Modulo_Romeu_e_Julieta - Programa Círculos de Leitura

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Modulo_Romeu_e_Julieta - Programa Círculos de Leitura
Círculos de Leitura
Instituto Fernand Braudel
Módulo
Romeu e Julieta de
William Shakespeare
“Príncipe: Onde estão os inimigos? Capuleto, Montéquio, vejam que a
maldição recaiu sobre o ódio de vocês, que até mesmo os céus
encontraram meios de matar com amor as vossas alegrias e eu por ter
fechado meus olhos às vossas discórdias, também perdi dois da minha
família. Fomos todos punidos. (...) Embora daqui, vão, e conversem
mais sobre estes tristes fatos. Alguns serão perdoados, outros
punidos, pois jamais houve história mais dolorosa que esta de Julieta e
seu Romeu”.
Romeu e Julieta, William Shakespeare
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ÍNDICE
Introdução.................................................................................................................3
PRIMEIRO ATO......................................................................................................5
SEGUNDO ATO.......................................................................................................9
TERCEIRO ATO....................................................................................................11
QUINTO ATO........................................................................................................15
Poesias Relacionadas............................................................................................17
Reflexões Complementares.................................................................................19
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Introdução
Esse módulo é produto das nossas reflexões nos grupos dos Círculos de
Leitura, feitos com jovens das redes públicas de ensino de São Paulo, Bahia,
Rio de Janeiro e Minas Gerais. Sabemos que este livro despertará em você
reflexões que talvez não tenham sido contempladas aqui. Escreva para nós
sobre suas idéias. Com elas poderemos fazer um segundo módulo.
Em todas as obras de Shakespeare, o personagem do Mal sempre aparece,
mas nem sempre consegue fazer o que pretende, porque há pessoas que
intervém a tempo e desfazem as intrigas. Em Romeu e Julieta, o personagem
do Mal aparece representado através do ódio entre as duas famílias. No final
da peça, ao descobrir o que tinha realmente acontecido com Romeu e
Julieta, o Príncipe diz: “Onde estão os inimigos? Capuleto! Montéquio! Vejam
que a maldição recaiu sobre o ódio de vocês, que até mesmo os céus
encontraram meios de matar, com amor, as vossas alegrias!”. Ele reconhece
que errou por fechar seus olhos durante tanto tempo às suas discórdias. Por
isso, conclui, “fomos todos punidos”(p.165). Shakespeare nos apresenta um
Príncipe que com profunda lucidez, no final da tragédia, se dá conta da
soberania de certas leis que regem o universo, e por isto curva-se, e
surpreende-se perante elas.
Consideramos Romeu e Julieta como uma das mais belas histórias de amor
que a humanidade já produziu. Mas terminamos a leitura com a convicção de
que Shakespeare também nos apresenta a necessidade de integrar a força
do amor à política dos homens. Trata-se, portanto, de uma peça
profundamente política. O que deveria reger a sociedade é o conhecimento e
a integração entre as leis escritas pelos homens, e as leis não escritas.
Shakespeare quer mostrar como a arrogância - a hibris - das famílias rivais –
os Montéquio e os Capuleto – acaba por destruir sua própria descendência. A
hibris seria uma cegueira perante as leis escritas e não escritas, que regem a
consciência dos homens.
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Romeu e Julieta, com seu amor, são os heróis que conseguiram
instaurar uma nova ordem em Verona, uma ordem em que a lei do amor
pode se integrar à lei do Príncipe. A peça termina com a fala do Príncipe
convocando os cidadãos de Verona, e todos nós, a conversar sobre esta
história de amor. O Príncipe sabe que essas histórias entram no coração dos
homens, orientando suas ações e transformando assim a sociedade:
Príncipe – (...) Embora daqui, vão, e conversem mais sobre estes
tristes fatos. Alguns serão perdoados, outros punidos, pois jamais
houve historia mais dolorosa que esta de Julieta e seu Romeu. (pg.
161)
Nas obras de Shakespeare, como em Romeu e Julieta, o tempo é um
personagem:
 O pai de Julieta não respeitou o tempo do namoro, forçando a filha a
se casar com Paris.
 Não se respeitou o tempo do luto pela morte de Teobaldo.
 O frei Lourenço simulou a morte de Julieta para ganhar tempo, mas o
mensageiro não chegou a tempo para avisar Romeu, de forma que ele
pudesse levar sua amada para bem longe, dando tempo às duas
famílias de viver o luto.
 Romeu e Julieta não tiveram tempo para viver o seu amor
Shakespeare, ao nos contar a sua história, faz com que ela fique no tempo.
Essa história fica no tempo da eternidade, no coração dos homens, para
sempre.
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PRIMEIRO ATO
Cena I – Briga em um local público
Num local público os criados ligados aos Montéquio e aos Capuleto
iniciam uma briga. Outros homens relacionados às duas famílias entram no
combate, incluindo Teobaldo, primo de Julieta, e Benvólio, colega de Romeu.
O Sr. Capuleto desembainha a espada ao ver que o Sr. Montéquio chegou.
Os dois estão quase lutando. Lady Montéquio segura o marido e, sob os
protestos deste, diz “Não vais te mover um milímetro na direção de um
inimigo” (pg.14). Mas é preciso o Príncipe chegar para que a briga seja
interrompida. Em sua fala, o Príncipe condena o dois patriarcas, que lutam
por poder e, com seu dinheiro, querem fazer suas próprias leis. Ele também
fala que ninguém parece ouvi-lo.
Príncipe – Súditos rebeldes, inimigos da paz, profanadores do aço
destas lâminas manchadas com o sangue de vossos próprios vizinhos!
Será que eles não me ouvem? Ei, olá, homens, vocês, animais, que
aplacam o fogo de sua fúria perniciosa com as fontes púrpuras que
brotam de suas próprias veias! (...) Três lutas civis, nascidas de
palavras atiradas ao vento por vocês, velho Capuleto e velho
Montéquio, três vezes vieram perturbar a calma de nossas ruas e
fizeram com que os mais antigos cidadãos de Verona, vestidos com
esses graves adereços que lhe caem tão bem, pegassem em armas
tão antigas e enferrujadas quanto suas próprias mãos (...) (pg. 14).
A fala do Príncipe nomeia o problema. A briga mostra que esta
sociedade ainda está em seu estágio mais primitivo, em que as pessoas
estão divididas em bandos. Quando se está em bando, há apenas um que
manda. Os outros obedecem, sem pensar. Nessa obra as duas famílias
mais ricas lutam entre si por poder e querem impor suas próprias leis. Rivais,
os dois bandos – Montéquio e Capuleto – são então na verdade muito
parecidos, pois ambos fazem parte deste sistema arcaico. Ao mesmo tempo,
já vemos que Romeu é diferente, porque não está na briga. Benvólio explica
a Lady Montéquio que Romeu está no bosque, fora da cidade, e está
apaixonado. Quando chega e vê que houve uma briga, Romeu diz a Benvólio
“Temos muito o que fazer com o ódio em nossa cidade, e mais ainda o que
fazer com o amor”(pg. 18)
Cena II - O Sr. e Sra. Capuleto
A fala do Sr. Capuleto parece ser de um pai compreensivo, que vai
respeitar a escolha da filha. Mais tarde veremos que esta fala não é
verdadeira, e a ação e a palavra não estão integradas. Na conversa com
Paris, que deseja se casar com Julieta, Capuleto diz:
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Capuleto – Não tenho resposta diferente; só posso repetir o mesmo
que te disse da outra vez: minha filha ainda é uma principiante neste
mundo. Ainda nem passou pela mudança de completar os quatorze
anos de idade. Deixemos que outros dois verões floresçam e feneçam
antes de pensarmos que ela poderia estar madura para se casar (...)
Mas corteja-a, gentil Paris, conquista o coração de minha filha. O que
eu quero ou deixo de querer é apenas parte do consentimento dela.
Uma vez que ela concorde, é dentro do leque de escolhas dela mesma
que se encontrará o meu consentimento, e minha voz, jubilosa, estará
de acordo. (pg. 22/23)
Já a mãe de Julieta, Sra. Capuleto, espera que a filha siga os mesmos
caminhos já trilhados por ela:
Lady Capuleto – Bem, pois começa a pensar em casamento a partir
de agora. Mais nova que tu, aqui em Verona, há senhoras de respeito,
que já são mães. Pelas minhas contas, eu já era tua mãe bem antes
dessa idade em que tu agora continuas donzela. Assim sendo,
mocinha, digo-te o seguinte, resumindo a história: o nobre Paris quer a
ti por esposa ... Estuda o livro que é o rosto do jovem Paris, e encontra
nele prazer, escrito com a pena da beleza. (pg. 31)
Cena IV - Romeu não é ouvido por Mercúcio, que banaliza o
amor e o sonho
Romeu começa a contar que teve um sonho, mas Mercúcio o
interrompe, ridicularizando os sonhos, que chama de “filhos de um cérebro
ocioso, gerados de nada além de fantasias vãs, que em sua substância são
tão ralas quanto o ar e mais inconstantes que a brisa”. Bufão, Mercúcio não
pode perceber o amigo e se mostra superficial, embora se ache esperto e
corajoso. Ridiculariza o amor quando diz a Romeu, convidando-o para o baile
de máscaras na casa dos Capuleto:
Mercúcio – Se o amor for impiedoso contigo, sê impiedoso com ele.
Fere o amor só por ferir, e serás o vencedor dessa luta... (Colocando
uma máscara) Uma máscara para outra máscara! Que me importa que
olhares alheios e curiosos observem minhas deformidades? Aqui está
a carranca que irá envergonhar-se por mim (...) (Pg.30)
Mesmo sem ser ouvido pelo amigo, Romeu pede que este o escute, e
lhe fala de um pressentimento de que algo de novo e desconhecido, está por
vir:
Romeu – Paz, Mercúcio, um pouco de paz. Estás falando nada de
coisa nenhuma (...) Fico apreensivo, pensando que alguma
conseqüência, ainda pendente das estrelas, iniciará, de modo amargo,
seu tímido encontro com a festa desta noite. Temo que esta mesma
conseqüência venha dar fim a uma vida desprezada, apertada em meu
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peito, por alguma penalidade vil de morte prematura. Mas Ele, aquele
que segura o timão do curso de minha vida, que direcione minha vela!
(Pg.38)
Mais tarde , depois que Romeu já se apaixonou e se casou com
Julieta, Mercúcio não enxerga as mudanças que se operaram no amigo, pois
lhe falta a empatia. Vê apenas a imagem que lhe agrada ter de Romeu. .
Não é a toa que Romeu dirá que Mercúcio só esteve ao seu lado para caçar
patos:
Mercúcio – Agora estás sociável. Agora estás, Romeu. Agora és tu
aquilo que és, por natureza e por artimanha. Pois esse amor que faz
babar é como um grande imbecil, um bufão, correndo para cima e para
baixo, sempre de língua de fora, sempre disposto a enterrar sua vara
num buraco. (pg. 67)
Cena V – O baile de máscaras na casa dos Capuleto
A festa surge como uma brecha, como uma possibilidade de mudança,
um desprendimento momentâneo do viver cotidiano. Nossos dois heróis,
Romeu e Julieta, sabem aproveitar essa brecha para se conhecer e se
apaixonar. A festa funciona também como um momento de trégua, como
mostra a reação do Sr. Capuleto quando Teobaldo lhe avisa, cheio de fúria,
que Romeu Montéquio está na festa. Observamos no diálogo entre Teobaldo
e Capuleto que o jovem Teobaldo é mais rígido que o próprio chefe do clã.
Este não quer que haja briga durante a festa, e até admite que Romeu é um
rapaz virtuoso. Já Teobaldo não sabe se divertir e quer brigar com o Romeu,
e precisa ser repreendido pelo tio. Mesmo assim, não ouve o que o Sr.
Capuleto lhe diz – que Romeu tem fama de ser um jovem virtuoso. O que
Teobaldo queria fazer na festa, mas foi impedido, vai fazer depois, porque
não sabe direcionar sua energia de outra forma:
Teobaldo – Esse, pela voz, deve ser um Montéquio. Busca meu
espadim, rapaz. Como ousa, esse escravo, vir aqui até aqui,
escondido atrás dessa máscara estúpida, para rir e debochar de nossa
festividade? Ora, pela estirpe e pela honra de minha família, matá-lo
hoje não há de ser pecado (...) Meu tio, esse é um Montéquio, nosso
inimigo; um bandido, que aqui veio por despeito para rir desta noite,
para debochar de nossa festividade.
Capuleto – Contém tua fúria, gentil primo, e deixa-o em paz. Ele está
se portando como um perfeito cavalheiro, e para dizer a verdade,
Verona gaba-se dele, por ser um jovem cheio de virtudes e bom
senso. Nem por toda a riqueza da cidade ia querer que ele fosse
insultado aqui em minha casa. Portanto, peço-te paciência: ignora-o.
Esta é minha vontade. Se vais respeitá-la, mostra-te cortês e
desenruga a testa, pois sua fisionomia assim não combina com uma
festa. (pg. 41)
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Teobaldo pensa que sabe o que Romeu foi fazer na festa: “por
despeito para rir desta noite, para debochar”. Nós sabemos que ele não sabe
de nada. Só sabe brigar, não pensa. Vemos na fúria de Teobaldo que os
problemas não resolvidos de uma geração voltam na próxima, com maior
intensidade. O não aprendizado resulta num enrijecimento progressivo. O
quanto Teobaldo é ele próprio, e o quanto ele é apenas um turbilhão de
gestos, preconceitos e comportamentos herdados que decidem por ele?
Teobaldo então não passa de uma caricatura da sua sociedade, repetindo
padrões de ação sem processá-los. Teobaldo nos faz lembrar do
ensinamento do filósofo Nietzsche, sobre como é difícil ser herdeiros, porque
a “loucura dos nossos antepassados ainda irrompe em nós (...) Ainda agora
vive, em nosso corpo, toda essa demência e engano. Tornaram-se nele,
corpo e vontade (...) Não apenas a razão dos milênios, mas também sua
loucura irrompe em nós. É perigoso ser herdeiros”. É necessário refletir sobre
o que fazemos para não reproduzirmos os erros de nossos antepassados, ou
como diz Nietzsche, “a loucura”, a “demência e engano”, que, no caso de
Teobaldo, era o ódio contra os Montéquio.
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SEGUNDO ATO
Cena II – O jardim de Capuleto
Mesmo em uma sociedade estagnada e regida por homens que só
pensam em manter seu poder no bando, o amor consegue surgir. E, quando
surge, infunde coragem. Como diz Platão, quem ama tem um Deus dentro de
si. É o que Romeu sente, ao afirmar para Julieta:
Romeu - Com as asas leves do amor superei estes muros, pois
mesmo barreiras pétreas não são empecilhos à entrada do amor. E
aquilo que o amor pode fazer é exatamente aquilo que o amor ousa
tentar. Assim sendo, teus parentes não são obstáculo para mim. (pg.
52)
Vemos que na cena do jardim Romeu e Julieta abrem mão dos seus
nomes herdados pelos pais com a maior facilidade, porque estão em contato
com o amor. Além de infundir coragem, o amor também revela nossa
essência. A essência de nosso ser, quem realmente somos, manifesta-se na
presença de alguém que amamos:
Julieta – É só teu nome que é meu inimigo. Mas tu és tu mesmo, não
um Montéquio. E o que é um Montéquio? Não é mão, nem pé, nem
braço, nem rosto, nem qualquer outra parte de um homem... O que
significa um nome? Aquilo a que chamamos rosa, com qualquer outro
nome teria o mesmo e doce perfume. E Romeu também, mesmo que
não se chamasse Romeu, ainda assim teria a mesma amada perfeição
que lhe é própria, sem esse título. Romeu, livra-te de teu nome. Em
troca dele, que não é parte de ti, toma-me inteira para ti.
Romeu – Tomo-te por tua palavra: chama-me de teu amor, e serei
assim rebatizado; nunca mais serei Romeu. (pg. 51)
Cena III – Romeu procura Frei Lourenço, seu pai espiritual.
Romeu não podia contar com Benvólio, tampouco com Mercúcio – eles
não eram amigos íntimos com quem pudesse compartilhar o que estava
acontecendo com ele. Romeu sentia que podia contar apenas com uma
pessoa, aquele a quem ele chama de seu “pai espiritual”, Frei Lourenço. Este
é um homem muito sábio, como vemos na sua fala sobre a importância do
equilíbrio, da medida das coisas. Ele também fala das diferentes forças –
como o amor e o ódio - que habitam dentro de cada homem. Sabe que
apesar do ódio entre as famílias é possível nascer o amor:
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Frei Lourenço – A terra, mãe da natureza, é também seu túmulo. A
mesma terra que lhe serve de sepultura é útero (...) Pois nada vive na
terra que seja tão vil que não tenha algum bem em especial para lhe
doar; e nada é tão bom que não possa ser mal empregado e, contrário
à sua própria origem, chegar às raias do abuso. Mal aplicada, a virtude
transforma-se em vício, e o vício, pela ação, pode ser por vezes
dignificado (...) Acampam-se de sentinela a graça e a desgraça dentro
do homem e das plantas, defendendo reis tão rivais. E onde a pior
delas predominar, logo o tumor canceroso termina por comer o
vegetal. (pg. 59)
Cena VI – Romeu e Julieta se casam na cela de Frei Lourenço
Quando Julieta chega, Frei Lourenço se admira com sua segurança e
leveza:
Frei Lourenço - Eis que vem chegando a dama – Ah, passos assim
tão leves jamais gastarão a pedra dura e perene. Os amantes podem
andar nos fios de uma teia de aranha que balança com a brisa
lânguida do verão e, mesmo assim, não caem. Os prazeres deste
mundo têm a mesma leveza.
Mesmo neste sistema arcaico brotou o amor, que poderia transformar essa
sociedade. Frei Lourenço quer casar logo os jovens porque sabe que o amor
de nossos heróis têm um senso de urgência. Essa intensidade é
característica da juventude. Esta ânsia intensa de vida entre os jovens é
muito saudável. Cabe aos adultos a função de respeitar a força vinda dos
jovens quando amam, acolhendo e conduzindo esta energia para que eles
possam realizar seus planos. Neste caso, como os adultos, com exceção do
Frei Lourenço e da Ama de Julieta, não cumpriam essa função, caberia aos
jovens se apoiarem uns aos outros, buscando ajuda entre si.
Romeu - Ah, Julieta, se a medida da tua alegria estiver transbordando
como a minha, e se tens a habilidade necessária para proclamá-la,
então adoça com teu hálito o ar que nos cerca e deixa que a língua
riquíssima da música revele a felicidade imaginada que recebemos um
do outro com este encontro de ternura.
Julieta – O pensamento, mais rico em conteúdo que em palavras,
orgulha-se de sua substância, não de seus adornos. As palavras são
meras mendigas que podem tão somente contar o seu valor. Meu
amor verdadeiro, porém, cresceu a tal ponto que não tenho como
somar mais que metade do total de sua riqueza.
Frei Lourenço – Venham, venham comigo, e nós vamos tornar a
cerimônia mais curta. Com sua licença, não vou deixar os dois
sozinhos até que a Santa Madre Igreja os tenha unido em matrimônio.
(pg. 78/79)
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TERCEIRO ATO
Cena I – Uma praça pública
Em uma praça pública Teobaldo mata Mercúcio e é morto por Romeu,
que desesperado depois se dá conta que foi um “bobo da corte, joguete do
destino”. Ao ver Mercúcio morto, foi arrastado pela fúria a fazer algo que não
queria.
Desde o início desta cena Romeu dá claros sinais de que não quer
brigar, mesmo quando Teobaldo chega e o provoca, querendo briga. Os
jovens estão sozinhos na praça pública, não há a presença de adultos.
Teobaldo – Romeu, o ódio que tenho por ti não me permite usar termo
mais suave: és um verme.
Romeu – Teobaldo, o motivo que tenho para te amar desculpa a raiva
que vem junto com essa saudação. Verme não sou. Portanto, adeus.
Vejo que não me conheces.
Teobaldo – Rapaz, isso não desculpa os insultos que jogaste contra
mim. Portanto, vira-te e empunha a tua arma.
Romeu – Nego tua afirmação. Jamais te insultei. Pelo contrário, amote mais do que possa imaginar. Até que possas conhecer o motivo de
meu amor – e então, meu bom Capuleto (nome que muito prezo, tanto
quanto o meu próprio) – até lá, dê-se por satisfeito. (pg. 82)
Teobaldo, desarmado com a resposta de Romeu, já está indo embora,
quando é chamado de volta e provocado por Mercúcio, que se sente na
obrigação de brigar. Mercúcio não percebeu o que estava por trás da atitude
de Romeu e este perdeu nesse momento a oportunidade de falar em tom
bem firme sobre a razão pela qual não queria brigar com Teobaldo.
Provocado por Mercúcio, Teobaldo volta para o comportamento violento que
vimos já na primeira cena da peça. Nós, espectadores, vemos que muita
coisa já aconteceu deste então – a festa, a ausência de Romeu no final da
festa, a ama de Julieta que veio trazer uma mensagem – mas Mercúcio
continua vendo tudo igual, não percebe as mudanças em Romeu:
Mercúcio – Ó calma desonrada, vil submissão! A la stocatta
encarrega-se de levá-la embora. Teobaldo, seu caçador de ratos, o
senhor não se mexe? (pg. 84-85)
Mais uma vez Romeu tenta interromper a violência, implorando a
Benvólio que o ajude a desarmar os dois. Quando mais tarde Benvólio contar
a estória do que ocorreu, veremos que ele não fez o que Romeu pediu.
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Apenas observou mero espectador, inerte, passivo e por isto, também
cúmplice. Mercúcio e Benvólio, assim representam os dois pólos da inércia:
Mercúcio era movido pela inércia, sempre agindo da mesma forma, com uma
aparente coragem. Já Benvólio é passivo em sua inércia, e nada faz para
interromper a briga. Na tentativa de parar a briga, Romeu apela para a figura
da lei, do Príncipe.
Romeu – Saca de tua espada, Benvólio; desarma esses dois.
Cavalheiros, que vergonha, desistam deste ato ultrajante! Teobaldo,
Mercúcio, o Príncipe proibiu expressamente altercações nas ruas de
Verona. Basta, Teobaldo! Meu bom Mercúcio...(pg. 84)
Como vimos na primeira Cena, o Príncipe não é ouvido. Ou seja,
apelar para a lei do Príncipe era inútil. Se Romeu tivesse podido gritar em
tom bem alto, apelando para a verdade dos fatos – que já estava casado com
Julieta – talvez ele tivesse sido ouvido por Benvólio, Teobaldo e Mercúcio.
Benvólio e Mercúcio haviam o acompanhado à festa dos Capuleto, onde se
apaixonara por Julieta. Teobaldo também já havia visto Romeu na festa,
tanto que queria expulsá-lo. Eles teriam levado um choque com a notícia do
amor, mas ao menos saberiam as razões pelas quais Romeu não queria
brigar. Sem dúvida essa noticia teria causado uma desorganização, uma
perplexidade em todos. Mas, ao contar a verdade, Romeu teria feito Benvólio
e Mercúcio relembrarem do motivo pelo qual o tinham levado à festa: se
esquecer de Rosalinda e encontrar outro amor, que desta vez fosse
correspondido – fato que aconteceu.
Em seguida há uma cena que nos mostra como há momentos em que
corremos o risco de sermos arrastados para fazer algo que não queremos. A
última coisa que Romeu queria era brigar. Estava amando, era amado, e se
sentia feliz. Mas, apesar disso, Romeu é possuído pela fúria ao ver Teobaldo
retornar, com andar triunfante. A imagem do amigo morto aos seus pés e do
seu assassino caminhando altivo o faz perder o eixo e reagir:
Benvólio – Vem chegando de volta o furioso Teobaldo.
Romeu – Vivo, triunfante! E Mercúcio, assassinado! Vai-te embora,
cautelosa clemência, sobe aos céus, e que, a partir de agora, seja meu
guia a fúria cega! (pg. 86)
Mas logo depois de assassinar Teobaldo, Romeu se dá conta de como foi
arrastado a fazer algo que não queria:
Romeu – Sou o bobo da corte nesta vida, joguete do destino. (pg. 87)
Podemos pensar que há situações extremas na vida, em que é
necessário fugir de um ambiente e de certas pessoas que nele vivem para
não perdermos nosso eixo, pois caso contrário poderia acabar fazendo algo
contra nossa própria vontade. O próprio Frei Lourenço já nos falou que a
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graça e a desgraça, o ódio e o amor, “acampam de sentinela” no coração do
homem. Aquela situação limite despertou o ódio de Romeu. Como vimos, ele
havia pedido ajuda a Mercúcio e Benvólio para impedir a briga, mas eles não
o ajudaram. Daí, a tragédia. Não haveria tragédia se ao menos naquele
momento uma pessoa pudesse ter ouvido Romeu. Romeu acabou ficando
refém daquela situação, da qual queria tanto fugir.
Cena V – Uma sacada que dá para os aposentos da Julieta,
sobre o jardim.
Os Capuleto decidem casar Julieta com Paris imediatamente,
pensando que assim vão tirar a filha da dor pela morte de Teobaldo. É a
própria Lady Capuleto que dá a notícia a Julieta:
Lady Capuleto – Bem, bem, minha criança, tens um pai que olha por
ti, um pai que, para tirar-te de teu luto, planeja de repente um dia de
júbilo pelo qual não esperavas, nem eu tampouco. (pg. 112)
Quando sabe pela esposa que Julieta não quer se casar com Paris, o
Sr. Capuleto explode em um ataque de fúria contra a filha. Sua reação
violenta mostra como ele não pode ser contrariado. Quem tem uma
identidade própria possui uma segurança que lhe permite suportar qualquer
ideia que desestabilize suas crenças. Tem assim a possibilidade de acabar
cedendo e aprender algo novo. Julieta pede à mãe encarecidamente que seja
sua intermediária, intercedendo a seu favor junto ao pai. Mas a Sra. Capuleto
se recusa a ajudá-la , tampouco acalma a ira do marido, que vira loucura.
Quando, desesperada, Julieta pede sua ajuda e diz que prefere morrer, a
mãe lhe vira as costas, indiferente. Frente ao comportamento destes pais, a
própria Ama se sente impotente e tenta convencer Julieta de que não há
nada a fazer, e o melhor seria obedecer.
Julieta – (...) Pergunto-me o porquê dessa pressa. Por que deveria eu
casar-me antes de esse homem, que deve ser o marido ,me ter feito a
corte? Peco-lhe encarecidamente, minha mãe, diga ao meu pai e
senhor que por ora não me caso! (...)
Lady Capuleto – Teu pai vem vindo; dize-lhe tu mesma isso que me
disseste e vê como ele recebe tuas palavras.
(pg. 112-113)
Julieta – Meu bondoso pai, eu lhe imploro, de joelhos, que o senhor
me escute com paciência, ao menos uma palavra!
Capuleto – Enforca-te, vagabunda! Rapariga, és um tipinho
desobediente! Digo-te o seguinte: estejas na igreja na quinta-feira ou
então nunca mais olhe na minha cara (...) Põe para fora daqui essa
rameira (...) Sê minha filha, e entrego-te ao meu amigo. Caso
contrário, enforca-te, pede esmolas, passa fome, morre nas ruas, pois
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pela minha alma não mais te reconhecerei como filha (...) Pensa bem,
que sou homem de palavra e não volto atrás.
(pg. 114-116)
Julieta – Será possível que não existe piedade nas nuvens, uma
piedade capaz de enxergar o fundo da minha dor? Ah, minha doce
mãe, não me mande embora! Adie esse casamento por um mês, uma
semana! Se isso não for possível, prepare meu leito nupcial naquele
jazigo penumbroso onde se encontra Teobaldo.
Lady Capuleto – Nem me dirija a palavra, pois não falarei contigo.
Faze o que te der vontade, pois acho que és um caso perdido.
Vemos então que Julieta se sente inteiramente só neste momento tão
crítico. Quando estamos desesperados, não ver saída é uma reação natural.
A ama aconselha Julieta a obedecer seus pais porque ficou com muito medo
da fúria do Sr. Capuleto. Mas se Julieta tivesse podido se lembrar do quanto
a ama havia sempre ficado do seu lado, ela não teria desistido tão
rapidamente de sua ajuda, e teria perdoado o que havia dito. Julieta então
teria podido dizer para a ama que ela não iria desistir de Romeu e que iria
procurar a ajuda do Frei. Se Julieta tivesse podido continuar confiando na
ama, e lhe confidenciar sobre os planos do Frei, a história teria sido outra. .
Mesmo depois que acreditam que a filha está morta, o Sr. e Sra.
Capuleto culpam a morte e o tempo, sem entender nem pensar que os
conflitos ocorridos entre eles e a filha poderiam ser a causa de sua morte:
Capuleto – (...) Ah, filho, na noite da véspera do dia do teu casamento
deitou-se a morte com tua noiva. Ali ela jaz, fina flor, deflorada por
aquele esqueleto munido de foice, sendo agora ele o meu genro, ele o
meu herdeiro (...)
Lady Capuleto – (...) Mas uma filha, uma pobre filha, uma pobre e
amorosa filha! Uma única coisa com que se regozijar, com que se
consolar, e a morte, cruel, arranca-a de minha vida.
(...)
Capuleto – (...) Tempo desagradável, por que vens agora matar,
assassinar nossa solenidade? Morta estás, morta! Meu Deus, minha
filha está morta, e junto com minha filha, enterram-se minhas alegrias.
(Pg.134-135)
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QUINTO ATO
Cena I – Romeu compra o veneno de um boticário
O diálogo entre Romeu e o boticário parece reforçar a idéia introduzida
na primeira cena da peça, na fala do Príncipe. Havia uma lei em Verona que
proibia brigas em praça pública, mas ela não era respeitada. Em Mântua,
onde Romeu se encontrava em exílio após matar Teobaldo, havia uma lei
que também não era obedecia. Esta lei proibia boticários de vender venenos.
Shakespeare parece querer mostrar que não há lei externa que vá ser
seguida se antes as pessoas não sentirem interiormente o seu valor, o
significado desta lei. Ele também mostra falhas humanas uma atrás da outra,
que levam ao desfecho trágico. E elas são cometidas por diferentes pessoas,
ricas e pobres, jovens e velhas. E os argumentos do boticário não passam de
justificativas na tentativa de driblar qualquer sensação de culpa:
Boticário – Disponho de drogas assim mortais, mas a lei de Mantua
dita que morrerá aquele que as distribuir.
Romeu – O senhor é tão sem nada e cheio de desgraças e ainda
assim tem medo da morte? A fome está estampada em seu rosto,
necessidade e sofrimento dançam no seu olhar, desonra e
mendicância pesam-lhe nas costas, o mundo não lhe é amigável, nem
o são as leis do mundo. O mundo não lhe fornece nenhuma lei que o
fará rico. Então, não permaneça pobre, desobedeça a lei, e aceite isto.
Boticário – Minha pobreza aceita, mas não minha vontade. (pg. 144)
Na peça Shakespeare colocou os jovens Romeu e Julieta como heróis,
mas praticamente sozinhos, em uma estrutura rígida onde não há espaço
para diálogo, amor, aprendizado. Romeu e Julieta romperam o ciclo infernal
das repetições, das brigas e mortes, e conseguiram inaugurar uma nova
ordem naquela sociedade. Podemos então pensar que não se trata de uma
história de “um amor que não deu certo”. Este amor deu certo porque trouxe
mudança,
trouxe
vida
a
uma
sociedade
arcaica.
Frei Lourenço fez o que pôde com seus planos para ajudar nossos heróis.
Mas um plano, por mais excelente que seja, não basta. E mesmo um homem
reconhecidamente santo, como ele, não consegue dar conta de uma
sociedade rígida, de pessoas condicionadas, sem contato com os filhos e
tampouco consigo mesmas. Quando Frei Lourenço conta o seu plano, o
Príncipe nomeia os verdadeiros culpados da desgraça:
Príncipe – Onde estão os inimigos? Capuleto! Montéquio! Vejam que
maldição recaiu sobre o ódio de vocês, que até mesmo os céus
encontraram meios de matar, com amor, as vossas alegrias! E eu, por
fechar meus olhos às vossas discórdias, também perdi dois de minha
família. Fomos todos punidos. (pg. 161)
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Versão revisada 29 de outubro 2009
O Príncipe reconhece sua culpa por não ter sido mais firme com as
duas famílias rivais. E é depois de ouvir a estória contada pelo Frei Lourenço,
“homem reconhecidamente santo” (pg. 160) e a fala do Príncipe que as duas
famílias se dão conta de sua culpa e se reconciliam. Finalmente há um
aprendizado. É o próprio Sr. Capuleto que reconhece Romeu e Julieta como
vítimas de sua inimizade:
Capuleto – Ah, irmão Montéquio, dê-me sua mão. Este é o legado de
minha filha, e nada mais tenho a oferecer.
Montéquio – Mas eu posso oferecer-lhe mais: mandarei construir uma
estátua de Julieta em ouro maciço. Enquanto Verona for o nome de
nossa cidade, nenhuma imagem terá tanto valor quanto a de Julieta,
digna e fiel.
Capuleto – Pois a estátua de Romeu, também em ouro, estará ao lado
da de sua esposa. Pobres vítimas de nossa inimizade! (pg. 161)
Romeu e Julieta, com seu amor, são os heróis que conseguiram que
os inimigos se dessem as mãos, instaurando assim uma nova ordem em
Verona, uma ordem em que a lei do amor pode se integrar a lei do Príncipe.
A peça termina com a fala do Príncipe convocando os cidadãos de Verona, e
todos nós, a conversar sobre esta triste história de amor. O Príncipe sabe
que essas histórias entram no coração dos homens e moldam a sociedade:
Príncipe – (...) Embora daqui, vão, e conversem mais sobre estes
tristes fatos. Alguns serão perdoados, outros punidos, pois jamais
houve historia mais dolorosa que esta de Julieta e seu Romeu. (pg.
161)
Shakespeare construiu esta obra para mostrar que a rigidez leva a
tragédia, que há pessoas – como os pais de Romeu e Julieta – que só
aprendem com a morte. Nem mesmo Frei Lourenço, que, como diz o
Príncipe, “sempre foi reconhecidamente um homem santo” consegue
evitar a tragédia, apesar de tentar e construir um plano para ajudar os
dois jovens.
O próprio Príncipe, ao ouvir a história contada pelo Frei, sente-se
culpado porque sendo representante da lei deveria ter sido mais enérgico.
Reconciliadas, as famílias constroem as estátuas porque querem que a
sociedade também aprenda, desejam que as próximas gerações não
precisem repetir o mesmo erro trágico. Esse aprendizado é verdadeiro e
transcende as famílias – o que os Montéquio e Capuleto dolorosamente
aprenderam precisa ser transmitido para outras pessoas. Assim, o Príncipe
convoca a todos dizendo “vão, e conversem mais sobre estes tristes fatos”.
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Versão revisada 29 de outubro 2009
Poesias relacionadas
Hino de Consagração a Eros (Hesíodo)
A inteligência sem amor, te faz perverso
A justiça sem amor, te faz implacável
A diplomacia sem amor, te faz hipócrita,
O êxito sem amor, te faz arrogante
A riqueza sem amor, te faz avaro
A docilidade sem amor, te faz servil
A pobreza sem amor, te faz orgulhoso
A beleza sem amor, te faz ridículo
A autoridade sem amor, te faz tirano
O trabalho sem amor, te faz escravo
A simplicidade sem amor, te deprecia
A oração sem amor, te faz introvertido
A lei sem amor, te escraviza
A política sem amor, te deixa egoísta
A fé sem amor te deixa fanático
A religião sem amor se converte em tortura.
(Hesíodo, séc. VIII a.C)
Traduzir-se (Ferreira Gullar)
Uma parte de mim é todo o mundo:
outra parte é ninguém: fundo sem fundo.
Uma parte de mim é multidão:
outra parte estranheza e solidão.
Uma parte de mim pesa, pondera:
outra parte delira.
Uma parte de mim almoça e janta:
outra parte se espanta.
Uma parte de mim é permanente:
outra parte se sabe de repente.
Uma parte de mim é só vertigem:
Outra parte, linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
que é uma questão
de vida ou morte – será arte?
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Versão revisada 29 de outubro 2009
Morreu (Manuel Mantero)
Não morreu. Ninguém morre.
Foi para longe (Lisboa, Niza, Roma?)
buscando luz, beleza: ele sempre
amou as flores brancas junto ao mar
e o sol nas mulheres.
A Europa existe, muitos
viram suas estátuas e suas fontes,
suas catedrais bombardeadas
e beberam fantásticos, alegres
como o fogo, seus vinhos populares.
A Europa existe, mas a morte não.
“Morreu”
Não morreu. Ninguém morre.
Ausente está, assim como as coisas
se fechamos os olhos de repente.
Não saiu do lugar,
Permanece.
Somos nós os escuros
culpados da neblina perene
Não sabemos abrir os olhos
para olhar o que jamais perece.
“Morreu”
Não morreu. Ninguém morre.
Morrem os cachorros, os cavalos,
os europeus e seus reis
as canções de moda, as promessas,
as lágrimas, as árvores, a neve.
Nós não morremos: quem se recorda das
lendas de vermes e ossos, fracos
fundamentos de parias que meditam
sobre sua possível condição celeste?
“Morreu”
Não morreu. Ninguém morre.
Foi à ópera em Chicago,
não, mais perto, a olhar os peixes
do infinito lago Michigan
ou a cortar...(Já não é sábado?)...o gramado de casa
ou sentado à tarde frente à sua porta.
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Versão revisada 24 de outubro 2009
Mas ele não morreu. Morrem
os que querem morrer.
E os que com ódio dizem
que ele morreu.
“Morreram”
Reflexões complementares
1) Mesmo na sociedade mais rígida e amorfa, há brechas. A festa como
uma brecha e Romeu e Julieta como os heróis que conseguem
aproveitar esta brecha para se conhecerem e se amarem. Mesmo num
lugar estagnado sempre há brechas, para vida manifestar-se. A história
da humanidade é feita por estas pessoas.
Na obra, os sentimentos de amor e de luto, como também a sabedoria
do sonho e da palavra são banalizados. Quando banalizamos o sonho,
perdemos oportunidades de encontrar soluções, pois nos falta o contato com
o seu saber criativo, que vem em nosso auxilio, nos dando sinais. Romeu e
Julieta são nossos heróis porque eles aproveitaram estas brechas. É belo
perceber como o instinto do amor pulsa neles. A festa na casa dos Capuleto
pode ser vista como um espaço de suspensão do tempo onde o amor entre
Romeu e Julieta pode emergir. Na festa há uma comemoração, por meio da
qual nos reconciliamos com nossa ancestralidade, ao mesmo tempo em que
nos abrimos para o novo. O fato desta festa ser um baile de máscaras
acentua sua semelhança com um estado de sonho, em que podemos
experimentar ser outro, misturando-nos ao coletivo. Além disto, a máscara
deixa que somente os olhos e a boca falem. Mascarados, eles se olharam e
conversaram. Através do olhar e das palavras, Romeu e Julieta se
apaixonaram. Em todas as sociedades sempre emergem Romeus e Julietas,
que conseguem se entregar ao amor.
2) A superficialidade de Mercúcio e a passividade de Benvólio - Romeu
sem amigos genuínos com quem pudesse contar
Depois de conhecer Julieta e falar com o Frei, Romeu reconhece que
Mercúcio é superficial, “um gordo e grande pato”. Mercúcio ridiculariza o
sonho, o amor, porque não conhece esses sentimentos, não tem consciência
da sua vida interior. Mercúcio é insolente, faz piadas de tom sexual com a
Ama que é uma senhora. Shakespeare coloca esta sexualidade banalizada
pela sociedade no personagem Mercúcio. Já nosso herói Romeu é capaz de
viver uma sexualidade integrada com o amor. Mercúcio banaliza o amor
como algo que cega, diminuindo o controle das suas ações e sente como
uma ameaça a sua masculinidade. Certas pessoas, como Mercúcio e o Sr.
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Versão revisada 24 de outubro 2009
Capuleto, atacam a outra pessoa pelo medo do questionamento de suas
crenças, terror de ficarem perdidos e frágeis se mudarem sua maneira de
viver. Mercúcio crê que a identidade social de Romeu é sua essência, e não
percebe os sinais de mudanças nele. Não pode ter uma relação de amizade
verdadeira que lhe permitiria ver e ouvir o que se passava com o amigo. O
que seria então um amigo? Alguém em quem você pode confiar e abrir seu
coração. Romeu não tem intimidade com Mercúrio, e tampouco com
Benvólio. Os dois são colegas que não acompanham as transformações que
Romeu viveu junto a Julieta.
3) A sociedade e as famílias de Romeu e Julieta perdem uma
possibilidade de se transformarem porque os dois jovens têm de viver
seu amor às escondidas
Romeu e Julieta não podiam falar de seu amor com seus pais. Os pais
não conseguiam enxergar os sinais. Naquele lugar as pessoas se casavam
sem amor. E, como nossos heróis viveram seu amor de forma escondida, os
pais não puderam de fato ver o amor de Romeu e Julieta quando estes
estavam vivos. A visão de um casal apaixonado poderia, talvez, tê-los
mudado, já que a beleza de um casal apaixonado é como uma verdadeira
obra de arte, e pode ter uma força transformadora.
4) Romeu e Julieta instauram uma nova ordem, regida por uma nova lei.
A partir da narrativa de sua história o aprendizado começa a se
manifestar
Com a morte de Julieta e Romeu toda a história é contada. Frei
Lourenço, Baltasar e a Ama, contam o que sabem. Assim, as duas famílias
descobrem todo o mal que causaram aos filhos. É a morte que cria um
espaço para que surja a conversa entre as famílias. O príncipe pede que as
famílias “vão e conversem”, conversem para que essa história não se repita.
Agora as famílias vão construir as estátuas de ouro, metal valioso e
indestrutível, que serão colocadas em praça pública, que irão inaugurar uma
nova ordem para Verona. Shakespeare então nos mostra a possibilidade de
um aprendizado coletivo.
O Príncipe , ao escutar a estória que Frei Lourenço conta, e ao ver as
famílias reconciliadas, sente a urgência de que esta história seja conhecida
por todos e diz “conversem mais sobre estes tristes fatos”. O Príncipe
percebeu que esta história será sua aliada para que a justiça seja realmente
cumprida na cidade. A sociedade de Verona consegue então sair de sua
condição primitiva, e passa a ter uma história que será o fundamento de uma
nova organização social para as futuras gerações.
5) A fúria do Sr. Capuleto: resistência à mudança
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Versão revisada 24 de outubro 2009
Vemos que a fúria do Sr. Capuleto é um reflexo do seu desespero
quando sente que o seu “eu externo” está ameaçado. Julieta, ao dizer que
não quer casar, desmonta o plano que o Sr. Capuleto pensava ser o melhor
para ela. Este “plano” representava o “eu social” do Sr. Capuleto. Ao casar a
filha, ele estaria dando continuidade à sua própria imagem e posição social.
Ele sentiu que a atitude de Julieta estava lhe “tirando o chão”, o seu “eu
social”, que era o único que tinha. O Sr. Capuleto diz ser um “homem de
palavra” e que, por isto, não pode voltar atrás. Pensamos que ele não tem “a
palavra”, pois é a palavra que sustenta nossa identidade. Como ele não sabe
quem ele é, pois está imerso neste “eu social” rígido, não pode voltar atrás.
Não pode voltar atrás porque não tem para onde voltar – falta-lhe o “eu
interno”, a “alma interior” de que nos fala Machado. É triste pensar que há
muitos “senhores Capuleto” que ainda não “são” e querem a todo custo
impedir que outras pessoas “sejam” – sintam e pensem. Os tão “amados”
filhos são meras extensões deles, que servem para perpetuar o já
constituído, e não têm direito a ser e pensar por conta própria. O Sr. Capuleto
faz parte de um sistema arcaico no qual não há espaço para o novo. A sua
filha ingenuamente lhe pede para ser ouvida. E é exatamente isto que ele
não pode fazer. Se ele pudesse ouvi-la, a história seria outra.
6) As leis do homem e as leis não escritas
As seguintes falas do Príncipe, uma do início e outra do final da obra,
nos levaram a algumas reflexões:
“Onde estão os inimigos? Capuleto, Montéquio, vejam que a maldição recaiu
sobre o ódio de vocês, que até mesmo os céus encontraram meios de matar
com amor as vossas alegrias e eu por ter fechado meus olhos as vossas
discórdias, também perdi dois da minha família. Fomos todos punidos.” (Pg.
101)
“Súditos rebeldes, inimigos da paz, profanadores do aço dessas lâminas
manchadas com o sangue de vossos próprios vizinhos! – Será que eles não
me ouvem? – Ei, olá, vocês, homens, vocês, animais, que aplacam o fogo de
vossa fúria perniciosa com as fontes púrpuras que brotam de vossas próprias
veias! – Sob pena de tortura, joguem ao chão vossas destemperadas armas,
soltem-nas de vossas mãos ensangüentadas, e ouçam a sentença de vosso
irado príncipe” (Pg. 14)
Shakespeare, em Romeu e Julieta, nos aproxima de Antígona de
Sófocles. Nesta obra, Creonte, diferente do Príncipe em Romeu e Julieta, não
reflete sobre as leis que representa. Ele pensa que as leis dependem só de
sua vontade e de sua convicção do que é adequado ou não. Creonte, assim
como os Capuleto e os Montéquio, é punido com a morte de seus filhos por
causa de sua hibris, sua arrogância, por sua incapacidade de ouvir e mudar
sua forma de pensar. Quando Antígona apresenta a Creonte a força de sua
convicção nestas leis que regem o universo, ele é incapaz de ouvir e de
mudar seu veredicto. Antígona vai ser fiel a estas leis porque as sente como
sendo sua verdade.
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Versão revisada 24 de outubro 2009
O Príncipe percebe que as leis dos homens por ele representadas
precisam ser cumpridas. Os homens, ao escreverem as leis dos códigos,
tentam traduzir em palavras estas leis que regem o universo. A interpretação
que os homens fazem destas leis se dá de diferentes formas, dependendo
dos países e da época em que vivem. Elas podem ser negociadas,
modificadas. Já as leis que regem a harmonia cósmica são implacáveis com
aqueles incapazes de ouvi-las. Sua existência não depende dos homens.
Elas são soberanas. O que o Príncipe chama de “leis dos céus”, Spinoza
chama de leis da natureza – que são duas: composição e decomposição. Os
bons encontros, as paixões alegres, fortalecem a potência da alma, como diz
Celina Ramos, psicanalista e colaboradora dos Círculos de Leitura. É o que
se deu entre Romeu e Julieta. Para a psicanalista Marina Durand, “os deuses
moram na força intrínseca dos fatos”. Estas leis são implacáveis com aqueles
incapazes de reverenciá-las, e imaginam-se acima delas, como os Montéquio
e Capuleto. Dessa forma o ódio deles se voltou contra eles mesmos,
acabando com seus nomes, não deixando descendentes.
Em Romeu e Julieta havia o Príncipe, representante da lei dos
homens. Havia também o Frei, um santo homem representante das leis
divinas. Essas leis precisam estar integradas na consciência dos homens.
Sem essa integração os Montéquio e Capuleto da vida vão continuar se
matando, perdendo seus filhos. Desta forma, a sociedade perde seu futuro.
Muitas vezes as pessoas vêem Romeu e Julieta como uma das mais
belas histórias de amor que a humanidade já produziu. Mas terminamos a
leitura com a convicção de que Shakespeare também nos apresenta a
necessidade de integrar a força do amor à política dos homens. Trata-se,
portanto, de uma peça profundamente política. Apresenta com profunda
lucidez um Príncipe que se dá conta da soberania destas leis que regem o
universo, curva-se, e surpreende-se, perante elas. Shakespeare quer mostrar
como a hibris decompõe sua própria descendência, impedindo a convivência
em sociedade. O que deveria reger a sociedade é o conhecimento e a
integração destas leis.
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Sabemos que este livro despertará reflexões que talvez não tenham sido
contempladas ainda aqui. Escreva para nós sobre suas idéias. Com elas
poderemos fazer um segundo módulo. Escreva aqui suas idéias:

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