Caderno de Textos Cobrecos Niterói 2015

Transcrição

Caderno de Textos Cobrecos Niterói 2015
caderno
de textos
| Índice |
4 | A Crise Da Urbanização Planetária
David Harvey
8 | Prometeu Envelhecido: Proletariedade E Velhice No
Século Xxi
Giovanni Alves
13 | Organização, Estratégia Política E O Plano Nacional
De Educação
Roberto Leher
30 | Jornalismo: Um Campo Em Disputa
Fernanda Ramos
32 | 5 Anos De Confecom: Muito Barulho Por Nada?
Jonas Valente
34 | E Os Conselhos Estaduais De Comunicação Social?
Venício de Lima
36 | O Fracasso Do Programa Nacional De Banda Larga
Marina Cardoso
38 | É Legal? A Regulação Da Comunicação Comunitária Na
Esquerda Latino-Americana
Gislene Moreira
46 | 29 De Janeiro, Visibilidade Trans Para Quem?
Sofia Favero
48 | Eu Quero Uma Trégua De 24 Horas Sem Estupro
Andrea Dworkin
54 | Consumo infantil e a mãe negra
Luciane Reis
| A crise da urbanização planetária |
David Harvey
Na noite de 20 de junho de 2013, mais de um milhão de pessoas em cerca de 388 cidades brasileiras tomaram as ruas em um enorme movimento de protesto. O maior desses protestos, reunindo mais de 100,000 pessoas, ocorreu no Rio de Janeiro e sofreu considerável violência policial.
Por mais de um ano antes disso, manifestações esporádicas vinham acontecendo em diversas
cidades brasileiras. Capitaneadas pelo MPL que há muito vinha se mobilizando entre estudantes
pelo transporte gratuito, os protestos anteriores foram em larga medida ignorados.
Mas no começo de junho de 2013, o aumento da tarifa sobre o transporte público desencadeou manifestações mais amplas. Muitos outros grupos, incluído black blocs anarquistas,
saíram em defesa dos manifestantes do MPL e outros que estavam sofrendo repressão policial.
No dia 13 de junho, o movimento já havia se transformado em um protesto generalizado contra
a repressão policial, o fracasso dos serviços públicos perante as necessidades sociais, e a qualidade deteriorante da vida urbana. Os enormes gastos de recursos públicos para sediar megaeventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas – em detrimento do interesse público mas
muito favoráveis, como amplamente se reconheceu, aos interesses de empreiteiras e incorporadoras corruptas – só aumentaram o descontentamento.
Os protestos no Brasil vieram menos de um mês depois de milhares de pessoas terem ido
às ruas das principais cidades da Turquia. O que aparentemente começara como uma revolta com
o projeto de reurbanização que transformaria em shopping center o precioso espaço verde do
Parque Taskim Gezi, em Istambul, se alastrou em um protesto mais amplo contra a forma cada
vez mais autocrática de governo e a violência da resposta policial. Um descontentamento generalizado sobre o ritmo e o estilo das transformações urbanas (incluindo aí enormes despejos de
populações inteiras de terrenos valorizados no centro da cidade) também há muito vinha borbulhando e só jogou mais lenha na fogueira. A má qualidade de vida, para todos menos as classes
mais abastadas, em Istambul e em outras cidades turcas era claramente uma questão importante.
O amplo paralelo entre o Brasil e a Turquia levou o articulista Bill Keller a escrever uma
coluna de opinião no New York Times intitulada “The Revolt of the Rising Class” [A revolta da
classe ascendente]. Os levantes não “nasceram do desespero”, ele escreveu. Tanto o Brasil quanto a Turquia haviam passado por um crescimento econômico notável em um período de crise
global generalizada. Tratavam-se dos “mais recentes em uma série de revoltas brotando da classe
média – as classes urbanas, educadas e não necessitadas, que são de certa forma as principais
beneficiárias dos regimes que agora se põem a rejeitar” e que tinham algo a perder ao tomar as
ruas em protesto. “Quando os movimentos atingiram uma massa crítica, eles já reivindicavam
algo maior e mais incoeso como dignidade, os pré-requisitos da cidadania, as obrigações do poder.” As revoltas significavam “uma nova alienação, um novo anseio” que tinha de ser encarado.
A bem da verdade, as manifestações no Brasil e na Turquia diferiram dos protestos anti-austeridade e das greves que dominavam nas praças gregas e espanholas. Também diferiram
das erupções de violência em Londres, Estocolmo, e nos subúrbios parisienses por parte das
populações marginalizadas e imigrantes. E todos esses se mostraram diferentes dos movimentos “Occupy” em muitas cidades ocidentais e dos levantes pró-democracia que ecoaram de
Túnis, Egito e Syria passando pela Bósnia e a Ucrânia.
Entretanto, há também pontos comuns que atravessam essas diferenças. Todas foram,
por exemplo, centradas no espaço urbano, até certo ponto levemente supraclassistas, e ainda
(ao menos inicialmente) inter-étnicas (embora isso tenha se desfeito na medida em que forças
internas se deslocavam para dividir e controlar, e poderes externos exploravam os descontentamentos por vantagens geopolíticas, como na Síria e na Ucrânia). Desafeição e alienação urbana
foram bastante proeminentes dentre os desencadeadores, bem como a indignação universal com
a crescente desigualdade social, com a elevação nos custos de vida, e com repressões policiais
gratuitamente violentas.
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Nada disso deveria surpreender. A urbanização tem cada vez mais constituído um sítio
primário de infindável acumulação de capital que administra suas próprias formas de barbárie
e violência sobre populações inteiras em nome do lucro. A urbanização se tornou o centro de
atividades econômicas avassaladores em escala planetária nunca antes vistas na história da
humanidade. O Financial Times informa, por exemplo, que o “investimento imobiliário é o mais
importante motor na economia chinesa”, que por sua vez tem sido o principal motor da economia global ao longo da crise mundial que começou em 2007. “A construção, venda e mobília de
apartamentos representou 23% do PIB chinês em 2013.”1 Se somarmos os gastos com infraestruturas físicas de grande porte (estradas, ferrovias e obras públicas de todo tipo) então quase
metade da economia chinesa está voltada para urbanização. A China consumiu mais de metade
do aço e do cimento globais ao longo da última década. “Em apenas dois anos, de 2011 a 2012, a
China produziu mais cimento que os Estados Unidos em todo o século XX”.2
Embora extremas, essas tendências não se encerram no território Chinês. Concreto vem
sendo despejado por toda parte em um ritmo sem precedentes sobre a superfície terrestre.
Estamos, em suma, em meio a uma enorme crise – ecológica, social e política – de urbanização
planetária sem, ao que parece, nos dar conta ou mesmo marcando-a.
Nada desse novo desenvolvimento poderia ter ocorrido sem despejos e despossessões
massivas, onda após onda de destruição criativa que tem cobrado não só um preço físico mas
também destruído solidariedades sociais, varrido qualquer pretensões de governança urbana
democrática, e tem cada vez mais recorrido ao terror e à vigilância policial militarizada como
seu modo primário de regulação social. A inquietação ligada à despossessão na China é difícil
de medir, mas é certamente muito difundida. O sociólogo Cihan Tugal escreveu: “Bolhas imobiliárias, preços altíssimos de habitação, e a privatização-alienação generalizada de bens urbanos
comuns constituem o chão comum de protestos em lugares tão diversos como Estados Unidos,
Egito, Espanha, Turquia, Brasil, Israel e Grécia”.3 O crescente custo de vida – particularmente
de alimentação, transporte e habitação – tem tornado a vida cotidiana cada vez mais difícil para
populações urbanas. Revoltas em torno de alimentação em cidades do norte da África eram frequentes e difundidas mesmo antes dos levantes na Tunísia e na Praça Tahrir.
Esse boom de urbanização não tem tido muito a ver com atender às necessidades da
população. Trata-se de uma estratégia para absorver capital excedente, sustentar taxas de lucro,
e maximizar o retorno sobre valores de troca independentemente de quais forem as demandas
por valores de uso. As consequências tem frequentemente se mostrado extremamente irracionais. Enquanto há uma escassez crônica de moradias financeiramente acessíveis em quase toda
grande cidade, suas skylines são emporcalhadas com condomínios vazios para os ultra-ricos,
cujos principais interesses são especular valores imobiliários ao invés de promover o bem-estar.
Em Nova York, onde metade da população tem de viver com menos de $30,000 dólares
ao ano (em contraste com o 1%, que tinha uma renda anual média de $3.57 milhões de acordo com os relatórios tributários referentes a 2012), há uma crise de moradias financeiramente
acessíveis porque em lugar algum é possível encontrar um apartamento de dois cômodos pelos
$1,500 dólares ao mês que uma família de quatro deveria dedicar a habitação (dada a renda de
$30,000). Em quase todas as principais cidades dos EUA, a porcentagem das despesas em habitação são muito superiores aos 30% da renda considerados razoáveis.4
O mesmo vale para Londres, onde há ruas inteiras de mansões desocupadas, mantidas
por motivos puramente especulativos. Enquanto isso, o governo britânico busca aumentar a
oferta de moradias acessíveis implementando uma taxa de sub-ocupação – que ficou conhecida
como a bedroom tax – sobre habitação social para o setor mais vulnerável da população, causando, por exemplo, o despejo de uma viúva morando sozinha em uma Council House de dois
quartos. A taxa de sub-ocupação foi claramente implementada na classe errada, mas os governos
esses dias parecem singularmente dedicados a bajular os mais abastados às custas dos pobres
e desavantajados. A mesma irracionalidade de cômodos vazios em meio a carência de moradias
a preços acessíveis pode ser encontrada no Brasil, na Turquia, em Dubai e no Chile, bem como
em todas as cidades globais de altas finanças como Londres e Nova York. Enquanto isso, austeridades orçamentárias e relutância em taxar os mais ricos dado o poder esmagador de uma agora
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triunfante oligarquia significa um declínio de serviços públicos para as massas e ainda mais
acumulação de riqueza para poucos.
É em condições desse tipo que a propensão a revolta política começa a inchar. Alienação
universal de uma vida diária tolhante na cidade se evidencia por toda parte. Mas igualmente
salientam-se as inúmeras tentativas por parte de indivíduos, grupos sociais, e movimentos
políticos de encontrar formas de construir uma vida decente em um ambiente decente de
vida. O tema de que deve haver alguma alternativa assume diversas formas e produz muitas
quasi-soluções em aparentemente infinitas guisas.
É neste contexto que grupos de pensadores e ativistas estão explorando alternativas, por
vezes em escalas pequenas mas em outras instâncias, no despertar de revoltas urbanas, para
estimular a busca por melhores formas de vida urbana.5 O ethos faça-você-mesmo de muitos
grupos sociais marginalizados da dinâmica prevalecente de acumulação de capital cria possibilidades de alianças entre pensadores e técnicos urbanos com movimentos sociais nascentes
buscando uma vida boa ou, ao menos, melhor. Em nações andinas, o ideal do buen vivir está
inscrito em constituições nacionais mesmo que na prática acabe entrando em conflito com políticas neoliberalizantes.6
Há possibilidades e potencialidade populares emergindo da crise da urbanização planetária e seus múltiplos mal-estares. Isso ocorre mesmo em face da aparentemente implacável
força da acumulação infindável de capital, crescendo a uma taxa exponencial insustentável e
apesar do poder que atravessa classes sociais sendo manejado por uma oligarquia global cada
vez mais escancarada e intransigente.7
Então o que é que pode emergir das revoltas populares? Há signos e sinais confusos mas
também algumas pistas importantes. No Parque Taskim Gezi, por exemplo, não era apenas o
parque que importava. A “classe ascendente” construiu solidariedades sociais instantâneas, uma
economia de compartilhamento e provisão social coletiva (alimentação, saúde, vestimentas),
de zelar pelos outros (particularmente os feridos e amedrontados). Os participantes mostraram
evidente prazer e disposição em debater interesses comuns através de assembleias democráticas, com discussões acaloradas que se estendiam noite adentro, e sobretudo encontraram um
mundo possível de humor coletivo e liberação cultural que anteriormente parecia interditado.
Eles abriram espaços alternativos, construíram um commons a partir de espaços públicos, e
liberaram o poder do espaço a um propósito social e ambiental alternativo. Eles encontraram uns
aos outros bem como o parque;8 eles identificaram uma ordem social nascente à espera.
Essas indicações nos permitem vislumbrar uma futura alternativa. O espírito de muitos
(embora não todos) desses protestos e o espírito no interior dos movimentos pró-democracia e
“Occupy” é de ir além da “nova alienação” que Keller percebe como sendo tão importante para
construir uma experiência urbana menos alienante. Resistência visceral à proposta de despejar
concreto sobre o Parque Taskim Gezi para construir uma imitação de um quartel otomano que
funcionaria como mais um shopping center é nesse sentido emblemático do que é a crise da
urbanização planetária. Despejar mais e mais concreto em uma busca sem sentido por crescimento infindável obviamente não é resposta alguma para nossos atuais males.
Mas a “classe ascendente” também não representa a totalidade da população. Na Turquia,
a massa das classes trabalhadoras islâmicas não se juntaram à revolta. Eles já possuíam suas
próprias solidariedades culturais (frequentemente anti-modernistas) e relações sociais endurecidas (particularmente no que diz respeito à questão de gênero). Eles não se atraíram pela retórica
emancipatória do movimento de protesto porque aquele movimento não abordou efetivamente
sua condição de imensa privação material. Eles gostaram da combinação de shopping centers
e mesquitas que o partido dominante, o AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento), estava
construindo e não se importavam com a evidente corrupção em torno da explosão na construção
civil contanto que representasse uma fonte de emprego. O movimento de protesto do Parque
Taksim Gezi não era, como as eleições municipais subsequentes mostraram, supraclassista o
suficiente para durar.
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Não há resposta única aos nossos predicamentos. A experiência urbana sob o capitalismo
está se tornando bárbara, bem como repressiva. Se as raízes dessa experiência alienante estão
na infindável acumulação de capital, então essas raízes têm de ser definitivamente rompidas. As
vidas e o bem estar têm de ser re-enraizados em outros modos de produzir e consumir, enquanto novas formas de socalidade precisam ser construídos. O ethos neoliberal de individualismo
isolado e responsabilidade pessoal, ao invés de social tem de ser superado. Retomar as ruas em
atos de protesto coletivo pode ser um começo. Mas é somente um começo e não pode ser um
fim em si mesmo. Maximizar o buen vivir para todos na cidade ao invés do PIB, para o benefício
de poucos é uma ótima ideia. Ela precisa ser fundamentada em práticas urbanas em toda parte.
Notas
1. Jamil Anderlini, “Property Sector Slowdown Adds to China Fears,” Financial Times, May 13, 2014
2. Keith Bradsher, “China’s Sizzling Real Estate Market Cools,” New York Times, May 13, 2014, B1.
3. Cihan Tugal, “Resistance Everywhere: The Gezi Revolt in Global Perspective,” New Perspectives on
Turkey 49(2013): 157–72.
4. Shaila Dewan, “In Many Cities Rent is Rising Out of Reach of Middle Class,” New York Times, April
14, 2014, A1.
5. Ver o capítulo 17 de meu livro Dezessete contradições e o fim do capitalismo (Boitempo, no prelo).
6. Republic of Ecuador National Planning Council, National Plan for Good Living: Building a Plurinational and Intercultural State (Quito: Senplades, 2010).
7. As tendências para uma maior desigualdade social foram recentemente documentadas de forma
espetacular emLe capital ao xxi siécle, de Thomas Piketty.
8. Arzu Ozturkmen, “The Park, the Penguin and the Gas: Experience and Performance in Progress of
Gezi Events”,Mimeo (Bogazici University, Istanbul).
FONTE: http://blogdaboitempo.com.br/2015/01/10/david-harvey-a-crise-da-urbanizacao-planetaria/
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| Prometeu envelhecido: proletariedade e velhice no
século XXI |
Giovanni Alves
É preciso dotar o pensamento social crítico de uma perspectiva estratégica de médio e longo prazo capaz de indicar novas tendências do desenvolvimento social. É importante ficarmos atentos
para os novos fenômenos sociometabólicos que estão ocorrendo e devem ocorrer, por exemplo,
por conta de mudanças demográficas que devem ocorrer no século XXI – pelo menos a partir
de 2030. Nesse sentido, urge ficarmos atentos à reconfiguração da classe social do proletariado
que deve ocorrer não apenas por conta da reestruturação produtiva propriamente dita que ocorre
no seio do capitalismo global, mas às importantes alterações demográficas que ocorrerão nas
sociedades capitalistas centrais e países em desenvolvimento como o Brasil. As mudanças cruciais no sociometabolismo do trabalho por conta da reestruturação demográfica colocarão novos
patamares de desenvolvimento das individualidades humanas no seio de candentes contradições
sociais abertas pelo movimento do capital como modo estranhado de controle da vida social.
Nosso interesse nesse pequeno artigo é apenas indicar alguns sinais de mudanças sociometabólicas no seio das camadas sociais da classe do proletariado tardio no Brasil com
impactos na estrutura (e luta) de classes no século XXI. Por exemplo, em artigos anteriores,
ao discutirmos o conceito de precariado (“A revolta do precariado” e “O que é o precariado?”),
conceito ressignificado para caracterizar a camada social de jovens proletários assalariados
altamente escolarizados inseridos em relações de vida e trabalho precário, buscamos salientar
um traço candente (e crescente) do proletariado tardio no Brasil. Deste modo, no Brasil-Pátria
Educadora – lema do novo governo Dilma Rouseff – deve crescer, pelo menos na próxima década, em termos relativos, o contingente de jovens trabalhadores assalariados altamente escolarizados mas inseridos em relações de trabalho e vida precários (uma tendência dominante hoje,
por exemplo, nos EUA, Japão e União Européia). A afirmação da precariedade nas relações de
trabalho”, caso a terceirização se amplie efetivamente no mercado de trabalho, deve contribuir
para o aumento paulatino do precariado no Brasil. O contingente do precariado no século XXI
encontra imensa dificuldades de representação sindical e politica por conta da própria crise de
sindicatos e partidos trabalhistas de esquerda.
Neste artigo, iremos provocar outra discussão sobre uma camada social do proletariado tardio no Brasil que também deve crescer em termos relativos no decorrer do século XXI: o
gerontariado, isto é, a camada social de proletários idosos – pessoas com 60 anos ou mais de
idade – inseridos em relações de trabalho e vida precária. Um detalhe: uma parte significativa do
gerontariado deve ser constituída por pessoas com 60 anos ou mais de idade aposentadas ou
pensionistas. A presença crescente da velhice proletária ativa no mundo do capital é expressão
de um novo modo de precariedade do trabalho que deve surgir na era do envelhecimento no
século XXI (o termo “a era do envelhecimento” foi utilizado pelo economista George Magnus,
no seu livro homônimo publicado em 2009 e que trata como a demografia está transformando a
economia global e nosso mundo). Na verdade, precariado egerontariado compõem os dois pólos
extremos das contradições candentes – e radicais – do capital na era da sua crise estrutural,
expressando enquanto categorias sociais, formas de estranhamento e irrealização humana no
estágio altamente avançado do processo civilizatório.
Podemos dizer que presenciamos na era do capitalismo global mudanças cruciais na
delimitação das etapas de desenvolvimento geracional das pessoas humanas que trabalham. Por
exemplo, por um lado, tivemos o alongamento da trajetória daquilo que se convencionou chamar
“juventude” – não “juventude” no sentido de fato biológico, mas sim, como identidade cultural
(ela não se restringe apenas à faixa etária dos 18-29 anos, mas pode-se considerá-la próximo dos
40 anos, no caso dos “jovens-adultos”). Mas, além do alongamento da juventude, ocorre, de certo modo, a precariedade de uma importante transição nas etapas da vida pessoal: a passagem da
juventude para a vida adulta por conta daquilo que discutimos no artigo intitulado “A derrelição
de Ícaro”: a crise da sociedade salarial.
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Ao mesmo tempo, em que ocorre o alongamento (e envelhecimento) da juventude, percebemos o aumentou a expectativa de vida nas sociedades capitalistas centrais e em desenvolvimento, alongando, deste modo, a etapa da velhice, constituída pelas pessoas com 60 ou mais
anos de idade (o termo “envelhecimento da juventude” foi utilizado pelo sociólogo espanhol
Enrique Gil Calvo).
Portanto, por um lado, temos o alongamento e envelhecimento da juventude (com a dificuldade de transição para a vida adulta), e por outro lado, a extensão da velhice como fase produtiva no tempo do capital. Enfim, trata-se de tendências de mudanças demográficas de longo
curso que não podem ser desprezadas e que constituem novos fenômenos sociometabólicos na
dinâmica das camadas sociais da classe do proletariado tardio.
Como temos discutido, a discussão do fenômeno do “precariado”, tal como concebemos
hoje – a camada social de jovens-adultos precários altamente escolarizados em situação de
trabalho e vida danificadas – implica levarmos em consideração as metamorfoses da própria
categoria social de juventude e a precariedade da transição da juventude para a vida adulta.
Primeiro, devido as mudanças estruturais ocorridas no mercado de trabalho, onde um dos rituais
de passagem da juventude propriamente dita para a vida adulta era efetivamente a inserção
numa condição de “cidadania salarial estável”. Na medida em que aumentou a precariedade
do emprego, suprimindo-se o ritual da obtenção do emprego estável, capaz de garantir outras
dimensões do sonho da vida adulta (família e consumo), bloqueou-se a transição e alongou-se
a fase de transição da adolescência para a vida adulta. Entretanto, muitas vezes, um contingente
de jovem-adultos tveram uma serie de experiências de transições ocupacionais caracterizadas
pela frustração das expectativas. Por exemplo, verificamos o fenômeno da inadequação entre a
profissão adquirida e a atividade ocupacional exercida. Na verdade, a frustração das expectativas
– traço indelével da juventude de hoje – implica numa falsa transição da juventude para a vida
adulta. Mesmo com emprego estável e insatisfatório profissionalmente, tendo em vista as novas
condições da precariedade salarial (gestão toyotista e novas tecnologias informacionais que
contribuem para a intensificação do trabalho estranhado), os jovem-adultos continuam a cultivar
sonhos juvenis de realização profissional. Por isso, verifica-se outro fenômeno importante – por
exemplo, a permanência, para além das expectativas, da ocupação insatisfatória considerada
como provisória. Nesse caso, na circunstancia de instabilidade e incerteza do mercado de trabalho, a inserção num emprego estável mesmo que insatisfatório, torna-se um valor social.
Num primeiro momento, o jovem alimenta a expectativa de que logo abandonara aquele
emprego estável e insatisfatório. Depois, com o passar do tempo, o provisório tornou-se definitivo. Premido pelas circunstâncias da transição para a vida adulta – família e consumo – submete
seus sonhos juvenis de realização profissional (e pessoal) às contingências do mercado. Apesar
disso, enquanto jovem-adulto inserido num emprego estável mas insatisfatório, preserva sonhos,
expectativas e anseios juvenis.
Portanto, de certo modo, a categoria social de precariado – tal como nós a concebemos
– originou-se da interdição no ritual de passagem da juventude para a vida adulta por conta da
crise da “sociedade salarial”. É claro que ocorreram importantes mudanças culturais na última
metade do século XX como, por exemplo, a valorização do consumo e ethos teenagers que fez
com que o apego à auto-identidade da juventude dominada pelas imagens de dinamismo, energia e sexo se fortalecesse. Disseminou-se a síndrome de Peter Pan (utilizando o termo de Dan
Kiley). Portanto, tornar-se “adulto” no sentido cultural, com tudo aquilo que isto significa (familia
e capacidade aquisitiva sustentável), tornou-se, não apenas uma impossibilidade objetiva, em
virtude da precariedade salarial de amplos contingentes de assalariados flexíveis, mas passou a
ter um alto custo psicossocial. Por exemplo, no caso do Brasil, surgiu a denominada “geração
canguru”, que trata-se de um fenômeno mundial – em Portugal ela se chama “geração casinhados-pais” (a “geração canguru”, aquela formada por jovens entre 25 e 34 anos que ainda moram
com os pais, e que no Brasil cresceu nos últimos dez anos, segundo os últimos dados do IBGE).
A denominação jovem-adulto fez alongar a trajetória da juventude – dos 18-29 anos (jovem) para
jovem-adulto (29-40 anos). De certo modo, o alongamento da trajetória da juventude na sociedade do capital que vincula a imagem da juventude à energia, dinamismo e sexo (“amor liquido”,
diria Zygmunt Bauman) significou congelar a seta do tempo, como nos indica o sociólogo espan-
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hol Enrique Gil Calvo, fazendo surgir um contingente de jovens “envelhecidos” (e moralmente
imaturos) que adiam a passagem para a fase adulta. Trata-se de um fenômeno cultural que se
impõe sobre as disposições biológicas do organismo humano. O que significa que, embora
tenhamos pessoas humanas que não tenham mais feições (e disposições) da juventude propriamente dita, têm estilo de vida e psicologia de cariz juvenil.
Por outro lado, além do alongamento da juventude e a precariedade da passagem para a
vida adulta podemos constar como tendência de desenvolvimento social, a extensão da velhice
em termos demográficos, tendo em vista a melhoria da expectativa de vida no capitalismo global.
Trata-se de um dado civilizatório de dimensões mundiais. No caso do Brasil, desde o começo da
década de 2000 observa-se, ao lado do aumento da expectativa de vida do brasileiro, a tendência
de envelhecimento da população. Devido à queda de nascimentos nas populações dos países
capitalistas mais desenvolvidos e países em desenvolvimento (incluindo o Brasil), aumentou o
percentual de idosos na população. Segundo a última Síntese de Informações Sociais do IBGE,
verificou-se que a participação do grupo com até 29 anos de idade diminuiu de 54,4% em 2004,
para 46,6% em 2013. Ao mesmo tempo, aumentou o percentual de pessoas para o grupo com
45 anos ou mais de idade, passando de 24% para 30,7%. O IBGE observa que de 2004 para 2013
houve uma grande diminuição na razão de dependência dos jovens, passando de 43,0 para 34,4;
enquanto para o grupo dos idosos, no mesmo período, o indicador apresentou aumento de 15,3
para 20,2; ou seja, em 2013 havia um idoso de 60 anos ou mais de idade para 5 pessoas com
idade entre 15 e 59 anos. As mudanças neste indicador, diz o documento, estão relacionadas
ao processo de diminuição de fecundidade e de maior longevidade da população – o que é um
fenômeno histórico do capitalismo global (a taxa de fecundidade total para o Brasil passou de
2,39 filhos por mulher, em 2000, para 1,77 em 2013). Ao mesmo tempo, verificamos nos países
capitalistas desenvolvidos e em desenvolvimento pressões estruturais do capital financeiro
hegemônico para a precarização das aposentadorias e pensões de homens e mulheres idosos,
obrigando-os, deste modo, a manterem-se ocupados, inseridos em situações de trabalho e vida
precários. Portanto, o surgimento do gerontariado decorre não apenas da inflexão da curva
demográfica no desenvolvimento social da humanidade, mas da vigência do capitalismo neoliberal, forma do capitalismo histórico na etapa de crise estrutural do capital, que possui como
traço candente a precarização estrutural do trabalho – incluindo nesse caso, a precarização das
pensões e aposentadorias de idosos que dedicaram a vida ativa à trabalhar para outrem.
Deste modo, tal como verificamos no caso do precariado, o gerontariado expõe uma
contradição radical da civilização do capital: na etapa de desenvolvimento civilizatório mais
avançado, quando se verifica o alto grau de produtividade do trabalho, o tempo de vida reduz-se
efetivamente a tempo de trabalho – não apenas tempo de trabalho no sentido de jornada laboral,
mas tempo de trabalho no sentido de tempo de existência humana reduzida à atividade alienada/
estranhada – isto é, o trabalho como meio de vida. Muitas vezes, proletários idosos subsumidos
à laboralidade alienada, não conseguem após a aposentadoria dedicar-se efetivamente à uma
vida plena de sentida, tendo em vista que não foram educados – ou formados – para tal. Buscam
no trabalho estranhado não apenas um meio de vida, mas um modo perverso de dar sentido à
vida alienada.
Portanto, enquanto o precariado representa jovens-adultos assalariados altamente escolarizados inseridos em relações de trabalho e vida precários, o gerontariado representa o proletariado idoso inserido em trabalho e vida precários. Na verdade, as novas camadas sociais do proletariado tardio no século XXI expõem novas formas de ser do estranhamento social do capital.
No capitalismo do século XXI tende-se a agudizar-se o que Lukács denominou de estranhamento
social, isto é, a contradição entre o aumento das capacidades humanas por conta do desenvolvimento do processo civilizatório – por exemplo, o alto grau de desenvolvimento da produtividade
do trabalho – e a degradação da personalidade de homens e mulheres que trabalham inseridos
no mundo social do capital. O segmento social de jovens e velhos que trabalham – precariado e
gerontariado – encontram-se hoje nos extremos da miséria humana na civilização do capital do
século XXI.
Enquanto os primeiros – o precariado – são desvalorizados em sua capacidade produtiva
acumulada por conta da alta escolaridade e vigor intelectual-mental imerso em sonhos e expecta-
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tivas de realização profissional, os últimos – o gerontariado – são desvalorizados no carecimento
radical de fruição da vida humana plena de sentido após uma longa trajetória de labor produtivo.
A velhice proletária prolonga as mazelas do trabalho estranhado no ocaso das forças produtivas
de homens e mulheres, levando a situações crônicas de adoecimento e perda da qualidade de
vida. Como salientamos acima, a sociedade do trabalho alienado não prepara as pessoas que
trabalham para a fruição da “vida ociosa”. Pelo contrário, o vazio existencial provocado, por
exemplo, pela aposentadoria decorre da deformação da personalidade humana pela ideologia
do trabalho alienado como elemento de identidade social. Não somos preparados para a vida
ativa (no sentido dado por Hannah Arendt). As contradições da vida produtiva prolongam-se na
velhice, com o gerontariado sendo obrigado a mobilizar-se, tal como o precariado, como sujeito
de direitos e agentes radicais da utopia social.
O capitalismo do século XXI demonstra ser um sistema mundial clivado de densas (e profundas) contradições sociais. O gerontariado de 2050 é o precariado de 2013. Devem-se acumular inquietações existenciais e insatisfações humanas radicais no seio do gerontariado do século
XXI. A idéia de uma velhice submissa expressa no poema “O peregrino apaixonado” de William
Shakespeare pode pertencer ao passado na medida em que carecimentos radicais convertem-se
em consciência de classe necessária (diz o poeta inglês em 1599: “A juventude está cheia de
vigor, o alento da velhice dura pouco; a juventude é ágil, a velhice, pesada; a juventude é ardente
e audaz; a velhice débil e fria; a juventude é rebelde; a velhice, submissa”).
No plano da existência pessoal, devem aflorar carecimentos radicais que põem a necessidade de sentido para a atividade humana. Como observou o psicólogo marxista soviético Lev
Leontiev, a alienação ocorre quando existe uma clivagem entre significado e sentido da atividade
humana. Na medida em que o significado da atividade laborativa se adensa por conta do processo de enriquecimento humano proporcionado pelas experiências expectantes (no caso do
precariado, anseios e ambições de jovens altamente escolarizados tornam-se mais densos e no
caso do gerontariado, o aumento da expectativa de vida e o acumulo de experiencia humana), o
sentido da atividade laboral se amesquinha tendo em vista o caráter do trabalho estranhado que
permeia a vida produtiva propriamente dita, com o predomínio da lógica do mais-desempenho e
envolvimento pessoal exigido pela gestão toyotista. Estamos diante de uma contradição candente
expressa nos carecimentos radicais que ardem mais a medida em que se aprofunda o processo
civilizatório do capital. O conceito de carecimento radical utilizado por Heller no sentido de anseios de realização pessoal por meio da atividade profissional, o que não poderia se realizar nas
condições do trabalho estranhado, caracterizado pela propriedade privada e divisão hierárquica
do trabalho.
Finalmente, no plano da dinâmica da reprodução social e política do capitalismo global no
século XXI, o crescimento do gerontariado deve exigir maior presença do Estado. Tal como no final do século XIX e começo do século XX atribuiu-se ao Estado uma função social importante na
introdução e desenvolvimento de sistemas de seguridade social, para atender o crescimento da
população trabalhadora mais jovem com a Segunda Revolução Industrial, no decorrer do século
XXI, a necessidade de reprodução social da civilização do capital exige que se amplie novamente
a função social do Estado a medida que as populações trabalhadoras envelhecem e se reduzem
ao mesmo tempo. Na verdade, o aumento da longevidade das individualidades humanas exigem investimentos crescentes nos sistemas de saúde e pensão e deve-se aumentar a atenção
médica tendo em vista que as doenças não transmissíveis se converterão em carga maior para
os serviços de saúde. Deve-se colocar cada vez mais no horizonte da luta social e política, a
problemática da qualidade (e sentido) da vida. Entretanto, as necessidades da reprodução social
da civilização do capital são bloqueadas pela natureza estrutural do capitalismo global como capitalismo predominantemente financeirizado, com o capital financeiro pressionando pela redução
da função social do Estado e pela corte dos investimentos públicos na saúde e seguridade social
visando privilegiar o pagamento da dívida pública. Esta será uma das principais contradições
radicais do capital no século XXI, a contradição entre as necessidades de reprodução humana e
as necessidades da autovalorização do valor como capital fictício. A crise do Estado político do
capital decorre da explicitação dos carecimentos radicais que, no caso do gerontariado, assume
uma dimensão candente. Na medida em que se tornará mais claro a contradição entre careci-
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mentos radicais das individualidades humanas e o capital social total – como diria Mészáros – o
gerontariado – tal como o precariado – tornar-se-ão sujeito de ação social e luta de classe.
O aprofundamento da alienação tanto no plano da precarização do homem-que-trabalha,
quanto na dinâmica da reprodução social do capital sob dominância do capital financeiro, contribuirá para a ampliação (e intensificação) da condição de proletariedade e a abertura inédita
de possibilidades objetivas para a formação da consciência de classe necessária que – caso não
sejam realizadas efetivamente no processo de contingencia da luta politica de classes – se interverterão em barbárie social aprofundada (como observou Slavoj Zizek, é o velho insight benjaminiano de que “toda ascensão do fascismo evidencia uma revolução fracassada”: a ascensão do
fascismo no século XXI é a falência da esquerda, mas simultaneamente uma prova de que havia
potencial revolucionário, descontentamento, que a esquerda não foi capaz de mobilizar).
É contra os fenômenos da vida reduzida e ensimesmamento que a esquerda radical deve
lutar na prática de formação humana. Eles – a vida reduzida e o ensimesmamento, discutidos
por mim no livro Trabalho e neodesenvolvimentismo – ao mesmo tempo que produzem inquietação pessoal, danificam a percepção do sentido e anulam tendencialmente ideais de autotranscedência obliterando os anseios de ir além do status quo, produzindo vias grotesca de escape.
Na medida em que se coloca a consciência política e organização social da luta coletiva na
perspectiva da classe, rompe-se o círculo perverso da aceitação do status quo, pois adensa-se o
sonho alimentado pelo coletivo em movimento, rompendo-se com as cadeias do conformismo
diante da alienação profunda, criando, deste modo, a possibilidade de mudança histórica.
FONTE: http://blogdaboitempo.com.br/2015/01/19/prometeu-envelhecido-proletariedade-e-velhice-no-seculo-xxi/
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| ORGANIZAÇÃO, ESTRATÉGIA POLÍTICA E O PLANO NACIONAL DE
EDUCAÇÃO |
Roberto Leher*
Introdução: a atualidade da luta de classes na análise da educação do Século XXI
Embora muitos educadores sustentem que a tese de que a luta de classes na educação está
superada, os setores dominantes insistem em não concordar com isso. Em seus principais
centros de pensamento estes últimos dedicam-se a pensar a educação como uma prática capaz
de converter o conhecimento e a formação humana em “capital humano”, formulação altamente
legitimada por prêmios Nobel (Friedman,1976; Schultz, 1979; Becker, 1992) e incorporada organicamente pelos intelectuais coletivos do capital (Banco Mundial, Organização para a Cooperação
e Desenvolvimento Econômico/OCDE, Fundação Ford, Open Society Foundation), por entidades
empresariais (Confederação Nacional da Indústria, a Confederação Nacional da Agricultura, a
Associação Brasileira do Agronegócio), por suas fundações e, também, pelas coalizões empresariais de organização da classe “para si” (como o Movimento Todos pela Educação/TPE1 ). A ação
dos setores dominantes nada tem de proclamatória, visto que lograram convertê-la em política
de Estado, por meio de leis nacionais e regionais, assimiladas pelos governos como referências
de seus programas e políticas.
1. A educação que convém ao capital: como os setores dominantes operam na educação
A elaboração mais sofisticada em prol da educação capitalista foi realizada por autores neoclássicos, reunidos, especialmente, na Universidade de Chicago. Legitimada politicamente por
sucessivos prêmios Nobel (Schultz, Friedman, Becker), a chamada teoria do capital humano
(TCH) atribui à educação um lugar estratégico capaz de produzir ganhos adicionais para o capital, desde que a socialização (em sentido durkheimniano) seja bem orientada e o adestramento
profissional seja congruente com as demandas do capital. Esta formulação chegou ao Brasil por
meio da Aliança para o Progresso, como um antídoto aos movimentos em prol da educação e da
cultura popular nos luminosos anos 1960, abrangendo a criação da Universidade de Brasília, por
Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, os Centros Populares de Cultura apensados à União Nacional dos
Estudantes (renovando a poesia – com Ferreira Gullar, o teatro – com Vianinha, o documentário
– com Eduardo Coutinho etc.) e, em especial, pela alfabetização como um ato pedagógico de
conscientização (Paulo Freire em Angicos, “De Pé no Chão Também se Aprende a Ler” em Natal).
Com o golpe empresarial-militar, a educação passa a ser tema dos Chicago-boys, da
Aliança para o Progresso – que passou a enfrentar mais diretamente o “perigo” que representava o marxismo nas universidades brasileiras – e dos “reformadores” da Agência dos Estados
Unidos para o Desenvolvimento Internacional (em inglês, United States Agency for International
Development/USAID) e do Conselho Federal de Educação (agora fortalecido em virtude de sua
2 aliança com a ditadura). Nesse contexto, a contrarreforma da educação avançou, produzindo
novos marcos para a universidade (Lei 5.540/68) e para a educação básica (Lei 5.692/71), esta
última explicitamente referenciada na formulação do capital humano, chegando a propugnar a
profissionalização massiva e compulsória do ensino médio (na época, Segundo Grau). A despolitização da educação foi encaminhada por meio do tecnicismo educacional importado dos
EUA a partir de pedagogos e especialistas que realizaram suas pós-graduações neste país (período de ouro dos supervisores, dos orientadores, dos especialistas em medidas educacionais/avaliação), retirando a educação pública dos embates políticos. Até mesmo a União dos Professores
Primários do Brasil se somou a esse processo. A expansão de escolas agrotécnicas e da assistência técnica rural estiveram organicamente vinculadas à chamada Revolução Verde, auspiciada
pelo Banco Mundial em sua ofensiva contrainsurgente.
Nas lutas de resistência à ditadura, outra agenda foi sendo erigida nos espaços de produção do conhecimento crítico nas universidades e, de modo menos sistemático, nas organi-
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zações associativas que, após a Constituição de 1988, seriam transformadas em sindicatos, em
especial nas Conferências Brasileiras de Educação (CBE) e nas Reuniões Anuais da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Com a contribuição de intelectuais como Demerval Saviani, a discussão da escola politécnica, da escola unitária “desinteressada”, referências
marxistas e gramscianas ganharam força na pós-graduação em educação dos anos 1980, em
especial no contexto da constituição do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP)
em 1987, objetivando intervir no processo da constituinte. Com vitórias relativas na Constituição
e derrotas relevantes na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), o FNDEP, agora impulsionado por combativos sindicatos da educação, se tornou o principal articulador das lutas educacionais. Este movimento foi magnificado com os Congressos Nacionais de Educação (CONED),
convocados a partir de 1996, com o objetivo de elaborar um novo Plano Nacional de Educação
(PNE).
Em virtude da correlação de forças negativa para os trabalhadores nas duas últimas décadas do século XX, expressa na redução abrupta do número de greves anuais (que passam de
mais de 2,5 mil por ano em 1989 para menos de 500 greves no final da década), o capital – operando também por meio do Estado – impôs transformações ainda mais profundas na educação
da classe trabalhadora. A perspectiva universalista de que a escola pública deveria assegurar uma
formação geral igualitária a todos os estudantes por meio da garantia, pelo Estado, da educação
pública, gratuita e estruturada em sistemas nacionais, foi combatida em prol de políticas focalizadas, referenciadas na pedagogia das competências, atributos utilitaristas que objetivam
a adaptação das crianças e jovens ao ethos capitalista e, mais precisamente, ao chamado novo
espírito do capitalismo2 flexível, fundamentado no trabalho superexplorado e precário.
Nos anos 1990, essas concepções já circulam também nas universidades. Imbuídas direta
ou indiretamente da noção das escolhas racionais (chamadas de teorias das escolhas racionais)
difundida por neoliberais como James Buchanan, Gordon Tullock e Mancur Olson, essa formulação, em virtude do individualismo metodológico, está harmonizada com a ideologia do capital
humano. Neste prisma, os agentes educacionais buscam maximizar os benefícios da educação
(e em especial da educação moral), em relação aos recursos disponíveis. Este benefício tem a ver
com o ethos capitalista, daí a ênfase na socialização por meio de valores e disposições de pensamento. Docentes nas áreas de economia, da ciência política e da sociologia e, neste 3 rastro,
em geral, como cópia, da educação, ecoam essas noções advindas de centros do pensamento
conservador nos EUA e Inglaterra.
Igualmente em expansão na universidade, a perspectiva pós-moderna, preocupada com
as opressões, é crítica em relação à agenda neoconservadora, mas não enfrenta a ofensiva do
capital, recontextualizando, de distintos modos, a agenda do novo espírito do capitalismo (flexibilidade, autorregulação e autonomia, individualismo, identidades, antiestatismo, celebração
de uma edulcorada sociedade civil, crítica à história e à própria teoria), sem tornar pensável o
modo de produção capitalista em seus nexos com a educação. A combinação inusitada, pois não
desejada, entre neoliberais e pós-modernos, afasta a teoria da educação das lutas de classes,
combinando capital humano, competências, “oportunidades educacionais”, “escolhas racionais”
com o culturalismo, a identidade e o relativismo epistemológico.
Observando retrospectivamente esse período de hegemonia neoliberal, seja em sua versão
original (Carlos Menem, Argentina; Sanchez de Lousada, Bolívia; Andrés Perez, Venezuela;
Alberto Fujimori, Peru; Salinas de Gortari, México etc.), seja em sua feição social-liberal (com
os chamados governos progressistas na Argentina, Brasil, Chile, Equador, Uruguai), é possível
constatar que a expansão da oferta da escola pública nos países capitalistas dependentes – uma
realidade na educação básica e em certas modalidades de educação profissional – está sendo
acompanhada de drástico esvaziamento de seu conteúdo científico, histórico-cultural, tecnológico e artístico.
Com efeito, o próprio conhecimento foi relexicalizado pela noção de competência, uma
expressão importada da administração que nada tem de científica, conforme aponta Helena Hirata3 . Entretanto, esta noção foi visceralmente incorporada pelos agentes do capital (Todos pela
Educação, Associação Brasileira do Agronegócio/ABAG, Confederação Nacional da Indústria/CNI
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etc.), pelos organismos internacionais (como o Banco Mundial e a OCDE) ao implementar seu
sistema mundial de avaliação padronizada e, ainda, pelo Projeto Tuning de competências mundiais na educação superior de menor complexidade e mercantil.
Na educação básica, este processo vem ocorrendo por meio de uma miríade de iniciativas
articuladas que pretende erodir os últimos fundamentos públicos da educação em prol de uma
escola em que o que é dado a ensinar está limitado a livros didáticos e, cada vez mais, a apostilas elaboradas por corporações que, no lugar de conhecimentos científicos, veicula os referidos
descritores de competências a serem aferidos pelos sistemas centralizados de avaliação que dão
suporte ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB).
Após um período de perda de credibilidade nos governos e na universidade (em especial nos anos de fortalecimento das lutas sociais nos anos 1980), a mudança na correlação de
forças possibilitou que o Banco Mundial afirmasse a supremacia inconteste da TCH, em 1994.
Com apoio da USAID, da Fundação Ford, entre outras, foi constituído um centro de pensamento
reacionário para orientar “corretamente” as reformas educacionais da América Latina: o Programa de Reforma Educativa da América Latina e Caribe (PREALC). O eixo geral do Programa
era a qualidade da educação, um objetivo que os professores e a rede pública teriam fracassado,
justificando o protagonismo de uma edulcorada sociedade civil, a rigor, o empresariado. Em
2001, setores industriais organizaram o Movimento Brasil Competitivo (MBC), liderado por Jorge
Gerdau Johannpeter.
Em conformidade com o MBC, Fernando Henrique Cardoso modificou a formação
profissional com o Decreto 2.208/97, dissociando a formação profissional e a educação geral4
propedêutica. Em aliança com o Banco Mundial criou, inicialmente por meio de planos-piloto no
Nordeste brasileiro, o Fundo de Fortalecimento da Escola/FUNDESCOLA, focando não mais as
redes, mas as unidades escolares, ressignificando os projetos políticos pedagógicos como ‘plano
de gerenciamento escolar’. Os diretores passaram então a ser gestores, o léxico da administração
invadiu a escola: metas, eficiência, qualidade total etc. Coerente com esse novo modelo, instauraram: programas de financiamento dirigidos diretamente a escola como o Programa Dinheiro
Direto na Escola/PDDE, um Sistema de Avaliação Básica referenciado no Programa Internacional
de Avaliação de Alunos/PISA (Sistema de Avaliação da Educação Básica/SAEB) e o FUNDEF,
objetivando focalizar a ação do Estado sem ampliar os recursos. A gestão eficaz, nesse prisma, é
aquela comprometida com os resultados e, por isso, é aquela que tem foco na aprendizagem. A
dimensão ensino vai sendo apagada e, com ela, o trabalho docente.
Já no governo Lula da Silva, em 2006, expressando a liderança do setor financeiro no
bloco no poder e no Estado Maior do Capital, os bancos convocaram uma nova coalizão, mais
ampla e orgânica, para interferir na educação, o já apresentado TPE. Atuando na forma de partido, o movimento reuniu e agregou as iniciativas burguesas na educação até então dispersas,
estabeleceu uma agenda na forma de metas e compromissos de todos pela educação (inicialmente 10 Causas e 26 Compromissos, depois sintetizados) e organizou um robusto aparato de
circulação de suas ideias nos grandes meios de comunicação, situação facilitada pela adesão dos
mesmos ao TPE4 .
Buscando tornar a sua agenda Estado, os bancos, liderados pela holding Itaú-Unibanco, convocaram o Conselho de Secretários de Educação, a União dos Dirigentes Municipais de
Educação e o próprio Ministério da Educação, então liderado por Fernando Haddad, para o TPE,
no que foram prontamente atendidos. Explicitamente, os bancos sustentam um projeto de nação
dita moderna e competitiva.
Uma importante vitória desse movimento foi o convencimento do governo Lula da Silva
de incorporar a sua agenda como política governamental, o que foi efetivado com o Plano de
Desenvolvimento da Educação/PDE (Decreto 6.094/07, Lei 12.695/12, lei 13.005/14) que, não
casualmente, foi batizado por Haddad como “PDE: Compromisso Todos pela Educação”. Uma
importante ferramenta de política educacional foi conquistada pelo empresariado: a criação do
IDEB. Agora, não apenas o sistema de avaliação afere se as escolas estão no “caminho certo”,
como podem impor metas e, com isso, interferir no próprio planejamento das escolas, agora
balizado por índices palpáveis, quantitativos, aferíveis pela avaliação centralizada. As escolas e
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os professores tornaram-se reféns de índices que esvaziam o sentido público da escola, reduzem
o que é dado a pensar (competências em português e matemática, desconsiderando as demais
dimensões da formação humana) aprofundando o apartheid educacional entre as classes sociais.
Como assinalado, a adesão ao plano de Metas é obrigatório para que as escolas sejam cadastradas no módulo do Programa de Ações Articuladas, sem o qual a escola não pode contar com os
programas federais como Escola Ativa (campo), Mais Educação, Programa Nacional de Tecnologia Educacional/ PROINFO e Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil/PROINFANCIA.
A simplificação da formação, na ótica do capital, não é irracional (no sentido apontado
da dita teoria das escolhas racionais). Em virtude do fortalecimento do eixo da economia intensiva em recursos naturais (Gonçalves, 2003) 5 , da concentração monopólica em umas poucas
corporações localizadas em etapas específicas das fracionadas cadeias produtivas (a exemplo
das 5 Montadoras de automóveis), da expansão desenfreada do setor de serviços de baixa complexidade 6 (onde se situa a juventude que compõe o precariato), do imenso exército industrial
de reserva a ser socializado7 , os setores dominantes compreendem que as escolas podem ser
convertidas em um espaço de educação minimalista.
De fato, o padrão de acumulação, na ótica dos setores dominantes, prescinde da formação
com maior complexidade científica e cultural da juventude trabalhadora. A ideia geral é que a
grande maioria dos postos de trabalho é constituída por atividades que requerem modesta escolarização. A educação, focalizando os arranjos produtivos locais (cuja expressão educional mais
relevante é o PRONATEC, sob a direção do Sistema S.) pode ser menos sofisticada (conformando
arranjos educativos locais), assegurando o que a pedagogia hegemônica denomina de competências básicas, vinculadas ao aprender a aprender analisadas por Newton Duarte8 , sem a universalização de conhecimentos científicos explicativos dos processos naturais e da sociedade.
Com efeito, a despeito da elevação relativa da escolaridade da População em Idade
Adulta/PIA (formalmente 7,6 anos, 2013), 90% dos novos empregos formais da última década
são postos de trabalho superexplorados cuja remuneração não ultrapassa 2 salários mínimos9
. Justamente por manter um grau brutal de exploração do trabalho e inclementes expropriações
(como no campo, processo que levou a reconcentração da propriedade fundiária, conforme
observou Gonçalves, 2013, nota 11), o país foi notabilizado como um dos mais notáveis emergentes, cujo produto interno bruto/PIB, impulsionado pelas commodities, chegou a constituir o
oitavo PIB mundial. Assim é o capitalismo dependente no qual coexistem o dito moderno com o
arcaico, como salientou Florestan Fernandes10 .
Esse processo de esvaziamento da formação das crianças e jovens não pode ser pensado
de forma desvinculada da concentração e centralização dos grandes meios de comunicação que
atuam no mesmo sentido da pedagogia da hegemonia11. Além da intensa e densa formação
extraescolar, por meio de novelas, noticiários, programas voltados para a juventude, realities
shows, as corporações atuam de modo sistemático nas escolas, vendendo pacotes tecnológicos,
como a Fundação Roberto Marinho (tele ensino) e livros didáticos (grupo Abril) e, com o ingresso de outras corporações do setor editorial, apostilas (Pearson, Positivo etc.) e equipamentos.
Cabe assinalar que esses suportes tecnológicos estão alicerçados pelas competências e muitas
vezes contribuem para a melhoria do IDEB, justificando, assim, os pacotes nas escolas, realimentando o ciclo vicioso do lucro das corporações com empobrecimento da formação das crianças e jovens da classe trabalhadora. A presença aberta do capital nas escolas é apenas a ponta
do iceberg da ação do capital na educação brasileira12.
De fato, a formação cultural da grande maioria das crianças e jovens brasileiros é quase
que monopólio dos setores dominantes. Esse processo de controle do aparato educativo pelo
capital é tão naturalizado que já não causa constrangimento ao governo Federal (no Plano de
Desenvolvimento da Educação, no Programa de Ações Articuladas, no Plano Nacional de Educação/ Lei 13.005/14 e na defesa da direção do Sistema S, dirigido pelo patronato, sobre o
Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego/PRONATEC, via-de-regra em cursos
de curtíssima duração: 90% de até 150 horas) e aos governos estaduais e municipais (por meio
da assessoria das fundações que operam o referido movimento empresarial, como Airton Senna,
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Bradesco, Itaú-Cultural, Vitor Civita, Roberto Marinho, Santander, Gerdau, entre outros) assumirem que quem tem real legitimidade para falar sobre a educação são as entidades 6 empresariais, congregando as corporações do agronegócio e do setor mineral, os meios de comunicação e
as empresas de telefonia-internet, a indústria editorial, bem como os bancos e as financeiras13 .
Se os setores dominantes tomam de assalto a educação pública – não se limitando ao
seu já amplo aparato educativo privado que alcança mais de 75% dos estudantes da educação
superior – é porque, evidentemente, compreendem que imprimir a direção intelectual e moral é
relevante para a reprodução do capital, especialmente na educação básica, justo onde o Estado
ainda mantém grande parte das matrículas (e, evidentemente, em toda a multifacetada malha de
organizações públicas e privadas de educação profissional).
O interesse das entidades empresariais pela educação deve-se também ao fato de que,
para os movimentos anticapitalistas, a educação é parte da estratégia revolucionária no século
XXI. Embora de modo parcial, molecular, as principais lutas antissistêmicas incorporaram o tema
da educação popular como uma prioridade político-estratégica. Os mais proeminentes movimentos sociais estão tomando para si mesmos as tarefas de formação política de seus militantes e de
educar suas crianças e jovens. As experiências dos zapatistas, com as juntas do bom governo, da
Assembleia dos Povos de Oaxaca (APPO) no México, da CLOC-Via Camponesa, da Coordenação
Nacional dos Povos Indígenas do Equador (CONAIE) e do Movimento dos Sem Terra (MST) no
Brasil estão inscritas nesses processos. Obviamente, essas iniciativas, ainda que fragmentadas,
não passam despercebidas pelo capital.
Para impedir que os trabalhadores façam da educação pública um espaço de educadores
autoorganizados em conselhos, os setores dominantes não hesitaram em reprimir duramente
todas as experiências que pudessem avançar nesse sentido, como é possível depreender da
cassação de Paulo Freire em 1964, no Brasil, mas também no combate a Camilo Torres Restreppo, na Colômbia, em 1966, entre tantos outros milhares de militantes. Nos tempos atuais, em
que a repressão não é aberta (o que não quer dizer, inexistente, como é possível deduzir das
perseguições às Escolas Itinerantes no Rio Grande do Sul, na gestão Yedda Crucius), os setores
dominantes têm operado no sentido da redução do espaço de autonomia real do aparato escolar
através (i) de um enorme aparato de avaliação (da alfabetização à pós-graduação); (ii) do estabelecimento de metas de desempenho obrigatórias, como no cadastro do Programa de Ações
Articuladas/PAR, o mais amplo programa de apoio Federal às escolas do ensino fundamental,
que exige que o secretário de educação faça a adesão de seu município às metas do Todos pela
Educação), e (iii) da imposição de materiais pedagógicos (diversos municípios têm comprado
pacotes educacionais que se tornam obrigatórios) objetivando converter a educação em uma
ferramenta de produção do ‘consenso sem consentimento’.
O exame apurado e sistemático das principais iniciativas educacionais em curso no Brasil
de hoje, como as sistematizadas no Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/14), permite afirmar
que a meta dos setores dominantes é educar a massa de crianças e jovens para um conformismo
(que nada tem de estático) com a situação social vigente que pode e deve mudar para que tudo
fique como está, lembrando a famosa expressão do escritor italiano Tomasi di Lampedusa (18961954) em “O Leopardo”, seu célebre livro sobre a unificação italiana (1815-1870): “para que as
coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”. 7
2. A classe trabalhadora toma a tarefa educacional em suas mãos
Para compreender o sentido dos embates de classes no terreno da educação, é preciso
destacar um aspecto já apontado anteriormente: não são apenas os setores dominantes que concebem a direção ‘intelectual e moral’ da educação como uma tarefa da própria classe. Desde a
segunda metade do Século XIX a educação compõe a pauta das lutas da classe trabalhadora. Nas
principais manifestações de Marx e Engels sobre a estratégia socialista a temática educacional
sempre esteve presente. Podemos encontrar reflexões dos fundadores do materialismo histórico
sobre a educação no Manifesto do Partido Comunista (1848), no Discurso Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), redigido por Marx (1864), nos escritos de Marx
sobre a Comuna de Paris (30 de maio de 1871), e na Crítica ao Programa de Gotha (Comentários
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Marginais ao Programa do Partido Operário Alemão, 1875). Nos debates na AIT, Marx chama
atenção para o fato de que a classe operária tinha um elemento de triunfo, o seu número, mas
que o número não pesaria na balança “se não estiver unido pela associação e pelo saber”.
É justamente a preocupação com a “constituição da massa em classe” que motivará Marx
e Engels a inserirem a problemática da educação da classe trabalhadora em seus escritos políticos. Os fundadores do marxismo pensam a educação da classe trabalhadora não como algo
idealizado, em moldes do dever ser, utopia passível de ser realizada somente com a conquista
do socialismo. Os textos não deixam margem a dúvidas de que a educação é um desafio dos
trabalhadores ainda no capitalismo. Ao se referir à educação do futuro Marx, n’O Capital, afirma
que seus germes devem nascer ainda no capitalismo, na forma da educação integral.
Também no debate da estratégia para o socialismo em Lenin e Krupskaya podemos encontrar as mesmas preocupações. Nas experiências revolucionárias, a exemplo da Comuna de Paris
(1871)14 e da Revolução Russa (1917), a educação sempre foi um tema importante para o avanço
do socialismo pois relacionada com a formação das mulheres e dos homens de modo integral,
objetivando a superação entre os que pensam e os que executam, os que mandam e os que
obedecem.
Na América Latina, Aníbal Norberto Ponce (1898-1938)15 escreveu um livro pioneiro sobre
o tema: “Educação e luta de classes” 16, livro que foi fruto de seu engajamento nas lutas em prol
da reforma universitária em Córdoba (1918). O intelectual cubano Júlio Mella sustentava que a
educação emancipatória dependeria da luta contra o imperialismo e, mais amplamente, contra o capitalismo; por isso, sua consideração de que a educação seria parte da luta de classes,
tendo que compor a estratégia política dos trabalhadores. Nos autores latino-americanos, em
especial, em Mariátegui, em texto de 1928, a teoria não poderia ser “nem decalque, nem cópia,
mas criação heroica”, tendo que ser original, crítica ao eurocentrismo, aberta ao diálogo com os
camponeses e indígenas, distinta do marxismo vulgar que os concebia (camponeses e indígenas)
como subordinados a um idealizado operariado. Mariátegui argumenta que, na América Latina,
o trabalhador assalariado possuía características particulares em relação aos seus homólogos
europeus.
No caso brasileiro, o exemplo mais importante de organização vinculada aos trabalhadores que tem compreendido a tarefa de que é necessário tomar a educação como parte da
estratégia de luta da classe é o MST, como é possível depreender das motivações que justificaram a criação da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF)17, bem como pelas lutas em prol
da educação 8 básica nos assentamentos e pelos cursos de graduação em universidades públicas
propostos pelo MST18, lutas que foram sistematizadas na pedagogia do movimento e na proposta de educação do campo19 .
Todos esses escritos e experiências corroboram um conceito de educação pública que
precisa ser diferenciado de seu sentido liberal e burguês. Distintamente dos liberais e de grande
parte da esquerda de sua época, em especial na formulação de Ferdinand Lassalle, Marx compreende que os trabalhadores não devem confiar ao Estado a educação das suas crianças e
jovens. Na Crítica ao Programa de Gotha, criticando Lassalle, Marx afirma que conceber o Estado
como educador é o mesmo que atribuir aos setores dominantes a educação dos trabalhadores.
Marx trabalha aqui uma tensão fundamental: a escola deve ser pública, mantida às expensas
do Estado, mas a educação deve ser confiada aos educadores e aos conselhos populares, como
ocorrera na Comuna de Paris (certamente, a experiência que influenciou o texto de Marx), assegurando a autonomia dos educadores frente ao Estado particularista.
Outro elemento da crítica à educação liberal-burguesa que somente pode ser realizada
com a emergência do movimento pelo socialismo é a constatação de que a educação no capitalismo é inevitavelmente unilateral, pois tem como pressuposto a divisão social do trabalho que
opõe o trabalho intelectual ao trabalho simples. Ao discutir o trabalho simples é preciso lembrar que este conceito é histórico, tendo seu conteúdo alterado pelo grau do desenvolvimento
tecnológico da produção; assim, hodiernamente, um operador de telemarketing, por exemplo,
embora utilize tecnologias avançadas, desempenha trabalho simples, conforme apontam Ricardo
Antunes e Ruy Braga em seu “Infoproletariados - degradação real do trabalho virtual” (Boitempo,
18|
2009); o mesmo pode acontecer com um cientista: cada vez é mais comum que o seu labor esteja inserido em processos alienados de trabalho, cindidos em etapas que impossibilitam a compreensão de sua totalidade, conforme aponta Ernest Mandel, em “Os estudantes, os intelectuais
e as lutas de classes” (Lisboa: Edições Antídoto, 1979).
Não pode causar surpresa, portanto, que somente os socialistas podem lutar plenamente
para que a educação dos trabalhadores possa abranger o conjunto da existência e das potencialidades humanas: científica, artística, tecnológica, histórico-cultural, filosófica, assegurando a
todos os que têm um rosto humano a condição de intelectual e dirigente, como queriam os communards da Comuna de Paris. José Carlos Mariátegui20 sustenta, corretamente, que somente
os socialistas podem defender a escola unitária. Mariátegui contribuiu de modo decisivo para a
perspectiva de que a educação pública de fato universalista está necessariamente em confronto com o falso universalismo liberal, em especial problematizando e enfrentando: o racismo; o
apagamento da cosmovisão dos povos originários; a ressignificação do trabalhador do campo
como operariado urbano-industrial, e o sexismo que incide sobre as mulheres. Nesse prisma, o
universalismo não pode estar desvinculado da luta em prol de um padrão unitário de qualidade
(o cerne da educação socialista, conforme Amauta Mariátegui). São essas iniciativas que podem
abrir brechas para a educação omnilateral dos sujeitos que vivem do próprio trabalho e são explorados e que, por isso, são considerados interlocutores centrais do presente artigo.
Embora já discutido no presente artigo é importante reiterar o caráter relacional das
classes sociais: as experiências revolucionárias nos séculos XIX e XX, associando educação e
socialismo, levaram a burguesia a politizar sua intervenção na esfera educacional. De modo
deliberado e consciente, a burguesia construiu uma hegemonia sobre o conjunto da educação
pública, objetivando, com isso, a conformação de um “certo tipo” de educação para a massa da
9 classe trabalhadora mundial: a educação unilateral que forma recursos humanos para o capital.
Paulatinamente, a educação pragmática e utilitarista da classe trabalhadora passou a ser internalizada como a única educação possível, sendo assimilada até mesmo por sindicatos e movimentos que, nos períodos de maior densidade de lutas no século XX, combateram esse modelo
educacional referenciado na dita teoria do capital humano. O exame da pauta dos maiores
sindicatos no Brasil (metalúrgicos, bancários etc.) confirma a crescente adesão dos mesmos ao
ideário educacional burguês (Boito Jr., 1999 e Tumolo, 2002)21 conformando um vasto processo
transformista22 . Retomar a Gramsci, nessa perspectiva, é decisivo para que o debate estratégico possa ser adensado na realidade brasileira, em que os aparelhos privados de hegemonia do
capital ganharam complexidade jamais vista no país.
2.1 Gramsci, educação e hegemonia
A formação da consciência de classe não é espontânea e tampouco é possível sem rupturas com
as ideologias dominantes. Isso não quer dizer que a consciência seja externa aos trabalhadores,
algo a ser inculcado pelos intelectuais. Afirmar que a consciência não é espontânea é também
uma forma de criticar a tese economicista de que as lutas econômicas, em si mesmas, permitem
alcançar o momento ético-político. Gramsci rejeitou veementemente essas crenças e, antes dele,
Lênin igualmente as combateu. A formação política demanda um ambiente político que propicie
a difusão da cultura proletária, em especial do marxismo, em sindicatos classistas e autônomos,
partidos operários e movimentos sociais antissistêmicos.
A formação requer, e isso é condição imprescindível, o protagonismo em lutas que se
afirmem como classistas em oposição clara aos capitalistas.
A verdadeira educação das massas jamais poderá separar-se de uma luta política independente e, sobretudo da luta revolucionária das massas mesmo. Só a ação educa a classe explorada, só ela lhe dá a medida das suas forças, amplia seu horizonte, desenvolve suas capacidades,
ilumina sua inteligência e tempera sua vontade23 .
O desafio maior, conforme Gramsci, é tornar os trabalhadores até então envolvidos, sobretudo
em lutas econômicas, intelectuais políticos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as atividades e funções inerentes ao desenvolvimento orgânico de uma sociedade integral, civil e política.
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Por ser um processo que pretende romper com o economicismo e com as concepções
liberais e burguesas a formação política requer espaços próprios, auto-organizados pela classe
que vive do próprio trabalho e é explorada, e um tipo específico de relação entre educadores e
educandos. É uma relação que não pode estar limitada apenas ao ambiente e às questões “escolares”, abrangendo a sociedade em seu conjunto. É, portanto, enorme a responsabilidade dos
intelectuais e dos dirigentes do movimento dos trabalhadores na elaboração e na socialização da
cultura produzida pelos trabalhadores nas lutas e nas práticas sociais que objetivam organizar
a classe. Se não houver vínculos entre o espaço da formação e os movimentos reais, concretos,
que efetivamente fazem as lutas, a tendência é a formação dogmática como se fosse um clube
literário de burgueses desocupados e diletantes. Nas palavras de Gramsci:10
Somos uma organização de lutas e em nossas fileiras se estuda para aumentar e afinar as
capacidades de luta de cada indivíduo e de toda a organização, para compreender melhor quais
são as posições do inimigo e as nossas, para poder adequar melhor a elas nossa ação de cada
dia. Estudo e cultura não são para nós outra coisa que consciência teórica de nossos fins imediatos e supremos, e do modo como poderemos levá-los à prática24 .
No que se refere à relação educador–educando Gramsci nos oferece reflexões importantes
ao sustentar que essa relação tem de ser ativa e baseada em relações recíprocas, em que todo
professor segue sendo um aluno e todo aluno é um professor. O elemento popular “sente”,
entretanto nem sempre compreende e sabe; o elemento intelectual “sabe”, porém nem sempre
compreende e especialmente sente. O erro do intelectual consiste em crer que se pode saber
sem compreender e especialmente sem sentir e ser apaixonado. Toda relação de hegemonia é
necessariamente uma relação pedagógica e se verifica nas forças que compõem a nação (as lutas
de classes no âmbito nacional) e as relações de forças em nível internacional.
Ao se indagar sobre o porquê da universidade popular25 em Turin (1916-17) ser um organismo frio, incapaz de formar um público e que, a rigor, não é nem universidade nem popular,
Gramsci reconhece que os problemas organizativos pesam negativamente, mas seus problemas
são mais profundos. Certamente uma melhor organização dos programas, ofertando melhores
cursos preparados com mais esmero e com focos de interesses que tenham vida, é imprescindível. Mas o problema de fundo é de natureza pedagógica, pedagógica aqui no sentido de
forma da construção da hegemonia. Em Turin, afirma Gramsci, seus dirigentes são uns diletantes
em termos de organização cultural. O que os move, segue o autor, é um pálido espírito de benemerência, mas não a vontade genuína, viva e fecunda de contribuir para a elevação espiritual de
massa popular através do ensino. São ofertados cursos que não deixam rastro, não serão seguidos de uma vida nova, de uma vida diversa.
O público das universidades populares é constituído por trabalhadoras e trabalhadores
que não puderam seguir os estudos regulares nas instituições de ensino e, por isso, cabe aos
educadores da universidade popular encontrar melhores métodos para fazer com que os trabalhadores possam se familiarizar com os conhecimentos considerados estratégicos.
Em geral, os dirigentes da universidade popular copiam os métodos das instituições
de ensino tradicionais, piorando-os. Não compreendem que os estudantes das universidades
públicas vivenciaram processos educativos por muitos anos que, se de um lado, facilitaram a
apreensão dos conteúdos mais abstratos e conceituais, de outro, já domaram muito da inquietação intelectual dos jovens, tornando muitos desses conhecimentos dogmas e verdades absolutas. Isso não acontece com o conjunto dos militantes que busca a universidade popular: por
serem protagonistas das lutas muitos são vivamente inquietos, indagam o real, querem respostas sobre os problemas estratégicos, sobre as dificuldades das conjunturas, sobre as formas de
organizar as lutas etc. Ao reproduzirem os métodos tradicionais fazem da universidade popular
uma instituição teológica, jesuítica, em que verdades eternas e absolutas são difundidas. Neste
grau, segue Gramsci, isso não acontece nem nas universidades públicas.
Para o público e os fins da universidade popular é muito mais fecunda uma abordagem
histórica dos problemas, recuperando a série de esforços, erros e vitórias através dos quais os
homens têm passado para alcançar o atual conhecimento. Ao discutir os temas historicamente,
com seus erros e aproximações, contextualizando as questões que impulsionaram os problemas
20|
11 científicos, é possível transformar o ensino em um ato de libertação frente às coerções do
capital. Esta forma de relação pedagógica contribui para impedir a arrogância intelectual dos que
se julgam portadores da única forma correta de interpretar o que parecem textos sagrados. Essa
forma de pensar e fazer a universidade popular se assemelha muito mais à dos círculos literários
deturpando o sentido crítico das obras do materialismo histórico.
Essa forma jesuítica de pensar a relação entre os supostos intelectuais e os militantes
nos remete a outra importante contribuição gramsciana: sua compreensão sobre os intelectuais.
No senso comum, intelectuais são aqueles indivíduos “cultos” que atuam nas universidades, os
literatos, os jornalistas de prestígio, o alto clero da Igreja, os grandes juristas etc., como se estes
fossem um grupo social independente e autônomo. A compreensão de Gramsci é distinta. Para
tornar pensável a questão dos intelectuais, Gramsci considera imperativa a análise dos nexos
entre o Estado e a sociedade civil. O Estado não é exclusivamente a sociedade política, mas a
hegemonia de um grupo social sobre toda a sociedade nacional, exercida através das organizações denominadas privadas, como a Igreja, os sindicatos, as escolas etc. E é justo no terreno
da sociedade civil que operam os intelectuais do capitalismo tardio. 26
O ponto central da questão é a distinção entre os intelectuais como categoria orgânica de
todo grupo social fundamental, de um lado e, de outro, os intelectuais como categoria tradicional. O problema de fundo para o debate sobre a formação da consciência é compreender quem
são os intelectuais orgânicos que organizam mais amplamente a hegemonia. A este respeito,
Gramsci propõe que cada grupo social, ao nascer sobre o terreno originário de uma função
essencial no mundo da produção econômica, cria, organicamente, uma ou várias camadas
de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função não só no campo
econômico, senão também no social e político.
No capitalismo maduro o empresário capitalista ocupa um lugar central entre os intelectuais, significando uma elaboração social superior, caracterizada por certa capacidade dirigente
e técnica e, portanto, intelectual. Em suas práticas organizativas, cria o técnico industrial, o
cientista da economia política, uma nova cultura, um novo direito etc., capaz de mover a massa
de homens de modo congruente com o capitalismo. Os altos empresários que fazem parte do
coração do bloco histórico, por sua vez, devem possuir a capacidade de organização da sociedade em geral, desde os serviços até o aparato estatal, objetivando a expansão da própria classe
e, para isso, como sublinhado, organizam várias camadas de intelectuais subalternas para operarem a governabilidade.
Cada grupo social “essencial” ao se afirmar historicamente a partir da precedente estrutura econômica, e como expressão de seu desenvolvimento, tem encontrado categorias intelectuais preexistentes e que aparecem aos olhos guiados pelo senso comum como representantes
de uma continuidade histórica ininterrupta e que sobreviveram às mais complicadas e radicais
transformações econômicas e políticas, como os eclesiásticos, os filósofos e os literatos, os periodistas de prestígio etc. Estes intelectuais tradicionais, embora se vejam como independentes,
estão, a rigor, sob a direção intelectual e moral dos senhores do capital e, por isso, nada têm de
autônomos. Pouquíssimos destes se associam aos intelectuais orgânicos da classe trabalhadora. Em virtude das contradições e das lutas nas fábricas e em outros espaços do capital, é mais
comum a migração de parte dos “intelectuais de novo tipo” (os técnicos especializados) para o
campo dos trabalhadores do que o deslocamento dos intelectuais tradicionais para as trincheiras
dos que lutam contra o capital.12
O novo intelectual que Gramsci pretendia formar com o semanário Ordine Nuovo não
pode ser caracterizado pela eloquência da oratória capaz de tocar seus interlocutores com base
no afeto e nas emoções, mas tem a capacidade de se imiscuir ativamente na vida prática, como
construtor, organizador, persuasor permanente. Para tanto, deve ser capaz de interagir no mundo
do trabalho com base na técnica-ciência e na concepção humanístico-histórica sem a qual permaneceria um especialista sem passar a dirigente, isto é, especialista + político.
Não é possível compreender o papel dos intelectuais na obra de Gramsci sem precisar
que, para o autor dos “Cadernos”, “todos os homens são intelectuais, embora nem todos os
homens têm na sociedade a função de intelectuais”. Essa proposição é o que justifica a relação
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pedagógica entre os trabalhadores e os professores como uma relação dialética. Gramsci especifica que:
“Todo ser humano desenvolve fora de sua profissão alguma atividade intelectual e,
por isso, é um ‘filósofo’, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção de mundo, tem uma linha consciente de conduta moral, contribui para sustentar e modificar uma concepção de mundo, suscitando novos modos de pensar.27”
3. A disputa pela função social da educação no Brasil: sindicatos e movimentos em luta
As cronologias dos conflitos sociais do Observatório Social da América Latina (OSAL) do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO)28, lamentavelmente encerradas pelo
CLACSO, vêm indicando mudanças profundas nas lutas em defesa da educação pública latino-americana que ainda não foram avaliadas com o rigor e o alcance necessários. De fato, desde
1998, todas as sínteses do estado das lutas sociais na Região comprovam que os educadores e a
juventude estão entre os setores mais destacados das lutas sociais em curso.
Desde os anos 1990, os sindicatos autônomos que representam os trabalhadores da educação irromperam a cena política de forma impetuosa, com métodos próprios das lutas da classe
trabalhadora, muitas vezes em conjunto com os estudantes, afirmando que a defesa da educação
pública não estava circunscrita aos espaços institucionais, estando nas ruas, nas escolas e nas
universidades, em situações abertamente conflituosas, fora dos marcos impostos pelos neoliberais que reduziram a problemática da educação ao gerenciamento, à eficiência e à eficácia. Também as lutas estudantis foram marcantes. Merecem destaques a greve da Universidad Nacional
Autónoma de México/UNAM (México, 1998), as lutas dos estudantes colombianos e dos países
centro-americanos contra os tratados de livre comércio, as ocupações de reitorias pelos estudantes brasileiros contra o modelo dos community colleges nas universidades públicas, a revolta
dos pinguins, o massivo e original movimento estudantil chileno contra a lei geral da educação
pinochetista mantida pelos governos da “concertación” e, em 2009-10, a resistência estudantil
contra o golpe militar em Honduras.
Muitas dessas lutas pela educação contaram com a participação ativa de movimentos
sociais antissistêmicos – em geral, camponeses, indígenas e marchas multitudinárias. Examinando mais de perto a questão é possível afirmar que a problemática da formação política e da
educação em particular vem sendo assumida como parte da estratégia política dos movimentos
anticapitalistas29 . 13
Raúl Zibechi 30 caracteriza as principais tendências dos movimentos sociais que emergiram do cataclisma neoliberal que transtorna a América Latina desde os anos 1980. Em sua
ótica, os movimentos assumem feição distinta tanto do “velho sindicalismo”, como dos movimentos europeus, sendo um amálgama de linhagens como “os movimentos eclesiais de base, a
insurgência indígena portadora de uma cosmovisão distinta da ocidental e o guevarismo inspirador da militância revolucionária”. São traços marcantes desses movimentos: a sua territorialidade; a autonomia frente aos governos e partidos; a revalorização da cultura e a afirmação da
identidade de seus povos e setores sociais, inclusive fortalecendo a participação das mulheres; e,
em consonância com a autonomia, a capacidade de formação de seus próprios intelectuais.
No Brasil, existem particularidades a serem consideradas. O balanço da política educacional da ditadura empresarial-militar e a construção de proposições alternativas a essas políticas
foram realizados no âmbito da Conferência Brasileira de Educação (CBE), em 1986, constituída
basicamente por entidades acadêmicas da área de educação, por professores e estudantes. Neste
espaço, foi constituída uma agenda heterogênea, composta de proposições liberais republicanas
e por proposições em que a agenda republicana estava mesclada por teses socialistas, como o
debate sobre a escola unitária e o trabalho como princípio pedagógico.
Contudo, o primeiro salto qualitativo somente ocorreu cerca de dez anos depois com
o Congresso Nacional de Educação (CONED). Florestan Fernandes, que infelizmente faleceu
antes do I CONED, via nessa construção a possibilidade de um “novo ponto de partida” capaz
de agregar os trabalhadores da educação (já assim compreendidos) e as demais frações das
22|
classes trabalhadoras. Esse viés afastou entidades acadêmicas como a Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação/ANPEd cuja diretoria, em 1996, chegou a cogitar renunciar se a Assembleia Geral da entidade aprovasse a sua participação no CONED. A convocatória
do Congresso foi realizada principalmente pelas entidades sindicais que, na época, estavam
filiadas à Central Única dos Trabalhadores/CUT, notadamente Sindicato Nacional dos Docentes
das Instituições de Ensino Superior/Andes-SN, Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação/CNTE, Federação de Sindicatos de Trabalhadores TécnicoAdministrativo em Instituições
de Ensino Superior Públicas do Brasil/ FASUBRA e Sindicato Nacional dos Servidores Federais
da Educação Básica, Profissional e Tecnológica/SINASEFE, sindicatos que realmente protagonizaram as maiores lutas e enfrentamentos às medidas de Fernando Henrique Cardoso. Entretanto, o CONED não se converteu em um congresso do conjunto da classe trabalhadora engajada na luta pela educação pública. Entre os principais limites: a persistência de muitos parâmetros
liberais-democráticos no FNDEP; a concepção econômico-corporativa da maior parte das
entidades sindicais; o débil protagonismo da CUT no processo (cuja direção majoritária estava
contra a criação de um Departamento Nacional dos Trabalhadores da Educação horizontalizado
e organizado para possibilitar unidade de ação das entidades da educação e das demais categorias) e, também, o relativo afastamento dos sindicatos da educação de movimentos sociais como
o MST, e mesmo de sindicatos de outras categorias.
Isso não significa, contudo, que o Plano Nacional de Educação aprovado no II CONED
(1997) não tenha logrado importantes avanços. A participação da base nos encontros foi muito
significativa, cerca de cinco mil participantes em cada um dos congressos e, afinal, as proposições aprovadas estavam em aberta oposição à agenda neoliberal que se intensificara com 14
Fernando Henrique Cardoso. Por isso, grande parte da esquerda educacional apoiou e se engajou
no CONED.
É preciso salientar que mesmo esses avanços foram estilhaçados a partir da posse do governo Lula da Silva, em 2003. Ao encaminhar uma agenda educacional em grande parte antagônica ao PNE – Proposta da Sociedade Brasileira (CONED) –, os conflitos dos educadores com o
governo Lula da Silva não tardaram a tensionar os sindicatos que permaneceram na CUT. Em
função de distintas perspectivas de autonomia frente ao governo as forças majoritárias da CNTE,
União Nacional dos Estudantes/UNE e Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino/Contee declararam, em janeiro de 2005, por ocasião do Fórum Social Mundial,
que não tinham mais consenso em relação à pauta do Fórum Nacional em Defesa da Educação
Pública e, por isso, na prática, esse Fórum deixou de funcionar como espaço aglutinador das lutas educacionais. No fulcro da discórdia o conflito entre as agendas dos sindicatos autônomos e
as políticas do governo Lula da Silva, em especial: Programa Universidade para Todos/PROUNI,
Lei de Inovação Tecnológica, Exame Nacional de Desempenho de Estudantes/ENADE, Educação
a Distância e inúmeros projetos de lei contrários ao PNE: Proposta da Sociedade Brasileira.
Embora em um contexto mais desfavorável em virtude do menor protagonismo dos
trabalhadores em geral, se comparado aos anos 1980, foram possíveis algumas aproximações
relevantes a partir de meados da presente década. É perceptível a aproximação de lutas universitárias com o MST, muitas vezes por meio de espaços de formação nas universidades e na Escola
Nacional Florestan Fernandes.
Nesse contexto foi possível encaminhar a Jornada Nacional de Lutas pela Educação (20 a
24 de agosto de 2007) que reuniu uma vasta gama de entidades31. É preciso registrar que essa
construção, por envolver as direções majoritárias da UNE e de outras entidades que se colocam
na base de apoio do governo, foi marcada por tensões, sobretudo em relação aos termos da
agenda de 18 pontos e à imagem pública da luta: de enfrentamento ao governo federal ou de
defesa “genérica” da educação pública. Em virtude desse equilíbrio precário a Campanha acabou
perdendo força organizativa, tornando-se um evento que não assumiu a dimensão de um movimento classista pela educação pública. Apesar de seus limites a Jornada foi a iniciativa que mais
aproximou as lutas brasileiras das demais lutas latino-americanas, pois reuniu, em um mesmo
espaço, os movimentos da educação e os movimentos antissistêmicos como o MST e outros.
Não surpreende que, a despeito do caráter incipiente dessa jornada, as principais enti-
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dades que vêm protagonizando as lutas contra a ofensiva pró-sistêmica do governo federal e das
entidades empresariais sobre a educação pública estejam sofrendo forte ataque dos aliados governamentais. Entre estas entidades as mais diretamente combatidas são o MST e o Andes-SN,
ambas concebidas como movimentos a serem criminalizados por sua ação política.
O MST, além de forte estrangulamento financeiro, foi alvo de intensa campanha difamatória pela grande imprensa, liderada pela revista Veja, que elegeu as atividades educacionais
do movimento como um dos principais alvos. As acusações sustentaram que a educação das
crianças nas escolas itinerantes e, mais amplamente, de seus militantes, na Escola Nacional Florestan Fernandes, objetivava formar revolucionários extremistas, em tudo semelhante à caracterização dos terroristas por Bush. Em 2008, Procuradores do estado do Rio Grande do Sul denunciaram o MST como entidade criminosa e terrorista defendendo que o 15 movimento deveria ser
colocado na ilegalidade. A partir desse posicionamento, o governo do estado do Rio Grande do
Sul descredenciou todas as escolas itinerantes do estado, buscando inviabilizá-las. Posteriormente, a bancada ruralista no Congresso Nacional viabilizou a terceira Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito para investigar o MST, objetivando torná-lo uma entidade proscrita.
O Andes-SN, por sua vez, também foi sistematicamente atacado por combater a conversão da educação superior em educação terciária e denunciar as parcerias do governo com o
setor empresarial-mercantil que lidera a educação superior brasileira e, notadamente, por seu
engajamento na reconstrução de um polo de lutas classista, após a decisão congressual de desfiliação da CUT. Inicialmente, as ações governamentais objetivaram colocá-lo em uma situação
de ilegalidade, por meio da suspensão de seu registro sindical, medida parcialmente removida
após intensa mobilização política da entidade e de entidades solidárias. Ademais, por meio da
CUT, o governo vem incentivando abertamente a criação de uma entidade para-oficial com o fim
de ocupar o lugar do Andes-SN como representação dos docentes das instituições de ensino
superior brasileiras. Em todas as mesas de interlocução com o Ministério da Educação e com o
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão a entidade para-oficial é convocada em detrimento do Andes-SN, apesar dos dirigentes da referida entidade oficialista terem sido sistematicamente derrotados nas urnas. Em suma, também nos embates pela educação é possível verificar a
criminalização das lutas sociais.
A experiência das ofensivas do capital, evidente nas lutas pelo PNE, em que entidades
corporativas patronais, como a CNI e Confederação Nacional de Agricultura (CNA), coalizões
empresariais, como o Todos pela Educação, fundações estrangeiras vinculadas ao grande capital
rentista, como a Open Society Foundations liderada por George Soros, atuaram de modo intenso, possibilitando a visceral incorporação da agenda do Todos pela Educação e da CNI nas
políticas educacionais vigentes no país permitem concluir que os setores dominantes atuaram
organizados como ‘classe para si’ no terreno educacional. De outro lado, embora as lutas educacionais protagonizadas pelos trabalhadores sejam muito importantes, é forçoso reconhecer que
não estão organizadas como lutas unificadas do conjunto polissêmico da classe trabalhadora.
De fato, as greves da educação básica que eclodiram de modo intenso a partir de 2011 em
todos os estados e nos principais municípios; a grande greve das universidades e dos Institutos
Federais de Tecnologia, em 2012; as lutas estudantis e, notadamente, o clamor da juventude
que foi às ruas para afirmar que “educação não é mercadoria”, nas Jornadas de Junho de 2013,
carecem da força da unidade de ação da classe. Essa avaliação levou um conjunto de entidades a
sustentar como necessário um novo ponto de partida para as lutas em defesa da educação pública que superasse as iniciativas anteriores, como o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública.
A avaliação compartilhada era de que seria necessário ampliar o escopo das lutas, incluindo
outras organizações da classe trabalhadora, possibilitando unidade de ação e a construção de
uma agenda socialista para a educação pública: esses são os objetivos do Encontro Nacional de
Educação. Encontro Nacional de Educação: um novo ponto de partida para as lutas educacionais
Após a realização de mais de uma dezena de encontros regionais o Encontro Nacional de
Educação/ENE foi realizado no Rio de Janeiro, nos dias 8, 9 e 10 de agosto de 2014, reunindo
16 aproximadamente 2,3 mil participantes, provenientes de todo o país, agregando entidades
nacionais e internacionais, como a União Nacional dos Educadores do Equador, SUD Éducation
24|
– Solidaires (França), a Rede em Defesa da Educação Pública das Américas (México) e o Sindicato dos Educadores da Cisjordânia.
Em função da importância do ENE para tornar pensável a luta de classes na educação brasileira atual, reproduzo a seguir os principais excertos de um artigo de minha autoria publicado
no “Correio da Cidadania” com um primeiro balanço do Encontro32 .
Cabe observar que a convocatória partiu dos movimentos e organizações que já vinham
construindo unidade de ação, embora localizadas, nas grandes greves magisteriais da presente
década.
Estudantes de diversos movimentos, em especial da ANEL e da esquerda da UNE, professores e técnicos administrativos da educação básica (SEPE e diversos representantes de sindicatos e oposições de sindicatos da educação básica), da rede de educação Técnico e Tecnológica
(SINASEFE) e superior (ANDES-SN e representantes da FASUBRA), movimentos sociais (MTST)
(que realizou saudação na Marcha do dia 8/8), centrais (em especial a CSP-Conlutas e, com
menor presença, a Intersindical), partidos de esquerda (PSOL, PSTU, PCR, PCB), todos atuaram
na convocatória para o Encontro motivados por um objetivo comum: construir as bases para
consolidar a existência de um espaço comum de todos os que lutam pela educação pública,
objetivando garantir unidade de ação para unificar greves, jornadas de lutas, diagnósticos sobre
a situação da educação, iniciativas editoriais e de organização de uma agenda que expresse os
fundamentos da educação pública na perspectiva da classe trabalhadora, objetivando assegurar
um real universalismo no direito à educação.
No que se refere à educação foi o maior encontro desde os Congressos Nacionais de
Educação, realizados entre 1996 e 2005. O Encontro teve representatividade relevante, em especial em decorrência do fato de ter sido realizado poucos meses antes de uma eleição de grande
envergadura (em outubro de 2014) que definiria a composição do parlamento, dos governos
estaduais e da presidência da república (período em que muitos militantes estão empenhados no
fortalecimento de seus coletivos no processo eleitoral). Entretanto, é necessário reconhecer que
muitas outras organizações e movimentos poderiam ter sido convidadas a compor esse movimento, a exemplo do MST.
O ENE logrou debater pontos axiais das lutas do presente:
Em grupos de trabalho, os participantes debateram os grandes temas estruturantes do
futuro da educação pública, como: financiamento, privatização e mercantilização, assistência
estudantil/ passe livre, precarização do trabalho, avaliações produtivistas, acesso e permanência,
buscando sínteses e consensos nas análises.
O Encontro não perdeu de vista a necessidade de enfrentar os setores dominantes entrincheirados na sociedade civil:
Por meio de coalizões entre as frações burguesas dominantes, como o ‘Todos pela Educação’, no Brasil, e ‘Mexicanos, Primeiro’, no México, os respectivos blocos no poder buscam
reconfigurar a educação básica e profissional de modo a garantir uma socialização das crianças e
jovens compatível com o espírito do capitalismo (...).17
E, sobretudo, que, no caso brasileiro, é preciso enfrentar o modo como a agenda do capital “se faz Estado”, incorporando na legislação educacional do país, como se fossem públicas, as
proposições do capital para a educação:
(i) os eixos gerais do Todos pela Educação (avaliações produtivistas, estabelecimento
de metas, expropriação do trabalho docente, financiamento a partir do número de indivíduos,
associado ao desempenho das escolas); (ii) as demandas particulares das entidades que o constitui, como a CNI (Senai), a CNC (Senac) e a CNA (SNAR), respectivamente pelo PRONATEC e
PRONACAMPO e, (iii) no que se refere à educação superior, incorpora integralmente as reivindicações do setor privado-mercantil, ampliando e institucionalizando as isenções tributárias para
as corporações com fins lucrativos (ProUni), subsidiando a compra de vagas na graduação e na
pós-graduação brasileira (FIES) e, no plano internacional, adquirindo vagas temporárias em instituições de ensino superior estrangeiras, também com verbas públicas (Ciência Sem Fronteiras).
| 25
O ENE destacou a aprovação do PNE (Lei 13.005/2014), colocando em relevo os seus
principais problemas:
Não apenas a meta dos 10% do PIB para a educação foi remetida para longos 10 anos,
para 2024, como, desastrosamente, o Art.5, §4 da referida Lei possibilita contabilizar como se
fosse público os gastos com as corporações internacionais, os bancos e os fundos de investimentos que vendem educação técnica e superior no Brasil e no exterior (Ciência Sem Fronteiras),
assim como os gastos com bolsas para o setor privado, as isenções tributárias e toda sorte de
parcerias público-privadas, o novo léxico da privatização em curso. Com o novo PNE, está aberto
o caminho para a reconfiguração da educação pública por meio da conversão das escolas públicas estatais em escolas charter, financiadas com verbas públicas, mas administradas e dirigidas
pedagogicamente por grupos econômicos, assim como para a generalização dos vouchers, tal
como no Chile, no período Pinochet, nos termos dos modelos elaborados pela Escola de Chicago: as famílias recebem o cheque (voucher) e escolhem “livremente” o tipo de escola em que
seus filhos irão estudar. Os mais pobres, terão de se contentar com escolas que somente vivem
dos referidos vouchers, os que possuem melhor condição econômica poderão “escolher” complementar o valor dos seus cheques e matricular seus filhos nas escolas privadas. Não resta dúvida de que a agenda do Todos pela Educação e, por isso, a agenda do próprio governo Federal,
com o PNE, caminha nessa direção.
Considerando a nova composição do Congresso Nacional eleito em 2014, a agenda
educacional que orientou o debate dos dois candidatos que se enfrentaram no segundo turno
(PRONATEC, defesa da influência do Sistema S na formação, meritocracia) e o aprofundamento
da crise estrutural em 2015, os conflitos pela escola pública serão, certamente, mais ásperos e
acirrados, em virtude dos cortes orçamentários, objetivando a elevação do superávit primário.
O aparato de formação profissional, com o PRONATEC à frente (mas também nas universidades), incidirá muito intensamente sobre a formação do Exército Industrial de Reserva para
fazer despencar os modestos ganhos salariais obtidos por várias categorias no ciclo expansivo
do capital. As corporações educacionais, sob controle dos fundos de investimentos, por sua vez,
seguirão ávidas por mais recursos públicos. Como assinalado pelo referido texto de avaliação:
“Diante dessas ofensivas, haverá uma compressão temporal que não pode ser desconsiderada
pelo ENE, sob risco de perder o acúmulo político conquistado”.
O que o ENE sinaliza de novo nas lutas pela educação pública é que os movimentos,
sindicatos e demais protagonistas não poderão se limitar a reagir diante da ofensiva dos governos 18 e do capital, mas, antes, lutar contra essas ofensivas, afirmando uma nova agenda para a
educação pública:
A urgência de um Congresso é justificada também pela necessidade de delinear uma
outra perspectiva educacional para a educação pública. Houve uma severa descontinuidade
temporal provocada pela repressão da ditadura empresarial-militar que pretendeu silenciar as
contribuições da educação popular de Freire, em especial os nexos entre educação e conscientização, entre educação e práxis política, notadamente a partir dos seus trabalhos de 1965, assim
como interditar as proposições de Florestan Fernandes sobre a educação pública e sua formulação sobre a educação para e no socialismo. (...) As propostas do Plano Nacional de Educação:
Proposta da Sociedade Brasileira foram avançadas e justas para a conjuntura do período (1996,
objetivando mitigar a derrota da LDB), focalizando uma agenda liberal-democrática que, em virtude da ofensiva mercantil, já não responde às necessidades atuais da luta antimercantil, como,
aliás, o MST já havia sinalizado com a sua Pedagogia do Movimento. As lutas em curso não
lograram forjar uma outra perspectiva para a educação pública e essa é uma tarefa que terá de
ser edificada pelos próprios protagonistas das lutas pela educação pública. Sem isso, a agenda
econômico-corporativa seguirá servindo como um centro de gravidade que não possibilita outros
caminhos.
A ampliação do Encontro, por meio de um Congresso, é necessária para que aceleração da
formação de um novo arco de forças seja rápida e objetiva.
Se um objetivo estratégico é construir uma nova perspectiva para a educação pública, o
trabalho político com o MST é de crucial importância. Diria, de importância decisiva. O nexo que
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une o passado da educação popular com o presente foi revitalizado pelos movimentos sociais
que mantiveram a chama acesa da pedagogia política. Ademais, a luta do MST contra o fechamento de mais de 38 mil escolas na última década é necessariamente uma luta da classe trabalhadora.
Uma frente crucial: o financiamento da educação pública
A reorganização dos setores que lutam pela educação pública é imperiosa para fazer o enfrentamento do financiamento, objetivando suprimir o referido inciso que permite o uso de recursos públicos com o setor privado. Além dos aspectos já apontados no ENE, outros aportes são
necessários para enfrentar o problema do financiamento público da educação. Inicialmente, cabe
salientar que sequer os 10% serão uma realidade no decênio, pois, admitindo a hipótese otimista
de que todos os anos haverá um acréscimo de 0,5% do PIB, e no último ano de 9% para 10% do
PIB, a média de gastos no período seria de 7,3% do PIB, protelando, novamente, o cumprimento
da meta para o próximo PNE, no período 2025-2035.
Outro problema é o Custo Aluno Qualidade Inicial. A despeito de seu objetivo de aperfeiçoar o precário financiamento da educação pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento
da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação/ FUNDEB, a estratégia do
custo-aluno é desastrosa para as escolas do campo, tendo em vista que, obviamente, as mesmas
possuem número reduzido de estudantes: poucos alunos corresponde a poucos per capita e,
portanto, a poucos recursos. O financiamento por meio de fundos (FUNDEF, depois FUNDEB)
explica, em parte, o fechamento de mais de 38 mil escolas no último decênio. Com efeito, a lógica de financiamento pelo número de indivíduos matriculados retira da agenda o financiamento
global das unidades escolares, pois focaliza os per capita. A 19 despeito do fato de que os estados e municípios são os entes que possuem rede de educação básica, sequer são mencionados
na discussão do valor Custo Aluno Qualidade Inicial33 .
Outro aspecto a ser examinado por sua repercussão na organização da educação é o
objetivo da Estratégia 20.1134 de instituir a Lei de Responsabilidade Educacional. No lugar da
responsabilidade do ente federativo em assegurar as condições materiais, por meio de financiamento, carreira, gestão democrática, infraestrutura em geral, o PNE vincula a responsabilidade
ao cumprimento de metas do IDEB, uma medida desastrosa, pois interdita qualquer possibilidade de um município ou estado apostar na qualidade social, considerando a situação concreta
dos estudantes; ao contrário, a referida lei objetiva pressionar os gestores municipais e estaduais
a ajustar as suas escolas aos descritores de competências do IDEB, tornando a subordinação das
redes ao TPE ainda mais estrutural sob pena de serem sancionados negativamente. O eixo não é
o direito à educação, mas a distribuição das oportunidades educacionais, nos termos da agenda
neoliberal.
Ainda em relação ao financiamento, os movimentos e o ENE em especial, estão desafiados a enfrentar a falta de meios objetivos para assegurar os 10% do PIB para a educação pública.
Além da revogação do referido §4 (do Art.5, Lei 13.005/14), da redefinição da metodologia de
financiamento a partir de per capita, e da luta contra os objetivos da Lei de Responsabilidade
Educacional, é necessário denunciar que a Lei não prevê fontes orçamentárias que viabilizem
os 10% do PIB, aumento imprescindível para elevação das verbas educacionais de modo que
o gasto por aluno/ano, atualmente equivalente a 1/3 da média dos países da OCDE, possa ser
ampliado de modo efetivo.
Embora o uso do PIB como parâmetro de investimentos educacionais seja problemático,
pois o objetivo estratégico das lutas sociais não é elevar o PIB, índice que incorpora a lógica capitalista destrutiva, o seu uso se justifica como medida tática, pois permite comparações internacionais e define uma ordem de grandeza para os gastos educacionais.
Em 2013, o PIB brasileiro foi de R$ 4,8 trilhões; 10% deste montante totalizam R$ 480
bilhões. Admitindo que atualmente os recursos públicos para educação equivalham a 5% do PIB,
a Lei deveria indicar como obter receitas equivalentes a R$ 240 bilhões. Necessariamente, os recursos adicionais teriam de ser alocados pela União, visto que dos 5% do PIB, a União somente
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é responsável por 1% do PIB, embora detenha mais de 65% das receitas tributárias. Cabe lembrar
que somente 40% das receitas da União provêm de impostos (a base de cálculo para os 18% das
receitas liquidas de impostos definidas pelo Art. 212 da Constituição), enquanto nos estados os
impostos correspondem a 85% e, nos municípios, a 93%. A previsão de que a receita dos royalties do petróleo poderá cobrir a diferença não se sustenta, pois o modelo de concessão restringe
a base de cálculo a meros 15% do petróleo extraído e, por isso, em 2013, conforme a Agência
Nacional do Petróleo, o total de royalties foi de R$ 33 bilhões. Considerando que 75% destes devem estar destinados a educação, teremos receitas de R$ 25 bilhões (0,5% do PIB). Nada é dito
sobre os outros 4,5% do PIB que serão necessários. A se confirmar as promessas de ajustes nos
gastos públicos em 2015, objetivando ampliar o superávit primário, está claro que somente com
luta política “a quente” e fundamentada será possível alterar o quadro de degradação do setor
educacional público. 20
Conclusões preliminares
No presente artigo foi argumentado que os setores dominantes possuem vivo interesse na educação da massa dos trabalhadores. Mas por serem dependentes e associadas ao núcleo imperialista as frações no bloco de poder não podem levar adiante um projeto para a nação e, mais
especificamente, um projeto para a educação pública brasileira. Por conseguinte, o futuro da educação pública está nas mãos da classe que vive de seu próprio trabalho. Por serem inaceitáveis
para o bloco no poder, as reformas educacionais desejadas pelos trabalhadores precisam se dar
nos marcos da “revolução dentro da ordem”, como parte da estratégia da “revolução fora da
ordem”, nos termos de Florestan Fernandes35 .
O verdadeiro assalto das entidades empresariais ao aparato educacional do Estado,
ofensiva que conta com o apoio do governo federal por meio do Plano de Desenvolvimento da
Educação, objetiva criar um horizonte pró-sistêmico para a educação brasileira. Desde a forma
de diagnosticar os problemas educacionais, a partir de sistemas ditos científicos de avaliação
centralizada, até as reformas curriculares, formação de professores e estratégias de gestão da escola, todas essas medidas estão inscritas na agenda do movimento liderado pelas corporações,
conforme já assinalado. Hoje, mais do que em qualquer outro período, não é possível reverter
esse quadro apenas com as lutas estritamente educacionais, levadas a cabo por trabalhadores
da educação e estudantes. Somente no contexto das grandes jornadas antissistêmicas essas
lutas podem ter efetividade, daí a atualidade de Florestan Fernandes quando propugnava ser
necessário um novo ponto de partida para as lutas educacionais.
O estudo e o diálogo com os movimentos sociais que têm realizado as lutas mais importantes permitem constatar que estes têm se empenhado na produção autônoma de conhecimento original, capaz de criticar os fundamentos da vida capitalista e apontar alternativas para além
da sociedade do capital. Um traço comum entre muitos desses movimentos é a definição de que,
em função da gritante assimetria de forças e de meios operativos entre os setores populares e
os dominantes, a prioridade é que cada militante possa ser um organizador da atividade política,
potencializando as ações diretas, a democracia direta e o debate estratégico.
Entretanto, para fortalecer a formação política do conjunto da classe trabalhadora é preciso que as instituições educacionais possam ser forjadas como espaços para diagnosticar e solucionar os grandes problemas nacionais. Por isso, também os movimentos disputam a educação.
Mas não basta garantir o acesso à escola pública. Urge uma revisão profunda das formas de
pesquisar e de produzir o conhecimento. Sem uma crítica radical ao eurocentrismo e à sua forma
atual – o pensamento único – a educação serve de arma a favor dos setores dominantes. A crítica ao capitalismo dependente somente será possível fora das teias das ideologias dominantes
atuais. Esse é um desafio teórico que não será resolvido nos espaços intramuros da universidade
requerendo, obrigatoriamente, novos diálogos da universidade com os protagonistas das lutas,
diálogos que servem de base para novas práxis emancipatórias.
No caso brasileiro, muito ainda está por ser feito para que os milhões de insubordinados
e insatisfeitos com a ordem social que empurra a humanidade para a barbárie possam ter essas
oportunidades de autoconstrução de espaços formativos originais, densos teoricamente, ou-
28|
sados no enfrentamento dos problemas. Os desafios são políticos, teóricos, organizativos e 21
pedagógicos. Mas, como lembra Marx, os humanos se colocam problemas que, potencialmente,
podem ser resolvidos. Em tempos de crise, ocorre uma aceleração do tempo, muitas das fortalezas do capital apresentam fraturas e, pelo vigor demonstrado pelos movimentos nos distintos espaços de formação política, brechas estão sendo anunciadas. Todo empenho na construção
unitária da formação e de grandes jornadas em prol da educação pública são imprescindíveis!
-O presente texto tem como base a exposição apresentada no curso de especialização do
MST, organizado no Coletivo CANDEEIRO e o Centro de Estudo, Pesquisa e Ação em Educação
Popular – CEPAEP, Faculdade de Educação da USP, 27/11/2009. A presente versão foi revista e
ampliada em outubro de 2014.
(*)Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e colaborador da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF).
FONTE: http://marxismo21.org/wp-content/uploads/2014/08/R-Leher-Estrat%C3%A9gia-Pol%C3%ADtica-e-Plano-Nacional-Educa%C3%A7%C3%A3o.pdf
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| Jornalismo: um campo em disputa |
Fernanda Ramos, militante do Daco-UFF e do Coletivo Enecos Bonde do Rio
“O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo
é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum
vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade.”
Tomaz Tadeu da Silva (2001)
Em 2009, foi lançada a “nota oficial da Enecos sobre as Novas Diretrizes Curriculares para o
curso de Jornalismo”. No documento, ficava claro o repúdio da Executiva aos apontamentos da
comissão de especialistas do Ministério da Educação, especialmente no que se referia à retirada
do Jornalismo do campo da Comunicação Social e a consolidação de um modelo de formação
de Jornalistas eminentemente técnico, deixando de lado pesquisa e extensão em detrimento do
ensino voltado à prática. A militância também denunciava o caráter antidemocrático do processo
consultivo desempenhado pelo MEC que, até aquele momento, só havia contado com três audiências públicas em todo o Brasil. A nota da Enecos expressa bem o cenário de disputa de poder
sobre as subjetividades que envolvem a Comunicação Social e o Jornalismo, processo do qual a
executiva não se esquivou.
A campanha “Somos todos Comunicação Social”, de 2012, foi o principal instrumento
utilizado pela Enecos para barrar as Novas Diretrizes Curriculares para o curso de Jornalismo
(NDJs). Mas o relatório da Comissão de Especialistas presente na Portaria nº 203/2009 era apenas um prenúncio do que estava por vir. A homologação da Resolução nº 1 de 27 de setembro
de 2013 por parte do MEC foi um golpe certeiro sobre o Movimento Estudantil de Comunicação
(MECom) e os pesquisadores e docentes da Comunicação que se recusavam a aderir às Diretrizes. Diante da ameaça iminente da avaliação punitiva do Enade, de cortes de verbas e outros tipos
de sanções por parte do Governo Federal, muitas Escolas de Comunicação, antes resistentes,
decidiram acatar o documento ministerial. E em virtude desta aparente derrota, também a Enecos parece ter preferido deixar o debate de lado, talvez por considerar que não haveria mais o que
fazer a respeito.
Meio cheio ou meio vazio?
É inegável que, em vários aspectos, o MECom saiu dessa disputa enfraquecido. Ainda que as
NDJs tenham caráter recomendativo, a maioria das Escolas de Comunicação brasileiras decidiu
adotar o modelo de ensino proposto no documento com poucas ou nenhuma ressalva: Jornalismo como área de estudos independente, estágio curricular obrigatório e o novo modelo de
Trabalhos de Conclusão de Curso que só abrange temas diretamente relacionados ao Jornalismo, ignorando a necessária multidisciplinaridade característica do fazer e pensar Comunicação.
Fomos derrotados, sim. Mas será mesmo que a luta acabou?
Decidindo aderir às Diretrizes, o passo seguinte às Escolas seria criar os currículos dos
novos cursos de Jornalismo. Como as Instituições Públicas de Ensino Superior desfrutam legalmente de autonomia universitária, a discussão e formulação do novo currículo acontece dentro
das próprias Escolas, mediante a formação de uma comissão de professores responsável por
traçar o perfil do profissional que a universidade pretende formar e elaborar um currículo que
corresponda às expectativas do corpo discente e do corpo docente da instituição.
Ocorre que o modelo de currículo a ser adotado pelas universidades não é plenamente
determinado pelas NDJs. A recomendação do MEC sobre as disciplinas dos novos cursos de
Jornalismo consiste na divisão equilibrada entre seis eixos: fundamentação humanística, fundamentação específica, fundamentação contextual, formação profissional, aplicação processual e
prática laboratorial. Pois é aí que um quadro contraditório se configura: ao mesmo tempo que
a concepção do conhecimento dividido em eixos intensifica a separação de teoria e prática, a
segmentação extrema faz com que as definições de cada eixo se tornem muito subjetivas. E essa
30|
brecha à interpretação pode ser o caminho que a militância estudantil precisava para reverter a
principal derrota que sofremos com as adesões em todo o Brasil às NDJs, que é a dissociação
entre o Jornalismo e o seu caráter social.
De uma educação libertadora à comunicação libertadora
Aproveitar-se das falhas das NDJs é essencial para que o MECom recupere o protagonismo na
luta pela Qualidade de Formação do Comunicador. Como fazer com que reflexões comuns à
militância da Enecos sejam contempladas no currículo de Jornalismo? Como pensar em uma educação que cutuque as feridas da comunicação e questione a sua influência sobre as opressões
de gênero, étnicas e raciais? É possível ter Teoria Queer nas Escolas de Comunicação? E como
elaborar um currículo que incentive a crítica ao sistema capitalista e seja capaz de situar o Jornalismo no contexto da luta de classes e das disputas por hegemonia?
Essas são apenas algumas das inquietações que devem pautar as nossas lutas daqui em
diante. Agora é o momento das/os estudantes organizadas/os reivindicarem e ocuparem os
espaços de discussão dentro das escolas e fazerem valer suas vozes para radicalizar o caráter
social do Jornalismo enquanto área de conhecimento. Não podemos aceitar mais retrocessos, e
muito menos a reprodução de modelos tradicionais de currículo. Como disse Paulo Freire (1977),
“conhecer é tarefa de sujeitos, não de objetos. E é como sujeito e somente enquanto sujeito, que
o homem pode realmente conhecer.” Para alcançarmos a comunicação libertadora dos nossos
sonhos, precisamos recuperar o fôlego e reocupar nosso espaço de sujeitos na luta por uma
educação libertadora.
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| 5 anos de Confecom: muito barulho por nada? |
Nesta semana, lembrar a realização da Conferência Nacional de Comunicação é afirmar que esse legado não pode ser perdido. Ele deve ser a referência para reorganizar o setor e fortalecer a democracia
Intervozes | Jonas Valente*
No dia 17 de dezembro de 2009, encerrava-se às 19h a 1ª Conferência Nacional de Comunicação. O processo, formado por etapas municipais, estaduais e nacional, movimentou, pelas
estimativas da organização, mais de 30 mil pessoas para discutir os desafios da área e apresentar
recomendações ao poder público de quais políticas deveriam ser implementadas para o setor.
Após um processo polêmico e imerso em disputas, mais de 600 propostas foram aprovadas
pelos cerca de 1.500 delegados presentes à etapa nacional. Entre elas, diversas recomendações
avançadas, como:
- Afirmação da comunicação como um direito humano;
- Regulamentação do Artigo 221 da Constituição, que dá preferência a finalidades artísticas,
informativas, educativas e culturais na programação do rádio e na TV, bem como aponta a
necessidade de promoção dos conteúdos regionais e independentes;
- Regulamentação do inciso do Artigo 220 da Constituição, que proíbe as práticas de
monopólio e oligopólio nas comunicações;
- Criação de um Conselho Nacional de Comunicação e de órgãos congêneres nos estados
para elaborar e acompanhar a promoção de políticas de comunicação com funcionamento efetivo, diferentemente do Conselho de Comunicação Social, órgão apenas assessor do
Congresso Nacional;
- Mais transparência na concessão de outorgas, proibição da sublocação da grade de programação e do controle de emissoras por parlamentares e seus familiares;
- Observância na concessão de outorgas da necessidade de promover a diversidade, dando
preferência aos que ainda não possuem meios de comunicação;
- Afirmação do acesso à Internet como direito, garantia de sua universalização e prestação
do serviço em regime público;
- Divisão do espectro de radiofrequências destinando 40% para canais do sistema privado,
40% para o sistema público e 20% para o sistema estatal;
- Criação do Operador Nacional de Rede Digital Pública, a ser gerido pela EBC, com a função
de propiciar as plataformas comuns de operação para todas as emissoras públicas de televisão;
- Garantir na TV digital aberta os canais legislativos, comunitários, universitários e do Poder
Executivo, com condições técnicas para que atinjam todos os municípios do País;
- Implantação de um fundo nacional e de fundos estaduais de comunicação pública, com
receitas advindas do orçamento geral da União, taxação da publicidade veiculada nos canais
comerciais, pagamento pelo uso do espectro, recursos da taxa de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel), taxação de aparelhos de rádio e TV e doações;
- Obrigatoriedade da criação de conselhos curadores nos canais públicos, formados por
maioria da sociedade civil e com acolhimento obrigatório de suas recomendações pelos
gestores das emissoras.
O caminho para chegar a essas resoluções, no dia 17 de dezembro, entretanto, não foi fácil.
Para saber mais acesse: http://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/um-breve-historico-da-confecom-5500.html
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De 2009 a 2014: a inconclusa agenda do marco regulatório
Ao fim, apesar da metodologia desenhada para garantir segurança aos empresários, a realização da
Conferência foi um marco fundamental da história das políticas de comunicação no Brasil, tanto pelas
recomendações avançadas quanto por ter quebrado o tabu do tema nunca ter sido alvo de um processo
de debates com tal amplitude de participação.
A Confecom foi uma novidade histórica, que mostrou ser possível elaborar soluções aos problemas do setor fora das reuniões de gabinetes e dos eventos das associações empresariais. No entanto,
se o balanço de sua realização é positivo, o da implementação de suas resoluções é desanimador. Entre
as mais de 600 propostas aprovadas nos grupos de trabalho e na plenária final, praticamente nenhuma
ganhou consequência por parte do governo federal. Talvez a mais importante delas, a atualização do
marco regulatório das comunicações, teve um ensaio com o grupo de trabalho montado sob o comando do então ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, Franklin Martins.
No entanto, com a entrada de Dilma Rousseff na Presidência da República e de Paulo Bernardo no
Ministério das Comunicações, o resultado do GT foi engavetado.
Após inúmeras cobranças junto ao governo para que o trabalho do grupo se transformasse em
um projeto de lei discutido publicamente, organizações da sociedade civil optaram detalhar sua plataforma. As mais de 600 propostas da Conferência foram analisadas e 70 foram elencadas como prioritárias.
Tomando como base esse universo, os movimentos sociais elaboraram, em 2011, uma plataforma com
20 pontos para a democratização das comunicações no país.
Dando sequência à luta por um novo marco regulatório das comunicações, foi criada, em 2012,
a campanha “Para Expressar a Liberdade”, comandada pelo renovado Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações. A partir da plataforma, e como eixo principal da nova campanha, o FNDC
coordenou a elaboração de um projeto de lei de inciativa popular, batizado de Lei da Mídia Democrática.
O esboço inicial, discutido em plenárias da campanha Para Expressar a Liberdade e do Fórum
Nacional pela Democratização da Comunicação, recebeu emendas e sugestões de diversos movimentos
sociais. Ao fim, o texto representou uma mediação entre diversos pontos de vista. Mas ele apresenta um
programa claro para a democratização do setor no país, alicerçado na regulamentação da Constituição e
inspirado em regras e modelos adotados em outros países, de governos mais progressistas na América
Latina a regimes liberais na América do Norte e na Europa.
Lançado em 2013, o projeto de lei de iniciativa popular recebe agora assinaturas da população
para ser apresentado ao Congresso Nacional – são necessárias mais de 1,4 milhão – e conta com o
apoio dos mais variados segmentos da sociedade civil. Junto à divulgação da Lei da Mídia Democrática,
movimentos sociais de várias áreas acabaram incorporando a pauta da comunicação como algo central
em suas lutas. Nas manifestações de junho de 2013, por exemplo, o tema foi uma das bandeiras das
ruas.
Ao longo do processo eleitoral deste ano, a problemática do oligopólio das comunicações também voltou à tona. A novidade, desta vez, foram os anúncios, por parte da candidata e depois reeleita
Presidenta Dilma Rousseff, de que pretende realizar uma “regulação econômica dos meios”. O debate,
no entanto, como Dilma já afirmou, será feito “com calma”.
A realidade é que as sinalizações difusas e contraditórias sobre a agenda da regulação democrática da mídia são marcas da era Lula-Dilma, desde 2003. Mas a Conferência Nacional de Comunicação é
um marco a ser considerado nesta história. As mais de 30 mil pessoas envolvidas no processo em todo
o Brasil e as mais de 600 propostas aprovadas são um manifesto inequívoco da relevância e urgência
desta pauta. Diferentemente de tempos atrás, quando as forças conservadoras insistiam em bloquear
a discussão usando a cortina de fumaça da censura, agora a Lei da Mídia Democrática aparece como
formulação concreta de um anteprojeto de lei para debate na sociedade.
Nesta semana, lembrar os cinco anos de realização da Confecom é afirmar que esse legado
não pode ser perdido. Ele deve ser a referência para reorganizar este setor para fortalecer a democracia
brasileira.
* Jonas Valente é jornalista, mestre em Políticas de Comunicação pela Universidade de Brasília e
integrante da coordenação do Intervozes.
FONTE: http://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/5-anos-de-confecom-muito-barulho-por-nada-8910.html
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| E os conselhos estaduais de comunicação social? |
Venício de Lima
Apesar de resultarem de processos sociais de construção radicalmente distintos, até hoje, apenas na Bahia e Alagoas foram instalados esses conselhos.
A aprovação pela Câmara dos Deputados do Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 1491/14,
de autoria dos deputados Mendonça Filho e Ronaldo Caiado, ambos do DEM, anulando o decreto nº 8.243 de 23 de maio, que cria a Política Nacional de Participação Social (PNPS), dois dias
após o segundo turno das eleições presidenciais, constitui um fato político que não pode ser
menosprezado.
Mesmo que se possa explicar a colocação da matéria na pauta de votação e os votos favoráveis à sua aprovação como descontentamento pontual de deputados que teriam sido preteridos pelo governo Dilma Rousseff na campanha eleitoral, a aprovação do PDC 1491/14 certamente
oferece uma pista importante sobre o pensamento predominante, entre parlamentares brasileiros, sobre a ampliação da participação popular no processo democrático (ver “Por que a mídia é
contra o Decreto nº 8.243“).
O tema é central no debate democrático contemporâneo e não se reduz à polêmica “democracia representativa” versus “democracia participativa”. Na verdade, ele esconde um viés
antipopular que não só desfigura a democracia como pode estar até mesmo na raiz do ódio e do
preconceito que afloram em processos eleitorais demarcados por políticas públicas de inclusão
econômica e social (cf. Jacques Rancière, O ódio à democracia, Boitempo, 2014).
Retorno, todavia, ao tema da participação democrática para tratar de uma questão sempre esquecida na lista de prioridades de partidos, entidades e movimentos sociais: os conselhos
estaduais de comunicação social (CECS).
Resultados eleitorais
Obedecendo ao princípio constitucional da simetria, nove das vinte e seis Constituições Estaduais – Amazonas, Pará, Alagoas, Bahia, Paraíba, Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande
do Sul – e a lei orgânica do Distrito Federal, incluíram a criação dos CECS quando se adaptaram
à Constituição Federal de 1988 (cf. Venício A. de Lima, “Conselhos Estaduais de Comunicação – a
interdição de um instrumento de democracia participativa“, FNDC, 2013).
Apesar de resultarem de processos sociais de construção radicalmente distintos, até hoje,
apenas na Bahia e Alagoas foram instalados esses conselhos. As eleições para governadores e
deputados estaduais sempre renovam as esperanças de que o tema possa ser retomado e que,
finalmente, os CECS possam ser instalados e funcionem em outras unidades da Federação.
Será que os resultados eleitorais nos estados em 2014 autorizam otimismo comparativo
em relação às situações anteriores no que se refere à possibilidade de instalação dos CECS?
Balanço provisório
Das unidades da Federação onde os CECS estão previstos nas constituições, Rio Grande do Sul e
Distrito Federal foram aquelas onde mais se avançou nos últimos anos.
No RS, apesar do comprometimento do governo gaúcho (PT) na construção de um projeto de lei, não se logrou condições sequer de seu envio à Assembleia Legislativa. No DF, apesar
de compromisso assumido publicamente, o governo (PT) não enviou para apreciação na Câmara
Distrital o projeto a ele oferecido pelos movimentos sociais.
Não se sabe de avanços concretos no Amazonas, no Pará, na Paraíba, em Goiás, em
Minas Gerais, nem no Rio de Janeiro.
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Com as eleições de 2014, considerado o histórico dos partidos dos governadores eleitos
e a composição das Assembleias Legislativas, não se espera avanços no Amazonas (PROS), no
Pará (PSDB), em Goiás (PSDB), no Rio de Janeiro (PMDB) ou no Rio Grande do Sul (PMDB). Em
Minas Gerais existe a possibilidade de apoio do governador eleito (PT), mas ele não obteve maioria na Assembleia Legislativa. Da mesma forma na Paraíba (PSB) e no Distrito Federal (PSB),
sendo que no primeiro caso o governador terá maioria na Assembleia.
Estados onde os CECS não estão previstos na Constituição, mas já houve importante
mobilização social para sua criação – Ceará e Piauí –, elegeram governadores (PT) que poderão
apoiar sua criação, sendo que o primeiro terá maioria na Assembleia Legislativa. Há ainda expectativa favorável em relação ao governador eleito no Maranhão (PCdoB), embora ele não tenha
obtido maioria na Assembleia Legislativa.
Nos demais estados o tema dependerá, exclusivamente, da mobilização e da consciência
dos movimentos sociais.
A mudança virá das ruas
Há alguns anos tenho afirmado que cada dia que passa, aumenta o número de brasileiros que
se dá conta do imenso poder que ainda está nas mãos dos oligopólios da grande mídia e que,
historicamente, sonegam e distorcem as vozes e os interesses de milhões de outros brasileiros
(ver aqui).
O episódio envolvendo a revista Veja e outros grupos na última semana antes do segundo turno das eleições de 2014 certamente constitui um exemplo contundente desse poder, ao
mesmo tempo em que a aprovação do PDC 1491/14 confirma o descolamento crescente entre a
representação parlamentar e os movimentos sociais.
O aumento da consciência que vem das ruas explica as pequenas e importantes vitórias
que a sociedade civil organizada começa finalmente a construir em níveis estadual e local, inclusive na construção de conselhos estaduais de comunicação social.
Esse parece ser o único caminho possível para a democratização da comunicação no
nosso país: a consciência da cidadania. Esse caminho independe da vontade da grande mídia e
de seus parceiros e defensores. Esses continuarão mais distantes das vozes excluídas, cada vez
mais difíceis de controlar.
FONTE:http://cartamaior.com.br/?/Coluna/E-os-conselhos-estaduais-de-comunicacao-social-/32155
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| O fracasso do Programa Nacional de Banda Larga |
Análise do Senado mostra que metas de conexão estabelecidas para 2014 estão muito longe de serem
alcançadas. Mais de 38 milhões de famílias vivem um hiato digital
Marina Cardoso*
Foi-se o final de ano, o novo-velho governo tomou posse, nomeou ministros e mostrou a que
veio. Pois bem. Agora, nesse começo de janeiro, antes de seguirmos em frente, é recomendável
parar um minuto para refletir sobre os resultados do Programa Nacional de Banda larga (PNBL),
instituído em 2010 pelo Decreto 7.175, cujas metas deveriam ter sido alcançadas até o findado
2014. Para isso, contamos com a ajuda do relatório de avaliação do PNBL feito pela Comissão
de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática do Senado Federal. O estudo foi
concluído em dezembro e – esperamos que por conta do período de publicação – ganhou pouco
espaço na mídia. É, no entanto, bastante elucidativo sobre o retumbante fracasso do Plano. Vale
lê-lo atentamente.
Para começar: a meta de domicílios conectados estabelecida para 2014 está muito longe
da alcançada. A expectativa era fechar o ano passado com 35 milhões de domicílios com acesso
à internet fixa. Porém, em agosto, os acessos à banda larga fixa chegavam a apenas 23,5 milhões
de locais, segundo dados do próprio Ministério das Comunicações (Minicom), incluindo aí
instalações em estabelecimentos comerciais. Ou seja, há um abismo de mais de 10 milhões de
acessos entre a realidade e a meta prevista.
A Consultoria Legislativa (Conleg) do Senado calculou que exista no Brasil um hiato digital
em aproximadamente 38,4 milhões de famílias, uma cifra que corresponde a mais de dois terços
do total da população. Um dado vergonhoso, especialmente quando se tem em conta que o Brasil é a sétima maior economia do mundo, de acordo com o Banco Mundial.
O pacote de banda larga popular, criado por meio da assinatura de termos de compromisso entre as operadoras e o Minicom, também apresenta resultados pífios. Os últimos dados
disponíveis apontam para 2,6 milhões de assinaturas, menos de 1% do total de acessos à internet
fixa, sendo metade delas concentrada no estado de São Paulo. É bom lembrar aqui que os dados da
banda larga popular do PNBL divulgados pelo Minicom são imprecisos quanto a sua data de coleta
(e não mudam há algum tempo), e não incluem informações por região, ou dados de desconexão.
Ou seja, também faltam informação e transparência para um melhor balanço da política.
O governo poderia se gabar de poucos aspectos do PNBL, entre eles a cobertura da oferta
do plano popular, que, segundo juram as concessionárias, alcançou 4.912 cidades. O difícil é o
cidadão conseguir contratar o tal pacote que estaria disponível em quase todos os municípios
do País. Diversas reportagens denunciam que empresas escondem tal oferta em suas páginas
da internet e que há dificuldade de contratação do plano por meio dos serviços de atendimento telefônico das operadoras – isso sem falar do total desconhecimento da população sobre a
existência do plano popular.
O ministério e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) fazem vistas grossas.
Assim, as operadoras dizem que oferecem o serviço popular, o governo finge que acredita e o
nível de conexão no país segue crítico. Pesquisa realizada pelo DataSenado, entre 29 de outubro
e 12 de novembro de 2014, mostrou que dois terços dos entrevistados NUNCA havia ouvido falar
do PNBL.
Falando de alguma coisa boa, o PNBL teve um importante mérito: o de reativar a Telebras.
Infelizmente, porém, a meta traçada era a de disponibilização da Rede Nacional de Internet, gerenciada pela Telebras, em 4.278 municípios até 2015. Só que até agora a estatal amarga míseros
612 municípios conectados, sendo apenas 360 por oferta direta.
De acordo com o relatório do Senado, “a principal razão para o desempenho abaixo do
previsto pode ser imputada ao investimento insuficiente nos projetos executados pela Telebras”.
O Plano Plurianual de 2012 a 2015 prevê investimentos da ordem de 2,9 bilhões de reais para o
36|
PNBL no período de 2012 a 2013. Já as leis orçamentárias anuais nos mesmos anos garantiu apenas 314,7 milhões de reais para o investimento. Com o contingenciamento de recursos, o valor se
reduzia ainda mais, para 267,9 milhões de reais. Por fim, a execução orçamentária, de fato, foi de
214,1 milhões de reais, ou seja, 7,4% do previsto no PPA.
Diante de tantos fracassos, há que se perguntar o que aconteceu. Uma possível explicação
está no próprio Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital (CGPID), órgão composto por
representante de nove ministérios, de duas secretarias e do Gabinete Pessoal do Presidente da
República. Compete ao CGPID a gestão e o acompanhamento do PNBL no âmbito do Poder Executivo, cabendo-lhe fixar as ações, metas e prioridades do programa, acompanhar e avaliar suas
ações de implementação e publicar anualmente relatório de acompanhamento, demonstrando os
resultados obtidos. Acontece que o CGPID não se reúne desde 2010 – ano de criação do PNBL!
Não houve, portanto, até agora, relatório algum de acompanhamento do plano.
Uma coisa é certa: não podemos fechar os olhos para o papel central que a internet ocupa
hoje na sociedade. Por ela passam, cada vez mais, as relações econômicas, políticas e sociais.
No entanto, na prática, apesar do Marco Civil dizer o contrário, o acesso à internet ainda não é
considerado um serviço essencial em nosso País. Ao manter dois terços das famílias naquilo que
a Consultoria do Senado classificou de hiato digital, optamos, como sociedade, a aprofundar as
desigualdades contra as quais viemos lutando bravamente. Estamos enxugando gelo.
Por isso, a sociedade civil, organizada em torno da campanha Banda Larga É Direito Seu,
apresentou ao Executivo e à Anatel uma proposta de política pública para garantir a universalização do acesso à internet no Brasil. Seu eixo central é a mudança do regime de operação de
rede e de prestação do serviço de acesso à internet no atacado do chamado regime privado para
o público. O relatório do Senado endossa essa proposta: “recomenda-se a prestação do serviço
de acesso à internet em regime público, a fim de promover a sua universalização”.
Neste início de 2015, a campanha Banda Larga É Um Direito Seu, da qual o Intervozes é
membro, inicia a tentativa de abertura de diálogo com o novo governo e demais atores envolvidos, para caminharmos com um plano que seja efetivo. Porque não estamos apenas apontando
o dedo. Estamos dispostos a construir os caminhos. Durante a campanha eleitoral, a presidenta
Dilma Rousseff se comprometeu a universalizar o acesso à internet no Brasil até o final desta
gestão. Esperamos que o fracasso do PNBL sirva, ao menos, para se construir um plano de
universalização da banda larga de forma democrática, ouvindo não apenas as empresas, mas a
maior interessada: a sociedade.
* Marina Cardoso é jornalista e integrante do Intervozes
http://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/o-fracasso-do-plano-nacional-de-banda-larga-3770.html
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| É legal? A regulação da Comunicação Comunitária na
esquerda latino-americana |
Gislene Moreira
Professora do Curso de Jornalismo Multimeios no Departamento de Ciências Humanas III da
UNEB, Juazeiro-BA, Brasil. Doutora em Ciências Sociais pela Flacso-México e mestre em Cultura
e Sociedade pela UFBA. Dedica-se a temas de movimentos sociais, eduComunicação, mídia comunitária e políticas de Comunicação no Sertão brasileiro e na Comunicação na América Latina
E-mail: [email protected]
Resumo
A América Latina iniciou o novo milênio com inovações nas políticas do setor da Comunicação,
retomando o debate sobre as leis de meios. Esse processo acompanhou os giros democráticos
no continente nos anos 2000. Mas que avanços normativos as novas esquerdas latino-americanas aportaram aos meios comunitários? Com o objetivo de compreender a relação entre governos progressistas e regulação da mídia comunitária, este estudo analisou as disputas normativas
na Argentina, Brasil e Venezuela na última década com base em estudo de documentos, entrevistas etc. Foram comparadas as leis, a partir da visão dos atores envolvidos no debate. O resultado
indica que a adoção de regras mais progressistas no setor não representa uma opção prioritária
das novas esquerdas pelo tema. As novas leis são produto de uma complexa correlação de
forças, em que a agência dos atores contra-hegemônicos é decisiva para a construção de novos
caminhos.
Palavras chave: Comunicação Comunitária. Legislação. Políticas Públicas de Comunicação.
América Latina.
Introdução
As regras da radiodifusão na América Latina foram fixadas no século 20 por meio de perigosas
relações de poder entre elites políticas e empresários midiáticos (FOX, 1997). A exploração não
comercial do espectro foi ignorada, coibida e proibida em todos os marcos normativos do continente até o final dos anos 90 (MOREIRA, 2011). Sustentados nestas práticas, emergiram os principais conglomerados midiáticos do continente. Os grupos Clarín, na Argentina, Globo, no Brasil,
e Cisneros, na Venezuela foram alguns dos principais beneficiários destas regras, se constituindo
como as grandes potências do setor (MASTRINI e BECERRA, 2009; MORAES, 2009).
Apesar das práticas de repressão, extermínio, criminalização e criação de barreiras legais
e econômicas, durante décadas, milhares de meios comunitários, alternativos e livres atuaram
clandestinamente1 (GUMUCIO-DRAGON e TUFTE, 2006); e o tema das rádios comunitárias
se constituiu como a principal demanda nas lutas por “outra Comunicação” (AMARC, 2010;
PERUZZO, 2010).
Com as viradas democráticas2 que sacudiram a América Latina nos anos 2000 se alimentaram as expectativas de mudanças nesta estrutura e de abertura de brechas para os meios
comunitários. Era possível aos governos Kirchner, Lula e Chávez alterar as regras do jogo? Esta
demanda fazia parte de seus projetos políticos? Que resultados normativos esses governos proporcionaram? Para responder a estas questões, este estudo escolheu Argentina, Brasil e Venezuela como casos paradigmáticos dos embates midiáticos na região3.
Fruto da tese doutoral As Formigas de Macondo: Contrahegemonia e políticas de Comunicação Comunitária na América Latina4, este artigo apresenta uma comparação entre as normas
de mídia comunitária e os cenários políticos de ação coletiva da Coalizão para uma Radiodifusão
Democrática Argentina, da Comissão Pró-Conferência, no Brasil, e as articulações da Associação
Nacional de Meios Comunitários Livres e Alternativos (ANMCLA), na Venezuela.
38|
Para construir esta análise, foi realizado trabalho de campo e estâncias de investigação5
nos três países. A pesquisa foi realizada entre 2008 e 2011 e incluiu revisão documental e bibliográfica, 40 entrevistas semi-estruturadas, e seis grupos focais junto a líderes dos movimentos,
gestores públicos e especialistas no tema. Também constou de observação participante em oito
atividades internas de cinco movimentos relevantes no setor, 15 visitas a emissoras comunitárias
envolvidas nas novas leis, e participação em seis eventos e congressos sobre o tema na Argentina e Venezuela. Além disso, desde 2002 a pesquisadora participa ativamente dos debates em
torno ao tema no Brasil, tendo integrado o Grupo de Trabalho Pró-Conferência entre 2006 e 2008
que realizou a I Conferência de Comunicação na Bahia.
O marco interpretativo mesclou aportes da Economia Política da Comunicação, Política
Comparada, e Etnografia6 para dar ênfase à perspectiva dos atores subalternos no jogo regulatório. A partir da correlação entre os resultados normativos e os depoimentos dos envolvidos,
o estudo esperava indicar o nível de envolvimento das novas esquerdas com o tema da mídia
comunitária.
Contextos das lutas por novas políticas de Comunicação
Argentina
Na Argentina assumida por Nestor Kirchner, em 2003, exatamente 20 anos após a redemocratização do país, ainda prevalecia a Lei de Radiodifusão 22.285/807 aprovada na ditadura militar
de Videla8. O marco ignorava e eliminava a possibilidade de exploração não comercial do espectro (MASTRINI, 2009; SEL, 2010).
Neste contexto, foi criada, em 2004, a Coalizão para uma Radiodifusão Democrática
(CRD), uma articulação que reuniu mais de 800 entidades de direitos humanos, meios comunitários de diversas correntes, centrais sindicais, universidades, artistas, militantes etc. Entre
eles, se destacou a ação do Fórum Argentino de Rádios Comunitárias (FARCO) como entidade
articuladora (SEL, 2010). A entidade já existia desde 1985, mas até então era um grupo frágil e
sem muita projeção política.
Organizados coletivamente, esses atores conquistaram a Lei 26.053/05, por meio da incidência junto à Suprema Corte de Justiça, que reconheceu o direito de exploração não-comercial
do espectro. Mas o cenário político era ambíguo. O governo de Kirchner confrontava discursivamente com os meios massivos, mas de outro lado não favorecia a pauta alternativa. Depois, surpreendeu o movimento com o chamado “golpe das licenças”, que por meio do Decreto 527/05
prorrogou o tempo das concessões dos conglomerados privados sem enfrentar o debate público
(MASTRINI, 2009).
O episódio quase provocou a ruptura da Coalizão que, para evitar a divisão entre favoráveis e contrários a seguir negociando com o governo, construiu uma base de consenso
chamada de os 21 Pontos para uma Nova Lei de Meios da Democracia. Nenhuma entidade que
fizesse parte da Coalizão poderia negociar individualmente com o governo sem tomar TODOS
esses pontos como agenda básica. Entre eles, estava a demanda de 33% do espectro para a exploração sem fins lucrativos, incluindo os meios comunitários.
A pauta da CDR ganhou fôlego com a eleição de Cristina Kirchner (2008). No mesmo
ano, a presidenta rompeu a tradicional aliança com a mídia comercial, em especial com o jornal
Clarín, durante o conflito do campo9. Até então, se dizia que nenhum governo sobrevivia a três
capas contrárias no jornal. Cristina sobreviveu a várias, e passou a buscar aliados.
Foi assim que, em 2009, a Coalizão se aproximou da presidenta. Buscando legitimidade
pública para enfrentar o maior grupo de Comunicação do país, Cristina adotou os 21 Pontos
como base do anteprojeto governista na maior consulta legislativa já realizada na Argentina10. E
os atores da CDR, com seus assessores jurídicos, pesquisadores acadêmicos e militantes foram
a principal base de apoio. A aliança Coalizão-Presidência se concretizou com a aprovação da
famosa Lei de Meios (Lei de Serviços Audiovisuais 26.522/09), e seguiu nas batalhas judiciais
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para garantir a constitucionalidade da normativa, pois depois da aprovação no Congresso, várias
medidas judiciais impediram a implantação legal da nova lei.
Brasil
Na posse de Lula, os brasileiros eram regulados pelo Código Brasileiro de Telecomunicações
(CBT - Lei 4.117 de 1962), e o país contava com uma Lei de Radiodifusão Comunitária (9.612/98),
que reconhecia o serviço, mas reduzia a exploração do espectro a limites geográficos e burocráticos bastante restritivos (ROLIM, 2008; PERUZZO, 2010)11.
O movimento de Comunicação Comunitária no país se iniciou no final dos anos 80, com
o processo de redemocratização. Na década de 90, se destacou a ação da Frente Nacional pela
Democratização da Comunicação (FNDC), que reunia entidades como a Federação Nacional
de Jornalistas (FENAJ), a Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação (ENECOS) e a
Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (ABRAÇO). Em uma década, esses atores
participaram dos debates do Capítulo V da Constituição de 1988, das batalhas pela regulação do
Conselho de Comunicação no início dos anos 90, e da “Guerra do Cabo” - que se iniciou em 1992
e culminou com a conquista da Lei do Cabo em 1995. Em 1998, foi a vez da aprovação da polêmica Lei de Radiodifusão Comunitária e, em 2001, veio o Código Brasileiro de Telecomunicações.
Nesta maratona, foram poucas as conquistas. A frustração legislativa e o aumento da
repressão, somados a uma fragmentação ideológica, contribuíram para que o movimento no setor
avançasse disperso, na clandestinidade e com finalidades bastante díspares. A ABRAÇO, em sua
pretensão de representar o coletivo, nunca conseguiu reunir nem 10% das 20 mil emissoras estimadas, e várias entidades passaram a disputar o posto de líder do movimento (PERUZZO, 2010).
Refletindo a fragmentação, a gestão de Luíz Inácio Lula da Silva (2003-2010) diluiu a
política de Comunicação em várias frentes12 e as entidades do setor atuaram de maneira isolada
e coorporativa (MOREIRA, 2011).
Só sobre rádios comunitárias, a ABRAÇO participou de dois grupos de trabalho (2003 e
2005), enquanto a FENAJ tentava aprovar o Conselho de Jornalistas em uma incidência isolada
junto à Casa Civil. Vários outros canais paralelos de negociação foram apresentados pelos entrevistados, revelando uma profunda dispersão das pautas e espaços de luta. Estes atores afirmam
que o sentimento era ambíguo, uma vez que, se por um lado se sentiam mais reconhecidos, por
outro estavam frustrados pela falta de conquistas efetivas.
Esta contradição não foi exclusiva ao setor da Comunicação, e se expandiu a importantes
agendas dos movimentos sociais do país, contribuindo para uma desmobilização generalizada.
As distintas respostas políticas do governo e a aposta em mecanismos bastante frágeis de participação levaram os movimentos da “euforia” e ilusão de poder para a resignação a uma política
de sustentação do projeto neoliberal (BOITO JR, 2010).
Na área da Comunicação, Lula evitava e temia a confrontação direta com os grandes meios, acumulando vários episódios frustrados13. Em sua gestão, houve um considerável aumento
da repressão contra a mídia comunitária. As prisões e lacres saltaram de 1.950 nos últimos anos
de Fernando Henrique Cardoso para 2.759 nos primeiros momentos do governo Lula (BRAZ,
2010). E ainda veio a aprovação da Lei 10.871/04, que outorgou poder de polícia aos técnicos da
Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) (BRAZ, 2010).
Apenas em 2006, a Comissão Nacional Pró-Conferência de Comunicação (CNPC)14 emergiu como espaço de rearticulação do movimento. Em 2007, o grupo formalizou sua existência
com 36 associados de caráter nacional. Entre eles, o Coletivo Intervozes15, o FNDC e a ABRAÇO
como principais interlocutores16.
A principal demanda destes atores não foi uma nova lei, mas a realização de uma Conferência de Comunicação, entendida como espaço de diálogo e reconhecimento da “sociedade civil não
empresarial” como interlocutor político. Para eles, era imprescindível uma consulta pública com
participação dos empresários midiáticos17. O Governo respondeu em 2009 com a criação de uma
Comissão Organizadora (CO) da I Conferencia Nacional de Comunicação18 (BRITTOS e etc., 2010).
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Em um processo de forte tensão, e em meio a uma crise interna ao movimento, Lula
realizou a I Conferência Nacional de Comunicação em 2009, último ano de seu governo. No
episódio, foram aprovadas 617 propostas, muitas delas referentes aos meios comunitários, mas
não se estabeleceu nenhum compromisso da sucessora Dilma Roussef com o processo.
Venezuela
A Venezuela registra um histórico de política de Comunicação bastante particular. O país liderou o debate da Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação (NOMIC) nos anos 7019,
como reflexo da postura contraditória da Democracia do Ponto Fixo20, que mundialmente reivindicava mais pluralidade midiática, e internamente restringia e eliminava as vozes antagônicas
aos grandes meios.
Na eleição de Hugo Chávez, em 1998, o país seguia regulamentado pela Lei de Telecomunicações de 1940 e pelo Regulamento da Radiodifusão de 1941, que eram omissos ao serviço
não comercial. Neste cenário, as experiências de Comunicação Comunitária eram quase que
inexistentes. Elas nasceram paralelamente ao governo chavista, e nos anos 2000 surgiram a
Associação Nacional de Meios Comunitários, Livres e Alternativos (ANMCLA), a Rede Nacional
de Televisoras Comunitárias, a Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC-ALC), entre
outros. Todos com posturas bastante divergentes e ação fragmentada.
A ANMCLA é considerada a principal representação no setor. A entidade se formalizou em
2002 e reúne 300 coletivos de comunicação alternativa e é protagonista no debate da regulação
do setor. O modelo da ANMCLA é apontado como o mais radical e sua principal demanda é um
sistema público de Comunicação 100% gerido pelas comunidades.
No início do ano 2000, quando a entidade ainda sequer estava formalizada, seus líderes
foram contrários à política de Chávez na Lei Orgânica das Telecomunicações (LOT/2000). O
grupo interpretava que o marco atendia aos interesses dos grandes conglomerados comerciais,
pois permitiu a privatização dos serviços de telecomunicações. Os militantes fizeram pressão
para que a mesma medida reconhecesse e promovesse o serviço de radiodifusão sem finalidade
de lucro, o que foi regulamentado pelo Decreto 1.521/01.
Este foi o primeiro marco normativo do continente considerado favorável ao tema de
meios comunitários (PARRA, 2006; AMARC, 2009). Diferente da lei brasileira que regulava restritivamente o serviço, o Decreto da Venezuela considerava a exploração não-comercial como um
direito público, o qual deveria ser assegurado pelo Estado. Mesmo assim, a ANCLA considerava
o Decreto uma normativa menor e insistia na criação de uma lei específica.
Em 2002, o cenário ganhou contornos dramáticos com o golpe midiático21 e os meios
comunitários foram decisivos na rede de notícias contra-hegemônicas que ajudou a restabelecer
o presidente. Depois do episódio, conquistaram a Lei de Responsabilidade Social no Rádio e TV
(Resorte/2004), que fomentou a produção audiovisual independente. O país também assinou o
Convênio de Cooperação Integral Cuba-Venezuela (2004-2007) para compra de equipamentos
para os meios comunitários, criou órgãos específicos22 para o setor, empossou a primeira ministra23 das comunicações vinculada a uma emissora comunitária, e facilitou burocraticamente as
concessões (SEL, 2010).
Mas essa relação não foi tão harmônica quanto parece. Na época das entrevistas (2010),
a ANMCLA expressava várias inconformidades com a política governamental, como a ausência
de critérios claros para a distribuição de recursos públicos para as emissoras, a inexistência de
espaços de co-gestão, como um conselho de Comunicação com participação dos meios comunitários, e a falta de continuidade da política estatal (MOREIRA, 2011). Eles relatam que houve
uma diminuição significativa do apoio chavista, agora mais empenhado em estabelecer seus
próprios meios (BISBAL, 2006). Essas insatisfações evidenciam os desafios da militância na
Comunicação em uma sociedade polarizada, e a tendência do Estado em se apropriar dos meios
para a função de propaganda política.
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Conquistas
Analisando comparativamente o número de concessões conquistadas no período, o curioso é
que o Brasil foi o país que mais reconheceu emissoras comunitárias na última década. Até o ano
de 2011, no país, existiam 4.201 rádios comunitárias regularizadas. Na Argentina, eram apenas
126, e outras 270 tinham permissão na Venezuela. Mas então porque no Brasil as entrevistas
revelaram o movimento com maior grau de frustração em relação a nova esquerda? Para obter a
resposta, basta fazer a comparação dos avanços em relação aos governos anteriores (quadro 1).
Quadro 1 - Percentual de comunitárias aprovadas antes e depois das novas esquerdas.
Este olhar comparativo ajuda a entender o desânimo do movimento brasileiro porque quase não
houve diferença percentual entre as conquistas e permissões nos últimos quatro anos da gestão neoliberal de FHC e as conquistas na legalização de emissoras em todos os oito anos lulistas. Na Venezuela,
os protagonistas da Comunicação Comunitária associam o boom do setor com o programa chavista,
apesar das divergências. E na Argentina, todas as permissões conquistadas são anteriores à aprovação
da nova lei, e a ênfase deste caso é a própria alteração normativa, conforme mostra o quadro 2.
Quadro 2 - Regulação Comunicação Comunitária antes e depois das esquerdas.
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A regulação dos meios comunitários avançou na Argentina e Venezuela, com medidas favoráveis às demandas do movimento. No Brasil, podemos falar de um retrocesso, com medidas
que fortaleceram a repressão. Considerando que o modelo brasileiro optou pela continuidade da
Lei 9612/98, aprovada no período de avanço neoliberal, se constituiu como o cenário normativo
menos favorável à contra-hegemonia comunicativa. Para sustentar este argumento, é interessante comparar as regras(quadro 3).
Quadro 3 - Diferenças legais na regulação dos meios comunitários.
Tomando apenas como referência as especificações técnicas, faremos uma análise parcial
do modelo normativo. No caso argentino, o formato da emissora é livre, o que permite inclusive
rádios e televisoras comunitárias de caráter nacional. Ou seja, o que define o meio é sua finalidade social, não-comercial, e não sua limitação geográfica.
No Brasil, além da definição geográfica restrita e incoerente com as distâncias brasileiras,
a normativa tem critérios curiosos, como o que obriga o diretor de uma emissora comunitária a
residir há um quilômetro do transmissor, uma medida similar aos presos que gozam de liberdade condicional. Os entrevistados brasileiros classificam estas especificações como “surreais”.
Se cumpridas literalmente, elas tornam inviável (e ilegal) o funcionamento de qualquer emissora
comunitária. Por exemplo, uma rádio que cumpre a determinação de uma antena de 30 metros
e o transmissor de 25 watts, tecnicamente tem um sinal com potência superior ao limite de um
quilômetro de transmissão. Muitos radialistas contam que esse é o argumento de muitos técnicos da Anatel que decretam o lacre dos equipamentos e ameaçam com prisão aos comunicadores
por descumprirem a lei.
Na Venezuela, a concepção de comunitário também é geográfica, mas a abrangência do
sinal é maior que no caso brasileiro e a normativa permite ampliações. O problema é a discrecio-
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nalidade, pois o aumento do raio de distribuição depende de parâmetros que não estão previamente determinados. Faltam especificações de procedimentos decisórios em vários aspectos da
normativa, sujeitando o processo ao risco de arbitrariedades do executivo e a adoção de critérios
pouco confiáveis.
A partir deste cenário, podemos avançar em um quadro comparativo que interpreta a
normativa a partir de uma visão geral da política de Comunicação Comunitária implantada.
Foram fixados eixos de análise construídos a partir de parâmetros internacionais do direito à
Comunicação, e dos pilares básicos para o funcionamento de uma emissora, e a classificação foi
estabelecida a partir da análise dos entrevistados. A ideia é gerar uma classificação das políticas
de Comunicação Comunitária para além do número de frequências ou da interpretação estrita
das normativas.
Quadro 4 - Política de Comunicação Comunitária nas Novas Esquerdas.
Da síntese desses contextos, podemos interpretar que a primeira década dos anos 2000
terminou com três tipos distintos de políticas de Comunicação Comunitária. Registramos na Argentina um avanço institucional, comprometido apenas pela judicialização do tema; o Brasil foi
o avanço conservador, dirigido ao reconhecimento político de novos atores, mas sem mudanças
estruturais; e na Venezuela, temos um avanço polarizado, que apontou conquistas aceleradas,
mas sujeitas aos excessos governamentais e com poucos contrapesos institucionais.
Considerações finais
As viradas democráticas para a esquerda na América Latina foram uma oportunidade de novas
práticas de regulação dos meios e abriram brechas importantes para a incidência dos movimentos sociais comunicativos. No entanto, é importante destacar que não foi identificado que nenhuma dessas “novas esquerdas” trazia em seus programas a defesa do pluralismo e da democratização dos meios, ou parecia planejar uma política específica para a Comunicação Comunitária.
No início, a ação desses governos foi de indiferença para o tema e evidentemente optaram
por tentativas de reacomodação com os grupos hegemônicos da Comunicação. Na Argentina e
na Venezuela, a conciliação entre os interesses do Estado e dos empresários não aconteceu e a
ruptura com a mídia tradicional foi decisiva para aproximar estes governos da mídia comunitária.
Só depois de definir sua relação com os meios hegemônicos, as gestões Kirchner e Chávez se
aproximaram da agenda progressista da Comunicação. No Brasil, a opção lulista de pactuar com
as elites, o levou a evitar o conflito midiático e a se esquivar do enfrentamento do debate da
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regulação. Não por acaso, no Brasil onde esta ruptura entre mídia e governo não aconteceu, a
Comunicação Comunitária registrou o processo com menos resultados normativos.
Este cenário indica a limitação das “novas esquerdas” em pensar um modelo de Comunicação para além da dicotomia estatal (domínio político) ou privado (exploração mercantil). A falta
de entendimento da política de Comunicação como um direito público e a ausência de um projeto
político-comunicativo da esquerda com perspectivas progressistas, parece colocar o futuro dessas
conquistas em xeque. Constatação que provoca a sensação de incertezas. Seja pelas indefinições judiciais no caso argentino, pela paralisia do executivo brasileiro, quanto pelos extremismos venezuelanos, todas essas políticas se revelam ainda frágeis, pouco consolidadas e com destino indefinido.
O que este estudo indica é que modelos mais plurais e democráticos de políticas de Comunicação
dependem da pressão organizada e continuada dos movimentos sociais comunicativos.
Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1809-58442013000100011&script=sci_arttext
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| 29 de janeiro, Visibilidade Trans para quem? |
Sofia Favero
Estar visível não significa necessariamente algo que converta-se em um feedback saudável. Eu
tenho uma relação agridoce com a visibilidade, costumo andar pelas bordas quando estou na
rua, quase esbarrando nos muros, como se eu quisesse entrar neles e ser invisível. Finjo não
estar atenta a qualquer sinal de que a minha identidade foi percebida, ela é berrante! Acho, aliás,
chego a ter certeza que a palavra “aberração” está escrita em minha testa. O preço que pago
quando observam e apontam a minha travestilidade é muito alto, torno-me alvo de agressões,
chacotas e deboches. Descobri que é mais fácil camuflar-me entre os considerados normais e
tentar viver em paz.
“Olha lá a sua namorada passando!” Gritam para alguém enquanto ferem-me junto. Os
dedos que me denunciam e são apontados para mim anunciam uma realidade: é um crime ser
travesti. Quer dizer, quem sabe criminosos conseguem ter um reconhecimento social maior!
Ou até mesmo um caso clássico onde uma conhecida afirmava que havia mostrado fotos
minhas para um primo, no desejo de ridicularizá-lo. “Bonita, né?” Ela perguntou antes de contar
- “É travesti!”
Não são todos que podem dizer que já viram travestis durante o dia, a sociedade chega
a acreditar que as travestis são criaturas noturnas. Saem do chão quando anoitece, vão prostituir-se e voltam para o chão quando o sol começa a surgir. Afinal, o chão é o lugar determinado
previamente para “gente” como eu.
Estudo em uma faculdade na qual sou considerada pelos discentes um corpo estranho que
deve ser repelido. As pessoas reduzem a instituição de ensino superior a sala de aula e esquecem
dos corredores, praças, banheiros e outros recintos. Em todos eles posso ouvir os cochichos, as
mãos que são usadas para minimizá-los, os cotovelos que são empurrados, os olhos esbugalhados...
Expressões corporais que sussurram-me: esse lugar não é pra você.
Quando Jared Leto ganhou o Oscar por interpretar Rayon, imediatamente lembrei-me dos
teatros de outrora onde homens interpretavam mulheres pois a apresentação delas era proibida
e, dos negros que eram zombados pelos brancos na caricatura abominável conhecida pelo termo
“blackface”.
Será que não existia nenhuma pessoa trans qualificada para interpretar aquele papel? E
a respeito de todos os outros filmes sobre o tema? Quantos foram interpretados por travestis,
transexuais ou transgêneros? Dois? Um? Zero?
Se formos pegar a mídia brasileira iremos ter um longo histórico de pessoas cis parodiando pessoas trans em novelas. Em um caso recente uma travesti foi chamada para interpretar pasmem - uma prostituta. Até porque esse é o destino dogmático de toda travesti, não é mesmo?
Não existe travesti gerente, professora, faxineira, vendedora ou empresária. Imagina se colocam
uma travesti médica na novela? O revertério que isso não iria dar na cabeça do telespectador!
“Quem esse povo da margem pensa que é? Até ontem estavam na esquina! Agora querem
dizer na tv que conseguem um emprego formal?”
Eu tinha 18 anos quando assisti a Lea T em uma das suas primeiras entrevistas, até aquele
momento eu havia internalizado que o meu ponto de chegada seria - em caso de sorte - o salão
de beleza. Ter visto na televisão essa pessoa que compartilhava uma trilha similar deixou-me
esperançosa, se ela conseguiu ocupar aquele espaço eu também conseguiria ocupar outros.
Só eu sei como a representatividade importa. Contudo, não quero supor que o papel das
pessoas cis deva ser restrito ou que o papel das pessoas trans deva ser exclusivamente esse, eu
estaria criando uma barreira indesejada. Quero propor apenas que a nossa inserção ocorra de
forma que desconstrua a rede de estereótipos que orbita ao redor das esferas midiáticas. Que a
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falta - acarretada pela transfobia - de travestis, transexuais e transgêneros em espaços públicos
seja preenchida a partir da notabilidade dessas pessoas em locais de disputa. Que essa visibilidade naturalize a nossa presença, não mais causando a tradicional repulsa.
Ótimo filme, mas na minha luta nada acrescentou. Jared Leto imitando uma travesti
somente consegue me dizer - novamente - uma coisa, que nem para interpretarmos a nossa
própria existência nós prestamos.
FONTE: https://www.facebook.com/TReflexiva/posts/265969653573657:0
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| Eu quero uma trégua de 24 horas sem estupro |
Andrea Dworkin
Eu tenho pensado bastante sobre como uma feminista, como eu, pode se dirigir a um público
composto majoritariamente de homens politizados que dizem ser contra o machismo. E pensei
muito sobre se deveria haver uma diferença qualitativa no discurso que dirijo a vocês. E me dei
conta que era incapaz de simular que existe uma diferença qualitativa. Eu tenho observado os
movimentos de homens por muitos anos. Eu sou próxima de muitas pessoas que participam
desses movimentos. Não posso vim aqui como uma amiga, embora eu quisesse muito. O que
eu gostaria de fazer era gritar: e nesse grito, eu teria os gritos das estupradas, e o soluço das
espancadas, e ainda pior, no centro desse grito, eu teria o ensurdecedor som do silêncio das
mulheres, esse silêncio com o qual nascemos porque somos mulheres, e com o qual muitas de
nós morrem.
E se houvesse um apelo ou uma pergunta ou uma expressão humana nesse grito, seria este:
porque vocês são tão lentos? Porque vocês são tão lentos para entender as coisas mais simples;
não as complicadas coisas ideológicas. Vocês entendem essas. As coisas simples. Os clichês. Simplesmente que mulheres são humanas exatamente na mesma medida e maneira que vocês.
E também: nós não temos tempo. Nós mulheres. Nós não temos para sempre. Algumas
de nós não têm uma semana ou um dia para vocês discutirem o que seja que vá permitir que
vocês saiam às ruas e façam algo. Nós estamos muito próximas da morte. Todas as mulheres
estão. E nós estamos muito próximas do estupro e estamos muito próximas do espancamento.
E nós estamos dentro de um sistema de humilhação o qual não há escapatória para nós. Nós
usamos estatísticas não para quantificar as feridas, mas para convencer ao mundo que as feridas
existem. Estas estatísticas não são abstrações. É fácil dizer “ah, as estatísticas, uns as escrevem
para um lado e outros para o outro”. É verdade. Mas eu escuto sobre estupros um por um por
um por um por um, que também é como eles acontecem. Estas estatísticas não são abstratas
para mim. A cada três minutos uma mulher é estuprada. A cada dezoito segundos uma mulher é
espancada. Não há nada de abstrato nisso. Está acontecendo agora enquanto eu falo.
E está acontecendo por um simples motivo. Não há nada de complexo e difícil sobre o motivo. Homens estão fazendo isso, por causa do tipo de poder que homens têm sobre mulheres.
Esse poder é real, concreto, exercido de um corpo para outro corpo, exercido por alguém que
sente que tem o direito de exercer isso, exercido em público e em privado. É a soma e substância
da opressão das mulheres.
Isso não é feito há cinco mil milhas ou três mil milhas de distância. Isso é feito aqui e está
sendo feito agora e é feito pelas pessoas nesta sala, assim como por outros contemporâneos:
nossos amigos, nossos vizinhos, pessoas que conhecemos. Mulheres não precisam ir à escola
para aprender sobre poder. Nós precisamos apenas ser mulheres, andando pela rua ou tentando
terminar o trabalho doméstico após ter dado seu único corpo em casamento e perder os direitos
sobre ele.
O poder exercido por homens dia após dia é um poder institucionalizado. É protegido por
lei. É protegido pela religião e pela prática religiosa. É protegido pelas universidades, que são
fortalezas da supremacia masculina. É protegido pela força policial. É protegido por aqueles que
Shelley chamou de “os irreconhecidos legisladores do mundo”: os poetas, os artistas. Contra
esse poder, nós temos silêncio.
É algo extraordinário tentar entender e confrontar o porquê que homens acreditam – e eles
acreditam – que eles tenham o direito de estuprar. Homens podem não confirmar isso quando perguntados. Todos que acreditam que tem o direito de estuprar levantem suas mãos. Não
muitos irão levantar. É na vida que homens acreditam que eles têm o direito de forçar sexo, o
qual eles não chamam de estupro. E é algo extraordinário tentar entender que homens realmente
acreditam que eles têm o direito de bater e machucar. E é algo igualmente extraordinário tentar
entender que homens realmente acreditam que eles podem comprar o corpo de uma mulher
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para o sexo: e que isso é um direito. E é muito impressionante tentar entender que homens
acreditam que uma indústria de sete bilhões de dólares por ano que os fornece bocetas é algo
que eles tenham direito.
Este é o modo que o poder masculino se manifesta na vida real. Isto é o que a teoria
sobre a supremacia masculina significa. Significa que vocês podem estuprar. Significa que vocês
podem bater. Significa que vocês podem machucar. Significa que vocês podem comprar e vender
mulheres. Significa que há uma classe de pessoas para providenciar para vocês o que vocês
precisam. Vocês continuam mais ricos que elas, para que então elas possam te vender sexo. Não
apenas nas ruas e nos cantos, mas no trabalho. Este é outro direito que vocês presumem ter:
acesso sexual há qualquer mulher em sua volta, quando vocês quiserem.
Agora, o movimento dos homens sugere que homens não querem este tipo de poder que
eu acabei de descrever. Na verdade, eu escutei sentenças inteiras para este efeito. E ainda, tudo é
uma razão para não fazer algo sobre mudar o fato de que vocês tem este poder.
Se esconder atrás da culpa, essa é a minha desculpa favorita. Eu adoro. Ah, é horrível, sim,
e eu sinto muito. Vocês tem tempo para se sentirem culpados. Nós não temos tempo para vocês
sentirem culpa. Sua culpa é uma forma de consentimento para que continue acontecendo. Sua
culpa ajuda deixar as coisas como elas são.
Eu tenho escutado nos últimos anos muita coisa sobre o sofrimento dos homens causado
pelo sexismo. Claro, eu tenho escutado bastante sobre o sofrimento dos homens por toda minha
vida. É dispensável dizer que eu li Hamlet. Eu li Rei Lear. Eu sou uma mulher educada. Eu sei
que homens sofrem. Esta é um novo problema. Implícita na ideia de que este é um tipo diferente
de sofrimento está a afirmação, eu acho, de que em parte vocês estão na verdade sofrendo por
causa de algo que vocês sabem que acontece com outra pessoa. Isto seria realmente novo.
Mas a maior parte da sua culpa, do seu sofrimento, se reduz à: nossa, me sinto tão mal.
Tudo faz homens se sentirem mal: o que você faz, o que você não faz, o que você quer fazer, o
que você não quer querer fazer, mas vai fazer de qualquer forma. Eu acho que a maior parte do
seu sofrimento é: nossa, me sinto tão mal. E sinto muito que vocês se sintam mal – tão inutilmente e estupidamente mal – porque de certa forma esta é realmente sua tragédia. E eu não
quero dizer que é porque vocês não podem chorar. E eu não quero dizer que é porque não há
real intimidade nas suas vidas. E eu não quero dizer que é por causa da armadura que vocês têm
de usar para serem como homens, que é estúpida: e eu não duvido que seja. Mas eu não quero
dizer nada disso.
Eu quero dizer que há uma relação entre a forma que mulheres são estupradas e a sua socialização para estuprar com a máquina de guerra que os tritura e os cospe para fora: a máquina
de guerra por onde vocês passam assim como mulheres passaram pelo triturador de carne de
Larry Flynt na capa da Hustler. É melhor vocês acreditarem que estão envolvidos nessa tragédia
e que ela é sua também. Porque vocês são tornados em pequenos soldados desde o dia que
nasceram e tudo que vocês aprenderam sobre como evitar a humanidade de mulheres se torna
parte do militarismo do país no qual vocês vivem e o mundo que vocês vivem. É também parte
da economia que vocês frequentemente afirmam protestar contra.
E o problema é que vocês pensam que está lá fora: e não está lá. Está em você. Os cafetões
e os militaristas falam por vocês. Estupro e guerra não são tão diferentes. E o que os cafetões
e militaristas fazem é que eles lhes deixam tão orgulhosos de serem homens que conseguem
ficar de pau duro e meter com força. E eles pegam essa sexualidade aculturada, os botam em
pequenos uniformes e os mandam para matar e morrer. Agora, eu não vou sugerir para você que
eu acho que isso é mais importante que o que vocês fazem a mulheres, porque eu não acho.
Mas eu penso que se vocês querem olhar para o que esse sistema faz a vocês, então aqui
é onde vocês deviam começar a procurar: as políticas sexuais da agressão; as políticas sociais do
militarismo. Eu penso que homens tem muito medo de outros homens. Isto é algo que vocês às
vezes tentam expressar em seus pequenos grupos, como se, se vocês mudassem suas atitudes
acerca de cada um, vocês não ficariam com medo de cada um.
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Mas enquanto sua sexualidade tiver haver com agressão e seu senso de direito a humanidade tiver haver com ser superior a outras pessoas, e houver tanto desprezo e hostilidade em
suas atitudes com mulheres e crianças, como vocês não poderiam ter medo um do outro? Eu
penso que vocês corretamente perceberam – sem estar dispostos a encararem isto politicamente
– que homens são muito perigosos: porque vocês são.
A solução do movimento dos homens de fazer homens menos perigosos aos outros mudando a forma que vocês tocam e sentem os outros não é uma solução. É um recreio.
Estas conferências também estão preocupadas com homofobia. Homofobia é muito
importante: é muito importante para a forma como a supremacia masculina funciona. Em
minha opinião, as proibições com a homossexualidade masculina existem para proteger o poder
masculino. Faça isto com ela. Isto é dizer: enquanto homens estuprarem, é muito importante
que homens estuprem mulheres. Enquanto o sexo for cheio de hostilidade e exprimir tanto o
desprezo e poder sobre outra pessoa, é muito importante que homens não sejam desclassificados, estigmatizados e usados similarmente como mulheres. O poder dos homens enquanto
uma classe depende em manter a sexualidade masculina inviolada e a sexualidade feminina
sendo usada por homens. Homofobia ajuda a sustentar este poder de classe: isto também ajuda
a manter vocês indivíduos salvos entre os outros, salvos do estupro. Se vocês querem fazer algo
sobre homofobia, vocês vão ter que fazer algo sobre o fato de que homens estupram, e que sexo
forçado não é incidental a sexualidade masculina, mas é em prática paradigmático.
Alguns de vocês estão muito preocupados sobre a ascensão da Direita neste país, como
se isso fosse algo separado das questões do feminismo ou do movimento dos homens. Há um
bom cartoon que eu vi que traz tudo isso junto. Era uma grande foto de Ronald Reagan como um
cowboy com um grande chapéu e uma arma. E dizia “Uma arma em cada coldre; uma mulher
grávida em cada casa. Faça a América um homem de novo.” Estas são as políticas da Direita. Se
vocês estão com medo da ascensão do fascismo neste país – e vocês seriam muito idiotas se
não estivessem agora – então, é melhor vocês entenderem que a raiz da questão aqui tem haver
com a supremacia masculina e o controle de mulheres; acesso sexual às mulheres; mulheres
como escravas reprodutivas; mulheres como propriedades privadas. Este é o programa da Direita. Esta é a moralidade sobre a qual eles falam. Isto é o que eles querem dizer. Isto é o que eles
querem. E a única oposição a eles que importa é uma oposição a homens possuindo mulheres.
O que há de complexo em fazer algo sobre isso? O movimento masculino parece permanecer preso em dois pontos. O primeiro é que homens realmente não se sentem bem consigo
mesmos. Como vocês poderiam? O segundo é que homens vêm a mim ou a outras feministas e
dizem: “O que você está dizendo sobre homens não é verdade. Não é verdade para mim. Eu não
me sinto dessa forma. Eu sou contra tudo isso.”
E eu falo: não diga para mim. Diga aos pornógrafos. Diga aos cafetões. Diga aos donos
da guerra. Diga aos apologistas do estupro e aos celebradores do estupro e os ideólogos pró-estupro. Diga aos novelistas que pensam que estupro é algo maravilhoso. Diga à Larry Flynt. Diga
à Hugh Hefner. Não há porque dizer para mim. Eu sou apenas uma mulher. Não há nada que
eu possa fazer sobre isso. Esses homens presumem que falam por vocês. Eles estão na arena
pública dizendo que representam vocês. Se eles não representam, então é melhor que vocês os
deixem sabendo disso.
Depois, há o mundo privado da misoginia: o que vocês sabem sobre cada um; o que
vocês falam na vida privada; a exploração que vocês veem na esfera privada; os relacionamentos
chamados de amor, baseados na exploração. Não é o bastante encontrar uma feminista viajando
pela estrada e ir até ela para dizer: “Nossa, eu odeio isso”.
Digam isso aos seus amigos que estão fazendo isso. E há ruas lá fora onde vocês podem
dizer isto alto e claro, de modo a afetar as atuais instituições que sustentam estes abusos. Vocês
não gostam de pornografia? Eu gostaria poder acreditar que isto é verdade. Eu vou acreditar
quando eu os olhar nas ruas. Eu vou acreditar nisso quando eu olhar uma oposição política
organizada. Eu vou acreditar nisto quando os cafetões saírem dos negócios porque não há mais
consumidores.
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Vocês querem organizar homens. Vocês não tem que procurar por acontecimentos. Os
acontecimentos são parte da fábrica das suas vidas todo dia.
Eu quero falar a vocês sobre igualdade, o que igualdade é e o que significa. Isto não é
apenas uma ideia. Isto não é apenas uma palavra insípida que acaba sendo besteira. Isto não
tem nada a ver com todas estas declarações como: “Ah, isso acontece com homens também”.
Eu nomeio um abuso e escuto: “Ah, isso acontece com homens também”. Esta não é a igualdade
pela qual nós estamos lutando. Nós poderíamos mudar nossa estratégia e dizer: bom, ok, nós
queremos igualdade; nós vamos enfiar algo no traseiro dos homens a cada três minutos.
Vocês nunca ouviram isso do movimento feminista, porque para nós igualdade tem real
dignidade e importância – não é apenas uma palavra idiota que pode ser deturpada e feita parecer estúpida como se ela não houvesse real significado.
Uma vaga ideia sobre desistir do poder como uma forma de praticar igualdade é inútil.
Alguns homens têm vagos pensamentos sobre um futuro onde homens vão desistir do poder ou
um homem individual vai desistir de algum tipo de privilégio que ele tem. Isto também não é o
que igualdade quer dizer.
Igualdade é uma prática. É uma ação. É uma forma de vida. É uma prática social. É uma
prática econômica. É uma prática sexual. Ela não pode existir num vácuo. Vocês não podem ter
isto em suas casas se, quando as pessoas saem de casa, ele está num mundo de supremacia
baseado na existência do seu pau, e ela está num mundo de humilhação e degradação porque ela
é percebida como inferior e porque sua sexualidade é uma praga.
Isto não é dizer que o esforço para praticar igualdade em casa não importa. Importa, mas
não é o bastante. Se vocês amam igualdade, se vocês acreditam nisso, se esta é a maneira que
vocês querem viver – não apenas homens e mulheres juntos numa casa, mas homens juntos
em uma casa e mulheres juntas em uma casa – se igualdade é o que vocês querem e com o que
vocês se importam, então vocês tem que lutar pelas instituições que fará isto socialmente real.
Não é apenas uma questão da sua atitude. Você não pode pensar nisso e fazer existir. Você não
pode tentar às vezes, quando funcionar a seu favor, e jogar fora o resto do tempo. Igualdade é
disciplina. É uma maneira de vida. É uma política necessária criar igualdade em instituições. E
outra coisa sobre igualdade é que ela não pode coexistir com estupro. Não pode. E não pode
coexistir com pornografia ou com prostituição ou com a degradação econômica de mulheres em
qualquer nível, de qualquer forma. Não pode coexistir, porque implícito em todas estas coisas
está a inferioridade das mulheres.
Eu quero ver este movimento de homens fazer um compromisso para acabar com o estupro, porque este é o único compromisso significativo para igualdade. É surpreendente que em
todos nossos mundos de feminismo e anti-sexismo, nós nunca falamos seriamente sobre acabar
com estupro. Acabar. Interromper. Não mais. Não mais estupro. No fundo das nossas mentes,
nós estamos aguentando sua inevitabilidade como última chance de preservar o biológico? Vocês
pensam que isso sempre vai existir não importa o que façamos? Todas as nossas ações políticas
são mentiras se nós não fizermos um compromisso para acabar com a prática do estupro. Esse
compromisso deve ser político. Deve ser sério. Deve ser sistemático. Deve ser público. Ele não
pode ser autoindulgente.
As coisas que o movimento dos homens tem desejado valem a pena. Intimidade vale a
pena. Ternura vale a pena. Cooperação vale a pena. Uma vida emocional real vale a pena. Mas
vocês não podem tê-los em um mundo com estupro. Acabar com a homofobia está valendo a
pena. Mas vocês não podem fazê-lo em um mundo com estupro. O estupro fica na frente do
caminho de cada um e todas as coisas que vocês dizem que querem. E por estupro você sabe o
que eu quero dizer. Um juiz não precisa entrar nesta sala e dizer que de acordo com a lei tal e tal
estes são elementos de prova. Nós estamos falando de qualquer tipo de sexo coagido, incluindo
sexo coagido por pobreza.
Vocês não podem ter igualdade ou ternura ou intimidade enquanto houver estupro, porque
estupro significa terror. Significa que parte da população vive em um estado de terror e finge – para
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agradar e pacificar vocês – que não vive. Então, não há honestidade. Como pode haver? Vocês
podem imaginar como é viver como uma mulher dia após dia com a ameaça do estupro? Ou como
é viver com a realidade? Eu quero ver essa força, essa coragem e esses corpos lendários e a ternura
que vocês dizem que tem em nome das mulheres; e isso significa contra os estupradores, contra
os cafetões e contra os pornógrafos. Significa algo mais que uma renúncia pessoal. Significa um
ataque sistemático, político, ativo e público. E tem ocorrido muito pouco disso.
Eu vim aqui hoje porque eu não acredito que o estupro é inevitável ou natural. Se eu acreditasse, eu não teria razão para estar aqui. Se eu acreditasse, minha prática política seria diferente
dessa. Vocês já se perguntaram por que nós não entramos em um combate armado contra
vocês? Não é porque não há uma escassez de facas de cozinhas neste país. É porque nós acreditamos na humanidade de vocês, contra toda evidência.
Nós não queremos fazer o trabalho de ajudar vocês a acreditarem em sua humanidade.
Nós não podemos fazer mais isso. Nós sempre tentamos. E em troca, temos sido pagas com
exploração e abusos sistemáticos. Vocês vão ter que fazer isso sozinhos de agora em diante e
vocês sabem disso.
A vergonha dos homens diante das mulheres é, eu acho, uma resposta apropriada tanto
a o que homens fazem e o que homens não fazem. Eu acredito que vocês deveriam está envergonhados. Mas o que vocês fazem com a vergonha de vocês é usá-la como uma desculpa para
continuar fazendo o que vocês querem e mais nada; e vocês tem que parar. Vocês precisam parar.
Sua psicologia não importa. O quanto vocês estão machucados não importa no final mais que o
quanto nós estamos. Se tivéssemos nos sentado e apenas falado sobre o quanto o estupro nos
machuca, vocês acreditam que teria acontecido alguma das mudanças que vocês tem visto neste
país nos últimos quinze anos? Não haveria.
É verdade que nós temos que falar com as outras. De que outra forma, afinal, conseguiríamos descobrir que nós não fomos as únicas mulheres no mundo que não estavam pedindo por
isso, mas a quem o estupro e o espancamento aconteceu? Nós não poderíamos ler nos jornais.
Não poderíamos encontrar um livro sobre isso. Mas vocês sabem e agora a questão é sobre o
que vocês vão fazer; a questão não é sobre sua vergonha e sua culpa. Elas não importam para
nós. Elas não são boas o bastante. Elas não fazem nada.
Como uma feminista, eu carrego o estupro de todas as mulheres com quem eu tenho
falado pessoalmente nos últimos dez anos. Como uma mulher, eu carrego meu próprio estupro
comigo. Vocês se lembram das fotos que viram das cidades europeias durante a peste, onde as
pessoas pegavam cadáveres e os jogavam dentro dos carrinhos de mão que passavam? Bem,
é assim que é saber sobre o estupro. Pilhas e pilhas de corpos que têm vidas inteiras e nomes
humanos e rostos humanos.
Eu falo por muitas feministas, não apenas por mim mesma, quando eu digo a vocês que
eu estou cansada do que eu sei e triste além de quaisquer palavras sobre o que já foi feito a mulheres até este ponto, agora, às 2:24pm desse dia, aqui neste lugar.
E eu quero um dia de trégua, um dia de folga, um dia onde novos corpos não serão empilhados, um dia onde não haja novas agonias acrescentadas às antigas, e eu estou pedindo que
vocês me deem isso. E como eu poderia pedir menos? É tão pouco. E como vocês poderiam me
oferecer menos: é tão pouco. Mesmo nas guerras, há dias de trégua. Vão e organizem as tréguas.
Parem o lado de vocês por um dia. Eu quero uma trégua de vinte e quatro horas sem estupro.
Eu os atrevo a tentarem isso. Eu exijo que vocês tentem. Eu não me importo de implorar
para que vocês tentem. Por qual outro motivo vocês possivelmente estariam aqui? O que mais
esse movimento poderia significar? O que mais poderia significar tanto?
E neste dia, no dia da trégua, no dia que nenhuma mulher for estuprada, nós começaremos a real prática da igualdade, porque não poderemos começá-la antes desse dia. Antes desse
dia ela não significará nada, porque ela não é nada: não é real; não é verdadeira. Mas nesse
dia, ela começará a ser real. E então, ao invés de estupros, pela primeira vez nas nossas vidas –
homens e mulheres – começaremos a experimentar a liberdade.
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Se vocês tem uma concepção de liberdade que inclui a existência de estupro, vocês estão
errados. Vocês não poderão mudar o que vocês desejam. Por mim mesma, eu quero experimentar apenas um dia de liberdade real antes que eu morra. Eu os deixo aqui para fazer isso por mim
e pelas mulheres que vocês dizem que amam.
FONTE: https://catsfordestroypatriarchy.wordpress.com/2014/09/17/eu-quero-umatregua-de-24-horas-sem-estupro-andrea-dworkin/
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| Consumo infantil e a mãe negra |
Luciane Reis (colaboradora do site http://blogueirasnegras.org
Por já nascer à parte de uma sociedade racializada, a criança negra cresce aprendendo a valorizar
algumas características que são idealizadas e quase sempre não dizem respeito à sua identidade.
Ela aprende não apenas a conviver com a sociedade, mas também a viver no intuito de ter aquilo
que essa apresenta como um ideal de vida, de beleza e de comportamento. Ao ter contato cada vez
mais constante com diversos estímulos que chegam por diferentes meios: televisão, rádio, internet
ou passados através de programas de televisão, músicas, filmes e claro pela propaganda, esses
indivíduos têm acesso a dados culturais que acabam por alterar alguns dos instintos mais fortes do
ser humano, tais como o desejo de aceitação social e a necessidade de autorrealização independente
de como esta é apresentada.
As crianças negras aprendem a ser consumidoras de maneira muito delicada. Isso se dá
principalmente por meio da observação do comportamento das pessoas que as cercam e da influência proveniente das propagandas, uma das principais formas de contato com os diversos produtos,
ideologias, comportamentos e serviços existentes no mercado. Para se construir uma propaganda
que consiga interagir com as crianças e influenciá-las é preciso pensar em como “alcançá-las”. Os
comerciais de televisão voltados para o público infantil contam com uma mistura de imagens, cores,
sons e movimentos que prende a atenção das crianças, especialmente as menores. Os desafios
de ser mãe de uma criança negra começam quando esses recursos não visibilizam a presença de
seu filho. Dela é exigido negociar concepções diante de uma mídia que se pauta pelos ditames do
comércio e da publicidade, pouco interessada em questões como a da discriminação do negro ou
das consideradas minorias.
Para uma mãe negra, fica a tarefa diária de não somente educar seus filhos para um consumo
consciente, como também atuar contra discursos que perpetuam ideologias e que se mantêm até
hoje através da “venda” da representação negra nos meios de comunicação como produto a ser
consumido e não como consumidor, vide os anúncios de jornal do tempo da escravidão e a forma
de tomada de referências negra. Fazer uma criança entender que a sua imagem, mesmo não estando
presente nestes meios, não tira dela sua beleza e orgulho, é uma tarefa heróica e que somente mães
de crianças violentadas diariamente pelo racismo tem a dimensão. Por se tratar de pessoas em formação, a ausência delas na mídia pode causar danos à identidade racial e à auto-estima. A política
de invisibilidade de crianças negras, usada pela mídia brasileira, serve indiretamente de suporte para
a ideologia do branqueamento tão naturalizada nos dias de hoje. As propagandas de produtos infantis, salvo raras exceções, não têm contemplado adequadamente a representação negra.
As propagandas infantis sejam elas exibidas na TV aberta, fechada ou impressa acabam por
fazer crer a uma pessoa desavisada estar em um país europeu e nórdico tal a profusão de crianças
loiras. O professor Hélio Santos (2000, p. XX) é assertivo: “nada contra os loiros, mas tudo contra
a loirice”. Partindo dessa máxima, podemos pensar sobre a prática costumeira adotada no Brasil
de representação ínfima do contingente negro que é minoria ao olhar da mídia, especialmente nas
regiões Norte e Nordeste. É sabido que o momento entre a infância e a pré–adolescência constitui a
fase de construção da identificação dos indivíduos quando se estabelecem seus valores, conceitos,
modelos e padrões estéticos. Neste sentido, a tarefa de ser uma mãe negra se torna mais delicada
pela ausência de crianças negras no conjunto da mídia e em especial na propaganda, espaço que
acaba por induzir os indivíduos dessa categoria a se entender como subcidadãos e subconsumidores, independentemente da sua capacidade de consumo.
O racismo existente no Brasil não poupa a infância. Na verdade, é nessa fase que ele ganha
corpo e consegue novos adeptos. A propaganda pode transmitir para as crianças negras a interiorização de um lugar social delimitado e com horizontes claramente marcados. Construir a auto-estima de crianças, onde a cor de sua pele resume a impertinência de sua presença em um lugar onde
somente branco e rico seriam bem-vindos é uma tarefa árdua. A criança negra na mídia brasileira é
uma criança sem nome ou rosto, rejeitada pela cor, o que de forma abstrata registra a desigualdade
de maneira poderosa para resumir a racialização de classe da sociedade brasileira.
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Não temos dúvida de que as crianças negras de hoje têm uma realidade diferente das do
passado, inclusive com maior poder de compra e o direito de teoricamente serem livres. Mas
essa “liberdade” não lhes proporciona o direito de ser tratadas igual a todas as outras crianças.
Diferenças como a cor de sua pele e a classe social onde estão inseridas determinam suas realidades que, muitas vezes, está impregnada de preconceito. Essas chamadas diferenças, fruto do
reflexo social presente nos meios de consumo, são fatores que determinam quais dificuldades
serão enfrentadas. São tarefas detectadas muito cedo por suas mães de forma dolorosa nas
campanhas, nas compras de produtos infantis diários onde as crianças inteligentes, aventureiras,
fortes, saudáveis, amadas e felizes; aquelas que consomem toddynho ou nescau – são todas
brancas. A realidade é que as crianças negras são ainda invisíveis ao universo do consumo, o que
pode parecer óbvio, dada a sobreposição da desigualdade de classe à desigualdade racial no País:
negros ainda são mais pobres que brancos, um fato que alimenta intermináveis controvérsias
para segmentos privilegiados sobre as causas da desigualdade, onde estes têm dúvida se seriam
de renda ou racial.
As crianças negras não são invisíveis apenas nos meios de comunicação, mas em escolas,
hospitais ou espaços de lazer, isto é, como futuros cidadãos e cidadãs em uma sociedade que
se define como livre do racismo. Quando se é criança, a defesa de seu espaço se dá através da
inferiorização do outro, onde ela se coloca como superior, tendo como base alguma característica que a distingue, passando a se sentir inatingível aos ataques de seus colegas. Isso ocorre com
frequência na relação entre crianças brancas e negras: a primeira se elevando e a segundo se
retraindo e se auto-desvalorizando. (O racismo na construção das mensagens publicitárias, isto
é, a supervalorização da representação branca em detrimento da negra, contribui para a propagação de preconceitos, atingindo crianças negras e brancas em suas atitudes e comportamentos,
alargando a incidência do racismo para as futuras gerações) A maneira de construção midiática
brasileira contribui para que essas simplesmente adquiram preconceitos da mesma maneira que
aprendem outras atitudes e comportamentos, partilhados pela sociedade como um todo.
A baixa autoestima detectada em crianças e pré-adolescentes negros em grande medida
pode também ser atribuída a esta invisibilidade nas propagandas, pois a contrapartida esperada
numa sociedade de consumo é que a aquisição de bens e serviços dêem aos indivíduos uma
sensação de satisfação) advinda dos comerciais de produtos/marcas. Não podemos dizer que
em pleno século XXI, não tenhamos conquistado o papel de consumidor ativo na sociedade. Mas
mesmo tendo sido percebidos pelo mercado, isso não promove tratamento igual aos brancos
nos veículos de comunicação. Os pequenos avanços adquiridos ainda não conseguem fazer com
que a cor da pele não seja importante para o reconhecimento do outro como semelhante. É isso
que chamamos racismo: descrição do outro como um dessemelhante e abjeto pela cor de seu
corpo.
Numa sociedade marcadamente racista e que se vê como uma democracia racial, um
sujeito inimaginável pelo consumo é reiteradamente excluído por meio de sua cor e traços. Para
esse sujeito ser reconhecido, é preciso antes ser perceptível à ordem dominante, ou seja, algo
precisa ser reavaliado. A publicidade infantil age do mesmo modo, ao fazer com que uma criança
antes de entender o sentido político do racismo, seja alvo de uma rejeição que resume sua existência. À mãe negra cabe então a tarefa de contribuir para que, mesmo diante de toda rejeição
a seu corpo, as crianças negras não percam antes do tempo a ingenuidade infantil que em breve
será vencida pela observação cotidiana de práticas racistas. Com o tempo, a criança sem nome e
com somente cor diante da mídia brasileira encontrará outro grupo para traduzir sua experiência
de sentir-se desprezível que não será mais porque é uma criança em um ambiente de adultos,
mas um adolescente, um homem ou um velho negro em um mundo cuja ordem do consumo e
da lei é, ainda, branca.
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Realização:
Universidade
Federal
Fluminense

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