estar propício para “pegar
ondas”. Mas o rapaz não desanimava. Ali permaneceu, estático,
olhar fixo no mar. De repente, pegou a prancha e ensaiou entrar
na água. Voltou. Tornou a fincar a prancha na areia. Olhos atentos
ao mar, novamente. Eu tinha de ir embora, mas a curiosidade foi
maior. Resolvi acompanhar o desfecho daquela ansiedade do rapaz.
O tempo passava e ele não desistia. Eu estava até disposto a ir
embora, mas resolvi tomar uma água de coco, talvez para ganhar
tempo e não perder a situação.
Finalmente, o surfista resolveu entrar no mar. Pegou sua
117
prancha e caminhou mar adentro. Alguns metros depois, colocou a
prancha na água e saiu nadando, eu diria “remando”, deitado sobre
ela. E lá foi ele, afastando-se da praia, sumindo entre as ondas e
reaparecendo algumas vezes. Demorou um pouco para decidir
surfar. Eu podia vê-lo lá, bem distante, sentando na prancha,
subindo e descendo na oscilação das ondas. Realmente, era preciso
ter muita paciência para desfrutar desse esporte, imaginei. Não
somente paciência, mas também persistência.
Muito tempo depois, o rapaz resolveu, de fato, surfar.
Aproveitando uma onda mais alta, subiu na prancha, equilibrandose, “bailando” sobre aquela onda média, mas adequada, acredito,
para o seu intento. E lá veio ele, surfando até quase a faixa de areia.
Com água pela cintura, pegou sua prancha e começou a sair do mar.
Voltou ao mesmo lugar onde estivera antes. Fincou novamente
a prancha. Voltou a olhar para o mar. Permaneceu ali por alguns
minutos. Depois, pegou sua prancha e retirou-se, caminhando para
a calçada. Tentei identificar na expressão do seu rosto algum motivo
de satisfação. Mas ele passou sério, talvez desejoso por ondas
melhores do que aquela. Concluí, porém, que ele desempenhou
com maestria sua empreitada naquele dia atípico. Pelo menos uma
onda possibilitou que ele fizesse o que desejava, que cumprisse o
objetivo que o trouxera à praia.
Duas cenas, duas missões concretizadas. E assim é a vida. É
preciso que as pessoas, os seres, qualquer que sejam suas espécies,
raças, cor da pele, condição social, persigam seus objetivos até
conquistarem seus ideais. Mesmo que, num primeiro momento, a
conquista ainda não tenha o sabor de uma realização completa. Mas
haverá outros dias, outros peixes, outras ondas, outros momentos,
outras oportunidades. E só quem tem paciência, perseverança,
obstinação, consegue atingir seus objetivos. Deus, certamente,
ao dar às suas criaturas as potencialidades de poderem alcançar
as suas metas (por instinto ou por raciocínio), desejou que todos
fossem felizes, fieis aos seus objetivos e prontos para novos e
contínuos desafios e, assim, ter uma existência saudável.
118
Miremo-nos nos exemplos da gaivota e do surfista e sejamos
pertinazes. Só assim, creio, seremos capazes de cumprir uma
existência plena, como seres livres e capazes de exercitar, de errar
se for preciso para, finalmente, receber o prêmio merecido.
119
Peilton Sena
É membro da Academia Santista de Letras desde 22 de novembro de
2006, ocupante da cadeira nº 9, cujo patrono é Fábio Montenegro.
120
Uma declaração de amor
Peilton Sena
Santos
Não sou teu filho
Mas, sou teu irmão
E neste momento abro o peito ao improviso
Para colher de tua face
A lágrima e o riso
E transformá-los em emoção
Nesta singela homenagem
Quem fala mais alto é o coração
Nele guardo todo o amor que sinto por ti
Cidade querida, cheia de vida, beijada pelo mar
Porto seguro, onde o futuro, a bondade
A caridade e por extensão
O barco da minha vida veio aportar
Ilha da beleza, onde a natureza
Em teus belos jardins vive a brincar
Cartão postal da Poesia
Traduzido em Porto, Orquidário, Aquário
Bonde, Catedral, Monte Serrat...
Tu és o solo fértil do patriotismo
Celeiro de grandes ideais
Da luta dos Andradas imortais
Da força do teu povo
Nascerá sempre uma Santos da Paz
E se em teu seio fui acolhido
Tal qual um pássaro no ninho
É preciso que eu diga com orgulho e carinho:
Sou baiano de corpo e alma
Mas, hoje o meu coração
Também veste as cores do teu manto
E o meu canto é a força que diz:
Minha cidade,
Minha irmã,
Minha Santos!
121
Perseu Lúcio Alexander Helene de Paula
É membro da Academia Santista de Letras desde 21 de agosto de
2014, ocupante da cadeira nº 27, cujo patrono é Herculano Marcus
Inglês de Souza.
122
Santos
Perseu Lúcio Alexander Helene de Paula
O Santo Senhor nos presenteou com uma cidade que abriga todas
as raças, culturas e religiões. Em agradecimento, nós batizamos de
Santos.
Em sua história de amores e paixões, Domitila de Castro
que não nos negue, reside o descanso, em suas tardes de verão, nos
pores de sol, na generosa natureza de poesia e arte divina.
Suas lindas mulheres, com suas “rasteirinhas”, de andares
típicos e inconfundíveis, delineiam, em música ritmada, a pintura de
suas curvas e da belíssima e sublime geografia de seus contornos.
O Atlântico, com sua força, abraça suas terras delicadamente,
suavidade de carinho executada por águas mansas desenhando um
ballet de pequenas ondas, perfeito e original, transformando a Ilha
de São Vicente exuberante em sua natureza.
Sua orla única e singular abriga edificações que desafiam a
física newtoniana, contemplando diversas torres de Pizza nos oito
quilômetros de sua extensão.
Terra que compõe as páginas do Guinness Book, com o
recorde do maior jardim de praia do mundo.
De vida atribulada e pacífica, amanhece na correria de
esportistas anônimos buscando o contemplativo e a simbiose com
o estado zen que a natureza oferece, ao longo de suas areias e
gaivotas em busca de alimento.
Na movimentada ciclovia, trabalhadores, estudantes, donas
de casa, aposentados e crianças vão para lá e para cá num vaivém
incessante, porém inserto no cotidiano do principal porto da
América Latina.
Em virtude da colonização portuguesa, o centro de Santos
traz uma arquitetura invejável que se desenvolveu na época áurea
do café, construções que podem ser observadas a pé ou então por
meio de um romântico e atraente bonde, cuja velocidade máxima
é de, aproximadamente, cinco quilômetros por hora, que trafega
pelas ruas do centro, sendo possível, até hoje, uma pequena e
123
importante parada para degustar um cafezinho, acompanhado de
uma bela prosa, na Bolsa do Café.
Santos, abençoada Santos, pode ser vista lá do alto do
morro de seus cento e cinquenta e sete metros de altitude, em toda
a sua plenitude, com visão de trezentos e sessenta graus, ao lado
da nossa Senhora, a Nossa Senhora do Monte Serrat, padroeira da
cidade. Para visitar a sua casa sacra, basta subir quatrocentos e
dezesseis degraus ou utilizar um bonde de sistema funicular. Estar
lá, certamente, é um pedacinho do céu onde se pode sentir, em um
lapso temporal, o que é a imortalidade.
Descendo o Monte, a fé nos acompanha, confundindo-se
com a história do Santuário de Santo Antônio do Valongo, onde
franciscanos ergueram um dos maiores e mais bonitos conjuntos
arquitetônicos do século XVIII.
Na mesma região, em homenagem ao maior jogador de
futebol de todos os tempos, foi construído o Museu Pelé, que, em
seu acervo, traz as conquistas de Edson Arantes do Nascimento,
menino de Três Corações – MG, que o Santos Futebol Clube, time
da cidade, acolheu, abrigou e amparou, para que ele, o nosso Pelé,
conquistasse o mundo.
A qualidade de vida em Santos é permeada pela atividade física,
quer na praia, com o futebol entre amigos, o futevôlei, o frescobol, o
vôlei de praia, ou ainda nas academias, a céu aberto, presentes nos
canais que segmentam a orla. Para os idosos, a ginástica matinal
com sessões de Tai Chi Chuan, para equilibrar corpo e alma, e
semanalmente, nas noites de domingo, o baile à luz do luar, nas
imediações da “Fonte do Sapo”.
Para as crianças, nada como degustar uma apetitosa espiga
de milho, ou quem sabe um “saquinho” de pipoca entre uma
pedalada e outra no triciclo ou na bicicleta, à tarde, também na
“Fonte do Sapo”.
O intelecto é alimentado pelos teatros Municipal, do Sesc,
Guarani e Coliseu, este último em que gladiadores trocariam
facilmente suas espadas por palavras poéticas a espargir a alegria
de viver. Foi assim que Benedito Calixto, com sua arma, retratou
com suavidade e leveza a sua obra assegurada na Pinacoteca, que
124
leva seu nome.
Música de todos os estilos, dança clássica e contemporânea,
teatro, circo, cinema, saraus literários e atividades artísticas para as
crianças estão no calendário de atividades da Concha Acústica, ali
perto do canal Três, harmonizando acordes ao som do mar.
Canhões, sete canhões, eram utilizados como defesa de
uma das entradas do estuário de Santos, que hoje abriga o Museu
da Pesca, cuja função é a exposição de animais marinhos, que
passaram pelo processo de taxidermia. Já o Museu do Mar reúne
um dos maiores e mais diversificados acervos de biologia marinha
do Brasil, inundando de cultura crianças, jovens e adultos.
Com trinta e um tanques, o Aquário Municipal de Santos
abriga cerca de duzentas espécies e aproximadamente dois mil
espécimes, desde pequenos invertebrados até mamíferos marinhos.
É o primeiro aquário do país e um dos parques mais visitados do
estado de São Paulo.
Um verdadeiro oásis, cravado na ilha de São Vicente, o
Orquidário de Santos exala, por toda a cidade, o aroma de uma coleção
de centenas de orquídeas e ainda reúne cerca de quatrocentos
animais, que passeiam livremente pelo parque, fazendo a alegria das
crianças e dos adultos. Completando o cenário dessa obra-prima,
e, em espaços próprios, há espécies raras, algumas ameaçadas de
extinção.
Outra opção de todo sábado e domingo são as feiras de
artesanatos de criatividade peculiar, regadas a quitutes que fazem
qualquer um sucumbir a um dos sete pecados capitais.
O antigo e o moderno se confundem o tempo todo na cidade
de Santos, antítese presente, desde as edificações do século XVIII
até shopping centers, assim como a atividade primeira do homem,
a pesca no píer do pescador até o comércio de bares, restaurantes,
baladas e o folclórico centro de paquera do Embaré (CPE), que
atravessa a madrugada.
Viver em Santos é assim, um misto de relaxamento e trabalho
árduo, de leveza e seriedade, de tristezas e alegrias, de desilusões
e paixões avassaladoras, sempre com a cumplicidade do sol amigo,
que renova todas as energias a cada novo dia.
125
Regina Alonso
É membro da Academia Santista de Letras desde 19 de julho de
2012, ocupante da cadeira nº 28, cujo patrono é Roberto Cochrane
Simonsen.
126
Santos, berço natal de Martins Fontes
Regina Alonso
Um casal de canários num viveiro. Amor à primeira vista! Resolvo
comprá-los. Nascidos em cativeiro, jamais experimentaram o vôo
do lado de fora. Também prisioneira desse destino, não posso
libertá-los como Martins Fontes fazia com os pássaros cativos, pois
os “seus” tinham sido aprisionados pelos caçadores em pleno ar!
Já conheciam a vida longe das grades... No caso dos “meus”, abrir
a porta da gaiola seria entregá-los à morte, com certeza! Busco
compensar meu sofrimento (e dos canários amarelos) dando-lhes
alpiste, jiló, água fresca e especialmente, conversando e cantando
com eles. Nesta manhã, uma vontade de contar ao médico e poeta,
amante das flores e dos pássaros, notícias de seu berço natal, da
gleba de Braz Cubas!...
Nestes últimos anos, Santos volta seu olhar para o velho
Centro. Restaurações de antigos prédios e espaços históricos... Nos
bondes agora recuperados, chegamos ao Valongo, passos ecoando
nas pedras desgastadas das calçadas, sob a luz dos lampiões que
iluminam o caminho até a Rua XV, até o Largo do Rosário... O Outeiro
de Santa Catarina completamente restaurado abriga a Fundação
Arquivo e Memória de Santos, que preserva a história da cidade
para todas as gerações. O Teatro Guarany vai se reerguendo das
cinzas... Diante da Praça de José Bonifácio de Andrada, a Catedral
com suas torres que parecem tocar o céu e do outro lado, o Teatro
Coliseu, inteiramente recuperado, voltando ao esplendor dos
velhos tempos. E foi à direita do teatro, num dia cheio de sol, que
numa velha chácara, bosque impenetrável, sombredo de araçás,
camburás, amarantos, que nasceste, ó poeta! Na morada de teus
avós, berço da Abolição! Tal qual uma andorinha alçavas vôos
entre os hospitais Guilherme Álvaro, Beneficência Portuguesa...
receitando versos, atendendo graciosamente os necessitados,
praticando a bondade que exaltavas em tua poesia! Poesia que,
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segundo Emílio de Menezes, jorrava feito cachoeira! Cachoeira de
Marimbondo, em dia de chuva!
Ó Comendador da Ordem de São Tiago da Espada, em
Portugal; Cavaleiro da Espanha!... Ó Auxiliar de Osvaldo Cruz na
profilaxia urbana do Distrito Federal e que em 1918, na gripe
espanhola, socorreu nossos bairros do Macuco e Campo Grande!...
Como tu, eu também não costumo escrever cartas. Por isso, tragote apenas um cravo vermelho. Na impossibilidade de prendê-lo à
tua lapela, deposito-o solenemente sobre a pedra do túmulo onde
repousas desde 1937, ao vento noroeste de teu berço natal!
Raízes aquáticas
Regina Alonso
Vivo numa ilha, mas não sou náufrago. Desde que nasci, vejo o
horizonte – cordão umbilical jamais cortado, unindo-me à terra de
Brás Cubas! Esta linha vai costurando uma ponte invisível entre os
morros, separando azuis – céu e mar...
Manhãs desiguais... Nítidas, à luz do sol, ondas tranquilas
beijando a areia, gaivotas na sincronia do voo... Outras vezes,
encobertas pelas brumas, véu branco estendido sobre a paisagem.
Meus olhos viciados adivinham contornos da serra, o movimento
do mar, a posição dos navios agora sem rumo...
Nas tardes quentes, jardins quase vazios... chapéus de sol e
as folhas que vão se avermelhando, até cair, ao sabor das estações...
Frutos esborrachados pelo chão... Nas barracas, o sorver prazeroso
da água de coco refrescam os caminhantes. O tapete verde do
gramado contrasta com tantas espécies de flores coloridas.
Majestoso, o lírio do campo, amarelo ouro, reluz ao sol!
Acompanhando as calçadas da praia, a areia branca, o
barulho do mar... Sempre o mar. Doce canto que embala a todos,
ancorados nesta ilha há tanto tempo! Canto transformado em grito,
quando o vento forte agita as águas. Ondas quebrando amuradas,
128
arrancando pedras do calçamento, balas ricocheteando no ar!
Tempo de ressaca, beleza e medo. Transformação profunda quando
a água avança, cobre a faixa de areia, atravessa a rua...
Algumas horas depois, tudo volta à calma. O pescador
retorna ao mar, as canoas deslizam nas águas serenas... Os barcos
camaroneiros retornam à noitinha. No lusco-fusco, o balançar das
embarcações cheias de peixe, alimento abençoado! Andorinhas
recortam o céu. Pôr do sol em tons violáceos refletido na superfície
do mar... O pescador agradece o sustento e tanta beleza!
No céu negro estrelado, a lua branca prateia as águas... E
pela noite, a brisa marinha traz o cheiro forte da maresia... Ai, nossa
pele santista recoberta de escamas e salitre do mar!
Poderia falar do Porto e sua luta para se adequar às exigências
atuais; do Centro – preservação valorizando nossa história; do
Museu de Pesca e do esqueleto da baleia atraindo tantos turistas;
do Aquário remodelado para receber outras espécies marinhas e
acomodar melhor tantas que já são velhas conhecidas – nosso leãomarinho, por exemplo... Poderia ainda falar do Orquidário e suas
árvores centenárias quase tocando o céu!... Cinemas, comércio,
tantas praças...
Ser santista... Eu sou! Marinheiro da terra. Minhas raízes
fincadas neste mar que circunda a cidade e me envolve como o
útero materno!
De portas abertas
Regina Alonso
Sete de julho de dois mil e cinco. Vinte horas e trinta minutos.
Rafael Moraes realiza o sonho de todos os santistas. O velho casarão
abre suas portas. Nos corrimões de ferro retorcido, mãos trêmulas
amparam-se na subida dos degraus da escadaria de mármore –
semblantes emocionados e reverentes...
Debruçados na varanda, dedos percorrendo beirais...
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Olhares extasiados contemplam os ladrilhos portugueses. Lágrimas
furtivas... O Quarteto Martins Fontes recebe os convidados. A música
acompanha os visitantes. Passos ecoam no velho chão de madeira,
sob a luz de antigos lustres que revelam, nas paredes, marcas dos
belos pratos de porcelana, que há mais de cinqüenta anos víamos
da calçada, pelas janelas entreabertas...
Imaginávamos, sem dúvida, o interior da casa, sua história,
seus segredos, hoje desvendados ao visitarmos cômodo a cômodo,
e atravessar pesadas portas de madeira com batentes em alto
relevo e puxadores de porcelana. Nas janelas, o vidro jateado,
permitindo a entrada da luz do sol, na medida certa para que seus
raios iluminassem natural e suavemente o interior.
Próximo à cozinha, arremates de azulejos com pinturas de
moinhos de vento transportando-nos a outras épocas, quando todos
que passavam na esquina da Sete de Setembro com a Constituição
paravam embevecidos com as flores entreabertas no jardim, com
o caramanchão e pássaros bicando os frutos maduros nas árvores
frondosas, com as arcadas do pátio, bancos de pedras... Hoje, no
interior do porão, viajamos pela nossa Santos de ontem, através da
belíssima exposição de fotos do MIS (Museu de Imagem e Som);
a música antiga parece sair da antiga vitrola – transportamo-nos,
enlevados... Lembramos, sentados nas janelas (namoradeiras),
quando do lado de fora, em noites de luar, os clarões e sombras
aumentavam a magia e o encantamento do lugar.
A comunicação entre os dois pavimentos, ao fundo, fazse por estreita escada em caracol que nos remete aos castelos e
sonhos de nosso tempo de criança! Dependências de empregados
e novamente os azulejos portugueses, agora retratando a imagem
de Nossa Senhora da Conceição. Guarda-roupa alto de madeira
pesada abarrotado de livros antigos... Dispensa... Móveis, quadros,
esculturas e no antigo banheiro, peças inusitadas.
No andar superior ou no térreo, evocações de todos
irmanados em suas divagações. Clotilde Paul relembra comovida da
belíssima porcelana nas paredes. Nosso Prefeito João Paulo Tavares
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Papa recorda de seu tempo de estudante... de fichário escolar, entre
as grades de ferro, enquanto aguardava o ônibus, na Constituição...
Descerra-se a placa: Instituto Cultural Edith Pires Gonçalves
Dias – Museu Martins Fontes! Todos se apropriam do espaço ao
comprovar o que suas lembranças, seu imaginário já lhes antevia
– arquitetura sagrada, história preservada e revidada num ato de
amor!
O instante certo
Regina Alonso
Agosto finda. Passos na calçada silenciam. Para onde foram os
caminhantes? Aguço o olhar. Diante do jardim os eternos andarilhos
paralisados: o amarelo esparrama-se intenso, sem esperar a próxima
estação. Antecipa-se a primavera na exuberância dos lírios. Parece
que o tempo urge, inesperado e breve, trazendo-me Borges e seu
tigre forte, inocente, ensangüentado e novo, pela selva... deixando
seu rastro nas margens de um rio cujo nome ignora. (Seu mundo
não tem nomes nem passado.) Nem há futuro, só o instante certo.
Neste instante, onde quer que a vista alcance, o amarelo
dos girassóis de Van Gogh emprestam sua cor aos lírios de Santos.
Vontade de colhê-los às braçadas, levar a beleza da cor, da forma
para dentro de casa, eternizando o tempo que se escoa... Resistimos.
E na caminhada ao entardecer, o sopro do vento e o balanço dos
lírios ao pôr-do-sol que incendeia o mar. Multiplica-se o amarelo.
Multiplicam-se ao caminhantes nesta cidade atlântica; pessoas que
se movem no aqui e agora, no instante da primavera anunciada.
Para que esperar enclausurado entre as paredes do calendário?
Somos do mar, salitre em nosso sangue, suor-maresia...
Quem sabe, essa a razão deste inverno ensolarado, dias
cheios de luz e calor e á noite, o frescor que nos faz retomar o
caminho, enquanto os lírios dormem. Só o marulhar e a espuma
branca das ondas carregando na negritude das águas, a lua em
travessia... Ao longe, a onda faz-se vermelha na escultura de Othke,
131
concretizando o mar, o movimento e a cidade atlântica no vaivém
de tantas marés.
Ao clarão da manhã despertam os lírios e os homens.
A primavera faz-se no instante “amarelo”, tempo certo para
florescer a nova estação à luz do sol, nesta Santos, quase invisível,
sob a névoa... Cidade ibero-americana que nos evoca ainda mais um
outro poeta argentino, Leopoldo Lugones, quando caminhamos nas
claras noites por suas calçadas... cidade cujos perfis transparecem
como as marcas-d’água num papel.
Secas, as marcas carregam ainda o amarelo da nova estação,
o calor das cidades atlânticas, cujo tempo é inesperado como o
próprio mar.
Cantiga da minha rua...
Regina Alonso
Da cozinha, escuto suave canção. Não é canto de passarinho – o
canário ainda quieto e a fêmea, de novo, chocando seus ovinhos. Não
vem do rádio ou televisão, a música que me inebria e transporta...
Não, não posso acreditar! É o amolador e sua flauta encantada!
Imediatamente, reporto-me a outros dias, ali no Bairro da
Vila Nova... Na quietude do casarão, os cabelos trançados pela Tia
Celeste e o laço de organdi nas pontas, esvoaçando qual borboleta!
Pelo meio da manhã ou à tardinha, ouvíamos a música que nos
encantava qual serpente... Mães, tias, avós corriam a buscar tesouras
e facas e tudo o mais que estivesse sem fio. Às vezes, preguiçosa,
escondia-me em baixo do tanque de lavar roupa ou nos galhos do
pé de grumixama. Geralmente, atendia de bom grado aos apelos da
minha mãe ou da Vovó Luísa e carregava cantarolando, os objetos
até a calçada da Rua Bittencourt, onde o amolador estava.
Diante dele, uma fila enorme formada pelos moradores da
vizinhança. Enquanto aguardávamos a nossa vez, as novidades iam
sendo trocadas, ao som das lâminas que o amolador passava na
132
pedra, girando, girando, graças ao movimento sincronizado de um
dos seus pés. Esse fino ruído era o fundo musical das conversas das
senhoras e brincadeiras das crianças, que inquietas aproveitavam
para fazer “Cama de Gato” com elásticos improvisados ou até
mesmo brincar de “Pegador”. Em perfeita harmonia, os mais velhos
guardavam os lugares e seguravam os pertences da molecada.
Muitas vezes ficava alheia aos folguedos. Encantavam-me os
fiapos de luz prateada que espirravam do esmeril a girar, fazendo
desenhos tão efêmeros quanto à infância e os sonhos.
Quando o último freguês era atendido, muitos ainda
permaneciam em volta, com suas tesouras e facas rebrilhando ao
sol. Só caminhavam para suas casas, quando o amolador começava
a tocar a flauta. Seus passos tão suaves na calçada... Talvez para não
quebrar o encantamento!
A música enchia o ar de melodia. Nas janelas e sacadas
dos antigos sobrados debruçavam-se .velhos, jovens, crianças...
Homens e mulheres vendo o amolador passar pelas ruas da região
do Mercado, tocando sua flauta encantada!
D. Dorotéia, vamos furar aquela onda?
Regina Alonso
Domingo. No Bar “Harmonia”, movimento intenso de homens em
trajes e adereços coloridos. A criançada da rua em alvoroço... e nós
também! – Mãe, hoje é dia de“D. Dorotéia”? A confirmação fazia-se
em meio aos preparativos do almoço e do lanche para os intervalos
do desfile. Da esquina da Bittencourt com a Conselheiro Nébias,
espiávamos curiosos, o movimento do bar, do outro lado da avenida.
Os homens vestiam-se de mulher. Era um “Deus nos acuda”! Meus
tios, fervorosos carnavalescos, pegavam roupas da mamãe ou da tia
para desfilar com os colegas do bairro.
Após o almoço, lá íamos nós – pais e sete filhos – pegar o
bonde, na avenida. O cobrador, muito gentil, ajudava a embarcar
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as crianças e o motorneiro, sem pressa, aguardava que todos se
instalassem com segurança. Dlém, dlém... Dlém, dlém... O bonde
cortava a avenida, até dobrar, no Boqueirão e seguir para a Ponta da
Praia, em frente aos Clubes, local de nosso desembarque. O bonde
quase esvaziava, pois toda a população, nesse domingo, queria
assistir ao famoso desfile. Papai escolhia um lugar à sombra dos
chapéus-de-sol e nos acomodava sentados no meio fio. A conversa
girava em torno das expectativas com o desfile: –Que bloco abrirá
o desfile? – As fantasias estarão tão suntuosas quanto às do ano
passado? – E os carros alegóricos?
O espocar dos fogos interrompia os comentários. Silêncio
total! Corações disparando de emoção e começava a magia, o desfile
escorrendo pelas ruas de paralelepípedos! “Bloco das Esmeraldas”,
do Clube “Atlético Santista”, um luxo só em suas fantasias verde e
branca! “Dengosas do Marapé”, um encanto! “Chineses do Mercado”,
homenageando os povos orientais... A gente simplesinha que
morava no Bairro da Vila Nova, região do Mercado, transformavase ao desfilar com ricos trajes de mandarim rebrilhando aos
raios de sol da tardinha santista! Os carros alegóricos eram um
espetáculo à parte, como um palco de teatro, cenas vivenciadas
conforme o tema de cada bloco. Quantas vezes foi necessário que
os trabalhadores da Prefeitura de Santos levantassem os fios de
iluminação da avenida para que os carros pudessem passar com
suas alegorias altíssimas! O povo aplaudia de pé, entusiasmado,
jogando confete... e serpentinas que se cruzavam ao pôr do sol!
Atrás dos blocos, os patuscos, geralmente representando clubes,
bairros, associações – faziam crítica dos costumes, da política em
geral e do que era mais pertinente à cidade – providências em
dias de fortes temporais, mais escolas, o preço em alta de algum
alimento, falta de atendimento hospitalar... Tudo numa linguagem
acessível, contundente, mas respeitosa, provocando além de risadas
pela irreverência, momentos de reflexão que, em casa, seriam
relembrados e discutidos. Nos primeiros anos da “D.Dorotéia”, os
patuscos com roupas de papel de seda, tomavam banho na praia,
134
numa algazarra sem fim!
O desfile encerrava-se, sempre, com o tão esperado casal de
noivos. D. Dorotéia, homem vestido de noiva, geralmente grávida,
o que para a época já provocava questionamentos... Um condutor
de bonde no papel de noivo querendo escapar do compromisso...
O casal fazia mil estripulias. A criançada ria que só e o povo atiçava
a brincadeira, que terminava num trampolim em frente aos clubes.
Em meio a peripécias, verdadeiras acrobacias, os noivos desabavam
no mar, literalmente “furando aquela onda”!
De volta para casa, os irmãos mais velhos carregavam os três
pequenos adormecidos... no bonde apinhado, estribos cheios e mil
comentários sobre os blocos. Em casa, a família recolhia-se ao leito.
Eu não conseguia dormir, a cabeça cheia de cores e beleza...
Pela manhã, corríamos em busca da “A Tribuna”, jornal da
cidade que registrava o fato, informando os vencedores com fotos
maravilhosas! Novamente em mim as lembranças, que se tornavam
inesquecíveis, voltando hoje ao se aproximar mais um Carnaval.
Onde a nossa “Dorotéia”, que foi se descaracterizando com o tempo,
quase ninguém assistindo, as janelas da orla fechando-se para
o barulho e o grotesco?! Como retomar nossas raízes e tradições
nesta Santos de hoje? Nestes últimos anos, iniciativas como o
“Carnabonde” vem despertando o povo para o carnaval de rua.
Suas marchinhas já se fazem ouvir nas tendas da praia... Afinal, “D.
Dorotéa” ainda quer “furar aquela onda”!...
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Sergio da Costa Matte
É membro da Academia Santista de Letras desde 28 de maio de
2001, ocupante da cadeira nº 19, cujo patrono é Antonio Carlos
Ribeira de Andrada Machado e Silva.
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Santos, uma cidade portuária
Sérgio da Costa Matte
Qualquer menção que se queira fazer a Santos – um dos importantes municípios do Estado de São Paulo – não dispensa uma substancial referência ao seu Porto, o maior do Brasil e da América Latina.
É bem verdade que no Brasil sempre vicejou uma lamentável
falta de cultura hidro portuária, apesar de ter sido dotado por uma
verdadeira benesse divina, materializada nos seus cerca de 8.800 km
de costa atlântica e nos 44.000 km de vias navegáveis interiores.
Essa inexplicável herança foi a responsável por anos de esquecimento das elevadas funções econômica e desenvolvimentista
de um porto, apesar de ser considerado por muitos especialistas
como “o pulmão por onde respira a economia de uma cidade, de
uma região e de um país”.
E não se diga pertencer aos tempos modernos tão significativa acepção; embora não se tenha registro da entrada em funcionamento do primeiro porto do planeta, sabe-se que gregos e cretenses já navegavam há cerca de 6.000 anos, buscando a hegemonia do
transporte marítimo, pois indispensável ao desenvolvimento humano ao longo dos tempos, a fim de atender às crescen-tes demandas de matérias-primas, mercadorias e pessoas entre as diversas
nações do mundo. E nessa imensa rede universal de transportes os
portos exerceram e têm exercido papel decisivo, na medida em que
são os elos dessa extensa cadeia logística.
Não há duvidas, portanto, quanto à importância de um porto
para um país, podendo bem comprovar essa afirmativa, se mais não
fosse, as dificul-dades nas transações comerciais com o mercado
externo pelas quais passam os que não dispõem de fronteiras marítimas, como é o caso – para exemplificar – da Bolívia e do Paraguai,
aqui na América Latina.
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Assim, o distanciamento de muitos brasileiros da atividade
portuária não é fruto da pouca importância dos portos para o desenvolvimento do País, desde a sua descoberta, bem ao contrário,
resulta da alheação das suas altas finalidades.
Com efeito, quando os nossos portos foram alvo da abertura
às nações amigas por ato de D. João VI, em 28 de janeiro de 1808,
grande parte do mundo já registrava a existência de grandes portos,
alguns com mais de mil anos, evidenciando a inarredável necessidade de contar com eles.
Pena não terem esses exemplos norteado as providências dos
nossos governantes, desde aquele evento, tanto que o primeiro instrumento legal expedido a respeito ocorreu apenas em 1869, ou seja,
61 anos depois, e isto para chamar a iniciativa privada a participar da
construção e exploração comercial de portos, mediante concessão federal, já que o erário não apresentava recursos suficientes para tanto,
dada a extensão da costa passível de receber instalações portuárias.
A principal resposta da iniciativa privada a esse instrumento
foi o contrato de concessão firmado pelo grupo liderado por Cândido Gaffrée e Eduardo Palassin Guinle com o Governo Federal, em
1888, e que resultou na construção do Porto de Santos, cujo primeiro trecho de cais organizado, com 260 m de extensão, foi inaugurado em 2 de fevereiro de 1892, com a atracação do navio de bandeira
inglesa Nashmith, quando a empresa então já mudara a sua razão
social para Companhia Docas de Santos - CDS.
Ainda não se imaginava, então, que essa obra seria decisiva para melhorar as condições higiênicas de Santos, como também
não se avaliavam os imensos benefícios que as obras posteriormente realizadas pela CDS trariam à população local, então com pouco
mais de 13.000 habitantes. Transformar as margens lodosas e pestilentas do estuário em faixa de cais foi o mesmo, segundo Saturnino de Brito – engenheiro que projetou o sistema de drenagem por
canais em Santos – que proteger a cidade por um cinturão sanitário.
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A rigor, portanto, a história do Porto de Santos se confunde
com a da Cidade: primeiro porque há o registro de Gonçalo Coelho
ter aportado, em 1502, a um atracadouro rudimentar já existente
na região da hoje chamada Ponta da Praia; segundo porque a ideia
de construir instalações portuárias abrigadas partiu de Braz Cubas
– após a sua chegada à então Capitania de São Vicente, em 1531,
acompanhando a expedição de Martin Afonso de Souza –, que descobriu ter a Ilha de São Vicente um amplo estuário capaz de permi-tir a
atracação de navios, devidamente protegido dos fortes ventos e altas
on-das, bem como da pirataria. E logo depois, em 1546, era fundada a
Vila de Santos, e que passou a ser CIDADE em 26 de janeiro de 1839.
Mas convém voltar ao detalhe abordado anteriormente
para, malgrado, acrescentar que aquele pouco caso com as atividades portuárias disseminou-se na sociedade brasileira, de modo que
grande parte dos habitantes das cidades portuárias achava que a
existência de um porto criava mais problemas do que vantagens a
uma cidade. E o pior é que tal situação persiste, por sorte em menor
grau, como confirmou recente pesquisa específica, demonstrando
ainda não termos compreendido plenamente as importantes funções de um porto e seus reflexos positivos na economia das suas
respectivas cidades-sedes e das regiões componentes das suas
“hinterlândias” (“áreas de influência”).
Se assim não fosse, como entender a criação do maior parque
industrial da América Latina na conhecida região do ABCD (Santo
André, São Bernardo, São Caetano e Diadema) sem a existência de
um local próximo e apropriado para receber as matérias-primas e
exportar os produtos acabados? Como compreender a forma como
nasceram e cresceram as exportações de café se não fosse o Porto
de Santos, que desse modo acabou se transformando no maior exportador do mundo dessa rubiácea?
A partir de então, o Porto e as empresas afins passaram a
ser o celeiro de mão-de-obra para a região, enquanto a Cidade cres139
cia para abrigar os contingentes de trabalhadores e oferecer o adequado respaldo para disponibilizar os serviços indispensáveis, vale
dizer, de habitação e transporte, de alimentação, sanitários, educacionais, e tantos outros pertinentes a uma cidade em pleno desenvolvimento.
Assim, em 1942 quando o porto completava 50 anos de
funcionamento, de forma organizada, o Município atingia cerca
de 190.000 almas, e no seu centenário já ultrapassava o total de
300.000.
Confirma-se assim, mais uma vez, que cidade e porto cresceram juntos, a primeira oferecendo abrigo para as miríades de
pessoas utilizadas nos serviços portuários e afins (agenciamento
de navios, despacho aduaneiro, transportadores, etc.) e o segundo
garantindo emprego a elas e fortalecendo a economia da Baixada
Santista.
Um dado que bem reflete essa conjunção é o fato de ser raro
encontrar em Santos alguma pessoa que diga não ter um parente,
um amigo ou um conhecido que trabalhe ou tenha trabalhado no
porto ou em suas atividades satélites.
Hoje com 433.565 habitantes (segundo estimativa do IBGE),
a cidade-sede do Porto de Santos conta com um comércio forte,
várias universidades inúmeros clubes e associações de todo gênero, sociais, beneficentes, religiosas, instrutivas e culturais, além de
agremiações esportivas, com destaque ao renomado Santos Futebol Clube, oferecendo, destarte, significativa “qualidade de vida”
aos seus habitantes! Sobretudo, é uma Cidade acolhedora e preferida por aposentados.
E para que não progridam os conflitos urbano-portuários
impõe-se alertar sobre a persistência de um mau exemplo ocorrente na região do “corredor de exportação”, na Ponta da Praia,
onde, não tendo o Governo Municipal definido, no devido tempo,
as áreas adjacentes como de vocação portuária, diver-sos prédios
140
habitacionais foram construídos nas proximidades das instalações
portuárias. O resultado dessa grave omissão são as frequentes reclamações quanto à dispersão de poeiras e de mau cheiro, oriundos
da movimentação e armazenamento de grãos de origem vegetal,
notadamente do farelo de soja. Todavia é sempre bom lembrar a
impossibilidade de deslocar o porto para outro local, pois deve permanecer na fronteira com a água, exigência essa inexistente para as
construções terrestres. E para tal litígio ainda se corre o risco de ser
adotada uma solução simplesmente ambientalista (como tem ocorrido com frequência), qual seja a paralisação daquelas operações,
com graves pre-juízos para as exportações brasileiras e consequente afetação da economia local e nacional!
Sobre esse aspecto convém lembrar que o Porto santista,
hoje com 13 km de cais acostável, em números redondos e incluindo os terminais privados, responde por um quarto de toda a movimentação portuária do País, de modo que qualquer redução do seu
movimento afeta a economia da Cidade, da região e do País.
Apesar desses percalços, felizmente já se pode notar uma
progressiva e crescente integração cidade-porto, com paulatina
eliminação das divergências. E o tema porto-cidade vai assumindo
lugar de destaque nos fóruns onde se discute economia e desenvolvimento nacionais. Até uma “Associação das Cidades Portuárias” foi
criada, evidenciando a sua a importância no cenário nacional.
Em Santos medidas de vulto foram e estão sendo tomadas,
tanto para amalgamar aquela integração, como para ampliar a eficiência dos serviços portuários.
Nesse sentido cumpre ressaltar a criação, no Governo Municipal, de uma Secretaria de Portos e Transporte Marítimo, e cujo
primeiro titular acabou sendo simultaneamente nomeado, pelo Ministro dos Transportes, como presidente do Conselho de Autoridade Portuária; indubitavelmente, tratou-se de uma decisiva providência para a interação das duas partes.
141
Auspicioso também é consignar que em 2005 a Universidade Católica de Santos - UNISANTOS criou o primeiro curso de especialização, em nível de pós-graduação, de Direito Marítimo e Portuário, e que tem sido frequentado por profissionais, principalmente
advogados, oriundos de diversos portos nacionais e de entidades
privadas ligadas ao Setor.
Também merece destaque o significativo crescimento das
atividades turísticas por via marítima, chegando a atingir, na época de temporada, a atracação simultânea de até seis navios de passageiros, em instalações devidamente modernizadas e ampliadas,
movimentando milhares de passageiros.
Agora, para bem completar o harmônico funcionamento do
porto sem maiores prejuízos para a cidade, impõe-se anotar que o
Governo Federal – detentor do poder constitucional de explorar os
portos – os Governos Estadual e Municipal e a Autoridade Portuária
(CODESP) estão pondo em prática um pla-no logístico para resolver, sem mais tardar, o complexo problema dos acessos terrestres
ao porto, de modo a erradicar os constantes congestionamentos de
caminhões nos períodos de safra, obstruindo a entrada e a saída de
veículos da cidade.
Aliás, já é positivo o estágio de desenvolvimento portuário
e de projeção da Cidade de Santos, tanto no âmbito nacional como
no internacional, esta última pelas suas qualificações destacadas
anteriormente, além de suas reconhecidas belezas patrimoniais e
naturais, bem descritas em prosa e verso por muitos ilustres escritores e poetas, e fartamente registradas por inúmeros fo-tógrafos;
entre elas é imperioso ressaltar e existência em Santos do maior
jardim de praia do mundo, com 5.335 m de extensão, devidamente
registrada no livro de recordes Guinnes Book.
Enfim, hoje temos uma grande cidade e um grande porto,
auxiliando-se mutuamente!
Esgotadas as possibilidades de ampliar as instalações portu142
árias na ilha, foram elas expandidas na margem esquerda do estuário, nos municípios de Guarujá e Cubatão, os quais passaram, juntamente com o de São Vicente, a abrigar portuários. E no conjunto
dessas instalações foram movimentadas, em 2014, nada menos do
que 120,5 milhões (arredondando) de toneladas de cargas.
E se tudo isso não bastasse, é prazeroso registrar a presença
histórica de uma plêiade de notáveis vultos nacionais santistas, a
começar pelo insigne Patriarca da Independência José Bonifácio de
Andrada e Silva, e seguindo pelos consagrados poetas Martins Fontes e Vicente de Carvalho, para pelo menos citar alguns.
Com tais qualificações pode-se afirmar que o Brasil, com
seus 46 portos públicos, tendo à frente o de Santos, e com mais de
uma centena de terminais privados, se enquadra, plenamente, na
sábia sentença:
“A história das nações é escrita com o trabalho de seus filhos,
a riqueza de seu solo e a movimentação de seus portos”. (AD)
143
Sergio Fernandes Lopes
É membro da Academia Santista de Letras desde 29 de julho de
2011, ocupante da cadeira nº 11, cujo patrono é Heitor de Moraes.
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Dona Gê
Sergio Fernandes Lopes
A notícia não poderia ser melhor. O projeto que a Academia Santista
de Letras apresentou à Secretaria de Cultura de Santos, atendendo
a edital do FACULT, para a publicação de um livro escrito por seus
acadêmicos foi aprovado. O titulo do livro: “Santos em Prosa e Verso”.
Não sendo eu nenhum vate, resolvi dar minha contribuição através
de uma narrativa memorialista, sobre uma pessoa especial para
mim: Dona Gertrudes, que com o tempo e a intimidade, reduzi carinhosamente para Dona Gê.
Conheci-a no elevador do prédio onde ela mora e eu o frequentava uma vez por semana para ir à massagista cuidar de uma
dor na coluna que volta e meia se lembrava de mim. Muito conversadeira, ela voltava da praia comentando como o dia estava bonito... O
mar, as ondas...
Desceu no sexto andar com sua acompanhante e continuei
minha ascensão alguns andares acima.
Encontrei-a uma segunda vez e, na terceira, já havia a impressão que éramos velhos conhecidos, tanto que ela insistiu para que
depois da sessão de massagem, fosse a seu apartamento para um cafezinho.
Aquele foi o primeiro de muitos encontros que teríamos. Mesmo sem necessitar mais da massagem, continuei com minhas visitas.
O prédio onde mora é localizado, a meu ver, na mais bela rua
da cidade de Santos, a Barão de Penedo. Uma alameda tranquila para
se morar, paralela à avenida da praia com seu pequeno canal,ladeado
por frondosos jambolões, desembocando no Orquidário Municipal.
Gostaria mesmo de morar de frente para a praia, porém, mais
em conta, ela e o marido compraram aquele apartamento o qual, de
sua sacada, oferecia uma bela vista e podiam contemplar grande fa145
tia dos jardins, das areias e do mar... Seu mar, como gostava de falar.
Nas várias conversas que tivemos, dizia que até pouco tempo
costumava ir sozinha à praia molhar os pés no mar, ritual que cumpria diariamente, mas com o passar dos dias, e a idade avançando,
começou a sentir as limitações e, por isso, resolveu que era chegada a
hora de ter uma acompanhante.
Seus olhos, muito verdes, adquiriam brilho especial quando
narrava com saudade um tempo em que os jardins da praia não passavam de um extenso gramado.
Muitas recordações guardava daquela época dourada da vida.
A família morava no bairro do Marapé, na rua Moura Ribeiro em um
chalé, construção em madeira, típica de Santos nos anos trinta, pintado de verde claro e com um jardim a frente que para ela era um
palácio.
Iam a praia, ela, irmã, primos e amiguinhos catar conchas nas
areias e deixavam seus pés serem acariciados pela branca espuma
das ondas que quebravam na fina areia. Corriam, gritavam sua alegria e entravam nas águas muito claras do mar, onde pequenos siris,
quase translúcidos, vinham impunes com suas pinças beliscar seus
pés, o que os fazia dar pulinhos de surpresa. Pequenos peixes nadavam entre suas pernas em um balé atrevido e ousado. Então riam e,
com as mãos espalmadas jogavam água uns nos outros.
Já na adolescência vestia o maiô de algodão grosso, a última
moda, ajeitava os cabelos dentro da toca e no vigor da juventude arrostava ondas, determinada a vencê-las, sentindo nos lábios o sal.
Saia do mar com o maiô encharcado, pesando três vezes mais que
seu peso original!
Os passeios de bicicleta com a turma, onde conheceu aquele
que viria a ser seu marido, e o flerte sob o caramanchão no Orquidário, sempre sob o olhar atento da prima, as vezes nem tanto, mais que
uma prima, uma irmã, confidente.
Atualmente, por conta da idade, já não é tão assídua em suas
146
excursões à praia. Agora, fica mais sentada em uma cadeira de balanço
na varanda do apartamento apreciando o ir e vir das ondas do mar.
Nas tardes mornas do verão, levanta os olhos para apreciar o
céu ser tingido com tons avermelhados do sol, prenunciando que o
dia seguinte será de muito calor.
Do outro lado da rua, em frente a seu prédio, plantado em
meio a um grande terreno, funciona um pensionato sob a direção de
irmãs da Ordem de Jesus Crucificado e, anexo, um restaurante aberto ao publico, mais conhecido como restaurante das freirinhas, que
serve uma comida deliciosa. Eu mesmo estive lá algumas vezes almoçando com dona Ge, que almoça lá quase todos os dias.
Estranhou, quando uma freirinha disse a ela que em breve estariam fechando a instituição.
Logo, um movimento de máquinas iniciou a demolição do
pensionato. Não demorou e no terreno estava montado um estande
de vendas anunciando o lançamento de mais um espigão de trinta
andares como tantos que proliferam pela Cidade.
Os bate-estacas funcionando a todo vapor desde cedo até o
final da tarde, fazendo tremer o solo e tudo a sua volta. Pam ... pam...
pam... Tirando a tranquilidade dos moradores da pacata alameda.
Nem mesmo os pássaros que estavam sempre na copa dos jambolões, bicando seus frutos, resistiram e sumiram.
Por essa época estivemos juntos. Descontente e inconformada, condenava a ganância dos homens que em nome de um progresso
duvidoso estavam descaracterizando a Cidade.
- “É, não sei para que prédios tão altos, afinal, existem outras formas
de se chegar ao céu” – ironizava e citava a Bíblica Torre de Babel,
construída pelo homem para alcançar Deus.
- “Viu no que deu né! Ninguém lá falou a mesma língua e se entendeu! “.
E me puxando pelo braço, falou-me ao meu ouvido:
-“Castigo de Deus, castigo de Deus! Do jeito que as coisas vão para
ver o céu, só deitando no chão!”.
147
À medida que o prédio subia, ficava mais amuada e quando
finalmente a altura ultrapassou o andar onde morava, tirando a visão
que tinha do seu mar, entrou em depressão.
Fui vê-la, alertado por sua filha, para tentar animá-la de alguma forma, mas tinha em meu coração que aquele seria nosso ultimo
encontro.
-“É meu filho... primeiro tiraram meu mar, minha praia e agora estão
tirando o meu céu” – palavras essas ditas com melancolia.
Pouco tempo depois soube que Dona Ge, certa noite recolheu-se para dormir e não mais acordou para essa vida. Partiu angustiada.
Considero-me uma pessoa de fé e creio que nem tudo deva
ser visto só pela lente da tristeza. Estou certo que Dona Gê encontra-se num lugar onde pode observar o seu céu, sua praia, os jardins e o
seu mar; onde nada, nem a vontade dos homens possa interferir em
seu horizonte.
Amém !
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149
Silvia Ângela Teixeira Penteado
É membro da Academia Santista de Letras desde 15 de junho de
1989, ocupante da cadeira nº 13, cujo patrono é João Cardoso de
Menezes e Souza (Barão de Paranapiacaba).
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O sentido de ser santista
Sílvia Ângela Teixeira Penteado
Meus agradecimentos à Câmara Municipal de Santos e a seus nobres
vereadores por terem acolhido, por unanimidade a indicação de meu
nome para uma das mais gratificantes homenagens que se pode receber em vida.
Graças sejam dadas à iniciativa do Dr. Fausto Figueira de Mello
Júnior, médico-cirurgião, político de destaque que está além dos partidos.
Aprimora em si, no sentido forte do coletivo, a arte do poeta
Horácio: “Colhe o dia como ele vem, aproveita do instante, sábio em
usar, como medida da serenidade, a alegria, o corpo em festa.”
A emoção que me invade neste momento quero partilhar com o carinho dos amigos, intelectuais, destacadas personalidades, importantes órgãos de imprensa que apoiam nosso trabalho e também com
aqueles que longe se fazem presentes através de afetuosas mensagens e no silêncio.
Esta homenagem tão especial divido com toda minha família,
unidos que somos na vida e na profissão.
Família enquanto lugar de formação de transição e passagem,
onde crescem em intensidade os espaços de trocas.
Ao escutar as palavras do nobre Vereador Martinho, não pude
deixar de refletir que os momentos marcantes de qualquer existência
daqueles em que vivemos o amor. Na maioria das vezes, o que nos
marca são pequenos atos, coisas que não aparecem nos currículos
porque talvez sejam simples demais para serem contadas.
Não posso deixar de dividir este momento com todos que me
possibilitaram compreender estes atos de amor, pessoas de quem
sou reflexo e história.
Mais do que em qualquer livro, foi no vínculo com educadores, funcionários, alunos e outros parceiros que pude compreender o
151
verdadeiro sentido de ser santista, cidadã de Santos.
Cidadania como próprio direito à vida. Nascemos com ela,
tornamo-nos cidadãos plenos na ação do sujeito e dos grupos assim
como nas condições globais da sociedade.
Por que é importante ampliar a cidadania?
Porque uma sociedade democrática é feita quando o povo se
torna parte principal do processo de seu desenvolvimento e promoção social. Como diria Jorge Luiz Borges: “Quando as cidades caminham, sobre elas repousa a mão do homem. Nenhuma voz é dispensável”.
Temos que pensar que as formas de exercício da cidadania
dependem, para sua efetividade, de conhecimento dos problemas
concretos que mobilizam as pessoas e do acesso no uso da informação para encaminhar as suas necessidades.
O conhecimento depende da cidadania que o controla e orienta para evitar que de novo e sempre seja instrumento de exclusão,
principalmente dos mais pobres, ou os que são discriminados por
sua raça, cor, sexo, etnias, classes sociais e religião.
Anseio por uma paz que se institua da perspectiva dos povos. Talvez possamos enxergar uma alternativa nos movimentos que
restabelecessem os laços do cotidiano com a história e novamente
comover o imaginário popular.
A vida digna e a conquista da liberdade e dos valores espirituais e éticos decorrem de uma sociedade cidadã, onde suas instituições promovem a ampliação das alternativas e afirmam a equidade.
Supõe uma sociedade que se ousa olhar tal qual ela é, que
prepara para a esperança ensinando a si mesma, numa espécie de
húmus no qual se enraízam novas descobertas.
Partilhar essas conquistas deve ser a meta dos cidadãos privilegiados.
Somos nós cidadãos privilegiados, porque somos santistas,
somos herdeiros da coragem e do patriotismo dos irmãos Andradas.
152
Desenvolver a presença aos nossos predecessores, escutar todas essas vozes, não apenas as heroicas, mas também aquelas que se
exprimiram no mero cotidiano, no anonimato. Isto é reconhecer mérito, quase prestar homenagem aos que não atingiram a notoriedade
e apesar disso criaram, todos eles, o fundamental.
O que pode dar a esperança de que não vivemos em vão, principalmente quando cada um de nós renuncia a se considerar como
caso único e percebe o quanto de seu valor está ligado aos dos outros.
Como diria Milton Nascimento, “a alegria de sentir, de viver unido aos
homens”.
Cidade, eu te compreendo, amo as tuas terras, amo teu segredo fechado. Talvez não estejas dormindo. E a menina que fui vem aos
olhos para ver a cidade de novo em festa.
Falar de Santos me sugere andar pela cidade, o que me lembra o vento noroeste a trazer o cheiro do doce de banana Leoneza;
infância, cheiro de dama-da-noite nas cadeiras nas calçadas; o arco-íris do confete nas horas derradeiras dos bailes de carnaval.
Escuto o barulho do cais no sono, na praia, no berço ligado
ao som de outra música: “Pintor”, no aconchego do colo e de uma
voz que teimava por dar o melhor de si. Hoje o ruído dos ônibus dos
alunos trabalhadores, sedentos da palavra, traz os caminhos que se
abrem a novas formas de vida e trabalho para os nossos jovens.
É um olhar de contemplação de nativa e outro talvez similar
ao de meus antepassados imigrantes, meus avós paternos Benedita,
que transmite sua iluminação, e Nicolau, estivador, na luta do trabalho, e sua saga. Das lições dos avós maternos, Leonilde, dádiva do
encontro, e Sylvio, um aferrar-se ao chão onde pisa, um fincar-se ao
mesmo tempo que sentimental e marítimo, se larga, se entrega a desafios invisíveis.
Ou ainda o de meus pais, Milton e Nilza e Emília cujas vidas
foram firmadas no compromisso do bem público , da justiça e da dignidade.
153
O dia e a noite me juntaram a Marcelo, Lúcia, Cecília, mãos
que se reconhecem, sempre nas alegrias, na espera, no suor da vigília.
Cedo aprendemos a dividir tudo o que tínhamos com o trabalho: nossos livros, inclusive aquele de figuras coloridas para recordar
até o fim de nossas vidas; que nos fez estabelecer os laços entre o
caminhar e as diferentes comunidades a que pertencemos.
A cidade é como uma escola, em toda sua expressão histórica,
enquanto ação coletiva, de um conjunto de forças regionais para uma
interligação socioeconômica de sua metropolização. Direcionado,
para a qualidade de vida da população.
Há uma cumplicidade tática entre nós e Santos, que a cada dia
se desmancha e se refaz.
Compreendi que há um caminho que vai do amor por aqueles vêm depois de nós, meus filhos Marcus e Renata, ao amor pelas
crianças e pelos homens, que ganha a beleza à medida que cresce a
consciência de que viver é esforço para melhorar sempre em direção
a ideais.
A medida que os homens se aprimoram, se superam, como
se a flecha ultrapassasse a corda para ser o voo mais que ela mesma.
São lições de comunhão junto a este companheiro de todas as horas,
Antonio.
É a partir da luta presente que podemos entrever a verdade
das lutas que travaram antes de nós.
O devir da cidade contemporânea não depende apenas do
resultado das eleições, mas de assumirmos coletivamente um certo
número de escolhas, enfrentadas de olhos abertos.
De reconstruir práticas sociais a partir das quais seja possível
pensar e operacionalizar alternativas de desenvolvimento da sociedade nos domínios do conhecimento, do sujeito, da transformação
social e dos projetos políticos.
Não é tarefa fácil nem tarefa individual. Supõe um reencan154
tamento da vida coletiva, proclamada na continuidade de pequenos
atos de todos aqueles que creem, lutam, trabalham, perdoam e sonham.
Proclamada por todos aqueles que juntos tecem uma nova
aurora.
E como diria Roldão Mendes Rosa:
“A planície feliz que em sonho edificamos
Não é outra senão esta.
Não a inventes.
Não é mito que adores.
Não é sonho que vivas no silêncio dos olhos.
Uma cidade sem portas
Em que o amor circula vasto
Sem previsão de caminho
Distribuído por igual.
Cidade assim planejada
Poderá brilhar ao sol
Conquanto assim o desejes.
As coisas que te rodeiam
São menos elas que tu
Basta que nasças de novo
E plasmes de novo a vida”.
Discurso Pronunciado por ocasião da outorga de Título de Cidadã Emérita, Câmara
Municipal de Santos.
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Taís Curi
É membro da Academia Santista de Letras desde 23 de maio de
2013, ocupante da cadeira nº 36, cujo patrono é Alberto Leal.
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Os canais na paisagem e na alma santista
Taís Curi
Impossível imaginar a paisagem santista sem os canais que cortam a
Cidade. Eles estão definitivamente integrados à vida local, não apenas pela beleza e o equilíbrio que proporcionam à estrutura urbana, mas principalmente em razão da utilidade que lhes foi dada – há
mais de 100 anos – pela genialidade e o espírito precursor de um
engenheiro sanitarista.
Saturnino de Brito planejou os canais para livrar Santos, no
início do Século XX, das tenebrosas epidemias que vinham dizimando a população e comprometendo seriamente o desenvolvimento da
Cidade. “Como um médico empunhando o bisturi para salvar vidas
humanas, o engenheiro cortou as carnes da Cidade, então doentes, e
curou seus males maiores”, disse o poeta e escritor Narciso de Andrade, em uma de suas crônicas.
Quente, úmida, chuvosa e plana, a Santos do final de século
XIX vivia encharcada e era assolada por uma série de epidemias: a
febre amarela, a peste bubônica, malária, varíola, tuberculose, que
matavam famílias inteiras, pelo desconhecimento de tratamentos
médicos adequados, somado à falta de higiene, escassez de água e a
um sistema de esgotamento das águas servidas. As companhias armadoras dos navios estrangeiros que chegavam a Santos para carregarem café e outras mercadorias enviavam suas tripulações para
locais distantes da Cidade, a fim de que não se contaminassem.
A situação era alarmante e seu agravamento sucessivo acarretava prejuízos cada vez maiores não só para a saúde da população
como para o comércio local e exportador. Diante desse quadro, instituições como a Associação Comercial de Santos – fundada em 1870
– se manifestavam exigindo o saneamento de Santos para garantir a
vida da população e também os interesses econômicos locais.
157
As pressões se intensificam e o governo paulista decidiu tomar providências. Constituiu comissões para projetar o saneamento da Cidade,
as quais trabalharam durante três anos, entre 1882 e 1885. Ao final
desse período, foi escolhido o projeto apresentado por Saturnino de
Brito.
O plano do sanitarista foi inspirado na hidrografia dos morros
e da planície, com correções na drenagem deficiente. Propôs canais
de concreto, incluindo dentro deles uma faixa de gramado (que hoje
não mais existe) para amenizar as elevadas temperaturas. Projetou
ainda pontes para os veículos e passadiços para os pedestres, visando facilitar o trânsito e a travessia dos canais.
Em linhas gerais, a proposta previa o sistema separador absoluto, ou seja, seriam construídos canais para drenagem superficial
e um sistema de esgotos, sem ligações entre si. A função dos canais
seria drenar a planície encharcada do excesso de chuvas e também
recolher as águas por meio de emissários construídos ao redor dos
morros. Já o esgoto de Santos seria canalizado e lançado além da
Ponta de Itaipu, situada na época em área de São Vicente, mas hoje
pertencente à Praia Grande. O sistema previa que o material coletado
seguiria por uma tubulação extensa e larga, a qual fez surgir a necessidade da construção da Ponte Pênsil, para suportá-la.
O projeto de Saturnino de Brito incluiu um minucioso estudo
do movimento das marés na região para assegurar o perfeito funcionamento da dispensa de esgoto e da drenagem das águas recolhidas
pelos canais. No primeiro caso, objetivava evitar que o esgoto lançado ao mar retornasse às praias. E quanto aos canais que cortariam a
Ilha de São Vicente, atravessando a Cidade de ponta a ponta, interligando o Oceano, a finalidade era aproveitar a enchente e a vazante
das marés para limpá-los e evitar o criadouro de mosquitos.
Os sulcos enormes, abertos no solo santista, cumpriram ao
longo dos anos o importante papel que lhes coube e, hoje, têm ainda
permitido aos santistas desfrutarem de algum espaço livre e arbori158
zado, em meio à arquitetura vertical, que a partir das últimas décadas do século passado vêm sobrecarregando de concreto a paisagem
urbana de Santos.
Marca registrada da Cidade, os canais que se estendem a partir da orla também direcionam santistas e turistas à procura de localização; favorecem a entrada das brisas marinhas, graças a sua extensão e largura, e oferecem beleza e tranquilidade para os caminhantes.
Que bênção poder desfrutar da sombra de árvores frondosas enfileiradas ao longo de suas margens e cujos braços se erguem em direção à água e nela são refletidos... Compondo esse cenário convidativo
ainda é possível encontrar garças e pássaros pousados em suas laterais, além de algumas espécies de peixes miúdos que se mostram aos
observadores mais atentos. Vale a pena contemplar.
E pensar que mentes insanas não descansam e trabalham
para tentar cobrir os canais santistas! O objetivo? Usar os espaços
cobertos para a ‘nobre’ função de estacionamento para veículos!
Mas os canais ali permanecem, integrados à alma da Cidade.
Não é por outra razão que dificilmente encontraremos uma
exposição fotográfica ou de pintura, sobre as belezas de Santos, em
que os canais não tenham sido contemplados. O desenho de suas muretas inspiram artesãos, decoradores e joalheiros na confecção de peças. E o que falar das lembranças de tantos santistas, que na infância
brincavam nos canais, pescando peixinhos coloridos, lagostins, que
as mães se negavam a fritar. Assisti muitas cenas desse tipo em casa,
quando meu irmão, chegando com uma lata de azeite furada em uma
das mãos – utilizada para a captura dos infelizes peixinhos – e outra,
com os próprios se agitando na água, era imediatamente expulso da
cozinha.
Impossível, portanto, falar sobre Santos e não incluir seus canais. Eles fazem parte da paisagem e da história da Cidade, que conserva registros da importância e da festividade que marcou a entrega
de cada um deles à população santista.
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Os nove canais projetados por Saturnino de Brito foram inaugurados entre 1907 e 1927, e pouco depois tempo depois da entrega
do primeiro deles - o que se estende ao longo da Avenida Pinheiro
Machado (Canal 1) - era declarada extinta a febre amarela na Cidade. Os demais viriam logo a seguir: em 1910, o da Av. Bernardino
de Campos (Canal 2); em 1911, mais três: o da Av. Siqueira Campos
(Canal 4), Av. Francisco Manoel (Canal 7); e Av. Barão de Penedo (Canal 9). Em 1912 , o da Av. Moura Ribeiro (Canal 8); em 1917, o da Av.
Joaquim Montenegro (Canal 6); em 1923, o da Av. Washington Luís
(Canal 3); e em 1927, o da Av. Almirante Cochrane (Canal 5).
Além desses, o Poder Público Municipal construiu seis canais,
em anos seguintes, a maioria deles na Zona Noroeste da Cidade: o
Canal 10 (conhecido como Canal 7, como forma de completar a sequência que parte da Orla), na Av. General San Martin; o Canal 11, na
continuação da Av. Afonso Pena, entre o Canal 6 e o Porto; Canal 12,
na Av. Hugo Maia; Canal 13, na Av. Alberto de Carvalho e Av. Roberto
de Molina; Canal 14, na Av. Eleonor Roosevelt; e Canal 15, na Av. Jovino de Melo.
O engenheiro sanitarista Francisco Saturnino Rodrigues de
Brito nasceu em Campos, então Província do Rio de Janeiro, em 14
de julho de 1864 e faleceu em Pelotas (RS), em março de 1929. Realizou alguns dos mais importantes estudos de saneamento básico e de
urbanismo em diversas cidades do País, sendo eleito em congresso
da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, como
Patrono da Engenharia Sanitária Brasileira. Escreveu diversas obras
técnicas sobre saneamento, que foram adotadas na França, Inglaterra e nos Estados Unidos.
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161
Viviane Pereira
É membro da Academia Santista de Letras desde 25 de março de
2013, ocupante da cadeira nº 37, cujo patrono é Vicentina Mesquita
Vicente de Carvalho.
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Cantos de Santos
Viviane Pereira
Estou sentada diante da tela do computador tentando acabar o trabalho que deve ser entregue no dia seguinte quando um som, vindo
da rua, me leva para uma viagem à minha Santos de outros tempos.
Não é o bar na esquina que emenda uma festa por conta do feriado.
Nem a buzina dos carros que ainda circulam ansiosos em voltar para
casa após mais um dia de trabalho.
É um som diferente, com cheiro de infância e gosto de quero
mais. Ouço ao longe o silvo de um apito e à medida que ele se aproxima a voz que o segue fica mais clara e inteligível. “O amendoim está
de volta...”, diz o homem do amendoim, que vende não só amendoim
torrado, mas também paçoca, no carro que cruza diariamente as ruas
do bairro.
Já sei que deve ser perto de 9 da noite, a hora em que ele está
de volta. Algumas horas antes, anunciou sua ida. E agora, ele também,
o carro do amendoim, ansia por voltar à casa, sem perder a esperança de vender o final do estoque do dia.
Nem preciso ir até a janela para sentir o cheiro de amendoim
torrado ou o gosto da paçoca doce fazendo a festa na minha boca.
Sequer necessito viajar em uma máquina do tempo para lembrar a
infância e a turma da rua correndo atrás do homem do amendoim.
Eu me pergunto até quando ele irá resistir à concorrência dos supermercados, das grandes lojas que vendem potes cheios de paçocas
industrializadas – longe, muito longe de ter o mesmo sabor e aroma.
Até quando as pessoas descerão às ruas para buscar amendoim no
carrinho?
Nesta viagem temporal rememoro outros Cantos da minha
Santos que vão ficando guardados em algum lugar da memória, perdidos nos baús do passado.
Remexo em algumas caixas no armário e encontro o que es163
perava. Um papel branco, com uma estrela grande no alto escrito ao
lado, em letras maiúsculas: SORTE. Em meio ao texto, frases falam de
futuro, números para a loteria. “Casarás com um rapaz que tomará
posse do teu coração, que será o único que amarás a vida inteira com
verdadeiro afeto”.
Em um dos cantos falta um pedaço do pequeno papel, fruto da
bicada do papagaio que acompanhava o homem do realejo. “É para
dar sorte”, disse o moço do realejo pedindo a bicada ao bichinho. E
nós, moças, mal esperávamos para ler o que o futuro nos reservava,
predito bem ali, no coração do Gonzaga, ao lado da Praça Independência, pelo bico do papagaio, numa tarde de sábado.
Desses não vi mais, mas ainda fazem parte dos Cantos de Santos, ainda que só sobrevivam nos cantos de minhas recordações.
Junto com eles, o pai e a filha que cuidavam de uma mercearia
na Avenida Conselheiro Nébias, perto do Centro. Ambos fortes, com
jeito de europeu, passavam o dia sentados, aguardando o próximo
freguês. O semblante sério não era animador, mas sempre que eu por
ali passava no ônibus 4 tinha ímpetos de um dia saltar e perguntar
quem eram, de onde vinham, como viviam.
Nunca o fiz. E a mercearia se desfez como o armazém do seu
Gameiro, que tinha seu ‘secos e molhados’ bem na frente da casa da
minha infância. “Seo Manoel Gameiro”, diziam os clientes que passavam pela porta. “Às suas ordens o ano inteiro”, respondia o homem,
sempre bem humorado. Riam-se da piada repetida à exaustão e nós,
crianças, ríamos juntos sem entender. Só achando bonita a rima.
Foi indo ao Gameiro que eu aprendi a atravessar a rua. E foi no seu
armazém que eu comecei a fazer compras sozinha. Tudo era muito
fácil. Ninguém precisava decorar senha do cartão de débito ou crédito para comprar no nome da mãe. Bastava dizer a senha muito mais
informal: “Anota, por favor, seo Gameiro”. E ele anotava na cadernetinha onde os valores se somavam para serem pagos ao final do mês
– ou quando o pagamento chegasse, assim que fosse possível.
164
Porque naquela época fiado era parte do comércio e dívida se pagava
pela honra. Não precisava assinar, não precisava colocar senha, não
precisava de biometria. Cada um sabia o que devia e sua parte seria
quitada. Porque honra se media ‘pelo fio do bigode’.
E lá vai o Gameiro para um Canto de Santos que só vive ainda
na minha lembrança. Ao lado dele está o amolador. “Olha o amolador,
olha o amolador de facas”. E o som da máquina de amolar facas que
dava tanta aflição se fazia ouvir por toda a rua.
Depois vem aquela perua Kombi que levava nossas mães a
correrem para a rua sem sequer tirar o avental: “Alô dona de casa, o
vendedor de ovos chegou. Tragam bacias, panelas, vasilhas, qualquer
recipiente. Aqui a senhora vai encontrar ovos fresquinhos, diretamente da granja e da horta ao consumidor”.
A rua... Ah, a rua... Pergunto-me em que Canto da minha Santos está aquela rua democrática onde jogávamos queimada. Onde pulávamos amarelinha. De onde fugíamos quando o ‘homem do saco’ se
aproximava. Ninguém nunca o viu, mas ninguém ficava para conferir
ao ouvir o aviso: “O homem do saco vem aí”. O homem que pegava
crianças que ficavam soltas pelas ruas e as colocava no saco sujo que
carregava nos ombros.
Também está nos Cantos de Santos uma cena de ontem, hoje
e amanhã: do navio apontando no horizonte, atravessando o canal e
chegando ao nosso porto imponente. De emocionar. De bater palmas
ver os navios em nossa barra, indo e vindo desse lindo lugar.
E, como não poderia faltar, nos Cantos de Santos mora nosso
povo, gente boa, hospitaleira, que continua escrevendo com orgulho
a história deste lugar.
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E assim caminha a humanidade:
numa caminhada à beira mar
Viviane Pereira
As crianças correm de um lado para o outro, agitadas, fazendo seus
castelos de areia, construindo sonhos. A família relaxa da correria do
dia a dia e se permite esticar um pouco mais a hora do almoço, deixar
para mais tarde, quando o sol se for.
Jovens desfilam a boa forma que lutaram para manter com esforço e dedicação ao longo do ano – as que não se preocuparam com
isso, continuam sem se preocupar e curtem o momento e o biquíni
novo com as cores do verão.
Os mais branquinhos vão ficando vermelhos ao longo do dia
e as tribos repetem ali a atitude social: nerds andam com nerds de
bermudão na cintura; os descolados usam bermuda baixa, cueca aparecendo, cabelo comprido. O marido se distrai olhando um biquíni
que passa com uma morena escultural dentro e toma beliscão da esposa que continua bem atenta. O frescobol atrapalha a caminhada
dos passantes, que precisam desviar para escapar da bola.
Jovens aventureiros sobem na prancha e pegam onda, para delírio
das gatinhas que competem na areia para chamar a atenção do campeão. Os radicais afortunados podem descarregar adrenalina correndo de jet ski em manobras ousadas.
Para as crianças, o mar é grande demais e uma garotinha arrisca pegar distância antes de dar o tão esperado mergulho, na água
em uma altura que mal alcança sua cintura. Para os apaixonados, o
mar parece infinito e eles se perdem entre beijos e juras de amor.
Os supersticiosos pulam onda, os sem-educação jogam sujeira na
areia, os animados conversam agitando a roda, as envergonhadas
não tiram a canga, as ousadas usam fio dental.
A mãe distraída perde o filho que anda de mãos dadas com o
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guarda-vidas, chorando o medo de quem teme o futuro. A mãe preocupada repassa o protetor solar.
O ambulante conta feliz o troco conquistado vendendo picolé
de fruta natural. Na quadra de futebol improvisada entre sandálias
havaianas, a bola rola enquanto segue a vida.
A cadeira de praia quebra: riso geral. O pastel aumenta na
hora do almoço, mas não diminui a fila. O sol queima forte, o chapéu
não dá conta de evitar. Água do mar tá gelada – a da garrafa ficou
quente. A piscina de plástico tombou e o bebê engoliu areia. O início
da tarde leva uns e traz outros, que deixaram para passear depois do
almoço.
A barraca improvisada balança com o vento; a mãe reclama
que o menino se queimou demais. O coco acabou. O protetor solar
também. O sol vai rareando, mostrando que é hora de voltar para
casa.
Na poça de água sobre a areia, os últimos raios apresentam
um espetáculo de luz. O céu rosado não tarda a se fechar.
Enquanto a gente caminha à beira mar, observando a humanidade passar assim, na nossa frente, repensa a vida, refaz os sonhos,
prepara novos planos para o Ano Novo, pensando que a vida deveria
ser sempre assim: simples, quente, reconfortante. Como uma caminhada à beira mar.
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Wilma Therezinha Fernandes de Andrade
É membro da Academia Santista de Letras desde 15 de maio de
1998, ocupante da cadeira nº 22, cujo patrono é Paulo Gonçalves.
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Santos, um sonho à beira mar
Wilma Therezinha Fernandes de Andrade
Estava à toa na praia do Boqueirão vendo as maravilhas do mar, junto
com três amigos, debaixo de uma grande árvore chapéu-de-sol. Não
havia pressa nem compromisso, tínhamos o dia todo para não fazer
nada. Só preguiça e lazer.
Folheei umas páginas do livro Poemas e Canções e, sob o calor
verão daquele dia, adormeci e sonhei.
No sonho, vi ao meu lado um homem bem vestido de terno,
gravata borboleta, com cravo vermelho na lapela. Não era um traje
comum de se ver numa praia. Era um belo homem, olhos azuis, cabelos ondulados, todo charme e distinção.
- “Acho que o conheço”, pensei. “Já vi uma fotografia dele. Ah, já sei!
Você é o Martins Fontes!”
O homem riu e respondeu:
- “Sou eu mesmo. E você, bela jovem, como se chama? ”
- “Obrigada pelo bela jovem, meu nome é Maribel”.
- “Lindo, você leva o mar no nome. Venho sempre à praia, e fiz versos
sobre o mar, amo estes jardins”.
- “Estou lendo um livro seu: Poemas e Canções”.
Ele logo me corrigiu.
- “É um livro belíssimo, mas não é meu. É do Vicente de Carvalho com
quem tive grande amizade. Vicente é o Poeta do mar. Daqui podemos
ver a estátua dele, rodeado de ninfas inspiradoras de versos admiráveis”.
E Martins Fontes continuou:
- “Sobre ele fiz esta poesia:
Ao Pescador de Pérolas,
Vicente de Carvalho,
a Cidade ergue um altar,
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Simbolizado numa Fonte e em frente
de um ninho - roseiral, junto ao mar!
...
Nele, os pássaros nossos, docentemente,
os Poemas e Canções vêm recitar!
- “E que outras pessoas você conheceu? ”
- “Olha, menina, as mais importantes foram meus pais, Isabel, minha
mãe e Silvério Fontes, médico, fundador do jornal socialista A Questão Operária.
Tudo, tudo que sei, devo a meu pai.
Tudo que sou, à minha mãe o devo”.
- “Caramba, você é filho família, mas sendo importante deve ter conhecido gente famosa.”
- “Como médico e poeta, tive a oportunidade e a alegria de conhecer
e conviver com pessoas extraordinárias. Fui muito amigo dos poetas Olavo Bilac, Afonso Schmidt, Paulo Gonçalves, Ruy Ribeiro Couto,
Fábio Montenegro, Coelho Neto, o historiador Alberto Souza, a culta família Silveira - Waldomiro - Agenor. Também Guilherme Álvaro,
médico que auxiliou Saturnino de Brito a sanear a cidade das epidemias. Conheci também artistas, músicos, atores. Fiz muitas amizades
e frequentei lugares interessantes como no Boqueirão, o Parque Indígena de Júlio Conceição, grande empresário realizador do legado
de João Otávio dos Santos, que destinou parte de sua fortuna para a
construção do Instituto “D. Escolástica Rosa”, na Ponta da Praia. Conheci a Chácara Thaumaturgo na Avenida Conselheiro Nébias, 674,
onde deixei escrito:
Ao bom Thaumaturgo, benemérito amigo,
o primeiro santista que deu flores à sua terra,
a saudade de
Martins Fontes.
E conheci tanta gente! Eu me encontrava com escritores e jornalistas
170
nos cafés do Largo do Rosário”.
- “Martins Fontes, me desculpe, mas hoje o Largo do Rosário chama-se Praça Ruy Barbosa”.
- “Eu sei, como amo esta cidade, percorro além da praia, o Centro,
os lugares onde trabalhei e fui feliz. Santos mudou muito. A praia da
Barra era quase vazia e as pessoas vinham tomar banho de mar por
recomendação dos médicos. Elas vinham à Barra de bonde. Saíam do
centro, e por duas avenidas atravessavam matagais. O bonde da Conselheiro Nébias é de 1867 - 17 anos antes de eu nascer - e o bonde da
Ana Costa, é do início do século XX.”
- “E antes dos bondes, como as pessoas vinham até a Praia, ou Barra
como você chama?”
- “Boa pergunta, inteligente. É que havia uma trilha chamada Caminho Velho da Barra que do Largo da Matriz chegava até a praia. ”
- “Que Largo da Matriz? Nunca ouvi falar.”
- “É que mudaram o nome para praça da República, quando eu ainda
era menino, tinha uns 5 anos, nasci em 1884. A trilha abria caminho
no meio do mato e terminava na praia, quando alargava e era chamada de Boqueirão da Barra. ”
- “Ah, então é por isso que tem o bairro Boqueirão?”
- “Acertou, menina esperta!”
- “E essa trilha não existe mais?”
- “Aí você se engana. Existe sim, mas toda transformada em ruas. Começa na Brás Cubas, continua numa parte da Washington Luiz, torna-se rua Luiz de Camões e termina numa reta, a Oswaldo Cruz que
dá na praia do Boqueirão. ”
- “Então essa trilha fazia curvas, não era reta. ”
- “Ora, uma trilha se faz procurando evitar obstáculos da vegetação e
do terreno. E a Conselheiro Nébias, uma linha reta, cortou o Caminho
Velho da Barra, formando uma encruzilhada.”
- “Já entendi. E daí o nome do bairro Encruzilhada.”
- “Acertou. Maribel, você tem sorte de viver em Santos no século XXI.
171
A cidade está linda, mas eu me lembro da década de 1920 quando
terminaram de construir os 9 canais de drenagem para sanear a cidade e acabar com os malditos mosquitos da febre amarela. Foram
projeto do Saturnino de Brito, um engenheiro genial.
Eu amo o mar e por isso percorro a praia, admirando a beleza dos
jardins. A propósito, a ideia de construir essa imensa área verde foi
do Saturnino”.
- “Como assim? Pode explicar melhor?”
- “Nos anos 20 - os chamados anos loucos - um grupo de empresários
pretendeu lotear entre si a faixa de areia para construir cassinos e cabines de banho. Vicente de Carvalho percebeu e redigiu uma magnífica carta aberta ao presidente Epitácio Pessoa, para que protegesse
as praias da cobiça imobiliária”.
- “Eu pensei que Vicente de Carvalho fosse só poeta! E o Epitácio, o
que fez?”
- “O presidente, que esteve em Santos em 1922 nas grandes festas
do Centenário da Independência, recebeu a carta e mandou o Ministro da Fazenda dar uma certidão de aforamento das praias de Santos
para a Câmara Municipal”.
- “Já sei, com a proibição de serem feitas construções na areia. E eu
que pensei que a praia fosse de todo mundo sempre”.
- “Maribel, você é esperta, mas para delimitar a faixa de areia, houve
a iniciativa de fazer um largo jardim. A ideia estava num projeto para
a cidade de Santos, do Saturnino de Brito do início do século XX e era
só para embelezar a praia”.
- “Eu pensei que ele só projetara os canais. Então a ideia foi do Saturnino”.
- “Ele mesmo, o que demonstra que boas ideias sempre vencem”.
- “Legal, então aproveitaram a ideia do passado, para garantir o presente”.
- “Aí começaram a construir os jardins no início dos anos 30, pelo
prefeito, meu amigo, Aristides Bastos Machado. Essa paisagem é uma
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bela herança que devemos à natureza e às pessoas que a souberam
preservar”.
- “Fontes, do que você gosta mais de Santos?”
- “Santos é a minha paixão. Vivi no Rio de Janeiro e em Paris, mas o
retorno a Santos sempre me deu satisfação. O que eu mais gosto é da
praia com esses jardins. Mais lindos só os Jardins do Éden!”
- “O senhor é um entusiasta da vida. Poeta, como era Santos na sua
época? Você teve a oportunidade de viver num passado que não existe mais.”
- “Sim, Maribel, tive muitas oportunidades em Santos. Assisti a espetáculos no Teatro Guarani, no Coliseu Santista, ouvi Bandas como a
do Corpo de Bombeiros nos coretos e praças. Trabalhei muito como
médico na Santa Casa, a terceira construção, no sopé do Morro do
Fontana, e também no hospital novo da Beneficência Portuguesa, no
canal 2.
Em Santos me realizei.
Foi no Clube XV que me tornei poeta, porque, precisamente num de
seus bailes fidalgos, fiz a minha declaração enamorada.
Dancei muito no Cassino do Monte Serrat. Ficou fácil ir até o alto do
Monte pois construíram o ascensor em 1927”.
- “O bondinho! Já fui até lá com minha tia que tem devoção a Nossa
Senhora do Monte e levou meu primo pequeno para ser por ela abençoado”.
- “É um costume santista muito antigo, Maribel, as mães levarem os
filhos pequenos lá. O bondinho facilita a subida e, do alto, vê-se a Ilha,
Santos, São Vicente, o mar, toda a paisagem da região. Eu sempre admirei a Natureza. E em Santos é fácil conhecê-la de perto. Mar, morros, matas, terra de poesia até nos guindastes do porto”.
- “Já que gostava tanto do mar, você praticava algum esporte?”
- “Não. Mas esporte não faltava no tempo em que vivi. Havia clubes
de futebol”.
- “Eu sei, o Santos Futebol Clube, bem antigo. Li num livro escrito por
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um amigo meu que o Santos foi fundado em 1914”.
- “Mas não esqueça o Hespanha Futebol Clube também fundado em
1914”.
- “Martins Fontes, esse aí nunca ouvi falar”.
- “Durante a minha vida assim se chamava, mas depois veio a maldita Guerra Mundial e para incentivar o nacionalismo, não permitiram
nomes estrangeiros e, em 1941, o Hespanha passou a se chamar Jabaquara”.
- “Ah! É o “Jabuca”. Sei que tem um estádio no bairro da Caneleira.
Tenho um amigo valentão que fala no Leão da Caneleira e, quando vai
brigar diz que vai pôr o Jabaquara em campo.”
- “A rapaziada jogava futebol nos areiões dos bairros e em terrenos
vazios. Era o futebol de várzea. Além do futebol, praticavam-se regatas, em barcos movidos a remos, em competições pelos lados da
Ponta da Praia.
Maribel, saiba que houve um Jockey Clube de Santos, com corridas de
cavalos, desde 1919. O Hipódromo do Jockey Clube de Santos existiu
perto da Ponta da Praia, mas a sede social era no Gonzaga numa luxuosa mansão que depois foi sede do Clube XV. Era muito chique”.
- “Devia ser muito divertido esse tempo”.
- “Havia muito espaço, muito terreno vago principalmente na Ponta
da Praia, que aos poucos foram sendo ocupados. A princípio por chácaras e clubes de regatas. A população crescia muito, na década de
1930, chegou a quase 180 mil; o porto movimentava a cidade. Santos
era o Porto do Café. De São Paulo, descia pessoal pela manhã, pela
estrada de ferro, a Inglesa até a estação do Valongo. Durante o dia negociavam com o café e, à tarde, subiam a Serra de volta para a capital”.
- “Martins Fontes conta das praias. Como eram antes dos jardins?”
- “A população vivia onde hoje é o Centro que vocês agora chamam de
“cidade”. Vinham de lá pelo Caminho Velho da Barra, ou de bonde; a
passagem custava dois tostões. Na praia existiam chácaras com grandes chalés de madeira, construídos por arquitetos. Meu pai, Silvério
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Fontes, homem inovador, mandou fazer um enorme chalé na praia
do José Menino. Com o tempo as chácaras sumiram e construíram
enormes mansões que também desapareceram”.
- “Fontes, espera aí. Ainda sobrou aquela Casa Branca da Praia que é
a Pinacoteca”.
- “Maribel, eu sei das coisas mesmo depois de ter passado meu tempo. Era a casa da família de Francisco Pires, - presidente da Companhia Construtora de Santos - que hoje conserva as telas do Benedicto
Calixto, que também pintou o Palácio da Bolsa do Café. Entretanto,
após 1930 com a queda do café, as belas casas viraram pensões e
depois demolidas. Os espaços foram ocupados por essa muralha de
prédios de apartamentos”.
- “E os que não eram ricos, como moravam?”
- “As pessoas de classe média moravam em bangalôs e sobrados. Os
que podiam compravam madeiras e construíam, nos fins de semana,
chalés de madeira que ocupavam bairros inteiros. Eram muito interessantes e saudáveis, pois eram construídos sobre pilaretes, o que
protegia seus moradores da umidade do solo”.
- “E a galera, Martins Fontes?”
- “Galera, o que é isso?”
- “Galera, poeta, é povo, o pessoal que anda junto para passear, se
divertir, não é famoso, mas quer curtir a vida”.
- “Menina, depois de ter admirado Camões e todo o esplendor da língua portuguesa em meus versos, aprendi com você. Todos sempre
podem ensinar alguma coisa”.
- “O povo, a galera como você diz, ia a festas juninas, procissões, às
festas no Monte Serrat que duravam até oito dias, ia às igrejas admirar os altares cuja linguagem barroca então entendiam. E, é claro, se
divertiam no carnaval com blocos e escolas de samba. Jogavam na
praia, iam ao cinema - havia cinema em todos os bairros - e passeavam à noite pelas ruas e praças”.
- “Não era perigoso?”
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- “Não. Andava-se a qualquer hora à noite. Assaltos eram raros. O leiteiro deixava o litro de leite na porta de casa, assim como o padeiro
deixava o pão. Ninguém roubava.
As famílias à noite punham cadeiras na calçada e conversavam com
os vizinhos sobre os acontecimentos do dia, trocavam ideias sobre
política. Assim as crianças aprendiam com os adultos sobre comportamentos sociais e noções de ética e política. Elas brincavam na rua
durante o dia à vontade, de amarelinha, de passa-anel, de esconde-esconde, cantavam em roda ciranda-cirandinha, tudo em segurança.
Havia poucos carros todos importados “Fords” e “Buicks”. Nessa época mulheres começaram a dirigir.
O povo era acostumado com estrangeiros - muitos como imigrantes
- vindos da Europa e do Japão”.
- “Fontes, é verdade meus pais são santistas, mas meus bisavôs eram
portugueses”.
- “O povo praticava a caridade, ajudava-se os asilos, os grupos escolares, funcionavam sociedades de ajuda aos pobres”.
- “Fontes, você é mesmo um entusiasta de nossa cidade, um grande escritor que também representava como ator, mas como médico
você conhecia problemas”.
- “Maribel, procurei como apaixonado o amor e a beleza. Busquei
dois objetivos na vida:
atingir o belo e traduzí-lo em prosa e verso, exaltando as Terras da
Fantasia;
usar a medicina e o meu viver ajudando todos que pude. A bondade e
o amor são deveres de humanidade. Amei e fui amado. Por isso sempre digo:
Como é bom ser bom! ”
- “Martins Fontes, com esta conversa ficamos muito amigos. Sinto
que você tenha saído da vida tão cedo”.
- “Saí deste espaço com 53 anos, quase, inesperadamente de infecção.
Em 1937, os médicos, meus amigos nada puderam fazer. Mas minha
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memória não se perdeu. Meus livros e versos são lidos até hoje. Eu
vivi intensamente.
Em espírito percorro esta cidade e em sonho encontro pessoas como
você, bonitas e curiosas e, com elas, revivo Santos que tanto amei”.
- “Maribel, acorda, acorda, Maribel! Chega de dormir”.
- “Gente, vocês não adivinham o sonho que tive! Sonhei com um grande poeta!”
- “Vicente de Carvalho, você estava lendo um livro dele”.
- “Não, era Martins Fontes, o poeta sol de tantos livros e atos de bondade. O que dizia: Como é bom ser bom!”
Galera, vou agora mergulhar,
mas eu nunca esquecerei este sonho à beira mar”.
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