Modulo_Romeu_e_Julieta - Programa Círculos de Leitura
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Modulo_Romeu_e_Julieta - Programa Círculos de Leitura
Círculos de Leitura Instituto Fernand Braudel Módulo Romeu e Julieta de William Shakespeare “Príncipe: Onde estão os inimigos? Capuleto, Montéquio, vejam que a maldição recaiu sobre o ódio de vocês, que até mesmo os céus encontraram meios de matar com amor as vossas alegrias e eu por ter fechado meus olhos às vossas discórdias, também perdi dois da minha família. Fomos todos punidos. (...) Embora daqui, vão, e conversem mais sobre estes tristes fatos. Alguns serão perdoados, outros punidos, pois jamais houve história mais dolorosa que esta de Julieta e seu Romeu”. Romeu e Julieta, William Shakespeare 1 ÍNDICE Introdução.................................................................................................................3 PRIMEIRO ATO......................................................................................................5 SEGUNDO ATO.......................................................................................................9 TERCEIRO ATO....................................................................................................11 QUINTO ATO........................................................................................................15 Poesias Relacionadas............................................................................................17 Reflexões Complementares.................................................................................19 2 Introdução Esse módulo é produto das nossas reflexões nos grupos dos Círculos de Leitura, feitos com jovens das redes públicas de ensino de São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Sabemos que este livro despertará em você reflexões que talvez não tenham sido contempladas aqui. Escreva para nós sobre suas idéias. Com elas poderemos fazer um segundo módulo. Em todas as obras de Shakespeare, o personagem do Mal sempre aparece, mas nem sempre consegue fazer o que pretende, porque há pessoas que intervém a tempo e desfazem as intrigas. Em Romeu e Julieta, o personagem do Mal aparece representado através do ódio entre as duas famílias. No final da peça, ao descobrir o que tinha realmente acontecido com Romeu e Julieta, o Príncipe diz: “Onde estão os inimigos? Capuleto! Montéquio! Vejam que a maldição recaiu sobre o ódio de vocês, que até mesmo os céus encontraram meios de matar, com amor, as vossas alegrias!”. Ele reconhece que errou por fechar seus olhos durante tanto tempo às suas discórdias. Por isso, conclui, “fomos todos punidos”(p.165). Shakespeare nos apresenta um Príncipe que com profunda lucidez, no final da tragédia, se dá conta da soberania de certas leis que regem o universo, e por isto curva-se, e surpreende-se perante elas. Consideramos Romeu e Julieta como uma das mais belas histórias de amor que a humanidade já produziu. Mas terminamos a leitura com a convicção de que Shakespeare também nos apresenta a necessidade de integrar a força do amor à política dos homens. Trata-se, portanto, de uma peça profundamente política. O que deveria reger a sociedade é o conhecimento e a integração entre as leis escritas pelos homens, e as leis não escritas. Shakespeare quer mostrar como a arrogância - a hibris - das famílias rivais – os Montéquio e os Capuleto – acaba por destruir sua própria descendência. A hibris seria uma cegueira perante as leis escritas e não escritas, que regem a consciência dos homens. 3 Romeu e Julieta, com seu amor, são os heróis que conseguiram instaurar uma nova ordem em Verona, uma ordem em que a lei do amor pode se integrar à lei do Príncipe. A peça termina com a fala do Príncipe convocando os cidadãos de Verona, e todos nós, a conversar sobre esta história de amor. O Príncipe sabe que essas histórias entram no coração dos homens, orientando suas ações e transformando assim a sociedade: Príncipe – (...) Embora daqui, vão, e conversem mais sobre estes tristes fatos. Alguns serão perdoados, outros punidos, pois jamais houve historia mais dolorosa que esta de Julieta e seu Romeu. (pg. 161) Nas obras de Shakespeare, como em Romeu e Julieta, o tempo é um personagem: O pai de Julieta não respeitou o tempo do namoro, forçando a filha a se casar com Paris. Não se respeitou o tempo do luto pela morte de Teobaldo. O frei Lourenço simulou a morte de Julieta para ganhar tempo, mas o mensageiro não chegou a tempo para avisar Romeu, de forma que ele pudesse levar sua amada para bem longe, dando tempo às duas famílias de viver o luto. Romeu e Julieta não tiveram tempo para viver o seu amor Shakespeare, ao nos contar a sua história, faz com que ela fique no tempo. Essa história fica no tempo da eternidade, no coração dos homens, para sempre. 4 PRIMEIRO ATO Cena I – Briga em um local público Num local público os criados ligados aos Montéquio e aos Capuleto iniciam uma briga. Outros homens relacionados às duas famílias entram no combate, incluindo Teobaldo, primo de Julieta, e Benvólio, colega de Romeu. O Sr. Capuleto desembainha a espada ao ver que o Sr. Montéquio chegou. Os dois estão quase lutando. Lady Montéquio segura o marido e, sob os protestos deste, diz “Não vais te mover um milímetro na direção de um inimigo” (pg.14). Mas é preciso o Príncipe chegar para que a briga seja interrompida. Em sua fala, o Príncipe condena o dois patriarcas, que lutam por poder e, com seu dinheiro, querem fazer suas próprias leis. Ele também fala que ninguém parece ouvi-lo. Príncipe – Súditos rebeldes, inimigos da paz, profanadores do aço destas lâminas manchadas com o sangue de vossos próprios vizinhos! Será que eles não me ouvem? Ei, olá, homens, vocês, animais, que aplacam o fogo de sua fúria perniciosa com as fontes púrpuras que brotam de suas próprias veias! (...) Três lutas civis, nascidas de palavras atiradas ao vento por vocês, velho Capuleto e velho Montéquio, três vezes vieram perturbar a calma de nossas ruas e fizeram com que os mais antigos cidadãos de Verona, vestidos com esses graves adereços que lhe caem tão bem, pegassem em armas tão antigas e enferrujadas quanto suas próprias mãos (...) (pg. 14). A fala do Príncipe nomeia o problema. A briga mostra que esta sociedade ainda está em seu estágio mais primitivo, em que as pessoas estão divididas em bandos. Quando se está em bando, há apenas um que manda. Os outros obedecem, sem pensar. Nessa obra as duas famílias mais ricas lutam entre si por poder e querem impor suas próprias leis. Rivais, os dois bandos – Montéquio e Capuleto – são então na verdade muito parecidos, pois ambos fazem parte deste sistema arcaico. Ao mesmo tempo, já vemos que Romeu é diferente, porque não está na briga. Benvólio explica a Lady Montéquio que Romeu está no bosque, fora da cidade, e está apaixonado. Quando chega e vê que houve uma briga, Romeu diz a Benvólio “Temos muito o que fazer com o ódio em nossa cidade, e mais ainda o que fazer com o amor”(pg. 18) Cena II - O Sr. e Sra. Capuleto A fala do Sr. Capuleto parece ser de um pai compreensivo, que vai respeitar a escolha da filha. Mais tarde veremos que esta fala não é verdadeira, e a ação e a palavra não estão integradas. Na conversa com Paris, que deseja se casar com Julieta, Capuleto diz: 5 Capuleto – Não tenho resposta diferente; só posso repetir o mesmo que te disse da outra vez: minha filha ainda é uma principiante neste mundo. Ainda nem passou pela mudança de completar os quatorze anos de idade. Deixemos que outros dois verões floresçam e feneçam antes de pensarmos que ela poderia estar madura para se casar (...) Mas corteja-a, gentil Paris, conquista o coração de minha filha. O que eu quero ou deixo de querer é apenas parte do consentimento dela. Uma vez que ela concorde, é dentro do leque de escolhas dela mesma que se encontrará o meu consentimento, e minha voz, jubilosa, estará de acordo. (pg. 22/23) Já a mãe de Julieta, Sra. Capuleto, espera que a filha siga os mesmos caminhos já trilhados por ela: Lady Capuleto – Bem, pois começa a pensar em casamento a partir de agora. Mais nova que tu, aqui em Verona, há senhoras de respeito, que já são mães. Pelas minhas contas, eu já era tua mãe bem antes dessa idade em que tu agora continuas donzela. Assim sendo, mocinha, digo-te o seguinte, resumindo a história: o nobre Paris quer a ti por esposa ... Estuda o livro que é o rosto do jovem Paris, e encontra nele prazer, escrito com a pena da beleza. (pg. 31) Cena IV - Romeu não é ouvido por Mercúcio, que banaliza o amor e o sonho Romeu começa a contar que teve um sonho, mas Mercúcio o interrompe, ridicularizando os sonhos, que chama de “filhos de um cérebro ocioso, gerados de nada além de fantasias vãs, que em sua substância são tão ralas quanto o ar e mais inconstantes que a brisa”. Bufão, Mercúcio não pode perceber o amigo e se mostra superficial, embora se ache esperto e corajoso. Ridiculariza o amor quando diz a Romeu, convidando-o para o baile de máscaras na casa dos Capuleto: Mercúcio – Se o amor for impiedoso contigo, sê impiedoso com ele. Fere o amor só por ferir, e serás o vencedor dessa luta... (Colocando uma máscara) Uma máscara para outra máscara! Que me importa que olhares alheios e curiosos observem minhas deformidades? Aqui está a carranca que irá envergonhar-se por mim (...) (Pg.30) Mesmo sem ser ouvido pelo amigo, Romeu pede que este o escute, e lhe fala de um pressentimento de que algo de novo e desconhecido, está por vir: Romeu – Paz, Mercúcio, um pouco de paz. Estás falando nada de coisa nenhuma (...) Fico apreensivo, pensando que alguma conseqüência, ainda pendente das estrelas, iniciará, de modo amargo, seu tímido encontro com a festa desta noite. Temo que esta mesma conseqüência venha dar fim a uma vida desprezada, apertada em meu 6 peito, por alguma penalidade vil de morte prematura. Mas Ele, aquele que segura o timão do curso de minha vida, que direcione minha vela! (Pg.38) Mais tarde , depois que Romeu já se apaixonou e se casou com Julieta, Mercúcio não enxerga as mudanças que se operaram no amigo, pois lhe falta a empatia. Vê apenas a imagem que lhe agrada ter de Romeu. . Não é a toa que Romeu dirá que Mercúcio só esteve ao seu lado para caçar patos: Mercúcio – Agora estás sociável. Agora estás, Romeu. Agora és tu aquilo que és, por natureza e por artimanha. Pois esse amor que faz babar é como um grande imbecil, um bufão, correndo para cima e para baixo, sempre de língua de fora, sempre disposto a enterrar sua vara num buraco. (pg. 67) Cena V – O baile de máscaras na casa dos Capuleto A festa surge como uma brecha, como uma possibilidade de mudança, um desprendimento momentâneo do viver cotidiano. Nossos dois heróis, Romeu e Julieta, sabem aproveitar essa brecha para se conhecer e se apaixonar. A festa funciona também como um momento de trégua, como mostra a reação do Sr. Capuleto quando Teobaldo lhe avisa, cheio de fúria, que Romeu Montéquio está na festa. Observamos no diálogo entre Teobaldo e Capuleto que o jovem Teobaldo é mais rígido que o próprio chefe do clã. Este não quer que haja briga durante a festa, e até admite que Romeu é um rapaz virtuoso. Já Teobaldo não sabe se divertir e quer brigar com o Romeu, e precisa ser repreendido pelo tio. Mesmo assim, não ouve o que o Sr. Capuleto lhe diz – que Romeu tem fama de ser um jovem virtuoso. O que Teobaldo queria fazer na festa, mas foi impedido, vai fazer depois, porque não sabe direcionar sua energia de outra forma: Teobaldo – Esse, pela voz, deve ser um Montéquio. Busca meu espadim, rapaz. Como ousa, esse escravo, vir aqui até aqui, escondido atrás dessa máscara estúpida, para rir e debochar de nossa festividade? Ora, pela estirpe e pela honra de minha família, matá-lo hoje não há de ser pecado (...) Meu tio, esse é um Montéquio, nosso inimigo; um bandido, que aqui veio por despeito para rir desta noite, para debochar de nossa festividade. Capuleto – Contém tua fúria, gentil primo, e deixa-o em paz. Ele está se portando como um perfeito cavalheiro, e para dizer a verdade, Verona gaba-se dele, por ser um jovem cheio de virtudes e bom senso. Nem por toda a riqueza da cidade ia querer que ele fosse insultado aqui em minha casa. Portanto, peço-te paciência: ignora-o. Esta é minha vontade. Se vais respeitá-la, mostra-te cortês e desenruga a testa, pois sua fisionomia assim não combina com uma festa. (pg. 41) 7 Teobaldo pensa que sabe o que Romeu foi fazer na festa: “por despeito para rir desta noite, para debochar”. Nós sabemos que ele não sabe de nada. Só sabe brigar, não pensa. Vemos na fúria de Teobaldo que os problemas não resolvidos de uma geração voltam na próxima, com maior intensidade. O não aprendizado resulta num enrijecimento progressivo. O quanto Teobaldo é ele próprio, e o quanto ele é apenas um turbilhão de gestos, preconceitos e comportamentos herdados que decidem por ele? Teobaldo então não passa de uma caricatura da sua sociedade, repetindo padrões de ação sem processá-los. Teobaldo nos faz lembrar do ensinamento do filósofo Nietzsche, sobre como é difícil ser herdeiros, porque a “loucura dos nossos antepassados ainda irrompe em nós (...) Ainda agora vive, em nosso corpo, toda essa demência e engano. Tornaram-se nele, corpo e vontade (...) Não apenas a razão dos milênios, mas também sua loucura irrompe em nós. É perigoso ser herdeiros”. É necessário refletir sobre o que fazemos para não reproduzirmos os erros de nossos antepassados, ou como diz Nietzsche, “a loucura”, a “demência e engano”, que, no caso de Teobaldo, era o ódio contra os Montéquio. 8 SEGUNDO ATO Cena II – O jardim de Capuleto Mesmo em uma sociedade estagnada e regida por homens que só pensam em manter seu poder no bando, o amor consegue surgir. E, quando surge, infunde coragem. Como diz Platão, quem ama tem um Deus dentro de si. É o que Romeu sente, ao afirmar para Julieta: Romeu - Com as asas leves do amor superei estes muros, pois mesmo barreiras pétreas não são empecilhos à entrada do amor. E aquilo que o amor pode fazer é exatamente aquilo que o amor ousa tentar. Assim sendo, teus parentes não são obstáculo para mim. (pg. 52) Vemos que na cena do jardim Romeu e Julieta abrem mão dos seus nomes herdados pelos pais com a maior facilidade, porque estão em contato com o amor. Além de infundir coragem, o amor também revela nossa essência. A essência de nosso ser, quem realmente somos, manifesta-se na presença de alguém que amamos: Julieta – É só teu nome que é meu inimigo. Mas tu és tu mesmo, não um Montéquio. E o que é um Montéquio? Não é mão, nem pé, nem braço, nem rosto, nem qualquer outra parte de um homem... O que significa um nome? Aquilo a que chamamos rosa, com qualquer outro nome teria o mesmo e doce perfume. E Romeu também, mesmo que não se chamasse Romeu, ainda assim teria a mesma amada perfeição que lhe é própria, sem esse título. Romeu, livra-te de teu nome. Em troca dele, que não é parte de ti, toma-me inteira para ti. Romeu – Tomo-te por tua palavra: chama-me de teu amor, e serei assim rebatizado; nunca mais serei Romeu. (pg. 51) Cena III – Romeu procura Frei Lourenço, seu pai espiritual. Romeu não podia contar com Benvólio, tampouco com Mercúcio – eles não eram amigos íntimos com quem pudesse compartilhar o que estava acontecendo com ele. Romeu sentia que podia contar apenas com uma pessoa, aquele a quem ele chama de seu “pai espiritual”, Frei Lourenço. Este é um homem muito sábio, como vemos na sua fala sobre a importância do equilíbrio, da medida das coisas. Ele também fala das diferentes forças – como o amor e o ódio - que habitam dentro de cada homem. Sabe que apesar do ódio entre as famílias é possível nascer o amor: 9 Frei Lourenço – A terra, mãe da natureza, é também seu túmulo. A mesma terra que lhe serve de sepultura é útero (...) Pois nada vive na terra que seja tão vil que não tenha algum bem em especial para lhe doar; e nada é tão bom que não possa ser mal empregado e, contrário à sua própria origem, chegar às raias do abuso. Mal aplicada, a virtude transforma-se em vício, e o vício, pela ação, pode ser por vezes dignificado (...) Acampam-se de sentinela a graça e a desgraça dentro do homem e das plantas, defendendo reis tão rivais. E onde a pior delas predominar, logo o tumor canceroso termina por comer o vegetal. (pg. 59) Cena VI – Romeu e Julieta se casam na cela de Frei Lourenço Quando Julieta chega, Frei Lourenço se admira com sua segurança e leveza: Frei Lourenço - Eis que vem chegando a dama – Ah, passos assim tão leves jamais gastarão a pedra dura e perene. Os amantes podem andar nos fios de uma teia de aranha que balança com a brisa lânguida do verão e, mesmo assim, não caem. Os prazeres deste mundo têm a mesma leveza. Mesmo neste sistema arcaico brotou o amor, que poderia transformar essa sociedade. Frei Lourenço quer casar logo os jovens porque sabe que o amor de nossos heróis têm um senso de urgência. Essa intensidade é característica da juventude. Esta ânsia intensa de vida entre os jovens é muito saudável. Cabe aos adultos a função de respeitar a força vinda dos jovens quando amam, acolhendo e conduzindo esta energia para que eles possam realizar seus planos. Neste caso, como os adultos, com exceção do Frei Lourenço e da Ama de Julieta, não cumpriam essa função, caberia aos jovens se apoiarem uns aos outros, buscando ajuda entre si. Romeu - Ah, Julieta, se a medida da tua alegria estiver transbordando como a minha, e se tens a habilidade necessária para proclamá-la, então adoça com teu hálito o ar que nos cerca e deixa que a língua riquíssima da música revele a felicidade imaginada que recebemos um do outro com este encontro de ternura. Julieta – O pensamento, mais rico em conteúdo que em palavras, orgulha-se de sua substância, não de seus adornos. As palavras são meras mendigas que podem tão somente contar o seu valor. Meu amor verdadeiro, porém, cresceu a tal ponto que não tenho como somar mais que metade do total de sua riqueza. Frei Lourenço – Venham, venham comigo, e nós vamos tornar a cerimônia mais curta. Com sua licença, não vou deixar os dois sozinhos até que a Santa Madre Igreja os tenha unido em matrimônio. (pg. 78/79) 10 TERCEIRO ATO Cena I – Uma praça pública Em uma praça pública Teobaldo mata Mercúcio e é morto por Romeu, que desesperado depois se dá conta que foi um “bobo da corte, joguete do destino”. Ao ver Mercúcio morto, foi arrastado pela fúria a fazer algo que não queria. Desde o início desta cena Romeu dá claros sinais de que não quer brigar, mesmo quando Teobaldo chega e o provoca, querendo briga. Os jovens estão sozinhos na praça pública, não há a presença de adultos. Teobaldo – Romeu, o ódio que tenho por ti não me permite usar termo mais suave: és um verme. Romeu – Teobaldo, o motivo que tenho para te amar desculpa a raiva que vem junto com essa saudação. Verme não sou. Portanto, adeus. Vejo que não me conheces. Teobaldo – Rapaz, isso não desculpa os insultos que jogaste contra mim. Portanto, vira-te e empunha a tua arma. Romeu – Nego tua afirmação. Jamais te insultei. Pelo contrário, amote mais do que possa imaginar. Até que possas conhecer o motivo de meu amor – e então, meu bom Capuleto (nome que muito prezo, tanto quanto o meu próprio) – até lá, dê-se por satisfeito. (pg. 82) Teobaldo, desarmado com a resposta de Romeu, já está indo embora, quando é chamado de volta e provocado por Mercúcio, que se sente na obrigação de brigar. Mercúcio não percebeu o que estava por trás da atitude de Romeu e este perdeu nesse momento a oportunidade de falar em tom bem firme sobre a razão pela qual não queria brigar com Teobaldo. Provocado por Mercúcio, Teobaldo volta para o comportamento violento que vimos já na primeira cena da peça. Nós, espectadores, vemos que muita coisa já aconteceu deste então – a festa, a ausência de Romeu no final da festa, a ama de Julieta que veio trazer uma mensagem – mas Mercúcio continua vendo tudo igual, não percebe as mudanças em Romeu: Mercúcio – Ó calma desonrada, vil submissão! A la stocatta encarrega-se de levá-la embora. Teobaldo, seu caçador de ratos, o senhor não se mexe? (pg. 84-85) Mais uma vez Romeu tenta interromper a violência, implorando a Benvólio que o ajude a desarmar os dois. Quando mais tarde Benvólio contar a estória do que ocorreu, veremos que ele não fez o que Romeu pediu. 11 Apenas observou mero espectador, inerte, passivo e por isto, também cúmplice. Mercúcio e Benvólio, assim representam os dois pólos da inércia: Mercúcio era movido pela inércia, sempre agindo da mesma forma, com uma aparente coragem. Já Benvólio é passivo em sua inércia, e nada faz para interromper a briga. Na tentativa de parar a briga, Romeu apela para a figura da lei, do Príncipe. Romeu – Saca de tua espada, Benvólio; desarma esses dois. Cavalheiros, que vergonha, desistam deste ato ultrajante! Teobaldo, Mercúcio, o Príncipe proibiu expressamente altercações nas ruas de Verona. Basta, Teobaldo! Meu bom Mercúcio...(pg. 84) Como vimos na primeira Cena, o Príncipe não é ouvido. Ou seja, apelar para a lei do Príncipe era inútil. Se Romeu tivesse podido gritar em tom bem alto, apelando para a verdade dos fatos – que já estava casado com Julieta – talvez ele tivesse sido ouvido por Benvólio, Teobaldo e Mercúcio. Benvólio e Mercúcio haviam o acompanhado à festa dos Capuleto, onde se apaixonara por Julieta. Teobaldo também já havia visto Romeu na festa, tanto que queria expulsá-lo. Eles teriam levado um choque com a notícia do amor, mas ao menos saberiam as razões pelas quais Romeu não queria brigar. Sem dúvida essa noticia teria causado uma desorganização, uma perplexidade em todos. Mas, ao contar a verdade, Romeu teria feito Benvólio e Mercúcio relembrarem do motivo pelo qual o tinham levado à festa: se esquecer de Rosalinda e encontrar outro amor, que desta vez fosse correspondido – fato que aconteceu. Em seguida há uma cena que nos mostra como há momentos em que corremos o risco de sermos arrastados para fazer algo que não queremos. A última coisa que Romeu queria era brigar. Estava amando, era amado, e se sentia feliz. Mas, apesar disso, Romeu é possuído pela fúria ao ver Teobaldo retornar, com andar triunfante. A imagem do amigo morto aos seus pés e do seu assassino caminhando altivo o faz perder o eixo e reagir: Benvólio – Vem chegando de volta o furioso Teobaldo. Romeu – Vivo, triunfante! E Mercúcio, assassinado! Vai-te embora, cautelosa clemência, sobe aos céus, e que, a partir de agora, seja meu guia a fúria cega! (pg. 86) Mas logo depois de assassinar Teobaldo, Romeu se dá conta de como foi arrastado a fazer algo que não queria: Romeu – Sou o bobo da corte nesta vida, joguete do destino. (pg. 87) Podemos pensar que há situações extremas na vida, em que é necessário fugir de um ambiente e de certas pessoas que nele vivem para não perdermos nosso eixo, pois caso contrário poderia acabar fazendo algo contra nossa própria vontade. O próprio Frei Lourenço já nos falou que a 12 graça e a desgraça, o ódio e o amor, “acampam de sentinela” no coração do homem. Aquela situação limite despertou o ódio de Romeu. Como vimos, ele havia pedido ajuda a Mercúcio e Benvólio para impedir a briga, mas eles não o ajudaram. Daí, a tragédia. Não haveria tragédia se ao menos naquele momento uma pessoa pudesse ter ouvido Romeu. Romeu acabou ficando refém daquela situação, da qual queria tanto fugir. Cena V – Uma sacada que dá para os aposentos da Julieta, sobre o jardim. Os Capuleto decidem casar Julieta com Paris imediatamente, pensando que assim vão tirar a filha da dor pela morte de Teobaldo. É a própria Lady Capuleto que dá a notícia a Julieta: Lady Capuleto – Bem, bem, minha criança, tens um pai que olha por ti, um pai que, para tirar-te de teu luto, planeja de repente um dia de júbilo pelo qual não esperavas, nem eu tampouco. (pg. 112) Quando sabe pela esposa que Julieta não quer se casar com Paris, o Sr. Capuleto explode em um ataque de fúria contra a filha. Sua reação violenta mostra como ele não pode ser contrariado. Quem tem uma identidade própria possui uma segurança que lhe permite suportar qualquer ideia que desestabilize suas crenças. Tem assim a possibilidade de acabar cedendo e aprender algo novo. Julieta pede à mãe encarecidamente que seja sua intermediária, intercedendo a seu favor junto ao pai. Mas a Sra. Capuleto se recusa a ajudá-la , tampouco acalma a ira do marido, que vira loucura. Quando, desesperada, Julieta pede sua ajuda e diz que prefere morrer, a mãe lhe vira as costas, indiferente. Frente ao comportamento destes pais, a própria Ama se sente impotente e tenta convencer Julieta de que não há nada a fazer, e o melhor seria obedecer. Julieta – (...) Pergunto-me o porquê dessa pressa. Por que deveria eu casar-me antes de esse homem, que deve ser o marido ,me ter feito a corte? Peco-lhe encarecidamente, minha mãe, diga ao meu pai e senhor que por ora não me caso! (...) Lady Capuleto – Teu pai vem vindo; dize-lhe tu mesma isso que me disseste e vê como ele recebe tuas palavras. (pg. 112-113) Julieta – Meu bondoso pai, eu lhe imploro, de joelhos, que o senhor me escute com paciência, ao menos uma palavra! Capuleto – Enforca-te, vagabunda! Rapariga, és um tipinho desobediente! Digo-te o seguinte: estejas na igreja na quinta-feira ou então nunca mais olhe na minha cara (...) Põe para fora daqui essa rameira (...) Sê minha filha, e entrego-te ao meu amigo. Caso contrário, enforca-te, pede esmolas, passa fome, morre nas ruas, pois 13 pela minha alma não mais te reconhecerei como filha (...) Pensa bem, que sou homem de palavra e não volto atrás. (pg. 114-116) Julieta – Será possível que não existe piedade nas nuvens, uma piedade capaz de enxergar o fundo da minha dor? Ah, minha doce mãe, não me mande embora! Adie esse casamento por um mês, uma semana! Se isso não for possível, prepare meu leito nupcial naquele jazigo penumbroso onde se encontra Teobaldo. Lady Capuleto – Nem me dirija a palavra, pois não falarei contigo. Faze o que te der vontade, pois acho que és um caso perdido. Vemos então que Julieta se sente inteiramente só neste momento tão crítico. Quando estamos desesperados, não ver saída é uma reação natural. A ama aconselha Julieta a obedecer seus pais porque ficou com muito medo da fúria do Sr. Capuleto. Mas se Julieta tivesse podido se lembrar do quanto a ama havia sempre ficado do seu lado, ela não teria desistido tão rapidamente de sua ajuda, e teria perdoado o que havia dito. Julieta então teria podido dizer para a ama que ela não iria desistir de Romeu e que iria procurar a ajuda do Frei. Se Julieta tivesse podido continuar confiando na ama, e lhe confidenciar sobre os planos do Frei, a história teria sido outra. . Mesmo depois que acreditam que a filha está morta, o Sr. e Sra. Capuleto culpam a morte e o tempo, sem entender nem pensar que os conflitos ocorridos entre eles e a filha poderiam ser a causa de sua morte: Capuleto – (...) Ah, filho, na noite da véspera do dia do teu casamento deitou-se a morte com tua noiva. Ali ela jaz, fina flor, deflorada por aquele esqueleto munido de foice, sendo agora ele o meu genro, ele o meu herdeiro (...) Lady Capuleto – (...) Mas uma filha, uma pobre filha, uma pobre e amorosa filha! Uma única coisa com que se regozijar, com que se consolar, e a morte, cruel, arranca-a de minha vida. (...) Capuleto – (...) Tempo desagradável, por que vens agora matar, assassinar nossa solenidade? Morta estás, morta! Meu Deus, minha filha está morta, e junto com minha filha, enterram-se minhas alegrias. (Pg.134-135) 14 QUINTO ATO Cena I – Romeu compra o veneno de um boticário O diálogo entre Romeu e o boticário parece reforçar a idéia introduzida na primeira cena da peça, na fala do Príncipe. Havia uma lei em Verona que proibia brigas em praça pública, mas ela não era respeitada. Em Mântua, onde Romeu se encontrava em exílio após matar Teobaldo, havia uma lei que também não era obedecia. Esta lei proibia boticários de vender venenos. Shakespeare parece querer mostrar que não há lei externa que vá ser seguida se antes as pessoas não sentirem interiormente o seu valor, o significado desta lei. Ele também mostra falhas humanas uma atrás da outra, que levam ao desfecho trágico. E elas são cometidas por diferentes pessoas, ricas e pobres, jovens e velhas. E os argumentos do boticário não passam de justificativas na tentativa de driblar qualquer sensação de culpa: Boticário – Disponho de drogas assim mortais, mas a lei de Mantua dita que morrerá aquele que as distribuir. Romeu – O senhor é tão sem nada e cheio de desgraças e ainda assim tem medo da morte? A fome está estampada em seu rosto, necessidade e sofrimento dançam no seu olhar, desonra e mendicância pesam-lhe nas costas, o mundo não lhe é amigável, nem o são as leis do mundo. O mundo não lhe fornece nenhuma lei que o fará rico. Então, não permaneça pobre, desobedeça a lei, e aceite isto. Boticário – Minha pobreza aceita, mas não minha vontade. (pg. 144) Na peça Shakespeare colocou os jovens Romeu e Julieta como heróis, mas praticamente sozinhos, em uma estrutura rígida onde não há espaço para diálogo, amor, aprendizado. Romeu e Julieta romperam o ciclo infernal das repetições, das brigas e mortes, e conseguiram inaugurar uma nova ordem naquela sociedade. Podemos então pensar que não se trata de uma história de “um amor que não deu certo”. Este amor deu certo porque trouxe mudança, trouxe vida a uma sociedade arcaica. Frei Lourenço fez o que pôde com seus planos para ajudar nossos heróis. Mas um plano, por mais excelente que seja, não basta. E mesmo um homem reconhecidamente santo, como ele, não consegue dar conta de uma sociedade rígida, de pessoas condicionadas, sem contato com os filhos e tampouco consigo mesmas. Quando Frei Lourenço conta o seu plano, o Príncipe nomeia os verdadeiros culpados da desgraça: Príncipe – Onde estão os inimigos? Capuleto! Montéquio! Vejam que maldição recaiu sobre o ódio de vocês, que até mesmo os céus encontraram meios de matar, com amor, as vossas alegrias! E eu, por fechar meus olhos às vossas discórdias, também perdi dois de minha família. Fomos todos punidos. (pg. 161) 15 Versão revisada 29 de outubro 2009 O Príncipe reconhece sua culpa por não ter sido mais firme com as duas famílias rivais. E é depois de ouvir a estória contada pelo Frei Lourenço, “homem reconhecidamente santo” (pg. 160) e a fala do Príncipe que as duas famílias se dão conta de sua culpa e se reconciliam. Finalmente há um aprendizado. É o próprio Sr. Capuleto que reconhece Romeu e Julieta como vítimas de sua inimizade: Capuleto – Ah, irmão Montéquio, dê-me sua mão. Este é o legado de minha filha, e nada mais tenho a oferecer. Montéquio – Mas eu posso oferecer-lhe mais: mandarei construir uma estátua de Julieta em ouro maciço. Enquanto Verona for o nome de nossa cidade, nenhuma imagem terá tanto valor quanto a de Julieta, digna e fiel. Capuleto – Pois a estátua de Romeu, também em ouro, estará ao lado da de sua esposa. Pobres vítimas de nossa inimizade! (pg. 161) Romeu e Julieta, com seu amor, são os heróis que conseguiram que os inimigos se dessem as mãos, instaurando assim uma nova ordem em Verona, uma ordem em que a lei do amor pode se integrar a lei do Príncipe. A peça termina com a fala do Príncipe convocando os cidadãos de Verona, e todos nós, a conversar sobre esta triste história de amor. O Príncipe sabe que essas histórias entram no coração dos homens e moldam a sociedade: Príncipe – (...) Embora daqui, vão, e conversem mais sobre estes tristes fatos. Alguns serão perdoados, outros punidos, pois jamais houve historia mais dolorosa que esta de Julieta e seu Romeu. (pg. 161) Shakespeare construiu esta obra para mostrar que a rigidez leva a tragédia, que há pessoas – como os pais de Romeu e Julieta – que só aprendem com a morte. Nem mesmo Frei Lourenço, que, como diz o Príncipe, “sempre foi reconhecidamente um homem santo” consegue evitar a tragédia, apesar de tentar e construir um plano para ajudar os dois jovens. O próprio Príncipe, ao ouvir a história contada pelo Frei, sente-se culpado porque sendo representante da lei deveria ter sido mais enérgico. Reconciliadas, as famílias constroem as estátuas porque querem que a sociedade também aprenda, desejam que as próximas gerações não precisem repetir o mesmo erro trágico. Esse aprendizado é verdadeiro e transcende as famílias – o que os Montéquio e Capuleto dolorosamente aprenderam precisa ser transmitido para outras pessoas. Assim, o Príncipe convoca a todos dizendo “vão, e conversem mais sobre estes tristes fatos”. 16 Versão revisada 29 de outubro 2009 Poesias relacionadas Hino de Consagração a Eros (Hesíodo) A inteligência sem amor, te faz perverso A justiça sem amor, te faz implacável A diplomacia sem amor, te faz hipócrita, O êxito sem amor, te faz arrogante A riqueza sem amor, te faz avaro A docilidade sem amor, te faz servil A pobreza sem amor, te faz orgulhoso A beleza sem amor, te faz ridículo A autoridade sem amor, te faz tirano O trabalho sem amor, te faz escravo A simplicidade sem amor, te deprecia A oração sem amor, te faz introvertido A lei sem amor, te escraviza A política sem amor, te deixa egoísta A fé sem amor te deixa fanático A religião sem amor se converte em tortura. (Hesíodo, séc. VIII a.C) Traduzir-se (Ferreira Gullar) Uma parte de mim é todo o mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira. Uma parte de mim almoça e janta: outra parte se espanta. Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem: Outra parte, linguagem. Traduzir-se uma parte na outra parte que é uma questão de vida ou morte – será arte? 17 Versão revisada 29 de outubro 2009 Morreu (Manuel Mantero) Não morreu. Ninguém morre. Foi para longe (Lisboa, Niza, Roma?) buscando luz, beleza: ele sempre amou as flores brancas junto ao mar e o sol nas mulheres. A Europa existe, muitos viram suas estátuas e suas fontes, suas catedrais bombardeadas e beberam fantásticos, alegres como o fogo, seus vinhos populares. A Europa existe, mas a morte não. “Morreu” Não morreu. Ninguém morre. Ausente está, assim como as coisas se fechamos os olhos de repente. Não saiu do lugar, Permanece. Somos nós os escuros culpados da neblina perene Não sabemos abrir os olhos para olhar o que jamais perece. “Morreu” Não morreu. Ninguém morre. Morrem os cachorros, os cavalos, os europeus e seus reis as canções de moda, as promessas, as lágrimas, as árvores, a neve. Nós não morremos: quem se recorda das lendas de vermes e ossos, fracos fundamentos de parias que meditam sobre sua possível condição celeste? “Morreu” Não morreu. Ninguém morre. Foi à ópera em Chicago, não, mais perto, a olhar os peixes do infinito lago Michigan ou a cortar...(Já não é sábado?)...o gramado de casa ou sentado à tarde frente à sua porta. 18 Versão revisada 24 de outubro 2009 Mas ele não morreu. Morrem os que querem morrer. E os que com ódio dizem que ele morreu. “Morreram” Reflexões complementares 1) Mesmo na sociedade mais rígida e amorfa, há brechas. A festa como uma brecha e Romeu e Julieta como os heróis que conseguem aproveitar esta brecha para se conhecerem e se amarem. Mesmo num lugar estagnado sempre há brechas, para vida manifestar-se. A história da humanidade é feita por estas pessoas. Na obra, os sentimentos de amor e de luto, como também a sabedoria do sonho e da palavra são banalizados. Quando banalizamos o sonho, perdemos oportunidades de encontrar soluções, pois nos falta o contato com o seu saber criativo, que vem em nosso auxilio, nos dando sinais. Romeu e Julieta são nossos heróis porque eles aproveitaram estas brechas. É belo perceber como o instinto do amor pulsa neles. A festa na casa dos Capuleto pode ser vista como um espaço de suspensão do tempo onde o amor entre Romeu e Julieta pode emergir. Na festa há uma comemoração, por meio da qual nos reconciliamos com nossa ancestralidade, ao mesmo tempo em que nos abrimos para o novo. O fato desta festa ser um baile de máscaras acentua sua semelhança com um estado de sonho, em que podemos experimentar ser outro, misturando-nos ao coletivo. Além disto, a máscara deixa que somente os olhos e a boca falem. Mascarados, eles se olharam e conversaram. Através do olhar e das palavras, Romeu e Julieta se apaixonaram. Em todas as sociedades sempre emergem Romeus e Julietas, que conseguem se entregar ao amor. 2) A superficialidade de Mercúcio e a passividade de Benvólio - Romeu sem amigos genuínos com quem pudesse contar Depois de conhecer Julieta e falar com o Frei, Romeu reconhece que Mercúcio é superficial, “um gordo e grande pato”. Mercúcio ridiculariza o sonho, o amor, porque não conhece esses sentimentos, não tem consciência da sua vida interior. Mercúcio é insolente, faz piadas de tom sexual com a Ama que é uma senhora. Shakespeare coloca esta sexualidade banalizada pela sociedade no personagem Mercúcio. Já nosso herói Romeu é capaz de viver uma sexualidade integrada com o amor. Mercúcio banaliza o amor como algo que cega, diminuindo o controle das suas ações e sente como uma ameaça a sua masculinidade. Certas pessoas, como Mercúcio e o Sr. 19 Versão revisada 24 de outubro 2009 Capuleto, atacam a outra pessoa pelo medo do questionamento de suas crenças, terror de ficarem perdidos e frágeis se mudarem sua maneira de viver. Mercúcio crê que a identidade social de Romeu é sua essência, e não percebe os sinais de mudanças nele. Não pode ter uma relação de amizade verdadeira que lhe permitiria ver e ouvir o que se passava com o amigo. O que seria então um amigo? Alguém em quem você pode confiar e abrir seu coração. Romeu não tem intimidade com Mercúrio, e tampouco com Benvólio. Os dois são colegas que não acompanham as transformações que Romeu viveu junto a Julieta. 3) A sociedade e as famílias de Romeu e Julieta perdem uma possibilidade de se transformarem porque os dois jovens têm de viver seu amor às escondidas Romeu e Julieta não podiam falar de seu amor com seus pais. Os pais não conseguiam enxergar os sinais. Naquele lugar as pessoas se casavam sem amor. E, como nossos heróis viveram seu amor de forma escondida, os pais não puderam de fato ver o amor de Romeu e Julieta quando estes estavam vivos. A visão de um casal apaixonado poderia, talvez, tê-los mudado, já que a beleza de um casal apaixonado é como uma verdadeira obra de arte, e pode ter uma força transformadora. 4) Romeu e Julieta instauram uma nova ordem, regida por uma nova lei. A partir da narrativa de sua história o aprendizado começa a se manifestar Com a morte de Julieta e Romeu toda a história é contada. Frei Lourenço, Baltasar e a Ama, contam o que sabem. Assim, as duas famílias descobrem todo o mal que causaram aos filhos. É a morte que cria um espaço para que surja a conversa entre as famílias. O príncipe pede que as famílias “vão e conversem”, conversem para que essa história não se repita. Agora as famílias vão construir as estátuas de ouro, metal valioso e indestrutível, que serão colocadas em praça pública, que irão inaugurar uma nova ordem para Verona. Shakespeare então nos mostra a possibilidade de um aprendizado coletivo. O Príncipe , ao escutar a estória que Frei Lourenço conta, e ao ver as famílias reconciliadas, sente a urgência de que esta história seja conhecida por todos e diz “conversem mais sobre estes tristes fatos”. O Príncipe percebeu que esta história será sua aliada para que a justiça seja realmente cumprida na cidade. A sociedade de Verona consegue então sair de sua condição primitiva, e passa a ter uma história que será o fundamento de uma nova organização social para as futuras gerações. 5) A fúria do Sr. Capuleto: resistência à mudança 20 Versão revisada 24 de outubro 2009 Vemos que a fúria do Sr. Capuleto é um reflexo do seu desespero quando sente que o seu “eu externo” está ameaçado. Julieta, ao dizer que não quer casar, desmonta o plano que o Sr. Capuleto pensava ser o melhor para ela. Este “plano” representava o “eu social” do Sr. Capuleto. Ao casar a filha, ele estaria dando continuidade à sua própria imagem e posição social. Ele sentiu que a atitude de Julieta estava lhe “tirando o chão”, o seu “eu social”, que era o único que tinha. O Sr. Capuleto diz ser um “homem de palavra” e que, por isto, não pode voltar atrás. Pensamos que ele não tem “a palavra”, pois é a palavra que sustenta nossa identidade. Como ele não sabe quem ele é, pois está imerso neste “eu social” rígido, não pode voltar atrás. Não pode voltar atrás porque não tem para onde voltar – falta-lhe o “eu interno”, a “alma interior” de que nos fala Machado. É triste pensar que há muitos “senhores Capuleto” que ainda não “são” e querem a todo custo impedir que outras pessoas “sejam” – sintam e pensem. Os tão “amados” filhos são meras extensões deles, que servem para perpetuar o já constituído, e não têm direito a ser e pensar por conta própria. O Sr. Capuleto faz parte de um sistema arcaico no qual não há espaço para o novo. A sua filha ingenuamente lhe pede para ser ouvida. E é exatamente isto que ele não pode fazer. Se ele pudesse ouvi-la, a história seria outra. 6) As leis do homem e as leis não escritas As seguintes falas do Príncipe, uma do início e outra do final da obra, nos levaram a algumas reflexões: “Onde estão os inimigos? Capuleto, Montéquio, vejam que a maldição recaiu sobre o ódio de vocês, que até mesmo os céus encontraram meios de matar com amor as vossas alegrias e eu por ter fechado meus olhos as vossas discórdias, também perdi dois da minha família. Fomos todos punidos.” (Pg. 101) “Súditos rebeldes, inimigos da paz, profanadores do aço dessas lâminas manchadas com o sangue de vossos próprios vizinhos! – Será que eles não me ouvem? – Ei, olá, vocês, homens, vocês, animais, que aplacam o fogo de vossa fúria perniciosa com as fontes púrpuras que brotam de vossas próprias veias! – Sob pena de tortura, joguem ao chão vossas destemperadas armas, soltem-nas de vossas mãos ensangüentadas, e ouçam a sentença de vosso irado príncipe” (Pg. 14) Shakespeare, em Romeu e Julieta, nos aproxima de Antígona de Sófocles. Nesta obra, Creonte, diferente do Príncipe em Romeu e Julieta, não reflete sobre as leis que representa. Ele pensa que as leis dependem só de sua vontade e de sua convicção do que é adequado ou não. Creonte, assim como os Capuleto e os Montéquio, é punido com a morte de seus filhos por causa de sua hibris, sua arrogância, por sua incapacidade de ouvir e mudar sua forma de pensar. Quando Antígona apresenta a Creonte a força de sua convicção nestas leis que regem o universo, ele é incapaz de ouvir e de mudar seu veredicto. Antígona vai ser fiel a estas leis porque as sente como sendo sua verdade. 21 Versão revisada 24 de outubro 2009 O Príncipe percebe que as leis dos homens por ele representadas precisam ser cumpridas. Os homens, ao escreverem as leis dos códigos, tentam traduzir em palavras estas leis que regem o universo. A interpretação que os homens fazem destas leis se dá de diferentes formas, dependendo dos países e da época em que vivem. Elas podem ser negociadas, modificadas. Já as leis que regem a harmonia cósmica são implacáveis com aqueles incapazes de ouvi-las. Sua existência não depende dos homens. Elas são soberanas. O que o Príncipe chama de “leis dos céus”, Spinoza chama de leis da natureza – que são duas: composição e decomposição. Os bons encontros, as paixões alegres, fortalecem a potência da alma, como diz Celina Ramos, psicanalista e colaboradora dos Círculos de Leitura. É o que se deu entre Romeu e Julieta. Para a psicanalista Marina Durand, “os deuses moram na força intrínseca dos fatos”. Estas leis são implacáveis com aqueles incapazes de reverenciá-las, e imaginam-se acima delas, como os Montéquio e Capuleto. Dessa forma o ódio deles se voltou contra eles mesmos, acabando com seus nomes, não deixando descendentes. Em Romeu e Julieta havia o Príncipe, representante da lei dos homens. Havia também o Frei, um santo homem representante das leis divinas. Essas leis precisam estar integradas na consciência dos homens. Sem essa integração os Montéquio e Capuleto da vida vão continuar se matando, perdendo seus filhos. Desta forma, a sociedade perde seu futuro. Muitas vezes as pessoas vêem Romeu e Julieta como uma das mais belas histórias de amor que a humanidade já produziu. Mas terminamos a leitura com a convicção de que Shakespeare também nos apresenta a necessidade de integrar a força do amor à política dos homens. Trata-se, portanto, de uma peça profundamente política. Apresenta com profunda lucidez um Príncipe que se dá conta da soberania destas leis que regem o universo, curva-se, e surpreende-se, perante elas. Shakespeare quer mostrar como a hibris decompõe sua própria descendência, impedindo a convivência em sociedade. O que deveria reger a sociedade é o conhecimento e a integração destas leis. 22 Sabemos que este livro despertará reflexões que talvez não tenham sido contempladas ainda aqui. Escreva para nós sobre suas idéias. Com elas poderemos fazer um segundo módulo. Escreva aqui suas idéias: