A presen a de Camillo Sitte

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A presen a de Camillo Sitte
A Presença de Camillo Sitte
Maria Elaine Kohlsdorf1
Introdução
Procurar a presença de Camillo Sitte na circulação de idéias sobre a cidade de hoje traz
inevitáveis comparações entre o seu e o nosso fin de siècle. Em ambos, a questão urbana ocupa
o centro do palco cotidiano: assim como havia cidades em enormes mutações na Europa que
se industrializava no século XIX, hoje assiste-se ao reinado do urbano na atual ordem mundial
da globalização.1 Ambos caracterizam-se por incertezas quanto ao futuro desconhecido,
inconformidade com os processos do presente e efervescência de debates sobre o passado.
Então e agora, olhares atravessam ou ficam retidos em espessas névoas de sintomas,
procurando entender, afinal de contas, o que está acontecendo.
Apresentações do olhar de Camillo Sitte geralmente o evocam por sua nostalgia da
cidade antiga e pelo romantismo das teses que defendia. Sitte nostálgico encabeça a “corrente
culturalista” proposta por CHOAY (1965), acompanhado por Ruskin, Willian Morris, Howard e
Unwin. Ele não teria entendido mudanças sociais profundas ocorridas a partir da Revolução
Industrial, tratando como desordem a nova ordem por ela trazida às cidades. Logo, a presença
de Camillo Sitte não teria ultrapassado o lamento devido à perda da cidade como lugar da
cultura.2
A maioria dos debates sobre sua obra mostra Sitte romântico e reduzido à defesa do
pitoresco, pictórico ou pinturesco, expressões que procuram traduzir malerisch. O termo em
alemão deriva diretamente do verbo pintar e não se limita a associações ao romantismo;
contudo, interpretaram-se menções daquele autor às virtudes do malerisch como indício de um
olhar conservador, ignorando a possibilidade crítica que conviveu com o subjetivismo na
escola romântica.3 Terceira opção revela influência sitteana no urbanismo do século XX, na
contra-corrente do corbusianismo e em movimentos reunidos no viés humanista do
1
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/UnB. E-mail: [email protected]
pensamento urbanístico contemporâneo, como o organicismo, a escola de townscape, o
contextualismo, o urban design, antropopolis e o new urbanism.
Nossa revisita a Camillo Sitte é, evidentemente, mais um olhar possível sobre sua obra.
Não se pretende incursão biográfica ou historiográfica, mas procurar contribuições do referido
autor ao debate sobre estratégias de intervenção voltadas ao papel da configuração do espaço
público no processo de cidadania. Vínculos entre essa discussão e o pensamento sitteano
encontram-se no foco deste último nas áreas livres públicas; para Sitte, cidade e espaço
público eram sinônimos, e a construção urbana resumia-se a organizar lugares de convívio
cotidiano e cerimonial:
“ Que a grande massa de moradias seja consagrada à labuta – nesta esfera, a cidade
pode apresentar-se em roupas de trabalho, mas as poucas praças e ruas principais
deveriam poder apresentar-se em trajes domingueiros, para alegria e orgulho dos
cidadãos (...)” (SITTE, 1992:101).
Porém, deve-se abstrair de seu discurso o contingencial e nele investigar a permanência
de noções metodológicas aplicáveis a estratégias atuais de planejamento urbano. Sitte indicou
o caminho, ao propor que seu trabalho fosse uma “estética prática e (servisse) aos técnicos da
construção urbana como uma contribuição útil” (ibid.,ibid:11). Mas sua obra não se concentrou
na questão estética; geralmente empregava o termo künstlerisch (artístico) remetendo, assim, a
certa possibilidade de discussão no universo estético. Por outro lado, Camillo Sitte associava
sempre a dimensão artística da cidade à utilização pública de suas áreas livres.
As reflexões ora apresentadas resultam de análise da obra principal de Sitte, A
Construção das Cidades segundo seus Princípios Artísticos, e de autores dedicados a seu
estudo: George e Christiane Collins, Françoise Choay e Carlos Roberto Monteiro de Andrade.4
COLLINS & COLLINS (1980) são cuidadosos exegetas das idéias de Sitte, nele resgatam
características atemporais e o alinham a Vitruvio e Alberti, devido ao caráter de compêndio de
seu livro. Segundo esses autores, tal obra é também um manual popular, onde se estabelecem
noções que possuem força de preceitos úteis para a ação projetual sobre a cidade, ao lado de
princípios para uma teoria do espaço antrópico. A permanência dessas noções é possível
porque elas ultrapassaram constrangimentos da circunstância histórica de Camillo Sitte,
tornando-se regras de organização espacial passíveis de aplicação em diferentes tempos.
Reduções equivocadas das idéias de Sitte, em geral provenientes de sua associação ao
Romantismo, desmistificam-se na abordagem de COLLINS & COLLINS (ibid.). Eles revelam um
2
intelectual inconformado e crítico, lutando pelo estabelecimento do planejamento urbano, por
atribuições profissionais dos arquitetos e por concursos públicos para projetos. Contradições
da moldura romântica, competentemente apontadas por BRESCIANI (2004), não devem impedir
apreciação do alcance do legado sitteano, especialmente quando se tratam de implicações que
se iriam apresentar apenas em época posterior.5 Entretanto, essas questões foram, até
recentemente, manipuladas pelo pensamento que impôs à construção das cidades uma visão de
mundo tecnicista, necessária à realização da ordem capitalista e da sociedade da era das
máquinas. Na verdade, a oposição racionalista a Camillo Sitte não se mostra menos distante da
realidade do que o foi o romantismo.
Assim, apenas em fins do séc.XX expôs-se claramente o banimento que sofrera Der
Städtebau e o ostracismo imposto a seu autor, no prefácio de Françoise CHOAY à elogiada
tradução francesa de Wieczorek (1980:V): 6
“Precisou-se [entre outros] da destruição de suas paisagens, do massacre de sua herança
urbana, da poluição do conjunto de seu território pela produção, sem medida nem
crítica, de construções que pretendem simbolizar a modernidade e o progresso, para que
os franceses se amedrontassem e preocupassem com seu quadro de vida. [...] Der
Städtebau de Sitte, que é, em matéria de urbanismo, um dos textos pioneiros do séc.XIX,
encontrou nos países francófonos destino duplamente hostil. Foi truncado e falsificado,
tanto por um primeiro tradutor demasiadamente convencido da justeza das teses de Sitte
[refere-se a Camille Martin], quanto por detratores excessivamente convencidos de sua
falsidade [refere-se, provavelmente, à corrente funcionalista no Urbanismo]”.
CHOAY encerra o prefácio destacando a atualidade do trabalho de Sitte (ibid: IX):
“Estas páginas escritas em Viena, há quase cem anos [mais de cem anos], aparecem
singularmente esclarecedoras e talvez indispensáveis àqueles que desejam hoje em dia
interrogar-se sobre a natureza do urbano ou se debruçar sobre os problemas do
patrimônio construído, da participação dos usuários na construção do quadro de vida,
das relações entre a técnica e a estética, ou como diria Alberti, entre a comodidade e a
beleza.” (tradução livre)
Na valiosa apresentação com que é brindada a tradução brasileira de HENRIQUE,
ANDRADE (1990) referiu-se a Camillo Sitte como analista que iria “situar-se criticamente em
relação aos princípios que então norteavam a construção de novos bairros ou novas cidades”
(ibid.:4). Mencionou a proposta teórica de Sitte, voltada ao desempenho do espaço urbano no
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cotidiano dos indivíduos e que, por tal motivo, demandava observação a partir do seu interior:
“Der Städtebau fala da cidade como é apreendida pelo cidadão comum [...] como é vista por aquele
que transita por suas ruas, atravessa seus territórios ...” (ibid:4).
Analogamente a COLLINS & COLLINS (op.cit.), ANDRADE destacou desdobramentos
futuros dos postulados de Camillo Sitte nas primeiras décadas do séc.XX, possibilitando
prática urbanística com características distintas àquelas da corrente racionalista dominante e,
após a Segunda Guerra Mundial, na crítica ao ideário e às realizações modernistas. Neste
sentido o método de Sitte, compreendendo a cidade a partir de seu interior, encontraria posição
defendida por BOURDIEU (1972) e CERTEAU (1990) como indispensável à decodificação de
práticas sociais em geral, em termos de observador contido no observado.7
Assim como os demais, ANDRADE (op.cit.) também considerou deturpações que
vitimaram o pensamento sitteano a partir de traduções problemáticas, estratégias do embate
ideológico, ignorância ou má fé. Das mais conhecidas, a tradução de Camille Martin para Der
Städtebau em 1902 impôs leitura equivocada de Sitte, associado ao medievalismo porque se
excluíram, nessa versão, exemplos do barroco. Por outro lado, nela Martin inseriu discutível
capítulo de sua autoria sobre ruas, rendendo infindável polêmica com Le Corbusier e seus
seguidores.
Portanto, revisita à obra de Sitte enseja visualizar contribuições fundamentais e avaliar
deformações a ela impostas em sua difusão. Vamos realizar esse processo não como um olhar
ao passado, mas uma celebração da presença de Camillo Sitte nos dias de hoje.
Antecedentes
Camillo Sitte nasceu em 1843 em Viena e morreu com sessenta anos. Filho de
conhecido artista e arquiteto, educou-se em atmosfera de arte, beleza e criatividade de certa
forma inconformista, em período de rico debate na Alemanha e na Áustria. Teve formação em
arquitetura, história da arte, arqueologia, fisiologia da visão, percepção espacial, anatomia e
dissecação, escreveu artigos de crítica de arte, realizou projetos edilícios, planos gerais,
centros cívicos, novos bairros e subúrbios. Chamado para organizar a Nova Escola Oficial de
Artes Aplicadas de Viena, situada na borda da área antiga da cidade, aí estabeleceu sua casa e
seu atelier, convertidos em ponto de discussões, atividades artísticas e intelectuais como
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projeto e feitura de móveis, tapeçarias, tecidos, pinturas e artesanatos realizados por ele, sua
esposa e amigos, fato que remete à Red House de William Morris. Foi tutor de jovens
arquitetos, consultor nos planos de Adelaide, Melbourne e Sidney, das prefeituras de
Hamburgo e San Francisco, e realizou projetos urbanísticos para pequenas cidades industriais
austríacas.
Nessa época, consolidava-se uma Europa industrial e os Estados Unidos emergiam para
o atual poder mundial a partir de sua industrialização; o modo de produção capitalista
impunha-se, atingindo países centrais e colônias recém tornadas independentes. Alastrada a
partir da Inglaterra em fins do séc.XVIII, a Revolução Industrial tornara a urbanização
processo irreversível nos países europeus, desfigurava como jamais estruturas centenárias de
suas cidades e expunha contradições urbanas ameaçadoras à realização da nova ordem social.
Esse contexto efervescente produziu significativa circulação de idéias, mas também um novo
urbanista encarregado de organizar o espaço das cidades para garantia de implantação e
desenvolvimento da sociedade industrial. Pensamento e prática sobre o urbano viram-se
especialmente divididos, nos países de língua alemã, entre a tradição artística (nutrida no
período romântico por integração entre artes visuais, música e literatura) e a engenharia
(nascida das novas tecnologias).
Camillo Sitte foi ativo nos campos do debate e do projeto urbano a ponto de balizar uma
escola de pensamento à qual se aliava um savoir faire de planejamento urbano sob o mote
“fazer com arte”. Ele tributava as idéias que expunha à visita a antigos mestres (como
Aristóteles e Vitruvio) e velhas cidades que analisava em constantes viagens; seu livro Der
Städtebau nach seinen künstlerischen Grundsätzen nasceu em 1889 graças a reflexões secretas
a partir dessas lembranças. Hábito comum à época, anotações de viagens inspiravam
intelectuais e literatos, bastando lembrar as flâneries relatadas por Baudelaire e, mais tarde,
Benjamin.
O sucesso do livro de Sitte conduziu-o a integrar júris de vários concursos para projetos
de urbanismo e a contatar personagens importantes da época, como Baumeister e Stübben,
com quem travaria inesgotáveis debates. A essa obra somou-se a revista Der Städtebau,
dedicada a “todos os fatores implicados na construção das cidades”, e não apenas à questão
artística; ao falecer, preparava o segundo volume de seu livro, “versando sobre planejamento
urbano segundo princípios científicos e sociais” (COLLINS & COLLINS, op.cit.:20).
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O contexto em que viveu Camillo Sitte foi especial porque marcou a origem do
planejamento urbano moderno nascido, segundo BRIX (apud COLLINS & COLLINS, op. cit.), na
Alemanha e daí expandido para o mundo inteiro. Suas bases fundaram-se por Baumeister na
Verein (Associação) de Berlin em 1874, em época onde os escritórios de planejamento urbano
alemães eram mais controlados por engenheiros, topógrafos e geômetras do que em outros
países. Nessa conjuntura, Sitte apontava diversos problemas da produção urbanística:
a) Os planos urbanísticos representavam superfícies apenas em plantas (Grundriss, Stadtplan
ou Stadtanlage); Sitte propunha Verbauungsplan ou Bebauungsplan (planos de massas), onde
se indicassem as alturas que os edifícios deveriam ter.
b) Ignorância do relevo do solo ou de outros eventos físicos preexistentes na área considerada,
restringindo o projeto urbanístico à precisão da representação geométrica.
c) Restrição de elementos básicos do tecido urbano aos quarteirões (Blockrastrum). Sitte
considerava unidades morfológicas fundamentais espaços públicos de praças e ruas, assim
como pátios privados; para ele, ruas poderiam ser retas (gerade, que entendia necessárias para
o tráfego crescente) ou curvas (krumme, tidas como adequadas a efeitos visuais mais
estimulantes devido à perspectiva interrompida).
d) Redução dos problemas urbanos àqueles provenientes do trânsito, tornando meta principal
dos planos a boa circulação de veículos. Neste ponto, Sitte discordava de Baumeister e
Stübben, admiradores da escola parisiense de planejamento que se filiava às idéias de
Haussmann. Eram para Sitte inaceitáveis propostas, geralmente sustentadas por engenheiros,
que convertiam praças em entroncamentos viários e atravessavam bairros antigos por vias
expressas.
e) Extrema ênfase dos planejadores alemães na higiene e na salubridade ajudou a colocar a
construção de cidades em mãos dos engenheiros, levando Sitte a protestar diante do
condicionamento do planejamento da superfície do solo à infraestrutura de saneamento.
f) O verde na cidade era mais desenvolvido na Inglaterra do que na Alemanha, embora nesta
houvesse melhores condições habitacionais do que na primeira. Os engenheiros alemães
copiavam desenhos ingleses com superficiais efeitos românticos, mas Baumeister, Stübben e
Sitte alimentaram-se da tradição daquele país, inserindo squares e parks no tecido urbano.
Conheceram o movimento pelos parques urbanos nos EUA, especialmente os parques
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conectados de Olmstead em Boston (que inspirou o Cottage Anlagen de Viena); Sitte incluiu,
em DerStädtebau, um capítulo sobre vegetação na cidade.
g) O zoneamento como legislação urbanística, muito enfatizado pelos alemães na época, não
atraiu
atenção
de
Sitte,
especialmente
as
regulamentações
de
Baufluchtlinie
e
Strassenfluchtlinie (alinhamentos de construções que implicavam forte unidade às paredes das
ruas), constantes do Handbuch (manual) de Stübben. Para Camillo Sitte, os alinhamentos
irregulares antigos eram visualmente mais agradáveis.
A listagem anterior revela o quanto afloravam, na época de Sitte, questões profissionais
nas estratégias de organização espacial via planejamento urbano que hoje ainda não foram
superadas. Por exemplo, a carência de qualificação para projetação urbanística de profissionais
sem formação em arquitetura e o encargo desses planos. Este último ponto levou a Verein de
Viena (1877) a reafirmar postura que, desde incidente havido com o pai de Sitte, aconselhava
concursos públicos para planejamento da referida cidade. Isso explica o caráter personalizado
dos edifícios da Ringstrasse em Viena, ao contrário da experiência de Haussmann em Paris;
segundo COLLINS & COLLINS (op.cit.), o caso vienense é arquitetonicamente mais expressivo,
pois espelha a impressionante linhagem de Semper, Ferstel, Schmidt, Sitte e Otto Wagner, ao
contrário do anonimato por detrás da unidade haussmaniana. Porém, o impacto da nova
imagem francesa de metrópole na maioria dos escritórios de construção da Alemanha
fomentou o caráter ditatorial do planejamento urbano, com ênfase nos requisitos técnicos para
grandes escalas, severamente criticado por Sitte.
Embora seja aqui impossível empreender discussões profundas, os fatos relatados tornam
difícil sustentar distanciamento da postura sitteana das características próprias à nova
sociedade que emergia no séc.XIX. Atores desta última moviam-se na cidade industrial, que
necessitava desesperadamente de configurações espaciais diferentes das preexistentes para que
o jogo se processasse. Essa incompatibilidade expressou-se na argumentação higienista ou na
veneração à tecnologia, sendo ambas justificativas usadas para imposição de outros modelos
às antigas estruturas urbanas. Estes foram, porém, discursos manifestos da latente questão do
controle social exercido através de padrões morfológicos, como demonstraria FOUCAULT
(1982) tempos depois.8 Camillo Sitte jamais se omitiu neste embate de idéias e fazeres.
Atualidade de Camillo Sitte
7
Aportes de nossa revisita a Camillo Sitte para o presente são dificilmente condensáveis,
dada à riqueza de seu pensamento. Entretanto, o tema central de sua obra encontra-se nas
discussões sobre os rumos do atual processo urbano porque o fio condutor das reflexões desse
autor era o espaço público. Para Sitte, cidade era sinônimo de lugares públicos.
Lamentavelmente, o espaço de ruas e praças percorrido por DerStädtebau é divulgado
menos nas possibilidades por ele exploradas, do que em reduções a desempenhos
complementares, que se contrapõem ao fundamentalismo da racionalidade. Assim, a
referência a Aristóteles na Introdução àquela obra reduz-se a condição menor, tal como Sitte
advertira (op.cit.:15):
“Apenas em nosso século matemático é que os conjuntos urbanos e a expansão das
cidades se tornaram uma questão puramente técnica, (...) com isso, apenas um aspecto do
problema é solucionado...”
Sitte contrapunha-se ao urbanismo tecnicista devido a seu abandono das questões
artísticas, da mesma forma que se indaga hoje por que a sensibilidade contemplada pela arte
não merece o mesmo status da razão defendida pelo funcionalismo. Para aquele autor,
construir cidades segundo seus princípios artísticos significava faze-las com arte, como
acontecera na maior parte da história das cidades, quando essa realização associava
tecnologias disponíveis a referências expressivas e simbólicas.
Por outro lado, ele considerava a construção das cidades apenas um aspecto do grande
conjunto das artes, este compreensível através de dimensões filosófica, psicológica, fisiológica
e histórica, inclusive em suas origens. Tal conjunto abrigava outras artes em seu interior,
faceando a música, essencial para Sitte e por ele admirada especialmente através de Richard
Wagner e Beethoven. Porém, o contexto centro-europeu do séc.XX relacionou esse viés do
pensamento sitteano à psicologia nacional e ao pensamento teutônico, ignorando
possibilidades de investigação que apenas recentemente foram retomadas.
O romantismo manifesta-se na rebeldia de Camillo Sitte às imposições do maquinismo,
mostrando-o crítico, porém com posturas jamais gratuitas, pois provinham de avaliações de
lugares existentes. Ele os analisava por meio de duas abordagens, cuja articulação é
indispensável ao exercício projetual: a) a posição do observador cotidiano, fisicamente dentro
do espaço considerado; b) o ponto de vista do cientista ou do técnico, física e intelectualmente
8
fora do espaço examinado.9 Sitte realizava ambas as observações colhendo informações
perceptíveis durante percursos na área considerada e utilizando mapa da mesma; por outro
lado, procurava ponto elevado para observar a cidade de cima, de fora e em seu conjunto.
Exemplo da necessidade de se associarem ambos os modos de observação no processo de
projeto encontra-se quando criticou a base circular de praças (op.cit:105):
“Em uma planta, tais praças até se comportam de maneira sutilmente regular, mas e na
realidade? O que temos é o máximo de abertura da visão sobre as linhas de tráfego (...)
Ao contornarmos praça temos sempre a mesma imagem perante os olhos, de maneira que
nunca sabemos ao certo onde estamos.”
Posicionando-se dentro do espaço, como observador desinteressado e no cotidiano, Sitte
anunciou estudos de percepção espacial aplicados à projetação, que seriam desenvolvidos a
partir de 1940 e impulsionados duas décadas depois, por pesquisadores como Gary Winkel,
Kevin Lynch, Donald Appleyard, Terence Lee e outros.
As análises de Camillo Sitte não são meras descrições, mas descobertas de atributos
fundamentais da configuração espacial; para tal, propunha “aprender com a natureza e com os
mestres” (op.cit:12) sem que isso significasse imita-los, mas entender seus processos. Pouco
adequados ao pragmatismo do planejamento urbano dominante, tais procedimentos
encontraram mais respaldo nas ciências sociais do que no ensino de urbanismo, salvo raras
exceções. Por outro lado, eles incomodavam a rotina projetual, pois análises implicam
avaliações a partir de critérios, estes claramente expostos por Sitte e, hoje em dia, com
explicitação reclamada no embate entre diferentes atores envolvidos na organização territorial.
A revisita a este autor revelou-o teórico do projeto urbanístico cuja contribuição, porém,
desvia-se da pretensão científica assumida pelo urbanismo oficialmente praticado à sua época.
Ideologizado, tal urbanismo assumia-se a partir da fé na indústria, na ciência e na tecnologia
que lhe outorgavam poderes para “organizar a desordem” da cidade; serviu à construção da
sociedade industrial e pós-industrial, impôs-se no ensino e na enorme produção urbanística do
séc.XX, mas não logrou explicar os processos sociais urbanos.
Certos conceitos da obra de Sitte foram retomados no século passado visando
estabelecimento disciplinar do urbanismo e do planejamento urbano. Dentre eles, destaca-se a
idéia de espaço da cidade como espaço arquitetônico, tratado por Sitte em analogia ao espaço
da casa, do teatro, do mercado e do fórum. Essa afinidade entre diferentes tipos de lugar
concede continuidade ao campo da Arquitetura, encontrando o continuum espacial formulado
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por Aristóteles e Alberti, e abandonado a partir da divisão profissional trazida pela Revolução
Industrial. Legado da nova Divisão Social do Trabalho, a divisão entre espaço edilício e
urbano foi problemática no ensino e na prática projetual dos arquitetos no século XX a ponto
de gerar reações, em movimentos como os da Bartlett School e de centros em Berkeley e no
MIT. Nos anos 1960, palavras de Aldo van Eick retomaram Camillo Sitte ao evocarem
Alberti: uma cidade é como uma casa e, esta, nada mais é do que uma cidade.
O espaço da cidade foi qualificado em DerStädtebau como vazio delimitado por
fronteiras físicas que possuem forma, conceito hoje amplamente aceito; as questões urbanas
condensavam-se na configuração espacial, descrita por meio de elementos e relações
morfológicas. Esse enfoque preservou-se ao longo das incursões teóricas de Sitte, realizadas
quase contemporaneamente a Patrick Geddes e, assim como neste, comprometidas com a
atividade projetual. Referindo-se a esta como “construção de cidades”, manteve proximidade
entre planejamento e obra, que se distanciariam no ofício do arquiteto no séc.XX.
A teoria aplicada ao projeto formulada por Sitte significa desenho de passos do processo
de projetação urbana; ela não se desprende da finalidade propositiva senão em momentos de
abstração para inferência de características genéricas ou típicas. Tal atitude seria retomada a
partir dos anos 1950 em estudos tipológicos em Arquitetura e Urbanismo, e na procura de leis
de projetação do espaço socialmente utilizado, nas décadas seguintes. Estas últimas seriam
debatidas em pioneiros congressos da EDRA (Environmental Design Research Association) e
defendidas em artigos, hoje clássicos, por Bill Hillier, Adrian Leaman e Amos Rapoport. 10
Camillo Sitte não focou o caráter de arte da cidade dissociado de sua vida coletiva, pois
sua reflexão sobre espaços públicos amparava-se sempre pela interação social possível nos
mesmos; outros aspectos também comparecem nos seis capítulos sobre Praças em Der
Städtebau, como os funcionais, econômicos e bioclimáticos. Isto levou COLLINS & COLLINS
(op.cit.) a observar que sua sensibilização atingiu a questão da participação popular no
processo de organização espacial, que ganharia corpo na segunda metade do século passado.
Embora sem extensão em ações públicas ou organização de grupos, as idéias de Sitte sobre
como “fazer com arte” cidades, pressupunham motivação de cada cidadão para contemplar seu
contexto espacial e, conseqüentemente, nestes encontrar estímulos no cotidiano. Para tais
estímulos concorreria a diversidade de soluções arquitetônicas, mais prováveis se escolhidas a
partir de opções em concursos públicos, ao contrário do que ocorrera na Paris haussmaniana.
10
Outra questão geralmente associada a Camillo Sitte, a preservação do patrimônio
histórico, emergia no Romantismo assim como ressurgiu ao final do milênio. Porém ele
contribuiu à formulação desse problema distanciando-se da melancolia de sua época, do apelo
ao pastiche e do elogio à imitação. Conforme já comentado, ele deixou claro que “aprender
com os mestres” não significa imita-los, mas compreender suas criações por meio de análise
espacial das mesmas. E sua crítica à cidade que abria mão de ser lugar da cultura para tornarse lócus do capital jamais pode ser entendida como discurso nostálgico, pois construiu-se
como resistência à morte da História, pretendida pela nova ordem urbana. Finalmente, não
corresponde divulgação das idéias de Sitte como estando limitadas ao elogio do cânone
medieval porque elas não se constrangeram nesses limites; leitura breve de Der Städtebau
basta para encontrar sua abrangência de paisagens de diferentes tempos e culturas, como da
Grécia e Roma antigas e do barroco centro-europeu.
Entretanto, a transcendência de sua contribuição nesse campo reside no encontro que se
daria, muitas décadas depois, entre seu pensamento e idéias que atualmente sustentam as ações
de preservação do patrimônio cultural. O resguardo de testemunhos espaciais justifica-se hoje
por seu papel simbólico na formação da memória social, esta considerada fundamental na
construção da história individual e coletiva do sujeito. Esse processo dá-se, principalmente,
por identificação dos referidos testemunhos em práticas do cotidiano, e não em situações
esporádicas, e deve abranger toda a população, como têm sido exposto por vários teóricos,
dentre eles Michel de CERTEAU (op.cit.). Assim com este último, Sitte manifestou-se sobre a
democratização da transmissão da memória social, que necessitava de “antimuseus” e não de
“cárceres da arte”:
“É necessário um grande esforço espiritual para superar-se o efeito danoso (...) causado
por monumentos encerrados nos cárceres da arte chamados museus (...). É preciso ter
em mente que a cidade é o espaço da arte por excelência, porque é esse tipo de obra que
surte os efeitos mais edificantes e duradouros sobre a grande massa da população (....).
“(SITTE, op.cit.: 118).
Embora expondo posição contrária ao urbanismo oficial, que se consolidaria no séc.XX,
Sitte não falava sozinho. A interpretação capitalista do panorama urbano da Europa industrial
encontrava olhares críticos em sincronia ao de Camillo Sitte, e ele concedeu aos mesmos a
cristalização necessária naquele momento, trazendo o planejamento urbano para os arquitetos
11
(COLLINS & COLLINS, op.cit.) “apenas quando todo o mundo sente e pensa mais ou menos em um
mesmo sentido” (SITTE, op.cit.:22).
A influência de Sitte nas gerações futuras, especialmente na Alemanha, é amplamente
aceita. Para COLLINS & COLLINS (op.cit.), trata-se de um certo olhar sobre a cidade e sua
construção que o precede mas que, a partir dele, adquire impacto no planejamento urbano
corrente e, por meio de Karl Henrici, Theodor Fischer, Goecke, Stübben, Baumeister e Gurlitt,
contagia outros países e a América do Norte.
A influência de Sitte chegou às primeiras décadas do séc. XX e renasceu após a segunda
guerra mundial, período que define o desenvolvimento da pesquisa em Arquitetura Urbana.
Em quarenta anos da mesma, a presença de Camillo Sitte está nas origens da escola de
Townscape; vai ao encontro da interdisciplinaridade para nutrir conceitos e a prática projetual;
encontra posturas filosóficas humanistas e projeta-se no ressurgimento da questão do
patrimônio histórico como atenção a bens de referência cultural dos povos. Muito embora
desvios, problemas e imperfeições que cercam essa produção, é inegável seu papel na
discussão tanto da cidade do mundo globalizado, quanto na busca de novas formas de ação
urbanística. E, neste processo, revisitas a Camillo Sitte permanecem indispensáveis: mais do
que à atualidade, talvez nos devamos referir à necessidade de Camillo Sitte no pensamento
urbanístico contemporâneo.
Notas e Referências
1) “Reinado do urbano” refere-se a La Règne de l’Urbain et la Mort de la Ville (CHOAY, FRANÇOISE.
Paris: Centre Georges Pompidou, 1994).
2) Cf. CHOAY, FRANÇOISE (1965): L’Urbanisme – utopies et réalités. Paris: Ed. Du Seuil.
3) Cf. BRESCIANI, STELLA (2004): “Camillo Sitte entre a estética romântica e a eficiência moderna”.
Palestra em I Congresso Internacional de História Urbana. Agudos,SP.: UNESP (mímeo).
4) SITTE, CAMILLO (1992, 1909, 1889): A Construção das Cidades segundo seus Princípios Artísticos
(trad.HENRIQUE, RICARDO FERREIRA). São Paulo: Ed. Ática. Traduções de Henrique, Canosa e
Wieczorek de Der Städtebau preservam melhor o pensamento sitteano do que outras (como, por
exemplo, a de Martin). Referências bibliográficas:
- COLLINS, GEORGE & CHRISTIANE C. (1980, 1965): Camillo Sitte y el Nacimiento del Urbanismo
Moderno. Barcelona: Ed. G.Gilli.
12
- CHOAY, FRANÇOISE (1980): Prefácio à primeira edição de L’Art de Batir les Villes (trad. D.
WIECZOREK). Paris: Editions l’Équerre.
___________________ (1969): The Modern City – city planning in the nineth century. New York:
Ed. Braziller.
___________________ (1985): A Regra e o Modelo. São Paulo: Ed. Perspectiva
- MONTEIRO DE ANDRADE, CARLOS ROBERTO (1992): Apresentação à tradução de HENRIQUE à Der
Städtebau nach seinen künstlerischen Grundzätzen (op.cit.).
5) CHOAY (1965, 1969) e COLLINS & COLLINS (op.cit.) indicam romantismo em atitudes de nostalgia
(quanto à cidade pré-industrial) e de combate (ao urbanismo oficial) associadas a Camillo Sitte.
COLLINS & COLLINS (ibid.) comparam-no com Siegfried (em Tannhäuser de Wagner) e fazem
paralelo entre seu sonho de monumento nacional e a Outlook Tower reformada por Patrick Geddes,
em Edimbourgh. Mas a Gesamtkunstwerk em que se baseava Sitte ainda não desencadeara, em sua
época, o pangermanismo que alimentou o nazi-fascismo, algumas décadas depois.
6) Sobre o assunto, ver as demais obras dessa autora, citadas anteriormente.
7) Faz-se, aqui, referência ao observador contido no observado, exposto por PIERRE BOURDIEU
(Esquisse d’une Théorie de la Pratique. Genève: Ed. Droz, 1972) e também presente em MICHEL
DE
CERTEAU (A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Ed. Vozes, 1994), como postura científica
indispensável à decodificação das práticas sociais.
8) FOUCAULT, MICHEL (1982): “Espaço, conhecimento e poder”. Entrevista a Paul Rabinow.
Skyline.
9) Essa última atitude foi expressa como “desinteressada” por Shaftsbury e, depois, por Kant (apud
BASTOS, FERNANDO: Panorama das Idéias Estéticas no Ocidente.Brasília: Ed. UnB, 1996). Sobre o
assunto, ver também:
- KOHLSDORF, MARIA ELAINE: A Apreensão da Forma da Cidade. Brasília: Ed. UnB, 1996.
________________________: Metodologia para Recolhimento de Dados de Configuração Urbana
em Sítios Tombados. Brasília: IPHAN – DID, 2000 (mímeo).
- SILVA, ELIEL AMÉRICO SANTANA: Ensaio sobre a Agradabilidade Visual da Cidade. Dissertação
de Mestrado. Brasília: FAU-UnB, 2000.
10) Por exemplo, em:
-
HILLIER, BILL: “Architecture as a Discipline”. JAR 5 / 1, March, 1976, p. 28-32.
-
HILLIER, BILL; MUSGROVE, JOHN & O’SULLIVAN, PATRICK: “Knowledge and Design”, EDRA
3, 1972.
-
RAPOPORT, AMOS (1969): “Complexity and Ambiguity in the Environmental Design”. AIP
Journal, vol.32, no1, Jan.:210-221.
Ver também:
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-
HOLANDA, FREDERICO : O Espaço de Exceção. Brasília: Ed. UnB, 2002.
-
KOHLSDORF, MARIA ELAINE: “Breve histórico sobre o espaço urbano como campo
disciplinar”, FARRET, RICARDO: O Espaço da Cidade. São Paulo: Ed. Projeto, 1985.
________________________: Ensaio sobre o Pensamento Urbanístico. Brasília: CIORDUnB, 1994 (circ. rest.).
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