Anexo 65 - NUPPs
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Anexo 65 - NUPPs
A DESCONFIANÇA POLÍTICA E OS SEUS IMPACTOS NA QUALIDADE DA DEMOCRACIA – O CASO DO BRASIL SUMÁRIO Parte I: QUE FATORES AFETAM A ADESÃO À DEMOCRACIA? Introdução: Efeitos da Desconfiança Política para a Legitimidade Democrática – José Álvaro Moisés e Rachel Meneguello I. Cidadania, Confiança e Instituições democráticas – José Álvaro Moisés II. O Significado da Democracia Segundo os Brasileiros – José Álvaro Moisés III. As Bases do Apoio ao Regime Democrático no Brasil – Rachel Meneguello IV. Desafios da Maioridade das Eleições Democráticas – José Álvaro Moisés V. Mídia e Apoio Político à Democracia no Brasil – Nuno Coimbra Mesquita VI. A educação brasileira e seus retornos políticos decrescentes – Rogério Schlegel Parte II – QUE EFEITOS PRODUZEM A CORRUPÇÃO POLÍTICA E A DESCONFIANÇA DO JUDICIÁRIO, DA POLÍCIA E DOS SERVIÇOS PÚBLICOS? VII. A Corrupção Política no Brasil Contemporâneo – José Álvaro Moisés VIII. Telejornal e Corrupção: Notícias Negativas, Percepção Negativa? – Nuno Coimbra Mesquita IX. Impacto da Corrupção sobre a Qualidade do Governo Democrático – Umberto Guarnier Mignozzetti X. A Avaliação do Judiciário e o Acesso à Cidadania na Visão dos Brasileiros Fabíola Brigante Del Porto XI. Por que os Brasileiros Desconfiam da Polícia? Uma Análise das Causas da Desconfiança na Instituição Policial – Cleber da silva Lopes XII. Serviços Públicos: o Papel do Contato Direto e do Cidadão Crítico nas Avaliações das Instituições – Robert Bonifácio e Rogério Schlegel Considerações Finais: O Papel da Confiança para a Democracia e as suas Perspectivas – Rachel Meneguello e José Álvaro Moisés INTRODUÇÃO EFEITOS DA DESCONFIANÇA POLÍTICA PARA A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA JOSÉ ÁLVARO MOISÉS e RACHEL MENEGUELLO Este livro apresenta os resultados de uma pesquisa inédita realizada no Brasil em 2006 sobre a desconfiança dos cidadãos brasileiros das instituições democráticas. Trata-se da continuidade das análises apresentadas originalmente no livro Democracia e Confiança – Por que os Cidadãos Desconfiam das Instituições Públicas?, organizado por José Álvaro Moisés e publicado pela EDUSP em 2010. O novo livro discute aspectos não explorados no volume anterior em torno dos significados e das conseqüências para a teoria empírica da democracia do fenômeno contemporâneo de descontentamento e de descrença política. Embora o pano de fundo da análise esteja fortemente apoiado na comparação com outros casos de democratização recente, os estudos apresentados a seguir concentram-se, sobretudo, no caso do Brasil, e pretendem constituir-se em uma contribuição para o desenvolvimento da agenda internacional de pesquisa que, desde as três últimas décadas do século passado, vêm examinando a natureza e a dinâmica das transformações políticas pelas quais passaram os países que substituíram os seus regimes autoritários pelas estruturas institucionais da democracia. Nas duas ou três últimas décadas, mudanças políticas ocorridas em escala mundial afetaram as novas e velhas democracias de diferentes modos. Por toda parte, as análises comparativas de processos de democratização mostraram que a desconfiança política é uma variável comum afetando o papel do Estado e a relação dos cidadãos com o regime democrático. No entanto, enquanto o fenômeno de descontentamento e de descrença política nas velhas democracias estimulou, em vários casos, os cidadãos a adotarem novas atitudes políticas e formas de participação na vida pública e, em algumas oportunidades, a defenderem a reforma das instituições democráticas, nos países recentemente democratizados os cidadãos que protagonizam a síndrome da desconfiança institucional tenderam, muitas vezes, a afastar-se da política ou a desinteressar-se de seus rumos. Em vários casos de novas democracias, embora a maioria do público expresse cada vez mais a sua adesão ao significado normativo do regime democrático, a frustração com o desempenho das instituições democráticas produz desconfiança que, por sua vez, se 1 mostra associada com sentimentos negativos dos cidadãos a respeito de sua eficácia política, com baixos níveis de interesse político, pouca participação cívica e, algumas vezes, até com a preferência por modelos de democracia que excluem os partidos políticos e os parlamentos (MOISÉS e CARNEIRO, 2010). O debate em torno dos significados das atitudes do público quanto aos governos e às instituições democráticas ocupa os analistas políticos há muito tempo. Uma das questões mais relevantes desse debate refere-se precisamente ao impacto que os indicadores de confiança em instituições políticas têm sobre o regime político como um todo. Expressariam esses indicadores uma reação pública saudável a respeito do desempenho dos políticos, dos partidos e dos governos ou, ao contrário, sinalizam a perda da crença dos cidadãos nas principais instituições da democracia representativa? Outra importante questão que permanece analiticamente obscura, como alguns especialistas chamaram a atenção recentemente, refere-se à distinção entre o apoio público aos princípios da democracia e o apoio aos resultados práticos dos governos democráticos (Norris, 2011). Tendo em vista que na época presente a adesão do público aos valores democráticos se universalizou, como se observa na maioria dos regimes que se reivindicam democráticos, seria razoável esperar que os valores e os princípios fundamentais da democracia que se espalham e se consolidam por toda parte, ajudem a recuperar a confiança dos cidadãos nas instituições da democracia representativa? Ou, alternativamente, o fenômeno de desconfiança generalizada de políticos e de governos, e a falta de crença pública nas instituições de representação estão minando ou corroendo, não apenas as expectativas usuais, mas também a legitimidade do próprio regime democrático? E em que medida os efeitos de práticas anti-republicanas como a corrupção e o nepotismo sobre as avaliações públicas do regime agravam essa possibilidade, afetando a motivação dos cidadãos de participar politicamente ou mesmo a sua percepção sobre a efetividade dos direitos de cidadania? A questão da legitimidade e, conseqüentemente, dos difíceis processos de legitimação de novos regimes democráticos, diz respeito a fenômenos que estão no centro das possibilidades referidas antes. Com efeito, quando os modelos analíticos que se ocupam centralmente desses aspectos do desempenho de muitos dos regimes democráticos contemporâneos são mobilizados, uma situação complexa e aparentemente paradoxal se torna evidente, apontando para a necessidade de mais reflexão e mais pesquisa: ao lado de sinais ocasionais de deslegitimação de velhas democracias, observados em certas áreas do mundo, verifica-se a legitimação mais ou menos generalizada da democracia em outras regiões, ainda que de formas precárias ou incompletas. Trata-se, 2 neste caso, de um fenômeno devido principalmente ao fracasso de diferentes modelos autoritários de regime político (a exemplo do que ocorreu recentemente na Tunísia, no Egito, na Líbia e em outros países do norte da África e do Oriente Médio), cujo ocaso abre uma nova era política, mas não assegura necessariamente que os novos regimes serão democráticos em conseqüência da derrocada da alternativa anterior. O fenômeno, no entanto, sugere que, a noção de legitimidade, a despeito das idas e vindas dos processos envolvidos e das controvérsias teóricas em torno do conceito, quando referida a um conjunto de atitudes dos cidadãos a respeito das instituições democráticas - essas tendo sido consideradas como as mais apropriadas estruturas de governo por uma dada sociedade em um dado tempo histórico -, constitui-se em um critério indispensável de análise da esfera da política (MORLINO, 2010). O PAPEL DA CONFIANÇA Essa questão reatualiza a indagação da literatura especializada sobre o papel da confiança política para o funcionamento do regime democrático. Confiança em linguagem comum designa segurança de procedimentos em face de diferentes circunstâncias que afetam a vida das pessoas. Ela se refere às expectativas que as pessoas alimentam a respeito do comportamento dos outros com quem convivem e interagem; e diz respeito à ação desses outros quanto aos seus interesses, aspirações ou preferências. Nas ciências sociais, o interesse pelo conceito está associado com a preocupação com os processos informais através dos quais as pessoas enfrentam as incertezas e as imprevisibilidades que decorrem da crescente complexificação da vida no contexto de um mundo crescentemente globalizado, interdependente e fortemente condicionado por avanços tecnológicos que afetaram profundamente a comunicação social. Essa situação implica em conhecimento limitado de parte das pessoas comuns quanto aos processos de tomada de decisões próprios do regime democrático que afetam a sua vida. Em face disso, autores tão diferentes como Luhmann (1979), Giddens (1990), Sztompka (1999), Offe (1999), Warren, (1999), Hardin (1999), Levi (1998) e Tilly (2007), entre outros, chamaram a atenção para o fato de que a velha demanda por coordenação social, que está na origem do Estado moderno, se reatualizou na época contemporânea ao se articular com as exigências de cooperação social requeridas pela ordem democrática. Contudo, para se deixar coordenar e para cooperar com as instituições da democracia as pessoas precisam ter alguma capacidade de previsão sobre o comportamento dos outros e, em especial, sobre o funcionamento de regras, normas e estruturas institucionais que 3 condicionam esse comportamento e cujos efeitos afetam a sua vida; daí a demanda por confiança política. Ela é vista como uma espécie de atalho diante das adversidades e imprevisibilidades que afetam as pessoas comuns face à complexidade do processo democrático; nas últimas décadas, o conceito vem sendo usado para designar grande variedade de fenômenos que, mesmo envolvendo riscos, refere-se à coesão necessária ao funcionamento de sociedades complexas, desiguais e diferenciadas que escolheram a alternativa democrática para se autogovernar. A literatura tem tratado a questão tanto pela abordagem dos racionalistas como Hardin (1999), como por aquelas adotadas pelos cultores dos modelos de “cultura cívica” de Almond e Verba (1963), “capital cultural” de Bourdieu (1970), “capital social” de Putnam (1993), “pós-materialismo” de Inglehart (1990), e “cidadãos críticos” de Norris (1999), Klingemann e Fuchs (1998). Os racionalistas consideram que a confiança envolve a expectativa racional da pessoa que confia sobre o curso de ações da pessoa que é objeto de confiança. A imprevisibilidade humana e o fato de o comportamento alheio não poder ser completamente controlado – a não ser em situações-limite -, implicaria, contudo, em risco de dano ou de vulnerabilidade de quem confia diante do depositário da confiança. O ato de confiar sendo insuficiente per se para determinar o resultado da interação levou autores como Hardin (1999) a supor que só não haverá abuso da confiança se a relação encapsular os interesses das partes. Ou seja, quando quem confia tem segurança prévia sobre a motivação solidária do confiado e a expectativa de que seus interesses não serão desconsiderados por ele. Nesse caso, a confiança interpessoal envolveria as situações em que interesses mútuos, que geram benefícios comuns e eliminam os riscos de abuso da confiança, podem ser mobilizados; mas, afora isso, a confiança não se justificaria, e Hardin (1999) rechaça enfaticamente qualquer possibilidade de que a confiança interpessoal possa ser estendida à esfera das instituições que, sendo objetos inanimados e impessoais, controlados por burocratas distantes e desconhecidos das pessoas comuns, não poderiam gerar reciprocidade ou lealdade mesmo nos regimes democráticos, cuja dinâmica envolve, por definição, a disputa por interesses diferentes e por vezes contraditórios. Tal diagnóstico, no entanto, está longe de ser consensual entre os autores que rejeitam a abordagem estritamente racionalista da questão, pois a decisão das pessoas de confiar não seria sempre racional, nem a confiança se determinaria exclusivamente, mesmo no caso de uma decisão baseada estritamente no cálculo de custos e benefícios, pelo nível de informação disponível a respeito do comportamento dos outros. Os indivíduos têm capacidade cognitiva limitada para acessar as informações adequadas, na quantidade e na qualidade necessárias, para avaliar a conduta alheia ou a utilidade das interações em que 4 estão envolvidos, inclusive as que se referem às suas relações com as instituições públicas. A necessidade de eficiência diante de desafios coletivos, a crescente pluralização de papéis sociais e políticos e a mobilidade derivada da dinâmica das sociedades contemporâneas ampliam as possibilidades de escolhas dos indivíduos, mas a complexidade dos processos de tomada de decisões na democracia limita a sua capacidade de controlar a informação necessária para que suas decisões atendam aos seus interesses, aspirações ou preferências. Nessas circunstâncias, o recurso representado pela confiança em instituições representa uma alternativa adequada para que as dificuldades que caracterizam a relação dos cidadãos com as instituições do regime democrático sejam minimizadas. Desenvolvimentos recentes da teoria empírica da democracia sobre o tema foram sintetizados em torno de cinco pressupostos que se referem aos dilemas que envolvem a confiança política e a relação dos cidadãos com o regime democrático: 1. Diferente de outros tipos de regime político, a democracia requer altos níveis de confiança pública nos mecanismos institucionais de formação de governos em conseqüência da delegação voluntária de soberania e de poder que os cidadãos fazem aos seus representantes eleitos - assim como aos funcionários acreditados -, em conseqüência de regras estabelecidas por constituições democráticas; mas a confiança em instituições não se confunde ou se limita à confiança em governos ou governantes ocasionais (WARREN, 1999; SZTOMPKA, 1999); 2. A promessa de alternância no poder, implícita nas regras democráticas, depende da expectativa dos que foram derrotados na competição eleitoral de que a sua vez chegará com base na regularidade e na probidade das eleições, e na confiança de que os detentores do poder honrarão o compromisso e não usurparão o direito dos recém eleitos (NORRIS, 1999); 3. O compromisso de cooperação dos cidadãos com o regime democrático, em especial a sua submissão à lei em conexão com a estrutura de direitos de cidadania e à margem de mecanismos de coerção -, depende da existência de garantias de que sua expectativa de que os demais cidadãos farão a sua parte não será fraudada por “expedientes” extralegais como a evasão de pagamento de impostos, a recusa de cumprir o serviço militar ou a impunidade diante de penalidades que visam coibir práticas de corrupção, malversação de fundos públicos, etc (LEVI, 1998); 4. Da perspectiva dos atores, a democracia é um sistema político que envolve mais riscos do que as suas alternativas, a exemplo das incertezas dos seus resultados; mas, por isso mesmo, as redes de confiança que se estabelecem entre os cidadãos concentram o foco de sua atenção nos mecanismos institucionais desenhados para 5 tornar efetivas as promessas de liberdade e igualdade, justificando dessa forma a colaboração voluntária dos cidadãos com o sistema (TILLY, 2007); 5. A confiança nas instituições democráticas não é, portanto, neutra, indeterminada ou genérica, nem definida exclusivamente pela avaliação do desempenho de governos do dia, mas diz respeito propriamente à missão atribuída às instituições para a realização das promessas da democracia. Por isso, os conteúdos normativos das instituições – a sua justificação relativa aos princípios de liberdade e igualdade e as suas implicações para a estrutura de direitos de cidadania -, são o objeto central da confiança. Ela será tanto maior e mais consistente quanto o desempenho das instituições assegurarem a universalidade, a impessoalidade, a probidade e a justeza de procedimentos no desempenho de sua missão (OFFE, 1999). Nesse cenário, a desconfiança política decorreria do fracasso das possibilidades antevistas acima ou das circunstâncias que ameaçam a sua realização. Seus sintomas envolveriam o cinismo, a alienação e os sentimentos de indiferença dos cidadãos diante da política e, especialmente, a sua descrença de que as instituições públicas asseguram de fato os seus direitos. Nesse sentido, enquanto os indicadores usuais de satisfação com a democracia existente variam de acordo com o desempenho de governos e com a sua capacidade de resolver dilemas percebidos como prioritários, a desconfiança dependeria da avaliação dos cidadãos de que as instituições não cumprem a missão para a qual foram criadas, contrariando a sua justificação ética e normativa. A desconfiança resultaria, assim, tanto da avaliação racional das pessoas quanto aos resultados práticos do desempenho das instituições, como da percepção de que seus fundamentos normativos não estão se realizando. As análises apresentadas nos próximos capítulos deste livro tratam dos desdobramentos práticos dessas questões e dos seus efeitos para a qualidade da democracia brasileira. A ORGANIZAÇÃO DO LIVRO E DOS CAPÍTULOS Além da introdução e da conclusão, o livro está organizado em doze capítulos divididos em duas partes principais. A primeira parte apresenta um balanço de seis capítulos, baseados em dados da pesquisa A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas (2006), sobre as atitudes e as orientações dos brasileiros a respeito do regime democrático. Em três capítulos de sua autoria, José Álvaro Moisés discute, em primeiro lugar, as relações entre os conceitos de cidadania e de confiança política na teoria empírica da democracia. O argumento retoma as tradições democrática e republicana, segundo as 6 quais o conceito remete ao compromisso dos membros da comunidade política de compartilharem normas e práticas cívicas que, mais do que definirem um objetivo comum único dos cidadãos, organizam os meios e os modos de a disputa por interesses ou preferências conflitantes se realizar de forma democrática. Moisés apresenta, em outro capítulo, as respostas dos brasileiros à pergunta aberta O que é democracia?, incluída em pesquisas coordenadas por ele entre 1989 e 2006, ou seja, os significados atribuídos pelos entrevistados ao conceito. A análise mostra que, em um período de quase 20 anos, a definição do público se concentrou sobre os princípios de liberdade e os procedimentos institucionais, como direito de voto, fiscalização e controle de quem governa, algo que pode ser visto como uma base potencial de superação da desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas. Ainda nessa parte do livro, o autor discute em outro capítulo o importante papel que a contínua realização de eleições livres e competitivas assumiu para a consolidação da democracia brasileira nos últimos 20 anos, apontando para os desafios que a conseqüente intensificação da participação popular coloca para o Congresso Nacional e os partidos políticos. Em seguida, em outro capítulo fortemente apoiado em dados empíricos, Rachel Meneguello retoma de outra perspectiva a questão da adesão dos brasileiros à democracia. Meneguello mostra como a consolidação de mecanismos e procedimentos de participação eleitoral, em que pese a sua importância, não redimensionou a frágil relação dos cidadãos brasileiros com as instituições representativas. A primeira parte do texto indaga se a adesão do público ao regime democrático resulta da sua relação com as instituições representativas, o que comporia um construto normativo articulado e capaz de embasar os posicionamentos políticos sobre o desenvolvimento e a construção institucional do sistema. A segunda parte identifica as referências com as quais os cidadãos avaliam o desempenho da democracia e desenvolvem níveis de sua satisfação com regime. Em conjunto, a análise desses aspectos sugere que, embora as instituições representativas ocupem um terreno menos articulado ao apoio ao regime democrático, a avaliação pública de partidos e do Congresso Nacional tem papel central para o entendimento do desempenho do regime. As percepções de sua atuação, bem como da atuação do Estado através da execução de serviços públicos, são as principais dimensões constitutivas da satisfação das pessoas com o desempenho da democracia brasileira. O capítulo seguinte dessa parte do livro foi escrito por Nuno Coimbra Mesquita. O autor parte da indagação sobre o papel da mídia na formação das convicções do público sobre o regime democrático. A mídia tem sido vista como responsável por fomentar o cinismo e a desconfiança entre os cidadãos ou, alternativamente, como fonte de 7 informações capaz de estimular o seu engajamento político. Diante da enorme importância alcançada por seu segmento eletrônico no Brasil, a televisão em especial - presente em mais de 90% dos domicílios brasileiros -, Mesquita se pergunta sobre a influência dos meios de comunicação de massa para a qualidade da democracia no país. Seu capítulo analisa as inter-relações entre diferentes dimensões do tema, partindo da hipótese de que os meios de comunicação jogam papeis diferentes na formação de atitudes democráticas. A análise se concentra, por uma parte, sobre a audiência à televisão em geral e, por outra, no telenotíciário em particular, e examina se essas duas variáveis estão associadas positiva ou negativamente a fatores como a adesão democrática, o vínculo dos cidadãos com o EstadoNação e a aceitação dos partidos políticos como um componente indispensável da democracia. Uma das principais conclusões da análise sugere que, além dos diferentes papeis desempenhados pela mídia, fatores como a sofisticação política, a confiança nos próprios meios de comunicação e o apoio a governos específicos interagem com as mensagens produzindo resultados diferentes entre si, mas não necessàriamente negativos. Finalmente, o último capítulo da primeira parte do livro, de autoria de Rogério Schlegel, trata de um tema central da literatura da teoria empírica da democracia: a relação entre educação e as convicções democráticas dos cidadãos. O conhecimento convencional parte da premissa de que existe uma associação relevante entre educação e o comportamento político próprio da democracia. Em conseqüência, se infere usualmente que os aumentos nos níveis de escolaridade são acompanhados por ganhos em atitudes de apoio à democracia, disposição de participar politicamente e confiança em instituições públicas. Em seu capítulo, Schlegel testa essas hipóteses para o Brasil com base na análise de dados de surveys nacionais realizados entre 1989 a 2006, sob a coordenação de José Álvaro Moisés (este último em parceria com Rachel Meneguello). Os resultados de sua análise contrariam a abordagem tradicional. A associação entre escolaridade e os comportamentos individuais analisados não foi confirmada para um terço das dimensões observadas. E os ganhos agregados pelo ensino médio e pelo superior, importantes nos anos iniciais pesquisados, declinaram no intervalo de duas décadas, chegando a se anular em alguns casos. As evidências colocam em xeque os ganhos esperados no nível agregado para o Brasil a partir da elevação da escolaridade média, e esse resultado remete para o debate a respeito da queda na qualidade do ensino. Educação de pior qualidade pode gerar menos habilidades e afetar a cognição das pessoas, sendo plausível admitir que isso afeta negativamente as percepções públicas sobre a política. Schlegel discute criticamente essas questões em sua contribuição. 8 CORRUPÇÃO E DESCONFIANÇA DA JUSTIÇA, POLÍCIA E SERVIÇOS PÚBLICOS A segundo parte do livro é composta por outros seis capítulos, e se abre com três análises sobre o impacto da corrupção sobre o fenômeno de desconfiança dos cidadãos de instituições democráticas. Em seguida, três outros capítulos analisam os casos específicos de desconfiança pública da justiça, da policia e de alguns serviços públicos com base nos dados da pesquisa de 2006. Nos três capítulos que tratam do tema, a corrupção política é vista como um dos problemas mais severos e complexos enfrentados por novas e velhas democracias. Ela envolve o abuso do poder público para qualquer tipo de benefício privado, inclusive vantagens para os partidos de governo em detrimento da oposição; ela frauda, portanto, o princípio de igualdade política inerente à democracia, pois os seus protagonistas podem obter ou manter o poder e benefícios políticos desproporcionais aos que alcançariam através de modos legítimos e legais de competir politicamente. Ao mesmo tempo, ela distorce a dimensão republicana da democracia porque faz as políticas públicas resultarem, não do debate e da disputa aberta entre projetos diferentes, mas de acordos de bastidores que favorecem interesses espúrios. A partir dessas premissas, a análises do livro procuraram explicar o impacto da percepção da corrupção para a legitimidade democrática. O primeiro dos três capítulos, de autoria de José Álvaro Moisés, aborda o impacto das percepções públicas da corrupção sobre o apoio a governos, instituições e o próprio regime democrático. A análise testou, por um lado, o efeito de indicadores apontados usualmente como determinantes da corrupção como o desenvolvimento econômico (avaliação da economia, escolaridade e localização ecológica dos entrevistados) e o desenho institucional; e, por outro, a influência de valores políticos. De modo geral, os testes confirmaram a hipótese que atribui influência, além de fatores apontados usualmente pela literatura internacional, também de aspectos da cultura política como a aceitação social da corrupção para a percepção dos cidadãos sobre o impacto da corrupção na democracia. O capítulo seguinte sobre o tema, escrito por Nuno Coimbra Mesquita, discute o papel da mídia para a percepção do fenômeno da corrupção. A análise examinou o impacto do tele-noticiário para a percepção do problema pelos indivíduos, e o efeito dessa percepção para a avaliação dos cidadãos das principais instituições democráticas. Mesquita parte do pressuposto de que a percepção da corrupção não é função somente da experiência prática dos cidadãos com ela. Mesmo indivíduos que nunca tenham recebido propostas de suborno podem ter a sua percepção afetada por informações dos meios de comunicação de massa; nesse sentido, a indagação testada pelo autor foi se as abordagens da mídia - da televisão, em especial - sobre o comportamento corrupto de agentes públicos 9 afetam a relação das pessoas com a democracia. Os resultados mostraram que o principal telejornal do país, o Jornal Nacional da Rede Globo, mais do que influenciar a visão crítica, reflete os fatos ligados à corrupção, embora quanto maior seja a escolaridade dos entrevistados, pior seja a sua avaliação. A interação entre a audiência do telejornal e a escolaridade tem uma associação negativa para a avaliação dos partidos. O terceiro capítulo que aborda o tema é de autoria de Umberto Mignozzetti. Ele analisou o impacto da corrupção para a qualidade da democracia em diversos países desde uma perspectiva comparativa. Seus dados revelam que a corrupção, medida pelo Índice de Percepções da Democracia – IPC, da Transparência Internacional, de fato afeta a qualidade da democracia. Para a mensuração, foram utilizados – como variável aproximada – os dados de painel de 154 países para o período entre 1996 e 2005 computados pela Freedom House, baseados no nível de liberdades civis e políticos observados nos países analisados. A análise foi feita, primeiramente, tomando em conta todos os regimes políticos e, em seguida, um modelo controlado para os países democráticos. O resultado mostrou que quanto maior a corrupção observada, menor o desempenho dos países no índice democrático. O trabalho mostrou de forma consistente que a corrupção pesa na qualidade do governo, e que esse efeito é especificamente mais consistente nos países de regime democrático. O primeiro dos três capítulos seguintes da segunda parte do livro trata das percepções dos brasileiros sobre o acesso aos direitos de cidadania e a mecanismos de sua efetivação através do poder judiciário. Desde o advento do regime democrático no país, diversas pesquisas mostraram haver pouco conhecimento dos direitos civis e ser baixa a procura dos tribunais de justiça pela população brasileira para resolver conflitos envolvendo os seus direitos. As pesquisas mostraram que usualmente as pessoas questionam a responsividade, a imparcialidade, a igualdade de tratamento e a eficiência do judiciário. Isso pode implicar não apenas no distanciamento da população das instituições de justiça, mas comprometer a sua crença na legitimidade do poder judiciário como organismo encarregado de garantir o império da lei. O acesso à justiça, simbolizando a efetividade do acesso a direitos fundamentais de cidadania, pode ficar prejudicado se os meios de ação e de processo, como os recursos materiais e o conhecimento necessário para colocá-los em prática são falhos. Para analisar a relação dos cidadãos com o poder judiciário, Fabíola Brigante Del Porto analisou a associação existente entre as percepções sobre o tema e a confiança política. Com base no survey nacional de 2006, procurou explicar, por um lado, a origem e a natureza da desconfiança dos cidadãos das instituições de justiça e, por outro, verificou se essa desconfiança impacta suas percepções sobre a efetividade da cidadania. Os resultados da análise mostram que a desconfiança do judiciário aparece associada, primeiro, às percepções sobre as leis do país e, 10 depois, à avaliação da atuação do poder judiciário. Por isso jogam papel importante na avaliação dos entrevistados os sentimentos de desigualdade perante a lei e de acesso à justiça sobre a confiança dos cidadãos no poder judiciário. No exame da relação entre a confiança no poder judiciário e a cidadania, a crença na igualdade da lei e no acesso à justiça não se mostraram impactadas pela confiança nas instituições judiciárias. Nessa análise, o que se destacou foi o aumento da razão de chance daqueles que confiam no poder judiciário acreditarem que os brasileiros cumprem, em alguma medida, as leis. O capítulo seguinte discute a desconfiança dos cidadãos da polícia. O autor, Cléber Lopes da Silva, partiu da premissa de que a confiança é um aspecto importante da qualidade do trabalho da instituição. Encarregada da função do Estado de monopolizar a força física, a polícia é uma das principais responsáveis pela efetividade do primado da lei, uma das dimensões centrais de uma democracia de qualidade. Mas, embora a confiança na polícia seja importante para a qualidade do policiamento, o fenômeno tem sido insuficientemente abordado e boa parte das análises empíricas sobre o tema trata do caso dos EUA, onde a polícia, apoiada pela maioria da população, é vista com desconfiança pelas minorias étnicas, sobretudo os negros. Mas no caso do Brasil por que a maioria dos brasileiros desconfia da polícia? Que fatores explicam essa desconfiança? Para responder a essas perguntas, Lopes da Silva analisou dados de duas pesquisas, A Desconfiança dos Cidadãos nas Instituições Democráticas (2006) e a Pesquisa Social Brasileira (2002), para testar, por meio de regressão logística, duas hipóteses: i) a desconfiança da policia se explica pela incapacidade da instituição de sinalizar para os cidadãos seu comprometimento com valores e princípios que justificam a sua existência; ii) a desconfiança se explica pela percepção pública de que a polícia trata os cidadãos de maneira injusta. Os resultados confirmaram que os déficits institucionais percebidos pela população, e não variáveis contextuais ou sócio-demográficas, explicam a desconfiança da policia. A confiabilidade da polícia, quando existe, está relacionada com as expectativas públicas sobre os resultados da instituição no combate à criminalidade e, principalmente, ao modo como os policiais usam sua autoridade e tratam os cidadãos. Ou seja, a desconfiança na polícia deriva principalmente da percepção de que a polícia utiliza a sua autoridade de maneira ilegal ou injusta: desrespeita os direitos dos cidadãos, não trata as pessoas de forma igual, recorre a subornos, utiliza a violência de maneira abusiva e causa mais medo do que segurança em suas abordagens. Finalmente, o último capítulo da segunda parte do livro trata do impacto da avaliação dos serviços públicos para a confiança política. Essa avaliação corresponde a um indicador relevante da responsividade (responsiveness) de governos por expressar o grau de satisfação dos cidadãos com a forma como o Estado cumpre algumas de suas tarefas 11 centrais, propiciando serviços como saúde e educação a partir de impostos pagos por eles; por isso, é também um insumo decisivo da legitimidade democrática, segundo diferentes abordagens teóricas. Os serviços públicos são, de fato, a face mais concreta do Estado e a principal vitrine de desempenho governamental, a sua avaliação podendo impactar de forma indireta a confiança em políticos e no poder executivo. Rogério Schlegel e Robert Bonifácio, autores do capítulo, apontam para dois resultados importantes, com base em suas análises empíricas, sobre a forma como o brasileiro percebe os serviços públicos: por um lado, são os setores mais escolarizados e informados os que avaliam mais negativamente os serviços prestados pelo Estado, endossando a hipótese do cidadão crítico de Norris (1999); por outro, não se verificam sinais de associação consistente entre a percepção pública dos serviços públicos e as informações obtidas via contato direto ou por meio da mídia. As evidências foram constatadas a partir da análise de dados da pesquisa A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas, de 2006. Um índice geral de avaliação dos serviços públicos foi desenvolvido pelos autores para permitir que os seus determinantes fossem analisados com modelos de regressão multinomiais, e os resultados obtidos sugerem que se a experiência das pessoas com as instituições é importante para a percepção sobre elas, será preciso aprofundar a investigação sobre o que se entende por experiência. Nos modelos estatísticos testados no capítulo, os usos da mídia, por exemplo, não mostraram influência importante para a avaliação dos serviços públicos. A variável relativa à mídia que teve impacto – a atenção prestada às notícias políticas na televisão – se refere muito mais ao perfil do indivíduo do que à exposição ou aos conteúdos veiculados. Variáveis sobre a audiência à televisão em geral e ao Jornal Nacional especificamente não tiveram efeito independente sobre a percepção dos serviços públicos. Também o contato direto com os serviços públicos se revelou pouco decisivo para a avaliação dos usuários dos mesmos. Prevaleceu a percepção negativa em contraposição à positiva, mas ela não mostrou ser um preditor da avaliação regular. O livro se constitui em uma contribuição importante para o desenvolvimento das pesquisas empíricas da democracia brasileira e, em especial, para a avaliação do papel desempenhado pela confiança política para a legitimidade democrática. Sobressai, em especial, a contribuição dos capítulos de análise empírica para a análise das relações entre o fenômeno de desconfiança política e a qualidade da democracia brasileira. Uma das dimensões mais importantes da abordagem da qualidade da democracia é a responsividade, entendida como a capacidade de governos e de lideranças políticas de responderem positivamente às expectativas dos eleitores; a análise do fenômeno da desconfiança de instituições e de serviços públicos representa, nesse sentido, a agregação 12 de uma nova dimensão de conhecimento do tema, possibilitando, ao mesmo tempo, que o caso brasileiro possa ser mais bem avaliado desde uma perspectiva comparativa. 13 I. CIDADANIA, CONFIANÇA POLÍTICA E INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS1 JOSÉ ÁLVARO MOISÉS INTRODUÇÃO Até recentemente não era evidente na literatura política contemporânea que existem questões relevantes de ordem teórica e empírica envolvidas nas relações entre cidadania, confiança política e democracia. A teoria liberal clássica nasceu da desconfiança diante de estruturas tradicionais de poder, e a liberdade dos modernos comparada à dos antigos, como Benjamin Constant mostrou em sua célebre conferência de 1819, limitou a soberania dos cidadãos ao instituir o sistema de representação baseado na idéia de que quem escolhe um representante delega o seu poder de decidir. A tradição republicana, no entanto, com Maquiavel e outros autores, contribuiu para a recuperação do lugar da soberania dos cidadãos e, desde Montesquieu, a representação política é vista como uma derivação do seu direito de participação política. Mas foram as extraordinárias transformações políticas das três últimas décadas do século XX - e as que estão começando a ocorrer nas primeiras do século XXI -, com o impulso à democratização de vários países da Europa, da América Latina, da Ásia e, mais recentemente, do norte da África e do Oriente Médio que provocaram a retomada das abordagens que associam a democracia com a expansão dos direitos dos cidadãos, recuperando e, ao mesmo tempo, indo além do que Marshall (1965) e Bendix (1977) haviam proposto sobre o tema no século passado. De fato, embora o vínculo entre democracia e os direitos dos cidadãos seja parte das tradições liberal, republicana e democrática, a novidade das abordagens atuais, depois de décadas de desuso do conceito de cidadania, está na importância atribuída à confiança dos cidadãos para o funcionamento das instituições democráticas. O que está em questão agora não é apenas a adesão ou a exigência de obediência cega às instituições públicas, mas a confiança derivada, por um lado, de sua justificação ética e normativa e, por outro, da avaliação racional de seu desempenho pelos cidadãos em sua condição de eleitores. 1 Este texto retoma argumentos apresentados na aula de erudição do autor no concurso para o cargo de professor titular do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP realizado em 24/6/2005. 1 No Brasil, vários autores trataram das relações entre os efeitos das transformações decorrentes do fim do regime autoritário e a consolidação dos direitos de cidadania, e alguns até reconheceram a centralidade da questão para o processo de democratização, mas raramente o problema foi posto em termos das relações entre confiança política e instituições públicas. O historiador José Murilo de Carvalho (2002) é uma das poucas exceções; em seu livro Cidadania no Brasil – O longo caminho, e em textos recentes, ele argumentou que o complexo processo de reconstrução das instituições democráticas no país converteu o tema dos direitos de cidadania no foco das expectativas geradas pela reforma das instituições que, em 1988, concluíram com a promulgação da Constituição Cidadã. Mas não deixou de chamar a atenção para o fato de que a reconquista da liberdade e a ampliação de direitos sociais e de participação política não impediram que os fenômenos de desencanto e descrença políticos e de déficit de confiança dos cidadãos nas instituições democráticas emergissem com força, em que pesem os avanços realizados por diferentes governos democráticos no terreno econômico e social. Outros autores como Elisa Reis (1998), embora partindo de premissas teóricas distintas, também se perguntaram recentemente por que fomos levados a deslocar gradualmente a discussão da democratização para o terreno da consolidação da cidadania. Suas respostas sugerem que o renascimento do conceito está associado ao fato de a cidadania constituir-se em uma espécie de princípio de articulação das demandas por emancipação e por inclusão social que emergem no contexto do conflito de interesses divergentes que caracterizam as sociedades complexas, desiguais e diferenciadas. Suas abordagens retomam a análise de Marshall (1965) sobre a expansão tridimensional da cidadania, relativa a direitos civis, políticos e sociais, e incorporam a importância da formação das identidades dos atores e de seu impacto sobre as relações de raça, etnia, gênero, entre outros, para o processo de consolidação da cidadania. Moisés (1990) e Benevides (1988), em textos baseados em premissas teóricas diferentes, também se referem ao papel da participação política para a educação do cidadão ativo, chamando a atenção para a inovação representada por mecanismos semi-diretos da democracia como o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular de lei que foram introduzidos na Constituição de 1988. Nessas diferentes análises, ao se superar uma leitura excessivamente evolucionista e seqüencial da obra de Marshall, há uma evidente ampliação do conceito de cidadania, mas a questão de saber se, por que e como os cidadãos confiam em instituições democráticas não está suficientemente desenvolvida, justificando a necessidade de novos estudos e pesquisas sobre o tema; este capítulo pretende contribuir para isso. 2 EVIDÊNCIAS DA EMERGÊNCIA DE UM NOVO FENÔMENO Em âmbito mundial, as atitudes dos cidadãos diante das instituições públicas e, em especial, das instituições democráticas, dando origem ou aprofundando o fenômeno de desconfiança política em várias partes do mundo, foram documentadas por extensa literatura desde os anos 80 e 90. Estudos comparativos editados por Klingemann e Fuchs (1988), Norris (1999), Levi (1998), Nye et al. (1997) e Warren (1999) apontaram para a complexidade e, principalmente, para a grande variação dos modos de expressão do fenômeno. Assim, nas democracias que se consolidaram em meados do século XX, a exemplo da Itália, do Japão e, em menor grau, da Alemanha, o cinismo e o desconforto com o funcionamento de parte das instituições democráticas se generalizou a partir das experiências de burocratização da vida pública, de engessamento do sistema de partidos políticos, das práticas continuadas de corrupção, e de outros déficits de desempenho institucional. Aonde existe uma tradição de melhor desempenho da missão dessas instituições, no entanto, sinalizando um grau mais efetivo de sua auto-justificação, como na Holanda, Noruega, Finlândia e Dinamarca, a confiança dos cidadãos também oscila, mas dentro de patamares muito mais altos, sem que se possa falar, nesses casos, de uma crise de confiança política. A variação realmente dramática ocorreu, contudo, em algumas democracias mais antigas, como os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, a Suécia e mesmo o Canadá, onde os resultados de pesquisas realizadas por mais de quatro décadas seguidas mostraram que a confiança em autoridades e em instituições públicas caiu sistematicamente, nos últimos 40 anos, invertendo a tendência verificada durante a prosperidade econômica e a tranqüilidade política que se seguiram ao fim da II Guerra Mundial. Enquanto naquele período, em especial entre meados dos anos 50 e 60, cerca de ¾ de cidadãos dos países mencionados mostravam-se satisfeitos, deferentes e confiantes em seus governos, instituições e burocracias públicas, a partir dos anos 80 e 90 apenas 25% dos entrevistados expressaram essa atitude, revelando uma evidente disposição crítica diante das crises políticas, escândalos e, principalmente, a deterioração do padrão republicano de funcionamento das instituições. Em todos esses casos, ainda que de modo diferente, as mudanças afetaram o comportamento dos cidadãos em relação aos mecanismos básicos da democracia representativa como partidos e eleições. De um modo geral, caíram as taxas de identificação com ou a mobilização dos eleitores por partidos, o comparecimento em eleições e o interesse por política em países como os Estados Unidos, Inglaterra e boa parte da Europa continental. Só recentemente surgiram sinais de mudança nesse panorama, a 3 exemplo do crescimento da participação por ocasião da eleição de Barack Obama, nos Estados Unidos, ou da emergência de formas não-convencionais de participação política em alguns países europeus; mas a tendência ainda não se reverteu e permanece como um tema de interesse da literatura especializada. A situação dos regimes nascidos da terceira onda de democratização, nos termos definidos por Huntington (1991), é, no entanto, mais preocupante, embora guardando especificidades próprias. Enquanto, por exemplo, em vários países do Leste Europeu a avaliação do regime democrático implantado depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, não ultrapassava, em avaliações do início dos anos 90, os índices favoráveis ao regime anterior, em boa parte dos países latino-americanos – onde a tradição democrática é sabidamente frágil, descontínua e cheia de contradições -, apenas 1/5 do público declarava, no início desse milênio, ter ‘muita’ ou ‘alguma’ confiança em parlamentos e partidos políticos, e menos de 1/3 confiava em governos, funcionários públicos, policia ou judiciário. Pesquisas relatadas no livro organizado por Moisés (2010), Democracia e Confiança – Por que os Cidadãos Desconfiam das Instituições Públicas?, sobre vários países do continente, também associaram os sentimentos de apatia ou de impotência política com ao fenômeno de desconfiança dos cidadãos de instituições democráticas2. Não é diferente a situação da Coréia do Sul, estudada por Shin (2005), ou a de alguns países do sudeste europeu analisados por Torcal e Brusattin (2010). Em boa parte desses casos, as instituições democráticas nasceram de estruturas autoritárias anteriores, herdaram distorções daquelas experiências, nem sempre as tornaram coerentes com seus objetivos; e, mesmo reformadas, não completaram o que se designa como o processo de rotinização das novas estruturas institucionais que, no caso das democracias originárias, malgrado seu mal estar recente, foi um aspecto importante da longa acomodação dos cidadãos às inovações da ordem política democrática. Em todos esses casos não há sinais de preferência por um regime antidemocrático, mas a desconfiança dos cidadãos de instituições públicas aponta para um paradoxo cujos efeitos para a continuidade da democracia em longo prazo precisam ser mais bem conhecidos e avaliados. É razoável supor que a democracia pode conviver indefinidamente com o descrédito dos cidadãos em normas, procedimentos e instituições que, por definição, tem a função de mediar a competição de interesses divergentes e, ao mesmo tempo, promover a coordenação e a cooperação sociais necessárias ao funcionamento das sociedades complexas? A continuidade do regime no tempo é suficiente para dirimir os 2 Ver também Moisés (1995), Os Brasileiros e a Democracia – As bases sócio-políticas da legitimidade democrática, Durand Ponte (2004), Ciudadanía y Cultura Política, sobre o México, e Huneeus (2003) Chile, un país dividido. 4 efeitos da desconfiança política? E como avaliar a qualidade de um regime cujos mecanismos básicos de funcionamento suscitam tantas dúvidas entre os cidadãos, como no caso das instituições democráticas? Para responder a essas questões três argumentos são apresentados neste capítulo. Em primeiro lugar, é preciso redefinir o conceito de cidadania a partir da controvérsia entre a concepção liberal clássica, para a qual a cidadania é essencialmente um status jurídico e administrativo formal, e a crítica comunitarista que pretende resgatar a noção cívicorepublicana da sua tradição. Em segundo lugar, é necessário enfrentar a premissa da tradição liberal da democracia segundo a qual o risco de abuso do poder supõe desconfiança e não confiança nas instituições. E, finalmente, estabelecida a relevância teórica do conceito de confiança política, é preciso examinar, contra tendências usuais de tomá-la como um fenômeno de face única, a sua natureza multidimensional, bem como as implicações que isso tem para a teoria empírica da democracia. A QUESTÃO DA CIDADANIA O vocábulo cidadão provém do termo latino civitas, mas como observaram vários autores, suas fontes intelectuais encontram-se nas religiões da Antiguidade e na civilização greco-romana, cujo legado remete às noções de liberdade, igualdade e virtudes republicanas. As referências à idéia abstrata de igualdade já estavam presentes em textos religiosos antigos para os quais todo ser humano deveria ter status igual diante de Deus. Mas foi na antiguidade grega que os conceitos de igualdade e liberdade adquiriram relevância a partir da emergência da pólis, isto é, da cidade protegida da hostilidade de vizinhos ou estrangeiros, cujos laços de lealdade e de identidade de seus cidadãos formavam a base da comunidade voltada para o bem público; na polis os cidadãos participavam, em graus diferentes e de modo desigual, das decisões que afetavam o seu destino; reunidos na ágora, os homens (mas não as mulheres, nem os escravos ou trabalhadores manuais) tomavam decisões que afetavam a vida das pessoas – como as relativas às leis, à economia e a guerra -, e escolhiam ou eram escolhidos, por sorteio, para assumir funções ligadas à administração e a justiça. Mais tarde, do período medieval em diante, o burgo ocupou o lugar da pólis, dando novas dimensões à idéia de liberdade, e o burguês converteu-se no protótipo do cidadão, sendo a cidade o seu habitat natural. Na continuidade dessa tradição, nos séculos XVII e XVIII, o contratualismo de J. Locke e de J. J. Rousseau forneceu as bases filosóficas do conceito de cidadania do liberalismo, e as revoluções inglesa, americana e francesa validaram o seu uso ao estabelecer um vínculo jurídico-legal entre as noções de liberdade, 5 igualdade, fraternidade e Estado-Nação. A adoção da premissa de que “os homens nascem livres e iguais” ofereceu os fundamentos para a concepção segundo a qual o cidadão, ao se associar politicamente para reverter “a guerra de todos contra todos”, tem de ser visto como detentor de um status formal capaz de reconhecer o seu pertencimento à comunidade política nacional e, ao mesmo tempo, de assegurar o seu direito de escolher governos e seus representantes; e, inclusive, de ser escolhido para as funções correspondentes. A concepção liberal clássica deu origem a uma perspectiva protetora do cidadão como membro da associação política. O objetivo principal era proteger o indivíduo de riscos de arbitrariedade, opressão ou a violação de seus direitos por parte tanto de quem exerce o poder, assim como dos outros indivíduos. Locke (1973) formulou essa concepção de proteção em termos do direito natural à vida, à liberdade e à propriedade. Por isso, as liberdades modernas foram entendidas como negativas, isto é, como mecanismos que institucionalizam a ausência de coerção estatal ou privada para evitar que o indivíduo seja impedido de realizar os seus interesses. Essa concepção negativa está na origem da desconfiança que a tradição liberal alimentou contra os detentores de poder e as estruturas do Estado Moderno. Em linha com essa tradição, o modelo de democracia minimalista – cujos desenvolvimentos mais recentes datam de meados do século passado - supõe uma estrutura jurídico-legal que assegura a separação de poderes, o funcionamento do sistema de representação, a obrigação de obediência às leis, o direito de participar da escolha da elite governante, mas , ao mesmo tempo, a aceitação pelos cidadãos comuns de que essa participação tem limites, as tarefas governativas devendo ser deixadas para os políticos e para os especialistas - premissas que M. Weber e J. Schumpeter viram como o principal objetivo da democracia. Operando, contudo, no terreno aberto por essa concepção, mas, ao mesmo tempo, ampliando os seus marcos analíticos, alguns teóricos do pluralismo democrático como Dahl (1966) e Bobbio (1984) deslocaram o foco da análise do indivíduo para o papel de facções, grupos de pressão e de interesses na competição política, mostrando que sem o reconhecimento da diversidade política não pode existir democracia. O modelo protetor e minimalista da democracia, baseado no princípio normativo da igualdade formal dos cidadãos, supõe que as diferenças de posses materiais, poder ou status social não eliminam a igualdade de todos em face da lei, tomada como o fundamento da igualdade de direitos e, em especial, do direito de voto. Mas essa igualdade não é vista como um fim em si, destinado a fundar uma comunidade de interesses, mas sim como instrumento de proteção do indivíduo contra a opressão e a injustiça. 6 Foi em oposição a essas premissas e às suas implicações práticas que se colocaram as objeções de K. Marx e de seus seguidores, segundo as quais, a noção de cidadania centrada nas formalidades jurídico-legais oculta a exclusão e a desigualdade real dos indivíduos originadas pelas relações assimétricas que caracterizam o modo de produção capitalista. Marshall (1965), em sua celebrada conferência sobre o tema, reconheceu isso claramente ao designar como uma espécie de “guerra” o processo contínuo – e, em certo sentido, seqüencial - de conquistas de direitos de cidadania verificadas desde o século XVIII na Inglaterra. Mesmo autores como J. Rawls, cuja preocupação principal está centrada nas exigências de justiça do sistema de cidadania, vêm os cidadãos como motivados a usar os seus direitos essencialmente para alcançar os seus interesses próprios. Embora na formulação de Rawls (1971) isto deva se dar no contexto de constrangimentos impostos pela exigência de respeito aos direitos dos outros, a sua ênfase é a defesa do “direito dos indivíduos de definir, revisar e buscar racionalmente seus interesses privados e sua concepção particular de bem”, e não a participação dos cidadãos para a consecução do bem público como suposto pela tradição clássica de cidadania, reivindicada mais tarde pelos comunitaristas. Com efeito, é precisamente sobre isso que incide a crítica comunitarista de autores como Volin (1992) e Sandel (1982). Segundo eles, a tradição liberal teria relegado as preocupações normativas da política ao campo da moralidade privada. A política teria sido destituída do seu componente ético – associado na concepção cívico-republicana com o desenvolvimento das virtudes requeridas pela participação na pólis e na república – para assumir uma concepção essencialmente instrumental, voltada apenas para a realização de interesses privados que seriam definidos longe ou independentemente do debate público – tomado como expressão do debate de interesse de todos. Isso teria levado ao esvaziamento da noção de cidadania baseada na propensão natural dos cidadãos de associar-se com os seus iguais para definir a ação coletiva necessária à realização do bem almejado pela comunidade política, e teria dando origem a uma noção descomprometida do ser político, empobrecedora da cidadania como comunidade constitutiva, cujo processo para definir objetivos comuns seria o fundamento da identidade política dos indivíduos. Assim, segundo os comunitaristas, a concepção liberal apenas reconheceria o surgimento de uma comunidade instrumental em que os indivíduos participariam com interesses e identidades previamente constituídos, sem vínculo ou raiz social, o que minimizaria ou reduziria a importância da esfera pública para o desenvolvimento das virtudes cívicas necessárias ao funcionamento do bom governo. 7 Os comunitaristas advogaram, então, o retorno da visão cívico-republicana de bem público como algo que antecede e é independente dos interesses individuais. Essa concepção, raramente presente no debate político contemporâneo, inspira-se na tradição greco-romana, na experiência das repúblicas italianas da Idade Média e no pensamento republicano inglês do século XVII. O valor fundamental da atividade política para ela seria a busca do bem comum concebido como uma dimensão que se sobrepõe aos interesses privados - como também reivindicou Rousseau com a sua noção de vontade geral –, e, supostamente, algo que só seria alcançável pela participação direta e ativa dos cidadãos no processo de tomada de decisões coletivas, e não pela representação. Vista como fim em si, a participação dos cidadãos seria a fábrica, por assim dizer, a partir da qual se pode desenvolver a comunalidade necessária ao advento do governo virtuoso, e a liberdade, mais do que efeito da limitação dos excessos do governo ou da avidez dos outros cidadãos – como na tradição liberal -, seria a condição de seu compromisso com o bem público, entendido então como expressão dos interesses de todos. Contudo, essa visão, que implica, por certo, um modelo de cidadania mais ativa, com vantagens para a educação de cidadãos ativos e responsáveis diante das exigências da vida pública, padece de uma limitação importante, expressa pela retomada de uma noção pré-moderna da política ao advogar uma concepção essencialista de bem comum que, por definição, exclui a divergência de interesses e o conflito inerente à disputa em torno da boa vida e do bom governo. A concepção da comunidade política organizada em torno de uma idéia única de bem público é incompatível com a natureza conflitual da sociedade moderna e com as conquistas das revoluções democráticas dos séculos XVII e XVIII que envolveram as liberdades individuais, o reconhecimento do pluralismo e o direito de organização da sociedade civil como expressões da diversidade de interesses que está na base da competição política. O risco representado por essa idéia de um bem comum único está na substantivação do processo político e na desqualificação da natureza conflitual da política moderna. A grande novidade da democracia moderna, como argumentou Lefort (1981), foi a dissolução dos marcos de certeza que articulavam as crenças sobre o mando e a obediência nas sociedades tradicionais, e a alocação da disputa pelo poder – este considerado como um espaço vazio – em um terreno de indeterminação que é incompatível com a idéia de garantia final de resultados ou uma noção substantiva do bem comum. A democracia supõe necessàriamente incertezas quanto aos resultados do processo através do qual as sociedades resolvem os seus dilemas coletivos, e essa condição não pode ser contraditada por uma concepção que limita, por definição, a natureza do conflito que está na raiz da 8 política moderna; fosse o contrário, e a política não poderia ser definida pelo reconhecimento da legitimidade desse conflito em torno de bens materiais e simbólicos escassos. Tendo em conta os limites tanto do modelo liberal, como da concepção comunitarista - como resumidos antes – os filósofos políticos C. Mouffe e J. Leca argumentaram, recentemente, que uma concepção de cidadania adequada às exigências das sociedades complexas contemporâneas – por natureza, desiguais, diferenciadas e fortemente marcadas por novos processos de produção e comunicação derivados da globalização - tem de articular as conquistas da revolução democrática dos três últimos séculos com aspectos da tradição cívico-republicana. Essa nova concepção deveria incorporar, em um mesmo movimento constitutivo, a prioridade dos direitos individuais sobre a noção de um bem comum substantivo e a importância da idéia de inserção dos indivíduos na comunidade política em decorrência de seu interesse de associar-se para agir e participar do processo de tomada de decisões públicas. A dimensão pública que corresponde a essa concepção refere-se, não a um projeto essencialista que estipula previamente os resultados da competição política, mas ao processo de construção da ação política como resposta a dilemas coletivos reconhecidos como tal pela comunidade política. O que os cidadãos compartilham não é a presunção de consenso prévio ou uma visão homogênea quanto à solução dos conflitos em jogo, mas o compromisso político derivado da decisão de reconhecer como legítimas as suas diferenças e de associar-se - malgrado elas - em função de sua decisão de agir em comum para alcançar objetivos públicos. Esse compromisso envolve a aceitação de princípios como a liberdade e a igualdade, decorrentes das transformações democráticas e, ao mesmo tempo, estabelece as bases das relações de lealdade entre atores que, por circunstância ou por escolha, estão associados entre si. Essa lealdade os une e funda as bases da noção de direitos de cidadania que se refere, não apenas às diferenças de status político ou social, mas à diversidade de identidades políticas derivadas de relações de gênero, sexualidade, raça, etnia, religião ou cultura. A idéia – que Mouffe (1992) toma emprestada do filósofo inglês M. Oakeshott – supõe que essa associação envolve uma prática comum através da qual seus membros definem condições específicas para realizar o seu compromisso público. Essa prática cívica, designada como res pública, mais do que definir fins últimos da ação dos cidadãos, estabelece as regras e as práticas que eles aceitam subscrever para agir em comum. Como a ação coletiva em tais condições envolve, por definição, a divisão e o antagonismo próprios da política moderna, essas condições incluem um complexo de normas, procedimentos e 9 instituições cujo objetivo é regular o modo dos cidadãos reconhecerem e resolver as suas diferenças e, ao mesmo tempo, oferecer as bases do julgamento político que fazem ao participar da realização de objetivos coletivos. Trata-se de uma associação política de que participam atores de diferentes orientações que, a despeito de também pertencerem a associações definidas por interesses particulares, como partidos, grupos de pressão ou corporações, não estão em conflito com sua decisão de integrar a comunidade política mais abrangente. Ou seja, a sua identidade como cidadãos pertencentes à res publica decorre da comunalidade expressa pela definição e pela adoção de regras de intercurso civil que organizam suas relações políticas. Oakeshott (1975) enfatiza o caráter ético e moral - não instrumental - da adesão dos cidadãos a essas regras, mas isso se refere menos a uma visão abrangente da finalidade da sociedade, e mais às propriedades e à qualidade do código ético-político que norteia a mediação e a regulação da disputa por interesses políticos divergentes. Nessa visão, diferente de concepções tradicionais sobre o papel do Estado, a autoridade pública não é um instrumento neutro de conciliação de interesses, nem o comitê executivo dedicado à promoção de interesses privados, mas a esfera que autoriza, segundo regras bem específicas que esses interesses participem da disputa política, normatizando o modo dessa disputa se dar. Diferente também da concepção usual de que o império da lei é suficiente per se para legitimar a associação política necessária à garantia da liberdade e da igualdade, importa muito a sua articulação com o conteúdo normativo de regras e instituições escolhidas pelos atores políticos, e isso, em última análise, está no centro da dinâmica das relações entre cidadãos e a esfera pública; está no centro e define a natureza dessas relações e, por isso, atribui um papel especial para as instituições, vistas, então, como os meios por excelência de mediação dos conflitos políticos modernos. A QUESTÃO DA CONFIANÇA A abordagem convencional do fenômeno de confiança dos cidadãos em instituições democráticas costuma associar o tema à questão da legitimidade política. Contudo, o conceito de legitimidade tem sido objeto de controvérsias nas ciências humanas, particularmente, no que se refere ao exame da articulação de aspectos do sistema político global, como é o caso de suas estruturas institucionais, com as orientações individuais dos cidadãos sobre a política (MCDONOUGH et al., 1992). A sociologia política de Max Weber ofereceu, nesse sentido, um ponto de partida amplamente reconhecido pela literatura política ao distinguir entre as dimensões de poder e de autoridade, e ao advogar a superioridade da última para tratar da natureza da coesão social da comunidade política. 10 Enquanto no caso da autoridade a relação dos cidadãos, assim como do pessoal burocrático e administrativo do Estado, com os governantes e as autoridades públicas estaria motivada por aquiescência voluntária, isto é, por adesão de natureza não-coercitiva, no caso do poder a relação envolveria necessàriamente o uso da força, ainda que esse tenha de ser regulado por lei para ser aceito como legitimo. A questão, então, estaria em saber o que motiva a aquiescência voluntária dos cidadãos e do pessoal administrativo e burocrático às autoridades públicas e às instituições do sistema político. Weber (1974) respondeu a essa questão propondo a sua famosa tipologia tripartite da legitimidade: o primeiro tipo refere-se à aceitação da autoridade motivada pelo respeito à tradição, embora as sociedades que se modernizaram ou estão em vias de concluir esse processo não possam ser incluídas aí; o segundo tipo alude às qualidades carismáticas atribuídas a certas lideranças políticas ou a certas idéias expressas por elas, mas, claramente, esse constitui um caso especial; para o terceiro tipo a aquiescência depende de sua ordenação racional-legal, ou seja, os cidadãos se conformam e manifestam respeito à autoridade definida por regras legais e racionais. Embora se considere que nesse caso a situação corresponde à racionalidade própria da modernidade, não fica inteiramente claro na teoria se os cidadãos e os funcionários do Estado aceitam obedecer e submeter-se a ordens e regras simplesmente porque elas correspondem a procedimentos considerados legalmente “corretos”; pois, dado que as leis e as normas não são auto-executáveis ou auto-impositivas, a submissão a elas dependeria ainda de algum outro fator que precisa ser explicado. Offe (1999) sugeriu duas respostas a esta questão: a primeira, baseada nos escritos políticos de Weber do período entre 1917 e 1919, aponta para a necessidade de uma combinação de fatores racional-legais com os que se referem às qualidades morais e éticas de autoridades e instituições, sem os quais os primeiros seriam insuficientes; esses fatores selariam, por assim dizer, os motivos pelos quais os indivíduos aceitariam se submeter às instituições, às leis e às autoridades. A segunda se refere ao conteúdo normativo de regras e procedimentos racional-legais, particularmente, o relativo aos princípios de equidade, justiça, impessoalidade e imparcialidade que seriam próprios das instituições democráticas; o conhecimento dessas normas e princípios, pelos cidadãos, seguido de sua realização prática pelos encarregados de seu funcionamento, geraria a confiança política necessária para que o poder público seja capaz de realizar as tarefas de coordenação social e política que se espera dele. Complacência, submissão e confiança em regras e normas de funcionamento de instituições públicas dependeriam, nessa concepção, da sinalização e da realização prática de valores como universalismo, reciprocidade e participação, sem os 11 quais os cidadãos tenderiam a perceber o jogo político como uma fraude ou como algo em que a diversidade de interesses envolvida não estaria devidamente garantida, e em que os eventuais infratores de regras universais não sofreriam quaisquer restrições ou punições de parte do sistema político; daí o fenômeno da desconfiança política (OFFE, 1999; LEVI, 1998). Confiança em linguagem comum designa segurança de procedimento ou crença em outros com quem se interage e se convive. Nas ciências sociais, o interesse pelo conceito está associado à preocupação com os processos informais através dos quais as pessoas enfrentam as incertezas e as imprevisibilidades que decorrem da crescente complexificação da vida no quadro de um mundo globalizado, interdependente e crescentemente condicionado por avanços tecnológicos no campo da comunicação. Essa situação implica em conhecimento limitado sobre os processos de tomada de decisões coletivas e as ações de governos que afetam a vida das pessoas. Diante disso, autores como Luhmann (1979), Giddens (1990) e Offe (1999) chamaram a atenção para o fato de que a velha demanda por coordenação social que está na origem do Estado moderno se reatualizou, na época contemporânea, ao se associar com as exigências de cooperação social; contudo, para se deixar coordenar e cooperar as pessoas precisam ter alguma capacidade de previsão sobre o comportamento dos outros e, em especial, sobre o funcionamento de regras, normas e instituições que condicionam esse comportamento, cujos efeitos afetam a sua vida. Esse é o ponto em que a demanda por confiança se atualiza. Autores de diferentes orientações teóricas argumentaram que ela é a resposta adequada para essa situação de adversidade e de imprevisibilidade e, nas últimas décadas, o conceito vem sendo usado para designar grande variedade de fenômenos sociais e políticos que, malgrado colocar os indivíduos envolvidos em situação de risco, refere-se à coesão social necessária ao funcionamento das sociedades complexas, desiguais e diferenciadas. O tema envolve uma controvérsia a respeito da relação entre os conceitos de confiança interpessoal e confiança política, algo abordado na literatura especializada por enfoques tanto dos racionalistas, como dos cultores dos modelos de “cultura cívica” de Almond e Verba, “capital cultural” de Bourdieu, “capital social” de Putnam, “pós-materialismo” de Inglehart e “cidadãos críticos” de Norris, Klingemann e Fuchs. Para os racionalistas, a confiança interpessoal envolve a expectativa racional de A (o confiante) sobre o curso de ações a ser adotado por B (o confiado). Diante da imprevisibilidade humana, isto é, do fato de o comportamento alheio não poder ser completamente controlado – a não ser em situações-limite -, a situação implicaria em risco de dano ou de vulnerabilidade de A diante de B. Como o ato de confiar é insuficiente para determinar o resultado da interação, autores como Hardin (1999) supõem que só não existe 12 abuso de confiança se a relação encapsular os interesses das partes. Ou seja, quando quem confia tem segurança sobre a motivação solidária do confiado por saber por antecipação que seus interesses serão levados em consideração por ele. A confiança interpessoal abrangeria, assim, as situações em que interesses mútuos, que geram benefícios comuns e eliminam os danos derivados de abuso da confiança, podem ser mobilizados; mas, afora isso, a confiança seria injustificável do ponto de vista racional. Os críticos dessa perspectiva sustentaram, no entanto, que essa situação está longe de ser a mais comum, não sendo sempre racional a decisão de confiar, nem a atitude se determinando exclusivamente – como no caso de uma decisão baseada no cálculo de custos/benefícios – pelo nível de informação disponível a respeito do comportamento dos outros, pois os indivíduos têm capacidade cognitiva limitada para acessar, na quantidade e na qualidade necessárias, as informações adequadas para avaliar a conduta alheia ou a utilidade da interação em que estão envolvidos. A eficiência, a pluralização de papeis e a mobilidade social típicas das sociedades complexas ampliam as possibilidades de escolhas dos indivíduos, mas a complexidade social e política inerente aos processos que envolvem a tomada de decisões coletivas limita a sua capacidade de controlar a informação necessária para que suas decisões sejam compatíveis com seus interesses, aspirações ou preferências. A confiança preencheria, portanto, o vazio deixado pela impossibilidade de as pessoas mobilizarem de modo completo os recursos cognitivos requeridos para avaliar as suas habilidades e julgar as decisões políticas que afetam suas vidas. Com base em premissas estabelecidas nas obras de Tocqueville (1969) e de Almond e Verba (1965), autores como Putnam (1993) e Inglehart (1997) argumentaram, em anos recentes, que a confiança interpessoal ou social se explica a partir do contexto sócio-cultural em que se expressa. Sua ocorrência, baseada na experiência social e em valores compartilhados, favoreceria a disposição das pessoas para agir em comum e a acumulação de capital social daí resultante levaria à acumulação de capital político favorável ao funcionamento do regime democrático. O fato de as pessoas confiarem umas nas outras estimularia a sua cooperação e favoreceria o surgimento de virtudes cívicas, como a submissão às leis e normas e a participação política, reforçando a capacidade dos grupos envolvidos de obter benefícios comuns desejados e, ao mesmo tempo, estimulando os indivíduos a pressionarem as instituições públicas a se desempenharem para cumprir os objetivos para os quais foram criadas. Contudo, a premissa de que a confiança social gera a confiança política tem de enfrentar a objeção segundo a qual a política moderna nasceu da suposição de que quem 13 detém o poder não é confiável, e de que os procedimentos a que recorrem os seus detentores para mantê-lo precisam ser socialmente controlados para que o seu abuso seja evitado. Segundo essa premissa liberal, a vantagem da adoção de regras, normas e instituições democráticas consiste precisamente no controle e na limitação do poder propiciados por elas. A inovação democrática decorreria da existência de normas de procedimento que permitem colocar em cheque os poderes discricionários implícitos nas relações de poder. Em conseqüência, a democracia implicaria em supervisão e monitoramento do exercício do poder pelos cidadãos. Ou seja, ela implicaria em desconfiança e, para fazer valer isso, operaria com instituições desenhadas para que os riscos de origem sejam antevistos e controlados. Nesse caso, como falar em confiança política? Os autores que contra-argumentaram em favor da confiança inverteram o sentido das formulações anteriores. Para Warren (1999), Offe (1999) e Sztompka (1999), entre outros, diante da impossibilidade de se ter garantia absoluta de que o conflito de interesses se resolva pacificamente, a democracia moderna institucionalizou regras e normas de procedimentos, geridas e ativadas pelas instituições democráticas, para assegurar um padrão civilizado de competição política, algo também sugerido por autores como Mouffe (1992) e Oakeshott (1975). Com efeito, mecanismos ou dispositivos como eleições, representação política, liberdade de expressão e de associação, direito de julgamento justo e imparcial, divisão de poderes e a obrigação de prestação de contas por governos capacitam os cidadãos para desafiar as relações de poder de que justamente desconfiam, mas, para fazer isso, a sua “desconfiança” precisa ser “institucionalizada”, ou seja, tornada permanente através de mecanismos que, mobilizados, asseguram que eles podem competir por seus interesses sem risco para a sua liberdade e para os seus direitos, a começar pelo direito à vida. A idéia é que direitos e prerrogativas democráticas sejam “naturalizados” pelas instituições e “internalizados” na ordem institucional. Para isso, contudo, os cidadãos têm de aceitar o caráter impositivo de regras que traduzem os princípios de liberdade e de igualdade política, e o fato de elas garantirem, uma vez que funcionem a contento, o seu direito de controlar as circunstâncias que geram “desconfiança”. Ou seja, a institucionalização da “desconfiança” implica também na “internalização” pelos cidadãos dos meios pelos quais podem enfrentá-la e, nessa medida, supõe a existência de uma cultura de confiança nos instrumentos que tornam isso possível, ou seja, as instituições democráticas. Nesse sentido, Sztompka (1999) fala de pelo menos cinco práticas democráticas que requerem a confiança para operar com sucesso. A primeira é a 14 comunicação entre os cidadãos com vistas à definição de objetivos públicos comuns; a segunda é a prática da tolerância e da aceitação do pluralismo político; a terceira é o consenso mínimo sobre o funcionamento dos procedimentos democráticos; a quarta é a civilidade requerida pela relação de atores que competem por objetivos diferentes; e, a última, é a participação dos cidadãos seja em associações da sociedade civil, seja em organizações de objetivos propriamente políticos, como os partidos. Todas são consideradas indispensáveis à democracia, todas se retroalimentam e, por isso mesmo, todas requerem graus razoáveis de confiança para funcionar a contento. O argumento de Offe (1999), contudo, é ainda mais complexo. Para ele, com a crescente interdependência dos sistemas complexos que constituem as sociedades contemporâneas, o Estado assumiu funções de articulador, não mais e nem exclusivamente de responsável único pela solução dos dilemas coletivos que, antes, se esperava que pudessem ser solucionados pela sua intervenção. Em face das transformações provocadas pela globalização e pelas pressões para diminuir o seu papel de ator direto nas esferas da economia e da sociedade, o Estado se fragilizou e, para implementar políticas públicas correspondentes, tem de se apoiar cada vez mais na cooperação social. A coordenação necessária a essa implementação demanda o envolvimento dos cidadãos, quando menos, como no caso dos serviços de arrecadação de impostos que alimentam o fundo público, para apoiar as instituições no cumprimento da missão para a qual foram criadas; mas isso não se realiza sem que as instituições tenham a confiança das pessoas. Contudo, confiar em instituições não é a mesma coisa que confiar em pessoas, de quem se pode esperar reciprocidade, indiferença ou hostilidade; em contraste com Hardin (1999), para quem a inexistência de confiança em instituições é resultado da informação limitada de que dispõem os indivíduos, Offe (1999) enfatiza os recursos éticos e normativos das instituições, e a relação que isso enseja com a experiência política das pessoas. Confiar em instituições supõe, então, conhecer, em alguma medida, a idéia básica ou a função específica atribuída a elas, a exemplo da crença de que a policia existe para garantir a segurança e a sobrevivência das pessoas. Isso se explicitaria tanto pela sua retórica de autojustificação como pelas regras constitutivas das instituições, as quais remetem a conteúdos éticos e normativos que resultaram da disputa dos atores para atribuir sentido à política democrática; por isso, essas regras constituem uma referência necessária tanto da ação dos responsáveis pelas instituições, como do comportamento das pessoas comuns que, a partir de sua experiência política, se orientam pelo que aprendem do funcionamento das instituições. 15 Em vista disso, as instituições não podem ser vistas como neutras ou vazias, mas como mecanismos de mediação política informados por valores derivados das escolhas que a sociedade fez com vistas a enfrentar os seus desafios políticos. A confiança política dos cidadãos não é, portanto, cega ou automática, mas depende de as instituições estarem organizadas para permitir que eles conheçam, recorram ou interpelem os seus fins últimos – fins aceitos, desejados e considerados legítimos pelos cidadãos. Nesse sentido, regras institucionais democráticas como a imparcialidade em eleições, a probidade no uso de recursos públicos ou a igualdade de acesso à justiça, ao “naturalizar” os direitos de cidadania, gerariam expectativas sociais correspondente sobre o seu funcionamento, e é isso, precisamente, que afetaria a relação dos cidadãos com elas. Dito de outro modo, a confiança política dos cidadãos em instituições dependeria da coerência delas com a sua auto-justificação normativa; o repertório de significações resultante do funcionamento das instituições ajudaria a determinar a medida dessa confiança, a qual pode ou não se estender aos seus responsáveis, dependendo de o quanto o seu comportamento seja compatível com aqueles objetivos. A dinâmica envolveria, portanto, a experiência dos cidadãos com as instituições e isso ajudaria a determinar a ocorrência do fenômeno de confiança. UM CONCEITO MULTIDIMENSIONAL A abordagem proposta retoma uma idéia original de Easton (1965) que, analisando a natureza do apoio público aos sistemas políticos, meio século atrás, falou de apoio específico e de apoio difuso como dimensões diferentes. Enquanto o primeiro se refere à satisfação dos cidadãos com o desempenho de governos e de lideranças políticas, o apoio difuso diria respeito à sua atitude em relação ao sistema político como um todo, independentemente do desempenho de seus responsáveis. Easton queria demonstrar como essa distinção tem implicações para o conhecimento e para o comportamento político e argumentou que o apoio político está relacionado com a experiência das pessoas. Os cidadãos se identificam com as instituições porque aprendem a fazê-lo através de processos sucessivos de transmissão de seu significado para as diferentes gerações mas, principalmente, porque as suas experiências políticas, ao longo de sua vida adulta, qualifica-os para avaliar racionalmente o seu desempenho. A participação em eleições e a vivência de processos institucionais que ampliam ou restringem o seu acesso a direitos estabelecidos por lei fornece as bases do seu julgamento. Essa avaliação inclui a percepção de resultados do desempenho das instituições, a exemplo de avanços nas áreas sociais e econômicas, mas também do cumprimento da missão normativa atribuída a elas pela sociedade. As pessoas aprendem a 16 distinguir entre as diferentes dimensões envolvidas no processo e, uma vez que isso se torne parte de sua rotina, elas passam a diferenciar a ação de governos do desempenho específico de instituições. Isso se refere a esferas de ação governamental, a serviços públicos e a instituições específicas que, a exemplo do judiciário, simbolizam o acesso dos cidadãos a direitos estabelecidos por lei. Em conseqüência disso, o apoio público às instituições políticas não pode ser visto como um fenômeno unidimensional, mas como algo de face múltipla que explicita para os cidadãos as qualidades da ação institucional. Ademais, as diferentes dimensões institucionais não podem ser confundidas sob pena de ocultamento da realidade; por essa razão, partindo das observações originais de Easton, alguns autores refinaram o foco da análise através da inclusão de novas dimensões no escopo das pesquisas empíricas do tema. Identificaram cinco níveis de confiança política que, embora relacionados, tem de ser pesquisados separadamente: a comunidade política per se, os princípios do regime democrático, o desempenho específico do regime, as instituições democráticas e os atores políticos. O primeiro nível refere-se ao apoio difuso dos cidadãos à comunidade política, através da qual se sentem pertencendo ao Estado-Nação, isto é, às fronteiras territoriais e políticas que definem a sua identidade coletiva (LINZ E STEPAN, 1996). Orgulho, lealdade e expectativas relativas às suas aspirações sociais, étnicas ou religiosas são alguns dos sentimentos correspondentes; a ligação dos cidadãos com sua comunidade política seria parte do capital social que favorece a confiança social e o engajamento cívico (NEWTON, 1999). O segundo nível alude à adesão dos cidadãos ao regime democrático como um ideal, isto é, aos valores que, mesmo sem se constituir em um consenso absoluto, distinguem esse regime dos demais; admitindo-se que a democracia tem significados diferentes para pessoas diferentes de sociedades diferentes (THOMASSEN, 1995; SIMON, 1996; MILLER, HESLI E REISINGER, 1997), alguns valores a definem, no entanto, em oposição a outros regimes: as noções de liberdade, igualdade, império da lei, equidade, participação, tolerância diante da diferença e respeito por direitos e deveres estabelecidos constitucionalmente (BETHAM, 1994; SIMON, 1996). O terceiro nível permite verificar o funcionamento prático da democracia, isto é, o desempenho objetivo do regime no dia-adia em contraste com o seu significado ideal. Para isso, importam as percepções dos cidadãos, menos sobre os princípios do regime democrático, e mais sobre a sua capacidade de solucionar problemas percebidos socialmente como prioritários (MCDONOUGH et al., 1992; MOISÉS, 1995). Essa distinção permite captar, de modo mais adequado, as avaliações individuais sobre o desempenho específico do sistema democrático, em dado momento e 17 lugar, em contraste com a percepção de suas vantagens em relação a outros regimes (KLINGEMANN E FUCHS, 1998). O quarto nível refere-se às instituições democráticas per se e abrange o universo de atitudes e percepções dos cidadãos a respeito de parlamentos, partidos políticos, executivo, judiciário, sistema legal, serviços públicos como educação, saúde e segurança pública, burocracia estatal e as forças armadas em contraposição ao desempenho de seus ocupantes ou líderes ocasionais (LIPSET E SCHNEIDER, 1987; LISTHAUG E WIBERG, 1995); a ênfase é posta na missão permanente das instituições e na expectativa que isso implica, menos do que em seus resultados práticos (HIBBING E THEISSMORSE, 1995). O último nível analítico refere-se ao apoio dos cidadãos aos atores políticos, isto é, aos líderes e membros do segmento que se convencionou chamar de classe política; o objetivo é examinar a avaliação pública que emerge de seu desempenho específico e, dessa forma, separar analiticamente essa dimensão da que se refere à confiança ou desconfiança em governos ou em instituições políticas (ROSE, 1995). Essa distinção de níveis empíricos permite explorar analìticamente o fato de as pessoas experimentarem e confiarem de modo desigual em diferentes dimensões institucionais, excluindo a hipótese simplista de que a confiança em um nível implica necessariamente em confiança em outro. Isso permite explicar, por exemplo, porque indivíduos que valorizam positivamente o regime democrático, avaliam negativamente o funcionamento de instituições públicas, como ocorre em muitas das novas democracias, ou porque apóiam algumas instituições, mas não os governos do dia. Norris (1999) e colaboradores observaram ainda que os sentimentos gerados a partir da experiência institucional dos cidadãos referem-se, fundamentalmente, ao jogo proporcionado pelas regras constitucionais vigentes, escritas ou não, que resultam na interação entre ganhadores e perdedores do processo político-institucional. Nesse sentido, as experiências de derrotas e vitórias de partidos políticos, grupos de interesse ou associações civis, ao longo do tempo, com o executivo, o legislativo e o judiciário influenciam as atitudes políticas dos cidadãos. As pessoas tendem a apoiar as instituições se as regras do jogo asseguram que o partido de sua preferência chegue ao poder, mas a capacidade da ordem institucional de absorver e processar as suas demandas, mesmo se não adotadas de imediato, também conta. Em sentido contrário, uma eventual sucessão de derrotas do partido político de preferência dos cidadãos ou a impermeabilidade de governos, legislativos ou tribunais de justiça às suas demandas por direitos indicam que seu poder de influir sobre o processo decisório não existe, provocando frustração, desconfiança e a crítica das instituições. 18 A idéia é que arranjos constitucionais que maximizam as oportunidades dos ganhadores produzem níveis mais altos de confiança institucional e Norris, baseando-se em resultados de pesquisas empíricas realizadas em 25 democracias, demonstra que existe associação significativa entre a desconfiança em instituições democráticas e o mau funcionamento de regras institucionais, liberdades civis e direitos políticos - cujo objetivo, em última análise, é facilitar a inclusão política e ampliar o acesso dos cidadãos às oportunidades do sistema democrático. O diagnóstico confirma também os resultados de estudos de Della Porta (2000) e de Pharr (2000), segundo os quais a deterioração da imagem das instituições democráticas em países como a Itália e o Japão, em décadas recentes, está diretamente relacionada com práticas de corrupção, de malversação de fundos públicos e com o déficit de funcionamento dos sistemas de partidos e de representação política. Esse cenário oferece, aliás, um paralelo, embora em condições distintas, com a experiência vivida, nas últimas décadas, por várias das novas democracias latino-americanas. Em conjunto, esses estudos confirmam a tese de que as experiências dos cidadãos influem decisivamente sobre a confiança política e que elas estão associadas com a vivência de regras, normas e procedimentos que decorrem do princípio de igualdade de todos perante a lei. Mas elas também mostram que a avaliação dos cidadãos sobre as instituições depende do aprendizado propiciado a eles pelo seu funcionamento prático. Uma vez que sejam capazes de sinalizar, de modo inequívoco, o universalismo, a imparcialidade, a justeza e a probidade de seus procedimentos, assegurando que os interesses dos cidadãos sejam efetivamente levados em conta pelo sistema político, as instituições geram apoio, solidariedade e ganham a confiança dos cidadãos. Em sentido contrário, quando prevalece a ineficiência ou a indiferença institucional diante de demandas para fazer valer direitos assegurados por lei ou generalizam-se práticas de corrupção, de fraude ou de desrespeito ao interesse público, instala-se uma atmosfera de suspeição, de descrédito e de desesperança, comprometendo a aquiescência dos cidadãos à lei e às estruturas que regulam a vida social; floresce, então, a desconfiança e o distanciamento dos cidadãos da política e das instituições democráticas, a exemplo da experiência recente de vários países da América Latina e, inclusive, do Brasil. A vantagem dessa perspectiva em relação às abordagens tradicionais do tema é que a explicação da confiança política radica nas instituições e na sua significação cultural e política. Longe de sugerir uma perspectiva desenraizada de seu contexto social, a ênfase posta na experiência dos cidadãos com as instituições restabelece a conexão entre as dimensões micro e macro da política, ou seja, reconhece que as atitudes individuais afetam 19 e são afetadas por fatores macro-políticos como o desempenho das estruturas institucionais. Assim, ao colocar a sua ênfase na significação normativa das instituições, tanto em seus objetivos éticos e políticos, como em seus modos concretos de mediar a competição política, a abordagem proposta retoma o sentido de comunalidade associado com o compromisso dos cidadãos de participar da vida pública e, nessa medida, recupera a identificação racional dos interesses dos indivíduos com aqueles da cidadania através da mediação institucional. Não se trata, portanto, de que as instituições existem simplesmente para proteger os cidadãos para que possam realizar os seus interesses privados, e, mais uma vez, separem os indivíduos da sua comunidade; nas condições da mediação institucional adotada pelo regime democrático para que a sociedade logre enfrentar os seus dilemas coletivos, tratase de colocar esses interesses em sintonia e cooperação com as exigências dos interesses públicos. Essa abordagem retoma a conhecida formulação de Tocqueville (1969) sobre o “interesse bem compreendido” e, nessa medida, enfatiza a dimensão cívico-republicana da política sem excluir, no entanto, o fato de que o processo democrático implica, por definição, a diversidade de perspectivas a respeito dos projetos de sociedade almejados pelos membros da comunidade política. Nesse sentido, a confiança em instituições é um modo através do qual os cidadãos asseguram que os seus direitos de cidadania são respeitados e, ao mesmo tempo, um meio pelo qual confirmam o seu compromisso com as exigências de seu pertencimento à comunidade política. A confiança é, assim, uma condição necessária da cidadania, e o seu meio de realização são precisamente as instituições democráticas. Nisso reside a conexão analítica desses três conceitos. E por isso a pesquisa sobre a qualidade da democracia tem de considerá-los em sua interação. 20 II. OS SIGNIFICADOS DA DEMOCRACIA SEGUNDO OS BRASILEIROS1 JOSÉ ÁLVARO MOISÉS INTRODUÇÃO Perto de completar um quarto de século depois de ter sido restabelecida no Brasil, a democracia é o regime político preferido por mais de 2/3 dos cidadãos brasileiros (Tabela 2)2. O significado desse fato para a história política contemporânea do país não pode, no entanto, ser bem compreendido se não se levar em conta que, em mais de um século de regime republicano, os brasileiros experimentaram as virtudes do regime democrático apenas em dois períodos de duas décadas cada, ou seja, entre 1946 e 1964 e, mais recentemente, entre 1988 e o dia de hoje. Fora desses curtos períodos de tempo, predominaram no país, durante a maior parte do século XX, sistemas políticos oligárquicos, autoritários ou semi-liberais que, por definição, não asseguravam as liberdades fundamentais, a competição política, a participação popular ou os direitos de cidadania. Em uma perspectiva temporal longa, portanto, a democracia é um fenômeno político relativamente novo no Brasil e, ao mesmo tempo, frágil e descontínuo na experiência política dos brasileiros. Por si só, esta é uma razão importante para se tentar avançar o conhecimento sobre o que os brasileiros pensam a respeito do regime democrático. No presente, diferente de outros períodos de sua história, a atitude positiva a respeito da democracia é majoritária no país e, mais importante que isso, a adesão dos cidadãos ao regime democrático é validada pela rejeição de mais de 2/3 do público a alternativas antidemocráticas como a volta dos militares ao poder ou o estabelecimento de um sistema de partido único (Gráfico 1). A relevância do apoio estável dos cidadãos ao regime democrático foi enfatizada por diversos autores da literatura comparada de 1 Versão revista do texto apresentado à mesa redonda “Os significados da democracia na América Latina e suas medidas”, IV Congresso da Associação Latino-americana de Ciência Política – ALACIP, 5-7/8/08, Costa Rica e ao I Seminário Internacional de Estudos sobre o Legislativo - 20 anos da Constituição, 9-11/9/08, Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. 2 Segundo o World Values Survey, da Universidade de Michigan - que cobre atualmente mais de 80% da população mundial - a democracia é hoje o regime político preferido pela maioria dos consultados (Inglehart, 2003). O Latinobarometro, por sua vez, confirma os resultados para a América Latina: em que pesem casos específicos de alguns países, a preferência pela democracia supera a marca dos 50% no continente ao longo de mais de dez anos (Informe Latinobarometro 2007, www.latinobarometro.org). democratização, mas, especialmente, por Shin (2005) e por Linz e Stepan (1996) que, ao discutir os diferentes aspectos dos processos de consolidação democrática, consideraram que a dimensão atitudinal é uma das mais importantes, uma vez que “um regime democrático só está consolidado quando uma forte maioria da opinião pública acredita que os procedimentos e as instituições democráticas constituem o modo mais apropriado de governar a vida coletiva numa sociedade como a deles, e quando o apoio a alternativas antisistêmicas é pequeno ou isolado da atitude predominante entre as forças pródemocráticas” (LINZ E STEPAN, 1996, p. 6). Essa observação reatualiza a perspectiva predominante em parte da literatura que tratou do tema e que, de modo geral, se apoiou nas conhecidas formulações de Max Weber (1974), segundo as quais, a legitimidade atribuída às instituições pelos cidadãos é um aspecto central do funcionamento da vida política de qualquer regime político e, no caso da democracia, é particularmente mais relevante porque a aquiescência dos cidadãos às decisões que afetam a sua vida – a exemplo das políticas públicas - não depende da coerção política, mas é voluntária. A despeito disso, pesquisas recentes do tema demonstraram que o crescimento da adesão normativa do público de massas à democracia convive com um paradoxo caracterizado por proporções muito altas de sua desconfiança das instituições democráticas (MOISÉS, 1995; 2008A; 2008B), como, aliás, também ocorre na maior parte dos países latino-americanos (a Tabela 1 mostra os dados para o Brasil). É como se as pessoas comuns ouvidas pelas pesquisas de opinião estivessem dizendo, por uma parte, que amam a democracia, mas, de outra que, se não odeiam, têm sentimentos contraditórios ou ambíguos a respeito de normas, procedimentos e regras que caracterizam as instituições democráticas, cuja função é assegurar a sua participação na competição pelo poder e nos mecanismos pelos quais as decisões públicas são tomadas. Com efeito, sem que os membros da comunidade política sejam motivados para recorrer às instituições e referenciar a sua ação por elas, as principais promessas da democracia – como a liberdade política, a igualdade dos cidadãos perante a lei, os seus direitos individuais e coletivos, e a obrigação dos governos de prestarem contas à sociedade de suas ações – ficam limitadas às formalidades da ordem constitucional. Criadas para assegurar a distribuição do poder na sociedade e também a possibilidade de os cidadãos, em sua condição de eleitores, avaliarem e julgarem o desempenho dos que governam em seu nome, o descrédito ou a desvalorização pública das instituições podem provocar o seu esvaziamento e a perda do seu significado (MOISÉS, 2007). 2 Os dados da Tabela 13 demonstram, com efeito, que a despeito de a adesão normativa à democracia ser majoritária no Brasil, os brasileiros desconfiam das instituições democráticas em geral e, em particular, dos partidos políticos, do Congresso Nacional e do sistema judiciário. Os índices mais altos de confiança se referem a poucas instituições públicas e privadas que são baseadas em estruturas hierárquicas, como a igreja e as forças armadas; além disso, os brasileiros também se caracterizam por sua escassa confiança nas pessoas - em especial, as que estão longe de sua intimidade ou da convivência caracterizada por laços de sangue -, como colegas de trabalho e estranhos em geral. Os baixos índices de confiança interpessoal entre os brasileiros oferecem, assim, uma alternativa para se entender os também baixos níveis de participação política no país. Testes de associação realizados pelo autor (mas não mostrados aqui) tendem a confirmar essa hipótese, ou seja, que depositando pouca confiança uns nos outros, os brasileiros padecem de um estímulo importante para vencer os obstáculos que dificultam a decisão de enfrentar os dilemas da ação coletiva. Como as atitudes contraditórias de adesão à democracia e de desconfiança das instituições são vistas por vezes como se referindo a uma única e mesma dimensão do fenômeno de apoio político, analistas céticos têm sido levados a questionar se as expressões de apoio popular a muitas das novas democracias não são desprovidas de 3 A tabela apresenta freqüências simples e a confiança varia de 0 a 3; as médias foram calculadas com base neste intervalo. As médias mais altas são para a confiança na família, nos bombeiros e na igreja, e as mais baixas para os partidos, a maioria das pessoas, os empresários e o Congresso Nacional. 3 sentido. Com efeito, esses céticos argumentam, em primeiro lugar, que a despeito de convalidarem o estabelecimento dos novos regimes democráticos através da sua participação em eleições para formar governos, as populações dos países pobres ou em desenvolvimento estão mais preocupadas com as suas necessidades econômicas e sociais do que com as virtudes ou os valores da democracia. Além disso, os que sustentam essas posições também consideram que os cidadãos desses países - em muitos casos dotados de baixos níveis de escolaridade e de renda e, portanto, em tese, detentores de cognição política insuficiente para compreender a complexidade do sistema democrático -, ao expressar apoio à democracia podem estar simplesmente manifestando a sua simpatia a uma noção cercada de conotação positiva – particularmente após o fracasso de suas alternativas em escala mundial – que, ademais, teria apenas um sentido vago para eles. Os céticos sugerem também que, devido à difusão internacional das imagens positivas do regime democrático após os acontecimentos que culminaram com a queda do Muro de Berlim, no final dos anos 80, a atual adesão do público de massas à democracia representativa, sob crescente influência dos meios massivos de comunicação, pode estar traduzindo, mais do que a aceitação de valores políticos, o desejo das pessoas comuns de conquistarem os níveis de renda e de consumo usualmente associados com a realidade das democracias ocidentais. Por outras palavras, mais do que expressar a escolha pelos princípios de um regime político específico, a preferência majoritária pela democracia seria, de fato, uma função de escolhas de outra natureza (SCHAFFER, 1998; BAVISKAR E MALONE, 2004; SCHEDLER E SARSFIELD, 2004; DALTON, SHIN E JOU, 2007). As implicações deste cenário, caso a realidade empírica viesse a confirmar essas previsões, são bem conhecidas: elas apontariam para a possibilidade de formação de uma democracia sem democratas que, a exemplo da República de Weimar, na Alemanha entre 1919 e 1933 (GAY, 1978), poderia colocar em risco os novos regimes na eventualidade deles enfrentarem crises econômicas e sociais (déficits fiscais, quedas de investimento, inflação, desemprego, migrações em massa, etc.), às quais os governos e as lideranças políticas do dia não fossem capazes de responder com a eficiência e a agilidade necessárias. Assim, mesmo tendo em conta que as experiências dos últimos trinta anos de mudanças de regime político mostraram alguns países como Argentina, Brasil e Espanha avançando o processo de sua democratização a despeito das crises econômicas e sociais enfrentadas na fase final da transição, a hipótese anterior envolve um dilema político e uma exigência de conhecimento: sem menosprezar o que já sabemos a respeito, é preciso avançar mais na análise dos conteúdos atribuídos pelos cidadãos comuns ao conceito de democracia nos novos sistemas políticos surgidos da terceira onda de democratização mundial. Como os 4 entrevistados de pesquisas de opinião definem o conceito de democracia? Essa definição permite distinguir a democracia de outros regimes políticos? E no caso de países como o Brasil, cujas estruturas econômicas e sociais são caracterizadas por profundas desigualdades, os indivíduos consultados pelas pesquisas expressam preferência por conteúdos relacionados com suas carências materiais em detrimento de definições relativas aos valores e aos procedimentos típicos da democracia? Este trabalho procura responder a algumas dessas indagações com base na análise de dados de quatro pesquisas nacionais de opinião e atitudes dirigidas pelo autor entre 1989 e 20064. A análise é exploratória e o estudo examina o significado do conceito de democracia para as pessoas comuns a partir da pergunta aberta "Para você, o que é democracia?", incluída em quatro surveys realizados em um espaço de 17 anos. A codificação das respostas foi feita com o objetivo de elucidar os significados mais importantes do conceito, ou seja, se eles são relativos à dimensão de procedimentos, de princípios e liberdades ou de conteúdos substantivos, de modo a permitir avançar o nosso conhecimento sobre a crescente adesão dos brasileiros ao regime democrático. A análise empírica mais extensa utilizou os dados do survey de 2006, começando pela descrição de freqüências e, em seguida, pela análise fatorial de variáveis que, em tese, poderiam estar associadas com as respostas à pergunta aberta mencionada. Por último são apresentados os resultados de uma análise de regressão logística com a variável construída com base nas respostas dos entrevistados que souberam definir o que é a democracia. O objetivo, neste caso, era entender os determinantes das respostas. Os resultados mostram que os brasileiros associam a democracia majoritariamente com uma noção normativa fundamental, relativa às liberdades, mas, também, com os procedimentos desse regime. Embora também citado nas entrevistas, o conteúdo relativo à dimensão social ou à substantivação da democracia tem surpreendentemente pouco peso no conjunto das amostras. Ou seja, desde que a democracia está vigente no país, a partir de 1988, os brasileiros confirmaram a sua adesão à democracia em termos que se referem, ao mesmo tempo, às liberdades fundamentais e aos procedimentos institucionais, 4 As pesquisas “Democratização e Cultura Política”, realizadas em 1989 (setembro e dezembro), 1990 (março) e 1993 (março), foram elaboradas e dirigidas por José Álvaro Moisés, e realizadas com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico – CNPq e Fundação Ford, tendo contado, em alguns casos, com a parceria do Datafolha. Os bancos de dados correspondentes podem ser obtidos por solicitação ao autor ou ao Centro de Estudos de Opinião Pública – CESOP, onde estão depositados para uso público. A pesquisa “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas”, realizada em 2006 (junho), é dirigida por José Álvaro Moisés e Rachel Meneguello (UNICAMP), com apoio da FAPESP e do CNPq. Dados da pesquisa “Cultura Política e Cidadania”, da Fundação Perseu Abramo, realizada em 1997, também são utilizados neste estudo, assim como dos surveys ESEB, de 2002 e 2006, coordenados por Rachel Meneguello, do CESOP. 5 combinando, portanto, uma idéia normativa ligada aos princípios democráticos com outra de natureza prática, relativa ao desempenho das instituições. As duas dimensões são importantes e estão relacionadas com a qualidade da democracia que, precisamente, supõe a integração desses fatores (DIAMOND E MORLINO, 2005). SOBRE AS DEFINIÇÕES DE DEMOCRACIA A experiência de pesquisas de opinião e de atitudes políticas mostra que ao serem interrogadas sobre o que pensam do conceito de democracia as pessoas comuns podem mostrar-se com freqüência hesitantes ou mesmo perplexas diante de um estimulo que não é usual em sua vida cotidiana. Em tal situação, não é incomum os entrevistadores obterem como primeira reação afirmações como “Eu não sei bem, preciso pensar mais...”, para depois ouvirem um comentário complementar como “Eu acho que é uma coisa importante...” ou “Acho que precisamos dela...”, recebendo respostas tópicas ou incompletas. Em sentido semelhante, Dalton, Shin e Jou (2007) lembraram, recentemente, em um texto dedicado ao exame do “entendimento da democracia em lugares improváveis”, que em 1989 um estudante chinês que participava das famosas manifestações anti-autoritárias na praça de Tiananmen portava um cartaz com a mensagem: “Eu não sei o que significa democracia, mas sei que precisamos dela”. Que implicações têm essas observações? Ambas apontam para duas questões importantes para a pesquisa do tema. Em primeiro lugar, elas mostram as dificuldades que uma parte das pessoas comuns enfrenta ao serem colocadas diante da solicitação de definir um conceito complexo como o de democracia: afora as que se sentem à vontade para responder por conta de sua instrução educacional e/ou de sua experiência, muitas hesitam, mencionam aspectos parciais, respondem equivocadamente ou simplesmente não sabem responder. O problema não diz respeito apenas aos cidadãos de nações pobres ou em desenvolvimento, que estabeleceram o regime democrático nas últimas décadas, mas também aos habitantes de nações ricas ou mais desenvolvidas, onde a experiência democrática é longeva e está consolidada há décadas ou séculos. A literatura sobre a sofisticação e o conhecimento político dos públicos de massa mostrou, já algum tempo, que as pessoas comuns podem ser limitadas em sua compreensão do mundo da política por fatores como o seu insuficiente interesse por ela, a pouca centralidade atribuída às diferentes dimensões do sistema político e, principalmente, os seus níveis insuficientes de escolarização ou de educação formal (NEUMAN, 1986). Mesmo em países como os Estados Unidos, Inglaterra ou Alemanha verificou-se a existência de porções importantes do público que, não obstante serem favoráveis ao regime democrático e terem idéias sobre ele, têm 6 dificuldades para defini-lo em termos precisos. Nada disso desqualifica as convicções e percepções dos entrevistados, quaisquer que sejam elas, mas sugere que talvez não seja o caso de esperar, por exemplo, que nos países latino-americanos, da mesma forma que na Rússia, na Ucrânia, no Afeganistão ou na África do Sul - onde os níveis de desigualdades econômicas e sociais afetam o acesso à educação de importantes contingentes de suas populações e, em conseqüência, também a sua cognição política -, sejam encontradas uma maioria de respostas com graus elevados de elaboração ou de complexidade para a indagação “O que é democracia?”. Uma hipótese aparentemente mais realista, neste caso, recomendaria esperar que contingentes minoritários dotados de níveis mais altos de escolarização sejam capazes de responder à pergunta, mas não necessariamente a maioria dos entrevistados; mas essa alternativa desconsidera tanto os efeitos negativos da experiência autoritária para mudar as convicções das pessoas, como a influência de mudanças culturais provocadas por processos de modernização econômica e social (SOARES, 1973; MOISÉS, 1995; INGLEHART E WELZEL, 2005). Em conseqüência, uma das questões relevantes de pesquisa consiste em saber como respondem os diferentes segmentos do público que passaram por essas experiências, qual a variância das respostas e qual a relação delas com o funcionamento do regime. Ou seja, além de fatores contingenciais – como a difusão internacional da democracia ou sua associação com o êxito econômico de governos do dia -, outras variáveis de efeito mais duradouro também precisar ser levadas em conta na análise do tema. Seu exame precisa levar em conta a sua multidimensionalidade. Outra questão importante refere-se ao fato de a democracia ter diferentes significados que podem ser expressos diferentemente pelos diferentes segmentos dos públicos de massa. Em si mesmo, o conceito de democracia envolve diferentes conteúdos, formulados e articulados no longo processo histórico de sua formação, os quais resultaram na variedade de significações que ele tem hoje, mas, como é evidente, eles não se opõem ou se anulam. Não é tão simples, então, mesmo para os segmentos mais escolarizados, oferecer de pronto uma definição capaz de sintetizar as diversas significações que o conceito adquiriu ao longo de séculos de desenvolvimento da tradição democrática. Embora pesquisas anteriores tenham, às vezes, sugerido que existe um sentido comum na compreensão geral do termo pelo público, estudos recentes envolvendo países que se democratizaram nas últimas décadas mostraram que as compreensões do conceito de democracia variam bastante entre as nações e entre os seus públicos, sem envolver um padrão único ou completamente definido (BRATTON, MATTES E GYIMAH-BOADI, 2004; CAMP, 2001). Isso também não desqualifica as respostas, mas significa que uma hipótese 7 realista levaria a esperar, ao invés de uma resposta sintética dos entrevistados, capaz de integrar as diferentes dimensões do conceito, menções desagregadas com diferentes significações, traduzindo visões distintas do público a respeito do regime democrático. Além disso, qualquer que seja o percentual de entrevistados capazes de oferecer essas visões, a segunda questão relevante do estudo consiste em saber que fatores estão associados às suas respostas, e quais aspectos do desempenho do regime eles reforçam ou fragilizam. Na literatura acadêmica, o significado mais usual da democracia se refere aos procedimentos e aos mecanismos competitivos de escolha de governos através de eleições, mas existem outras perspectivas que ampliam a compreensão do conceito, incluindo tanto as dimensões que se referem aos conteúdos da democracia, como também os seus resultados práticos esperados no terreno da economia e da sociedade. Por uma parte, acompanhando a abordagem minimalista de Schumpeter (1950) e a procedimentalista de Dahl (1971), vários autores definiram a democracia em termos de competição, participação e contestação pacífica do poder. Assim, o estabelecimento de um regime democrático implicaria basicamente em condições mínimas como: 1) direito dos cidadãos escolherem governos por meio de eleições com a participação de todos os membros adultos da comunidade política; 2) eleições regulares, livres, competitivas, abertas e significativas; 3) garantia de direitos de expressão, reunião e organização, em especial, de partidos políticos para competir pelo poder; e 4) acesso a fontes alternativas de informação sobre a ação de governos e a política em geral. Essa definição deixa claro que qualquer sistema político que não se baseie em processos competitivos de escolha de autoridades públicas, capazes de torná-las dependentes do voto da massa de cidadãos, isto é, do mecanismo por excelência de accountability vertical, não pode ser definido como uma democracia. Mas a ênfase minimalista de Schumpeter e de seus seguidores é vulnerável ao que outros autores classificaram como uma “falácia eleitoralista”, isto é, a tendência de se privilegiar as eleições sobre outras dimensões da democracia (KARL, 2000). De fato, ao definir a democracia essencialmente como um método de escolha de governos dentre as elites que competem pela posição, essa perspectiva desconsidera o fato de que mesmo nações que adotam o mecanismo eleitoral podem conviver com a realização de eleições que não são inteiramente livres, tornando discutíveis os seus resultados. Além disso, a vertente minimalista dá pouca importância ao que acontece com as demais instituições durante a democratização. Instituições como o parlamento, os partidos, o judiciário ou a polícia podem funcionar de forma deficitária ou incompatível com a doutrina da separação 8 de poderes, mesmo convivendo com um regime de regras eleitorais. Exemplos recentes são os casos da Rússia, do Paquistão e, no contexto latino-americano, do Peru sob Fujimori, da Bolívia e do Equador na fase de decisão sobre as suas novas constituições, e da Venezuela sob os governos de Chávez. Em vista de limitações desse tipo, Dahl (1971) ampliou e completou a definição da democracia com sua abordagem das poliarquias, mostrando que para que o princípio de contestação do poder esteja assegurado é também indispensável que condições específicas assegurem a participação dos cidadãos na escolha de governos e, inclusive, a possibilidade de eles próprios serem escolhidos para formá-los; outra característica central da democracia, segundo o autor, é a exigência de responsabilização de governos e lideranças políticas diante dos cidadãos. Essas condições implicam em garantias relativas ao direito de organização e representação da sociedade civil, em especial, em partidos políticos, por intermédio do que a pluralidade de concepções e interesses que constituem a sociedade pode se expressar e se realizar. Mas elas implicam também na tradição do que se designou como constitucionalismo, isto é, a necessidade de que princípios internalizados em instituições – como mecanismos de pesos e contrapesos – sejam garantidos por uma constituição aceita como legítima pela sociedade, isto é, pela dimensão jurídico-legal que envolve valores compartilhados pela maioria dos membros da comunidade política. Embora essa visão faça referência a alguns conteúdos da democracia, é evidente que a sua ênfase mais importante são os procedimentos democráticos, cujo funcionamento depende da existência e do desempenho adequado de instituições específicas da democracia. Uma perspectiva concorrente (e complementar) com as anteriores define a democracia em termos da sua qualidade, tornando explícito o foco nos conteúdos do regime democrático. Utilizando-se de uma analogia com o funcionamento do mercado, o conceito refere-se à qualidade do produto ou serviço produzido segundo procedimentos, conteúdos e resultados singulares. A qualidade envolve processos controlados por métodos e timing precisos, capazes de atribuir características específicas ao produto ou serviço, de modo a satisfazer as expectativas de seus consumidores potenciais. No caso da democracia, espera-se que esse regime seja capaz de satisfazer as expectativas dos cidadãos quanto à missão que eles atribuem aos governos (qualidade de resultados); confia-se que ele assegurará aos cidadãos e às suas associações o gozo de amplas liberdades e de igualdade políticas necessárias para que possam alcançar suas aspirações ou interesses (qualidade de conteúdo); e conta-se que suas instituições permitirão, por meio de eleições e de mecanismos de checks and balances, que os cidadãos avaliem e julguem o desempenho de governos e de representantes (qualidade de procedimentos). 9 Instituições e procedimentos são vistos, neste caso, como meios de realização de princípios, conteúdos e resultados esperados pela sociedade do processo político que envolve a governança democrática. Com base nos pressupostos anteriores, Diamond e Morlino (2004) identificaram oito dimensões segundo as quais a qualidade da democracia pode variar. As cinco primeiras correspondem a regras de procedimentos, embora também sejam relativas ao seu conteúdo: o primado da lei, a participação e a competição políticas, e as modalidades de accountability (vertical, social e horizontal); as duas seguintes são essencialmente substantivas: de um lado, o respeito por liberdades civis e os direitos políticos e, de outro, como conseqüência do anterior, a progressiva implementação da igualdade política e de seus correlatos, como a igualdade social e econômica; por último, é mencionado um atributo que integra procedimentos a conteúdos, ou seja, a responsividade de governos e dos representantes, por meio do que os cidadãos podem avaliar e julgar se as políticas públicas, assim como o funcionamento prático do regime (leis, instituições, procedimentos e estrutura de gastos públicos) correspondem aos seus interesses e preferências. Embora esta perspectiva defina a democracia fundamentalmente em termos dos seus princípios e conteúdos mais importantes, fica claro que ela integra procedimentos institucionais e conteúdos, sem deixar de se referir aos resultados práticos do regime por meio do pressuposto de que a igualdade social e econômica pode ser alcançada se e quando a igualdade política seja efetiva. Não obstante essas definições que focalizam procedimentos, princípios e conteúdos da democracia, uma terceira abordagem enfoca primordialmente a dimensão social do regime democrático, enfatizando a contraposição entre a sua substância e a sua formalidade, segundo a argumentação de autores que analisaram o processo de democratização de países pobres ou em vias de desenvolvimento. Ou seja, em acréscimo às noções que fazem referência aos direitos civis e políticos, as definições inspiradas nas tradições social-democrata, socialista e comunista européias tendem a incluir direitos sociais como serviços de saúde, educação, habitação, etc. na formulação do conceito; baseada na crítica marxista da estrutura assimétrica da sociedade de classes, essa perspectiva argumenta que, a menos que os membros da comunidade política tenham condições suficientes para atender às suas necessidades básicas de sobrevivência e expressão, os princípios de liberdade, igualdade e participação política são destituídos de significação para eles (HUBER, RUESCHEMEYER AND STEPHENS, 1997). Por outro lado, Dalton, Shin e Jou (2007) observaram que a dimensão substantiva da democracia é enfatizada também pela perspectiva que tende a ver o apoio do público de massas ao 10 regime democrático como uma conseqüência da demanda por níveis de vida identificados com aqueles vigentes nas sociedades industriais avançadas, cuja riqueza e afluência são associadas com a experiência da democracia consolidada e estável. A idéia é que as respostas positivas a respeito da democracia pressupõem que, junto com a instalação do regime, vem o advento de níveis elevados de renda e de consumo. Neste caso, longe de considerações sobre os procedimentos institucionais ou os princípios fundamentais do sistema democrático, as percepções do público estariam conformadas por uma perspectiva essencialmente instrumental da democracia. É evidente que ao responder espontaneamente aos pesquisadores, os públicos de massas podem dar outras respostas às perguntas sobre a democracia, mas as perspectivas mencionadas acima, além de ser parte constitutiva do debate público contemporâneo, referem-se a escolhas substantivas que aparecem nos resultados de diferentes pesquisas internacionais sobre o assunto. Nesse sentido, as três abordagens mencionadas oferecem um enquadramento analítico útil para o exame dos níveis de apoio dos cidadãos ao regime democrático, mesmo a correspondência entre essas abordagens e as respostas dos entrevistados não sendo mecânica. Cada alternativa tem, de fato, implicações diferentes para a interpretação do apoio da opinião pública aos regimes resultantes dos processos de democratização das últimas três décadas. Por isso, neste estudo, considerou-se que elas oferecem uma base útil para a análise dos dados empíricos. OPINIÕES E ATITUDES SOBRE A DEMOCRACIA Na tradição brasileira de estudos de cultura política, as opiniões e as atitudes quanto ao regime democrático têm sido medidas preferencialmente por estímulos nominais diretos, isto é, por perguntas fechadas ou estruturadas que mencionam a palavra democracia. A alternativa mais comum usada no país (MOISÉS, 1995; MENEGUELLO, 2007) é a utilizada também na Europa e na América Latina (neste caso, pelo Consórcio Latinobarometro), e leva em conta a memória do público dos regimes autoritário e democrático com o objetivo de captar, ao mesmo tempo, a escolha por um deles ou a indiferença dos entrevistados diante de alternativas que se referem a diferentes experiências históricas e legados político-culturais. É um teste, portanto, de envolvimento político e de preferência entre alternativas políticas antitéticas. A formulação usual da pergunta é a seguinte: 11 “Com qual dessas três afirmações você concorda mais? - A democracia é sempre melhor do que qualquer outra forma de governo; - Em certas circunstâncias, é melhor uma ditadura do que um regime democrático; - Tanto faz se o governo é uma democracia ou uma ditadura”. Os dados da Tabela 2 abaixo apresentam os resultados para os anos em que a pergunta foi incluída nas pesquisas relatadas. Dois aspectos mais importantes sobressaem desses resultados desde logo: por um lado, fica claro que em um período de quase 20 anos de experiência com o novo regime, independentemente de algumas oscilações, a preferência pela democracia cresceu aproximadamente 28 pontos, ultrapassando a marca de 2/3 do público, mesmo se se considerar que os resultados do survey de dezembro de 2006 foram provavelmente influenciados pela mobilização política das eleições presidenciais; de fato, observando-se os resultados do survey de junho de 2006, quando a campanha eleitoral ainda não havia mobilizado a opinião pública, a diferença a favor da preferência pela democracia em relação à pesquisa de 1989 é de 21 pontos, totalizando cerca de 2/3 dos entrevistados; em dezembro, no entanto, a diferença chegou perto de 30 pontos. O segundo aspecto a se ter em conta é mais relevante: o crescimento da preferência pela alternativa democrática ao longo do tempo se dá às expensas, principalmente, da opção de indiferença quanto ao regime político e de diminuição do contingente dos que não souberam ou preferiram não responder à pergunta: no primeiro caso, a escolha da alternativa “Tanto faz a democracia ou a ditadura” diminui mais de três vezes, enquanto no segundo, os que antes não tinham condições de responder caem pela metade. Por outras palavras, embora o percentual dos que preferem o autoritarismo tenha se mantido em torno de 15% por todo o período, na resposta ao estimulo nominal direto a maioria absoluta dos brasileiros escolheu a democracia. A se levar em conta as teorias originárias de cultura política (ALMOND E VERBA, 1965), este fato seria indicador de que no Brasil as estruturas do regime democrático tornaram-se, no período considerado, congruentes com os valores e as orientações majoritárias na sociedade. Mas pesquisas anteriores do autor deste capítulo mostraram que a cultura política dos brasileiros começou a se transformar mesmo antes da mudança do regime político, sob influência de fatores econômicos, sociais, políticos e culturais: a modernização da sociedade, sob impulso do crescimento econômico dos anos 60 e início dos 70, a experiência 12 Tabela 2. Preferência por Regime Político no Brasil 1989 – 2006 (%) 1989[1] 1990[2] 1993[3] 1997[4] 2006 [5] Democracia Ditadura Indiferença NS/NR 43,6 19,4 21,3 15,7 54,7 16,7 17,1 11,5 57,9 13,7 13,7 14,7 56,1 12,3 16,9 14,7 64,8 13,5 16,9 4,8 2006 [6] 71,4 14,2 6,9 7,6 Fonte: 1, 2 e 3: Pesquisas “Democratização e Cultura Política ”; 4: Pesquisa “Cultura Política e Cidadania” (Fund. Perseu Abramo); 5: Pesquisa “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas”; 6: Pesquisa “Estudo Eleitoral Brasileiro – ESEB” 2006. generalizada de terror do Estado e a sobrevivência contraditória de um sistema eleitoral semi-competitivo durante todo o regime autoritário (MOISÉS, 1995). Autores como Inglehart e Welzel (2005) sustentam que a cultura política tem grande capacidade de duração no tempo, mas admitem que ela se transforma sob o impacto dos efeitos da modernização e do próprio processo político. Para eles, o fator determinante de mudança das convicções políticas está associado com a emergência de valores pós-materialistas; no entanto, os processos de democratização do Brasil e de outros países latino-americanos, do mesmo modo que de africanos, apontam para uma direção diferente: mesmo nações que não se modernizaram ou que conheceram processos incompletos de modernização – como é o caso de vários países latino-americanos - passaram pela mudança dos valores políticos de seus cidadãos antes e/ou durante os processos de transição e consolidação políticas. A mobilização e a politização da sociedade civil jogaram papel importante para isso. Ou seja, a cultura política foi um fator importante, mesmo que isso não tenha significado a emergência generalizada de valores pós-materialistas, indicando assim que ela muda ao longo do tempo sob efeito de condições que envolvem transformações econômicas e sociais e mobilização da sociedade. Alguns autores argumentam, no entanto, que pesquisas realizadas com perguntas diretas sobre a democracia podem não revelar as efetivas opiniões e atitudes dos entrevistados que, em face da crescente difusão mundial de valores democráticos que se seguiu à queda do Muro de Berlim através da propaganda e dos meios de comunicação de massa, tenderiam a responder positivamente à indagação sobre a preferência por regimes políticos5. Por causa das implicações metodológicas desses argumentos, as pesquisas 5 Em sentido semelhante, Porto, em um artigo de 2000, argumentou que o uso da pergunta mencionada acima produziria resultados espúrios, pois “pois as pessoas teriam que optar entre dois extremos: democracia ou ditadura”, e a preferência pela primeira alternativa expressaria a adesão pelo lado “correto” da vida. Ele 13 mencionadas incluíram nos questionários, em ordem de apresentação destinada a evitar a influência de uma questão sobre a outra, estímulos relativos a atitudes antidemocráticas sem fazer menção direta ao termo democracia, de modo a permitir que convicções diferentes da formulação nominal direta viessem à tona. Os resultados dessas perguntas são comparados no gráfico 1 abaixo com os índices de adesão nominal à democracia. Todos os indicadores crescem ao longo do tempo, mas a rejeição à volta dos militares ao poder, assim como o apoio a um sistema de partido único são significativos. Apesar disso, registrou-se um leve declínio de ambas as tendências em 1993, imediatamente após a grave crise política que resultou no impeachment do ex-presidente Collor de Mello; isso poderia indicar uma restrição quanto à efetividade da adesão à democracia ou mesmo uma atenuação da memória crítica em relação ao período do autoritarismo, mas na pesquisa daquele ano a preferência pelo regime democrático cresceu levemente, indicando que, mesmo divididos em face de uma situação crítica para o novo regime, os brasileiros confirmaram a sua escolha democrática anterior à crise. Ainda com o objetivo de testar a efetividade da adesão à democracia, foram incluídas nos surveys perguntas sobre a concordância dos entrevistados quanto a ações que o Estado poderia adotar em face de conflitos sociais e políticos típicos das sociedades desconsiderou, no entanto, o fato de a pergunta oferecer uma terceira alternativa, “Tanto faz se o governo é uma democracia ou uma ditadura”, além de os entrevistados poderem dizer que não sabiam ou não queriam responder. Por outro lado, em contradição com a sua crítica de 2000, o próprio Porto se baseou na mesma pergunta, em um texto de 2004, para discutir o grau de apoio difuso à democracia em 17 países latino-americanos com base em dados do Latinobarometro (Porto, 2000; 2004). 14 complexas e desiguais. As perguntas abordaram ações adotadas por governos militares ou não envolvendo a quebra da legalidade democrática. A idéia foi oferecer um estímulo antitético capaz de oferecer parâmetros para avaliação da consistência das convicções reveladas pelas respostas aos estímulos nominais diretos. Os dados da Tabela 3 revelam que para cinco alternativas apresentadas sem menção à palavra democracia, a maioria dos entrevistados rejeitou a possibilidade de os governos adotarem ações antidemocráticas, embora, no caso de conflito entre trabalhadores e empresários, a aceitação de proibição do direito de greve tenha passado de 32 para 50% em 17 anos. Nos outros casos, apenas ¼ ou menos dos entrevistados concordaram que o governo pode intervir em sindicatos, proibir a existência de algum partido político, censurar os meios de comunicação ou fechar o Congresso Nacional, confirmando a predominância das orientações democráticas sobre as autoritárias. Ainda que os patamares sejam ligeiramente superiores aos índices de indicadores diretos de preferência por um regime autoritário, a tendência geral segue o sentido esperado. Duas observações, no entanto, são necessárias: quanto ao direito de greve, é provável que a diminuição da rejeição dos democratas em autorizar os governos a adotarem medidas que proíbam os movimentos grevistas, mais do que uma recusa do direito em si, esteja ligada à percepção dos efeitos do aumento do número de greves semilegais que afetaram serviços públicos fundamentais ao longo das últimas décadas. De fato, ainda que o direito de greve seja garantido pela Constituição de 1988, do mesmo modo como ocorreu após a constituinte de 1946, o seu exercício não foi regulamentado pelo Congresso Nacional, deixando em aberto a possibilidade de que profissionais dos serviços públicos de saúde, educação, segurança e previdência social, para não falar de bancos e outros serviços públicos, paralisem as suas atividades a qualquer tempo, mesmo contrariando determinações da Justiça do Trabalho e, assim, prejudicando o atendimento à população. Nessas circunstâncias, a aceitação da alternativa que autoriza em tese os governos a agirem contra os movimentos grevistas pode expressar uma demanda por regulação das condições de ocorrência do conflito no sistema democrático. A segunda observação é sobre o fato de que, ao longo dos quase vinte anos considerados, para quase todas as alternativas propostas a porcentagem dos que disseram que não sabiam ou não queriam responder diminuiu, indicando outra vez que o crescimento da rejeição de ações antidemocráticas se deu às expensas dessas categorias de respostas. Ou seja, ao longo do tempo, um contingente importante de respondentes que não sabia ou não queria se pronunciar sobre o papel do Estado quanto a importantes questões que afetam os direitos dos cidadãos tornou-se capaz de definir a sua preferência. 15 TABELA 3. Ações que o Governo poderia tomar em Situações de Conflito Social e Político 1989/2002 (em %) TIPOS DE AÇÕES Set. 1989 (1) Dez. 1989 (2) 1990 (3) 1993 (4) 1997 (5) Sim 32,5 33,3 26,5 28,3 28,6 Não 55,1 50,8 60,8 67,5 64,5 Proibir greves NS/NR 12,5 15,9 12,7 4,1 6,9 Sim 28,2 27,0 25,5 26,0 Não 57,7 50,4 65,3 59,5 Intervir em sindicatos NS/NR 14,0 22,6 9,1 14,4 Sim 19,5 17,5 24,5 18,2 69,5 67,9 67,3 69,1 Proibir a existência de Não algum partido NS/NR 11,0 14,6 8,1 12,8 Sim 23,4 19,3 24,6 Não 64,8 64,9 68,3 Censurar os meios de comunicação NS/NR 11,8 15,8 7,0 Sim 15,5 11,6 21,9 17,3 Não 68,6 70,3 66,4 64,0 Fechar o Congresso Nacional NS/NR 15,9 18,0 11,6 18,8 Fonte: (1),(2), (3), (4): Cultura Política e Democratização; (5): Fund. Perseu Abramo; (6): Eseb 2002 (6) 49,7 47,3 2,9 24,6 67,3 8,0 - A efetividade da adesão à democracia também transparece de outro tipo de dados: dois dos surveys realizados no período considerado incluíram questões fechadas que estimulavam os entrevistados a dizer a que princípios, direitos e valores eles associavam a noção de democracia. A idéia, neste caso, foi testar com a menção de elementos conceituais mais estruturados a percepção do público quanto a diferentes dimensões do regime democrático. Os dados da Tabela 4 chamam a atenção para alguns aspectos importantes: em primeiro lugar, nas duas pesquisas - separadas por um período de 13 anos – todas as porcentagens de respostas “tem muito a ver” e “tem a ver” para os conteúdos da democracia cresceram entre 7 e 32 pontos, com exceção daquele que associa a democracia com a igualdade de direitos para as mulheres, que teve 1,5% a menos na segunda pesquisa; por outro lado, nos dois anos os conteúdos mais associados com a democracia foram o direito de escolher governos através de eleições, as liberdades de organização e de expressão e a idéia de que cabe aos governos atender às necessidades de emprego, saúde, educação, etc. Com efeito, entre 1993 e 2006, as alternativas que mais cresceram na preferência estimulada dos respondentes foram as relativas às liberdades em questões morais e sexuais (31,9% a mais), o combate à corrupção e ao tráfico de influência nos governos (31,5% a mais), o princípio de igualdade social (26,1% a mais), a idéia de que os governos devem ser fiscalizados pelo Congresso Nacional e pelo poder judiciário (24,5% a 16 mais) e o primado da lei (21,3%). Todas essas alternativas estão relacionadas com a perspectiva da qualidade da democracia, referindo-se ao primado da lei, aos princípios de liberdade e igualdade, e aos procedimentos destinados a tornar efetiva a responsabilização dos governos. Ou seja, os indicadores mostram como os cidadãos conceituam o regime democrático quando são estimulados a fazer isso. Nos treze anos entre uma pesquisa e outra, os porcentuais dos que não sabiam ou não queriam responder às perguntas diminuíram entre 6 e 11%, tendo caído mais para os que identificaram a democracia com o combate à corrupção e ao tráfico de influência (10,8%). Mesmo admitindo-se que a crise do mensalão, entre 2005 e 2006, tenha influenciado as respostas sobre esse aspecto, não se pode desconsiderar o fato de que já em 1993 50% dos respondentes identificavam a democracia com o combate a práticas políticas contra o patrimônio público; ou seja, esses elementos formam as visões do público a respeito do regime. Controlar a corrupção é uma função dos mecanismos de accountability que, por sua vez, são centrais para o conceito de qualidade da democracia. Tabela 4 . Conteúdos Associados com a Democracia (resposta estimulada): 1993 e 2006 (%) Você acha que a democracia tem a ver com: Direito de escolher o governo através de eleições Liberdades políticas de organização e expressão (sind., movimentos, etc.) Igualdade social Igualdade perante a lei Fiscalização do governo p/ Congresso e Tribunais de Justiça Menos corrupção e tráfico de influência Governo como provedor de saúde, emprego, educação, etc Igualdade de direitos p/ as mulheres Liberdade em questões morais e sexuais 1993 (1) Muito a ver Tem a ver Pouco a ver Não tem a ver NS/ NR 2006 (2) Muito Tem a ver a ver Pouco a ver Não tem a ver NS/ NR 57,1 21,3 8,1 5,2 8,3 57,6 31,9 3,7 4,9 1,9 44,8 20,5 15,4 6,7 12,5 48,2 35,1 7,3 5,9 3,5 36,7 41,9 18,7 18,4 19,1 16,1 12,8 12,2 12,6 11,4 50,8 51,9 30,7 29,7 8,4 8,6 7,0 6,8 3 2,9 35,6 16,9 21,2 11,4 14,9 45 32 10,6 7,8 4,6 35,3 14,5 15,9 19,3 15,0 40,3 31,2 10,5 13,8 4,2 49,1 20,1 13,4 7,5 9,9 55,6 32,3 5,3 4,4 2,3 47,6 20,4 14,7 7,3 10,1 54 32,5 6,2 4,8 2,5 33,9 15,9 17,5 18,3 14,5 44,3 33,4 9,4 8,5 4,4 Fonte: (1) Cultura Política e Democratização; (2) A Desconfiança das Instituições Democráticas 17 A DEMOCRACIA NAS PALAVRAS DOS BRASILEIROS Em que pesem os resultados apresentados acima, a validade de pesquisas que se referem diretamente ao conceito de democracia continua sendo objeto de controvérsia. Em vista disso, com o objetivo de oferecer uma nova alternativa para o exame da questão, o estudo voltou-se para os significados atribuídos pelos brasileiros à democracia em suas próprias palavras, ou seja, analisou as respostas à pergunta aberta sobre o assunto incluída nos questionários aplicados no período. A vantagem do uso de perguntas abertas em pesquisas de opinião é conhecida: elas solicitam e garantem, ao mesmo tempo, que os respondentes definam conceitos, categorias e situações de vida em seus próprios termos, ou seja, mobilizando a sua familiaridade e o seu repertório verbal a respeito do assunto com base em sua experiência e cognição políticas. Trata-se de um teste rigoroso de captação da opinião dos entrevistados que é complementar e confirmatório da metodologia usual baseada em perguntas fechadas ou estruturadas sobre termos como democracia e outros. Ambos os procedimentos de mensuração foram utilizados neste estudo. No caso das respostas à pergunta aberta sobre o significado da democracia, elas foram codificadas de modo a contemplar as três perspectivas discutidas em seções anteriores, ou seja, princípios/liberdades, procedimentos/instituições e dimensão social e, na prática, o procedimento mostrou que elas incluíam a maior parte das respostas dadas, para alem das inconsistentes. Princípios e liberdades incluem, neste caso, menções a liberdades políticas, liberdade de organização e de expressão, liberdade de participação, direito de ir e vir e outros correlatos; procedimentos e instituições incluem menções a governo do povo, direito de voto, eleições livres, direito de escolher governo, regra de maioria, representação política, acesso à justiça e fiscalização e controle de governos; dimensão social inclui igualdade social, acesso a serviços de saúde, educação, habitação, emprego, salários justos e desenvolvimento econômico; e, finalmente, as respostas inconsistentes envolveram menções como “a democracia é boa”, “é governo honesto”, “é corrupção”, “é governo de brigas” e semelhantes (vide Anexo 1 com a lista completa de menções). Os resultados da codificação indicada são apresentados no Gráfico 2. 18 Os dados revelam que, entre 1989 e 2006, a maior parte dos brasileiros consultados foi capaz de definir a democracia nos termos discutidos antes; de fato, 54% fizeram isso em 1989, 65% quatro anos mais tarde, 47% em 1997 e quase 71% em 2006; ou seja, entre o primeiro e o último survey a diferença é de quase 18 pontos para mais, em que pese a tendência ter oscilado para baixo em 1997, quando nada menos que 53% dos entrevistados não souberam responder à pergunta ou ofereceram respostas inconsistentes. Em suas respostas espontâneas, mais de 32% definiu a democracia em termos dos princípios de liberdade e direitos correlatos em 2006. O contingente dos que definiram a democracia assim era superior a 40% no início do período, provavelmente refletindo a percepção de falta de liberdade durante o regime militar, mas nos anos seguintes a taxa se estabilizou em cerca de 1/3 do público pesquisado. Os dados também mostram que um contingente de entrevistados quase igual ao anterior definiu a democracia em termos de procedimentos e instituições na última pesquisa, chamando a atenção ainda o fato de que, embora essa escolha oscile ao longo do período, ela cresce no último ano considerado, totalizando cerca 30% do público que, a esta altura, tinha passado por vários anos de experiência com o funcionamento relativamente estável das instituições democráticas. Surpreendentemente, no entanto, levando-se em consideração o peso das 19 desigualdades sociais e econômicas para a maior parte da população brasileira, a alternativa que recebeu a menor taxa de preferência dos entrevistados nas quatro pesquisas é a que se refere à dimensão social; assim, ao final do período analisado, quando a taxa alcança o seu patamar mais elevado, apenas 8 em cada 100 brasileiros definiram a democracia em termos de objetivos substantivos, o que coloca em questão a hipótese segundo a qual as pessoas comuns preferem a democracia porque identificam esse regime apenas com o atendimentos de suas necessidades sociais; em realidade, as análises relatada a seguir mostram que, sem descartar completamente esses objetivos, os indivíduos definem preferencialmente a democracia em termos de princípios, conteúdos e procedimentos. Outro achado importante desse exame preliminar dos dados é que, somadas as respostas inconsistentes com as dos que não sabem ou não respondem à pergunta, o volume de brasileiros incapazes de definir a democracia diminuiu ao longo do tempo: eles eram cerca de 46% em 1989 e são menos de 30% em 2006. De fato, o número de entrevistados que responde de modo inconsistente cai de 7 em cada 100, em 1989, para menos de 3 em 2006, o que contraria uma observação de Dalton, Shin e Jou (2007) sobre o Brasil em seu artigo sobre o tema6. Por outras palavras, no último ano do período considerado, depois do regime democrático ter completado cerca de duas décadas de existência no país, mais de 70% dos entrevistados brasileiros foi capaz de oferecer respostas consistentes sobre o significado da democracia, uma proporção comparável à encontrada em alguns países de democracia consolidada e em países do Leste Europeu, como o estudo dos autores citados acima indica. Mas a grande novidade dos dados sobre o Brasil está no fato de a maior parte dos indivíduos consultados definirem o regime em termos de dois dos mais importantes componentes do processo democrático, isto é, as liberdades e os procedimentos institucionais criados para defendê-las e para realizar os seus corolários. Isso evidencia que, ao contrário das suposições dos céticos e de parte da literatura, para a maioria dos brasileiros a democracia não é apenas “lip service”, ou seja, a suposta repetição do lado “correto” da vida, mas algo que se refere a aspectos fundamentais da sua experiência política recente. Uma interpretação usual desses resultados baseia-se na premissa de teorias institucionalistas segundo a qual a adesão dos cidadãos à democracia decorre precisamente 6 Dalton, Shin e Jou (2007, p. 7), depois de analisarem a série histórica de dados do Latinobarometro dos últimos dez anos, observaram que a maioria dos brasileiros, em 2001, não foi capaz de dar uma resposta à pergunta sobre a democracia e acrescentaram que, em vários outros países da América Latina, os entrevistados se caracterizam por níveis baixos de consciência democrática. Os dados das minhas pesquisas desconfirmam esse diagnóstico para o Brasil, e uma explicação possível refere-se ao fato de o Latinobarometro não ter usado amostras representativas em todos os anos pesquisados, envolvendo amostras reduzidas ao público das capitais de Estados em algumas pesquisas no Brasil. 20 da sua experiência com esse regime, ou seja, que a sua continuidade no tempo levaria as pessoas comuns a se habituarem às suas vantagens e a aderirem a valores democráticos como princípios, liberdades e seus procedimentos institucionais (RUSTOW, 1970). Outros autores, no entanto, enfatizam o efeito dos valores sobre as instituições em decorrência da modernização das estruturas econômicas e sociais, com implicações para o papel da escolaridade e dos meios de comunicação de massa (INGLEHART E WEZEL, 2005); com efeito, adotando uma perspectiva probabilística em contraposição às abordagens deterministas, esses autores ressaltam a importância da cultura política para explicar o crescimento da preferência pela democracia. Em vista de que o atendimento de ensino fundamental no país ultrapassou a marca dos 95%, nos anos 90, e de que mais de 90% da população brasileira tem acesso à televisão, esses aspectos foram incluídos na análise. A premissa adotada neste trabalho, no entanto, não considera essas alternativas contraditórias, mas complementares como o autor argumentou em outra ocasião (MOISÉS, 2008B). Além disso, pesquisas anteriores mostraram que a percepção da democracia pelo público se desdobra em duas dimensões, uma baseada em valores e ideais, e outra apoiada em sua expressão prática; no primeiro caso, a dimensão da cultura e dos valores políticos é importante; no segundo, o papel das instituições e do seu desempenho é decisivo para definir como os cidadãos percebem o regime (SHIN, 2005; MOISÉS, 2007). Na perspectiva da qualidade da democracia, as duas dimensões são relevantes porque enquanto a primeira se refere aos conteúdos e princípios fundamentais do regime, a segunda diz respeito aos meios através dos quais aqueles conteúdos se tornam efetivos; mas essas dimensões têm expressão e mensuração empíricas distintas. As respostas dos brasileiros às perguntas estruturadas sobre a democracia, assim como à pergunta aberta sugerem que para eles princípios como a liberdade ou os procedimentos democráticos tomados isoladamente são insuficientes para definir o conceito: a democracia significa mais do que essas partes, e este significado está relacionado tanto a aspectos que afetam a capacidade dos indivíduos de controlar a sua própria vida - através do gozo da liberdade -, como os procedimentos através dos quais isso se torna possível pelo desempenho das instituições. Em certo sentido, é como se os brasileiros estivessem sugerindo, em suas próprias palavras, que forma e conteúdo não podem ser separados na consideração sobre o significado da democracia, pois ambos fazem parte do mesmo processo. Os testes de associação relatados na Tabela 5 oferecem uma primeira aproximação com a questão. As associações apresentadas entre a variável formada pelos que souberam responder o que é a democracia - com base na soma dos que mencionaram as dimensões de liberdades, procedimentos e fins sociais - com indicadores sócio- 21 demográficos, de cultura política, confiança interpessoal e institucional, memória política, avaliação do funcionamento do regime e de suas instituições, são as que se mostraram significantes ao nível de 0,01 e 0,05. As variáveis usadas no teste são binárias, a exemplo da preferência pela democracia, cuja escolha é tomada aqui em contraposição a todos os que preferiram outras opções (vide relação completa de variáveis testadas no Anexo 2). Tabela 5 . ASSOCIAÇÃO ENTRE ´SABE O QUE É DEMOCRACIA´ E INDICADORES ATITUDINAIS Variáveis Coef. de contingência Sociodemográficas Renda mensal familiar (baixa - até R$780,00) .086 Idade (acima de 39 anos) .059 Regiões (Sul e Sudeste) .059 Sexo masculino .089 Escolaridade (baixa: analfabetos e até colegial incompleto) .195 Democracia Preferência por regime: democracia .171 Democracia= direito de escolher governo .185 Democracia= liberdades políticas .150 Dem0cracia= igualdade social .135 Democracia= igualdade perante a lei .161 Democracia= fiscalização do governo pelo Congresso .130 Democracia= controle da corrupção e do tráfico de influência .069 Democracia= educação, saúde, emprego, etc. .133 Democracia= fiscalização do governo pelo Ministério Público e Justiça .141 Democracia= igualdade de direitos para as mulheres .105 Democracia= liberdades em questões morais e sexuais .131 Democracia= multipartidarismo .114 Partidos são indispensáveis à democracia .125 Presidente pode tomar decisões sem ouvir o Congresso .075 O país funcionaria melhor se os militares voltassem ao poder .-164 O Brasil seria melhor se existisse apenas um partido político .-155 Só uma ditadura daria jeito no Brasil .-130 Cidadania Votaria mesmo que o voto não fosse obrigatório .133 Existe igualdade perante a lei .058 As leis trabalhistas protegem os cidadãos .065 Entrevistados não compreendem a política .069 Prestam atenção a notícias políticas na TV .149 Têm interesse por política .181 Confiança Confiança interpessoal .062 Avaliação / Satisfação As eleições no Brasil são limpas e honestas .083 Apesar de problemas, democracia é a melhor forma de governo .081 Fonte: Pesquisa “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas” (2006). NB – As variáveis consideradas são binárias, sendo o seu atributo = 1, e o contrário = 0. 22 Os dados indicam que, além da escolaridade, existe associação entre as respostas de quem sabe o que é a democracia e diferentes indicadores atitudinais como preferência pelo regime e aos conteúdos da democracia, valores políticos, interesse por política, participação eleitoral, percepções da cidadania e atenção às informações políticas através da televisão. Vários indicadores de avaliação de desempenho do regime ou de governos incluídos na análise não se mostraram significantes, a exemplo da satisfação com a democracia, avaliação da economia e outros (excluídos da Tabela 5). Os poucos indicadores de avaliação do regime que são significantes apresentaram, no entanto, coeficientes de associação muito baixos. Os resultados sugerem que a opinião dos que sabem o que é a democracia se associa tanto com indicadores de cultura política e valores políticos como de percepção sobre o papel reservado às instituições democráticas. Esses resultados são parcialmente diferentes dos que foram encontrados por Meneguello (2007) em um estudo sobre as bases da adesão democrática no Brasil entre 2002 e 2006, em que a avaliação do governo de Luiz Inácio Lula da Silva e da situação econômica surgiram como fatores explicativos daquela adesão. Alguns testes apresentados a seguir retomam a questão a partir do ângulo adotado neste capítulo. FATORES ASSOCIADOS À DEFINIÇÃO DE DEMOCRACIA Uma análise fatorial da variável formada pelos que souberam responder a pergunta sobre a democracia e de outros indicadores foi feita em seguida (vide Anexo 3 para a relação completa das variáveis incluídas no modelo). O teste serviu para a averiguação do sentido de agregação de variáveis relativas a duas abordagens concorrentes, a institucionalista e a culturalista, a respeito das percepções do público sobre a democracia. 23 Tabela 6. FATORES FORMADORES DAS VISÕES DA DEMOCRACIA NO BRASIL- 2006 Significado de democracia Atenção às notícias sobre política na TV Confia na maioria das pessoas Confia no Poder Judiciário Confia no Congresso Nacional Confia nos Partidos Políticos Confia no Governo Partidos Políticos são necessários ao país Deputados e Senadores são necessários ao país Tribunais de Justiça são necessários ao país Orgulho de ser brasileiro Igualdade perante a lei Os brasileiros cumprem as leis A lei deve ser obedecida sempre Sente-se protegido pelas leis trabalhistas Viveria em outro país Satisfeito com a democracia Democracia pode funcionar sem partidos Democracia pode funcionar sem Congresso Não importa que o governo passe por cima de leis, Congresso e instituições, em situação de crise Prefere a democracia a um líder salvador que não seja controlado pelas leis Em crise, o presidente pode deixar de lado o Congresso e os Partidos Políticos O país funcionaria melhor se os militares voltassem ao poder Só uma ditadura pode dar jeito no Brasil Avaliação positiva do governo Lula Avaliação positiva da situação econômica do país Interessado por política Sente-se próximo aos partidos políticos Os partidos são indispensáveis à democracia Votaria se não fosse Rotated Component Matrix(a) Component 1 2 3 4 5 6 7 ,406 ,681 8 9 10 ,304 ,718 ,794 ,766 ,661 ,812 ,808 ,733 ,746 ,642 ,713 ,388 ,453 -,700 ,540 ,833 ,835 ,782 ,615 ,779 ,842 ,842 ,756 ,715 ,755 ,532 ,394 ,359 24 obrigatório Avaliação positiva do Poder Judiciário Avaliação positiva do Congresso Nacional Avaliação positiva dos Partidos Políticos Avaliação positiva do Governo ,633 ,826 ,779 ,609 Extraction Method: Principal Component Analysis. Rotation Method: Varimax with Kaiser Normalization. Fonte: “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas”, 2006. O modelo incluiu variáveis binárias relativas a valores, conteúdos e instituições da democracia - particularmente, relativas à participação eleitoral e os partidos - e variáveis de avaliação da política, do governo Lula e da economia do país7. Com capacidade de explicação da variância acima de 54%, a matriz resultante formou 10 fatores, o que sugere certa dispersão das categorias analíticas: a) o primeiro fator ficou formado pelas variáveis de confiança em instituições (com peso entre .60 e .70) e confiança interpessoal (neste caso, com um peso bastante mais baixo, de .30); b) o segundo fator agrupou as variáveis de avaliação de instituições como o governo, partidos, congresso e o judiciário (com peso entre .60 e.80); c) o terceiro fator revelou a agregação de variáveis que se referem a instituições consideradas necessárias para que o país siga em frente, como partidos, o congresso e o poder judiciário (com peso variando entre .70 e .80); d) o quarto fator agrupou duas variáveis de avaliação, uma do governo Lula, e outra da economia do país e, além disso, uma variável sobre a submissão à lei e outra sobre a disposição de participação no processo eleitoral (enquanto as duas primeiras tiveram pesos em torno de .70, as duas últimas ficaram em torno de .30); e) o quinto fator foi formado pela variável relativa aos que sabem o que é a democracia e mais as variáveis de exposição à informação política através da televisão, o interesse pela política e proximidade com os partidos políticos (estas, com peso variando entre .50 e .70, enquanto a primeira ficou abaixo de .50); f) o sexto fator agregou duas variáveis sobre a necessidade de partidos e do Congresso para que a democracia possa existir (com peso superior a .80); g) o sétimo fator ficou formado por duas variáveis que expressam orientações autoritárias (com peso superior a .80); h) o oitavo fator agregou outras variáveis relativas à escolha entre o autoritarismo e a democracia (com peso entre .60 e .70); i) o nono fator mostrou que variáveis relativas à satisfação com a democracia, a percepção sobre o princípio de igualdade perante a lei, assim como de cumprimento da lei e proteção das leis trabalhistas estão juntas (com peso 7 As variáveis incluídas no modelo são binárias; aquelas cujos pesos é menor que .50 estão grafadas em itálico. 25 variando entre .50 e .70, mas a última não chegou a .50); j) finalmente, o último fator foi formado por duas variáveis relativas ao sentimento de pertencimento à comunidade política (com peso variando em torno de .70). Algumas observações importantes derivam da análise apresentada. Prima faciae, as respostas dos entrevistados sobre a democracia se agregam apenas com a sua exposição às notícias sobre política na televisão, ao seu interesse geral por política e, de forma notável, à sua proximidade dos partidos políticos; em princípio, isso pareceria dar razão, por uma parte, às hipóteses que se referem ao efeito da difusão internacional da democracia, mas também à identificação deste regime com uma das mais importantes instituições de representação, isto é, o partido político. Chama a atenção ainda que fatores como confiança política, avaliação de instituições, escolha de instituições necessárias para o país seguir em frente e indicadores de pertencimento à comunidade política apareçam distribuídos em fatores distintos. Isto confirma as hipóteses de Pippa Norris (1999), baseadas na contribuição de David Easton (1963), de que o fenômeno de apoio político não pode ser considerado em bloco, mas tem de ser visto a partir da distinção de diferentes dimensões que funcionam com lógica própria, às vezes separando-as e outras indicando a existência de pontos de conexão entre elas. Esse parece ser o caso das dimensões que se referem à comunidade política, ao apoio a valores políticos e, finalmente, à avaliação do desempenho de governos e de instituições. Note-se ainda que a participação em eleições e o reconhecimento da importância de partidos, do parlamento e do judiciário estão agregados em um mesmo fator, mas aparecem separados de indicadores atitudinais semelhantes. Por outras palavras, enquanto há aparentemente mais coerência na percepção em torno de variáveis que envolvem as liberdades, a perspectiva a respeito dos procedimentos institucionais da democracia revela-se bastante mais dispersa. Meneguello (2007) também relatou alguma dispersão dos fatores institucionais ao tratar da adesão democrática no texto mencionado antes. DETERMINANTES DOS SIGNIFICADOS ATRIBUIÍDOS À DEMOCRACIA Os resultados relatados até aqui mostram que, ao contrário das expectativas pessimistas, a maior parte dos entrevistados brasileiros tem idéias definidas sobre a democracia como um ideal, mas os testes anteriores não permitiram identificar os determinantes dessas convicções. Por essa razão, o passo seguinte do estudo consistiu na realização de uma análise de regressão logística da variável dependente formada pelas respostas dos que sabem o que é democracia e, como explicativas, um conjunto de indicadores sócio-demográficos, de cultura cívica, de confiança interpessoal, de 26 participação política, de avaliação de instituições e de avaliação do desempenho do governo do dia (vide Anexo 4 para a relação completa de variáveis testadas). O procedimento teve por objetivo testar o efeito de indicadores associados com hipóteses concorrentes, ou seja, tanto com as sustentadas por este trabalho, como as relativas ao papel da difusão internacional em torno da democracia, o efeito da modernização econômica e social, a influência do desempenho do governo – especialmente da economia , a influência das crenças religiosas, do capital social e de diferentes modos de participação política. O modelo não é parcimonioso; o seu R quadrado ajustado está perto de .30. As linhas em negrito indicam as variáveis que não são significantes e que, portanto, descomprovam as hipóteses correspondentes discutidas pela literatura. TABELA 7 . REGRESSÃO LOGÍSTICA DE “SABE O QUE É DEMOCRACIA” – 2006 VARIÁVEIS EXPLICATIVAS Intercept Homens Escolaridade média ou mais Renda familiar + de R$ 1.300 Integra a PEA Cidades + 500 mi habitantes Regiões Sudeste e Sul Confiança interpessoal Católicos Brancos Atenção às not. Políticas na TV Tem interesse por política Gov. tem de respeitar leis e instituições, mesmo na crise Rejeita retorno dos militares Rejeita sist. De partido único Votaria se voto ñ fosse obrigatório Conversa sobre política Assinaria abaixo-assinado Participaria de boicotes Participa de grupo religioso Existe igualdade perante a lei Partidos representam população e eleitores Eleições são limpas no Brasil Gov. deve intervir mais na economia Funcionários ñ levam em conta o que os cidadãos pensam Órgãos públicos ñ prestam informações aos cidadãos Confia na policia Confia no Congresso Nacional 27 B -2,752 0,298 0,651 0,312 0,344 0,022 -0,539 0,322 0,109 0,410 0,423 0,620 Sig. .000 ,014 .000 ,071 ,006 ,869 .000 ,025 ,372 ,001 ,003 ,001 Exp(B) 0,315 0,688 0,507 0,264 0,534 0,359 0,302 -0,225 -0,273 0,271 0,321 0,319 ,007 .000 .000 ,027 ,001 ,005 ,047 ,093 ,054 ,040 ,007 ,015 1,371 1,990 1,661 1,302 1,706 1,432 1,353 0,798 0,761 1,311 1,378 1,376 0,283 ,061 1,327 0,229 -0,205 0,248 ,046 ,130 ,095 1,257 0,815 1,282 1,347 1,917 1,366 1,410 1,022 0,583 1,380 1,115 1,507 1,526 1,859 Prefeituras são necessárias Avalia bem habitação Avalia bem previdência social Avalia bem transportes públicos Corrupção é problema sério Políticos usam caixa dois em campanhas eleitorais Brasileiros usariam caixa dois (no lugar de políticos) Brasileiros faturariam obras públicas (no lugar de políticos) Sit. econômica familiar é boa Votou em Lula em 2004 Sit. econômica do país melhorou com Lula -0,290 -0,259 -0,294 0,411 0,905 ,126 ,033 ,023 ,002 ,011 0,748 0,772 0,745 1,508 2,473 0,511 ,007 1,666 -0,534 ,002 0,586 0,369 -0,105 -0,176 -0,108 ,020 ,372 ,146 ,382 1,446 0,900 0,839 0,898 Fonte: “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas”, 2006 Nagelkerke R Square: .286; as variáveis do modelo são binárias. No modelo adotado, os determinantes mais importantes das respostas capazes de definir a democracia em termos de liberdades, procedimentos institucionais e fins sociais são – pela ordem derivada dos coeficientes de significância e das odds ratio das variáveis explicativas – a percepção de que a corrupção é um problema sério (duas vezes e meia mais de chance), a rejeição ao retorno dos militares ao poder (99% mais de chance), a escolaridade de níveis médio e superior (91% a mais de chance), o interesse pela política (85% a mais de chance), o hábito de conversar com amigos a respeito (70% mais chance), a rejeição a um sistema de partido único (66% mais chance) e a percepção pública de que os políticos brasileiros se utilizam do “caixa dois” em suas campanhas eleitorais (66% mais de chance também). É notável, por outro lado, que diferente de suposições de parte da literatura especializada, na interação produzida pelas variáveis incluídas no modelo adotado, em comparação com os habitantes de cidades médias e pequenas, a variável correspondente à resposta dos habitantes das cidades de mais de 500 mil não interfere nos resultados, nem aquela relativa aos que têm renda familiar superior a R$ 1.300 ao mês mostra-os como mais propensos a definir a democracia; ou seja, controlando-se pelas demais variáveis, esses fatores não são definidores da capacidade das pessoas de responder à pergunta, essa possibilidade está espalhada entre os entrevistados de renda inferior e também entre os que vivem em cidades pequenas e médias, o que pode indicar que mudanças na cultura política dos brasileiros não dependem diretamente desses fatores. A percepção crítica de que os funcionários do governo não prestam a atenção ao que pensam os cidadãos não é significante, mas de que os órgãos públicos não dão as informações necessárias ao público sim (25% mais de chance). A confiança na polícia e no 28 Congresso Nacional, a convicção de que as prefeituras são importantes, da mesma forma que as crenças religiosas não exercem influência para a definição da democracia; neste caso, aliás, os dados desconfirmam uma das hipóteses de Inglehart, segundo a qual, o Brasil como parte da América Latina faria parte do mapa cultural caracterizado pela tradição ibérica e católica. Ser católico ou professar outra crença não influi nos resultados. Os resultados mais surpreendentes, no entanto, se referem às hipóteses a respeito da influência da avaliação positiva do desempenho do governo do dia, em especial, da situação da economia do país e da situação econômica da família dos entrevistados: nenhuma dessas variáveis se revelou significante no modelo rodado, nem mesmo aquela relativa ao voto no presidente Lula em 2004. Ou seja, diferente de uma das conclusões de Pippa Norris (1999), os vencedores do jogo político, no caso brasileiro, não são os mais propensos a saber definir a democracia. São os cidadãos críticos quanto ao desempenho das instituições no que se refere à corrupção e quanto a alguns serviços públicos os que têm mais chance de saber o que é a democracia; diferente, nesse sentido, de achados de Meneguello (2007), as variáveis de avaliação positiva dos resultados da ação do governo, pelo menos, no que se refere à economia do país ou ao governo de modo geral, não ajudam a explicar a variável dependente. Isso sugere que precisamos de mais pesquisa sobre a relação entre o desempenho de governos e da economia com os indicadores de adesão ou de preferência pela democracia. Chama a atenção ainda que, com odds ratio mais próximas de 1, entre as variáveis sócio-demográficas, estar integrado à população economicamente ativa (PEA) (41% mais de chance) ou pertencer ao sexo masculino (34% a mais) são indicadores de capacidade de responder à pergunta; entre as variáveis de cultura política, ser branco (50% mais de chance), prestar a atenção às notícias políticas na TV (52% mais), confiar na maioria das pessoas (38% mais) e acreditar que o governo não está autorizado a desrespeitar as leis e as instituições do país, mesmo em situações de crise (37% mais), são fatores favoráveis à capacidade de responder a pergunta. Um aspecto importante tem de ser destacado aqui: as razões de chance da variável relativa ao papel da mídia (e, portanto, da difusão internacional da democracia) não apresenta nenhum resultado espetacular, indicando que embora ela conte quando considerada em conjunto com os outros fatores incluídos no modelo, a sua capacidade de explicação não tem a força suposta por parte da literatura discutida antes. Saber o que é democracia está ligado também a outros fatores como indicado a seguir. Entre as variáveis de avaliação do funcionamento das instituições, a crença de que os partidos representam a população e os eleitores (em contraposição à noção de que eles representam basicamente os próprios políticos) e de que as eleições no 29 país não estão sujeitas a fraudes são fatores determinantes das respostas sobre a democracia (nos dois casos, essa percepção aumenta em mais de 30% a chance das pessoas saberem o que é a democracia). Mas a percepção de que os políticos brasileiros usam o caixa dois (66% mais de chance) e de que superfaturariam as obras públicas, como a maioria acredita que fazem os políticos (44% a mais), são fatores determinantes da capacidade de responder o que é democracia, embora não a crença de que os brasileiros, no lugar dos políticos, usariam o caixa dois. Há nisto uma clara conexão entre a democracia vista como um ideal e as funções normativas atribuídas às instituições. No que se refere à avaliação dos serviços públicos, são os que avaliam negativamente a habitação e a previdência social os que têm mais chance de saber o que é a democracia, enquanto no caso dos transportes são os que têm uma avaliação positiva dos serviços. Aparentemente, os resultados são contraditórios, mas não é impossível que os mais críticos em relação a áreas de atendimento consideradas mais deficitárias – habitação e previdência social – são os que esperam mais do regime democrático, enquanto os que estão satisfeitos com os serviços de transportes públicos – de mais fácil acesso, em que pesem déficits existentes – podem manifestar-se assim porque acreditam que a situação relativamente positiva do setor deriva do funcionamento da democracia. Em conjunto, os fatores listados dizem respeito tanto à tradição das teorias de cultura política, como às que enfatizam o desenho e o desempenho das instituições democráticas. O modelo adotado neste trabalho mostra, ainda, que os preditores dos significados escolhidos pelos entrevistados para definir a democracia supõem o envolvimento das pessoas comuns com o mundo da política e com os mecanismos de escolha de governos: os que conversam sobre política com os outros (70% mais chance) os que assinariam abaixo-assinados de petições ou de protestos (43% mais de chance), os que participariam de boicotes se necessário (35% mais de chance) e os que votariam mesmo se o voto não fosse obrigatório (aproximadamente metade da amostra, com 30% a mais de chance) têm mais chance de saber o que é democracia. Os resultados sugerem que a memória do regime militar e a velha tradição brasileira de pouca participação na vida pública podem estar perdendo força na atualidade. Ao mesmo tempo, confirmando algumas hipóteses de Putnam (1998), a confiança interpessoal tem importância para os resultados relatados. Nos termos das análises de Linz e Stepan (1996), esses resultados sugerem que a adesão à democracia no Brasil - além da transformação das próprias instituições políticas -, está baseada em atitudes favoráveis ao regime, expressas na rejeição de alternativas que poderiam colocá-lo em risco, mas também em uma visão que reflete uma demanda quanto à qualidade da democracia: a preocupação com a situação da 30 corrupção sugere ainda que existe na sociedade brasileira uma demanda por maior eficiência dos mecanismos de accountability. BREVES CONCLUSÕES O estudo sugere algumas conclusões. Em primeiro lugar, os dados mostram que, diferente do que pensam os céticos, a maior parte dos brasileiros é capaz de definir a democracia em termos que envolvem duas das mais importantes dimensões do conceito, isto é, por um lado, o princípio de liberdade e, por outro, os procedimentos e estruturas institucionais. Essas definições da democracia distinguem, claramente, este regime de suas alternativas concorrentes, ou seja, não são idéias vagas e imprecisas que, sob influência da difusão internacional, apenas reproduzem a imagem positiva adquirida pela democracia. Os testes mostram que as respostas majoritárias sobre a democracia, envolvendo as liberdades e os procedimentos do regime, são influenciadas pela atenção dos entrevistados às notícias políticas na TV, mas ao mesmo tempo, por valores políticos como a rejeição de alternativas autoritárias, o reconhecimento do papel das instituições de representação, o interesse pela vida pública e a participação política; neste sentido, os dados confirmam os achados de Dalton, Shin e Jou (2007) sobre os entrevistados do Leste Europeu, da Ásia, da África e de outros países da América Latina: pessoas comuns, mesmo em ambientes não inteiramente favoráveis, sabem definir a democracia e essa definição está associada, por uma parte, com o seu apoio normativo ao regime, isto é, aos ideais que ele envolve e, por outra, com as expectativas que ele suscita a respeito do desempenho prático de suas instituições como meio de realizar aqueles ideais. As definições de democracia dos brasileiros são influenciadas por alguns valores da cultura política e por sua percepção a respeito do desempenho das instituições, mas chama a atenção que, incluídas nos modelos de análise, as variáveis de avaliação do desempenho da economia e do governo do dia não se mostrem importantes para explicar as respostas dos entrevistados. As definições envolvendo as duas dimensões mais importantes do conceito de democracia - liberdades e procedimentos - são determinadas basicamente por valores e outros fatores políticos, como a avaliação da situação da corrupção e das instituições em geral, a escolaridade e a influência das informações transmitidas pela mídia. Da perspectiva da abordagem da qualidade da democracia isso significa que, no Brasil, a democracia é vista sim como expressão de procedimentos institucionais - a exemplo da participação em eleições -, mas ao mesmo tempo como uma construção referida também a princípios e valores do regime, como as liberdades, que distinguem claramente o processo democrático das alternativas autoritárias. Como 31 chamaram a atenção Inglehart e Wezel (2005), essas dimensões são fundamentais para a percepção do regime como causa e efeito do desenvolvimento humano, ou seja, como uma perspectiva que concebe os indivíduos como capazes de definirem os rumos e o sentido de suas vidas, o que implica que se reconheçam como livres e iguais para fazê-lo. Uma nota final de cautela, no entanto, é necessária. Como observaram Dalton, Shin e Jou (2007), saber definir o que é a democracia é muito importante, mas é insuficiente per se para consolidar o regime porque o processo democrático exige mais do que a sua simples definição. O funcionamento do sistema democrático, assim como a sua qualidade, exige o envolvimento público com as instituições e o acompanhamento dos cidadãos – através da mídia, de partidos e de associações da sociedade civil - do desempenho de governos e do poder público. No caso brasileiro, o paradoxo representado por níveis elevados de contínua desconfiança dos cidadãos das instituições políticas poderia se constituir em um fator desfavorável para isso, uma vez que a desconfiança está associada com os déficits de funcionamento das instituições democráticas (MOISÉS, 1995; 2008b). Neste sentido, o fato das definições comuns de democracia envolverem, no período de quase 20 anos de pesquisas, significados que se referem a valores humanos fundamentais como as liberdades políticas e individuais, e os meios que permitem torná-los efetivos como os procedimentos assegurados pelo funcionamento das instituições democráticas, sugerem uma possibilidade de saída do paradoxo. Os resultados sugerem que pode estar emergindo de um novo padrão da cultura política dos brasileiros: diferente dos sinais apontados por estudos sobre países de tradição democrática frágil (ALMOND E VERBA, 1965), as visões da democracia das pessoas comuns no Brasil mostram-se mais complexas do que no passado e envolvem, ao mesmo tempo, valores humanos e os meios de sua realização, oferecendo uma base potencial de apoio político para a superação das atuais distorções e déficits institucionais. A percepção sobre a corrupção, por um lado, e sobre o papel dos partidos e instituições de representação, de outro, são exemplares nesse sentido. Nos significados atribuídos à democracia pelos brasileiros pode estar contida a base do que Pippa Norris (1999), analisando casos de democracias consolidadas, chamou de cidadãos críticos. Com efeito, ao mesmo tempo em que os partidos são reconhecidos como indispensáveis à democracia, o seu desempenho concreto é severamente avaliado, como exemplifica a atitude de desconfiança dos cidadãos dos mesmos; mas mais do que querer eliminá-los, a maioria dos cidadãos parece estar dizendo que deseja que eles funcionem efetivamente como mecanismos de representação. A percepção razoavelmente sofisticada dos cidadãos brasileiros sobre a democracia pode servir de base para iniciativas de pressão sobre o sistema político no sentido da reforma das instituições de representação. Por último, a 32 preocupação com a corrupção também mostra que existe uma demanda sobre o desempenho das instituições encarregadas da responsabilização de políticos e governos. Para um país cuja experiência democrática é relativamente recente, esses sinais não são de pouca importância. 33 ANEXO 1. RECODIFICAÇÃO DAS RESPOSTAS À PERGUNTA ´O QUE É DEMOCRACIA´ - 1989 a 2006 Liberdades – menções a: Liberdade de criticar o governo Direito de ir e vir Liberdade de expressar-se Poder lutar por melhores salários Todos podem exercer seus direitos Liberdade para organizar-se Liberdade sem repressão Liberdade de informação Governo garantir a segurança do povo Direito de opinar Consciência de direitos e deveres País livre onde não se vive como escravos Respeito ao cidadão Direitos e deveres legislados e aplicados Punir os políticos que roubam o povo Fins Sociais – menções a: Direito à saúde pública independente de raça, sexo, cor Direito a um transporte digno Direito ao trabalho Governo dar melhores condições de vida para as pessoas de baixa renda Direito à educação País com muito trabalho, onde não falte emprego Direitos iguais entre os povos Igualdade entre os cidadãos Igualdade entre homens e mulheres/direitos iguais Não ter discriminação de cor/raça Procedimentos/Instituições – menções a: Cidadão exercer seus direitos e deveres Obrigação de votar Necessidade de leis severas Governo não ser corrupto Partidos políticos c/ igual espaço nos meios de comunicação Governo com leis através de um parlamento País governado pelo Congresso Cumprimento da Constituição Povo poder fiscalizar o governo Organização do povo respeitando as leis Governo cumprir com suas obrigações Forma de governo Governo com participação de todas as classes sociais Governo onde vence a maioria É saber exigir seus direitos, cobrar seus direitos País onde leis para ricos e pobres são as mesmas Direito dos cidadãos serem reconhecidos por lei Mesma lei para ricos e pobres Equilíbrio entre três poderes: judiciário, legislativo e executivo Inconsistentes/NS/NR É violência Falta de respeito ao cidadão É bom Brigas entre políticos / Brigas na política País com política honesta Não cumprimento das leis Presidente corrupto no governo / políticos Diferença entre ricos e pobres / desigualdade social Discriminação entre raças Falta de honestidade Governantes impor leis não compatíveis com as necessidades do povo Regime dominado por políticos da elite Sistema onde todo mundo manda 34 ANEXO 2 . Variáveis binárias utilizadas na análise bivariada, mas na tabela 5 foram incluídas apenas as variáveis que significantes. Atributo=1; outros=0. Renda mensal familiar (baixa - até R$780,00) Os brasileiros são cumpridores das leis Idade (acima de 39 anos) A lei deve ser obedecida sempre Regiões (Sul e Sudeste) Os brasileiros fazem valer os seus direitos Sexo masculino Os brasileiros são conscientes de suas Cidades com mais de 500 mil habitantes obrigações Escolaridade (baixa: analfabetos e até colegial Os brasileiros são conscientes de seus direitos incompleto) Sente-se protegido pelas leis trabalhistas Preferência por regime: democracia Pessoas como eu não compreendem o que está Democracia está associada com: acontecendo na política Direito de escolher governo Eu não tenho como influenciar o governo Liberdades políticas O voto permite que pessoas como eu influam Igualdade social nos acontecimentos do país Igualdade perante a lei Orgulho de ser brasileiro Fiscalização dos atos do governo pelo Viveria em outro país Congresso Assiste até duas horas de TV por dia Menos corrupção e controle do tráfico de Prestou atenção nas notícias de política que influência deram na TV na última semana Educação, saúde e emprego Interesse por política Fiscalização do governo pelo Ministério Público Sente-se próximo de partidos políticos e Tribunais de Justiça brasileiros Igualdade de direitos para as mulheres Votou nas últimas eleições presidenciais (2002) Liberdades em questões morais Multipartidarismo Confiança interpessoal A democracia não pode funcionar sem partidos Confiança no Poder Judiciário A democracia não pode funcionar sem Confiança no Congresso Nacional Congresso Nacional Confiança nos Partidos Políticos Os partidos são indispensáveis à democracia Confiança no Governo O Presidente da República deve ser identificado As eleições no Brasil são limpas e honestas com um partido político Nos últimos 5 anos a corrupção não aumentou Partidos políticos são necessários para o No último ano a corrupção não aumentou progresso do país Está satisfeito com a democracia Deputados e Senadores são necessários para o Avaliação positiva da situação política do país progresso do país Tribunais de Justiça são necessários para o Apesar de problemas, democracia é melhor progresso do país forma de governo Prefere a democracia a um líder salvador não O governo pode passar por cima das leis e das controlado por leis instituições do país para resolver uma situação Se o país enfrenta dificuldades, o presidente difícil pode tomar as decisões sozinho A situação econômica melhorou durante o independentemente do Congresso e das leis governo Lula O país funcionaria melhor se os militares A situação econômica melhorou durante o voltassem ao poder governo FHC Daria um cheque em branco a um líder salvador A situação econômica melhorou durante a que resolvesse os problemas do país Ditadura Militar O Brasil seria melhor se existisse apenas um Os Direitos Humanos melhoraram durante o partido político governo FHC Só uma ditadura daria jeito no Brasil Os Direitos Humanos melhoraram durante o Votaria mesmo que o voto não fosse governo Lula obrigatório Os Direitos Humanos melhoraram durante a Existe igualdade perante a lei Ditadura Militar 35 ANEXO 3 . Variáveis utilizadas na análise fatorial (Tabela 4) Interesse por política; Até 2 horas de TV por dia; Atenção em notícias políticas na TV; Baixa escolaridade; Cidades + 500 mil habitantes; Democracia é melhor forma de governo; Preferência por regime democrático; Democracia=direito de escolher governo; Democracia=liberdades políticas; Democracia=igualdade social; Democracia=igualdade perante a lei; Democracia=fiscalização do governo pelo Congresso; Democracia=controle da corrupção e tráfico de influência; Democracia=atendimento necessidades saúde, emprego e educação; Democracia=fiscalização do governo p/ tribunais de justiça e Ministério Público; Democracia=direitos das mulheres; Democracia=liberdades morais e sexuais; Partidos são necessários p/ democracia; Congresso é necessário p/ democracia; Proximidade de partidos; Partidos indispensáveis p/ democracia; Presidente deve ser identificado com partido; Partidos são necessários ao país; Deputados e Senadores são necessários ao país; Tribunais são necessários ao país; Votou nas últimas eleições; Votaria se o voto não fosse obrigatório; Sabe o que é democracia. ANEXO 4.- Variáveis utilizadas na regressão logística (Tabela 7) Sexo (homens), Escolaridade (média ou mais), Renda (+ de R$ 1.300), PEA (integra), Cidades (+ 500 mil habitantes), Região (sul e sudeste), Confia na maioria das pessoas, Religião (católicos), Cor (brancos), Presta atenção às notícias políticas na TV, Tem interesse por política, Acha q. Governo deve respeitar leis e instituições em crises, Rejeita o retorno dos militares, Rejeita sistema de partido único, Votaria se voto não fosse obrigatório, Conversa sobre política, Assinaria abaixo-assinados, Participaria de boicotes, Participa de comunidades religiosas, Existe igualdade perante a lei, Partidos representam a população e os eleitores, Eleições são limpas, Acha q. governo deve intervir + na economia, Funcionários não levam em conta a opinião dos cidadãos, Órgãos públicos não prestam informações aos cidadãos, Confia na policia, Confia no Congresso Nacional, Prefeituras são necessárias ao país, Avalia bem habitação, Avalia bem previdência social, Avalia bem transportes, A maioria dos políticos usam caixa 2 em campanhas eleitorais, Brasileiros, no lugar dos políticos, usariam caixa dois, Brasileiros, no lugar dos políticos, superfaturariam obras públicas, Situação econômica familiar é boa, Votou em Lula, Situação econômica do país melhorou com o governo Lula. 36 III. AS BASES DO APOIO AO REGIME DEMOCRÁTICO NO BRASIL RACHEL MENEGUELLO INTRODUÇÃO A literatura sobre as características e o funcionamento dos processos de democratização é volumosa, muito tem sido produzido sobre as bases de apoio às democracias da terceira onda, em específico sobre os processos políticos desencadeados na America Latina, ou ainda, aqueles desenvolvidos no Leste Europeu, após a queda do Muro de Berlin, e somam um conhecimento valioso para a reflexão comparada às experiências das democracias ocidentais mais consolidadas no tempo. Sabemos que para os cidadãos que vivenciam sistemas democráticos consolidados, a aceitação do regime e as suas bases de funcionamento são inquestionáveis e há uma compreensão básica sobre as instituições e os processos políticos que sustentam o seu funcionamento. Mesmo que nestas democracias sejam observados níveis consideráveis de insatisfação com o funcionamento regime, e de desconfiança nas instituições e nos governos do momento, a adesão e a identificação dos cidadãos com o regime democrático não sofrem abalos significativos, garantindo a estabilidade do sistema. No caso das democracias mais recentes, a literatura é menos positiva, os estudos e evidências mostram que mesmo em países em que regras básicas e procedimentos foram implantados e têm funcionamento regular, como a realização de eleições livres e justas, isso não é suficiente para a democratização, há deficits significativos no terreno do respeito às leis, direitos e liberdades, pondo em risco permanente o apoio político que se estabelece no início do novo regime (ZAKARIA, 1997; ROSE AND SHIN, 2001) No caso das democracias latino-americanas, os dados de pesquisas realizadas ao final da última década mostram que, na maioria dos países, e mesmo apesar do impacto da crise econômica, o apoio ao regime democrático tem sido sustentado em bases significativas (Informe Latinobarômetro, 2006; SELIGSON AND SMITH, 2010). As informações apontam que os cidadãos da região têm acolhido em uma tendência crescente a democracia como a melhor forma de governo, apesar de o apoio normativo “churchilliano” compartilhar um terreno denso de constrangimentos que condicionam a satisfação com o funcionamento do sistema, os níveis de confiança institucional e pessoal, o interesse e a participação na política. 1 Nesse terreno, destaca-se a dinâmica representativa. Por um lado, as eleições sobressaem como marco de inclusão e intervenção políticas, e a percepção da eficiência e validade dos processos eleitorais agem como garantia ao funcionamento do regime democrático. Além disso, partidos e parlamentos são considerados _ao menos simbolicamente_ como eixos do funcionamento do regime, e desfrutam de um apoio geral importante. Entretanto, são os partidos políticos e o congresso as instituições que acolhem os menores graus de confiança institucional em toda a região, apesar de variações significativas observadas entre países (BOIDI Y QUEIROLO, 2010). A experiência democrática brasileira reproduz esse cenário. Os dados de apoio ao regime democrático são crescentemente positivos ao longo do período pós-1985. No registro das pesquisas realizadas entre 1989 e 2006, a preferência pela democracia aumentou 21 pontos percentuais entre a população, de 43,6 para 64,8% (Gráfico 1). Os avanços ao longo desse processo também foram de ampliação do entendimento sobre o regime. No período entre 1989 e 2006, houve uma ampliação considerável da proporção de pessoas que adquiriram entendimento sobre o significado de democracia, embora esse entendimento estivesse limitado e predominantemente atrelado à idéia de realização de eleições e de constituição de governos que dessem solução às necessidades econômicas e sociais, refletindo o cenário de crise que marcou o inicio da democratização no país e na região nos anos 1980 (MENEGUELLO, 2010). Igualmente aos os vários processos de democratização na região, os cidadãos brasileiros envolveram-se em uma dinâmica eleitoral regular e intensa desde o início do novo regime, tendo definido na eleição presidencial direta de 1989 o marco do alinhamento de forças políticas e preferências. Os dados das pesquisas realizadas nesse período mostram, entretanto, que a consolidação de mecanismos e procedimentos de participação eleitoral não redimensionou a frágil relação com as instituições representativas. O país conta com vários dos mais baixos índices de confiança e de avaliação positiva dos partidos, do Congresso e dos políticos observados na região nas duas últimas décadas, e claramente reflete os constrangimentos próprios das denominadas ‘democracias incompletas’ (SELIGSON AND SMITH, 2010; SHIN, 2007). O objetivo deste artigo é contribuir para a resposta a algumas questões que norteiam os estudos sobre o processo de democratização brasileira. A primeira delas diz respeito ao entendimento do papel que as instituições representativas possuem no mapa de referências de apoio ao regime democrático. A segunda questão diz respeito às bases da legitimidade do sistema, entendida como resultante das percepções do desempenho e funcionamento da democracia no país. Assim, a primeira parte do trabalho procura identificar em que medida a crescente preferência dos cidadãos pelo regime democrático observado ao longo das ultimas décadas 2 resulta da sua relação com as instituições representativas, a qual comporia um construto normativo articulado que embasaria os posicionamentos políticos sobre o desenvolvimento e a construção institucional do sistema. A segunda parte procura identificar as referências das quais os cidadãos lançam mão para avaliar o desempenho da democracia e criar níveis de satisfação com regime. O suposto básico é que o fenômeno da adesão à democracia resulta da congruência entre o apoio normativo ao regime e a satisfação com o seu funcionamento. Gráfico 1. Evolução da preferência por regime político Brasil, 1989-2006 (%) 2006 59,1 2002 1993 13,7 54,7 19,4 Ditadura 4,8 15,2 13,7 9,9 14,7 17,1 16,7 43,6 Democracia 16,9 15,6 57,9 1990 1989 13,5 64,8 21,3 Tanto faz 11,4 15,7 ns/nr Fontes: Banco de Dados do CESOP/Unicamp: Coleção Cultura Política, 1989 (DATAFOLHA/BRASIL89.SET00186), 1990(DATAFOLHA/BRASIL89.DEZ-00210) e 1993(DATAFOLHA/BRASIL93.MAR-00322); Estudo Eleitoral Brasileiro_ESEB-CSES2002 (CESOP_FGV/BRASIL02.DEZ-01838); Pesquisa Desconfiança dos Cidadãos nas Instituições Democráticas, 2006 (CESOP_NUPPES/BRASIL06.JUN-02330) ALGUMAS DEFINIÇÕES Tal como afirmam Collier and Levitsky (1996), a proliferação de tipos e subtipos de processos de democratização nas várias regiões do mundo apresentou aos estudiosos o desafio de dar conta das variações de casos nacionais sem que, ao mesmo tempo, fosse estirado o conceito de democracia. Não é a intenção desse trabalho oferecer uma nova apropriação do conceito de democratização, mas sim, organizar as noções que orientam a investigação sobre as bases do apoio e legitimidade democráticas que encontramos a partir da pesquisa a Desconfiança dos Cidadãos nas instituições Democráticas (“Pesquisa Desconfiança”). Algumas definições prévias são, portanto, necessárias. A idéia de adesão democrática está estabelecida neste trabalho sobre o construto do sistema representativo. A teoria democrática define nas instituições representativas cânones da legitimidade do regime, pois são essas instituições que, de forma indireta, investem o povo de autoridade perante o sistema, além exercerem, com variações entre as distintas democracias, 3 algum grau de controle e responsabilidade sobre o poder executivo. Assim, apesar dos níveis significativos de desconfiança nos partidos e nos políticos, e mesmo da avaliação predominantemente negativa da atuação do parlamento e dos políticos em geral, a existência e manutenção das instituições representativas são valores inabalados nas democracias consolidadas. Nos regimes que transitam de ditaduras para democracias, por sua vez, a questão central não reside na confiança nos parlamentares ou na avaliação do desempenho legislativo mas, sobretudo, na crença se o legislativo deveria estar funcionando, ou ainda, no apoio à necessidade de sua existência para o funcionamento do novo regime (MISHLER AND ROSE, 1994) . Igualmente, o papel exercido pelos partidos políticos figura como um dos elementos que compõem esse quadro de apoio ao sistema representativo. A necessidade de um sistema pluripartidário que sustente a competição e a representação de interesses e grupos variados e a crença em sua utilidade para as vias de transmissão entre os cidadãos e o estado emergem como elementos ao menos simbólicos do apoio ao regime. No caso da transição brasileira, uma série de estudos sobre a cultura política democrática apontam o papel central das eleições na constituição da noção de democracia para o período pós-85 (LAMOUNIER, 1985; MOISES, 1990 E 1995; MUSCINSKY E MENDES, 1990; LAVAREDA,1989). Esses trabalhos indicam que a idéia de democratização no final do período da ditadura de 1964 e início do período democrático de 1985 esteve associada de forma predominante aos mecanismos de participação eleitoral, em especifico, à realização de eleições diretas para a presidência da república. Com efeito, essa dinâmica concentrou, em grande parte, as ações da dimensão do que poderíamos chamar de engajamento cívico na transição. Entretanto, esse engajamento não resultou em um apoio generalizado à ruptura com as bases do regime militar e a ampliação da democracia representativa. De fato, dados de survey realizado em capitais estaduais durante a última fase da ditadura militar, no período das eleições pluripartidárias de 1982 mostram um cenário de expectativas híbridas e conflitantes quanto à formação do novo regime. Por exemplo, em média, 80% dos eleitores apoiavam a realização de eleições diretas e mais de 61% afirmavam a disposição em votar se o voto não fosse obrigatório; entretanto, esse mesmo survey apontava uma clara divisão no eleitorado ao considerar a manutenção da presença dos militares no poder, assim como na opinião sobre o aumento do poder do congresso nacional no novo período (ver Tabela 1, Anexo 1). Esses dados coletados ainda antes da implantação do novo regime indicam, em alguma medida, o perfil “incompleto” que marcaria o desenvolvimento da democratização iniciada em 1985. 4 A presença das referências ao regime anterior no conjunto de crenças dos cidadãos sobre o sistema político, ou ainda, os altos níveis de desconfiança e as avaliações negativas das instituições representativas e do funcionamento da política observados nas pesquisas realizadas no início do período democrático (MOISES, 1990; 1995), assim como no período mais recente (MENEGUELLO, 2006; MOISES E CARNEIRO, 2008), comprovam a natureza híbrida do entendimento sobre as bases de funcionamento da democracia no país. Em estudo realizado sobre as bases da preferência pela democracia no Brasil a partir de dados de pesquisa de 2002 (MENEGUELLO, 2006), encontrou-se que a adesão e a legitimidade do regime democrático estavam significativamente associados à valorização das eleições como forma de intervenção na política. Sabemos que à luz da teoria democrática representativa, a associação das eleições ao funcionamento democrático é esperada; entretanto, a mesma valorização não ocorreu quanto às instituições representativas. O mesmo descompasso foi encontrado na análise das bases da satisfação com o funcionamento do regime democrático, quando as dimensões da satisfação com a democracia e da avaliação das instituições emergiram dissociadas, sugerindo que no mapa de valores dos cidadãos o entendimento do bom funcionamento democrático não está imediatamente associado à percepção do desempenho das instituições públicas -inclusive representativas- e instituições privadas. Além disso, os dados indicavam que para o cidadão comum, a ‘execução’ do cotidiano, o desempenho do governo, o funcionamento do sistema democrático e a ação das instituições não compõem dimensões articuladas. Voltamos a explorar esses pontos através dos dados da “Pesquisa Desconfiança”. A noção de legitimidade democrática também é definida. A legitimidade deve ser pensada como um tipo ideal relacionado às crenças dos cidadãos de que a política democrática e as instituições sobre as quais se estabelece são a forma mais apropriada para estruturar-se o sistema político. Esta noção está também baseada na ‘hipótese de Churchill’ (a democracia como mal menor comparado aos regimes não-democráticos) compreendida na abordagem que possibilita a comparação entre duas situações políticas distintas experimentadas no tempo (ROSE, 2001; GUNTHER E MONTERO, 2003). A noção de concorrência entre regimes é adequada ao caso brasileiro, dada a experiência democrática relativamente recente, e a presença de boa parte do eleitorado tendo tido sua experiência política em dois tipos de regimes distintos, autoritário e democrático. Acompanhando a sugestão da maior eficácia das medidas realistas de apoio ao regime nas democracias incompletas (MISHLER AND ROSE, 2001), a análise do desempenho do regime foi constituída a partir da percepção da atuação das instituições e da gestão pública, e da percepção sobre o funcionamento da democracia no país. 5 AS BASES DO APOIO À DEMOCRACIA A literatura sobre democratização menciona os limites da utilização de medidas idealistas de apoio ao regime democrático, uma vez que, nas novas democracias, e em função das demandas que incidem sobre o funcionamento do sistema, a presença de um apoio normativo ao regime não é suficiente para a sua sobrevivência (MISHLER AND ROSE, 2001). As limitações das medidas idealistas são ainda conferidas, em parte, ao entendimento rudimentar dos cidadãos comuns sobre o regime, seu significado e as bases de seu funcionamento, algo observado mesmo entre os cidadãos das democracias estabelecidas. Entretanto, o apoio de massa ao regime democrático não funda-se na cognição sofisticada sobre a política, mas sobretudo, na compreensão e experiência da vida pública, nas ações e na percepção de que as ações e procedimentos influenciam o sistema, aspectos que resultam tanto do legado do regime anterior, quanto do desenvolvimento político do atual regime. A valorização das instituições representativas e a compreensão de sua importância para o funcionamento da política democrática revelam, no mínimo, a disposição para a vida democrática, o que é básico para constituir a legitimidade do sistema. Nessa direção, investigamos em que medida os aspectos valorativos sobre o sistema representativo e sobre o regime em geral fariam parte do construto da adesão dos cidadãos brasileiros à democracia. Elaboramos dois modelos para investigar a articulação entre valores e o apoio ao regime. O primeiro deles compõe-se de aspectos normativos sobre a democracia e sobre o regime democrático no país. O segundo modelo adiciona àquele conjunto de variáveis normativas uma dimensão comparativa entre períodos políticos para identificar as bases do apoio ao regime. As nove variáveis selecionadas para o primeiro modelo constituem um conjunto normativo sobre a democracia em geral e aspectos de sua vertente representativa., notadamente a importância do voto, dos partidos e do Congresso (Tabela 1). A distribuição simples dos dados mostra uma maioria de mais de 60% de indivíduos que preferem a democracia comparada à ditadura, afirmam a importância dos partidos para a democracia, a importância do Congresso para a democracia e para o país e a importância do voto para a política em geral. A mesma ênfase na preferência pela democracia frente à ditadura não ocorre com a afirmação mais enfática sobre considerar o melhor regime em geral, quando apenas 32% dos indivíduos concordam muito com a idéia da democracia como melhor regime. Os indivíduos dividem-se quase ao meio quando se trata da disposição em votar sem obrigatoriedade e sobre a relação do presidente da republica com um partido político. Finalmente, há uma relação ambígua com os partidos: embora 63% afirmem que sem partidos não pode haver democracia, quase 60% consideram que partidos 6 servem apenas para dividir pessoas. As duas variáveis sobre a opinião a respeito dos partidos não são excludentes, mas um cruzamento simples entre as duas questões revela um pequeno núcleo incongruente de 6% do total de indivíduos da amostra que, ao mesmo tempo em que afirmam os partidos indispensáveis à democracia, afirmam que o regime pode funcionar sem eles. Tabela 1. Variáveis de apoio à democracia e a aspectos da democracia representativa Variáveis Influência do voto sobre o que acontece Votaria na eleição para presidente se voto não fosse obrigatório Apoio à democracia 1 Apoio à democracia 2 Necessidade dos partidos para democracia 1 Necessidade dos partidos para democracia 2 Necessidade do Congresso para democracia Necessidade do Congresso para o país Relação entre o presidente e os partidos A maneira como as pessoas votam pode fazer com que as coisas mudem Não importa como as pessoas votam, não fará com que as coisas mudem Sim Não Talvez/Depende A democracia é sempre melhor que qualquer outra forma de governo Em certas circunstâncias é melhor uma ditadura Tanto faz se o governo é uma democracia ou uma ditadura Concorda muito que a democracia pode ter problemas, mas é a melhor forma de governo Concorda pouco Discorda muito/discorda pouco Nem concorda, nem discorda Sem partidos não pode haver democracia A democracia pode funcionar sem partidos São indispensáveis à democracia Só servem para dividir as pessoas Sem Congresso Nacional não pode haver democracia A democracia pode funcionar sem Congresso Nacional O país precisa da Câmara e do Senado em % 62,3 36,2 48,7 49,1 2,1 64,8 13,5 16,9 57.2 32.2 8.1 2.5 63,0 31,5 36,3 59,4 66,1 28,7 66,2 Poderíamos passar bem sem a Câmara e o Senado 30,4 É melhor um presidente identificado com um partido É melhor um presidente que não dê importância aos partidos 53.9 41.8 N 2.004 Fonte: Pesquisa A Desconfiança dos Cidadãos nas Instituições Democráticas, 2006 (*)as diferenças dos totais para 100% referem-se a ns/nr Para responder nossa indagação sobre como esses valores se articulam no construto do apoio ao regime para os cidadãos brasileiros em 2006, utilizamos uma metodologia de análise multidimensional que envolve elementos de duas técnicas de análise de componentes principais, 7 inicialmente a análise de componentes principais para variáveis categóricas e, em seguida, para as variáveis resultantes, a análise fatorial. Os resultados estão na Tabela 2. Tabela 2. Dimensões normativas que compõem o apoio ao regime Variáveis 1 necessidade do Congresso Nacional para o Brasil necessidade dos partidos para a democracia necessidade do Congresso Nacional para a democracia presidente deve ser identificado com partidos ou não democracia como melhor forma de governo preferência entre democracia e ditadura importância do voto para mudar as coisas disposição para votar no presidente mesmo se voto não fosse obrigatório Variância explicada Variância total explicada 2 .701 .789 .786 .517 .666 .616 .638 .616 25.33% 20.05% 45.38% Extraction Method: Principal Component Analysis; Rotation Method: Varimax with Kaiser Normalization. Os dados mostram uma solução de 2 fatores, com capacidade explicativa de α=45.3%, onde figuram na primeira dimensão as 4 questões associadas ao papel dos partidos políticos e do Congresso Nacional, tanto para o país como para a democracia em geral, algumas delas com cargas altas, maiores que 0.7 (consideramos apenas scores iguais ou maiores que 0,5). Embora com menor score, na mesma dimensão aparece a questão associada aos partidos, ainda que especificamente indagando a preferência por um presidente da república relacionado a partido político. A segunda dimensão, por sua vez, compõe um interessante conjunto em que a preferência pela democracia (medida através das duas questões) está associada ao voto, seja quanto à percepção de seu papel para intervenção no sistema, seja quanto à adesão ao voto voluntário para escolha do presidente da república. Finalmente, não figura em nenhuma das dimensões a variável que solicitava ao entrevistado a sua percepção sobre o papel dos partidos (se indispensáveis à democracia, ou instituições que apenas dividem pessoas). Esta separação das variáveis em duas dimensões supostamente associadas é o ponto que nos intriga. Em quê medida as instituições representativas estão dissociadas da idéia de votar e dar apoio à democracia? Cientes dos efeitos de separação dos dados produzidos pela técnica de rotação na análise fatorial, investigamos as associações entre todas as variáveis, de forma a identificar possíveis relações e, como podemos ver na Tabela 3, o apoio à democracia - nas suas duas versões indagadas - mostra associações muito reduzidas com o apoio aos partidos e ao 8 Congresso, tanto em termos de apoio geral quanto para o caso brasileiro. No caso do papel do voto, a disposição em votar para presidente e a percepção do voto como mecanismo de mudança têm associações reduzidas com o apoio genérico aos partidos e ao Congresso. Tabela 3. Associações entre as variáveis do apoio à democracia. Coeficientes de Contingência e fatores associados Necessidade Presidente Necessidade Democracia Congresso identificado Congresso como p/ c/partido para o Brasil melhor democracia forma de governo Necessidade 0,493 dos partidos p/democracia Necessidade do Congresso p/ democracia Presidente identificados c/partido Necessidade Congresso para o Brasil Democracia como melhor forma de governo Preferência pela democracia ou ditadura Importância do voto para mudança Voto obrigatório Preferência pela democracia ou ditadura Importância Voto Fator Fator do voto obrigatório 1 2 para mudança 0,258 0325 0,135 0,160 0,135 0,095 ,789 ,016 0,216 0,381 0,163 0,171 0,136 0,094 ,786 ,036 0,297 0,105 0,111 0,197 0,101 ,517 ,187 0,199 0,174 0,184 0,213 ,701 ,150 ,121 ,666 ,132 ,616 ,134 ,638 0,282 0,255 0,219 0,209 0,178 0,213 ,033 ,616 Esses dados sugerem uma real ‘independência‘ entre as dimensões encontradas e, se observarmos as associações intra-fatores, encontramos associações importantes, mas de nível médio. No caso do Fator 1, em que as referências institucionais do sistema representativo estão presentes, os valores se alteram, e as associações entre o apoio à existência do Congresso e dos partidos chegam a 0,493 no caso do apoio normativo aos partidos e ao Congresso, a 0,381 para a necessidade do congresso para a democracia e para o país, e a 0,325 para a relação entre a 9 necessidade do Congresso para o Brasil e dos partidos para a democracia. No caso do Fator 2, que acolhe o apoio ao regime e a valorização do voto, a maior associação ocorre entre as duas opções de apoio ao regime democrático, e não chega a 0,3 (0,282). Apesar desta congruência observada, o que se destaca na relação entre os fatores são as baixas associações com as variáveis de apoio ao regime democrático. O segundo modelo para avaliar as bases do apoio ao regime está baseado na comparação entre situações políticas distintas, incluindo a comparação entre governos democráticos e entre o presente regime democrático e a ditadura que vigorou no país até 1985. Nas democracias consolidadas, boa parte do apoio à democracia sustenta-se no processo de longo termo de socialização dos cidadãos com os valores democráticos; nas democracias recentes, por sua vez, o apoio ao regime sustenta-se inicialmente na expectativa sobre o novo período, ou ainda, na rejeição ao regime anterior, mas o desempenho do regime é um fator central para que o apoio normativo se sustente. O novo regime deve mostrar-se capaz de satisfazer as expectativas coletivas quanto a aspectos centrais da mudança política. No caso da pesquisa em análise, esses aspectos estão traduzidos na dimensão da economia, dos direitos humanos e na situação da corrupção e tráfico de influência. Um dos supostos que orientam esse construto é a idéia de que a democratização brasileira está marcada por alguns ‘eventos politizadores’ (ROSE, 1999) que criam conteúdos de apoio ao governo e apoio ao sistema. O primeiro deles, mencionado no início deste trabalho, diz respeito ao próprio sistema representativo e à valorização do voto direto. A transição brasileira teve seu fluxo notadamente estabelecido na arena eleitoral já durante o regime militar, e estabeleceu uma retórica fundadora do regime democrático na qual as eleições diretas para presidência da república marcavam a construção do novo regime. De fato, as movimentações em torno das eleições presidenciais abrigaram momentos de intensa mobilização popular na transição para a democracia. O segundo evento politizador do período reside no terreno da intersecção entre a economia e a política e resultou do impacto das políticas econômicas. Adotadas com o objetivo de superar os cenários marcados pela depressão generalizada, depreciação dos indicadores de crescimento e o déficit social herdado do regime autoritário, tais políticas criaram parâmetros de avaliação de governos. Os referenciais econômicos, como o controle inflacionário e as tendências de melhoria de renda e emprego, tiveram papel central no conjunto de expectativas da sobre a democratização no país, formando preferências políticas. Já no início do regime democrático, estudos identificavam nas referências de expectativa de bem-estar e busca dos patamares mínimos de sobrevivência as bases da noção de democracia no país. 10 Com a implementação do plano de estabilização monetária em 1994 – o Plano Real – e as conseqüentes mudanças positivas nos níveis de atividade econômica e de renda, houve uma transformação significativa do quadro de pobreza e da capacidade de acesso ao mercado de consumo de produtos básicos por segmentos da população antes marginalizados (HOFFMAN, 2001). Este foi um componente central do capital político da Presidência da República no período, estabelecendo as referências centrais de apoio e aprovação governamental. Os quatro anos do primeiro governo FHC (1995-1999) promoveram uma experiência de estabilidade monetária desconhecida de várias gerações de brasileiros e, mesmo sem estar atrelado a uma política de desenvolvimento capaz de produzir e enraizar as bases dessa estabilidade, o governo foi capaz de produzir um alto grau de popularidade baseado na avaliação prospectiva da melhora global do país. Tais referências produziram uma relação simbiótica entre as tendências de avaliação do desempenho presidencial e do desempenho da economia constitutiva das percepções da população em geral sobre o governo no período entre 1995 e 2006 (MENEGUELLO, 2007). As dez novas variáveis desse segundo construto incluem a avaliação comparada entre três períodos políticos _o governo do momento, os oito anos do governo anterior (1994-2002) e os últimos 10 anos da ditadura militar (1974-1984)_ para três aspectos, a situação da economia, dos direitos humanos e da corrupção e tráfico de influências, além da avaliação geral do governo Lula (2002-2006). Os dados sugerem que no âmbito da economia e dos direitos humanos houve avanços positivos importantes no decorrer da democratização percebidos pelos cidadãos no período atual (Tabela 4). As percepções mais positivas ocorrem na comparação entre o governo do momento e os governos militares, refletindo os efeitos da conquista e ampliação de direitos e liberdades civis, por um lado, e o desempenho das políticas econômicas, por outro. De toda forma, tais percepções apontam para a constituição de um terreno significativo de apoio ao regime democrático. O mesmo não ocorre para a situação da corrupção e o trafico de influências; nesse caso, a percepção negativa do fenômeno ocorre em todas as comparações de períodos políticos. É importante mencionar o potencial impacto sobre a percepção dos entrevistados exercido pelas denúncias de corrupção envolvendo políticos, partidos e o governo ocorridas um ano antes da realização desta pesquisa. Os resultados da análise multidimensional para o segundo modelo estão apresentados na Tabela 5. 11 Tabela 4. Variáveis de comparação entre períodos políticos, incluídas no modelo de apoio à democracia Avaliação da situação econômica no governo Lula comparada ao período anterior Melhorou piorou igual Avaliação da situação econômica do governo Lula comparada aos últimos 10 anos de governos militares (1973-1984) Melhorou piorou igual Avaliação da situação econômica do governo FHC comparada ao periodo anterior Melhorou piorou igual Avaliação da situação dos direitos humanos no governo Lula comparada ao periodo anterior Melhorou piorou igual Avaliação da situação dos direitos humanos no governo FHC comparada ao periodo anterior Melhorou piorou igual Avaliação da situação dos direitos humanos no governo Lula comparada aos últimos 10 anos de governos militares (1973-1984) Melhorou piorou igual Avaliação da corrupção e tráfico de influência no governo Lula comparado ao periodo anterior Melhorou piorou igual Avaliação da corrupção e tráfico de influência no governo FHC comparado ao periodo anterior Melhorou piorou igual Avaliação da corrupção e tráfico de influência no governo Lula comparada aos últimos 10 anos de governos militares (1973-1984) Melhorou piorou igual Avaliação governo Presidente Lula (bom+muito bom) N 12 51 % 20.1 28.8 56.3 21.7 22 32.6 30.8 36.6 51.3 13.7 35.1 36.0 20.8 43.2 60.4 16.8 22.8 25.9 48.5 25.5 21.6 37.2 41.3 33.2 37.9 28.9 49.5 2004 Tabela 5. Dimensões normativas e comparações entre períodos políticos como bases do apoio ao regime 1 Avaliação geral do governo Lula Comparação direitos humanos governo Lula com período anterior Comparação situação econômica governo Lula com períodos anteriores Comparação situação econômica governo FHC com período anterior Comparação situação econômica governo Lula com governos militares Comparação direitos humanos governo FHC com período anterior Comparação direitos humanos governo Lula com governos militares Necessidade dos partidos para a democracia Necessidade do Congresso Nacional para a democracia Necessidade do Congresso Nacional para o Brasil Importância do voto para mudar as coisas Democracia como melhor forma de governo Preferência entre democracia ou ditadura Disposição para votar para presidente mesmo se voto não fosse obrigatório Comparação corrupção governo FHC com o período anterior Comparação corrupção governo Lula com governos militares Comparação corrupção governo Lula com o período anterior Variância explicada 2 3 4 ,838 ,741 ,843 ,693 ,637 ,740 ,643 ,806 ,811 ,676 ,669 ,618 ,601 ,600 ,636 ,673 ,601 ,594 14,3% 12% Variância explicada total 11.6% 10.3% 56.62% Extraction Method: Principal Component Analysis. Rotation Method: Varimax with Kaiser Normalization. Neste segundo modelo, os dados apontam a força das percepções sobre o governo do momento no construto de apoio ao regime. O modelo produziu 5 fatores, com uma variância explicativa de α=56,6%. O Fator 1 é o fator governo Lula. Ali residem as variáveis de avaliação do governo e da economia com as maiores cargas da matriz (maiores que 0.8) , além da avaliação dos direitos humanos no governo atual (0,741). Também figura a avaliação da corrupção no governo atual, mas com uma carga pouco menor (0,594). O Fator 2 é considerado o fator comparação política propriamente dito, pois compõe-se exclusivamente da avaliação da situação econômica e dos direitos humanos comparada no governo Fernando Henrique e com os governos militares entre 1975 e 1985. O que está substantiva e subjetivamente incluído na disposição dos Fatores 1 e 2 é o papel do Plano Real como referência de avaliação às situações econômicas de períodos políticos anteriores. Contudo, não parece aleatório o fato da avaliação da situação da economia no governo Lula estar em fator separado às avaliações da economia em governos anteriores. O Fator 1 indica a proeminência da avaliação do governo do momento nos seus vários aspectos, sobre as demais referências político- 13 5 8.5% temporais. O Fator 3 é denominado instituições representativas, pois nele constam apenas as questões que afirmam a necessidade dos partidos políticos e do Congresso para a democracia, bem como a necessidade do Congresso para o Brasil, em específico. Não figuram nessa dimensão e em nenhuma outra duas questões relacionadas aos partidos políticos: se partidos são indispensáveis à democracia ou apenas dividem pessoas (a qual também não figurou na matriz do primeiro modelo), e a questão sobre a preferência em ter um presidente associado a partido político. É apenas no Fator 4, denominado Democracia, que emergem as questões sobre a preferência democrática, associadas às 2 questões que valorizam o exercício do voto. Estes dados repetem a associação entre democracia e eleições que encontramos anteriormente, mas neste segundo modelo essa relação tem força especial, pois esta noção de democracia não se altera quando ponderamos em conjunto as percepções sobre a economia do país nos governos Lula, FHC e os governos militares, tampouco as percepções sobre direitos humanos e corrupção nesses três períodos. Finalmente, o Fator 5 de avaliação da corrupção, agrega as três questões de avaliação em todos os períodos políticos, inclusive no governo Lula, com a questão que aparece tanto neste Fator (com carga 0.601) como no Fator 1( com carga 0,594). Este segundo modelo de análise do apoio à democracia aponta para quadro político imediato como a primeira referência que os cidadãos têm para estabelecer-se frente o sistema democrático. Neste caso, trata-se do peso do governo do momento, no caso o governo Lula e seu desempenho nas dimensões da economia e dos direitos humanos. A preferência pelo regime não está imediatamente associada a essas duas dimensões e, como já mencionamos, mantém-se relacionada ao voto. Mesmo emergindo em dimensão de menor peso explicativo, é importante reafirmar o papel das eleições na referência ao regime. Tanto a força das percepções sobre o governo do momento, quanto o impacto da comparação entre períodos políticos distintos, inclusive entre a democracia e a ditadura que vigorou no país, não alteraram a separação já constatada no primeiro modelo de apoio ao regime, entre a preferência pelo regime democrático e as concepções sobre o papel das instituições representativas (Fatores 3 e 4). Por último, os dados sobre a percepção da corrupção e o tráfico de influência merecem maior análise. Afinal, as três questões que pedem a avaliação de sua situação no tempo, procurando medir os avanços resultantes dos processos políticos emergem juntas, no fator mais distante das referencias imediatas definidas para entender o apoio político (Fator 5). Os estudos que abordam a corrupção com enfoque realista e crítico, como um fenômeno universal que atinge todos os países, apontam o seu impacto sobre aspectos que afetam a legitimidade do sistema democrático, como o apoio ao regime e a confiança nas instituições (SELIGSON, 2001 E 2002; POWER E GONZÁLES, 2003). A corrupção seria a causa e 14 conseqüência do baixo desempenho do sistema, levando à redução da confiança dos cidadãos nas instituições, no governo e na sua capacidade para a solução de problemas, e afetando, portanto, o apoio ou a adesão ao regime. Nessa direção, Warren (2004) aponta que a corrupção tem efeitos significativos sobre a democracia, ela rompe com os pressupostos fundamentais do regime, como a igualdade política e a participação; reduz a influência da população no processo de tomada de decisões, seja por fraudes nos processos decisórios, como nas eleições, seja pela desconfiança e suspeita que ela gera entre os próprios cidadãos, e com relação ao governo e as instituições democráticas, e reduz a transparência das ações dos governantes. Assim, tal como constituído no segundo modelo de apoio ao regime, o Fator 5 sugere a existência de um déficit de entendimento sobre o terreno normativo da preferência pela democracia, no qual a transparência e o império da lei são aspectos centrais. Por um lado, esse cenário nos ajuda a entender a crise política de 2005, em que os escândalos de corrupção não abalaram a avaliação do governo e do presidente, bem como a preferência pela democracia. Mas aponta, por outro lado, para um problema mais complexo, que é compreender as causas das dimensões independentes encontradas no modelo, em especifico, as motivações para que as percepções sobre as situações da corrupção de governos distintos sejam estabelecidas de forma relativamente isolada. A SATISFAÇÃO E APOIO AO REGIME DEMOCRÁTICO Nas democracias consolidadas, boa parte do apoio à democracia sustenta-se no processo de longo termo de socialização dos cidadãos com os valores democráticos; nas democracias recentes, por sua vez, o apoio ao regime sustenta-se inicialmente na expectativa sobre o novo período, ou ainda, na rejeição ao regime anterior, mas o desempenho do regime é um fator central que o apoio normativo se sustente (ROSE AND MISHLER, 1999; 2007). O novo regime deve mostrar-se capaz de prover os bens coletivos almejados e, nesse sentido, o apoio torna-se, em boa medida, contingente ao desempenho econômico. Apoio ao regime democrático e satisfação com o funcionamento da democracia são fenômenos distintos (GUNTHER E MONTERO, 2003), dizem respeito, respectivamente, a aspectos valorativos e avaliativos e implicam medidas distintas. Nessa direção, constituímos um construto sobre o desempenho do regime baseado na satisfação com a democracia existente no país e aspectos que permitem avaliar o desempenho do sistema, como a avaliação governamental difusa e a avaliação dos serviços públicos. Quatro conjuntos de questões foram definidos para mensurar a crítica do cidadão ao estado de coisas em que vive o país. O primeiro coloca em avaliação o próprio desempenho do 15 regime, através da medida de satisfação com o funcionamento da democracia, o grau de completude do regime e a validade dos processos eleitorais. O segundo conjunto aborda a economia nas suas dimensões sociotrópicas retrospectiva, presente e futura; a avaliação da situação econômica pessoal e familiar, presente, retrospectiva e prospectiva, além da avaliação da capacidade do salário. O terceiro conjunto baseia-se na hipótese de que a avaliação do desempenho do regime está associada ao desempenho governamental e, especificamente, com relação aos serviços públicos, dado que esta é uma relação cotidiana direta dos cidadãos com o Estado (LISTHAUG, 1998). Finalmente, o quarto conjunto é composto de uma única questão com avaliação múltipla de itens que avalia o desempenho de instituições públicas e privadas. Dimensionar a capacidade das instituições exercerem sua função de intermediários entre os cidadãos e o sistema é central para avaliar o desempenho do regime. A distribuição simples dos dados para essas variáveis mostra uma percepção crítica majoritariamente negativa sobre quase todos os fatores indagados nas 13 questões selecionadas (Tabela 6). Apesar da preferência majoritária pela democracia, observada nas medidas normativas sobre o regime analisadas no item anterior, os cidadãos são insatisfeitos e críticos sobre o seu funcionamento no país: apenas 21% são satisfeitos com a democracia, mais de 70% consideram que a democracia brasileira tem grandes problemas, e pouco mais de 55% consideram que as eleições são limpas. Este último é um dado a destacar, afinal, nessa variável reside grande parte da legitimidade do sistema. A percepção negativa atinge a avaliação da atuação de boa parte das instituições, notadamente o Congresso, os partidos e as leis do país. Destacam-se as avaliações positivas das instituições privadas, como a Igreja e a televisão mas, sobretudo, cabe salientar a percepção positiva da atuação das Forças Armadas, com mais de 75%. É fato que ao longo dos 21 anos de democratização, as Forças Armadas foram desvinculadas da política e associadas aos temas ligados à gestão da segurança e defesa no mapa de referências dos cidadãos; mesmo assim, com um passado relativamente recente marcado pela ditadura militar, é curiosa a sua posição no conjunto de instituições avaliadas positivamente. Com relação à economia, a percepção sobre seu desempenho é positiva em geral, e destacam-se as perspectivas otimistas declaradas tanto com relação à situação geral do país, quanto à situação pessoal, assim como a avaliação positiva retrospectiva. Finalmente, a avaliação positiva dos serviços públicos indica um déficit importante das respostas do estado frente às demandas da gestão do cotidiano dos cidadãos, com boa parte das avaliações positivas menores que 50%. Também buscamos entender a articulação dessas variáveis na composição do construto do desempenho do regime, e procedemos novamente com a análise multidimensional. O resultado está exposto na Tabela 7. 16 Tabela 6. Variáveis de avaliação do desempenho do regime Variáveis Como considera a democracia no Brasil Como considera as eleições no Brasil Satisfação com funcionamento da democracia no país Avaliação da economia no governo Lula comparada ao período anterior Avaliação da economia do país hoje Avaliação de economia do país daqui a um ano Situação econômica pessoal e da família Situação econômica pessoal e da família daqui a um ano Situação econômica pessoal e da família comparada há 10 anos atras Capacidade do salário Avaliação Partidos Avaliação Congresso Avaliação Igreja Avaliação Forças Armadas Avaliação Polícia Avaliação Poder Judiciário Avaliação emissoras de TV Avaliação Sindicatos Avaliação Empresários Avaliação Governo Avaliação Presidente Avaliação Bombeiros Avaliação Leis do país O Brasil é uma democracia plena Uma democracia com pequenos problemas Uma democracia com grandes problemas O Brasil não é uma democracia em % 4.5 18,9 70.9 5.7 Eleições são limpas Eleições são objeto de fraude (muito satisfeito+satisfeito) 55.1 44.9 21.2 (melhor) 51.1 (boa+muito boa) (muito melhor + pouco melhor) (boa+muito boa) (muito melhor + pouco melhor) 42.7 70.1 49.3 78.5 (melhorou muito + melhorou um pouco) 71.8 suficiente 38.7 19.3 28.9 88.0 75.1 43.6 50.9 78.5 44.7 37.9 40.2 49.7 93.4 35.9 49.5 44.2 38.5 34.8 49.0 50.7 53.1 39.2 34.4 2.004 (ótima+boa) Avaliação governo Presidente Lula Avaliação serviços Habitação Avaliação serviços Polícia Avaliação serviços saúde Avaliação serviços educação Avaliação serviços transporte Avaliação serviços seguro-desemprego Avaliação serviços saneamento Avaliação serviços previdência social (bom+muito bom) (bom+ótimo) N 17 Encontramos uma solução com 6 fatores, que mostram que a avaliação do desempenho do sistema democrático depende, primeiramente, da avaliação das instituições que embasam o regime, que compõem exclusivamente o Fator 1, e da avaliação dos serviços públicos, que compõe exclusivamente o Fator 2. Este cenário indica que para os cidadãos a capacidade de gestão do sistema é avaliada segundo a gestão pública do cotidiano e as referências institucionais que conduzem o governo e a representação de interesses. Neste conjunto de instituições do Fator 1 não figuram as Forças Armadas, que apenas aparecerão no Fator 4, o que sugere um efeito importante na formação das referências institucionais para o funcionamento efetivo do sistema democrático. Figura juntamente neste fator a avaliação dos bombeiros, indicando que se forma aqui uma referencia geral de avaliação institucional associada à segurança. Do total de instituições avaliadas, não figuram em toda a matriz a ‘Igreja’, a ‘Televisão’ e as ‘leis do país’. No Fator 3 estão as variáveis de maior carga de toda a matriz (maiores que 0.8) e tratam da avaliação do presidente e da economia do país, tanto retrospectiva quanto prospectiva, sendo que a dimensão econômica pessoal emerge em 2 questões apenas no Fator 5. A disposição dessas variáveis e a força de seu efeito sugerem a estreita vinculação das percepções sociotrópicas sobre a economia na percepção do desempenho político. Finalmente, apenas no 6º fator emergem as questões que medem a satisfação com a democracia e avaliam seu desempenho através dos processos eleitorais e dos problemas percebidos no país, A capacidade explicativa total do modelo elaborado, de α= 53,5%, está concentrada sobretudo nos 3 primeiros fatores (α=36,8%), que definem o desempenho do regime segundo os conjuntos de variáveis que agregam a avaliação da atuação de instituições, o desempenho dos serviços públicos, e a avaliação geral da economia, associada ao governo do momento. Esses dados sugerem a presença de um entendimento razoável das bases de funcionamento do sistema, em que as instituições e a gestão pública têm papel central. Entretanto, também sugerem que essas medidas têm primazia sobre a própria percepção da eficácia democrática, traduzida aqui na percepção dos processos eleitorais e na completude do regime. 18 Tabela 7. Dimensões do desempenho do regime 1 ,579 ,593 ,749 ,708 ,601 ,687 ,667 Aval. Poder Judiciário Aval. Polícia Aval. Congresso Nacional Aval. Partidos Aval. Sindicatos Aval. Empresas Aval. Governo aval. serviços públicos- habitação 2 3 4 5 6 ,634 ,570 ,753 ,724 ,719 ,598 ,653 ,658 aval. serviços públicos -polícia aval. serviços públicos -saúde aval. serviços públicos –educação aval. serviços públicos transporte aval. serviços públicos – seguro-desemprego aval. serviços públicos – saneamento aval. serviços públicos – previdência social Avaliação governo Lula ,813 Aval. economia no governo Lula comparada Aval. Situação economica atual Expectativa sobre situação econômica do país Aval. Presidente ,811 ,660 ,601 ,640 Aval. Forças Armadas Aval. Bombeiros Aval. Situação econômica pessoal e familiar Aval. Capacidade do salário Satisfação com democracia no país Brasil é plena democracia ou democracia com problemas Eleições brasileiras são limpas ou fraudulentas Variância explicada Variância total explicada ,626 ,608 ,792 ,761 13.4% 12.8% 10.7% 6.2% 53.6% 5.7% ,629 ,660 ,596 4.8% BREVES CONCLUSÕES Que papel têm as instituições representativas na constituição do apoio de massa à democracia no Brasil? Levando-se em conta os resultados de nossas analises, esse papel é menor do que as teorias sobre a democracia representativa apontariam. Vimos que o apoio político ao regime, repetindo resultados de estudo sobre período anterior, emerge associado à dinâmica eleitoral e ao voto e, embora as referências normativas relativas aos partidos e ao Congresso constituam parte do entendimento sobre o funcionamento do regime democrático, elas não se articulam diretamente às medidas de eficácia e de atuação no sistema. 19 A comparação entre períodos de situações políticas diversas tem efeito relativo sobre o construto normativo do apoio ao regime. Provavelmente devido ao processo bem sucedido de implantação de mecanismos e procedimentos para o funcionamento democrático desenvolvido ao longo de mais de 20 anos no país, bem como da conquista de patamares positivos de crescimento econômico, efetivamente percebidos pela população, a comparação entre a situação presente e o regime autoritário terminado em 1985 perde força como referência para constituir a preferência e o apoio político à democracia, uma situação distinta do que se observou nas novas democracias no Leste Europeu no inicio dos anos 1990. No caso brasileiro, as percepções sobre o governo do momento nas várias dimensões analisadas constituem a principal referência para avaliação do desempenho do regime, o que por sua vez, condicionam em parte o apoio geral à democracia. Embora as instituições representativas ocupem um terreno menos articulado às noções de apoio ao regime democrático, a avaliação das instituições em geral, incluindo partidos e congresso, tem papel primordial para o entendimento do desempenho do regime. As percepções sobre sua atuação, bem como da atuação do estado através da execução dos serviços públicos, são as principais dimensões constitutivas da satisfação com o desempenho do sistema. Ainda sobre a satisfação com o desempenho da democracia, os dados sobre os efeitos da dimensão da economia devem ser ressaltados. A variável de avaliação da situação econômica do país tem presença permanente no mapa de referências sobre o sistema. Não se trata de referendar a relação unívoca que define o apoio político como resultante de considerações econômicas, mas sim, de levar em conta o peso central que essa dimensão tem na formação de posicionamentos sobre a política e sobre o apoio ao sistema em geral. É plausível sugerir que, de fato, as políticas econômicas do período democrático, em especifico, as mudanças promovidas pelo Plano Real exerceram um ‘efeito politizador’ sobre os posicionamentos políticos dos cidadãos, observados ao menos até 2006. A aplicação de conceitos e a busca de referências valorativas em uma pesquisa específica em determinado período tem suas conclusões condicionadas às circunstâncias de sua realização (ROSE, 2007). A pesquisa de 2006 foi realizada pouco antes do início da campanha para as eleições gerais daquele ano, e o apoio ao governo do momento _ o primeiro governo Lula_ , marcado por altos índices de popularidade e com perspectivas sólidas de reeleição, constituiu um pano de fundo importante para as referências sobre o funcionamento do sistema em geral. Os achados desta análise devem observados à luz dos condicionantes daquele momento. 20 Anexo 1 Tabela 1. Valores sobre aspectos do sistema representativo e o presença dos militares Survey _As Eleições Brasileiras de 1982, IDESP Uns dizem que: a melhor solução para o Brasil é o próximo presidente, que vai ser eleito em 1985, pelo povo, em voto direto. Outros dizem que: a melhor solução para o Brasil é a eleição indireta do presidente da República pelo Congresso. Qual é a sua opinião? Gostaria de saber sua opinião sobre a atuação do Congresso, isto é, dos deputados e senadores. O Sr.(a) acha que eles deveriam ter mais poder do que tem atualmente, que deve ficar como está ou que deveriam ter menos poder? Se o voto não fosse obrigatório, o Sr. votaria assim mesmo ou não votaria? Uns dizem que: as discussões e os debates entre os partidos são inúteis, e que os partidos fazem mais mal do que bem ao país. Outros acham que: as discussões entre os partidos ajudam o povo a compreender muitos problemas e que portanto prestam um bom serviço ao país. Qual é a sua opinião?" 1 Concorda mais com o voto direto 80% 2 Concorda mais com o voto indireto 17.8 2,2 3. Discorda de ambas 1 Deveriam ter mais poder 53.1 2 Deve ficar como está 37.4 3 Deveriam ter menos poder 7.1 4 Outras respostas 2.4 1 Votaria 61.3 2 Não votaria 38.7 1. Concorda mais que os partidos são inúteis 27.2 2 Concorda mais que os partidos prestam bom serviço 65.8 3 Discorda de ambas N 7.0 4.322 Obs: Pesquisa coordenada pelo IDESP (Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo) nas eleições de 1982_ survey realizado em 7 capitais estaduais (São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife, Salvador, Fortaleza). Banco de Dados do CESOP: IDE/cap82_02603. Ver ainda Souza e Dentzien, 1983. 21 Anexo 2. Questões utilizadas nas análises multidimensionais 1) Modelo 1- Apoio à democracia 1. O Sr(a) concorda ou discorda com a seguinte afirmação: A democracia pode ter problemas, mas é o melhor sistema de governo. o Sr(a) concorda ou discorda? 9.. Você acha que: 1 A maneira como as pessoas votam pode fazer com que as coisas 2 Não importa como as pessoas votam, não fará com que as coisa 2) Modelo 2 _ Apoio à democracia (questões adicionais) 1) Na sua opinião, o presidente Lula está fazendo um governo: 1 Muito bom 2 Bom 3 Regular 4 Ruim 5 Muito Ruim 2. Gostaria que o Sr(a) me dissesse com qual dessas três afirmações o Sr(a) concorda mais a) A democracia é sempre melhor do que qualquer outra forma de governo. b) Em certas circunstâncias, é melhor uma ditadura do que um regime democrático. c) Tanto faz se o governo é uma democracia ou uma ditadura. 2) E quanto à situação econômica do Brasil no governo Lula - desde janeiro de 2003 - Você diria que a situação econômica do país melhorou, piorou ou ficou igual ao que era antes? 1 Melhorou 2 Ficou igual 3 Piorou 3. Tem gente que acha que sem partidos políticos não pode haver democracia, outras pessoas acham que a democracia pode funcionar sem partidos políticos. O que você acha? a) Sem partidos não pode haver democracia b) A democracia pode funcionar sem partidos 4.O que é melhor, um presidente da República que...? a) Seja identificado com um partido político ou b)Um presidente que não dê importância para os partidos 3)E durante o governo FERNANDO HENRIQUE entre janeiro de 1994 e dezembro de 2002 - Você diria que a situação econômica do país melhorou, piorou ou ficou igual em relação ao que era antes? 4) E em comparação com os últimos 10 anos dos governos militares, no tempo dos generais Geisel e Figueiredo, Você diria que a situação econômica atual ... ao que era antes? 5) Falando dos direitos humanos, a situação, durante o governo de FERNANDO HENRIQUE ... em relação ao que era antes? 6) E no governo de Lula, você diria que a situação dos direitos humanos ... em relação ao que era antes? 7) E em comparação com os últimos 10 anos dos governos militares no tempo do generais Geisel e Figueiredo, a situação atual dos direitos humanos no Brasil ...: 8) Falando de corrupção e tráfico de influência: No governo FERNANDO HENRIQUE essas coisas ... ao que era antes? 9)E no governo Lula, falando de corrupção e tráfico de influência, as coisas ... ao que era antes? era antes? 10) E em comparação com os últimos 10 anos dos governos militares no tempo dos generais Geisel e Figueiredo, à corrupção e tráfico de influência, as coisas ... ao que era antes? 5.. Na sua opinião, os partidos políticos são a)Indispensáveis à democracia b)Só servem para dividir as pessoas c)Outras respostas 6. O Congresso Nacional é formado por deputados federais e senadores eleitos pelo povo. Tem gente que acha que sem Congresso Nacional não pode ter democracia, enquanto outras pessoas acham a) Sem Congresso Nacional não pode haver democracia b) A democracia pode funcionar sem Congresso Nacional 7.. Você acha que o Brasil precisa do Congresso Nacional, isto é, da Câmara de Deputados e do Senado, ou nós poderíamos passar bem sem ele? a) O país precisa da Câmara dos Deputados e do Senado b) Poderíamos passar bem sem a Câmara de Deputados e Senado 8) Se o voto não fosse obrigatório, você votaria nas próximas eleições para Presidente da República? Sim Não 22 3) Modelo sobre avaliação do desempenho democrático 1) Você diria que está muito satisfeito, satisfeito, pouco satisfeito ou nada satisfeito com o funcionamento da democracia no Brasil? 3 Regular 4 Ruim 5 Muito Ruim 9) E nos próximos 12 meses, você acha que a sua situação econômica e da sua família será ... que a situação econômica que vocês tem hoje? 1 Muito melhor 2 Um pouco melhor 3 Igual 4 Um pouco pior 5 Muito pior 10)Pensando em sua situação econômica de hoje e comparada com a de 10 anos atrás, você diria que ela ... em relação ao resto dos brasileiros? 1 Melhorou muito 2 Melhorou um pouco 3 Permaneceu igual 4 Piorou um pouco 5 Piorou muito 2) Como você acha a democracia no Brasil? uma democracia plena, uma democracia com pequenos problemas, uma democracia com grandes problemas, ou o Brasil não é uma democracia1 O Brasil é uma democracia plena a) Uma democracia com pequenos problemas b) Uma democracia com grandes problemas c) O Brasil não é uma democracia d) Não sei o que é uma democracia 3) Na sua opinião, o presidente Lula está fazendo um governo: 1 Muito bom 2 Bom 3 Regular 4 Ruim 5 Muito Ruim 11) O salário que você ganha e o total de rendimentos de sua família lhe permite cobrir satisfatoriamente suas necessidades? Por favor, me indique em qual das seguintes situações Você se encontra? 1 É suficiente, permite economizar 2 É suficiente, não tenho grandes dificuldades 3 Não é suficiente, tenho dificuldades 4 Não é suficiente, tenho grandes dificuldades 4) E quanto à situação econômica do Brasil no governo Lula - desde janeiro de 2003 - Você diria que a situação econômica do país melhorou, piorou ou ficou igual ao que era antes? 1 Melhorou 2 Ficou igual 3 Piorou 12)Como você avalia os serviços públicos do pais em ao relação serviço de (...) Você acha que é: Habitação Saúde Transportes Polícia Educação Seguro-desemprego Esgoto e saneamento Previdência social 5) Você acredita que as eleições no Brasil são limpas ou são objeto de fraude? 1 As eleições são limpas 2 São objetos de fraude 6) Como você avalia a situação econômica do país hoje? 1 Muito boa 2 Boa 3 Regular 4 Ruim 5 Muito Ruim 13) Gostaria que você avaliasse a atuação de cada uma das seguintes instituições Igreja Forças armadas Poder judiciário Polícia Congresso Nacional Partidos políticos Televisão Sindicatos Empresários Governo Presidente Bombeiros Leis do país 7) E no próximo ano, a situação econômica do país será: 1 Muito melhor 2 Um pouco melhor 3 Igual 4 Um pouco pior 5 Muito pior 8) A sua situação econômica atual e a de sua família é: 1 Muito boa 2 Boa 23 IV. DESAFIOS DA MAIORIDADE DAS ELEIÇÕES DEMOCRÁTICAS1 JOSÉ ÁLVARO MOISÉS In memoriam de Maria Dalva Kinzo2 INTRODUÇÃO Vinte e um anos após a primeira eleição para presidente da República depois do retorno da democracia no Brasil, 135 milhões de eleitores escolheram o governo do país para os próximos quatro anos, em 3 de outubro de 2010; ao mesmo tempo, escolheram os representantes encarregados de defender seus interesses e preferências no parlamento. Nem sempre eleições majoritárias e proporcionais coincidiram no país, mas os resultados dessas duas décadas de ciclos eleitorais regulares, previsíveis e livres – controlados por um órgão de monitoramento independente como a Justiça Eleitoral - apontam para a consolidação de duas características fundamentais do regime democrático, a participação do demos e a contestação política (DAHL, 1971). Enquanto no primeiro caso a expansão do sufrágio no país, em comparação com as últimas eleições do período democrático anterior, representou a inclusão quase da totalidade da população adulta na polity (ver gráfico 1), a intensa competição política dos anos 90 e desta década deu origem ao atual multipartidarismo, um sistema não tão moderado quanto suas origens prenunciavam, mas capaz de garantir a alternância no governo de diferentes contendores políticos (KINZO, 2004; RODRIGUES, 2002). Temos razões de sobra, portanto, para celebrar a consolidação da democracia eleitoral no país. A participação eleitoral dos brasileiros, apoiada na valorização do voto como meio de influir nos negócios públicos - como revelado por diferentes pesquisas de opinião (MOISÉS, 1995; 2008A; MENEGUELLO, 2010) -, indica que os cidadãos estão hoje mais mobilizados para exercer a sua cidadania política, embora se mostrem também, em aspectos bastante importantes, mais críticos e mais severos no julgamento da vida pública do que no início da democratização. O regime democrático brasileiro convive, assim, com 1 Capítulo de livro organizado pelo Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo para celebrar 20 anos de eleições democráticas no Brasil (Imprensa Oficial de São Paulo, no prelo). 2 Maria Dalva Kinzo foi professora do Departamento de Ciência Política da USP (1987-2009) e, especialista no estudo do sistema partidário, escreveu importantes contribuições sobre os partidos políticos brasileiros. 1 um paradoxo: enquanto a participação e a adesão normativa à democracia tem sido crescentes nas últimas duas décadas3, os índices de desconfiança de instituições democráticas verificados desde os primeiros anos após o fim do ciclo autoritário permanecem elevados e, em alguns casos, têm aumentado significativamente, sinalizando a existência no Brasil de uma cisão na percepção pública da democracia como um ideal e como realização prática. O fenômeno não diz respeito à credibilidade em eleições, mas coloca em questão o desempenho de algumas instituições cujos mandatos são preenchidos através delas4. A questão se refere menos à saudável desconfiança de quem governa (titulares de cargos executivos e representantes) - importante para monitorar o seu grau de responsividade5 -, e mais à descrença do como ou do modo de funcionar de instituições cuja missão é assegurar e tornar efetivos direitos de cidadania. A desconfiança política atinge quase todas as instituições públicas brasileiras, mas ela é particularmente mais severa no caso dos partidos políticos e do parlamento6. Por isso, ao atingirmos a maioridade do ciclo de eleições democráticas do país, isso aponta para um desafio para a democracia representativa: embora usualmente haja cooperação entre os poderes republicanos, o executivo e o legislativo não têm as mesmas funções institucionais no regime de separação de poderes e, para bem desempenhar o que deles se espera, têm de preservar a autonomia e a independência entre ambos; já quanto aos partidos políticos, além de funcionar como elementos de agregação e articulação de interesses e preferências dos eleitores, espera-se que operem como elo de mediação entre a sociedade civil e o Estado. As funções de agregação e de articulação per se são insuficientes se não forem completadas por aquelas de expressão e representação da contraditória diversidade que caracteriza as sociedades complexas e desiguais como o Brasil. Isso significa que, ao atuarem no parlamento em nome dessa diversidade, levando para dentro do sistema político as demandas e aspirações tanto da maioria como das minorias (MILL, 1964), não se espera que os partidos funcionem apenas na arena decisória, como garantia de 3 Pesquisas de cultura política realizadas pelo autor entre 1989 e 2006 mostram que, um ano após a promulgação da Constituição de 1988, apenas 46% dos entrevistados preferiam a democracia à ditadura, mas esse índice cresceu ao longo das últimas duas décadas e alcançou mais de 74% em 2006 (Moisés, 2008a). 4 A pesquisa “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas” (2005-2009), coordenada por José Álvaro Moisés e Rachel Meneguello da Unicamp, mostrou que as instituições do executivo, do legislativo e do judiciário são objeto de altos índices de desconfiança dos brasileiros, em alguns casos, ultrapassando 2/3 dos entrevistados. O acesso ao banco de dados pode ser obtido através de solicitação ao NUPPs/USP. 5 Responsividade (responsiveness) é o conceito utilizado pela literatura anglo-saxão para se referir à obrigação de governos e representantes de tomar decisões quanto a políticas públicas em consonância com as demandas e expectativas dos membros da comunidade política. 6 Dados de survey nacional realizado no âmbito da pesquisa citada na nota 3 indicam que, em 2006, mais de 78% dos entrevistados desconfiavam do Congresso Nacional e cerca de 82% desconfiavam dos partidos (Moisés, 2010a). 2 governabilidade de alianças ou coalizões governamentais formadas no presidencialismo de coalizão (ABRANCHES, 1988; SANTOS, 2003; CINTRA, 2007). Governabilidade é um requisito indispensável da governança democrática, como corretamente têm observado alguns analistas (FIGUEIREDO E LIMONGI, 1999), mas o seu preço não pode ser os partidos e os parlamentos deixarem de exercer plenamente as suas funções no sistema de accountability que compõe a estrutura da democracia representativa; nesse regime, as instituições de representação complementam a chamada accountability vertical - isto é, o escrutínio direto dos governantes exercido pelos eleitores através do voto. Aos partidos e parlamentos são atribuídas funções constitucionais de controle e fiscalização do exercício do poder e da responsabilização de quem governa perante a opinião pública e o judiciário – trata-se, nesse caso, da accountability horizontal, à qual ainda se soma a accountability social (O´DONNELL, 2005; SMULOVITZ E PERUZZOTTI, 2005). Enquanto a accountability vertical supõe algum grau de informação e conhecimento dos eleitores do que está em jogo nas disputas eleitorais, a accountability horizontal implica na inexistência de obstáculos ou estímulos à inação na relação do legislativo com o executivo e, ao mesmo tempo, na capacidade dos partidos de sinalizarem para a sociedade as alternativas existentes de manutenção ou mudança do status quo. São mecanismos institucionais complementares que perdem o seu sentido se um deles faltar. Eleições democráticas, competitivas e livres, como as que o país vem realizando nas duas últimas décadas, são um elemento essencial da complexa dinâmica política que diferencia a democracia de suas alternativas. Por um lado, asseguram a inclusão do demos, nos termos de Dahl (1971), e, por outro, dão expressão às diferentes perspectivas existentes na sociedade através da organização de partidos (BOBBIO, 2000). Uma pergunta, no entanto, deriva desse quadro: consolidada a democracia eleitoral no país, ela é suficiente para assegurar as expectativas que a sociedade deposita no regime democrático como um ideal? Este capítulo pretende discutir a relação entre democracia eleitoral e democracia efetiva no quadro das mudanças políticas ocorridas no país nos últimos 21 anos. A preocupação central do texto é com as implicações dos avanços eleitorais para o aperfeiçoamento da democracia representativa e, em particular, para a avaliação de alguns dos principais problemas enfrentados pelo sistema partidário e pelo parlamento no Brasil. O texto está organizado em três seções: a primeira discute as inovações analíticas introduzidas pela abordagem da qualidade da democracia em relação às definições usuais do conceito; a segunda retoma as análises de autores como Kinzo (2004) e Nicolau (2002) sobre as implicações da participação eleitoral no Brasil contemporâneo; e a terceira debate alguns dos principais problemas envolvidos na relação entre partidos e parlamento após a 3 democratização. A conclusão aponta para a atualidade da reforma política como meio de a democracia representativa enfrentar os seus desafios no momento em que o ciclo de eleições democráticas do país chega à sua maioridade. A QUALIDADE DA DEMOCRACIA A experiência internacional confirma que eleições são indispensáveis para a existência da democracia, mas a análise dos processos de democratização dos últimos 40 anos, em várias partes do mundo, mostrou que elas não garantem per se a instauração de um regime político capaz de assegurar princípios fundamentais como o primado da lei, o respeito aos direitos civis, políticos e sociais dos cidadãos e o controle e a fiscalização de governos. Apesar de sinalizar que o antigo regime terminou e que, doravante, a escolha de quem governa está submetida ao princípio da soberania popular, a vigência de eleições não tem impedido que, em vários casos, mesmo evoluindo no sentido de garantir a governabilidade, democracias eleitorais não atendam necessariamente a todos os critérios segundo os quais um sistema político autoritário se transforma em democrático. No Leste Europeu, na Ásia e na América Latina, países que consolidaram processos eleitorais competitivos convivem com a existência de governos que violam os princípios de igualdade perante a lei, usam a corrupção e a malversação de fundos públicos para realizar objetivos privados e dificultam ou bloqueiam o funcionamento dos mecanismos de accountability vertical, social e horizontal. Nesses casos, o que está em questão não é se a democracia existe, mas a sua qualidade (SHIN, 2005; MORLINO, 2002; DIAMOND E MORLINO, 2005; O’DONNELL, CULLELL E IAZETTA, 2004; SCHMITTER, 2005; LIPJHART, 1999). É por essa razão que a definição de democracia voltou a ocupar o debate político contemporâneo. Apesar das controvérsias herdadas do século XIX, a literatura sobre as experiências recentes de democratização classificou-a como um fenômeno de natureza multidimensional que envolve eleições, diferentes instituições e a cultura cívica dos cidadãos. Enquanto o significado mais usual de democracia, na literatura especializada, se refere preferencialmente aos procedimentos e aos mecanismos competitivos de escolha de governos através de eleições, outras abordagens do fenômeno democrático ampliaram a compreensão do conceito, incluindo tanto as suas dimensões institucionais como aquelas que se referem aos conteúdos da democracia e os seus resultados práticos no terreno da economia e da sociedade. 4 Sob a influência das abordagens minimalista de Schumpeter (1961) e procedimentalista de Dahl (1971), vários autores definiram a democracia em termos de participação, competição e contestação pacífica pelo poder. Assim, o estabelecimento de um regime democrático implicaria basicamente em condições mínimas como: 1) direito dos cidadãos escolherem governos por meio de eleições com a participação de todos os membros adultos da comunidade política; 2) eleições regulares, livres, competitivas e abertas; 3) garantia de direitos de expressão, reunião e organização, em especial, de partidos políticos para competir pelo poder; e 4) acesso a fontes alternativas de informação sobre a ação de governos e o processo político. Essa definição explicita porque qualquer sistema político que não se baseie em processos competitivos de escolha de autoridades públicas, capazes de torná-las dependentes do voto da massa de cidadãos, isto é, do mecanismo de accountability vertical, não pode ser considerado uma democracia. Mas a ênfase minimalista de Schumpeter e de seus seguidores é vulnerável ao que outros autores classificaram como “falácia eleitoralista”, isto é, a tendência de se privilegiar as eleições sobre outras dimensões da democracia (KARL, 2000). De fato, ao definir a democracia essencialmente como um método de escolha de governos entre elites que competem pela posição, a vertente minimalista dá pouca importância ao que acontece com as demais instituições durante a democratização. Instituições como o parlamento, os partidos, o judiciário ou a polícia podem funcionar de forma deficitária ou incompatível com a doutrina da separação de poderes, mesmo convivendo com um regime de regras eleitorais. Exemplos recentes são os casos da Rússia, do Irã, do Paquistão e, no contexto latino-americano, do Peru sob Fujimori, da Bolívia e do Equador na fase de decisão de suas novas constituições, e da Venezuela sob Chávez. Nesses casos, freqüentemente a oposição não apenas tem sido impedida de competir em condições de igualdade – o que contraria os critérios das abordagens citadas antes - como não encontra amparo em instituições como a policia judiciária, o ministério público, o próprio poder judiciário ou o parlamento, quando, por exemplo, restrições à liberdade de imprensa e/ou à mídia eletrônica constrangem o direito de participação e o acesso dos cidadãos a informações alternativas sobre o processo político. Por outra parte, ao discutir os procedimentos democráticos, Robert Dahl (1971) ampliou a definição do conceito com sua análise das poliarquias, mostrando que para que o princípio de contestação do poder esteja assegurado é também indispensável que a participação dos cidadãos na escolha de governos seja universal e assegure a possibilidade de que eles próprios possam ser escolhidos para formá-los. Outra característica central da democracia, para o autor, é a exigência de responsividade de governos e lideranças políticas 5 diante dos cidadãos. Essas condições envolvem garantias relativas ao direito de organização e representação da sociedade civil, em especial, em partidos políticos, através dos quais se supõe que a pluralidade de concepções e interesses que constituem a sociedade possam se expressar. Mas elas implicam também na necessidade de que princípios internalizados em instituições – como a noção de equilíbrio entre poderes ou o respeito aos direitos de minorias – sejam garantidos por uma constituição aceita como legítima pela sociedade, ou seja, pela dimensão jurídico-legal relativa a valores compartilhados pela maioria dos membros da comunidade política. Embora essa visão faça referência a conteúdos da democracia, a sua ênfase mais importante são os procedimentos democráticos, cujo funcionamento depende da existência e do desempenho de instituições criadas para esse fim. Uma perspectiva concorrente, embora complementar às outras, define a democracia em termos de sua qualidade, tornando mais central o foco nos conteúdos do regime democrático. Utilizando-se de uma analogia com o funcionamento do mercado, o conceito refere-se à qualidade do produto ou serviço produzido segundo procedimentos, conteúdos e resultados singulares. A qualidade envolve processos controlados por métodos e timing precisos, singulares, capazes de atribuir características específicas ao produto ou serviço oferecido para satisfazer as expectativas de seus consumidores potenciais. No caso da democracia, espera-se que esse regime seja capaz de satisfazer as expectativas dos cidadãos quanto à missão que eles atribuem aos governos (qualidade de resultados); à garantia de seus direitos de associação e de gozo da liberdade e da igualdade políticas necessárias para que possam alcançar seus interesses e preferências (qualidade de conteúdo); e à existência de mecanismos institucionais, de escolha de governantes e de checks and balances, destinados a capacitar os cidadãos a avaliar e julgar o desempenho de governos e de representantes escolhidos (qualidade de procedimentos). Instituições e procedimentos são vistos, então, como meios de realização de princípios, conteúdos e resultados esperados pela sociedade do processo político. Além disso, a exigência de participação dos cidadãos envolve a existência de graus de cultura cívica capazes de legitimar e dar vitalidade ao sistema. Com base nesses pressupostos, Diamond e Morlino (2005) identificaram oito dimensões segundo as quais a qualidade da democracia pode variar. As cinco primeiras correspondem a regras de procedimentos, embora também sejam relativas ao seu conteúdo: o primado da lei, a participação e a competição políticas, e as modalidades de accountability (vertical, social e horizontal); as duas seguintes são essencialmente substantivas: de um lado, o respeito por liberdades civis e os direitos políticos e, de outro, 6 como conseqüência do anterior, a garantia de igualdade política e de seus correlatos, como a igualdade social e econômica; por último, é mencionado um atributo que integra procedimentos a conteúdos, ou seja, a responsividade de governos e dos representantes, por meio do que os cidadãos podem avaliar e julgar se as políticas públicas, assim como o funcionamento prático do regime (leis, instituições, procedimentos e estrutura de gastos públicos) correspondem aos seus interesses e preferências. Embora esta perspectiva defina a democracia fundamentalmente em termos dos seus princípios e conteúdos mais importantes, o que supõe a percepção dos cidadãos a seu respeito, fica claro que ela faz a integração de procedimentos institucionais a conteúdos, sem deixar de se referir aos resultados práticos do regime com base no pressuposto de que a igualdade social e econômica pode ser alcançada se e quando a igualdade política for efetiva. A noção de qualidade da democracia tem exigências, portanto, que vão além da simples institucionalização de eleições livres e competitivas; essas são meios de afirmar e garantir direitos de cidadania em decorrência da participação popular, mas também, fator propulsor de condições institucionais que estabelecem o equilíbrio entre os poderes e a obrigação de governos e representantes prestarem contas de suas ações; é quanto a isso que o papel dos partidos políticos e do parlamento é indispensável. IMPLICAÇÕES DA PARTICIPAÇÃO ELEITORAL Sem precedentes na história do país, a expansão do sufrágio a partir de 1982 quando se realizaram as primeiras eleições diretas para governos de Estados, após a interrupção imposta pelo regime autoritário (1964-1985) -, é um marco da democratização brasileira. Nesse sentido, três questões são examinadas a seguir: a expansão do eleitorado brasileiro nesse período, o impacto dessa expansão para o advento da democracia, e os limites da participação eleitoral em uma sociedade marcada por desigualdades econômicas e sociais. Contrastando com o fato de que menos da metade da população adulta era apta a votar nas eleições de 1960 (15,5 milhões), o eleitorado em 1982 tinha crescido quase quatro vezes, representando agora perto de 60% da população adulta do país (59 milhões). Mas o crescimento mais expressivo de eleitores potenciais ocorreu após a universalização do direito de voto estabelecida com a inclusão política dos analfabetos em 1985, direito que se ampliou ainda mais com a Constituição de 1988, a qual reduziu para 16 anos a idade mínima para votar (embora o voto seja facultativo para os que não atingiram 18 anos de idade). A obrigatoriedade do voto, tornando compulsória a inscrição e a participação 7 eleitoral, está na base do crescimento observado, mas a inclusão de novos contingentes na comunidade política resultou de pressões para o aprofundamento do processo de democratização. Como mostram os dados do gráfico 1, em 1989, na primeira eleição presidencial após o fim do ciclo militar, o Brasil já tinha mais de 82 milhões de eleitores, ou seja, cinco vezes a mais do que em 1960 e quase 25 milhões a mais do que nas eleições de governadores em 1982; entre 1994 e 2002, o número de eleitores chegou a 94 milhões, e atingiu 125 milhões nas eleições de 2006; em abril de 2010, segundo informações do Tribunal Superior Eleitoral, estavam aptos a exercer o direito de voto nada menos que 134 milhões de brasileiros, totalizando agora 95% da população adulta. Isso faz do Brasil uma das cinco maiores democracias de massa do mundo, só comparável a países como a Índia, Estados Unidos, Indonésia e Federação Russa (embora onde o voto é voluntário, como nos Estados Unidos, o comparecimento dos eleitores raramente ultrapasse 50%). A primeira grande implicação dessa realidade é que o advento da democracia eleitoral de massas no Brasil - qualificada pelo aperfeiçoamento da legislação relativa ao controle da tutela, da compra de votos e dos gastos eleitorais, e pelo criterioso monitoramento da Justiça Eleitoral -, acelerou a dissolução – malgrado algumas poucas sobrevivências - de estruturas oligárquicas de poder, outrora associadas ao coronelismo, ao patrimonialismo e à influência de chefes políticos locais (LEAL, 1993; VIANNA, 1952). O crescimento do número de eleitores não elimina per se tais fenômenos, mas torna muito mais difícil e complexa a possibilidade de tutela sobre o voto ou o uso aberto de corrupção eleitoral7. 7 Afora o crescimento do eleitorado, a corrupção eleitoral no país vem sendo cada vez mais enfrentada devido à promulgação da Lei de Improbidade Administrativa, de 1999, resultado de uma iniciativa popular, da mesma forma que a chamada Lei da Ficha Limpa que acaba de ser aprovada pelo Congresso Nacional. Com base na primeira, o Tribunal Superior Eleitoral cassou o mandato de 3 governadores e inúmeros prefeitos acusados de compra de votos; com base na segunda, pessoas que infringiram a lei não poderão se candidatar. Tais avanços mostram que a cultura política dos brasileiros está em mudança, que a reforma política é possível e está sendo realizada por iniciativa da sociedade civil com apoio da Justiça Eleitoral [com base em instrumentos como a iniciativa popular de lei (vide a respeito, Moisés, 1990)]. 8 Gráfico 1 - Eleitorado Brasileiro 1960 - 2010 Fonte: TSE Mas a ampliação do sufrágio a partir de 1982 tem de ser vista tanto em sua dimensão quantitativa como qualitativa. Impulsionado pelas transformações que estavam ocorrendo na economia e na sociedade nos anos 70 e 80, com a intensificação dos processos de industrialização e urbanização do país, o crescimento do eleitorado, que agora recuperava parcialmente seus direitos políticos, levou ao aprofundamento do significado plebiscitário que as eleições vinham adquirindo desde 1974, quando, pela primeira vez, em mais de 10 anos, o regime autoritário foi derrotado pela oposição parlamentar, representada pelo MDB, nas eleições para o Senado Federal. Em 1982, quando algumas regras eleitorais foram liberalizadas pelo regime, sob pressão da sociedade, foram eleitos vários governadores oposicionistas, como Franco Montoro, em São Paulo, e Tancredo Neves, em Minas, aos quais, junto com o deputado paulista Ulisses Guimarães, coube liderar nos anos seguintes a mais expressiva mobilização política de massas da história brasileira, o movimento por “Diretas Já”, que propugnava pelo direito de os presidentes da República serem escolhidos pelo voto popular. Embora a emenda constitucional que abolia o voto indireto não tenha sido aprovada pelo Congresso Nacional, onde o governo militar tinha maioria, o movimento ampliou as bases sociais de apoio da oposição parlamentar e de algumas das suas principais lideranças, as quais conduziriam o processo de negociações que marcaram a transição política e levaram à instalação da Nova República, em 1985, com a eleição indireta de Tancredo Neves para a presidência da República (LAMOUNIER, 2005). 9 Os maiores contingentes de eleitores brasileiros estavam concentrados, agora, nas grandes cidades e, nos anos seguintes, passaram a exercer influência decisiva nos resultados das eleições. Mesmo considerando-se que a maioria desse novo eleitorado detinha níveis muito baixos de escolaridade e, em conseqüência, níveis limitados de informação política, ao se deslocar da zona rural e das pequenas cidades do Brasil profundo para os centros urbanos médios e metropolitanos, esse eleitorado passou a decidir as eleições (KINZO, 2004). Esse foi o cenário político-geográfico que deu origem ao ressurgimento da sociedade civil e a emergência de novos movimentos sociais - como o chamado “novo sindicalismo” (MOISÉS, 1982) e o associacionismo das novas corporações profissionais (LAMOUNIER, 2005) -, os quais, surgidos em grande parte no Estado de São Paulo, deram origem, com base na participação de trabalhadores industriais e da classe média, aos que viriam a ser alguns dos mais importantes partidos da política brasileira contemporânea, o PT e o PSDB. Em anos recentes, essa concentração geográfica do eleitorado nas áreas mais modernizadas do país, do ponto de vista econômico e social, traduziu-se também na concentração de quase 60% dos eleitores, como mostra a tabela 1, nos estados das regiões Sudeste e Sul do país. Isso explica, embora não exclusivamente, o fato de em 16 anos de um total de duas décadas de democracia o país ter sido governado por presidentes paulistas que, ao mesmo tempo, foram fundadores daqueles dois partidos. Tabela 1 . Eleitorado Brasileiro por Região (2010) Região Eleitorado % SUDESTE 58.384.124 44 NORDESTE 36.091.327 27 SUL 20.091.480 15 NORTE 9.796.530 7 CENTRO-OESTE 9.547.231 6,92 EXTERIOR 169.825 0,09 TOTAL Fonte: TSE (abril de 2010) 134.080.517 100 A universalização da participação eleitoral, no entanto, tem limites que devem ser considerados. O voto obrigatório no Brasil envolve uma importante controvérsia por ele ser visto, às vezes, como um dever prejudicial à liberdade de participação dos cidadãos. Um dos aspectos mais críticos disso se refere ao comparecimento dos eleitores ou ao que 10 alguns autores chamaram de não-participação (NICOLAU, 2002). Embora as taxas de entrevistados de pesquisas de opinião que afirmam que votariam mesmo se o voto não fosse obrigatório oscilem entre 45 e 50% desde meados dos anos 80 (MOISÉS, 1995), os percentuais de eleitores que votam em branco ou anulam seu voto é considerado excessivamente alto, e devido, em parte, à obrigatoriedade do voto e aos baixos níveis de escolaridade do eleitorado. Na primeira democracia de massas (1946-1964), a taxa de votos brancos e nulos oscilou abaixo de 10% dos votantes, mas quando em 1962 a Justiça Eleitoral introduziu uma cédula oficial para as eleições proporcionais, não sendo mais permitida a utilização de cédulas oferecidas pelos partidos como antes, a proporção de eleitores que votou em branco ou anulou seu voto saltou para quase 18%; durante o regime militar essa taxa cresceu mais, chegando a 22%, mas em 1970, quando houve uma intensa campanha a favor da anulação do voto como forma de protesto contra o regime, votos brancos e nulos somaram mais de 30% do total. Ou seja, fatores políticos, além daqueles ligados a dificuldades dos mecanismos eleitorais, influíram nos resultados. Após a democratização, no entanto, as taxas foram particularmente altas nas eleições para a Câmara dos Deputados, saltando de 28% em 19868 para quase 44% em 1990 e mais de 41% em 1994, algo que diferenciava o comportamento dos eleitores em eleições proporcionais e aquelas para cargos majoritários. Muitas vezes essa diferença foi interpretada como desinteresse dos cidadãos por instituições como a Câmara dos Deputados, as Assembléias Legislativas e as Câmaras Municipais, mas os índices de votos brancos e nulos começaram a cair a partir de 1998, quando foi introduzido o voto eletrônico no país, o que reduziu drasticamente a complexidade do ato de votar e a possibilidade de fraudes; desde então as taxas oscilaram entre 20%, naquele ano, e 10,% em 2006, com clara tendência de queda; um dos aspectos mais importantes dessa mudança reside no fato de que o declínio de votos brancos e nulos foi acompanhado de um significativo crescimento de votos dados a candidatos ou partidos políticos, revelando novo interesse dos eleitores nos objetos de sua escolha eleitoral. Em sua análise, Nicolau (2002) sustentou que a taxa de não-participação dos eleitores brasileiros era muito alta quando comparada - com base em eleições legislativas dos anos 90 -, com as taxas de outros países onde o voto também é compulsório e, mais ainda, com as taxas de países em que esse direito é voluntário: enquanto a média de não-participação de 53 países, naqueles anos, não ultrapassava a 3,6%, a média dos demais países de voto obrigatório era de 7,4%, mas o Brasil sustentava taxas 8 A cédula utilizada a partir de 1986, antes da introdução da urna eletrônica, foi considerada uma das mais complexas do mundo, pois, além de solicitar um grande número de escolhas de parte do eleitor, supunha que ele escrevesse o nome do candidato em quem desejava votar, o que esbarrava nos limites representados pela baixa escolaridade da maioria do eleitorado (NICOLAU, 2002). 11 em torno de 20% que, contudo, nas eleições da primeira década do século atual diminuíram (ver gráficos e tabelas na seção seguinte). Gráfico 2 . Votação para a Câmara dos Deputados 1982 – 2006 Fonte: TSE Uma forma alternativa de medir a participação eleitoral consiste em observar a taxa de abstenção dos eleitores, isto é, o percentual dos que não comparecem sobre o total de eleitores oficialmente inscritos. Em vinte anos de eleições para a Câmara dos Deputados, apesar das oscilações verificadas, essa taxa se multiplicou por mais de três: foi 5% em 1986, 14,2% em 1990, 17,2% em 1994, 21,4% em 1998, 17,7% em 2002 e 16,7% em 2006, segundo dados do TSE. O não-comparecimento, no entanto, tem de ser examinado com cautela, pois, com base no que estabelece a lei, os eleitores faltosos podem justificar a sua ausência, indicando que o seu absenteísmo não significa necessariamente uma decisão de não participar; os dados disponíveis, contudo, mostram que enquanto nas eleições de 1989 e 1990 o percentual dos faltosos que se justificou foi de pouco mais de 60% a cada ano, em 1998 menos de 27% apresentou justificação por não ter ido votar, e em 2000, só 32% o fizeram. Isso sugere que um contingente de 2/3 dos absenteístas, nesses últimos anos, não quis ou não tinha razões para justificar a sua ausência; por isso, se a título de hipótese se admitir que metade deles não compareceu por não desejar participar do processo eleitoral, as taxas de não-participação, somando os votos brancos, nulos e a outra metade das abstenções, chegariam em 2002 a 16% e, em 2006, a quase 19%. Nicolau (2002) observou que, comparada à de outros países, a taxa de abstenção brasileira é “normal”, mas a 12 avaliação hipotética sugerida antes mostra que essa conclusão sobre o comportamento eleitoral dos brasileiros é discutível. Embora a obrigatoriedade do voto possa explicar parte desse quadro, uma vez que seu caráter compulsório poderia ser responsável pela decisão de parte dos eleitores de protestarem votando em branco, anulando seu voto ou simplesmente se abstendo, esse não é o único fator que conta. Os analistas têm apontado - além da complexidade da cédula ou dos modos de votação em diferentes eleições -, os baixos níveis de escolaridade da maior parte dos inscritos como causa de rasuras, erros, sinais de anulação, o voto em branco ou mesmo a abstenção (NICOLAU, 2002; KINZO, 2004). As diferenças de acesso à educação constituem fator apontado também pela literatura internacional para explicar a participação eleitoral em outros países e, no caso do Brasil, elas traduzem as enormes desigualdades econômicas e sociais que ainda caracterizam a sociedade brasileira. Como mostra a tabela 3, o contingente de eleitores, na atualidade, que se declaram analfabetos, alfabetizados funcionais e detentores do 1º. grau incompleto de escolaridade chega a 54%, mas, se a eles foram somados os que não informaram o seu grau de instrução (0.12%) e os que apenas completaram o 1º. grau (7,6%), esse contingente chega a 62%. Tabela 2. Eleitorado Brasileiro por Gênero e Escolaridade – 2010 Grau de instrução Masculino %M/T Feminino %F/T Não %N/T informado Total %T/TT Não informado 70.422 45.8 78.875 51.05 5.195 3.36 154.492 0.12 Analfabeto 3.736.497 46.72 4.248.426 53.13 11.927 15 7.996.850 5.96 Le e Escreve 10.020.506 50.54 9.721.426 49.03 84.394 43 19.826.326 14.79 22.606.913 50.72 21.943.371 49.23 23.895 .05 44.574.179 33.24 50.9 8.727 9 10.245.379 7.64 Primeiro Incompleto Primeiro Completo Segundo Incompleto Segundo Completo Superior Incompleto Superior Completo Total Grau Grau Grau Grau 5.019.396 48.99 5.217.256 11.806.207 47.13 13.241.958 52.86 4.120 .02 25.052.285 18.68 7.330.184 41.88 10.162.696 58.07 8.271 5 17.501.151 13.05 1.686.038 46.07 1.972.337 53.89 1.405 4 3.659.780 2.73 2.180.169 43 2.887.450 56.95 2.456 5 5.070.075 3.78 150.390 11 134.080.517 99.99 64.456.332 48.07 69.473.795 51.81 Fonte:TSE 13 É um contingente muito grande de cidadãos que, chamados a participar de escolhas que afetam decisivamente as decisões sobre políticas públicas, contam com recursos limitados para exercer seus direitos políticos. A sua experiência política, ao longo da vida adulta, ajuda-os por certo a enfrentar as dificuldades decorrentes das exigências de participação, mas a educação, mesmo sem implicar automaticamente em alta cognição política, é uma porta de entrada para que os eleitores tenham algum senso crítico quanto ao desempenho de seus governantes e representantes. A accountability vertical depende disso, e não é por outra razão que a literatura especializada tem chamado a atenção, nos últimos anos, para os riscos envolvidos na combinação de formas exacerbadas de presidencialismo, como existe em vários países da América Latina, com polities constituídas por eleitores com níveis muito baixos de escolaridade. Ao contrário de uma perspectiva elitista, diferentes analistas chamaram a atenção para os riscos de neopopulismo associados com as experiências em que os eleitores mais pobres e menos escolarizados abrem mão de seu protagonismo político em troca de depositar confiança, às vezes cega ou ilimitada, em lideranças que se apresentam como sendo as únicas alternativas possíveis de avanços econômicos e sociais em seus países (mesmo quando estiveram envolvidas em corrupção) [CARNEIRO, 2008; MOISÉS, 2010B]. Nesse sentido, cabe discutir a enorme discrepância existente nas respostas dadas por alguns dos principais responsáveis diante desse desafio: enquanto a Justiça Eleitoral, particularmente nos três ou quatro últimos pleitos, tem realizado um competente trabalho de persuasão dos eleitores potenciais, através de campanhas na TV, para fazê-los usar conscientemente os seus direitos de cidadania política, o sistema educacional brasileiro falha quase que completamente, não só pelos limites à universalização do acesso, mas particularmente no ensino de 2º. grau – ao menos enquanto mudanças curriculares não foram possíveis9 -, na sua missão de introduzir os mais jovens no conhecimento do sistema democrático e dos direitos civis, políticos e sociais que ele implica. Longe de uma perspectiva ideológica ou normativa em sentido estrito, a informação e o ensino a respeito do complexo funcionamento do regime democrático podem ajudar os eleitores a se qualificar para interagir com instituições complexas como a justiça, o parlamento ou os conselhos de saúde, educação, meio ambiente, etc, para exercer seus direitos de cidadania. Essa tarefa terá de ser enfrentada pelos governos democráticos, nos próximos anos, e talvez a Justiça Eleitoral sensibilize, com seu exemplo, as autoridades educacionais para 9 Após a aprovação, pelo Congresso Nacional, da inclusão de sociologia e filosofia nos currículos do 2º. grau, alguns estados, como São Paulo, passaram a incluir conteúdos que fazem referência aos direitos de cidadania e alguns aspectos do sistema política, mas os resultados dessa mudança ainda não apareceram porque ela foi introduzida em 2009. 14 essa necessidade. Mas na democracia não é apenas o sistema educacional que tem responsabilidades quanto à educação cívica: a sociedade civil organizada, como os sindicatos, as igrejas e a mídia impressa e eletrônica, têm papel singular na qualificação dos eleitores e, nesse sentido, a responsabilidade dos partidos políticos é insubstituível. Os partidos se constituem em um atalho que diminui os custos de informação dos eleitores diante de escolhas políticas difíceis, mas isso não impede que, através de sua prática, de sua auto-justificação pública e, em especial, de programas específicos de ação educativa (cursos de formação, publicações, programas de TV, debate público, etc) também contribuam para a formação cívica dos eleitores. A condição para isso, além de sua representatividade, é que sejam autônomos e se disponham a exercer tal função. PARTIDOS E PARLAMENTOS NO PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO O atual sistema partidário começou a surgir em 1979 quando os dirigentes do regime militar quiseram se livrar do bipartidarismo e dividir a oposição agrupada no MDB. A reforma política que deu origem ao pluripartidarismo levou à criação, além do PDS (em lugar da antiga Arena) e do PMDB (no lugar da oposição parlamentar), do Partido dos Trabalhadores - PT, Partido Trabalhista Brasileiro – PTB e Partido Democrático Trabalhista – PDT. Afora o PDS, constituído majoritariamente por lideranças do Norte, Nordeste e outras regiões, e do PDT de Brizola, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, surgido por causa de uma disputa interna do trabalhismo, é notável que tenham sido criados em São Paulo o PT e mesmo o PTB de Ivete Vargas, além de grande parte do PMDB. Como observado antes, foi nesse Estado que surgiram as expressões mais significativas da sociedade civil organizada, e a reorganização partidária refletiu essa nova realidade. Em 1986, nas eleições que escolheram os constituintes, outros dois partidos foram registrados, o PCB e o PCdoB, pondo fim à interdição da organização política dos comunistas que vinha desde os anos 40; tratava-se, até esse momento, de um pluripartidarismo moderado, cuja fragmentação pouco afetava o desempenho dos partidos na arena eleitoral. Nessa fase, a constituição dessas novas siglas sinalizou a emergência de novas identidades políticas capazes de sensibilizar parte significativa dos eleitores: quase metade dos entrevistados de pesquisas de opinião nessa época declarava ter alguma identidade partidária (MOISÉS, 1995). Mas as regras de organização dos partidos aprovadas na constituinte – em contrapartida às imposições do período autoritário – criaram exigências muito brandas de representatividade para sua organização e representação no parlamento, facilitando assim o surgimento de dezenas de novas agremiações nem sempre dotadas de perfil político 15 próprio e de elementos de diferenciação entre elas: entre 1982 e 1994, competiram em eleições legislativas 68 partidos e, no final de 1995, 23 agremiações estavam representadas no Congresso; nas eleições seguintes, embora tenha havido pequenas reversões, os partidos somavam perto de três dezenas e, em 2010, eles eram 27, segundo o TSE. O número efetivo de partidos, no entanto, tem oscilado no período recente entre 7 a 9, o que reduz em parte os efeitos eleitorais de exacerbação do multipartidarismo, mas ainda torna discutível a classificação do sistema partidário brasileiro como moderado10. A razão disso é que, embora a existência de muitos partidos em si não envolva necessàriamente restrições ao funcionamento do sistema político, em contextos caracterizados por maiorias de eleitores com níveis muito baixos de escolaridade, em que a informação é uma condição da participação popular, a existência de legendas que pouco se diferenciam entre si ou apenas sobrevivem através das coligações que integram não facilita o processo de escolha dos eleitores11. A literatura especializada tem analisado o desempenho dos partidos com base na sua atuação em duas arenas específicas, a decisória e a eleitoral. Enquanto na primeira se trata do papel dos partidos como atores que compartilham com os governos a formulação e as decisões de implementação de políticas públicas, para o que a legitimidade adquirida em eleições é uma condição essencial de sua capacidade de negociar decisões tomadas nas esferas executiva e parlamentar, na arena eleitoral os partidos competem pelo apoio dos eleitores com o objetivo de adquirir posições de poder, mas, para isso, têm de ser reconhecidos por eles como elos efetivos entre a sociedade civil e o Estado, pois é “por meio desse mecanismo (...) que se forma a cadeia que vincula os cidadãos às arenas públicas de tomada de decisões” (KINZO, 2004, P. 25). Nesse sentido, a identificação entre eleitores e partidos é fundamental mas, na experiência brasileira recente, isso enfrenta um limite considerável representado pelos efeitos da fragmentação que, ao constranger as condições de formação do que Lamounier (2005) chamou de fixação estrutural do sistema partidário – um requisito da accountability vertical -, estimula a migração (ou “transfugismo”) de parlamentares eleitos por partidos de menor expressão para aqueles que formam a base de apoio parlamentar utilizada pelo executivo para governar; nesse sentido, a fragilização partidária é estimulada pela atuação de governos cujos partidos de apoio não alcançam maioria nas eleições legislativas e que, a exemplo do que ocorreu no 10 Elaborado por Marku Laakso e Rein Taagepera (1979), o índice de partidos efetivos leva em conta o peso das maiores agremiações em relação ao das menores, traduzindo melhor a situação do sistema partidário. Uma controvérsia interessante sobre o tema pode ser encontrada em Nicolau (2005). 11 Para uma discussão das controvérsias envolvidas nessas e outras questões a respeito do sistema partidário brasileiro vide Rodrigues (2002). 16 primeiro mandato do presidente Lula da Silva, formam a coalizão de governo mesmo com partidos cujo perfil ideológico e programático discrepa completamente daquele do partido do presidente; mas o problema não se refere somente a esse governo: entre 1983 e 1999, de um total de 2.329 deputados federais, entre titulares e suplentes, 686 (quase 30%) migraram para outras legendas; em 1994, mais de 64% dos 513 deputados tinham trocado de partido ao menos uma vez (NICOLAU, 1996, APUD RODRIGUES, 2002) e, entre 2003 e 2005, 237 parlamentares, estimulados a isso, trocaram de partido, anulando a significação do voto dados a eles pelos eleitores (RODRIGUES, 2002; LAMOUNIER, 2005); mesmo considerando, como mostraram alguns autores, que a maior parte das migrações ocorre dentro de blocos ideológicos supostamente semelhantes, a tendência fragiliza a conexão entre eleitores e partidos. Essa situação, no entanto, pode estar começando a mudar com uma recente decisão da Justiça Eleitoral em 2008, segundo a qual o mandato pertence ao partido e não aos parlamentares, o que poderá inibir o “transfugismo”. Mas ainda será necessário esperar alguns anos para se conhecer os efeitos dessa mudança. Agrava ainda mais a situação descrita o sistema eleitoral proporcional adotado no Brasil: como abundantemente discutido pela literatura, distorções importantes tornam a distribuição de cadeiras desproporcional, com Estados da federação, a exemplo de São Paulo, em que são necessários mais votos do que em outros para eleger um parlamentar (SOARES, 1973; KINZO, 1981; LIMA JUNIOR, 1993; NICOLAU, 1991). O sistema proporcional brasileiro, a despeito da recente decisão do TSE, personaliza a escolha dos representantes populares: como cada partido pode apresentar listas abertas de candidatos até uma vez e meia o número de cadeiras de cada Estado-distrito eleitoral (no caso de São Paulo, mais de uma centena), além da possibilidade de coligações que praticamente dobram esse número, o eleitor se vê à frente de várias centenas de opções para fazer sua escolha sem que, afora escassos dados pessoais dos candidatos, conte com uma efetiva referência política para orientar o seu voto. A conseqüência disso é que os votos dispersos que recebem em distritos de dimensões muito grandes não apenas dificulta a identificação dos parlamentares sobre qual é a sua constituency, à qual devem prestar contas de seu trabalho, como cria uma distância quase intransponível entre representantes e representados, os quais, além de rapidamente perderem a memória de a quem dedicaram seu voto, tornam-se incapazes de exercer qualquer controle sobre os eleitos. Somam-se a essas dificuldades as regras de cálculos de coeficiente eleitoral, coeficiente partidário e sobras eleitorais, o que muitas vezes leva a ocuparem cadeiras parlamentares candidatos 17 diferentes daqueles votados pelos eleitores (e, no caso das coligações, candidatos de partidos diferentes dos escolhidos por eles)12 [NICOLAU, 2003; DESPOSATO, 2007]. Malgrado os efeitos negativos desse quadro, cabe mencionar, no entanto, que a introdução do voto eletrônico, em 1998, vem sinalizando uma importante mudança na tendência tradicional dos eleitores de darem mais atenção a cargos majoritários do que a legislativos: como mostram as tabelas 4, 5 e 6 adiante, a partir das eleições daquele ano a curva dos votos válidos para deputados federais, estaduais e vereadores praticamente encontrou aquela correspondente aos votos para presidentes da República, governadores de Estados e prefeitos (enquanto as curvas de abstenção caíram). Isso pode significar que, diferente das interpretações mais usuais, a consolidação do processo eleitoral nos últimos 20 anos e o aperfeiçoamento da forma de votar estão contribuindo para tornar os eleitores mais atentos aos objetos de sua escolha e, assim, potencialmente, mais interessados no seu desempenho, o que, por si, pressiona os partidos e parlamentos a enfrentarem o desafio de resolver os limites existentes quanto à conexão eleitoral e a representação política13. Gráfico 4 . Votos Válidos para Presidente, Deputados Federais e Senadores - 1989-2006 Fonte: TSE 12 O coeficiente eleitoral é obtido dividindo-se o total de votos válidos (por exemplo, para Câmara dos Deputados) pelo número de cadeiras; o coeficiente partidário dividindo-se o total de votos dados aos partidos (ou coligações) pelo coeficiente eleitoral; em uma primeira etapa, um partido recebe tantas cadeiras quantas vezes atingiu o coeficiente eleitoral; como sobram cadeiras, nas etapas subseqüentes essas são distribuídas segundo a fórmula D´Hondt, ou seja, o total de votos de cada partido (ou coligação) é dividido pelo número de cadeiras obtidas mais um; os partidos com as maiores médias recebem as cadeiras não alocadas na primeira etapa. Isso significa que o voto dado aos candidatos mais votados de um partido serve para eleger os menos, sem que o eleitor tenha expresso essa vontade; no caso de coligações, o voto do eleitor em um partido pode levar a eleger candidatos de outro partido; em ambos os caso, as regras fragilizam a representação. 13 A desatenção dos eleitores aos órgãos legislativos pode contribuir para a queda da qualidade do desempenho dos mesmos, seja porque isso diminui a fiscalização e o controle da sociedade sobre eles, seja porque instituições pouco operantes não atraem os melhores entre os quadros disponíveis, mas a observação de que a atenção às eleições presidenciais leva o eleitor a descuidar das legislativas não tem mais amparo nos fatos, ao contrário do que acredita Abramo (FSP, 19/6/2010, p. A14). 18 Gráfico 5 . Votos válidos para Governadores e Deputados Estaduais - 1989-2006 Fonte: TSE Gráfico 6 . Votos válidos para Prefeitos e Vereadores - 1996-2004 Fonte: TSE Ao mesmo tempo, em que pesem os fatores críticos mencionados antes, no que se refere à arena propriamente decisória, uma série de pesquisas recentes tiveram grande impacto ao demonstrar que, diferente das análises mais tradicionais, como resumido por Rodrigues (2002), o exame do comportamento dos parlamentares na Câmara dos Deputados revela um alto índice de disciplina quanto à orientação de seus líderes, refletindo-se em forte coesão de seus partidos. Figueiredo e Limongi (1999; 2003) estão entre os autores que mais contribuíram para mudar os rumos do debate sobre o sistema 19 partidário brasileiro, mostrando que o comportamento dos partidos no Congresso corresponde a um claro alinhamento ideológico, com cerca de sete partidos dispondo-se no continum direita-esquerda; no período analisado (1989-1993 e 1989-1998), os partidos do mesmo bloco ideológico votaram de modo similar, embora com diferenças de comportamento no interior dos partidos: os deputados da esquerda foram mais disciplinados do que os da direita e do centro. Os pesquisadores apuraram ainda que a probabilidade de que um parlamentar votasse obedecendo a orientação de seu partido chegava a perto de 0,90, o que, segundo seus cálculos, permitia predizer o resultado de cerca de 94% das votações nominais na Câmara dos Deputados (FIGUEIREDO E LIMONGI, 1998, APUD RODRIGUES, 2002; NICOLAU, 2002). Esses resultados reduzem, com efeito, mas sem anular completamente, os efeitos da fragmentação partidária. A partir desses achados, os autores mencionados redefiniram o chamado presidencialismo de coalizão no Brasil: diferente da tese original de Abranches (1988), que elencava um conjunto de fatores institucionais causadores de risco permanente de instabilidade política, especialmente, de paralisia decisória derivada de relações conflituosas entre o executivo e o legislativo, o país teria consolidado um sistema político que, semelhante ao parlamentarismo, asseguraria não apenas a capacidade do executivo de ter os seus projetos de leis e de políticas aprovados pelo parlamento, mas também o domínio quase absoluto dos presidentes sobre a agenda política do parlamento. Os constituintes de 1987-88 decidiram, de fato, manter as prerrogativas outorgadas ao presidente da República pelo regime autoritário de 1964-1985 no que tange ao direito de iniciar legislação. A exemplo do antigo decreto-lei, eles institucionalizaram o poder exclusivo do executivo de emitir medidas provisórios capazes de alterar de imediato o status quo; confirmaram a prerrogativa unilateral dos presidentes de introduzir legislação tributária e o orçamento da união e, no mesmo sentido, ampliaram a sua competência quanto à organização administrativa do Estado, às decisões sobre os efetivos das forças armadas e às medidas de política externa, como tratados internacionais (ABRANCHES, 1988; AMORIM NETO E SANTOS, 1997). Em poucas palavras, as análises mostraram que os presidentes brasileiros podem iniciar com exclusividade legislação em áreas específicas e forçar unilateralmente a sua apreciação pelo legislativo, utilizando-se para isso tanto de prerrogativas constitucionais - pedidos de urgência na votação de matérias do seu interesse ou emissão de medidas provisórias com força de lei -, como de procedimentos regimentais que centralizaram o processo de tomada de decisões no Congresso Nacional em mãos das mesas diretoras e do Colégio de Líderes. Os presidentes podem, assim, impedir que eventuais minorias parlamentares venham a se constituir em veto-players capazes de 20 dificultar ou bloquear as suas iniciativas. Além disso, o executivo sempre tem em mãos, além da distribuição de cargos aos partidos que formam a sua base de apoio, a liberação das emendas individuais dos parlamentares apresentadas quando da aprovação do orçamento federal. A supremacia do executivo sobre o parlamento tem sido tão grande que acabou por transformá-lo, e não o Congresso Nacional, no grande legislador no Brasil. A despeito das vantagens que isso implica segundo as abordagens que priorizam o papel do executivo, a questão tem implicações para a qualidade da democracia e, em especial, para as funções de fiscalização e controle que cabem ao parlamento e aos partidos políticos; diante de incentivos institucionais tão eficazes para que os parlamentares componham a maioria governativa, é duvidoso que reste espaço, quando isso é necessário, para a crítica e a correção de posições do executivo. Mesmo autores como Figueiredo e Limongi (2003) admitem que o sistema é tão eficiente em impor restrições à atuação especificamente legislativa dos parlamentares que limita a sua eficácia institucional: “o Congresso Nacional atou as próprias mãos”, segundo eles, ao aceitar uma configuração institucional que delega a iniciativa e o poder de agenda ao executivo. Ainda assim, eles sustentam que não se trata de abdicação, pois os parlamentares podem aprovar as iniciativas dos governos ou deixar de fazê-lo, mas o fato é que as proposições de iniciativa dos parlamentares limitam-se a algumas políticas distributivistas, localistas ou regionalistas, todas incapazes de alterar o status quo econômico e social do país. Por isso, nas palavras de outro analista, o diagnóstico é o de um processo de “encarceramento ou travamento” do parlamento, em vista da contradição observada entre os parâmetros constitucionais - que asseguram a divisão de poderes -, e os procedimentais adotados pelo parlamento, o que comprometeria parte de sua autonomia (SANTOS, 2003; CINTRA, 2007). Nesse sentido, um levantamento recente do Núcleo de Pesquisa de Pesquisa de Políticas Públicas da USP14 constatou que do total de iniciativas legislativas aprovadas pela Câmara dos Deputados entre 1995 e 2006, envolvendo tanto a produção de leis como decisões sobre políticas públicas, menos de 15% tiveram origem no parlamento, enquanto 85,5% das proposições levadas a votação no plenário foram iniciadas pelo executivo. Outro levantamento, do site Congresso em Foco, confirmou o quadro ao constatar que, em março de 2010, 2.472 projetos estavam acumulados nos plenários da Câmara e do Senado, embora 2.438 deles já estivessem em condições de ser levados à deliberação nas duas casas legislativas (o total excluiu requerimentos, pareceres e decisões de escolha de autoridades). 14 A pesquisa “O Congresso Nacional no Contexto do Presidencialismo de Coalizão”, realizada com apoio da Fundação Konrad Adenauer, foi coordenada por José Álvaro Moisés e resultou no e-book recém lançado pelo Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP O Papel do Congresso Nacional no Presidencialismo de Coalizão, cujo download pode ser feito no site www.usp.br/nupps. 21 Segundo o levantamento, 2.135 proposições formavam o que foi designado como “matérias na fila” na Câmara dos Deputados e 337 no Senado Federal, formando um universo de iniciativas cuja tramitação, levando-se em conta a dinâmica dos procedimentos atualmente adotados pelo Congresso, tomaria 1 ano e ½ no caso do Senado e cerca de 10 no caso da Câmara dos Deputados15. A pesquisa constatou, ainda, que, no período entre 1995 e 2006, a duração de tramitação de projetos submetidos à Câmara dos Deputados pelo executivo e pelo legislativo apresentou uma discrepância tão grande que questionou a eficácia da ação parlamentar no curso de cada legislatura. Enquanto a média de tramitação das iniciativas do executivo foi de 271,4 dias, ela atingiu 964,8 no caso do legislativo, ou seja, quase quatro vezes mais; enquanto os parlamentares não conseguiram aprovar nenhum projeto de sua iniciativa no mandato de um presidente, o executivo fez isso em cerca de nove meses16. É preciso levar em conta, no entanto, que a situação pode estar começando a mudar: com a reinterpretação das regras de trâmite das medidas provisórias no Congresso, introduzida pelo presidente da Câmara, deputado Michel Temer, do PMDB, elas continuam trancando a pauta das sessões ordinárias e a votação dos projetos de lei, mas não a pauta das sessões extraordinárias, nas quais emendas à Constituição, leis complementares, decretos legislativos e resoluções podem ser votados. Isso, em parte, liberou a pauta da Câmara dos Deputados e, se isso se confirmar ao longo do tempo, representará uma mudança importante17. A questão, no entanto, não se refere apenas à capacidade do executivo de assegurar a governabilidade, entendida como a garantia de que a vontade e os projetos dos governos sejam aprovados, mas à possibilidade efetiva de que os parlamentares possam exercer a sua missão de representação, inclusive, quando se tratar de discordar das proposições do executivo ou quando tiverem que negar seu apoio a esse poder em defesa de interesses de minorias contra imposições da maioria. Parte da literatura recente tem sido pródiga em apontar as vantagens das relações entre executivo e legislativo no contexto do presidencialismo de coalizão, mas os problemas derivados, por uma parte, dos limites ainda existentes quanto à conexão entre partidos e eleitores e, por outra, de um 15 O levantamento do Congresso em Foco refere-se às 2.472 matérias que tramitaram nos plenários da Câmara e do Senado até o dia 29 de março de 2010. A fonte das informações é a Secretaria Geral da Mesa da Câmara e a página do Senado no site do Congresso, e foram coligidas sob orientação de servidores da Secretaria Geral da Mesa da CD e outros (www.congressoemfoco.org.br). 16 Vide Relatório de pesquisa “O Congresso Nacional no contexto do Presidencialismo de Coalizão” (NUPPs/USP, 2010). 17 A Câmara dos Deputados, segundo Temer, alcançou um recorde nas votações de 2009, com 230 proposições ao longo do ano. “Pela primeira vez desde 2001, o plenário aprovou mais propostas de iniciativa de parlamentares do que do executivo. Foram 46 de autoria de deputados e senadores ante 42 do governo (...) A essas matérias somamse 124 projetos de decreto legislativo, em sua maioria acordos internacionais. As comissões permanentes da Câmara ainda aprovaram uma quantidade recorde de 341 projetos de lei em caráter conclusivo, ou seja, sem a necessidade de votação pelo Plenário” (Temer, www2.camara.gov.br/presidência). 22 legislativo quase que estritamente reativo (em relação às iniciativas dos governos) e pouco operante em face das expectativas dos cidadãos, raramente foram incluídos nas análises mencionadas antes. Da perspectiva da qualidade da democracia, isso introduz um déficit analítico para o qual esse texto chama a atenção. Vários casos de democracias consolidadas mostraram, no entanto, que o conceito de governabilidade se refere à capacidade do governo de governar compartilhando escolhas e decisões com as assembléias de representantes. DISCUSSÃO Este capítulo partiu do exame das implicações da consolidação da democracia eleitoral no Brasil e, ao mesmo tempo, dos desafios que a maioridade das eleições democráticas impõe para as instituições de representação, em especial, os partidos e os parlamentos. O texto analisou o impacto da universalização do sufrágio no país para o processo de democratização e, ao mesmo tempo, examinou a permanência de problemas associados com os baixos níveis de escolaridade do eleitorado e seus reflexos para a participação eleitoral. Em vista das exigências dessa participação e da accountability vertical, e, ao mesmo tempo, dos altos índices de avaliação negativa que aos cidadãos fazem dos partidos e dos parlamentos, o trabalho examinou criticamente os reflexos para a qualidade da democracia de algumas características do funcionamento e do desempenho das instituições de representação no contexto do presidencialismo de coalizão. Por um lado, se verificou que, em que pese a continuidade de relativa fragmentação partidária no país, os partidos são mais coesos e disciplinados do que a literatura tradicional avaliava e, ao mesmo tempo, são a base em que se apóiam as maiorias parlamentares para dar sustentação aos governos do período democrático (com exceção do governo Collor); por outro, foram observados os efeitos que a combinação da relativa fragmentação partidária, “transfugismo” de parlamentares, limites do sistema de eleições proporcionais e desempenho quase que estritamente reativo do parlamento (em face das iniciativas governamentais) têm para o aperfeiçoamento da democracia no país. O exame dessas questões e do desequilíbrio das relações entre executivo e legislativo focalizou os problemas derivados daí para o adequado funcionamento dos mecanismos de accoutanbility horizontal no país. A democracia eleitoral está consolidada no país, mas a sua dimensão representativa enfrenta problemas que ainda precisam ser mais bem equacionados. 23 Recentemente tem predominado entre parte dos analistas brasileiros a tendência de considerar que, em vista do fato de que ao longo dos últimos 21 anos as instituições têm funcionado com razoável harmonia, mesmo apresentando distorções ou limites importantes no seu funcionamento, pouco ou nada haveria para mudar ou para aperfeiçoar o sistema democrático vigente. A discussão apresentada neste capítulo rema contra essa corrente e, embora sem desconhecer os avanços verificados, advoga uma atitude crítica em face dos limites da democracia representativa existente no país. “As implicações (da situação) para a qualidade da democracia estão no terreno normativo. Embora essa possa ser uma discussão pouco afeita ao debate que hoje domina a ciência política brasileira, não há porque evitá-la. Além disso, não se conhece, até o momento, meios alternativos de construção e consolidação de uma forma democrática de convivência política capazes de substituir os mecanismos institucionais que são os pilares das democracias ocidentais” (KINZO, 2004, p. 36). Nesse sentido, os problemas apontados neste capítulo reatualizam o debate da reforma política. Não há tempo e espaço para tratar de forma substantiva dessas reformas neste texto, mas cabe indicar a atualidade de algumas propostas. Os temas vão desde medidas destinadas a assegurar a fidelidade partidária, a representatividade mínima para que os partidos tenham direito a representação no Congresso Nacional, a adoção de listas fechadas de candidatos e de distritos eleitorais menores (com ou sem a adoção do chamado sistema distrital misto), a correção da proporcionalidade, o financiamento de campanhas eleitorais até a recuperação de prerrogativas pelo poder legislativo em face do presidencialismo de coalizão. Não se trata de reformar o sistema político por completo, mas introduzir mudanças que, de uma parte, permitam estabelecer o equilíbrio entre os poderes executivo e legislativo e, de outra, assegurem aos cidadãos-eleitores o seu direito de terem traduzidas, na estrutura institucional do país, os interesses e preferências que expressam através do seu voto. Para isso, são importantes partidos que, além de disciplinados e coesos no parlamento, sejam capazes de efetivamente se conectar com os anseios da sociedade, e parlamentos que, afora garantirem a necessária governabilidade, abriguem tanto as demandas da maioria como das minorias, sem abrir mão de sua missão de fiscalizar e controlar o exercício do poder. 24 V. MÍDIA E APOIO POLÍTICO NO BRASIL1 NUNO COIMBRA MESQUITA INTRODUÇÃO Com a democracia brasileira já tendo ultrapassado o marco de seus 20 anos – considerando sua nova constituição democrática e as primeiras eleições presidenciais diretas após o regime militar - o apoio ao regime passa por sua melhor fase. Em 1989 apenas 44% dos brasileiros acreditavam ser essa a melhor forma de governo. Em 2006 esse número cresceu para 71% (MOISÉS, 2008). O apoio político é fundamental para entender a qualidade do regime democrático. Após a democracia se espalhar para a maioria dos países do mundo, a atenção dos estudiosos tem se voltado mais para esse aspecto do que para a análise das transições propriamente ditas (DIAMOND E MORLINO, 2004). Perspectivas teóricas que lançam luz sobre o tema são variadas, seja enfatizando valores políticos ou orientações normativas dos cidadãos (ALMOND E VERBA, 1963; INGLEHART, 2002), seja valorizando o desempenho real dos governos e suas instituições (COLEMAN, 1990; NORTH, 1990). Sem desconsiderar essas hipóteses, destaca-se a importância de uma outra dimensão a ser analisada: o papel dos meios de comunicação de massa. A mídia tem sido apontada tanto como a responsável por fomentar o cinismo e a desconfiança entre os cidadãos (PATTERSON, 1998; CAPPELLA E JAMIESON, 1997; MERVIN, 1998), quanto como importante vetor de fornecimento de informações capazes de promover o engajamento do cidadão com a democracia (NORRIS, 2000; NEWTON, 1999). Seja qual for a perspectiva adotada perante a mídia, a informação acerca das instituições nos meios de comunicação é peça constitutiva do instrumental à disposição dos cidadãos para que se posicionem ante elas, para além das experiências concretas que possam ter. O que se pode dizer então, sobre o papel desempenhado pelos meios de 1 Este trabalho é parte de um projeto de pós-doutorado sobre mídia e apoio político no Brasil, desenvolvido junto ao Departamento de Ciência Política da USP e financiado pela Fapesp (processo 08/57470-0). Uma primeira o versão deste texto foi apresentada no 7 Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política - ABCP, Recife-PE; 4 – 07/08/10. Agradeço a leitura cuidadosa e sugestões do Prof. José Álvaro Moisés e Rogério Schlegel. 1 comunicação para a qualidade da democracia? Mais especificamente, como o apoio público ao regime democrático é afetado pelas informações veiculadas pela mídia? Defende-se aqui a idéia de uma dupla multidimensionalidade do fenômeno. Por um lado, o apoio público à democracia compreende dimensões distintas. As pessoas podem se mostrar deferentes ao regime democrático per se, mas desconfiarem de suas instituições; podem aderir à comunidade política, mas estarem insatisfeitos com o funcionamento da democracia como ela se apresenta ou, ainda, avaliarem mal suas instituições. Por outro lado, essa multidimensionalidade também se aplica aos meios de comunicação. As informações contidas em – bem como o alcance potencial junto ao público – não são os mesmos em um jornal de qualidade ou em um telejornal. Na televisão, existem programas de entretenimento com características diversas, cada qual com o potencial de se relacionar distintamente com o entendimento que o cidadão tem sobre os assuntos do Estado. O objetivo desse capítulo é analisar as inter-relações entre essas diferentes dimensões, onde se propõe que a mídia não pode ser vista de maneira uníssona. Dessa forma, propõe-se que os meios de comunicação possuem papel plural para atitudes democráticas, a depender tanto da dimensão de apoio político, quanto do meio do qual se está falando. Em vista disso, este trabalho concentra sua análise em duas variáveis da mídia: a audiência televisiva e o telenoticiário, além de em três dimensões importantes para a qualidade democrática. Quer se saber se essas duas variáveis da mídia estão associadas positivamente ou negativamente à adesão democrática, ao vínculo dos cidadãos ao Estado Nação e à aceitação dos partidos políticos como elemento necessário da democracia. Para isso, utilizam-se dados do survey “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas” (2006). Este capítulo discute inicialmente os conceitos de qualidade democrática e de apoio político, tratando as diferentes abordagens sobre o papel dos meios de comunicação para a democracia. Diferenciam-se a teoria dos efeitos negativos e a teoria da mobilização para, logo após, abordar hipóteses empiricamente verificáveis dessas perspectivas teóricas. Em seguida, apresentam-se as análises relativas ao papel da televisão - seguidas pelos dados referentes ao telejornal - para o apoio político. Finalmente, avaliam-se alguns fatores que podem interagir com as informações da mídia para a formação de atitudes políticas. As considerações finais buscam refletir sobre o papel desempenhado pelos meios de comunicação para a qualidade democrática. 2 MÍDIA E APOIO PÚBLICO À DEMOCRACIA Dentre as várias inter-relações que os meios de comunicação podem ter com processos políticos contemporâneos e que suscitam curiosidade acadêmica, está seu impacto sobre a qualidade da democracia. A investigação da qualidade dos regimes foi impulsionada após a terceira onda de democratização e também depois de sinais de crescente insatisfação com o funcionamento concreto das democracias mais antigas. Dessa forma, aumentou o esforço acadêmico com o intuito de investigar como de fato funcionam os regimes, superando os questionamentos de por que as transições ocorreram. Diamond e Morlino (2004) definiram o império da lei, a competição, a participação, accountabilities vertical e horizontal e societal, a liberdade, a igualdade e a responsividade como dimensões cruciais para a qualidade da democracia. Esses autores sugerem que a qualidade do regime varia tanto mais quanto as dimensões mencionadas interagem e articulam-se entre si. Destaca-se aqui a dimensão da responsividade. Como diz respeito à consonância entre as políticas adotadas pelos representantes eleitos com os anseios dos cidadãoseleitores, relaciona-se com o grau de satisfação com o desempenho do regime e a legitimidade que lhe atribuem os participantes da comunidade política. Sob essa perspectiva, portanto, é crucial ao entendimento da qualidade da democracia o estudo do apoio público ao regime. O problema do apoio público à democracia compreende dimensões diferentes. A idéia original de Easton (1965) acerca do apoio difuso – relativo à atitude em relação ao sistema como um todo – e específico – referente à satisfação dos cidadãos com o desempenho dos governos e de lideranças políticas – tem sido retomada e ampliada por alguns autores. Para não confundir as diferentes dimensões institucionais que compreendem o apoio político, alguns autores propuseram a análise de cinco níveis desse tipo de atitude: o apoio à comunidade política (relacionado ao vínculo dos cidadãos ao Estado-nação e geralmente medido pelo sentimento de orgulho da nacionalidade); ao regime democrático per se (referente à adesão dos cidadãos à democracia como um ideal, ligado a valores como liberdade, o império da lei, participação e tolerância); ao desempenho real do sistema democrático medido pela satisfação com o regime; às instituições democráticas (mensurado pela confiança depositada nas instituições públicas) e aos atores políticos (referente à avaliação de líderes e políticos) (NORRIS, 1999; MOISÉS E CARNEIRO, 2010). O apoio político, levando em conta essas diferentes dimensões, tem variado em regimes consolidados. Enquanto o apoio à comunidade e aos princípios democráticos 3 permaneceu alto, a confiança nos políticos e a avaliação do desempenho do sistema democrático têm caído em muitas democracias consolidadas e também nas mais jovens (NORRIS, 1999; DALTON, 1999). No Brasil, o apoio público ao regime apresenta um quadro paradoxal. Enquanto a adesão à democracia como ideal atinge 2/3 dos cidadãos – tendo aumentado desde 1989, quando atingia cerca de metade – a confiança nas instituições, a avaliação dos principais atores e a satisfação com o funcionamento do regime democrático possuem níveis inversos (MOISÉS, 2007), apesar de o governo e o judiciário contarem com uma avaliação menos rigorosa. Por outro lado, a adesão à comunidade política – medida pelo orgulho da nacionalidade – também ostenta índices altos. Tabela 1. Apoio Político no Brasil – 2006 (%) Confiança Instituições Públicas Nenhuma Pouca Alguma Muita ns/nr Governo Partidos Políticos 24,9 36,6 40,7 44 28,4 16,9 5,8 2,0 0,2 0,4 Congresso Nacional 26,4 45,5 22,4 Judiciário 13,6 Ruim 41,7 Regular 33,1 Boa 30,6 16,1 Avaliação das Instituições Públicas Governo Muito Ruim/ Péssima 12,8 4,6 1,0 0,7 ns/nr 37,9 10,9 Ótima/ Muito boa 2,1 0,5 Partidos Políticos Congresso Nacional 22,8 14,4 43,3 40,2 13,5 15,1 18,4 26,7 0,6 1,7 0,4 1,9 Judiciário 5,5 26,8 16,2 45,8 4,4 0 Satisfação c/ democracia Adesão Democrática Adesão à Comunidade Política _Orgulho da nacionalidade Nada Satisfeito Pouco Satisfeito Satisfeito Muito Satisfeito ns/nr 28,9 48,1 17,9 2,7 2,3 Tanto faz democracia ou ditadura ns/nr 16,9 Muito Orgulhoso 4,8 ns/nr 57,9 0,1 Democracia Em certas sempre Melhor do circunstâncias, é que outra forma melhor uma ditadura de Governo 64,8 13,5 Nada Pouco Orgulhoso Orgulhoso Orgulhoso 5,5 7,1 29,3 Fonte: projeto “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas” (2006). ns/nr: não sabe, não respondeu Apesar de certa unanimidade na literatura sobre a constatação do fenômeno da desconfiança em diversos países, são várias as interpretações lançadas sobre as causas do problema (NYE, 1997; DALTON, 1999; PUTNAM E PHARR, 2000). Enquanto estudos de 4 cultura política, por exemplo, dão ênfase a aspectos como valores políticos ou orientações normativas de cidadãos (ALMOND E VERBA, 1963; INGLEHART, 2002), teorias institucionalistas da democracia, por sua vez, desconsiderando esses fatores, acreditam mais no desempenho real dos governos e suas instituições como elementos que explicam fenômenos como confiança ou apoio ao regime (COLEMAN, 1990; NORTH, 1990). A percepção do problema da corrupção, por exemplo, demonstrou ser fator relevante causador de desconfiança (MOISÉS, 2007). Essas perspectivas não significam hipóteses necessariamente concorrentes. Tanto a cultura política como a avaliação das instituições podem afetar de diferentes modos a experiência dos indivíduos e influir sobre suas orientações políticas. Para o caso brasileiro, por exemplo, Moisés (2010) sustenta que orientações valorativas e pragmáticas não representam perspectivas contrapostas para a explicação das atitudes e percepções intersubjetivas dos indivíduos quanto ao regime político. Ao contrário, as duas abordagens desempenham um papel na relação dos cidadãos com o regime democrático. Para além dos fatores mencionados, defende-se a importância de uma nova dimensão de significado empírico e teórico. Dada a importância destacada dos meios de comunicação nas sociedades contemporâneas, no seu papel de informar os cidadãos acerca das questões públicas, defende-se que estes exercem uma influência sobre a percepção pública das instituições e da democracia. A partir da década de 1990, críticas à mídia tornaram-se comuns. Uma postura excessivamente crítica em relação à política e aos políticos por parte da mídia – com uma cobertura majoritariamente negativa do processo político – estaria levando a um desencantamento dos cidadãos para com seus líderes e instituições políticas, levando a atitudes de cinismo em relação à política e aos políticos (PATTERSON, 2000; CAPPELLA E JAMIESON, 1997), bem como degradando processos de deliberação pública e enfraquecendo os partidos políticos, em sua função de mecanismo eleitoral (MERVIN, 1998). Um jornalismo com ênfase em escândalos políticos e notícias negativas fomentaria o cinismo nos telespectadores, contribuindo para a queda de confiança no governo. A televisão, como meio, também seria culpada por outros males cívicos na sociedade contemporânea, como pelo desaparecimento do “capital social” (PUTNAM, 1995). A confiança interpessoal – variável central dos estudos de capital social – está associada à confiança em instituições democráticas (MOISÉS, 2007; RENNÓ, 2001). Dessa forma, a 5 televisão teria o potencial de abalar, ainda que de forma indireta, a confiança que os cidadãos depositam nas instituições públicas. Contudo, essa visão negativa acerca do papel dos meios de comunicação de massa para os processos democráticos não é unânime. Existe a perspectiva teórica de que uma combinação de níveis educacionais cada vez mais altos com o acesso cada vez maior a informações políticas tem ajudado a mobilizar os cidadãos, tanto em termos de aumento do conhecimento quanto em termos comportamentais. Não é que a mídia possua apenas efeitos positivos. A audiência televisiva pode até se associar a um menor conhecimento e entendimento sobre política. Não obstante, a leitura de jornais e o noticiário televisivo tem relação inversa, fomentando inclusive a confiança nas instituições e a satisfação com o funcionamento da democracia (NEWTON, 1999). A mídia noticiosa representaria um “círculo virtuoso”, onde a atenção às notícias gradualmente reforça o engajamento cívico, assim como o engajamento cívico favorece o consumo de informação. A mídia jornalística não seria positiva somente para a confiança, mas também para o apoio a princípios democráticos (NORRIS, 2000). Ainda que essas duas perspectivas convirjam para a preocupação quanto ao efeito nocivo do consumo generalista de televisão, não se pode afirmar que os conteúdos assistidos têm efeitos negativos. Como a programação televisiva é plural, cada mensagem tem significado diferenciado em termos de estímulos positivos ou negativos para a qualidade democrática. Estudos com o impacto de programações diversas têm demonstrado como os resultados não são unidirecionais. Variáveis como a confiança interpessoal e o engajamento cívico, por exemplo, podem ser favorecidas ou desfavorecidas pela audiência a depender do tipo de programação (SHAH, 1998; USLANER, 1998). No Brasil, existe uma lacuna no que diz respeito ao estudo das inter-relações entre a mídia e o apoio público à democracia. Existe maior interesse no papel dos meios de comunicação para os processos eleitorais (STRAUBHAAR, OLSEN E NUNES, 1993; LINS DA SILVA, 1993; PORTO, 1996 E 2007; MIGUEL, 1999, 2003 E 2004). Existe, também, um interesse em análises de conteúdo dos meios de comunicação. Nessas, há um tratamento comum e unânime que apontam o caráter antipolítico da mídia no Brasil. A cobertura da mídia jornalística – especialmente do poder legislativo – é frequentemente descrita como negativa, focando temas como a corrupção, o nepotismo, o clientelismo e outras irregularidades. Ainda que necessário em uma democracia, esse jornalismo de investigação e seu caráter antipolítico teriam o potencial de disseminar a desconfiança e 6 o rechaço à política, colocando sérios obstáculos à legitimidade do próprio regime democrático (CHAIA E AZEVEDO, 2008; PORTO, 2000A; CHAIA E TEIXEIRA, 2001). Existe, não obstante, a perspectiva de que esse tratamento negativo em relação aos políticos como indivíduos falha ao não reconhecer que parte dos problemas apontados também são fruto de um sistema político com necessidade de reformas. Assim, esse tipo de cobertura – ainda que negativo em relação aos políticos – teria um caráter deferente ao sistema político e suas principais instituições (MIGUEL E COUTINHO, 2007). Ainda que esses estudos possam sugerir hipóteses interessantes, parte-se, aqui, do pressuposto de que a mídia não pode ser apenas estudada pela análise de conteúdo das mensagens emitidas, já que o público não as interpreta de maneira homogênea. Qualquer um – tendo elementos de representação do real, como a cultura popular e organizações comunitárias, por exemplo – é capaz de absorver criticamente aquilo que consome pela televisão (LINS DA SILVA, 1985). A relevância do papel da televisão e de outros meios de comunicação como fontes de informação se dá em um contexto maior, no qual igualmente pesam fontes interpessoais, como família e amigos, bem como organizações como a Igreja, sindicatos e associações de bairro (STRAUBHAAR, OLSEN E NUNES, 1993). Dessa forma, ainda que estabelecido o caráter antipolítico dos meios de comunicação no Brasil, não é certo que ele represente um obstáculo à democracia através da reprodução de casos de corrupção e irregularidades que pudessem levar a uma descrença em políticos e instituições como um todo. Primeiro, é preciso ir mais a fundo no próprio conteúdo da mídia. Existe certo consenso de que o retrato negativo que a mídia faz da política se restringe à representação crítica de agentes públicos. Os meios de comunicação não são acusados de serem cínicos em relação ao sistema ou instituições políticas. O que existe é a suposição de que essa caracterização individual negativa representa, por extensão, também uma visão negativa das instituições (PORTO, 2000A; CHAIA E AZEVEDO, 2008). Por outro lado, pode-se argumentar que a ênfase no conflito e a cobertura de informações negativas é uma função democrática da mídia, que também deve atuar como watchdog, responsabilizando governos e autoridades políticas por suas ações (SCHMITT-BECK E VOLTMER, 2007). Longe de abalar a confiança nas instituições, por exemplo, seria a percepção de que a mídia vigia o poder, um dos garantidores do clima de geral de confiança. Em contraposição ao que abordagens focadas em análises de conteúdo propõem, estudos baseados em surveys apontam mais para efeitos modestos e mais de orientação 7 positiva em relação ao sistema político do que negativos. Meneguello (2010) encontra relação modesta entre informações veiculadas pela mídia, sobretudo eletrônica, e avaliações críticas do funcionamento da democracia, bem como com a desconfiança institucional. Por outro lado, a despeito de um período em que os noticiários foram repletos de notícias sobre casos de corrupção envolvendo políticos de diversos partidos políticos, a audiência do telejornal Jornal Nacional se mostrou positivamente associado à confiança em diversas instituições públicas, bem como à satisfação com a democracia brasileira (MESQUITA, 2010). Ainda que não se afirme uma preferência por uma ou outra direção de causalidade, esses resultados desafiam a suposição de que uma mídia com viés antipolítico possa minar a confiança que os cidadãos depositam em suas instituições. Diferentemente do que sugere parte da literatura no Brasil, portanto, os cidadãos parecem diferenciar desvios individuais de falhas no funcionamento de suas instituições. Ao se dar publicidade a irregularidades e, ao mesmo tempo, aos órgãos encarregados de investigá-las, os cidadãos são confrontados com mecanismos de fiscalização e accountability presentes no sistema democrático. Dá-se ao público, então, condições de avaliar positivamente as instâncias democráticas. A mídia jornalística, por outro lado, também favorece várias formas de participação política (RENNÓ, 2003), além da adesão aos partidos políticos como elemento necessário à democracia (SCHLEGEL, 2006), o que demonstra o papel positivo do jornalismo também para outras variáveis da qualidade do regime. Apesar de a mídia jornalística parecer desempenhar um papel positivo para a qualidade democrática, a programação de entretenimento desempenha papel mais plural, a depender de suas características (SHAH, 1998). Como existem programações de caráter diverso, cada uma com conteúdos e implicações diferentes, seu estudo constitui um desafio. No Brasil, existe a perspectiva de que a ficção, em especial as telenovelas, constroem uma representação extremamente negativa do campo da política. A alternativa de uma solução moral proveniente de fora do campo político, geralmente por meio de algum justiceiro, é frequentemente apresentada, dando margem a respostas e movimentos autoritários ou personalistas (PORTO, 2000b). Com o intuito de avançar na investigação do papel da mídia para o apoio político, propõe-se aqui a consideração de duas dimensões: o apoio à comunidade política e aos princípios do regime. Além dessas duas dimensões do apoio político, inclui-se ainda a 8 dimensão da representação via partidos políticos. A aceitação dos partidos como instituição necessária à democracia apresenta-se como aspecto essencial de uma cultura democrática. Assim, é importante saber se a exposição à mídia é relevante para orientações dos cidadãos quanto ao sistema partidário. Importa saber se essa exposição é benéfica ou perniciosa para a criação de uma cultura política que favoreça e valorize o papel dos partidos para a representação dos cidadãos no sistema político. Essas três dimensões anteriores são as variáveis dependentes do estudo. As variáveis independentes são, além da audiência de televisão no geral, a variável de audiência do telenoticiário Jornal Nacional, da Rede Globo. No Brasil, existe um entendimento, ainda que careça de maior evidência empírica, de que a televisão, ao apresentar um viés antipolítico, poderia restringir interpretações disponíveis para que as pessoas entendam conteúdos políticos (Porto, 2005). Esse papel pernicioso desse meio para a democracia, de certa forma, também é consistente com os dados disponíveis sobre casos internacionais (NEWTON, 1999; NORRIS, 2000). Dessa forma, se espera que, no Brasil2: H1: Assistir televisão esteja negativamente associado à adesão à democracia e à comunidade política, bem como à valorização do papel de representação dos Partidos Políticos. Entretanto, em contraposição às hipóteses da literatura nacional sobre o tema, que acreditam em um efeito nocivo também do jornalismo brasileiro para a ligação dos brasileiros com a política, propõe-se uma hipótese alternativa. Em consonância com os dados de um papel positivo desempenhado pela audiência do telejornal para a confiança nas instituições, bem como a satisfação com a democracia (MESQUITA, 2010), propõe-se a seguinte hipótese: H2: Assistir Jornal Nacional está associado à maior adesão democrática, maior apoio à comunidade política e à uma maior valorização do papel de representação dos Partidos Políticos. Apesar de se utilizar nesse texto, por vezes, a linguagem da causalidade, está implícito que o que se fala aqui é de correlações, já que não se pode atribuir relações de causa e efeito com esse tipo de dados. 2 No survey de 2006, é possível testar a variável que representa o número total de horas a que os indivíduos costumam se expor à televisão. Entretanto, exceção feita ao telenoticiário em questão, não é possível saber que outros programas são assistidos. Dessa forma, é possível testar apenas a hipótese de que o número total de horas gasto em frente à TV seria de alguma forma pernicioso a interações sociais dos indivíduos, o que, por extensão, poderia também abalar negativamente variáveis de apoio político. 9 TV E APOIO POLÍTICO Os dados relativos ao impacto da audiência televisiva mostram que as associações não são unidirecionais. A tabela 2 mostra o impacto dessa variável na explicação de cada uma das variáveis listadas. Sendo as variáveis ordinais, optou-se por realizar o procedimento de Regressão Categórica.3 Com relação à adesão democrática, a televisão representa um papel negativo para a maioria das variáveis testadas, como esperado. Quem mais assiste televisão, mais concorda com ‘o governo desrespeitar as leis em caso de dificuldades’, que ‘o presidente pode deixar de lado o congresso e os partidos em caso de dificuldades’, que ‘daria um cheque em branco a um líder salvador que resolvesse os problemas’, e que ‘só uma ditadura pode dar jeito no Brasil’. A única exceção ficou por conta da variável ‘prefere a democracia a um líder salvador’, onde a relação foi inversa, quem mais assiste televisão, mais concorda com a frase. Tabela 2: Audiência TV e Apoio Político Coeficientes de regressão (beta) de Audiência de TV, controlados por variáveis socioeconômicas (sexo, idade, escolaridade, renda) Adesão democrática Audiência TV R2 N Discorda com Governo desrespeitar leis em dificuldades Prefere democracia do que líder salvador -0,048*** 0,018 1753 0,054*** 0,013 1750 Discorda Presidente deixar de lado Congresso e Partidos no caso de dificuldades -0,086*** 0,021 1754 Discorda País melhor com volta dos militares Discorda Daria cheque em branco a líder salvador que resolvesse problemas Discorda só uma ditadura pode dar jeito no Brasil ns -0,077*** 0,028 1753 -0,048*** 0,033 1710 Vínculo dos cidadãos com o Estado Nação Audiência TV R2 N Orgulho de ser Brasileiro 0,064*** 0,012 1836 Representação via Partidos Políticos Audiência TV R2 N Democracia a ver com a existência de diversos partidos políticos -0,035* 0,014 1784 Discorda Brasil melhor se existisse apenas um partido político Proximidade aos partidos políticos -0,071*** 0,023 1704 0,048** 0,021 1830 Fonte: Pesquisa A Desconfiança dos Cidadãos nas Instituições Democráticas. Sig: *p< 0,10, **p < 0,05, ***<0,01. 3 (Optimal Scalling no SPSS). A regressão categórica quantifica dados categóricos dando valores numéricos às categorias. Isso resulta em uma equação de regressão linear optimal para as variáveis transformadas. Todas as variáveis do estudo foram recodificadas para que um coeficiente (Beta) positivo representasse sempre maior apoio à democracia. Assim, para uma variável dependente como “prefere a democracia do que um líder salvador”, um Beta positivo representaria maior concordância com a frase. Para frases do tipo “País melhor com a volta dos militares” um coeficiente positivo representa maior discordância. Assim, todos os coeficientes positivos do estudo referem-se a maior impacto positivo sobre a dimensão em questão. 10 A televisão também se mostra como fator negativo para a valorização do papel de representação dos partidos políticos, com exceção para a proximidade em relação aos partidos políticos. Quanto mais se assiste a televisão, mais próximo o cidadão se sente a eles. Entretanto, de maneira distinta, quem mais assiste TV, mais discorda das afirmações de que a ‘democracia tem a ver com a existência de diversos partidos políticos’ e mais concorda que ‘o Brasil seria melhor se existisse apenas um partido político’. Também se efetuou uma regressão logística com a variável em que o respondente tinha que afirmar com qual frase concordava mais: “A democracia é sempre melhor do que qualquer outra forma de governo”; “em certas circunstâncias é melhor uma ditadura do que uma democracia” ou “tanto faz se o governo é uma democracia ou uma ditadura”. A tabela 3 mostra um impacto negativo: quanto mais se assiste TV, menos se acredita que a democracia é melhor do que qualquer outra forma de governo. Tabela 3. Regressão Logística: Democracia melhor forma de governo Audiência TV Constant B -.088 -.654 S.E. .035 .308 Wald 6.428 4.513 df 1 1 Sig. .011 .034 Exp(B) .916 .520 Democrata vs outros (autoritários e ambivalentes). Controlado por: sexo, idade, escolaridade, renda. Nagelkerke R Square: 0,033. Porcentagem de acerto do modelo: 62,9%. Fonte: projeto “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas” (2006). N=1573. Esses resultados confirmam a associação negativa entre o consumo total de televisão com vários aspectos da qualidade democrática (PUTNAM, 1995; NEWTON, 1999, SHAH, 1998). Entretanto, como não há no survey “Desconfiança” (2006) questões sobre os conteúdos assistidos, só é possível argumentar que o quanto se assiste de TV parece ser prejudicial à percepções sobre a democracia e partidos. Quanto ao quê se assiste, ainda seria necessário maiores estudos para corroborar ou rejeitar teses sobre o que conteúdos específicos podem representar. Os dados da tabela 2 também apontam outro resultado, por sua vez menos esperado. A dimensão de apoio à comunidade política, medido pelo orgulho da nacionalidade, é favorecido pela audiência televisiva, e não o contrário, como previa a hipótese. Os resultados indicam o papel plural que um mesmo meio pode ter para diferentes aspectos da qualidade democrática. Ainda que se possa imputar à TV um papel pernicioso para a vivencia democrática, concorrendo com o tempo necessário para interações sociais, o que fortaleceria o engajamento cívico e a confiança interpessoal 11 (PUTNAM, 1995, SHAH, 1998), não se pode dizer o mesmo sobre seu significado para a ligação dos cidadãos com a comunidade política. TELEJORNAL (JN) E APOIO POLÍTICO A segunda série de resultados diz respeito ao papel que representa o telenoticiário Jornal Nacional, da Rede Globo, para as dimensões de apoio político. Quem assiste ao JN está exposto também a várias outras mensagens políticas da televisão. Parece razoável supor que haja uma diferença entre quem assiste ao JN três vezes por semana, ao mesmo tempo em que vê apenas uma hora de TV por dia e outra pessoa que assista à mesma quantidade de edições do JN, mas ao mesmo tempo tenha um consumo televisivo de quatro horas diárias. Assim, utilizou-se uma taxa de audiência do Jornal Nacional, que corresponde à proporção de consumo do noticiário em relação ao total de horas dedicadas à televisão, criada através da uma divisão entre a audiência de JN pela audiência de TV. A idéia aqui não é apenas uma possível “diluição” de informação comparada a uma informação mais “pura”. Espera-se que um telespectador que praticamente restrinja seu consumo televisivo ao noticiário tenha uma relação mais atenta ao seu conteúdo, já que liga seu televisor com o intuito específico de saber as notícias do dia. Entretanto, um padrão de audiência distinto, em que o indivíduo deixa seu televisor ligado desde o período em que chega do trabalho até a hora de dormir, assistindo o telejornal “entre as novelas”, pode indicar que esteja menos atento ao que nele se passa. Essa variável criada provou-se mais consistente do que a simples audiência do telejornal em estudo anterior (MESQUITA, 2010). Ao falar-se de audiência de Jornal Nacional, de agora em diante, está se referindo sempre a essa taxa, ou seja, sempre levando em consideração, também, o consumo televisivo. A tabela 4 mostra o impacto dessa taxa na explicação de cada uma das variáveis listadas. Os dados comprovam a hipótese inicial de um papel positivo do JN. Entretanto, ao contrário do que se verificou sobre o impacto dessa mesma variável independente sobre outras dimensões do apoio político, como a confiança institucional (MESQUITA, 2010), os resultados são bem mais modestos. Com relação à dimensão de adesão democrática, somente uma variável está associada à taxa JN após o controle de variáveis socioeconômicas. Quem mais assiste o Jornal Nacional, mais discorda da afirmação de que “daria um cheque em branco a um líder salvador que resolvesse os problemas”. Todas as outras variáveis testadas não têm significância estatística. Para o vínculo dos 12 cidadãos com o Estado Nação, a audiência do telejornal não é uma variável a ser considerada, já que ela não interfere no orgulho de ser brasileiro. A valorização dos partidos políticos como mecanismo de representação também tem pouco a ver com a audiência do telenoticiário. Ela somente influi – positivamente – na proximidade que se tem a eles. As outras variáveis testadas não alcançam significância estatística. Tabela 4.TXJN e Apoio Político - Coeficientes de regressão (beta) de Taxa JN, controlados por variáveis socioeconômicas Adesão democrática TXJN Discorda com Governo desrespeitar leis em dificuldades ns Prefere democracia do que líder salvador Discorda Presidente deixar de lado Congresso e Partidos no caso de dificuldades Discorda País melhor com volta dos militares ns ns ns 2 R N TXJN Discorda Daria cheque em branco a líder salvador que resolvesse problemas 0,069*** 0,027 1753 Discorda que só uma ditadura pode dar jeito no Brasil ns Vínculo dos cidadãos com o Estado Nação Orgulho de ser Brasileiro ns R2 N Representação via Partidos Políticos Democracia tem a ver com a Discorda existência de diversos partidos Brasil melhor se existisse políticos apenas um partido político ns ns Proximidade aos partidos políticos 0,060** R2 0,022 N 1830 Significância: *p < 0,10, **p < 0,05, ***<0,01. N= número de casos. Controlado por: sexo, idade, escolaridade, renda. Fonte: projeto “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas” (2006). TXJN É possível que esses resultados mais modestos em comparação com as dimensões de confiança e de avaliação institucional se deva ao fato de o telenoticiário abordar diretamente assuntos que remetam ao desempenho das instituições. Assim, faz mais sentido que as pessoas que mais se expõem a esse tipo de informação confiem mais e avaliem melhor as instituições do regime. Ao mesmo tempo, questões como a dos princípios do regime não têm relação direta com as mensagens do telenoticiário e por isso somente uma variável apareceu como significante. Na dimensão relativa a valorização do papel dos partidos, essa mesma hipótese pode ser sustentada. As variáveis em que se questiona aspectos normativos – como a importância dos partidos políticos para a 13 democracia – não estão correlacionadas com a audiência do JN. Entretanto, o telejornal apareceu como relevante na proximidade que se tem a eles, demonstrando sua importância quando se trata de uma orientação mais pragmática. ASPECTOS MODERADORES DA MÍDIA Levar a mídia em conta como fator relevante para as atitudes políticas dos cidadãos não significa, necessariamente, dar primazia a essa explicação. Tampouco se desconsidera elementos explicativos que possam agir paralelamente a essa forma de opinião mediada. Para além de uma tese “concorrente”, onde diversos outros fatores podem influir – de maneira independente – sobre orientações políticas, acredita-se em um processo interativo entre diferentes elementos. Processos interativos correspondem a um padrão de influência recíproca, sendo o conceito de interação próximo ao conceito de comunicação. Trata-se de uma abordagem concorrente ao modelo de transmissão unidirecional dos efeitos da comunicação. Essa perspectiva encontra maior eco em estudos culturais, que enfatizam a forma como os indivíduos interagem, interpretam e se apropriam de símbolos e ideias presentes na cultura popular, ao invés de serem apenas influenciados por ela (NEUMAN, 2007). Partindo-se dessa autonomia dos indivíduos frente às mensagens às quais estão expostos, cabe também analisar que fatores podem interagir com estas. Sem a intenção de abarcar todas as possíveis (e inesgotáveis) variáveis que podem influenciar a maneira como as pessoas percebem mensagens da mídia, buscou-se aqui avançar com cinco desses elementos. Um fator a ser levado em consideração na mediação entre mensagens provenientes da mídia e atitudes políticas é a sofisticação política, que remete a questões como educação, bem como ao interesse por política e a eficácia política. Pessoas com maior educação formal tendem a se interessar mais por política, além de se exporem com maior probabilidade a mensagens que remetem a assuntos públicos e, dessa forma, interpretarem conteúdos de maneira mais crítica (NEUMAN, 1986). A variância do interesse por política que cada cidadão tem, por sua vez, pode influenciar na relação que este estabelece com o conteúdo político ao qual está exposto pela mídia. A televisão é considerada como meio que potencialmente pode influenciar mais as pessoas que se interessam menos por política, criando um efeito de ‘encapsulamento’. Isso se deve ao fato de essa mídia ser menos seletiva em termos de audiência. Não obstante, a cobertura política chega mais facilmente aos mais interessados (SCHOENBACH E LAUF, 2004). A 14 eficácia política remete ao lado afetivo do envolvimento com a política, sendo medida pela percepção se a política é ou não vista como algo incompreensível, sendo o seu oposto a apatia política (NEUMAN, 1986). Essas três dimensões da sofisticação política podem não ter relação direta com o apoio político em si, mas podem se mostrar importantes variáveis moderadoras.4 Outros dois elementos que podem influir na maneira de os indivíduos absorverem as mensagens da mídia é o apoio ao governo da vez e a confiança que se deposita na mídia. Existem evidências de que o apoio ao sistema é influenciado pelo fato de os indivíduos se encontrarem entre os vencedores ou os perdedores de disputas eleitorais (NORRIS, 1999). Assim, indivíduos que se encontram entre os partidários do governo da vez tendem a dar mais apoio ao sistema, rejeitando mensagens negativas ou reforçando mensagens positivas sobre a política. A confiança que se têm na própria televisão deve ser um elemento a ser considerado, já que quando as pessoas não confiam na mídia, elas tendem a rejeitar o clima mediado de opinião (TSAFATI, 2003). Esses cinco elementos foram incorporados na análise estatística com um procedimento denotado como interação.5 Para se fazer esse procedimento, primeiro efetuou-se uma regressão categórica com uma variável resposta6 e as variáveis explicativas7 (sem interações), quando ocorre a quantificação das variáveis. Depois criouse as variáveis de interação. Por último fez-se uma regressão múltipla (usual) com as 4 Neuman (1986) demonstra como a sofisticação política não está ligada diretamente a posições mais autoritárias ou moderadas, variando de acordo com as diferentes dimensões em questão. Para o autor, no entanto, a sofisticação política é um importante fator moderador que aumenta a probabilidade de uma variável (de estímulo de mobilização) sobre outra (de comportamento político). 5 Em modelos de regressão com interações, queremos verificar se a mudança simultânea entre duas ou mais variáveis, mantidas as demais constantes, provoca impacto na variável dependente. Os efeitos de interação também são conhecidos como efeitos moderadores porque a terceira variável de interação, que modifica a relação entre as duas variáveis originais, modera a relação original. A associação entre renda e conservadorismo, por exemplo, pode ser moderada dependendo do nível de educação. O coeficiente utilizado foi o beta, que é referente as variáveis padronizadas (média 0 e desvia padrão 1), o que permite comparação entre quaisquer valores de betas: “Adiciona-se variáveis de interação ao modelo como produtos das independentes padronizadas e/ou independentes dummy, normalmente colocando-as após as variáveis independentes simples de ‘efeitos principais’ (...).’padronizada’ significa que para cada dado, a média é subtraída e o resultado dividido pelo desvio padrão. O resultado é que todas as variáveis tem uma média 0 e um desvio padrão 1. Isso permite a comparação de variáveis de diferentes magnitudes e dispersões.” (Garson, 2008). 6 Variáveis de adesão à democracia, aos partidos políticos e à comunidade política. 7 Além das variáveis independentes originais (audiência TV e TXJN), inseriu-se as moderadoras de interesse por política, escolaridade (medida pela grau de instrução formal), eficácia política (medida pela discordância com a frase “as vezes a política e o governo parecem tão complicados que uma pessoa como você não pode realmente entender o que está acontecendo” – onde um beta positivo corresponde a maior eficácia política, e um negativo a maior apatia), apoio ao governo da vez (medida pelo apoio ao governo Lula) e a confiança na mídia (medida pela confiança depositada na TV). Manteve-se as variáveis sexo e renda como controle. Variáveis de interação foram incluídas em todos os modelos em que pelo menos a variável de audiência era significante. Em alguns casos, portanto, ainda que uma dessas variáveis independentes possam não ter impacto isoladamente, é possível que se apresentem como moderadoras entre audiência e atitudes políticas. 15 variáveis transformadas. Os modelos com variáveis de interação para a audiência televisiva apresentam resultados significativos, como demonstram as Tabelas 5 e 6. As componentes da sofisticação política, como aponta a literatura (NEUMAN, 1986), não têm relações unidirecionais com as dimensões do apoio político. De maneira geral, o interesse por política e a escolaridade aparecem associados de maneira positiva a variáveis das dimensões de adesão democrática e da valorização do papel dos partidos políticos. Tabela 5. Audiência TV e Apoio Político (interações) Coeficientes de regressão (beta) da audiência TV com variáveis moderadoras Adesão Democrática Discorda com Governo desrespeitar leis em dificuldades Audiência TV - 0,043* Sexo ns Idade 0,111*** Renda ns Escolaridade 0,095*** Interesse política 0,086*** Adesão gov. Lula - 0,097*** Confiança mídia - 0,076*** Eficácia política ns Audiência TV vs. ns escolaridade Audiência TV vs. 0,056** interesse política Audiência TV vs. adesão - 0,037* gov. Lula Audiência TV vs. ns confiança mídia Audiência TV vs. eficácia ns política 0,041 R2 1714 N Discorda Presidente deixar de lado Congresso e Partidos no caso de dificuldades Discorda Daria cheque em branco a líder salvador que resolvesse problemas Discorda que só uma ditadura pode dar jeito no Brasil - 0,079*** ns ns ns 0,097*** 0,068*** - 0,07*** - 0,041* 0,04* - 0,061** ns ns 0,066*** 0,122*** 0,062*** ns ns - 0,109*** - 0,044* ns ns - 0,045* 0,182*** ns 0,059** ns - 0,049** ns ns 0,042* ns ns 0,049** - 0,035* ns ns ns ns - 0,054** ns ns - 0,063*** 0,032 1717 0,039 1716 0,046 1675 Representação via partidos e adesão à comunidade política Democracia a ver com existência de diversos partidos políticos Audiência TV - 0,043* Discorda Brasil melhor se existisse apenas um partido político - 0,058** 8 Proximidade aos partidos políticos8 0,051** Orgulho de ser Brasileiro 0,05** Para essa variável dependente, no modelo com as variáveis moderadoras, a audiência de TV deixou de ser significante, o que significa que uma das novas variáveis, de alguma forma estava impactando a audiência, deixando-a fora do modelo. Rodou-se novos modelos retirando as variáveis moderadoras uma a uma para ver qual produzia esse efeito. O modelo constante na tabela, portanto, é o sem a variável interesse por política. Ao se retirar essa variável, a audiência voltou a ser significante a 0,05. 16 Sexo - 0,054** ns - 0,098*** Idade ns ns 0,049** Renda 0,049* - 0,061** 0,05** Escolaridade 0,052** 0,109*** ns Interesse política 0,075*** 0,085*** ----Adesão gov. Lula ns 0,05** 0,169*** Confiança mídia ns 0,06** 0,108*** Eficácia política - 0,053** 0,067*** 0,101*** Audiência TV vs. ns ns -0,053** escolaridade Audiência TV vs. ns ns ----interesse política Audiência TV vs. ns ns ns adesão gov. Lula Audiência TV vs. 0,039* ns ns confiança mídia Audiência TV vs. ns ns ns eficácia política 0,023 0,041 0,072 R2 1746 1670 1785 N Significância: *p < 0,10, **p < 0,05, ***<0,01. N= 2004. Fonte: projeto “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas” (2006). 0,041* 0,066*** 0,06** 0,06** ns 0,112*** 0,065*** 0,046* ns ns ns ns ns 0,032 1787 Tabela 6: Regressão Logística: Democracia Melhor Forma de Governo Controlado por: sexo, idade, escolaridade, renda. B Audiência TV Interesse por Política Constant -.139 .123 -.684 S.E. .057 .056 .940 Wald 6.059 4.812 .530 df 1 1 1 Sig. .014 .028 .467 Exp(B) .870 1.131 .504 Nagelkerke R Square: 0,041. Porcentagem de acerto do modelo: 63,8%. N=1549. Estão expostas apenas as variáveis das quais as categorias produziram coeficientes a 0,05 de significância. Fonte: projeto “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas” (2006). A eficácia política, por sua vez, possui papel mais paradoxal. Os que menos consideram a política como algo complicado – e que, portanto, ostentam maiores níveis de eficácia política – rejeitam a idéia de o presidente deixar de lado o Congresso e os partidos no caso de dificuldades. Ao mesmo tempo, mais concordam em dar um cheque em branco a um líder salvador e que só uma ditadura pode dar jeito no Brasil. Esse mesmo caráter ambíguo é mantido em relação a valorização dos partidos políticos, a depender da variável em questão. Ainda que dois componentes da sofisticação política – educação e interesse por política – pareçam contribuir de forma positiva para o apoio político de forma mais clara, 17 os resultados para eficácia política desafiam o argumento “coerente e de senso comum, de que a noção de aprendizado social apela para os instintos democráticos da pessoa e para o otimismo sobre o futuro de longo prazo e a estabilidade dos regimes democráticos” (NEUMAN, 1986, p 162). As associações ambíguas encontradas confirmam o que Neuman chamou de “paradoxo da política imoderada”, em que a educação e a sofisticação política não levam necessariamente a moderação política. A adesão ao governo Lula apresenta resultados contraditórios. Apesar de quem mais apóia o governo Lula mais rejeitar a noção de que só uma ditadura pode dar jeito no Brasil, mais concorda em desrespeitar leis ou deixar de lado o congresso e partidos no caso de dificuldades, mesmo padrão apresentado por aqueles que mais confiam na TV. Com relação a percepção do papel dos partidos políticos, essas duas variáveis se associam de maneira positiva. Ou seja, o apoio ao governo da vez pode aumentar o apoio ao sistema, na forma de satisfação com o funcionamento do regime (NORRIS, 1999) e também favorecer a importância dada aos partidos políticos, mas esse papel parece ser mais ambíguo em relação aos princípios democráticos. A dimensão de apoio à comunidade política é favorecida pela maioria das variáveis independentes do modelo. Quanto maior a escolaridade, a adesão ao governo Lula, a confiança na mídia e a eficácia política, maior o orgulho da nacionalidade. A audiência de TV interage com escolaridade em dois modelos. Com a variável dependente “concorda que só uma ditadura pode dar jeito no Brasil” e com a proximidade aos partidos políticos. Em ambas, reverte os efeitos da audiência. Quem mais assiste TV, mais concorda com essa alternativa autoritária. No entanto, esse efeito é diversificado entre os mais instruídos. Quanto mais instruído e mais se assiste TV, mais se rejeita essa alternativa antidemocrática. A audiência televisiva também aproxima a audiência dos partidos políticos. Entretanto, os mais instruídos, aos assistirem mais televisão, mais se distanciam destes. Esse efeito é semelhante com o do interesse por política. A despeito de a audiência televisiva favorecer percepções contrárias aos princípios do regime, em dois modelos a interação com o interesse por política tem relação inversa. Aqueles que demonstram maior interesse, ao se exporem mais a televisão, reforçam mais atitudes de valorização da democracia. Esses dois componentes da sofisticação política demonstram que cidadãos mais equipados com instrução formal e mais interessados em questões públicas tem maior capacidade de absorver criticamente o conteúdo televisivo. Já o outro componente da sofisticação política possui resultado diverso. Aqueles que menos 18 acreditam que a política é complicada, ao assistirem mais televisão, mais concordam com uma alternativa antidemocrática, com intensidade maior do que essas duas variáveis separadas (comparando-se os coeficientes). Significa que esses menos apáticos têm sua atitude antidemocrática potencializada ao se exporem à televisão. Tanto o apoio ao governo Lula quanto a audiência se associam com a desvalorização dos princípios do regime democrático. Em dois modelos quando aparece o efeito de interação, essa nova variável mantém essa mesma tendência negativa. Nos dois casos, entretanto, esse efeito não é potencializado como no caso da eficácia política. Comparando-se os coeficientes de regressão, o efeito de interação é menor do que o das duas variáveis de forma independente. Ou seja, a audiência da televisão “atenua” essa desvalorização de alguns princípios do regime. A confiança na TV, por sua vez, deveria sempre potencializar o efeito da audiência, já que pessoas que desconfiam desse meio poderiam rejeitar as mensagens que de alguma forma estivessem influenciado os indivíduos. De fato, é o que acontece para a adesão democrática em um dos modelos testados. A confiança na TV potencializa a atitude antidemocrática de quem mais assiste esse meio. No entanto, ao contrário das expectativas, essa mesma confiança reverte a desvalorização dos partidos como essenciais à democracia, associação que a audiência televisiva, de forma isolada favorece. Esse dado reforça a perspectiva de que as associações negativas entre audiência televisiva e apoio político encontradas se devem mais ao número de horas assistidas do que a mensagens antidemocráticas por ventura nela existentes. Indivíduos mais expostos a mensagens contrárias aos princípios do regime, ao confiarem mais nesse tipo de meio, deveriam estar mais sujeitos a essa potencial influência, e não o contrário. Nesse caso, mais investigações nesse sentido se fazem necessárias para entender o porquê da confiança reverter a desvalorização do papel dos partidos entre aqueles que mais assistem TV. É importante notar que as variáveis moderadoras escolhidas não são necessariamente relevantes para explicar o apoio político em si. Sua escolha se deveu ao fato de serem elementos importantes que poderiam interagir com as variáveis de audiência. Esse dado pode ser evidenciado nos modelos analisados. Em quatro deles a variável moderadora não tem impacto sobre o apoio político de forma isolada. Apenas quando interage com a audiência televisiva é que ela se torna relevante. Quem mais confia na mídia, por exemplo, não rejeita mais – nem concorda mais – com a idéia de que só uma ditadura pode dar jeito no Brasil. Entretanto, essa confiança reforça a 19 concordância com essa alternativa antidemocrática por parte daqueles que mais assistem televisão. Os mais instruídos, por sua vez, não são nem mais, nem menos, próximos aos partidos políticos. No entanto, maior instrução distancia mais aqueles que mais se expõe a TV. Neuman (1986) já havia alertado que a sofisticação política, por exemplo, não é necessariamente determinante para inclinar os indivíduos a determinadas opiniões, mas funciona como importante variável interveniente. Os dados apresentados aqui sugerem que o mesmo pode ser verdade também para a confiança depositada na mídia. A Tabela 7 abaixo mostra os modelos com interações quando a variável independente principal é a audiência do Jornal Nacional. A escolaridade favorece a adesão democrática, nos modelos analisados, mas distancia os cidadãos dos partidos políticos. A eficácia política tem relação inversa, favorecendo a proximidade aos partidos políticos, mas ao mesmo tempo se associando a atitudes antidemocráticas. As outras variáveis moderadoras (interesse por política, adesão ao governo Lula e confiança na mídia) apresentam a mesma relação, qual seja a de favorecer a proximidade com os partidos políticos. Diferentemente dos modelos com a variável audiência televisiva, entretanto, os modelos com a TXJN não apresentaram nenhum efeitos de interação. Tabela 7: Taxa JN e Apoio Político (interações) Coeficientes de regressão (beta) da taxa JN com variáveis moderadoras TXJN Sexo Idade Renda Escolaridade interesse política adesão gov. Lula confiança mídia eficácia política TXJN vs. Escolaridade TXJN vs. interesse política TXJN vs. adesão gov. Lula TXJN vs. confiança mídia TXJN vs. eficácia política R2 N Discorda daria cheque em branco a líder salvador que resolvesse os problemas 0,064*** ns ns 0,065** 0,125*** ns ns ns - 0,109*** ns ns ns ns ns 0,036 1716 Proximidade aos partidos políticos Significância: *p < 0,10, **p < 0,05, ***<0,01. N= 2004. Fonte: projeto “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas” (2006). 20 0,049** - 0,062*** ns 0,058** - 0,077*** 0,258*** 0,139*** 0,086*** 0,075*** ns ns ns ns ns 0,133 1782 BREVES CONCLUSÕES A mídia é um fator relevante a ser considerado quando se trata do entendimento dos cidadãos acerca dos assuntos do Estado. A informação contida nela pode auxiliar no engajamento dos cidadãos com a democracia, ou torná-los mais avessos a princípios democráticos. Para entender o papel que a mídia representa para o apoio público à democracia, é preciso levar em conta uma dupla multidimensionalidade: do apoio político e da própria mídia. Os dados aqui apresentados confirmam esse papel plural dos meios de comunicação, a depender tanto do meio, quanto da dimensão de apoio político em questão. De um lado, o telejornal Jornal Nacional se apresentou como elemento positivo para a adesão democrática e para a valorização dos partidos políticos, de maneira semelhante à confiança institucional, bem como à satisfação com o desempenho do regime (MESQUITA, 2010). No entanto, o número de variáveis em que a audiência do telenoticiário se mostrou relevante para as dimensões testadas aqui, foi pequeno em comparação aos apresentados em relação à confiança institucional. Os resultados sugerem que a mídia jornalística parece ser mais relevante para essas dimensões mais pragmáticas, do que para as variáveis que representam dimensões de ordem mais normativa. Essa diferença faz sentido, já que telejornais apresentam informações diretamente ligadas ao funcionamento de governos e instituições. Quanto mais os cidadãos se expõe a esse tipo de informação, maior a capacidade de se formar uma atitude frente aos mesmos. Questões mais normativas como as dos princípios do regime democrático, bem como a importância dada aos partidos políticos, são mais indiretamente ligadas aos conteúdos jornalísticos, o que explica os resultados mais modestos apresentados aqui. Por outro lado, resultados mais robustos foram verificados em relação ao consumo de televisão no geral, onde verificou-se uma associação com um maior número de variáveis testadas. De maneira geral, esse tipo de audiência se associa negativamente a variáveis que representam a adesão democrática e a valorização dos partidos políticos, conforme a hipótese do estudo. Não obstante esse papel negativo, os dados também apontaram que a televisão favorece uma maior adesão à comunidade política. Esses resultados demonstram que é preciso cautela ao se responsabilizar um viés antipolítico da mídia por atitudes negativas que os cidadãos tem relação à democracia. Ainda que se aceite como fato uma atitude mais crítica em relação à política por parte da mídia jornalística, existe controvérsias sobre isso representar, por extensão, também 21 uma atitude antiinstitucional. Aqui, como na literatura especializada internacional focada em surveys (NORRIS, 2000; NEWTON, 1999), o telejornal tem aparecido constantemente como fator positivo para a qualidade democrática. Já com relação à audiência televisiva, os resultados confirmam, de alguma forma, preocupações levantadas quanto ao seu significado para percepções da democracia no Brasil. Ainda assim, esses resultados demandam cautela, já que parecem estar mais associados ao tempo gasto com a televisão do que aos conteúdos nela existentes. Para se confirmar possíveis efeitos negativos de conteúdos, seriam necessários mais estudos com surveys que contassem com perguntas mais detalhadas sobre a programação assistida. Estudos de recepção também poderiam ser úteis nesse sentido. Além disso, ressalta-se que o papel da televisão em relação à adesão dos cidadãos à comunidade política é positivo. Esse resultado positivo para o orgulho da nacionalidade poderia estar relacionado com a grande penetração da televisão pelo território nacional, com a disseminação de valores comuns. Tomando como exemplo o gênero das telenovelas, todas as classes sociais assistem a esse tipo de programação, conversando sobre seus temas e tramas, o que demonstra o papel da televisão como laço social. Ao se mostrar como espelho da sociedade brasileira, as novelas se apresentariam, ainda, como fator estruturador da identidade brasileira (WOLTON, 1996). Assim, o papel da televisão pode ser visto como paradoxal. Ainda que – a exemplo dos dados internacionais – pareça estar ligado de alguma forma a atitudes mais negativas em relação à política, ao mesmo tempo parece desempenhar, no caso brasileiro, um papel ativo – possibilitando que as audiências construam entendimentos complexos sobre o passado, o presente e o futuro do país. Os modelos com as variáveis de interação também demonstram a importância de se considerar outros fatores na mediação da mensagem. Cidadãos mais instruídos e mais interessados por política parecem se relacionar de forma diferente com a audiência televisiva, já que essas características beneficiam - ao invés de desfavorecerem - a adesão aos princípios do regime. Uma explicação poderia ser diferenças cognitivas entre esses indivíduos no momento de processar mensagens semelhantes. Como a programação televisiva é plural, e não se pode saber de antemão se as pessoas estão expostas ao mesmo tipo de mensagem, seria possível afirmar, também, que essa diferença se deve a um padrão distinto de consumo dessa mídia. É plausível que aqueles com maior instrução formal e mais interessados em política se exponham a programações de conteúdos diversos, com maior ênfase em programas de informação, por exemplo, em 22 comparação aos demais indivíduos, o que explicaria esse efeito de interação. De uma maneira ou de outra, reforça-se a importância de mais estudos sobre o impacto de diferentes conteúdos apresentados pela televisão. Mais do que constatar o papel plural da mídia para a qualidade democrática, os resultados reforçam a idéia de que não se deve encarar indivíduos como impotentes diante do poder da mídia. Diversos fatores como a sofisticação política, a confiança que se tem no meio e também convicções políticas – como o apoio ao governo da vez – interagem com essa mensagem dos meios de comunicação. Mais do que o potencial de rejeitar determinadas mensagens, os resultados aqui sugerem que indivíduos interagem com elas de maneiras distintas, a depender dos elementos característicos de cada um. 23 ANEXO Variáveis Utilizadas Audiência de TV “Quantas horas por dia você gasta assistindo TV (Até 1, 2, 3, 4, 5 horas, mais de 5 horas? Ou você não costuma assistir TV?)” Audiência do Jornal Nacional “Com que freqüência você assiste o Jornal Nacional da TV Globo durante a semana? (1, 2, 3, 4, 5 vezes, todos os dias ou você nunca assiste o Jornal Nacional?)” Adesão aos princípios democráticos Gostaria que você dissesse se (discorda muito, discorda pouco, concorda pouco, concorda muito): “quando há uma situação difícil no Brasil, não importa que o governo passe por cima das leis, do Congresso Nacional e das instituições para resolver os problemas do País”. “prefiro a democracia do que um líder salvador que tenha todo o poder, sem ser controlado pelas leis” “Se o País enfrenta dificuldades sérias, o presidente pode deixar de lado o Congresso os partidos e tomar as decisões sozinho” “O País funcionaria melhor se os militares voltassem ao poder” “Eu daria um cheque em branco a um líder salvador que resolvesse os problemas do País” “Só uma ditadura pode dar jeito no Brasil” “Qual das afirmações concorda mais: ‘ A Democracia é sempre melhor do qualquer outra forma de governo’; ‘ em certas circunstâncias é melhor uma ditadura do que uma democracia’; ‘tanto faz se o governo é uma democracia ou uma ditadura’.” (Codificação: Democrata vs outros). Adesão à comunidade política “Você tem orgulho de ser brasileiro?” (muito orgulhoso, orgulhoso, pouco orgulhoso, nada orgulhoso) Valorização do papel de representação dos partidos políticos “Falando dos partidos políticos brasileiros, como você se sente em relação a eles?” (muito próximo, próximo, pouco próximo, não é próximo a nenhum” “O Brasil seria bem melhor se existisse apenas um partido político” “Falando de Democracia, você acha que a democracia te a ver com: a existência de diversos partidos políticos?” (tem muito a ver, tem a ver, tem pouco a ver, tem nada a ver) Variáveis moderadoras: Eficácia política: “Vou ler algumas frases sobre política e gostaria de saber se: As vezes a política e o governo parecem tão complicados que uma pessoa como você não pode realmente entender o que está acontecendo” (discorda muito, discorda pouco, concorda pouco, concorda muito). Interesse por política: “E quanto ao seu interesse por política, você diria que é: muito interessado, interessado, pouco interessado ou nada interessado” Escolaridade: Grau de instrução: Analfabeto/primário incompleto; primário completo; ginásio incompleto; ginásio completo; colégio incompleto; colégio completo; universitário incompleto; universitário completo ou mais. Confiança na TV: “Vou citar alguns órgãos públicos e particulares e gostaria de saber qual o grau de confiança que você tem em cada um deles: na televisão” (muita confiança, alguma confiança, pouca confiança, nenhuma confiança) Adesão ao governo Lula: “Na sua opinião o Presidente Lula está fazendo um governo muito bom, bom, ruim ou muito ruim?” (regular espontâneo) 24 VI. A EDUCAÇÃO BRASILEIRA E SEUS RETORNOS POLÍTICOS DECRESCENTES ROGERIO SCHLEGEL INTRODUÇÃO O aumento da escolaridade média verificado no país nas últimas décadas terá mudado o comportamento político do brasileiro? Este capítulo pretende fazer avançar a resposta a essa pergunta. A perspectiva teórica convencional espera que aumentos da instrução formal da população torne seus comportamentos e atitudes mais democráticos. Essa expectativa é compartilhada pelas elites brasileiras, que consideram que o baixo nível de escolaridade da população é o principal entrave à democracia, segundo os mais recentes dados disponíveis (REIS, 2000). A educação é dos fatores mais relevantes como preditor do comportamento político do cidadão. Mesmo em modelos multicausais, a escolaridade costuma ser apontada nos estudos da Ciência Política como um dos determinantes cruciais para atitudes desejáveis para a convivência democrática, como apoio à democracia e disposição de participar. No nível individual, a instrução formal é a variável socioeconômica e demográfica com os mais claros efeitos em análises do tipo transversal (cross-sectional), que contemplam um único ponto no tempo. Nesses estudos, ela aparece em correlação consistente, forte e positiva com dimensões como interesse por política, uso da mídia, conhecimento de informações políticas, comparecimento às urnas ou com indicadores relacionados a atitudes democráticas e legitimidade, como tolerância, eficácia política e confiança nas instituições – neste último caso, com sinal negativo. Por conta disso, a educação já foi descrita como “solvente universal” em tentativas de explicar diferentes facetas do comportamento político (CONVERSE, 1972). O impacto de mudanças nos níveis médios de escolarização de uma nação foi teorizado apenas lateralmente nos estudos que lançaram a base para a compreensão das relações entre educação e política. Há um ponto em comum nessas análises: a partir das associações válidas para a escolaridade elevada em um ponto do tempo, o usual foi inferir resultados semelhantes para a elevação da escolaridade ao longo do tempo. Nessa linha, o aumento da escolarização foi 1 retratado como “provavelmente o mais importante” elemento para criar e manter a adesão à democracia (DAHL, 1961), COmo determinante crucial da cultura cívica, capaz de gerar um ator político diferenciado (ALMOND E VERBA, 1965), e como fator cuja expansão na sociedade torna “muito provável” a elevação da participação e da atenção à política (CONVERSE, 1972). A presunção de que o aumento da escolaridade média leva ao aumento sustentado do conhecimento sobre política, da participação, da tolerância e do apoio à democracia pode ser descrita como “visão dominante” nos meios acadêmicos (NIE ET AL., 1996: 97/98) e, para maior clareza na argumentação, será chamada aqui de perspectiva convencional. Ocorre que evidências empíricas abundantes contrariam a expectativa central dessa abordagem. Já no final dos anos 1970, Brody (1978) apresentava o que chamou de “quebracabeça da participação”: indicadores de ativação política nos Estados Unidos mostravam queda na comparação com décadas anteriores, apesar de os recursos materiais e cognitivos – com destaque para a educação – terem crescido de maneira pronunciada no conjunto da população. Nie et al. (1996) apontaram estagnação ou declínio em diferentes dimensões da participação e da atenção dada pelos norte-americanos à política no período 1972-1994. Delli Carpini e Keeter (1996) apuraram que, no agregado, o conhecimento sobre política não cresceu nos Estados Unidos entre os anos 1950 e a década de 1990, apesar do aumento nos níveis médios de instrução. Em análise com 94 países, Acemoglu et al. (2004) constataram que nações com aumento da escolaridade média entre 1970 e 1995 não mostraram tendência de se tornarem mais democráticas pelos critérios da Freedom House. O contexto brasileiro recente é especialmente promissor para a investigação das relações entre educação e comportamento político. Nas últimas décadas, o acesso à escola passou por um crescimento espetacular, atingindo proporções inéditas no país e com ritmo raro no restante do mundo (CASTRO, 2007; MENEZES FILHO, 2008). Houve clara elevação da escolaridade média da população (BARRO E LEE, 2000), mas com prejuízo para a qualidade do ensino oferecido – definida em termos de retenção de conhecimento e desenvolvimento de capacidades cognitivas. Terá essa expansão produzido o cidadão diferenciado previsto pela abordagem convencional – alguém que se interessa por política, é participativo, tem apreço pela democracia e saudável desconfiança nas instituições democráticas, por exemplo? As sucessivas pesquisas de opinião realizadas por iniciativa dos coordenadores do projeto A Desconfiança do Cidadão das Instituições Democráticas oferecem meios para perseguir a resposta a essa pergunta. São quase duas décadas cobertas por questionários avaliando o comportamento político do brasileiro com questões idênticas ou similares. Dados 2 que, ainda que distantes do desenho de pesquisa ideal para o tema, têm o mérito de tornar viável uma análise inédita sobre a questão. Aqui, me proponho a avaliar o impacto a escolaridade em três frentes: apoio à democracia; diferentes dimensões da participação; e a confiança nas instituições democráticas. Em lugar de uma resposta direta e difícil de sustentar dada a complexidade do tema, ofereço uma avaliação sobre a recompensa representada pela escolaridade no nível individual. Para avaliar o impacto da educação, não basta descrever a trajetória ao longo do tempo do comportamento político no agregado. Trabalho com a ideia de retorno político associado à transição entre os diferentes níveis de escolarização. Por exemplo, quanto o ensino médio representa de diferencial, em matéria de comportamento político, quando comparado ao fundamental. Dessa forma, é possível quantificar o impacto da escolaridade em um ponto do tempo e também comparar o ganho adicionado em diferentes pontos do tempo. As evidências para o caso brasileiro contrariam a perspectiva convencional tanto na abordagem transversal quanto na longitudinal, como se verá em detalhes adiante. Além desta introdução, este capítulo tem outras quatro seções. Na próxima, discuto modelos teóricos para entender os impactos políticos da educação, sobretudo nas três frentes analisadas – apoio à democracia, participação e confiança institucional. Em seguida, descrevo o contexto educacional brasileiro, marcado por expansão do sistema de ensino e queda na qualidade nas últimas décadas. Na seção seguinte, apresento duas hipóteses e reproduzo as análises estatísticas usadas para testá-las. Na conclusão, discuto as evidências encontradas. A EDUCAÇÃO E SEUS EFEITOS Há associações recorrentes entre escolaridade e comportamento político em estudos transversais – tipo de análise que constituiu o padrão para a investigação das relações entre educação e política (ACEMOGLU ET AL., 2004). No entanto, é grande a dificuldade de estabelecer cadeias causais que dêem conta dessas relações, sobretudo devido ao impacto abrangente da instrução formal sobre o indivíduo (BARRO, 1999; HYLLIGUS, 2005; CAMPBELL, 2009). No que toca à influência sobre o comportamento político, três efeitos amplos da escolarização são especialmente relevantes: - Desenvolvimento das capacidades cognitivas – Representado pela ampliação das habilidades intelectuais que favorecem a compreensão e a capacidade de aprender. Por meio do treinamento obtido ao longo da vida escolar, a pessoa aprende a categorizar e relacionar 3 objetos do mundo objetivo, interpretar situações e resolver problemas. Os mais escolarizados têm conhecimento mais amplo e profundo não apenas de fatos enciclopédicos, mas também de seu mundo contemporâneo. Entre eles, é maior a probabilidade de buscar conhecimento novo e de se manter conectado a fontes de informação ao longo de toda vida (HYMAN ET AL., 1975; DELLI CARPINI E KEETER, 1996). - Aprendizado de valores - Frequentando a escola, o indivíduo é socializado nos valores prevalecentes na sociedade ou em seu grupo social, introjetando as regras sociais. Ela é um canal para a manutenção de valores (BORDIEU E PASSERON, 1990), para eventual mudança de valores (INGLEHART, 1993) e para o aprendizado das formas que a convivência social deve ter (GLAESER ET AL., 2007). - Efeitos posicionais ou de credencial – Por meio da escolarização, o indivíduo também “aprende” seu lugar na sociedade e nas redes sociais, posição com grande influência de seu background familiar (BORDIEU E PASSERON, 1990; NIE ET AL., 1996). Além disso, os títulos educacionais são quesito relevante considerado nas seleções por que o indivíduo passa na vida. Possuir determinado nível de escolaridade, independentemente do conhecimento e das habilidades associadas a ele, favorece seu posicionamento social (COLLINS, 1979; WOLF, 2002). Neste estudo, optei por abordar os impactos da educação sobre apoio à democracia, participação e confiança em instituições diretamente envolvidas no funcionamento democrático – governo, Congresso, partidos e Judiciário. Embora se trate de escolha condicionada pelas variáveis disponíveis nas pesquisas de opinião analisadas, a literatura do campo relata efeitos marcantes da escolaridade nas três frentes. E as três podem ser tomadas como atitudes ou comportamentos políticos desejáveis para a convivência democrática, pelas razões que discuto a seguir. Passemos aos marcos teóricos fundamentais para cada uma dessas frentes e à discussão sucinta sobre a operacionalização de cada uma delas. APOIO À DEMOCRACIA Do ponto de vista empírico, é recorrente a correlação entre escolaridade e apoio à democracia observando um único ponto no tempo. Mas não são inequívocos os mecanismos mobilizados. Desenvolvimento da tolerância, rejeição a estruturas hierárquicas de poder e preferência pela solução pacífica de conflitos são alguns dos elementos pesquisados em décadas de estudos sobre o tema. 4 Pelo lado das conseqüências, o apoio à democracia e seus princípios é desejável para convivência na comunidade política por se tratar de uma das dimensões da legitimidade que sustenta esse regime político. É ele que leva os cidadãos a aceitar as derrotas inerentes à democracia, que se caracteriza justamente pela incerteza do resultado dos conflitos entre diferentes interesses. É questionável se baixos níveis de apoio ao regime democrático levam a ditaduras, revolução ou guerra civil, como já cogitado. A pesquisa recente demonstra que queda nos níveis de apoio aos princípios democráticos tende a afetar negativamente a disposição de participar (BOOTH E SELIGSON, 2009). No Brasil, estudos apontam crescente e elevado apoio aos princípios democráticos nas últimas décadas. Perto de dois terços dos cidadãos consideram a democracia o melhor regime político (MOISÉS E CARNEIRO, 2008). Os estudos costumam utilizar questão em que a preferência pela democracia aparece contrastada com a escolha por um regime autoritário e há possibilidade de o entrevistado declarar que “tanto faz” qual o tipo de regime instalado no país. Trata-se de uma forma de levar em conta a memória dos cidadãos com a experiência autoritária vivida até 1988 e também de captar a indiferença diante dos dois pólos (MOISÉS, 1995; MENEGUELLO, 2007). Os surveys utilizados neste capítulo foram elaborados com esse espírito e foi possível traçar a tendência de preferência pela democracia ao longo de 17 anos com base nessa questão. Também foram utilizadas como indicador de apoio ao regime as respostas “não sei” à questão sobre o significado da democracia, seguindo estudos anteriores em contextos de baixa escolaridade, como a África Subsaariana (BRATTON ET AL., 2005). Por fim, mostrou-se metodologicamente interessante utilizar perguntas dos questionários que permitissem avaliar a aprovação a princípios democráticos sem que fosse mencionada a palavra democracia – uma maneira de minimizar o eventual viés causado pelo sentido positivo que a expressão carrega na atualidade (DALTON, 2004). Exploro aqui a defesa da atuação de um líder “salvador” ou “que coloque as coisas no lugar”, para captar concordância com o que O’Donnell (1991) definiu como democracia delegativa. Espera-se que essa atitude diminua de intensidade com maiores níveis de escolaridade – mesma tendência prevista para o desconhecimento do significado da democracia. PARTICIPAÇÃO Os mais escolarizados tendem a participar mais por canais convencionais – comparecendo para votar, por exemplo – e não-tradicionais – como tomando parte em associações voluntárias, abaixo-assinados ou manifestações (VERBA ET AL., 1995). Também em 5 novos campos de participação, como via Internet, escolaridade costuma estar correlacionada com maior ativação (BEST E KRUEGER, 2005). A explicação central para essa associação é de que a escolaridade diminui os custos, aumenta os recursos e estimula a motivação para participar (Verba et al., 1995). Pelo lado de custos e recursos, as capacidades cognitivas ampliadas que vêm com a instrução formal tornam o sistema político mais fácil de compreender. Também aumentam o acesso à informação factual e sobre o funcionamento do sistema político. A educação ainda traz ganhos em outras áreas que, da mesma forma, representam recursos adicionais para a participação; o mais decisivo deles é a renda ampliada. Aqui apresento a participação como desejável para a convivência democrática porque os mais ativos têm mais chances de terem seus interesses atendidos pelo sistema político. E, normativamente, é desejável que as decisões coletivas considerem igualitariamente as preferências de cada cidadão. Na operacionalização do conceito de participação, levo em conta que se trata de objeto amplo, com diferentes dimensões, nas quais atuam mecanismos específicos. Assim, a participação por canais tidos como tradicionais, por envolver instituições consagradas como intermediadoras na política (voto e partidos, por exemplo), tende a apresentar queda sustentada no período observado (INGLEHART, 2002; DALTON, 2004); canais menos institucionalizados (como a subscrição de abaixo-assinados) se tornam proeminentes. As chamadas novas formas de participação, que apresentam menos coordenação das elites e mais atuação espontânea do cidadão isolado ou em redes horizontais, são apontadas como até mais dependentes das habilidades e recursos individuais do cidadão, inclusive a escolaridade (DALTON E KLINGEMANN, 2007). A partir da tipificação proposta por Topf (1995), trabalho com variáveis que representam diferentes dimensões da participação: no campo convencional, observo a disposição de votar e a participação em partidos; no campo das novas formas de ação, analiso a atuação em grupos formais ou informais e diferentes formas de protesto (participar de sindicato, assinatura de abaixo-assinado, tomar parte em manifestações e participar de greves). Duas variáveis gerais de ativação também foram incluídas na análise: interesse por política e atração (exposição ou atenção) por notícias políticas. 6 CONFIANÇA EM INSTITUIÇÕES A confiança em instituições é outra dimensão da legitimidade democrática, caracterizada por ter dinâmica autônoma se cotejada a outros níveis de apoio ao regime. Moisés (2005) já apontou o aparente paradoxo existente no Brasil e em outros países latinoamericanos, nos quais elevados níveis de preferência pela democracia convivem com reduzida confiança institucional. Em estudo recente envolvendo México e sete países centroamericanos, maior escolarização apareceu associada a aumento do apoio aos princípios democráticos e a redução da confiança nas instituições (BOOTH E SELIGSON, 2009). É discutível o sentido da associação entre escolaridade e confiança nas instituições. Nie et al. (1996) não detectaram correlação robusta entre os dois. Schlegel (2005) relatou associações com sinais diferentes para dimensões diversas da avaliação de instituições democráticas: no caso de avaliações imediatas de Congresso, partidos e governo, a correlação tinha sinal negativo, isto é, maior escolaridade representava pior avaliação; avaliações relacionadas ao papel de políticos e partidos no regime tiveram sinal positivo. Aqui adoto como premissa a noção de que a educação desenvolve no cidadão ferramentas que permitem observar com maior clareza os déficits no funcionamento das instituições democráticas. A capacitação cognitiva e o aumento do acesso à informação trazidos pela instrução formal fazem com que maior educação apareça associada à menor confiança (NORRIS, 1999). As pesquisas empregadas oferecem oportunidade de testar quatro dimensões da confiança: no governo, no Congresso, nos partidos e no Judiciário. O CONTEXTO EDUCACIONAL BRASILEIRO O que torna o Brasil um caso privilegiado para a observação dos impactos políticos da instrução formal é seu contexto educacional singular. Marcado por um atraso histórico, o sistema de ensino brasileiro passou por uma expansão espetacular nas últimas décadas (gráfico 1). A virtual universalização do nível fundamental foi acompanhada de queda na sua efetividade, em termos de desenvolvimento de habilidades e retenção de conhecimentos. Ensino médio e superior também viveram boom em termos de matrículas, no caso do primeiro com efeitos negativos para a qualidade demonstrados em estudos quantitativos. A trajetória descrita em balanços de diferentes matizes pedagógicos é de crescente democratização da educação, porém com claros prejuízos à qualidade, que já não era a desejável antes do início do processo (TORRES, 1998; SCHWARTZMAN, 2005; OLIVEIRA E 7 ARAÚJO, 2005; CASTRO, 2007). Mas faltam dados que permitam avaliar mais precisamente as características da perda de qualidade do ensino ocorrida paralelamente à expansão acelerada. Qual teria sido o auge do sistema brasileiro em termos de qualidade ou qual a magnitude da sua queda, por exemplo? Gráfico 1 - Média de anos de estudo no Brasil 5,0 4,5 4,0 3,5 3,0 2,5 1960 1965 1970 1975 Pop de 25 anos ou + 1980 1985 1990 1995 2000 Pop de 15 anos ou + Fonte: Barro e Lee (2000), disponível em http://www.cid.harvard.edu/ciddata/ciddata.html Só a partir de 1995 há testes que permitem a comparação do desempenho dos alunos em diferentes anos de aplicação. Naquele ano, o Saeb (Sistema de Avaliação do Ensino Básico1) adotou metodologia com comparabilidade de um ano para o outro, aplicada às áreas de língua portuguesa e matemática (gráficos 2 e 3). A prova utiliza um sistema de pontos em que os níveis de aprendizado são tomados como cumulativos e é fixado o patamar desejável para cada série analisada em uma escala que vai de 0 a 500 pontos. A análise longitudinal das médias sugere processos de relevância para este estudo: - No caso da 4ª série do fundamental, houve queda nas médias durante a segunda metade dos anos 1990, seguida de recuperação no restante do período; - Para a 8ª série do fundamental, foi registrada queda na segunda metade dos anos 1990, tendendo à estabilização no final do período; - Na 3ª série do médio, houve tendência acentuada de queda ao longo do período, com estabilização apenas na última avaliação; no intervalo, este foi o nível de escolaridade com maior queda na média de desempenho, em termos absolutos e relativos. 1 Implementado no Brasil em 1990, o Saeb envolve provas realizadas de dois em dois anos com alunos da 4ª e 8ª séries do fundamental e da 3ª série do ensino médio. A base desse sistema de avaliação é amostral e também são aplicados questionários contextuais com diretores, professores e alunos. 8 Gráficos 2 e 3 – Média de pontos no Saeb de língua portuguesa e matemática Fonte: Inep (2007) Apenas o resultado dos alunos da 4ª série do fundamental em matemática superou a primeira marca, de 12 anos antes. As maiores quedas na comparação das duas pontas das séries históricas ficaram para o nível médio, com o desempenho da 8ª série do fundamental mostrando tendência intermediária. Isso sugere que cada uma dessas etapas de escolarização – séries iniciais do fundamental, séries finais do fundamental e ensino médio – vive momento diferente na trajetória de sua qualidade. O mesmo ocorre em termos de expansão. Enquanto o fundamental teve seu pico de crescimento entre 1960 e 1980, o médio passou por boom a partir do início dos anos 1990, ainda mais pronunciado na segunda metade da década (gráfico 4). O médio apresentou a maior perda de qualidade entre 1995 e 2007, coincidindo com sua fase de crescimento acelerado. O período analisado aqui a partir das pesquisas de opinião coincide justamente com o de aceleração mais marcada na expansão do médio. A quase totalidade dos estudos sobre impactos da educação no comportamento político não leva em conta a qualidade do ensino. De um lado, as pesquisas que fundaram as bases desse campo de investigação foram realizadas nos Estados Unidos e países europeus, nações que não experimentaram expansão tão concentrado e capaz de fazer oscilar a qualidade do aprendizado de forma tão dramática quanto no caso brasileiro. De outro lado, o usual é surveys e bases de dados sobre comportamento político não contemplarem com riqueza de detalhes o processo educacional por que passaram os indivíduos. No entanto, estudos que podem ser considerados exceção detectaram associação consistente entre medidas de desenvolvimento cognitivo, escolaridade e comportamentos como engajamento 9 cívico (Nie et al., 1996) e disposição de votar (Hillygus, 2005)2. Embora o desenho deste estudo não permita incluir a qualidade nos modelos para explicar o comportamento individual, ela será considerada na elaboração de nossas hipóteses, na seção seguinte. Gráfico 4 – Expansão do ensino fundamental e do médio Taxa líquida da escolarização* (em %) 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 1950 1955 1960 1965 1970 1975 Fundamental (7 a 14 anos) 1980 1985 1990 1995 2000 Médio (15 a 17 anos) Fonte: Inep *A taxa de escolarização líquida representa a relação entre o número de matrículas em dado nível de instrução comparado com o número de indivíduos da população com a idade esperada para aquele nível (7 a 14 anos, no caso do fundamental, e 15 a 17 para o médio) HIPÓTESES, DADOS E ANÁLISES Neste capítulo, testo duas hipóteses formuladas a partir da revisão da perspectiva convencional sobre educação e política, cotejada com o contexto educacional brasileiro: • Em cada ponto do tempo observado isoladamente, a educação mostra impactos positivos nos comportamentos e atitudes relacionados ao apoio à democracia e à participação; no caso da confiança nas instituições, a associação tem o sentido inverso (mais escolaridade será acompanhada de menos confiança); • A recompensa política dos níveis mais elevados de instrução (médio e superior) caiu no intervalo analisado (entre o fim dos anos 1980 e meados dos anos 2000). A primeira hipótese se destina a verificar se a perspectiva convencional, que prevê associação entre a educação e as variáveis políticas escolhidas, é válida para as condições 2 Nie e colegas incluíram uma medida de proficiência cognitiva em seu Citizen Participation Study, de 1990, pela qual os respondentes eram convidados a identificar o significado de 10 palavras a partir de um grupo de respostas; essa avaliação mostrou associação positiva com anos de escolarização e com variáveis relacionadas à de participação. Hillygus empregou o Scholastic Achievement Test (SAT), destinado a medir a proficiência verbal de alunos prestes a iniciar a faculdade, e encontrou associação com dimensões da ativação política; 10 brasileiras contemporâneas. Ela será confirmada se, nos modelos de regressão logística apresentados mais adiante, maior escolaridade representar maiores chances de os cidadãos relatarem atitudes e comportamentos mais democráticos. Estudos recentes da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) avaliam os “resultados sociais da educação” (“social outcomes of education”, OECD, 2009: 170) utilizando metodologia semelhante: surveys nacionais e o cálculo das diferenças atitudinais entre níveis de escolaridade para avaliar os ganhos adicionados (OECD, 2007 e 2009)3. A segunda hipótese envolve avaliar a maneira como o crescimento da escolaridade no Brasil impactou comportamentos políticos ao longo das últimas décadas. Traçar simplesmente a trajetória de dado comportamento no tempo para o agregado da nação não permitiria discriminar o efeito independente gerado pelo aumento da escolarização. Digamos que a desconfiança em relação às instituições tenha crescido desde os anos 1980 no conjunto da população; como saber qual parcela dessa variação pode ser atribuído ao aumento da escolaridade média dos cidadãos? O encolhimento da confiança poderia ser fruto de mudanças históricas ou políticas, como a mudança no papel desempenhado pelos partidos no jogo político, por exemplo. Supero essa limitação isolando o efeito independente da escolaridade nas pontas do intervalo de 17 anos cobertos pelos surveys que utilizei. Verifico qual o retorno agregado pelos diferentes níveis de escolaridade em cada extremidade e o comparo com o retorno do outro extremo do período. Levando em conta a queda na qualidade descrita por avaliações e estudos específicos, a hipótese 2 tem caráter negativo: a expectativa é de que o retorno político da educação para cada faixa de ensino tenha decrescido no intervalo. Se confirmada, essa não será uma conclusão trivial, pois recompensas decrescentes colocam em xeque a perspectiva tradicional para os efeitos do aumento da escolaridade no tempo. A inferência de que a elevação do nível médio de educação de uma nação será acompanhada de ganhos sustentados em comportamentos políticos parte do pressuposto de que a recompensa do acréscimo de instrução no nível individual tem padrão estável no tempo. Um exemplo: a previsão de que o conjunto dos cidadãos terá atitude mais democrática com a popularização do ensino superior se baseia na ideia de que aumentará a proporção de pessoas 3 Três indicadores são considerados nesses estudos: auto-avaliação da saúde do indivíduo, seu interesse por política e seu nível de confiança interpessoal. Os dois últimos refletiriam a “coesão da sociedade” (“cohesiveness of society”, OCDE, 2009: 170). A partir de dados do European Social Survey, ondas de 2004 e 2006, e do World Values Survey, onda 2005, os relatórios têm constatado que a relação entre educação e interesse por política (assim como a auto-avaliação da saúde) é positiva e consistente em grande número de países. Com a confiança interpessoal, a associação costuma ser positiva, mas menos consistente. 11 com o comportamento esperado de um universitário (no caso, maior apoio à democracia); a premissa subjacente é que o comportamento dos futuros universitários no ponto t1 será igual ao do universitário médio no ponto t0. Se o comportamento político do futuro universitário ficar aquém do esperado, num sinal de mudança do padrão da recompensa pela escolaridade adicionada, não se pode garantir que haverá a evolução prevista para o agregado. No final do período, pode haver maior proporção de universitários, que no entanto não terão comportamento político diferenciado em relação a cidadãos com nível menor de escolaridade. O achado também não será trivial considerando que a qualidade do processo de ensino e aprendizagem costuma ser ignorada nos estudos internacionais sobre efeitos políticos da educação. Detectar possível relação entre qualidade em queda e recompensa decrescente serviria de alerta para essa omissão recorrente. DESCRIÇÃO DAS PESQUISAS DE OPINIÃO Esta empreitada representa desafio especial em termos de metodologia por ao menos dois motivos: tem a ambição de cobrir décadas de mudança no comportamento do brasileiro e, justamente por isso, utiliza dados secundários. Idealmente, um estudo destinado a analisar o impacto no nível individual do aumento da escolaridade verificado nacionalmente envolveria desenho de pesquisa complexo. Um estudo de painel poderia ser cogitado, mas haveria grande risco de esgotamento, devido à dificuldade de localizar os mesmos entrevistados ao longo de período tão longo (Babbie, 2001). Sigo na trilha aberta por pesquisas com limitações semelhantes, mas que resultaram em aproximações consistentes o bastante para gerar grande impacto em campos correlatos (em especial JENKS ET AL., 1972; HYMAN ET AL., 1975, PAGE E SHAPIRO, 1992; DELLI CARPINI E KEETER, 1996). Em comum, elas têm a análise secundária de dados e o uso de questões semelhantes pinçadas de pesquisas de opinião com diferentes desenhos amostrais4. 4 Essa prática é recorrente em estudos de tendência com a ambição de abranger longos períodos (Babbie, 2001:102). Nesse tipo de estudo, uma população é amostrada em pontos diferentes do tempo e, ainda que os indivíduos entrevistados sejam diversos em cada survey, cada amostra representa a mesma população. Dessa forma, um estudo transversal se aproxima de um longitudinal. Mesmo pesquisadores que fazem objeções ao uso de surveys para inferências acerca de processos que se desdobram no tempo são capazes de admitir seu uso para mudanças temporais quando os instrumentos utilizam questões idênticas ou “muito similares” para amostras representando a mesma população (Skocpol e Fiorina, 1999:7). 12 Tabela 1 – Pesquisas de opinião utilizadas Ano 1989 1990 1993 2002 2006 Título Cultura e Política Cultura e Política Cultura e Política ESEB (Estudo Eleitoral Brasileiro Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas Iniciativa (realização) José Álvaro Moisés (Cedec/Datafolha) José Álvaro Moisés (Cedec/Datafolha) José Álvaro Moisés (Cedec/Datafolha) Rachel Meneguello (Cesop - Centro de Estudos da Opinião Pública, Unicamp) José Álvaro Moises/Rachel Meneguello (Grupo temático A Desconfiança nas Instituições Democráticas) Amostra Nacional Nacional Nacional Nacional N 2.083 2.480 2.526 2.514 Nacional 2.004 Na América Latina, pesquisas de opinião raramente repetem questões idênticas por muito tempo (Booth e Seligson, 2009). Nesse sentido, as pesquisas brasileiras utilizados neste livro são exceção honrosa, pois cobrem 17 anos (1989-2006) repetindo parte relevante das questões sobre cultura política e sempre com amostragem nacional (tabela 1)5. Os contextos políticos em que foram aplicados os questionários por vezes sugerem influência direta nos dados observados e merecem ser lembrados ainda que de forma sintética. A pesquisa de 1989 foi realizada no mês de setembro do ano da primeira eleição direta para presidente, após os 21 anos de ditadura militar, e menos de 12 meses após a promulgação da Constituição de 1988, que representou o restabelecimento institucional do poder civil após o regime autoritário. A pesquisa de 1990 foi feita em março, dias antes da posse do presidente Fernando Collor de Mello e do bloqueio dos recursos dos brasileiros no sistema financeiro, como parte de um plano para combater a inflação; foi realizada ainda com José Sarney no cargo de presidente da República. O questionário seguinte foi aplicado em março de 1993, sob impacto da renúncia de Collor (em dezembro de 1992) para escapar de processo de impeachment e poucos meses após a posse de Itamar Franco. O de 2002 é um estudo aplicado logo após a eleição que levou Luiz Inácio Lula da Silva ao poder. Finalmente, a pesquisa de 2006 foi realizada em junho, após o escândalo do Mensalão (iniciado no ano anterior) e antes da eleição que reconduziu Lula ao cargo de presidente para um segundo mandato seguido. Nos testes das próximas seções, a escolaridade foi operacionalizada como variável categórica com quatro subgrupos: até fundamental incompleto; fundamental completo; médio incompleto e completo; e superior incompleto ou mais). As frequências originais dos surveys aparecem à tabela 2. 5 Agradeço pela cessão dos dados ao Cesop (Centro de Estudos da Opinião Pública), da Unicamp, e ao grupo temático A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas, financiado pela Fapesp. 13 Tabela 2 – Freqüências dos níveis de escolaridade nos surveys (em %) Até fund. incompleto 1989 Não foi à escola 1º grau incompl. Superioor inc ou Médio incom. a mais completo Fund. Comp. 7,5 48,5 Total 1º grau completo Total 2º grau incompl. 56 9,0 2º grau incompl. Total Superior incompl. Superior completo Pós Total 13,0 9,0 8,7 21,7 4,7 7,0 0,8 12,5 1990 Não foi à escola 1º grau incompl. 1º grau completo 2º grau completo 2º grau completo Superior incompl. Superior completo Pós 8,3 43,0 51,3 11,5 11,5 9,0 15,0 24,0 5,4 6,5 1,0 12,9 1993 Não foi à escola 1º grau incompleto 1º grau completo 2º grau incompl. 2º grau completo Superior incompleto Superior completo Pós 6,5 2002 Analfa./sem instrução 8,0 40,3 Até 4ª série 26,5 Da 5ª a 8ª incompleta 15,5 46,8 12,9 12,9 9,8 17,6 27,4 5,3 6,5 1,1 12,9 Fund.. completo Médio incompl. Médio completo Superior incompleto Superior completo Pós 50,0 5,9 5,9 10,0 16,4 26,4 4,7 10,8 2,1 17,6 2006 Analf./ 4ª inc. Até 4ª compl. 5ª a 8ª inc. Fund. comp. Médio incom. Médio compl. Super. incom. Super. compl. ou mais 22,4 12,6 17,3 52,3 8,7 8,7 10,3 18,4 28,7 7,6 2,8 10,4 REGRESSÕES PARA ESTIMAR O QUE A EDUCAÇÃO AGREGA Nesta etapa, foram utilizados modelos de regressão logística multivariada para dados agrupados para permitir o controle de outros atributos pessoais além da escolaridade. Os dados de cada pesquisa foram tratados isoladamente, para evitar violações por conta de planos amostrais diferentes (PERES ET AL., 2008). Foi adotado modelo padrão para a regressão de todas as variáveis dependentes, embora cada uma pudesse gerar modelo específico, a partir de causalidades e dinâmicas próprias. Foram observadas 15 variáveis para operacionalizar os conceitos de apoio à democracia (preferência pela democracia, desconhecimento de seu significado e defesa de líder centralizador), participação (muito interesse por política, atração por notícias políticas, disposição de votar se não fosse obrigatório, participação em partido, em sindicato, em manifestação e em greves e hábito de assinar abaixo-assinado) e confiança nas instituições (em governo, Congresso, partidos e Judiciário). A opção por mais de uma dezena de variáveis relacionadas ao comportamento político permite uma visão panorâmica dos impactos da educação em diferentes dimensões atitudinais, de maneira a tornar observáveis eventuais regularidades. Cada variável tem causalidades e 14 dinâmicas próprias, com trajetórias temporais particulares, mas a intenção aqui é observá-los em conjunto, procurando efeitos da escolarização de forma independente6. A primeira variável observada foi a preferência pela democracia. A tabela 5 reproduz os parâmetros obtidos no melhor modelo de regressão para o ano de 1989, ajustado por razão de verossimilhança a partir da entrada de todas as variáveis explicativas listadas7. Ao lado deste modelo aparece o de 2006, a partir das mesmas variáveis explicativas, especificadas de forma similar8, em um procedimento inspirado em Silva e Hasenbalg (2000) e Peres et al. (2008). Há três tipos de observações relevantes: 1) se as categorias de escolaridade foram incluídas no melhor modelo ajustado; 2) se cada nível de escolaridade teve significância; 3) se as razões de chance do nível se ampliaram ou reduziram no intervalo observado. Os dois primeiros critérios são úteis para interpretações transversais, sobre a associação entre educação e comportamento político em um ponto do tempo. O terceiro complementa interpretações longitudinais, sobre o aumento, queda ou manutenção da influência da educação no período analisado. Analisemos inicialmente cada modelo em separado. As variáveis de escolaridade entraram no modelo ajustado de 1989. Não houve significância para o fundamental completo (o p de Wald ficou acima de 0,05), o que estatisticamente indica ser impossível diferenciar o cidadão que tivesse esse nível de escolaridade de alguém com apenas o fundamental incompleto (a categoria de referência em todas as regressões) em termos de preferência pela democracia. Ao mesmo tempo, os dois níveis de instrução mais elevados se diferenciaram do fundamental incompleto. Em 1989, alguém com nível médio tinha 1,555 vez a chance de preferir a democracia em relação a alguém com fundamental incompleto – ou 55% a mais de chance. Para o superior, a razão de chance foi de 2,159. No caso do modelo para 2006, apenas o superior teve significância, com razão de chance de 2,240. 6 2 Por conta disso, os valores do pseudo r de Negelkerke (tomado como indicador da variabilidade explicada por cada modelo) em geral são baixos e por vezes o teste de aderência de Hosmer e Lemeshow (que indica a adequação do modelo para prever y=1) dá resultados críticos, próximos ou inferiores a 0,010, o que não prejudica nossas análises dado o desenho do estudo 7 Em princípio, foram feitas comparações entre as duas pontas do intervalo observado (1989 e 2006), mas a pesquisa de 1989 não trouxe variável sobre renda; quando essa variável se mostrou significativa para explicar a variação de determinado comportamento em 2006, a comparação apresentada é entre a pesquisa mais antiga que inclua renda e disponha da variável de interesse. Em todos os casos, a comparação entre os resultados de surveys diferentes deve ser vista como aproximação. 8 As exceções estão descritas com asterisco: * em 1990, divisão de renda não é por quintis, mas arbitrária, tentando se aproximar dos quintis, distribuição imposta por conta da categorização original das respostas, resultando nas seguintes freqüências: 1ª faixa tem 30,9% dos entrevistados, 2ª tem 29,4%, 3ª tem 19%, 4ª tem 12,7% e 5ª tem 8%; em 2006, divisão não é por quintis, mas arbitrária, tentando se aproximar dos quintis: 1ª faixa com 6,5%, 2ª com 30,6%, 3ª com 19,8%, 4ª com 24% e 5ª com 19,1%; ** Em 1989, não há questão sobre raça ou cor do entrevistado; *** Pesquisa de 1989 traz variável sobre localização rural ou urbana, mas não sobre o tipo de área (se interior, região metropolitana ou capital) 15 Comparando os dois modelos, pode-se interpretar que o nível médio perdeu influência no intervalo observado. Nos dois modelos, a escolaridade foi incluída na versão ajustada (o primeiro critério). Médio e superior tiveram significância em 1989, mas o médio a perdeu em 2006 (o segundo critério). O superior apresentou significância nos dois modelos, mas suas razões de chance não variaram de forma relevante (a diferença não superou 20%, patamar definido arbitrariamente). Pelo terceiro critério, entende-se ter havido estabilidade nas razões de chance. Tabela 5 – Regressão Preferência pela democracia Preferência pela democracia 1989 Wald 2006 OR Wald OR Escolaridade (ref.: fundamental incompleto) Fund. compl. 0,063 1,367 0,709 Médio 0,000 1,555 0,363 1,073 1,122 Superior 0,000 2,159 0,000 2,240 Renda (referência :1º quintil*) Renda2 Renda3 Renda4 Renda5 Idade (referência: de 16 a 25 anos) 26 a 40 0,085 1,227 0,031 1,351 41 ou + 0,000 1,832 0,010 1,447 0,000 0,569 Sexo (referência: homem) Mulher 0,010 0,775 PEA (referência: não trabalha) Trabalha Área (referência: interior**) Metropolitan a Capital Região (referência: Nordeste) Norte/CO 0,157 0,783 Sudeste 0,001 0,654 Sul 0,132 0,775 Religião (referência: não tem religião) Católico 0,617 0,905 Outra religião 0,212 1,335 Cor auto-declarada (referência: branca***) Preto Outras raças Constante 0,098 0,703 0,000 2,055 Negelkerke r2 0,048 0,036 H&L 0,152 0,777 N 1.741 1.749 16 Por questões de espaço e clareza, não reproduzo na íntegra os estimadores obtidos em todos os modelos usados. A tabela 6 traz razões de chance e significância encontradas apenas para as variáveis de escolaridade de cada modelo9. Tabela 6 – Sumário dos modelos de regressão com educação como categórica Preferência pela democracia Não sabe o que é democracia Defende líder centralizador Muito interesse por política Notícias (atenção ou exposição) Votaria se não obrigatório Participa de partido Participa de sindicato Participa de greve Participa de manifestações Assina abaixo-assinado Confiança no governo Confiança no Congresso Confiança em partidos Confiança no Judiciário Fundamental completo 1989 2006 1,367 1,073 (0,063) (0,709) 0,4432 (0,000) 0,815 (0,236) 1,0452 (0,802) 1,037 (0,823) 0,837 (0,278) Médio incompleto ou completo 1989 2006 1,555 1,122 (0,000) (0,363) 0,2072 (0,000) 0,683 (0,003) 2,0042 (0,000) 1,951 (0,000) 1,346 (0,014) 1,509 (0,003) 2,400 (0,000) 1,210 (0,088) 2 2 2 1,1732 (0,419) 1,3981 (0,112) 1,173 (0,462) 1,1681 (0,351) 0,715 (0,050) 0,695 (0,038) 1,1922 (0,264) 0,794 (0,164) 1,5162 (0,007) 1,6971 (0,001) 1,440 (0,014) 2,4061 (0,000) 0,483 (0,000) 0,626 (0,000) 1,4812 (0,001) 0,591 (0,000) 0,431 (0,000) 1,133 (0,576) 1,687 (0,061) 1,052 (0,773) 1,584 (0,490) 2,341 (0,026) 1,323 (0,121) 0,414 (0,000) 3,838 (0,000) 3,782 (0,000) 1,776 (0,000) Sup incompleto ou mais 1989 2006 2,159 2,240 (0,000) (0,000) 0,0342 (0,000) 0,830 (0,218) 5,0192 (0,000) 4,307 (0,000) 3,778 (0,000) 2,5812 (0,000) 4,3841 (0,000) 3,642 (0,000) 4,0651 (0,000) 0,292 (0,000) 0,536 (0,000) 2,2922 (0,000) 0,704 (0,018) 0,102 (0,000) 2,521 (0,000) 2,636 (0,000) 2,809 (0,000) 8,485 (0,000) 9,594 (0,000) 3,202 (0,000) 1 – Indica dados de 1990 em lugar de 1989 2 – Indica dados de 1993 em lugar de 1989/ Na tabela, as variáveis com significância têm seu índice de probabilidade (p) de Wald e razão de chance (OR) descritas em negrito Prosseguindo com a análise para as outras 14 variáveis dependentes, chega-se ao quadro combinando os três critérios mencionados (tabela 7). A primeira conclusão é que a associação transversal entre educação e variáveis políticas – a base do que apresento como perspectiva convencional – não se repete no contexto brasileiro com a força relatada em 9 O liminar de significância foi definido pelo índice p de Wald até 0,05, praxe neste tipo de análise. Embora a significância estatística neste tipo de regressão guarde relação com o N – ela tem maior chance de ser apurada à medida que o número de casos cresce e, no limite, N igual à população gera significância em todos os testes –, esse não é problema para a interpretação dos resultados aqui, pois todos os modelos apresentam N com a mesma ordem de grandeza. O número de casos varia de 1.741 a 2.176. 17 estudos bivariados. Quando são controlados fatores socioeconômicos e demográficos que costumam compor explicações multicausais para o comportamento político, a escolaridade deixa de ser o “solvente universal”. A associação esperada entre educação e comportamento político não se concretizou de forma consistente em cerca de um terço dos testes – entre 9 e 25 dimensões, dependendo do nível de ensino observado. Tabela 7 – Resumo da escolaridade nas regressões logísticas Participação Adesão demo Variável dependente Escolaridade no modelo ajustado Preferência pela democracia Não para fundamental completo em 89 e 2006; não para médio em 2006 Todos os níveis tiveram nas duas pontas Não sabe o que é democracia Defende líder centralizador Muito interesse por política Não em 2006 Noticiário (exp. ou atenção) Votaria se não obrigatório Participa de partido político Participa de sindicatos Participa de greves Não em 1993 nem em 2006 Não em 2006 Participa de manifestações Assina abaixoassinado Confiança Significância das variáveis categóricas de escolaridade Governo Não em 2006 Congresso Não em 2006 Partidos Não em 2006 Judiciário Não em 2006 Não para fundamental e superior em 1989 Não para fundamental em 1989 e 2006; médio e superio tiveram nas 2 pontas Não para fundamental em 1989 e 2006; médio e superior tiveram nas 2 pontas Não para fundamental nas 2 pontas; médio não em 06; superior tem nas 2 pontas Médio e superior tiveram apenas em 1989 Não para fundamental em 1989 e 2006; médio e superior tiveram nas 2 pontas Não para fundamental em 1989 e 2006; médio e superior tiveram nas 2 pontas Não para fundamental em 1989 e 2006; médio e superior tiveram nas 2 pontas Todos os níveis tiveram em 1989 Todos os níveis tiveram em 1989 Todos os níveis tiveram em 1989 Todos os níveis tiveram em 1989 Razão de chance (OR) Superior estável Fundamental estável; ORs de médio e sup. caíram em 2006 ORs de médio e superior caíram em 2006 OR do médio subiu em 2006; OR do superior caiu OR do superior caiu em 2006 ORs de médio e superior subiram em 2006 ORs de médio e superior subiram em 2006 ORs de médio e superior caíram em 2006 Em 8 dos 30 casos, as variáveis de instrução caíram em bloco no ajuste do melhor modelo, o que significa que a educação não poderia ser considerada determinante relevante do comportamento observado. Isso ocorreu marcadamente para as variáveis de confiança. Também o fundamental completo não se diferenciou do incompleto de forma estatisticamente consistente em 25 dos 30 modelos. O médio não se diferenciou em 10 18 modelos, somando aqueles em que a escolaridade caiu em bloco com aqueles em que esse nível de ensino não teve significância. O superior, em 9. São casos em que, por exemplo, um cidadão com secundário completo não tem chance maior de preferir a democracia como regime político do que alguém que cursou só até a quarta série. Resta observar os resultados longitudinalmente. No balanço, médio e superior perderam influência para 11 das 15 variáveis políticas entre a virada da década de 1990 e meados dos anos 2000. Em 6 variáveis (líder centralizador, participação em sindicato e a confiança nas quatro instituições) todas as categorias de escolaridade deixaram em bloco de ser incluídas no modelo ajustado da pesquisa mais recente. Em outros 2 casos, o médio perdeu significância em 2006 (preferência pela democracia e disposição de votar); e, em 3 casos (desconhecimento do significado de democracia, interesse por política e assinatura de abaixo-assinado), as razões de chance do médio caíram de forma relevante em 2006. Para o superior, houve redução das razões de chance em 5 variáveis (não sabe o que é democracia, interesse por política, consumo de noticiário, disposição de votar e assinatura de abaixo-assinado) na comparação da virada da década de 1990 com a pesquisa mais recente. As evidências indicam que, no intervalo de 17 anos analisado, a instrução formal deixou de explicar variações na confiança institucional e diminuiu seus efeitos sobre indicadores de adesão à democracia e diferentes dimensões da participação. BREVES CONCLUSÕES Neste capítulo, emergiram evidências contrariando a perspectiva convencional sobre educação e comportamento político quando aplicada ao contexto brasileiro. Foram dois os achados principais: em análises abordando um único ponto no tempo, maior instrução formal não apareceu associada de forma inequívoca a comportamentos políticos desejáveis para a convivência democrática; e a recompensa política para os dois níveis mais elevados de escolaridade (médio e superior) foi decrescente no intervalo de 17 anos observado, sugerindo que a elevação da escolaridade média brasileira ao longo do tempo não significou necessariamente a popularização desses comportamentos. Voltando à primeira hipótese de trabalho, vimos que o caso brasileiro se afasta do relato convencional de que maior escolaridade aparece associada a maior intensidade em apoio à democracia, participação e confiança nas instituições. Um em cada três testes se apresentou como evidência contra a presunção de que níveis mais elevados de escolaridade são 19 acompanhados de maior intensidade nos comportamentos observados10. O resultado está longe de permitir rechaçar globalmente a expectativa de associação, pois ela se confirma na maioria dos casos. No entanto, mostra que essa associação não deve ser dada como certa e inequívoca. Isso significa que há grande espaço para pesquisas que procurem definir com maior precisão os mecanismos pelos quais a educação se relaciona com o comportamento político. No que toca à segunda hipótese, as evidências indicaram que a recompensa em termos políticos para os diferentes níveis de ensino diminuiu entre a virada da década de 1990 e meados dos anos 2000. Logo após a redemocratização, ter frequentado o ensino médio ou o superior diferenciava o cidadão em termos políticos de forma que não se reproduz hoje: ele era mais interessado em política, mais atraído pelo noticiário e prezava mais o voto do que alguém com menor instrução. Porém, nesse intervalo, o retorno político para os níveis de ensino mais elevados caiu em duas de cada três dimensões analisadas11. É uma constatação nada trivial. Ela contraria indiretamente a presunção de que o aumento da escolarização média de uma nação gera elevação sustentada de comportamentos favoráveis à convivência democrática. Por trás daquela inferência há dois pressupostos: cada nível de escolaridade traria recompensas cumulativas em termos políticos; e o ganho político no nível individual da cada ciclo teria um padrão estável no tempo. Não é outro o motivo que faz autores apostarem que o tempo trará a popularização de atitudes mais democráticas em princípio típicas dos mais escolarizados, a exemplo de Almeida (2007) 12. As análises deste capítulo demonstram que no intervalo observado caiu o retorno político do ensino médio e o do superior. E não só a recompensa política foi decrescente, como chegou a ser nula em parte relevante das dimensões analisadas – casos em que, do ponto de vista de comportamento político, um cidadão com ensino médio não se diferenciou de outro que não concluiu sequer o fundamental, por exemplo. 10 É possível argumentar que a inclusão da confiança institucional, cuja associação com a escolaridade é questionada por autores como Nie et al. (1996), colaborou fortemente para esse resultado geral. Mas, considerando apenas as dimensões do apoio à democracia e participação analisadas aqui, os resultados em que a associação não se confirmou estão próximos de 1 para 4. 11 A proporção se mantém caso sejam deixados de lado os testes com confiança institucional. 12 A interpretação do autor ilustra a esperança tácita ou explicitamente depositada na educação por parte da produção da Ciência Política nacional. “Não estou negando as especificidades nacionais, apenas enfatizando que culturas nacionais podem ser menos importantes do que as de grupos sociais transnacionais, unidos pela escolarização formal. A herança ibérica nunca será abolida do DNA da cultura brasileira, mas é possível tornar os brasileiros mais seguidores da lei por meio da educação formal. Portugal será sempre nossa pátria-mãe, mas para tornar o Brasil mais liberal na economia é preciso massificar, e muito, o ensino superior. História e herança não mudam, mas o nível de escolaridade traz alterações de conseqüências bastante profundas para qualquer sociedade. Entre elas, a consolidação da democracia”, afirma em conclusão de trabalho recente (Almeida, 2007:277). 20 Isso coloca em xeque o efeito esperado para o agregado dos cidadãos com a elevação da educação média. No Brasil, a quantidade de escolarização está crescendo, mas cada unidade de instrução formal acrescida não trará necessariamente o retorno político que se podia esperar no passado. Transforma-se em nova questão para a agenda de pesquisa saber se mais gente escolarizada – efeito positivo – com níveis de ensino que trazem recompensa política declinante – efeito negativo – terá balanço líquido favorável no agregado. Além disso, todas as variáveis dependentes observadas têm dinâmicas no nível individual que sofrem influência de diversos outros fatores além da educação – para não citar fatores que estão além do indivíduo, como os institucionais. E como explicar o retorno político decrescente para a educação brasileira? Teoria e intuição apontam para a queda na qualidade do ensino como principal suspeita. Uma das interpretações para os mecanismos pelos quais a educação impacta comportamentos políticos é de que ela atua no desenvolvimento de capacidades cognitivas e conhecimentos que funcionam como recurso decisivo para a vivência política. Pior qualidade na educação gera menos habilidades e menor retenção de conteúdos, portanto é plausível que tenha reflexo negativo também em termos de recompensa política. É uma hipótese promissora, que merece atenção em estudos futuros. Nessa frente, ainda há muita lição de casa esperando para ser feita. 21 VII. CORRUPÇÃO POLÍTICA E DEMOCRACIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO JOSÉ ÁLVARO MOISÉS INTRODUÇÃO O governo de Luis Inácio Lula da Silva foi atingido, em meados de 2005, por uma grave crise política provocada por escândalos de corrupção envolvendo o seu esquema de apoio parlamentar, o seu partido político e os seus mais importantes ministros. As denúncias foram feitas pelo líder de um dos principais partidos integrantes da base de sustentação do governo no primeiro mandato do presidente1. Apesar disso, Lula reelegeuse, em 2006, com mais de 60% dos votos dos eleitores, o que sugere algumas possibilidades: 1. a maioria dos eleitores brasileiros não estava informada dos fatos; 2. a maioria, informada ou não, não estava convencida do envolvimento do presidente e do seu partido; ou 3. a maioria não associa “o uso indevido de recursos públicos para fins privados”2 com distorções do desempenho de governos passíveis de serem punidas nos termos da lei, embora o voto seja o instrumento mais direto de responsabilização de governantes (accountability vertical) à disposição dos cidadãos. A hipótese deste trabalho é que, qualquer que seja o caso, isso é uma conseqüência, além de outros determinantes da corrupção, da cultura política dos brasileiros. O estudo testa esta hipótese empìricamente, assim como aquelas derivadas de abordagens concorrentes. A corrupção política é um dos problemas mais severos e complexos enfrentados por novas e velhas democracias. No fundamental, ela envolve o abuso do poder público para qualquer tipo de benefício privado, inclusive, vantagens para os partidos de governo em detrimento da oposição. Ela frauda, portanto, o princípio de igualdade política inerente à democracia, pois os seus protagonistas podem obter ou manter poder e benefícios 1 Em entrevista publicada pela Folha de São Paulo em 6 de junho de 2005, o deputado Roberto Jefferson, presidente do PTB, declarou que congressistas aliados do governo Lula recebiam o que chamou de um "mensalão" de R$ 30 mil do PT para votar em projetos de interesse do governo. Confirmou essas declarações nos dias 8 e 14 do mesmo mês à CPI instalada no Congresso Nacional para apurar as denúncias e acrescentou que seu partido, o PTB, recebeu do PT cerca de R$ 3 milhões para custear gastos de campanhas eleitorais. 2 Esta é a definição mais usual de corrupção política. Ver a respeito Treismam (2000). políticos desproporcionais aos que alcançariam através de modos legítimos e legais de competir politicamente. Ao mesmo tempo, ela distorce a dimensão republicana da política moderna porque faz as políticas públicas resultarem, não do debate e da disputa aberta entre projetos diferentes, mas de acordos de bastidores que favorecem interesses espúrios3. A conduta irregular de líderes e de partidos políticos também compromete a percepção das pessoas sobre as vantagens da democracia em comparação com as suas alternativas, pois ao fazer crer que ela é parte da rotina usual tanto do regime democrático como do autoritário, ela desqualifica os mecanismos adotados pelo primeiro para controlar o abuso do poder e para garantir a soberania dos cidadãos. Por outro lado, ao desqualificar a relação dos cidadãos com os Estados democráticos, ela compromete a cooperação social e afeta negativamente a capacidade de coordenação dos governos para atender as preferências dos eleitores. Os seus efeitos afetam, portanto, tanto a legitimidade quanto a qualidade da democracia ao comprometer o princípio segundo o qual neste regime ninguém está acima da lei e contribui para o esvaziamento dos mecanismos de responsabilização de governos [accountability vertical, social e horizontal (O’DONNELL, 1999)]. Para ser efetiva, a accountability vertical depende de que os cidadãos tenham consciência de que têm o direito e o dever de manter a conduta de seus líderes políticos dentro de padrões republicanos estritos, e de puní-los quando eles violam esses padrões. Esse tipo de accountability implica em dois requisitos básicos: em primeiro lugar, os cidadãos precisam ser capazes de perceber que a corrupção existe, quando é o caso. Nesse sentido, argumentar que todos os líderes políticos são corruptos ou que a corrupção se justifica porque muitos políticos a praticam – como importantes líderes políticos, intelectuais e artistas sustentaram em 2005 e 2006 no Brasil – é uma forma de desqualificar a democracia porque as opções eleitorais orientadas por essa posição simplesmente excluem a possibilidade de mudança política. Mas, além disso, os cidadãos precisam ser capazes de avaliar, em alguma medida, os impactos políticos da corrupção para, então, decidir se querem responsabilizar os envolvidos por meio dos mecanismos democráticos de sanção: eleições, procedimentos legislativos e jurídicos, impeachment, denúncias, protestos, etc; ou se querem simplesmente continuar convivendo com eles a despeito das suas violações da lei e da constituição. 3 Ver o quadro preparado pela CPI dos Correios do Congresso Nacional sobre a coincidência entre as datas de aprovação de projetos do governo e a suposta liberação de recursos do “mensalão” para os deputados da sua base de apoio. Cf. Relatório Final dos Trabalhos da CPMI – Íntegra do Relatório do Deputado Osmar Serraglio lido no Congresso em 29/3/2006; pp. 55 e segts. 2 A pesquisa acadêmica sobre a corrupção política tem abordado principalmente o papel de fatores gerais supostamente responsáveis pelo seu enraizamento no sistema político: o desenvolvimento econômico, o desenho institucional, o perfil psicológico dos atores, o desempenho de governos, etc. Em que pese a relevância destes fatores, até agora, contudo, com poucas exceções (SELIGSON, 2002 E TREISMAN, 2000; 2007), a pesquisa tratou apenas indiretamente da relação entre o abuso do poder público, a percepção dos cidadãos sobre ele e os seus efeitos para a qualidade da democracia. O papel dos valores e da cultura política na aceitação ou justificação da corrupção tem sido negligenciado, ainda que o seu impacto sobre um amplo espectro de práticas civis, políticas e negociais seja cada vez mais reconhecido pela literatura (HOFSTEDE, 1997; INGLEHART, 2002; INGLEHART E WEZEL, 2005; SHIN, 2006; KLINGEMANN, 1999). Por isso, o foco deste estudo é a relação entre um conjunto de variáveis culturais e institucionais - como a percepção da política, as crenças religiosas, a confiança interpessoal, a satisfação com a democracia, o interesse e o acesso à informação política, a relação dos eleitores com partidos e parlamentos e a influência das lideranças políticas – com a percepção e/ou aceitação da corrupção pelos eleitores. A explicação dos modos como os cidadãos vêm e avaliam a corrupção em seus países, e o quanto essas percepções e convicções afetam o seu apoio a governos, instituições públicas e à democracia agregam conhecimento novo sobre o tema. Os testes incluem indicadores de desenvolvimento econômico (a avaliação da economia, a escolaridade e a localização ecológica dos entrevistados) e, para fins de controle, as variáveis sócio-demográficas usuais. A análise é exploratória e examina as implicações do fenômeno para a teoria democrática do ponto de vista da abordagem culturalista e das suas principais alternativas concorrentes. O texto está organizado em cinco seções. A primeira apresenta as principais linhas de desenvolvimento teórico da pesquisa internacional sobre o tema. A segunda examina os resultados de estudos recentes sobre a corrupção na América Latina e discute, desde uma perspectiva comparada, a compatibilidade entre índices agregados internacionais de percepção da corrupção e as percepções individuais dos latino-americanos sobre o tema. A terceira avalia, com base em dados de diferentes pesquisas, primeiro o panorama da corrupção no Brasil segundo as percepções do público e, segundo, a influência da cultura política sobre essas percepções em anos recentes. A quarta examina os indicadores de aceitação social da corrupção no Brasil, os seus determinantes e os seus efeitos. Finalmente, na última seção é debatido o significado dessas percepções para a qualidade da democracia no país. 3 De modo geral, os testes confirmam a hipótese segundo a qual as percepções e as atitudes dos entrevistados sobre a corrupção são influenciadas, além de fatores explorados pela literatura internacional, também por valores e pela cultura política contemporânea dos brasileiros. E, ao mesmo tempo, que a aceitação social da corrupção influencia a percepção dos cidadãos sobre importantes aspectos da democracia no país. TEORIAS SOBRE AS CAUSAS DA CORRUPÇÃO Os modelos mais conhecidos de explicação da corrupção, de autoria de economistas e cientistas políticos, referem-se principalmente ao papel do desenvolvimento econômico e do desenho institucional. As principais contribuições desses estudos abordam, por uma parte, as conseqüências sistêmicas negativas da corrupção como o clientelismo, o nepotismo e a ilegitimidade política (BANFIELD, 1958; JOHNSTON, 1979; ETZIONI-HALEVY, 1985; SELIGSON, 2002); e, por outra, as suas supostas implicações positivas como a estabilidade política e o chamado ‘engraxamento’ de estruturas burocráticas rígidas); elas também tratam das implicações da corrupção para o processo de tomada de decisão de políticas públicas, especialmente, na área econômica (, mostrando que o fenômeno afeta negativamente as iniciativas de investimento do poder público e das empresas, afetando, portanto, o desenvolvimento. Estudos mais recentes ampliaram o escopo analítico das pesquisas e incluíram, além do desenvolvimento econômico, do tipo de regime político, da distribuição de renda ou do tamanho do Estado, variáveis explicativas como o desempenho de governos, o sistema jurídico-legal de prevenção e punição da corrupção, o grau de competição da economia, o peso das crenças religiosas, o grau de participação feminina na política, e etc (TREISMAN, 2000; 2007; MONTINOLA E JACKMAN, 2002). Em geral, os resultados ampliam o conhecimento do problema em áreas específicas, mas ainda não oferecem um conjunto sólido de conclusões. Isto transparece, por exemplo, dos resultados de trabalhos recentes que trataram de temas como (a) a avaliação comparada dos efeitos de distintos sistemas legais no combate à corrupção, a exemplo das diferenças entre a commom law e a civil law; (b) o efeito dos graus de abertura do sistema político no controle de práticas políticas ilegais, a exemplo da liberdade de imprensa e de organização de partidos; e c) a relação entre as práticas de corrupção e a efetividade dos mecanismos institucionais previstos pela separação de poderes. A seguir é apresentada uma resenha do tema que, sem pretender ser exaustiva, discute algumas dessas limitações ao abordar as implicações empíricas e teóricas das duas principais linhas de pesquisa do tema. 4 Desenvolvimento econômico: com base em uma concepção originalmente utilizada por sociólogos para explicar fenômenos como a democratização (LIPSET, 1960), alguns autores atribuíram ao desenvolvimento econômico papel determinante na formação e no uso de práticas tendentes a legitimar ou a embaralhar a distinção republicana entre as esferas pública e privada (MYRDAL, 1970; EKPO, 1979). Desenvolvimento e modernização, com suas conhecidas implicações para a transformação de relações econômicas e sociais e para o fortalecimento de uma ordem política livre, pública e plural, são vistos como condição necessária para a consolidação da capacidade do sistema político de coibir delitos contra o interesse público. Assim, em contraposição a características consideradas típicas das nações desenvolvidas, as sociedades tradicionais ou atrasadas tenderiam a não distinguir, por exemplo, entre pagamentos legítimos e prebendas ilegais envolvendo as relações entre agentes públicos e privados, e estimulariam a tolerância social diante de comportamentos antirepublicanos. A idéia é que, diferentemente da experiência dos países que se modernizaram sob o impacto de transformações econômicas e sociais, as nações com baixos níveis de desenvolvimento não conseguiriam institucionalizar os procedimentos compatíveis com a distinção entre as esferas pública e privada, legitimando práticas de corrupção e de apropriação privada de recursos públicos. Neste caso, práticas e costumes tradicionais se chocariam com as próprias regras legais vigentes, dificultando o enforcement of the law e, assim, tornando inefetivo o princípio democrático do primado da lei. A evidência empírica existente mostra que fatores como o pagamento de prebendas, propinas ou contribuições financeiras em troca de benefícios obtidos na realização de serviços ou obras públicas correlacionam-se com os níveis de desenvolvimento econômico e social dos países estudados. Isso confirma a hipótese principal dessa literatura sobre as relações entre desenvolvimento e corrupção, a qual supõe que quanto mais alto o nível de desenvolvimento econômico e social de uma nação, menor o nível de comportamento corrupto e, em conseqüência, de sua percepção pública. Por isso, os testes empíricos destinados a verificar o efeito de variáveis explicativas sobre a corrupção envolvem indicadores como os níveis de urbanização, de escolaridade, de renda per capita, do produto interno bruto, etc – todos tratados pela literatura como correlatos do desenvolvimento. O argumento enfatiza, portanto, que as chances de ocorrência de comportamento corrupto entre políticos e burocratas do Estado são maiores em países de níveis baixos ou médios de desenvolvimento econômico e social, a exemplo de nações do continente africano, do Oriente Médio, do Leste europeu e da América Latina. Entre os autores que testaram essas hipóteses, Treisman (2000; 2007) mostrou que fatores como a alfabetização, a elevação dos níveis de escolarização, o controle da inflação 5 e o estabelecimento de relações contratuais não-personalizadas – fatores característicos da modernização econômica e social e, presumivelmente, de níveis elevados de desenvolvimento – criam as condições necessárias para que a corrupção seja desestimulada, enquanto Montinola e Jackman (2002) atribuíram o declínio de práticas antirepublicanas ao fato de o desenvolvimento econômico propiciar salários mais altos aos funcionários do setor público de países desenvolvidos, diminuindo assim os incentivos à adoção de práticas abusivas. No mesmo sentido, outros autores demonstraram que a corrupção tende a ser maior em países em que o monopólio de recursos naturais, como o petróleo, encontra-se em mãos do governo - situação comum a vários países de níveis baixo e médio de desenvolvimento -, porque isso afetaria negativamente a relação entre atores privados e públicos. A corrupção diminuiria, nestes casos, se e quando o setor privado pudesse se beneficiar de countervailing actions exercidas por atores usualmente extorquidos por burocratas de Estado ou por políticos (ALAM, 1995). Segundo Alam, essa última possibilidade aumentaria (a) com a urbanização, a ampliação da educação e a existência de salários crescentes em geral; (b) com o crescimento da comunicação de massa e o avanço da tecnologia de transportes e de comunicação; (d) com a melhoria da gestão e da prestação de contas de serviços públicos; (e) com o crescimento do setor empresarial, da classe média e da força de trabalho urbana; e, finalmente, (f) com a ampliação da pressão democrática dos eleitores sobre os gastos públicos. A existência de associação estatística entre estes fatores, por um lado – da mesma forma que com níveis elevados de renda per capita e de taxas de emprego -, e os mecanismos de controle do comportamento de políticos e burocratas, por outro, é bastante clara nos trabalhos destes autores, indicando que para se livrar da corrupção as nações necessitam se desenvolver e adotar as características listadas acima. Entretanto, uma decorrência lógica dessa abordagem é que, em vista das diferentes trajetórias históricas das nações (colonialismo, dependência, globalização, etc), elas são afetadas de modo desigual pelos processos de desenvolvimento, sendo impossível todas avançar econômica e socialmente da mesma forma, nem segundo o mesmo ritmo. Em tese, a premissa definiria ex-ante, ou seja, antes da ação política, a situação de diferentes nações: enquanto algumas seriam necessariamente livres da corrupção, outras seriam fadadas a conviver com ela como um componente inarredável de seu sistema político, pelo menos enquanto não lograssem se desenvolver, algo que, no contexto da globalização, independe de fatores estritamente nacionais. Essa abordagem deixa de lado, no entanto, uma possibilidade inerente à natureza do processo político, ou seja, a possibilidade de que os atores políticos decidam mudar os seus padrões de comportamento e interação - entre os 6 quais, os que sustentam as práticas de corrupção -, devido às conseqüências sistêmicas do fenômeno. Em algum momento, a idéia normativa de que o sistema pode funcionar melhor com a corrupção sob controle pode se tornar uma alternativa percebida como positiva para todos, líderes políticos e eleitores4. Desenho institucional: apesar dos avanços propiciados pela abordagem anterior, o fenômeno da corrupção está presente, ainda que em graus diferenciados, em grande número de nações democráticas independentemente de seus níveis de desenvolvimento. Na realidade, além da corrupção fazer parte do cenário de países recentemente democratizados (HUNTINGTON, 1991), a evidência existente não deixa margem para dúvidas: diferentes formas de “uso indevido de recursos públicos” fazem parte também do cenário de nações econômica e politicamente desenvolvidas (KLITGAARD, 1988; 1998), embora isso não provoque a mesma repercussão do que quando ocorre em países pobres ou de democratização recente. Com efeito, mesmo sem considerar casos emblemáticos como o do ministro Profumo, na Inglaterra, nos anos 60, e do Watergate, nos Estados Unidos, nos anos 70, uma sucessão de escândalos de corrupção abalaram os governos da Itália, da Grã-Bretanha, do Japão, da França, da Alemanha, da Bélgica e dos Estados Unidos nas últimas três décadas (PHAR, 1999, DELLA PORTA, 1999, NDIAYE, 1998), mostrando que a prática de irregularidades contra o patrimônio público, para além do desenvolvimento, depende também depende de outros fatores como estruturas institucionais específicas que, em tese, assegurariam maior transparência em decisões públicas que envolvem, por exemplo, a construção de usinas elétricas, hidroelétricas ou nucleares, estradas, aeroportos, portos marítimos, etc – todas somente realizáveis com a utilização de grandes somas de recursos públicos. Por que, então, a corrupção é mais generalizada em alguns países do que em outros? Para responder a essa pergunta, alguns analistas deslocaram o foco da análise do desenvolvimento para a influência do tipo de estrutura institucional sobre a corrupção e a sua percepção pelos eleitores. Os sistemas políticos democráticos, capazes de assegurar uma efetiva competição política, propiciariam maior escrutínio público da ação de governos e líderes políticos; seus níveis de corrupção seriam menores, pois a estrutura poliárquica favoreceria níveis mais altos de transparência em decisões públicas, propiciando melhores 4 Um exemplo disso é a criação da Frente Parlamentar de Combate à Corrupção em março de 2009 em conseqüência das declarações do senador Jarbas Vasconcelos, do PMDB, segundo o qual o apoio do seu partido a diferentes governos, nos últimas décadas, é movido essencialmente pela corrupção. 7 possibilidades de controle sobre o comportamento dos burocratas e dos políticos por meio da pressão dos eleitores. Em particular, a garantia de liberdade da oposição e da mídia em geral asseguraria essa possibilidade. As principais hipóteses vinculadas a essa abordagem referem-se, portanto, à existência de estruturas institucionais capazes de garantir direitos civis e políticos, liberdade de imprensa e sistemas eleitorais competitivos e abertos como condição de que os mecanismos de accountability possam ser acionados eficazmente pelos eleitores e pelas instituições para coibir a corrupção. Por isso, os testes destinados a verificar o efeito de variáveis explicativas sobre a corrupção e a sua percepção pública envolvem necessariamente o exame da associação entre índices agregados de percepção do fenômeno com indicadores da vigência de direitos civis e políticos, assim como de competição política, sistemas de governos e sistemas eleitorais. Nesse nível de abstração, as análises comparadas baseiam-se em bancos de dados agregados que, diferentemente das informações de nível individual, referem-se exclusivamente a públicos segmentados5. Treisman (2007) resumiu a três os principais argumentos dessa abordagem: (a) alguns autores acham que o efeito da democracia sobre a corrupção e os índices de sua percepção pelo público é gradual, ou seja, são necessários muitos anos de experiência democrática para que a ocorrência da corrupção e sua percepção – usualmente negativa sejam afetadas; (b) outros consideram que a relação entre estrutura política, corrupção e percepções do fenômeno não é linear, ou seja, a democratização pode levar ao aumento da corrupção no curto prazo, e só contribuir para aumentar o seu controle na medida em que o processo se aprofundar; (c) e, finalmente, outros atribuem a estruturas institucionais específicas - tipo de regras eleitorais, sistemas de governo, grau de liberdade de imprensa e descentralização política, entre outros – o papel dos fatores determinantes tanto da corrupção ou do seu controle, assim como da sua percepção. Em geral as pesquisas mostraram que os índices de corrupção e de sua percepção se correlacionam de fato com o desempenho das instituições mencionadas, mas os resultados ainda são pouco conclusivos quanto ao sentido da conexão causal. Embora alguns estudos tenham confirmado que a percepção da existência de corrupção é mais baixa onde os direitos civis e políticos estão assegurados (TREISMAN, 2007), a relação entre o regime democrático e as práticas antirepublicanas continua sendo objeto de controvérsia. Enquanto Montinola e Jackmam (2002) encontraram uma relação não linear entre ambos, 5 Os principais índices internacionais agregados de percepção da corrupção são o da Transparência Internacional e o do Banco Mundial. Ver a respeito os sites www.transparency.org e www.worldbank.org, para os relatórios anuais sobre os países. 8 Treisman (2007) mostrou que a associação entre os indicadores de liberdades civis e políticas e a percepção sobre a corrupção – baseada em índices internacionais agregados tanto pode crescer como diminuir dependendo dos níveis de mensuração considerados na análise. Quanto à influência da duração da democracia, os resultados são erráticos, e são mais positivos no que se refere à liberdade de imprensa: diferentes autores mostraram que ela é uma condição indispensável para a responsabilização de políticos e de burocratas corruptos (BRUNETTI E WEDER, 2003; ADSERA ET AL., 2003), mas Treisman (2007), depois de refazer alguns testes, concluiu que quando outras variáveis são acrescentadas aos modelos o peso da liberdade de imprensa se enfraquece. Os efeitos dos sistemas eleitorais e da estrutura de centralização ou descentralização do sistema político também foram testados, mas produziram resultados contraditórios ou apenas marginalmente significantes (TREISMAN, 2007). A característica institucional realmente significativa refere-se ao sistema de governo: sistemas presidencialistas, em que o chefe de governo é eleito diretamente pelos eleitores, são altamente associados com níveis agregados de percepção da corrupção (PANIZZA, 2001; GERRING E THACKER, 2004, LEDERMAN ET AL., 2005). Outros autores confirmaram a descoberta, concluindo que a influência do presidencialismo é ainda mais forte quando combinado com a representação proporcional baseada em listas fechadas de candidatos para eleições legislativas (KUNICOVÁ E ROSE-ACKERMAN, 2005). Treisman, depois de inicialmente confirmar os resultados anteriores, testou modelos que incluíam, além do presidencialismo, variáveis dummy para o catolicismo e o que chamou de países sulamericanos e, nesses testes, o presidencialismo tornou-se insignificante. Sua conclusão, no entanto, antes de sugerir que o sistema presidencialista não influi sobre as percepções de corrupção, é que as duas outras variáveis são mais relevantes quando incluídas no mesmo modelo analítico, mas isso seria devido ao fato de elas condensarem em si a outra, pois, segundo ele, “os países sul-americanos são em sua maioria católicos, corruptos e presidencialistas” (TREISMAN, 2007). Treisman fez um balanço global dos resultados da pesquisa nos últimos dez anos e, além de confirmar a importância do desenvolvimento para explicar a corrupção, concluiu que a longevidade histórica de sistemas políticos liberais – assegurada a liberdade de imprensa – é a principal responsável pela percepção de que os países são menos corruptos; e, acrescentou, o sistema parlamentarista, articulado com regras eleitorais pluralistas, ao contrário do presidencialismo, implica claramente em percepção de que a corrupção é menor. A evidência sugere, portanto, que países desenvolvidos com regimes de democracia liberal são menos corruptos, e que se os seus chefes de governo forem eleitos diretamente, 9 a chance de incidência da corrupção é maior. Essa conclusão, embora preliminar, tem importância para o exame da questão na América Latina e parte de suas implicações são discutidas adiante. Outras pesquisas mostraram, além dos determinantes da percepção, os efeitos da corrupção para a governança democrática. Della Porta (2000) demonstrou que a corrupção política distorce a demanda por serviços públicos, aumenta os seus custos, reduz a sua qualidade, atrasa a realização de obras públicas e, ao mesmo tempo, dificulta o acesso de quem não paga propina à administração pública. Ou seja, a corrupção compromete o desempenho do Estado e afeta negativamente a eficiência de atores públicos e privados. Por sua vez, Canache e Allison (2003) mostraram que a presença desses efeitos também produz conseqüências para a capacidade do sistema democrático resolver problemas coletivos, afetando a percepção dos eleitores quanto à possibilidade de que suas expectativas sejam atendidas pelos governos. Em seu conjunto, os estudos envolvem importantes avanços do conhecimento, mas duas objeções precisam ser levadas em conta. Em primeiro lugar, é preciso considerar que eles se baseiam, na maior parte dos casos, em dados de bancos agregados sobre as percepções subjetivas de grupos segmentados da população (empresários locais, executivos de multinacionais, diplomatas, jornalistas, consultores internacionais, etc), a exemplo do Índice de Percepção da Corrupção, da Transparência Internacional, e o seu equivalente do Banco Mundial, e, como advertiram alguns autores, as limitações de seu uso exigem cautela na consideração dos resultados (HUSTED, 1999; POWER E GONZÁLEZ, 2003), mesmo que não seja o caso de descartar a sua contribuição. Opinião subjetiva não reflete necessàriamente a realidade e isso é ainda mais provável quando a pesquisa se apóia, não em uma amostra representativa da massa de eleitores de um ou vários países, mas na visão de segmentos delimitados. Nessa situação, índices de percepção da corrupção podem não revelar o que realmente acontece, podem superdimensionar o fenômeno ou simplesmente esconder a sua magnitude. Além disso, a percepção subjetiva de um fenômeno, quando baseada em entrevistas com setores limitados, pode refletir prima facie a sua visão de mundo, com pouco recurso à diversidade. Nesse caso, os índices de classificação de países como mais ou menos corruptos, ao invés de propiciar novos elementos para o conhecimento, poderiam refletir apenas os interesses ou preferências dos segmentos consultados, e não os déficits de desempenho das instituições com seus reflexos para a qualidade da democracia. Por isso, sem descartar a contribuição dos índices agregados de percepção da corrupção para o conhecimento, as novas pesquisas deveriam começar pelo teste empírico 10 de sua compatibilidade com as respostas individuais de surveys representativos do conjunto da população de países específicos. O procedimento é indispensável para se verificar o quanto índices agregados de percepção da corrupção refletem o que as sociedades sob observação pensam do tema. Opiniões subjetivas, mesmo baseadas em amostras representativas, continuam não traduzindo linearmente a realidade política ou social, mas, coletadas segundo metodologia adequada, são elementos essenciais para o exame do impacto das percepções da corrupção sobre clusters de atitudes, opiniões e comportamentos que afetam a qualidade da democracia. A influência negativa da percepção de que a corrupção aumentou, em dado período de tempo, sobre a escolha de modelos de democracia pode reforçar a opção que rejeita os partidos e o Congresso Nacional (MOISÉS E CARNEIRO, 2008). Outra limitação dos estudos sumariados é a atenção insuficiente dada à cultura política na análise da corrupção, embora alguns se refiram à influência de crenças religiosas e da presença feminina na política. Isso contrasta com o fato de parte da literatura especializada apontar para a influência dos fatores culturais nos processos de democratização dos últimos 30 anos (INGLEHART E WELZEL, 2005; DIAMOND, 1999; SHIN, 2006; MOISÉS, 1995; 2008). Ademais, a relevância da cultura também foi demonstrada em estudos sobre a relação de empresas privadas com o Estado, em situações em que o comportamento corrupto emerge como uma alternativa possível de ação (HOFSTEDE, 1997). Recentemente, no entanto, surgiram esforços no sentido de incorporar os valores e a cultura como dimensões analíticas da corrupção, a exemplo dos estudos que examinaram o papel da manipulação eleitoral, dos escândalos financeiros e/ou do uso indevido de recursos públicos para fins privados no comprometimento da autoridade de governos, de líderes políticos e do próprio sistema democrático (SHIN, 1999; DELLA PORTA, 2000; PHARR, 2000; SELIGSON, 2002; POWER E GONZÁLEZ, 2003; CANACHE E ALLISON , 2003). Mas é evidente que novos esforços de pesquisa ainda são necessários nesta área. A CORRUPÇÃO NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL Denúncias de corrupção têm sido comuns em vários países da América Latina nas últimas décadas. No caso do Brasil, as denúncias que atingiram o governo Lula em 2005 foram amplamente divulgadas pela mídia, investigadas pela Polícia Federal e atualmente são objeto de processo no Supremo Tribunal Federal, aberto a pedido do Ministério Público, contra 40 pessoas. Entre os acusados estão o ex-presidente, o ex-secretário-geral e o ex-tesoureiro do partido do presidente da República, da mesma forma que de outros partidos da coalizão governista, e algumas das mais importantes figuras do governo à 11 época, como José Dirceu, ex-Chefe da Casa Civil, Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda e Luiz Gushiken, ex-titular da Secretaria de Comunicação da presidência - todos afastados de seus cargos em conseqüência das denúncias e dos seus desdobramentos. Os escândalos recentes - responsáveis por uma das mais graves crises políticas vividas pelo país desde a sua democratização em 1985 - foram precedidos por casos semelhantes ocorridos nos primeiros anos da década de 90, como o impeachment do expresidente Fernando Collor de Mello e a perda de mandato de vários membros da Comissão de Orçamento do Congresso Nacional. Depois de 2005, uma sucessão de novos escândalos voltou a atingir outros ministros de Estado, membros do judiciário, líderes partidários e membros do Congresso Nacional como o ex-presidente do Senado Federal6. A corrupção está presente, portanto, em todas as esferas da vida pública brasileira, caracterizando um quadro fora de controle, ou seja, de natureza endêmica, em relação à qual, o sistema político não foi ainda capaz de desenvolver anticorpos institucionais eficazes (TAYLOR, 2007; CHAIA E TEIXEIRA, 2001; SPECK, 2000). Mas o Brasil não é um caso isolado na América Latina. Após a democratização do continente, escândalos de corrupção também atingiram, nas últimas décadas, países como a Argentina de Carlos Menem, o Peru de Alberto Fugimori e Alan Garcia, o México de José Lopez Portillo e Carlos Salinas de Gortari, o Equador de Abdala Bucaram e a Venezuela de Rafael Caldera e Carlos Andrés Pérez – este último também apeado do poder, como ocorreu com Collor de Mello, por um processo de impeachment motivado por denúncias de malversação de recursos públicos. Todos esses casos tiveram grande repercussão pública por envolverem atores centrais do sistema político, mas inúmeros outros têm sido relatados pela mídia, em vários países do continente, indicando que outras esferas da administração pública e da burocracia de Estado, como prefeituras, governos de estados e parlamentos locais, também são objeto de práticas de corrupção (CANACHE E ALLISON, S/D.; POWER E GONZÁLEZ; WEYLAND, 1998). Com base nessa evidência, alguns analistas sugeriram – não sem alguma surpresa que a corrupção aumentou na América Latina nos últimos 20 anos precisamente devido à democratização. Na contramão de argumentos segundo os quais o estabelecimento da democracia produz resultados positivos para o controle da corrupção por implicar em mais accountability e maior transparência nas decisões sobre políticas públicas, Weyland (1998), por exemplo, atribuiu o suposto crescimento da corrupção no continente a três fatores: em 6 Os casos de corrupção se sucedem a exemplo do suposto uso de recursos privados pelo senador Renan Calheiros, ex-presidente do Senado Federal, para pagar pensão à mãe de sua filha; a chamada “máfia das ambulâncias”, os gastos do Executivo com cartões corporativos, etc. Para mais informação e a lista completa dos casos recentes, ver www.estadao.com.br e www.folhaonline.com.br . 12 primeiro lugar, às oportunidades - mais do que aos incentivos - criadas pela dispersão de poder que decorre da democratização, a qual permitiria que maior número de agentes públicos transacionasse favores em troca de benefícios privados (monetários ou não); em segundo lugar, à onda de reformas neoliberais dos anos 90, durante a qual funcionários do Estado e políticos teriam ampliado o seu poder de decisão sobre bens públicos como as empresas estatais, cujos processos de privatização teriam criado novas oportunidades de extração de vantagens dos interessados em comprá-los; por último, Weyland atribuiu o crescimento da corrupção à emergência de novas formas de lideranças personalistas ou carismáticas, isto é, líderes políticos que, sobrepassando os partidos políticos e os grupos de interesse, teriam chegado à presidência de seus países através da mobilização de massas pela televisão. O argumento sustenta que o uso da televisão em campanhas eleitorais generalizou-se em conseqüência da democratização do acesso aos meios de comunicação de massas, mas requer o investimento de grandes somas de recursos somente mobilizáveis através da promessa de favores aos eventuais financiadores privados (WEYLAND, 1998). Por outras palavras, para tornar possível a mobilização requerida pela formação de lideranças personalistas e carismáticas, os partidos e os seus dirigentes teriam necessariamente de recorrer ao que na experiência brasileira recente foi eufemisticamente chamado de “gastos eleitorais não contabilizados”7, isto é, a utilização de recursos privados que não podem ser declarados à justiça eleitoral por ferir a lei. Embora reconheça que denúncias de escândalos envolvendo o uso indevido de recursos públicos são um sinal de progresso em países caracterizados por processos endêmicos de corrupção, pois revelam sinais de pressão da sociedade civil no sentido do estabelecimento de padrões republicanos de comportamento político, o estudo de Weyland é especulativo e não oferece os testes empíricos requeridos para comprovar as suas afirmações. Além disso, os dois primeiros fatores mencionados por ele são, em certo sentido, irrecorríveis, ou seja, a dispersão de poder é algo intrínseco ao estabelecimento da democracia, cujos princípios a diferenciam de regimes concorrentes precisamente por ela se constituir em uma alternativa institucional à concentração do poder; nesse sentido, decisões no terreno econômico que se referem à desconcentração de monopólios de bens públicos, a exemplo das privatizações, não são per se fonte originária de corrupção, mas podem revelar a inexistência de procedimentos jurídico-institucionais eficazes para controlar abusos. A análise de Weyland sugere, portanto, que a democratização exige algo 7 Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT, classificou dessa forma os recursos ilegais de origem privada utilizados nas campanhas eleitorais de 2002 e 2004 do partido, entre os quais, recursos que teriam sido usados no esquema do “mensalão”. 13 mais para que a corrupção deixe de ser endêmica, mas o argumento remete para um bem público escasso, segundo muitos estudos, ou seja, para um padrão de performance de políticos e instituições públicas inexistente em muitas democracias recentes (SHIN, 2006). Análises como a de Weyland reiteram as teorias segundo as quais o comportamento corrupto, em que pese também existir em países desenvolvidos, é generalizado e mais comum em sociedades menos desenvolvidas ou em processo de desenvolvimento. Mas, embora outros estudos também mostrem que a corrupção aumentou nos países do Leste Europeu após a democratização e a introdução da economia de mercado (HESSEL E MURPHY, 2000), cabe indagar se esses casos não estariam apontando, como sugeriram recentemente Husted (1999) e Power e González (2003), para a natureza mais complexa do fenômeno, o que exige que seu exame leve em conta fatores ainda pouco tratado nos modelos explicativos usuais, a exemplo de valores e tradições culturais que em muitos países justificam a corrupção. O próprio terceiro fator sugerido por Weyland para explicar o aumento da corrupção na América Latina, ou seja, a presença de lideranças personalistas e carismáticas que facilitariam o comportamento corrupto, aponta nessa direção. Uma longa tradição de governos carismáticos, envolvendo a personalização das relações de poder, foi designada pela literatura recente e antiga como populista ou neopopulista por implicar, ao mesmo tempo, em uma relação direta entre líderes políticos e o eleitorado, e a desvalorização de instituições de controle de abusos como partidos e instituições de representação. Embora operando em contextos distintos daqueles que originaram os populismos dos anos 40 e 50 na América Latina, os casos recentes de neopopulismo exemplificam as distorções mencionadas (CARNEIRO, 2009). Husted (1999), Power e González (2003) estão entre os primeiros que, em anos recentes, examinaram o papel da cultura política para explicar a corrupção, tendo usado tanto dados agregados como individuais em estudos comparados. Power e González incluíram variáveis culturais em seus modelos analíticos e mostraram que, se por um lado o desenvolvimento econômico continua sendo um importante preditor da corrupção, a evidência empírica mostra que, de forma direta ou indireta, a cultura também explica o fenômeno. Eles sustentam, neste sentido, que um modo adequado de considerar tanto o efeito do desenvolvimento econômico como das estruturas democráticas consiste em ter em conta os lagged effects da cultura, que influenciariam indiretamente a propensão de algumas sociedades para adotar o comportamento corrupto. O presente estudo se insere nesta nova tendência de pesquisa, ao buscar agregar informação e conhecimento novos sobre a relação entre cultura política e as percepções da corrupção. 14 DESENHO DA PESQUISA E METODOLOGIA Vários conjuntos de dados foram utilizados, neste trabalho, para testar hipóteses derivadas da literatura e da abordagem adotada. Em primeiro lugar, foi testada a compatibilidade dos índices internacionais agregados de percepção da corrupção com as respostas de nível individual do público latino-americano e, em seguida, se a hipótese do desenvolvimento se aplica aos países latino-americanos. Ambos os procedimentos eram necessários para permitir os passos seguintes da pesquisa, cujos objetivos visavam testar as seguintes hipóteses específicas: 1. os indicadores de cultura política, tanto quando de desenvolvimento e de desempenho institucional, importam para explicar, em graus diferentes, os índices agregados de percepção da corrupção na América Latina e no Brasil em anos recentes; 2. os índices de percepção da corrupção no Brasil mostram que a) os brasileiros têm conhecimento da existência do problema no país; b) a percepção da corrupção aumentou com as denúncias de sua existência, a exemplo do caso do “mensalão” no governo Lula; e c) a aceitação social da corrupção no Brasil influencia fatores associados com a qualidade da democracia. As fontes de dados para os índices internacionais agregados de corrupção são a Transparência Internacional e para os demais indicadores políticos e institucionais agregados, a Freedom House; para as percepções do público sobre a corrupção em países de diferentes níveis de desenvolvimento, o World Values Survey, entre 1995 e 2002; para a América Latina, o Consórcio Latinobarômetro entre 2002 a 2004; para o Brasil, o Datafolha entre 2005 e 2006 e as pesquisas dirigidas pelo autor entre 1993 e 20068. As variáveis explicativas do estudo são, por um lado, os indicadores de desenvolvimento, de desempenho institucional e de cultura política frente às percepções do público sobre a corrupção na América Latina e no Brasil; e, por outro, as atitudes e opiniões dos brasileiros a respeito da corrupção frente a diferentes objetos políticos como a confiança nas instituições públicas, o regime democrático e a participação política. A unidade de observação, análise e inferência adotadas são os indivíduos. Os testes realizados envolvem análises estatísticas descritivas e análises de regressão e estão relatados no texto e nos anexos. PRINCIPAIS RESULTADOS São os seguintes os principais resultados dos testes realizados: 8 As pesquisas “Cultura Política e Democratização”, de 1993, e “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas”, de 2006, foram dirigidas e coordenadas por José Álvaro Moisés (a última em parceria com Rachel Meneguello, da Unicamp) e financiadas pela FAPESP, CNPq e Fundação Ford. 15 1. Compatibilidade entre os índices internacionais agregados de percepção da corrupção e as respostas em nível individual por países9 Em face das objeções de parte da literatura sobre a validade de indicadores como o IPC, os primeiros testes realizados visaram verificar, por um lado, se existe correlação entre esse índice agregado por país e as respostas em nível individual a surveys nacionais ou regionais; e, por outro, havendo correlação entre os dois indicadores, qual a posição dos diferentes países no cruzamento de ambos indicadores. O primeiro teste mostrou que a correlação de Pearson entre os indicadores é significante ao nível .001 e a associação é .90 (o r² ajustado é .81), mostrando que a posição dos autores que criticam o uso dos índices não se sustenta, ou seja, a corrupção percebida por segmentos específicos ouvidos por organismos como a Transparência Internacional tem respaldo da opinião pública geral dos latino-americanos. Em seguida, foi testada a existência de associação entre o Índice de Percepção da Corrupção por país, de acordo com a Transparência Internacional, e a percepção da corrupção em nível individual para diferentes países e para a América Latina segundo as pesquisas do World Values Survey e do Latinobarômetro. Os dados confirmam parcialmente a hipótese do desenvolvimento: por um lado, as democracias de maior nível de desenvolvimento são aquelas em que tanto a percepção da corrupção dos grupos segmentados como do público em geral é mais baixa, enquanto o contrário ocorre com boa parte dos países de nível de desenvolvimento intermediário, como Espanha e Coréia do Sul e, principalmente, com os de nível mais baixo de desenvolvimento como os países latinoamericanos. Por outro, mesmo países de desenvolvimento moderado na América Latina são classificados como corruptos. 2. Comparação entre países de diferentes níveis de desenvolvimento Dois aspectos sobressaem dos dados: os países de democracia consolidada e que, intuitivamente, se sabe também serem os mais desenvolvidos, apresentam, em geral, baixos índices de percepção da corrupção, enquanto, ao contrário, os países menos desenvolvidos e, em boa parte dos casos, as democracias recentes apresentam índices mais altos. Outra observação importante se refere a países de nível intermediário de desenvolvimento que se democratizaram nos últimos 30 anos, como Espanha, Portugal e Coréia do Sul: a percepção da corrupção diminui com o passar do tempo, confirmando, em princípio, a hipótese de que a experiência democrática torna os países menos suscetíveis a comportamentos antirepublicanos e, em conseqüência, menos passíveis de serem vistos 9 Devido às limitações de espaço, algumas tabelas e gráficos com resultados de testes são omitidos aqui, podendo ser obtidos mediante solicitação ao autor pelo endereço [email protected] 16 como corruptos. No contexto da América Latina, países mais pobres, como Bolívia, Equador, Paraguai, Guatemala e Honduras, são percebidos como mais corruptos, enquanto os países que, independentemente de seu nível de desenvolvimento, têm tradições democráticas mais longevas, como Costa Rica, Uruguai e Chile, são percebidos como menos corruptos. Contudo, chama a atenção o fato de que países de desenvolvimento moderado ou em vias de desenvolvimento, como Argentina, Brasil, México e Venezuela, essa condição não é suficiente para classificá-los por índices mais baixos de percepção da corrupção. Nem mesmo a experiência democrática, com o passar do tempo, parece influir muito para a diminuição dos índices de percepção da corrupção: em casos como da Argentina e Venezuela a percepção da corrupção aumentou. Isto relativiza as hipóteses sobre o papel do desenvolvimento e do tempo de duração da democracia, sugerindo que outros fatores têm de ser considerados para explicar o fenômeno. 3. Determinantes da percepção da corrupção na América Latina Em seguida tanto os índices agregados como aqueles derivados de surveys do conjunto da população de 18 países latino-americanos sobre a percepção da corrupção foram tomados como variáveis dependentes e submetidos a uma análise de regressão categórica (optimal scaling procedures no SPSS) em que as variáveis explicativas, além de indicadores de desenvolvimento econômico, social e político, eram diferentes indicadores de cultura política. O procedimento consistiu em testar 11 modelos, mantidas as mesmas variáveis de controle, mas com a introdução, a cada vez, de diferentes variáveis de cultura política ou relativas a hipóteses concorrentes, além das referentes ao desempenho econômico dos países segundo os entrevistados. Os resultados são relatados na Tabela 1. 17 TABELA 1: MODELOS DE REGRESSÃO CATEGÓRICA DE ANÁLISE DOS EFEITOS DE VARIÁVEIS DE CULTURA POLÍTICA SOBRE O ÍNDICE DE PERCEPÇÃO DA CORRUPÇÃO DA TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL PARA 18 PAÍSES LATINO-AMERICANOS (2004), CONTROLANDO POR INDICADORES DE DESENVOLVIMENTO (PIB per capita, GINI, LIBERDADES CIVIL E POLÍTICA) Modelo 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 Variável Beta Sig. Beta Sig. Beta Sig. Beta Sig. Beta Sig. Beta Sig. Beta Sig. Beta Sig. Beta Sig. Beta Sig. Beta Sig. Confiança -,008 ,964 Interpessoal Confiança -,553 ,001* Institucional Tolerância a ,116 ,723 gov. não democrático Preferência -,579 ,019** regime democrático Preferência ,472 ,005* regime autoritário Indiferença ,237 ,333 tipo regime Católicos Protestantes Sit. Econ. país Sit. Econ. entrevistado ,253 ,168 ,000 ,651 -,128 ,583 -,144 ,555 Sit. Econ. ,213 ,400 entrevistado ano anterior (2003) PIBpercapita ,043 ,848 ,253 ,103 ,108 ,708 ,263 ,174 ,048 ,769 ,141 ,529 -,127 ,560 -,031 ,897 ,120 ,649 ,165 ,553 -,084 ,739 GINI ,244 ,180 ,346 ,014*** ,209 ,310 ,038 ,809 ,339 ,021 ,125 ,532 ,272 ,115 ,270 ,141 ,292 ,139 ,282 ,162 ,130 ,556 Liberdade ,943 ,037 ,701 ,020** ,897 ,051 1,228 ,003* ,838 ,016** 1,029 ,021 ,756 ,069 ,903 ,042 ,966 ,032 ,953 ,033 ,969 ,028 civil Liberdade -,200 ,637 ,029 ,917 -,187 ,657 -,681 ,088 -,204 ,364 -,335 ,433 -,140 ,723 -,197 ,639 -,104 ,642 -,142 ,744 -,310 ,474 política R2 ajustado ,514 ,793 ,519 ,700 ,729 ,550 ,572 ,520 ,526 ,526 ,543 N 18 18 18 18 18 18 18 18 18 18 18 Fonte: Latinobarometro (2004); Freedom House (2004); Transparency International (2004); World Bank (2004); PNUD (2004). Nível de significância: *p < 0,005, **p < 0,2, ***p < 0,1. Nota: O modelo de regressão rodado foi o Optimal Scaling Procedures para dados categóricos do SPSS. O índice de percepção da corrupção, da Transparência Internacional, foi invertido, seus valores indo de menos para mais. Para as variáveis de cultura política foram usadas porcentagens (Católicos, Protestantes, Preferências por tipos de regime e Tolerância a governo não democrático). Para as demais variáveis, foram usadas médias para os países (Confianças Interpessoal e Institucional, Situação econômica do país, do entrevistado e do entrevistado no ano anterior (2003). Paíse incluídos na análise: Argentina, Bolívia, Brasil,. Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Rep. Dominicana, Uruguai e Venezuela. Os modelos relevantes são os 2, 4 e 5, ou seja, aqueles em que é testado o efeito das variáveis de confiança institucional, preferência pela democracia, preferência pelo autoritarismo, índice de liberdade civil (segundo a Freedom House) e o coeficiente de Gini. A capacidade de explicação desses modelos é bastante alta, isto é, respectivamente, .79, .70 e .73. O modelo cuja explicação é mais alta é aquele segundo o qual um dos principais determinantes da percepção da corrupção é a confiança dos cidadãos nas instituições públicas: o beta da confiança institucional é .56, com o sinal na direção esperada, ou seja, sinal negativo, indicando que quanto menos confiança as pessoas têm nas instituições democráticas mais tenderão a ver a corrupção como parte do sistema político. Neste modelo, o coeficiente de Gini, isto é, a medida de desigualdade social, também tem poder explicativo, mas o beta é menor que o de confiança institucional, isto é, .34; outra descoberta importante é a que se refere ao papel do índice de liberdade civil: seu beta é .70, mostrando que a percepção da corrupção na América Latina é determinada tanto por valores culturais como por aspectos da performance do regime que afetam a qualidade da democracia. O modelo 4, embora com capacidade explicativa um pouco menor que o anterior, completa o quadro sobre as variáveis determinantes da percepção da corrupção: a preferência pela democracia e, outra vez, o índice de liberdade civil são as duas variáveis explicativas, cujos betas respectivamente são: .57 e 1.22. Finalmente, o modelo 5 mostra que são determinantes da percepção da corrupção a preferência pelo autoritarismo e, outra vez, o índice de liberdade civil. Nos limites da natureza exploratória da análise, os fatores determinantes da percepção negativa, isto é, de que a corrupção existe e afeta os sistemas políticos latino-americanos, são a cultura política e o desenho institucional. 4. Percepção e efeitos da corrupção no Brasil O passo seguinte da análise consistiu em examinar os resultados de pesquisas realizadas por ocasião das denúncias sobre o “mensalão” no governo Lula (Datafolha, 2005, e as dirigidas pelo autor em 1993 e 2006). O objetivo era verificar os níveis de conhecimento e de percepção da corrupção pelos brasileiros no momento em que foram feitas as denúncias e, por outro lado, com base em um indicador de memória temporal, a comparação entre essas percepções em dois pontos no tempo, 1993 e 2006, ou seja, um ano depois dos dois casos recentes mais conhecidos, ou seja, o de Collor de Mello em 1992 e o de Lula da Silva em 2005; a base de comparação foi a situação percebida nos governos anteriores aos dois casos mencionados, ou seja, o dos militares, o de Itamar Franco e o de Fernando Henrique Cardoso. Os resultados são relatados a seguir. 19 TABELA 2: CONHECIMENTO, ATITUDES E OPINIÕES SOBRE O MENSALÃO – 2005 (%) Junho (%) Julho (%) “Você tomou conhecimento das acusações acerca do “Mensalão"? Se sim: Está bem informado 16,60 19,30 Está mais ou menos informado 42,20 38,00 Está mal informado 15,80 17,70 Não tomou conhecimento 25,30 25,00 2124 2110 N “Pelo que você sabe ou ouviu dizer, existem ou não casos de corrupção no governo Lula?” Sim existem 70,50 78,00 Não existem 17,00 11,70 Não sabe/não respondeu 12,50 10,30 2124 2110 N “Se o PT pagava (o “Mensalão”), o presidente Lula está ou não envolvido nesse suposto pagamento de mesada a parlamentares em troca de apoio ao governo?” Lula está envolvido . 33,50 Lula não está envolvido . 43,40 Não sabe/não respondeu . 23,10 N . 1841 “Na sua opinião, o presidente Lula tem muita responsabilidade, um pouco ou nenhuma responsabilidade nesses casos de corrupção?” Muita responsabilidade 28,10 28,40 Um pouco de responsabilidade 50,40 45,90 Nenhuma responsabilidade 14,50 15,20 Não sabe/não respondeu 6,90 10,50 N 2124 1866 “Na sua opinião, o desempenho do governo Lula em relação às acusações de pagamento de mesada a parlamentares em troca de apoio ao governo tem sido, até o momento: Ótimo/Bom 28,50 31,10 Regular 34,80 32,50 Ruim/Péssimo 23,30 26,00 Não sabe/não respondeu 13,40 10,40 2124 2110 N Fonte: Datafolha, 2005 e 2006. Em primeiro lugar, dois aspectos sobressaem: por uma parte, verifica-se que a maioria dos entrevistados (58%) não apenas tinha conhecimento das denúncias de corrupção envolvendo o governo Lula em 2005, como também acreditava que o presidente tinha “muita” ou “um pouco de” responsabilidade nos fatos (78%), embora mais de 40% não 20 acreditasse no seu envolvimento direto com os mesmos. Entretanto, como se pode verificar no gráfico abaixo, os entrevistados das pesquisas de 1993 e 2006 consideraram que a situação da corrupção piorou no país nos governos de Collor e Lula, quando comparados com os dos seus antecedentes. Apesar das diferenças entre esses governos, a continuidade das percepções do fenômeno confirma o seu caráter endêmico. Gráfico 1 - Situação da corrupção em 1993 e 2006 80 Melhorou 71,8 70 Ficou igual Piorou 60 NS/NR 50 47,4 42,3 38,2 40 42,1 32,9 30 20 29,4 31,1 34,4 25,3 25,7 22,4 18,8 18,4 22,5 25,0 20,0 17,1 8,4 10 7,5 5,9 7,2 2,3 3,9 0 1993 1993 1993 2006 2006 2006 Figueiredo e Geisel Collor Itamar Franco Figueiredo e Geisel FHC Lula Fontes: Pesquisas “Cultura Política e Democratização” (1993); “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas” (2006). Em que pese o conhecimento dos eleitores dos fatos envolvendo a corrupção e das responsabilidades do governo Lula nos escândalos de 2005, isso não afetou o voto da maioria nas eleições presidenciais de 2006. A questão tem importantes implicações para efetividade dos mecanismos de accountability vertical no país, tendo levado a um novo passo analítico dos dados de 2006. Apesar de os dados anteriores derivarem de pesquisas diferentes, a hipótese de que a aceitação social da corrupção no país oferece um elemento de conexão para os resultados de ambas tinha de ser verificada. O que explica a leniência pública diante da corrupção ou mesmo a sua aceitação social e quais os seus efeitos? Uma bateria de perguntas envolvendo a possibilidade de a corrupção 21 ser socialmente aceitável em condições em que governos e líderes políticos são vistos como podendo responder às necessidades e expectativas dos eleitores foi utilizada no survey de 2006 e tomada como base para a construção de uma escala de aceitação social da corrupção10. TABELA 3: REGRESSÃO LINEAR (OLS) DA ACEITAÇÃO SOCIAL DA CORRUPÇÃO (“ROUBA MAS FAZ”) – 2006 VARIÁVEIS INDEPENDENTES QUE PERMANECERAM NO MODELO Unstandardized Coefficients B Std. Error 1,532 0,215 Standardized Coefficients Beta Regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste O governo deveria oferecer menos serviços públicos como saúde e educação para reduzir os impostos 1,268 0,123 1,137 Quanto menos o governo intervir na economia, melhor para o país T Sig. 7,136 0,000 0,229 10,302 0,000 0,219 0,120 5,200 0,000 0,718 0,155 0,107 4,627 0,000 O país funcionaria melhor se os militares voltassem ao poder 0,564 0,153 0,085 3,691 0,000 O Brasil estaria bem melhor se nós nos preocupássemos menos com que todo mundo seja igual Sexo feminino 0,574 0,142 0,092 4,031 0,000 -0,423 0,121 -0,077 -3,504 0,000 Avaliação positiva do governo Lula 0,438 0,127 0,080 3,464 0,001 Para que o país cresça o governo deveria intervir menos na economia -0,420 0,147 -0,063 -2,852 0,004 Escolaridade: Superior Completa ou mais Avaliação positiva da situação econômica familiar prospectiva -1,028 0,379 -0,060 -2,714 0,007 -0,405 0,145 -0,063 -2,794 0,005 Confiança no Congresso Nacional 0,290 0,137 0,047 2,111 0,035 (Constant) Prefere a democracia à outras -0,279 0,133 -0,048 -2,103 0,036 alternativas Dependent Variable: Escala de apoio à corrupção (rouba mas faz) Fonte: Pesquisa “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas”, 2006 10 A escala de aceitação social da corrupção (“Rouba, mas faz”) foi construída com base nas seguintes perguntas do survey de 2006: “Vou ler algumas frases sobre os políticos e gostaria de saber se você concorda muito, concorda pouco, discorda pouco ou discorda muito: NÃO FAZ DIFERENÇA SE UM POLÍTICO ROUBA OU NÃO, O IMPORTANTE É QUE ELE FAÇA AS COISAS QUE A POPULAÇÃO PRECISA; UM POLÍTICO QUE FAZ MUITO E QUE ROUBA UM POUCO MERECE O VOTO DA POPULAÇÃO; UM POLÍTICO QUE FAZ MUITO E QUE ROUBA UM POUCO NÃO MERECE SER CONDENADO PELA JUSTIÇA; UM POLÍTICO QUE FAZ UM BOM GOVERNO DEVE PODER DESVIAR DINHEIRO PÚBLICO PARA FINANCIAR SUA CAMPANHA ELEITORAL; O MELHOR POLÍTICO É O QUE FAZ MUITAS OBRAS E REALIZAÇÕES, MESMO QUE ROUBE UM POUCO”. O alfa de Cronbach do teste de escalabilidade é de .91. Para a explicação dos procedimentos adotados na construção da escala, ver o anexo 1. 22 O teste consistiu em uma análise de regressão linear envolvendo um conjunto de variáveis independentes associadas com as hipóteses mencionadas antes. A idéia, nesse caso, foi pesquisar os determinantes daquela aceitação. Os efeitos políticos dessa aceitação, tratados em outro teste, são relatados adiante. A análise confirma as principais hipóteses deste trabalho, ou seja, a aceitação social da corrupção no Brasil é determinada por fatores ligados ao desenvolvimento, ao desempenho de instituições e de governos, e também à cultura política. No primeiro caso, verifica-se que nas regiões do país onde os níveis de desenvolvimento são mais baixos a aceitação da idéia de “rouba, mas faz” é maior, diferentemente do que ocorre no Sudeste e no Sul; o mesmo resultado se verifica também para os segmentos menos escolarizados da população (as variáveis de renda e relativas ao tamanho das cidades dos entrevistados, no entanto, não são significantes). Ao mesmo tempo, a avaliação positiva do governo Lula e, em contradição com a hipótese sobre o desempenho das instituições, também a do Congresso Nacional são fatores que explicam a aceitação social da corrupção; outro aspecto contraditório ainda emerge dessa avaliação: os que têm uma expectativa positiva do desempenho prospectivo da economia do país (no ano seguinte) não seguem a tendência dos que avaliam o governo e as instituições de representação de modo positivo. Finalmente, os resultados que envolvem variáveis de cultura política e de valores mostram que, como previsto, a adesão à democracia ou o rechaço às alternativas autoritárias estão associadas - com os sinais na direção esperada - com a aceitação social da corrupção. No modelo de regressão relatado foram utilizadas também variáveis que expressam a posição dos entrevistados a respeito do papel do Estado em face das desigualdades sociais e econômicas do país: os segmentos que têm posições mais conservadoras são também os que oferecem base de apoio para o “rouba, mas faz”. Em uma palavra, contemporaneamente, no Brasil, a aceitação social da corrupção é maior entre os habitantes de regiões menos desenvolvidas, os politicamente mais autoritários, os socialmente mais conservadores e, ao mesmo tempo, entre os que avaliam positivamente o governo do dia e, surpreendentemente, instituições como o Congresso Nacional. A pergunta seguinte que o estudo procurou responder dizia respeito aos efeitos da aceitação da corrupção para o sistema democrático. Essa aceitação afeta, de algum modo, a adesão ou a visão da democracia dos entrevistados, a sua confiança interpessoal e institucional ou a participação política? As questões fazem parte do debate da literatura culturalista e institucionalista do tema e importam para a perspectiva da qualidade da democracia. Por isso, variáveis dependentes correspondentes foram submetidas a uma análise de regressão logística em um modelo em que a escala de aceitação social da 23 corrupção (rouba, mas faz) e diferente variáveis de avaliação do governo do dia, da política e da economia - tomadas como variáveis explicativas - foram mantidas, para fins de controle, ao lado de variáveis sócio-demográficas, entre as quais, a região e o tamanho das cidades dos entrevistados. Os resultados são relatados na Tabela 4 abaixo. Em primeiro lugar, os dados mostram que a aceitação social da corrupção afeta negativamente a adesão à democracia, enquanto o voto em Lula em 2002, a escolaridade superior e a avaliação da política em geral influem positivamente sobre o apoio difuso ao regime. Mas a influencia negativa sobre a adesão democrática é confirmada pelos efeitos da aceitação da corrupção sobre opiniões em torno da possibilidade de presidentes e governos deixarem de lado as leis e instituições como o Congresso Nacional e os partidos políticos em situações de crise; e, em um desses casos, o voto em Lula em 2002 também influencia essas opiniões, assim como a preferência por um líder salvador que “resolva os problemas do país”. A aceitação da corrupção também determina alternativas como as que envolvem a volta dos militares ao poder ou adoção de um sistema de partido único e, nesse último caso, o voto em Lula tem efeito contrário. Os segmentos que aceitam a corrupção como um componente da vida política do país têm opções autoritárias, mas não quando avaliam positivamente a política do país e, em alguns casos, a economia. Claramente, os segmentos que não compartilham da aceitação da corrupção têm escolaridade superior, renda mais alta e são mais velhos; alguns desses segmentos, em algumas situações, também são os que rejeitam as posições políticas autoritárias, confiam nas pessoas e manifestam interesse em participar da vida pública. A aceitação social da corrupção não afeta, no entanto, a satisfação com o desempenho prático da democracia, uma dimensão que não deve ser confundida com a adesão normativa ao regime (MOISÉS E CARNEIRO, 2008). Os mais satisfeitos com o funcionamento da democracia são do sexo feminino e católicos, segmentos que, em outras situações, demonstram confiar menos nas instituições e revelam menos tendências de participação política em comparação, por exemplo, com os homens e crentes não-católicos. Quando a análise se desloca para aspectos que envolvem a percepção dos direitos de cidadania, participação política e avaliação de partidos políticos e o judiciário, os efeitos da aceitação da corrupção não são significantes. Nesses casos, enquanto a avaliação positiva da situação política em geral e o voto em Lula em 2002 têm efeitos positivos, nem os efeitos do desenvolvimento, nem da socialização pregressa afetam a confiança em instituições. Surpreende, contudo, que no caso de uma importante instituição da sociedade civil, os sindicatos, a aceitação da corrupção esteja associada com a confiança nos mesmos, algo que também é afetado pela avaliação positiva da política em geral. 24 TABELA 4 – Modelos de regressão logística dos efeitos da aceitação social da corrupção (rouba, mas faz) sobre adesão democrática, confiança e participação política, controlando por indicadores sócio-demográficos – 2006 Prefere a democracia como forma de governo Aceitação da corrupção (rouba, mas faz) Sexo – feminino Faixa etária – 25 a 44 anos Escolaridade – superior completo ou mais Região – Sudeste Renda mensal familiar – até R$780,00 Satisfeito com democracia no Brasil Em crise, o governo prescinde leis, Congresso e instituições O Brasil seria Em crise, o presidente melhor se prescinde o houvesse Congresso e os apenas um partidos políticos partido político Tenta convencer alguém do que pensa politicamente Beta Sig Beta Sig Beta Sig Beta Sig Beta Sig Beta Sig - 0,063 -0,185 - 0,011 1,291 -0,271 - 0,122 0,003 0,117 0,925 0,009 0,030 0,325 - 0,015 -0,432 -0,326 -0,164 -0,742 0,171 0,564 0,003 0,029 0,736 0,267 - 0,188 0,069 0,016 -0,140 0,337 -0,090 -0,042 0,001 0,884 0,215 0,322 0,445 0,723 0,061 -0,005 -0,224 -0,393 0,112 -0,091 0,004 0,967 0,047 0,252 0,343 0,440 0,094 0,111 -0,260 -0,864 0,208 -0,005 0,000 0,356 0,032 0,058 0,103 0,971 0,007 -0,438 0,067 0,032 -0,419 -0,338 0,777 0,002 0,637 0,043 0,006 0,023 Tamanho da cidade + de 500 mil habitantes 0,032 0,802 -0,300 -0,163 -0,386 0,002 -0,199 0,107 -0,032 0,811 -0,065 0,679 Religião – católicos Avaliação positiva da economia do país (atual) - 0,105 0,346 0,399 0,154 0,122 0,146 -0,053 0,564 -0,071 -0,133 0,547 0,373 -0,062 -0,326 0,601 0,028 0,054 -0,115 0,672 0,464 -0,218 -0,183 0,137 0,328 Avaliação positiva da política do país (atual) Avaliação positiva do governo Lula Voto em Lula para presidente em 2002 0,256 - 0,001 0,327 0,088 0,995 0,011 0,400 -0,318 0,336 0,120 0,227 0,117 -0,066 0,238 -0,100 0,636 0,121 0,421 -0,123 0,392 -0,147 0,375 0,011 0,233 0,012 0,221 -0,251 0,935 0,173 0,055 0,168 0,144 -0,070 0,331 0,459 0,651 0,055 1340 Nagelkerke R Square N Confia na maioria das pessoas Aceitação da corrupção (rouba, mas faz) Sexo – feminino Faixa etária – 25 a 44 anos 0,205 1340 Daria um cheque em branco a um líder salvador que resolvesse todos os problemas 0,030 1340 O país funcionaria melhor se os militares voltassem ao poder 0,027 1340 Os brasileiros fazem valer os seus direitos 0,039 1340 Confia nos partidos políticos 0,039 1340 Avaliação positiva do Judiciário Beta Sig Beta Sig Beta Sig Beta Sig Beta Sig Beta Sig -0,023 -0,108 -0,331 0,349 0,409 0,013 0,111 -0,047 0,043 0,000 0,733 0,759 0,113 -0,232 -0,105 0,000 0,086 0,443 0,035 -0,057 0,001 0,105 0,625 0,991 0,020 0,019 -0,486 0,432 0,893 0,001 -0,028 0,122 -0,111 0,209 0,304 0,351 25 Escolaridade – superior completo ou mais Região – Sudeste Renda familiar mensal – até R$780,00 0,779 -0,015 -0,366 Tamanho da cidade + de 500 mil habitantes Religião – católico Avaliação positiva da economia do país (atual) Avaliação positiva da política do país (do país) Avaliação positiva do governo Lula Voto para presidente em Lula, 2002 Nagelkerke R Square N -0,013 0,014 0,053 0,401 -0,166 0,341 0,022 0,912 0,008 0,987 0,918 0,762 0,012 0,359 0,020 0,036 1340 Avaliação positiva dos sindicatos Beta Sig Aceitação da corrupção(rouba, mas faz) Sexo – feminino Faixa etária – 25 a 44 anos Escolaridade – superior completo ou mais Região – Sudeste Renda familiar mensal – até R$780,00 Tamanho da cidade + de 500 mil habitantes 0,045 -0,052 -0,198 -0,093 0,077 -0,270 -0,489 0,037 0,659 0,093 0,794 0,535 0,031 0,000 Religião – católico 0,170 0,171 Avaliação positiva da economia do país (atual) 0,645 0,000 Avaliação positiva da política do país (atual) Avaliação positiva do governo Lula Voto para presidente em Lula, 2002 Nagelkerke R Square N 0,560 0,118 0,007 0,000 0,462 0,957 0,116 1340 -1,442 -0,164 0,103 0,050 0,272 0,481 -0,234 0,129 0,115 0,610 0,371 0,420 0,225 0,059 0,111 0,518 0,638 0,373 -0,369 -0,304 -0,121 0,459 0,052 0,432 0,104 0,038 -0,035 0,766 0,762 0,781 -0,173 -0,016 -0,225 0,143 0,066 -0,086 0,268 0,911 0,216 0,398 0,722 0,572 0,048 1340 -0,079 0,027 0,011 -0,309 -0,147 -0,238 0,597 0,851 0,951 0,073 0,415 0,103 0,043 1340 -0,174 0,210 0,466 0,491 -0,129 -0,054 0,181 0,092 0,003 0,000 0,426 0,675 0,054 1328 -0,370 0,086 0,190 0,590 0,155 0,301 0,029 0,579 0,327 0,000 0,449 0,065 0,081 1340 -0,494 0,028 0,855 0,577 0,250 0,081 0,000 0,822 0,000 0,000 0,111 0,531 0,153 1340 26 27 A aceitação social da corrupção também não afeta a confiança interpessoal; neste modelo, apenas a avaliação positiva da política em geral, a renda mais alta e o voto em Lula afetam positivamente essa variável. Ao mesmo tempo, no que tange a alguns indicadores de participação política os resultados não comprovaram a hipótese de influência negativa, ou seja, a aceitação social da corrupção não influi sobre a decisão dos indivíduos de agirem para convencer outras pessoas de suas idéias políticas; pertencer ao sexo feminino também desestimula a participação para convencer outros de idéias políticas, assim como habitar a região Sudeste ou cidades de mais de 500 mil habitantes, mas a escolaridade superior tem efeito contrário. Esses achados mostram que a questão da participação política demanda mais pesquisa e tratamento específico a ser feito em outra ocasião. Duas limitações envolvem os resultados relatados: primeiro, embora o modelo original que analisa os efeitos da aceitação social da corrupção envolvesse outras variáveis dependentes relativas à qualidade da democracia, apenas aquelas mencionadas acima permaneceram na resolução final, as demais não são significantes. Por outro lado, os coeficientes r2 ajustados dos modelos são baixos, os resultados têm de ser tomados com cautela já que sua capacidade explicativa é limitada. Essas limitações não impedem que os resultados sejam levados em conta, mas mostram que novos estudos a respeito do tema são necessários. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados deste estudo sugerem duas conclusões importantes. Em primeiro lugar, diferentes testes mostraram que a percepção pública da corrupção no Brasil e na América Latina está associada, como a literatura preconiza, com o desenvolvimento e o desempenho de instituições e do governo do dia, mas também com a cultura política; esses fatores também explicam a aceitação social da corrupção no Brasil. Trata-se de um importante incremento no conhecimento a respeito do fenômeno da corrupção em sua relação com a democracia, e os resultados têm que ser levados em conta por novas pesquisas. Ao mesmo tempo, a análise dos dados mostra que os efeitos da aceitação social da corrupção afetam a qualidade da democracia em sentido importante: diminuem a adesão ao regime e, principalmente, estimulam a aceitação de escolhas autoritárias que podem se converter em alternativas contra o regime em situações de crise. Embora essa possibilidade se torne cada vez mais difícil com o passar do tempo, o risco que ela oferece está associado com o quanto os efeitos da aceitação da corrupção podem se conjugar com a desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas. Os resultados a esse respeito não são conclusivos, indicando a necessidade de mais estudos. A evidência de que a corrupção fragiliza o apoio de massa ao regime também foi demonstrada por Seligson (2002) em um estudo sobre alguns países latino-americanos, e a sua influência para a escolha de modelos anti-institucionais de democracia por eleitores latino-americanos e brasileiros foi 28 apontada por Moisés e Carneiro (2008). Ambos os estudos são confirmados pelos dados apresentados neste estudo e se referem a situações que podem deixar em aberto o risco de que alternativas políticas ao regime democrático ganhem apoio de massa, além de mostrar que a corrupção rebaixa a qualidade do regime democrático. Com efeito, quando líderes políticos ou funcionários do Estado cometem atos de corrupção e são colocados sob controle constitucional pela ação de cidadãos, partidos políticos, parlamento, ministério público e judiciário isto se converte em um claro exemplo de eficiência da democracia, ou seja, de que o regime funciona de acordo com os seus princípios e as suas promessas republicanas. Mas, ao contrário, se uma grande parte de cidadãos pensa que a corrupção é um componente inerente ao regime democrático (como parece ter ocorrido por ocasião da eleição presidencial brasileira de 2006), e não devida ao comportamento de políticos específicos ou ao modo de funcionar de instituições como partidos e legislativo, isso desqualifica elementos centrais da democracia como os mecanismos de responsabilização de governos (accountability). ANEXOS Metodologia de construção da escala As dimensões de aceitação social da corrupção são compostas por diversas variáveis. Para cada dimensão, foi avaliado o grau de associação simultânea das variáveis do grupo na tentativa de redução da dimensionalidade, o que possibilita a construção de medidas (indicadores, escalas) de forma a facilitar a interpretação dos dados e avaliar o relacionamento dessas medidas com outras variáveis de interesse. Quando as variáveis do grupo são contínuas, a técnica estatística realizada foi a de Análise Fatorial (via componentes principais, por exemplo). Na presença de variáveis categóricas, recorreu-se à Análise de Componentes Principais Categóricas (CATPCA no SPSS). Esse procedimento quantifica simultaneamente as variáveis categóricas enquanto reduz a dimensionalidade dos dados. Os fatores gerados na análise são correlacionados e representam a maior parte da informação das variáveis originais a ser interpretadas. Enquanto a análise fatorial numérica exige relacionamento linear entre as variáveis, o procedimento de aproximação de escalas ótimas permite que as variáveis sejam escalonadas para diferentes níveis, sejam nominais, ordinais ou numéricos. Assim, variáveis nominais e ordinais são quantificadas (numericamente) levando em consideração a relação entre elas e o número de dimensões pedido (no mínimo 1). Variáveis ordinais mantêm a ordem das categorias originais (embora a quantificação possa inverter o sentido), variáveis nominais são quantificadas sem levar em conta a ordem das categorias. Assim, quando se lê o sinal das cargas na tabela de ‘Component Loadings’, deve-se entender o sinal de suas categorias quantificadas para entender a direção da relação dessas com as demais variáveis. Realizada a análise fatorial pertinente a cada dimensão, verificaram-se os grupos de variáveis com cargas altas em cada dimensão. Para cada grupo de variáveis, para testar a unidimensionalidade das variáveis (construtos latentes), procedeu-se à análise de confiabilidade (ou consistência), medida pelo Alpha de Cronbach. A fórmula do coeficiente Alpha é onde N é o número de itens (variáveis) e r é a correlação inter-item entre itens. Assim, quando o número de itens diminui, Alpha também diminui. Em escalas como a da aceitação da corrupção, há até 3 variáveis em cada grupo. Assim, poderia acontecer que, mesmo que um conjunto de variáveis tivesse uma forte associação, o valor de Alpha não atingiria um valor aceitável (de 0.70, segundo a literatura). Os escores gerados pelo SPSS® têm média próxima de 0 e variância próxima de 1. Para melhorar a interpretação do construto, foi realizada uma 29 transformação na variável, de tal forma que a escala variasse de 0 (mínimo) a 10 pontos (máximo), tendo o mínimo e o máximo suas adequadas interpretações. Matematicamente, se uma variável x varia de a até b, então 10*(xa)/(b-a) varia de 0 a 10. Variáveis do modelo de regressão logística Dependente: Escala de aceitação da corrupção (Rouba, mas faz): varia de 0 – 10, sendo 0 a não aceitação e 10 a total aceitação da corrupção; Independentes: − Tamanho da cidade: (“até 20 mil habitantes” = 0; “entre 20 mil e 50 mil habitantes” + “entre 50 mil e 100 mil habitantes” + “entre 50 mil e 100 mil habitantes” + “entre 100 mil e 500 mil habitantes” + “mais de 500 mil habitantes” = 1) − Prefere democracia à ditadura: (“em certas circunstâncias, é melhor uma ditadura do que um regime democrático” + “tanto faz se um governo é ditadura ou democracia” = 0; “a democracia é sempre melhor do que qualquer forma de governo” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − Prefere ditadura à democracia: (“a democracia é sempre melhor do que qualquer forma de governo” + “tanto faz se um governo é ditadura ou democracia” = 0 ; “em certas circunstâncias, é melhor uma ditadura do que um regime democrático” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − A democracia é sempre a melhor forma de governo: (“dsicorda pouco” + “discorda muito” = 0 ; “concorda pouco” + “concorda muito” = 1; “não sabe” + “não respondeu” + “nem concorda, nem discorda” = missing) − Você acha que democracia tem a ver com menos corrupção e menos tráfico de influência: (“não tem nada a ver” + “tem pouco a ver” = 0; “tem a ver + tem muito a ver” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − A lei deve ser obedecida sempre: (“discorda muito” + “discorda pouco” = 0; “concorda pouco” + “concorda muito” = 1; “não sabe” + “não respondeu” + “nem concorda, nem discorda” = missing) − A privatização das empresas estatais foi boa para o país: (“discorda muito” + “discorda pouco” = 0; “concorda pouco” + “concorda muito” = 1; “não sabe” + “não respondeu” + “nem concorda, nem discorda” = missing) − Democracia tem a ver com a existência de diversos partidos políticos: (“não tem nada a ver” + “tem pouco a ver” = 0; “tem muito a ver” + “tem a ver” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − Democracia tem a ver com igualdade perante a lei: (“não tem nada a ver” + “tem pouco a ver” = 0; “tem muito a ver” + “tem a ver” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − Democracia tem a ver com fiscalização dos atos do governo pelos tribunais de justiça e pelo Ministério Público (“não tem nada a ver” + “tem pouco a ver” = 0; “tem muito a ver” + “tem a ver” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − O Brasil é uma democracia plena: (“o Brasil não é uma democracia” + “uma democracia com grandes problemas” + uma democracia com pequenos problemas” = 0; “o Brasil é uma democracia plena” = 1; “não sei o que é uma democracia” + “não sabe” + “não respondeu” = missing) − Trabalha por um tema que afeta a sua comunidade: (“nunca” + “quase nunca” = 0; “frequentemente” + “muito frequentemente” = 1; “não respondeu” = missing) − As pessoas pedem sua opinião sobre política: (“nunca” + “quase nunca” = 0; “frequentemente” + “muito frequentemente” = 1; “não respondeu” = missing) − Conversa sobre política com os amigos: (“nunca” + “quase nunca” = 0; “frequentemente” + “muito frequentemente” = 1; “não respondeu” = missing) Tenta convencer alguém do que você pensa politicamente: (“nunca” + “quase nunca” = 0; “frequentemente” + “muito frequentemente” = 1; “não respondeu” = missing) − Trabalha para um partido ou um candidato: (“nunca” + “quase nunca” = 0; “frequentemente” + “muito frequentemente” = 1; “não respondeu” = missing) − Tem que ter partidos políticos para o país ir em frente: (“não” = 0; “sim” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − Tem que ter deputados e senadores para o país ir em frente: (“não” = 0; “sim” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − Tem que ter tribunais de justiça para o país ir em frente: (“não” = 0; “sim” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − Tem que ter ministros para o país ir em frente: (“não” = 0; “sim” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − 30 Tem que ter presidente da República para o país ir em frente: (“não” = 0; “sim” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − Confiança no Congresso Nacional: (“nenhuma confiança” + “pouca confiança” = 0; “alguma confiança” + “muita confiança” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − Confiança no governo: (“nenhuma confiança” + “pouca confiança” = 0; “alguma confiança” + “muita confiança” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − Confiança no presidente: (“nenhuma confiança” + “pouca confiança” = 0; “alguma confiança” + “muita confiança” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − Confiança nas leis do país: (“nenhuma confiança” + “pouca confiança” = 0; “alguma confiança” + “muita confiança” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − Avaliação positiva da situação econômica do país hoje (“muito ruim” + “ruim” + “regular” = 0; “boa” + “muito boa” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − Proximidade de partidos políticos: (“não é próximo a nenhum” + “pouco próximo” = 0; “próximo” + “muito próximo” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing) − As eleições no Brasil são limpas: (“são objeto de fraude” = 0; “são limpas” = 1; “não sabe” + “não respondeu” = missing). − 31 VIII. TELEJORNAL E CORRUPÇÃO: NOTÍCIAS NEGATIVAS, PERCEPÇÃO NEGATIVA?1 NUNO COIMBRA MESQUITA INTRODUÇÃO O tema da corrupção é vital para a teoria democrática. Uma das dimensões procedimentais da qualidade da democracia, a rule of law – ou primado da lei – implica que a corrupção seja “minimizada, detectada e punida, nos ramos políticos, administrativos e judiciários do Estado” (DIAMOND & MORLINO, 2004: 8). Do ponto de vista econômico, a corrupção causa aumento nos custos de transação e redução dos incentivos ao investimento, resultando em um menor crescimento econômico. Do ponto de vista político, existem evidências de que o contato com a corrupção faça com que as pessoas acreditem menos na legitimidade de seu sistema político e exibam menores níveis de confiança interpessoal (SELIGSON, 2002). Dessa forma, para além de comprometer procedimentos de uma democracia com qualidade, a corrupção também afetaria a qualidade do seu conteúdo. Existe, no entanto, uma outra dimensão mais subjetiva que relaciona a corrupção a essa qualidade do conteúdo do regime: a percepção do problema. Isto é, não é só a corrupção em si que pode afetar a qualidade da democracia, mas também a impressão – por parte da população – de que ela esteja aumentando ou seja um problema sério, por exemplo. Desse ponto de vista, elemento crucial a ser estudado é o papel dos meios de comunicação. A informação política contida diariamente na mídia é parte constitutiva do universo simbólico dos cidadãos, responsável também pela formação das convicções que possam ter acerca de questões públicas, para além de suas experiências concretas e outras fontes mediadas, como conversas com a família e amigos, por exemplo. No Brasil, os meios de comunicação são frequentemente acusados de terem um viés antipolítico, onde são fartas notícias negativas sobre esse campo (PORTO, 2000, CHAIA & TEIXEIRA, 2001). No segundo semestre de 2005, sabe-se que notícias de escândalos de 1 o Uma primeira versão deste texto foi apresentada no 6 Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política ABCP, Unicamp, Campinas-SP; 29/07 – 01/08/08. Agradeço a ajuda de Clécio Ferreira com a análise estatística. 1 corrupção, onde autoridades públicas foram alvos frequentes de escândalos políticos – principal sendo conhecido como o do “mensalão” – dominaram o noticiário político.2 Ao mesmo tempo, os dados do survey “A Desconfiança dos Cidadãos nas Instituições Democráticas” (2006)3 indicam que quase 60% dos brasileiros acreditam que a corrupção aumentou muito naquele último ano no Brasil, enquanto 98% acreditam que a corrupção é um problema sério. Além disso, a maioria das pessoas percebe desvios de conduta sendo praticados pela maior parte ou todos os políticos, como mostra a tabela 1. Tabela 1. Percepção de comportamento dos políticos Mudar de partido em troca de dinheiro ou cargo Superfaturar obras públicas e desviar dinheiro para o patrimônio pessoal Usar “caixa 2” em campanhas eleitorais Todos 32,1 Maioria 56,7 Em % Minoria 9,3 31,4 57,4 9,8 0,2 1,2 38,9 49,3 9,5 0,9 1,4 Nenhum 0,5 ns/nr 1,3 ns/nr: não sabe, não respondeu Fonte: projeto “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas” (2006). A questão é saber se existe conexão entre esses dois fenômenos. A preocupação desse capítulo, portanto, é como a televisão – mais especificamente o telejornal – se relaciona com as atitudes políticas dos cidadãos em relação à corrupção. Para esse objetivo, pretende-se investigar, particularmente, o Jornal Nacional, da Rede Globo. Sabendo da cobertura extensivamente negativa sobre a política que o telejornal apresentou durante o segundo semestre de 2005, se quer saber se, de alguma forma, esse telenoticiário está associado a atitudes negativas dos cidadãos em relação à corrupção e à avaliação que eles fazem de seus governantes. Para isso, utilizam-se dados do survey “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas” (2006) para examinar possíveis associações entre audiência do telejornal e percepções dos cidadão sobre esses temas. O texto discute inicialmente a questão da corrupção para a teoria democrática, bem como as abordagens sobre o papel do jornalismo para a percepção do problema. Dessa discussão teórica se derivam hipóteses empiricamente verificáveis. Em seguida, apresentam-se os dados analisados referentes ao impacto do telenoticiário em questão 2 O principal telenoticiário do país, o Jornal Nacional, apresentou uma agenda extremamente negativa em relação ao campo da política durante a crise política de 2005. Mais de 70% das notícias de esfera pública foram dedicadas à crise e a outros casos de corrupção (Mesquita, 2010). 3 Sob responsabilidade dos professores Dr. José Álvaro Moisés (USP) e Dra. Rachel Meneguello (UNICAMP). 2 para percepção dos indivíduos do problema da corrupção e a avaliação que fazem das principais instituições. Por fim, apresentam-se as conclusões iniciais sugeridas pelos resultados. MÍDIA, CORRUPÇÃO E DEMOCRACIA Os meios de comunicação são uma variável importante para a qualidade democrática. Parte do pressuposto democrático é a existência de liberdade de expressão e de fontes alternativas de informação para que os cidadãos possam formular suas preferências (DAHL, 1971). Assim, é relevante saber como os assuntos do estado são tratados pela mídia e como isso pode impactar percepções, valores e orientações dos indivíduos acerca de assuntos públicos. Existem perspectivas distintas sobre esse papel. Alguns autores acreditam que a mídia tem representado um papel pernicioso para a democracia na maneira que cobre os assuntos públicos (PATTERSON, 1998; CAPPELLA E JAMIESON, 1997). Uma ênfase em notícias negativas sobre a política, tratadas de forma simplista, acabariam afetando a maneira como os cidadãos vêem a política, podendo fomentar o cinismo do público em relação a políticos e à política em geral. Entretanto, também existe a perspectiva de que os meios de comunicação têm o poder de informar e mobilizar as pessoas politicamente. O acesso cada vez maior a informações políticas, aliado a maiores níveis educacionais ajudariam a mobilizar os cidadãos, tanto no aumento do conhecimento, quanto em termos comportamentais (NORRIS, 1999, NEWTON, 1999). No geral, ainda que com hipóteses opostas, esses trabalhos se preocupam em como as mensagens ou o consumo de mídia pode influenciar na maneira como o cidadão se relaciona com o Estado e seus assuntos. Quer se saber, por exemplo, se a mídia é capaz de influenciar no apoio político dos cidadãos (como abordado no capítulo V deste livro). O tema da legitimidade democrática é uma das dimensões importantes para se investigar o impacto dos meios de comunicação, mas não a única. Outro elemento essencial, com forte relação com a própria legitimidade do regime, é a corrupção. Isto porque ela fere um dos pressupostos de uma democracia de qualidade, que é o primado da lei. O uso de bens públicos para fins privados – como usualmente se define corrupção – subverte o princípio de que todos são iguais perante a lei. O tema da corrupção tem recebido tratamentos distintos. Sob o ponto de vista econômico, a corrupção tem demonstrado ter um impacto negativo no investimento e crescimento de nações em desenvolvimento. Entre outros motivos, isso acontece porque serviços contratados pelo Estado são feitos por empresas que pagam suborno, o que 3 implica em serviços que não atendam a padrões de qualidade. Além disso, propinas não pagam impostos, sonegando ao Estado receitas que poderiam ser utilizadas em benefício da população (SELIGSON, 2002). Sob o ponto de vista político, ainda que existam perspectivas de um possível efeito benéfico da corrupção,4 é cada vez mais proposto o papel pernicioso que ela produz sobre outros aspectos da comunidade política. Seligson (2002), em estudo sobre o impacto da corrupção em quatro países latino-americanos, demonstrou que aqueles que já tiveram alguma experiência com a corrupção, têm menor probabilidade de acreditar na legitimidade de seu sistema político, ao mesmo tempo em que possuem menores níveis de confiança interpessoal. O estudo demonstrou, ainda, que mesmo aqueles que acreditam que a corrupção serve para superar certos entraves burocráticos, também têm seu apoio a legitimidade do sistema abalado ao terem contato com práticas corruptas. Trabalhando com dados de países da América Latina, Moisés e Carneiro (2010) demonstraram que aqueles que mais acreditam que a corrupção seja um problema sério em seus países, tendem a estar mais insatisfeitos com o funcionamento da democracia dos mesmos. A porcentagem daqueles que optam por uma “democracia sem congresso nacional” também é maior entre aqueles que acreditam que o problema da corrupção tenha aumentado (MOISÉS, 2008). Mignozzetti (2009), analisa o impacto da corrupção para a qualidade da democracia em diversos países. Seus dados revelam que a corrupção, medida pelo IPC (Índice de Percepções da Democracia) da Transparência Internacional, afeta a qualidade da democracia. Para essa mensuração, o autor utilizou – como variável aproximada – dados da Freedom House, que corresponde ao nível de liberdades civis e políticas. Quanto maior a corrupção, menor o desempenho dos países nesse índice. No caso brasileiro, trabalhando com dados do survey “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas” (2006), Dal Pino (2009), analisa o impacto da percepção do problema da corrupção sobre a confiança governamental. Seu estudo comprovou que maiores índices de percepção da corrupção se relaciona com menores níveis de confiança. Esses trabalhos apontam como a corrupção, ou a percepção que se tem dela, pode afetar importantes aspectos da vivência democrática. No entanto, a percepção que se tem da corrupção não é função somente da experiência prática que se possa ter no dia a dia com ela. Cidadãos que nunca tenham sido abordados com pedidos de suborno, por 4 É o caso da escola funcionalista, que considera a corrupção um mal necessário, possibilitando aos cidadãos superar burocracias intransigentes e ineficientes, ao mesmo tempo em que aumentam a lealdade ao sistema político (cf. Seligson, 2002). 4 exemplo, podem ter sua percepção afetada de acordo com outras informações a que estão expostos diariamente sobre o tema, em especial nos meios de comunicação de massa. Dito de outra forma, é relevante se as abordagens da mídia sobre comportamentos corruptos de agentes públicos afeta a maneira como as pessoas percebem o problema da corrupção. Em estudo sobre os países do sul da Europa, Morlino (1998) fez uma análise de tendências entre o aumento da cobertura de casos corrupção nos meios de comunicação e da insatisfação política. O resultado foi uma correlação significativa entre o aumento desse tipo de notícia e o aumento da insatisfação. Sobretudo na Grécia e na Itália, a correlação foi mais robusta, demonstrando um maior sentimento de ineficácia política nesses dois países. De forma semelhante, Pharr (2000) demonstra que o aumento no número de notícias sobre corrupção em um dos principais jornais do Japão corresponde a um aumento nos níveis de insatisfação política. A autora complementa a análise de tendências com uma análise de regressão, confirmando forte correlação entre esses dois fenômenos. No Brasil, o estudo dos meios de comunicação como fator influente na política concentra-se principalmente no comportamento da mídia. Existe uma abordagem quase dominante que acusa os meios de comunicação de exacerbarem seu papel de guardião da coisa pública, focando em especial os aspectos negativos da política. Para Porto (2000), a mídia brasileira possui um viés antipolítico e antiinstitucional. Uma cobertura essencialmente negativa, especialmente do poder legislativo, estaria centrada em temas como a corrupção, o nepotismo o clientelismo e outras irregularidades. Essa visão é compartilhada por outros autores. Chaia e Teixeira (2001) acreditam que o jornalismo investigativo resultou em “escândalos midiáticos”. Analisando as edições das revistas semanais Isto É e Veja durante o período em que ocorreram vários escândalos políticos em 2001, concluíram que esse tipo de notícia pode ter o aspecto positivo de provocar um aumento da fiscalização das atividades dos políticos. O aspecto negativo, não obstante, fica por conta de o acúmulo de “maus exemplos” de políticos poder levar a uma descrença nas instituições. Lima (2006) – em análise de conteúdo de jornais, revistas e telejornais, durante o período do “mensalão” em 2005 – observou uma cobertura predominantemente negativa do governo e dos partidos políticos que, segundo o autor, distorceu e omitiu fatos. Para ele, a cobertura teria se caracterizado por ser um “escândalo político midiático”, caracterizado como um evento que só existe na e pela mídia. O autor conclui que predominou na mídia a “presunção da culpa” dos envolvidos na crise, acarretando em um desvio das regras e dos princípios éticos da profissão. 5 Em um estudo sobre os editoriais de jornais paulistas entre 2003 e 2004, Chaia e Azevedo (2008) encontraram uma ênfase na cobertura da ação do Executivo, em especial a Presidência e os ministérios, além do funcionamento do Congresso Nacional. O Senado, alvo principal da pesquisa dos autores, contou com uma cobertura pequena durante o período. O conteúdo em relação a essa instituição, no entanto, foi predominantemente negativo. Os jornais analisados compartilharam uma visão negativa que se traduziu em críticas ao fisiologismo, ao absenteísmo, à infidelidade partidária, ao troca-troca de legendas e a certos comportamentos morais e éticos considerados reprováveis. Os autores mostram que as críticas são quase sempre feitas a partir de casos individuais. Não obstante, acreditam que o enquadramento negativo em relação aos membros do congresso, por extensão, acaba por enquadrar negativamente a própria instituição. Ainda que os editoriais também tenham apresentado enquadramentos positivos, os autores acreditam que são as críticas repetidas e recorrentes que formatam de forma mais nítida a imagem da instituição para o público. Miguel e Coutinho (2007), analisando a cobertura do escândalo do “mensalão” também em editoriais de jornais, da mesma forma encontraram uma predominância de notícias negativas e centradas em atores políticos que teriam descumprido regras legais ou normas morais que deveriam reger o comportamento político. Para esses autores, entretanto, a ênfase da cobertura negativa ser em agentes políticos e não nas instituições tem repercussões distintas. Enquanto para Chaia e Azevedo notícias negativas sobre indivíduos representam um tratamento negativo da própria instituição “por extensão”, para Miguel e Coutinho essa crítica estritamente individual falha ao não reconhecer que parte dos problemas apontados também são fruto de um sistema político com necessidade de reformas. Ao contrário de Chaia e Azevedo, portanto, os autores acreditam que a cobertura apresentou um caráter deferente ao sistema político e suas principais instituições. O tratamento negativo da política não se restringe à imprensa escrita. Porto (2002b) em estudo de análise de conteúdo, demonstra como o tema político mais freqüente apresentado pelo Jornal Nacional, principal telenoticiário do país, foi a corrupção e escândalos políticos, ocupando quase metade de todo o tempo da cobertura política. Apesar da ênfase nesse tema, seu tratamento teve um caráter mais descritivo, que o autor chama de enquadramento episódico. 80% dos enquadramentos tiveram essa característica. Essa informação é importante, já que, em uma pesquisa qualitativa, o autor verificou que quando o jornal assume um enquadramento, ou interpretação, específica de um assunto – que ele chama de enquadramento restrito – os telespectadores têm maior tendência a 6 aceitar essa interpretação do que quando ele apresenta uma notícia com mais de uma interpretação possível, chamado de enquadramento plural. Significa que ainda que demonstrada uma certa influência potencial do telenoticiário, a ênfase em um uma cobertura mais descritiva do que interpretativa representaria uma menor probabilidade de essa influência ocorrer. Entretanto, ao contrário do que essa literatura baseada em análises de conteúdo pode fazer supor, não é claro que esse conteúdo afete negativamente percepções que as pessoas têm do regime político. Utilizando dados estatísticos provenientes do survey ESEB de 2002, Schlegel (2006) verificou que – controladas as características socioeconômicas dos entrevistados – não há associações significativas entre se assistir a telejornais e se ter menores níveis de confiança em instituições e atores políticos. A exceção, encontrada pelo autor, foi uma associação positiva entre aqueles que responderam ter assistido a um telejornal ao menos uma vez na semana (três quartos da amostra) e que apresentaram maior adesão aos partidos, vendo-os como elemento necessário à democracia. Estudo feito com o survey “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas” (2006) demonstrou que, no Brasil, esses efeitos são mais de orientação positiva. Assistir ao telenoticiário Jonal Nacional se mostrou positivamente associado a diversos indicadores de apoio público ao regime democrático. Quem mais assiste ao JN tende a estar mais satisfeito com a democracia, além de possuir maiores índices de confiança no governo, nas forças armadas, no presidente, nos bombeiros, no poder judiciário e nos empresários (MESQUITA, 2010). Esses resultados foram encontrados a despeito de um período em que predominou uma agenda fortemente pautada por denúncias de corrupção. O mesmo estudo empregou uma análise de conteúdo durante o segundo semestre de 2005. Concluiuse que 70% do tempo dedicado a assuntos públicos foi negativo. Apesar disso, a maneira como o noticiário abordou os temas referentes a esse assunto não se caracterizou por uma abordagem mais cínica em relação à política. Uma interpretação mais descritiva foi encontrada em 90% das notícias durante o período. A agenda negativa que o JN apresentou se restringiu à apresentação de desvios individuais, onde políticos e outros agentes públicos foram mostrados em atividades antiéticas e ilegais. O sistema e suas instituições em nenhum momento foram alvo de críticas ou de caracterizações depreciativas por parte do telejornal. Esse fato ajuda a explicar por que os maiores consumidores de JN não desconfiam mais das instituições e nem são menos satisfeitos com a democracia, mas, ao contrário, apresentam associações positivas. 7 Notícias sobre corrupção podem aumentar a percepção, por parte dos indivíduos, de que os governos e autoridades são vigiados e responsabilizados por suas ações pela mídia, o que garantiria um clima de maior confiança. No entanto, em relação à questão específica da corrupção, as informações a esse respeito podem ter um impacto diferenciado sobre o indivíduo, tornando-os mais cônscios do problema. Dessa forma, é possível que conteúdos negativos da mídia brasileira não estejam afetando diretamente determinadas atitudes do cidadão em relação a política. Mas a contínua ênfase em relatos de corrupção e malversação de recursos públicos, pode ter a capacidade de influir na percepção que as pessoas têm desse problema. Como a percepção da corrupção tem se demonstrado como relevante para a desconfiança institucional e a legitimidade democrática (MOISÉS E CARNEIRO, 2010; DAL PINO, 2009), a longo prazo – e de maneira indireta – isso poderia fomentar maior descrédito para as instituições e a democracia. Na literatura nacional e internacional, portanto, existe o entendimento de que tanto a corrupção, quanto a percepção desse problema por parte dos cidadãos, é um elemento pernicioso para a legitimidade democrática. A percepção do problema da corrupção, por sua vez, não é função apenas do contato pessoal que se possa ter com ela, mas também das informações a que se está exposto diariamente a esse respeito, em especial pelos meios de comunicação. No caso brasileiro, análises de conteúdo têm demonstrado uma persistente cobertura negativa por parte dos meios de comunicação, onde se dá um destaque excessivo a notícias sobre corrupção de agentes públicos. Durante o segundo semestre de 2005, o escândalo conhecido como “mensalão”, além de outros casos de corrupção, prevaleceram no mais importante telejornal do país, o Jornal Nacional da Rede Globo (Mesquita, 2010). Com uma forte carga de notícias negativas sobre práticas corruptas no noticiário, a hipótese é que: H1: Assistir Jornal Nacional afeta de maneira negativa a percepção dos indivíduos em relação ao comportamento dos políticos (superfaturar obras públicas e desviar dinheiro para o patrimônio pessoal, usar “caixa 2” em campanhas eleitorais e mudar de partido em troca de dinheiro ou cargo); a percepção sobre o problema da corrupção (no último ano, durante o governo Lula e percepção de que seja um problema sério), além da avaliação da situação política atual. Essa primeira hipótese leva em consideração que mensagens específicas sobre determinados assuntos têm maior poder de impacto sobre o que as pessoas consideram dos mesmos. Ou seja, quanto maior cobertura sobre corrupção, maior a percepção desse problema por parte dos indivíduos. Essa maior percepção – derivada de maior informação 8 sobre o assunto – por outro lado aumentaria a cognição dos indivíduos. Ao ver irregularidades no trato com a coisa pública por parte de agentes do Estado sendo expostos na mídia e, ao mesmo tempo, as instituições encarregadas de investiga-las e punilas (como o caso das Comissões Parlamentares de Inquérito ou do Ministério Público, por exemplo), esses indivíduos teriam condições de avaliar melhor as instituições, justamente por vê-las em seu funcionamento. Dessa forma, e amparado em resultados anteriores que demonstraram que a confiança institucional e a satisfação com a democracia são impactadas de maneira positiva pela audiência do JN (MESQUITA, 2010), acredita-se que: H2: Assistir Jornal Nacional está associado de maneira positiva a avaliação de instituições e de políticos (governo, congresso, presidente, deputados e senadores, partidos políticos). RELAÇÕES: JN, CORRUPÇÃO E AVALIAÇÃO O conteúdo do JN durante o segundo semestre de 2005 contou com uma proporção muito grande de notícias negativas sobre o campo da política, mais especificamente relatos de corrupção por parte de políticos e partidos. A hipótese inicial, assim, era que a audiência do JN se associasse negativamente com a percepção que as pessoas têm de corrupção, assim como a avaliação que elas fazem da situação política atual, mas positivamente em relação à avaliação que os cidadãos fazem de seus representantes. Para testar as hipóteses propostas, utilizou-se uma taxa de consumo de JN. Ela corresponde à proporção de consumo de Jornal Nacional em relação à audiência de televisão em geral (quanto maior a proporção de JN em relação ao resto do consumo de televisão, maiores são os efeitos verificados).5 O primeiro passo é verificar o impacto dessa taxa na explicação de cada uma das variáveis listadas na Tabela 2 (percepção de corrupção e avaliação). Sendo as variáveis ordinais, optou-se por realizar uma regressão categórica.6 5 Para maiores detalhes dessa taxa, ver Capítulo V deste livro. De agora em diante, ao falar-se de consumo de Jornal Nacional, está se referindo sempre a essa taxa, ou seja, sempre levando em consideração, também, o consumo televisivo. 6 (Optimal Scalling no SPSS). A regressão categórica quantifica dados categóricos dando valores numéricos às categorias. Isso resulta em uma equação de regressão linear optimal para as variáveis transformadas. 9 Tabela 2. Percepção de corrupção e avaliação Coeficientes de regressão (beta) de Taxa JN, controlados ou não por variáveis socioeconômicas TXJN c/ controle R2 N TXJN c/ controle R2 N Aumentou corrupção último ano Corrupção é um problema sério Comporta mento dos políticos 1 (mudar de partido em troca de dinheiro ou cargo) ns ns ns Comportamento dos políticos 2 (superfaturar obras públicas e desviar dinheiro patrimônio pessoal) Comportame nto dos políticos 3 (usar “caixa 2” em campanhas eleitorais) Corrupção e tráfico de Influência Governo Lula Avaliação da situação política ns ns 0,043* ns 0,038 1799 Avaliação Governo Lula Avaliação do Congresso Avaliação dos Partidos Avaliação do Governo Avaliação do Presidente Avaliação dos Deputados e Senadores ns ns 0,041* 0,041* ns 0,044* 0,019 1814 0,041 1829 0,022 1812 Significância: *p < 0,10, **p < 0,05, ***<0,01. N= número de casos. Controlado por: sexo, idade, escolaridade, renda. Fonte: projeto “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas” (2006). Como demonstrado na Tabela 2, não existe qualquer associação entre a taxa JN e a percepção, por parte dos cidadãos, de que a corrupção tenha aumentado no último ano ou que seja um problema sério. Também não há relação entre a taxa e a percepção de que seja comportamento de todos os políticos superfaturar obras públicas e desviar dinheiro para o patrimônio pessoal, usar “caixa 2” em campanhas eleitorais e mudar de partido em troca de dinheiro ou cargo (esta, após o controle das variáveis socioeconômicas). Nem a avaliação do presidente Lula, do governo Lula, do Congresso e da situação política atual estão associadas à variável explicativa após o controle das variáveis socioeconômicas.7 São quatro as variáveis associadas à taxa de consumo de Jornal Nacional: a percepção sobre a questão da corrupção e o tráfico de influência durante o governo Lula e da avaliação dos partidos políticos, do governo e dos deputados e senadores. Todas elas, após o controle das variáveis socioeconômicas, associam-se à taxa JN. Como esperado para o caso da avaliação das instituições, as associações são positivas. Quanto maior o consumo de JN melhor a avaliação da atuação do governo, dos partidos políticos e dos deputados e senadores. Isso indica que, apesar, das notícias negativas sobre corrupção, o fato de as instituições não serem caracterizadas negativamente e, ainda, serem apresentadas em 7 Os modelos de regressão utilizados são para efeito de predição, ou seja, avaliar que conjunto de variáveis explicativas afetam as variáveis dependentes. 10 funcionamento, pode ter ajudado a melhorar os níveis de cognição dos indivíduos, dando subsídios para que as avaliassem melhor. Entretanto, o resultado para a primeira hipótese não foi o esperado. Não foram encontradas associações, positivas ou negativas, entre a taxa JN e variáveis de percepção do problema da corrupção, com exceção de uma. Ao contrário da hipótese proposta, quanto mais se assiste ao Jornal Nacional, mais as pessoas tendem a perceber que a questão da corrupção e do tráfico de influência no governo Lula melhorou. Dado o período estudado, com uma quantidade extensiva de notícias negativas sobre corrupção, envolvendo políticos e partidos, como explicar esse resultado? Apesar de uma proporção grande de notícias negativas sobre o campo da política, esse tipo de abordagem se limitou a indivíduos e não instituições. Ao contrário, essas instâncias democráticas foram mostradas em seu funcionamento. Essas informações podem estar associadas à idéia de transparência, o que explicaria avaliações melhores de instituições entre aqueles que assistiram ao telejornal. A ausência de associações com a taxa JN e variáveis de comportamento de políticos (que, de fato, foram caracterizados negativamente pelo telejornal) pode estar relacionada com a incapacidade de o noticiário, a despeito desse conteúdo, influenciar as pessoas. Também é possível que o ambiente maior da sociedade estivesse permeado pelo mesmo tipo de informação.8 Não sendo exclusividade do JN a visão negativa da classe política, não seriam seus maiores telespectadores que apresentariam uma visão diferenciada do restante da população. Existe, ainda, um outro elemento a ser considerado. A mídia brasileira é frequentemente retratada como tendo um viés antipolítico. Entretanto, essa característica não é exclusiva da abordagem dos meios de comunicação, e sim um traço mais perene da cultura política brasileira (PORTO, 2000). Assim, é possível que o Jornal Nacional mais reflita essa perspectiva, do que exerça algum tipo de influência. Parte-se também do princípio de autonomia dos telespectadores frente às mensagens a que estão expostos. A maneira como cada cidadão absorverá a informação depende muito do contexto ao qual está inserido, podendo atuar nessa absorção de informação diversos fatores, como educação e renda, por exemplo. Para verificar se esses elementos poderiam, de alguma forma, se relacionar com a absorção de informação por 8 A análise de editoriais dos principais jornais durante o período sugere isso (Miguel, 2007). 11 parte dos cidadãos, optou-se por realizar uma interação entre a taxa de consumo de Jornal Nacional e a instrução e, posteriormente com a renda.9 Como é possível identificar na tabela 3, quantificadas, as variáveis explicativas todas relacionam-se com as variáveis dependentes, com exceção de sexo e idade. Sexo não demonstrou ser significante para nenhum dos casos, enquanto a idade foi significante apenas para a avaliação do governo Lula, que conta com apreciação melhor entre os mais velhos. A taxa JN tem associação menos significante para todas as variáveis. Escolaridade e renda, por sua vez, apresentam associações mais significantes, mas ocorre que estas são em sentido oposto. Como já exposto anteriormente, a taxa JN está relacionada a uma melhor avaliação do governo, dos partidos políticos, dos deputados e senadores e a uma percepção de melhora na questão da corrupção no governo Lula. Ao contrário, quanto maior a escolaridade e maior a renda, pior se avaliam as mesmas instituições e pior se percebe a questão da corrupção. Tabela 3. Percepção de corrupção e avaliação com interações Coeficientes de regressão (beta) com interações da taxa JN com escolaridade e com renda Avaliação dos Partidos Políticos Avaliação Deputados e Senadores Avaliação Governo Percepção de Corrupção gov. Lula TXJN 0,04* 0,042* 0,040* 0,041* Sexo ns ns ns ns Idade ns ns 0,067** ns Renda -0,07*** -0,081*** -0,114*** -0,129*** Escolaridade -0,063** -0,084*** -0,088*** -0,097*** ns ns ns ns -0,044* ns ns ns R2 0,020 0,023 0,042 0,039 N 1814 1812 1829 1792 TXJN vs. renda TXJN vs. escolaridade Significância: *p < 0,10, **p < 0,05, ***<0,01. N= número de casos. Fonte: projeto “A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas” (2006). Não existe nenhum efeito das interações entre taxa JN com escolaridade ou com renda com relação à avaliação do governo, dos deputados e senadores e a respeito da percepção de corrupção durante o governo Lula. Entretanto, existe uma associação entre a 9 Ver capítulo V para maiores detalhes sobre o procedimento. 12 variável de interação da taxa JN com a escolaridade e a avaliação dos partidos políticos, como mostra a tabela 3. Isso significa que essas duas variáveis atuam conjuntamente, afetando a avaliação dos partidos políticos. Como a interação possui uma associação negativa com a variável dependente, assim como a escolaridade, indica que quem mais assiste ao Jornal Nacional e mais escolaridade tem, pior avalia os partidos. Entretanto, se comparado à escolaridade sozinha, traz menor intensidade, como pode ser percebido comparando os dois coeficientes (escolaridade x TXJN vs. escolaridade). Se tomarmos a audiência do Jornal Nacional como representando, de alguma forma, uma variável de informação, então os resultados apontam para algo, em princípio, contraditório: escolaridade e informação não seguem a mesma tendência de associação. Os resultados para escolaridade revelam o “cidadão crítico” de Norris (1999b). Ou seja, é o democrata que se mostra rigoroso com a avaliação do desempenho concreto das instituições do regime. São justamente os maiores níveis de escolaridade e acesso à informação que teriam essa atitude mais crítica. Moisés (2007) já havia encontrado – com os mesmos dados utilizados na presente pesquisa – que, apesar de a educação dos indivíduos afetar positivamente indicadores de mobilização, como a participação política, ela não aumenta o apoio a instituições representativas. Os mais educados são, a despeito de mais participativos, também mais críticos. Entretanto, a informação – considerando a audiência do JN – aparece com tendência oposta, ou seja, melhorando a avaliação dos cidadãos acerca das instituições. Esses resultados podem ser entendidos a partir de três tipos de orientação da cultura política: uma cognitiva, uma afetiva e outra avaliativa (DIAMOND, 1999). A educação e a informação podem estar ligadas a uma orientação cognitiva, que envolve conhecimento e crenças sobre o sistema político. Se por um lado as crenças sobre o sistema político podem ser construídas a longo prazo por processos de maior qualificação cognitiva, onde a educação representa um papel crucial, o conhecimento sobre o sistema político pode ser mais dependente de informações específicas de curto prazo, onde os meios de comunicação desempenhariam papel relevante. Sendo dois elementos distintos, é plausível que representem orientações diferentes e, até, opostas. Já uma orientação afetiva, que consiste em sentimentos sobre o sistema político, pode estar ligada mais à educação, que consiste em uma construção de longo prazo, do que a informações, mais ligadas a conjunturas de momento. Assim, o terceiro tipo de orientação – a avaliativa – que usa 13 informação e sentimentos, representa comprometimentos a valores e julgamentos políticos sobre o desempenho do sistema político relativo a esses valores. Dessa forma, poderíamos entender que a educação pode representar e reforçar um traço mais perene da cultura brasileira: o viés antipolítico (PORTO, 2000). Crenças e sentimentos acerca do sistema político brasileiro, tradicionalmente de caráter mais crítico no Brasil, seriam reforçados por esse processo de maior qualificação cognitiva representada pela escolaridade. Ao contrário, informações específicas sobre o funcionamento do sistema político, representadas pela audiência do Jornal Nacional, fornecem elementos para que o cidadão avaliem melhor suas instituições. Assim, partindo da autonomia dos indivíduos na interpretação das informações expostas pelo telejornal, o conteúdo negativo acerca da política não se contrasta com elementos mais perenes já presentes na sociedade brasileira, onde a política é vista de maneira crítica. Mas ao fornecer informação específica sobre o sistema, mostrando as instituições em seu funcionamento, principalmente em seus papéis de accountability, dão margem para uma melhor avaliação das mesmas. Não se pode esquecer, entretanto, que a educação – como elemento mais constitutivo do arsenal cognitivo dos indivíduos – é mais forte e significante do que a informação de curto prazo fornecido pelo telejornal, o que pode ser corroborado pelos dados. Na variável onde aparece efeito de interação constata-se, assim, que a interação com a audiência do Jornal Nacional aparece apenas “suavizando” a avaliação negativa dos partidos políticos daqueles com maior escolaridade. Isto é, o efeito de interação entre escolaridade e taxa JN, apesar de negativo, é mais fraco do que o da escolaridade sozinho. Ou seja, a escolaridade aparece tornando o cidadão mais crítico. Apesar de incapaz de reverter essa tendência de longo prazo, a informação de curto prazo contidas no JN fazem com que essa crítica seja menos severa. A prevalência da tendência de variáveis socioeconômicas ou da variável de audiência na interação pode estar relacionada à diferença entre dimensões de percepção de caráter distinto. Uma convicção mais profunda acerca de temas políticos – mais refrataria a mudanças conjunturais – representaria uma percepção de “fundo”. Seria o tipo de percepção decorrente de processos de socialização a longo prazo. Diferentemente, convicções de ordem mais pragmática ou conjuntural representariam posturas mais imediatas e a curto prazo, mais dependentes de informações novas para serem formadas. Podem ser chamadas de “momento”. 14 A suposição é que, para essas convicções de “fundo”, variáveis socioeconômicas prevaleceriam por serem mais fortemente constitutivas das características pessoais do indivíduo e, portanto, menos aptas a mudarem a curto prazo. Ao contrário, percepções de questões de “momento” seriam mais aptas a serem influenciadas por informações a curto prazo, portanto mais susceptíveis de influência pela mídia. Os partidos políticos brasileiros contam com um histórico de avaliações negativas motivadas pela fragmentação partidária, afetando a inteligibilidade do sistema eleitoral e a capacidade de o eleitor diferenciar os vários partidos (KINZO, 2004; LAMOUNIER & SOUZA, 2006). Isso implica que a avaliação dessa instituição representa uma dimensão de “fundo”, e não de “momento”. De fato, a predominância da tendência da variável socioeconômica de escolaridade – e não de audiência – na variável de interação, indica que nesse tipo de dimensão, características mais “primárias” dos indivíduos são mais importantes do que a informação dos meios de comunicação. DISCUSSÃO Os dados do survey “A Desconfiança dos Cidadãos nas Instituições Democráticas” apontam para uma visão muito crítica dos cidadãos em relação a avaliação das instituições e percepção do problema da corrupção. O principal telejornal do país, o Jornal Nacional da Rede Globo, parece mais refletir, do que influenciar essa visão crítica, já que as poucas variáveis que estão associadas à audiência do JN têm uma associação positiva. Instrução e renda parecem explicar mais essa visão crítica, já que quanto maior as duas, pior a avaliação das instituições e percepção de corrupção. Existe ainda, um efeito de interação da variável de audiência de JN com escolaridade, que afeta a avaliação dos Partidos Políticos. Quanto maior escolaridade, como visto, pior a avaliação. A interação com a taxa JN mostra que a audiência do telejornal, aliada à escolaridade, continua com uma associação negativa com a avaliação dos partidos, demonstrando a maior importância de características mais primárias dos indivíduos. Os resultados presentes nessa pesquisa desafiam hipóteses levantadas por análises de conteúdo (PORTO, 2000; CHAIA E TEIXEIRA, 2001) Em relação a possíveis efeitos nocivos de uma cobertura jornalística pautada por denúncias de corrupção. No contexto muito negativo de mensagens sobre o mundo político, como explicar essas associações positivas? Primeiramente, poderia ser sugerido que o ambiente de negativismo em relação à política e fartas notícias sobre corrupção estavam, de certa forma, tão abundantes em outros setores 15 da mídia e da sociedade que não seria a audiência específica do JN que estaria associada a efeitos negativos. Dito de outro modo, os maiores consumidores de JN não estariam mais expostos a esse tipo de ambiente do que o restante da população. No caso da percepção da corrupção, esse poderia ser o caso. Somente uma variável apresentou associação significante. Restaria saber, entretanto, porque essa associação foi positiva. De outro modo, é possível que questões que a princípio possam parecer mais conjunturais – e por isso mais passíveis de influência a curto prazo – reflitam, na verdade, temas mais profundamente arraigados nas convicções do indivíduos. A crise política de 2005 inicialmente poderia ser entendida como um elemento conjuntural. Assim, fartas notícias sobre corrupção afetariam a percepção que os cidadãos tem do problema. Entretanto, sendo o viés antipolítico um traço mais perene da cultura política brasileira, as notícias presentes no JN sobre esse tema não representariam uma questão conjuntural como se imaginava.10 Por outro lado, no caso da avaliação das instituições, o estudo corrobora achados anteriores de que informações contidas no telejornal podem representar um papel positivo para a democracia, estimulando o apoio político, ao incrementar os níveis de cognição dos indivíduos (ver capítulo V deste livro). De certa forma, os dados amparam uma perspectiva de que o conteúdo do JN centrado no conflito, bem como nos desdobramentos de notícias negativas, é na verdade parte da função da mídia. O papel do jornalismo de vigiar o poder público, na sua função de watchdog, deveria ser mais encarado como dever democrático do que como uma ameaça à cultura cívica (SCHMITT-BECK & VOLTMER, 2007). A população, nesse sentido, saberia muito bem separar esse conteúdo negativo das considerações que faz sobre a política. É possível corroborar essa explicação pela análise de conteúdo estabelecida no período. A agenda do telejornal durante esse tempo foi sobrecarregada de notícias de desvios de políticos, o que poderia ser esperado pela população como parte da função da mídia. A grande maioria dessas notícias, por sua vez, não se caracterizou por um enquadramento estratégico, ou de desvalorização das instituições. A falta desse tipo de “interpretação” negativa nas notícias sobre corrupção pode ser o motivo da ausência de associação entre a audiência do JN e uma pior avaliação das instituições do País. 10 Pode-se traçar um paralelo com o referendo das armas de 2005. Apesar de haver uma forte tendência da mídia a favor do desarmamento, essas informações conjunturais não foram o suficiente para afetar o resultado do pleito. A estratégia da campanha do “não” foi bem sucedida ao apelar para traços e valores que permeiam o imaginário social: a ameaça de quebra de direitos e a descrença no governo e nas instituições (Cf. Veiga & Santos, 2008). 16 Há que se levar em consideração, é claro, a questão da causalidade. Não é possível afirmar que o JN melhore a avaliação que os cidadãos têm de suas instituições e governantes ou a percepção que têm sobre o tema da corrupção. Seria também plausível afirmar que aqueles que mais possuem essas características, acabam sintonizando o telejornal da Rede Globo. O que se pode dizer inequivocamente é que a audiência do Jornal Nacional não piora a percepção do público sobre esses assuntos. Outro aspecto a ser levado em conta é a autonomia do público em relação ao conteúdo apresentado pela mídia. As mensagens veiculadas são interpretadas ativamente, ao invés de absorvidas passivamente pelas pessoas. A característica pessoal de cada indivíduo atua para que ele absorva, de maneira singular, o conteúdo ao qual está exposto. Uma análise de como os indivíduos processam a informação, para o que se fariam necessárias metodologias de recepção, foge ao alcance deste trabalho. Entretanto, os resultados com variáveis de interação, demonstraram como características pessoais do indivíduo, como a escolaridade, podem interagir com a audiência do JN. Também é preciso destacar que o objetivo do capítulo era verificar possíveis associações entre dois fenômenos: o consumo de JN e atitudes dos cidadãos frente a corrupção e a avaliação das instituições. Não sendo seu propósito, portanto, buscar os fenômenos que mais explicam essas atitudes. Assim, não se pretende afirmar que o telejornal é “o” fator a ser levado em consideração para explicar as atitudes do cidadão em relação ao sistema político. Entende-se que essa explicação possui, evidentemente, múltiplas dimensões. O que se perseguiu aqui foi contribuir apenas com um aspecto de tal problema. Os resultados permitem afirmar que abordagens que vêem os meios de comunicação como veículos extremamente influentes, capazes de piorar a percepção do público sobre suas instituições e representantes, não encontram aqui subsídios para o caso brasileiro. 17 ANEXO Variáveis Utilizadas: Audiência de TV “Quantas horas por dia você gasta assistindo TV (Até 1, 2, 3, 4, 5 horas, mais de 5 horas? Ou você não costuma assistir TV?)” Variáveis de Avaliação: Gostaria que você avaliasse a atuação de cada uma das seguintes instituições (ótima, boa, regular, ruim, péssimo): do Congresso Nacional, dos Partidos Políticos, do Governo, do Presidente. Audiência do Jornal Nacional “Com que freqüência você assiste o Jornal Nacional da TV Globo durante a semana? (1, 2, 3, 4, 5 vezes, todos os dias ou você nunca assiste o Jornal Nacional?)” Avaliação dos senadores e deputados Você diria que os senadores e deputados federais que estão atualmente no Congresso estão tendo um desempenho... (ótimo, bom, regular, ruim, péssimo)? Comportamento dos políticos 1 Em relação aos nossos políticos e governantes, o(a) sr.(a) diria que é um comportamento... (de todos, da maioria, da minoria ou de nenhum)... dos políticos e governantes brasileiros: mudar de partido em troca de dinheiro ou cargo. Avaliação da situação política Como você avalia a situação política do Brasil hoje? (Muito boa, Boa, Regular, Ruim ou Muito Ruim) Avaliação do governo Lula Em sua opinião, o presidente Lula está fazendo um governo (Muito Bom, Bom, Regular, Ruim ou Muito Ruim)?. Comportamento dos políticos 2 Em relação aos nossos políticos e governantes, o(a) sr.(a) diria que é um comportamento... (de todos, da maioria, da minoria ou de nenhum)... dos políticos e governantes brasileiros: superfaturar obras públicas e desviar dinheiro para o patrimônio pessoal. Percepção de corrupção no governo Lula E no governo Lula, falando de corrupção e tráfico de influência, as coisas (melhoraram, ficaram iguais, pioraram) ao que era antes? Percepção de corrupção no último ano E no último ano, a corrupção (aumentou muito, aumentou pouco, permaneceu igual, diminuiu pouco ou diminuiu muito)? Comportamento dos políticos 3 Em relação aos nossos políticos e governantes, o(a) sr.(a) diria que é um comportamento... (de todos, da maioria, da minoria ou de nenhum)... dos políticos e governantes brasileiros: usar “caixa 2” em campanhas eleitorais. Avaliação da corrupção Você diria que a corrupção é um problema (muito sério, sério, pouco sério, não é um problema sério)? 18 IX. IMPACTO DA CORRUPÇÃO SOBRE A QUALIDADE DO GOVERNO DEMOCRÁTICO UMBERTO GUARNIER MIGNOZZETTI1 INTRODUÇÃO Um problema recorrente para os países que recentemente (ou seja, nos últimos trinta anos) passaram por processos de redemocratização é a questão da qualidade das instituições que foram produzidas nestes movimentos. Este envolve uma série de condicionantes que estariam ligados a um conceito mais amplo de procedimentos democráticos e, sem dúvida, se relacionam à questão do impacto que soluções que estariam fora do escopo legal e institucional podem gerar no sistema. Este trabalho tem basicamente duas etapas fundamentais. Na primeira etapa, em que faremos uma discussão mais conceitual, vamos tratar do efeito observado da corrupção sobre os diversos condicionantes de uma democracia dita com qualidade2, do ponto de vista teórico. Basicamente, a questão do primado da lei (rule of law, tal como os anglo-saxões definem) seria o conceito-chave no entendimento do problema da qualidade das instituições democráticas. Por fim, abordaremos o problema da corrupção como uma violação no primado da lei e conseqüentemente, um fator desestabilizador do projeto de uma democracia que prometa proporcionar conteúdos qualitativamente superiores, tendo em vista outras soluções institucionais (ditaduras, autoritarismos, totalitarismos, e etc). Na segunda etapa, tomaremos os principais insights da discussão teórica e daremos forma em um modelo empírico que tem como finalidade explicitar as relações entre qualidade da democracia e 1 Agradeço aos colegas do Grupo de Pesquisa sobre Desconfiança nas Instituições Políticas, coordenado pelos Professores Prof. Dr. José Álvaro Moisés e Profª. Dra. Rachel Meneguello. Agradeço também a Rodolpho Bernabel, Erinson Otênio e Flávio Reis pelos valiosos comentários. Agradeço também o apoio financeiro da FAPESP, bolsa nº 09/54293-3. Os problemas remanescentes são de minha responsabilidade. 2 Ou seja, a corrupção muitas vezes pode ‘agilizar’ a consecução de um serviço, nem por isso pode ser considerada de algum modo como uma ação justificável, tanto do ponto de vista ético, quanto do ponto de vista da qualidade das instituições, tal como definiremos a frente. 1 a corrupção. Nosso objetivo é de mostrar como a corrupção impacta os diferentes indicadores de qualidade da democracia. DA QUALIDADE DA DEMOCRACIA Uma definição mais abrangente de democracia, incluindo a avaliação de seu desempenho para além dos marcos procedimentais pode ser encontrada na introdução do texto Assessing the Quality of Democracy, editado por Diamond & Morlino3. Neste trabalho os autores defendem que a definição minimalista (ou procedimental), não seria suficiente para dar conta do conteúdo e da importância da democracia, de uma forma ampla. Para identificar o que seria uma boa democracia devemos então supor que além de sufrágio universal; eleições livres e competitivas; fontes alternativas de informação e; mais de uma escolha política (que são os principais fatores na definição minimalista), deveremos ter também um foco nas liberdades políticas e civis; na igualdade política; na transparência; na legalidade e legitimidade das instituições; e por fim, na responsividade dos governantes perante os cidadãos. Nas palavras dos autores: …we consider a quality of democracy to be one that provides its citizens a high degree of freedom, political equality, and popular control over public policies and policy makers through the legitimate and lawful functioning of stable institutions. A good democracy thus first a broadly legitimated regime that satisfies citizen expectations of governance (quality in terms of result). Second, a good democracy is one in which its citizens, associations, and communities enjoy extensive liberty and political equality (quality in terms of content). Third, in a good democracy the citizens themselves have the sovereign power to evaluate whether the government provides liberty and equality according to the rule of law. Citizens and their organizations and parties participate and compete to hold elected officials accountable for their policies and actions They monitor the efficiency and fairness of the application of the law, the efficacy of government decisions, and responsiveness of elected officials. Governmental institutions also hold one 3 Outro texto interessante, em que aparece o mesmo problema, é o de Doh Chull Shin, Democratization: perspectives from global citizenries de 2005. No texto temos um interessante argumento pelo ‘porque’ de olhar para a qualidade da democracia (citado de Rose): “As Rose and his associates (1998, 8) aptly point out, these institutions constitute not more than ‘the hardware’ of representative democracy. To operate the institutional hardware, a democratic political system requires the ‘software’ that is congruent with the various hardware components”. (Shin, 2005). No texto de Shin, as dimensões são nomeadas de institucionais, substantivas e culturais e o autor desenvolve sua abordagem sobre a democratização de acordo com esta tríplice chave conceitual. 2 another accountable before the law and the constitution (quality in terms of procedure). (DIAMOND E MORLINO, 2000, pp. xi - xii). A questão da qualidade da democracia então envolveria três dimensões fundamentais (que se desdobrariam em oito dimensões mais pontuais): procedimentos, resultados e conteúdos (numa analogia com o controle de qualidade das empresas)4. Quanto a procedimentos teríamos o modelo dahlniano da poliarquia e suas instituições fundamentais. A diferença seria que, conforme coloca Mouffe (1992), não faria sentido se não considerássemos também a dimensão participativa5 e os autores, mesmo sem citar textualmente, seguem a idéia de que é necessária uma democracia onde as instancias participativas vão além da disputa puramente eleitoral. Os conteúdos da democracia seriam outro ponto fundamental, e teriam relação com o que Moisés (2005) chama de conteúdo normativo das instituições. Nessa chave, as instituições não seriam somente algo criado para resolver problemas pontuais, ou corpos que teriam como única utilidade mediar disputas que surgiriam no seio da sociedade sobre qual visão de bem-comum se deveria adotar. Os papéis e alcances das instituições seriam mais amplos. Nas palavras do autor: Isso [a confiança nas instituições] se explica através das regras constitutivas das instituições que remetem a conteúdos éticos e normativos resultantes da disputa dos atores pelo sentido de política. (MOISÉS, 2005). Os conteúdos da democracia seriam então a base de legitimidade (legitimidade esta que está ligada à confiança no arcabouço institucional democrático) sob a qual foram constituídas as representações daquilo que os indivíduos entenderiam como os valores constantes na sociedade, e sua tradução para as instituições políticas por meio da definição dos procedimentos e resultados possíveis, e dos problemas que as determinadas instituições deveriam resolver. Ou seja, as instituições não seriam somente a imagem rousseauniana daquilo que viria para transformar o homem, mas também seriam algo produzido pelos indivíduos de acordo com seus conteúdos normativos6, e isso seria o que as definem como algo intersubjetivo com relação aos indivíduos. 4 Não desenvolvemos exaustivamente mas acreditamos que alguns dos aspectos tratados pelo conceito vale também fora das democracias, embora ganhem mais importância e notoriedade nestes regimes. 5 Se tomarmos autores ligados ao republicanismo, teremos a ênfase em toda uma discussão sobre o fato de que, quando as desigualdades se acentuam, teríamos uma forte deturpação na idéia de cidadania no sentido de que o ‘valor’ de cada individuo seria alterado. 6 Na discussão sobre corrupção aparecem freqüentemente textos em que a população não considera uma determinada prática institucional como corrupta quando na verdade é (segundo a constituição). Pode-se pensar que o enforcement contra uma dessas práticas não seria tão acentuado o quanto esperado, pois não está arraigado no hábito da população. 3 No que diz respeito aos resultados fica evidente que alguma expectativa o funcionamento das instituições gera nos indivíduos (senão, para quê instituições?) e, o resultado destas instituições traduzirá, juntamente com os outros fatores, se a democracia tem ou não um conteúdo qualitativo elevado. Podemos pensar que se a finalidade das instituições é mediar a relação entre indivíduos que estariam interagindo (não como amigos ou parentes, e sim como cidadãos), e, dado que estes naturalmente esperam algum resultado palpável dessa relação, podemos derivar que o desempenho das instituições tem um impacto fundamental no modo como os cidadãos pensam a política. Temos também que a confiança institucional7 é diretamente afetada também pelo modo como os indivíduos avaliam as instituições, e o fato de se as mesmas estariam (ou não) cumprindo o papel que lhes fora atribuído, tanto de modo normativo (por exemplo, as pessoas têm a vida como valor e, no intuito de preservá-la, buscam a constituição de um aparato para cumprir esta finalidade. Daí nasce a polícia. Entretanto, se a polícia viola a integridade física dos indivíduos de modo indiscriminado, eles acabam por perceber que os resultados que esperavam não estaria sendo alcançado) quanto de modo positivo8 (como no fato de que a polícia tem um código a cumprir). Os resultados, portanto, influenciam na qualidade e, bons resultados, naturalmente traduzem uma boa qualidade da democracia, além de aumentar o apoio e fortalecer as instituições. Estes são os pontos principais da discussão. Descendo ao nível mais especifico, eles estariam relacionados com: a) Participação, ou seja, uma boa democracia deveria garantir um alto grau de participação dos indivíduos nas decisões públicas, participação que deveria estar alem do simples ato de votar e ser votado, mas também na feitura de plebiscitos, na existência de uma sociedade civil ativa e fortemente mobilizada e no direito a formas alternativas de ação individuais e coletivas (como Ongs, associações, entre outras); b) Competição, que está relacionada com o sistema eleitoral e partidário. A alternância de poder, o fato de haver eleições limpas, e a equidade na competição, tudo isso contribui para que haja qualidade de acordo com esta dimensão. Outros fatores relevantes são a participação e a existência de mais de um partido sério na arena política; 7 Talvez eu tenha entrado pouco na questão da desconfiança ou confiança institucional, mas esta é fundamental e está relacionada com o conteúdo e os resultados da cooperação dos indivíduos em sociedade. Um alto grau de confiança, tendo em vista que o regime democrático estaria fortemente relacionado com a idéia de consenso e de uma disputa baseada no fairness, acabaria por facilitar e auxiliar um bom desempenho do regime. Por outro lado, uma baixa confiança estaria ligada a um déficit democrático. Ver para isso Norris (1999). 8 Positivo no sentido de legalmente instituído. Outro ponto é que apesar de também podermos considerar que estes códigos também são criação dos indivíduos, e por isso, também estariam embebidos de normatividade. 4 c) Accountability vertical, que significa que os eleitos têm, de algum modo, de prestar contas de suas ações aos cidadãos. Eles têm que justificar suas ações, bem como as fazer plenamente públicas e, de algum modo, agir em correspondência com as expectativas dos indivíduos; d) Accountability horizontal, que significa que existem no próprio governo, ou na sociedade civil, agencias que cuja principal finalidade seja a fiscalização e eventualmente, a punição de ações governamentais impróprias. Este é chamado horizontal porque exercido por órgãos que não necessariamente estariam excluídos do governo, neste sentido, agencias governamentais, como no Brasil, os Tribunais de Contas, o Banco Central (através do COAF, por exemplo), as Procuradorias e o Ministério Público, participariam da lógica de checks and balances proposta por esta dimensão; e) Liberdade, que pode ser classificada, segundo Diamond & Morlino, como civil, política e social. A civil diz respeito a livre expressão, a liberdade de associação e de pensamento, entre outras; a política estaria relacionada ao direito pleno de ação no campo político (votar e ser votado, por exemplo), e liberdade social estaria relacionada à garantia de um patamar mínimo de igualdade que seria indispensável ao bom funcionamento da cidadania em si (podemos pensar que, a cidadania sem um mínimo de conteúdo educacional garantido aos cidadãos, os dificultaria de reivindicar a plenitude de seus direitos e daí, produziria um déficit no conteúdo qualitativo da democracia); f) Igualdade, que seria essencial na qualidade da democracia, pois primeiramente, nas relações democráticas temos que ter em vista que, ou os indivíduos se relacionam de igual para igual ou não temos democracia, daí, a igualdade (em algum nível no mínimo, e no ponto ideal, em um nível mínimo de desigualdades) é uma condição sine qua non para o funcionamento da democracia9; g) Responsividade (responsiveness), que estaria ligada a uma boa resposta, por parte dos governos e instituições às demandas e necessidades dos cidadãos. Ou seja, a responsividade em uma boa democracia, significa que os governantes, bem como as instituições como um todo, estariam de modo efetivo representando e cumprindo com as expectativas que os indivíduos tem sobre seu comportamento, ou seja, as demandas sociais estariam sendo plenamente atendidas; 9 A inclusão deste ponto pode gerar discussões. Acreditamos que igualdade não precisa simplesmente estar relacionada à igualdade de renda, e sim, pode ser algo mais interessante, como equidade, ou mesmo igualdade perante a lei (que se levada a sério é de grande valia). É razoável pensar que o mercado teria também um papel fundamental como alocador de recursos no seio da sociedade. 5 Para finalizar a discussão sobre qualidade da democracia, devemos discutir o primado da lei (rule of law). Este foi deixado para o fim propositalmente (este no caso, é nossa dimensão h), pois está, alem de fortemente ligado a todas as outras sete dimensões listadas acima10, teria uma forte relação (negativa) com a corrupção, que será discutida a frente. Por primado da lei podemos entender basicamente que a lei vale igualmente para todos os indivíduos que se relacionam com ela em situação de igualdade, ou seja, a lei vale para todos os indivíduos e ninguém estaria acima dela. Para O’Donnell (2004) temos que primado da lei significa que os direitos civis, políticos e sociais são igualmente enforçados11 e que, os indivíduos tem seus direitos garantidos em um patamar de igualdade. Isso significa que a lei é consistente em sua aplicação e que os indivíduos não correriam o risco de sofrerem com abusos de poder e, caso haja alguma situação que se caracterizasse como tal, poderiam ser acionados organismos que cuja finalidade seria coibir tal transgressão e que, como característica principal, teriam sucesso em sua empreitada12. Segundo O’Donnell as dimensões principais da rule of law são: o fato da lei ser enforçada para todos igualmente; a supremacia do estado de direito sobre qualquer gap de legalidade que possa ocorrer, o que significa que o Estado tem domínio supremo sobre o território13; a corrupção estar sobre controle efetivo; uma burocracia preparada que haja de acordo com as normas legais; uma força policial profissional e eficiente; cidadãos possuírem efetivo acesso às cortes e à justiça ser limpa; a existência de agencias de accountability horizontal que assegurem o cumprimento da lei pelos diversos órgãos de Estado. Um Estado com essas características muito faz na questão da qualidade da democracia, pois como poderia ser facilmente deduzido, esta dimensão tem uma forte relação teórica com as sete outras já por nós discutidas14. 10 Na verdade, todas as dimensões listadas acima estão inter relacionadas. Isso significa que uma alteração em um dos elementos de uma das dimensões quaisquer refletiria em alterações nas outras, naturalmente, em algumas mais e em outras menos, vai depender do local onde observamos a alteração. Ou seja, se não houver primado da lei, não faz sentido falar em eleições limpas, pois se a lei não é plenamente cumprida, isso afetaria as eleições também. Se, por exemplo, não houver accountability vertical, poderíamos concluir que a responsividade estaria fortemente comprometida, e governantes que não tem a obrigação de responder às demandas sociais decerto não teria que temer em agir até mesmo contra a população e, portanto, não teríamos uma boa democracia. Portanto, a qualidade da democracia seria um fenômeno multidimensional. 11 Enforcement of the law. 12 Vale lembrar que o fato de um crime ser denunciado não significa que ele seja punido, ou até mesmo seja julgado por um tribunal independente. Assim, não só a denuncia, mas todos os passos do processo são indispensáveis para um efetivo primado da lei. 13 Alguns lugares no Rio de Janeiro poderiam ser problematizados quanto a este aspecto. 14 Na verdade todas as dimensões se inter-relacionam entre si. 6 O’Donnell também lista o que ele qualifica como falhas na rule of law. Elas são a existência de leis racistas e sexistas que acabariam por deturpar a própria idéia de primado da lei; as falhas derivadas da aplicação desigual da lei15 que resultariam do uso dos recursos legais de maneira indiscriminada em sem observância das prerrogativas de que a lei deve valer igualmente para todos; as falhas relativas às relações entre as agências de Estado e os cidadãos comuns16; as falhas no acesso ao judiciário e a inexistência de um processo que garanta um mínimo de equidade, que pode gerar uma forte descaracterização do primado da lei, pois os tribunais são as instituições principais na aplicação das garantias legais e; as falhas para complementar as situações onde haja um lack de legislação com o intuito de punir tal ou qual transgressão, ou mesmo, de caracterizar as transgressões que venham a aparecer. Em uma palavra, toda nossa discussão sobre a qualidade da democracia tem o objetivo de nos mostrar que, os conteúdos efetivos e que estão sendo observados na pratica das instituições, tem uma grande valia no trato do problema. Não adianta termos instituições que funcionem formalmente de modo democrático para que sejamos uma democracia. Devemos ter também uma conjunção de conteúdos e de resultados, que associados a procedimentos democráticos nos permita não só uma democracia eleitoral, mas sim, um sistema onde o cidadão seja suficientemente empoderado e participe das decisões não somente como simples apertador de botões na urna eletrônica, mas como um indivíduo consciente de que suas escolhas afetam os resultados finais do processo e por isso, não podem ser negligenciadas. As instituições devem representar (e corroborar) de algum modo, estas aspirações. Uma ênfase grande é dada a definições que trabalham tão somente com as formas e as formalidades democráticas, entretanto, em nosso argumento, elas figuram como um pé no tripé (procedimentos, conteúdos e resultados). Não que estejamos negligenciando sua importância, mas sim, estamos tentando buscar formas de enriquecer o conteúdo daquilo que entendemos por democracia. A CORRUPÇÃO E A QUALIDADE DA DEMOCRACIA No caso da corrupção temos uma vertente do que seria uma transgressão na idéia de rule of law. A corrupção vem sendo definida amplamente na literatura como uma apropriação privada de 15 O’Donnell nesta parte cita uma frase interessante que fora proferida segundo ele pelo Presidente Vargas: “Para meus amigos, tudo; para meus inimigos, a lei”. (O’Donnell, 2004, p. 11). 16 Estas dizem respeito aos procedimentos adotados por essas agencias, que devem sempre tratar os indivíduos igualmente e de modo eqüitativo. Quando isso não acontece, o rule of law falha neste sentido. 7 algum bem público. Robert Williams (1999) nos sugere basicamente uma contextualização da evolução do conceito de corrupção com relação aos diferentes momentos das ciências sociais. O autor nos mostra que, em tratamentos anteriores, quando o conceito não era definido rigorosamente pela academia, a corrupção era entendida menos de forma positivada e mais de forma moral, em termos de puramente um ato que fosse valorativamente condenável, pressupondo que a estrutura legal fosse suficiente neutra para fazer com que o ato fosse então punido. Posteriormente, entre os anos sessenta e oitenta, a corrupção foi definida como uso de algum bem publico17 tendo-se em vista algum benefício privado. Esta concepção, que teria sido estabelecida por Joseph S. Nye em seu artigo intitulado ‘Corruption: a cost-benefit analysis’ de 1967. Esta concepção, em geral, é utilizada até hoje, com poucas variações e, a nosso ver, abordar corrupção como uma violação do de algum bem publico com vistas a algum beneficio privado, parece ser bem razoável. O problema principal é que a corrupção é socialmente definida e, portanto, o estatuto jurídicolegal que define o bem-publico em tal ou qual direção e sua apropriação em tal outra ou qual outra direção, pode se chocar diretamente com a percepção do que os indivíduos tomam como sendo a corrupção. Deste modo, não está evidente para muitos indivíduos, conforme mostram Peters & Welch (1978), Atkinson & Mancuso (1985) e Jackson (1994), (apud SPECK, 2000, P. 16-17), que algumas práticas que são corrupção, segundo as leis destes países, sejam mesmo consideradas como tal. Os dados mostram que, enquanto no Canadá (estudado por Atkinson e Mancuso) 52.5% da população acredita que se um funcionário publico usasse sua influencia para conseguir uma vaga em uma faculdade para um amigo ou parente seu fosse um ato de corrupção, nos EUA e na Austrália, respectivamente, 23.7% e 21.5%, qualificavam o mesmo ato como corrupto. O que sugere que apesar das definições formais, devemos ter respaldo na percepção dos cidadãos para tratarmos de corrupção18. A questão que se coloca no final é então, como definir o que é corrupção? De modo prático, vamos trabalhar com a definição de Nye, de que corrupção é a situação em que o bem publico é apropriado indevidamente em beneficio privado. Devemos ter em vista, entretanto, o fato de que a 17 “The dominant difinition of corruption from the 1960s to the 1980s was a legally derived approach – the public office definition. This built on a crucial distinction between the public and the private reams, which gradually evolved as arbitrary, autocratic and absolutist government in Europe gave way to more limited, representative and accountable forms”. Williams (1999, p. 505). 18 Podemos pensar que, se na democracia os indivíduos têm participação na composição do poder, este poder, caso represente linearmente os indivíduos, ou seja, seus interesses sejam iguais, nos corpos políticos e na sociedade, não há nenhum incentivo para que os políticos percebam portanto, atos que nós, analistas, classificamos como corruptos. Nas palavras de Williams: “...corruption is socially defined: it is what the public in a country think it is” (Williams, 1999, p. 506). 8 definição de bem publico em sua relação com os privados é política e, portanto, qualquer conceito mágico que nos aponte diretamente para uma barreira precisa entre os dois pode acabar por ser reducionista a ponto de não dar conta da profundidade do fenômeno. Assim, tomamos a percepção sobre o tema como algo fundamental em sua definição, por pressupormos que os indivíduos em sociedade preenchem os conteúdos dos conceitos necessários para definirmos um ato de corrupção. Uma das principais resultados da corrupção, que impacta negativamente sobre a qualidade da democracia, é devido a ela afetar o primado da lei, um dos principais pilares de sustentação da democracia. Caso a pratica do suborno seja recorrente, por exemplo, teremos que, em primeiro lugar, o primado da lei foi subvertido pelo fato de que este é um procedimento que nada tem de equânime e justo19. Seligson (2002) nos mostra que os economistas andaram na frente dos cientistas políticos neste ponto. Eles esclareceram mais rapidamente o fato de que a corrupção tem um impacto profundo sobre os investimentos do Estado e, portanto, sobre a qualidade do gasto publico20. Na ciência política, o conceito oscilou entre algo como uma ‘graxa’, que teria como principal objetivo desemperrar as instituições, para, algo que mina a legitimidade democrática (ou seja, para continuar a metáfora, a corrupção seria a ‘areia’ nas engrenagens democráticas). Acreditamos que uma demonstração clara de que a corrupção afeta negativamente no primado da lei fornece uma chave interpretativa razoável para entendermos quanto a corrupção impacta na produção de uma democracia de baixa qualidade (ou mesmo na produção de nãodemocracias). Segundo Seligson (2002), a corrupção não afeta somente o desempenho do regime. Ela também prejudica as relações interpessoais, pois na explicação do autor, os indivíduos que foram expostos a situações em que tiveram que recorrer a alguma pratica de suborno são mais suscetíveis a uma baixa confiança interpessoal, e isto impacta na confiança política (INGLEHART, 1990; PUTNAM, 1993). Alem disso, podemos constatar que a corrupção tem um grande impacto na legitimidade do regime, pois o uso de dinheiro ou qualquer outro meio que seja publico para algum fim privado subverte a própria idéia da finalidade de uma instituição pública, que é prestar um serviço pautado pela equidade e justeza em suas ações. 19 Ou seja, não existe lei que diz que uma instituição deve pagar propina, e daí, ela subverte a legislação e, caso não seja punida, perverte todo o sistema, pois, em todos os sistemas temos clausulas que prevêem a punição de corruptos e, em especial, devem estas ocorrer na democracia, pois este é um regime pautado no assentimento dos indivíduos com relação às regras do jogo. 20 “Economists have gathered some strong evidence on the negative impact of corruption on investment and growth in developing nations and this article does not challenge that evidence. Political scientists, however, have been far more anecdotal in their claims regarding the costs or benefits of corruption in those nations. (…) Corruption may not only bad for the economy it may be bad for the polity as well”. (Seligson, 2002). 9 Em segundo lugar, este procedimento afeta a igualdade, pois nem todos os indivíduos têm como pagar subornos e daí estaríamos segregando os indivíduos em duas classes, os da alta classe, que são privilegiados pelo bem público, pois teriam como o comprar, e os da baixa classe, que se já sofrem com a baixa renda, ainda seriam afetados também pela impossibilidade de usufruir do bem público. Em terceiro lugar, o accountability estaria afetado, pois as agências, já dado que a corrupção seja algo corrente, não teriam efetividade em seu funcionamento e, portanto, a qualidade do regime estaria fortemente abalada. Em quarto lugar, podemos pensar que a competição estaria limitada, pois alguns grupos poderiam usar a corrupção como uma fonte de vantagem comparativa, com relação a outros e então, a equidade na competição seria violada. Decerto estes passos não são tão lineares e claros quanto o exposto, e freqüentemente a corrupção tem mais efeitos ruins e mais difusos ainda sobre a qualidade do regime do que bons e, por isso, poderíamos estender a lista ainda mais para liberdades, participação, entre outras instituições que deveriam funcionar bem em um regime de qualidade elevada. Quanto a outro grupo de efeitos que refletiriam na qualidade da democracia, temos o fato de que a corrupção afetaria a confiança dos indivíduos e o apoio dos cidadãos ao regime, ou seja, é quase intuitivo aceitarmos que, se uma pessoa pagou um suborno a algum órgão publico, ela provavelmente não avaliará bem o desempenho deste órgão, mesmo que tenha saído satisfeita com a rapidez com o serviço após o pagamento21. Podemos então concluir que a corrupção afeta o apoio dos indivíduos ao regime. Podemos pensar que um regime em que haja um alto grau de corrupção, haja, por conseqüência, um alto grau de desconfiança política por parte dos cidadãos; uma grande insatisfação com o desempenho do regime e; um forte cinismo por parte dos indivíduos com relação às instituições políticas. Para concluir, a corrupção impacta na rule of law, que impacta na qualidade da democracia que por sua vez, impacta na qualidade da cidadania. Não de maneira causal direta, mas de modo multi-causal, ou seja, a corrupção age no primado da lei que tem efeitos na qualidade da democracia e por sua vez um impacto no primado da lei prejudica ainda mais a qualidade da democracia e tem como efeito um aumento na apatia dos indivíduos com relação ao regime. 21 Isso é uma hipótese quase que evidente, mas que valeria a pena ver se procede estatisticamente. Aqui estamos tomando como algo muito plausível de se acontecer. 10 O MODELO EMPÍRICO Dito o anterior, cumpre agora formularmos como deveremos proceder nos testes sobre a relação entre a Qualidade da Democracia e a prática da Corrupção. Usamos na etapa empírica o banco do projeto Quality of Governement da Universidade de Gothenburg. Montamos um painel que vai de 1996 até 2005 para 154 países. Resolvermos excluir todos os países em que as observações faltantes de algumas variáveis se apresentassem para toda a série de tempo22. Como o número observações faltantes é elevado, o painel é desbalanceado23. A variável dependente usada no trabalho tem relação com as dimensões usamos para descrever uma boa democracia (ou, de modo geral, governo). Usamos o Índice de Qualidade do Governo, do International Country Risk Guide (ver http://www.icrgonline.com). Este índice, que tem na corrupção um de seus componentes, parece bem consistente no objetivo de medir um bom ou mau desempenho de governo. O interessante para a nossa análise é que não tem por suposto que democracias são ‘melhores’ que outros regimes, o que acaba por robustecer os resultados caso demonstremos que a corrupção é mais incisiva em regimes democráticos. Passando às variáveis independentes, temos uma primeira variável de controle que diz respeito à classificação de um país como democrático ou não. Utilizamos a variável de Cheibub & Gandhi, assumindo dois valores (dummy), ‘Democrático’ e ‘Outros’24. Outra categórica diz respeito ao status do país no Índice de Liberdades da Freedom House25. Esta variável pode assumir três valores: Livre (F), Parcialmente Livre (PF) e não-Livre (NF). Estas categóricas têm como objetivo controlar o segundo grupamento de regressões, em que apresentamos as diferenças do impacto da corrupção e outras variáveis. As independentes de corrupção serão duas, o Índice de Percepção da Corrupção (IPC) da Transparência Internacional (ver http://www.transparency.org/) e o Índice de Rule of Law (RL) do Banco Mundial. Operacionalmente, existe um grande problema na mensuração da corrupção: ou estamos tratando de percepções, que estão sujeitas a cognição dos indivíduos, ou seja, grau de escolaridade, atenção que dá a política, experiência pregressa com atos relacionados a prática, entre 22 No caso, usamos como critério haver valores faltantes em todo o período na variável ‘ti_cpi’ (Índice de Percepção da Corrupção da TI). O banco pode ser solicitado pelo e-mail: [email protected]. 23 Poderia ser argumentado possível viés de seleção para os casos, entretanto, tentamos preservar o máximo que pudemos os países. Ainda assim, poderíamos ter cortado ainda mais os dados pelo fato de que este paper versa somente sobre os países democráticos. Veremos se os resultados são robustos também para situações intra-regimes. 24 Ver http://ksghome.harvard.edu/~pnorris/Data/Data.htm. 25 Ver site Freedom House (www.freedomhouse.org). Eles explicam bem detalhadamente a metodologia em que a pesquisa é conduzida. 11 outros; ou estamos tratando de uma medida concreta para o problema. Por exemplo, se tomarmos quanto de corrupção foi descoberto, podemos ter uma medida para um dado ano. Entretanto, o problema é que estaríamos tomando como corrupção aquilo que foi descoberto e segundo este critério, todo país que combatesse a corrupção estaria entre os mais corruptos, o que não parece muito razoável. Assim, resolvermos esta questão usando o IPC e o Índice de RL. Acreditamos em sua confiabilidade pelo fato de que na montagem dos índices, não somente são utilizados surveys, mas também muitos outros meios de acessar os dados como, por exemplo, relatórios de consultorias internacionais da área financeira, entre outros26. Alguém poderia nos perguntar por que utilizar o Índice de RL para mensurar corrupção. Respondemos que os testes de correlação mostram que estas variáveis estão fortemente correlacionadas (0.957), o que nos permite cambia-las sem nenhuma perda substancial nos dados. As outras variáveis usadas são o índice de Participação de Vanhagem (IPart), o índice de Competição de Vanhagem (IComp). Estes índices medem a parte mais procedimental da democracia (ver o Indice de Liberdade Economica (ILE) da Heritage Foundation, que combina dez elementos de liberdade econômica em sua composição (ver http://www.heritage.org/index/). Do Banco Mundial usamos os Indice de Accountability (Acc), de Estabilidade Política (EPol), de Efetividade do Governo (EfGov), além do de Rule of Law (ver http://www.worldbank.org/wbi/governance/pubs/govmatters4sra.html). Outro ponto que vale frisar é que todas as variáveis numéricas variam de 0 a 10. Assim, basta sabermos que podemos acrescentar em até 10 vezes o valor do coeficiente estimado para termos uma idéia de sua magnitude. Por fim, estimaremos os parâmetros usando modelos de efeitos fixos para os períodos estudados. Nosso primeiro modelo, em que estudaremos as relações entre qualidade do governo e participação política, competição política, liberdades econômicas e corrupção, será especificado do seguinte modo27: (1.1) QGit = αt + β1IPartit + β2ICompit + β3ILEit + β4SFH(NF)* IPCit + β5SFH(PF)* IPCit + β6SFH(F)* IPCit + εit 26 Testando a validade das variáveis, tomamos o banco cross-section do projeto QOG e cruzamos variáveis sobre, por exemplo, pagamento de propina (ver Treisman, 2007) com o Índice de Percepção e o de Controle da Corrupção. A correlação é altíssima. Ver resultado no Anexo. 27 Para a análise descritiva das variáveis ver o Anexo. 12 Onde αt são os efeitos fixos para o tempo28. Pressupomos que β1 seja positivo pois uma maior participação política implica em melhoria na qualidade do governo. Para β2 esperamos também um sinal positivo pois uma maior competitividade política, por suposto, aumentaria a qualidade do governo (seleção política mais competitiva se reverteria em seleção de qualidade mais elevada). Para β3 devemos ter também um sinal positivo pois quanto maior as liberdades econômicas dos agentes, maior a qualidade da gestão governamental e, ainda que outras liberdades sejam importantes, ter liberdade econômica, em um país não-livre, já é um passo na direção de ampliação das liberdades29. Para β4, β5 e β6 esperamos que o sinal seja positivo e acreditamos que a corrupção pesa mais quanto maiores forem as liberdades no país. O primeiro modelo da equação estimará os coeficientes para todos os países, o segundo, somente para os classificados como democráticos por Cheibub e Gandhi (ver http://ksghome.harvard.edu/ ~pnorris/Data/Data.htm). Para os democráticos temos as mesmas expectativas quanto aos sinais, pois acreditamos que pouco se alteram as relações quando tratamos só de países democráticos. Esperamos que o peso da participação e da competição se tornem mais efetivos pelo fato de que estes são componentes mais propriamente democráticos. O modelo estimado está exposto na Tabela 1: 28 Ver o Anexo para consultar os resultados para o tempo. É certo que podemos discutir muito sobre este ponto. Entretanto, alguma liberdade econômica já implica em um maior acesso à informação que nenhuma liberdade. 29 13 Tabela 1. Modelo 1.1 Todos os Países Comp β 0,005 EP 0,020 Pr(>|t|) 0,793 Part 0,134 0,021 0,000 ILE 0,145 0,041 0,000 SFH(NF)*IPC 0,672 0,050 0,000 SFH(PF)*IPC 0,607 0,033 0,000 SFH(F)*IPC 0,686 0,023 0,000 R² = 0,855; α = 0,994; IC = 7,431; n=117; T=1-8; N=65830 Democráticos Comp β 0,166 EP 0,035 Pr(>|t|) 0,002 Part 0,174 0,035 0,000 ILE 0,036 0,041 0,374 SFH(NF)*IPC 0,392 0,239 0,102 SFH(PF)*IPC 0,594 0,062 0,000 SFH(F)*IPC 0,785 0,033 0,000 R² = 0,856; α = -0,784; IC = 20,038; n=84; T=1-9; N=506 Fonte: Quality Of Government - Univ. de Gothenburg Ou seja, obtivemos todos os coeficientes conforme esperado. As discrepâncias foram, primeiramente no modelo com todos os países, que a competição se mostrou não-significativa a 0,05. Acreditamos que isso porque competição política é eminentemente algo democrático (que é exatamente o que o modelo só com os democráticos demonstra), ou seja, ela influencia na qualidade de governos democráticos. As liberdades econômicas se mostraram significativas no modelo com todos os países e não-significativas em países democráticos. Acreditamos que o motivo deste resultado é porque temos uma diferença essencial em autoritarismos (e pós-) e totalitarismo (e pós-) e, alguma liberdade é evidentemente melhor que nenhuma liberdade, o que significa que liberdades no campo econômico (em geral autoritários) pressionam os governos a gerirem melhor seus recursos. Outra discrepância fora, no modelo com todos os países, as magnitudes para os termos de interação entre os Status no índice da Freedom House e o Índice de Percepção das Corrupções. 30 R² = R-Quadrado Múltiplo; α = intercepto de efeito fixo de tempo; IC = índice de condicionamento da matriz de variânciacovariância; n = numero de países que entraram no modelo; T = períodos que entraram no modelo; N = total de observações. Devido ao elevado numero de observações faltantes entre os não-democráticos, os modelos discrepam levemente. Não calculamos o R² Ajustado, mas devido ao elevado numero de observações, acreditamos que ele estará próximo ao R² Múltiplo. 14 Pressupomos que o impacto da corrupção cresceria conforme caminhássemos positivamente (mais liberdade) nas categorias do SFH. No entanto, parece que tem um peso menor em países parcialmente livres. Na regressão só com países democráticos, o crescimento é evidente na direção que pressupomos. Nosso segundo modelo utiliza as variáveis do Banco Mundial para tratarmos da influência da corrupção sobre a qualidade do governo31. Estudaremos o efeito do accountability, da estabilidade política, da efetividade do governo e do Rule of Law na qualidade do governo. A especificação do modelo será a seguinte: (1.2) QGit = αt + β1Accit + β2EPolit + β3EfGovit + β4SFH(NF)*RLit + β5SFH(PF)*RLit + β6SFH(F)*RLit + εit Acreditamos para este modelo que β1 será positivo porque um governo com maior accountability tem qualidade elevada, pelo fato de ter responder ao público, e no caso do accountability horizontal, também às agencias do próprio governo. Isso gera respostas de mais qualidade na medida em que o público tem influência efetiva nos resultados do governo. Para β2 esperamos também que seja positivo, pois um país mais estável politicamente pode implementar um governo de maior qualidade que um país onde a política estaria mais sujeita a volatilidade. Para β3 esperamos também um sinal positivo pois um governo mais eficiente é um governo de qualidade superior. Esperamos ainda que este coeficiente tenha um peso relativamente grande na qualidade do governo. Para β4, β5 e β6, interação entre Rule of Law – que estamos neste modelo usando como proxy de corrupção (a correlação entre esta variável e o Índice de Percepção da Corrupção é de 0.9132) – e o Status do Índice da Freedom House esperamos uma relação positiva e crescente na medida que caminhamos de menos livre para mais livre. O αt continua sendo o intercepto para o modelo de efeitos fixos. Os valores estimados estão na Tabela 2: 31 A idéia de usarmos variáveis da mesma fonte seria devida ao fato de que elas apresentariam homogeneidade quanto aos processos de coleta e tratamento (ou pelo menos é isso que estamos supondo). 32 Ver Anexo. 15 Tabela 2. Modelo 1.2 Todos Países β EP Pr(>|t|) Acc - 0,045 0,046 0,320 EPol 0,080 0,035 0,024 EfGov 0,368 0,061 0,000 SFH(NF)*RL 0,462 0,066 0,000 SFH(PF)*RL 0,484 0,063 0,000 SFH(F)*RL 0,562 0,064 0,000 R² = 0,844; α = 0,301; IC = 16,308; n=130; T=3-5; N=630 Democráticos β EP Pr(>|t|) Acc 0,295 0,075 0,090 EPol - 0,097 0,051 0,061 EfGov 0,060 0,088 0,496 SFH(NF)*RL 1,607 0,549 0,003 SFH(PF)*RL 0,918 0,099 0,000 SFH(F)*RL 0,796 0,087 0,000 R² = 0,854; α = -0.476; IC = 50,415; n=85; T=2-6; N=404 Fonte: Quality Of Government - Universidade de Gothenburg Neste modelo temos alguns resultados interessantes. O primeiro é que Accountability é algo propriamente democrático, podemos notar isso pelo fato de que no modelo com todos os países, além da variável não ser significativa ela ainda ficou com sinal invertido; enquanto no modelo só com os democráticos, a variável apresentou sinal coerente e, na medida em que aumentamos uma unidade nela, melhoramos em 0.295, em média, o desempenho qualitativo do governo. Quanto à estabilidade política, vemos que seu peso efetivo se aplica somente no modelo com todos os países. Entre os democráticos, não observamos este mesmo resultado33. O modelo com todos os países apresentou coerência nas outras variáveis e conforme esperávamos, na medida em que caminhamos de NF para F no Status do Índice de Liberdades da Freedom House, aumenta a importância do Rule of Law na qualidade do Governo. O resultado curioso é que se controlarmos para os democráticos, nem estabilidade política nem efetividade do governo são as dimensões que pesam fundamentalmente. O essencial mesmo é o Rule of Law. Na medida em que caminhamos positivamente no SFH (mais 33 Provavelmente pelo fato de as variáveis estarem muito correlacionadas (o IC do modelo só para os democráticos foi de mais de 50), pode ter acontecido de uma variável ter pesado efetivamente na estimação da outra. Resolvemos não corrigir a multicolinearidade mas, admitimos que ela pode ter afetado este modelo quando controlamos para países democráticos. 16 liberdade) o peso da relação entre SFH e RL se inverte e para um democrático que fora classificado como não livre no SFH34, acaba sendo ainda mais essencial um bom desempenho no Índice de Rule of Law, para que possamos considerá-lo como um governo de qualidade. Acreditamos que estes resultados mostram, de maneira consistente, como a corrupção afeta diretamente o desempenho dos governos. Politicamente, esperamos de um país mais corrupto um desempenho qualitativo bem mais baixo que de um país onde estes problemas tenham sido tratados. O problema se agrava ainda mais, quanto menos livre for o país. Se controlarmos só os países democráticos, quanto menos livre o país, mais problema ele apresenta no que tange á corrupção (ou seja, nas ‘democraduras’ a corrupção se mostra como um fator consistente de piora qualitativa). Nosso modelo mostra que na medida em que controlamos os resultados para países democráticos35, eles acabam por tornarem-se ainda mais robustos e consistentes, demonstrando claramente que o problema da corrupção não é somente um problema para regimes autoritários, mas sim, um problema essencial para os regimes democráticos ao redor do mundo. 34 Temos nesta situação a Russia, a Costa do Marfim e o Kenya. Contando ainda que o índice de democracia de Cheibub e Gandhi apresenta uma série de problemas de classificação que aparecem na verdade em todos os índices que tentam criar uma espécie de ‘linha de corte’ para definir o que é e o que não é uma democracia. 35 17 Anexo Matriz de correlação entre medidas de Corrupção IPC Matriz de Correlação R p-valor N Bribery to Government Officials Common to pay irregular additional payments Have paid a bribe in any from Controle Corrupção Banco Mundial 1,000 -0,808 0,775 -0,641 0,961 101 0,000 44 0,000 74 0,000 61 0,000 101 -0,642 0,000 35 0,448 0,010 32 -0,803 0,000 49 IPC Bribery to R Government p-valor Officials N Common to R pay p-valor irregular additional N payments -0,808 0,000 44 1,000 0,775 0,000 -0,642 0,000 1,000 -0,549 0,000 0,701 0,000 74 35 79 48 79 Have paid a bribe in any from -0,641 0,000 61 0,448 0,010 32 -0,549 0,000 48 1,000 -0,656 0,000 66 R p-valor N 49 Controle R 0,961 -0,803 0,701 Corrupção p-valor 0,000 0,000 0,000 Banco Mundial N 101 49 79 Fonte: Quality Of Government - Univ. de Gothenburg (15Mai2008) 66 -0,656 0,000 66 Matriz de Correlação entre Rule of Law e as medidas de Corrupção Matriz de Correlação Control Corruption Banco Mundial IPC R IPC DF p-valor Control Corruption Banco Mundial Rule of Law Banco Mundial R DF Rule of Law Banco Mundial 0,973 0,937 745 745 0,000 0,000 0,973 0,957 745 1059 p-valor 0,000 0,000 R 0,937 0,957 745 1059 0,000 0,000 DF p-valor Fonte: Quality Of Government - Univ. de Gothenburg (15Mai2008) 18 1,000 188 Scatterplot-matrix para os dados do primeiro modelo Variaveis utilizadas no Modelo 1.1 -1.5 0.0 1.0 2.0 3.0 1 2 -1 0 1 2 1 2 -1 icrg_qog -1 ti_cpi -2 0 1 van_part 30 50 70 90 -1.5 0.0 van_comp 3.0 hf_efiscore chga_regime -1 0 1 2 -2 0 1 30 50 70 90 19 1.0 1.4 1.8 1.0 1.4 1.8 1.0 2.0 fh_status Scatterplot-matrix para os dados do segundo modelo Variaveis utilizadas no Modelo 1.2 0 1 -2 0 2 1.0 2.0 3.0 0 1 2 -2 -2 icrg_qog -2 0 1 w bgi_vae 2 -3 -1 1 w bgi_pse 2 -2 0 w bgi_gee 3.0 -2 0 w bgi_rle chga_regime -2 0 1 2 -3 -1 1 -2 0 1 2 1.0 1.4 1.8 1.0 2.0 fh_status 1.0 1.4 1.8 Estatísticas descritivas das varáveis quantitativas usadas nos modelos Variável Descrição Min 1Q icrg_qog Escala Qualidade Governo 0,00 3,70 ti_cpi Escala de Percepção da Corrupção 0,00 2,39 van_comp Indice de Competição Política 0,00 2,96 van_part Indice de Participação Política 0,00 3,20 hf_efiscore Escala de Liberdade Economica 0,00 5,03 wbgi_vae Escala de Accountability 0,00 3,40 wbgi_pse Escala de Estabilidade Política 0,00 4,91 wbgi_gee Escala de Efetividade do Governo 0,00 3,32 Escala de Rule of Law wbgi_rle 0,00 3,34 Fonte: Quality Of Government - Univ. de Gothenburg (15Mai2008) 20 Md 5,00 3,44 6,60 5,46 6,01 5,37 6,45 4,26 4,47 Méd 5,24 4,32 5,58 5,05 5,93 5,44 6,23 4,80 4,98 3Q 6,72 5,92 8,24 7,01 6,97 7,74 7,83 6,13 6,55 Max 10,00 10,00 10,00 10,00 10,00 10,00 10,00 10,00 10,00 Miss 531 554 154 154 104 462 468 468 464 Coeficientes de Efeitos Fixos Temporais Efeitos Fixos Temporais - Modelo 1.1 Todos os Países Estimado EP Pr(>|t|) 1996 0,945 0,263 0,000 1997 0,537 0,266 0,043 1998 0,239 0,257 0,353 1999 0,129 0,256 0,616 2000 0,034 0,257 0,893 2001 -0,081 0,255 0,750 2002 -0,499 0,256 0,051 2003 -0,494 0,254 0,052 Democráticos Estimado EP Pr(>|t|) 1996 -0,044 0,331 0,896 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 -0,010 0,169 0,077 0,106 -0,074 -0,171 -0,166 0,046 0,076 0,329 0,332 0,325 0,324 0,327 0,321 0,330 0,324 0,324 Efeitos Fixos Temporais - Modelo 1.2 Democráticos Estimado EP Pr(>|t|) 1996 -0,090 0,305 0,768 1997 -0,083 0,308 0,789 1998 0,081 0,298 0,786 1999 0,070 0,306 0,818 2000 -0,094 0,306 0,758 2001 -0,098 0,296 0,740 2002 0,028 0,295 0,924 2003 0,017 0,326 0,959 2004 0,029 0,307 0,924 2005 0,269 0,301 0,371 Fonte: Quality of Gover. - Univ. de Gothenburg; Nota: O algoritmo não conseguiu extrair os EF para todos os países. 0,975 0,611 0,814 0,744 0,822 0,595 0,615 0,888 0,810 Fonte: Quality Of Govern. - Univ. de Gothenburg Os efeitos fixos não conseguiram ser obtidos, em alguns casos para todos os anos e em outros, como é o caso do Modelo (1.2) para todos os países, não conseguiram ser obtidos. O motivo é que os valores faltantes não permitiram tal extração de coeficientes. Utilizamos para a análise o pacote plm do R. Apesar de pouco eficiente em termos computacionais, o pacote se mostrou bem consistente em suas extrações. Vale ressaltar que alguns problemas podem ser identificados pelo fato dos modelos controlados para os democráticos reduzirem o numero de casos e com isso, permitirem alguma multicolinearidade. Outro problema que pode ser levantado é o do viés de seleção. Acreditamos que, apesar desta possibilidade, fizemos o possível para manter o máximo de países no painel. 21 X. A AVALIAÇÃO DO JUDICIÁRIO E O ACESSO À CIDADANIA NA VISÃO DOS BRASILEIROS FABÍOLA BRIGANTE DEL PORTO INTRODUÇÃO Este capítulo explora as visões dos cidadãos brasileiros sobre seus graus de acesso aos direitos de cidadania e aos principais mecanismos institucionais de sua defesa, destacando a relação de (des)confiança dos cidadãos com o poder judiciário. Tal discussão se insere no cenário de consolidação da democracia eleitoral e representativa brasileira que, não obstante, é acompanhado por uma ampla desconfiança dos cidadãos em suas instituições (MOISÉS, 1995, 2005a). Com relação ao poder judiciário, desde o advento do regime democrático recente, diversas pesquisas têm revelado o pouco conhecimento dos direitos civis e o baixo índice de procura pelos tribunais de justiça para a solução de conflitos pela população brasileira. Quando indagados sobre os motivos pelos quais não procuram aqueles tribunais, os cidadãos recorrentemente questionam sua responsividade, imparcialidade e igualdade de tratamento, assim como sua eficiência (CARVALHO, 2002; PANDOLFI et al, 1999). Trata-se de cenário preocupante, que pode implicar não apenas no distanciamento, pela população, das instituições de justiça, mas comprometer a própria crença na legitimidade do regime democrático, tendo em vista que, nesse regime, o poder judiciário é o órgão constitucionalmente autorizado para a garantia do primado da lei (DIAMOND e MORLINO, 2004). Da parte dos cidadãos, o acesso à justiça simboliza o acesso aos direitos de cidadania e, nesse sentido, “...é direito fundamental, sem o qual os demais direitos não possuem garantia de efetividade” (RODRIGUES, 1994, p.127). Essa garantia depende, por sua vez, dos direitos de ação e de processo, direitos que caem no vazio sem o acesso aos recursos materiais e ao conhecimento necessários para colocá-los em prática. Ao mesmo tempo, o recurso à justiça pelos cidadãos é função do seu desempenho e de seu funcionamento. É neles que se baseia a relação de confiança dos cidadãos com o poder judiciário: ou seja, em sua capacidade de demonstrar aos indivíduos que opera com base na 1 regularidade, eficiência, representatividade, accountability, universalismo, imparcialidade, justeza e na probidade e que, assim, assegura a vigência dos direitos que definem a cidadania (MOISÉS, 2005b, OFFE, 1999; SZTOMPKA, 1996). A percepção pelos cidadãos de que o poder judiciário age em consonância com sua missão constitucional democrática é, nesse cenário, fundamental para a consolidação do regime democrático. Nesse sentido, ao enfocar a relação dos cidadãos com o poder judiciário, o presente capítulo procura possíveis associações entre os fenômenos da cidadania - entendida sobretudo como acesso a direitos - e da confiança política (conforme propôs Moisés, 2005b). Com base no em survey nacional A desconfiança dos cidadãos nas instituições democráticas realizado em junho de 2006, trata-se, por um lado, de explicar a origem e a natureza da (des)confiança corrente dos cidadãos nas instituições brasileiras de justiça e, por outro lado, verificar se essa (des)confiança impacta suas percepções dos direitos de cidadania e sua efetividade. Para tanto, este capítulo organiza-se da seguinte forma: inicialmente, apresenta o cenário brasileiro para o período democrático pós-1985, destacando a percepção sobre as instituições jurídicas no survey de 2006; em seguida, apresenta os aspectos teóricos subjacentes a esta análise e as hipóteses deles decorrentes, os dados e modelos analíticos utilizados; e, finalmente, discute preliminarmente os resultados à luz da reflexão inicial sobre as interconexões entre a percepção sobre o funcionamento da justiça, por um lado, e a efetividade do exercício da cidadania segundo os brasileiros. Percepção das instituições de justiça e dos direitos de cidadania pelos cidadãos brasileiros Carvalho (2002) descreve o processo de reconstituição dos direitos civis no cenário democrático brasileiro pós-1985 e sua consolidação com a Constituição promulgada em 1988. Além de restaurar as liberdades de expressão, de imprensa e de organização, essa carta constitucional criou o habeas data e o mandado de injunção, definiu o racismo como crime inafiançável e imprescritível e a tortura como crime inafiançável e não anistiável. Na sequência, em 1990, foi promulgada a “Lei de Defesa do Consumidor”; em 1995, foram criados os “Juizados Especiais de Pequenas Causas Cíveis e Criminais” e, em 1996, foi adotado o Programa Nacional de Direitos Humanos. Como relata o autor, apesar dessas inovações, os direitos civis, suas extensões e garantias não se mostram muito conhecidos pelos brasileiros: pesquisas do IBGE para 1988 apontavam que, para os cidadãos, havia pouca efetividade e segurança na aplicação daqueles direitos. Neste mesmo ano, 4,7 milhões de pessoas com 18 anos ou mais se envolveram em conflitos e, dessas, apenas 62% recorreram à justiça para resolvê-los. “Não acreditar na justiça”, “temer represália” e “não querer envolvimento com a 2 polícia” foram os motivos alegados por, em média, 40% dos entrevistados para não recorrerem às instituições jurídicas. No ano seguinte, em 1989, como informaram Linz e Stepan (1999), as pesquisas continuavam revelando que a maioria esmagadora dos cidadãos brasileiros acreditava que o sistema judiciário só funcionava para ajudar os poderosos e que a polícia prendia e matava pessoas inocentes. Quase dez anos depois, em 1997, analisando os resultados de pesquisa realizada na região metropolitana do Rio de Janeiro (CPDOC/FGV), Pandolfi (1999) reiterou os diagnósticos de Carvalho e Linz e Stepan, e afirmou haver no país um “déficit de cidadania”. Demonstrou esse déficit explorando o desconhecimento dos direitos e deveres por parte dos entrevistados e também os paradoxos nas opiniões e percepções em relação aos direitos e aos agentes e agências encarregados de garanti-los1. Outro aspecto notável na pesquisa, ainda segundo a autora, foi a hierarquia atribuída aos direitos, sendo os mais mencionados os sociais (sobretudo questões relacionadas com trabalho, salário e emprego), ao passo que os direitos civis, “espinha dorsal de uma democracia”, não tiveram referência significativa. Um percentual irrisório, de apenas 1,6%, citou direitos políticos. A concentração de respostas neste bloco girou em torno do voto mas, segundo a autora, nas respostas dos entrevistados, o voto apareceu principalmente como um dever2. A autora destacou também que, apesar do pouco conhecimento dos principais direitos e dos meios de acesso a eles, os brasileiros questionavam sua ausência. Por exemplo, embora a igualdade perante a lei quase não tenha sido mencionada pelos entrevistados, “...parece existir na população um sentimento de injustiça, uma forte consciência de que, no Brasil, a lei não é igual para todos”(PANDOLFI, op.cit., p.55). Carvalho (op.cit.) complementou que esses sentimento e descrença da população na justiça se deviam também ao fato de que o acesso ao judiciário é limitado porque a grande maioria da população brasileira, mesmo que conheça seus direitos, não tem condições de fazê-los valer, sobretudo em razão dos custos dos serviços de um bom advogado e do próprio processo. De acordo com o autor, parece evidente para a 1 Para mencionar alguns exemplos, 57% dos entrevistados não se referiram sequer a um direito; mais de 40% afirmaram que alguém poderia ser preso por mera suspeita e só 12% citaram algum direito civil. No que se refere aos dados referente ao recurso às instituições protetoras dos direitos de cidadania, 80% das pessoas que sofreram discriminação ou violação dos direitos afirmaram não terem recorrido à polícia por temor ou por não acreditarem nos resultados (PANDOLFI, op.cit.). 2 Essa hierarquia dos direitos na opinião dos entrevistados poderia estar relacionada, ainda segundo Pandolfi (op. cit.), ao processo histórico de formação da cidadania no país, processo que remonta à era Vargas e à “cidadania regulada”. Esse processo de constituição da cidadania no Brasil, de acordo com a autora, por outro lado, contribuiu para a crença entre a população de que o melhor caminho para a obtenção dos direitos seria através do acesso direto às autoridades e não através dos canais institucionais encarregados de garanti-los. Para o conceito de “cidadania regulada”, ver Santos (1979). 3 população a associação entre as condições socioeconômicas e o acesso à justiça no país, o que seria uma das bases da insatisfação com o funcionamento do sistema judiciário brasileiro. Grynszpan (1999), também com base nos resultados da pesquisa realizada na região metropolitana do Rio de Janeiro (CPDOC/FGV, 1997), explorou a interface entre o acesso à justiça e as noções de democracia e cidadania dos brasileiros, procurando identificar fatores que auxiliariam a democratização do acesso à justiça no país3. Para que a justiça cumpra uma de suas atribuições básicas, ou seja, garanta os direitos dos cidadãos, é necessário que aqueles que se sentem injustiçados a ela recorram, e para que o cidadão busque a justiça, há uma série de fatores intervenientes, como suas noções morais de justiça e sua visão da instituição judiciária, a qual se relaciona com sua legitimidade. De acordo com Grynszpan, “um dos suportes básicos da legitimidade da justiça é a crença difundida na sua inarredabilidade, na sua isenção, na imparcialidade com que se apropria das leis, no tratamento equânime que dispensa às partes em disputa e, também, na sua eficiência, o que se traduz na produção de resultados satisfatórios num tempo razoável. Ressaltar a importância desta crença significa perceber que, uma vez que ela se veja abalada, o próprio reconhecimento da legitimidade da justiça é que termina sendo comprometido, com reflexos sobre os graus em que a população a ela recorre para garantir os seus direitos, para resolver os seus conflitos”(GRYNSZPAN, op.cit., p.103). Aos resultados apresentados por Pandolfi (op. cit.), o autor adicionou que a cor emergiu entre os entrevistados como segundo elemento discriminador: ao mesmo tempo em que, para 95% deles, os pobres eram tratados pela justiça com maior rigor do que os ricos para 2/3 dos entrevistados, os negros eram tratados com maior rigor pela justiça. A percepção entre a população de que a justiça é uma instituição hostil, iníqua e ineficiente pesa sobre a opção pelo recurso a ela. Paralelamente, o grau de desconhecimento dos seus direitos pela população também interferia na decisão de recorrer à justiça. Ainda de acordo com Grynszpan, embora se pudesse supor que uma tentativa por parte da própria instituição judiciária de democratização levasse a uma inversão da visão negativa a seu respeito entre a população, os resultados da pesquisa também indicaram que instâncias gratuitas, ágeis e informais, como os juizados de pequenas causas, eram pouco procuradas 3 Para reduzir o fosso entre a justiça e a população, segundo o autor, seriam necessárias a expansão da oferta, a melhoria da qualidade e da eficiência e a redução dos custos dos serviços judiciários, o que os tornaria efetivamente acessíveis, sobretudo à população de baixa renda (GRYNSZPAN, op.cit.) 4 pela população. Além disso, foi observada uma associação significativa entre a apropriação desses juizados como recurso e a escolaridade dos entrevistados4. Os resultados do survey nacional “A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas” de 2006 aqui analisados corroboram esse cenário. Apesar de a democracia brasileira mostrar-se consolidada, de suas instituições operarem com regularidade e de os brasileiros cada vez mais também se orientarem por uma cultura política democrática (conforme descreveu, por exemplo, Moisés, 2005a e b), a procura dos brasileiros pelos tribunais de justiça ainda é baixa: somente 1/4 dos entrevistados já recorreram a eles. Ainda que, dentre esses, quase 2/3 tenham concluído o processo, entre aqueles que tiveram uma experiência negativa com a justiça, os mesmos fatores apresentados pelas pesquisas anteriores se fazem ainda presentes: o fato de o processo tomar muito tempo foi a principal razão apontada pelos entrevistados para “não terem conseguido abri-lo ou concluí-lo”. Além disso, entre 22% e 27% apontaram “os custos do processo e do advogado” como empecilhos e quase ¼ dos entrevistados afirmaram não ter aberto ou concluído o processo por “não confiarem que teriam um tratamento justo” (Tabela 1). Quando pedidos para apontar os principais problemas da justiça no Brasil em pergunta aberta em outra pesquisa para o mesmo ano5, os cidadãos apontaram a lentidão e burocracia (20,6%), a parcialidade do julgamento e a desigualdade de tratamento (17,2%), o fato de as leis e penas não serem cumpridas (16,8%) e a corrupção (13%) como sendo os principais6. 4 Associação já afirmada, por exemplo, por CARVALHO, op. cit. e LINZ e STEPAN, op. cit. 5 Pesquisa: “Cultura Política” realizada pela Fundação Perseu Abramo entre 10 e 16 de março de 2006 com 2379 eleitores brasileiros. Disponível no Banco de Dados do Centro de Estudos de Opinião Pública da Unicamp (CESOP). 6 Outros 17% não souberam ou não opinaram, e em torno de 12% apontaram outros problemas, enquanto menos de 4% afirmaram que não havia nenhum problema na justiça brasileira. 5 Tabela 1. Experiência com a Justiça - 2006 Questões Sim (%) * Alguma vez você procurou um tribunal ou órgão de justiça? 24,8 E qual das seguintes frases reflete melhor a sua experiência? Procurou e concluiu o processo 63,2 Procurou mas não conseguiu concluir o processo 30,0 Não conseguiu abrir o processo 5,3 Quais foram as razões porque você não conseguiu abrir ou concluir o processo? Não teve dinheiro para pagar as custas do processo 22,5 Não teve dinheiro para pagar o advogado 27,3 O processo tomou muito tempo 52,6 O tribunal ficava muito longe da casa onde vivia 19,8 Não confiou que teria um tratamento justo 24,7 Não soube fazer a solicitação 11,8 Achou que era melhor fazer um acordo 23,4 N 2004 Fonte: Pesquisa “A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas” * o complemento a 100% refere-se às respostas “não” Os dados do survey nacional de 2006 também revelam alguns paradoxos quanto às concepções e avaliações dos cidadãos sobre a justiça e o acesso aos direitos7. Por exemplo, mais de 90% concordam que o país necessita dos tribunais de justiça para “ir para frente”, mas praticamente o mesmo percentual afirma que os brasileiros não têm iguais oportunidades de acesso à justiça; e em torno de 80% creem que não há igualdade perante a lei. Mais de 40% dos entrevistados têm pouca confiança tanto no poder judiciário como nas leis do país (enquanto, nos dois casos, por volta de 1/3 dos entrevistados afirma ter “alguma” confiança). Mas, ao mesmo tempo, pouco menos da metade dos entrevistados avalia que o poder judiciário tem tido uma boa atuação. Nessa direção positiva, os tribunais de justiça são apontados como os órgãos públicos mais importantes do país por quase 20% dos entrevistados, ficando atrás apenas da presidência da república (apontada por pouco mais da metade dos entrevistados como o órgão público mais importante). Também de modo positivo, é bastante elevada a associação que os brasileiros fazem entre as ideias de democracia e de “fiscalização dos atos do governo pelos tribunais de justiça e pelo ministério público” e de “igualdade de todos 7 Os paradoxos nas falas dos entrevistados também apareceram na pesquisa qualitativa. A realização do survey nacional de 2006 aqui analisado foi antecedida pela realização de entrevistas em profundidade baseadas em “Gupos Focais”, como parte integrante do Projeto “A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas” (FAPESP, Processo 07952-8/04). Ferrari (2009) explorou esse material qualitativo e, entre outras coisas, ilustrou com falas dos entrevistados suas percepções superficiais sobre o funcionamento dos mecanismos institucionais de acesso e conquista dos direitos. Sobretudo, sua análise mostrou que os cidadãos reconhecem direitos, mas mostram distanciamento do processo político e instituições. 6 perante a lei” - nos dois casos quase 85% acreditam que essas premissas têm a ver ou mesmo muito a ver com a ideia de democracia (Tabela 2). No que se refere à aplicação das leis, a imensa maioria concorda que elas devem ser obedecidas sempre, mas mais da metade dos entrevistados afirma também que os brasileiros as cumprem pouco (e quase 30% indicam que as leis nem são cumpridas). Também 2/3 dos entrevistados pensam que os brasileiros são pouco ou nada conscientes de suas obrigações, assim como de seus direitos. Em consonância com essa percepção da pouca consciência dos direitos pelos brasileiros, quase 3/4 dos entrevistados acreditam que os brasileiros pouco ou nada exigem os seus direitos (embora, nesse caso, seja notável que 1/3 acredite que isso ocorra quase sempre). Por fim, os entrevistados, pessoalmente, reclamam a ausência do acesso à cidadania8. Por exemplo, mais de 83% concordam (muito ou pouco) que “os funcionários do governo não se preocupam muito com aquilo que pessoas como você pensam” e quase 3/4 sentem-se pouco ou nada protegidos pelas leis trabalhistas (Tabela 2). 8 Neste capítulo, a dimensão da cidadania dos brasileiros é enfatizada em suas interações com as visões de acesso às instituições de justiça. Com base nessa mesma pesquisa, Daniele (2008) analisou as concepções de cidadania dos entrevistados e o conhecimento dos direitos mais importantes, e as implicações para a confiança política. 7 Tabela 2. Percepção da Importância e Avaliação das Instituições de Justiça - 2006 Questões O país precisa dos TRIBUNAIS DE JUSTIÇA para ir em frente? Você acha que a democracia...com IGUALDADE DE TODOS PERANTE A LEI Você acha que a democracia...com FISCALIZAÇÂO DOS ATOS DO GOVERNO PELOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA E PELO MINISTÉRIO PÚBLICO Você acha que todos os brasileiros têm iguais oportunidades de acesso à justiça? Você acha que todos os brasileiros são iguais perante a lei? Gostaria que você avaliasse a atuação de cada uma das seguintes instituições: PODER JUDICIÁRIO Pensando na atuação da justiça no Brasil, você diria que, de um modo geral, os juízes, promotores e tribunais de justiça têm tido um desempenho: Por favor, diga se você concorda ou discorda da seguinte afirmação: “A lei deve ser obedecida sempre, qualquer que seja a circunstância” Você diria que os brasileiros ... as leis ? Você diria que os brasileiros são muito conscientes, conscientes, pouco conscientes ou nada conscientes de suas obrigações? E dos seus direitos? Você diria que os brasileiros são muito conscientes, conscientes, pouco conscientes ou nada conscientes de seus direitos? Você diria que os brasileiros exigem os seus direitos? Exigem muito, apenas exigem, exigem pouco ou não exigem seus direitos? Pensando em como funcionam as coisas no Brasil, você diria que, na prática, os brasileiros conseguem fazer valer os seus direitos sempre, quase sempre, quase nunca ou nunca? 8 (%) Sim 91,5 Não 8,5 Tem muito a ver 53,5 Tem a ver 30,6 Tem pouco a ver 8,8 Tem nada a ver 7,0 Tem muito a ver 49,6 Tem a ver 33,8 Tem pouco a ver 9,8 Tem nada a ver 6,8 Sim 9,4 Não 90,6 Sim 18,5 Não 81,5 Ótima................................ 4,4 Boa 46,4 Regular..............................16,4 Ruim 27,2 Péssima 5,6 Ótimo 3,3 Bom 39,6 Regular 17,5 Ruim 26,0 Péssimo 13,6 Concorda muito 72,4 Concorda pouco 19,8 Discorda pouco 5,6 Discorda muito 2,2 Cumprem muito 2,1 Cumprem 11,3 Cumprem pouco 56,9 Não cumprem 29,7 Muito Conscientes 4,6 Conscientes 31,0 Pouco conscientes 54,4 Nada conscientes 10,1 Muito Conscientes 4,1 Conscientes 31,5 Pouco conscientes 52,7 Nada conscientes 11,6 Exigem muito 7,5 Exigem 19,1 Exigem Pouco 52,1 Não exigem 21,4 Sempre 5,2 Quase sempre 33,5 Quase nunca 49,6 Nunca 11,6 E quanto às leis trabalhistas, você se sente muito protegido, protegido, pouco protegido ou nada protegido? Vou ler algumas frases sobre política e gostaria de saber se você ... OS FUNCIONÁRIOS DO GOVERNO NÃO SE PREOCUPAM MUITO COM AQUILO QUE PESSOAS COMO VOCÊ PENSA Vou citar alguns órgãos públicos e particulares e gostaria de saber qual é o grau de confiança que você tem em cada um deles: PODER JUDICIÁRIO Vou citar alguns órgãos públicos e particulares e gostaria de saber qual é o grau de confiança que você tem em cada um deles: LEIS DO PAÍS Muito protegido Protegido Pouco protegido Nada protegido Concorda Muito Concorda Pouco Discorda Pouco Discorda Muito Muita confiança Alguma confiança Pouca confiança Nenhuma confiança Muita confiança Alguma confiança Pouca confiança Nenhuma confiança 4,2 23,4 47,3 25,2 56,9 28,3 6,8 8,0 11,0 33,4 42,0 13,7 7,3 30,6 41,3 20,8 Fonte: Pesquisa “A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas”,FAPESP A percepção de desigualdade e sentimento de injustiça no funcionamento do poder judiciário e em sua atuação na garantia dos direitos pode associar-se a comportamentos de descrença e cinismo para com o mesmo. Ademais, as ambiguidades e paradoxos evidentes nas percepções dos entrevistados sobre seus direitos e sobre as formas de acesso a eles e garantias legais podem ter consequências para o estabelecimento da cidadania e para a relação dos cidadãos com o próprio regime democrático (BOOTH e SELIGSON, 2005; CARVALHO, op.cit.; MOISÉS, 2005a; NORRIS, 1999; OFFE, 1999). Os dados apresentados indicam, então, a importância de se entender de modo mais aprofundado a natureza da confiança no poder judiciário em específico, e suas possíveis associações e impactos sobre as concepções de cidadania dos brasileiros. Porém, cabe ressalvar antes de tudo que, embora a manutenção de percepções negativas da efetividade dos direitos, do cumprimento das leis e das instituições de justiça através do tempo sejam preocupantes em si, esse cenário deve ser compreendido como parte de um cenário amplo de desconfiança das instituições democráticas, que se estabelece como tendência global e não apenas nos países de democracia recente como a brasileira (NORRIS, op. cit.)9. Na próxima seção do capítulo, apresento brevemente as principais questões teóricas que embasam a análise proposta. 9 Embora não seja tema deste capítulo, cabe aqui uma nota a esse respeito: a generalização da desconfiança nas instituições representativas e a avaliação crítica, por parte dos cidadãos, de funcionamento da democracia não são sinais de crise desse regime, mas apontam para a emergência de cidadãos mais atentos ao processo e às instituições políticas, e que visam melhorar e aprofundar a democracia (FUCHS e KLINGEMANN, 1995; NORRIS, op.cit.). 9 A MISSÃO DO PODER JUDICIÁRIO NO REGIME DEMOCRÁTICO E RELAÇÃO COM A CIDADANIA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS DA CONFIANÇA POLÍTICA De acordo com Linz e Stepan (op.cit.), um sistema judiciário independente é ator fundamental para a existência de um “Estado de direito capaz de assegurar as garantias legais relativas às liberdades dos cidadãos e à vida associativa independente” (LINZ e STEPAN, op.cit., p.212). O Estado de direito, por sua vez, é um dos cinco campos necessários à consolidação do regime democrático10. Diamond e Morlino (op.cit.) também destacam a centralidade do primado da lei para a democracia e apontam ser ele a base da estrutura multidimensional que define a qualidade desse regime11. A importância do primado da lei para a qualidade da democracia está no fato de que essa dimensão significa que todos os cidadãos são iguais ante a lei, que é justa e consistentemente aplicada a todos por um judiciário independente, e significa também que as próprias leis são claras, publicamente reconhecidas, estáveis e universais. “O sistema legal defende os direitos políticos e procedimentos da democracia, sustenta os direitos civis de cada um e reforça a autoridade de outras agências de accountability horizontal que asseguram a legalidade e propriedade das ações oficiais” (DIAMOND e MORLINO, op.cit., p.23). As condições para o estabelecimento do primado da lei são a difusão de valores democráticos e liberais tanto entre a opinião pública como entre as elites, fortes tradições burocráticas de competência e imparcialidade e meios institucionais e econômicos adequados, condições difíceis de serem criadas “do zero”. Essa dificuldade aponta, então, para uma área de sensibilidade para as novas democracias. Sobretudo, no caso dessas últimas - embora essas sejam dimensões importantes também às democracias longamente estabelecidas -, a consolidação do regime democrático e a manutenção de sua estabilidade dependem do apoio político dos cidadãos e da confiança desses nos princípios e fundamentos do regime, além da avaliação positiva do funcionamento de suas instituições. Ainda que não haja consenso na bibliografia sobre a relação entre essas duas dimensões - confiança e avaliação - que baseiam o apoio ao regime democrático, parece haver fortes evidências de que se referem a construtos distintos (USLANER, 2007). 10 Os outros quatro campos da democracia, ainda segundo esses autores, são: 1.sociedade civil livre e ativa; sociedade política autônoma e valorizada; burocracia estatal para uso do governo democrático e sociedade econômica institucionalizada. 11 De acordo com esses autores, há sete outras dimensões nas quais uma democracia varia em qualidade: liberdade, accountability vertical, responsividade, igualdade, participação, competição e accountability horizontal. 10 A confiança pode ser definida como a probabilidade de que o regime, suas instituições e autoridades produzirão os resultados preferidos pelos indivíduos sem que esses façam algo para consegui-los, ou tampouco precisem supervisionar os objetos políticos confiados. Tratase, na análise de Easton (1975), de uma forma de manifestação do apoio difuso. Ainda segundo esse autor, essa confiança é, em parte, fruto do processo de socialização, que apontaria ser dever cívico ter confiança nos incumbentes dos cargos oficiais. Como membros da comunidade política, os indivíduos também podem ser encorajados a acreditarem que os objetivos do regime, suas regras e estruturas podem ser confiados na provisão de resultados igualitários para todos. Por outro lado, a confiança pode ser estimulada ainda pelas experiências que os indivíduos têm com as autoridades e instituições através do tempo, as quais os qualificam para avaliar racionalmente o desempenho desses objetos políticos. Conforme Easton, “os resultados e desempenho das autoridades podem lentamente nutrir ou desencorajar sentimentos de confiança. Com o tempo, tais sentimentos podem ser destacados das autoridades e tomar a forma de um sentimento autônomo ou generalizado para todas as autoridades e talvez para o regime também”(EASTON, op. cit., p.448, tradução minha). O fato de a experiência ser uma das fontes da confiança política não deve obscurecer as diferenças teóricas entre essa e o apoio específico, esse último exclusivamente relacionado às constantes avaliações do desempenho global de um conjunto de autoridades, confinadas em estreitos limites de tempo. Nesse contexto, a confiança é, então, o mecanismo que media a relação dos cidadãos com as instituições públicas e é derivada da justificativa ética e normativa dessas e de seu desempenho. Para que o cidadão avalie determinada instituição ele necessita conhecer a ideia básica ou sua função permanente atribuída pela sociedade (EASTON, op. cit., MOISÉS, 2005a e b). As instituições, por sua vez, assim como o complexo de normas e procedimentos que as orienta, são os mecanismos estabelecidos e aceitos pelos cidadãos, enquanto membros da comunidade política, para regular e organizar suas relações políticas e sua ação em comum para alcançar objetivos públicos (OFFE, 1999)12. No regime democrático, não apenas os cidadãos, mas também as autoridades e responsáveis pelas instituições devem orientar sua ação por regras institucionalmente estabelecidas. É com base nessas regras e referências que, 12 Nessa perspectiva, a confiança nas instituições democráticas seria um substituto para a desconfiança horizontal entre as massas. Se, dada a complexidade da moderna estrutura social, não é fácil encontrar razões para confiar na multidão de concidadãos anônimos, as estruturas internas e dinâmicas das instituições representativas na democracia garantem a efetividade de que mesmo uma altamente adversa maioria não pode representar perigo sério sobre “mim”, pois isso significaria interferir em direitos constitucionalmente garantidos (OFFE, op. cit.). 11 segundo Sztompka (1996), os primeiros fazem apostas sobre o comportamento futuro e contingente dos segundos e, a partir dessas, dão ou retiram sua confiança neles. Ademais, ainda para esse autor, há dois pressupostos implicados ao tratar a confiança como aposta: primeiro, quem dá confiança estabelece um compromisso com as próprias ações e espera que as ações dos outros serão benéficas para si próprios. Segundo, a confiança implica que os outros são confiáveis, ou seja, que suas ações futuras exibirão alguma combinação dos seguintes traços: regularidade, eficiência, confiabilidade, justeza, accountability e benevolência (SZTOMPKA, op. cit.). As instituições políticas, por sua vez, aplicam sobre aqueles nela envolvidos um conjunto específico de valores, tais como a verdade e a justiça (OFFE, op.cit.). No entanto, há que se compreender que as regras por elas aplicadas são positivas, podendo ser mudadas, e essas aplicação e mudança estão nas mãos dos legisladores, administradores e do sistema judiciário. Nesse sentido, também elas dependem de disposições apoiativas - do entendimento e da conformidade a elas por parte daqueles nela envolvidos - para serem bem sucedidas. É nesse aspecto que se centra o ponto nodal da qualidade das instituições, a qual remonta à “...sua capacidade de fazerem sentido convincente, o que determina a extensão na qual elas são capazes de promulgar as lealdades daqueles cujas ações elas supostamente regulam, assim como a confiança por parte dos agentes de que esse apoio será amplamente partilhado por outros agentes”(OFFE, op.cit., p.69, tradução minha). Em outras palavras, a qualidade das instituições remete ao seu mecanismo potencial de indução da confiança dos indivíduos em pessoas com quem nunca tiveram contato, mas com quem partilham o mesmo espaço institucional e, por isso, pressupõem que, em suas ações, são orientadas e constrangidas pelas regras por ele traçadas. Dispõem dessa qualidade apenas as instituições que o indivíduo pressupõe serem plausíveis, significativas e convincentes à maior parte de seus concidadãos e, dessa forma, por eles confiados. Ainda, é devido ao status de proteção de direitos que elas proveem, que elas podem limitar o risco de confiar em estranhos (OFFE, op. cit.). É importante destacar essa dimensão, pois, embora a discussão sobre as raízes institucionais da confiança na cidadania em geral não seja objeto direto deste capítulo, essa é também a base da confiança naquelas categorias de agentes que estão por trás do funcionamento das instituições. Da parte dos indivíduos, a confiança institucional se expressa nas percepções sobre a eficácia, probidade e senso de justiça com que as instituições funcionam e na sua participação em procedimentos e instituições de representatividade, como o recurso aos tribunais de justiça e júris (MOISÉS, 2005a). No que tange ao poder judiciário em específico, a confiança é 12 comprometida quando os cidadãos não acreditam que esse poder funciona de acordo com sua missão e com a eficiência necessária ou quando aqueles creem que há desigualdade no acesso aos direitos. Esse cenário se agrava quando os cidadãos creem que regras públicas fundamentais não são respeitadas por todos, quando acreditam que há impunidade para alguns membros da comunidade política e que, em decorrência, não vale a pena cumprir ou obedecer às leis do país. Para finalizar, cabe destacar que, se a confiança política radica nas instituições, ela também é permeada pelo contexto sócio-cultural dos indivíduos (NORRIS, op. cit., DALTON, 1999). Pessoas com diferentes valores e interesses avaliam o desempenho econômico e político das instituições de modos diferentes. Mishler e Rose (2001) explicam a origem da confiança política a partir do modelo de “aprendizagem através da vida”, o qual combina essas premissas culturalistas com as abordagens institucionais. Apesar da importância da socialização primária na formação dos valores que orientarão as atitudes dos indivíduos, tais valores podem se modificar no decorrer da vida conforme cada um desenvolve as suas experiências com as instituições políticas. De acordo com os autores, se as influências da socialização, de um lado, e do desempenho institucional, de outro, conflitam, as avaliações do desempenho, mais próximas dos atores, prevalecerão sobre as influências primeiras das normas culturais e da socialização primária sobre os indivíduos. Ao tratar da confiança no poder judiciário no regime democrático brasileiro, este capítulo se orienta também por esse conjunto de premissas. ANÁLISE DOS DADOS DE 2006 FATORES POTENCIALMENTE EXPLICATIVOS DA CONFIANÇA NO PODER JUDICIÁRIO: Primeiramente, o capítulo procura explicar a natureza da (des)confiança no poder judiciário entre os cidadãos brasileiros em 2006, ou seja, visualizar quais critérios da avaliação dos cidadãos predizem seu comportamento com relação à justiça. Trata-se de verificar, então, em que medida a confiança no poder judiciário (variável dependente) pode ser explicada, por um lado, pela ideia normativa que os cidadãos têm da missão dos tribunais de justiça e, por outro lado, pelo uso desse serviço e pela avaliação do acesso efetivo e igualdade de tratamento e atuação do poder judiciário (com base nas experiência e vivência individuais). As variáveis independentes selecionadas envolvem, então, dimensões institucionais e culturais e podem ser divididas em três grupos (além das variáveis sócio-demográficas): 13 Variáveis de cultura política, cidadania e democracia: • “A Constituição brasileira estabelece que todos os brasileiros são iguais perante a lei. Você acha que todos são iguais perante a lei ou que não há igualdade perante a lei no Brasil?” • “Por favor, diga se você concorda ou discorda da seguinte afirmação: ‘A lei deve ser obedecida sempre, qualquer que seja a circunstância’”. • “Pensando em como funcionam as coisas no Brasil, você diria que, na prática, os brasileiros conseguem fazer valer os seus direitos sempre, quase sempre, quase nunca ou nunca?” • “E quanto às leis trabalhistas, você se sente muito protegido, protegido, pouco protegido ou nada protegido?” • “Você acha que a democracia tem muito a ver, tem a ver, tem pouco a ver ou não tem nada a ver com...IGUALDADE DE TODOS PERANTE A LEI” • “Você acha que a democracia tem muito a ver, tem a ver, tem pouco a ver ou não tem nada a ver com...FISCALIZAÇÃO DOS ATOS DO GOVERNO PELOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA E PELO MINISTÉRIO PÚBLICO” • “Vou ler uma lista de órgãos públicos como polícia e escola e quero que você diga quais tem que ter para o país ir em frente: OS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA” • “Eu vou ler algumas frases sobre os órgãos públicos do país, e quero que você diga se concorda ou discorda de cada uma delas: MEUS AMIGOS E FAMILIARES FALAM BEM DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS” • “Tem gente que acha que todos os brasileiros têm iguais oportunidades de acesso à justiça. Outros acham que nem todos os brasileiros têm iguais oportunidades de acesso à justiça. O que você acha?” Variáveis de experiência com a justiça • “Alguma vez você procurou um tribunal ou órgão de justiça?” • “E qual das seguintes frases reflete melhor a sua experiência: PROCUROU E CONCLUIU O PROCESSO” • “E qual das seguintes frases reflete melhor a sua experiência: PROCUROU MAS NÃO CONSEGUIU CONCLUIR O PROCESSO” • “E qual das seguintes frases reflete melhor a sua experiência: NÃO CONSEGUIU ABRIR O PROCESSO” • “Quais foram as razões porque você não conseguiu abrir ou concluir o processo: NÃO TEVE DINHEIRO PARA PAGAR AS CUSTAS DO PROCESSO” 14 • “Quais foram as razões porque você não conseguiu abrir ou concluir o processo: NÃO TEVE DINHEIRO PARA PAGAR O ADVOGADO” • “Quais foram as razões porque você não conseguiu abrir ou concluir o processo: O PROCESSO TOMOU MUITO TEMPO” • “Quais foram as razões porque você não conseguiu abrir ou concluir o processo: O TRIBUNAL FICAVA MUITO LONGE DA CASA ONDE VIVIA” • “Quais foram as razões porque você não conseguiu abrir ou concluir o processo: NÃO CONFIOU QUE TERIA UM TRATAMENTO JUSTO” • “Quais foram as razões porque você não conseguiu abrir ou concluir o processo: NÃO SOUBE FAZER A SOLICITAÇÃO” • “Quais foram as razões porque você não conseguiu abrir ou concluir o processo: ACHOU QUE ERA MELHOR FAZER UM ACORDO” Variáveis de avaliação e confiança políticas • “Vou citar alguns órgãos públicos e particulares e gostaria de saber qual é o grau de confiança que Você tem em cada um deles: NAS LEIS DO PAÍS” • “O que é importante para você confiar nos órgãos públicos? Qual é o mais importante: PRIMEIRO LUGAR” • “Eu vou ler algumas frases sobre os órgãos públicos do país, e quero que você diga se concorda ou discorda de cada uma delas: AS AUTORIDADES E DIRIGENTES DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS SÃO DE BAIXA QUALIDADE” • “Eu vou ler algumas frases sobre os órgãos públicos do país, e quero que você diga se concorda ou discorda de cada uma delas: AS ATIVIDADES DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS SÃO TOTALMENTE FISCALIZADAS” • “Eu vou ler algumas frases sobre os órgãos públicos do país, e quero que você diga se concorda ou discorda de cada uma delas: OS ÓRGÃOS PÚBLICOS SEMPRE ASSUMEM SUA RESPONSABILIDADE QUANDO ERRAM” • “Eu vou ler algumas frases sobre os órgãos públicos do país, e quero que você diga se concorda ou discorda de cada uma delas: OS ÓRGÃOS PÚBLICOS TRATAM TODAS AS PESSOAS IGUALMENTE” • “Pensando na atuação da justiça no Brasil, você diria que, de um modo geral, os juízes, promotores e tribunais de justiça têm tido um desempenho” • “E ainda pensando na atuação da justiça no Brasil, que nota você dá para os juízes?” • “E que nota você dá para os promotores e tribunais de justiça?” • “Como você avalia a situação política do Brasil hoje” 15 • “Você diria que a corrupção é um problema” • “E no governo de Lula, você diria que a situação dos direitos humanos ... em relação ao que era antes?” • “E em comparação com os últimos 10 anos dos governos militares no tempo dos generais Geisel e Figueiredo, a situação atual dos direitos humanos no Brasil ...” • “Gostaria que você avaliasse a atuação de cada das seguintes instituições: PODER JUDICIÁRIO” • “Gostaria que você avaliasse a atuação de cada das seguintes instituições: GOVERNO” • “Gostaria que você avaliasse a atuação de cada das seguintes instituições: AS LEIS DO PAÍS” • • • • Variáveis sócio-demográficas COR RENDA MENSAL FAMILIAR RENDA MENSAL PESSOAL GRAU DE INSTRUÇÃO Primeiramente, foram verificadas as associações estatísticas significantes13 entre cada uma dessas variáveis e a confiança no poder judiciário. Tendo por base uma das premissas das teorias institucionais que aponta a importância da experiência com as instituições representativas para a formação da confiança política, uma das associações esperadas era entre as questões relativas à avaliação do funcionamento dos tribunais de justiça com base nas respostas sobre o acesso e experiência dos entrevistados e a confiança no poder judiciário, mas essa não foi significante. Uma possível explicação estatística aponta para o fato de que menos de ¼ dos entrevistados “já procurou um tribunal ou órgão de justiça” e, em consequência, a amostra dos respondentes para as questões sobre a experiência com a justiça abrangeram um universo ainda menor14. 13 As medidas de associação utilizadas foram o “coeficiente de contingência” para as variáveis nominais e o “gamma” e “kendall´s tau-b” para as variáveis ordinais. Nos dois casos, o nível de significância adotado foi de .01. 14 Por outro lado, procurei identificar quem é o cidadão que já recorreu a um tribunal de justiça, tanto em termos socioeconômicos e demográficos como quanto ao seu perfil com relação às concepções de cidadania e direitos, mas, observando o conjunto das associações entre a pergunta “Alguma vez, procurou um tribunal de justiça?” e as questões que poderiam indicar aquele perfil, não foi encontrado um grupo específico de cidadãos no conjunto dos entrevistados, como denotam os coeficientes de contingência da relação das variáveis. As exceções foram as associações, já esperadas, entre o grau de instrução e a faixa de renda familiar e a procura por um tribunal de justiça, mas as duas associações foram fracas. Foi significativa ainda, mas também fraca, a associação entre essa variável e a idade. No que se refere aos direitos de cidadania, as percepções da igualdade perante a lei e de que os brasileiros exigem os seus direitos, a concordância com a afirmação de que a lei deve ser obedecida sempre, a satisfação com o funcionamento da 16 Também foi notável entre os resultados o fato de a confiança no poder judiciário não estar associada com as concepções de democracia dos cidadãos que a relacionam fortemente com a “existência de igualdade perante a lei” e com a “fiscalização dos atos do governo pelos tribunais de justiça e pelo ministério público”. Em outras palavras, embora os brasileiros, em sua grande maioria (como mostrado na Tabela 2), acreditem que o primado da lei e as instituições que o efetivam tenham pelo menos “a ver” com a democracia, essas dimensões não se mostram associadas à confiança que depositam no poder judiciário brasileiro. Por outro lado, a confiança nesse poder mostrou associação significativa positiva com as seguintes variáveis: na esfera da cidadania: “todos são iguais perante à lei?”; “os brasileiros conseguem fazer valer seus direitos?”; “você se sente protegido pelas leis trabalhistas?”; na esfera da confiança: “confiança nas leis do país”; crença na ideia de que “o país tem que ter tribunais de justiça para ir para frente”;“crença na ideia de que “as autoridades e dirigentes do país são de baixa qualidade”; “amigos e familiares falam bem dos órgãos públicos”, “as atividades dos órgãos públicos são totalmente fiscalizadas”; “os órgãos públicos sempre assumem sua responsabilidade quando erram”; “os órgãos públicos tratam as pessoas igualmente”; na esfera da avaliação política: “avaliação do desempenho dos juízes, promotores e tribunais de justiça”; “nota para os juízes”; “avaliação da situação política do Brasil hoje”; “situação dos direitos humanos no governo Lula em comparação a antes”; “avaliação da atuação do poder judiciário”; “avaliação do governo”; “avaliação das leis do país”. Características sócio-demográficas: “renda mensal familiar” e “grau de instrução”. Apenas com três variáveis a confiança no poder judiciário apresentou associação negativa, indicando que quando a desconfiança aumenta diminui a crença de que “os brasileiros têm iguais oportunidades de acesso à justiça?”; diminui a “nota para atuação dos promotores de justiça” e aumenta a percepção de que “a corrupção é um problema sério”. Todavia, a análise bivariada não mostra qual a força de cada variável explicativa na análise do fenômeno da confiança no poder judiciário. Assim, as variáveis ora destacadas, cuja relação democracia e a confiança nas leis do país mostraram associações significantes com a procura pelo judiciário, todas fracas. Esses dados estão reproduzidos no ANEXO 1. 17 bivariada com a confiança no poder judiciário foram significantes, foram incluídas em modelo de regressão categórica15, com o intuito de investigar suas capacidades relativas de explicação da variável dependente em modelo multivariado (Tabela 3): Tabela 3. Determinantes da confiança no poder judiciário Coeficientes padronizados Beta Erro padrão ,093 ,021 ,334 ,023 -,045 ,021 Sentimento de proteção das leis trabalhistas Grau de confiança NAS LEIS DO PAÍS Concordância com a frase: AS AUTORIDADES E DIRIGENTES DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS SÃO DE BAIXA QUALIDADE Concordância com a frase: OS ÓRGÃOS ,062 PÚBLICOS SEMPRE ASSUMEM SUA RESPONSABILIDADE QUANDO ERRAM Avaliação do desempenho dos juízes, ,042 promotores e tribunais de justiça Nota para atuação dos juízes no Brasil ,042 Nota para atuação dos promotores e -,158 tribunais de justiça Avaliação da situação política do país -,048 Percepção sobre a seriedade da corrupção -,038 Avaliação da atuação do PODER JUDICIÁRIO ,208 Avaliação da atuação do GOVERNO FEDERAL ,038 Avaliação da atuação das LEIS DO PAÍS -,059 FAIXA DE RENDA MENSAL FAMILIAR ,048 GRAU DE INSTRUÇÃO ,048 Variável Dependente: Confiança no PODER JUDICIÁRIO N=1687 R²=,320 R²ajustado=,304 GL F Sig. 3 3 3 19,104 219,344 4,798 ,000 ,000 ,002 ,021 2 9,057 ,000 ,024 2 2,961 ,052 ,029 ,030 4 7 2,005 28,490 ,091 ,000 ,020 ,021 ,023 ,023 ,023 ,021 ,021 2 1 3 2 2 2 2 5,485 3,359 84,670 2,741 6,380 5,075 5,072 ,004 ,067 ,000 ,065 ,002 ,006 ,006 Fonte: “A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas” 2006 (N=2004). Nota 1: O número da amostra do modelo é menor do que a amostra total devido aos “missing cases” contidos na variável dependente. Nota 2: Em negrito, resultados significantes a ,01. O modelo final explica 32% da variância da confiança no poder judiciário, apresentando, portanto, uma medida de tolerância alta, de 0,68. Das 21 variáveis iniciais (associadas com a variável dependente), 14 entraram nesse modelo final, sendo 10 significantes a 0,01 (8 referentes às dimensões confiança e avaliação, uma das três variáveis da dimensão da cidadania e 2 socioeconômicas), mostrando-se, portanto, relevantes para a explicação do fenômeno da confiança no poder judiciário no Brasil. Três variáveis são particularmente importantes nessa explicação, como mostrado por seus Beta coeficientes. São elas: a “confiança nas leis do país”; 15 O procedimento utilizado foi o CATREG, versão 2.1, Data Theory Saling System Group (DTSS), SPSS® 13.0. 18 a nota dada aos promotores e tribunais de justiça (o sinal negativo indica que com o aumento da desconfiança no judiciário diminui a nota dada aos promotores e aos tribunais de justiça) e a “avaliação da atuação do poder judiciário”. Esses resultados sugerem a importância das variáveis de avaliação da atuação do poder judiciário como principais preditores da confiança nessa instituição. Antes de prosseguir, cabe uma consideração sobre a inclusão dessas variáveis de avaliação e confiança nas instituições de justiça no modelo explicativo da confiança no poder judiciário: embora as correlações entre as variáveis “confiança no poder judiciário”, de um lado, e as variáveis “confiança nas leis do país”(,446) e “avaliação da atuação do poder judiciário”(,268), de outro, possam ser indicativas de alguma colinearidade entre elas, a elevada medida de tolerância obtida para este modelo indica que ele não foi afetado por ela. Assim, e dadas as diferenças conceituais entre avaliação e confiança, como sugerido pelo referencial teórico do presente capítulo, elas foram mantidas no modelo final aqui descrito. Para fortalecer essa opção, foram realizadas, como testes, novas regressões16 sem as variáveis “avaliação da atuação do poder judiciário” e “confiança nas leis do país”, mas a retirada dessas variáveis (separada e simultaneamente) não alterou significativamente a capacidade explicativa dos modelos obtidos em comparação àquele aqui apresentado. Retomando-o, dentre as variáveis referentes à cidadania, apenas uma, o sentimento de proteção das leis trabalhistas, foi significativa no modelo final, mas com baixa capacidade explicativa. Ainda assim, deve-se reconhecer que essa variável não é apenas uma percepção da cidadania, mas mede também um elemento do desempenho das instituições de justiça, sua capacidade de garantir a proteção legal dos indivíduos. Os resultados revelam, portanto, uma forte presença de variáveis referentes à avaliação do funcionamento das instituições judiciárias na explicação da origem da confiança dos cidadãos no poder judiciário, sugerindo a preponderância das premissas das teorias institucionais nessa explicação. Isso significa que a confiança no poder judiciário radica na própria justiça como instituição e na avaliação e crença individuais de que sua atuação está em consonância com sua missão constitucional. Embora essa associação pareça óbvia, ela sugere a existência de um mapa de orientações e avaliações desta missão para os indivíduos. Por sua vez, a presença das variáveis socioeconômicas no modelo final, ainda que com impactos bastante baixos sobre a confiança no poder judiciário, indica que a avaliação e a confiança institucionais dos indivíduos variam de acordo com sua posição social e econômica. 16 Por questão de espaço, tais modelos não foram incluídos no presente capítulo. 19 Efeitos da Confiança nas Instituições de Justiça sobre a Cidadania De outro lado, procurei investigar os possíveis impactos da confiança no poder judiciário (e seus principais preditores, como mostrado na seção anterior) sobre as percepções que os brasileiros têm da cidadania como acesso e exercício de direitos e sua efetividade. Assim, regressões logísticas17 avaliaram os efeitos da confiança no poder judiciário, da confiança nas leis do país, da avaliação da atuação do poder judiciário e da nota atribuída aos promotores e tribunais de justiça sobre as seguintes variáveis dependentes, descritivas da cidadania dos brasileiros: • “A Constituição brasileira estabelece que todos os brasileiros são iguais perante a lei. Você acha que todos são iguais perante a lei ou que não há igualdade perante a lei no Brasil?” • “Por favor, diga se você concorda ou discorda da seguinte afirmação: ‘A lei deve ser obedecida sempre, qualquer que seja a circunstância’”. • “Você diria que os brasileiros exigem os seus direitos?” • “Pensando em como funcionam as coisas no Brasil, você diria que, na prática, os brasileiros conseguem fazer valer os seus direitos sempre, quase sempre, quase nunca ou nunca?” • “Você diria que os brasileiros são muito conscientes, conscientes, pouco conscientes ou nada conscientes de suas obrigações?” • “E dos seus direitos? Você diria que os brasileiros são muito conscientes, conscientes, pouco conscientes ou nada conscientes de seus direitos?” • “E quanto às leis trabalhistas, você se sente muito protegido, protegido, pouco protegido ou nada protegido?” • “Tem gente que acha que todos os brasileiros têm iguais oportunidades de acesso à justiça. Outros acham que nem todos os brasileiros têm iguais oportunidades de acesso à justiça. O que você acha?” • “Se o voto não fosse obrigatório, você votaria nas próximas eleições para Presidente a República?” 17 O procedimento adotado foi a Regressão Logística, método Bstep (LR), SPSS® 13.0 20 A Tabela 4 mostra, então, as razões de chance de a confiança no poder judiciário e de seus determinantes terem efeitos sobre as atitudes e comportamentos referentes ao cotidiano da cidadania e sobre as percepções da efetividade dos direitos entre os brasileiros18: 18 Cada uma das variáveis dependentes foi operacionalizada como dicotômica (respostas positivas com referência às negativas sobre a efetividade da cidadania) conforme descrito no ANEXO 2. 21 Tabela 4. Efeitos da Confiança nas Instituições de Justiça sobre as Concepções de Cidadania -2006 [odds ratio – Exp(Beta)] “Todos são iguais perante a lei” “Brasileiros cumprem as leis” Nenh. conf. (ref.) Concordam que “Brasileiros são “Brasileiros a lei deve ser “Brasileiros conseguem fazer conscientes de “Brasileiros são obedecida valer seus suas conscientes de exigem seus sempre direitos” direitos” obrigações” seus direitos” Confiança PODER JUDICIÁRIO Sentem-se protegidos pelas leis trabalhistas (,015) (,003) (,098) (,054) (,000) Muita 1,4 (,150) 2,76 (,000) 1,1 (,647) 1,35 (,165) 2,69 (,000) Alguma 1,6 (,008) 1,51 (,024) 1,16 (,370) 1,26 (187) 2,13 (,000) Pouca 1,65 (,002) 1,47 (,021) ,872 (,430) Confiança LEIS DO PAÍS ,945 (,730) 2,03 (,000) Nenh. conf. (ref.) “Brasileiros têm iguais Votariam se o oportunidades voto não fosse de acesso à obrigatório justiça” (,000) (,000) (,001) (,001) (,000) (,048) (,042) (,000) (,000) (,037) Muita 2,86 (,000) 2,61 (,000) 1,7 (,135) 1,88 (,023) 2,52 (,000) 1,8 (,007) 1,6 (0,32) 2,49 (,002) 3,109 (,000) 2,11 (,014) Alguma 2,07 (,000) 2,32 (,000) 2,4 (,000) 1,98 (,000) 2,06 (,000) 1,2 (,246) 1,2 (317) 1,80 (,000) 1,939 (,000) 1,09 (,740) Pouca 1,47 (,042) 1,65 (,000) 1,9 (,002) 1,54 (,002) 1,45 (,007) 1,1 (,470) ,946 (,692) 1,59 (,001) 1,279 (,050) 1,08 (,748) 1,05 (,0,30) 1,07 (,005) 1,06 (,003) 1,16 (,000) NOTA PROMOTORES E TRIBUNAIS DE JUSTIÇA 1,06 (,036) 1,06 (,011) (,012) (,023) (,013) (,019) 2,95 (,008) 1,42 (,295) 2,07 (,025) 2,76 (,092) Boa 1,6 (,164) 1,37 (,167) 1,78 (,018) 2,39 (,099) Regular 1,2 (,618) 2,01 (,005) 1,33 (,281) 1,07 (,903) Ruim 1,3 (,446) 1,24 (,342) 1,32 (,258) 1,67 (,338) ,067 (,000) ,500 (,002) Péssima (ref.) Ótima Constante R² Nagelkerke ,052 ,078 1,05 (,023) 1,08 (,000) Avaliação atuação PODER JUDICIÁRIO 7,02 (,000) ,019 1,638 (,000) ,042 ,201 (,000) ,310 (,000) ,372 (,000) ,743 (,066) ,057 ,031 ,027 ,077 ,489 (,000) ,047 ,020 (,000) ,065 N 1931 1932 1931 1937 1930 1937 1928 1880 1900 1936 Fonte: “A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas” 2006 (N=2004); Nota 1: Os números das amostras dos modelos são menores do que a amostra total devido aos “missing cases” contidos nas variáveis dependentes; Nota 2: Significâncias estatísticas entre parênteses (nível de significância adotado: ,05; em negrito, resultados não significantes). Nota 3: Células vazias: variáveis excluídas pelo próprio programa na equação final. 22 Primeiramente, a confiança no poder judiciário exerce impacto apenas sobre três percepções dos brasileiros de cidadania e sua efetividade: “brasileiros cumprem (pouco / muito) as leis”; “brasileiros exigem (pouco / muito) seus direitos” e o sentimento de proteção pelas leis trabalhistas por parte dos entrevistados. Dentre esses, destaca-se o efeito da muita confiança no poder judiciário sobre o sentimento de proteção das leis trabalhistas e sobre a crença de que os brasileiros exigem seus direitos: aqueles com muita confiança no poder judiciário têm por volta de 170% a mais de chance de sentirem-se protegidos por aquelas leis e de acreditarem que os cidadãos têm uma postura ativa na luta por seus direitos. É notável, por outro lado, que a confiança no poder judiciário não exerça efeito nem sobre a crença na igualdade perante a lei nem sobre a crença na igualdade de oportunidades de acesso à justiça. A nota dada aos promotores e tribunais de justiça afeta positivamente as crenças de que “todos são iguais perante a lei”, de que “todos têm iguais oportunidades de acesso à justiça”, o sentimento de proteção pelas leis trabalhistas, a concordância com “os brasileiros cumprem as leis” e com “os brasileiros conseguem fazer valer seus direitos” e a adesão voluntária ao voto, se este não fosse obrigatório. Nesse caso, qualquer incremento naquela nota aumenta entre 6 e 16% a concordância com essas alternativas. Mas é a confiança (muita/alguma/pouca) nas leis do país, dentre as quatro variáveis explicativas, o mais importante preditor das percepções dos cidadãos sobre a efetividade da cidadania: ela afeta as dez variáveis dependentes e seis delas de modo bastante forte: por exemplo, ter muita confiança nas leis aumenta em mais de 200% a chance de os cidadãos votarem se o voto não fosse obrigatório (e mesmo aqueles que têm pouca confiança têm 28% de chance a mais de votar do que aqueles que não confiam nas mesmas). Ainda, ter muita confiança nas leis do país aumenta em pelo menos 150% a chance de os entrevistados se sentirem protegidos pelas leis trabalhistas, acreditarem que os brasileiros conseguem fazer valer seus direitos, cumprem as leis e que todos são iguais perante elas (nos quatro casos, também é notável que mesmo a pouca confiança nas leis aumenta em pelos menos 45% a concordância com essas alternativas, em comparação àqueles que não confiam na legislação do país). Apesar desses resultados, observadas conjuntamente, as variáveis explicativas da visão da cidadania (confiança no poder judiciário, confiança nas leis do país, nota dada aos promotores e tribunais de justiça e avaliação do poder judiciário) impactam positivamente, em alguma medida, apenas a crença no fato de que “os brasileiros cumprem (pouco / muito) as leis”. 23 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este capítulo explorou as possíveis associações entre as percepções dos brasileiros sobre os direitos de cidadania, o seu acesso e sua efetividade e a avaliação e a confiança no poder judiciário. Os dados do survey nacional de 2006 corroboraram um cenário que transparece desde a promulgação da Constituição de 1988: a pouca confiança no poder judiciário e nas leis do país, a baixa procura pelos órgãos de justiça e a avaliação, por parte da esmagadora maioria dos brasileiros, de que há desigualdade de tratamento pela lei e no acesso à justiça no país. Embora, por outro lado, sejam observados avanços na cultura política democrática dos brasileiros e as instituições representativas nacionais, ainda que com percalços, mostrem sinais de consolidação (MOISÉS, 2005 a e b), o cenário tratado neste capítulo tem implicações para o processo democrático brasileiro, tendo em vista ser o primado da lei uma dimensão procedural de suma importância na estrutura de qualidade do regime democrático (DIAMOND e MORLINO, op.cit.). Os dados analisados continuam revelando paradoxos nas opiniões dos cidadãos brasileiros. Com relação à confiança no poder judiciário, consoante com as premissas institucionais, ela aparece associada, primeiro, à confiança nas leis do país e à avaliação de sua atuação (bem como às notas dadas aos promotores e tribunais de justiça). Por outro lado, embora um dos critérios para avaliar a atuação das instituições de justiça, dentro da perspectiva teórica aqui adotada, seja sua capacidade de demonstrar que operam com universalidade e igualdade, é notável os sentimentos de desigualdade perante a lei e de acesso à justiça não tenham exercido impacto sobre a confiança dos cidadãos no poder judiciário. Por último, embora com baixa capacidade explicativa, não se pode deixar de notar que o sentimento de proteção das leis trabalhistas foi a única dimensão mais associada à cidadania que emergiu entre as variáveis preditoras da confiança no poder judiciário. Quando se percorreu o outro lado da relação entre a confiança no poder judiciário e a cidadania, explorando-se os possíveis efeitos da primeira sobre a segunda, a crença na igualdade perante a lei e a crença no acesso à justiça também não foram impactadas pela confiança nas instituições judiciárias (apenas a confiança nas leis do país e a nota dada aos promotores e tribunais de justiça as impactaram). Nessa análise, o que se destacou foi o aumento da razão de chance daqueles que confiam no poder judiciário acreditarem que os brasileiros cumprem, em alguma medida, as leis. Esses resultados não parecem contraditórios, porém, quando são observados ao lado das respostas às perguntas abertas do survey. Quando perguntados sobre os direitos mais importantes dos brasileiros, o segundo maior percentual dos entrevistados indicou o trabalho 24 (16,4%) e menos de 3% deles apontaram a justiça ou a igualdade social. A emergência do sentimento de proteção das leis trabalhistas no modelo explicativo da confiança no poder judiciário pode ser devida a essa importância atribuída ao trabalho como direito pelos entrevistados, dentro de um conjunto de respostas que, se indica um aumento comparado com pesquisas anteriores (como destaca Daniele, op.cit.), revela um ainda baixo conhecimento dos direitos por parte daqueles. Nesse sentido, parece plausível supor que, para os entrevistados, a capacidade de garantia dos seus direitos pelo poder judiciário, embora com baixo impacto, é um dos critérios do mapa avaliativo e da confiança nessa instituição. Ao mesmo tempo, no que se refere à cidadania, mais de 20% dos entrevistados a associam com o “cumprimento de deveres e obrigações” e com “obedecer às leis”; e apenas pouco mais de 10% mencionam direitos em sua definição e, ainda assim, de modos vagos e esparsos (5,4% definem a cidadania como “ter seus direitos respeitados”; 2,2% “lutar por seus direitos”; 1,3% “exercer direito de votar”; 1,2% “conhecer seus direitos” e 1,1% “poder exercer direitos da Constituição”). Dessa forma, se “ser cidadão” é, antes de tudo, cumprir as leis e as obrigações, e sendo o judiciário a esfera que garante o primado da lei (reconhecido como tal pelos brasileiros), pode-se dizer que as interações entre a confiança no judiciário e o exercício da cidadania explicam-se sobretudo pelas crenças de que os dois lados devem orientar sua ação pela aplicação e obediência ao sistema legal e de que esse, por sua vez, é legítimo. Embora de alcance limitado, em meio às contradições nas visões paradoxais dos brasileiros sobre a justiça como instituição e suas concepções de cidadania, trata-se de um achado importante no sentido da qualidade do regime democrático brasileiro, tendo em vista a primazia do primado da lei na composição de sua estrutura e da difusão de valores liberais de proteção dos direitos e de uma cultura legalista entre a opinião pública para que aquele primado seja efetivo. Por outro lado, o cenário não sugere que essa cultura legalista entre os brasileiros seja “cega”, pois, embora mais de 70% dos entrevistados concordem muito que a lei deva ser obedecida sempre, essa dimensão não exerceu impacto nem sobre a confiança no poder judiciário nem sobre as definições de cidadania pelos brasileiros. O tratamento dessa dissociação, no entanto, vai além dos objetivos deste capítulo. 25 ANEXO 1- Associações entre a procura pelo judiciário e dimensões da cidadania, avaliação da democracia e de suas instituições e perfil socioeconômico e demográfico dos entrevistados Variáveis Sig. Coeficiente Contingência Associação com a Procura por um Tribunal de Justiça “Você acha que todos são iguais perante a lei ou que não há igualdade perante a lei no Brasil?” ,002 ,069 Significativa fraca “Você diria que os brasileiros...as leis?” ,192 ,049 Não há associação Concordância com a frase: “A lei deve ser obedecida sempre, qualquer que seja a circunstância’”. ,005 ,080 Significativa fraca “Você diria que os brasileiros exigem os seus direitos?” ,002 ,085 Significativa fraca “Pensando em como funcionam as coisas no Brasil, você diria que, na prática, os brasileiros conseguem fazer valer os seus direitos sempre, quase sempre, quase nunca ou nunca?” ,552 ,033 Não há associação “Você diria que os brasileiros são muito conscientes, conscientes, pouco conscientes ou nada conscientes de suas obrigações?” ,294 ,043 Não há associação “E dos seus direitos? Você diria que os brasileiros são muito conscientes, conscientes, pouco conscientes ou nada conscientes de seus direitos?” ,279 ,044 Não há associação “E quanto às leis trabalhistas, você se sente muito protegido, protegido, pouco protegido ou nada protegido?” ,980 ,010 Não há associação “Você diria que está muito satisfeito, satisfeito, pouco satisfeito ou nada satisfeito com o funcionamento da democracia no Brasil?” ,022 ,070 Significativa fraca “Você diria que tem muita confiança, alguma confiança, pouca confiança ou nenhuma confiança no PODER JUDICIÁRIO” ,127 ,054 Não há associação “Você diria que tem muita confiança, alguma confiança, pouca confiança ou nenhuma confiança nas LEIS DO PAÍS” ,009 ,076 Significativa fraca “Gostaria que você avaliasse a atuação de cada uma das seguintes instituições: PODER JUDICIÁRIO” ,886 ,024 Não há associação GRAU DE INSTRUÇÃO ,000 ,117 Significativa fraca RENDA MENSAL FAMILIAR ,019 ,095 Significativa fraca FAIXA ETÁRIA ,000 ,147 Significativa fraca Fonte: “A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas” (FAPESP, junho, 2006). Nota 1: Nível de significância adotado: ,05 (em negrito, associações não significantes). Nota 2: O Coeficiente de Contingência, indicado para testar a associação entre variáveis nominais, baseia-se em escala que vai de 0 a 1, sendo que quanto mais próximo de 1, melhor a correlação. Quando usado nas ciências sociais, valores de 0,10 a 0,15 indicam associação fraca, entre 0,15 e 0,20 associação regular e valores acima de 0,2 indicam correlação forte. 26 ANEXO 2 -Variáveis dependentes nas regressões logísticas da Tabela 4 Variáveis Você acha que todos os brasileiros têm iguais oportunidades de acesso à justiça? Você acha que todos os brasileiros são iguais perante a lei? Por favor, diga se você concorda ou discorda da seguinte afirmação: “A lei deve ser obedecida sempre, qualquer que seja a circunstância” Você diria que os brasileiros ... as leis ? Você diria que os brasileiros são muito conscientes, conscientes, pouco conscientes ou nada conscientes de suas obrigações? E dos seus direitos? Você diria que os brasileiros são muito conscientes, conscientes, pouco conscientes ou nada conscientes de seus direitos? Você diria que os brasileiros exigem os seus direitos? Exigem muito, apenas exigem, exigem pouco ou não exigem seus direitos? Pensando em como funcionam as coisas no Brasil, você diria que, na prática, os brasileiros conseguem fazer valer os seus direitos sempre, quase sempre, quase nunca ou nunca? E quanto às leis trabalhistas, você se sente muito protegido, protegido, pouco protegido ou nada protegido? Se o voto não fosse obrigatório, você votaria nas próximas eleições para presidente da República? Sim Não 1 0 Sim Não Concorda muito Concorda pouco Discorda pouco Discorda muito Cumprem muito Cumprem Cumprem pouco Não cumprem Muito Conscientes Conscientes Pouco conscientes Nada conscientes Muito Conscientes Conscientes Pouco conscientes Nada conscientes Exigem muito Exigem Exigem Pouco Não exigem Sempre Quase sempre Quase nunca Nunca Muito protegido Protegido Pouco protegido Nada protegido Sim Não 1 0 1 1 0 0 1 1 1 0 1 1 0 0 1 1 0 0 1 1 1 0 1 1 0 0 1 1 1 0 1 0 Fonte: “A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas” (FAPESP, junho, 2006). 27 XI. POR QUE OS BRASILEIROS DESCONFIAM DA POLÍCIA? UMA ANÁLISE DAS CAUSAS DA DESCONFIANÇA NA INSTITUIÇÃO POLICIAL1 CLEBER LOPES DA SILVA INTRODUÇÃO A polícia é uma instituição central para a qualidade da democracia e a confiança um elemento central para a qualidade do trabalho da polícia. Na condição de depositária das reivindicações permanentes do Estado em monopolizar a força física, a polícia é uma das principais responsáveis pelo primado da lei, uma das dimensões que integram uma democracia de qualidade (O’DONNEL, 2004; E DIAMOND & MORLINO, 2005). É a polícia quem garante o controle legal efetivo do Estado sobre o território, protege os direitos de cidadania contra ameaças criminais e impõe lei e ordem. Para que desempenhe essas funções com eficiência, a polícia depende da confiança dos cidadãos. Construir parcerias com a comunidade para a prevenção da criminalidade, prender criminosos, investigar e solucionar crimes depende em grande medida da cooperação dos cidadãos. Para que a cooperação exista é preciso que os cidadãos confiem na polícia. Sem confiança não há cooperação, e sem cooperação a qualidade do policiamento declina e uma das dimensões da democracia é afetada. Embora a confiança na polícia seja importante para a qualidade do policiamento - e, consequentemente, para a qualidade da democracia -, o fenômeno ainda carece de análises teóricas mais aprofundadas (GOLDSMITH, 2005), pesquisas internacionais comparativas (KÄÄRIÄINEN, 2007) e estudos que dêem conta de explicar os baixos níveis de confiança na polícia nas novas democracias (IVKOVIC, 2008). As análises empíricas sobre a confiança e desconfiança na polícia estão concentradas principalmente nos EUA, onde a polícia é apoiada pela maioria da população, mas vista com desconfiança pelas minorias étnicas, sobretudo os negros. Na literatura sobre as organizações policiais nas novas democracias latino-americanas, o 1 Versão preliminar deste texto foi apresentada no 7° Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política – ABCP, Recife, 04-07 ago. de 2010. Sou grato aos comentários de Lúcio Rennó. Agradeço também Leandro Piquet Carneiro e Umberto Guarnier Mignozzetti pelas sugestões na parte estatística deste trabalho. A responsabilidade pela análise é inteiramente minha 1 tema da desconfiança na polícia aparece marginalmente como corolário do diagnóstico de que a transição democrática na região não foi capaz de lograr uma polícia respeitosa dos direitos dos cidadãos e eficiente no combate à criminalidade (CARDIA, 1997; MÉNDEZ ET. AL., 2000; PANDOLFI ET. AL., 1999; PINHEIRO, 1997; E SOARES ET. AL., 1998). Embora o tema esteja presente nessa literatura, estudos específicos que utilizem desenhos de pesquisa quantitativos capazes de analisar em que medida a desconfiança na polícia está relacionada à ineficiência e à arbitrariedade policial são raros. Estudos de natureza quantitativa sobre a desconfiança em instituições públicas nas novas democracias têm considerado a polícia nas análises, mas ao lado de outras instituições de modo a compor uma medida única de desconfiança em instituições públicas (MISHLER & ROSE, 2001 E 2005; RENNÓ, 2001; MOISÉS & PIQUET, 2008). A variável dependente desses estudos são as instituições públicas, um índice que pode incluir o parlamento, os partidos políticos, o judiciário, o sistema legal, a polícia e as forças armadas. Análises focadas na desconfiança na polícia nas novas democracias são escassas. Há, portanto, uma lacuna importante a ser preenchida. Esse trabalho visa contribuir para o preenchimento dessa lacuna através de um estudo sobre a desconfiança dos brasileiros na polícia. Por que a maioria dos brasileiros desconfia da polícia? Quais fatores explicam essa desconfiança? O objetivo deste artigo é descrever e analisar as origens da desconfiança dos cidadãos brasileiros na instituição policial. Além dos dados da pesquisa A Desconfiança dos Cidadãos nas Instituições Políticas, usados para descrever as percepções dos brasileiros em relação à polícia, serão utilizados dados da Pesquisa Social Brasileira de 2002 para testar, por meio de regressão logística, duas hipóteses: uma mais geral aplicada ao caso da polícia, que sustenta que a desconfiança é explicada institucionalmente pela incapacidade de uma instituição, em seu funcionamento concreto, sinalizar aos cidadãos comprometimento com os valores e princípios que justificam a sua existência; e uma mais específica, que defende que a desconfiança é explicada mais pela percepção pública de que a polícia trata os cidadãos de maneira injusta do que pela percepção de que ela é pouco efetiva no combate à criminalidade. O trabalho está dividido em quatro partes e considerações finais. Na primeira parte é feita a revisão da literatura dos estudos sobre confiança em instituições políticas em geral e dos estudos específicos sobre confiança na polícia. Para o primeiro caso, a revisão privilegiou análises referentes às novas democracias. Para o segundo caso, a revisão focou na literatura de língua inglesa pertinente ao tema e disponível nos principais periódicos internacionais. A partir dessa revisão é proposto, na segunda parte, um modelo analítico para pensar a desconfiança na polícia. Na sequência são apresentados, discutidos e analisados os dados sobre a desconfiança na polícia no Brasil. A quarta parte discute os resultados encontrados, retomando o debate com a 2 literatura. Por fim, nas considerações finais, os achados do trabalho são sumarizados e algumas implicações teóricas e práticas são destacadas. A DESCONFIANÇA EM INSTITUIÇÕES POLÍTICAS Desde os anos 80, estudos em diversas partes do mundo vêm documentando o crescimento da desconfiança dos cidadãos em instituições públicas, entendida como uma síndrome de atitudes que envolve principalmente cinismo e descrédito quanto ao funcionamento das instituições políticas, especialmente as de representação. O fenômeno ocorre tanto nas velhas quanto nas novas democracias, embora haja variações significativas entre os países e entre instituições no interior dos países. Parte da literatura contemporânea de ciência política tem se voltado para o entendimento das origens e consequências desse fenômeno para a democracia. A análise das consequências da desconfiança têm se orientado por uma perspectiva teórica que, inspirada na diferenciação proposta décadas atrás por Easton entre apoio difuso e apoio específico, sustenta que o fenômeno da desconfiança é apenas uma das várias formas de apoio político. Uma das formulações teóricas mais influentes a esse respeito foi feita por Pippa Norris (1999), que diferenciou cinco modalidades de apoio: 1) à comunidade, que remete à vinculação dos cidadãos à nação; 2) à democracia como um ideal, referente à adesão a democracia em contraposição a outros regimes políticos; 3) ao desempenho prático da democracia, que diz respeito à satisfação dos cidadãos com o regime enquanto tal; 4) às instituições, que aponta para o grau de confiança dos cidadãos em instituições públicas; e 5) aos governos e/ou lideranças políticas. A partir dessa diferenciação, os estudos têm procurado entender as conseqüências da desconfiança em instituições para outras formas de apoio político, especialmente o apoio ao regime político per se e à democracia enquanto ideal (MISHLER & ROSE, 2005; MOISÉS & PIQUET, 2008). Os estudos sobre as origens da desconfiança em instituições, por sua vez, têm se desenvolvido a partir de duas tradições teóricas: a culturalista e a institucionalista. Os teóricos culturalistas têm argumentado que a confiança em instituições políticas é um fenômeno exógeno, originado a partir da cultura política aprendida pelos indivíduos, manifesta inicialmente em termos de confiança interpessoal e depois projetada para o âmbito institucional. Os autores filiados a essa perspectiva consideram que uma cultura cívica com altos níveis de confiança interpessoal e institucional é vital para a democracia, quando não condição para a sua existência. Já para os institucionalistas, a confiança política é tida como um fenômeno endógeno, ou seja, uma resposta racional dos indivíduos ao desempenho das instituições. Para esses autores, o apoio à democracia é o resultado das expectativas utilitárias dos cidadãos acerca do bom desempenho político e econômico das instituições do regime. Mais recentemente, alguns 3 autores têm empreendido esforços para aproximar e integrar essas duas tradições teóricas. É o caso de Mishler & Rose (2001) e Moisés (2005). Mishler & Rose (2001) formularam um modelo, chamado de “aprendizado ao longo da vida”, segundo qual a confiança interpessoal pode se desenvolver durante a socialização infantil e posteriormente ser projetada para as instituições, como sustentam as teorias culturalistas. Mas essa predisposição inicial para confiar ou desconfiar em instituições pode ser reforçada ou revisada na fase adulta, a depender da extensão com que os aprendizados iniciais são desafiados ou confirmados. Este modelo foi testado com dados de 10 países pós-comunistas. Os autores consideraram que em sociedades estáveis e com instituições duráveis, a experiência adulta tende a reforçar as crenças infantis, logo, predições institucionais e culturais sobre a confiança coincidiriam. Mas, em sociedades cujas instituições passam por grandes mudanças, caso dos países pós-comunistas, isso tenderia a não ocorrer e teorias institucionais e culturais poderiam, de fato, fornecer explicações muito diferentes, até mesmo contraditórias, para a confiança política. Os resultados dos testes estatísticos apoiaram fortemente as explicações institucionais sobre as origens da confiança política. Os autores concluíram que a confiança em instituições era substancialmente endógena e amplamente determinada pelo desempenho econômico e político, mas essa determinação era mediada no nível micro pelas percepções e valores dos indivíduos. Os autores explicaram esse resultado do seguinte modo: nas sociedades pós-comunistas, embora tenha se formado uma malha de laços estreitos com famílias e amigos, ela não pôde criar confiança institucional porque os regimes pós-comunistas controlaram as instituições de intermediação da sociedade; confiança interpessoal e confiança política permaneceram apartadas. Moisés (2005 e 2008) também vem defendendo uma integração entre teorias culturais e institucionais para tratar o problema da desconfiança em instituições políticas. Com base em Easton e Offe (1999), o autor tem defendido que as instituições não são neutras, e sim um conjunto de regras e procedimentos que exprimem valores e princípios derivados de escolhas realizadas em contextos sociais e culturais específicos, os quais oferecem repertório e contorno para essas escolhas. Nessa perspectiva, a confiança ou a desconfiança em instituições dependeria da avaliação dos cidadãos de que as instituições atuam em conformidade aos valores e princípios que justificaram a sua criação. Assim, por um lado, os indivíduos avaliariam as instituições com base em percepções adquiridas no contexto social mais amplo sobre o que vem a ser a missão fundamental atribuída a elas (motivação culturalista). Por outro, os cidadãos fariam avaliações racionais acerca do desempenho das instituições, possíveis graças à experiência política adquirida ao longo da vida adulta (motivações racionais). É do julgamento decorrente da experiência dos cidadãos com as instituições, influenciado pela percepção fornecida pela cultura 4 política, que se formariam as atitudes de apoio ou falta de apoio político em suas várias dimensões. Com base nessa perspectiva teórica e a partir de dados do Latinobarômetro coletados no Brasil e mais 17 países latino-americanos para os anos de 1997, 2000 e 2001, Moisés & Piquet (2008) analisaram os determinantes da satisfação com a democracia e da desconfiança política, bem como a convivência contraditória entre a desconfiança dos cidadãos nas instituições democráticas, a sua insatisfação com o desempenho do regime e o apoio à democracia como um ideal. Em relação aos determinantes da desconfiança, os autores encontraram que a avaliação dos indivíduos sobre as instituições determinavam tanto o nível de desconfiança quanto a insatisfação com regime, mas fatores relacionados à cultura política e ao desempenho do regime também influenciavam a formação daquelas atitudes. A partir desses resultados, os autores argumentaram que a desconfiança parece ser influenciada pela experiência dos cidadãos com as regras, normas e procedimentos que decorrem do princípio de igualdade de todos perante a lei. Assim, concluíram que as instituições ganham a confiança dos cidadãos desde que sejam capazes de sinalizar universalismo, imparcialidade, justeza e probidade, assegurando assim que os interesses dos cidadãos sejam efetivamente considerados. Os estudos citados acima são importantes, especialmente pela abordagem teórica que propõem para explicar as origens e consequências da desconfiança em instituições políticas. Mas o fato de as análises empíricas serem realizadas tendo como variável dependente um índice que reúne instituições com características muito distintas, caso das instituições do sistema de justiça (judiciário e polícia) e as instituições de representação política (partidos e parlamento), dificulta a análise de questões particulares ao funcionamento de cada uma dessas instituições. Testar as hipóteses propostas por essa literatura considerando as especificidades de cada uma das instituições políticas relevantes para a democracia é um caminho alternativo e promissor para os estudos empíricos relativos ao tema. Considerando essa alternativa e visando definir com mais precisão as variáveis explicativas relevantes para analisar as causas da desconfiança na polícia, faz-se na sequência a revisão de parte da literatura que tem analisado as atitudes públicas em relação à polícia. A DESCONFIANÇA NA INSTITUIÇÃO POLICIAL Na literatura de língua inglesa sobre policiamento, a desconfiança dos cidadãos em relação à polícia é apenas uma das diversas atitudes que vêm sendo investigadas pelos pesquisadores. Numa perspectiva mais ampla, vários autores têm tentado entender as origens e as implicações das atitudes negativas dos cidadãos em relação à polícia. Os termos genéricos “atitudes”, “percepções”, “visões” e “apoio” têm sido usados de maneira pouco rigorosa para apontar uma síndrome de atitudes e comportamentos relativos ao desempenho, confiabilidade, 5 respeitabilidade, integridade, imparcialidade e equidade dos serviços policiais. Rosenbaum et. al (2005), por exemplo, analisou os efeitos dos contatos diretos e indiretos com a polícia sobre o que chamou de “atitudes em relação à polícia”. Essas atitudes envolviam as percepções da população sobre o desempenho da polícia em termos de resposta às demandas da comunidade, prevenção da criminalidade e educação no trato com os moradores. Ivkovic (2008), por sua vez, num dos poucos estudos internacionais comparativos sobre o tema, analisou os determinantes do que chamou de “apoio público à polícia”, um conceito que abarcava as percepções dos cidadãos sobre a confiabilidade e o desempenho da polícia no combate ao crime. Outros estudos têm se dedicado a analisar atitudes específicas tais como a legitimidade e a confiança. Tyler e colaboradores (TYLER, 2004; SUNSHINE & TYLER, 2003 E TYLER & HUNO, 2002), Murphy et. al. (2008) e outros, por exemplo, analisaram recentemente as origens e as consequências das percepções dos indivíduos sobre a legitimidade da polícia. Nesses estudos, a legitimidade foi definida como o atributo que confere a uma instituição ou autoridade o direito de ter os seus comandos obedecidos. Apesar dessa definição, a operacionalização do conceito incluía não apenas questões referentes à disposição das pessoas em obedecer à polícia. Questões relativas à confiança e aos sentimentos afetivos dos entrevistados em relação à instituição policial também foram usadas para mensurar a legitimidade, tornando o conceito confuso, como observou Hawdon (2008). Já autores como Cão. et. al. (1996), Kääriänen (2007) e Goldsmith (2005) discutiram as atitudes de confiança e desconfiança dos cidadãos em relação à polícia. Cão et. al. buscou entender os determinantes da confiança na polícia, que foi mensurada através de questões relativas à crença dos entrevistados sobre a polícia ser responsiva, preocupada com a segurança da vizinhança, capaz de manter a ordem e proteger os cidadãos contra o crime. Kääriänen, num estudo comparativo sobre a confiança na polícia em 16 países europeus, procurou analisar o fenômeno na mesma linha da literatura de ciência política discutida anteriormente. O conceito de confiança, neste caso, foi operacionalizado a partir da questão usualmente empregada em surveys de ciência política para mensurar esse fenômeno, ou seja, uma pergunta na qual o entrevistado, após observar um cartão com várias instituições públicas e algumas privadas, é questionado a respeito do seu grau de confiança em cada uma das instituições2. Goldsmith, por sua vez, não realizou análise empírica; apenas explorou teoricamente a noção de confiança e sua relação com o policiamento tendo em vista a questão da reforma da polícia nos países pósautoritários. Do mesmo modo que Kääriänen, Goldsmith também partiu da literatura mais ampla 2 Nos surveys de ciência política essa questão tem sido mensurada tanto em escalas ordinais quanto contínuas. No trabalho de Kääriänen foi utilizada uma escala contínua. Pedia-se para o entrevistado atribuir uma nota de 0 a 10 para cada uma das instituições perguntadas, sendo que 0 significava nenhuma confiança e 10 confiança total. 6 sobre confiança política para discutir os fatores estruturais e de desempenho que concorreriam para gerar desconfiança na polícia em sociedades com democracias não-consolidadas. Independentemente do foco da análise ser as atitudes gerais dos cidadãos em relação à polícia ou atitudes específicas que remetem à legitimidade e a confiabilidade desta instituição (variáveis dependentes), esses fenômenos têm sido explicados basicamente através de variáveis de três tipos: sóciodemográficas, contextuais e institucionais. Recentemente, Goldsmith (2005) propôs algumas variáveis explicativas histórico-estruturais, mas pouco foi dito sobre como testálas. Ao nível individual, os trabalhos têm dado atenção ao impacto da identidade étnica (ou raça, como a maior parte da literatura americana prefere), condição sócio-econômica, idade, gênero e contato com a polícia sobre as atitudes dos cidadãos em relação a esta instituição. Como informaram Brown e Bento (2002) em artigo que revisou mais de 100 trabalhos sobre o tema, a única variável individual em torno da qual parece haver algum consenso quanto ao impacto nas percepções dos cidadãos sobre a polícia é a idade. Os estudos são praticamente unânimes em afirmar que os mais jovens vêem a polícia mais negativamente do que os mais velhos. Segundo Brown e Bento (2002, p. 558), uma explicação possível para esse fenômeno é que os jovens tendem a valorizar e se engajar com mais freqüência em comportamentos ilegais. Como a polícia atua na domesticação de tais comportamentos, os jovens a veriam de modo mais crítico. Correia et. al. (1996) também deu relevo à explicação semelhante. Segundo ele, os indivíduos mais jovens tendem a valorizar a sua liberdade, enquanto outros grupos etários são mais orientados para a segurança. Outra explicação possível prende-se ao fato de alguns dos principais problemas criminais estarem concentrados na população mais jovem, razão pela qual as pessoas com esse perfil demográfico estariam mais propensas a terem contatos negativos com a polícia (CORREIA ET. AL, 1996, p. 18). O argumento de que populações supostamente super-representadas no universo criminal, seja como vítimas ou perpetradores de crimes, teriam mais contatos negativos com a polícia e por isso cultivariam visões mais negativas sobre esta instituição também tem sido usado para explicar os achados de muitos outros estudos de que pessoas do sexo masculino, de baixa renda e negras têm uma percepção menos favorável da polícia. De fato, ao menos em relação aos homicídios, tantos nos Estados Unidos quanto no Brasil as pesquisas de vitimização e os dados do Sistema de Justiça Criminal apontam que as vítimas e os ofensores são homens, jovens, não-brancos (negros e pardos) e de baixa renda e escolaridade. No caso do Brasil, sabemos que homens entre 15 e 39 anos representam mais de 70% do total de vítimas de homicídio intencional e mais de 90% das vítimas de sexo masculino (Musumeci, 2002). Por outro lado, também há evidências de que pessoas com esse perfil demográfico e sócio-econômico são os alvos 7 preferenciais das ações policiais. Nos Estados Unidos existe farta evidência de filtragem racial (racial profiling) em abordagens policiais. Em rodovias, por exemplo, estudos mostram que motoristas negros são muito mais parados do que motoristas brancos. Surveys de opinião também mostram que os negros têm cinco vezes mais chances de narrarem uma situação na qual foram desrespeitados pela polícia do que os brancos (WEITZER E TUCH, 1999). No Brasil, pesquisa realizada por Ramos e Musumeci (2004) na cidade do Rio de Janeiro encontrou indícios de que, nas abordagens policiais, a probabilidade de ser vítima de ameaça, intimidação, coação e violência física ou psicológica é maior para os jovens, negros e pobres. Contudo, na literatura inglesa sobre policiamento não há consenso em relação ao argumento de que pessoas do sexo masculino, negras e de baixa condição sócio-econômica são mais suscetíveis a contatos negativos com a polícia e, por essa razão, mais desconfiadas. No caso da identidade étnica, por exemplo, a grande maioria dos surveys realizados nos Estados Unidos e Inglaterra indicam que as minorias, especialmente os negros, têm visões mais negativas da polícia do que os brancos3. Todavia, pesquisas recentes conduzidas em áreas metropolitanas racialmente diferentes indicam que os efeitos da raça são influenciados não apenas pela variável contato com a polícia, mas também por outras variáveis contextuais relacionadas às condições de vizinhança e das cidades. Os estudos sobre os efeitos do contato com a polícia, por sua vez, também não são unânimes. Como observaram Brown e Bento (2002), muitos estudiosos encontraram uma ligação entre contatos negativos com a polícia e percepções negativas sobre a polícia, mas esses estudos estão baseados na avaliação subjetiva dos entrevistados acerca da natureza do contato que tiverem com a polícia. No mais, alguns estudos indicam que ter passagem pela polícia e receber uma autuação de trânsito não produz avaliações negativas sobre a polícia, como era esperado. As pesquisas relativas ao impacto das variáveis contextuais também têm produzido resultados múltiplos, como mostraram Brown e Bento (2002). As principais variáveis que os estudiosos têm considerado em seus modelos são: experiência de vitimização, medo do crime e percepções sobre as condições de segurança da vizinhança. A suposição por trás dessas variáveis é a de que nos contextos em que o crime ou os sinais de desordem são mais salientes na vida das pessoas, a confiança na polícia é prejudicada. Os estudos empíricos, no entanto, não são consensuais a respeito dos efeitos dessas variáveis. Cao et. al. (1996), por exemplo, testou o impacto das varáveis contextuais (i) percepções dos cidadãos sobre desordem na vizinhança, (ii) disposição para prover segurança coletiva informalmente, (iii) experiência de vitimização e (iv) medo do crime sobre a confiança na polícia e descobriu que, quando testadas conjuntamente, 3 Nos Estados Unidos, a maior parte das pesquisas que incluíram os hispânicos na análise também apontaram que eles vêem a polícia mais negativamente do que os brancos, embora não tão negativamente quanto os negros. 8 somente as duas primeiras variáveis tinham poder explicativo; raça também não apresentou nenhuma relação significativa com as atitudes dos cidadãos em relação à polícia. Outros estudos detectaram uma ligação entre vitimização e avaliações negativas da polícia, mas alguns trabalhos não encontraram essa relação ou a encontraram em sentido oposto ao esperado. Este último caso foi constatado por Thurman e Reisig (apud. BROWN E BENTO, 2002, p. 555), que numa determinada cidade descobriram que as vítimas de crime avaliavam a polícia menos positivamente do que as não vítimas, resultado que se mostrou inverso quando o estudo foi replicado em outra cidade. Sobre o medo de vitimização, vários estudos também encontraram que os entrevistados que temiam o crime em sua vizinhança avaliavam a polícia negativamente, mas outros estudos não detectaram correlação entre medo do crime e atitudes em relação à polícia. No que diz respeito às variáveis de percepção institucional, as evidências estão mais bem consolidadas. Estudos nesse campo têm focado nos determinantes da legitimidade e confiabilidade da polícia. Além do contato com a polícia, as principais variáveis institucionais que têm sido exploradas são as referentes aos julgamentos de desempenho da polícia em termos de combate ao crime e as avaliações sobre o modo como a polícia exerce sua autoridade e se relacionada com os cidadãos (distributive justice e procedural justice). A hipótese amplamente respaldada pelos estudos empíricos é a de que a credibilidade e a legitimidade da polícia são determinadas principalmente pelos julgamentos da população a respeito dos procedimentos utilizados pela polícia ao lidar com o público: se esses procedimentos são percebidos como corretos e justos, a polícia é considerada legítima e confiável (MASTROFSKI ET. AL., 1996; TYLER & HUO, 2002; TYLER, 2004; MURPHY ET. AL., 2008). Tyler & Huo (2002), por exemplo, num estudo com moradores de Oakland e Los Angeles constataram que as avaliações sobre procedural justice produziam efeitos mais forte sobre as percepções de legitimidade da polícia do que os julgamentos sobre desempenho ou qualquer outra variável demográfica. Sunshine & Tyler (2003) encontraram resultados semelhantes em surveys aplicados na cidade de Nova Iorque. Murphy et. al. (2008) também chegou à mesma conclusão ao analisar uma amostra de uma cidade de médio porte da Austrália. Em conjunto, esses resultados sugerem que a confiabilidade e a legitimidade da polícia dependem primordialmente das percepções dos cidadãos sobre o modo como a polícia exerce sua autoridade, independentemente do impacto das demais variáveis individuais, contextuais e de percepção institucional. Visto em conjunto, os trabalhos de língua inglesa sobre policiamento mostram que, com exceção das variáveis de percepção institucional, há pouco consenso a respeito de quais seriam os determinantes das atitudes dos cidadãos em relação à polícia. Sabe-se também pouco sobre os determinantes de atitudes específicas tais como desconfiança, não aceitação ou insatisfação 9 em relação ao desempenho da polícia. Isso porque, diferentemente da literatura sobre a desconfiança em instituições políticas em geral, que tem trabalhado com uma perspectiva teórica multidimensional na qual as atitudes políticas dos cidadãos são decompostas e analisadas em suas várias dimensões e inter-relações, a literatura específica sobre policiamento tem abordado as atitudes dos cidadãos em relação à polícia de maneira genérica e até mesmo confusa. Vários trabalhos dessa literatura reconhecem a existência de diferentes atitudes em relação à polícia, mas essas atitudes estão por vezes subsumidas em categorias analíticas mal definidas ou demasiadamente genéricas. Como dito, essa literatura está mais preocupada em explorar os determinantes das visões negativas em relação à polícia do que distinguir entre atitudes distintas para então analisá-las separadamente. UM MODELO PARA ANALISAR AS CAUSAS DA DESCONFIANÇA NA POLÍCIA Analogamente ao modo como Norris (1999), Moisés (2005 e 2008) e outros têm tratado as atitudes de apoio político, este trabalho parte da premissa de que as atitudes dos cidadãos em relação à polícia também devem ser encaradas de forma multidimensional. Do ponto de vista teórico é possível distinguir ao menos três conjuntos de atitudes e comportamentos que remetem a diferentes aspectos da existência e funcionamento das instituições policiais: (i) as atitudes de aceitação e rejeição da polícia, que indicariam em que medida a instituição policial é legítima; (ii) as atitudes de confiança e desconfiança, que apontariam para o grau em que a polícia atua em conformidade aos valores e princípios que justificam a sua existência; e (iii) as atitudes de satisfação e insatisfação, que remeteriam ao desempenho momentâneo da polícia no combate ao crime. Ao invés de considerar que (não) aceitação, (des)confiança e (in)satisfação com o trabalho da polícia são atitudes que compõem um único construto analítico, parte-se aqui do pressuposto de que essas atitudes são teoricamente distintas e que, portanto, devem ser analiticamente separadas. Essa distinção é fundamental para que se entendam as inter-relações dessas três atitudes, suas implicações e quais fatores concorreriam para sua existência. O foco deste trabalho está nas atitudes individuais de desconfiança dos cidadãos em relação à polícia. Tendo como referência autores como Offe (1999), Norris (1999) e Moisés (2005 e 2008), sustenta-se que essas atitudes estão baseadas na percepção dos indivíduos de que a polícia, em seu funcionamento concreto, não corresponde às expectativas éticas e normativas associadas à sua existência. Entendida nesses termos, a desconfiança difere das atitudes de não aceitação da polícia, que estão ancoradas na crença dos cidadãos de que a polícia e seus procedimentos não constituem a forma mais apropriada para a manutenção da ordem e provisão de segurança vis-à-vis a outras formas alternativas: vigilantismo, narcotráfico, gangues, grupos de extermínio, milícias, segurança privada, etc. As atitudes de desconfiança também diferem das 10 atitudes de insatisfação com a polícia, que estão baseadas em avaliações negativas, instrumentais e momentâneas acerca dos resultados obtidos pela polícia no combate ao crime (desempenho da polícia). Enquanto as atitudes de aceitação ou rejeição da polícia constituiriam um indicador direto de legitimidade, e as atitudes de satisfação ou insatisfação um indicador da percepção de desempenho, as atitudes de confiança e desconfiança indicariam a confiabilidade da polícia, ou seja, o grau em que a polícia é percebida como sendo capaz de cumprir adequadamente com sua missão institucional: implementar lei e ordem com respeito às regras que regem o devido processo legal. Assim, a desconfiança seria uma atitude intermediária, situada entre a não-aceitação e a insatisfação com a polícia. Aproximar-se-ia da noção de insatisfação pelo fato de ser uma atitude negativa em relação à instituição policial, mas se distanciaria por não expressar uma avaliação momentânea e meramente instrumental, e sim uma percepção mais persistente e ao mesmo tempo racional e valorativa. Neste aspecto, a desconfiança estaria mais próxima à atitude de não-aceitação, que é fortemente valorativa e por isso mais estável no tempo. Mas, diferentemente da não-aceitação, a desconfiança não implicaria numa atitude ou comportamento de rejeição da polícia. A desconfiança implicaria apenas em atitudes de cinismo e descrédito quanto ao funcionamento da instituição policial. Embora teoricamente faça sentido diferenciar insatisfação, desconfiança e rejeição à polícia, é importante reconhecer que essas três atitudes podem aparecer fortemente associadas. A insatisfação continuada pode levar à desconfiança, pois sinalizaria aos cidadãos que a polícia é incapaz de prover segurança e assim fazer jus a sua razão de ser. A desconfiança na polícia, por sua vez, pode levar a uma atitude de rejeição a esta instituição e ao apoio ou aceitação de métodos alternativos e antidemocráticos de controle do crime. Como pesquisas etnografias nos Estados Unidos e no Brasil constataram, populações expostas à violência criminal de grande intensidade e descrentes na intervenção saneadora da polícia tendem a demandar ordem à margem da lei (PAIXÃO, 1991; CARDIA, 1997; MACHADO E NORONHA, 2002; OLIVEIRA ET. AL., 2008; SHIRLEY, 1997, dentre outros). No caso de uma desconfiança extremada, essa demanda pode se traduzir em rejeição à polícia e apoio a ações de atores não-estatais que se disponham a prover segurança. Foi o que descobriu, por exemplo, Shirley (1997) em estudo realizado entre 1985 e 1988 na maior favela de Porto Alegre. A autora constatou que o temor e ódio da população em relação à polícia levaram os moradores a recorrer à gangue local para resolver os problemas de segurança da comunidade. Evidentemente, isso só foi possível porque a população confiava mais na gangue local (elementos nativos) do que na polícia. Dado esse entendimento de desconfiança, a hipótese principal a ser analisada por este trabalho é a de que a desconfiança na polícia é explicada por déficits institucionais, e não contextual, cultural ou sócio-demograficamente. As razões para os cidadãos desconfiarem da 11 polícia não estariam em fatores ambientais associados às condições de segurança da vizinhança. Também não estariam em fatores culturais relacionados à maior ou menor confiança interpessoal, ou ainda em fatores de natureza sócio-demográfica. As explicações para os indivíduos desconfiarem da polícia residiriam na própria polícia. Como vem sustentando Offe (1999), Norris (1999) e Moisés (2005 e 2008), as instituições inspiram confiança quando, coerentes com seus fundamentos legais e sua legitimidade, sinalizam imparcialidade, universalismo, probidade e justeza na relação com os cidadãos. Contrariamente, despertam desconfiança quando são percebidas como parciais, anti-republicanas, corruptas e injustas. No caso da polícia, a desconfiança ocorreria diante das situações em que os cidadãos percebem que seus direitos são desrespeitados em nome do combate à criminalidade, ou quando percebem que a polícia é incapaz de controlar o crime, ou ainda quando estão convencidos da existência do que Paixão e Beato (1997) chamaram de uma polícia de gente, dócil em relação aos privilégios de classe e status, e uma polícia de moleque, nunca hesitante em usar o chicote para a domesticação das rebeldias individuais e coletivas das classes baixas. Assim, tratamento desrespeitoso e desigual, corrupção, uso abusivo da força, discriminação, incapacidade de controlar o crime e outros déficits de natureza institucional explicariam por que os cidadãos desconfiam da polícia. Na esteia da literatura anglo-saxão sobre policiamento, a hipótese secundária a ser testada por este trabalho é a de que os déficits institucionais percebidos pela população não produzem desconfiança de maneira uniforme. Nos termos dos trabalhos de Tyler e colaboradores, sustenta-se que a dimensão procedural e distributive justice têm mais impacto sobre a confiabilidade da polícia do que a dimensão desempenho. Em outras palavras, as percepções públicas sobre o modo como a polícia exerce sua autoridade e se relaciona com os cidadãos é o fator mais importante para a conformação das atitudes de confiança e desconfiança, embora o desempenho da polícia no combate à criminalidade também importe. A desconfiança seria explicada principalmente pela percepção pública de que a polícia não trata os cidadãos de maneira justa e legal. ANÁLISE DOS DADOS A DESCONFIANÇA NA POLÍCIA NO BRASIL Estudos anteriores baseados em dados do Latinobarômetro já haviam apontado que os níveis de confiança em instituições políticas nas novas democracias latino americanas, incluindo o Brasil, são baixos (LAGOS, 1997; RENNÓ, 2001; LOPES, 2004; E MOISÉS, 2008). Os dados da pesquisa A Desconfiança dos Cidadãos nas Instituições Democráticas confirmam o fenômeno, como mostra o gráfico 1. As instituições de representação são as que apresentam o maior nível de desconfiança, com destaque para os partidos - apenas 19% dos brasileiros dizem ter muita ou 12 alguma confiança em partidos políticos. Empatados em quarto lugar estão o sistema legal e a polícia. Cerca de 62% dos brasileiros desconfiam da polícia e das leis. O fenômeno não é particular ao Brasil. A desconfiança na polícia e nas demais instituições políticas também é elevada nos países pós-comunistas, como mostraram Ivkovic (2008) e Mishler e Rose (2001 e 2005). Para os países desenvolvidos da Europa e América do Norte, no entanto, esses resultados são invertidos quando se considera apenas a polícia: 2/3 ou mais dos cidadãos confiam na polícia. No caso da Suécia, Finlândia e Canadá, mais de 80% das pessoas dizem ter muita ou alguma confiança na polícia (IVKOVIC, 2008). Gráfico 1. Confiança e Desconfiança em Instituições Públicas - Brasil (2006) Bombeiros Forças Armadas Poder Judiciário Presidente Polícia Leis do país Governo Congresso Nacional Partidos Políticos 0 10 20 30 40 Confiança* 50 60 70 80 90 100 % Desconfiança** Fonte: Pesquisa A Desconfiança dos Cidadãos nas Instituições Democráticas * "Muita confiança" e "alguma confiança"; exclui os que não responderam e os que não souberam responder; ** "Pouca confiança" e "nenhuma confiança"; exclui os que não responderam e os que não souberam responder. A elevada desconfiança na polícia contrasta com o reconhecimento de que a polícia é uma instituição fundamental para o país, o que pode ser considerado um indicador de legitimidade. Quase 90% das pessoas acreditam que a polícia deva existir para o país ir em frente (gráfico 2). A atuação da polícia também é percebida de uma forma mais positiva do que sua confiabilidade: 43% consideram ótima ou boa sua atuação, 15% consideram regular e 42% vêem-na como ruim ou péssima (gráfico 3). Esses dados indicam o quão complexa são as atitudes dos cidadãos em relação à polícia e também a pertinência de tratá-las separadamente. A aceitação da instituição policial, o grau de confiança e de satisfação com a sua atuação não são atitudes que se equivalem e se distribuem igualmente entre a população, embora em determinadas situações essas atitudes possam se associar fortemente. 13 Gráfico 2. Importância da Polícia em Comparação com Outras Instituições - Brasil (2006) Deputados e Senadores Partidos Políticos Ministros Governadores Polícia Prefeituras Tribunais de Justiça Presidente da República 0 10 20 30 40 50 Tem que ter para o país ir em frente 60 70 80 90 100 % Não tem que ter para o país ir em frente Fonte: Pesquisa A Desconfiança dos Cidadãos nas Instituições Democráticas * Exclui os que não souberam responder e os que não responderam Gráfico 3. Avaliação da Atuação da Polícia - Brasil (2006) Ótima 3% Péssimo 11% Boa 40% Ruim 31% Regular 15% Fonte: Pesquisa A Desconfiança dos Cidadãos nas Instituições Democráticas * Exclui os que não souberam responder e os que não responderam Mas quando os cidadãos brasileiros dizem ter pouca ou nenhuma confiança na polícia, de qual polícia estão falando? A Constituição Federal de 1988, em seu art. 144, estabeleceu cinco órgãos policiais no Brasil: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis e Polícias Militares4. Dentre essas forças policiais, destacam-se três: as Polícias Militares, as Polícias Civis e a Polícia Federal. As duas primeiras são organizadas pelos estados e são as que os cidadãos comuns têm mais contato. A Polícia Militar é incumbida do policiamento ostensivo e, por isso, está em contato permanente e intenso com o público5. A Polícia Civil é 4 Os corpos de bombeiros foram definidos como parte das Polícias Militares. 5 Dentre as dezenas de funções efetivamente desempenhadas pelas Polícias Militares estão as de: i) realizar operações para a captura de criminosos ou apreensão de armas, drogas ou contrabando no estado em que atua; ii) atender diretamente a população, ajudando no transporte de doentes, na orientação de pessoas em dificuldades, na pacificação de disputas domésticas, no encaminhamento da população carente aos órgãos responsáveis por problemas de saneamento, habitação, etc; iii) fazer o policiamento especializado em áreas turísticas, estádios, grandes eventos e festas populares; iv) controlar e orientar o trânsito, mediante convênios com as prefeituras; iv) fiscalizar e controlar a 14 responsável pela investigação de crimes e pelo papel de polícia judiciária nos estados. Seu contato com o público é menos intenso e geralmente ocorre quando é demanda para a instauração de procedimento investigatório sobre crimes ou para realizar identificação civil nos estados onde mantém órgão para isso. A Polícia Federal, força policial organizada pela União, é mais especializada em suas atribuições e por isso menos presente no cotidiano dos cidadãos. Dentre as atribuições constitucionais da Polícia Federal estão as de: i) apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, bem como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional; ii) prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes, o contrabando e o descaminho; iii) exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; iv) e exercer o papel de polícia judiciária da União. Dadas essas atribuições, os cidadãos tendem a ter pouco contato com a Polícia Federal, que interage mais intensamente com o público em situações relacionadas ao deslocamento de pessoas para além das fronteiras territoriais brasileiras: emissão de passaportes, checagem em postos de fronteira, etc. Todavia, a Polícia Federal adquiriu grande visibilidade a partir de 2003 através de operações especiais de combate à corrupção e outros crimes de colarinho branco. Assim, é difícil saber ao certo se quando os cidadãos são questionados a respeito da polícia respondem tendo em mente a atuação de uma dessas forças policiais específicas ou se avaliam o conjunto das instituições incumbidas de manter a ordem e prover segurança pública: a instituição polícia de forma genérica. Há índicos de que a maioria dos cidadãos avalia a polícia de uma forma genérica, considerando aquelas instituições que estão mais próximas do seu dia-a-dia: a Polícia Militar e a Polícia Civil. Parece também que a desconfiança na polícia é um fenômeno com alguma estabilidade no tempo. Dados da Pesquisa Social Brasileira (PESB) de 2002 mostram que naquele ano mais de 2/3 dos cidadãos também desconfiavam da polícia. Quando os entrevistados foram questionados diretamente sobre se a polícia inspirava confiança ou não inspirava confiança, 67,3% dos que responderam a essa questão disseram que ela não inspirava confiança. Perguntas específicas sobre a confiança na Polícia Militar, Polícia Civil e Polícia Federal na PESB de 2002 trazem um grande número de casos missing (pouco mais da metade da amostra), mas dentre os que responderam cerca de 75% disseram “não confiar” e “confiar pouco” na Polícia Militar e na frota de veículos, em ações integradas com outros órgãos públicos; v) atuar na preservação da flora, da fauna e do meio ambiente, através de batalhão especializado; iv) fazer o serviço de segurança externo das unidades prisionais e na escolta de presos de alta periculosidade; v) fazer serviços de segurança de Fóruns de Justiça; vi) apoiar oficiais de Justiça em situações de reintegração de posse e outras determinações judiciais com risco; vii) trabalhar na segurança de dignitários, de testemunhas ou pessoas sob ameaça; viii) apoiar órgãos públicos, estaduais e municipais, em atividades como ações junto à população de rua e trato com crianças e adolescentes em situação de risco social, etc. 15 Polícia Civil. A Polícia Federal saiu-se melhor, mas mesmo assim a maioria da população desconfiava desta instituição em 2002 - 59,3% disseram não confiar e confiar pouco (gráfico 4). Gráfico 4: Desconfiança na Polícia Militar, Polícia Civil e Polícia Federal - Brasil (2002) Polícia Federal Polícia Civil Polícia Militar 0 10 20 30 40 50 Confiança* 60 70 80 90 100 % Desconfiança** Fonte: PESB 2002 * "Confia" e "confia muito"; exclui os que não responderam e os que não souberam responder; ** "Não confia" e "confia pouco"; exclui os que não responderam e os que não souberam responder. O caso da Polícia Federal parece bastante singular não apenas por esta instituição apresentar níveis de desconfiança diferentes daqueles das forças policiais estaduais, mas também por pesquisas recentes patrocinadas pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) apontarem que a Polícia Federal atualmente disputa com as Forças Armadas o posto de instituição pública mais confiável do país. A partir de uma amostra representativa da população adulta brasileira com acesso à rede telefônica, sondagens realizadas em nome da AMB em 2007 e 2008 mostraram que a Polícia Federal detinha a confiança de 75,5% e 70% da população, respectivamente. O crescimento vertiginoso da confiança na Polícia Federal entre 2002 e 2007 dificilmente pode ser explicado somente por uma diferença nas amostras e nos métodos de pesquisa usados pela PESB e pela AMB. A reestruturação pela qual passou a Polícia Federal no período e o seu maior engajamento no combate aos crimes de colarinho branco, ao lado da imensa visibilidade que adquiriu, certamente são fatores fundamentais para explicar o crescimento da confiança nesta instituição. Levando em conta as particularidades da Polícia Federal em termos de atribuições e da visibilidade que adquiriu nos últimos anos, as hipóteses desse trabalho talvez não sejam as mais adequadas para explicar as variações da confiança nesta instituição, que merece um estudo específico. De qualquer modo, os dados das diferentes pesquisas citados acima parecem sugerir que, quando questionados sobre a confiabilidade da polícia, os cidadãos consideram em suas respostas as instituições responsáveis pela implementação de lei e ordem em geral, especialmente as que estão mais próximas do seu cotidiano: a Polícia Civil e, principalmente, a 16 Polícia Militar. E o grau de confiabilidade destas instituições parece ser um fenômeno relativamente estável no tempo, sendo que a grande maioria dos brasileiros desconfia da polícia. TESTANDO AS CAUSAS DA DESCONFIANÇA Para testas as hipóteses levantadas anteriormente sobre as causas da desconfiança na polícia recorreu-se aos dados da PESB. Esta pesquisa realizou 2.364 entrevistas domiciliares entre 18 de julho e 5 de outubro de 2002. Para a definição da amostra foram utilizados os dados da contagem de 1996 do IBGE e a divisão político-administrativa brasileira (cinco regiões, 26 estados mais o Distrito Federal e 5.507 municípios). A partir daí, foram sorteados 102 municípios e, destes, 27 foram considerados auto-representativos (as capitais dos estados) e 75 não-representativos. A amostra foi probabilística, com três estágios de seleção. No primeiro estágio, 102 unidades primárias de amostragem (UPAs), ou municípios, foram selecionados probabilisticamente e proporcionalmente ao tamanho. No segundo estágio, 280 unidades secundárias de amostragem (USAs) - setores censitários - foram selecionadas probabilistica e proporcionalmente em cada município. No terceiro estágio, os domicílios foram selecionados proporcionalmente ao tamanho de forma sistemática. No final, um adulto foi selecionado aleatoriamente dentro de cada domicílio para responder à pesquisa. Para reduzir custos, todos os municípios com até 20 mil habitantes das regiões Norte e Centro-Oeste foram excluídos. Com isso, o equivalente a 3,1% da população ficou de fora da população amostrada. Dentre as várias temáticas abordadas pela PESB há uma dedicada às opiniões dos cidadãos em relação à violência, criminalidade e segurança pública. A análise foi operacionalizada com questões referentes a essa temática. Para compor a variável dependente “desconfiança na polícia” recorreu-se à questão que perguntava diretamente aos cidadãos sobre a confiabilidade da polícia (Questão 254): Na sua opinião, a polícia inspira confiança ou não inspira confiança? Como colocado anteriormente, 67,3% dos que responderam a essa questão disseram que a polícia não inspirava confiança. A opção em usar esta questão como variável dependente em detrimento das questões da PESB que perguntavam aos cidadãos o seu grau de confiança na Polícia Militar, Civil e Federal deve-se a três razões: o grande número de casos missing presente nas questões específicas sobre as três forças policiais; o fato de as demais questões da PESB (exceto questões sobre o desempenho das forças policiais) não distinguirem entre Polícia Militar, Civil e Federal; e a suspeita mencionada anteriormente de que quando os cidadãos são indagados sobre a polícia respondem tendo em mente a polícia enquanto instituição geral, embora provavelmente tenham como referência aquelas forças policiais mais presentes em seu cotidiano. Variáveis explicativas de diferentes tipos foram operacionalizadas a partir das questões da PESB: variáveis de percepção institucional; variáveis contextuais e variáveis culturais e 17 sóciodemográficas. As variáveis de percepção institucional utilizadas foram “desempenho da polícia”, “forma como a polícia trata os cidadãos” e “contato com a polícia”. As variáveis contextuais operacionalizadas foram quatro: “experiência direta de vitimização” “experiência indireta de vitimização”, “percepção de segurança na vizinhança” e “criminalidade na vizinhança”. Já as variáveis culturais e sóciodemográficas incluídas na análise foram “confiança interpessoal”, “gênero”, “idade”, “cor” e “escolaridade”. O anexo 1 resume as questões utilizadas para compor essas variáveis, explica a metodologia adotada e especifica os efeitos esperados para cada variável. Para testar os efeitos das variáveis contextuais, culturais, sóciodemográficas e de percepção institucional sobre a desconfiança na polícia recorreu-se a um modelo de regressão logística, adequado quando a variável dependente é uma dummy, caso da variável em estudo. Inicialmente, foram construídos modelos separados para cada conjunto de variáveis (modelos 1, 2 e 3). Em seguida, foi construído um modelo geral com todas as variáveis que apresentaram significância estatística nos modelos separados (modelo 4). Por fim, um último modelo foi ajustado na tentativa de se obter estimadores mais precisos. Para todos os modelos foi realizado diagnóstico de multicolineariedade e de pontos influentes, tal como sugeridos por Maroco (2007). Nenhum dos modelos apresentou problemas dessa natureza. A tabela 1 mostra as razões de chance (O.R), a significância das variáveis testadas (sig) e as estatísticas de ajustamento e qualidade dos modelos construídos. O anexo 2 traz o output completo fornecido pelo software SPSS (v. 17) para o modelo 4. Tabela 1: Razões de chance e significância das variáveis explicativas da desconfiança na polícia Modelo 1 O.R. sig Variáveis culturais/sociodemográficas Não confia nas pessoas Cor (preto) Gênero (homem) Idade (jovens: 18-24) Escolaridade baixa Escolaridade média Variáveis contextuais Vizinhança insegura Vizinhança com crimes Experiência direta de vitimização Experiência indireta de vitimização Variáveis de percepção institucional Desempenho insatisfatório Não trata os cidadãos de maneira justa Teve contato com a polícia N. do modelo -2 Log Likelihood (-2 LL) 2,071 1,067 0,887 1,356 0,241 0,508 Modelo 2 O.R. sig. Modelo 3 O.R. sig. Modelo 4 O.R. sig. * 1,159 ** * * 1,234 0,527 0,678 1,047 1,133 1,085 1,141 * * ** * Modelo 5 O.R. sig. 1,035 1,031 1,022 1,027 Pseudo R 2 de Nagelkerke 2.184 2.655,216 0,031 1.699 2.025,353 0,112 1,119 * 2,001 * 0,850 1.435 1.017,643 0.586 Hosmer & Lemeshow (X 2HL) p. 0,463 p. 0,355 p. 0.334 * p < 0,01; ** p < 0,05; 18 1,086 * 1,960 * 1,117 1,999 * * 1.432 1.017,643 0,586 1.803 1.280,771 0,581 p. 0.067 p. 0,202 O modelo geral (modelo 4) mostra que apenas as variáveis relativas ao modo como a população percebe o desempenho da polícia e o modo como a polícia trata os cidadãos apresentam significância estatística. Os modelos sem essas variáveis apresentam ajustes ruins (modelos 1 e 2), ao passo que o modelo contendo apenas essas duas variáveis (modelo 5) é capaz de explicar satisfatoriamente a desconfiança na polícia. O p-valor do teste de Hosmer & Lemeshow para o modelo reduzido a essas duas variáveis é maior do que 0,05 (nível de significância adotado), indicando que o modelo ajusta-se aos dados6. Esse modelo é capaz de classificar corretamente 67,13% das pessoas que consideraram que a polícia inspirava confiança (especificidade do modelo) e 93,1% das pessoas que disseram que a polícia não inspirava confiança (sensibilidade do modelo), o que dá um percentual geral de casos corretamente classificados igual a 85%. O pseudo R2 de Nagelkerke indica que o modelo reduzido às duas variáveis de percepção institucional explica cerca de 58% da quantidade de variação da variável desconfiança, valor semelhante ao obtido no modelo 47. Do ponto de vista do efeito, as razões de chance das duas variáveis institucionais que apresentaram significância estatística comportaram-se conforme o esperado, confirmando as hipóteses deste trabalho. A chance de alguém considerar que a polícia não inspira confiança aumenta à medida que aumenta a percepção de que as forças policiais não alcançaram resultados satisfatórios no combate à criminalidade nos últimos 12 meses. A probabilidade de uma pessoa desconfiar da polícia aumenta em 11,7% a cada variação negativa no índice que mede o desempenho das forças policiais em termos de resultados. Essa probabilidade é muito maior quando se considera a variável relacionamento da polícia com os cidadãos. À medida que cresce a percepção das pessoas de que a polícia se relaciona com os cidadãos de maneira injusta, aumenta as chances de elas desconfiarem da polícia. Cada variação negativa no índice que mede a forma como a polícia se relaciona com os cidadãos praticamente dobra a probabilidade de as pessoas desconfiarem da polícia. As variáveis contextuais, culturais e sociodemográficas que apresentaram significância estatística nos modelos individuais não apresentaram significância quando controladas pelas variáveis de percepção institucional (modelo 4). A surpresa aqui fica por conta da variável idade, que prediz atitudes negativas em relação à polícia na maior parte dos trabalhos da literatura de língua inglesa, não ter apresentado efeito estatisticamente significativo. A variável institucional referente ao contato com a polícia também não apresentou significância. Embora o modo como 6 O teste de Hosmer & Lemeshow permite testar a significância do ajustamento do modelo com todas as variáveis. O teste avalia se os valores estimados pelo modelo são próximos dos valores observados (H0 verdadeira, com p-value ≥ α), situação na qual o modelo ajustar-se-ia aos dados. Para mais detalhes ver Maroco (2007). 7 O pseudo R de Nagelkerke pode assumir valores entre 0 (o modelo não explica nenhuma variância da variável dependente) e 1 (o modelo explica 100% da variância da variável dependente – ajuste perfeito). 2 19 essa variável foi operacionalizada não seja ideal, o fato de as demais variáveis de percepção institucional predizerem a desconfiança na polícia sugere que as pessoas têm visões sobre o funcionamento da polícia que independem do fato de elas terem tido contato com esta instituição, visões essas que levam elas a desconfiarem. DISCUSSÃO Os resultados da análise de regressão logística confirmam a hipótese central deste trabalho: a desconfiança na polícia é explicada por déficits institucionais percebidos pela população e não por variáveis contextuais, culturais ou sóciodemográficas. A confiabilidade da polícia relaciona-se com as expectativas públicas associadas aos resultados obtidos por esta instituição no combate à criminalidade e, principalmente, ao modo como os policiais utilizam sua autoridade e tratam os cidadãos. Mais especificamente, a análise estatística mostra que a desconfiança pode ser predita diante das situações em que os cidadãos percebem que são tratados de maneira injusta pela polícia ou quando estão diante de uma força policial considerada pouco efetiva no combate à criminalidade. Assim, resultados parcos, tratamento desrespeitoso e desigual, extorsão e uso abusivo da força seriam fatores que concorreriam diretamente para gerar desconfiança na polícia. Esse achado está de acordo com as afirmações de Norris (1999), Offe (1999) e Moisés (2005 e 2008) de que a desconfiança é produto das situações em que as instituições não sinalizam comprometimento com os valores básicos que ensejaram a sua criação: efetividade, imparcialidade, universalismo, probidade e justeza na relação com os cidadãos. A análise também dá razão à hipótese de que a percepção pública sobre o modo como a polícia exerce sua autoridade e se relaciona com os cidadãos é o fator mais importante para gerar desconfiança. Os julgamentos sobre a justeza do modo como a polícia trata os cidadãos são os mais fortes preditores da desconfiança na polícia. A opinião das pessoas de que a polícia é pouco efetiva no combate à criminalidade também prediz a desconfiança na polícia, mas com pouca intensidade. Ou seja, a desconfiança na polícia deriva principalmente da percepção de que a polícia utiliza a sua autoridade de maneira ilegal ou injusta: desrespeita os direitos dos cidadãos, não trata as pessoas de forma igual, recorre a subornos, utiliza a violência de maneira abusiva e causa mais medo do que segurança em suas abordagens. Esses resultados também são consistentes com pesquisas anteriores sobre a legitimidade e a confiabilidade da polícia e de outras autoridades públicas. Como informou Tyler (2004), estudos sobre as percepções das pessoas em relação a diversos tipos de autoridades – policiais, juízes, líderes políticos, administradores e professores – têm gerado forte apoio ao argumento de que variações nessas percepções são determinadas principalmente por procedural justice. Os cidadãos têm fortes 20 expectativas quanto a serem tratados adequadamente pelas instituições e quando isso não ocorre suas opiniões são impactadas mais fortemente do que quando essas instituições não produzem os resultados esperados. A confirmação da hipótese de caráter institucional de que a desconfiança na polícia reside na própria polícia - melhor dizendo, na incapacidade de a instituição policial sinalizar aos cidadãos uma ação coerente com os princípios normativos que orientam o seu trabalho - não quer dizer que a cultura não possa operar para a determinação deste resultado. As percepções das pessoas sobre as instituições são orientadas culturalmente por esquemas, categorias e modelos cognitivos presentes nos contextos sociais em que vivem. Como Mishler & Rose (2001 e 2005) e Moisés (2005) têm argumentado, a desconfiança dos cidadãos em relação às instituições não resulta apenas de avaliações racionais sobre o seu funcionamento, mas também de valores adquiridos em processos primários de socialização que podem tornar as pessoas mais ou menos propensas a confiar em outras pessoas e instituições. Nessa perspectiva, a desconfiança seria o resultado da combinação de orientações derivadas de valores adquiridos em processos originários de socialização com a avaliação proporcionada pela experiência direta ou indireta dos indivíduos com as instituições. Aqui é preciso considerar que não apenas a experiência dos cidadãos com as instituições habilita-os a julgarem-nas e a reverem visões formadas através de processos de socialização, conforme formulado pelo modelo do aprendizado ao longo da vida de Mishler e Rose, mas também o contrário: visões a priori das instituições podem influir no modo como os cidadãos avaliam o seu funcionamento. No caso da desconfiança na polícia, uma vez que as pessoas tenham aprendido que a polícia não é uma instituição confiável - seja por fatores de ordem cultural ou em razão de um padrão histórico de atuação que tenha levado a essa percepção -, interpretações sobre o modo como ela utiliza sua autoridade podem ser fortemente condicionadas por esse ponto de vista. É preciso considerar a possibilidade de uma relação de causalidade recíproca entre desconfiança e percepções sobre como a polícia age. Essa questão foi problematizada recentemente por Rosenbaum et. al. (2004) e Hawdon (2008), que questionaram a direção da causalidade suposta nos estudos sobre legitimidade da polícia e procedural justice. Esses autores notaram que opiniões a priori que os indivíduos venham a ter da polícia podem influir tanto no modo como um contato com esta instituição se desenrola quanto na maneira de interpretar esse contado. O raciocínio certamente aplica-se às atitudes de confiança e desconfiança. Aqueles que desconfiam da polícia podem ser mais propensos a avaliar negativamente um contato com essa instituição. Além disso, um indivíduo desconfiado também pode induzir os policiais a utilizar procedimentos mais agressivos caso essa desconfiança implique num comportamento defensivo ou esquivo diante de uma abordagem policial, por exemplo. Nessas circunstâncias, a máxima “quem não deve não teme” comandará a lógica de 21 atuação dos policiais, que tenderão a utilizar procedimentos mais agressivos e passíveis de serem interpretados como injustos pelos cidadãos. Há evidências de que uma predisposição para ver a polícia de maneira negativa ou positiva pode levar as pessoas a recordarem encontros diretos com a polícia ou casos de encontros relatados por terceiros (parentes, vizinhos ou mesmo pela mídia) de maneira seletiva. Num estudo com moradores de Chicago que analisou as atitudes dos cidadãos antes e depois de eles terem experiências diretas ou ouvirem relatos sobre experiências com a polícia, Rosenbaum et. al. (2004) concluiu que as atitudes prévias jogam um papel crítico na formação dos julgamentos posteriores sobre experiências com a polícia. Para explicar essa descoberta, os autores argumentaram que o trabalho da polícia não é apenas crivado por preconceitos da parte dos policiais, mas também da parte dos policiados. As percepções dos cidadãos a respeito da polícia estariam baseadas em supergeneralizações equivocadas e persistentes. A polícia seria alvo do que os psicólogos chamam de “desvios para confirmação”: uma forma seletiva de interpretar a realidade em que as pessoas tendem a ver o que confirma as suas crenças e a ignorar ou diminuir as evidências que a contradizem. Assim, uma predisposição inicial para ver a polícia de maneira negativa poderia levar as pessoas a interpretarem ou recordarem de maneira seletiva encontros considerados injustos. Se o raciocínio acima estiver correto, não só o mau funcionamento da instituição policial pode estar produzindo desconfiança, mas a própria desconfiança pode estar contribuindo diretamente para a visão de que a polícia funciona mal e por isso não merece a confiança dos cidadãos. É possível que haja uma relação de causalidade recíproca entre a desconfiança e as percepções das pessoas de que a polícia atua de maneira injusta. Considerando que o Brasil tem uma longa história de abusos cometidos pela polícia, esse argumento é bastante instigante. Historicamente, a atuação da polícia brasileira caracterizou-se pelo uso de métodos violentos, ilegais ou extralegais. Independentemente do regime político em vigor, durante todo o século XX a polícia atuou dentro do que Pinheiro (2001) chamou de “regime de exceção paralelo”, usufruindo de poderes extralegais e ampla margem de autonomia. A ilegalidade e arbitrariedade policial tiveram como alvo principal os grupos mais desprivilegiados, estendendo-se para outros grupos sociais nos períodos autoritários. A experiência histórica com uma polícia pouco comprometida com o respeito aos direitos civis na sua relação com os cidadãos pode ter introjetado nos brasileiros uma visão negativa desta instituição. A desconfiança na polícia pode ter se convertido num elemento da cultura política brasileira capaz de persistir independentemente de mudanças qualitativas no padrão institucional histórico de atuação da polícia. Isso ajudaria a explicar o fato de a desconfiança na polícia ser, ao que parece, uma atitude estável no tempo. Mais do que déficits institucionais relacionados ao modo como a polícia trata 22 os cidadãos, o que pode estar em questão na atualidade é a persistência de traços de uma cultura política, fomentada ao longo de gerações, na qual a polícia aparece como uma instituição pouco comprometida com os valores e princípios que justificam sua existência. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo a polícia como objeto de análise este trabalho testou a hipótese de que quando as instituições funcionam de modo deficitário elas provocam desconfiança. A suposição foi a de que se a polícia for incapaz de sinalizar comprometimento com os valores básicos que justificam sua existência ela suscitará sentimentos de desconfiança. Testou também a hipótese de que a desconfiança é gerada principalmente pela percepção pública de que a polícia utiliza sua autoridade de maneira ilegal ou injusta. Os resultados da análise confirmaram ambas as hipóteses, mas a discussão aqui realizada sugere cautela na interpretação dos achados. É possível que a relação de causalidade suposta por esse trabalho também ocorra em sentido contrário, ou seja, é possível que as percepções públicas sobre o mau funcionamento da polícia estejam ligadas ao fato de os brasileiros terem aprendido desde cedo a desconfiar desta instituição, cuja atuação ilegal e arbitrária foi vivenciada por várias gerações. Mishler e Rose (2001 e 2005) e Moisés (2005 e 2008) argumentaram recentemente que a experiência com as instituições é um elemento fundamental para a determinação das atitudes de confiança e desconfiança dos cidadãos. Segundo esses autores, os indivíduos aprendem a confiar ou desconfiar das instituições por meio de processos de socialização, mas à medida que entram em contato com as instituições na vida adulta, tornam-se capazes de avaliá-las racionalmente e a rever suas visões iniciais. A discussão deste trabalho sugere que é preciso considerar também os efeitos contrários, ou seja, o de que visões adquiridas durante processos primários de socialização possam condicionar fortemente os julgamentos que os indivíduos fazem das instituições. Novos desenhos de pesquisa precisam incorporar essa questão de modo a identificar em que medida as atitudes dos cidadãos formadas a partir de processos primários de socialização são impermeáveis a novas informações adquiridas ao longo da vida adulta. O fato é especialmente importante para os países que hoje são democráticos, mas que viveram longos períodos de autoritarismo no passado. Para o caso da polícia, esclarecer essas questões não é importante apenas do ponto de vista teórico. É importante também para a formulação de estratégias de policiamento mais eficientes e efetivas. A confiança é um bem precioso para a polícia. O aumento da confiança tem reflexos diretos sobre a capacidade de a polícia envolver a comunidade na prevenção da criminalidade, prender criminosos, aumentar o conhecimento sobre a dinâmica criminal e solucionar crimes. Saber se a desconfiança que os brasileiros nutrem pela polícia tem sua origem 23 nos déficits institucionais analisados por este trabalho ou se está enraizada no tecido social – ou as duas coisas - faz toda a diferença para os formuladores de políticas públicas. Se os achados deste trabalho estiverem realmente corretos, aumentar a confiança na polícia depende basicamente da própria polícia, que deve buscar um policiamento ao mesmo tempo eficiente e respeitoso dos direitos dos cidadãos. Por outro lado, se a desconfiança na polícia for parte da cultura política do brasileiro, alterar esse quadro vai exigir mais do que alterar os procedimentos que a polícia utiliza ao se relacionar com os cidadãos. Neste caso, aumentar a confiança na polícia dependerá de esforços mais amplos, dentre os quais estratégias de comunicação voltadas especificamente para esse propósito. 24 ANEXO 1 – Metodologia utilizada para a construção das variáveis explicativas Quadro 1: Construção das variáveis explicativas utilizadas no modelo de regressão logística Variável Desempenho da Polícia * Questões Nos últimos 12 meses, o trabalho que a Polícia .............vem fazendo está dando muito resultado [4] // resultados médios [3] // pouco resultado [2] // ou nenhum resultado [1] ? Q. 150. Polícia Militar? Q. 161. Polícia Civil? Q. 163. Polícia Federal? Forma como a polícia trata os cidadãos Q. 246. Na sua opinião a polícia é: [1] honesta ou [2] corrupta? Q. 248. Na sua opinião a polícia [1] respeita os direitos do cidadão ou [2] não respeita os direitos do cidadão? Q. 251. Na sua opinião a polícia [1] trata pobres e ricos de maneira igual ou [2] trata os ricos melhor do que os pobres? Q. 253. Na sua opinião a polícia [1] só usa a violência quando é necessário ou [2] abusa da violência? Q. 257. Na sua opinião a polícia [1] tranqüiliza as pessoas ou [2] assusta as pessoas? Q. 258. Na sua opinião a polícia [1] trata brancos, pardos e pretos de maneira igual ou [2] trata os brancos melhor do que pardos e pretos? Escala de Mensuração Efeito esperado Índice que pode variar de 0 (resultados satisfatórios) a 10 (resultados insatisfatórios) Quanto pior o desempenho, maior a desconfiança Índice que pode variar de 0 (trata os cidadãos de maneira justa) a 10 (não trata os cidadãos de maneira justa) Quanto pior a percepção das pessoas sobre o modo como a polícia trata os cidadãos, maior a desconfiança Dicotômica: [0] não teve contato; [1] teve contato Pessoas que tiveram contato com a polícia são mais desconfiadas Índice que pode variar de 0 (nunca foi vítima de um crime) a 10 (foi vítima de vários crimes) Quanto maior a experiência de vitimização, maior a desconfiança. Índice que pode variar de 0 (não conhece ninguém que tenha sido vítima de crime) a 10 (conhece várias pessoas que foram vítimas de crime) Quanto maior o número de conhecidos próximos que foram vitimas de crimes, maior a desconfiança Q. 201. O(a) Sr(a) já foi alguma vez a uma delegacia de polícia para registrar uma queixa? [1] Sim; [2] Não, porque não confio na polícia/ não adianta; [3] Não, porque nunca precisei; [66] Não, por outra razão Contato com a Polícia Q. 202. O(a) Sr(a) já telefonou alguma vez para a polícia pedindo para ela resolver algum problema? [1] Sim; [2] Não, porque não confio na polícia/ não adianta; [3] Não, porque nunca precisei; [66] Não, por outra razão Q. 203. O(a) Sr(a) já se dirigiu a um policial na rua para pedir que ele resolvesse algum problema? [1] Sim; [2] Não, porque não confio na polícia/ não adianta; [3] Não, porque nunca precisei; [66] Não, por outra razão. Agora eu vou mencionar alguns tipos de crimes e gostaria de saber se alguma vez na vida ocorreu com o(a) Sr(a). Experiência direta de vitimização Q. 214. Já foi assaltado à mão armada? [1] Sim; [0] Não. Q. 215. Já foi roubado por um ladrão sem armas? [1] Sim; [0] Não. Q. 216. Já teve sua casa roubada? [1] Sim; [0] Não. Q. 218. Já teve o carro roubado? [1] Sim; [0] Não. Q. 219. Já foi agredido por alguém na rua? [1] Sim; [0] Não. Q. 220. Já foi ameaçado de morte? [1] Sim; [0] Não Tem algum parente próximo como pais, irmãos, filhos, avós, marido ou mulher do(a) Sr(a) que: Q. 221. Já foi assaltado à mão armada? [1] sim [0] não Q. 222. Já foi assaltado à mão armada? [[1] sim [0] não Q. 223. Já teve sua casa roubada? [1] sim [0] não Experiência indireta de vitimização Q. 224. Já teve o carro roubado?[1] sim [0] não Q. 225. Foi assassinado? [1] sim [0] não 25 Q. 226. Já foi agredido por alguém na rua? [1] sim [0] não Q. 227. Já foi ameaçado de morte? [1] sim [0] não Q. 228. Foi estuprado? [1] sim [0] não Percepção de Segurança da Vizinhança Criminalidade na vizinhança Para cada lugar que eu citar, por favor, diga se esse lugar é [1] muito seguro, [2] seguro. [3] pouco seguro ou [4] nada seguro: Q187: A rua onde o(a) Sr(a) mora: Q188: As ruas próximas onde o(a) Sr(a) mora: Q189: O bairro onde o(a) Sr(a) mora: Q190: A cidade onde o(a) Sr(a) mora: Gostaria que o (a) Sr(a) dissesse se aconteceu nos últimos 12 meses algumas das seguintes situações no seu bairro: Q. 204. Compra e venda de coisas roubadas [1] aconteceu [0] não aconteceu. Q. 205. Pessoas foram assaltadas [1] aconteceu [o] não aconteceu Q. 206. Casas/apartamentos foram assaltados. [1] aconteceu [0] não aconteceu Q. 207. Tráfico de drogas / compra e venda de drogas. [1] aconteceu [0] não aconteceu. Q. 208. Alguém usando drogas. [1] aconteceu [0] não aconteceu Q. 209. Roubo de carros. [1] aconteceu [0] não aconteceu Q. 210. Alguém ser agredido fisicamente. [1] aconteceu [0] não aconteceu Q. 211. Uma pessoa puxar uma arma para outra pessoa. [1] aconteceu [0] não aconteceu Q. 212. Alguém levar um tiro. [1] aconteceu [0] não aconteceu Q. 213. Alguém ser assassinado. [1] aconteceu [0] não aconteceu Índice que pode variar de 0 (vizinhança segura) a 10 (vizinhança insegura) Quanto pior a percepção de segurança da vizinhança, maior a desconfiança Índice que pode variar de 0 (vizinhança sem crime) a 10 (vizinhança com vários crimes)* Quanto maior a criminalidade na vizinhança, maior a desconfiança. Dicotômica: [0] confia (confia muito e confia) e [1] desconfia (confia pouco e não confia) Pessoas que desconfiam de outras pessoas são mais desconfiadas em relação à polícia Confiança interpessoal Gostaria que o(a) Sr(a) dissesse se [4] confia muito [3] confia [2] confia pouco ou [1] não confia: Q. 131 Na maioria das pessoas Gênero Q. 531. Sexo do entrevistado: [1] Masculino [2] Feminino Dicotômica: feminino e masculino. [0] [1] Pessoas do sexo masculino são mais desconfiadas Idade Q. 533. Idade recodificada: [1] 18-24; [2] 25-34; [3] 35-44; [4] 45-59; [5] 60 ou mais Dicotômica: [1] jovens (18-24) e [0] outros Pessoas mais jovens são mais desconfiadas Dicotômica: [1] preto e [0] outros (pardo, branco, amarelo e índio); Tricotômica: [0] escolaridade alta (superior); [1] escolaridade baixa (analfabeto e até 4° série) e [1A] escolaridade média; Pessoas de pele preta são mais desconfiadas Q. 266. O IBGE - instituto que faz os censos no Brasil - usa os termos [1] preto, [2] pardo, [3] branco, [4] amarelo e [5] índio para classificar a cor ou raça das pessoas. Qual desses termos descreve melhor a sua cor ou raça? Cor Escolaridade Q. 542. Escolaridade recodificada: [1] Analfabeto; [2] Até a 4° série; [3] De 5° a 8° série; [4] 2° grau; [5] superior ou mais. Pessoas de menor escolaridade são mais desconfiadas * A PESB não contém questão que permita mensurar somente o desempenho “da polícia”. Para operacionalizar as variáveis explicativas, o primeiro passo foi recodificar as questões da PESB para que todas passassem a ser dummies e assumissem os valores 1 (ocorrência do fenômeno que se esperava ter impacto sobre a desconfiança) e 0 (não ocorrência do fenômeno) (conforme quadro 1). As variáveis compostas por apenas uma questão foram incluídas no modelo; aquelas formadas por mais de uma questão foram agrupadas de modo a formar índices. A variável “desempenho da polícia”, por 26 exemplo, continha originalmente três questões que perguntavam se o entrevistado achava que o trabalho da Polícia Militar (Questão 150), Polícia Civil (Questão 161) e Polícia Federal (Questão 163) estava dando muito resultado, resultados médios, pouco resultado ou nenhum resultado. Primeiramente, essas três questões foram recodificadas em resultados satisfatórios (0 = a soma de muito resultado e médio resultado) e resultados insatisfatórios (1 = a soma de pouco resultado e nenhum resultado). Em seguida, essas três questões recodificadas foram somadas e transformadas num índice que varia de 0 (pessoas que consideram satisfatório os resultados da atuação das três polícias) a 3 (pessoas que consideram insatisfatório o resultado da atuação das três polícias). No caso da variável “percepção de segurança na vizinhança”, a resposta das quatro questões que compõem essa variável foram recodificadas para “seguro” (0 = soma de muito seguro e seguro) e “inseguro” (1 = soma de pouco seguro e nada seguro) e então o mesmo procedimento utilizado anteriormente para compor a variável “desempenho da polícia” foi adotado, resultando num índice que variava de 0 (vizinhança segura) a 4 (vizinhança insegura). Esse procedimento de construção de índices foi adotado para as demais variáveis formadas por mais de uma questão, produzindo-se índices que variam de 0 a 6 (“forma como a polícia se relaciona com os cidadãos” e “experiência direta de vitimização”), 0 a 8 (“experiência indireta de vitimização”) e 0 a 10 (“criminalidade na vizinhança”). Para facilitar a comparação entre as variáveis no modelo de regressão, todos os índices foram transformados para que pudessem assumir valores entre 0 (mínimo) e 10 (máximo). Para isso, aplicou-se a seguinte fórmula: 10 * (x – a) / (b – a), onde x é o índice, a o valor mínimo que ele assume e b o valor máximo. A tabela 2 apresenta as estatísticas descritivas dos índices resultantes. Em todos os procedimentos foi utilizado o software SPSS (v. 17), mais especificamente os comandos Recorde e Compute do menu Transform. Tabela 2: Estatística descritiva dos índices utilizados no modelo de regressão N Relacionamento injusto com os cidadãos 1.888 2.211 2.330 2.242 2.286 1.855 Desempenho da polícia Experiência direta de vitimização. Experiência indireta de vitimização. Percepção de segurança da vizinhança Criminalidade na vizinhança. 27 Mínimo Máximo Média 0 0 0 0 0 0 8,57 8 9 9 8 9 6,08 3,44 1,32 1,94 5,45 3,94 Desvio Padrão 2,78 3,1 1,63 1,98 3,06 3,04 ANEXO 2 – Output do SPSS para a Análise de Regressão Logística Tabela 3: Coeficientes Logit do modelo de regressão logística da variável “desconfiança na polícia” em função das variáveis institucionais, contextuais, culturais e sóciodemográficas β Relacionamento injusto com os cidadãos Desempenho insatisfatório Criminalidade na Vizinhança Vizinhança Insegura Experiência Direta de Vitimização Experiência Indireta de Vitimização Idade (jovens: 18-24) Escolaridade Baixa Escolaridade Média Desconfia das pessoas Constant S.E. Wald df Sig. Exp(β) 0,674 0,038 317,351 1 0 1,962 0,083 0,031 0,034 0,022 0,022 0,21 -0,64 -0,389 0,147 -3,413 0,028 0,031 0,028 0,056 0,056 0,209 0,415 0,404 0,242 0,48 8,766 0,984 1,493 0,159 0,159 1,01 2,38 0,93 0,37 50,578 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 0,003 0,321 0,222 0,69 0,69 0,315 0,123 0,335 0,543 0 1,086 1,031 1,035 1,022 1,022 1,234 0,527 0,678 1,159 0,033 N = 1.435; Missing = 929 Estatísticas de Ajustamento, Significância e Qualidade do Modelo: -2 LL = 1017,643; X2HL (8) = 14,663, p = 0,067; R2CS = 0,418; R2N = 0,586; 28 XII. SERVIÇOS PÚBLICOS: O PAPEL DO CONTATO DIRETO E DO CIDADÃO CRÍTICO NAS AVALIAÇÕES ROBERT BONIFÁCIO e ROGÉRIO SCHLEGEL INTRODUÇÃO A avaliação que o brasileiro faz dos serviços públicos é tema pouco explorado em estudos acadêmicos no Brasil, embora tenha características que justificariam atenção especial. De um lado, essa avaliação é um indicador relevante em termos de responsividade porque representa o grau de satisfação do cidadão com a forma como o Estado cumpre algumas de suas tarefas centrais, propiciando serviços como saúde e educação a partir dos impostos extraídos da sociedade. De outro lado, esse é um insumo decisivo para a legitimidade democrática, segundo diferentes abordagens teóricas; os serviços públicos são a face mais concreta do Estado e a principal vitrine do desempenho governamental, de forma que sua avaliação é capaz de impactar de forma indireta a confiança nos políticos e no Executivo (LISTHAUG; WIBERG, 1998). Neste capítulo, apresentamos duas contribuições para ampliar o entendimento sobre a forma como o brasileiro percebe os serviços públicos: 1) são os setores mais escolarizados e informados os que avaliam mais negativamente os serviços prestados pelo Estado, endossando para essa dimensão a hipótese do cidadão crítico e revelando um aparente paradoxo; 2) se a experiência com as instituições pode ser decisiva para a percepção sobre elas (MOISÉS, 2010), é preciso aprofundar a investigação sobre o que deve ser entendido como experiência; no caso dos serviços públicos, não aparecem sinais de associação consistente entre a percepção sobre eles, de um lado, e as informações obtidas via contato direto ou por meio da mídia. Essas evidências foram levantadas a partir da análise dos bancos de dados do survey A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas, realizado em 2006. Um índice geral de avaliação dos serviços públicos foi desenvolvido pelos autores e seus determinantes foram analisados com modelos de regressão multinomiais. 1 Além desta introdução, este capítulo tem outras três seções: na segunda seção, revisamos os marcos teóricos da área, aproximando pontos específicos da avaliação dos serviços públicos da percepção mais geral do cidadão sobre as instituições; as análises estatísticas e o relato dos resultados compõem a seção seguinte; por último, elaboramos considerações sobre nossas contribuições para o entendimento do tema. DESEMPENHO, VALORES E INFORMAÇÃO Desenvolvimentos recentes na literatura especializada têm apontado a falácia da consideração de que as abordagens que enfatizam o desempenho e os valores como elemento principais para explicar confiança nas instituições são conflitantes. Pelo contrário, os dois fatores são compreendidos como complementares para a construção da percepção do cidadão sobre as instituições. Soam superadas abordagens como a de Rogowski (1974), atribuindo importância crucial ao desempenho operacional como fator de avaliação das instituições, como se o cidadão empregasse um cálculo racional sem nenhum substrato normativo em que se apoiar. Valores adquiridos na socialização e ao longo da vida adulta também impactam o julgamento dos indivíduos sobre as instituições. São essas normas internalizadas que oferecem as regras com as quais julgar o desempenho das instituições e que permitem depositar nelas maior ou menor confiança (OFFE, 1999; WARREN, 1999; MOISÉS, 2010) Os valores do cidadão também estão sujeitos a revisões. Forjados em princípio na socialização, eles podem ser remodelados a partir da experiência cotidiana do indivíduo na vida adulta, sobretudo diante de episódios refundadores como a queda do regime comunista no Leste Europeu (MISHLER; ROSE, 2007) ou o 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos (CHANLEY, 2002) Na avaliação das instituições há ainda um terceiro fator que se apresenta como relevante: a informação de que dispõe o cidadão. O julgamento das instituições não depende exclusivamente de impactos objetivos relacionados ao desempenho operacional concreto; ele acontece no campo das percepções. Um governo capaz de melhorar a condição de vida da população pode ser mal avaliado, a depender do jogo de representações que se desenrola no ambiente discursivo e intersubjetivo da sociedade. Mudanças em qualquer um dos três fatores podem acarretar alterações na avaliação institucional (PUTNAM; PHARR; DALTON, 2000). Informação de melhor qualidade sobre desempenho institucional de má qualidade favorece declínios na avaliação; melhora no desempenho institucional que não seja acompanhada de informação e de percepção 2 sobre ela, tende a ser inócua; mudanças nos critérios de avaliação do cidadão podem dar relevo a informações que antes não eram consideradas no julgamento das instituições, para citar algumas variações possíveis. Daí a importância de analisar a avaliação dos serviços a partir de uma perspectiva abrangente. O desempenho operacional das agências do Estado é levado em consideração pelo cidadão, mas quais os critérios que utiliza nesse julgamento? Como a informação sobre o desempenho do serviço público chega até as pessoas e qual será o tipo de experiência capaz de levar o indivíduo a rever suas expectativas sobre dada instituição? Será o contato pessoal mais relevante do que a cobertura da mídia? Percepções sobre um serviço público “contaminarão” o julgamento sobre todos os demais? Considerando a abrangência das perguntas, nosso trabalho se debruça sobre aspectos que vão das características socioeconômicas e demográficas do cidadão à utilização ou acesso aos serviços públicos, na esteira de estudos como o de MORI (2003) e Van de Walle (2007) e Van de Walle, Roosbrek e Bouckaert (2008). A condição socioeconômica do cidadão merece ser observada, sobretudo por sua ligação com a hipótese do cidadão crítico, avançada por autores como Inglehart (1999) e Norris (1999). O argumento central de ambos é o de que a mobilização cognitiva gera cidadãos com olhares mais críticos para as instituições e o funcionamento dos governos. Norris consolidou a expressão “cidadão crítico” (critical citizen) para designar o tipo bem informado que avalia positivamente a democracia, mas é severo no julgamento do funcionamento concreto de suas agências e regras. Ele seria fruto de maior escolarização e informação sobre o sistema político e os negócios públicos, detectadas especialmente nos países pós-industriais e de democracia mais antiga. Inglehart teorizou sobre o pósmaterialismo, uma síndrome atitudinal que teria emergido em conseqüência do desenvolvimento econômico e que envolve comportamento mais questionador em relação a instituições de diversas características, inclusive as governamentais. Moisés e Carneiro (2010) indicam que, para entender a desconfiança política dos cidadãos de alguns países da América Latina, é necessário ter entre os elementos explicativos os relativos à situação socioeconômica das pessoas. De modo mais preciso, seus achados indicam que gênero e escolaridade são os fatores mais importantes desse conjunto de variáveis; são os homens e os mais instruídos os que possuem maiores níveis de desconfiança. Para os autores, isso indica que os menos instruídos e, conseqüentemente, com baixos níveis de cognição, apresentam uma perspectiva mais acrítica do funcionamento das instituições democráticas, ao passo que detentores de níveis 3 mais elevados de escolaridade se aproximam da noção de cidadão crítico, ou seja, cidadãos mais insatisfeitos com as instituições tradicionais. O trabalho de Figueiredo, Torres e Bichir (2006) constatou que a avaliação dos serviços públicos tornava-se mais positiva à medida que diminuía escolaridade do entrevistado nos surveys que utilizaram para avaliar a conjuntura social brasileira – uma edição de 1991, coordenada por Faria (1992), e outra em 2004, tendo como universo amostral moradores dos domicílios entre os 40% mais pobres da cidade de São Paulo - “As notas atribuídas aos serviços foram relativamente elevadas nos dois surveys, e tanto mais elevadas quanto menor a escolaridade” (FIGUEIREDO; TORRES; BICHIR, 2006: 179). Outro fator explicativo com centralidade em nosso estudo é o contato com os serviços públicos. O uso efetivo de serviços públicos é a dimensão mais instrumental que iremos avaliar. Estudo do Instituto MORI (2003) indica que contatos diretos têm efeitos destacados sobre a confiança depositada em organizações de serviços públicos do Reino Unido. O trabalho identificou que cidadãos britânicos que tiveram contato direto com serviços de hospital público, conselhos locais e polícia são mais confiantes em relação a esses serviços. A associação se verificou independentemente do contato ter sido considerado positivo ou negativo pelo cidadão (informação não disponível no estudo). Mas é plausível supor que uma ou mais experiências positivas com dado serviço público tendam a melhorar a percepção do cidadão sobre essa agência como um todo. Para o Brasil, Bonifácio (2009) avaliou saúde pública, polícia e transportes e os resultados não indicaram influência com sentido claro para o uso dos serviços. No caso da polícia, aqueles que usaram seus serviços os avaliaram mais negativamente; para hospitais públicos, o uso teve impacto positivo na avaliação do cidadão e não houve associação com significância estatística para o caso do transporte público. É mais um sinal a sustentar a hipótese de que o contato pessoal tenha impacto que dependa da satisfação com o desempenho operacional. Também é plausível pensar que haja “contaminação” da avaliação de outros serviços a partir da experiência vivida com uma determinada agência. A concepção de atalho cognitivo (POPKIN, 1994; LUPIA; MCCUBBINS, 1999; LUPIA, 2005) nos faz supor que o cidadão tende a criar percepções sobre os serviços em geral a partir da qualidade que atribui aos serviços que efetivamente conhecem. Isso significa que é realista imaginar que os cidadãos que se utilizam de transporte público e serviços de saúde pública tendem a avaliar todos os demais serviços públicos, como por exemplo, segurança, limpeza e educação, com base nos indicadores de qualidade que atribuem aos serviços que efetivamente conhecem. 4 Por fim, a mídia é ingrediente que também merece atenção especial quando se trata de entender as relações que o cidadão estabelece com as instituições. O potencial da mídia para influenciar na percepção dos serviços públicos guarda relação com a centralidade que a comunicação de massa ocupa nas sociedades contemporâneas. Os conteúdos midiáticos não oferecem apenas informação factual, mas também enquadramentos a partir dos quais o indivíduo cria quadros de referência para entender o mundo (GOFFMAN, 1986; IYENGAR; KINDER, 1987; CAPELLA; JAMIESON, 1997; ALDÉ, 2004). Na representação da realidade que criam, os meios de comunicação podem incorrer em vieses. Não se trata de ver a mídia como agente consciente, com interesses definidos e atuação intencional, mas de perceber os constrangimentos e incentivos determinados por sua lógica de produção, de um lado, e os valores prevalecentes no conjunto dos meios de comunicação, de outro. Há ingredientes na organização da produção midiática que fazem com que os vieses sejam recorrentes e com direção clara – privilegiando o extraordinário mais do que o usual, o epifenômeno mais do que o processo mais profundo, o novidadeiro mais do que o estável (LIPPMAN, 1965; MILLER et al, 1979; ROBINSON, 1976; PUTNAM, 1995; 2001). Esses vieses podem determinar que cidadãos expostos à mídia em geral ou a tipos específicos de mídia desenvolvam avaliações das agências do Estado também enviesadas, tanto para o lado positivo quanto negativo. Importante observar que, no que diz respeito a instituições, o sentido dos efeitos específicos da mídia não foi estabelecido de forma inequívoca pela literatura da área. De um lado, a acusação de que os meios de comunicação favorecem a desconfiança política e a desmobilização tem o endosso de gerações de pesquisadores (DAHL, 1967; ROBINSON, 1976; PATTERSON, 1993; CAPELLA; JAMIESON, 1997; PUTNAM, 1995; 2001). O principal argumento é que a mídia cria uma representação das instituições que é especialmente crítica e negativa. No entanto, há evidências de que a exposição à mídia pode afetar o indivíduo também de forma positiva. Ela ampliaria seu nível de informação, interesse pela política e eficácia subjetiva – isto é, a crença de que é capaz de influir na política – e diminuiria os custos para participar da vida pública. Isso se verificaria de maneira mais consistente no caso da exposição à mídia jornalística, e não à mídia em geral (NEWTON, 1999; NORRIS, 1996; 2000). No Brasil, estudos levantaram evidências de que a comunicação de massa não afeta o apoio às instituições em apenas um sentido. Schlegel (2005) encontrou associação positiva entre exposição à mídia jornalística e julgamento “de fundo”, não imediato1, de 1 O índice que usou como variável dependente contemplava questões como a concordância com a frase “políticos muito honestos não sabem governar” ou “os partidos só servem para dividir as pessoas” 5 políticos e partidos em 2002. No caso da avaliação da atuação de Congresso, governo e partidos, a associação foi negativa. Mesquita (2008) constatou que, mesmo diante de cobertura com valência negativa para o governo federal envolvendo o escândalo do Mensalão em 2005, a audiência ao Jornal Nacional2 estava positivamente associada à satisfação com a democracia e à confiança no governo, no presidente da República, nas Forças Armadas, no Poder Judiciário, nos empresários e nos bombeiros em 2006. O trabalho também apurou influência do patamar de audiência à televisão em geral, medido em horas, sobre os efeitos do Jornal Nacional. O impacto do telejornal foi mais intenso quando era maior sua participação na “dieta diária” de consumo de televisão do indivíduo. Tal achado indica que no Brasil também faz sentido discriminar entre uso da mídia em geral e uso da mídia jornalística. Na avaliação do papel da mídia como fator com impacto na avaliação dos serviços públicos, consideramos fundamental levar em conta que a exposição aos meios de comunicação é mediada pela experiência e pelos valores pessoais. Ao sintetizar décadas de estudos empíricos, autores como Graber (1989) e Klapper (1990) sustentaram que a influência da mídia sobre as opiniões é menor nos casos em que os indivíduos possuem contato direto com o objeto em análise. A influência da mídia também seria mais reduzida em situações em que há opiniões formadas e elas envolvem valores centrais do indivíduo. Nesses casos, o usuário de mídia pode até se expor seletivamente, evitando mensagens que conflitem com suas convicções. Em resumo, desempenho operacional, valores do cidadão e informação são três fatores fundamentais para entender a relação que o cidadão estabelece com as instituições. Este capítulo explora a maneira como essas três dimensões se combinam de forma específica, no caso da avaliação que o brasileiro faz dos serviços públicos. Valores e informação têm impacto nos critérios do indivíduo para julgar o desempenho das agências do Estado. Nossa hipótese de trabalho é que brasileiros assemelhados ao cidadão crítico descrito na literatura internacional tendam a ter apreciação mais negativa dos serviços públicos. A expectativa é que cidadãos com posicionamento mais central em termos sociais ou econômicos – com melhor renda ou residindo em municípios maiores – assim como aqueles com atributos pessoais que representam maior mobilização cognitiva – como escolaridade – apresentem julgamentos 2 Trata-se do principal telejornal do país. Em 2006, 52% dos entrevistados no survey Desconfiança nas Instituições Democráticas assistiam o Jornal Nacional 4 vezes ou mais por semana e 89,2% assistiam ao menos uma vez por semana 6 mais negativos de instituições e serviços. Por conta disso, analisamos como o perfil socioeconômico e demográfico impacta essa avaliação. O acesso e uso dos serviços públicos foram observados com a presunção de que favoreçam percepção mais positiva do funcionamento das agências, a exemplo do que ocorre no Reino Unido (MORI, 2003). Embora existam grandes déficits na prestação desses serviços, mesmo em áreas de maior desenvolvimento das capacidades estatais (FIGUEIREDO; TORRES; BICHIR, 2006), acreditamos que o conceito geral dos serviços públicos seja tão negativo no país que o contato direto com eles possa melhorar sua imagem. Do ponto de vista das três dimensões fundamentais exploradas neste capítulo, desempenho operacional e informação são os principais fatores mobilizados neste quesito. Os usos da mídia dizem respeito diretamente à informação de que dispõe o cidadão sobre os serviços públicos, mas também têm relação com seus valores. A mobilização cognitiva que caracteriza o cidadão crítico tem como ingrediente crucial seu elevado nível de informação, capaz de ter impacto na sua orientação subjetiva geral – na hipótese original, ele é mais cético em relação ao Estado e às relações de poder hierárquicas e mais favorável a estruturas horizontais e democráticas de tomada de decisão. Por conta disso, a exposição à mídia é entendida neste estudo como representando diferentes papéis na complexa operação subjetiva de avaliação das instituições e dos serviços públicos. De um lado, distinguimos a exposição à mídia em geral da exposição à mídia jornalística, por ser a primeira associada à atitude mais distanciada em relação à política e a segunda associada ao maior engajamento; de outro lado, avaliamos a disposição do cidadão em se expor à informação via mídia, tomando-a como um passo anterior no consumo da mídia e, por isso mesmo, um indicador da mobilização cognitiva. Espera-se que maior interesse em se informar esteja associado a avaliação mais crítica dos serviços públicos, que maior exposição à mídia em geral também incline a percepção a se tornar mais negativa e que, por outro lado, a exposição à mídia jornalística favoreça visão mais positiva sobre o funcionamento das agências do Estado. PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE E RESULTADOS A análise empírica utilizou os bancos de dados do survey “A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas”, realizado em 2006, que trouxe informações detalhadas sobre o perfil socioeconômico e demográfico dos brasileiros da amostra e de seus posicionamentos individuais a respeito de oito serviços públicos: habitação; polícia; saúde; educação; transportes; seguro-desemprego; esgotos e saneamento; e previdência social. 7 De forma geral, verifica-se que os déficits apontados em trabalhos anteriores da área estão refletidos na percepção fotografada por essa pesquisa de opinião (tabela 1). Há serviços com avaliação majoritariamente negativa – índice de ruim e péssimo superior a 50% --, mas nenhum com avaliação predominantemente positiva. A maioria dos brasileiros avalia negativamente os serviços de saúde e de esgotos e saneamento. Para polícia e Previdência Social, a avaliação negativa supera a positiva. No caso da educação, dos transportes públicos e do seguro-desemprego, a percepção positiva supera a negativa, mas sem representar a maioria da população. Dentre todos os serviços, o de transportes públicos é o mais bem avaliado (49,5% de ótimo e bom) e o de saúde é o pior avaliado (51,8% de ruim e péssimo). Tabela 1. Avaliações dos serviços públicos (% e em números absolutos) Habitação Polícia Saúde Educação Transportes Segurodesemprego Esgotos e saneamento Previdência social Ótimo/bom Regular Ruim/ Péssimo 43,3% (868) 38,3% (767) 34,7% (695) 48,9% (979) 49,5% (993) 46,6% (934) 38,6% (775) 32,1% (643) 13,8% (277) 15,1% (303) 13,3% (267) 14% (280) 11,6% (233) 10,5% (211) 9,1% (183) 12,3% (247) 41% (822) 46,1% (924) 51,8% (1038) 36,8% (738) 36,6% (734) 30,6% (614) 51% (1021) 49% (982) Não sabe/ Não respondeu 1,9% (37) 0,5% (10) 0,2% (4) 0,3% (7) 2,3% (44) 12,3% (245) 1,3% (25) 6,6% (132) Total 100% (2004) 100% (2004) 100% (2004) 100% (2004) 100% (2004) 100% (2004) 100% (2004) 100% (2004) Fonte: Survey A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas Optamos por criar um índice que sirva de indicador para o agregado das várias dimensões envolvidas. Para isso, é necessário satisfazer duas condições: demonstrar as associações lógicas e estatísticas entre as variáveis. O primeiro quesito é quase que evidente, uma vez que o Estado oferta todos esses serviços para a população, alguns de forma universalizada e outros destinados a grupos específicos. Para demonstrar associação estatística entre as variáveis, utilizamos o teste de análise fatorial3 com o método de 3 A análise fatorial objetiva prover descrições simples de inter-relacionamento, correlações e covariâncias entre as variáveis. Ele torna visível a observação de quais variáveis possuem associações entre si e as organizam em fatores. Em cada fator, temos as variáveis mais associadas entre si e a intensidade dessa associação, que se mostrará forte, 8 extração Principal Axis Factoring – especialmente útil quando as variáveis não apresentam distribuição normal bem definida, como é o caso (COSTELO; OSBORNE, 2005). Também analisamos o alpha de Cronbach, um indicador de consistência interna do fator. Quanto maior o valor do alpha, maior é a correlação entre os itens que compõe o fator e, por conseqüência, maior a correlação e inter-relacionamento entre as variáveis (CRONBACH, 1951). Os resultados aparecem à tabela 2. Tabela 2. Análise fatorial e alpha de cronbach da avaliação de serviços públicos Habitação Fator 1 0,614 Polícia Saúde Educação Transportes públicos Seguro-desemprego 0,598 0,719 0,689 0,601 0,482 Esgotos e saneamento 0,579 Previdência social Alpha de Cronbach = 0, 835 0,693 Fonte: Survey A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas Método de extração: análise de componentes principais Os dados sugerem que é viável a criação de um índice geral de avaliação de serviços públicos, uma vez que foi identificado um fator com mesmo sentido (sinal positivo) e cargas elevadas para todas as variáveis (valores próximos ou maiores a 0,5), além de o alpha de cronbach ter ficado acima de 0,7 – limiar usualmente aceito nesse tipo de análise. O passo seguinte consistiu em dicotomizar as variáveis originais de avaliação de serviços públicos, de modo a atribuir valor zero às opções de resposta que indicam avaliação negativa (respostas “péssimo” e “ruim”) ou regular (resposta “regular”) e atribuir valor 1 às que indicam avaliação positiva (respostas “ótimo” e “bom”). As respostas “não sei” e “não respondeu” foram excluídas da análise. Através da soma simples das variáveis recodificadas, chegamos ao índice de avaliação dos serviços públicos, com valores de zero a oito. O índice foi posteriormente classificado em três categorias: valores de 0 a 2 foram indicados como avaliações negativas; de 3 a 5, como avaliações regulares e de 6 a 8, como avaliações positivas. De forma coerente com as variáveis originais, agora a categoria mediana ou fraca de acordo com a magnitude de sua carga estatística, geralmente compreendida entre - 1 e 1 (KIM; MUELLER, 1978). 9 de resposta com maior concentração é a de avaliações negativas, com 41% da amostra válida. Em seguida aparecem as avaliações regulares, com 34,1%, e as avaliações positivas, com 24,9% (tabela 3). Tabela 3. Índice de avaliação de serviços públicos (% e em números absolutos) Distribuição 41% (686) 34,1% (570) 24,9% (416) 100% (1.672) Avaliações negativas Avaliações regulares Avaliações positivas Total Fonte: Survey A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas Após essa análise descritiva, passamos para a inferencial, utilizando modelos de regressão logística multinomial com o intuito de verificar, no conjunto de variáveis independentes, quais são estatisticamente significantes e quais os pesos relativos de cada variável para explicar a satisfação dos cidadãos brasileiros com os serviços públicos. Trabalhamos com três grupos de variáveis independentes, descritos abaixo e detalhados no anexo que se encontra ao final do capítulo: 1. Características socioeconômicas e demográficas - Variáveis que indicam tipo de município de moradia (se capital, região metropolitana ou interior), escolaridade, renda familiar, sexo, idade e cor da pele; 2. Contato com a mídia – Três variáveis que mensuram dimensões diferentes: a atenção dada a notícias de política na televisão; o consumo diário de televisão em geral e a exposição semanal ao Jornal Nacional; 3. Contato direto - Variáveis que indicam se o indivíduo procurou algum órgão público municipal, estadual ou federal ao longo do ano anterior à realização da pesquisa e variáveis que expressam a utilização de três serviços públicos específicos (de transportes, polícia e hospital público). Os dados dos dois modelos de regressão logística multinomial estão organizados de modo que a avaliação negativa é a categoria de referência. Assim, os efeitos das variáveis independentes em cada um dos modelos (um referente à avaliação regular e outro, à avaliação positiva) têm que ser interpretados de forma comparada, sempre em relação à avaliação negativa. Resumo das regressões aparecem nas tabelas 4 e 5. 10 Tabela 4 . Preditores da avaliação regular dos serviços públicos B Erropadrão 0,387 Intercepto -0,737 Município (referência: interior) Capital ou região metropolitana 0,350 0,135 Gênero (referência: Feminino) Masculino 0,097 0,125 Idade (referência: 16-24) 25-34 0,187 0,188 35-44 -0,010 0,204 45-59 0,157 0,210 60 ou mais 0,037 0,260 Instrução (referência: até primário incompleto) Primário completo -0,098 0,226 Fundamental incompleto/ completo -0,172 0,199 Médio incompleto/ completo -0,376 0,205 Superior incompleto ou mais -0,653 0,272 Renda familiar (referência: baixa) Média 0,185 0,144 Alta 0,085 0,193 Cor da pele (referência: pretos) Pardos 0,341 0,199 Brancos 0,333 0,205 Exposição à TV em geral (referência: Não assiste/ até 1 hora por dia) De 2 até 3 horas 0,160 0,157 Até 4 horas ou mais 0,272 0,174 Atenção a notícias sobre política na TV (referência: Nenhuma) Pouca -0,071 0,151 Alguma/ muita -0,337 0,161 Exposição ao JN (referência: Não assiste/ 1 dia na semana) 2 ou 3 dias -0,154 0,192 De 4 a todos os dias 0,151 0,178 Procurou serviço público ano passado (referência: não) Sim -0,199 0,133 Utilizou serviços de hospital público (referência: não) Sim 0,020 00,153 Utilizou serviços de polícia (referência: não) Sim 0,008 ,160 Utilizou serviços de transporte público (referência: não) Sim 0,130 0,160 P valor Razão de chance Efeito percentual4 0,057 0,010** 1,419 41,9% 0,438 1,102 10,2 0,318 0,963 0,453 0,887 1,206 0,991 1,170 1,038 20,6 - 0,9 17 3,8 0,665 0,387 0,067* 0,017** 0,907 0,842 0,687 0,521 - 9,3 - 15,8 - 31,3 - 47,9 0,200 0,660 1,203 1,088 20,3 8,8 0,086* 0,105 1,407 1,395 40,7 39,5 0,308 0,118 1,173 1,312 17,3 31,2 0,639 0,037** 0,932 0,714 - 6,8 - 28,6 0,421 0,396 0,857 1,163 - 14,3 16,3 0,134 0,819 - 18,1 0,894 1,021 2,1 0,961 1,008 0,8 0,415 1,139 13,9 Fonte: Survey A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas *Significância ao nível de p<0,10 **Significância ao nível de p<0,05 Para a avaliação regular, quatro variáveis explicativas apresentam significância estatística: local de residência; instrução, cor e atenção a notícias sobre política na televisão. Os cidadãos que moram em cidades que são capitais ou fazem parte da região 4 O efeito percentual é resultado da equação (Razão de chance – 1) * 100 e indica qual o diferencial em relação à categoria de referência 11 metropolitana apresentam 41,9% mais probabilidade de avaliar os serviços públicos como regulares, quando comparados com aqueles que moram em cidades do interior. Quanto à instrução, observamos que possuir ensino médio (incompleto ou completo) diminui em 31,3% a probabilidade de o entrevistado avaliar os serviços como regulares, quando comparado com os analfabetos ou pessoas com até o ensino primário incompleto. A direção da probabilidade é a mesma no caso dos que possuem ensino superior (incompleto ou completo), mas a intensidade é maior, atingindo a taxa de 47,9%. No que toca à cor da pele, os dados apontam que os pardos apresentam 40,7% mais chances de avaliar os serviços como regulares, tendo como referencial os negros. Combinadas, as variáveis com significância estatística sugerem que a hipótese do cidadão crítico é a mais promissora em matéria de explicar a avaliação do brasileiro sobre os serviços públicos. Há sinal claro de que maior escolaridade e informação – ou melhor, disposição de se informar, expressa pela variável relativa à atenção dada pela pessoa às notícias sobre política – impacta negativamente a satisfação com os serviços públicos. É verdade que morar em áreas mais cosmopolitas, como capitais e áreas metropolitanas, e ter pele parda apareceram como favorecendo a avaliação regular em detrimento da negativa. Mas foi clara a tendência de os indivíduos com instrução mais elevada avaliarem pior a qualidade dos serviços públicos – justamente a dimensão socioeconômica descrita nos trabalhos do campo como tendo maior associação com a mobilização cognitiva que marca o endurecimento dos critérios de julgamento de órgãos e práticas do Estado. Sinais na mesma direção foram obtidos no modelo de regressão da avaliação positiva (tabela 5). Praticamente todas as variáveis estatisticamente significantes se mantêm e com efeito substancialmente mais forte nesse teste. Assim, escolaridade mostrou favorecer comportamento mais crítico, estimulando avaliação negativa em comparação à positiva. Entre as variáveis de mídia, novamente foi alguma ou muita atenção às notícias sobre política na televisão que mostrou impactar a avaliação. E, de novo, com sentido negativo, diminuindo a probabilidade de o entrevistado manifestar avaliação positiva em detrimento da negativa. Morar em capital ou região metropolitana e ter pele de cor parda ou branca – essa segunda categoria com significância estatística somente neste modelo – aumentam a probabilidade de os cidadãos demonstrarem maior satisfação com os serviços públicos. É plausível pensar que cidadãos que moram em regiões de maior centralidade geográfica – capitais e regiões metropolitanas – assim como em áreas com menor concentração de pessoas de pele negra sejam atendidos por serviços de melhor qualidade, por conta de desigualdades na distribuição espacial das agências estatais ou da qualidade do 12 atendimento que prestam. Como nosso estudo não se debruçou sobre indicadores objetivos sobre o desempenho dos serviços públicos, essa é uma hipótese a ser testada em estudos com desenho de pesquisa diferente, que possa quantificar o impacto do desempenho concreto na avaliação subjetiva do cidadão. Resta comentar ainda um achado relevante do segundo modelo analisado: uma das variáveis relativa ao contato pessoal ou acesso direto com os serviços públicos obteve significância estatística, indicando que esse é quesito que diferencia os cidadãos em termos de impacto na avaliação dos serviços públicos. Aqueles que afirmam ter procurado no ano anterior à aplicação da pesquisa algum tipo de serviço público, seja ele de qualquer esfera governamental (federal, estadual ou municipal), apresentam 33,1% menos probabilidade de avaliar positivamente os serviços do que aqueles que não procuraram nenhum órgão público. Ou seja, o contato com o serviço público aponta favorecimento de avaliações negativas em detrimento de avaliações positivas, evidência que aparece em choque com os resultados obtidos pelo instituto MORI (2003) para o Reino Unido. A avaliação geral mais negativa dos serviços públicos brasileiros contribui para entender essa evidência. É possível pensar que, ao ter contato com o serviço público de qualidade relativamente rebaixada existente no país, o cidadão desenvolve percepção pior – e não melhor – dos préstimos das agências estatais. 13 Tabela 5. Preditores da avaliação positiva dos serviços públicos B Erropadrão 0,446 Intercepto -1,243 Município (referência: Interior) Capital ou região metropolitana 0,729 0,159 Gênero (referência: Feminino) Masculino 0,174 0,141 Idade (referência: 16-24) 25-34 -0,015 0,211 35-44 -0,348 0,234 45-59 -0,022 0,235 60 ou mais 0,189 0,278 Instrução (referência: até primário incompleto) Primário completo -0,286 0,246 Fundamental incompleto/ completo -0,122 0,214 Médio incompleto/ completo -0,487 0,227 Superior incompleto ou mais -1,341 0,345 Renda familiar (referência: Baixa) Média 0,102 0,159 Alta 0,147 0,217 Cor da pele (referência: Pretos) Pardos 0,733 0,251 Brancos 0,766 0,257 Exposição à TV em geral (referência: Não assiste/ até 1 hora por dia) De 2 até 3 horas 0,232 0,171 Até 4 horas ou mais -0,007 0,200 Atenção a notícias sobre política na TV (referência: Nenhuma) Pouca -0,212 0,169 Alguma/ muita -0,325 0,179 Exposição ao JN (referência: Não assiste/ 1 dia na semana) 2 ou 3 dias -0,059 0,210 De 4 a todos os dias 0,045 0,201 Procurou serviço público ano passado (referência: não) Sim -0,403 0,152 Utilizou serviços de hospital público (referência: não) Sim 0,164 0,172 Utilizou serviços de polícia (referência: não) Sim 0,026 0,182 Utilizou serviços de transporte público (referência: não) Sim -0,103 0,169 P valor Razões de chance Efeito percentual 0,005 0,000** 2,073 107,3% 0,218 1,190 19 0,942 0,138 0,925 0,497 0,985 0,706 0,978 1,208 -1,5 -29,4 -2,2 20,8 0,245 0,570 0,032** 0,000** 0,751 0,886 0,615 0,262 -24,9 -21,4 -38,5 -73,8 0,522 0,500 1,107 1,158 10,7 15,8 0,004** 0,003** 2,082 2,150 108,2 115 0,175 0,971 1,261 0,993 126,1 -0,7 0,211 0,069* 0,809 0,722 -19,1 -27,8 0,777 0,822 0,942 1,046 -5,8 4,6 0,008** 0,669 -33,1 0,341 1,178 17,8 0,887 1,026 2,6 0,544 0,902 -9,8 Fonte: Survey A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas *Significância ao nível de p<0,10 **Significância ao nível de p<0,05 CONSIDERAÇÕES FINAIS As evidências colhidas nas análises empíricas reproduzidas neste capítulo sugerem que a hipótese do cidadão crítico se aplica ao Brasil, no que se refere à avaliação dos serviços públicos. São os setores mais escolarizados e informados os que avaliam mais 14 negativamente os serviços prestados por agências estatais, o que sugere que a mobilização cognitiva ampliada favorece uma relação de maior ceticismo diante da ação do Estado. Sobretudo variáveis relativas à escolaridade mostraram-se preditor consistente de apreciação menos favorável dos serviços públicos. Nesse sentido, este trabalho confirma e aprofunda para o caso brasileiro os achados de Inglehart (1999), Norris (1999) e Figueiredo; Torres; Bichir (2006). O resultado descortina, portanto, um paradoxo: são justamente os brasileiros que estão entre os mais incluídos, aqueles que tiveram mais acesso à educação e têm estímulo para buscar informações sobre a política, os que avaliam os serviços públicos mais criticamente. É plausível supor que esses segmentos também façam parte dos setores que mais acesso têm aos serviços públicos ou que têm acesso a serviços públicos de maior qualidade. Importante observar que a avaliação dos serviços públicos brasileiros gerada a partir do survey “A desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas”, realizado em 2006, é mais negativa do que positiva. Nesse sentido, destoa da feita pelos britânicos diante dos serviços prestados pelas agências públicas do Reino Unido. Isso, por si só, é sinal de baixa responsividade das instituições estatais brasileiras, pois o retrato geral que emerge deste trabalho é o de um Estado incapaz de atender às expectativas do cidadão. É discutível se essas expectativas se encontram em patamar adequado diante dos recursos concretos do país; o que não é discutível é a percepção do cidadão de que os serviços propiciados pelo Estado frustram seus critérios a ponto de vários deles merecerem ser avaliados como ruins ou péssimos. Este trabalho também serve de alerta para a necessidade de compreender melhor o que deve ser entendido como experiência com as instituições, considerada fator capaz de levar inclusive à revisão dos valores do cidadão. Nos modelos testados neste capítulo, os usos da mídia não mostraram influência decisiva sobre a avaliação dos serviços públicos. A variável relativa à mídia que teve impacto de fato – atenção prestada às notícias políticas na televisão – se refere muito mais ao perfil do indivíduo do que à exposição ou aos conteúdos veiculados. Variáveis sobre audiência à televisão em geral e ao Jornal Nacional especificamente não tiveram efeito independente sobre a percepção dos serviços públicos. Também o contato direto se revelou pouco decisivo para a avaliação dos usuários dos serviços. Favoreceu a percepção negativa em contraposição à positiva, mas não influenciou como preditor da avaliação regular. Os achados se assemelham aos de Bonifácio (2009), que verificou que não haver tendência clara de associação entre uso de determinado serviço público e a avaliação sobre ele. No trabalho do autor, três serviços 15 foram avaliados e o contato direto não apresentou relação estatisticamente consistente com maior satisfação em um caso, teve associação positiva em outro e negativa no terceiro caso. Em resumo, as duas formas de contato com os serviços públicos – pela mídia e como usuário – se apresentaram como experiência com efeitos modestos ou desprezíveis sobre a percepção das instituições. Vale ressaltar que, quando teve influência, o contato com o serviço público impactou negativamente o julgamento do cidadão. É um resultado que vai em direção oposta à verificada pelo MORI (2003) na Grã-Bretanha. Talvez a explicação resida em três aspectos: (1) Há grande diferença de percepção de qualidade dos serviços públicos selecionados entre Grã-Bretanha e Brasil, com muito mais considerações positivas no primeiro caso que no segundo; (2) A natureza das medidas é diferente, sendo que os dados nacionais aferem de modo generalizante o acesso dos cidadãos aos serviços públicos e, no estudo britânico, essa medição foi mais específica. 16 Anexo Tabela 1 . Freqüências das variáveis independentes Variável Local de moradia Sexo Idade Escolaridade Renda familiar Cor da pele Audiência à TV em geral Atenção às notícias sobre política na TV Exposição ao Jornal Nacional Procurou serviço público no ano anterior Utilizou hospital público Utilizou polícia Utilizou transporte público Frequências Interior 37,1% Feminino 51,6 De 16 a 24 anos 20,4% Analf./Prim ário inc. 22,4% Baixa 37,1% Preto 10,8% Ñ vê/1 h diária 28,2% Nenhuma Capital ou reg. metro. 62,9% Masculino 48,4 De 25 a 34 anos 24,5% Primário completo 12,6% Média 43,8% Pardo 49,5% 2 a 3 horas 44,5% Pouca 38,5% Nenhum/1 dia por semana 19,1% Não 62,2% 32,5% De 2 a 3 dias Não 27,3% Não 82,4% Não 25,9% Sim 72,7% Sim 17,6% Sim 74,1% 28,8% Sim 37,8% Total* 2.004 2.004 De 35 a 44 anos 20,6% Fund. inc. ou compl. 26% Alta 19,1% Branco 39,8% 4 horas ou mais 27,4 Alguma/ muita 29% 4 dias ou mais De 45 a 59 anos 21,3% Médio inc ou compl. 28,6% 60 anos ou mais 13,3% Superior inc./comp. 10,4% 2.004 2.004 1.839 1.944 2.003 2.001 2.001 52,1% 2.000 2.001 2.002 2.004 Fonte: Survey A desconfiança do cidadão das instituições democráticas * Respostas “não sabe” e entrevistados que não quiseram responder fazem alguns totais não atingirem 2004 casos 17 CONSIDERAÇÕES FINAIS O PAPEL DA CONFIANÇA PARA A DEMOCRACIA E SUAS PERSPECTIVAS RACHEL MENEGUELLO e JOSÉ ÁLVARO MOISÉS Com o objetivo de avançar no estudo da qualidade da democracia brasileira, um dos principais aspectos resultantes das discussões desenvolvidas nos capítulos do presente livro foi uma resposta à questão freqüentemente formulada pelos céticos das interações entre a cultura política e o funcionamento do sistema político: “por que é tão importante confiar nas instituições?” (PRZEWORSKI, 2007). Para a teoria democrática, sua importância está exatamente no fato de que nas democracias modernas foi dado às instituições o papel de mediadores dos interesses dos indivíduos, são elas que atuam na intermediação das relações entre os cidadãos e o sistema político. Esse é o ponto que distingue a democracia das demais formas de governo e o que confere à confiança institucional o seu conteúdo normativo. Dessa forma, os níveis de confiança institucional refletem a percepção do funcionamento do sistema como um todo e são definitivos na criação de níveis de apoio e satisfação com o regime democrático. Mas é da observação dos dados sobre a adesão ao regime democrático que deriva a centralidade dessa questão. As informações sobre a preferência pela democracia no país mostram que, desde o início da democratização, ela cresce no tempo em uma tendência contínua, mas ainda é acompanhada de uma média de 30% de cidadãos que afirmam poder apoiar a ditadura em determinadas situações ou, por outro lado, que nem se importam com o tipo de regime sob o qual vivem, apontando para um claro distanciamento da política e de seu funcionamento. Essas informações compartilham, de forma ampla em escala internacional, os índices de baixa credibilidade institucional, sobretudo, relacionados à desconfiança das instituições representativas. Em países com experiências ditatoriais recentes, a herança autoritária mostrou que tem peso significativo na definição de parâmetros para a relação dos cidadãos com as instituições, no envolvimento com a política e na credibilidade do sistema. É isso o que indicam as pesquisas sobre regimes que transitaram de ditaduras para democracias, nos quais os déficits percebidos pelo público no terreno do cumprimento às leis, dos níveis de corrupção e do cerceamento de liberdades condicionam os graus de apoio político ao regime constituído, o qual, por sua vez, se estabelece sob os constrangimentos das denominadas “democracias incompletas” (SHIN, 2007; ROSE & SHIN, 2001; RAINER & SIEDLER, 2006). As reflexões apresentadas neste livro se concentraram em dois objetivos principais, por um lado, na busca da natureza das relações que explicariam os determinantes da avaliação predominantemente negativa das instituições encontrada no cenário brasileiro e, por outro, no mapeamento das associações da atitude de desconfiança com um conjunto de outras atitudes, opiniões e comportamentos do público a respeito do regime democrático. Nessa direção, uma das principais conclusões a destacar mostra que os determinantes da atitude de desconfiança estão relacionados com o desempenho concreto das instituições democráticas, assim como, com os valores e perspectivas normativas adotados pelo público a respeito da missão das instituições analisadas. As discussões apresentadas nos vários capítulos mostraram que, para os vários temas analisados e associados com o debate contemporâneo sobre a democratização – como o fenômeno da adesão ao regime democrático e da legitimidade política; as relações entre educação e democracia; corrupção e democracia; mídia e confiança política; confiança, cidadania, participação e envolvimento político; confiança na justiça e na polícia e, finalmente, a avaliação do desempenho de ações estatais observadas através dos serviços públicos -, as atitudes e comportamentos de confiança ou desconfiança política não constituem isoladamente explicações suficientes. Seus determinantes recorrem a múltiplos fatores, como as dimensões socioeconômicas e demográficas, a avaliação do desempenho da economia, da política e de governos específicos, as associações com credos religiosos e partidos políticos, assim como os fatores associados com a cultura política, a exemplo da própria confiança. Esse conjunto de relações explicativas responde à própria natureza do fenômeno estudado: a desconfiança política é estrutural e afeta, senão todas, a grande maioria das instituições. Além disso, ela não é um fenômeno transitório, associado a uma situação específica, como denúncias de escândalos ou crises políticas. A desconfiança é um fenômeno persistente da relação entre os cidadãos brasileiros e as instituições, tal como já mostravam as pesquisas conduzidas ao longo das últimas duas décadas. Assim, por um lado, os resultados encontrados acompanham o que parte da literatura da cultura política vem afirmando há anos, ou seja, que a ação e as condutas políticas observadas contemporaneamente são influenciadas por múltiplos fatores intervenientes, dentre os quais a confiança tem um papel central, como indicaram Almond e Verba (1963), Easton (1967, 1975) e, mais recentemente, Norris (1999), Inglehart (1999), Putnam(1993), Rose(1994), Shin (2005). Por outro, acompanhando o que afirma parte da literatura da ciência política que tem se debruçado sobre esse tema central para os estudos sobre a democracia, os resultados confirmam a convergência entre as abordagens culturalista e institucionalista para a interpretação do fenômeno da desconfiança política. Em especifico, as análises apontam a necessidade da adoção de modelos explicativos que articulem, de forma efetiva, as duas perspectivas, no sentido de integrar os referenciais culturais e valorativos a indicadores institucionais e referenciais econômicos objetivos (MOISÉS, 2010). As reflexões apresentadas indicam que a explicação do fenômeno de desconfiança política no Brasil, assim como a de um conjunto de outras atitudes relacionadas aos posicionamentos dos indivíduos a respeito do regime democrático, tem natureza multidimensional e recorre a valores e avaliações objetivas, como a percepção da economia, da política e dos governos do momento. Esses achados representam importantes avanços do conhecimento na área, sobretudo porque contribuem para mitigar lacunas ainda existentes no campo das investigações sobre as bases de massa da legitimidade democrática no país. Nesse sentido, a realização da pesquisa nacional de opinião aplicada em 2006, utilizando questões e variáveis consagradas nos estudos nacionais e internacionais, contribuiu substantiva e metodologicamente para o estudo longitudinal da democratização. Mas, para além das conclusões sobre as contribuições dos vários trabalhos apresentados, os resultados encontrados colocaram novos problemas para a compreensão do fenômeno democrático. Uma primeira questão diz respeito à emergência e desenvolvimento dos recentes governos de esquerda na região latino americana. Para os países da America Latina, em especial os da América do Sul, que experimentaram ditaduras militares nas décadas de 1960, 1970 e 1980, a preocupação com a transição política e com as bases de adesão ao regime é central. Apesar do êxito do processo de construção institucional e da dinâmica eleitoral e partidária como forma de alternância de poder, e que possibilitaram as recentes vitórias de governos de esquerda, os governos e as políticas compensatórias não têm se mostrado capazes de responder adequadamente às fortes desigualdades sociais. A região apresenta variações importantes desse fenômeno, inclusive definindo lideranças de perfis distintos e com impactos variados sobre a percepção e a legitimidade do sistema. Em que medida, por exemplo, no caso do Brasil os processos políticos recentes desenvolvidos sob os últimos governos tiveram impacto sobre os cidadãos, no que tange à sua percepção da democracia e do desempenho do regime? A percepção e o acesso aos benefícios de políticas de redistribuição de renda – sejam as políticas implantadas no atual governo, sejam aquelas desenvolvidas em continuidade aos governos anteriores - definiram concepções específicas sobre o papel do Estado, o funcionamento democrático e as noções de cidadania? Nosso suposto e nossa intuição são que a aplicação de variáveis e indicadores específicos, que combinem percepções sobre o desempenho do sistema, avaliação de políticas e levantamento de valores democráticos possam, por um lado, produzir novos resultados capazes de dialogar com a bibliografia sobre o desenvolvimento recente do regime democrático na região e, sobretudo, delinear os avanços recentes da percepção sobre a democracia à luz das ações do Estado, em sentido amplo, e dos governos de esquerda e suas políticas, em específico. Este cenário derivado da pesquisa do caso brasileiro, também pode ser identificado no âmbito dos processos políticos recentes de outros países latino-americanos. Nos últimos anos, tendências políticas definidas à esquerda do espectro ideológico definiram vitórias eleitorais que não resultaram necessariamente em níveis mais fortes de adesão aos construtos institucionais democráticos, em especial, no que se refere à consolidação do primado da lei, à estrutura de direitos de cidadania e os mecanismos de accountability – todos centrais para a avaliação da qualidade da democracia. Ao contrário, dados de pesquisas recentes mostraram que os segmentos de cidadãos com orientações mais à esquerda apóiam menos as instituições políticas e os valores democráticos, inclusive conferindo extraordinário poder pessoal aos presidentes nacionais (SELIGSON, 2007). Esses cenários sugerem que o estudo das formas e conceitos de liderança democrática e de neopopulismo observados, bem como as implicações do presidencialismo, forma histórica e dominante de organização do poder político na região, sobre as modalidades de cidadania e dos níveis de participação e de adesão democráticas vigentes, permitiriam capturar os efeitos da organização do sistema representativo sobre os posicionamentos dos cidadãos, as suas percepções a respeito de seu funcionamento, e os padrões de cidadania daí derivados. Nessa direção, os achados da pesquisa relatados neste livro apontam para a necessidade de aprofundamento do tema da representação política. Algumas das reflexões apresentadas mostraram que as atitudes de desconfiança com relação aos partidos e ao parlamento têm impacto sobre as relações entre os indivíduos e a política em seu sentido amplo, mas elas não permitem avançar o conhecimento para além da avaliação do desempenho institucional, ou seja, especificamente sobre as imagens e expectativas efetivas que as pessoas têm dessas instituições. O que os indivíduos pensam, esperam e desejam de partidos e parlamentos? Essas instituições são irrelevantes ou são vistas como possibilidades efetivas de mediação de interesses e de preferências? Nesse sentido, acreditamos que pesquisas mais aprofundadas se impõem, seja para dar conta da fragilidade com a qual os indicadores aplicados se apresentaram, impossibilitando explicações renovadas sobre a baixa identidade com os partidos políticos e as instituições representativas, seja para apreender melhor o lugar da tradição, da cultura política e da ideologia como parâmetros de posicionamentos individuais. Embora as análises consagrem a escolha eleitoral como norma e valor presentes nas referências dos brasileiros - e sabemos que assim também ocorre para boa parte dos latino-americanos - os posicionamentos são distintos quando referidos às instituições e ao seu funcionamento. Ademais, o tema da relação entre corrupção e democracia emergiu com destaque. As análises apresentadas sobre a questão avançaram de forma significativa na caracterização do fenômeno, em especial, no que se refere às percepções das pessoas sobre a corrupção e, sobretudo, quanto ao impacto dessas percepções para a desconfiança de instituições. Mas, em vista da verificação de que a tolerância pública diante da corrupção joga um papel importante para entender a dinâmica desse fenômeno (ver MOISES, capítulo 7 deste livro), nossos dados apontam a necessidade de afinar ainda mais os indicadores que permitam detectar a relação das pessoas comuns com a corrupção para, a partir disso, apreender em que medida a tolerância social com a corrupção afeta a qualidade da democracia brasileira. Em específico, parece necessário aprofundar a análise do impacto desse fenômeno para a competição política, a igualdade entre contendores, o investimento de recursos em políticas públicas consideradas prioritárias pelos eleitores, e a efetividade dos mecanismos de accountability, que têm forte relação com a qualidade da democracia. Finalmente, consideramos também que as questões elencadas motivam uma revisão quanto à aplicação de medidas de survey e confirmam a necessidade de uma produção continuada de dados sobre comportamento político no país. O avanço do conhecimento sobre as transições políticas sugere que as medidas consagradas de satisfação com regime, ou as variáveis associadas ao modelo idealista, que buscam níveis de adesão e preferência pela democracia, não conseguem discriminar a contento as distinções existentes entre regimes variados (KLINGEMANN, 1999; MISHLER, 2006). Algumas análises sobre as transições apontam, ainda, que a medida de confiança tem lugar limitado como medida de apoio à democracia, em um sentido distinto das hipóteses originais de nossa pesquisa (MISHLER & ROSE, 2005). Parte da literatura sugere, por exemplo, que os cidadãos de regimes políticos democráticos recentes têm menor cognição sobre os significados da democracia e de seus princípios, mas têm uma experiência de vida com o regime anterior autoritário que lhes permite avaliar o novo regime de forma mais adequada através da comparação por medidas realistas. Nossa pesquisa avançou nessa direção explorando variáveis de memória política que permitiram analisar o desempenho dos governos brasileiros pós-1985, em comparação com os últimos governos do regime militar em algumas dimensões, a avaliação da situação dos direitos humanos, da corrupção e da economia. Embora os resultados encontrados tenham reiterado o peso exercido pela percepção do governo do momento sobre os posicionamentos dos entrevistados, presente em outras relações analisadas na pesquisa, identificamos que o processo eleitoral e a campanha pela reeleição do governo federal em 2006 teve impacto sobre os resultados dos modelos estatísticos, já que a pesquisa foi realizada em junho daquele ano (MENEGUELLO, 2011). Concordamos com Rose (2007) quando aponta que o comportamento político está definitivamente condicionado às influências do tempo e da história, e que “ignorar essas influências sobre o comportamento no momento da realização de um survey é agir como se o passado não tivesse existência empírica” (ROSE, 2007, p286). A tradição de estudos sistemáticos de análise longitudinal da evolução da relação dos cidadãos brasileiros com o regime democrático precisa avançar mais de modo a permitir apreender no tempo as variações das atitudes e percepções quanto ao funcionamento do sistema político em geral e suas instituições em particular. Como se sabe, o conhecimento das bases subjacentes do fenômeno da confiança institucional e do desafio que isso coloca para a democracia brasileira não resulta de um único estudo realizado no tempo. Por isso, uma das conclusões mais importantes que emerge do esforço coletivo apresentado neste livro é a necessidade de desenvolvimento de um programa de pesquisa e de produção de dados que seja permanente e suficientemente abrangente para avançar o conhecimento do fenômeno democrático brasileiro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACEMOGLU, D.; JOHNSON, S.; ROBINSON, J.A.; YARED, P. From Education to Democracy? 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