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Revista da Faculdade Social da Bahia. Ano 12, n. 2, agosto/dezembro 2013
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Faculdade Social da Bahia - Diálogos Possíveis
Av. Oceânica 2717, Ondina, Salvador, Ba
Prédio Central - Sala 117 - Fone: (71) 4009 3696
e-mail : [email protected]
Diálogos possíveis: revista da Faculdade Social da Bahia.
Ano 12, n.2 (ago/dez. 2013) -- . __ Salvador: FSBA, 2013
25 cm.
Semestral
ISSN 1677-7603
Seguindo as orientações da NBR 6021 A revista passa a
partir
de 2004 a adotar a designação de ano em substituição à
antiga
denominação de volume.
1. Educação-Brasil-Periódicos. 2. Comunicação socialPeriódicos. I. Título. II. Faculdade Social da Bahia.
CDU: 378
Direção:
Rita Margareth Costa Passos
Editor e Revisor:
Prof. Dr. José Euclimar Xavier de Menezes
Conselho Editorial / Editorial Advisory Board:
Adriana Farias Gehres - Universidade do Estado de Pernambuco
Alexandra Alvarez - Universidad de los Andes - Venezuela
Antônio de Jesus Tavares - Universidade Federal de Sergipe
Clovis Renan Jacques Guterres - Universidade Federal de Santa Maria
José Antônio Pinho - Universidade Federal da Bahia
José Euclimar Xavier Menezes – Universidade Católica do Salvador e Faculdade Social da Bahia
Luiz Alberto Sanz - Centro Laban - Rio
Tau Golin - Universidade de Passo Fundo
Luis Ernesto Behares - Universidad de la República del Uruguay
Mônica Salomon - Universidad Autónoma de Barcelona
Neusa Demartini Gomes - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Rosana Zucolo - UNIFRA, Centro Universitário Franciscano
Victor Gentilli - Universidade Federal do Espírito Santo
Tereza Cristina de Oliveira – Faculdade Social da Bahia
Elaine Costa Fernandez – Univeristè Toulouse le Mirail/Universidade Federal de Pernambuco
Eda Terezinha de Oliveira Tassara - USP-SP
Eugenia Scabini – Università Cattolica del Sacre Coure/Milão/Itália
Maria Cecília Leite de Moraes – Centro Universitário Adventista/SP
Tchirine Mekideche - Universitè de Argel/Argélia
Elaine Pedreira Rabinovich – Universidade Católica de Salvador
Jaroslaw Merecki – Pontificia Università Lateranense/Roma
Antoinette Fauve-Chamoux – Ècole des hautes études en sciences sociales/Paris
Programação visual, diagramação e editoração eletrônica / Visual programing, electronic diagramming and
editing: Leonardo Alves dos Santos
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IOSSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRI
Mulheres na política sob uma perspectiva histórica e de gênero: da França à Guiné (17891958)
Antoinette Fauve-Chamoux - EHESS-França
7
Women in politics in historical and gender perspective: from France to Guinea (1789-1958)
Antoinette Fauve-Chamoux - EHESS-France
35
Complemento
Antoinette Fauve-Chamoux - EHESS-França
60
Complement
Antoinette Fauve-Chamoux - EHESS-France
69
Diálogos epistolares como fontes para a história das ciências: a correspondência de Miguel
Rolando Covian
Eneida Nogueira Damasceno, Marina Massimi
78
A viagem do Windhuk: apontamentos sobre migração, sofrimento ético-político e identidade
Diane Portugueis, Omar Ardans
90
Algumas observações sobre a filosofia do amor em Dietrich Von Hildebrand e Karol Wojtyla
Jaroslaw Merecki
104
Some remarks on the philosophy of love in Dietrich Von Hildebrand and Karol Wojtyla
Jaroslaw Merecki
112
Comuna da terra: relação entre sujeitos na paisagem híbrida campo cidade
Ana Paula Soares da Silva
FFCLRP-USP/RP/ IEA-USP
121
Redes de cuidado de crianças com paralisia cerebral
Camila Ferrari de Almeida, Elaine Pedreira Rabinovich
144
Terapia ocupacional e família na vida de portadores da síndrome de down: duas histórias
bem sucedidas
Pessia Grywac, Maria Cecília L Moraes, Zan Mustacchi
163
Qual o tipo de famìlia para o futuro?
Nicola Reali
178
Quale tipo di famiglia per il futuro?
Nicola Reali
192
Infâncias
Maria de Fátima Pessôa Lepikson
206
Construção da imagem e estética corporal entre fisiculturistas
Azenildo M. Santos, Thomas Zacharias
226
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aos
leitores
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Apresentação O segundo volume de 2013 da revista Diálogos Possíveis reitera a
política de disseminação da ciência, com vistas à incorporação dos
protocolos internacionais que este editor, junto à Diretoria Geral da
Faculdade Social da Bahia decidiram implementar. Isto significa que,
desde 2012, a Revista Diálogos Possíveis vem procedendo uma série
de ajustes nos seus mecanismos de atração dos pesquisadores de
projeção nacional e internacional para confiar ao periódico a
publicação dos resultados dos seus trabalhos de nível avançado.
Exatamente por isso decidimos somente publicar doutores
pesquisadores em parceria com seus orientandos e/ou colegas de
execução de projetos de pesquisa. Mas não somente: a política
editorial
implementada
tem
investido
fortemente
na
internacionalização do dispositivo: alguns dos textos disponíveis,
desde 2013.1, passam a ser publicados na língua original (francês,
inglês, italiano e espanhol) juntamente com a tradução em português
de nossa responsabilidade. Isso implica uma forte aposta na
ampliação da rede de colaboradores e de leitores. Isso repercute,
inclusive, na composição do Comitê Científico que confere suporte à
Diálogos. Neste número temos 1 artigo em inglês e dois em italiano.
São 12, advindos de várias regiões do Brasil e do âmbito
internacional (França e Itália) e de vários centros de pesquisa
especializados nas temáticas dos artigos aqui apresentados.
Os temas, per si, já indicam o quanto temos apostado na sinergia para
a promoção do diálogo interdisciplinar: Da Escola de Altos Estudos
de Paris, a historiadora da Família, Profa. Dra. Chamoux, propõe um
estudo comparativo da questão de gênero entre a Guiné e a França
colocando o seu foco na participação feminina na vida política dessas
nações; Damasceno e Massimi nos propõem a reflexão sobre o uso
de documentos epistolares como território que cria condições para
que a produção em História das Ciências seja efetivada; Portugais e
Ardans debatem o sofrimento em perspectiva ético-política para
visitar histórias de vida de migrantes num dos mais difíceis cenários
políticos da história do Brasil, propondo a afetividade como norte de
ordenamento dos sujeitos inseridos neste cenário; Em perspectiva
filosófica, Merecki coteja a fenomenologia em Von Hildebrand e
Wojtyla para refletir a filosofia do amor; Mirando etnograficamente
o modo como uma população urbana acessa ao Sistema Único de
Saúde, Tavares pensa a igualdade social e a participação democrática
como sendo os desafios relevantes da vida citadina do Brasil de hoje;
Silva propõe refletir sobre a Comuna da Terra a partir das
experiências de trânsito de crianças e adultos em assentamentos;
Almeida e Rabinovich desenham suas conclusões de pesquisa junto à
Rede Sarah com cuidadoras de crianças com paralisia cerebral,
repensando, sobretudo, o que ocorre com essas mulheres que
abdicam de várias dimensões de suas vidas para se dedicarem aos
cuidados dos seus filhos acometidos com esta grave morbidade;
Grywac et al apresentam os resultados de pesquisa acerca de famílias
que aditam aos seus cotidianos a responsabilidade com a terapêutica
de membros com síndrome de Down, alertando que, malgrado as
dificuldades enfrentadas, há relatos familiares acerca do êxito na
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participação dos projetos terapêuticos; Em seu texto “Que tipo de
família para o futuro”, Nicola Reali nos convida a refletir sobre a
dinâmica familiar indispensável para o enfrentamento das mudanças
que ocorrem na sociedade contemporânea, que solicita ou dissemina
vários arranjos familiares; Lepikson apresenta com sua proposição
indicadores da vulnerabilidade das crianças no Brasil de hoje e,
finalmente, Santos e Zacharias discutem a alteridade a partir da
tendência de uma hiper valorização do corpo, tomando como
paradigma o impacto do fisioculturismo na contemporaneidade.
Aditivo importante: A FSBA detém a propriedade intelectual e
administrativa da Revista. Mas passa a contar, desde 2013, com a
forte parceria do Programa em Família na Sociedade
Contemporânea/UCSal, cuja rede de cooperação nacional e
internacional redimensiona as chamadas em editais para os
pesquisadores aqui presentes. Essa parceria é selada como
colaboração intelectual que se mostra muito fecunda às duas
instituições, convergentes no esforço de internacionalização do
periódico que doravante chancelam.
Editor Prof. Dr. José Euclimar Xavier de Menezes
Editor da Revista Diálogos Possíveis/FSBA
Docente e pesquisador do Programa em Família na Sociedade
Contemporânea/UCSal (Capes 5)
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1
Mulheres na Política sob uma Perspectiva Histórica
e de Gênero: da França à Guiné (1789-1958)
Antoinette Fauve-Chamoux: [email protected]
Coordenadora de seminários acadêmicos na Ècole des Hautes Etudes en Sciences sociales/Paris, junto ao
Centre de recherches historiques; Responsável do Bureau des Echanges culturels de l’EHESS;
Condecorada com a Ordre du Mérite Polonais; Dama da
Ordre des Palmes Académiques; Temas de
interesse: História das Civilizações da Europa; História da família, História urbana, História das mulheres,
Modelos comparados de reprodução familiar, demografia histórica.
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BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC
Resumo A Revolução Francesa de 1789 levou ao desenvolvimento de novos sistemas políticos,
baseados na democracia, que se expandiram pelo mundo. A primeira parte deste artigo
explorará a presença e as ações, no começo da França moderna, de mulheres
relacionadas aos movimentos da Revolução Francesa. A segunda parte vai se referir ao
grau de participação política de mulheres do Império Francês, sob a constituição
colonial francesa (Code de l’indigénat), focalizando a África francesa Ocidental. Será
enfocado como um estudo de caso, o que aconteceu na Guiné durante a metade do
século XX, quando as mulheres desempenharam um importante e único papel político
neste novo estado africano independente e socialista.
Palavras-chave mulheres ativistas; impérios coloniais; direito ao voto.
Abstrac The French revolution of 1789 led to the development of new political systems, based
on democracy, which expanded worldwide. The first part of this article will explore the
presence and actions, in early modern France, of women related to French Revolution
movements. The second part will concern the degree of political participation of
women of the French Empire, under the French colonial constitution (Code de
l’indigénat), focusing on French West Africa. It will focus, as a case study, what
happened in Guinea during the mid-20th century, when women played an important
and unique political role in this new African independent and socialist state.
Keywords activist women; colonial empires; right to vote.
8
A Revolução Francesa de 1789 levou ao
desenvolvimento de novos sistemas políticos, baseados na
democracia, que se expandiram pelo mundo. Para a
conferência que aconteceu em Aligarh, em fevereiro de 2012,
os participantes foram encorajados a estudar quanto a
participação das mulheres na estrutura política foi efetiva sob
diferentes sistemas políticos. Como historiadora europeia da
época moderna, sempre pesquisei as mulheres nos arquivos,
tentando segui-las em seu curso de vida e reconstruir sua
mentalidade e agência específica na sociedade. Tive de fazer
uma escolha para este estudo, como uma mulher historiadora,
olhando para as mulheres na política no passado. Decidi
explorar a questão em duas direções.
A primeira parte explorará a presença e as ações, no
começo da França moderna, de mulheres relacionadas aos
movimentos da Revolução Francesa. A segunda parte vai se
referir ao grau de participação política de mulheres do Império
Francês, sob a constituição colonial francesa (Code de
l’indigénat), focalizando a África francesa Ocidental.
Selecionei, como um estudo de caso, o que aconteceu na Guiné
durante a metade do século XX, quando as mulheres
desempenharam um importante e único papel político neste
novo estado africano independente e socialista.
PROCURANDO MULHERES ATIVAS NOS ARQUIVOS
E NA LITERATURA HISTÓRICA
Como uma historiadora demógrafa e social, observei
milhares de nascimentos, casamentos e mortes de mulheres nos
registros das paróquias do período moderno inicial, antes da
Revolução Francesa que aconteceu em 1789. Mulheres casadas
trabalhavam como mães e donas de casa, criavam crianças e
tomavam conta de idosos, mas também produziam bens e
mercadorias para o mercado. As mulheres pagavam impostos
enquanto solteiras ou viúvas. Nos censos, eram mencionadas
como membros de sua moradia ou chefes da casa com ou sem
uma ocupação, negócio ou status social declarado. Tomavam
conta de casas, administravam fazendas, vendiam nas ruas e
compravam em vários mercados, trabalhavam em lojas, no lar,
ou eram empregadas domésticas em casas particulares ou
instituições. Mulheres eram mencionadas em relatórios de
notários, assinavam (ou não) seus contratos de casamento ou
um testamento, transmitiam propriedades a crianças ou outras
pessoas (parentes ou não) Também transmitiam conhecimento,
normas culturais e valores simbólicos. Algumas tinham
problemas com várias cortes de justiça. Mas a presença
feminina na política era rara, quase inexistente. Certamente,
em alguns contextos rurais e urbanos, apareciam em papeis
fiscais e mesmo em listas da milícia, quando, sendo cabeças do
lar, esperava-se que respondessem às requisições das
9
autoridades municipais, como no início do período moderno na
cidade de Rheims Champagne (FAUVE-CHAMOUX, 2000).
Segundo Regine Pernoud, antes de 1498, nas assembleias
urbanas ou nos distritos rurais do reino francês, as mulheres,
quando eram chefes de família, sendo solteiras ou viúvas,
possuíam o direito ao voto (PERNOUD, 1980).1 Este era para
eleger representantes para as guildas (confrarias) de artesãos
ou lojistas, ou para eleger habitantes locais para alguma
responsabilidade municipal. Viúvas nobres, dotadas com um
feudo e abadessas religiosas podiam votar em representantes
nos États Généraux [Estados Gerais].
Estudando papeis de gênero no século XVI em Lyon,
uma grande e próspera cidade francesa, Natalie Z. Davis
considerou que algumas mulheres eram ocasionalmente
politicamente visíveis na vida pública de sua cidade. Mas
nunca ao ponto de poder se tornar um membro da Assembleia
dos habitantes ou parte do Conselho municipal (DAVIS, 1979,
p. 120). Mas isto era diferente em algumas comunidades do
Pireneu onde as mulheres podiam ser herdeiras e
representavam sua “casa” e família nas Assembleias Gerais de
sua vila, se fossem chefes de famílias, sendo viúva ou solteira
(FAUVE-CHAMOUX, 2002).
Algumas reformistas mulheres, revolucionárias e
feministas do primeiro momento, apareceram durante o século
XVIII, a época do Iluminismo, em: 1) sua demanda por
liberdade, escolha individual, sexualidade, parentalidade; 2)
sua demanda por identidade política, nacional, cultural –
incluindo religião; e 3) sua luta por direitos e educação. Até o
desenvolvimento da história das mulheres como uma disciplina
acadêmica nos 1970s, as mulheres que tentavam se parecer
com homens eram objetos de atenção. Algumas eram
suspeitadas de ser homossexuais e eram chamadas de
Amazonas ou Lésbicas (BLANC, 2003; DeJEAN, 1989).
Nas últimas décadas do século XX, as historiadoras
mulheres conseguiram trazer as mulheres à luz. As mulheres
apareceram como proprietárias, produtoras, como esposas de
agricultores, e artesãs nas lojas, indústrias de algodão ou
trabalhadoras em fábricas. Elas tinham algum poder
econômico, familiar ou comunitário; transmitiam bens
materiais e não materiais (habilidades, cultura, linguagem e
segredos) em vários níveis das sociedades.
Mas as mulheres como uma força na política
permaneceram
dificilmente
visíveis
(BRIDENTHAL;
KOONZ, 1977; HUFTON, 1992, 1997), mesmo quando elas
não estavam apenas restritas à esfera privada e totalmente
submissas a alguma dominação masculina (SOGNER, 1988).
Gostaríamos agora de considerar como mulheres tiveram parte
1
Durante o começo do Antigo regime, para as mulheres adultas francesas, o direito ao voto, quando chefe de família, foi suprimido por
um edital real registrado pelo Parlamento Francês em 1498. Mais tarde, outro edital, em 1593, também registrado pelo Parlamento de
Paris, proibiu qualquer mulher de exercer uma ocupação oficial para o Estado, como um empregado civil.
10
na Revolução Francesa, mulheres da classe operária que se
expressavam nas ruas, como também mulheres educadas que
desencadearam as ideias feministas.
MULHERES DA CLASSE OPERÁRIA E OS DEBATES
REVOLUCIONÁRIOS FRANCESES
Em 05 de outubro de 1789, um grupo de mulheres
parisienses se organizou e marchou para Versalhes, residência
do Rei Louis XVI, quinze milhas distante. Estavam
aborrecidas devido ao alto preço do pão. No caminho, homens
a elas se juntaram. Alcançaram Versalhes às 4 horas, ganharam
uma audiência com o rei. Ele concordou com as demandas
quanto ao preço da comida e aceitou retornar a Paris, desde
que pudesse trazer consigo seus membros familiares. Jacques
Louis David (1748-1825) pintou esta típica mulher
trabalhadora da época, uma “mulher do povo de Paris”, uma
maraîchère plantando e vendendo vegetais frescos no
mercado.2 Depois deste episódio de outubro de 1789, um
grupo de mulheres apresentou à Assembleia Nacional uma
petição propondo um decreto dando igualdade às mulheres.
A Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadãos foi
adotada em 26 de agosto de 1789 pela Assemblée nationale
constituante [a Assembleia Nacional Constituinte]. Ela fez uma
estrita distinção entre cidadãos franceses que tinham plenos
direitos políticos e aqueles que não o tinham3. Aqueles
considerados para ter plenos direitos políticos eram chamados
cidadãos “ativos”. Eles deviam ser homens franceses, ter ao
menos 25 anos de idade, pagar impostos equivalentes a pelo
menos três dias de trabalho, e não podiam ser definidos como
empregados (THOURET, 1996). Isto significa que mulheres,
crianças, menores, pobres, escravos, estrangeiros, serventes e
muitos outros foram privados de direitos políticos O conceito
de “cidadãos passivos” foi então forjado para compreender
aquelas populações que foram excluídas dos direitos políticos.
Mulheres adultas estavam orgulhosas de serem “cidadãs”, mas
elas não tinham direito ao voto.
Durante a Revolução Francesa, muitas mulheres
estavam acostumadas a seguir os debates políticos enquanto
tricotavam (citoyennes tricoteuses) para negociantes. O ano de
1793 foi marcado, em Paris, por um forte comprometimento
político de mulheres trabalhadoras vindas de círculos
populares na luta contra o partido Girondista e os moderados.
Encontrámo-las tricotando meias de lã nos lugares públicos
dos encontros das “sessões” de Paris ou na assembleia da
2
Um famoso retrato pintando por Jacques Louis David está preservado em Lyon, Musée des Beaux-Arts, frequentemente chamado de
“A pescadora”.
3
Em 29 Setembro 1789, Jacques-Guillaume Touret apresentou um relatório “sobre a Base da Elegibilidade Política” para o Comitê
Constitucional da Assembleia Nacional (TOURET, 1996). Este constituiu a principal base para a legislação subsequente para as
qualificações para votar.
11
Convention [Convenção]4, além dos sans culottes, defendendo
a ação dos líderes Jacobinos5. Tricotar meias era para elas um
trabalho regular, uma atividade proto-industrial. Os
comerciantes lhes davam o material bruto (aqui bolas de lã) e
encomendavam o trabalho a ser feito. Na época, algumas
mulheres recebiam um pequeno suporte financeiro do Clube
dos Jacobinos para passar horas escutando os debates e agindo
como apoiadoras devotadas dos revolucionários: os Jacobinos
davam às mulheres 40 soles por dia para se sentar e ficar na
galeria para aplaudir as moções revolucionárias, o que está
atestado por uma ilustração da época [Figure 1]. De modo
algum estavam perdendo o seu dia de trabalho. Nas províncias
francesas, as mulheres organizaram grupos de discussão
chamados “Clubes” ou “Sociedades para mulheres” (ver mapa
in GODINEAU, 1988, p. 114). Estas eram mulheres mais de
classe média, esposas dos homens locais ativos nos
movimentos revolucionários. Elas se engajavam em ações
sociais e disseminação de novidades. Também discutiam o
projeto referente ao divórcio (a lei permitindo o divórcio na
França foi promulgada em 30 de agosto de 1792).6
Mirabeau, a famosa figura revolucionária disse: «sem
as mulheres não teria havido revolução"7 (AUBAUD, 1993).
Contudo, algumas mulheres pagaram com suas vidas o que
expressavam em palavras ou ações a favor do reconhecimento
dos direitos das mulheres, quando defendiam pessoas
vulneráveis e lutavam contra a escravidão. Este foi o caso de
Olympe de Gouges, que foi enviada à guilhotina em 1793.
OLYMPE DE GOUGES (1748-1793) E A DECLARAÇÃO
DOS DIREITOS DAS MULHERES (1791)
“Marie Gouzes”, nascida Manon Philipon8 e conhecida
por Olympe de Gouges (1748-1793), era uma escritora
francesa e uma feminista pioneira. Nascida em 1748, numa
família de Montauban, uma cidade da província no sudoeste da
França, era a filha de um mestre artesão e sua mãe era a filha
de um rico negociante/fabricante têxtil (maître tondeur de
4
A Convention foi a primeira Assembleia eleita da Primeira República (1792–1804).
5
Veja gravura por Pierre-Etienne Lesueur, « Les tricoteuses jacobines ou de Robespierre », Musée Carnavalet, Paris, Réunion des
Musées Nationaux (Figure 1). Um grande número destas mulheres recebia 40 pence por dia para vir ao comício dos Jacobinos e
aplaudir as moções revolucionárias, Ano 2” [1793-1794].
6
Em 30 de agosto de 1792, a Assembleia Legislativa Francesa declarou que o casamento podia ser solvido pelo divórcio Reabilitou o
divórcio, uma categoria legal existente sob a lei romana, que a lei canônica católica havia suprimido. A lei autorizando o divórcio na
França foi adotada em 20 de setembro de 1792 pela Assembleia Nacional e modificada por decretos de 1793 e 1794. O divórcio foi
incluído no Código Civil Napoleônico de 1804, mas suprimido posteriormente sob o regime político da Restauração pela lei de 8 de
maio de 1816. Após décadas de debates, o divórcio foi restaurado apenas no fim do século XIX, sob a Terceira República Francesa,
com a lei de 27 de julho de 1884 (FAUVE-CHAMOUX, 2001).
7
O Conde de Mirabeau, nascido em 1749, embora um nobre, foi eleito em 1789, em Aix-en-Provence como um delegado do TerceiroEstado. Morreu de doença em 2 de abril de 1791, como Chanceler da Assemblée Nationale (eleito em 30 de janeiro de 1791).
8
Olivier Blanc (2003) retificou numerosas asserções errôneas concernentes à vida e origens familiares de Olympe de Gouze.
12
draps). Um dos rumores que circulava sobre suas origens era
que sua mãe tinha sido amante do marquês Jean-Jacques Le
Franc de Pompignan, escritor de peças. Ela recebeu uma boa
educação em Montauban (LACOURT, 1900). Com a idade de
17 anos, em 1765, casou-se com Louis-Yves Aubry, um oficial
que servia a casa de Gourgues, uma família nobre. Após três
anos de casamento e um filho, abandonou seu marido e foi
para Paris – onde sua irmã estava vivendo – procurando
celebridade. Mudou o nome para Olympe de Gouges,
organizou um teatro e se tornou uma escritora bem sucedida.
Em setembro de 1785, foi mandada para a cadeia na Bastilha,
por um drama teatral antiescravagista, intitulado L’esclavage
des Noirs [A escravidão dos Negros] (CHALAY;
RAZGONNIKOFF, 2006), posteriormente publicado em 1792
sob o título: L’esclavage des Noirs ou l’heureux naufrage [A
escravidão dos Negros ou o feliz naufrágio].
Inspirada pela Déclaration des droits de l’homme et du
citoyen [Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão]
adotada em 26 de agosto de 1789 pela Assembleia Nacional
Francesa Constituinte, Olympe de Gouges publicou a
Déclaration des droits de la Femme et de la Citoyenne
[Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã] in 1791,
construída em um estrito paralelo à Déclaration de 1789, com
o mesmo número de artigos. A primeira página era uma
introdução (Preâmbulo), declarando o seguinte:
“Mães,
meninas,
irmãs,
todas
representantes da nação, peçam para ser
representadas na Assembleia Nacional.
Considerando que a ignorância, a
desatenção ou o desprezo pelos direitos das
mulheres são as únicas causas das
infelicidades públicas e da corrupção dos
governos, resolvemos expor numa solene
declaração,
os
direitos
naturais,
inalienáveis e sagrados das mulheres, de
modo que esta declaração, constantemente
presente a todos os membros da sociedade,
recorde-os sem cessar seus deveres, de
modo que os atos do poder das mulheres e
aqueles do poder dos homens possam ser
comparados todo o tempo visando
qualquer instituição política e, portanto,
mais respeitados, de modo que as queixas
dos cidadãos, baseadas daí em simples e
indisputáveis princípios, sempre se dirija à
preservação da constituição, aos bons
costumes e à felicidade de todos”.
“Consequentemente, o sexo que é superior
em beleza como em coragem nos
sofrimentos maternais, reconhece e
declara, na presença e sob os auspícios do
13
Supremo Ser, os seguintes direitos da
Mulher e da Cidadã.” (Preâmbulo,
Declaração dos Direitos da Mulher e da
Cidadã, 1791).
Olympe de Gouges foi uma pioneira ao pedir a
instituição do divórcio – primeiro e único direito conferido à
mulher pela Revolução9 – que foi adotada por instigação do
partido Girondista alguns meses mais tarde. Ela também pediu
a abolição do casamento religioso e sua substituição pelo
casamento civil, um contrato assinado por parceiros sexuais
que coabitam. Sugeriu que crianças nascidas de uniões
consensuais podiam ser reconhecidas por seus pais como
legítimas. Tudo isto era realmente revolucionário na época,
mesmo quando Gouges lutou pela paternidade livre e
reconhecimento de crianças nascidas fora do matrimônio. Uma
de suas anotações aponta para um novo sistema de cuidado de
saúde mãe e criança dentro de um estado de bem-estar (ver
Lettre au Peuple ou projet d’une caisse patriotique, par une
citoyenne, setembro 1788). Horrorizada com o nível de
mortalidade materna em hospitais urbanos, sugeriu a criação
de hospitais específicos para a maternidade (MOUSSET,
2003).
OLYMPE DE GOUGES:
CORAJOSO E FATAL
UM
COMPROMISSO
Olympe propôs dezessete artigos em sua Declaração
dos Direitos da Mulher e da Cidadã (1791), espelhando os
dezessete artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, começando, como mencionado acima, pelo
Preâmbulo, e terminando com um Pós-âmbulo. O Artigo X é
particularmente interessante, dado que, condenada à morte,
posteriormente morreu em Paris em 06 de novembro de 1793,
executada pela guilhotina.
“Uma mulher tem o direito de subir no
cadafalso; ela deve igualmente ter o direito
de subir o rostrum, desde que suas
demonstrações não perturbem a ordem
pública legalmente estabelecida” (Artigo
X, Declaração dos Direitos da Mulher e
da Cidadã, 1791).
Olympe de Gouges proclamava o direito das mulheres
de participar na vida política e no sufrágio universal. Em 03 de
julho de 1790, Nicolas de Condorcet já havia proposto, sem
sucesso, dar o direito ao voto para mulheres em um artigo no
Journal de la société de 1789 (CONDORCET, 1790). Seu
9
Ver acima, nota 7.
14
argumento era que: “Seria necessário provar que os direitos
naturais das mulheres não são exatamente os mesmos que o
dos homens ou mostrar que as mulheres não são capazes de
exercê-los, o que é insustentável” (Sur l'admission des femmes
au droit de cité, 03 julho de 1790).
E, além da instituição do divórcio (30 de agosto
de1792), já mencionada, o feminismo de Olympe encorajou a
adoção de vários outros decretos oficiais que almejavam
melhorar a condição das mulheres e reconhecer seus direitos
(SIEDZIEWSKI, 1998). Comparando, Mary Wollstonecraft,
uma feminista inglesa-irlandesa, pode parecer menos arrojada,
a respeito das posições de conquista e corajosas de Olympe de
Gouge.
Wollstonecraft publicou em 1792 A Vindication of the
Rights of Woman, With Strictures on Political and Moral
Subjects, [A Reivindicação dos Direitos da Mulher, com
Compressões sobre Sujeitos Políticos e Morais] imediatamente
traduzida para o francês (WOLLSTONECRAFT, 1792a &
1792b) em que ela estava procurando “persuadir as mulheres a
se esforçar para adquirir força, tanto da mente quanto do corpo,
e convencê-las de que frases suaves, susceptibilidade de
coração, delicadeza de sentimento, e refinamento no gosto,
eram quase epítetos de fraqueza” (WOLLSTONECRAFT,
1792). Neste ensaio, a autora insistia na igualdade entre
homens e mulheres, particularmente quanto ao acesso à
educação, mas não muito no possível papel das mulheres como
atores políticos, mesmo se elas reivindicavam que os direitos
civis e políticos pertenciam a ambos os sexos. A Vindication of
the Rights of Woman é considerado na Inglaterra como o
primeiro livro feminista, escrito por uma mulher. Ele foi
imediatamente disseminado na França como « Défense des
droits de la femme» [Defesa dos direitos da mulher]– um
título mais neutro em francês do que em inglês10
(WOLLSTONECRAFT, 1792b) –, e publicado também por
Peter Edes em Boston. Na realidade, Mary Wollstonecraft
(1759-1797) morou em Paris por um tempo em 1792, e daí foi
inspirada por Olympe de Gouge. Mary foi testemunha da
política de Terror de Robespierre. Seria interessante averiguar
em que medida Mary estava em contato pessoal com Olympe,
que era uma celebridade na época. De qualquer modo, se ela
não se arriscou muito neste texto, de sua experiência em Paris,
depois de seu retorno à Inglaterra, Mary Wollstonecraft
posteriormente publicou An historical and moral view of the
origins and progress of the French Revolution and the
effect it has produced in Europe [Uma visão histórica e
moral das origens e do progresso da Revolução Francesa e o
efeito que produziu na Europa] (1794). Na visão de Mary, a
esfera política não constituía um lugar privilegiado onde a
10
A palavra francesa “defesa” é mais suave do que “vindicação”.
15
emancipação das mulheres podia ocorrer enquanto, por seu
lado, Olympe de Gouge foi até o fim de seu comprometimento
político.
Nos seus escritos da primavera de 1793, Olympe
denunciou o aumento no poder da ditadura do partido da
montanha, expressando os perigos da ditadura particularmente
com o implemento, em 06 de abril de1793, de um Comitê de
Saúde Pública (Comité de Salut Public), que podia mandar
membros do parlamento para a prisão. Depois da acusação de
deputados do partido Girondista na Assembleia Convention em
02 de junho de1793, Olympe protestou com vigor, o que era
considerado contra a lei de Março de 1793, recebendo uma
severa repressão devido aos seus escritos questionando os
republicanos.
Olympe foi presa e condenada à morte pela Corte
Revolucionária, em agosto de 1793. Foi finalmente executada
e morreu no cadafalso em 06 de novembro de 1793. Pagou sua
ação política com sua vida, mas muitas mudanças sociais que
ela propôs contribuíram mais tarde para melhorias da condição
humana na sociedade humana, homens e mulheres juntos. Não
morreu por nada. Em particular, a escravidão foi abolida na
França em 1794, depois de sua morte e, certamente, Olympe
de Gouges foi uma ardente advogada da abolição.
ABOLIÇÃO
DA
ESCRAVIDÃO
NA
FRANÇA
(FEVEREIRO DE 1794): UMA HISTÓRIA MUITO
LONGA
No fim do século XVII, seguindo Jean-Baptiste
Colbert, seu primeiro ministro, o Rei Louis XIV havia
regulamentado as condições dos escravos com o Code Noir
[Código Negro] (1685) que se referia apenas às colônias
francesas porque a escravidão havia sido abolida na França
Metropolitana desde o século XIV11; qualquer escravo trazido
à França Metropolitana seria imediatamente considerado livre
(NIORT, 2007).
O Code Noir [Código Negro] de 1685 regulamentou o
status civil dos escravos, retomando, ao mesmo tempo,
disposições tomadas por Louis XIII em seu édito de 23 de abril
1615 contra os judeus e impondo aos escravos a obrigação de
ser Católicos e batizados. Os Artigos 9 e 13 fixam o status civil
dos escravos e como ele é transmitido aos filhos. A condição
de escravidão era hereditária. Os filhos de escravos nasciam
escravos e não podiam se casar sem a autorização de seu
respectivo dono (artigo 11). As mulheres se beneficiavam de
direitos específicos: uma mulher escrava que se cassava com
um homem livre se tornava imediatamente livre e seus futuros
11
Em 13 de julho de 1315, o rei da França, Louis X, o “Hutin”, por édito real, proclamou que, de acordo com a lei natural, todos
nascem livres [selon le droit de nature, chacun doit naître franc]. Desde então, qualquer escravo colocando o pé no solo francês deveria
ser libertado [le sol de France affranchit l’esclave qui le touche][o solso da França liberta o escravo que o toca].
16
filhos eram todos livres. Uma mulher livre que se casasse com
um homem escravo daria nascimento a filhos livres. Por outro
lado, se crianças nasciam de uniões ilegítimas, seriam
escravas. Qualquer criança nascida de um escravo pertencia ao
dono da escrava mãe se o dono do marido não fosse a mesma
pessoa. A família escrava era protegida em princípio, desde
que os pais escravos fossem legalmente casados por um padre
católico: marido e esposa casados e seus filhos abaixo da idade
de puberdade, se estivessem sob o poder de um mesmo dono,
não podiam ser presos e vendidos separadamente (Code Noir,
1685, artigo 47).
Com a Revolução Francesa em 04 de abril de 1792, foi
garantida plena cidadania a pessoas de cor livres. A revolta dos
escravos, na maior colônia francesa, a da ilha de São Domingo
em 1791, marcara o começo da Revolução Haitiana liderada
por Toussaint L’Ouverture. Depois desta revolta, a instituição
da escravidão foi primeiramente abolida em São Domingo em
1793 por Sonthonax, que era o Comissário enviado a São
Domingo pela Convention, a fim de salvaguardar a fidelidade
da população à França revolucionária.
Em 04 de fevereiro de 1794, a Convention, sob a
liderança de Maximilien Robespierre, aboliu a escravidão na
França e em suas colônias. Abbot Grégoire e a Sociedade dos
Amigos dos Negros (Société des Amis des Noirs), nas mãos de
Jacques Pierre Brissot, haviam sido ativos no movimento
abolicionista que tinha colocado uma importante base para
construir a ação anti-escravagista. O primeiro artigo desta lei
declarava que a « escravidão estava abolida » nas colônias
francesas, enquanto o segundo artigo declarava que os donos
de escravos seriam ressarcidos por uma compensação
financeira do valor de seus escravos. A Constituição da
França, aprovada posteriormente pela Convention em 22 de
agosto de 1795, estabeleceu o governo Diretório. The
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão tinha de
incluir que a escravidão estava abolida.
Como mencionado acima, em setembro de 1785,
Olympe de Gouges já havia sido enviada para a cadeia na
Bastilha, devido um drama teatral intitulado L’esclavage des
Noirs [A Escravidão dos Negros], mais tarde publicada em
179212. Além disto, Reflexões sobre homens negros (1788) foi
um ensaio também publicado por Olympe de Gouges, que
havia permitido a ela se tornar um membro da Société des Amis
des Noirs. Como abolicionista, ela foi posteriormente
mencionada por Abbot Grégoire, na “Lista dos Homens
12
De acordo com seu Prefácio – onde ela explica seu argumento –, Olympe de Gouges enviou o texto de seu teatro drama em 1783 para
a Comédie Française, sob o título de L’esclavage des Noirs, que foi primeiro impresso em 1786, representado em dezembro de 1789 e
reimpresso com o Prefácio em 1792 (GOUGES, 1792). O texto do manuscrito dado em 28 de dezembro de 1789 ao encenador, antes da
encenação, foi conservado na coleção da Comédie-Française em Paris. Esta versão censurada foi recentemente publicada pela primeira
vez (GOUGES, 2006).
17
corajosos” (sic) que advogavam a causa dos “desafortunados
Pretos” (1808). Antes da Revolução, ela havia escrito:
“A sorte dos Negros sempre me interessou
por seu triste destino. Aqueles a quem eu
podia questionar, nunca satisfizeram nem
minha curiosidade nem meu raciocínio.
Eram tratados como brutos, seres a quem o
Céu havia amaldiçoado; mas avançando na
idade, vi claramente que era a força e o
preconceito que os condenava a esta
horrível escravidão, que a Natureza não
tinha nenhum lugar nisto e que o
inesgotável e poderoso interesse dos
Brancos tudo havia feito”. (Réflexions sur
les hommes nègres) [Reflexões sobre
Homens Negros] (1788).
Mas a escravidão, abolida em 1794, foi restaurada em
1802, para as colônias francesas, alguns anos depois, por
Napoleão, atendendo ao lobby colonial. Porém, a França foi
dramaticamente derrotada em Sao Domingo. Este país adquiriu
a independência e trouxe um fim à escravidão em 01 de janeiro
de 1804. Logo após, a Inglaterra baniu a importação de
escravos da África em suas colônias em 1807 (Act for the
abolition of the slave trade) [Ato para a abolição do comérdio
de escravos], e os Estados Unidos a seguiu em 1808. A
Inglaterra aboliu completamente a escravidão através do
Império Britâncico com o Slavery Abolition Act [Ato da
Abolição da Escravidão] de 1833, enquanto a escravidão nos
Estados Unidos foi somente abolida em 1865 com a 13 a
Emenda da Constituição Norte-Americana. Nas colônias
francesas, a escravidão foi re-abolida em 27 de abril de 1848,
pelo decreto-lei Schœlcher13, e nesta mesma época, a França
começou a colonizar a África. A população nativa na África,
em vários países, foi transportada para minas, para florestas e
plantações de borracha sob condições de trabalho isoladas e
duras,
muitas
vezes
comparadas
à
escravidão.
Comparativamente, Julia Seibert mostrou como homens e
mulheres negras estavam sofrendo de trabalho “não livre » no
Congo Belga colonial, no começo do século XX (SEIBERT,
2012).
Frederick Cooper recentemente publicou reflexões
provocantes não somente sobre a natureza da colonização
como também sobre o modo de escrever sua história
atualmente e sobre o processo de descolonização (COOPER,
2005).14 O volume de Cooper de 2005 é principalmente um
13
O estado francês, sob a Segunda República (1848–1852), comprou os escravos dos colonos (colonizadores brancos; Békés na língua
Creole), e os libertou.
14
Prasenjit Duara comentou e discutiu o livro de Frederick Cooper (2005): “To think like an empire”: An essay based on Frederick
Cooper's Colonialism in Question: Theory, Knowledge, History”. DUARA, P. History and Theory, 46.2, 2007, 292–298.
18
trabalho interpretativo e sua escrita apresenta interessantes
perspectivas comparando situações em ambos impérios
coloniais, francês e britânico, distinguindo diferentes contextos
legais e sócio-econômicos (COOPER ; BURBANK, 2012).
Porém, surpreendentemente, a dimensão de gênero não é
considerada por Cooper.
Gostaríamos de aprender mais sobre o que aconteceu
no Império francês colonial depois da abolição da escravidão,
entre fevereiro de 1794 e 1802 e depois de 1848 e se houve
alguma mudança no grau de participação das mulheres na vida
de sua comunidade, sob as leis, regras e costumes locais
coloniais e, se possível, comparar a legislação e a prática com
outros regimes coloniais. Uma pesquisa internacional recente
editada por Marcel van der Linden oferece conclusões
bastante pessimistas sob o título The Long-term
Consequences of the Abolition of the Slave Trade [As
Consequências a longo prazo da Abolição do Comércio de
Escravos] (van der LINDEN, 2011). E mesmo para Pieter C.
Emmer, comparando situações, na Inglaterra, França e
Holanda e o mercado de trabalho colonial no século XIX,
“como sempre, o problema está com os franceses”
(EMMER, 2011). A legislação referente às pessoas nativas no
Império Francês durante os séculos XIX e XX era específica.
O CODE DE L’INDIGÉNAT FRANCÊS,1881
Estabelecido em 1881, o Code de l’indigénat [Código
do nativo] era um código legal específico para os povos
nativos no Império francês, definindo o modo de governá-los
(COQUERY-VIDROVITCH 2007a; 2007b; M’BOKOLO,
2004). Originalmente, a palavra “nativo” significa quem foi
gerado no local, ou quem é “do lugar”. Mas o uso que foi feito
desta palavra nas sociedades coloniais levou a distinguir entre
aqueles que tinham o poder (os colonizadores) que não
estavam submetidos a este código, e aqueles que estavam a ele
submetidos, os nativos. Este era também um código de penas
aplicável apenas aos “sujeitos” do Império Francês,
esmagadoramente homens e mulheres nativos das
colônias. Incluía um grupo de dispositivos repressivos legais e
estatutários somente contra os nativos, aplicado pela
administração colonial (ASIWAJU, 1979; MANN, 2009). Este
regulamento foi instituído pela primeira vez na Argélia em
1881 e então exportado à maioria dos outros territórios do
Império Francês colonial. Seus efeitos no Império Francês
colonial nos séculos XIX e XX foram múltiplos. Na realidade,
o Código contradizia os princípios básicos da lei penal
francesa afirmada durante a Revolução. Concebido como um
“modo prático” de impor a ordem colonial, foi frequentemente
denunciado como um “monstro legal” por seus
contemporâneos.
19
Instituído primeiramente durante a conquista da
Argélia, estabelecido pela lei de 28 de junho de 1881, o Code
de l’indigénat definia “especiais violações dos nativos”. Duas
categorias de cidadãos eram distinguidas: os cidadãos
franceses (de origem metropolitana) e os sujeitos franceses,
isto é africanos negros, os argelianos, os da Malásia, os das
Índias Ocidentais, os de Málaga, etc., assim como os
trabalhadores migrantes. Os sujeitos franceses submetidos ao
Code de l’indigénat estavam privados da maior parte de sua
liberdade e de seus direitos políticos; homens e mulheres
conservavam apenas o seu status civil pessoal, religioso e de
identidade habitual.
Este regime foi estendido à Cochinchina em 1881,
Nova Caledônia e Senegal em 1887, Annam Tonkin em 1897,
Camboja em 1898, Madagascar em 1901, à Afrique
Occidentale Française (AOF) in 1904, e à Afrique Equatoriale
Française (AEF) em 1910. Tunísia e Marrocos escaparam do
Code de l’indigénat porque estavam sob um regime de
protetorado específico.
No seu trabalho em preparação, Emmanuelle Saada
enfatiza as inter-relações entre a lei e a violência no império
colonial francês nos séculos XIX e XX e contribui para uma
história mais ampla das incapacidades legais e da lei de
“exceções” de regimes de direitos mais amplos no império
francês (SAADA, no prelo). Seu estudo está na intersecção da
história da lei colonial francesa e da história da lei, conectando
a história intelectual e política à análise das práticas
administrativas e legais. Considera que o sistema legal pósrevolucionário francês, baseado na universalidade do “sujeito”
na situação de dominação colonial, delineava dentro de si
mesmo um espaço “fora da lei”, marcado como “temporário” e
“excepcional”. Tanto mulheres quanto homens sofriam desta
situação até os movimentos de descolonização. Enquanto
Frederick Cooper não considerou a dimensão do gênero da
questão, Catherine Coquery-Vidrovitch estava fortemente
ligada a uma abordagem de gênero da história colonial
africana.
LEGISLAÇÕES
COLONIAIS
CONSUETUDINÁRIOS AFRICANOS
VERSUS
Em 2007, em um número especial do Cahiers d’Etudes
Africaines, Catherine Coquery-Vidrovitch editou uma rica
coleção de estudos dedicados a legislações e costumes.
Investigou o estado da arte e a quantidade de conhecimento
acumulado sobre história da lei que considerou o gênero na
África. Demonstrou que a presença das mulheres na lei e na
justiça era mais estudada e evidenciada em publicações
inglesas do que nas francesas (COQUERY-VIDROVITCH
2007a; 2007b). Depois ela comparou pesquisas recentes em
20
todo o continente africano de modo a confrontar as diversas
evoluções no Império colonial britânico e em territórios
ultramarinos e no Império colonial francês.
O assim chamado Grands Coutumiers, coletados pelos
oficiais coloniais franceses nos 1930s, constituem importantes
e úteis fontes históricas sobre a lei privada, como são, em
regiões de fala inglesa, as coleções de julgamentos da corte, e
mais tarde, Family codes. Coletados nos arquivos e casos de
jurisprudência, os casos da corte são extremamente
informativos sobre a posição feminina e sobre os direitos
consuetudinário. Três tópicos principais parecem ter sido bem
estudados por historiadores da África, até o momento: 1)
questões tratando do casamento (inclusive regras de sharî’a e
“bruxaria” de mulheres e rituais populares), 2) poligamia,
divórcio, relações extramaritais, adultério, herança e 3) a
questão do dote brideprice [preço da noiva] (lobolo), algumas
vezes impropriamente chamada de dote, que tem um papel
principal a fim de se poder compreender como as mulheres
nativas africanas levavam em conta as leis sobre a terra e leis
trabalhistas e defendiam seus direitos tradicionais à
propriedade e ativos.
Baseados na perspectiva de Coquery-Vidrovitch,
pudemos seguir a evolução básica dos direitos das mulheres da
época pré-colonial ao presente, passando através das leis
coloniais consuetudinários e as leis coloniais ocidentais.
Tomaremos a oportunidade de um encontro internacional
futuro na África do Sul para aprender mais sobre o trabalho em
andamento nas universidades africanas15. Parece que as
mulheres foram habilidosas em distorcer leis que limitavam
seus direitos consuetudinários. Realmente, em Madagascar,
sabiam muito bem como usar e manipular leis, sob o regime
francês, de modo a melhorar suas condições legais com o
passar do tempo. Jacqueline Ravelomanana dá exemplos de
como mulheres nativas foram bem sucedidas em impor seus
costumes matrimoniais tradicionais em Madagascar
(RAVELOMANANA, 2012).
Sob os sistemas coloniais, as mulheres tentaram o seu
melhor para se tornar mais visíveis. O caso das mulheres da
Guiné é particularmente interessante, dado o tópico do
presente estudo. Encorajadas pro seus líderes, foram pioneiras
na luta por sua emancipação e liberdade política. A Guiné foi
inicialmente parte do Império colonial francês e da Afrique
Occidentale Française (AOF) [África Ocidental Francesa].
AOF era uma federação de territórios coloniais franceses na
África (Figura 2).
15
Ver a sessão organizada conjuntamente por Antoinette Fauve-Chamoux, Béatrice Craig e Jacqueline Ravelomanana sobre “Gender,
property and legal reforms, 18th-20th centuries”, XVIth World Economic History Congress, Stellenbosch University, South Africa, 9-13
July 2012, uma conferência internacional organizada pela International Economic History Association (IEHA), com The Economic
History Society of Southern Africa e The Department of Economics, Stellenbosch University.
21
A federação existiu de 1895 até 1960. Incluiu: 1)
Mauritânia; 2) Senegal; 3) Sudão francês (agora Mali); 4)
Guiné francesa (agora Guiné); 5) Côte d'Ivoire (Costa do
Marfim); 6) Dahomey (agora Benin) e 7) Nigéria. O Volta
Superior [Upper Volta], agora Burkina Faso (com a cidade de
Ouagadougou como capital) formou a oitava colônia; o Upper
Volta francês foi, durante um período, dividido entre os seus
vizinhos. O Sudão francês também continha uma larga porção
do que é atualmente a parte oriental da Mauritânia.16
MULHERES DA GUINÉ NA POLÍTICA GANHANDO O
SEU DIREITO AO VOTO (1958)
Através do vasto Império colonial francês, a Guiné
(com uma população então de 2.5 milhões de pessoas) foi o
único território a votar "Não" á proposição oferecida pelo
Président du Conseil Charles de Gaulle quando o Presidente
Francês era René Coty.17 A qustão era sobre uma nova
Constituição, na Quinta República18 Nas colônias francesas, o
referendum também almejava criar uma “Comunidade
Francesa” (Communauté Française). A Guiné foi o único país
a rejeitar o referendum e alcançar imediata independência.19
Os homens da Guiné votaram pela independência da França e
este país deixou a Afrique occidentale française (AOF). Com
esta importante mudança política e uma Constituição para a
Guiné, as mulheres da Guiné ganharam o direito ao voto
(1958). Na época da campanha política para o Referendum,
compuseram uma canção expressando conjuntamente a
identidade nacional, um voto pela independência e em apoio ao
líder da Guiné, Sékou Touré:
A Guiné diz “Não”
De Gaulle diz “Sim”
Devemos votar “Não”
16
Para mapas da situação, recomendamos consultar as seguintes figuras para o continente africano: 1) Mapa da África colonial em
1913 (antes da I Grande Guerra), incluindo as colônias alemãs; 2) Mapa da África colonial depois da II Grande Guerra, depois da
partilha das colônias alemãs, com etapas no processo de descolonização (THOBIE, et al., 1990, p. 603); 3) Mapa da África em
1968, com sucessivos passos de descolonização (THOBIE et al., 1990, p. 606-7). A Afrique Occidentale Française (AOF) [África
Ocidental Francesa] foi uma federação criada em 1895 que incluía Guiné Francesa (agora Guiné).
17
O referendo de 28 de setembro de 1958 pediu ao povo francês ratificar o projeto de Constituição preparado por um Comitê de
Consulta Constitucional e pelo Parlamento sob a égide de Michel Debré e do Presidente do Conselho, General de Gaulle. O referendum
tentou também criar uma Comunidade Francesa nas colônias francesas. A Guiné foi o único país a rejeitar o referendum e alcançar a
independência.
18
Para a adoção da Constituição Francesa, a questão era: “Você aprova a Constituição que é proposta a você pelo Governo da
República?” O povo da Guiné (apenas homens) seguiu as instruções dadas por Sékou Touré e 94.4 % votaram "não". Rejeitaram a
Comunidade Francesa.
19
Quando os resultados oficiais foram publicados na França, foram publicados em separado para a Guiné, dizendo que: “A Comissão
nacional encarregada de contar os votos especificou: referente ao território da Guiné, a Comissão notou que, por uma maioria de votos,
o eleitorado deste território rejeitou a Constituição e, em consequência, recusou a integração à Comunidade A Comissão decidiu, em
decorrência, não inserir os resultados deste território nos resultados globais do referendum e fazê-los aparecer à parte”.
22
Camarada Sékou Touré, devemos escolher
o “Não”
Sim, devemos escolher o “Não,” Sékou
Touré
Sempre, votamos “Não”
(CAMARA, 1979, p. 111).
Sem a Guiné, uma nova Constituição republicana foi
adotada na França em 04 de outubro de 1958, junto com a
Quinta República. Os resultados deste Referendum
Constitucional foram uma vitória considerável para o ramo de
Guiné do Rassemblement Démocratique Africain (RDA)
[Reunião Democrática Africana], um partido político
oficialmente chamado Parti démocratique de Guinée [Partido
democrático da Guiné]. RDA tinha membros em cada um dos
catorze territories da África Francesa Ocidental, África
Francesa Equatorial e as Nações Unidas dos territórios de Togo
(até 1955) e Camarões (MANNING, 1988; SCHACHTER
MORGENTHAU, 1964, p. 400). Enquanto todos os outros
ramos da RDA, na África, havia decidido apoiar a política de
de Gaulle, o RDA da Guiné, sob a liderança de Sékou Touré
(1922-1984), um jovem membro de um sindicato (Union
générale des Travailleurs d’Afrique Noire) [União geral dos
Trabalhadores da África Negra] que assumira a liderança do
Parti démocratique de Guinée em 1952, encontrou o modo de
completar uma imediata independência da França, iniciando
uma onda de descolonização que, posteriormente, varreu a
África.
Sékou Touré estudara os escritos de Marx e a vida de
Vladimir Lenin e, como primeiro Presidente da Guiné,
organizou um regime socialista (KABA, 1988). O bisavô de
Sékou Touré, Almamy Samory Touré (1830-1900), um
Malinke, havia resistido à colonização francesa na África
Ocidental no passado. Havia, na época, escolhido ser
muçulmano (BOAHEN, 1990). Na Guiné, as pessoas
pertencentes ao grupo étnico Malinke estavam muito engajadas
em redes de comércio e suas comunidade muçulmanas
associadas haviam conectado diversas partes do que se tornaria
a Guiné20 (SCHMIDT, 2005a). No século XIX, os impérios
politico-religiosos do líder de Tukulor, El-Hadj Umar b. Said
Tall, e o líder Malinke, Samori Touré, reuniram vastos
territórios. De acordo com historiadores africanos, a despeito
dos esforços dos líderes dos partidos para construir uma nação,
rivalidades étnicas e de classe eram permanentes.21. Sékou
Touré e seus amigos do movimento nacionalista, tendo já o
20
Povo Jallonkee (Susu, Limba, Landuma, Baga, Bassari) e povo Fulbe (Peul e Tukulor,) que residiam na região de Futa Jallon da
Guiné, comerciavam bastante com os povos da costa (SCHMIDT, 2005a, p. 991).
21
Os principais grupos étnicos da Guiné francesa eram: Susu, Baga-Landuma-Mikifore-Nalou, Limba, Peul, Coniagui-Bassari,
Malinke, Jallonke, Kpelle-Kissi-Loma (SCHMIDT, 2005a). Para mais dados sobre a história das relações étnicas e religiosas na Guiné,
ver Rodney, 1968. Na Guiné, o francês e a língua oficial.
23
apoio das massas rurais, tentou deliberadamente uma ampla
aliança com as mulheres populares da Guiné. O crescente
papel das elites educadas no Ocidente era muito contestado nas
bases. Mas os historiadores consideram que o legado da
interação política, econômica, religiosa e cultural unia os
habitantes da Guiné entre si. Para Eric Hobsbawm, os
moradores da Guiné tinham « a consciência de ter pertencido a
uma entidade política duradoura» (HOBSBAWM, 1990).
Prasenjit Duara, de uma perspectiva comparativa, realizou uma
proposta similar para a China, Índia e Japão pré-modernos
(DUARA, 1996).
Usando a variedade das fontes documentais e orais,
Elisabeth Schmidt atribuiu o extraordinário sucesso da
Reunião Demográfica Africana à sua capacidade de formar
uma ampla aliança étnica, classe e de gênero, cuja força estava
enraizada em seu apoio entre as massas não-alfabetizadas,
principalemente mulheres. Considerando as disputas locais
quanto a etnicidade, classe e identidades de gênero, Schmidt
reinterpreta a história nacionalista da Guiné e seus movimentos
anticoloniais com uma abordagem “de baixo para cima”
(SCHMIDT, 2005a; 2005b). As mulheres da Guiné foram
consideradas como formando uma categoria quasi autônoma
dentro do movimento nacionalista (BAYART, 1981). Adotando
o conceito de Bayart de uma “ação de baixo para cima”
popular, E. Schmidt analisou o ativismo político das mulheres
lojistas, costureiras e camponesas como parcialmente
conservador e parcialmente transgressivo. Elas se uniam ao
movimento como mães e esposas, respondendo à chamada
explícita da RDA, e mais tarde influenciaram os objetivos do
partido assim como os métodos de ação escolhidos,
especialmente após a greve de 1953 (SCHMIDT, 2005b).
Mulheres que compuseram canções que traziam a
mensagem através do território não eram alfabetizadas. Se
fosse criada uma nova canção, todas as mulheres a aprendiam
e a cantavam em conduções coletivas, ensinando uma à outra
durante a manhã, quando estavam indo ao mercado. Quando
havia um evento politico, uma das líderes do partido vinha ao
mercado com a canção para ensiná-la às outras mulheres.
A administração colonial tentou duramente por todos os
meios quebrar a contestação popular. O anúncio oficial de
Barry Diawadou como o vencedor e de Sékou Touré como o
perdedor das eleições de 1954 criou muita raiva contra o
estado colonial, particularmente entre as mulheres populares
que prepararam slogans subversivos e canções de protesto que
cantavam nos mercados, dizendo que as autoridades coloniais
haviam
fraudado
as
eleições
(CAMARA,
1979;
SCHACHTER-MORGENTHAU, 1964; SURET-CANALE,
24
1964a, 1964b, 1971).22 “O partido único roubou nossos votos”.
As mulheres não podiam votar, mas cantavam:
“Olhem, povo, para a RDA
Olhem, povo, para a RDA
Mulheres da RDA, uni-vos
Ria comigo, Touré
Ria comigo, Touré”
(SCHMIDT, 2005a, p. 1010).
Uma interessante foto foi tirada em 1954 no mercado
de Conakry mostrando atividades comerciais destas mulheres
ativistas23 (Figure 3) e outro documento da mesma época
mostra as mulheres de Malinke trabalhando em atividades
têxteis em casa, na frente de suas casas, em sua comunidade no
vilarejo e com seus membros familiares, velhos e jovens
(Figure 4).
Em certas ocasiões, algumas mulheres usavam os
uniformes do grupo RDA e que se referiam a símbolos.24
Participavam da reorganização do partido, e tentavam mudar a
hierarquia sexual: formando milícias, algumas mulheres se
vestiam como homens e adotavam algumas novas maneiras de
comportamento como se, de algum modo, outras formas de
transgressão já existiam antes da colonização (RIVIÈRE,
1968). Entrevistada em 08 de abril de 1991 por Idiatou
Camara, recordando o dia em que ela foi recrutada para o
partido RDA, Aissatou N’Diaye, de origens TukulorSenegalesa (não do grupo Malinke, mas definitivamente uma
mulher muçulmana convicta), lembrou que ela e uma amiga
haviam sido chamadas para uma reunião com Sékou Touré:
“Na nossa chegada, ele nos pediu para
ajudá-lo a mobilizar mulheres… Também
disse que não tinha nada material, nenhum
dinheiro ou ouro, para oferecer em troca.
Se as mulheres o ajudassem, fariam isto
pelo amor de Allah, seu Enviado, e por sua
causa … Pediu-nos para fazer este trabalho
em nome de Allah e de seu Profeta,
Maomé” (SCHMIDT, 2005a, p. 995,
citando CAMARA, 1979).
Se a mobilização política das mulheres da classe
trabalhadora da Guiné não resultou realmente em uma
emancipação completa, além de ganhar no final o grande
22
Com as eleições territoriais de 1957, Sékou Touré foi eleito Presidente do Conselho. O Parti démocratique de Guinée (PDG) se
tornou então o único partido da Guiné.
23
Ver fotos tiradas em 1954 no mercado Conakry e mulheres de Malinke fiando e tingindo roupas. Reproduzido por permissão de
FR.CAOM. Aix-en-Provence (SCHMIDT, 2005a, pp. 1008 & 1011) (Figures 3 e 4).
24
O uniforme da RDA era uma roupa djellaba branca da Guiné, com um boné branco para os homens (SCHMIDT, 2005a, p. 978 &
994). O símbolo do partido era o elefante.
25
direito ao voto, papeis tradicionais de gênero foram certamente
mudados nos anos 1950s, nesta sociedade em sua maioria
muçulmana. Na França, em contraste, a secularização da
sociedade estava massivamente progredindo, mas levou um
longo tempo para as mulheres ganharem o direito ao voto.
LUTAS DE MULHERES FRANCESAS NO ENTREGUERRAS PELO SUFRÁGIO E RESPONSABILIDADE
POLÍTICA
Na França, depois de 1900, membros do parlamento
prepararam projetos que permitiriam o sufrágio às mulheres,
mas todas as propostas foram interrompidas pelo Senado.
Grupos de mulheres, chamadas “suffragettes”, formaram
associações e começaram a clamar pelo direito ao voto (Figure
5). Entre1919 e 1936, a Chambre des députés [Câmara dos
deputados] propôs várias vezes o voto para mulheres, mas o
Senado nunca registrou a questão em sua agenda25. Nascida em
1893, no Norte da França, Louise Weiss era uma jornalista
engajada em lutar pela igualdade dos direitos civis e políticos
para as mulheres e homens. Ela militou ativamente pelo voto
das mulheres. Em 1934, fundou a associação “La Femme
nouvelle” [A nova mulher]. Foi uma candidata simbólica às
eleições 1935 e 1936 em Paris, e organizou várias ações
espetaculares, pretendendo atrair a atenção da imprensa
(BERTON, 1999).
Em 06 de outubro de 1934, abriu uma loja para
mulheres no Champs-Elysées e colocou na vitrine um mapa do
mundo com um grande cartaz: “Mulheres americanas votam,
mulheres inglesas votam, mulheres chinesas votam... Mas
mulheres francesas não votam” (BERTON, 1999). Em 1935,
no dia das eleições municipais, Louise Weiss se acorrentou à
coluna da Praça da Bastilha com outras mulheres ativistas e
discursou para a multidão (Figura 6):
“este lugar evoca para nós o Antigo
Regime e a Declaration des droits de
l’homme. Esta nobre e tão conhecida
Declaration é, na realidade, uma obraprima de egoísmo: os autores apenas
esqueceram das mulheres” (WEISS, 1970,
p. 89).
Em 02 de junho de 1936, na frente do Senado, Louise
Weiss, com ativistas de seu grupo, La femme nouvelle26 [A
25
Para mais informação sobre a história das mulheres francesas como cidadãs, ver o web site oficial: www.assembleenationale.fr
Após a II Grande Guerra, uma vez o direito ao voto existindo para as mulheres, Louise Weiss prosseguiu sua atividade como uma
jornalista. Comprometeu-se, então, para a paz e para a construção da Europa. Morreu em 1983, aos 90 anos de idade. Casou-se em
1934, mas se divorciou dois anos após. Sobre o fracasso de sua experiência marital, ela claramente concluiu que o divórcio, se não
família, trouxe sua liberdade “De tudo, pela falta de felicidade, o casamento e especialmente o divórcio me trouxe um status civil que
26
26
nova mulher] ofereceu aos senadores pares de meias com a
inscrição: “mesmo se vocês nos derem o direito ao voto, os
buracos em suas meias serão consertados”.
Em 1936, com o governo da Front Populaire [Frente
Popular], três mulheres foram designadas por Leon Blum
como vice-secretárias do Estado27, entre elas estava Suzanne
Lacore, encarregada da proteção às crianças (Figure 7). Louis
Weiss foi abordada por Blum, mas declinou do convite, pois,
disse:28 “Lutei para ser eleita, não para ser indicada”. Em 1942,
durante a II Guerra Mundial, o General de Gaulle declarou que
“logo que o inimigo for expulso do território, todos homens e
todas as mulheres de nossa França29 elegerão a Assembleia
Nacional,” e, em 21 de abril de 1944, antes da França estar
liberada da ocupação alemã, ele ratificou um texto proposto
pelo Governo Provisório da República Francesa situado em
Algiers, cujo artigo 17 declarava o voto das mulheres e
institucionalizava sua elegibilidade: as mulheres foram
declaradas eleitoras e elegíveis segundo as mesmas condições
dos homens. Finalmente, as mulheres votaram pela primeira
vez na França em 29 de abril de 1945 para eleições municipais
e, mais tarde, em 21 de outubro de 1945, para “eleições
gerais”, referente à Assembleia constituinte e a um
Referendum30 (Figure 8). Mas notamos que é apenas em 1989
que uma mulher, Catherine Trautmann, tornou-se uma prefeita
de uma grande cidade, Strasbourg, e somente em 1991 que
uma mulher se tornou Primeira Ministra, Edith Cresson.
CONCLUSÃO
No início da Europa moderna, as mulheres nunca
estiveram restritas à esfera privada. Todas as mulheres, rurais
ou urbanas, transmitiam conhecimento, normas culturais e
valores simbólicos, e tinham um amplo acesso à esfera pública,
de acordo com as regras locais de suas comunidades sociais.
Podiam circular sozinhas, comprar ou vender mercadorias no
mercado, simplesmente sair para visitar pessoas da família e
parentes, trabalhar fora de casa, diariamente ou, quando não
havia um esposo (sendo solteira ou viúva), estar empregada
por meses ou anos em uma casa privada ou em uma instituição.
Uma vez casada, tinham de escolher um trabalho compatível
com a vida familiar e suas responsabilidades, mas podiam ter
facilitou minha experiência e me abriu possibilidades sentimentais que, sem ter passado por estes eventos, eu não teria tido. Assim, não
paguei muito caro por estes acontecimentos infelizes” (WEISS, 1970, p. 16).
27
Suzanne Lacore estava encarregada da proteção às crianças (Figura 7), Irène Joliot-Curie encarregada da pesquisa científica e Cécile
Brunschvicg, encarregada da educação, que era uma amiga próxima a Louise Weiss, e também de origens judaicas.
28
Em francês: “J'ai lutté pour être élue, pas pour être nommée”.
29
Em francês : “les hommes et les femmes de chez nous”, o que significa que, nas colônias, os nativos seriam ainda excluídos.
30
Para este Referendum de 21 outubro 1945, duas questões foram perguntadas: 1/ Necessita-se de uma nova constituição? (Faut-il
une nouvelle constitution?) e 2/ É necessário limitar os poderes de uma Assembleia constituinte eleita simultaneamente? (Faut-il
limiter les pouvoirs de l’Assemblée constituante élue simultanément ?)
Referente ao equilíbrio quanto ao gênero na Assembleía, em 1945, apenas 5,6 % dos deputados eleitos eram mulheres.
27
ajuda doméstica paga ou não paga seja para lidar com crianças
pequenas ou cuidar de membros familiares doentes e/ou
dependentes.
Contudo, a presença feminina na política era rara. As
mulheres não eram iguais aos homens e não votavam. Na
maioria dos países ocidentais, como nos países com uma
história colonial, o sufrágio feminino foi concedido após uma
longa luta. Na maioria dos países, as mulheres não puderam
votar até alguma época do século XX.
Na França, a mudança referente ao direito ao voto
ocorreu em 1944. As mulheres francesas votaram pela primeira
vez em 1945 e puderam entrar no Senado em 1946.
Anteriormente, as mulheres se reuniriam ocasionalmente para
protestos por alimento ou outros assuntos. Na época da
Revolução Francesa, algumas feministas pioneiras como
Olympe de Gouges na França (ou Mary Wollstonecraft na
Inglaterra) começaram a publicar ensaios (Declaration of the
Rights of Woman and of the Female Citizen, 1791, para a
primeira; A Vindication of the Rights of Woman, With Strictures
on Political and Moral Subjects, 1792, a fim de unir debates
abertos e ação política, clamando por direitos iguais para
homens e mulheres.
Para os países sob o regime colonial francês,
historiadores estiveram estudando muitas questões como
direitos das mulheres e sua presença nas cortes jurídicas
segundo os arquivos locais. Mais precisa ser realizado para
comparar o nível da participação feminina na vida política sob
constituições coloniais específicas. Seria interessante explorar
mais, numa perspectiva comparativa, em que medida as
mulheres nativas foram ativas na política, em movimentos
nacionalistas e nos processos de descolonização.
Na África colonial francesa, as mulheres da Guiné
formaram uma categoria específica e quasi autônoma dentro
do movimento nacionalista, levando a uma precoce
descolonização (LOCOH, 2001). Escolho apresentar sua ação
e mentalidade nos anos 1950s como um estudo de caso, no
presente artigo, dadas suas especificidades culturais e
religiosas. Porém, as mulheres da Guiné parecem ter sido
amplamente manipuladas por homens políticos e por líderes do
partido nacionalista de seu país. O espetacular movimento
politico das mulheres populares terminou na Guiné em
setembro de 1958, com a independência. Significativamente, a
maioria das mulheres da Guiné que, na época, estiveram
comprometidas com a ação política nos anos 1950s, recusou
posteriormente a comentar este período de suas vidas, quando
estiveram ativas fora da casa, dando apoio ao líder Sékou
Touré em nome de sua nação e em nome de Allah (CAMARA,
1979). Em contraste, na França, figuras independentes
individuais, como Louise Weiss, certamente não foram
manipuladas e usaram a mídia para alcançar sua meta: obter
28
igualdade de direitos civis e políticos para as mulheres e, no
final, o direito de voto para cidadãs mulheres francesas (1944).
O direito ao voto foi garantido às mulheres francesas um
século e meio após que a Revolução Francesa de 1789
proclamou: Liberdade, Igualdade, Fraternidade [Liberté,
Egalité, Fraternité].
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34
1A
Women in Politics in Historical and Gender
Perspective: from France to Guinea (1789-1958)
Antoinette Fauve-Chamoux
35
The French revolution of 1789 led to the development
of new political systems, based on democracy, which expanded
worldwide. For the conference which took place in Aligarh in
February 2012, participants were encouraged to study the
extent of women’s participation in the political structure had
been effective under different political systems. As a European
historian of early-modern times, I have always been looking
for women in the archives and trying to trace them along their
life course and to reconstruct their mentality and specific
agency on society. I had to make a choice for this study, as a
female historian, looking for women in politics in the past. I
decided to explore the question in two directions.
My first part will explore the presence and actions, in
early modern France, of women related to French Revolution
movements. The second part will concern the degree of
political participation of women of the French Empire, under
the French colonial constitution (Code de l’indigénat),
focusing on French West Africa. I selected, as a case study,
what happened in Guinea during the mid-20th century, when
women played an important and unique political role in this
new African independent and socialist state.
LOOKING FOR ACTIVE WOMEN IN ARCHIVES AND
HISTORICAL LITERATURE
As a female historical demographer and social
historian, I observed thousands of female births, marriages and
deaths in early-modern parish registers, before the French
Revolution took place in 1789. Married women worked as
mothers and house keepers, raised children and looked after
ageing people, but they also produced goods and merchandise
on the market. Women paid taxes as single women or widows.
In censuses, they were mentioned as members of their
household or heads of household with or without an
occupation, business or social status declared. They ruled
houses, were running farms, sold on the streets and bought on
various markets, worked in shops, at home, or were domestic
servants in private houses or institutions. Women were
mentioned in notarial records, signed (or not) their marriage
contracts or a will, transmitted properties to children or to
other people (kin or not). They also transmitted knowledge,
cultural norms and symbolic values. Some had problems with
various courts of justice. But female presence in politics was
rare, mostly inexistent. Certainly, in some rural and urban
contexts, they appear on fiscal roles and even on the lists of the
militia, when, being heads of household, they were expected to
answer to the requisitions of the municipal authorities, as in
early modern Rheims Champagne city (Fauve-Chamoux,
2000). According to Regine Pernoud, before 1498, in the urban
assemblies or rural districts of the French kingdom, women,
36
when they were heads of their family, being single or widow,
possessed the voting right (Pernoud, 1980).31 This was to elect
representatives of the guilds of craftsmen, or storekeepers, or
to elect local inhabitants to some municipal responsibility.
Noble widows endowed with a fief and religious abbesses
could vote for representatives at the États Généraux.
Studying gender roles in 16th century Lyon, a large and
prosperous French town, Natalie Z. Davis considered that
some women were occasionally politically visible in the public
life of their city. But it had never been to the point however
that they could become a member of the Assembly of
inhabitants or part of the municipal Council (Davis, 1979, p.
120). But this was different in some Pyrenean communities,
where women could be heiresses, and represented their
“house” and family at the General Assemblies of the village, if
they were heads of household, being a widow or single (FauveChamoux, 2002).
Some female reformers, revolutionaries and early
feminists appeared during the 18th century, the time of
enlightenment, in 1) their quest for freedom, individual choice,
sexuality, parenthood, 2) their quest for political, national,
cultural identity – including religion – and 3) their fight for
social rights and education. Until the development of women’s
history as an academic discipline in the 1970s, women who
tried to resemble men were subjects of attention. Some were
suspected to be homosexual and were called Amazons or
Lesbians (Blanc, 2003; DeJean, 1989).
In the last decades of the 20th century, female historians
succeeded in putting women in the light. Women appeared as
owners, producers, being peasant wives, artisans in shops,
cottage industry and factory workers. They had some
economic, family or community power; they transmitted
material and non material assets (skills, culture, language and
secrets) at various levels of societies.
But women as a force in politics remained hardly
visible (Bridenthal and Koonz, 1977; Hufton, 1992, 1997),
even when they were not always restricted to the private sphere
and totally submitted to some male domination (Sogner, 1988).
We would like to consider now women who took part in the
French Revolution, women from the working class who
expressed themselves in the streets, but also educated women
who launched feminist ideas.
31
During the early Ancien regime, for adult French women, the right to vote, when head of household, was suppressed by a royal edict
registered by the French Parliament in Paris in 1498. Later, another edict, in 1593, also registered by the Parliament of Paris, forbad
any woman to take an official occupation or office for the State, as a civil servant.
37
WORKING
CLASS
WOMEN
REVOLUTIONARY DEBATES
AND
FRENCH
On 5 October 1789, a group of Parisian women
organized themselves and marched on Versailles, residence of
King Louis XVI, 15 miles away. They were angry over the
high price of bread. On the way, men joined. They reached
Versailles at 4 o’clock, gained an audience with the king. He
agreed to their demands about food prices and he accepted to
return to Paris, provided he could bring his family members.
Jacques Louis David (1748-1825) painted such a typical
working woman of the time, a « femme du peuple de Paris », a
maraîchère woman growing and selling fresh vegetables on
the market.32 After this October 1789 episode, a group of
women presented to the National assembly a petition
proposing a decree giving women equality.
The Declaration of the Rights of Man and the Citizen
had been adopted on 26 August 1789 by the Assemblée
nationale constituante [the National Constituent Assembly]. It
made a strict distinction between French citizens who had full
political rights and those who did not.33 Those who were
deemed to hold full political rights were called “active”
citizens. They must be French males, at least aged 25 years
old, paid taxes equal to at least three days work, and could not
be defined as servants (Thouret, 1996). This means that
women, children, minors, poor people, slaves, foreigners,
servants34 and many others were deprived of political rights.
The concept of “passive citizens” was then forged to
encompass those populations that had been excluded from
political rights. Adult women were proud to be “citoyennes”,
but they had no right to vote.
During the French Revolution, many women used to
follow political debates while knitting (citoyennes tricoteuses)
for merchants. The year 1793 was marked in Paris by a strong
political commitment of working women stemming from
popular circles in the fight against the Girondist party and the
moderate. We find them knitting woollen socks or stockings in
the public stands of the meetings of Paris “sections” or the
Convention35 assembly, besides the sans culottes, defending
the action of the Jacobins leaders.36 Knitting socks and
stockings was for them a regular job, a proto-industrial
32
A famous portrait painted by Jacques Louis David is preserved in Lyon, Musée des Beaux-Arts, often called “The fishwoman”.
On 29 September 1789, Jacques-Guillaume Touret, presented a report “on the Basis of Political Eligibility” for the Constitutional
Committee of the National Assembly (Touret, 1996). It constituted main basis for subsequent legislation on qualifications for voting.
34
To be considered as an “active citizen”, it was necessary “to not be at the moment a servant, that is to say, in personal relationships
that are all too incompatible with the independence necessary to the exercise of political rights” (Touret, 1996, p. 82).
33
35
The Convention was the first elected Assembly of the First Republic (1792–1804).
See estampe by Pierre-Etienne Lesueur, « Les tricoteuses jacobines ou de Robespierre », Musée Carnavalet, Paris, Réunion des
Musées Nationaux (Figure 1). A large number to these women received 40 pence a day to come to the stand of the Jacobins and applaud
the revolutionary motions, Year 2” [1793-1794].
36
38
activity. Merchants gave them raw material (here balls of
wool) and ordered work to be done. At the same time, some
women received a little financial support from the Jacobins
Club for spending hours listening to the debates and acting as
devoted supporters of the revolutionaries: the Jacobins gave
women 40 sols a day for sitting and standing in the gallery to
applaud the revolutionary motions, which is attested by an
illustration of the time [Figure 1]. In no way they were losing
their working time. In the French provinces, women organized
discussion groups called “Clubs” or “Societies for women”
(see map in Godineau, 1988, p. 114). These were more middle
class women, wives of local men active in the revolutionary
movements. They engaged in social actions and news
dissemination. They also discussed the project concerning
divorce (the law allowing divorce in France was promulgated
on August 30th, 1792).37
Mirabeau, the famous revolutionary figure said:
«without the women there would have been no revolution"38
(Aubaud, 1993). Nevertheless some women paid with their life
what they expressed in words or action in favour of the
recognition of women’s rights, when they defended vulnerable
people and were engaged against slavery. Such was the case of
Olympe de Gouges, who was sent to the guillotine in 1793.
OLYMPE DE GOUGES (1748-1793) AND THE
DECLARATION OF THE RIGHTS OF WOMEN (1791)
“Marie Gouzes”, born Manon Philipon39 and went by
Olympe de Gouges (1748-1793) was a French writer and early
feminist. Born in 1748, in a family of Montauban, a French
south-western provincial city, she was the daughter of a master
artisan and her mother was the daughter of a rich textile
merchant/fabriquant (maître tondeur de draps). One of the
rumours that circulated about her origins was that her mother
had been the mistress of marquess Jean-Jacques Le Franc of
Pompignan, playwrite. She received a good education in
Montauban (Lacourt, 1900). Aged 17, in 1765 she married
Louis-Yves Aubry, a catering officer serving for the house of
Gourgues, a noble family. After three years of marriage and a
child, a son, she deserted her husband and went to Paris –
where her sister was living – looking for celebrity. She
37
On August 30th, 1792, the French legislative Assembly declared that marriage could be solved by divorce. It rehabilitated divorce, a
legal category existing under Roman law that Catholic Canon law had suppressed. The law authorizing the divorce in France was
adopted on September 20th, 1792 by the National Assembly and modified by decrees of 1793 and 1794. Divorce was included in the
Napoleonic Civil code of 1804, but later suppressed under the Restoration political regime by the law of 8th May, 1816. After decades of
debates, divorce was restored only at the end of the 19th century, under the Third French Republic, with the law of July 27th, 1884
(Fauve-Chamoux, 2001)
38
The Comte de Mirabeau, born 1749, while a noble man, was elected in 1789, at Aix-en-Provence as a delegate of the Tiers-Etat. He
died from illness on 2 April 1791, while being Chair of the Assemblée Nationale (elected on 30 January 1791).
39
Olivier Blanc rectified numerous erroneous assertions concerning Olympe de Gouze’s life and family origins (Blanc 2003).
39
changed her name to Olympe de Gouges, organized a theatre
and became a successful female writer. In September 1785, she
was sent to jail in Bastille, for an anti-esclavagist theater
drama, entitled L’esclavage des Noirs (Chalaye and
Razgonnikoff, 2006), later published in 1792 under the title:
L’esclavage des Noirs ou l’heureux naufrage.
Inspired by the Déclaration des droits de l’homme et du
citoyen [Declaration of the Rights of Man and of the Citizen]
adopted on 26 August 1789 by the French National Constituent
Assembly, Olympe de Gouges published the Déclaration des
droits de la Femme et de la Citoyenne [Declaration of the
Rights of Woman and of the Female Citizen] in 1791,
constructed as a strict parallel of the 1789 Déclaration, with
the same number of articles. The first page was an introduction
(Preambule), stating as follows:
“Mothers, girls, sisters, all representatives
of the nation, ask to be represented in the
National Assembly. Considering that the
ignorance, the oversight or the contempt of
women rights are the only causes of the
public misfortunes and the corruption of
the governments, we resolved to expose in
a solemn declaration, the inalienable and
sacred natural rights of the woman, so that
this statement, constantly present to all
members of the society, reminds them
ceaselessly their duties, so that the acts of
the power of the women, and those of the
power of the men will be able to be
compared all the time with the purpose of
any political institution, and therefore more
respected, so that the complaints of the
citizens, based henceforth on simple and
indisputable principles, always turn in the
preservation of the constitution, the good
customs, and in the happiness of all.”
Consequently, the sex which is superior in
beauty as in courage in the maternal
sufferings, recognizes and declares, in
presence and under the auspices of the
Supreme Being, the following rights of the
Woman and the Citizen.” (Preambule,
Declaration of the Rights of Woman and of
the Female Citizen, 1791)40 .
Olympe de Gouges was a pioneer when she asked for
the institution of divorce – first and only right conferred to the
women by the Revolution41 – which was adopted at the
40
41
Translation by Antoinette Fauve-Chamoux, from the French.
See above, note 7.
40
instigation of the Girondist party, a few months later. She also
asked for the abolition of religious marriage and its
replacement by civil marriage, a contract signed by cohabiting
sexual partners. She suggested that children born from
consensus unions could be recognized by their parents as
legitimate. All this was really revolutionary at the time, even
when Gouges fought for free paternity search and recognition
of children born out of wedlock. One of her calendar entries
attests to a new system of mother and child health care within a
welfare state (see Lettre au Peuple ou projet d’une caisse
patriotique, par une citoyenne, septembre 1788). Horrified by
the level of maternal mortality in urban hospitals, she
suggested the creation of specific maternity hospitals
(Mousset, 2003).
OLYMPE DE GOUGES: A COURAGEOUS AND FATAL
POLITICAL COMMITMENT
Olympe proposed seventeen articles in her Declaration
of the Rights of Woman and of the Female Citizen (1791),
mirroring the seventeen articles of the Declaration of the
Rights of Man and of the Citizen, beginning, as mentioned
above, with a Preambule, and ending with a Postambule.
Article X is particularly interesting, given that, condemned to
death, she later died in Paris on November 6th, 1793, executed
by the guillotine.
“A woman has the right to mount the
scaffold; she must equally have the right to
mount the rostrum, provided that her
demonstrations do not disturb the legally
established public order” (Article X,
Declaration of the Rights of Woman and of
the Female Citizen, 1791).
Olympe de Gouges claimed for women their right to
participate in political life and universal suffrage. On 3 July,
1790, Nicolas de Condorcet had already proposed, without
success, to give the right to vote to women in an article of the
Journal de la société de 1789 (Condorcet, 1790). His argument
was42 that: “It would be necessary to prove that the natural
rights of women are not exactly the same as those of men or to
show that women are not capable of exercising them, which is
unbearable.” (Sur l'admission des femmes au droit de cité, 3
July 1790).
And, other than the institution of divorce (August 30th,
1792), already mentioned, Olympe’s feminism encouraged the
adoption of several other official decrees which aimed at
42
«Il faudrait prouver que les droits naturels des femmes ne sont pas absolument les mêmes que ceux des hommes ou montrer qu'elles
ne sont pas capables de les exercer, ce qui est insoutenable.»
41
improving the condition of women and recognizing their rights
(Siedziewski, 1998). By comparison, Mary Wollstonecraft, an
English-Irish feminist, may seem rather set back, with regard
to the conquering and courageous position of Olympe de
Gouge.
Wollstonecraft published in 1792 A Vindication of the
Rights of Woman, With Strictures on Political and Moral
Subjects, immediately translated into French (Wollstonecraft,
1792a & 1792b) where she was seeking “to persuade women
to endeavour to acquire strength, both of mind and body, and
to convince them that the soft phrases, susceptibility of heart,
delicacy of sentiment, and refinement of taste, are almost
synonymous with epithets of weakness” (Mary Wollstonecraft,
1792). In this essay, the author insisted on the equality between
men and women, particularly for access to education, but not
much on the possible role of women as political actors, even if
she claimed that civil and political rights belonged to both
sexes. A Vindication of the Rights of Woman is considered in
England as the first feminist book, written by a woman. It was
immediately disseminated in France as « Défense des droits
de la femme » – a title more neutral in French than in
English43 (Wollstonecraft, 1792b) –, and published also by
Peter Edes in Boston. Actually, Mary Wollstonecraft (17591797) lived in Paris for a while in 1792, and therefore was
inspired by Olympe de Gouge. Mary was a witness of
Robespierre’s politic of Terror. It would be interesting to check
to which extent Mary was in personal contact with Olympe,
who was a celebrity of the time. Anyway, if she did not take
much risk in this writing, from her experience in Paris, upon
her return to England, Mary Wollstonecraft later published An
historical and moral view of the origins and progress of the
French Revolution and the effect it has produced in Europe
(1794). In Mary’s view, the political sphere did not constitute
the privileged place where an emancipation of women could
take place while, for her part, Olympe de Gouge went to the
end of her political commitment.
In her essays of spring 1793, Olympe denounced the
increase in power of the dictatorship from the mountain party,
expressing the dangers of dictatorship particularly with the
implementation, on April 6th, 1793, of a Committee of public
safety (Comité de Salut Public), which could send members of
parliament to prison. After the indictment of deputies of the
Girondist party in the Convention Assembly, on June 2nd,
1793, Olympe protested with vigour, which was considered
against the law of March, 1793 allowing severe repression of
the writings questioning the republicans.
Olympe was arrested and condemned to death by the
Revolutionary Court, in August 1793. She was finally executed
43
The French word “défense” is softer than “vindication”.
42
and died on the scaffold, 6th November, 1793. She paid her
action in politics with her life, but many social changes that
she proposed contributed later to improvements of the human
condition within human society, men and women together. She
did not die for nothing. In particular, slavery was abolished in
France in 1794, after her death, and, for sure, Olympe de
Gouges had been an ardent advocate of abolition.
ABOLITION OF SLAVERY IN FRANCE (FEBRUARY
1794): A VERY LONG STORY
At the end of seventeenth century, following JeanBaptiste Colbert, his prime minister, King Louis XIV had
regulated the conditions of slaves with the Code Noir (1685)
that applied only to the French colonies because slavery had
been abolished in Metropolitan France since the 14th
century44; any slave brought to Metropolitan France would be
immediately considered free (Niort, 2007).
The Code Noir of 1685 regulated the civil status of
slaves, recalling at the same time dispositions taken by Louis
XIII by his edit of 23 April 1615 against Jews and stating
obligation for slaves to be Catholics and baptised. Articles 9
and 13 fixed the slaves’ civil status and how it was transmitted
to children. Slavery condition was hereditary. Children of
slaves were born slaves and they could not get married without
the authorization of their respective masters (article 11).
Women benefited from specific rights: a female slave who
married a free man became immediately free and her future
children were all free. A free woman who married a slave
would give birth to free children. On the other hand, if children
were born from illegitimate unions, they would be slaves. Any
child born to a slave belonged to the master of the slave mother
if the master of the husband was not the same person. The
slave family was protected in principle, provided that the slave
parents were legally married by a catholic priest: slave
husband and wife, and their children below the age of puberty,
if they were under the power of same master could not be
seized and sold separately: let us declare invalid seizures and
selling which could occur (Code Noir, 1685, article 47).
With the French Revolution, on April 4th 1792, all free
colored people were granted full citizenship. The revolt of
slaves in the largest French colony of St. Domingue island in
1791 had marked the beginning of the Haïtian Revolution led
by Toussaint L’Ouverture. After this revolt, the institution of
slavery was first abolished in St. Domingue in 1793 by
Sonthonax, who was the Commissioner sent to St. Domingue
44
On 13 July 1315, the king of France, Louis X le Hutin, by royal edit, proclaimed that, according to natural law, anyone is born free
[selon le droit de nature, chacun doit naître franc]. Since then, any slave setting foot on the French ground should be freed [le sol de
France affranchit l’esclave qui le touche].
43
by the Convention, in order to safeguard the allegiance of the
population to revolutionary France.
On 4th of February 1794, the Convention, under the
leadership of Maximilien Robespierre, abolished slavery in
France and in its colonies. Abbot Grégoire and the Society of
the Friends of the Blacks (Société des Amis des Noirs), in the
hands of Jacques Pierre Brissot, had been active in the
abolitionist movement which had laid important groundwork
in building an anti-slavery action. The first article of this law
stated that “slavery was abolished” in the French colonies,
while the second article stated that slave-owners would be
indemnified with a financial compensation for the value of
their slaves. The Constitution of France, passed later by the
Convention on 22 August 1795, established the Directory
government. The Declaration of the Rights of Man and the
Citizen had to include that slavery was abolished.
As mentioned above, in September 1785, Olympe de
Gouges had already been sent to jail in Bastille, for an antiesclavagist theater drama, entitled L’esclavage des Noirs [The
Slavery of Blacks], later published in 179245. Moreover,
Reflections on the Negros men (1788), was an essay also
published by Olympe de Gouges, which had allowed her to
become a member of the Société des Amis des Noirs. As an
abolitionist, she was later posthumously mentioned by Abbot
Grégoire, in the “List of the brave Men” (sic) who pleaded the
cause of the “unfortunate Blacks” (1808). Before the
Revolution, she had written:
“The sort of Negros, always interested me
in its pitiful fate. Those whom I could
question never satisfied my curiosity and
my reasoning. They are treated brutes,
beings which the Sky had cursed; but by
moving forward in age, I saw clearly that it
was the strength and the prejudice which
had condemned them to this horrible
slavery, that the Nature had no part in this
and that the inequitable and powerful
interest of the Whites had made
everything.” Réflexions sur les hommes
nègres [Reflections on the Negros Men]
(1788).
But slavery, abolished in 1794, was restored in 1802,
for the French colonies, a few years later, by Napoleon, giving
up to the colonial lobby. But France was dramatically defeated
45
According to her Préface – where she explains her argument –, Olympe de Gouges sent the text of her theatre drama in 1783 to the
Comédie Française, under the title L’esclavage des Noirs, which was first printed in 1786, represented in December 1789 and reprinted
with a Préface in 1792 (Gouges, 1792). The text of the manuscript given on December 28th, 1789 to the prompter man, before the
performance, was preserved in the collection of the Comédie-Française in Paris. This censored version has been recently published for
the first time (Gouges, 2006).
44
in Saint-Domingue. This country achieved independence and
brought an end to slavery on 1st January 1804. Soon later,
Britain banned the importation of African slaves in its colonies
in 1807 (Act for the abolition of the slave trade), and the
United States followed in 1808. Britain fully abolished slavery
throughout the British Empire with the Slavery Abolition Act of
1833, while slavery in the United States was only abolished in
1865 with the 13th Amendment to the U.S. Constitution. In the
French colonies, slavery was re-abolished on 27 April 1848, by
the decree-law Schœlcher46, and about the same time, France
started colonising Africa. The Native population in Africa, in
several countries, was transported to mines, forestry, and
rubber plantations under isolated, harsh working conditions,
often compared to slavery. Comparatively, Julia Seibert has
shown how black men and women were suffering from
“unfree” labor in Belgium colonial Congo, at the beginning of
the 20 th century (Seibert, 2012).
Frederick Cooper recently published provocative
reflections not only on the nature of colonialism but also on the
way of writing its history nowadays and about the process of
decolonization (Cooper, 2005).47 Cooper’s 2005 volume is
principally an interpretive work and his writings present
interesting overviews comparing situations in both French and
British colonial empires, distinguishing different legal and
socio-economic contexts (Cooper and Burbank, 2012). But,
surprisingly, the gender dimension was not considered by
Cooper.
We would like to learn more about what happened in
the French colonial Empire after the abolition of slavery,
between February 1794 and 1802 and after 1848 and whether
there was any change in the degree of participation of women
in the life of their community, under colonial laws, rules and
local customs and, if possible, compare legislation and practice
with other colonial regimes. Recent international research
edited by Marcel van der Linden offer rather pessimistic
conclusions under the title The Long-term Consequences of
the Abolition of the Slave Trade (van der Linden, 2011).
Even, for Pieter C. Emmer, comparing situations, in Britain,
France, the Netherlands and the colonial labour market in the
19th century, “as always, the trouble is with the French”
(Emmer, 2011). The legislation concerning the native people in
the French Empire during 19th and 20th centuries was specific.
THE FRENCH CODE DE L’INDIGENAT, 1881
46
The French state, under the Second Republic (1848–1852), bought the slaves from the colons (white colonists; Békés in Creole
language), and freed them.
47
Prasenjit Duara commented and discussed Frederick Cooper 2005 book: “To think like an empire”: An essay based on Frederick
Cooper's Colonialism in Question: Theory, Knowledge, History”, History and Theory, 46.2, 2007, 292–298.
45
Established in 1881, the Code de l’indigénat was a
specific legal code for the native people in the French Empire,
defining the way of governing them (Coquery-Vidrovitch
2007a; 2007b; M’Bokolo, 2004). Originally, the word “native”
means the one who was engendered on the spot, or who is “of
the place”. But the use which was made of this word in
colonial societies lead to distinguish between those who had
the power (the colonists) who were not subjected to this code,
and those who were subjected to it, the natives. This was also a
penal code applicable only to the “subjects” of the French
Empire, overwhelmingly the native men and women of the
colonies. It included a bunch of repressive legal and statutory
dispositions against the only natives, applied by the colonial
administration (Asiwaju, 1979; Mann, 2009). This regulation
was instituted for the first time in Algeria in 1881 and then
exported to most of the other territories of the French colonial
Empire. Its effects in the French colonial empire of 19th and
20th centuries were multiple. Actually, the Code contradicted
the basic principles of French penal law affirmed during the
Revolution. Conceived as a “practical way” to impose colonial
order, it was often denounced as a “legal monster” by its
contemporaries.
Set up at first during the conquest of Algeria, then
established by the law of June 28th, 1881, the Code de
l’indigénat defined “special breaches of the natives”. Two
categories of citizens were distinguished the French citizens
(of metropolitan origin) and the French subjects, that is the
black Africans, the Malagasies, the Algerians, the West
Indians, the Melanesians, etc., as well as the migrant workers.
The French subjects subjected to the Code de l’indigénat were
deprived of the major part of their freedom and of their
political rights; men and women kept only their personal civil
status, religious and customary identity.
This regime was extended to Cochinchina in 1881,
New Caledonia and Senegal in 1887, Annam Tonkin in 1897,
Cambodia in 1898, Madagascar in 1901, in Afrique
Occidentale Française (AOF) in 1904, and in Afrique
Equatoriale Française (AEF) in 1910. Tunisia and Morocco
escaped the Code de l’indigénat because they were under a
specific protectorate regime.
In her work in progress, Emmanuelle Saada stresses the
interrelations between law and violence in the French colonial
empire in the 19th and 20th centuries and contributes to a
broader history of legal incapacities and the law of
“exceptions” from broader rights regimes in the French empire
(Saada, forthcoming). Her study stands at the intersection of
the history of French colonial rule and the history of law,
connecting intellectual and political history with the analysis of
administrative and legal practices. She considers that the postrevolutionary French legal system, based on the universality of
46
the “subject” in the situation of colonial domination, delineated
within itself a space “outside law,” marked as “temporary” and
“exceptional.” Women as men suffered from this situation up
to the decolonization movements. While Frederick Cooper did
not consider the gender dimension of the question, Catherine
Coquery-Vidrovitch was heavily concerned by a gender
approach of African colonial history.
COLONIAL
CUSTOMS
LEGISLATIONS
VERSUS
AFRICAN
In 2007, in a special issue of Cahiers d’Etudes
Africaines, Catherine Coquery-Vidrovitch edited a rich
collection of studies dedicated to legislations and customs. She
investigated the state of the art and the amount of knowledge
accumulated then for a gendered history of law in Africa. She
demonstrated that women’s presence in law and justice were
more studied and evidenced in English publications than in
French ones (Coquery-Vidrovitch 2007a; 2007b). Therefore
she compared recent research all over the African continent so
as to confront diverse evolutions in the British colonial Empire
and overseas territories, and in the French colonial Empire.
The so-called Grands Coutumiers collected by French
colonial officers in the 1930s, constitute important and useful
historical sources on private law, as are, in English speaking
regions, collections of court judgments, and, later on, Family
codes. Collected in archives and in jurisprudence files, court
cases are extremely informative about female position and
customary rights. Three major topics appear to have been well
studied by historians of Africa, up to now: 1) questions dealing
with marriage (including the sharî’a rules and women’s
“witchcraft” and popular rituals), 2) polygamy, divorce, extramarital relations, adultery, heritage and 3) the brideprice
question (lobolo), sometimes improperly called dowry, which
plays a major role in order to understand how African native
females took account of land customary laws and labour laws
and defended their traditional rights to property and assets.
Based on Coquery-Vidrovitch’s overview, we could
follow the basic evolution of women’s rights from pre-colonial
times to the present, passing through colonial customary laws
and western colonial laws and we shall take the opportunity of
a coming international meeting in South Africa to learn some
more about work in progress in African universities48. It seems
that women were keen to distort rules that intended to limit
their customary rights. Actually, at Madagascar, they knew
quite well how to use and manipulate laws, under French
48
See the session jointly organized by Antoinette Fauve-Chamoux, Béatrice Craig and Jacqueline Ravelomanana on “Gender, property
and legal reforms, 18th-20th centuries”, XVIth World Economic History Congress, Stellenbosch University, South Africa, 9-13 July 2012,
an international conference organized by the International Economic History Association (IEHA) with The Economic History Society
of Southern Africa and The Department of Economics, Stellenbosch University.
47
regime, so as to improve their legal conditions over time.
Jacqueline Ravelomanana gives examples of how native
women succeeded in imposing their traditional matrimonial
customs in Madagascar (Ravelomanana, 2012).
Under colonial systems, women tried their best to
become more visible. The case of Guinean women is
particularly interesting, given the topic of the present study.
Encouraged by their leaders, they were pioneer in fighting for
their emancipation and political freedom. Guinea was formerly
part of the French colonial Empire and of Afrique Occidentale
Française (AOF) [French West Africa]. AOF was a federation
of French colonial territories in Africa (Figure 2).
The federation existed from 1895 up to 1960. It
included 1) Mauritania; 2) Senegal; 3) French Sudan (now
Mali); 4) French Guinea (now Guinea); 5) Côte d'Ivoire (Ivory
Coast); 6) Dahomey (now Benin) and 7) Niger. Upper Volta,
now Burkina Faso (with Ouagadougou city as capital) formed
the eighth colony; French Upper Volta, was, for a period,
parcelled between its neighbours. French Sudan also contained
a large portion of what is today the eastern part of
Mauritania.49
GUINEAN WOMEN IN POLITICS GAINING THEIR
RIGHT TO VOTE (1958)
Throughout the vast French colonial empire, Guinea (a
population then of 2.5 million people) was the only territory to
vote "No" to the proposition offered by Président du Conseil
Charles de Gaulle while the French President was René Coty.50
The question was about a new Constitution, within a Fifth
Republic.51 In the French colonies, the referendum also aimed
at creating a “French Community” (Communauté Française).
Guinea was the only country to reject the referendum and to
reach immediate independence.52 Male Guinean people voted
49
For situation maps, we recommend to consult the following figures for the African continent: 1) Map of colonial Africa in 1913
(before World War I), including the German colonies; 2) Map of colonial Africa after World War II, after the sharing of the German
colonies, with steps in decolonisation process (Thobie, et al., 1990, p. 603); 3) Map of Africa in 1968, with successive steps of
decolonisation (Thobie et al., 1990, p. 606-7). The Afrique Occidentale Française (AOF) [French West Africa] was a federation created
in 1895 which included French Guinea (now Guinea).
50
The referendum of 28 September 1958, asked French people to ratify the project of Constitution prepared by the Constitutional
Consultative Committee and the Parliament under the aegis of Michel Debré and of Président du Conseil, General de Gaulle. The
referendum intended also to create a French Community in the French colonies. Guinea was the only country to reject the referendum
and to reach independence.
51
For adoption of the French Constitution, the question was: “Do you approve the Constitution which is proposed to you by the
Government of the Republic?” Guinean people (only men) followed instructions given by Sékou Touré and 94.4 % voted "no". They
rejected the French Community.
52
When the official results were published in France, they gave separate figures for Guinea, saying that: “The national Commission in
charge with the counting of votes specified: “As regards the territory of Guinea, the Commission noted that, by a majority of the votes,
the electorate of this territory rejected the project of Constitution and, as a consequence, refused the integration to the Community. The
Commission decided, as a consequence not to insert the results of this territory into the global results of the referendum and to have
them appear apart.”
48
for independence from France and this country left Afrique
occidentale française (AOF). With this main political change
and a Constitution for Guinea, Guinean women finally gained
the right to vote (1958). At the time of the political campaign
and the Referendum, they had composed a song expressing all
together national identity, a vote for independence and in
support of the Guinean leader, Sékou Touré:
Guinea says “No”
De Gaulle says “Yes”
One must vote “No”
Comrade Sékou Touré, one must choose
the “No”
Yes, one must choose the “No,” Sékou
Touré
In any case, we vote “No”
(Camara, 1979, p. 111).
Without Guinea, a new republican Constitution was
adopted in France on 4 October 1958, together with the Fifth
Republic. Results of this Constitutional Referendum were a
considerable victory for the Guinean branch of the
Rassemblement Démocratique Africain (RDA) [African
Democratic Rally], a political party officially called Parti
démocratique de Guinée. RDA had members in each of the
fourteen territories of French West Africa, French Equatorial
Africa, the United Nations trust territories of Togo (until 1955)
and Cameroon (Manning, 1988; Schachter Morgenthau, 1964,
p. 400). While every other RDA branch, in Africa, had decided
to stay behind de Gaulle politics, the Guinean RDA, under the
leadership of Sékou Touré (1922-1984), a young trade unionist
(Union générale des Travailleurs d’Afrique Noire) who had
taken leadership of the Parti démocratique de Guinée in 1952,
found the way to complete an immediate independence from
France, initiating a wave of decolonization that later swept
across Africa.
Sékou Touré had studied Marx writings and the life of
Vladimir Lenin and, as first President of Guinea, organised a
socialist regime (Kaba, 1988). Sékou Touré’s great-grandfather, Almamy Samory Touré (1830-1900), a Malinke, had
resisted French colonisation in West Africa in the past. He had
then chosen to be a Muslim (Boahen, 1990). In Guinea, people
belonging to the Malinke ethnic group were heavily engaged in
trading networks and their associated Muslim communities had
connected diverse parts of what would become Guinea53
(Schmidt, 2005a). In the nineteenth century, the politicoreligious empires of the Tukulor leader, El-Hadj Umar b. Said
Tall, and the Malinke leader, Samori Touré, had brought
53
Jallonke people (Susu, Limba, Landuma, Baga, Bassari) and Fulbe people (Peul and Tukulor,) who were residents of the Futa Jallon
Guinean region, traded extensively with coastal peoples (Schmidt, 2005a, p. 991).
49
together vast territories. According to Africanist historians,
despite the nation-building efforts of party leaders, ethnic and
class rivalries were permanent54. Sékou Touré and his friends
of the nationalist movement, having already support from the
rural masses, tried deliberately a large alliance with popular
Guinean women. The growing role of Western-educated elites
was much contested at the grassroots. But historians consider
that the legacy of political, economic, religious, and cultural
interaction linked Guineans to one another. For Eric
Hobsbawm, Guineans had « the consciousness of having
belonged to a lasting political entity » (Hobsbawm, 1990).
Prasenjit Duara, in comparative perspective, made similar
claims for premodern China, India, and Japan (Duara, 1996).
Using a variety of archival and oral sources, Elisabeth
Schmidt attributed the African Democratic Rally’s
extraordinary success to its ability to form a broad ethnic,
class, and gender alliance, whose strength rooted in its support
among the non-literate masses, particularly women.
Considering local disputes over ethnicity, class and gender
identities, Schmidt reinterprets the nationalist history of
Guinea and its anti-colonial movements with a “bottom up”
approach (Schmidt, 2005a; 2005b). Guinean women were
considered as forming a quasi autonomous category within the
nationalist movement (Bayart, 1981). Adopting Bayart’s
concept of popular “bottom up political action”, E. Schmidt
analyzed the political activism of female shopkeepers,
needlewomen, peasants, as partly conservative and partly
transgressive. They joined the movement as mothers and
wives, answering the explicit call of the RDA, and later
influenced the objectives of the party as well as the methods of
action chosen, especially after the 1953 strike (Schmidt,
2005b).
Women who composed the songs that carried the
nationalist message throughout the territory were not literate. If
there was a new song, all the women learned it and sang it in
the collective taxis, teaching one another in the morning when
going to the market. When there was a political event, one of
the party leaders came to the market with the song to teach it to
the other women.
The colonial administration tried hard by all means to
break popular contesting. Official announcement of Barry
Diawadou as the winner and Sékou Touré as the loser of the
1954 elections created great anger against the colonial state,
particularly among popular women who prepared subversive
slogans and songs of protest that were sang on the markets,
saying that the colonial authorities had rigged the elections
(Camara, 1979; Schachter-Morgenthau, 1964; Suret-Canale,
54
The main ethnic groups in French Guinea were: Susu, Baga-Landuma-Mikifore-Nalou, Limba, Peul, Coniagui-Bassari, Malinke,
Jallonke, Kpelle-Kissi-Loma (Schmidt, 2005a). For more on the history of ethnic and religious relations in Guinea, see Rodney, 1968.
In Guinea, French is the official language.
50
1964a, 1964b, 1971).55 “The other party has stolen our votes.”
Women were not allowed to vote, but they sang:
“Look, people, at the RDA
Look, people, at the RDA
RDA women, unite
Laugh with me, Touré
Laugh with me, Touré”
(Schmidt, 2005a, p. 1010).
An interesting photo was taken in 1954 on Conakry
market showing commercial activities of these activist
women56 (Figure 3) and another document of the same period
presents Malinke women working on textile activities at home,
in front of their house, in their village community and with
their family members, old and young (Figure 4).
On occasions some women wore the RDA group
uniforms and referred to symbols.57 They participated in the
reorganization of the party, and tried to change sexual
hierarchy: forming militias, some women dressed as men and
adopted some new behaviour manners, even if, in some ways,
other forms of transgression already existed before
colonization (Rivière, 1968). Interviewed on 8 April, 1991 by
Idiatou Camara, recalling the day when she was recruited into
the RDA party, Aissatou N’Diaye, from Tukulor-Senegalese
origins (not of the Malinke group but definitely a convinced
Muslim woman), reminisced that she and a friend had been
called to a meeting with Sékou Touré:
“Upon our arrival, he asked us to help him
mobilize women… He also said that he had
nothing material, not money or gold, to offer in
return. If the women would help him, they would
do it for the love of Allah, his Envoy, and their
cause… He asked us to do this work in the name
of Allah and his Prophet, Mohammed” (Schmidt,
2005a, p. 995, citing Camara, 1979).
If the political mobilization of working class Guinean
women did not really result in a full emancipation, besides
gaining the final great right to vote, traditional gender roles
were certainly moved during the 1950s, in this mostly Muslim
society. In France, by contrast, secularisation of society was
massively progressing, but it took a long time for women to
gain the right to vote.
55
With territorial elections of 1957, Sékou Touré was elected President of Council. The Parti démocratique de Guinée (PDG) became
then the unique party of Guinea.
56
See photos taken in 1954 on Conakry market and Malinke women spinning and dyeing cloth, Reproduced by permission of
FR.CAOM. Aix-en-Provence (Schmidt, 2005a, pp. 1008 & 1011) (Figures 3 ad 4).
57
The RDA uniform was a white Guinean djellaba robe, with a white payer cap for men (Schmidt, 2005a, p. 978 & 994). The symbol
of the party was the elephant.
51
FRENCH WOMEN INTER-WAR FIGHTS
SUFFRAGE AND POLITICAL RESPONSIBILITY
FOR
In France, after 1900, members of parliament prepared
bills that would allow women suffrage, but all proposals were
stopped by the Senate. Groups of women, called “suffragettes”,
formed associations and began to claim for the right to vote
(Figure 5). Between 1919 and 1936, the Chambre des députés
proposed several times the vote for women, but the Senate
never registered the question on its agenda58. Born in 1893 in
Northern France, Louise Weiss was a journalist engaged in
fighting for equality of civil and political rights for women and
men. She militated actively for women’s vote. In 1934, she had
founded the association “La Femme nouvelle” [The new
Woman]. She was a symbolic candidate at the elections of
1935 and 1936 in Paris, and organized several spectacular
actions, intending to draw the attention of the press (Berton,
1999).
On October 6th, 1934, she opened a shop for women on
the Champs-Elysées and she placed in the window a map of
the world with a large caption: “American women vote,
English women vote, Chinese women vote... But French
women do not vote” (Berton, 1999). In 1935, the day of the
municipal elections, Louise Weiss chained herself to the
column of the Bastille place with other activist women and
harangued the crowd (Figure 6):
“this place evokes for us the end of the
Ancien Regime and the Declaration des
droits de l’homme. This noble and so
renowned Declaration is in reality only a
masterpiece of egoism: its authors have
just forgotten the woman” (Weiss, 1970, p.
89).
On 2 June 1936, in front of the Senate, Louise Weiss,
with activists of her group, La femme nouvelle59 offered to
senators pairs of socks wearing the inscription: “even if you
give us the voting right, holes in your socks will be repaired”.
In 1936, with the Front Populaire government, three
women were appointed by Leon Blum as vice-secretaries of
State60, among them was Suzanne Lacore, in charge with the
58
For more information on the history of French women as citizens, see the official web site: www.assembleenationale.fr
After World War II, once the voting right existed for women, Louis Weiss pursued her activity as a journalist. She engaged then for
peace and for the construction of Europe. She died in 1983, aged 90. She had been married in 1934 but divorced two years later. About
the disaster of her marital experience, she clearly concluded that divorce, if no family, brought her freedom. “All in all, for lack of
happiness, the marriage and especially divorce brought me a civil status which facilitated my existence and opened me sentimental
possibilities that, without having passed by these events, I would not certainly have met. Thus, I have not paid at a too high price their
unfortunates requirements" (Weiss, 1970, p. 16).
60
Suzanne Lacore was in charge with the protection of children (Figure 7), Irène Joliot-Curie in charge with scientific research, and
Cécile Brunschvicg, in charge with education, who was a close friend of Louise Weiss, and also from Jewish origins.
59
52
protection of children (Figure 7). Louis Weiss was approached
by Blum, but she declined the invitation, for, she said:61 “I
fought for being elected, not for being appointed”. In 1942,
during World War II, General de Gaulle declared that “once the
enemy will be kicked off the territory, all men and women
from our France62 will elect the National Assembly,” and on
21st April, 1944, before France was freed from the German
occupation, he ratified a text proposed by the Provisional
Government of the French Republic sitting in Algiers, which
article 17 stated the vote of women and institutionalised their
eligibility: women were declared voters and eligible according
to the same conditions as for men. At last, women voted for the
fist time in France on April 29th, 1945 for the municipal
elections and later, on 21 October 1945, for a “general
elections” day, concerning the constituent Assembly and a
Referendum63 (Figure 8). But we note that it is only in 1989
that a woman, Catherine Trautmann, became a mayor of a
large city, Strasbourg, and only in 1991 than a woman became
Prime Minister, Edith Cresson.
CONCLUSION
In early modern Europe, women were never restricted
to the private sphere. All women, rural or urban, transmitted
knowledge, cultural norms and symbolic values, and had a
large access to the public sphere, according to local rules of
their social communities. They could circulate alone, buy or
sell goods on the market, simply walk far away to visit their
family members and relatives, work outside home, daily or,
when they had no spouse (being single or widowed), be
servants for months or years in a private house or an
institution. Once married, they had to choose a job compatible
with family life and responsibilities, but could rely on paid or
unpaid domestic help either to deal with small children or to
look after sick and/or dependant family members.
But female presence in politics was rare. Women were
not equal to men and did not vote. In most western countries as
in countries with a colonial history, female suffrage was
accorded after long fighting. In most countries, women were
not able to vote until sometime during the twentieth century.
In France, change concerning the right to vote for
women happened in 1944. French women voted for the first
time in 1945 and could enter the Senate in 1946. Previously,
women would gather occasionally for food riots or other
61
In French : “J'ai lutté pour être élue, pas pour être nommée”.
In French : “les hommes et les femmes de chez nous”, which means that, in the colonies, natives would still be excluded.
63
For this Referendum of 21 October 1945, two questions were asked: 1/ Is a new constitution needed? (Faut-il une nouvelle
constitution? ) and 2/ Is it needed to limit the powers of the constituent Assembly which id elected simultaneously? (Faut-il limiter les
pouvoirs de l’Assemblée constituante élue simultanément ?)
Concerning the gender balance at the Assembly formed in 1945, only 5,6 % of elected deputies were females.
62
53
protests. At the time of the French Revolution, some early
feminist women as Olympe de Gouges in France (or Mary
Wollstonecraft in Britain) began to publish essays (Declaration
of the Rights of Woman and of the Female Citizen, 1791, for
the former and for the latter, A Vindication of the Rights of
Woman, With Strictures on Political and Moral Subjects,
1792), in order to join open debates and political action,
claiming for equal rights for men and women.
For the countries under French colonial regime,
historians have been studying many questions as women’s
rights and their presence in law courts from local archives.
Some more needs to be done to compare the level of female
participation to political life under specific colonial
constitutions. It would be interesting to explore further, in a
comparative perspective, to what extent native women were
active in politics, in nationalist movements and in
decolonisation processes.
In French colonial Africa, Guinean women formed a
specific and quasi autonomous category within the nationalist
movement, leading to early decolonisation (Locoh, 2001). I
chose to present their action and mentalité in the 1950s as a
case study in the present article, given their cultural and
religious specificities. But Guinean women seem to have been
largely manipulated by political men and leaders of the
nationalist party of their country. The spectacular political
movement of popular women ended in Guinea in September
1958, with independence. Significantly, most Guinean women
of the time, who had been committed in political action in the
1950s, refused later to comment on this period of their life
when they were active outside home, supporting the leader
Sékou Touré in the name of their nation and in the name of
Allah (Camara, 1979). By contrast, in France, individual
independent figures, as Louise Weiss, were certainly not
manipulated and used the media for achieving their main goal:
obtaining equality of civil and political rights for women, and
at last, the right to vote for French female citizens (1944). The
right to vote was granted to French women a century and a half
after the 1789 French Revolutionists proclaimed: Freedom,
Equality, Brotherhood [Liberté, Egalité, Fraternité].
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59
1B
Mulheres em Política sob uma Perspectiva Histórica e
de Gênero: da França à Guiné (1789-1958)
Antoinette Fauve-Chamoux: [email protected]
60
[Figura 1]
Mulheres revolucionárias francesas
tricotadoras jacobinas ou de Robespierre]
tricotando
[As
Gravura de Pierre-Etienne Lesueur, Musée Carnavalet, Paris,
Gouache, © RMN.
Engajadas num trabalho proto-industrial, muitas operárias
estiveram tricotando meias de lã para comerciantes e, durante a
Revolução Francesa, em Paris, frequentavam encontros
políticos e, como diz a observação, « Grande número delas
recebia 40 pence por dia para vir ao palanque dos Jacobinos e
aplaudir as moções revolucionárias, Ano 2» [1793-1794].
61
[Figura 2]
Mapa da Àfrica colonial em 1913 (antes da Primeira
Grande Guerra), incluindo as colônias alemãs.
Reproduzido de Thobie et al., 1990, p. 603.
62
[Figura 3]
Mulheres no mercado em Conakry, 1954.
Reproduzido com a permissão de FR.CAOM. Aix-enProvence.
Segundo Elisabeth Schmidt (2005a), as mulheres iam ao
Mercado todos os dias. Se havia uma nova música, elas a
aprendiam e cantavam nos taxis, ensinando uma à outra.
Quando havia um acontecimento, a líder ia ao Mercado com a
canção para ensiná-las às outras mulheres.
63
[Figura 4]
Mulheres de Malinke tecendo e tingindo roupas que depois
vão vender no mercado, em sua vila, com membros da
família, 1954.
Reproduzido com a permissão de FR.CAOM. Aix-enProvence.
64
[Figura 5]
Cartão francês ano1915: “Porque a mulher deve votar”,
mostando um grupo de “sugragetes” exibindo cartazes
conclamando o direito ao voto.
Nos cartazes que carregam, pode-se ler, da esquerda para a
direita:
« Para lutar contra a imoralidade, a mulher deve votar» ; « Para
combater o alcoolismo» ;
« Sociedade para a melhoria do destino da mulher e pela
reinvindicação de seus direitos» ; « Para lutar contra a ( ?), a
mulher deve votar» ; « Para impedir a guerra, a mulher deve
votar» ; « Para defender a família, a mulher deve votar».
65
[Figura 6]
Louise Weiss, líder das ativistas femininas da Femme
Nouvelle, segurando cadeias, presas por elas ao
monumento, place de la Bastille, Paris, e fazendo uma
fogueira, proclamavam com posters: « As mulheres
francesas devem votar » [La française doit voter], 1935.
Louise Weiss disse à imprensa e à multidão: "este lugar
evoca para nós o fim do antigo regime e a Declaração dos
direitos do homem. Esta nobre e tão renomada Declaração
é, na realidade, uma obra prima do egoísmo: seus autores
esqueceram as mulheres (Weiss, 1970, p. 89).
66
[Figura 7]
Em 1936, a deputada francesa Suzanne Lacore, um
membro do Comitê Nacional das Mulheres Socialistas,
tornou-se sub-secretária de Estado, encarregada da
proteção das crianças.
Ao mesmo tempo, Cécile Brunschvicg, presidente da
União Francesa pelo voto das mulheres (U.F.S.F.), era
sub-secretária do Éstado, encarregada da educação e Irène
Joliot-Curie era sub-secretária do Estado, encarregada da
pesquisa científica.
67
[Figura 8]
Mulheres francesas votando pela primeira vez. Eleições
gerais de 21 de outubro de 1945.
Para este Referendo de 21 de outubro de 1945, duas questões
foram perguntadas: 1. É necessário uma nova constituição? E
2. É necessário limitar os poderes de uma Assembléia
constituinte que é eleita simultaneamente?
Referente ao equilíbrio quanto ao gênero na Assembléia
formada em 1945m apenas 5,6 % dos deputados eleitos eram
mulheres.
68
1C
Women in Politics in Historical and Gender
Perspective: from France to Guinea (1789-1958)
Antoinette Fauve-Chamoux: [email protected]
69
[Figure 1]
French Revolutionist Knittting Women [Les tricoteuses
jacobines ou de Robespierre]
Estampe by Pierre-Etienne Lesueur, Musée Carnavalet, Paris,
Gouache, © RMN.
Engaged in proto-industrial work, many working class women
were knitting woollen socks and stockings for merchants and,
during the French Revolution, in Paris, they attended political
meetings and, as says the caption, « A large number to them
received 40 pence a day to come to the stand of the Jacobins
and applaud the revolutionary motions, Year 2» [1793-1794].
70
[Figure 2]
Map of colonial Africa in 1913 (before World War I),
including the German colonies Reproduced from Thobie et
al., 1990, p. 603.
71
[Figure 3]
Market women in Conakry, 1954.
Reproduced by permission of FR.CAOM. Aix-en-Provence.
According to Elisabeth Schmidt (2005a), women went to the
markets every day. If there was a new song, all the women
learned it and sang it in the taxis, teaching one another. When
there was an event, the leader went to the market with the song
to teach it to the other women.
72
[Figure 4]
Malinke women spinning and dyeing cloth that they would
later sell on the market, in their village, with family
members, 1954
Reproduced by permission of FR.CAOM. Aix-en-Provence.
73
[Figure 5]
French post card c. 1915: “Pourquoi la femme doit voter”
[Why the Woman must vote], showing a group of
“suffragettes”, exhibiting panels claiming for the right to
vote.
On the panels that they carry we can read, from left to right :
« Pour lutter contre l’immoralité, la femme dit voter » ;
« Pour combattre l’alcoolisme » ;
« Société pour l’amélioration du sort de la femme et la
revendication de ses droits » ; « Pour lutter contre la ( ?), la
femme doit voter » ; « Pour empêcher la guerre, la femme
doit voter » ; « Pour défendre la famille, la femme doit
voter ».
74
[Figure 6]
Louise Weiss, leader of the female activists of Femme
Nouvelle, holding chains, attached together with them to
the monument, place de la Bastille, Paris, and making a
fire, proclaimed with posters « The French woman should
vote » [La française doit voter], 1935.
Louise Weiss told the media and the crowd: "this place evokes
for us the end of the ancient regime and the Declaration des
droits de l’homme. This noble and so renowned Declaration is
in reality only a masterpiece of egoism: its authors have just
forgotten the woman" (Weiss, 1970, p. 89).
75
[Figure 7]
In 1936, French deputy Suzanne Lacore, a member of the
National Committee of Socialist Women, became soussecrétaire d'État, in charge with protection of children.
At the same time, Cécile Brunschvicg, présidente de l’Union
Française pour le suffrage des femmes (U.F.S.F.), was soussecrétaire d'État, in charge with education and Irène JoliotCurie was sous-secrétaire d'État, in charge with scientific
research.
76
[Figure 8]
French woman voting for the first time, General elections
of 21 October 1945
For this Referendum of 21 October 1945, two questions were
asked: 1/ Is a new constitution needed? and 2/ Is it needed to limit
the powers of the constituent Assembly which id elected
simultaneously?
Concerning the gender balance at the Assembly formed in 1945,
only 5,6 % of elected deputies were females.
77
2
Diálogos epistolares como fontes para a História das
Ciências: a correspondência de Miguel Rolando Covian
Eneida Nogueira DAMASCENO: [email protected]
CV: http://lattes.cnpq.br/5100371665212423. Mestra em Ciências pela Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Campus de Ribeirão Preto, Brasil.
Área de pesquisa: História da Psicologia.
Marina MASSIMI: [email protected]
CV: CV: http://lattes.cnpq.br/1824675277001228. Graduada em Psicologia pela Università
degli Studi di Padova, Mestre e Doutora em Psicologia pela USP. Atualmente é Professora
Titular de História da Psicologia da Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto.
78
BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC
Resumo É discutida neste trabalho a relevância do gênero correspondência epistolar enquanto
fonte primária para a produção da História das Ciências. No caso específico deste
artigo, dedicado à correspondência do neurofisiologista Miguel Rolando Covian,
destacamos os campos da História da Medicina, da Psicologia e da Biologia.
Abordamos também os aspectos jurídicos que protegem as correspondências epistolares
como documentos pessoais, colocando-as sob a condição de restrição de acesso por
determinado período de tempo, a partir de cuidados éticos pertinentes com relação às
informações de caráter pessoal e íntimo que elas contêm. Nesse sentido, a preservação
destes documentos em condições adequadas para que resistam ao tempo se faz
impositiva. Cartas levam em seu conteúdo não só informações sobre seus
correspondentes, mas também fragmentos de sua época, resultando, assim, em um
gênero de fonte multidisciplinar.
Palavras-chave Correspondência epistolar; Fontes históricas; História das ciências.
Abstrac It is discussed in this paper the relevance of the genre of written correspondence as a
primary source for the production of the History of Science, and in the specific case of
this article, we highlight the fields of medicine, psychology and biology standing out
the epistolary correspondence of the neurophysiologist Miguel Rolando Covian. Legal
aspects that protect epistolary correspondence as personal documents, placing them
under a restricting access condition for a certain period of time, raise relevant ethical
issues respecting to personal and intimate information that it contains. In this sense, it is
urgent to preserve such documents in appropriate conditions. The content of the letters
shows not only information about the correspondents, but also fragments of that period
of time, resulting in a genre of multidisciplinary source.
Keywords Epistolary correspondence; Historical sources; History of sciences.
79
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é destacar o papel relevante
das correspondências epistolares enquanto fontes primárias
para a produção da História das Ciências. Não nos referimos
somente à importância destes documentos, mas também à
pertinência de organização, catalogação e disponibilização dos
mesmos. A dificuldade encontrada por pesquisadores e
estudiosos em achar acervos de correspondências devidamente
catalogados muitas vezes prejudica uma pesquisa promissora.
E no trabalho historiográfico, conforme assinala Marrou (1978,
p.55), só podemos alcançar o passado através dos traços
inteligíveis para nós que este passado deixou. Ainda segundo
Marrou,
“A escrita da História faz-se com documentos” e define:
“Constitui um documento toda a fonte de
informação de que o espírito do historiador
souber tirar qualquer coisa para o
conhecimento do passado humano, encarado
sob o ângulo da pergunta que lhe foi
proposta. É perfeitamente obvio que é
impossível dizer onde começa e onde
termina o documento; pouco a pouco a
noção se alarga e acaba por abranger textos,
monumentos, observações de todo gênero”.
(MARROU, 1978, p. 62)
O trabalho com correspondências pessoais revela seu
caráter delicado no que tange à intimidade do autor com a qual o
historiador vai se deparar, revelando-se uma possível armadilha
no caso de um plausível entusiasmo por parte desse, uma vez
que documentos pessoais abstraem o seu autor do campo das
manifestações públicas.
Segundo Prochasson (1998, p. 7),
“As armadilhas que as correspondências
estendem aos historiadores são, no entanto,
numerosas. A impressão de pegar
desprevenido o autor de uma carta que se
destinava unicamente ao seu correspondente,
o sentimento de violar uma intimidade,
garantia de autenticidade, quando não de
verdade,
são,
às
vezes,
bastante
enganadores. Existem correspondências que
traem uma autoconsciência que não engana
ninguém. Existem cartas ou documentos
privados cujo autor mal disfarça o desejo,
talvez inconsciente, de torná-las, o quanto
antes, documentos públicos”.
80
Para Prochasson, (Idem) a correspondência está inserida
na categoria de arquivos privados, assim como diários,
cadernetas, agendas, etc. e afirma: “Essa documentação deve
constituir uma base arquivística útil para a construção da história
da construção de uma obra ou de uma personalidade”.
De fato, a controvérsia existente com relação ao gênero
correspondência epistolar integrar as fontes para a produção da
pesquisa histórica, não elimina, com as devidas ressalvas e o
uso de um método de pesquisa apropriado e rigoroso, o valor
histórico heurístico desse gênero de fontes.
Além do mais, as cartas revelam o universo interior de
seus autores. Para Stein (2003, p. 583), as cartas são
documentos nas quais é possível conhecer “o modo de ser
próprio de um homem: esse modo de ser se nos mostra através
das múltiplas formas de expressão nas quais o ‘interior’ se
‘exterioriza’”.
Os diálogos epistolares trazem em seus conteúdos, de
modo geral, registros de fatos, emoções, sentimentos,
vivências e experiências escritas de próprio punho pelo sujeito
que as vivencia; esses escritos registram, de acordo com o
regime de temporalidade, pessoas, acontecimentos e
sentimentos relativos ao período em que foram produzidos.
Nesse sentido, independente das intenções do autor(es) quanto
ao fato de serem essas missivas posteriormente divulgadas ou
não, cartas epistolares projetam-se como documentos de
destacado valor histórico, na medida em que podemos entender
que uma correspondência epistolar traduz fragmentos de sua
época.
As missivas endereçadas a indivíduos de seu círculo de
relações pessoais podem conter informações que dificilmente
serão encontradas em outros escritos do autor como livros,
artigos, aulas, etc.. Neste âmbito, o historiador deve estar ciente
que adentra o campo da ética ao deparar-se com aspectos da
vida pessoal dos correspondentes e com o respaldo legal
estabelecido juridicamente com a finalidade de proteger a
intimidade relatada nas correspondências epistolares por
determinado período de tempo. O respeito à legislação vigente
neste sentido traduz também o respeito à ética.
Esta reflexão nos remete imediatamente à questão da
preservação destes documentos que guardam em si memórias
que contribuirão para a construção da História.
Massimi (2012, p.3), afirma, “A memória disponibiliza,
portanto, o material para o trabalho histórico: por meio da
própria memória, os atores do processo histórico buscam salvar
o passado para servir à edificação do presente e do futuro”.
Paes (1969, p. 7/8), na apresentação de seu livro Grandes
Cartas da História, recorre a trechos da correspondência
epistolar trocada entre Abelardo e Heloise e entende que para
Heloise, “a boa carta é aquela que, para além do sentido
81
ostensivo das palavras, deixa entrever a alma – interesses,
preocupações, idiocrasias, paixões – de quem a escreve”.
Grandes personagens da história deixam seu legado
pessoal e intelectual, seus sentimentos mais profundos
registrados em epístolas que consistem por si só em valiosos
documentos para a reconstrução histórica em vários de seus
segmentos, não só por conter, escritos de próprio punho,
informações subjetivas quanto aos seus pensamentos,
sentimentos, preferências e emoções, como também informações
de cunho tão pessoais que deixam entrever traços de caráter de
seu autor que poderiam passar despercebidos, não fossem estes
registros. Desse modo podemos entender a expressão de
Prochasson (Ibid. p. 3), Essa documentação “constitui aquilo
com que sonha todo historiador da cultura, do biógrafo que corre
atrás daquele dossiê completo (...)”
O
estudo
destas
correspondências
possibilita
investigações mais completas sobre personagens importantes no
cenário
histórico, bem
como oferece informações
complementares do contexto em que viveram. Como exemplo,
voltamos a Paes (Ibid. p. 135), que ao publicar algumas cartas
de Napoleão Bonaparte, mostra duas missivas que contém forte
e muito bem escrito teor político e militar e também mostra
outras duas cartas nas quais o poderoso chefe político e militar
reclama como um menino apaixonado da falta de atenção
dispensada a ele por sua esposa Josefina que passa tempos sem
lhe enviar notícias ou não o espera quando ele deixa
compromissos militares só para ir vê-la. A intencionalidade
destes exemplos reside na necessidade de reflexão sobre o
excesso de reservas com relação à convicção de que os autores
epistolares podem sucumbir ao desejo de projetar sua imagem
no futuro com a elaboração de escritas intencionais; se uma
rigidez for mantida neste ponto, corre-se o risco de perder
informações singulares no que diz respeito à vida desses autores:
seu tempo, seu trabalho, sua personalidade, enfim, a
subjetividade inerente a cada um, bem como ao contexto
histórico que o cercou.
Alcir Pécora (2001, p. 30), ao analisar as cartas de Santo
Inácio, detecta que as correspondências da Companhia dos
Jesuítas eram uma das suas grandes preocupações, “O que se
escreve é ainda mais de cuidar que o que se fala, porque o
escrito fica e dá sempre testemunho...”. Cartas constituem-se
num arquivo de elevado valor histórico, pois contém o
testemunho de quem as escreveu.
Massimi (2002, p. 14), ao referir-se às pesquisas
desenvolvidas acerca da correspondência epistolar dos jesuítas,
especialmente ao conjunto de cartas denominado Indipetae,
afirma:
“As cartas que compõem a Indipetae contém
expressões muito significativas do trabalho
82
de investigação acerca de si mesmos para o
qual os jovens jesuítas eram treinados em
sua formação. Além de se constituírem num
interessantíssimo referencial para se
entender o significado do “além-mar” na
mentalidade de jovens europeus dos séculos
XVI e XVII.”
Considerando este papel histórico informativo, a
epistolografia firma-se como considerável fonte de produção
histórica, a partir da aplicação rigorosa de métodos
cuidadosamente escolhidos. Neste ponto fechamos o foco na
História das Ciências quando reconhecemos e temos como
objeto de trabalho a correspondência de um cientista, neste caso
específico, o neurofisiologista Miguel Rolando Covian.
Cartas epistolares apresentam, de modo geral, conteúdo
diversificado, os interlocutores falam sobre assuntos diversos:
seu cotidiano, seu trabalho, suas emoções e sentimentos,
abrindo, deste modo, amplas possibilidades de pesquisas. Assim,
as cartas do Covian oferecem este leque de temáticas. Além do
mais, como cientista, Covian registra em suas missivas parte da
história das Ciências da sua época, com destaque para a História
da Medicina, da Neurofisiologia, da Psicologia e da Biologia.
Segundo Massimi (1997, p. 19),
As cartas [...], além de constituir relatos
ricos em informações, testemunham também
a experiência subjetiva que, por meio da
escrita, reflete sobre o mundo no qual se
situa. Nestes relatos os acontecimentos
históricos são apresentados com a linguagem
própria e particular de quem viu e vivenciou
tais acontecimentos como parte integrante de
sua biografia. Nesse sentido, possibilita-nos
compreender
relações,
atitudes,
sensibilidades e emoções daqueles homens
em seu contexto histórico determinado.”
MIGUEL ROLANDO COVIAN: BREVE BIOGRAFIA
Miguel Rolando Covian nasceu no dia 7 de setembro de
1913, na cidade de Rufino, Argentina. Estudou medicina na
Faculdade de Medicina de Buenos Aires e graduou-se médico
em 1942. Desde então passou a dedicar-se integralmente ao
ensino e à pesquisa e nesse período recebe a orientação daquele
que, segundo Hoffmann (2005, p. 39) seria seu mestre por toda a
vida, Bernardo Houssay. Segundo Vichi (2002, p. 39), Covian
sempre dizia que seu maior título era ter sido discípulo de
Bernardo Houssay.
Covian trabalhou no Instituto de Medicina e Biologia de
Buenos Aires de 1945 à 1948. A seguir, estagiou por três anos
como bolsista da Fundação Rochfeller na Universidade de Johns
83
Hopkins na cidade de Baltimore. Retornando à Argentina,
continuou seu trabalho no Instituto de Biologia e Medicina
Experimental, onde, segundo Vichi (2002, p.39), fundou o
primeiro laboratório de neurofisiologia da Argentina, atuando ali
como chefe até 1955, quando então recebeu o convite do prof.
Dr. Zeferino Vaz para trabalhar na Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto. Segundo Vichi (2002, p.39), sua chegada e
trabalho nesta escola médica tornar-se-ia decisiva para a
consolidação do recém criado Departamento de Fisiologia, o
qual dirigiria até 1974. O setor seria dos melhores centros
humanos do país (VICHI, 2002, p.39). Ainda segundo
Hoffmann (2005, p. 39), Covian naturalizou-se brasileiro em
1971. Atuou como docente de 1955 a 1992, desempenhando um
papel fundamental na formação da Instituição e se tornou uma
personalidade marcante nos meios acadêmicos. Credita-se
principalmente a Covian o empenho em impulsionar o
desenvolvimento do departamento de fisiologia, transformandoo em um grande centro de ensino e pesquisa do país.
Um médico dedicado aos seus mestres que, com certeza,
influenciaram sua formação humanista, dedicado à ciência e a
religião. “sua religiosidade era expressa por meio do carisma e
por sua opção clara por uma ciência humanista” (BUENO, 2005,
p.33).
Covian critica a desumanização do homem pela sua falta
de silêncio, de tempo para meditar e entrar em contato com sua
essência, chama esse homem de homem-monstro, produto da
época atual, um raro espécime desumanizado, metade homem,
metade robô, escravizado pela técnica e pressionado pela
eficiência. (HOFFMANN; MASSIMI, 2008, p.61/62). “No final
dos anos 50, previu o avanço da técnica e, como consequência, a
desumanização da ciência, viu que o saber científico e o saber
humanístico se divorciariam no contexto da revolução científica
dos séculos XIX e XX” (BUENO, 2005, p. 47).
Para Covian, no processo de humanização, a ciência e a
técnica têm importante papel a desempenhar, para isso a técnica
deve ser colocada a serviço do seu autor, deve assim ser
sacralizada, “é preciso sacralizar o profano para salvar o homem
humanizando-o” (HOFFMANN; MASSIMI, 2007, p. 63). E diz
ainda, “O verdadeiro homem de ciência tem uma natural
disposição para o trabalho silencioso e meditativo. Diria que sua
atitude é religiosa, ainda que negue Deus” (Idem p. 63).
Propõe que o cientista seja culto, que busque a sapiência
da filosofia para conseguir integrar e sintetizar os diversos
setores do conhecimento. (BUENO, 2005, p.47). Segundo Vichi
(2002, p.40), sempre reflexivo em suas considerações, Covian
diria em 2 de abril de 1957: “Vivemos uma crise de valores...,
esse fato é tão objetivo que não necessita ser analisado, mas o
que é triste é que essa ausência de valores está dando origem a
uma juventude cética a tal ponto que o ceticismo chegou a ser
uma pose elegante”.
84
OS DIÁLOGOS EPISTOLARES
Poliglota, Covian se correspondia com cientistas de
várias partes do mundo. Trocava idéias e experiências, descrevia
experimentos, expressava suas opiniões, expunha seus
sentimentos, ensinava, orientava seus alunos, quando estes
estavam estagiando fora do Brasil, tecendo, assim, uma vasta
rede de informações e conteúdos ímpares para a construção da
história das ciências, uma vez que são contados a partir das
vivências cotidianas do autor e, portanto, sem o polimento da
escrita acadêmica ou puramente literária, revelando-se, então,
referências suplementares pelas quais anelam tantos
historiadores da ciência.
Mais uma vez retomando Stein (2003, p. 583),
“O modo de ser de uma pessoa se expressa
também em formas que podem seguir
existindo separadas dela: em sua letra, no
estilo que se reflete em suas cartas ou em
outras manifestações literárias e também nos
efeitos que ele produz em outros homens.
Coletar estas fontes é o trabalho preliminar
do historiador que se completa na tarefa de
compreendê-las por meio de suas linguagens
específicas e de tornar acessível aos outros
esta individualidade por ele compreendida”
Covian mantinha uma posição intelectual favorável à
aproximação entre ciência e religião, tema este largamente
enunciado em sua correspondência. Era um homem religioso,
entretanto, não fazia proselitismo. A subjetividade deste
cientista religioso firma-se em seus escritos. Escrevendo para
outros cientistas vai, talvez sem o perceber, escrevendo parte da
história das ciências e também das instituições científicas das
quais era membro. Escrevendo para amigos, entre eles, monges,
padres e filósofos desenvolve seu pensamento firmando-se com
um cientista humanista preocupado com os frios rumos que,
segundo ele, via a ciência enveredar a partir do desenvolvimento
acelerado da técnica.
Em seu artigo “Memória e História na História da
Psicologia: Dois exemplos de produção de documentos”
Massimi (2012, p.7) apresenta a correspondência de Covian
como “exemplo de atividade de preservação e apresentação do
dado histórico possibilitadas por escolhas realizadas pela
memória dos atores do processo histórico” e insere esta
correspondência na dimensão da “estrutura dinâmica das
relações entre memória e história”
85
ASPECTOS LEGAIS
Produzida no período entre 1955 a 1985, a
correspondência de Covian está sob proteção legal. Sob a égide
de domínio privado, esta correspondência encontra-se em
condição de restrição de acesso, sob responsabilidade da
instituição que a guarda64. Este intercâmbio epistolar estendia-se
como uma rede científica e social por diversos países,
envolvendo esta correspondência em alta complexidade com
relação aos aspectos legais que a resguardam.
Ainda em vida, Covian outorgou à Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto o direito de guarda de todo material
pertencente a ele que fosse encontrado em sua sala no
Departamento de Fisiologia dessa Faculdade ao registrar em
cartório uma Escritura de Testamento. Este documento, parte
dos resultados de nosso trabalho, foi encontrado durante o
desenvolvimento de nossa pesquisa e encaminhado à Reitoria da
Universidade pela Dra Anette Hoffmann – membro da equipe de
Covian – dando início ao processo de legalização de guarda
deste material, no qual se encontra incluída essa
correspondência.
A legislação determina que a restrição de acesso aos
documentos pessoais se dê por um prazo mínimo de setenta anos
a contar de 1º de janeiro do ano subsequente ao falecimento do
autor(es)65, devendo a instituição responsável pela custódia
destes documentos estabelecer regras pertinentes a esse acesso
de acordo com as disposições legais estabelecidas.
Esse período de setenta anos determinado pela
legislação vigente para proteção às informações pessoais
contidas nas cartas epistolares torna ainda mais premente a
necessidade de meios adequados de preservação desses
documentos, pois, ainda que o avanço tecnológico apresente
meios imediatos de preservar a informação, não podemos deixar
de reconhecer o valor do documento original enquanto fonte
primária.
Cartas epistolares, principalmente quando em grandes
quantidades, constituem-se em um acervo histórico muito
delicado, a correspondência de Covian encontra-se redigida à
mão, em sua maioria, e também datilografada, o papel é fino,
sendo algumas cartas escritas em papel de seda. Manusear
estes documentos de suporte tão frágil requer vontade,
disciplina e cuidados especiais.
Trabalho este que demanda tempo e pessoas com
experiência e voltadas a esta tarefa, mas, geralmente, por falta
de pessoal treinado e com tempo disponível para um trabalho
tão delicado e demorado, alguns acervos, especialmente aqueles
constituídos de papéis soltos, como correspondências,
64
65
FMRP – Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP – Universidade de São Paulo.
Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Disponível em < http://planalto.gov.br/ccivil03/leis/l9610.htm >
86
anotações, etc. permanecem arquivados, porém, com seu
conteúdo desconhecido e, portanto, praticamente inacessível.
A compilação e sua disponibilização para a pesquisa é
tão importante quanto a própria pesquisa, uma vez que a
ineficiência na organização e arquivamento do material pode
resultar numa dificuldade de acesso que pode, inclusive, levar-se
a crer na inexistência do material, quando ele pode estar perdido
no acervo, isso pode ocasionar até a desistência do trabalho por
parte do pesquisador.
Marrou (1978 p. 61) discorre sobre esta questão quando
discute a acessibilidade ao documento de pesquisa: “Por mais
aperfeiçoados que se encontrem, em certos setores, os
instrumentos de trabalho de que dispomos, como os seus
compiladores não puderam ter presentes nem mesmo ter
concebido como possíveis todas as perguntas que nós somos
levados a fazer aos documentos, não nos fornecem os meios de
descobrir estes”.
A correspondência epistolar constitui-se em um vasto
campo de investigação e pode responder a inúmeros
questionamentos e vários enfoques de pesquisa.
Para Marrou (1978, p. 75), só podemos alcançar o
passado através dos traços inteligíveis para nós, que este
passado deixou, “na medida em que estes traços subsistiram, em
que nós os encontramos e em que somos capazes de interpretálos” e completa: “Encontramos aqui a primeira e a mais pesada
das servidões técnicas que pesam sobre a elaboração da
História”.
Apesar de ser um cientista admirado e respeitado, Covian
se reconhecia um homem solitário. Mahfoud e Massimi (2007,
p. 221) assim se expressam com relação a este conjunto
epistolar: “Dois tipos de vivências emergem como estruturantes:
relacionamentos significativos vivenciados como pertença,
essenciais ao amadurecimento de sua personalidade e a seu
processo de formação, e a vivência da solidão, sempre presente,
mas tomando significados diferentes ao longo da vida”.
A atividade epistolar possuía um traço determinante na
vida deste cientista. Quatro anos antes de sua morte, Covian
relata a um amigo que reler as cartas guardadas o levava a rever
sua vida com as pessoas amadas que fizeram parte dela. E ao
reconhecer-se como um homem solitário afirma: “Escribo para
acompañarme” (Massimi – 2012, p.10).
CONCLUSÃO
A questão relativa ao trabalho com correspondências é
ampla e abrangente, entretanto, podemos reconhecer que o
gênero correspondência epistolar engloba variados graus de
acessibilidade a informações que se estendem por uma
multiplicidade disciplinar que vai de dados biográficos, regime
87
de temporalidade, descrição do cotidiano, memória, passa por
aspectos jurídicos e chega à produção da História.
Entendemos que os historiadores das ciências, bem como
as instituições responsáveis pela guarda destes acervos devem
conter em suas preocupações o olhar cuidadoso para este gênero
de fontes, visando não apenas fazer respeitar a legislação vigente
quanto ao tempo de restrição de acesso, resguardando
especialmente o aspecto ético desta imposição legal, como
também o empenho no sentido de preservar estes acervos e as
informações que eles contêm, disponibilizando os recursos
necessários para que possam ser arquivados em condições
apropriadas para sua preservação através do tempo.
A correspondência do neurofisiologista Miguel Rolando
Covian encontra-se sob a custódia da F.M.R.P. – Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto – U.S.P. - Universidade de São
Paulo, o acesso à esse material, devido às determinações legais
citadas neste artigo, está sujeito à autorização expressa dessa
instituição que o guarda.
No entanto, esta correspondência encontra-se
higienizada, classificada e arquivada em condições ideais para
sua preservação, guardando em seu conteúdo suas contribuições
para o futuro da História das Ciências, especialmente, a História
das Neurociências.
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universidade: um estudo sobre a vida e obra de Miguel
Rolando Covian. Dissertação de Mestrado apresentada à
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão
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89
3
A viagem do Windhuk: apontamentos sobre migração,
sofrimento ético-político e identidade
Diane PORTUGUEIS:
CV: http://lattes.cnpq.br/3641556230431708 - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Nesta instituição integramos o NEPIM- Núcleo de Estudos e Pesquisas em Identidade Metamorfose na qualidade de alunos do mestrado no Programa de Estudos Pós-Graduados
em Psicologia Social com apoio do CNPq.
Omar ARDANS:
CV: http://lattes.cnpq.br/4329829851022890 - Universidade Federal de Santa Maria.
Departamento de Psicologia.
90
BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC
Resumo O presente texto discorre sobre possibilidades de emancipação frente a vivências de
opressão, geradas pela condição do ser imigrante. Para tanto, relatamos, a partir de um
fato histórico dado no Brasil, a experiência de uma população de imigrantes alemães
durante o governo de Getúlio Vargas, no momento político conhecido por “Estado
Novo”. Levamos em conta, relatos da referida população e buscamos, sob o prisma do
sofrimento compreendido como ético-político, debater possibilidades de emancipação.
Pretendeu-se dar luz a importância da afetividade relacionada ao desenvolvimento de
potencialidades, projetos de futuro e também identidades.
Palavras-chave migração, alemães, sofrimento ético-político, identidade
Abstract This paper addresses the possibilities of emancipation from the oppressive experiences
faced due to the condition of being an immigrant. For this purpose, we provide the
account of a historical event that took place in Brazil regarding the experiences of a
group of German immigrants during the “New State” political period under the Getúlio
Vargas administration. We took into account reports from the aforementioned group
and debated the possibilities of emancipation from the scope of what is understood to
be ethic-political suffering. The intention was to focus on the importance of affection in
relation to the development of potentials, projects for the future, and also identities.
Keywords migration, Germans, ethic-political suffering, identity
91
O Windhuk foi uma luxuosa embarcação alemã que
realizava viagens turísticas entre a Alemanha e África do Sul.
Mais moderno da frota, o navio invocava no nome o passado
colonialista da Alemanha. Em sua décima terceira viagem, em
julho de 1939, foi surpreendido pela eclosão da Segunda
Guerra Mundial, fato que obrigou o navio a refazer seu
itinerário. Devido a mudanças nos cálculos do trajeto e a falta
de combustível, o Windhuk ancorou no Brasil, no porto de
Santos, em sete de dezembro de 1939.
Ao ouvir o aviso do Comandante sobre a mudança da
rota estabelecida, os passageiros e tripulantes (250 tripulantes e
mais de 400 passageiros, turistas de safáris, casais em lua de
mel, comerciantes de ouro e diamantes, etc.) tinham duas
escolhas: permanecer na Cidade do Cabo (onde o navio estava
ancorado até então) ou seguir adiante, apesar da mudança de
rota e destino. Na Cidade do Cabo, o navio seria confiscado
para servir aos Aliados. A maioria dos passageiros de
diferentes países desembarcou e alguns tripulantes tentaram a
fuga em botes salva vidas, não se sabendo até hoje seu destino.
Os alemães, contudo, não desembarcaram. “Nós,
alemães do Reich devemos permanecer à bordo” foi o
comentário. (ÉPOCA online, 200466) Em uma noite o Windhuk
partiu em fuga. O destino, a princípio, era a cidade de Bahia
Blanca, na Argentina. No entanto, para domar ondas
gigantescas era necessário outro plano. Além disto, fora
descoberto que ficariam sem óleo antes mesmo de alcançarem
a costa. O navio escalou como alternativa o mapa da América
do Sul rumo ao Brasil. Iniciou-se então uma viagem rumo ao
desconhecido Brasil e a um destino totalmente fora dos planos.
Antes de chegarem ao Porto de Santos, os marinheiros
do Windhuk pintaram o casco de preto e os chineses que
trabalhavam na lavanderia confeccionaram uma nova bandeira.
Os ideogramas chineses deveriam convencer os brasileiros de
que era o navio japonês Santo Maru a aproximar-se. O
comentário foi de que quando os funcionários do porto os
viram, todos loiros e com olhos azuis, começaram a rir
copiosamente. E assim se deu a entrada do Windhuk em terras
brasileiras.
Por dois anos os alemães do Windhuk foram muito
felizes. De fugitivos da Marinha inglesa, transformaram-se em
galãs europeus, de férias nos trópicos. “Foi o paraíso da
minha vida, férias, praia de Segunda à Segunda e meninas”
relata Otto.
Ressaltamos que durante a Segunda Guerra Mundial o
Brasil vivia o período conhecido por Estado Novo, mas
manteve-se neutro até 1939. Dados de Dietrich (1997)
66
A maior parte dos dados e também relatos sobre o Windhuk teve como fonte a revista Época online. Para maiores informações
consultar http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR64926-6014,00.htm
92
mostram que o Brasil, durante o período inicial da guerra,
desfrutou do poder de barganha. Getúlio Vargas manteve
dissimulada neutralidade perante aliados e eixistas,
favorecendo as negociações comerciais. Entretanto, após a
ajuda financeira norte-americana para a construção da
siderúrgica de Volta Redonda, o governo brasileiro aliou-se
aos Estados Unidos, Inglaterra e França na luta contra os
países do Eixo, em 31 de agosto de 1942. (DIETRICH, 1997;
RAMOS et al. 2009).
A partir de então, imigrantes alemães não eram mais
bem vindos. Passaram a ser perseguidos e até mesmo presos
em campos de concentração, criados para abrigar
exclusivamente prisioneiros do Eixo - alemães, italianos e
japoneses - nas cidades de Pindamonhangaba, Guaratinguetá,
Bauru, Ribeirão Preto e Pirassununga, no interior Paulista.
Segundo relatos levantados pela revista Época (2004)
os prisioneiros foram amontoados em caminhões e levados
para o confinamento em chamados Centros de imigração.
“Este foi o inferno de minha vida” comenta o mesmo Otto,
“Éramos bichos” ressalta Erwin Dietrich. O Brasil manteve,
por anos, pessoas presas devido a sua origem. “Nosso navio
não era de guerra, por que nos foram tirados anos de vida?
Dormíamos em estábulos, como gado. À noite éramos
fechados e não tínhamos banheiro. Uma vez nos deixaram
pelados de castigo, por dias” conta Erwin Dietrich, prisioneiro
em Bauru-SP aos 18 anos de idade.
Sayad (1998) destaca a existência de uma lógica de
segregação e de dominação geradoras de racismos, uma vez
que o imigrante, por não ser um autóctone (alguém do lugar),
tem a igualdade de direitos recusada. “[...] não sendo o
imigrante um nacional, isso justifica a economia de exigências
que se tem para com ele em matéria de igualdade de
tratamento frente à lei e na prática” (SAYAD, 1998, p. 58).
Usando-se como pretexto as desigualdades, a igualdade de fato
“torna-se impossível devido à desigualdade de direito”
(ibidem). Deve se considerar, no caso dos ex-tripulantes do
Windhuk, uma imigração que se deu de modo forçado, sem
preparo ou planejamento prévio.
O mesmo autor coloca ainda o uso do termo
etnocentrismo como desculpa para descrever qual imigrante é
“educável” ou “consertável” ou ainda “evoluível”, sobretudo,
quando este é julgado por aqueles que estão em posição
dominante. Desta forma, é justificado todo o incentivo ao
discurso pronunciado sobre as iniciativas moralizantes às quais
os imigrantes são submetidos.
Tudo isso são coisas que se gosta de confundir e
encarar apenas do ponto de vista daqueles que tomaram essa
iniciativa: a ação educativa, no sentido amplo do termo (na
verdade ação civilizadora), exercida sobre essa “classe
perigosa”, esses “nativos desnaturados”, esses “selvagens”
93
vindos de outro continente - geográfico e ainda mais cultural e de outro tempo [...]. (SAYAD, 1998, p. 61)
Magalhães (1998) coloca que discriminações sofridas
por imigrantes “teutos” e seus descendentes, em virtude de sua
origem, provocou nestes a convicção de que eram efetivamente
estrangeiros e o seriam para sempre no Brasil. A discriminação
sempre esteve presente, já no início das imigrações no século
XIX, ainda que de forma sutil. Seja pelo fato de professarem a
religião protestante, utilizarem idioma estrangeiro ou mesmo
por serem trabalhadores braçais.
Além disto, cabem em paralelo, reflexões de Sayad
(1998) e Koltai (1997) quanto à condição produzida pelo
significado do “ser imigrante”. Sayad (1998) afirma que a
imigração sofre de uma contradição dupla, porque representa
um estado provisório que se prolonga indefinidamente, ao
mesmo tempo em que se torna um estado definitivo e vivido
com o sentimento de provisório. Para o senso comum,
estrangeiro é alguém que vem de outro lugar, que não está em
seu país e que, ainda que em certas ocasiões possa ser bemvindo, na maioria das vezes é passível de ser mandado de volta
para seu país de origem, repatriado. “A categoria sócio-política
que o estrangeiro ocupa o fixa numa alteridade que implica
numa exclusão, necessariamente.” (KOLTAI, 1997, p. 8).
Pierre Bourdieu (1998) em sua introdução a Sayad
(1998) traz interessante definição do “ser imigrante”:
[...] o imigrante é atopos, sem lugar, deslocado,
inclassificável. Nem cidadão e nem estrangeiro,
nem totalmente do lado do mesmo, nem
totalmente do lado do outro, o “imigrante” situase neste lugar “bastardo” de que Platão também
fala, a fronteira entre o ser e o não-ser social.
Deslocado, no sentido de incongruente e
inoportuno, ele suscita o embaraço; e a
dificuldade que se experimenta em pensá-lo - até
na ciência, que muitas vezes adota, sem sabê-lo,
os pressupostos ou as omissões da visão oficial apenas reproduz o embaraço que sua inexistência
incomoda cria. Incômodo em todo lugar, e
doravante, tanto em sua sociedade de origem,
quanto em sua sociedade receptora, ele obriga a
repensar completamente a questão dos
fundamentos legítimos da cidadania e da relação
entre Estado e a Nação ou a nacionalidade.
Presença ausente, ele nos obriga a questionar não
só as reações de rejeição, que, ao considerar o
Estado como uma expressão de Nação justificase pretendendo fundar a cidadania na
comunidade da língua e de cultura (quando não
de “raça”). [...] o “imigrante” funciona, como
podemos notar, como um extraordinário analista
94
das regiões mais obscuras do inconsciente.
(BOURDIEU, 1998, p.11-12)
Há de ser levado em consideração, neste contexto
relacionado ao “ser imigrante”, o que Appadurai (2009) retrata
em seu ensaio, quanto à violência em larga escala exercida por
maiorias sobre minorias, violência associada a aspectos
culturais. O autor promove tal relação, quando entende que, em
se tratando de uma determinada cultura, maiorias numéricas
precisam de minorias que abarquem sua angústia e ansiedade,
necessitando, desta forma, de um objeto que eleve sua
sensação de completude, o que justificaria, em seu
entendimento, a ocorrência de estereótipos, preconceitos até
xenofobias e genocídios.
O medo é direcionado aos imigrantes (pequenos
números), que por sua vez, corporificam o grande medo do
abstrato. São, neste contexto de exorcismo do novo,
transformados em “identidades anômalas” (APPADURAI,
2009, p. 40). Se, de um lado, podem ser vistos como
necessários, são, ao mesmo tempo, mal recebidos, rechaçados,
considerados parte principal do fracasso das estruturas
econômicas. Para as maiorias, “os pequenos números
(minorias) levam ao fantasma da conspiração” (idem, p.52) ou
“pequenos números carregam interesses especiais” (idem, p.
53).
Com o surgimento do ideário nacionalista das elites
brasileiras, principalmente durante a Segunda Guerra Mundial,
o anti-germanismo revelou-se de maneira contundente.
Naqueles anos de guerra, em nome da defesa da Pátria,
depredaram-se lojas, associações e entidades “teutas”. Os
retratos de familiares e também de seus ídolos nacionais eram
quebrados, suas bandeiras rasgadas e proibida a circulação de
periódicos na língua alemã. Nos jornais, notícias de toda
ordem justificavam e estimulavam tais represálias: os teutobrasileiros eram condenados como espiões, traidores e
perversos inimigos de todos os povos sendo merecedores,
portanto, de uma pena capital: “Viva o Brasil, morte à
Alemanha, gritavam os populares nas ruas das cidades.”
(MAGALHÃES, 1998, p. 15).
Os alemães sofreram com a política nacionalista do
governo Vargas uma série de decretos publicados que
atingiram seus costumes, o cotidiano e valores. Ficou proibido
falar seu idioma em público, reunir-se para atividades políticas
ou manter escolas essencialmente alemãs (PERAZZO, 2009).
Cabe aqui a observação de Stuart Hall, quanto ao lugar da
língua expresso na cultura: “[...] Falar uma língua não significa
apenas expressar nossos pensamentos mais interiores e
originais; significa que já estão embutidos em nossa língua
nossos sistemas culturais.” (HALL, 2011, p. 40)
Como
estas experiências marcaram a vida destes sujeitos?
95
Além disto, questionamos a condição de opressão
vivenciada por passageiros e tripulantes do Windhuk durante o
confinamento e sua condição de imigração “à força” produzida
por uma situação não planejada. Na busca pelo descobrimento
do mundo, realização de sonhos e vivência de liberdade, qual
fora o significado de estar preso? Atrevemo-nos ir além,
pensando a condição específica destes sujeitos: o que significa
estar preso a uma condição da qual não se pode fugir e nem se
pode negar: a própria origem? Seriam estes prisioneiros de fato
livres ao serem libertados? Como se configuraria seu futuro a
partir de então?
Para se pensar a problemática suscitada, busca-se apoio
na categoria denominada “sofrimento ético-político”
(SAWAIA, 2011) que nos auxilia a compreender a dimensão e
os desdobramentos cuja condição de exclusão provoca nos
sujeitos.
[...] se os brados de sofrimento evidenciam
a dominação oculta em relações muitas
vezes consideradas como parte da natureza
humana, o conhecimento dos mesmos
possibilita a análise da vivencia particular
das questões sociais dominantes em cada
época histórica, em outras palavras, da
vivência do mal que existe na sociedade.
Estudar exclusão pelas emoções dos que a
vivem é refletir sobre o “cuidado” que o
Estado tem com seus cidadãos. Elas são
indicadoras do (des)compromisso com o
sofrimento do homem, tanto por parte do
aparelho estatal quanto da sociedade civil e
do próprio indivíduo. (SAWAIA, 2011, p.
101, aspas da autora)
Segundo Sawaia, ao introduzir-se a emoção com o
sentido ético-político, obrigam-se as ciências humanas em
geral, e a Psicologia Social em especial, a incorporar o corpo
do sujeito, até então desencarnado e abstrato, nas análises
econômicas e políticas. (SAWAIA, 2011, p.102)
Quanto à condição vivida por estes imigrantes, cabe
salientar as emoções, justamente por estas serem sociais e,
portanto, fenômenos históricos, cujo conteúdo e qualidade
estão sempre em construção. Cada momento histórico prioriza
uma ou mais emoções como estratégia de controle e coerção
social. Hoje, por exemplo, a culpa muda o caráter de expiação,
de pública à individual e privada (SAWAIA, 2011 p. 104).
Trata-se aqui da emoção vivida, que não diz respeito somente
ao eu individual, mas ao sofrimento do excluído, portanto, aos
fundamentos da coesão social e da legitimidade social. Ela
revela o sofrimento pela consciência de como a lógica
96
excludente opera no plano do sujeito e é amparada pela
subjetividade, assim constituída. (idem, 2011)
Reportamo-nos ainda a mesma autora, para ressaltar
que o sofrimento psicossocial pode redundar em morte
biológica. Lembremos como exemplo, do banzo (doença
misteriosa que matava o negro escravo brasileiro) gerado,
sobretudo pela tristeza advinda do sentimento de estar só e
humilhado, por causa de ações legitimadas pela política de
exploração e dominação, seja ela econômica ou política.
Pensemos aqui, condições semelhantes, vividas pelos sujeitos
ex-tripulantes do Windhuk, resultado de uma política advinda
de um momento sócio-histórico específico. O sofrimento éticopolítico varia historicamente, mas é por meio de suas nuances
que podemos compreender como os sujeitos foram afetados e
de que forma o foram, nas diversas facetas produzidas pela
sociedade em questão.
Em síntese, o sofrimento ético político abrange as
múltiplas afecções do corpo e da alma que mutilam a vida de
diferentes formas. Qualifica-se pela maneira como sou tratada
e trato o outro na intersubjetividade, face a face ou anônima,
cuja dinâmica, conteúdo e qualidade são determinados pela
organização social. Portanto, o sofrimento ético-político retrata
a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada
época histórica, especialmente dor que surge da situação social
de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice
inútil da sociedade. Ele revela a tonalidade ética da vivência
cotidiana da desigualdade social, da negação imposta
socialmente às possibilidades da maioria apropriar-se da
produção material, cultural e social de sua época, de se
movimentar no espaço público e de expressar desejo e afeto.
(SAWAIA, 1995 apud SAWAIA, 2011 p. 106)
Para elucidar o que foi tratado em parágrafos
anteriores, expomos alguns relatos e histórias vividas pelos
integrantes do Windhuk nos campos de concentração em São
Paulo:
“Eu me tornei mais elástico e vivi feliz” (Otto
Kramper, 84 anos)
“Embarquei para conhecer o mundo, ser livre. Não
queria me casar.” (Hilde, 88 anos).
Hilde casou-se em Santos, na cabine do piloto.
Engravidou já confinada no campo de concentração em
Pindamonhangaba. Como era casada, tinha o direito a viver
numa casa com o marido e as outras duas únicas mulheres da
tripulação. Comprou o enxoval na cidade, escoltada por
soldados com fuzis. Pariu com a silhueta de um deles recortada
a janela do hospital. Os companheiros fizeram um berço para
seu filho. Depois do final da guerra, Hilde transformou-se em
uma das primeiras especialistas em ortóptica do Brasil. Depois
que seu marido morreu, em 1963, Hilde voltou à Alemanha
algumas vezes. Na última, alugou um carro e dirigiu por
97
12.000 kilômetros, sozinha aos 78 anos de idade e sentia-se
livre. Aos 88 pretende repetir o feito.
Heinz, 83 anos, só conseguiu voltar à Alemanha 50
anos depois do fim da Guerra, quando já tinha se tornado
brasileiro demais. “Fui e já fiquei louco para voltar para o
Brasil. Não Vou mais.”
Quanto aos contextos supracitados, propõe-se a
reflexão de Almeida (2005):
Movendo-se no tecido socialmente
construído, o individuo pode estabelecer as
pontes e as mediações entre sua condição e
suas possibilidades, tipificando e ao
mesmo tempo, individualizando sua
trajetória. As relações entre a biografia e o
contexto social onde ela se desenrola, a
sociedade em última instância, têm
múltiplas direções; não constituem vias de
mão única. A existência do projeto
dificulta se não impede uma acomodação
passiva
do
sujeito
diante
das
circunstâncias, provocando uma atitude de
reserva, e mesmo de resistência, nas suas
relações com seu entorno social, isto é,
com seus outros significativos e com o
meio social mais geral. Evidentemente, a
realização do projeto exige do individuo
uma boa dose de criatividade a às vezes de
discernimento frente a oportunidades
inesperadas para delinear uma ação
consequente,
condizente
com
sua
realidade. (ALMEIDA, 2005, p. 84)
Com base nos relatos, pensamos ser possível o
surgimento de potencialidades advindas justamente desta
condição: o sofrimento vivido. Inspiramo-nos, para tanto, em
Espinosa. Para o filósofo, o movimento interno do corpo e o
nexo interno das ideias na alma constituem a essência do
homem. Esta denomina-se conatus - esforço para perseverar na
existência, poder para vencer obstáculos exteriores a esta,
poder para expandir-se e realizar-se plenamente. Cada conatus
está relacionado com outros e cada um pode realizar grandes
esforços em sua relação com os outros, para poder se
preservar. O mundo exterior surge como um conjunto de
causas que possibilitam aumentar ou diminuir o poder do
conatus de cada um. A ação consiste em apropriar-se de todas
as causas exteriores que aumentem o poder do conatus.
Espinosa [2004] define:
Somos ativos quando em nós ou fora de
nós ocorre algo de que somos a causa
adequada, isto é, quando em nós ou fora de
98
nós ocorre algo que depende apenas de
nosso poder. Somos passivos, ao contrário,
quando em nós ou fora de nós ocorre algo
de que somos causa inadequada, quando o
que ocorre em nós ou fora não depende de
nosso próprio poder. (p.17)
A ação é uma potência positiva, a paixão, um declínio
da potência. O homem é livre quando, conhecendo as leis da
natureza e as de seu corpo, não se deixa vencer pelo exterior e
sabe dominá-lo. A essência humana é definida pelo desejo. O
desejo é a tendência interna do conatus a fazer algo que
conserve ou aumente sua força. O desejo do homem livre é o
desejo no qual, entre o ato de desejar e o objeto desejado, deixa
de haver distância para haver união. (ESPINOSA [2004], p.17)
Potência aqui compreendida como direito que cada indivíduo
tem de ser, de se afirmar e de se expandir, cujo
desenvolvimento é condição para se atingir a liberdade. Logo,
o homem é potência de vida, de ação e de expansão e isto pode
ser aumentado ou diminuído através do que o corpo imagina
que está sentindo e se apropria destas imagens criadas.
Desta forma, muito do que podemos perceber nos
relatos, pode se tratar do que Espinosa sugere com “bons
encontros” - que geram afecções positivas e levam a expansão
dos sujeitos rumo a formas de emancipação - ou “maus
encontros” que levam a afecções tristes - paixões tristes, rumo
à passividade. Por afetos, Espinosa entende as afecções do
corpo pelas quais a potência de agir deste é aumentada ou
diminuída, secundada ou reprimida e ao mesmo tempo, as
ideias destas afecções.
Entendemos assim os mecanismos de exclusão como
manifestações carregadas de emoções, como o medo diante do
desconhecido e outras dificuldades vividas no cotidiano, mas
cuja emoção pode também gerar ação para mudança.
Cabe ainda refletir sobre a formação de um projeto
emancipatório, relacionado ao momento histórico e social,
junto à interferência das emoções neste. Podemos ir além,
considerando o desenvolvimento da identidade neste âmbito.
Esta, também ligada ao projeto emancipatório, com importante
ênfase nas relações que decorrem ao longo da vida.
[...] a identidade pessoal não pode ser
entendida como fenômeno meramente
individual, mas acima de tudo relacional.
Ela se constitui a partir de nossas relações
sociais, definindo, consequentemente,
nossa localização na sociedade. (CIAMPA,
2003, p. 8)
Identidade é relacional. Depende, para existir de algo
de fora dela: a saber, de outra identidade, de uma identidade
99
que ela não é, mas que, entretanto, oferece condições para que
ela exista. A identidade é assim, marcada pela diferença.
(WOODWARD, 2003, p.9)
Gonzalez Rey (2004) ao falar de identidade trata-a
como noção subjetivada do sujeito que só aparece na
confrontação com experiências novas, que impedem o sujeito
de identificar tais experiências como próprias. Traz para tanto,
como exemplo, o migrar enquanto forte experiência pessoal
que só pode ser vivenciada dentro de um processo de
identidade quando o sujeito mantiver seu campo de produção
de sentidos diante da nova condição de vida, ou ao contrário,
gerar novos sentidos que o permitam reconhecer-se no novo
espaço de vida assumido (p.158-159, grifo nosso).
Os imigrantes do Windhuk, em sua vivência no
confinamento, ainda que em situação de exclusão, abandono e
humilhação, conseguiram produzir sentidos potentes o
suficiente para que, não apenas sobrevivessem à situação
estabelecida, como ainda, vislumbrassem possibilidades de
adoção da nova pátria para si, construindo novas condições
objetivas de vida. Esta produção de sentidos pôde configurar o
futuro destes, que possibilitou escolhas entre manterem-se
prisioneiros de uma condição dada, ou passarem desta para
outra melhor, reconstruída.
Em se supondo este movimento como emancipatório,
Almeida (2005, p. 94) acrescenta: “ (...) não seria reconstruir o
que foi reprimido, ou capacitar-se para a vingança” enquanto
Habermas, 1987 (apud ALMEIDA, 2005, p. 94) adverte:
Capacidade de construir novas identidades a partir das
identidades rompidas ou superadas e de integrá-las de tal modo
com as velhas, que o tecido das próprias interações se organiza
na unidade de uma biografia peculiar e que, por ser capaz de
responder por ela, pode lhe ser atribuída como sua.
Com o fim da Guerra, em 1945, os alemães do Windhuk
foram libertados, porém, poucos retornaram à Alemanha. Qual
seria o significado disto? Reconhecer os mecanismos em que
se deu a inclusão-exclusão destes sujeitos, compreender como
vivenciaram e lidaram com o sofrimento e a partir deste, como
se desenvolveram novas potencialidades provindas de afecções
é uma provável forma de delinearem-se respostas possíveis a
tal questão.
[...] conhecer o sofrimento ético-político é
analisar as formas sutis de espoliação
humana por trás da aparência de integração
social, e, portanto, entender a exclusão e a
inclusão como as duas faces modernas de
velhos e dramáticos problemas, a
desigualdade social, a injustiça e a
exploração. (SAWAIA, p. 107)
100
Em 1948, um dos integrantes do Windhuk fundou um
restaurante em Moema (localizado na cidade de São Paulo)
com o mesmo nome. Desde então, ocorrem encontros anuais
com os ex-tripulantes do navio e suas famílias; hoje em dia,
com suas viúvas e também netos. O sentido destes encontros
anuais pode estar na manutenção das emoções proporcionadas
pelos bons encontros estabelecidos entre os membros
participantes desta aventura. No fortalecimento das relações de
afeto e também do conatus, o grupo se potencializa e assim,
em sua relação com a imigração outrora vivenciada como
segregação, encontram formas de inclusão na atualidade
compartilhando da construção de sentidos que esta vivência
lhes trouxe ou ainda lhes traz. Entretanto, há também aqueles
que não querem relatar suas histórias e preferem manterem-se
calados.
Retrato de um passado difícil: é este o caso de um extripulante do Windhuk, abordado em um destes encontros no
referido restaurante. O silêncio é prova da medida do
sofrimento ético-político que segmenta, cala e penetra no
sujeito... É possível, mesmo em tal conjuntura, estar presente e
compartilhar de afetos que a experiência em grupo gerou, e
ainda gera, nos ex- tripulantes e também, possivelmente, em
seus familiares e pessoas próximas.
Conclui-se, desta forma, que compreender o sujeito sob
o prisma do “sofrimento ético-político” é localizá-lo
historicamente, entender sua singularidade, acompanhar sua
trajetória e ainda, entrever o surgimento de potencialidades e
possibilidades emancipatórias emanadas das construções
destes encontros.
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103
4
Algumas observações sobre a filosofia do amor em
Dietrich von Hildebrand e Karol Wojtyla*
Jarosław MERECKI: [email protected]
CV: Graduado em Filosofia na Universidade Catolica de Lublino/Polonia e na Academia Internacional
de Filosofia do Principado de Liechtenstein. Possui Mestrado e Doutorado na Universidade de
Lublino/Polonia. É Pesquisador do Pontifício Instituto João Paulo II; Diretor científico da revista Ethos da
Universidade Católica de LublinoMembro extraordinario da Pontifícia Academia São Tomás; Professor
da Pontifícia Universidade Lateranense.
(Tradução: Euripedes Brito Cunha Júnior)
104
ABSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRA
Resumo Em meu artigo, eu não pretendia oferecer uma análise histórica da relação mútua entre
Hildebrand e Wojtyla. Até onde posso falar sobre as obras de Wojtyla, não
encontramos qualquer referência direta a Hildebrand, e vice-versa. Eu não quero dizer
que Wojtyla não conhecia o pensamento de Von Hildebrand. Pelo contrário, é bem
possível que ele conhecesse ao menos algumas das obras filosóficas de Hildebrand, já
que - como sabemos - ele estudou a ética de Max Scheler e, em geral, estava
interessado no movimento fenomenológico. Por outro lado, nas obras de Tadeusz
Styczen, que foi um dos colaboradores mais próximos de Wojtyla e seu sucessor na
cadeira de ética na Universidade Católica de Lublin, freqüentemente encontramos
referências às obras de Von Hildebrand. Assim, parece-me que podemos considerar que
Wojtyla conhecia a filosofia de Von Hildebrand, mas ele não pertencia ao grupo de
seus interlocutores diretos. Também é interessante notar que na Encíclica Veritatis
splendor de João Paulo II, encontramos terminologia - a qual eu tentarei mostrar mais
tarde - que é muito semelhante à de von Hildebrand, de modo que, ao menos neste caso,
podemos fundamentar nossa suposição de alguma influência direta de Hildebrand sobre
Wojtyla. Ao mesmo tempo, por razões metodológicas, as obras de João Paulo II não
podem ser vistas como uma simples continuação do pensamento do filósofo Karol
Wojtyla.
No entanto, independentemente das considerações históricas, podemos dizer
uma coisa com certeza. Não é difícil notar uma afinidade profunda entre as abordagens
desses dois filósofos, especialmente o modo como filosofia do amor é tratada. Ambos
os pensadores reconhecem amor como a única resposta adequada ao valor da pessoa, e,
nesse sentido, os dois são Personalistas éticos. Até onde eu posso observar, esta
afinidade pode ser explicada simplesmente como um resultado do uso do método
fenomenológico adotado por ambos, isto é, como o resultado de uma análise cuidadosa
das experiências humanas. Hildebrand e Wojtyla seguem o programa do fundador da
fenomenologia, Edmund Husserl, como expresso em seu famoso adágio: "zu zurück
Sachen selbst" (ir ao encontro das coisas em si mesmas). Von Hildebrand e Wojtyla
certamente subscreveriam o postulado de Husserl: "Nicht von den Philosophen, sondern
von den Sachen und muss Problemen der Antrieb zur Forschung ausgehen" ("Não das
filosofias, mas das coisas e dos problemas deve partir o impulso da ciência") . Em seu
artigo sobre a ética e antropologia de Wojtyla, Tadeusz Styczen refere-se à prioridade
de "intuição" (em alemão: Einsicht, que pode ser traduzido também como "intuição")
sobre "opinião" (em alemão: Ansicht). Styczen diz:
"A reflexão antropológica de Karol Wojtyla é caracterizada pelo fato de que o
autor não sabe como serão suas opiniões definitivas sobre a pessoa humana; ele só sabe
que eles têm de ser subordinadas sem restrições à experiência do homem. No início
conta apenas experiência, intuição só, que é a experiência do mundo e, ao mesmo
tempo, minha própria a experiência como pessoa neste mundo."
Palavras-chave Intuição; experiência; Hildebrand; Wojtyla
105
Hildebrand certamente compartilha esta convicção
sobre a prioridade de experiência na investigação filosófica;
ele usa este método de filosofar em suas inúmeras obras e em
seu livro A Essência do Amor examina um caso de sua
aplicação magistral.
Como já mencionei, o personalismo ético constitui
outro ponto de encontro entre Hildebrand e Wojtyla. Em suas
opiniões, a pessoa constitui a mais elevada epifania do ser, e
por isso é digno que se afirme para seu próprio bem. Este é o
primeiro ponto que eu gostaria de enfatizar na minha
digressão.
De acordo com von Hildebrand, cada valor induz para a
resposta adequada a sua posição na hierarquia de valores. Por
isso, há respostas adequadas aos valores de coisas inanimadas.
Por exemplo, admiramos a beleza de uma paisagem ou de uma
obra de arte. Animais induzem um outro tipo de resposta, uma
vez que - como seres sensíveis - eles não podem ser tratados da
mesma forma como coisas não-sensíveis (a este respeito a
tradicional classificação jurídica entre pessoas e coisas parece
ser inadequada, pois os animais não são pessoas, nem coisas).
No entanto, do ponto de vista moral, as pessoas humanas são
superiores a todos os outros valores que encontramos no
mundo visível. Kant definiu estes valores como "um fim em si
mesmo" (Selbstzwecke). Enquanto todas as outras coisas do
mundo, em determinadas circunstâncias, podem ser utilizadas
como um meio para as finalidades não propriamente suas, as
pessoas em todas as circunstâncias não podem ser tratadas
apenas instrumentalmente. Elas nunca podem ser vistas apenas
como meios. Em seu livro Amor e Responsabilidade Karol
Wojtyla - depois de ter criticado a ética do utilitarismo propõe sua própria formulação do princípio kantiano:
"Toda vez que o objeto de uma ação é a pessoa, você não
deve esquecer que você não está lidando apenas com um meio, como
67
instrumento, mas que uma pessoa é sempre um fim em si mesma."
De acordo Wojtyla, esta norma – chamada por ele de "a
norma personalista" – constitui o fundamento de toda o
ordenamento moral. Devemos compreender bem esta norma.
Ela não obsta qualquer tipo de "uso" da pessoa. Em seu
comentário sobre a fórmula kantiana, prof. Robert Spaemann
salienta a importância da palavra "apenas". Ao viver em
comunidade, não podemos evitar o "uso" mútuo do outro, mas
isso não significa necessariamente ir contra a norma
personalista. Esta norma proíbe-nos de reduzir o outro apenas
ao estado de objeto, com a exclusão de qualquer reciprocidade,
como acontece, por exemplo, no caso da escravidão, ou
quando uma pessoa é tratada apenas como uma fonte de
67
K. Wojtyla, Amore e responsibilità, in: id., Metafisica della persona. Tutte le opere filosofiche e saggi integrativi, Bompiani 2003,
p. 479 (tradução: Jaroslaw Merecki).
106
fornecimento de tecidos ou órgãos para os outros (e enquanto a
escravidão é geralmente ilegal, o segundo caso de
instrumentalização é comum atualmente).
Na escola de ética Lublin, a norma personalista foi
expressa pelo prof. Tadeusz Styczen na fórmula, inspirada por
Wojtyla, "persona est affirmanda per seipsam". Esta fórmula
enfatiza que, para que um recurso seja moralmente bom, o
objeto da ação, isto é, o bem da pessoa, deve permanecer em
primeiro lugar. Este personalismo difere de várias formas de
eudemonismo que vêem a felicidade do sujeito como o
principal motivo da ação moral. Parece-me, que a crítica ao
eudemonismo desenvolvida pela escola Lublin de ética
personalista é muito próxima da crítica do conceito tomista de
bonum, que encontramos nas obras de Von Hildebrand.
Podemos resumi-la da seguinte forma: Se a nossa percepção do
bem é totalmente determinada pelo desejo natural,
compreendida como appetitus, então só há uma possível
motivação para a ação: algo é bom na medida em que satisfaz
o desejo do sujeito. Com base neste conceito de bem, a outra
pessoa é um bem apenas na medida em que ela contribui para a
felicidade do sujeito, mas não como um bem que tenha méritos
próprios. Em outras palavras, podemos distinguir dois tipos de
bons: um bom como appetibile (e este tipo de bem é
conceituada na noção tomista) e um bom como affirmabile.
Em Tomismo, é neste segundo tipo de bem que podemos
encontrar a noção de bonum honestum. No entanto, parece não
estar integrada à noção geral do bem em Tomaz de Aquino.
Estes dois tipos de bens exigem duas respostas diferentes a
partir do tema: no caso de o bem como appettibile, a resposta é
motivada pelo meu próprio bem, enquanto que no caso de o
bem como affirmabile, a resposta é motivada pelo bem do
objeto de minha ação. Isso exige uma reformulação da filosofia
tomista da ação. No contexto desta discussão, é interessante
notar que, já na Idade Média, Duns Scotus - que forneceu o
complemento filosófico à especulação teológica de Anselmo
de Aosta – distinguiu dois diferentes movimentos da ação: a
affectio commodi, quer dizer, fazendo uso da terminologia de
von Hildebrand, a tendência do sujeito para escolher o que é
subjetivamente satisfatório, enquanto o affectio iustitiae é a
tendência natural de retribuir com justiça aos méritos para seu
próprio bem. Nesta segunda tendência, Duns Scotus viu a
expressão real de liberdade do homem.68 Portanto, podemos
dizer que, de fato, o amor, entendido em seu sentido ético,
significa "fazer justiça ao que merece ser reconhecido para seu
68
“Secundum autem affectionem commodi nihil potest velle nisi in ordine ad se, et hanc haberet si praecise esset appetitus
intellectivus sine libertate sequens cognitionem intellectivam, sicut appetitus sensitivus sequitur cognitionem sensitivam. Ex hoc
volo habere tantum quod, cum amare aliquid in se sit actus liberior et magis communicativus quam desiderare illud sibi et
conveniens magis voluntati inquantum habet affectionem iustitae saltem innatae”, Duns Scotus, Ordinatio III, suppl. dist. 26; in:
Duns Scotus on the Will and Morality, A.B. Wolter OFM (ed.), Washington 1986, p. 178.
107
próprio bem". Outro nome para o amor é "afirmação da pessoa
por si mesma".
Neste ponto de nossa reflexão, levantar a questão: Qual
é o conteúdo próprio da norma personalista? O conteúdo da
norma personalista é amor. De acordo com a Karol Wojtyla "A
pessoa é tão boa que só o amor constitui a atitude adequada e
válida frente a si."69 Em outras palavras, o bem que a pessoa é
(o bem da pessoa) suscita uma resposta específica e do
conteúdo desta resposta é o amor.
Mas – podemos perguntar – o que é a natureza do amor,
qual é o tipo de resposta? É amar um fenômeno emocional ou
é, ao invés, uma postura ao agir? No início de seu livro sobre o
amor von Hildebrand coloca esta questão. Ele responde que o
amor é uma resposta afetiva de valor. Por outro lado, com a
crítica da etica schilleriana desenvolvida por Wojtyla em sua
tese de pós-doutorado, uma de suas principais objeções foi o
chamado "emocionalismo", isto é, a redução do
contato/conteúdo cognitivo com o domínio de valores da
esfera emocional. No contexto da nossa digressão é válido
questionar o criticismo de Wojtyla também pode ser aplicado a
von Hildebrand? Minha resposta é negativa. Se é verdade que,
para von Hildebrand amor é uma resposta emocional, no nosso
caso, é uma resposta emocional ao valor da pessoa. Assim, ele
não sustenta que esta resposta seja independente da razão e da
liberdade. Pelo contrário, quando as emoções apresentam
valores de uma forma que é existencialmente vívida e atraente,
a tarefa da razão é avaliar se um determinado valor é adequado
para mim, nesta situação concreta, enquanto a tarefa da ação
consiste em sancionar ou não sancionar as emoções que
sentimos em um determinado momento. Enquanto Scheler
reduz o papel da razão, a fim de não comprometer a
autenticidade da resposta humana a valores, Von Hildebrand
acertadamente ressaltou a importância do juízo da razão e da
postura da ação.
Podemos considerar um outro ponto de encontro entre
von Hildebrand e Wojtyla em suas respectivas filosofias de
amor. Eu já havia apontado que para os dois só o amor é a
resposta adequada para o valor da pessoa. No entanto, esta
resposta não pode ser limitada à posição subjetiva. A outra
pessoa se presta a ser meramente admirada ou teoricamente
ratificada, mas em qualquer situação concreta que ela requeria
pela ratificação entendida como "atitude prática". Considere,
por exemplo, o sacerdote e o levita da parábola do Bom
Samaritano: ambos, provavelmente, tinham profunda
admiração pela dignidade da pessoa do viajante deixado para
morrer. O problema consistia no fato de que sua admiração
permaneceu ineficaz em frente a este homem encontrado no
caminho para Jerusalém. De modo geral, podemos dizer que a
69
Wojtyla, Metafisica della persona, op. Cit., p. 495 (tradução: Jaroslaw Merecki).
108
dignidade de qualquer pessoa, na maioria dos casos, não é
afirmada diretamente, mas é, antes, afirmou, direcionando os
bens que a pessoa precisa: se alguém está com fome, sua
dignidade é confirmada através dos alimentos que dão ele, se
alguém tem sede, não é suficiente que apenas se admire sua
dignidade pessoal, temos que dar-lhe algo para beber. Aqui
von Hildebrand faz uma distinção muito útil entre os valores,
aqueles bens subjetivamente satisfatórios e aqueles que
satisfazem às necessidades objetivas da pessoa. Na
terminologia de Hildebrand, podemos dizer que o
reconhecimento eficaz do bem da pessoa é mediada através
desses bens objetivos para a pessoa. Este princípio também é
válido quando se trata de minha própria pessoa. Há bens que
são apenas subjetivamente satisfatório para mim, e não são
bens que servem objetivamente ao restabelecimento da minha
pessoa. Da mesma forma Wojtyla distingue entre "o que me
apetece fazer" e "o que eu realmente quero." Sabemos que nem
todos os bens que nos atraem conscientemente são idênticos
aos que desejamos em um nível mais profundo de nosso ser
pessoal. Na terminologia de Hildebrand: um bem
subjetivamente satisfatório não é sempre o objetivo bom para a
pessoa. Assim, podemos dizer que o bem da pessoa (isto é, a
sua dignidade pessoal) é afirmada através dos bens (objetivos)
para essa pessoa. É interessante notar que a terminologia muito
semelhante pode ser encontrado na Encíclica Veritatis
splendor de João Paulo II. Eu não posso dizer se, neste caso,
podemos reconhecer uma influência direta de von Hildebrand
sobre João Paulo II. No entanto, no número 79 da encíclica,
lemos que a lei natural é um "complexo ordenado de 'bens
pessoais' que servem ao 'bem da pessoa': o bem que é a própria
pessoa e sua perfeição.” A distinção aqui entre o "bem da
pessoa" e "bens pessoais" permite uma interpretação
personalista do conceito tradicional da lei natural. O valor da
pessoa, que constitui a base de toda a ordem moral, é
assegurado através de vários bens que servem à pessoa e
pertencem à sua natureza. Assim, as assim chamadas
inclinações naturais obtêm a significância moral, na medida
em que dizem respeito ao que é objetivamente bom para a
pessoa.70 Aqui podemos ver mais claramente a relação
necessária entre ética e antropologia. Para ambos, von
Hildebrand e Wojtyla, a ética não é deduzida a partir da
antropologia (desde o início que, assim, evitar a objeção de
Hume da falácia naturalista). A ética é deduzida não da
antropologia, nem da metafísica. Seu ponto de partida é a
experiência moral. Por outro lado, a ética precisa ser
informado pela antropologia: temos de conhecer a natureza da
pessoa, se quisermos confirmá-la de forma efetiva.
70
Cfr. L. Melina, “Bene della persona” e “beni per la persona”, “Lateranum” LXXVII, 1 (2011), p. 89-113.
109
Há um outro ponto importante de encontro entre von
Hildebrand e Wojtyla. Trata-se da natureza do amor conjugal.
Consideramos: Qual é a especificidade do amor esponsal
dentro da visão do amor como a resposta adequada para o
valor da pessoa? Embora eles usem uma terminologia
diferente, tanto von Hildebrand e quanto Wojtyla vêem esta
especificidade como a entrega incondicional da própria pessoa
para a outra. Von Hildebrand pontua o fato de que o amor
sempre se refere a uma pessoa individual. Wojtyla, por outro
lado, diz que ao se apaixonar por uma pessoa do sexo oposto, o
ser descobre a singularidade da própria pessoa, entre todas as
outras pessoas. Considerando que, em seu sentido ético, amor
responde ao valor único da pessoa, entre todas as coisas (um
discípulo de Wojtyla, prof. Tadeusz Styczen, diria que o modo
de existência pessoal é ontologicamente diferente e
axiologicamente superior a toda a existência não-pessoal), o
amor esponsal responde ao valor único de que essa pessoa tem
de concreto para mim acima de todas as outras pessoas. Daí a
pergunta: Como eu e como devo responder a este valor único?
Uma resposta adequada é nada menos do que uma dádiva
incondicional de si mesmo para o outro. Somente as pessoas
são capazes de tamanha dádiva, porque somente as pessoas
têm a estrutura característica de auto-possessão. Apenas um ser
que possui a si mesmo é capaz de dar a si mesmo. Amor
esponsal diz: "Eu quero pertencer a você e eu quero que você
me pertença." Em Von Hildebrand, encontramos um conceito
que descreve essa experiência. É o conceito de intentio
unionis. No amor esponsal a intentio unionis atinge sua maior
intensidade, porque pelo dom recíproco é criado o vínculo de
pertencimento mútuo. De acordo com Von Hildebrand "amor
recíproco inclui 'intenção unitiva' recíproca e esta por sua vez
implica que esta união é a fonte de felicidade para ambos os
lados."71 Significativamente, von Hildebrand pontua que a
experiência de pertencer a outra pessoa contribui de volta para
a auto-realização do sujeito. Embora cada pessoa pertença a si
mesmo em primeiro lugar [n.b.: em A Pessoa que Age Wojtyla
se refere à estrutura de posse de si mesmo para a pessoa;
enquanto em A Essência do Amor von Hildebrand lembra-nos
que a pessoa não pode ser objeto de posse], no amor esponsal
de cada pessoa quer entergar-se, a fim de pertencer ao outro.
Paradoxalmente, ao dar-se ao outro, nem a pessoa perde sua
subjetividade; pelo contrário, justamente pelo dom de si a
subjetividade de cada pessoa encontra a sua máxima
realização. Em nossa cultura contemporânea, tendemos a
compreender a liberdade como independência completa,
pensamos que só somos realmente livres quando podemos
fazer tudo "do nosso jeito." A experiência do amor esponsal
transforma essa ideia em sua cabeça. A dinâmica natural desse
71
D. Von Hildebrand, Essenza dell’amore, Bompiani 2003, p. 381 (tradução: Jaroslaw Merecki).
110
amor pode nos ajudar a compreender melhor as palavras que os
cristãos repetem todos os dias: "Seja feita a Tua vontade."
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D. Von Hildebrand, Essenza dell’amore, Bompiani 2003.
111
4A
Some Remarks on the Philosophy of Love in Dietrich
von Hildebrand and Karol Wojtyla
Jarosław MERECKI
112
BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC
Abstract First of all I would like to thank the organizers of this conference for the invitation. The
translation of the book of Dietrich von Hildebrand Das Wesen der Liebe (The Essence
of Love) is an important event, because one of the most original works dedicated to the
phenomenon of love is now available to the English reader. For me the opportunity to
speak today about the philosophy of Hildebrand and Wojtyla constitutes at the same
time an occasion to recall the years of my formation at the Catholic University of
Lublin in Poland and at the International Academy of Philosophy in the Principality of
Liechtenstein, where I could study the philosophy of these two great thinkers, all the
while benefiting from the wisdom of such professors as Tadeusz Styczen, Rocco
Buttiglione, Josef Seifert, John Crosby and others. I see this contribution also as an
expression of the gratitude I owe them.
In my paper I do not intend to offer a historical analysis of the mutual relation
between Hildebrand and Wojtyla. As far as I can tell in the works of Wojtyla we do not
find any direct reference to Hildebrand and viceversa. I do not want to say that Wojtyla
did not know the thought of von Hildebrand. On the contrary, it is quite possible that he
knew at least some of the philosophical works of Hildebrand, since – as we know – he
studied the ethics of Max Scheler, and in general was interested in the
phenomenological movement. On the other hand, in the works of Tadeusz Styczen,
who was one of the closest collaborators of Wojtyla and his successor in the chair of
ethics at the Catholic University of Lublin, we frequently find references to the works
of von Hildebrand. So it seems to me that we can speculate that Wojtyla knew the
philosophy of von Hildebrand, but he did not belong to the group of his direct
interlocutors. It is also interesting to note that in the encyclical Veritatis splendor of
John Paul II we find terminology – which I will try to show later – that is very similar
to that of von Hildebrand, so at least in this case we might be justified in assuming
some direct influence of Hildebrand on Wojtyla. At the same time, for methodological
reasons, the works of John Paul II cannot be seen as a simple continuation of the
reflections of the philosopher Karol Wojtyla.
Keywords Intuition, experience, Hildebrand, Wojtyla
113
Nevertheless, independently of the historical
considerations we can state one thing for sure. It is not difficult
to note a profound affinity between these two philosophers’
approaches, especially as the philosophy of love is concerned.
Both thinkers recognize love as the only adequate response to
the value of the person, and in this sense, both of them are
ethical personalists. As far as I can see, this affinity can be
explained simply as a result of the use of the
phenomenological method adopted by both of them, that is, as
the result of the careful analysis of human experience.
Hildebrand and Wojtyla follow the program of the founder of
phenomenology, Edmund Husserl, as expressed in his famous
adage: “zurück zu Sachen selbst” (back to things in
themselves). Von Hildebrand and Wojtyla would certainly
subscribe to that postulate of Husserl: “Nicht von den
Philosophen, sondern von den Sachen und Problemen muss
der Antrieb zur Forschung ausgehen” (“The impulse to
investigation should not come from philosophers, but from
things and problems.”)72. In his paper on the ethics and
anthropology of Wojtyla, Tadeusz Styczen refers to the
priority of “intuition” (German: Einsicht, which can be
translated also as “insight”) over “opinion” (German: Ansicht).
Styczen says:
“The anthropological reflection of Karol Wojtyla is
characterized by the fact that the author does not know how his
definitive opinions on the human person will be; he only
knows that they have to be subordinated without restriction to
the experience of man. At the beginning counts only
experience, only intuition, that is the experience of the world
and at the same time the experience of my own person in this
world.”73
Hildebrand certainly shares this conviction about the
priority of experience in the philosophical investigation; he
uses this method of philosophizing in his numerous works and
in his book The Essence of Love see a case of its masterful
application.
As I already mentioned, ethical personalism constitutes
another point of encounter between Hildebrand and Wojtyla.
In their view the person constitutes the highest epiphany of
being, and for this reason deserves to be affirmed for his/her
own sake. This is the first point I would like to emphasize in
my reflection.
According to von Hildebrand, every value calls for the
response adequate to its position in the hierarchy of values.
Therefore there are proper responses to the values of inanimate
72
E. Husserl, Philosophie als Strenge Wissenschaft, Klostermann, Frankfurt a.M. 1965, p. 71.
“La reflessione antropologica di Karol Wojtyla si distingue per il fatto che all’inizio l’autore è come se non sapesse quali saranno
le sue opinioni definitive sull’uomo; egli sa soltanto che esse devono essere subordinate senza riserve all’esperienza dell’uomo.
All’inizio conta soltanto esperienza, soltanto intuizione, cioè l’esperienza del mondo e, nel contempo, di me stesso in esso”, T.
Styczeń, Comprendere l’uomo, Lateran University Press, Città del Vaticani 2005, p. 148.
73
114
things, e.g. we admire the beauty of a landscape or of a work
of art. Animals call for another type of response, since – as
sentient beings – they cannot be treated in the same way as
non-sentient things (in this respect the traditional juridical
division between persons and things appears to be inadequate,
since animals are neither persons nor things). However, from
the moral point of view human persons are superior to all other
values which we encounter in the visible world. Kant has
defined these values as “ends in themselves” (Selbstzwecke).
While all other things in the world under certain circumstances
may be used as a means to ends not their own, persons in all
circumstances can be treated only instrumentally. They can
never be seen merely as means. In his book Love and
Responsibility Karol Wojtyla – after having criticized
utilitarianism in ethics – proposes his own formulation of the
Kantian principle:
“Every time when the object of an action is
the person you should not forget that you
are not dealing only with a means, an
instrument, but that a person is always an
end in him/herself.”74
According to Wojtyla this norm – called by him “the
personalistic norm” – constitutes the foundation of the whole
moral order. We should understand this norm well. It does not
preclude any sort of “using” of the person. In his commentary
on the Kantian formula, prof. Robert Spaemann stresses the
importance of the word “only”. While living in community we
cannot avoid the reciprocal “use” of each other, but this does
not necessarily go against the personalistic norm. This norm
forbids us from reducing the other only to the status of object,
excluding any reciprocity, as happens for example in the case
of slavery, or when one person is treated only as a source of
tissues or organs for others (and while slavery is generally
illegal, the second case of instrumentalization is widespread
today).
In the Lublin school of ethics the personalistic norm
was expressed by prof. Tadeusz Styczen in the formula,
inspired by Wojtyla himself, “persona est affirmanda per
seipsam”. This formula emphasizes that, for an action to be
morally good, the object of the action, that is, the good of the
person, ought to stand in the first place. In stressing this
personalism differs from various forms of eudemonism which
see the happiness of the subject as the principal motive of the
moral action. It seems to me, that the critique of eudemonism
developed by the Lublin school of personalistic ethics is very
74
K. Wojtyla, Amore e responsibilità, in: id., Metafisica della persona. Tutte le opere filosofiche e saggi integrativi, Bompiani
2003, p. 479 (my translation).
115
close to the critique of the Thomistic concept of bonum, which
we find in the works of von Hildebrand. We may summarize it
as follows: If our perception of the good is totally determined
by natural desire, understood as appetitus, then there is only
one possible motivation for action: something is good in as
much as it satisfies the desire of the subject. On the basis of
this concept of good, the other person is a good only insofar as
he/she contributes to the happiness of the subject, but not as a
good which merits to be affirmed for its own sake. In other
words, we distinguish two kinds of good: a good as appetibile
(and this type of good is conceptualized in the Thomistic
notion) and a good as affirmabile. In Thomism it is this second
type of good which can be found in the notion of bonum
honestum, however, it seems not to be integrated in Thomas’
general conception of the good. These two types of goodness
require two different responses from the subject: in the case of
the good as appettibile the response is motivated by my own
good, whereas in the case of the good as affirmabile the
response is motivated by the good of the object of my action.
This requires a reformulation of the Thomistic philosophy of
the will. In the context of this discussion it is interesting to
note that, already in the Middle Ages, Duns Scotus – who gave
the philosophical complement to the theological speculation of
Anselm of Aosta – distinguished two different movements of
the will: the affection commode, that is, to put it in the
terminology of von Hildebrand, the tendency of the subject to
choose what is subjectively satisfying, while the affection
iustitae is the natural tendency to render justice to what merits
affirmation for its own sake. In this second tendency, Duns
Scotus saw the actual expression of human freedom.75
Therefore, we can say that, in fact, love, understood in its
ethical sense, means “to render justice to what merits to be
affirmed for its own sake”. Another name for love is “to
render justice to what merits to be affirmed for its own sake”.
At this point of our reflection we take up the question:
What is the proper content of the personalistic norm? The
content of the personalistic norm is love. According to Karol
Wojtyla “The person is such a good that the only love
constitutes the adequate and valid attitude in front of
him/her.”76 In other words, the good that the person is (the
good of the person) calls forth a specific response and the
content of this response is love.
75
“Secundum autem affectionem commodi nihil potest velle nisi in ordine ad se, et hanc haberet si praecise esset appetitus
intellectivus sine libertate sequens cognitionem intellectivam, sicut appetitus sensitivus sequitur cognitionem sensitivam. Ex hoc
volo habere tantum quod, cum amare aliquid in se sit actus liberior et magis communicativus quam desiderare illud sibi et
conveniens magis voluntati inquantum habet affectionem iustitae saltem innatae”, Duns Scotus, Ordinatio III, suppl. dist. 26; in:
Duns Scotus on the Will and Morality, A.B. Wolter OFM (ed.), Washington 1986, p. 178.
76
Wojtyla, Metafisica della persona, op. Cit., p. 495 (my translation).
116
But – we may ask – what is the nature of love, what
type of response is it? Is love an emotional phenomenon or is
it, instead, a stance of the will? At the beginning of his book on
love von Hildebrand poses this question. He answers that love
is an affective response to value. On the other hand, with the
criticism of the Schelerian ethics developed by Wojtyla in his
postdoctoral thesis, one of his main objections was so-called
“emotionalism”, that is, the reduction of the cognitive
contact/content of with the realm of values to the emotional
sphere. In the context of our reflection it is worthwhile to ask if
Wojtyla’s criticism can also be applied to von Hildebrand? My
answer is negative. While it is true that for von Hildebrand
love is an emotional response, in our case, it is an emotional
response to the value of the person. He does not thereby
maintain that this response is independent of reason and
freedom. On the contrary, when emotions present values in a
way that is existentially vivid and attractive, the task of reason
is to assess whether a given value is right for me in this
concrete situation, while the task of the will consists in
sanctioning or not sanctioning the emotions I feel in a given
moment. While Scheler reduces the role of the will in order
not to compromise the authenticity of the human response to
values, von Hildebrand rightly underscored the importance of
the judgment of reason and the stance of the will.
We can consider another point of encounter of von
Hildebrand and Wojtyla in their respective philosophies of
love. I have already indicated that for both of them only love is
the adequate response to the value of the person. However, this
response cannot be limited to the subjective stance. The other
person is not merely to be admired or theoretically affirmed,
but in any concrete situation he/she calls for the affirmation
understood as “practical attitude”. Consider, for instance, the
priest and the Levite in parable of the Good Samaritan: both
apparently had deep admiration for the dignity of the person of
the traveler left for dead. The problem consisted in the fact
that their admiration remained ineffective in front of this man
encountered on the way to Jerusalem. Generally speaking we
can say that the dignity of any person, in most cases, is not
affirmed directly, but is, rather, affirmed by addressing those
goods which the person needs: if somebody is hungry, his
dignity is affirmed through the food we give him, if somebody
is thirsty, it is not enough that we only admire his personal
dignity, we have to give his something to drink. Here von
Hildebrand makes a very helpful distinction between values;
those goods that are subjectively satisfying and those that
satisfy the objective needs of the person. In Hildebrand’s
terminology we can say that effective affirmation of the good
of the person is mediated through those objective goods for the
person. This principle is also valid when it comes to my own
person. There are goods which are merely subjectively
117
satisfying for me, and there are goods which objectively serve
the flourishing of my person. Similarly Wojtyla distinguishes
between “what I feel like doing” and “what I really want.” We
know that not all those goods which attract us consciously are
identical with those that we desire at a deeper level of our
personal self. In Hildebrand’s terminology: a subjectively
satisfying good is not always the objective good for the person.
Thus we may say that the good of the person (that is, his or her
personal dignity) is affirmed through the (objective) goods for
that person. It is interesting to note that very similar
terminology can be found in the encyclical Veritatis splendor
of John Paul II. I cannot say if in this case we can claim a
direct influence of von Hildebrand on John Paul II. However,
in number 79 of the encyclical, we read that the natural law is
an “ordered complex of ‘personal goods’ which serve the
‘good of the person’: the good which is the person himself and
his perfection.” The distinction here between the “good of the
person” and “personal goods” allows for a personalistic
interpretation of the traditional concept of natural law. The
value of the person, which constitutes the basis of the whole
moral order, is affirmed through various goods which serve the
person and belong to his nature. Thus the so-called natural
inclinations attain moral significance insofar as they pertain to
what is objectively good for the person77. Here we can see
more clearly the necessary relation between ethics and
anthropology. For both von Hildebrand and Wojtyla ethics is
not deduced from anthropology (from the very beginning they
thereby avoid the Humean objection of naturalistic fallacy).
Ethics is deduced from neither anthropology nor from
metaphysics.
Its original point of departure is moral
experience. On the other hand, ethics needs to be informed by
anthropology: we have to know the nature of the person if we
are to affirm him/her effectively.
Another important point of encounter between von
Hildebrand and Wojtyla. It concerns the nature of spousal love.
We consider: What is the specificity of spousal love within the
vision of love as the adequate response to the value of the
person? Although they use different terminology, both von
Hildebrand and Wojtyla see this specificity as the
unconditional giving of one’s own person to the other. Von
Hildebrand points to the fact that love refers always to an
individual person. Wojtyla, on the other hand, says that in
falling in love with a person of the opposite sex one discovers
the uniqueness of one’s own person among all other persons.
Whereas, in its ethical sense, love responds to the unique value
of the person among all things (a disciple of Wojtyla, prof.
Tadeusz Styczen, would say that the mode of personal
existence is ontologically different and axiologically higher
77
Cfr. L. Melina, “Bene della persona” e “beni per la persona”, “Lateranum” LXXVII, 1 (2011), p. 89-113.
118
than all non-personal existence). Spousal love responds to the
unique value that this concrete person has for me above all
other persons. Hence the question: How do I and how should I
respond to this unique value? An adequate response is nothing
less than an unconditional gift of oneself to the other. Only
persons are capable of such giving, because only persons have
the characteristic structure of self-possession. Only a being that
possesses himself is able to give himself. Spousal love says: “I
want to belong to you and I want you to belong to me.” In von
Hildebrand we find a concept that describes this experience. It
is the concept of intentio unionis. In spousal love the intentio
unionis reaches its highest intensity, because by the reciprocal
gift is created the bond of mutual belonging. According to von
Hildebrand “Reciprocal love includes a reciprocal ‘unitive
intention’ and this in its turn implies that this union is the
source of happiness for both sides.”78 Significantly, von
Hildebrand points out that the experience of belonging to
another person contributes in turn to the self-realization of the
subject. Although each person belongs to himself first of all
[n.b.: in The Acting Person Wojtyla refers to the structure of
self-possession for the person; while in The Essence of Love
von Hildebrand reminds us that the person cannot be an object
of possession], in spousal love each person wants to give
himself/herself away in order to belong to the other.
Paradoxically, by giving oneself to the other, neither person
loses his/her subjectivity; on the contrary, precisely by selfgift the subjectivity of each person finds its highest realization.
In our contemporary culture we tend to understand freedom as
complete independence, thinking that we are only really free
when we can do everything “our way.” The experience of
spousal love turns this idea on its head. The natural dynamics
of such love can help us understand better the words that
Christians repeat every day: “Thy will by done.”
BIBLIOGRAFIA
Duns Scotus, Ordinatio III, suppl. dist. 26; in: Duns Scotus on
the Will and Morality, A.B. Wolter OFM (ed.), Washington
1986.
Husserl, E., Philosophie als
Klostermann, Frankfurt a.M. 1965.
Strenge
Wissenschaft,
K. Wojtyla, Amore e responsibilità, in: id., Metafisica della
persona. Tutte le opere filosofiche e saggi integrativi,
Bompiani 2003.
78
D. Von Hildebrand, Essenza dell’amore, Bompiani 2003, p. 381 (my translation).
119
Styczeń, T., Comprendere l’uomo, Lateran University Press,
Città del Vaticani 2005.
D. Von Hildebrand, Essenza dell’amore, Bompiani 2003.
120
ipação e movimentos sociais em saúde: esvaziamento
5
Comunas da terra: relações entre sujeitos na paisagem
híbrida campo-cidade *
Ana Paula Soares da SILVA: [email protected]
Endereço Av Bandeirantes, 3900. Bairro Monte Alegre, Ribeirão preto (SP), CEP 14040-901.
Telefone: (16) 3602 3659.
CV: http://lattes.cnpq.br/9207972960390849: Docente do curso de Psicologia e do Programa de
Pós-Graduação da FFCLRP-USP, coordenadora do grupo SEITERRA/CINDEDI-USP, membro do
Laboratório de Psicologia Socioambiental e Intervenção (LAPSI-USP).
121
* Agradecimentos à FAPESP e à Pró-reitora de Cultura e Extensão da USP pelo financiamento
aos projetos de pesquisa e extensão do grupo de pesquisa Subjetividade, Educação e Infância
nos Territórios Rurais e a Agrária (SEITERRA/CINDEDI-USP).
Resumo O texto busca refletir sobre alguns processos vividos por adultos e crianças em um
assentamento rural caracterizado como Comuna da Terra. Este tipo de assentamento
provoca mudanças culturais nas dinâmicas de poder entre cidade e campo e contrapõe
modelos hegemônicos de relação dos sujeitos com o ambiente natural. O material
empírico é proveniente de atividades de extensão desenvolvidas em Ribeirão Preto
(SP).
Palavras-chave assentamento rural; relações cidade-campo; reforma agrária; comuna da terra.
Abstrac This article aims to think over the processes experienced by adults and children in a
rural settlement named Land Commune. This type of settlement provokes cultural
changes in power dynamics between town and country. In addition, is opposed to
hegemonic models of relationship with natural environment. The empirical material
comes from extension activities in a rural settlement in Ribeirão Preto (SP).
Keywords rural settlement; city-country relationship; land reform; land commune.
BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC
122
1. INTRODUÇÃO
A ampliação no número de assentamentos rurais da
reforma agrária, verificada nos anos de redemocratização do
país após o período da ditadura civil-militar79, tem chamado a
atenção de pesquisadores de diversas áreas para este contexto.
Não são poucas as pesquisas que buscam compreender os
processos gerados no interior das dinâmicas de implantação
dos assentamentos, abordando desde aspectos referentes à
viabilidade econômica às mudanças produzidas na
subjetividade e nas condições de vida dos assentados (Leite,
Heredia, Medeiros et al, 2004; Simonetti, 2011).
Os assentamentos rurais, na realidade brasileira, são
resultado de intensos processos sociais, econômicos, políticos
e culturais. As áreas destinadas para a reforma agrária, em suas
origens, como assinalam Leite e colaboradores (2004, p. 40),
geralmente contaram com a existência de conflitos que,
juntamente com “as inciativas dos movimentos sociais”,
constituíram-se no motor das desapropriações.
Na atualidade, os assentamentos consistem na
efetivação de política pública, prevista pela Constituição de
1988 (Brasil, 1988), como instrumento de reorganização da
estrutura fundiária e de garantia da função social da terra.
Conforme artigo 186 da Constituição Federal de 1988, a
garantia desta função exige o cumprimento simultâneo: do
aproveitamento racional da produção; da utilização adequada
dos recursos naturais; da observância às disposições que
regulam as relações de trabalho; do favorecimento do bemestar dos proprietários e dos trabalhadores. Essa definição,
além de orientar a disputa jurídica e política acerca da posse da
terra, aponta um horizonte a ser seguido nos planos de
assentamentos que necessitam construir alternativas ao uso
anterior da área que foi desapropriada.
Em torno dos assentamentos, seja no momento de sua
constituição seja posteriormente, na sua implantação cotidiana,
sujeitos sociais disputam concepções de diversas ordens
relativas: aos modelos de sociedade vigentes e desejados; aos
projetos de desenvolvimento para o país; às formas de uso e
ocupação do solo; às relações cidade e campo; às práticas
sociais e de sociabilidade. No limite, as disputas de acesso à
terra colocam em confronto os entendimentos sobre a
democratização dos bens naturais e construídos, materiais e
simbólicos, presentes no seio da sociedade brasileira.
79
Dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA demonstram que, até 1994, havia 58.317 famílias
assentadas. Este número, em 2012, totalizava 1.258.205. Fonte: INCRA, DT/Gab-Monitoria - Sipra Web 31/01/2013. Disponível em
http://www.incra.gov.br/index.php/reforma-agraria-2/questao-agraria/numeros-da-reforma-agraria/file/1148-familias-assentadas
123
Essas disputas, travadas no âmbito das realidades
regionais e locais, resultam em uma variedade de tipos de
assentamentos rurais. Esta variedade é dependente, dentre
outras coisas, do ciclo de vida do assentamento, dos projetos
de produção individual e coletiva, das formas de organização
no espaço do assentamento, das flutuações nas políticas de
financiamento e de crédito, do tamanho da área ocupada e do
número de famílias ali presentes, da integração ao mercado
consumidor local, do uso de tecnologias ou inovação
produtiva, da presença de reservas naturais na área assentada,
da distância em relação aos centros urbanos.
Mais recentemente, como elaboração construída no
interior de movimentos sociais do campo e da cidade, surge
um tipo novo de assentamento denominado Comuna da Terra.
A proposta de Comunas da Terra é construída, segundo
Goldfarb (2011), no final dos anos 90 e início dos anos 2000,
como uma das estratégias do movimento social,
particularmente pensada para regiões próximas a grandes
centros urbanos. Como registro inicial desta proposta, a autora
identifica a monografia de Delwek Matheus, intitulada
“Comunas da Terra – um novo modelo de assentamento rural
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra”,
apresentada, em 2003, no curso Realidade Brasileira, da UFJF
e Escola Florestan Nacional Florestan Fernandes. Nela, o autor
sistematizou as discussões que vinham ocorrendo em São
Paulo na direção estadual do MST.
As Comunas da Terra inserem-se num contexto de
ampliação dos debates acerca da reforma agrária, a partir de
uma compreensão de que esta problemática está
intrinsecamente relacionada à questão urbana.
Três elementos são fundamentais na sua formulação: a
vinculação originária de seus sujeitos com a cidade; a
produção baseada em práticas e princípios agroecológicos; a
priorização da concessão e do uso coletivos da terra. Estes três
elementos, para além de se constituírem em meras propostas
que conjuntamente caracterizariam as Comunas da Terra, são
posições contra-hegemônicas aos seus pares antagônicos.
No caso da vinculação com os centros urbanos, é
comum a presença de discursos que, apoiados nas estatísticas
da distribuição geográfica da população, questionam a
pertinência da reforma agrária no momento atual, uma vez que
grande parcela da população não possuiria vínculo com o
campo. Na proposta de constituição da Comuna da Terra, esse
fato não seria em si um problema. Ao contrário, como parte de
um diagnóstico acerca da precarização das condições de vida
nas cidades, a inserção na reforma agrária e o acesso à terra
seriam uma alternativa para parcela da população que vive
nessas condições.
Essa alternativa constrói-se não teoricamente, mas a
partir da realidade vivida por moradores na cidade São Paulo.
124
Tanto Gomes (2004) quanto Goldfarb (2011) relatam a origem
das Comunas da Terra na formação, em 2001, do assentamento
Dom Tomás Balduíno, localizado próximo à cidade de São
Paulo, em Franco da Rocha.
Gomes (Idem) testemunhou de perto o processo que
levaria à criação desse assentamento. Como membro do grupo
Fraternidade do Povo de Rua, que desenvolvia ações
originalmente junto a moradores de rua e, posteriormente, a
moradores de cortiços e favela, o autor vivenciou a
aproximação deste grupo ao Movimento dos Trabalhadores
Sem Teto – MTST e ao Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra – MST. Também presenciou a ocupação de uma
área pelo grupo e a mudança de seu nome para Centro de
Formação Campo-Cidade. Desta aproximação, resulta a
criação do assentamento Dom Tomás Balduíno, numa
perspectiva de transformação social e de enfrentamento da
exclusão vivida pelas pessoas que faziam parte dos projetos
desenvolvidos pelo Centro de Formação Campo-Cidade.
Outros assentamentos passaram a compor o leque de atuações
deste centro. O autor acompanhou assim o que denomina de
“itinerários de sentidos”, vividos na transição de pessoas em
situação de rua para a condição de assentados, em um espaço
situado nos limites da cidade, caracterizado por ele como
rururbano.
Para Goldfarb (2011), a proposta implantada no
assentamento Dom Tomás Balduíno “vinha sendo gestada já
desde antes, com os acampamentos Nova Canudos, na região
de Iara e Terra Sem Males, na região de Porto Feliz e depois
Campinas” (p. 23). Segundo a autora, o que havia de comum
era a forte presença de famílias cuja origem estava atrelada à
cidade, embora algumas tivessem, no passado, ligações com o
mundo rural. Com a presença destas famílias, pode-se falar no
que a autora chama de uma “heterogeneização do sujeito da
reforma” (p. 81), resultado de um processo de atuação nas
fronteiras da cidade que, sem substituir a necessidade da
reforma agrária em áreas interioranas, amplia o número de
pessoas envolvidas com a luta pela democratização do acesso à
terra. Goldfarb (Idem) afirma que, em 2011, as Comunas da
Terra somavam, em São Paulo, “sete assentamentos, além de
diversos assentamentos” (p. 23).
Nesse processo, a reforma agrária absorve uma
quantidade de famílias que, vivendo há muito tempo na cidade,
alimentam desejos de retomar origens e valores rurais perdidos
em suas histórias de vida e, ao mesmo tempo, possuem
dificuldades em realizar-se em espaços muito distantes dos
centros urbanos. Esse fenômeno coaduna-se inclusive com as
transformações que vem vivendo o campo brasileiro,
apontadas por alguns autores como a emergência de “novas
ruralidades” (Carneiro, 2011). Nesses espaços, não
necessariamente de assentamentos, verifica-se a pluriatividade
125
econômica, em que membros das famílias desenvolvem
atividades no campo e na cidade. As atividades mistas,
agrícolas e não agrícolas, seriam a criação de condições para a
manutenção da família nesse novo rural.
Na Comuna da Terra, nos limites entre o campo e a
cidade, junto com a construção de novos sujeitos, constroem-se
também novos espaços e paisagens. Os limites borrados destas
faixas exercem forças no jogo da expansão urbana e do
movimento de diferentes sujeitos na ocupação dos espaços
vazios. Campo e cidade, mais do que polaridades, são
compreendidos
como
movimentos
complexos
com
interpenetrações. As trocas entre os sujeitos e as
movimentações de via dupla, nestes espaços de interface, são
bastante intensas. Trazer a reforma agrária para estas áreas
conduz ao questionamento das formas de ocupação do espaço
e da sua identificação simbólica a grupos sociais. A paisagem,
que “trata da dimensão das formas que expressam o
movimento da sociedade” (Cavalcanti, 2008, p.52), modificase e o entorno da cidade vive uma dinâmica renovada, o que
implica relações de complementaridade ou de tensionamentos
geoespacias e socioculturais.
O segundo elemento que compõe a proposta das
Comunas da Terra, ou seja, a produção baseada
preferencialmente em práticas e princípios agroecológicos,
exerce função específica nos debates em torno das melhores
formas de produção e manejo agrícolas.
Este debate, que vincula o assentamento à questão
ambiental, é bastante recente para o movimento o social.
Beduschi Filho (2003), Maciel (2007) e Goldfarb (2011)
discutem como, por vezes, esta relação é bastante conflituosa,
em particular quando existem áreas de preservação ambiental
nos assentamentos. Nessas localidades, é comum a
contraposição de discursos e sujeitos ambientalistas e
assentados. A possibilidade de agregar o manejo dos bens
naturais à renda é ainda tema pouco incorporado na prática
agrícola e também na cultura dos assentados.
As Comunas da Terra representam assim um
movimento contrário à forma dominante de produção agrícola,
forma esta que inclui o uso de agrotóxicos e a mecanização.
Aderida aos discursos críticos sobre os transgênicos e de seus
impactos na soberania alimentar e no controle das sementes,
assim como ao questionamento do uso de agrotóxicos e da
indústria de produtos agroquímicos, a proposta da Comuna da
Terra vê, na escolha do modo de produção, a criação de uma
materialidade que tensiona com o modelo dominante. A
viabilidade ambiental é colocada em mesmo pé de igualdade,
ou melhor, é concebida como intrinsecamente vinculada à
viabilidade econômica dos assentamentos. Nesse processo,
diferenciam-se os sujeitos assentados, desdobrando-se em
126
sujeitos com preocupações e práticas ecológicas, o que os faz
assumir responsabilidades na preservação ambiental.
Essa escolha, originária nos movimentos sociais, foi
incorporada pelo Estado ao possibilitar a elaboração de Planos
de Desenvolvimento Sustentável – PDS. Embora nem todos os
assentamentos que optam pelo PDS possam ser identificados
como Comunas da Terra, nelas, necessariamente, o PDS se
apresenta como modelo de produção do assentamento. Isto
implica os assentados em compromissos também com a
preservação e recuperação dos recursos naturais. A questão
agrária mescla-se, assim, à questão ambiental, ampliando os
desafios na efetivação do assentamento.
O terceiro elemento que poderíamos identificar como
caraterístico das Comunas da Terra diz respeito à titulação
coletiva da área e, consequentemente, à indução a processos
também coletivos de organização social e de trabalho. Como
PDS, na Comuna da Terra, não ocorre uma titulação privada
individual, mas a concessão de direito real de uso para formas
cooperadas de organização dos assentados (Goldfarb, 2011).
A terra, portanto, não se tornará, como nos
assentamentos convencionais, uma propriedade com titulação
privada e será sempre pública. Por parte do Estado, o
reconhecimento das Comunas da Terra e a sua viabilização por
meio do PDS permitem a regulação das áreas limítrofes da
cidade, que sofrem pressão para comercialização. Por outro
lado, é também o reconhecimento de que a pressão para a
reforma agrária e para o acesso à terra não existe apenas em
áreas afastadas dos centros urbanos, mas está presente em
espaços que concentram a população e que apresentam
dificuldades em incluí-la nas políticas de moradia e de
emprego.
Nos PDSs, é necessário um Plano de Uso do espaço do
assentamento, definindo-se as áreas de produção coletiva, de
moradia e de produção familiar. O percentual da área a ser
preservada ou recuperada ambientalmente depende das
legislações e de acordos estabelecidos entre os institutos de
terra nacional ou estadual, assentados e, por vezes, Ministério
Público, como é o caso de assentamentos da região de Ribeirão
Preto (SP), onde um Compromisso de Ajustamento de
Conduta, discutido entre os assentados, órgãos do governo e
representantes da sociedade civil, definiu as obrigações dos
diferentes sujeitos na implantação do modelo agroflorestal dos
assentamentos.
Esta organização coletiva do espaço gera uma dinâmica
social também intensa, alinhando-se a ou confrontando-se com
projetos pessoais de uso da terra. O estabelecimento das áreas
de produção familiar tenta garantir assim um equilíbrio entre
as possibilidades de manejo em grupo e individual, entre os
projetos e os desejos pessoais e coletivos. De toda forma, tratase de um modo de organização no espaço que se contrapõe à
127
cultura de relação com a terra, geralmente privatista,
patrimonialista e degradadora.
A conjunção dos três elementos que caracterizam o que
se pode chamar de Comuna da Terra indicia que o que se
projeta no horizonte dos assentados não é apenas a reforma
agrária, entendida como a colocação de famílias em
determinadas áreas. Trata-se de um tipo de sociabilidade e de
convivência entre sujeitos, com a natureza e com a propriedade
radicalmente contrário ao modelo predominante. Pode-se ainda
prever, portanto, desafios que exigem a capacidade criativa
para a construção destas novas formas de relações, de
construção e requalificação de um espaço em disputa, de
desconstrução de elementos culturais fortemente arraigados na
nossa sociedade. Questão agrária, questão urbana e questão
ambiental configuram campos de atuação dialogada das
Comunas da Terra, na construção de alternativa a modos
dominantes de se relacionar e de viver.
Desta forma, as Comunas da Terra constituem-se em
verdadeiros laboratórios sociais, uma vez que ali os sujeitos
propõem-se a agir e transformar o espaço, a criar estratégias de
relação com o entorno e a projetar a mediação com o ambiente
natural em novas bases culturais. São múltiplas, portanto, as
possibilidades de abordagem e de investigação dos processos
vividos pelos sujeitos nesse tipo de assentamento.
Neste texto, é a vivência nos limites com a cidade que
procuramos explorar, investigando as tensões iniciais com o
entorno e os desafios ao projeto de criação dos filhos em uma
área fronteiriça. Temos defendido que os aspectos que
caracterizam as Comunas da Terra implicam a presença de
elementos particulares que medeiam a relação entre os sujeitos
do campo e da cidade. Acreditamos que a escolha do
assentamento na proximidade com a cidade nem sempre
significa aceitação do entorno à sua presença. As áreas de
interface periurbanas são apontadas, por alguns autores, como
aquelas que possuem as piores condições em termos de oferta
de políticas públicas (Furtado, 2011). Dadas as características
dessas áreas, supõe-se que a chegada de um novo grupo
explicita tensões que necessitam ser manejadas. Por outro lado,
também defendemos que a proximidade com a cidade refletese em desafios na construção dos vínculos entre as gerações e
pode tornar frágeis os projetos familiares e coletivos pensados
para as gerações seguintes.
Com este enfoque, este trabalho tem por objetivo
refletir sobre alguns processos vividos por adultos e crianças
no momento de implantação de um assentamento rural,
localizado no município de Ribeirão Preto (SP), caracterizado
como Comuna da Terra. Pretende-se dar visibilidade às
relações com o entorno a partir da negociação inicial da
presença dos assentados naquele espaço, assim como apontar
128
algumas tensões presentes na atualidade, quando se observa as
pressões da cidade sobre as novas gerações.
2. CONTEXTO DA
PARTICIPANTES
PESQUISA,
MATERIAIS
E
2.1 O contexto da pesquisa
O material analisado e aqui apresentado foi construído
durante a inserção prolongada em um assentamento localizado
na região de Ribeirão Preto (SP).
Essa região tem como atividade econômica principal a
monocultura da cana de açúcar. A paisagem rural é
predominantemente tomada por grandes imóveis rurais onde se
desenvolve a cultura da cana, sendo possível identificar alguns
remanescentes de floresta que constituem áreas de reserva
legal. Poucos e pequenos sitiantes sobrevivem neste espaço. Os
trabalhadores rurais geralmente moram nas periferias das
cidades circunvizinhas a Ribeirão Preto e trabalham no corte
da cana ou nas usinas de produção de açúcar e álcool. Não
raro, observa-se um movimento sazonal destes trabalhadores
que, durante a safra, migram para a região, geralmente das
regiões nordeste e norte do país. O grau de urbanização da
região, de acordo com a Fundação SEADE, em 2010, era de
99,72%.
A cidade de Ribeirão Preto funciona como polo
regional. Sua base econômica funda-se basicamente na oferta
de serviços. O setor de comércio tem papel de destaque, o que
atrai também os consumidores das cidades do seu entorno e
emprega grande parcela da população residente em Ribeirão
Preto. Dados disponibilizados pela Fundação SEADE indicam
que a participação dos serviços no total do valor adicionado,
em porcentagens, era de 80,78 em 2010, maior do que a média
regional (67,29) e estadual (69,05). O setor agropecuário
correspondia a uma participação de 0,33%, bem menor que os
valores regional (3,50) e estadual (1,87). No Índice Paulista de
Responsabilidade Social – IPRS, Ribeirão Preto classifica-se
no Grupo 2 que agrupa aqueles municípios que, embora com
níveis de riqueza elevados, não exibem bons indicadores
sociais80.
O setor imobiliário cumpre papel central na definição
da paisagem local, na transformação dos bairros residenciais
em áreas comerciais, na desvalorização ou valorização de
determinadas áreas, na movimentação que cria novas zonas de
ocupação. As áreas limítrofes e rurais foram transformadas,
80
Fonte Fundação Sistema Estadual de Análise de
http://www.seade.gov.br/produtos/perfil/perfilMunEstado.php
Dados
129
SEADE
–
Perfil
Municipal.
Disponível
em
nos últimos anos, principalmente pela presença de
condomínios residenciais, empreendimentos diferenciados e
setorizados para populações de maior ou menor renda. A área
total do município é de 650 km² e a rural é de 320,32 km²81.
A área em que se localiza o assentamento era disputada
por empreendedores para expansão imobiliária destinada à
população de baixa renda. Para aquele espaço, havia projetos
de loteamento popular.
O assentamento, assim como o bairro vizinho, localizase em uma área de recarga do Aquífero Guarani82. Esse fato dá
uma particularidade a esse assentamento e influencia o modelo
de produção a ser implantado.
A iniciativa do pedido de desapropriação da área para
fins de reforma agrária aconteceu em 2000, quando a
Promotoria de Justiça do Meio Ambiente e Conflitos Agrários
requisitou ao INCRA a desapropriação devido elevado passivo
ambiental e suspeita de improdutividade econômica.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra –
MST, que havia chegado à região de Ribeirão Preto em 1999,
ocupa a antiga fazenda em 2003 e, em 2005, ocorre a
desapropriação para fins da reforma agrária, por meio de
decreto presidencial.
O modelo de assentamento escolhido, discutido entre
representantes dos assentados, órgãos do governo e membros
da sociedade civil, foi o sistema agroflorestal (SAF). Sua
proposta consiste no manejo de espécies da flora nativa,
unindo a preservação do meio ambiente à exploração
econômica e agrícola. Os SAFs são definidos como “formas de
uso e de manejo da terra nas quais árvores ou arbustos são
utilizados em associação com cultivos agrícolas e/ou com
animais, numa mesma área, de maneira simultânea ou numa
sequência temporal” (May & col, s/d). Uma vez que grande
parte da área era destinada ao cultivo da cana de açúcar,
restaram poucas áreas verdes. O modelo do assentamento
prevê assim a recomposição da reserva legal, junto com o
manejo de árvores frutíferas, grãos, verduras e hortaliças. O
projeto de assentamento prevê áreas de produção coletiva (de
forma cooperada), áreas de produção familiar e áreas de uso
comum para atividades sociais, culturais e de lazer (Firmiano,
2008).
Atualmente, o assentamento é dividido territorialmente
em quatro movimentos sociais. Do total de 550 famílias, 260
estão ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
terra – MST. O trabalho aqui apresentado é desenvolvido junto
a essas famílias.
81
Fonte Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto (SP). Disponível em http://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/crp/dados/local/i01area.htm
As águas subterrâneas do Aquífero Guarani distribuem-se em uma extensão total de 1,2 milhão Km² no Brasil, Paraguai,
Argentina e Uruguai. Do total, 840 mil Km² encontram-se no Brasil, nos Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás,
Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Fonte www.geomundo.com.br
82
130
2.2 Materiais e Participantes
O material sobre o qual foi feita a análise é proveniente
da inserção em um projeto de extensão universitária,
desenvolvido junto a adultos e crianças, desde 2007, no
espaço/tempo que o MST denomina de Ciranda Infantil.
Na Ciranda, as crianças participam de atividades livres
ou orientadas por temas relativos ao assentamento e às suas
vidas. Objetiva-se que elas se apropriem dos espaços, tempos e
relações do assentamento por meio de atividades lúdicas. Os
encontros acontecem aos sábados e reúne em torno de 25
crianças e adolescentes dos 3 aos 16 anos de idade. Nossa
participação, que conta com o apoio do Setor de Educação do
Assentamento e com o Centro de Formação Dom Hélder
Câmara, consiste em colaborar com os adultos na organização
das atividades para as crianças.
Ao longo deste acompanhamento, as atividades foram
registradas por meio de videogravação, audiogravação,
desenhos, fotografias e memórias escritas. Os registros,
realizados no período de 2007 a 2012, ajudam-nos numa
perspectiva de análise que engloba aspectos temporais. Foram
selecionados 12 videogravações que contêm dinâmicas de
dramatização sobre a ciranda, discussões coletivas dos
cirandeiros, pequenas conversas com as crianças,
acompanhamento de atividades de desenho e de brincadeira
das crianças. Essas atividades foram transcritas na íntegra.
Também foram realizadas entrevistas, no início de maio
de 2013, com sete adultos responsáveis pela organização das
atividades junto às crianças ou cuja posição era destacada na
implantação do projeto agroflorestal. As entrevistas também
foram transcritas.
O material foi tratado de forma a identificar as
significações dominantes sobre a vivência nas fronteiras entre
o campo e a cidade. Nessa análise, considera-se que as relações
dos sujeitos são mediadas por relações socioespaciais.
Compartilha-se com Pol (1996) o entendimento de que, na
apropriação espacial, ocorre simultaneamente a açãotransformação e a identificação simbólica do espaço. Isto
significa que o espaço nunca pode ser concebido apenas nas
suas características físicas ou por seus limites geográficos. A
construção de um espaço é acompanhada por processos de
significações sobre ele. Estes processos, por sua vez, estão
intrinsicamente articulados aos grupos sociais que ocupam e se
apropriam destes espaços. Por isto, a significação dos grupos é
mediada pelos espaços e a significação dos espaços é mediada
pelas relações entre os grupos. O (auto)reconhecimento grupal
e a categorização do eu acontecem assim como parte de um
processo de ocupação do espaço. Segundo Moranta e Urrútia
(2005), a autoatribuição das qualidades do entorno torna-se
definidora das identidades pessoais e grupais. Para Tassara
131
(2005), a identidade só pode assim ser pensada como uma
identidade topológica, uma vez que está ancorada nos
territórios, em lugares específicos. Em relação às tensões
presentes nos projetos de criação dos filhos em área fronteiriça,
buscamos compreender as expectativas dos pais como parte do
que Bastos (2001) denomina de modos de partilhar. Modos de
partilhar podem ser vistos como uma categoria de análise que
permite compreender as relações entre gerações em contextos
situados. É útil para compreender as práticas que envolvem as
novas gerações no processo de socialização da família,
concebidas como processos de coconstrução de modos de
partilhar a existência. Na análise, entre os diferentes modos de
partilhar a vivência no assentamento, ressalta-se o aspecto das
expectativas dos adultos em relação à criação dos filhos no
espaço fronteiriço assentamento – cidade.
3. RESULTADOS
3.1 A relação com o entorno: de confrontos a hibridismos
As relações do assentamento com o bairro vizinho e
com a cidade passaram por um processo de negociação, nem
sempre fácil. A chegada do grupo de acampados ao local
provoca, por parte dos moradores, reações de rejeição,
manifestadas de diferentes formas.
Nas entrevistas, esse momento inicial é descrito por
atos de discriminação e tentativas de identificação dos
assentados com uma possível piora na qualidade dos serviços
públicos, conforme aparece no relato de Valter83, um dos
entrevistados: “Falava que o postinho estava cheio, porque o
sistema de saúde não suportava mais uma quantidade de gente
dessa”.
Em relação a situações de preconceito e humilhação
sofridos pelos assentados no bairro, são vários os relatos. Aqui,
escolhemos trazer a vivência dos adultos em situação de
compra em supermercados e das crianças na escola. As duas
foram escolhidas pela relação que possuem com a questão da
terra e das marcas visíveis que esta deixa no corpo dos
assentados, identificando-os enquanto grupo.
Em 2009, em uma das atividades videogravadas na
Ciranda, Ruth – uma das responsáveis pelos trabalhos com as
crianças – descreve sua vivência:
Ruth: Uma faxineira do [nome do supermercado] que não gosta do
Sem-Terra, ela não gosta! Se você entra lá, ela vai atrás... limpando.
Ela vai batendo o rodo nas suas pernas. Um dia eu falei para ela “O
que a senhora tá fazendo?”. “Ah, Sem-Terra, vocês entram tudo
83
Os nomes dos participantes foram modificados para garantir o anonimato. Alguns dos nomes foram escolhidos pelos próprios
participantes. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo – IPUSP.
132
sujando, Sem-terra, que não sei o quê, não sei o quê”. Eu falei assim
“Eu vou continuar sendo Sem-Terra, que é a minha identidade. Só
que a senhora vai continuar limpando este chão”. Aí, sabe, nesse dia,
eu estava até boa... Fui embora. Quando foi outro dia, saiu o dinheiro
pra gente tá fazendo a compra. Aí eu chamei “Vamos lá! Vamos”. E
fomos pra lá. Fizemos manifestação, entramos, carimbamos [com
pés de terra] todinho o mercado. É uma coisa assim que eu acho que
vale a pena e ela... Aí nesse dia, fomos lá conversar com o gerente, a
respeito dela. Então, desse dia pra cá, ela melhorou. Vale a pena ela
chegar pra nós e conversar, não bater o rodo nas nossas pernas, né.
Tinha pessoas que saiam de lá chorando. Então, é uma coisa assim
que, “é da roça, é da roça!”. Entendeu?
Também Marta se junta na partilha da experiência de
discriminação, vivida em outro supermercado, num relato com
tom de desabafo.
Marta: Só que eu fui num mercado, o de baixo, fui eu e minha filha
e a gente foi comprar umas coisinhas lá. E... o homem ficava atrás da
gente. Nós estava no corredor ele estava lá. Eu falei “Ah, senhor, o
que que está acontecendo?”. “É porque já me roubaram aqui dentro,
mas se me roubaram não sabem quem é”. Aí eu falei: “Olha, peço
desculpa pro senhor, mas o senhor não precisa andar atrás de mim.
Eu sou Sem-Terra, mas eu não me curvo por pouca coisa. O senhor
pode ficar despreocupado. E também não vou levar mais nada”. Saí
do mercado dele e fui pra outro mercado. Não tem necessidade de
comprar onde a pessoa fica duvidando ou vigiando. Eu acho muito
crítico isso aí, porque é uma discriminação muito grande. Não é só
em mercado... É na maioria dos lugares que às vezes você entra tem
a discriminação do Sem-Terra.
Estas situações trazidas pelos adultos também se
reproduziam com as crianças, no contexto da escola. No
assentamento, não há instituição educacional, o que exige o
deslocamento de crianças e jovens, por meio por meio de
transporte escolar, para as escolas situadas no bairro vizinho ou
em outra localidade na cidade. A mãe de uma delas, também
responsável pelos trabalhos com as crianças, descreve uma das
situações vividas por um de seus filhos.
Samara: E, ontem, [nome do filho] recebeu uma advertência pela
primeira vez. Eu nunca tinha recebido; nenhum dos meus filhos
nunca recebeu, foi a primeira vez ontem. A escola me ligou pedindo
pra eu ir lá porque o meu filho, no início da aula, se pegou mesmo
com um menino lá e derrubaram cadeira lá e os dois foram pra
diretoria. Aí eu fui ver o que estava acontecendo. É porque, já fazia
dias que, o [nome do filho], né, é da oitava série, fazia dias que ele
falava pra mim que o menino chegava pra ele, a hora que ele chega
na sala, o menino fala assim: “E aí, olha os pé do sem-terra. Olha os
pé do sem-terra!”. Mas ontem, ele apelou mesmo com o menino
porque o menino falou assim: “Nossa, além de vocês serem semterra vocês são fedido!” Aí ele apelou com o menino “Não tô fedido,
não!”. “Ah, sem-terra é fedido mesmo moço”. Aí ele apelou, aí
133
brigaram os dois e foram pra diretoria. Aí falou ela assim “Ah, você
e ele devem ser do mesmo jeito”. Aí já colocou assim, “se esse da
cidade já tem esse modo, imagina um sem-terra também”, né. Daí
meu filho disse “Não. Eu nunca vim pra diretoria. Pode olhar melhor
aí”. Aí ela olhou “Ah, é mesmo, é verdade. É, mas como eu já liguei
pra sua mãe agora não tem jeito” ((simula fala da professora)).
Outros dois assentados contam sobre a reação das
crianças e da escola na tentativa de lidarem com as marcas de
terra que identificam, principalmente, os lugares de
pertencimento das crianças assentadas.
Lúcio: A faxineira da escola ela pediu pra mim assim “Oh, Lúcio,
não tem como você fazer uma cirandinha com essas crianças de
vocês? A gente reconhece que lá tem barro, tal. Faz uma cirandinha
com eles, de lá pra cá, quando for entrar no portão e faz uma filinha
deles e vê, tem essa torneira aqui, para eles indo limpar os pezinhos
deles, porque, quando eles chegam na classe, os outro coleguinha
fica apontando. Aí fica, tem criança que fica chorando porque sujou
a classe”. Aí ela falou “Não é discriminação. É pra ajudar eles, prá
não ficarem discriminado entre eles”.
Ruth: É uma coisa que assim, que a gente presencia todos os dias.
As nossas crianças, as nossas crianças elas usam dois sapatos. Um,
elas entram até o ônibus e o outro, a maioria, quando tá chovendo,
elas tiram aquele e põem o outro, e põe num saquinho e deixa lá
dentro do ônibus mesmo, né. Elas que sentem na pele dentro da sala
de aula e dentro da escola.
A discriminação e o preconceito vividos no bairro,
manifestados por adultos e por outras crianças na escola, são
enfrentados de diferentes formas pelos assentados.
Ruth e Marta procuram impor, na relação com aquelas
pessoas, uma condição de dignidade, num movimento em que
reafirmam suas identidades de sem terra e reivindicam o
reconhecimento de si enquanto pessoa e enquanto membro de
um grupo. No caso de Ruth, ela relata com prazer o dia em que
retorna ao supermercado e exerce ali sua posição de
superioridade, inclusive “carimbando” o chão com terra. Seu
movimento de afirmação de identidade provoca ainda, em
resposta, uma fala que coloca a faxineira em uma condição
inferior em relação a ela, assentada.
Estas trocas permeiam as relações dos sujeitos em
interação no espaço híbrido, mas ao mesmo tempo também
homogêneo em reação à classe social, dividida pela inserção
ou não no projeto do assentamento. Como posicionamento de
superioridade, Samara relata que outra faxineira lhe diz sobre
sua decisão de não participar do assentamento: “ah, eu dei a
vaga pra quem precisa, imagina, eu não preciso daquilo lá”.
As crianças, por sua vez, desenvolvem estratégias
também diversas: choram, carregam sapatos adicionais, usam
sacos plásticos nas pernas, brigam na defesa de si mesmas.
134
Reações que, por vezes, buscam um distanciamento da
identidade de sem terra e, por outras, procuram defendê-la.
Professores e funcionários da escola, ao tentarem lidar com a
situação e ajudar as crianças, não raro, reforçam preconceitos.
Este processo de forte tensão, que incide na vida e na
auto-identificação dos assentados, modifica-se ao longo do
tempo. Outras estratégias são criadas que passam
principalmente pela abertura do assentamento para que os
moradores do bairro e da cidade conheçam sua realidade e suas
propostas.
Samara e Valter, na entrevista realizada em 2013, já
transcorridos dez anos da chegada ao local, afirmam sobre a
relação com a cidade:
Samara: Eu acho que é boa. Às vezes, eu não posso dizer 100%
assim, que nem tudo é... assim. Eu vejo que vai sempre melhorando.
Porque no início, as pessoas quando não conhecem e tem um
acampamento, ali perto, as pessoas, por falta de conhecimento, fala:
“Ah...”. Ficam meio cismadas, meio com medo. Depois começam a
conversar com as pessoas, conhecer as pessoas e daí, pouco a pouco,
começam a vir no assentamento, começam a levar os produtos. Às
vezes, conhece alguém, faz amizade... Nem vendo, falo “Pega!”. Dá
milho, dá uma abóbora. Faz amizade com todo mundo. A gente anda
na cidade e já conhece as pessoas, e é conhecido.
Valter: Hoje em dia está muito tranquilo. O pessoal leva os produtos
ali, o pessoal do bairro vem aqui dentro também passeando, fazendo
caminhada.
O estranhamento inicial, em grande parte ligado ao
imaginário acerca do movimento social que identifica os
assentados – o MST –, com o passar do tempo, dá lugar a
relações de aproximação. Para os assentados, é o conhecimento
que quebra as visões pré-concebidas, mediadas pelos meios de
comunicação e pelos discursos do senso comum.
As práticas de aproximação são variadas, com
iniciativas que partem tanto dos assentados como de diversos
segmentos sociais. O assentamento passou assim a receber,
constantemente, aqueles que manifestavam interesse em
conhecer aquela dinâmica social, como por exemplo,
professores da rede pública e de centros de pesquisa,
estudantes universitários, assentados de outras localidades do
país e a mídia local.
Este movimento colaborou para fortalecer os laços
sociais, mas, também, a auto-identificação positiva dos
assentados no pertencimento àquele espaço, transformando-o
em lugar de auto-referência e de vida. Quando se considera
que as origens dos assentados não se encontram naquele lugar,
este movimento, entendido como apropriação do espaço, tornase importante para suas identidades e seus processos de
enraizamento.
135
As dinâmicas de troca entre o assentamento e a cidade,
dada a liminaridade do espaço, são bastante intensas.
Conforme ressalta Samara, ao responder sobre o por quê da
mudança nas relações: “Eu acho que é a convivência do
assentado... o assentamento e a cidade... Esta coisa de estar
indo lá na cidade e eles vindo pro assentamento”. As
amizades, as relações de parentesco com moradores da cidade,
a inserção mista das famílias em atividades agrícolas e
empregos na cidade, a venda de produto, os usos partilhados
dos serviços e equipamentos púbicos, por exemplo, vão
construindo redes de relacionamentos sociais e afetivos que
aproximam e misturam os moradores do assentamento e da
cidade.
As identidades previamente concebidas de sem terra
aos poucos são reconstruídas a partir de relações concretas. A
essa identidade renovada, somam-se aquelas de mãe,
trabalhadora, colega, amiga. Diferenciações iniciais dão espaço
para identificações posteriores, sem que isto signifique a perda
da diferenciação socioespacial dos grupos, que se relacionam
nos limites borrados entre o assentamento e o bairro e entre o
assentamento e a totalidade da cidade.
3.2 A relação entre os adultos e as crianças: cuidados no
espaço fronteiriço
A proximidade com a cidade, inerente à proposta da
Comuna da Terra, também tem efeitos nas práticas educativas,
mais particularmente, nas expectativas que os adultos criam na
formação de seus filhos.
Realizar o desejo de voltar ao ambiente rural, para
muitos, significa também garantir aos filhos uma educação
diferenciada daquela acontecia na cidade. Saul, expressa este
desejo da seguinte forma:
Saul: Meus meninos é dentro de casa, não é moda antiga, mas a
gente explica como é que é a vida aqui dentro, como é o
comportamento daqui, o comportamento lá de fora. Porque se você
planta hoje, daqui dez anos essa semente nasce, daqui cinco anos.
Tem hora que a semente brota antes, tem hora que demora, mas ela
nasce. Então este comportamento aqui vai servir pro dia de amanhã.
Vai servir prá família deles. Eles tão plantando a semente. Vão falar:
“meu pai criou desse jeito”. Se tiver certo, pega aquela semente e
conserva. A família vai criando a tradição. Meu pai, nós era da roça,
mas tinha conhecimento de vida.
A educação pensada por Saul contrapõe os
comportamentos da cidade aos do campo. Cidade para ele é
lugar de “perigo” enquanto a roça significa “sossego”.
Resgatar o rural de sua infância representa retomar as tradições
familiares e, consequentemente, vincular as gerações.
136
O assentamento também representa fartura, o que
fornece as condições materiais para a educação e o cuidado dos
filhos:
Saul: Você tá dando um alimento saudável pros filhos, um frango
criado no quintal. É um porquinho; você vai lá no chiqueiro e mata,
e joga na mesa. As crianças veem aquilo, já criam um ânimo de vida.
As possibilidades que o espaço do assentamento cria
para as crianças foram também destacadas por Samara como
aspecto positivo em relação à cidade:
Samara: Essa coisa do espaço, de ficar mais livre, de ter, de poder
sair, poder brincar. E lá na cidade, os espaços são menores, tudo
mais limitado.
São comuns as manifestações dos adultos de que as
crianças do assentamento são diferenciadas em relação às da
cidade, são privilegiadas pelo espaço amplo, possuem maior
liberdade de locomoção, convivem com o ambiente natural,
conhecem os processos de vida e de morte de plantas e
animais, podem subir em árvores, comer frutos frescos e nadar
no rio. Vários relatos aparecem neste sentido, em diferentes
momentos de nossa inserção no assentamento.
Essas descrições trazidas pelos adultos, em alguns
momentos, aproximam a infância de seus filhos à vivência da
infância pessoal em área rural. Idealizam assim a infância de
seus filhos nas lembranças de suas infâncias. Manifestam, no
engajamento ao movimento social e na conquista da terra, a
busca de condições que concretamente permitam que seus
filhos tenham estas vivências.
Em outros momentos, ao contrário, essas descrições
aparecem para dar força ao argumento de que estão
construindo alternativas diferentes às suas infâncias. Por
exemplo, em uma das atividades desenvolvidas em 2008, Zélia
afirma:
Zélia: acho que dou muito valor a uma criança, porque eu não
tive...a minha infância. No tempo de eu aproveitar a infância, eu, não
só eu, como meus irmão, os dois mais velhos, nenhum deles teve.
Desde pequenininho já tava no meio da roça trabalhando, ajudando
meu pai, minha mãe... pobre, eles precisava disso.
A volta à roça, nos limites da periferia urbana, requer,
entretanto, a negociação de imagens e concepções acerca do
rural atual que, por vezes, aparece mais fundado em uma
percepção romantizada e polarizada em relação à cidade do
que necessariamente real. A própria Samara, de alguma forma,
menciona as insatisfações das crianças pela escolha dos pais:
“Os que vieram mais velhos, eles não se identificaram muito.
Eles acham assim, que tem mais facilidade na cidade”.
137
A preocupação nos limites com a cidade é enunciada
principalmente em relação às drogas. Saul expressa os
intercâmbios dos filhos e a proteção assegurada no respeito
que ele construiu: “Até esses carinhas, maconheiro, esses
meninos de maloca, jovenzinho, quando os meus meninos
passa, fala: ‘Aquele é filho do Saul. Deixa ele quieto’”. Ruth
também verbaliza a presença desta preocupação, em uma das
atividades videogravadas em 2008. Ela havia participado de
uma reunião do Conselho de Segurança do bairro e informava
sobre os debates gerados acerca da presença das drogas nos
arredores do assentamento:
Ruth: Eles tão com um grande problema com relação ao...
entorpecente em Ribeirão Preto. E, assim, tá aumento a cada dia. E a
gente vê isso mesmo que tá aumentando, se ramificando e a nossa
preocupação aqui dentro é se ramificar aqui dentro. A gente tá
observando tudo isso e a gente vê realmente que tem essa grande
possibilidade, infelizmente, de tá vindo aqui pra dentro, né. Porque,
no mesmo momento que eles estão aqui dentro, estão lá fora. Eles
estudam lá fora, os amigos são de lá de fora. Então, é conscientizar
mesmo, é vê o lado bom e o lado ruim dessa...
Além do trânsito diário e das relações construídas,
também as próprias famílias, às vezes, dividem-se morando
parte na cidade e parte no assentamento. Mestre, por exemplo,
possui três filhos e apenas uma delas mora com o pai; os outros
dois vivem com a ex-esposa na cidade. Esta forma de partilhar
a educação dos filhos entre membros da cidade e do
assentamento não é rara, seja com ex-companheiros, seja com
companheiros ou parentes, como, por exemplo, avós, morando
na cidade. Segundo Mestre, além da filha que mora com ele,
outro filho pensa em se engajar no projeto de sistema
agroflorestal do assentamento:
Mestre: A minha preocupação qual é? É deixar isto para as
próximas gerações, construir isto. Eu fico feliz de ver o Dinho [filho
de um amigo] empenhado, isso é muito fantástico, fazendo cursos.
Essa relação com a família é muito interessante. Dois dos meus
filhos têm bastante interesse.
O envolvimento e a vinculação das gerações mais
novas ao assentamento e à cidade acontecem de diferentes
formas. Crianças que nascem no assentamento possuem,
segundo os assentados, relações mais integradas àquele
ambiente. Uma dificuldade maior, neste sentido, é mais
frequente entre os filhos mais velhos. A juventude sofre com
mais intensidade as pressões da cidade do que as crianças
menores.
Do ponto de vista dos assentados, estar no
assentamento é parte de um projeto negociado pelos membros
da família, em seus diferentes papéis e gerações. Entretanto, o
138
aspecto geracional também aparece nas práticas coletivas
organizadas para as crianças como forma de partilhar a
vivência no espaço do assentamento. Essa mediação alinha as
gerações em torno de um projeto coletivo. Lúcio –um dos
assentados responsáveis pela organização das atividades com
as crianças – assim se manifesta sobre as expectativas em
relação ao trabalho desenvolvido:
Lúcio: Todas as coisas que nós fazemos com as crianças nós
mostramos pra eles como foi construído. Quando chegar outras
crianças, essas que começaram primeiro, podem falar assim: “Nós
começamos dessa forma”. Tem uma história lá no final. A gente tem
que trabalhar dessa forma com eles, né. Porque quando chegar lá no
final, aí tem uma história bem bonita.
Ao depositar as esperanças de continuidade das
atividades coletivas com as crianças, Lúcio avalia
positivamente as ações desenvolvidas hoje, capazes de serem
contadas posteriormente com certo orgulho.
Este espaço das atividades coletivas e partilhadas
constrói-se como uma ferramenta que os assentados criam e
que cumpre múltiplas funções. Para os assentados, ele é visto
como um instrumento importante para a apropriação do espaço
pelas crianças e para a construção da identidade sem terra. É
também apontado para aproximar as gerações no assentamento
e vincular os sujeitos de diferentes idades nos projetos
familiares e coletivos. Nossa análise, contudo, focada pelo
interesse nas tensões com o entorno, mostrou que outra função
é cumprida pelas atividades coletivas. São várias as
manifestações dos responsáveis pelas atividades com as
crianças sobre possíveis contribuições deste trabalho para o
fortalecimento das crianças no enfrentamento do “mundo lá
fora”. Estas manifestações oscilam do otimismo às limitações
desse trabalho diante da força deste mundo.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acompanhar as significações dos sujeitos a processos
vividos na implantação de um assentamento, baseado na
proposta de Comuna da Terra, significa a imersão em um
contexto bastante complexo, que faz questionar algumas de
nossas pretensas certezas, por exemplo, sobre a viabilidade da
reforma agrária na atualidade, as relações de poder entre
campo e cidade, as expectativas dos adultos em relação à
educação das crianças. Muitas das vezes, estas certezas
apoiam-se em construções culturais que fragmentam e
polarizam a dinâmica social e pouco contribuem para seu
entendimento.
No caso do assentamento estudado, é evidente que os
sujeitos, embora não desempenhassem atividades agrícolas
quando do envolvimento com o movimento social, desejavam,
139
para si e para seus filhos, habitar em um espaço que lhes
permitisse uma vinculação, mesmo que simbólica, com o rural
que um dia fez parte de suas vidas. Como diz Saul: “Nada
melhor do que um lugar assim. (...) Lugar saudável. Perto da
cidade. Tudo que você planta dá”.
Esse sujeito, múltiplo que é pela sua vinculação híbrida,
questiona discursos, práticas e políticas que se orientam por
concepções dicotômicas de campo e cidade e,
consequentemente, dos sujeitos que neles habitam. Esse
sujeito, agora assentado, não encontrou espaço na vida das
periferias urbanas. Na concretude dos laços que estabelece
com a cidade e pela mobilidade que impõe interconexões
diárias, realiza-se assim, sendo híbrido mesmo. Exige, por este
motivo, novos discursos, práticas e políticas que o reconheçam
nesta sua identidade. Sua permanência na luta por aquele lugar
– quando outros tantos desistiram em algum momento da longa
jornada até a conquista de condições mínimas de moradia e de
vida – atesta a intensidade do desejo do espaço fronteiriço para
a sua realização pessoal e familiar.
Esse processo, entretanto, não se dá de forma
harmônica. Ao contrário, são tensas as relações, permeadas
que estão de valorações, imagens e concepções mútuas sobre
os grupos sociais aos quais pertencem os sujeitos que ocupam
aqueles espaços. Essa intensidade, no caso acompanhado, foi
maior no início do assentamento, que fez mudar drasticamente
a paisagem local e os usos dos espaços coletivos, questionando
a infraestrutura e provocando os sujeitos a olharem-se por
meio do olhar do outro. Nesse processo, preconceitos mútuos
foram vividos, associados principalmente à vinculação do
espaço ao grupo identitário dos assentados (sem terra).
Afetaram adultos e crianças, reproduziram-se por diversos
sujeitos, materializaram-se por meio de ações de diferentes
gerações.
Contudo, o que o caso nos indica é que as próprias
relações de proximidade e interdependência entre o
assentamento e o entorno constituíram a base para as
desconstruções de concepções, medos e receios imaginados.
Neste processo, a abertura do assentamento para o “externo” e
as estratégias de interação promovidas, ao longo de dez anos
de sua existência, produziram relações que hoje atestam
apropriações do espaço da cidade pelos assentados e do
assentamento pelos habitantes do entorno.
Estas relações, que falam de um movimento de
diferenciação discriminativa em direção a uma integração
socioespacial, não significam, contudo, ausência de receios,
desejos de manutenção de alguns limites e diferenciações de
valores. Estes processos evidenciam-se com mais clareza
quando se volta o olhar para as relações intergeracionais e para
as expectativas dos pais em relação à criação dos filhos
naquele espaço.
140
São as vivências das novas gerações que explicitam, na
atualidade, os desafios de se morar nas áreas fronteiriças. Para
os assentados, estar no assentamento pode permitir recuperar
parte do que significam como mais característico dos modos de
vida rural – maior tranquilidade, vida mais saudável, contato
com a natureza –, perdido nas suas histórias pessoais. Nos
limites da cidade, entretanto, são fortes os “perigos” que ela,
cidade, impõe para a manutenção deste projeto. Assim, no
espaço projetado fronteiriço, diálogos e tensões se estabelecem
entre a geração antecessora e a atual. Ao mesmo tempo em que
os adultos projetam os desejos e sonhos da geração atual para
as próximas gerações, eles sentem esses projetos ameaçados
pelas pressões da cidade. Morar na fronteira é também lidar
cotidianamente com esse risco.
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2005.
143
6
Redes de cuidado de crianças com paralisia cerebral*
Network of care for children with cerebral palsy
Camila Ferrari de ALMEIDA: [email protected]
Endereço: Av. Tancredo Neves, 2782, Caminho das Árvores, Salvador, Bahia Brasil - 41820900.
CV: http://lattes.cnpq.br/ 0896592862292987: Psicóloga Hospitalar - Rede SARAH de Hospitais
de Reabilitação - Unidade Salvador. Mestre em Família na Sociedade Contemporânea
(Universidade Católica do Salvador-UCSAL), Especialista em Terapia Familiar e Conjugal.
Elaine Pedreira RABINOVICH: [email protected].
CV: http://lattes.cnpq.br/1594550972937138 - Mestre, Doutora e Pós Doutora/USP.
Docente Adjunto IV do Programa de Pós Graduação em Família na Sociedade
Contemporânea. Pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados/USP. Líder dos GP´s LAPSI
e Família e desenvolvimento humano/CNPq.
144
*Trabalho baseado na dissertação de Mestrado defendida em dezembro/2011 pela UCSAL
(Universidade Católica do Salvador). Título: “Costurando as redes de cuidado de crianças
com Paralisia Cerebral”, orientado por Elaine Pedreira Rabinovich. Local onde a pesquisa foi
realizada: Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação-Unidade Salvador.
BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC
Resumo A Paralisia Cerebral é desordem caracterizada por alteração do movimento secundária a
uma lesão não progressiva do cérebro em desenvolvimento. Este trabalho visou
compreender o processo do cuidar de crianças com grave comprometimento
considerando a rede social da mãe-cuidadora. A pesquisa foi realizada com cinco mães
de crianças atendidas pela Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação - unidade
Salvador. Aplicou-se entrevista semiestruturada e aplicação do mapa de rede, utilizando
a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano para a análise. As mães-cuidadoras
passaram por uma transição ecológica após o nascimento dos filhos: todas
abandonaram suas atividades laborativas e/ou educacionais; a rede social pessoal
encolheu, restringindo-se à família, notadamente mulheres, poucos amigos e ao
Hospital de Reabilitação, donde mostrou-se sobrecarregada e frágil na medida devido a
seus componentes acumularem funções. Estes resultados sinalizam a importância da
família e Centro de Reabilitação e a necessidade de apoio na ação do cuidar.
Palavras-chave Apoio social; mães; paralisia cerebral; paralisia cerebral/psicologia.
Abstrac Cerebral Palsy is a disorder characterized by movement impairment secondary to a nonprogressive lesion of the brain in development. The work aims to understand the caring
process of children with severe severe impairment considering the mother's social
network. The survey was conducted with five participants, children´s mothers follow in
SARAH Network of Rehabilitation Hospitals - unit Salvador. Semi-structured
interviews and network map application were used. The analysis was performed by the
Bioecological Human Development theory. Mothers went through an ecological
transition which began after the birth of the children with cerebral palsy: all mothers
left their work and / or educational activities; the social network was reduced and
restricted to family, revealing womens a few friends and the Rehabilitation center. The
social network seems to be fragile and overloaded of caring work, as the participant
accumulates functions. These results show the importance of the family, the
Rehabilitation Center and the demand of support on the caring process.
Keywords Social support; Mothers; Cerebral Palsy/Psychology.
145
INTRODUÇÃO
A Paralisia Cerebral (PC) é considerada a incapacidade
física mais comum na infância; a teoria médica a define como
sendo uma desordem caracterizada por alterações de
movimento, secundária a uma lesão não progressiva do cérebro
em desenvolvimento no período fetal ou infantil (BAX, 2005).
No Brasil, estima-se que cada 1.000 nascidos vivos, sete são
portadoras de PC (PIOVESAN, VAL FILHO, LIMA,
FONSECA, MÜRER, 2002).
Neste diagnóstico, encontra-se um amplo espectro de
apresentações, destacando-se a tetraplegia espástica, na qual se
pressupõe que houve dano cerebral difuso e grave, com lesão
piramidal acometendo os quatro membros, tronco e pescoço.
Nestes casos, o prognóstico de marcha é desfavorável e esperase uma maior associação com comorbidades, como por
exemplo, distúrbios de deglutição, fonação e respiração,
epilepsia e retardo mental (CAMPOS DA PAZ JR.,
BURNETT, NOMURA, 1999).
Desde 1991, a Rede SARAH de Hospitais de
Reabilitação tem prestado assistência médica qualificada,
formando profissionais de saúde, desenvolvendo pesquisas
científicas e gerando tecnologias em reabilitação, sendo hoje
referência nacional e internacional na área. Este histórico
possibilitou a criação de um método próprio de tratamento,
denominado Método SARAH (JOHNSON DA, ROSE, 2008;
SÁ, RABINOVICH, 2004; WOOLFSON, 2004). A proposta é
a oferta de acompanhamento longitudinal às múltiplas
demandas da PC fundamentado em um método de trabalho
próprio, cuja família, criança e centro de reabilitação compõem
uma grande equipe (SÁ, RABINOVICH, 2004).
Uma desordem neurológica na infância afeta a família,
na medida em que aumenta o nível de estresse entre os pais. Os
cuidadores assumem de forma recorrente múltiplo e novos
papéis, agregando responsabilidades (SÁ, RABINOVICH,
2004).
Uma fonte importante de apoio neste contexto pode ser
oferecida pelas pessoas que são significativas para estas mães,
ou seja, pelos indivíduos que compõem a sua rede social. Este
termo está relacionado a um grupo de referência que se torna
co-construtor da identidade do sujeito, colabora para o
desenvolvimento de sentimentos de bem-estar, oferece suporte
para o enfrentamento de crises e estimula hábitos de cuidado à
saúde (SLUZKI, 1997).
A rede social pessoal pode ser registrada em forma de
um mapa mínimo, conforme proposto por Sluzki (1997)7. Este
recurso configura-se um instrumento de coleta de dados pelo
seu potencial gráfico, visto que facilita a compreensão das
interações que os indivíduos estabelecem (CAMINHA, 2002;
FARIAS, MORE, 2012; SANTOS AD, MORE, 2011). O
146
mapa pode ser sistematizado em quatro quadrantes (família,
amigos, relações de trabalho/ escola, relações comunitárias),
sobre os quais se inscrevem três áreas (relações íntimas,
relações cuja intimidade é menos expressiva e relações
ocasionais). O conjunto dos habitantes desse mapa mínimo
constitui a rede social pessoal do informante, sendo
caracterizado como sendo um registro estático do momento a
que se refere (vide exemplo adiante).
O modo pelo qual o cuidador é constituído só pode ser
compreendido através da observação das relações e do próprio
processo. Neste sentido, a abordagem bioecológica do
desenvolvimento humano (BRONFENBRENNER, 1995)
auxilia esta compreensão, na medida em que sinaliza a
importância do desenvolvimento ser estudado globalmente.
Neste modelo, são representados quatro aspectos
multidirecionais inter-relacionados, o que é designado como
modelo PPCT: "pessoa, processo, contexto e tempo".
A Pessoa é compreendida a partir das constâncias e
mudanças na vida do ser humano em desenvolvimento, no
decorrer de sua existência. Consideram-se, nesta análise, as
características do indivíduo, suas convicções, nível de
atividade, além de suas metas e motivações. O Processo
proximal envolve o a interação da pessoa com outras pessoas,
contextos, objetos e símbolos. O contexto subdivide-se em
níveis de interação entre os quatro sistemas, que
Bronfenbrenner
(BRONFENBRENNER,
1995;
BRONFENBRENNER, MORRIS, 1998) descreveu como um
meio ambiente ecológico. O primeiro deles, o microssistema é
definido como o espaço de interação de diferentes pessoas, em
relações face a face, baseadas em reciprocidade e estabilidade.
O conjunto de microssistemas consiste no mesossistema. Este
lócus está em constante modificação, pois é ampliado /
reduzido / modificado ao longo da vida. O exossistema foi
postulado como um ou mais ambientes na qual a pessoa não
participa face a face, mas cujas decisões tomadas, direta ou
indiretamente,
influenciam
na
sua
vida
(BRONFENBRENNER, 1995). O contexto mais amplo,
denominado macrossistema, abrange todos os outros sistemas
mencionados até aqui. Nele estão presentes os valores
culturais, sociais, religiosos, políticos, educacionais, legais e
econômicos, bem como a ideologia de uma sociedade. A
dimensão Tempo possibilita a compreensão das mudanças e
continuidades que ocorrem ao longo do desenvolvimento, pois
consiste na sequência de eventos que constituem a história e as
rotinas de uma pessoa. Funciona como um organizador social e
emocional.
Muitos trabalhos em saúde têm sido desenvolvidos
utilizando conceitos de Bronfenbrenner (BONFIM, BASTOS,
CARVALHO, 2007; CECCONELLO AM, KOLLER, 2003;
POLETTO, KOLLER, 2008; RABINOVICH, SANTANA,
147
2008). Neles, a abordagem bioecológica do desenvolvimento
humano mostrou-se útil para compreendermos o processo de
cuidar uma vez que parte da premissa de que o
desenvolvimento só pode ser entendido se devidamente
contextualizado e a partir da interação dinâmica de quatro
dimensões:
pessoa,
processo,
contexto
e
tempo
(RABINOVICH, SANTANA, 2008; MOLINARI, SILVA,
CREPALDI, 2005).
Neste estudo, pretende-se descrever a partir do ponto
de vista das mães, o processo de cuidar de crianças com PC
tetraplegia espástica. A relevância desta produção reside na
necessidade de traçar os objetivos do programa de reabilitação
em consonância com as possibilidades da cuidadora em
implementá-lo, haja vista que é centrado, entre outros aspectos,
na compreensão do diagnóstico e treinamento da família.
MÉTODO
A pesquisa teve cunho qualitativo de caráter
exploratório e descritivo, com enfoque indutivo, devido à
flexibilidade e adaptabilidade de trabalhos desta natureza
(BONFIM, BASTOS, CARVALHO, 2007). O projeto foi
devidamente apresentado e aprovado à Comissão Científica da
Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação; posteriormente,
submeteu-se a apreciação do Comitê de Ética desta mesma
instituição (CONEP nº. 710).
A amostra seguiu o seguinte critério de inclusão: serem
mães de crianças com paralisia cerebral – tetraplegia espástica,
funcionalmente classificada como nível V no Sistema de
Classificação da Função Motora Grossa (GMFCS) e Sistema
de Classificação da Função Manual (MACS); com idade
variando entre quatro e sete anos; apresentando como
comorbidade a obstipação, epilepsia, disfagia e retardo mental
inespecífico; serem as principais cuidadoras dos filhos;
residirem em Salvador; serem alfabetizadas; não apresentarem
transtornos de humor; estarem envolvidas em um programa de
reabilitação proposto pela Rede SARAH de Hospitais de
Reabilitação – unidade Salvador - por, pelo menos, um ano;
não realizarem tratamentos desta natureza em outros serviços.
No universo de famílias aptas para participar, a frequência
regular e com intervalos próximos foi um critério de inclusão
por facilitar o acesso às mesmas. Foram excluídas do estudo as
cuidadoras que apresentavam muitas faltas não justificadas ou
eram acompanhadas por outra psicóloga na mesma instituição;
estes critérios, somados, definiram uma amostra composta de
cinco participantes que compuseram todo o número de famílias
do Hospital SARAH Salvador com tal perfil. O critério da
idade estabelecido para as crianças foi baseado no grau de
independência esperado para esta fase do desenvolvimento,
148
pois entre 4-7 anos as atividades de vida diária são, no mínimo,
co-participativas.
A coleta de dados foi composta por três momentos.
Inicialmente, foi realizada a leitura do prontuário da criança,
para entender a história da sua patologia e as especificidades
de cuidados. As etapas seguintes sucederam nas próprias
dependências do Hospital (três casos) ou na residência das
famílias (dois casos). O critério de escolha da locação da
entrevista relacionou-se à segurança do bairro de moradia da
participante. As participantes responderam questões básicas
que possibilitaram à compreensão das suas condições sócio
familiares e posteriormente, participaram de uma entrevista
semiestruturada, sendo sua íntegra gravada e transcrita para
possibilitar a análise dos dados. Por fim, foi realizada a
composição do “mapa de rede” (SLUZKI, 1997). A análise de
dados foi composta de três etapas complementares no que diz
respeito à operacionalização das informações colhidas:
ordenação das informações, classificação dos dados e análise
final. Tais dados sofreram a análise do modelo PPCT,
parcialmente. O foco desta análise residiu diretamente na
pessoa, contexto e tempo, devido à complexidade de uma
avaliação de todo o modelo. A dimensão tempo, que
necessariamente investiga a influência das mudanças e
continuidades ao longo do desenvolvimento do sujeito, foi
inferida a partir dos relatos das participantes. Não obstante,
sabe-se que o aspecto processo proximal está presente em todo
o trabalho de forma indireta, na medida em que envolve a
relação entre a pessoa, os seus múltiplos papéis e atividades
realizadas em todos os contextos, ao longo do tempo.
RESULTADOS
Apresentaremos apenas um caso seguido, contudo, da
discussão envolvendo todos os casos estudados.
Luciana e Rosa
Luciana, 32 anos, é mãe de Rosa, sete anos. Reside
com seus cinco filhos (quatro meninas de 14, 13, oito e sete
anos - e menino de 11 anos), em casa alugada. As crianças e
sua mãe compõem a família de Luciana. A gravidez não foi
planejada; a princípio, o médico acreditou tratar-se de um
mioma, o que gerou atraso para o início do pré-natal. Com 31
semanas de gestação, evidenciou-se malformação encefálica
através de ultrassonografia; a mãe não sabia, até então, dos
riscos que a criança estava exposta. Rosa nasceu prematura de
oito meses, por meio de parto normal, com período expulsivo
rápido. Nega uso de oxigênio, mas evoluiu com icterícia,
necessitando de fototerapia por um dia. Recebeu alta no
segundo dia de vida sugando bem. Mesmo não tendo claro o
diagnóstico, realizou fisioterapia e hidroterapia externamente,
149
mas acabou interrompendo estes tratamentos porque a filha
chorava muito, mostrando-se desconfortável.
A família foi encaminhada para o hospital SARAH por
sugestão de uma agente comunitária, quando a criança tinha
três anos de idade; guardava, na época da admissão, a
expectativa de descobrir o motivo do atraso no
neurodesenvolvimento, pois já tinha passado por outros
especialistas (neurologista, pediatra e ortopedista), que não lhe
repassaram nenhuma definição clara. Também gostaria de
receber uma prescrição de cadeira de rodas, visando à
facilitação dos deslocamentos da criança. Em todas as
consultas para seguimento individual a cuidadora compareceu
sozinha.
Rosa passou a conciliar bem o sono, após introdução de
medicação específica. A criança permanece a maior parte do
tempo na cama, cadeira de rodas, na rede ou sentada entre as
pernas dos familiares. Nas atividades de vida diária, Luciana
informa ser difícil o momento de troca de roupa, devido à
hipertonia dos membros superiores. Estudou até a 2ª série e
considera sua leitura/escrita pouco fluentes; valora muito o
estudo, e por isso, decidiu retomar os estudos este ano, mas
conseguiu frequentar apenas dois dias letivo por conta da
difícil rotina.
Luciana trabalha esporadicamente como lavadeira e
recebe pouco retorno financeiro com esta atividade. Nesses
momentos, Rosa fica sob os cuidados dos irmãos. Basicamente
a família sobrevive com o Benefício de Prestação Continuada
(BPC) do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS),
concedido a Rosa. Luciana não sabe o paradeiro do pai das
crianças há seis anos, pois fugiu de casa com todos os filhos
desejando quebrar um ciclo de violência física e psicológica
que já perduravam anos. A decisão aconteceu após a
descoberta da deficiência de Rosa.
Luciana não frequenta igreja e não possui uma religião.
Possui fé em Deus independente de qualquer prática religiosa e
reza diariamente.
Figura 1: Mapa de Rede – Luciana
150
DISCUSSÃO
Definições do Cuidar
As participantes definiram o cuidar como a assistência
e suprimento diário das necessidades básicas da criança, tais
como a oferta de alimentação, controle das medicações e
banho, consequentes de um vínculo afetivo, identificado como
“amor”. O cuidar foi identificado como uma tarefa acoplada à
maternidade (BONFIM, BASTOS, CARVALHO, 2007) ao
considerá-lo uma condição naturalizada do feminino. A
antítese do cuidar, sob a ótica dos papéis familiares foi
apresentada por Patrícia, ao referir-se ao esposo e pai de Clara:
“O pai passa a semana toda ausente e diz que cuida dela. Mas
ele só pega, bota no colo e fica assistindo televisão. Ele não
olha pra ela, não faz nenhuma brincadeira para ela se
desenvolver, não dá comida nem remédio. Eu não acho que
isso seja cuidar”.
O cuidar de uma criança portadora de necessidades
especiais implica em uma atenção peculiar, um “cuidado
dobrado”. O desgaste e cansaço foram apontados por todas as
mães como consequência do cuidar, mas compensado pelo
retorno que ele proporciona.
No que tange à satisfação com o cuidado oferecido,
todas as participantes acreditam que fazem o melhor dentro do
possível, embora refiram que a condição financeira interfere
diretamente. A presença, frequência e intensidade das
alterações clínicas foram relacionadas à qualidade e oferta de
cuidado.
Cuidar e a Pessoa
A lesão cerebral, assim como outros acontecimentos
inesperados, pode ser considerada como um evento crítico que
desencadeia respostas em todo o grupo familiar
(BRONFENBRENNER, MORRIS, 1998). Diante dele,
algumas mudanças subjetivas ocorreram e agregaram valor à
história de vida das mães-cuidadoras. A sabedoria foi uma
característica aditada neste percurso, que surge associada à
capacidade de eleger prioridades, sem a angústia corrosiva ao
descartar o objeto preterido. Luciana, por exemplo, frisa que,
apenas após o nascimento de Rosa, conseguiu finalmente
romper um ciclo de violência que já se estendia por 15 anos,
advinda da sua relação com seu ex-marido: “foi ela que me deu
força, eu não podia ficar mais naquela casa. Ela precisava de
mim, eu precisava estar inteira pra cuidar dela”. Na época,
Luciana articulou-se com a sua mãe e fugiu de casa com todos
os cinco filhos.
151
A perda da intimidade queixada pelas mães está
relacionada ao prejuízo na privacidade (MOLINARI, SILVA,
CREPALDI, 2005). As pessoas que oferecem suporte tendem a
invadir as fronteiras que delimitam a sua vida. O drama
familiar é exposto reiteradas vezes devido à obviedade do
fenômeno. Os olhares na rua e os questionamentos frequentes,
relacionados à criança deficiente, expõem a deficiência da
família. O esvaziamento dos contatos sociais foi um marcador
na vida de todas as mães participantes do estudo, pois
deixaram de trabalhar ou estudar, alterando significativamente
a sua dinâmica. Com o abandono destas atividades, deixaram
seus anseios e sonhos individuais, canalizando suas energias e
esforços em direção à oferta de cuidado.
A solidão é uma consequência deste processo e
apresenta às mães o caráter paradoxal do cuidado. Dedicar-se
aos trabalhos do lar e cuidar das crianças pode implicar em não
conseguir conciliar ou harmonizar sob alto custo emocional e
físico, duas esferas da vida cotidiana (MOLINARI, SILVA,
CREPALDI, 2005). As mães-cuidadoras sentem-se sós,
mesmo cercadas de pessoas, e dizem não conseguir encontrar o
apoio desejado, o que as leva a sentir o peso do excesso de
trabalho e as irregularidades do desempenho. Neste caminho, a
solidão encontra o cansaço. As mães-cuidadoras estão expostas
a um alto nível de estresse crônico. Este dado merece atenção,
na medida em que é crescente o número de mães solteiras ao
longo das últimas décadas e o aumento da proporção de mães
divorciadas. Assim, o foco das intervenções em saúde deva
levar em consideração o nível do cansaço dos pais devido à
relação direta entre fadiga e qualidade do cuidado (SÁ,
RABINOVICH, 2006).
Cuidar e o Contexto
No microssistema das mães, ou seja, nas relações que
são estabelecidas face a face, destaca-se primariamente à
família. A presença e o apoio regular oferecidos pelas avós
foram significativos. Esta ajuda centra-se na prestação de
cuidados e suporte financeiro à criança, colaborando de forma
próxima com as mães que vivem sós ou assim se sentem.
Novamente é retomado o caráter cuidador da maternidade, pois
neste caso, existe a disponibilidade e conjugação de esforços
de duas pessoas, a mãe e a sua própria mãe. As avós,
independente de estarem aposentadas ou com a vida laboral
ativa, não cobrem todas as necessidades de cuidados das
crianças; não obstante, sua ajuda é muito valorizada: “não sei
o que seria de mim sem minha mãe. Ela é velhinha, você
precisa ver, nem carrega Rosa direito, mas ela me ajuda
assim, com palavras” (Luciana). Apenas um avô participa do
mapa de rede das mães; este membro oferece ajuda financeira
o que recorda os papéis sociais de provedor econômico, ainda
152
aliado à figura masculina, mesmo este cenário estando em
franco transformação (REINA, RABINOVICH, 2010).
As mães-cuidadoras contam com a participação
ocasional de outros familiares, como irmãs, que compartilham
apenas o trabalho doméstico. O marido, presente em algumas
famílias, não foi identificado como um companheiro que
colabora ou divide as tarefas, independente de exercer
atividades laborativas (WOOLFSON, 2004; URBANO,
HODAPP, 2007) em relação à conjugalidade nas famílias
afetadas pela deficiência. Os referidos autores consideram que,
em relações já frágeis, a deficiência tende a ser mais um fator
tensional. Não houve divórcio após o nascimento das crianças.
Dois relacionamentos terminaram ainda na gestação; estes pais
não ajudam financeiramente, não visitam ou estabelecem
algum nível de contato com as crianças, o que configura
abandono.
No microssistema, é ausente ou pouco frequente a
utilização dos apoios formais, tais como escola, creche,
auxiliar do lar, ou informais, como as babás eventuais. Esta
falta de apoio, tanto institucional quanto familiar, coloca as
mães em situação de risco, advindos do trabalho diário. O
Hospital SARAH foi um microssistema importante elencado
pelas mães como fonte de suporte, na medida em que compôs
todos os mapas de redes das participantes. A ajuda material e
de serviços, cuja colaboração é baseada em conhecimentos
especializados, foi sinalizada como fonte de segurança. Os
profissionais de saúde externos ao centro de reabilitação foram
lembrados e alguns deles compõem a rede das mãescuidadoras, principalmente pela ajuda material e de serviços.
Por não serem profissionais de saúde e por tratar-se de
cuidados dirigidos ao filho, questionam recorrentemente suas
competências. Tais dificuldades se agigantam com a
constatação da necessidade de aprender a realizar
procedimentos ou técnicas, tais como a alimentação via
gastrostomia, identificação das múltiplas manifestações de
crise convulsiva e cuidados com a higiene. Acrescenta-se a
isso a sensação de impotência ou despreparo para a execução
de manobras tão específicas. Medo de não conseguir, medo de
errar e causar desconforto são desabafos recorrentes. Neste
momento, o centro de reabilitação também assume a função de
regulação social, reafirmando responsabilidades e papéis,
neutralizando desvios de comportamento.
A função de apoio emocional também foi
desempenhada pelo centro de reabilitação, visando avalizar o
calor e o acolhimento afetivo, tão necessário diante da sua
vivência dolorosa. O acesso a novos contatos foi identificado
como mais um papel deste serviço, pois abriu a possibilidade
de ampliação da rede materna para outras pessoas que não
faziam parte dela, seja através da participação de atividades em
153
grupo, seja incentivando a retomada de atividades educacionais
ou laborativas, quando possível.
A instituição igreja não foi apontada como alicerce no
processo de cuidar. Duas mães tinham uma vida religiosa
ativa, frequentavam e participavam desta comunidade antes de
serem mães. Devido à irritabilidade e choro das crianças diante
de barulho intenso e gente aglomerada, abandonaram esta
prática. Entretanto, a relação com Deus foi evidenciada, pois
neste processo solitário de cuidar, segundo elas, Deus oferece
companhia.
O mesossistema, que corresponde aos microssistemas,
necessita ser compreendido conjuntamente para entendermos o
lócus de desenvolvimento das mães-cuidadoras. Faz-se
necessário analisar a estrutura, funcionalidade e atributos dos
vínculos que compõem a rede das mães-cuidadoras14. Todas as
redes, conforme pode ser observado no mapa abaixo, são
consideradas pequenas, na medida em que são compostas de
poucos membros. Esse dado é preocupante, pois, diante de
qualquer tensão ou reorganização destas relações a rede das
mães pode reduzir, e num efeito contrário, aumentar a solidão.
A densidade é considerada baixa, ou seja, a conexão entre os
membros pode ser considerada pouco significativa, devido à
falta de contato regular entre as esferas que compõem os
quadrantes. Um exemplo deste desenho é o fato das pessoas da
família que oferecem suporte comparecem pouco ao centro de
reabilitação e com a equipe de referência não ter uma relação
direta. Em caso de situações de crise, esta distância retarda a
chegada da ajuda, pois dificulta a comunicação.
Em relação aos atributos de vínculos, os mesmos
componentes assumem múltiplas funções, sobrecarregando-os.
Observamos, igualmente, uma tendência à centralização do
apoio em alguns membros da família, em poucos amigos e
basicamente no centro de reabilitação no quadrante
comunidade, o que fala a favor de pouca flexibilidade. Esse
contexto, ao longo do tempo, pode causar estresse nestas
relações (SLUZKI, 1997). Por outro lado, a intensidade e
frequência do vínculo entre as mães e as pessoas que compõem
sua rede podem ser consideradas adequadas, o que reflete
compromisso com a relação. Este fato é facilitado pela
tecnologia, que permite a comunicação e contato entre os
integrantes que residem fisicamente longe.
Existe uma homogeneidade nas redes, na medida em
que a grande maioria dos seus componentes é do sexo
feminino, tem o mesmo nível cultural e socioeconômico, o que
novamente faz pensar em uma rigidez estrutural. Em relação à
funcionalidade das redes, observamos que a família,
notadamente as avós e irmãs, oferecem apoio emocional, na
medida em que adotam atitudes positivas, como empatia,
compreensão e apoio. A função de companhia social, que
implica na realização de atividades conjuntas, deixa a desejar.
154
As tarefas domésticas podem ser divididas por outras pessoas
que residem com a mãe-cuidadora, mas aquelas que envolvem
a criança são basicamente realizadas sozinhas. O
empobrecimento das redes sociais está relacionado ao processo
de urbanização. O tamanho, densidade e heterogeneidade da
cidade fomentam relações frágeis, transitórias e desconectadas,
inclusive com pessoas que estão fisicamente próximas, tais
como os vizinhos e membros da família extensa. Para estes
autores, a solidão oferta a sensação de desamparo diante da
crise, tais como ao deparar-se com doenças crônicas, por falta
de suporte social.
A estrutura precária dos bairros populares onde residem
também foi foco de queixas. Esta realidade dificulta o trânsito
da família dentro do bairro, à socialização da criança na
comunidade e o acesso das mães em contextos de lazer. O
mundo urbano não está preparado para as adaptações exigidas
pelos portadores de deficiência, sendo projetado apenas para os
considerados aptos (CARVALHO-BARRETO, BUCHERMALUSCHKE, ALMEIDA, 2009); desta forma, a
organização do microssistema sofre influencia do
mesossistema, na medida em que as idéias vinculadas à
segregação, diferença e falta estão fortemente presentes na
cultura. O meio social foi sinalizado como dúbio, na medida
em que oferece sinais contraditórios de preconceito e apoio.
Novamente esta questão relaciona-se com o poder do
macrossistema, aqui representado pela política, valores e
ideologia que perpassam a deficiência, no mesossistema.
O exossistema é definido como o contexto no qual o
sujeito em desenvolvimento não mantém contato direto, mas
cujas decisões afetam sobremaneira a sua vida
(BRONFENBRENNER, 1995). O benefício de renda
concedido pelo INSS oferece a ajuda financeira que garante a
sobrevivência da família; entretanto, as mães-cuidadoras foram
unânimes ao afirmar que este é insuficiente para as despesas.
Como nenhuma delas trabalha regularmente, necessitam fazer
trabalhos esporádicos, pouco remunerados, ou contar com a
ajuda de outras pessoas da família ou amigos próximos. Os
projetos sociais do governo federal foram apontados como
fonte de ajuda direta, sugerindo novamente a relação do
exossistema com o microssistema: “o que me ajudou muito foi
à casa que ganhei do programa minha casa, minha vida.
Quando parei de pagar aluguel sobrou dinheiro pra outras
coisas, comprei até geladeira” (Luciana).
Cuidar e o Tempo
A compreensão das mudanças e continuidades ao longo
da história de um indivíduo possibilita o entendimento da sua
rotina e contexto atual (BRONFENBRENNER, 1995). É
possível perceber, através deste trabalho, que a vivência
155
temporal das mães foi marcada após o recebimento do
diagnóstico. Suportado o choque inicial e a inserção na nova
rotina, o mesotempo, caracterizado pelo passar de dias,
semanas e anos, surge como um importante organizador social
e emocional das mães-cuidadoras. Neste momento, as mães
revisitam seu passado e percebem o impacto do cuidar na sua
vida.
O tempo foi apontado como fundamental para que as
mães aprendessem a lidar com as muitas variáveis que
envolvem o cuidado. Este tempo não é cronológico, mas sim,
singular a cada uma delas, dependendo do seu contexto,
história de vida, da menor ou maior influência das matrizes
socioculturais do cuidado. Por outro lado, este marcador
oferece o cansaço e a rotina. Referindo-se à divisão das tarefas,
mas já pensando na continuidade dos cuidados quando
envelhecer ou estiver impossibilitada de cuidar, Luciana
sinaliza: “acaba que todo mundo ajuda, meus filhos todos. Me
ajudam também com Rosa, um penteia o cabelo, outro dá
comida. Eu acho que filho tem que ajudar, se um dia eu faltar,
eles vão cuidar” (Luciana). A falta destas pessoas angustia as
demais mães-cuidadoras. Passado o impacto inicial do
recebimento do diagnóstico, prognóstico e ao saber o que se
pode esperar desta criança, a vida da família passa por um
período de estabilização.
Quando questionadas em relação aos sonhos, a ausência
deles evidencia a inserção destas mães em um tempo que
parece atemporal, na medida em que a vida congela: “Não
faço planos, não. Eu tenho uma parede em minha frente, não
sei se um dia vou poder atravessar essa parede, pular esse
muro. Eu só vejo o tempo passando” (Simone). A desistência
ou modificações importantes nos planos de vida foram uma
realidade.
Quando conseguem fazer planos, estes estão atrelados
ao desejo de ter uma vida tranquila, à necessidade da saúde
para poder continuar cuidando ou a uma melhor infraestrutura
para prestar a assistência necessária. Mesmo diante destes
desejos, uma interrogação imensa se presentifica, tornando o
mesotempo um enigma, pois não se sabe se isso um dia,
finalmente, tais desejos irão se concretizar.
Estas respostas são preocupantes, pois revelam que as
mães-cuidadoras podem estar perdendo a confiança no futuro;
esta certeza necessária é fundante, já que provoca o estresse
para enfrentar os problemas e desloca os sujeitos do
imobilismo. Teria a esperança cedido lugar à resignação?
Nenhuma participante verbalizou a esperança de ver os filhos
andando, falando, entendendo, ou melhores do ponto de vista
neurológico. O tempo lhes ofereceu dados incontestáveis. Por
um lado, esse fato reflete boa compreensão em relação ao
diagnóstico e prognóstico. Mas, por outro, a ausência e
dificuldades em fazer planos reflete uma incerteza em relação
156
ao futuro, que parece entrar em suspensão. Trata-se da
desistência da busca pela normalização da vida e preservação
de si mesmo.
Apenas Luciana conseguiu vislumbrar vida e essência
no futuro. Embora seja a possuidora da rede social mais
esvaziada, a perspectiva positiva pode estar relacionada à
presença de outros filhos, que lhe oferecem a possibilidade de
continuidade do núcleo, a permanência de outros escrevendo a
biografia social e familiar21; em última instância, é a garantia
da existência do macrotempo: “quero ter minha casa, poder
cuidar da minha filha porque ela vai precisar de minha ajuda
sempre, né? Quero ver os outros meninos trabalhando pra ter
tudo o que precisam e que eu nunca consegui dar” (Luciana).
Para finalizar, apresentamos o “mapa do cuidar”, um
arranjo gráfico, inspirado no mapa de rede7 e no modelo PPCT
(BRONFENBRENNER, MORRIS, 1998) 12, que organiza e
conclui o que é, o que causa e o que proporciona a ação de
cuidar de crianças tão dependentes nas vidas de suas mãescuidadoras.
Figura 2: Mapa do Cuidar (baseado no Mapa de Rede)
Quando mais próximo do centro, maior é a intimidade
das mães com esta característica, pessoa, evento, sentimento,
vivência, contexto, entre outros. Quanto mais longe deste
núcleo, o oposto é verificado. Conforme observado em todo o
trabalho, o processo proximal está presente indiretamente neste
mapa, pois todo o contexto, características da pessoa ao longo
do tempo, está sendo abraçado por esta mola que propulsiona o
desenvolvimento.
157
CONSIDERAÇÕES
A maior sobrevida das crianças frente a agravos pré, peri
ou pós natais, doenças crônicas e traumas decorre dos
benefícios da rápida evolução da medicina, bem como das
deficiências da saúde no Brasil. As necessidades especiais que
estas crianças apresentam geram demandas de cuidado,
normalmente supridas por uma figura feminina. A mãecuidadora necessita manter a constância, vigilância e
intensidade na atenção oferecida, pois seus filhos portadores de
PC forma tetraplegia espástica são uma população considerada
mais instável clinicamente, e, portanto, mais vulneráveis a
intercorrências. Não obstante, o cuidar foi percebido por estas
mães como uma ação voltada ao outro, mas não a si mesma.
A família, e em especial, a mãe cuidadora, passou por uma
transição ecológica com o nascimento da criança portadora PC.
O processo proximal foi diretamente afetado, desde quando o
diagnóstico foi dado. O olhar que torna a criança um “outro
diferente”, e não apenas diverso, incide diretamente na relação
dos próximos a ela, alterando dinâmicas. O contexto, em
especial o micro e mesossistema, sofreram impacto. As redes
sociais pessoais experimentaram redução, tornando-se mais
dispersas, menores, homogêneas e pouco densas. As pessoas
que compõem estas redes acumularam funções, embora
tendam a incentivar comportamentos promotores de bem-estar,
a dividir cuidados e a emitir reações de alarme. As famílias,
notadamente as figuras femininas de mãe e irmã, ocupam lugar
privilegiado na rede, oferecendo suporte emocional, sendo guia
cognitivo e de conselhos, bem como oferecendo ajuda material
e de serviços.
O rompimento do modelo hospitalocêntrico aproximam as
equipes de saúde e as famílias, sem ambas estarem preparadas
para dominar, mesmo que parcialmente, o universo uma da
outra. As famílias passaram a ser o foco das ações
governamentais por seu papel protetor, que de fato, as
caracteriza. Este descritor, entretanto, exige do cuidador um
alto preço emocional e físico, devido à estrutura social precária
e falta de apoio direto.
O exossistema foi afetado com o abandono do emprego da
cuidadora e queda do padrão financeiro da família, por
exemplo, enquanto o macrossistema, representado pelo
preconceito social diante da deficiência, leis protetivas, dentre
outros, imputaram à criança e à sua família um status em que
ambas enveredaram pelo caminho da anormalidade, por um
lado, mas ofereceram a condição econômica de sobrevivência,
sob outro ângulo.
Em relação à Pessoa, os recursos e a demanda,
notadamente, mostraram-se relevantes no desenvolvimento das
mães-cuidadoras. O repertório da criança, neste caso, não
interferiu negativamente na interação com sua cuidadora, pois
158
houve o acolhimento em um nível psicológico. Embora cientes
do prognóstico motor e cognitivo desfavoráveis, as crianças
não estavam suscetíveis a receber cargas ansiosas e/ou
depressivas das cuidadoras, que, mesmo diante de toda
vivência impactante e dolorosa, conseguiram elencar ganhos
na vida desde o nascimento do filho. A vivência do Tempo foi
marcada agudamente, pois as perspectivas em torno da criança
se modificaram, assim como a perspectiva de futuro da própria
família (macrotempo). No que diz respeito ao microtempo, a
cuidadora estava ancorada em um modo mais amplo de
contemplar a vida, absorvendo a temporalidade como vida.
Compreender a criança, não apenas como portadora de
PC, mas como membro de uma família, e esta família como
objeto de cuidado, corresponde a uma visão de
desenvolvimento como molar, com todas as suas implicações
práticas. Interessou, neste trabalho, a compreensão acerca de
como a família organiza internamente os cuidados, quais os
ajustes, que recursos internos ou externos ao núcleo são
ativados, e a utilização de ajuda formal ou informal. Esta
proposta ofereceu um olhar entrecruzado sobre a organização
do cuidado, dentro e fora da esfera privada. Para as mães, o
cuidar envolve uma articulação estreita com sua história,
instrumentos, recursos sociais e familiares. Mesmo imersa em
tantos âmbitos, é uma ação solitária. As mães estão sós e
queixam-se desta sensação. Por um lado, pedem ajuda e
acreditam ser necessária a divisão das tarefas; em
contrapartida, referem que não há quem cuide melhor, quem de
fato se dedique, por mais que ame. O limite entre querer,
precisar e aceitar ajuda parece tênue, sendo ele influenciado
pelo medo das crianças não serem verdadeiramente bem
cuidadas. Faz-se necessário atentar, por conta disto, sobre um
fenômeno circular que parece ocorrer nestes casos. A falta de
divisão de cuidados e a intensa dedicação das mães geram
insegurança nas cuidadoras, que tendem a não confiar na
qualidade da atenção oferecida pelos outros, quando estes
tentam se aproximar. Para compreender melhor estas nuances,
sugerem-se estudos futuros que se proponham a escutar as
pessoas envolvidas, mesmo que indiretamente, na tarefa de
cuidar.
A abordagem bioecológica do desenvolvimento humano,
associada à compreensão das redes sociais pessoais, mostrouse útil para compreender o processo de cuidar. Da mesma
forma, este estudo possibilitou evidenciar que o cuidar de uma
criança portadora da manifestação mais grave de PC pede que
olhemos para a rede social, mesmo que esvaziada, como uma
fonte importante de suporte para as mães.
159
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162
7
Terapia ocupacional e família na vida de portadores da
Síndrome de Down: duas histórias bem sucedida
Occupational therapy and family life of individuals with
Down syndrome: two stories successful
Pessia GRYWAC: [email protected]
CV: http://lattes.cnpq.br/2589872553178507 - Mestra em Psicologia pelo Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo e doutora em Psicologia Experimental pelo Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Maria Cecília L. MORAES: [email protected]
CV: http://lattes.cnpq.br/2247166440691024 - Mestra e Doutora em Saúde
Pública pela Faculdade de Saúde Pública pela USP. Professora Assistente do Centro
Universitario Adventista (SP), Coordenadora de Curso de Pós-Graduação do Centro
Universitario Adventista (SP), Professora Assistente das Faculdades Metropolitanas Unidas,
terapeuta ocupacional da Prefeitura Municipal de São Paulo, - Editora Assistente e Membro
do Corpo Consultivo da Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano .
Zan MUSTACCHI:
CV: http://lattes.cnpq.br/4419319234242523 - Mestre e Doutor em Farmácia (Análises
Clínicas) pela Universidade de São Paulo.
163
BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC
Resumo Este artigo tem por objetivo relatar o esforço da família no desenvolvimento e evolução
de portadoras de Síndrome de Down que passaram pela intervenção da Terapia
Ocupacional. Destaca a participação da família, no processo formativo destes
indivíduos. O referencial metodológico utilizado foi a pesquisa social. Os sujeitos
foram duas mulheres adultas portadoras da condição, seus pais e professores Os
resultados ressaltam o sucesso de ambas e a consciência de suas limitações.
Palavras-chave Terapia Ocupacional; Síndrome de Down; Educação.
Abstrac This study aims to report the development and evolution of Down Syndrome patients
that were attended through Occupational Therapy interventions. The family
participation is highlighted in the upbringing and formation process of these persons.
The methodological reference used was the social research. Subjects were two adult
Down Syndrome women, their parents and teachers. The results underscore the success
of both women and the awareness of their limitations.
Keywords Occupational Therapy; Down Syndrome; Education.
164
INTRODUÇÃO
O homem é um ser histórico, aprende a ser por meio da
interação social. Não pode ser estudado isoladamente, ou seja,
fora de seu em torno, pois “se torna humano em função da
experiência de ser social” (BOCK et al, 1999). Os traços
herdados por ele, em contato com o ambiente geram um
indivíduo, um ser particular e específico. O ser humano não se
constitui apenas pela herança genética, mas também, pelo que
adquire ao longo da vida, pela apropriação da cultura criada
por gerações antecedentes.
São significativas as diferenças sociais entre os seres
humanos, e um dos motivos é a oportunidade de acesso ao
conhecimento e à cultura. A desigualdade social reforça a
inequidade entre os indivíduos.
Evidencia-se a importância do aspecto contextual na
determinação das capacidades intelectuais do homem. O
trabalho, a atividade e, a ação sobre o mundo faz com que a
espécie humana se torna pensante, consciente e intencional.
Essa reflexão circunstancia a diversidade entre seres
humanos, destacando aqueles considerados diferentes como,
por exemplo, os portadores de síndrome de Down. A referida
condição está associada a marcas e atributos sociais que um
indivíduo carrega e, cujo valor pode ser negativo ou pejorativo
(BOCK et al, 1999). Consequentemente, provoca a exclusão
demonstrando a dificuldade da sociedade em lidar com o
diferente. Esta dificuldade tem sido transmitida entre gerações.
Cabe ressaltar a ação das terapias de apoio, em
particular a terapia ocupacional, na quebra de pressupostos e
paradigmas. Esta parceria propiciou a duas pessoas portadoras
da síndrome de Down a conquista de um lugar privilegiado,
considerando os parâmetros existentes.
SÍNDROME DE DOWN
A Síndrome de Down foi descrita pela primeira vez há
mais de 100 anos. Lejeune, em 1959, afirmou que as crianças
portadoras da síndrome possuíam um cromossomo extra, isto
é, ao invés de dois cromossomos no par 21, possuem três,
originando o termo trissomia do 21 (SCHWARTZMAN,
1999). A trissomia livre representa 95% dos casos de Síndrome
de Down (3). Posteriormente, geneticistas detectaram outras
formas cromossômicas: a translocação, isto é, quando o braço
longo excedente do 21 liga-se a um cromossomo qualquer
representa 4% dos casos de síndrome de Down e, o
mosaicismo, em que uma das linhagens apresenta 47
cromossomos aparece em 1% dos casos. (SCHWARTZMAN,
1999). O aumento da idade da mãe eleva a probabilidade da
ocorrência dessa anomalia pelo fato de os óvulos serem mais
velhos (BRUNONI, 1999).
165
O neonato portador da Síndrome de Down apresenta
alterações fenotípicas ligadas à suspeita do diagnóstico. Entre
estas citam-se: braquicefalia (achatamento da parte posterior
da cabeça); hipoplasia da região mediana da face (o rosto tem
contorno achatado, principalmente em consequência dos ossos
faciais pouco desenvolvidos e nariz pequeno); fontanelas
anterior e posterior mais ampla do que na população geral;
pescoço curto; inclinação das fendas palpebrais; pequenas
dobras de pele no canto interno dos olhos, base nasal achatada;
orelhas pequenas e de implantação baixa, a borda superior da
orelha (hélix), muitas vezes, dobrada. A estrutura da orelha é
ocasionalmente alterada e, os canais do ouvido são estreitos. A
boca apresenta-se pequena e a língua protrusa. As mãos são
pequenas com clinodactilia do quinto dedo das mãos,
geralmente este dedo é levemente curvado para dentro.
Também apresentam ausência da falange do dedo mínimo. Os
pés são pequenos, com distância aumentada entre o primeiro e
segundo dedos dos pés. A pele da nuca é excessiva; a
hipotonia muscular e a frouxidão dos ligamentos são, também,
importantes características desta síndrome. (BRUNONI, 1999;
MUSTACCHI & RAZONE, 1990). A confirmação de que o
bebê é portador da Síndrome de Down pode ser determinada
somente por meio do resultado do cariótipo - exame genético.
Atualmente, um marcador ultrassonográfico pode
sugerir se um feto é portador da síndrome, a partir de medida
obtida da nuca, denominada translucência nucal. Durante a
metade final da gravidez, podem ser observadas outras
malformações tais como os defeitos cardíacos e o comprimento
do osso da perna (PUESCHEL, 1995). Os exames de
amniocentese e amostra do vilo corial podem confirmar o
diagnóstico.
FAMÍLIA E SÍNDROME DE DOWN
A família representa um grupo social primário que
influencia e é influenciado por outras pessoas e instituições.
Famílias são as primeiras agências socializadoras da criança,
cabendo-lhes estabelecer condições propiciadoras de um bom
desenvolvimento (TRANCREDI & REALI, 2001). Responde
pela sobrevivência da criança, e faz a mediação entre o
indivíduo e a sociedade, exercendo papel fundamental na
transmissão de valores ideológicos e, cultivando a manutenção
dos valores culturais (BOCK et al, 1999). A cultura que a
família reproduz em seu interior é, portanto, a cultura que a
criança internalizará.
Funciona
como
um
sistema,
onde
existe
interdependência entre os familiares, e cada membro é
essencial ao sistema, pois suas ações afetam os demais
componentes (MERINFELD, 1998).
166
O nascimento de uma criança reorganiza a família e
provoca o re-arranjo de papéis. Representa um começo,
começo de sua própria vida, começo para os pais. O
fundamental nessa ideia é a possibilidade de renovar e
regenerar a existência (CASARIN, 1999).
A chegada de um bebê com o diagnóstico de qualquer
anomalia, muitas vezes, causa choque nos pais e faz aflorar
sentimentos negativos, evidenciando a ambivalência e possível
rejeição (MURPHY, 1995). Assim, um bebê com Síndrome de
Down, além de provocar as mudanças de um nascimento,
acarreta enorme impacto para os pais e para a família. Adaptarse a uma condição que, por vezes, remodelará a família é uma
situação tanto delicada, como imprevisível.
As questões funcionais da família, dinâmica e
equilíbrio, e até a garantia da sobrevivência desta família
estarão mobilizadas pela presença deste novo membro
(MERINFELD, 1998). Sobre esta circunstância foi escrito
(CASARIN, 1999):
... a presença da Síndrome de Down num
membro da família gera uma problemática
que afeta diversos aspectos da vida
familiar. (...) Surgem problemas nos
aspectos econômicos, social e emocional; a
criança
apresenta
problemas
de
comportamento e os pais não têm preparo
para lidar com eles. O desconhecimento da
anomalia é uma fonte de tensão que
compromete a situação atual e projetos
futuros. Apesar de essa constatação ter
sido feita há mais de 50 anos, observa-se
que atualmente os pais vivenciam
dificuldades semelhantes, embora hoje a
quantidade de informação acumulada sobre
a síndrome seja maior e mais acessível.
Isso talvez seja uma indicação que o
conhecimento intelectual é de ajuda
limitada, pois a síndrome atinge a estrutura
pessoal e familiar de forma mais ampla
(p.272).
Considera-se que o momento do diagnóstico, a
gravidade da deficiência e, as possíveis intervenções são de
fundamental importância neste contexto. O significado que a
família atribui à patologia e a maneira como se adapta à
situação influenciam diretamente o desenvolvimento do
portador.
167
DESENVOLVIMENTO NA SÍNDROME DE DOWN E A
TERAPIA OCUPACIONAL
As crianças portadoras de Síndrome de Down precisam
ser estimuladas desde a mais tenra idade. Sabe-se que esta
condição sindrômica impõe limitações à criança e, dentre estas,
destaca-se o atraso no desenvolvimento (FEBRA, 2009).
As crianças com síndrome de Down têm habilidade e
capacidade para aprender, entretanto o ritmo de aprendizagem
costuma ser mais lento. Esta lentidão está associada, em parte,
ao atraso no desenvolvimento motor. O progresso da criança
dependerá de estímulos, muitos deles em “setting”
terapêuticos. Enquanto que uma criança da população geral
começa a falar por volta dos 12 a 24 meses, a criança portadora
de síndrome de Down inicia sua oralidade entre os três e cinco
anos de idade e, em alguns casos muito mais tardiamente. As
principais queixas trazidas pelos pais de crianças destas
crianças acontecem na faixa etária entre seis e dez anos de
idade. Constata-se que muitos pais tendem a tratar seus filhos,
na faixa etária mencionada, como se fossem bebê. Este
tratamento pode estar relacionado a falta de orientação a
família e pode resultar em falta de autonomia para a criança.
A pessoa portadora de Síndrome de Down, assim como
qualquer outra pessoa precisa encontrar um lugar, um papel e
uma função para si mesma no contexto em que vive, e este é
um fator muito importante para um desenvolvimento saudável
(CASARIN, 1999). Existem muitas estratégias para intervir
com a criança portadora da síndrome de Down. Em áreas
específicas, indica-se a intervenção de um terapeuta
ocupacional, profissional que visa conectar o indivíduo e
atividade, para a promoção de produtividade com sentido.
... o paciente em atividades destinadas a
promover o restabelecimento e o máximo
uso de suas funções, com o propósito de
ajudá-lo a fazer frente às demandas de seu
ambiente de trabalho, social, pessoal e
doméstico, e a participar da vida em seu
mais pleno sentido84.
O atendimento terapêutico ocupacional pode vir a
somar como um tratamento facilitador voltado para as
atividades da vida diária (AVD) e vida prática (AVP) da
pessoa portadora de síndrome de Down.
Nas atividades da vida diária de uma criança, o brincar
tem um papel fundamental porque nesta cria-se uma
importante zona de desenvolvimento e, ainda dentro deste
seguimento, AVD, contempla-se a questão escolar. Com os
84
Definição fornecida pela Federação Mundial de Terapia Ocupacional, retirada do site da Abrato: www.abrato.hpg.com.br.
168
déficits próprios da síndrome, como por exemplo, o atraso no
desenvolvimento; a família e os serviços de apoio serão
primordiais para que, não apenas a inserção, mas a
continuidade na vida escolar seja uma realidade. O sucesso dos
casos aqui apresentados ilustra esta possibilidade.
METODOLOGIA
Este trabalho utilizou como referencial a pesquisa social, na
qual o objeto de estudo é essencialmente qualitativo
(MINAYO, 2010). A autora salienta que a pesquisa qualitativa,
em Ciências Sociais, lida com um nível de realidade que não
pode ser quantificado.
... ou seja, ela trabalha com o universo dos
significados, dos motivos, das aspirações,
das crenças, dos valores e das atitudes.
Esse conjunto de fenômenos humanos é
entendido aqui como parte da realidade
social, pois o ser humano se distingue não
só por agir, mas por pensar sobre o que
fazer por interpretar as suas ações dentro e
a partir da realidade vivida e partilhada
com seus semelhantes (MINAYO, 2010,
p.21).
Participantes
Participaram da pesquisa duas mulheres portadoras de
Síndrome de Down, com idades de 30 e 35 anos, seus pais e
pessoas significativas (que sob a óptica da pesquisadora foram
importantes na formação dos sujeitos e tiveram forte influência
na vida de ambas).
Instrumentos
Foram duas entrevistas semiestruturadas diferentes: a
primeira dirigida às portadoras de Síndrome de Down e a
segunda destinada aos familiares e pessoas significativas
Destaca-se que a pesquisadora elaborou as questões.
Adicionalmente, informações sobre o contexto socioambiental,
desenvolvimento e evolução das portadoras, desde a infância,
foram obtidas por meio dos dois prontuários. Estes prontuários
pertencem à clínica, onde os dois sujeitos da pesquisa foram
atendidos. O uso dos dados foi liberado pelas pacientes, assim
como por seus pais, mediante consentimento. As entrevistas
foram gravadas com autorização dos participantes, transcritas e
resumidas Para o tratamento dos dados, houve análise de
conteúdo, utilizando-se unidades de registro temáticas, isto é,
dividindo os assuntos em temas: família, terapia, projetos de
169
vida e trabalho remunerados. Seguem-se as informações
solicitadas para concretização da pesquisa:
Pergunta aos pais/pessoas significativas:
Qual foi a sua influência sobre a escolha do trabalho de
...................?
Pergunta aos participantes:
Por que escolheu trabalhar como professora/auxiliar de
administração?
DADOS DO PRONTUÁRIO:
Nome:
Data Nascimento:
Sexo: feminino
Nº. irmãos:
Idade do pai:
Idade da mãe:
Nascimento e descrição do parto:
Duração:
Local:
Duração parto:
Peso:
Tipo de parto:
História do desenvolvimento:
Os pais notaram o problema pela primeira vez quando?
Data do início de tratamento na clínica de reabilitação e idade
do paciente: Recebia orientação: distancia ou presencial
Evolução da escolaridade:
Pré escola.
Fundamental.
Médio
Atividades terapêuticas
Outras atividades
Atividades remuneradas
APRESENTAÇÃO DOS CASOS
Por tratar-se de relato de casos, trabalhou-se com a
apresentação dos mesmos. O propósito do procedimento foi
facilitar a compreensão das histórias relatadas. Optou-se por
mostrar os casos de maneira independente.
Caso1
D. nasceu no Estado do Rio Grande do Norte e iniciou
tratamento com a pesquisadora, em São Paulo, com quatro
170
meses de idade. Na época, os pais não tinham nenhuma
informação sobre a patologia. O diagnóstico foi feito logo após
o parto, o que deixou os pais em choque, pois “aquele não era
o bebê esperado”. Na época do nascimento da filha, a mãe
estava com 39 anos, e o pai tinha 40anos, ambas as pessoas
com
formação
universitária
e,
bem
sucedidas
profissionalmente. O casal já tinha um filho.
A família passou a vir a São Paulo a cada dois meses
para receber orientação de uma equipe multiprofissional. O
prosseguimento do tratamento era feito pela família e
profissionais escolhidos pela equipe paulista, no Rio Grande
do Norte.
D. começou a andar com 30 meses, e era bastante
hipotônica. Desde pequena, frequentou uma escola normal.
Os pais de D. tinham grande envolvimento no
tratamento da filha e com o tema, fundando uma associação de
Síndrome de Down. Relatam que anteriormente, na localidade
de sua residência, as crianças portadoras da patologia ficavam
em casa “escondidas”, a fim de não serem vistas pela
sociedade. Após o surgimento da Associação e o movimento
iniciado pelos pais, outras crianças, igualmente portadoras da
síndrome, receberam tratamento significativamente diferente.
Na avaliação da pesquisadora, D. tinha Um bom contato com o
irmão e com os pais. Saíam juntos assiduamente.
D. estudou em duas escolas de ensino regular. Cursou
Magistério em escola estadual, e atualmente é auxiliar de
professora na mesma escola que frequentou. A escolha pela
profissão ocorreu após estágio em pré-escola como auxiliar de
professora, durante o último ano do ensino fundamental. Adora
crianças e tem facilidade em trabalhar na área. Os pais não têm
dúvida a respeito da influência de uma professora do ensino
fundamental na escolha profissional de D. Além dessa
atividade, D. faz teatro e dá palestras em diversas instituições
sobre a Síndrome de Down. Relata sua experiência mostrando
como venceu os preconceitos sociais e conquistou o lugar que
hoje ocupa.
Seus pais sempre estiveram ao lado, incentivando suas
atividades e lutando pelas conquistas. A participante relata,
dentro de suas limitações, que conhece as implicações de ser
portadora da síndrome, entende o preconceito e percebe as
dificuldades enfrentadas no trabalho.
Caso 2
R., por sua vez, iniciou tratamento em terapia
ocupacional com 25 dias de idade. Logo ao nascer, havia
dúvidas sobre o seu diagnóstico, confirmado com o resultado
do cariótipo. Começou a andar sozinha com 18 meses e passou
a frequentar uma escola maternal para crianças típicas. Por
171
opção dos pais, com quatro anos foi transferida para uma
escola especializada. Ainda hoje, R. estuda em escola especial.
Quando nasceu, sua mãe estava com 26 anos e seu pai
29 anos. Ambos trabalham fora e se enquadram na classe
média. R. tem dois irmãos, é a filha do meio.
Desde pequena, pratica atividade física em um clube
tradicional esportivo, que até então não contava com
associados atípicos. Assim como a mãe, valoriza muito os
esportes e a aparência física. Atualmente, é campeã nacional,
panamericana e internacional na modalidade que pratica em
competições paraolímpicas; além de bater recordes brasileiros
em competições em que é a única atleta portadora da Síndrome
de Down. Trabalha em uma loja de departamentos e, também,
como auxiliar em uma academia de esportes.
Atualmente, está namorando. Pensa em se casar, ter
uma vida independente e cursar o ensino superior. O objetivo
dos pais, ao lado de terapeutas, é conscientizá-la sobre os
obstáculos reais para a consecução dos projetos e possíveis
conquistas, partindo das escolhas da participante.
RESUMO DAS HISTÓRIAS
A síntese das histórias emoldura, em parte, o estofo
para a formação destes sujeitos, evidencia-se a singularidade
de cada uma delas. O resumo mostra que a patologia não foi
empecilho para o desenvolvimento destas pessoas. Ao
contrário, ambas alcançaram posições de destaque, conscientes
das limitações e dificuldades, ocasionalmente trabalhados
pelos profissionais envolvidos.
Os casos apresentados mostram a formação de duas
pessoas portadoras de Síndrome de Down. Educar uma
criança nesta condição é tarefa complexa, com necessidade de
adaptação curricular específica nas escolas (MILLS, 1999):
“... as dificuldades de aprendizagem, os
distúrbios de conduta, a problemática de
sua integração completam, mas não
esgotam o quadro da educação do aluno
com Síndrome de Down” (p. 233).
A educação das participantes da pesquisa ocorreu de
maneira diferente: uma frequentou escola especial e a outra
uma escola regular. Este fato parece estar associado ao
contexto sócio-histórico de cada uma delas.
O mesmo fato pode ser creditado quanto à escolha pela
formação educacional das portadoras. Cabe ressaltar a
influência familiar: os pais de D. optaram pelo ensino regular,
investindo na adaptação do currículo escolar às exigências de
sua filha. Foram obrigadas a criar estratégias e parcerias com
172
os educadores, para que D. fosse inserida naquele contexto
educacional.
Por outro lado, os pais de R. optaram por uma
instituição educacional planejada para crianças atípicas.
Simultaneamente, R. frequentou um clube tradicional
esportivo, o que garantiu a inserção em um ambiente de
crianças típicas.
Esses fatos elucidam novamente a questão historicidade
e da singularidade do ser humano, além é claro da influência
do contexto doméstico na formação do indivíduo. Observa-se
que mesmo optando por caminhos diferentes, cada participante
atingiu o seu objetivo específico com destaque.
“... o portador de Síndrome de Down
também possui 22 outros pares de
cromossomos, que lhes conferem um
pool de diversidade” (BISSOTO, 2005,
p. 87).
O progresso alcançado pelos alunos com Síndrome de
Down, nas duas últimas décadas, pode ser devido não somente
à eficácia da estimulação precoce, mas sem dúvida, também a
outras situações específicas, principalmente com relação a
atitudes familiares mais positivas, melhor atenção na área de
saúde, atendimento educacional adequado (MILLS, 1999).
Com relação à estimulação precoce (MUSTACCHI &
RAZONE 1990) acrescentam:
... a estimulação precoce é uma série de
exercícios que visa a desenvolver as
capacidades da criança, de acordo com a
fase de desenvolvimento em que ela se
encontra. O desenvolvimento global da
criança depende muito do ambiente em que
vive, devendo ser tranquilo, fornecendo a
criança estímulos variado. É importante
realizar as atividades de estimulação
diariamente,
buscando
sempre
o
envolvimento da família, a fim de que haja
uma continuidade no que a criança
vivencia, utilizando, paralelamente, um
trabalho de fisioterapia, fonoaudiologia e
terapia ocupacional (4, p.87).
O pensamento dos autores remete aos aspectos abaixo
listados:
1. A necessidade de estimulação precoce dos portadores de
Síndrome de Down com equipe multiprofissional. No tocante a
esse fato e, particularmente em relação à Terapia Ocupacional,
nota-se que ambas as participantes começaram muito cedo a
173
intervenção com esse profissional. Houve ganhos expressivos,
principalmente no que se refere às atividades práticas da vida
diária, isto é, da rotina, como alimentação, hábitos de higiene,
vestuário, fazer compras, e nos aspectos escolares tais como
coordenação motora, equilíbrio, lateralidade entre outros. O
trabalho da Terapia Ocupacional contribuiu para a autonomia e
a adaptabilidade dos indivíduos construídos por meio do
autoconhecimento propiciado na intervenção;
2. Destaca-se que o desenvolvimento é fruto de
características próprias de cada pessoa, somado ao que a
pessoa obtém do seu mundo somando, ainda ao que o mundo
disponibiliza para cada um através das pessoas que o cerca.
Considera-se tanto o mundo animado como o inanimado, ou
seja, o conjunto do “em torno”. Esta junção é um traço
determinante para /e no desempenho do indivíduo (LEITE DE
MORAES & MORON, 1999).
3. A importância do envolvimento da família na intervenção:
ambas contaram precocemente com a participação da família.
É ressaltado que (PUESCHEL, 1995) : “... é muito importante
deixar a mãe perceber tanto as capacidades e as forças
positivas do seu bebê, como as suas fraquezas. Deve-se
orientar a mãe a respeitar o ritmo do seu filho” (p. 218). A
autora discorre ainda sobre um aspecto fundamental: seria
aconselhável que o envolvimento da família ocorresse por
meio de orientações sistemáticas voltadas aos aspectos
neuropsicomotores, principalmente pelo fato de o bebê
portador de Síndrome de Down ser muito hipotônico.
... a hipotonia interfere nas aquisições do
desenvolvimento motor da criança; nas
habilidades, nas suas interações com o
ambiente, retarda ou bloqueia sua
exploração, diminuindo ou produzindo
déficit de sensações e vivências,
dificultando o desenvolvimento cognitivo
(GUSMAN, 1999, p.176).
Em relação ao desenvolvimento do portador, algumas
considerações devem ser assinaladas:
1. As diferentes formas de manifestação da trissomia
provocariam variações clínicas, físicas e na capacidade
cognitiva dos portadores (BISSOTO, 2005). Entretanto,
existem poucos estudos comparativos que mostram as reais
diferenciações entre os três grupos de portadores. A autora
enfatiza: “... há diferenças no potencial intelectual e nas
habilidades de linguagem entre os portadores de mosaicismo e
os portadores de forma típica da síndrome”. Ambas as
participantes da pesquisa são portadoras da trissomia típica;
174
2. A Síndrome de Down frequentemente provoca complicações
clínicas que interferem no desenvolvimento global do portador.
As mais comumente encontradas são as cardíacas, hipotonia,
respiratórias e sensoriais, principalmente visão e audição
(BISSOTO, 2005). É importante salientar que ambas atingiram
o nível de desenvolvimento relatado igualmente em
decorrência das poucas complicações clínicas enfrentadas na
vida.
Finalmente, a literatura revela que o nascimento de uma
criança com Síndrome de Down acarreta mudanças na família
e, que a repercussão do fato dentro desta família é
determinante na vida da criança. O fato vai ao encontro dos
dados obtidos neste trabalho, principalmente no caso de D.,
pelo choque que os pais sofreram,. Os mesmo afirmaram: “...
tivemos que matar o bebê esperado, vivenciar o luto, para
depois aceitar o novo bebê”. Entretanto, após o luto e com
orientações de profissionais especializados, tiveram grande
envolvimento no tratamento da filha, lutando por sua inserção
na sociedade.
CONCLUSÃO
Tendo em vista a singularidade humana, e a formação
da identidade a partir das experiências vividas, considera-se a
importância da família no processo formativo deste indivíduo.
Depreende-se que cada portador de Síndrome de Down possui
um desenvolvimento particular, em consequência de condições
genéticas e sócio-históricas próprias.
Destaca-se a importância do acesso aos portadores de
Síndrome de Down ou, outra deficiência qualquer, e seus
familiares a diferentes formas de tratamento. Todo indivíduo
atípico transcende a mera patologia; por este motivo, o
terapeuta ocupacional e outros profissionais transmitem aos
familiares a possibilidade da sua inclusão.
Como aqui se observou a inclusão não “chega” à
família, como dádiva ou benesse; ao contrário, cabe a seus
membros buscá-la, cotidiana e incessantemente, como direito
legítimo de todo ser humano. Não há dúvida sobre o desejo de
“tratar e curar”, mas ainda não há a procura efetiva pela
qualidade de vida, incluindo o portador de deficiência, a partir
de suas próprias forças. Historicamente, sempre foi mais fácil
segregá-lo.
Reafirma-se a certeza que a prática pela busca pela
inclusão, deve ser iniciada pela família, componente basilar e
emblemático de todo o processo, amando, aceitando e
fundamentalmente acreditando no filho ou na filha. “Socializar
essa prática é uma das chaves para inclusão” (LEITE DE
MORAES & MORON, 1999).
175
REFERÊNCIAS
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aprendizagem do portador de Síndrome de Down: revendo
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176
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área da educação infantil. Trabalho apresentado na 24ª
Reunião da Anped, Caxambu – Minas Gerais, 2001.
177
8
Qual o tipo de famìlia para o futuro?
Nicola REALI: [email protected]
CV: Professor do Pontificio Istituto Pastorale Redemptor Hominis da Pontificia Università
Lateranense/Roma.
178
BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC
Resumo «Tempora sunt tria praesens de praeteritis, praesens de praesentibus, praesens de
futuris […] praesens de praeteritis memoria, praesens de praesentibus contuitus,
praesens de futuris exspectatio»85. Esta famosa afirmação de “As confissões” de Santo
Agostinho, que conheceu (junto a todo décimo primeiro livro da mesma obra) infinitas
leituras e interpretações das quais seria impossível dar conta brevemente, resulta
todavia útil para introduzir-nos diretamente no tema que nos foi pedido expor.
Perguntar-se, de fato, qual o tipo de família se pode pensar , idealizar e/o (talvez)
esperar para o futuro, é uma interrogação que se põe no tema diretamente – primeiro
ainda que a questão sobre “tipo” de família – a questão do futuro e, então aquela da
temporalidade que ocorre reconhecer ao viver humano na Família. Em outros termos, a
questão pertence aquele complexo de argumentações que procuram tornar inteligível ao
homem, historicamente existente, aquela dimensão tão fundamental da sua vida que é
representada pela própria temporalidade. Certamente a esta observação deve ser
subitamente contestado que não se trata genericamente de compreender a temporalidade
do vivente, mas da família, portanto a pergunta sobre o futuro da família não pode
confundir-se indistintamente com aquela sobre o futuro do homem, mas deve ser
elaborada mantendo intacta a sua especificidade. Contemporaneamente, não se pode
notar, todavia, que, se esta precisão parece indiscutível na maneira igualmente
coercitiva, o esquecimento que no futuro da família está o do homem e, enquanto tal, é
igualmente danosa. Falar da família sem tematizar quando (e quais condições) em
definitivo se podem declarar “humanos” o homem e a mulher é, de fato, um
esquecimento que privaria qualquer consideração sobre o aspecto da família necessário
para compreender a intrínseca plausibilidade “humana” da relação entre os sexos, que
alí se realiza.
Neste senso se compreende como o haver evocado a sugestão agostiniana sobre a
experiência que o homem tem do tempo pode resultar útil a responder à pergunta do
título proposto, pergunta que a este ponto pode ser tranqüilamente reformulada sem
correr o risco de mal entender a correspondência em jogo: indicar qual o “tipo” de
família teremos no futuro é tentar mostrar que “tipo” de futuro caracteriza a vida do
homem e da mulher em família.
Palavras-chave Família; Futuro; Conjugalidade
85
«I tempi sono tre: il presente del passato, il presente del presente e il presente del futuro […] il presente del passato è la memoria,
il presente del presente è la visione, il presente del futuro è l’attesa»: AGOSTINO, Confessionum, XI, 20,26.
179
1. MATRIMÔNIO E FAMÍLIA
Procuremos, então, tentar iluminar esta questão
iniciando propriamente da tentativa de mostrar que coisa
significa caracterizar a família como lugar no qual se realiza
uma verdadeira experiência de humanidade do homem e da
mulher.
Deste ponto de vista pode ser útil, antes de tudo,
assinalar brevemente o quadro dentro do qual a teologia
contemporânea (de modo particular a teologia moral) procurou
iluminar o problema em questão. A reação que a vários títulos,
e em vários modos, recentemente se estruturou contra o ideal
racionalístico (que unanimemente vem reconhecido como parte
integrante da assim dita “teologia manualística), empurrou na
direção de uma revisitação do tema da família que tomou os
movimentos de uma reelaboração dos seus pressupostos
antropológicos. Em particular, é largamente difusa a
convenção que era impossível preservar uma visão
substancialista do sujeito da qual se deduz a essência do
vínculo conjugal e, conseqüentemente, se fez ampla a tentativa
de restituir o valor reflexivo à dimensão de historicidade que
contradistingue inexoravelmente a vida do homem.Produziuse, assim, uma denúncia da estratégia da teologia precedente,
unida a uma refutação de uma visão meramente jurídica do
laço familiar que declarou implausível proceder através de uma
preventiva declaração da identidade da família, a qual seria a
indicação dos comportamentos morais adequados.
A supremacia da experiência sobre a norma tornou-se,
deste modo, o cavalo de batalha de uma teologia que, por
sentir-se finalmente livre dos laços do racionalismo moderno,
tinha, todavia, o problema de não degenerar num historicismo
que a tinha conduzido entre os braços daquele difuso ceticismo
pós-moderno sobre a identidade da família que se queria
combater. Deste modo, a teologia procurou remediar deste
perigo, de uma parte rebatendo o valor universal das imagens
tradicionais da família, de outro procurando na filosofia um
modelo de pensamento que pudesse ser útil a esta reafirmação.
A escolha, quase unanimemente, caiu sobre esta que de
maneira extremamente geral e grosseira podemos chamar a
filosofia dialógica ou da interpessoalidade. Na prática, pegouse emprestado este dado da filosofia (em parte moderna e em
parte contemporânea) identificando nele o princípio normativo
da experiência familiar, já que é universalmente acessível. O
procedimento, embora declinado com condições uma vez ou
outra diferentes (a caridade, o dom, a responsabilidade, a
solidariedade)86, conduziu sempre ao mesmo resultado:
86
Tra gli altri, cfr. G. GATTI, Morale matrimoniale e familiare, in ID., Corso di morale, vol. III: Morale sessuale, educazione
dell'amore, LDC, Torino 1979, pp. 161-327; G. B. GUZZETTI, Per vivere in pienezza il matrimonio e la famiglia, Ufficio diocesano
per la famiglia, Milano 1980; D. TETTAMANZI, I due saranno una carne sola. Saggi teologici sul matrimonio e famiglia, LDC,
180
sublinhar a impossibilidade de abandonar a instituição familiar
como forma originária daquela dimensão universal do viver
humano que é a relação eu-tu.
Deste modo, todavia, não se pode não notar que a
tentativa de compreender o elemento específico da família
utilizando como recurso as categorias da interpessoalidade,
paradoxalmente confirmou as dificuldades conexas ao modelo
teológico que si queria superar. O problema é ilustrável
partindo da modalidade com a qual se assumiu o princípio da
interpessoalidade : retirando a atenção da descrição da norma
para a fundação da norma, pensou-se em reencontrar na noção
de interpessoalidade o enraizamento “ontológico” da mesma
norma. Assim fazendo, é a noção de interpessoalidade que
assume a função de elemento qualificante de uma teologia que,
uma vez afirmada a estrutura fundante da relação eu-tu, pode
sucessivamente dirigir a sua atenção para a justificação da
identidade da família como da realidade universalmente dotada
de valor, e, logo, objeto do querer. Na pacífica convenção de
ter encontrado uma nova base “natural” para o discurso
teológico, o argumento pode sucessivamente declinar a
especificidade cristã da família, de uma parte refazendo-se ao
mistério trinitário (como modelo originário da relação
interpessoal87) e de outra introduzindo o tema da graça para
significar a dimensão salvífica da estrutura familiar onde «nos
salvamos ou nos perdemos juntos»88.
Índice desta reproposição das dificuldades imputadas
ao esquema precedente é a dificuldade da teologia recente de
integrar na reflexão sobre família o tema do matrimônio. Em
outros termos, o peso na argumentação vem a assumir a
premissa de tipo interpessoal, termina por configurar o
momento matrimonial somente como o ato que sanciona
publicamente o início da experiência familiar, já que esta é já
explicada pelo princípio interpessoal. Não se procura, de fato,
mostrar a identidade da família partindo do matrimônio, mas se
enucia somente o princípio segundo o qual o matrimônio é
reservado àquela relação de casal que quer assumir (ou que
pode assumir) todos os direitos e deveres que competem à
família enquanto tal. Símile procedimento esquece, no entanto,
de indicar a necessidade a partir da qual matrimônio e família
não podem ser considerados separadamente, já que não vem
esclarecida a razão pela qual uma relação de casal deve
originar-se do matrimônio, a partir do momento que a mesma
relação é explicada pela “lei universal” da interpessoalidade e
não do matrimônio.
Torino 1986; ID., La famiglia e l’ethos del dono, in ID., La famiglia, via della chiesa, Massimo, Milano 1987, pp. 146-162; L.
CICCONE, Per una cultura della vita a partire dalla famiglia. Responsabilità generosa nel dono della vita, LDC, Torino 1988.
87
88
Cfr. G. MAZZANTI, Teologia sponsale e sacramento delle nozze. Simbolo e simbolismo nuziale, EDB, Bologna 2001, pp. 247-277.
GATTI, Morale matrimoniale …, op. cit., p. 225.
181
A formalidade com que este argumento sobre a família
assume o momento matrimonial, torna-se, todavia, mais
evidente no caso da família cristã. Aqui, de fato, a afirmação
segundo a qual à base da família cristã se põe
inequivocadamente o sacramento do matrimônio é
freqüentemente entendida de modo reduzido no que diz
respeito aquilo que propriamente está em jogo. A explicação
mais usual chega a fixar o caráter originário da família no
sacramento,na medida em que este último aparece
“divinamente instituído”. Razão pela qual, diante da
impossibilidade de referir no sacramento a identidade da
família, se opera um genérico apelo à “vontade” de Deus (ou
de Jesus) a fim de mostrar que a família não surge somente da
resposta a “necessidade” do homem e da mulher. O argumento,
todavia, não traz novidade significativa, porque, agora uma vez
mais, a necessidade de ligar os dois momentos não aparece
intrínseco a relação entre matrimônio e família, mas no
positivistico chamado a uma vontade instituinte. Assim
fazendo, o sacramento do matrimônio se configura como o
início público de uma família cristã, cuja identidade, não
obstante, se encontra para além do mesmo sacramento.
Há, em resumo, na teologia contemporânea uma forte
tendência de separar matrimônio e família que, embora nunca
afirmada, não obstante pesa notavelmente no desenvolvimento
do relacionamento. Prova disto é que, se quiséssemos tentar
oferecer uma resposta à pergunta que se propôs ao início,
esquecendo o intrínseco nexo que liga a família ao matrimônio,
seremos forçados a chegar a uma aporia insuperável. Esta
última é a evidente impossibilidade de argumentar sobre o
futuro do homem e da mulher que vivem em família de
maneira diferente de uma genérica argumentação sobre o
futuro de cada vivente. Sobre esta formulação pesaria, pois, a
consciência que não teria um quê existencial a dar a diferença
específica ao futuro da família, a qual – o que é mais grave –
seria absorvida na história de todas as pessoas que pertencem
ao tempo destinado a escorrer para a morte.
2. A “VISÃO VULGAR DO TEMPO”
A aporia que chega a reflexão mais usual sobre a
família, obriga, portanto, a procurar uma nova solução para a
pergunta inicial partindo do laço, que ocorre reconhecer como
vinculador, entre matrimônio e família. Que coisa significa
para o homem e para a mulher que vivem em família o
antecedente do matrimônio? E, mais precisamente, por que
para pensar o futuro da experiência familiar ocorre fazer
referência ao momento passado do matrimônio? A pergunta,
como se vê, põe no tema a questão do futuro da família a partir
do seu passado, coisa que evidentemente pede para ser
182
especificada partindo do laço que necessariamente o futuro
possui com o passado.
Para poder desenvolver adequadamente esta tarefa,
talvez, convém, antes de tudo, indicar – em negativo – a quais
condições isso resultaria impossível. Deste ponto de vista é útil
em primeiro lugar mostrar a imprecisão de uma reflexão que se
limitasse a considerar a medida objetiva do tempo (o tempo do
relógio) independentemente da sua verdade subjetiva (o tempo
vivido)89. A perpétua rotação de um ponteiro em torno de um
ponto fixo sobre um quadrante ou o incessante suceder-se de
cifras sobre uma tela apresenta somente uma “sucessão de
instantes” que na realidade não diz absolutamente nada sobre a
maneira com a qual o homem faz a experiência do tempo.
Prova disto é que qualquer um que tenha experimentado
quanto um tempo objetivamente breve ( a espera de um
ônibus) pode ser na realidade longo e, ao contrário, quanto um
tempo objetivamente longo (férias) pode ser breve. Não há
necessidade, então, de deter-se ulteriormente a mostrar similar
apresentação do tempo, no nosso caso, seria inútil.
Resulta vantajoso, ao invés, indicar como existe uma
outra visão que, aparentemente respeitosa do “tempo vivido”,
conduz também ela a um impasse que produziria a
possibilidade de responder à pergunta que se pôs. Tal solução
ultimamente é reconduzível àquilo que Heidegger chamou o
“conceito vulgar do tempo”: a re(con)dução do passado e do
futuro ao presente90. Em outros termos, passado e futuro
seriam um duplo “não-tempo”, sobre pacífica convenção que
só o presente “é” o tempo do qual o homem pode fazer
experiência: o passado termina e o futuro começa no mesmo
momento em que o presente começa ou termina. Portanto, a
equivalência entre presente e ser, conduziria à afirmação da
inexistência ôntica do passado e do futuro como aquilo que
respectivamente “não-é-mais” e “não-é-ainda”. Nesta
interpretação que, sempre seguindo Heidegger, une a história
da metafísica de Aristóteles a Nietzche (passando por Hegel), a
mútua relação entre passado e futuro seria disponível só no
“aqui e agora” da consciência humana que ao presente se
assegura a presença do passado e do futuro. No nosso caso,
então, o único horizonte temporal da família seria aquele da
atividade intencional do sujeito que, ao presente, antecipa a
presença do futuro e extrai das suas reminiscências o tempo já
transcorrido. O matrimônio se encontraria, portanto, confinado
no passado entendido como uma entidade ou uma localidade
no qual jazeriam as recordações esquecidas que a anámnesis
poderia extrair.
89
Tra gli altri, cfr. J. -Y. LACOSTE, Notes sur le temps. Essai sur les raisons de la mémoire et de l’espérance, PUF, Paris 1990; C.
ROMANO, L’événement et le temps, PUF, Paris 1999; E. FALQUE, Métamorphose de la finitude. Essai philosophique sur la naissance
et la résurrection, Cerf, Paris 2004.
90
M. HEIDEGGER, Essere e tempo, §§ 81-82, tr. it., Longanesi, Milano 1976, pp. 502-520.
183
Neste ponto deveria estar claro que conferir um favor
indiscutido ao presente não ajuda uma real compreensão da
temporalidade, já que a experiência do tempo põe em crise
justamente este unívoco privilégio do presente e corrompe a
idéia que não existe passado e futuro sem presente. Nunca
como neste caso, de fato, a celebração do presente vai no
mesmo passo com uma redução da linguagem que, enquanto
tende a substantivar os tempos (“o passado, “o futuro”),
proclama ao mesmo tempo aquela substancialidade que
termina por homologar-lhe à duas entidades ou localidades91.
Assim, não deve suscitar admiração afirmar como a linguagem
mesma pode rebater a “visão vulgar do tempo”, denunciando,
de uma parte, a escolha – ainda uma vez unilateral – de
privilegiar uma dicção puramente privativa do passado e do
futuro (aquilo que “não-é-mais” e “não-é-ainda”), de outra,
evidenciando que do passado e do futuro se pode falar também
nos termos daquilo que “era” (essente stato) e “será”. Se a
primeira definição, de tipo adverbial, tem caráter privativo; a
segunda, de tipo verbal, tem-no positivo. Antes, se pode por
fim dizer que a segunda acentua o caráter “real” do passado e
do futuro já que ambas são afirmadas não em relação a uma
falta de ser (“não-é mais” “não-é ainda”), mas por referência
às suas realidades efetivas: “era” e “será”.
Quanto a esta segunda indicação é sabido que
justamente Heidegger, no quadro de uma ontologia do Dasein
baseada no Sorge (cuidado), tenha-lhe imposto a legitimidade,
chegando a decretar o primado do futuro que na “resolução
precussora (vorlaufende Entschlossenheit)» antecipa o
«percurso (Vorlaufen)» da morte. As diferenças das três
instâncias temporais são, portanto, postas a partir de uma
unidade presumida que o futuro garantisse à temporalidade e
que, não por menos, se contrapõe claramente ao privilégio do
presente próprio da “visão vulgar do tempo”. A antítese que,
neste caso, se cria entre a afirmação do caráter “privativo” e
daquele “real” do passado e do futuro sanciona a clara
oposição entre as duas, dando à reflexão sucessiva uma
inconciliabilidade radical.
A lição de Heidegger é, então, de resistir a todos os
custos, refutando cada compromisso e cada tentação de acordo
entre as duas visões. Todavia, é licito reter que esta escolha
heideggeriana possa a bom direito ser posta em discussão,
afirmando, contrariamente ao filósofo alemão, que
provavelmente ambas as visões têm os mesmo direitos de
coexistir e que, antes, justamente da sua recíproca implicação
possa emergir uma compreensão do tempo que – não
limitando-se a afirmar o primado do presente – consente a
abertura de novas perspectivas.
91
In questo senso sarebbe preferibile non parlare più de “il passato” e de “il futuro”, ma ipotizzare una nuova terminologia, come
propone, per esempio, P. Ricoeur parlando di “passeità” e “futurità”. In proposito cfr. P. RICOEUR, Ricordare, dimenticare,
perdonare. L’enigma del passato, tr. it., Il Mulino, Bologna 2004.
184
3. REALIDADE, PERDIDA E AUSÊNCIA
Perguntamo-nos, pois, qual é essa recíproca implicação,
iniciando por colocar em evidência que a memória do passado
e a espera do futuro é ligada indissoluvelmente a uma dupla e
simultânea experiência: de uma parte o caráter “real” do
passado e do futuro afirma quanto o homem reencontra nele a
condição da sua atividade, de outra o passado e o futuro
implicam uma ausência respectivamente anterior e irreal que
determina a impossibilidade do homem de intervir sobre aquilo
que aconteceu e acontecerá. Em outros termos, faz parte da
experiência de cada um verificar como o passado é aquilo
sobre o qual não é dada nenhuma possibilidade de intervenção
por parte do homem, já que isso é definitivamente perdido e,
então, “não-é-mais”. Mas, igualmente, essa experiência não é
dissociada da consciência que ninguém pode desfazer-se do
seu passado, a partir do momento que aquele que “não é mais”
aconteceu realmente e, como tal, se repercute sobre a vida
presente. Do mesmo modo nada é tão mais ausente da vida do
aquele que “não-é-ainda”, mas nada é tão determinante para a
vida de um homem quanto aquilo que “será” o seu futuro: a
espera do futuro, de fato, é quanto mais fortemente individua a
experiência humana tanto menos é a disposição do homem.
Como conseqüência, o caráter de perda do passado e de
ausência do futuro não contradizem a realidade efetiva com a
qual o homem percebe o seu passado e o seu futuro, antes,
constituem-lhe um elemento essencial. A perda do passado e a
ausência do futuro se encontram indissoluvelmente ligados à
“realidade” do passado e do futuro de modo tal a poder afirmar
que o passado “não-é-mais” só porque “era” (e vice-versa) e o
futuro “não-é-ainda” só porque “será” (e vice-versa).
O passado, de fato, é alguma coisa de absolutamente
perdido e sobre o qual não se pode intervir, mas justamente
esta sua definitividade não lhe impede de ter sido aquilo que
realmente determina o presente do vivente. Analogamente, o
futuro é efetivamente ausente, mas esta sua ausência não lhe
veta de poder ser verdadeiramente o constitutivo da decisão
atual do homem. O passado e o futuro podem, então, ser
observados partindo da ligação que esses têm com o presente,
à condição, porém, de estabelecer ao mesmo tempo a ligação
que o presente possui com o passado e com o futuro. Noutros
termos, se o presente é o não ser mais do passado e o não ser
ainda do futuro, neste caso, só na ligação ao presente se pode
pensar o passado e o futuro, porque só no presente “aquilo que
era” não é mais e “aquilo que será” não é ainda. Todavia, isto
não pode fazer esquecer que existe também uma ligação do
presente com o passado e com o futuro, a partir do momento
que só no passado aquilo que agora “não é mais” era, e só no
futuro aquilo que no presente “não é ainda” será.
185
O privilégio do presente próprio da “visão vulgar do
tempo” cai e com ela dacai também a possibilidade de
descrever a temporalidade favorecendo indiscriminadamente
uma das suas dimensões. Se deve, antes de tudo, salvaguardar
a unidade do tempo humano, e, também, valorizar das três suas
instâncias. É por isso, neste caso, que a fórmula sintética da
“visão vulgar do tempo” – segundo a qual “não existe passado
e futuro sem presente” – há de ser refutada na sua
unilateralidade, mas a sua refuta não se condensa, por assim
dizer, na mera indicação da sua parcialidade: em jogo não há
somente a batalha contra o privilégio do presente, senão a
requisição de restituir ao presente a sua pertença a unidade do
tempo, deixando aparecer “ao presente” o peso real do passado
e do futuro. Nada mais que a temporalidade mesma pode
permitir igual restituição, pela qual não se trata de cancelar
(em nome de uma razão pós-moderna) a afirmação que “não
existe passado e futuro sem presente”, mas somente de indicar
que essa deve – obrigatoriamente – andar a passos juntos à
outra, segundo a qual “não existe presente sem futuro e sem
passado”.
Neste senso se compreende como a citação inicial de
Agostinho pode ser assumida qual fio condutor do argumento
proposto. A ligação, de fato, que o Bispo de Hipona vê entre as
três dimensões da temporalidade não é exclusivamente
endereçada a afirmar – como sugerem os críticos modernos e
pós-modernos – uma “metafísica da presença”. Agostinho está
seguramente preocupado em assinalar aquilo que chamamos o
caráter privativo do passado e do futuro, que ao presente
adquirem “presença”, mas tal atenção não é separável do fato
que existem três diferentes formas de conhecimento do tempo
(a memória, a visão e a espera). Isto significa que, agora, não
se trata simplesmente de reduzir o presente, transferindo a
consciência do momento atual ao passado e ao futuro, mas no
reconhecer que “havia” e “haverá” um modo de ser do homem,
diferente daquele presente e que só pode ser conhecido
respeitando a sua diferença do hoje do vivente. Neste senso,
para Agostinho, se dá um tríplice presente porque a memória e
a espera são o presente respectivamente do passado e do futuro
a partir do momento que, não só faz recordar o passado e
imaginar o futuro, mas pertencem ao passado e ao futuro
enquanto uma se realizou no passado e a outra se realizará no
futuro. Portanto, Agostinho pode afirmar que existe um
presente que é realmente do passado e do futuro e que se põe
como requisito indispensável à consciência da unidade do
tempo, já que a condição que torna possível pensar a presença
do ausente ao presente é quanto efetivamente pertence ao
passado e ao futuro, logo, quanto “era” e “será”: «I tempi sono
tre: il presente del passato, il presente del presente e il
presente del futuro […] il presente del passato è la memoria, il
186
presente del presente è la visione, il presente del futuro è
l’attesa».
4. O EVENTO E A PROMESSA
O êxito ao qual está junto o confronto com a “visão
vulgar do tempo” permite, a este ponto, retomar o fio do
argumento sobre futuro da família. A respeito às aporias
anteriormente assinaladas, agora, se pode, ao menos,
evidenciar que qualquer que seja o discurso sobre a família
deve necessariamente integrar o momento do matrimônio. A
exigi-lo não está somente a positivística declaração que não
existe família sem matrimônio, mas a evidente necessidade que
o homem tem de retornar à realidade do seu passado, enquanto
anteriormente passado e, por isso, efetivamente real. O que
temos até aqui evidenciado: não existe presente sem passado e
sem futuro, e a memória do passado não tem nunca a forma da
pontualidade da intuição sensível ou intelectual, no sentido que
o homem não recorda o próprio passado da maneira que
conhece o seu presente. A memória, para retomar mais uma
vez Agostinho, é do passado; a ele pertence e, portanto, o
reviver o passado para o homem não é somente o fazer emergir
imagens mais ou menos nítidas do esquecimento, esforçandose para transferir o próprio eu no tempo ido. Senão, se trata de
ocupar-se do homem que cada um de nós era e de confrontarse com a sua realidade efetiva.
Confrontar-se significa agir e interagir, logo, avizinhar
o próprio passado equivale colocar em jogo as próprias
paixões, desejos e espera: todos os elementos seriam abstrato
limitar retrospectivamente, porque estes pertenceram,
pertencem e pertencerão ao homem. Sinteticamente, trata-se de
reconhecer que o passado tem uma relação indiscutível com o
presente e o futuro e que, propriamente tal relação, determina a
qualidade da recordação. Agostinho a recordou juntando o
presente do passado ao presente do futuro, agora se trata de
fazê-lo valer especificamente para realidade da família, com a
advertência, todavia, de reconhecer que neste caso não está
questão somente o peso que a proteção ao futuro faz pesar
sobre a recordação (no sentido de como os projetos, as esperas
e desejos influenciam a apreensão do passado) mas também o
influxo que o passado exerce sobre o futuro.
Deste ponto de vista, o matrimônio é alguma coisa de
privilegiado: este, qualquer que seja o seu contexto (religioso
ou civil), representa um evento passado que tem um influxo
direto sobre o futuro. O matrimônio, de fato, obriga e a
obrigação que estabelece tem, desde o primeiro instante, o
caráter da promessa futura. A promessa de uma comunhão de
vida estabelecida por interesses comuns, a promessa de um
empenho recíproco, a promessa de dar-se reciprocamente uma
descendência, a promessa (por que não?) de um amor eterno.
187
Certo, em alguns casos a promessa poderá não ser mantida, e,
então, o matrimônio será um fardo que o passado faz pesar
sobre o futuro, em outros casos será um recurso sobre qual
construir o próprio futuro. Em todos os casos, porém, pertence
intrinsecamente ao matrimônio este caráter de promessa, e
como tal é imediatamente evidente que a memória do
matrimônio não se reduz no retornar a reapropriar-se do seu
significado, mas também no reconhecer que o futuro deve
fazer as contas com aquele momento passado que realmente
influi sobre o advir.
Esta posição tem, todavia, que ser precisada já que, se a
promessa aparece incontestavelmente como o sinal do peso
que o matrimônio exercida sobre o futuro da família, não por
menos ocorre reconhecer que a promessa é diretamente
possibilitada só pelo matrimônio. Em outros termos, o
matrimônio não é o evento transcorrido que a promessa
transfere sobre o futuro da família: o decidir-se prometer – e
então o obrigar-se pelo futuro – é o modo com o qual o homem
transmite o fato acontecido como memória do passado. Por
conseqüência, antes de prometer, o homem viu, sentiu e
experimentou aquilo que sucedeu, e então foi alcançado e
tocado pelo fato acontecido. Viria, neste caso, dizer que o
matrimônio reclama a promessa de mesma base de sua
essência, enquanto este antecipa a possibilidade de poder
prometer por parte do homem e, logo antecipa seu futuro.
Assim, se compreende que não tem sentido contradizer a
definitividade do matrimônio (já que o passado não pode ser
mudado) à incerteza do futuro da família, a partir do momento
que o fato do qual não se pode desembaraçar é justamente o
inexaurível recurso do futuro da família. Antes, a diferença
está justamente aqui: continuar aprisionados ao sentimento
doloroso do irreversível que faz aparecer a história da família
como o cemitério das promessas não mantidas, ou aprender a
repetir continuamente o evento original da família fazendo
ressurgir – nas nossas promessas – todas as promessas que o
matrimônio possui, também aquelas que não foram mantidas.
5. O SACRAMENTO: DOM E TAREFA
Pensar sobre o futuro da experiência familiar se
encontra deste modo inevitavelmente conjugado ao momento
passado do matrimônio naquele binômio de promesssa-evento
que não por nenhuma sigla, emblematicamente, também é a
base sobre a qual repropõe uma leitura teológica da família. É
indubitável, de fato, que a ligação evidenciada entre a
promessa e o evento do matrimônio induz a uma retomada do
ensinamento da Escritura que, contra cada determinismo
possível, fixa na fórmula do “mito” genesíaco o evento
originário ao qual se olha para interpretar a totalidade da
vivência afetiva do homem e da mulher. A retomada daquele
188
evento, que liberta que é chamada a operar no dispositivo ritual
colocado a disposição do sacramento, aparece, ao mesmo
tempo, como um dom e uma tarefa: o dom de uma totalidade
que, representando a unidade das formas históricas com a qual
o homem se atua, se oferece ao homem como o espaço no qual
ele pode pouco a pouco efetivamente determinar a si mesmo,
sem nunca porém afirmar de uma vez por todas. O mito,
então,
predispõe
uma
visão
da
relação
transcendência/liberdade na qual se evitam os extremos de uma
pura passividade do homem e de um insensato ativismo
antropológico: a atividade do homem é necessariamente
antecipada na figura absolutamente originária da condição
humana, a qual assume a forma de uma história humana além
do humano que torna humana a história do homem, já que doa
a este último a possibilidade concreta de dar forma a si mesmo.
O relacionamento à diferença da transcendência se caracteriza,
portanto, no mito como relação a um evento absoluto que,
propriamente por esta característica, pode ser ritualmente
repetido. Aquilo que funda a vivência histórica do homem não
pode ter a forma do princípio do qual se pode deduzir as
escolhas humanas, mas deve caracterizar-se como uma história
de liberdade absoluta que se doando concretamente
compreende todas as possibilidades da liberdade humana, e,
portanto, se revela como a verdade do homem que necessita
ser continuamente repetida para favorecer-nos a retomada na
forma de um acontecimento novo e livre. A verdade do mito é,
portanto, aquilo que consente à liberdade de ser tal e esta
última, por sua vez, tornar a manifestação e a atuação da
verdade porque a verdade mesma no seu acontecer já a tem
implicada92.
Como conseqüência a “representação” mítica da
experiência culmina no reconhecimento que a figura, por si,
absolutamente originária da condição humana, que se
repetindo consente à liberdade ser ela mesma, deve assumir a
forma de um evento. Aquilo que unifica o senso de
particularidade do tempo da liberdade finita deve acontecer na
forma de quanto é indisponível à liberdade, por isso adia para
uma iniciativa transcendente que deve ter a forma do evento
onde verdade e liberdade coincidem. Só o evento da revelação
cristológica dá razão a uma compreensão da existência do
homem tornada possível unicamente a partir de uma origem da
qual o sujeito não dispõe e que lhe torna acessível
simbolicamente, graças ao evento da sua atuação definitiva. O
simbolismo desta doação vem, portanto, compreendida no
sentido de que aquilo que indica o caráter livre do fundamento
não separadamente da liberdade humana: somente
reconhecendo em ato a iniciativa através da qual Deus já pôs
92
In proposito cfr. N. REALI, Fino all’abbandono. L'eucaristia nella fenomenologia di J. -L. Marion, Città Nuova, Roma 2001, pp.
271-284; S. UBBIALI, La teologia della famiglia in Italia. A proposito dell’uomo, la donna e l’originario simbolo della vita, in «La
Famiglia» XXVI (1992), pp. 5-17.
189
no tempo de Jesus o cumprimento da liberdade, é possível para
o homem reconhecer e atuar efetivamente na própria condição
de homem livre. A tarefa do sacramento é propriamente aquela
de tornar presente o evento absoluto da redenção humana, que
tendo tomado a forma de um ato de liberdade, se põe como
manifestação da identidade de Deus e do homem. Repetido
ritualmente, já que é absoluto, o evento toma a forma da
mediação simbólica da atuação da fé, uma vez que a existência
do homem vem aberta por uma origem que não é a disposição
da liberdade humana, mas torna-lhe acessível na doação
simbólica que o sacramento garante. O símbolo sacramental
não tem, portanto, somente o significado daquilo que indica o
caráter livre da liberdade de Deus – pelo qual Ele se dá e se
retrai, se doa e se esconde – muito menos especifica
platonicamente a retomada àquele aspecto espiritual do dado
material que se sela à atitude naturalista do olhar do sujeito. O
rito litúrgico da celebração identifica no símbolo do
sacramento a necessidade da presença da liberdade de Deus e
do homem para que nos possa ser manifestação da verdade
absoluta.
Diante do exposto esperamos que, deste modo, se possa
garantir uma consideração apropriada e não nominalística do
movimento de inclusão que existe entre matrimônio e família,
juntamente ao esclarecimento do motivo que explica, entre
outros, a necessária distinção entre matrimônio e família. A
partir do momento que o sacramento oferece a irrecusável
promessa de amor de Cristo à sua igreja, isto se torna o único
âmbito no qual o homem pode decidir pela orientação do seu
amor: a família não surge sobre o pressuposto de uma
impossível adequação do amor de Cristo, mas da possibilidade
efetiva de poder repetir o único amor de Cristo.
A família tem um único ponto a olhar para entender que
“tipo” de futuro possui: o matrimônio.
REFERENCIA BIBLIOGRÁFICA
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famiglia. Responsabilità generosa nel dono della vita, LDC,
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LDC, Torino 1979.
GUZZETTI, G. B., Per vivere in pienezza il matrimonio e la
famiglia, Ufficio diocesano per la famiglia, Milano 1980.
190
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LACOSTE, J. -Y., Notes sur le temps. Essai sur les raisons de la
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ROMANO, C., L’événement et le temps, PUF, Paris 1999.
TETTAMANZI, D., I due saranno una carne sola. Saggi
teologici sul matrimonio e famiglia, LDC, Torino 1986.
-------------------- La famiglia e l’ethos del dono, in ID., La
famiglia, via della chiesa, Massimo, Milano 1987.
UBBIALI, S., La teologia della famiglia in Italia. A proposito
dell’uomo, la donna e l’originario simbolo della vita, in «La
Famiglia» XXVI (1992).
191
8A
Quale tipo di famiglia per il futuro?
Nicola REALI
192
BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC
Riassunto «Tempora sunt tria praesens de praeteritis, praesens de praesentibus, praesens de
futuris […] praesens de praeteritis memoria, praesens de praesentibus contuitus,
praesens de futuris exspectatio»93. Questa famosa affermazione de «Le confessioni» di
S. Agostino, che ha conosciuto (insieme a tutto l’undicesimo libro della stessa opera)
infinite letture ed interpretazioni delle quali sarebbe impossibile dare conto brevemente,
risulta tuttavia utile per introdurci direttamente nel tema che ci è stato chiesto di
esporre. Chiedersi, infatti, quale tipo di famiglia si dà da pensare, ipotizzare e/o (forse)
da sperare per il futuro, è un interrogativo che mette a tema direttamente – prima ancora
che la domanda sul “tipo” di famiglia – la questione del futuro e, dunque, quella della
temporalità che occorre riconoscere al vivere umano nella famiglia. In altri termini, la
questione appartiene a quel complesso di argomentazioni che cercano di rendere
intelligibile all’uomo storicamente esistente quella dimensione così fondamentale della
sua vita che è rappresentata dalla propria temporalità. Certamente a questa osservazione
deve essere subito obiettato che qui non si tratta genericamente di comprendere la
temporalità del vivente, ma della famiglia, pertanto la domanda sul futuro della famiglia
non può confondersi indistintamente con quella sul futuro dell’uomo, ma deve essere
elaborata mantenendo intatta la sua specificità. Contemporaneamente non si può non
notare, tuttavia, che, se questa precisazione appare indiscutibile, in maniera altrettanto
cogente la dimenticanza che nel futuro della famiglia ne va dell’uomo in quanto tale è
altrettanto dannosa. Parlare della famiglia senza tematizzare quando (e a quali
condizioni) in definitiva si possano dichiarare “umani” l’uomo e la donna è, infatti, una
dimenticanza che priverebbe qualsiasi considerazione sulla famiglia del risvolto
necessario a comprenderne l’intrinseca plausibilità “umana” della relazione tra i sessi
che lì si realizza.
In questo senso si capisce come l’aver evocato il suggerimento agostiniano
sull’esperienza che l’uomo ha del tempo può risultare utile a rispondere alla domanda
del titolo proposto, domanda che a questo punto può essere tranquillamente riformulata
senza correre il rischio di fraintenderne la posta in gioco: indicare quale “tipo” di
famiglia ci sarà in futuro è tentare di mostrare quale “tipo” di futuro caratterizza la vita
dell’uomo e della donna in famiglia.
Parole Chiavi Famiglia, Futuro, Coniugalità
93
«I tempi sono tre: il presente del passato, il presente del presente e il presente del futuro […] il presente del passato è la memoria,
il presente del presente è la visione, il presente del futuro è l’attesa»: AGOSTINO, Confessionum, XI, 20,26.
193
1. MATRIMONIO E FAMIGLIA
Proviamoci, allora, a tentare di illuminare questa
questione iniziando proprio dal tentativo di mostrare che cosa
significhi caratterizzare la famiglia come il luogo nel quale si
realizza una vera esperienza di umanità dell’uomo e della
donna.
Da questo punto di vista può essere utile, anzitutto,
segnalare brevemente il quadro entro cui la teologia
contemporanea (in particolar modo la teologia morale) ha
cercato di illuminare il problema in questione. La reazione che
a vario titolo, e in vario modo, recentemente si è strutturata
contro l’ideale razionalistico (che unanimemente viene
riconosciuto come parte integrante della cosiddetta “teologia
manualistica), ha spinto in direzione di una rivisitazione del
tema della famiglia che ha preso le mosse da una
rielaborazione dei suoi presupposti antropologici. In
particolare si è largamente diffusa la convinzione che fosse
impossibile perseverare in una visione sostanzialistica del
soggetto dalla quale dedurre l’essenza del vincolo coniugale e,
conseguentemente, si è fatto largo il tentativo di restituire
valore riflessivo alla dimensione di storicità che
contraddistingue inesorabilmente la vita dell’uomo. Si è
prodotta così una denuncia dell’astrattezza della teologia
precedente, unitamente ad un rifiuto di una visione meramente
giuridica del legame familiare che ha dichiarato implausibile
procedere attraverso una preventiva dichiarazione dell’identità
della famiglia, cui seguirebbe l’indicazione dei comportamenti
morali adeguati.
La supremazia dell’esperienza sulla norma è diventata
così il cavallo di battaglia di una teologia che, pur sentendosi
finalmente libera dai lacci del razionalismo moderno, aveva
tuttavia il problema di non degenerare in uno storicismo che
l’avrebbe condotta tra le braccia di quel diffuso scetticismo
post-moderno sull’identità della famiglia che si voleva
combattere. In questo modo la teologia ha cercato di ovviare a
questo pericolo, da una parte ribadendo il valore universale
dell’immagine tradizionale della famiglia, dall’altro cercando
nella filosofia un modello di pensiero che potesse essere utile a
questa riaffermazione. La scelta, quasi unanimemente, è caduta
su ciò che in maniera estremamente generale e grossolana
possiamo
chiamare
la
filosofia
dialogica
o
dell’interpersonalità. In pratica si è preso in prestito questo
dato della filosofia (in parte moderna in parte contemporanea)
identificando in esso il principio normativo dell’esperienza
familiare, poiché universalmente accessibile. Il procedimento,
seppur declinato con dizioni di volta in volta differenti (la
194
carità, il dono, la responsabilità, la solidarietà) 94, ha condotto
sempre al medesimo risultato: sottolineare l’impossibilità di
abbandonare l’istituzione familiare quale forma originaria di
quella dimensione universale del vivere umano che è la
relazione io-tu.
In questo modo, tuttavia, non si può non notare che il
tentativo di comprendere l’elemento specifico della famiglia
facendo ricorso alle categorie dell’interpersonalità, ha
paradossalmente ribadito le difficoltà connesse al modello
teologico che pur si voleva superare. Il problema è illustrabile
partendo dalla modalità con cui si è assunto il principio
dell’interpersonalità: spostando l’attenzione dalla descrizione
della norma alla fondazione della norma, si è pensato di
ritrovare nella nozione di interpersonalità il radicamento
“ontologico” della norma stessa. Così facendo, è la nozione di
interpersonalità ad assumere la funzione di elemento
qualificante di una teologia che, una volta asserita la struttura
fondante della relazione io-tu, può successivamente rivolgere
la sua attenzione alla giustificazione dell’identità della famiglia
come della realtà universalmente dotata di valore, e, quindi,
oggetto del volere. Nella pacifica convinzione di aver trovato
una nuova base “naturale” al discorso teologico, il
ragionamento può successivamente declinare lo specificità
cristiana della famiglia da una parte rifacendosi al mistero
trinitario (come modello originario della relazione
interpersonale95) e dall’altra introducendo il tema della grazia
per significare la dimensione salvifica della compagine
familiare dove «ci si salva o ci si perde insieme»96.
Indice di questa riproposizione delle difficoltà imputate
allo schema precedente è la difficoltà della teologia recente ad
integrare nella riflessione sulla famiglia il tema del
matrimonio. In altri termini il peso che nel ragionamento viene
ad assumere la premessa di tipo interpersonale, finisce per
configurare il momento matrimoniale solamente come l’atto
che sancisce pubblicamente l’inizio dell’esperienza familiare,
poiché questa è già spiegata dal principio interpersonale. Non
si cerca, infatti, di mostrare l’identità della famiglia partendo
dal matrimonio, ma si enuncia solamente il principio secondo
cui il matrimonio è riservato a quella relazione di coppia che
voglia assumere (o che possa assumere) tutti i diritti e doveri
che spettano alla famiglia in quanto tale. Simile procedimento
dimentica, tuttavia, di indicare la necessità a partire dalla quale
matrimonio e famiglia non possono essere considerati
94
Tra gli altri, cfr. G. GATTI, Morale matrimoniale e familiare, in ID., Corso di morale, vol. III: Morale sessuale, educazione
dell'amore, LDC, Torino 1979, pp. 161-327; G. B. GUZZETTI, Per vivere in pienezza il matrimonio e la famiglia, Ufficio diocesano
per la famiglia, Milano 1980; D. TETTAMANZI, I due saranno una carne sola. Saggi teologici sul matrimonio e famiglia, LDC,
Torino 1986; ID., La famiglia e l’ethos del dono, in ID., La famiglia, via della chiesa, Massimo, Milano 1987, pp. 146-162; L.
CICCONE, Per una cultura della vita a partire dalla famiglia. Responsabilità generosa nel dono della vita, LDC, Torino 1988.
95
Cfr. G. MAZZANTI, Teologia sponsale e sacramento delle nozze. Simbolo e simbolismo nuziale, EDB, Bologna 2001, pp. 247-277.
96
GATTI, Morale matrimoniale …, op. cit., p. 225.
195
separatamente, poiché non viene chiarita la ragione per cui una
relazione di coppia deve originarsi dal matrimonio, dal
momento che la relazione stessa è spiegata dalla “legge
universale” dell’interpersonalità e non dal matrimonio.
La formalità con cui questo ragionamento sulla
famiglia assume il momento matrimoniale, diventa ancor più
lampante nel caso della famiglia cristiana. Qui, infatti,
l’affermazione secondo cui alla base della famiglia cristiana si
pone inequivocabilmente il sacramento del matrimonio è
spesso intesa in modo riduttivo rispetto a ciò che propriamente
vi è in gioco. La spiegazione più consueta arriva a fissare il
carattere originario della famiglia nel sacramento, nella misura
in cui quest’ultimo appare “divinamente istituito”. Ragion per
cui, di fronte all’impossibilità di reperire nel sacramento
l’identità della famiglia, si opera un generico appello alla
“volontà” di Dio (o di Gesù) al fine di mostrare che la famiglia
non sorge solamente dalla risposta al “bisogno” dell’uomo e
della donna. Il ragionamento, tuttavia, non apporta
significative novità, perché, ancora una volta, la necessità di
legare i due momenti non appare intrinsecamente al rapporto
tra matrimonio e famiglia, ma nel positivistico richiamo ad una
volontà istituente. Così facendo, il sacramento del matrimonio
si configura come l’inizio pubblico di una famiglia cristiana, la
cui identità, nondimeno, è da reperire al di là del sacramento
stesso.
C'è, insomma, nella teologia contemporanea una
spiccata tendenza a separare matrimonio e famiglia che, seppur
mai affermata, nondimeno pesa notevolmente nella sviluppo
del ragionamento. Prova ne è che, se volessimo tentare di
offrire una risposta all’interrogativo che si è proposto
all’inizio, dimenticando l’intrinseco nesso che lega la famiglia
al matrimonio, saremmo costretti a giungere ad un’aporia
insuperabile. Quest’ultima è l’evidente impossibilità di
argomentare sul futuro dell’uomo e della donna che vivono in
famiglia in maniera differente da una generica argomentazione
sul futuro di ogni vivente. Su questa impostazione graverebbe,
allora, come un macigno la consapevolezza che non vi sarebbe
alcunché di esistenziale a dare differenza specifica al futuro
della famiglia, la quale – cosa ancor più grave – sarebbe
assorbita nella vicenda di tutti coloro che appartengono al
tempo destinato a scorrere verso la morte.
2. LA “VISIONE VOLGARE DEL TEMPO”
L’aporia cui giunge la riflessione più consueta sulla
famiglia obbliga, pertanto, a cercare una nuova soluzione alla
domanda iniziale partendo dal legame, che occorre riconoscere
come vincolante, tra matrimonio e famiglia. Che cosa significa
per l’uomo e la donna che vivono in famiglia l’antecedente del
matrimonio? E, più precisamente ancora, perché per pensare il
196
futuro dell’esperienza familiare occorre fare riferimento al
momento passato del matrimonio? La domanda, come si vede,
mette a tema la questione del futuro della famiglia a partire dal
suo passato, cosa che evidentemente chiede di essere
specificata partendo dal legame che necessariamente il futuro
possiede col passato.
Per poter svolgere adeguatamente questo compito,
forse, conviene anzitutto indicare – in negativo – a quali
condizioni esso risulterebbe impossibile. Da questo punto di
vista è utile in primo luogo mostrare l’imprecisione di una
riflessione che si limitasse a considerare la misura oggettiva
del tempo (il tempo dell’orologio) indipendentemente dalla sua
verità soggettiva (il tempo vissuto)97. La perpetua rotazione di
una lancetta attorno ad un punto fisso su un quadrante o
l’incessante susseguirsi di cifre su uno schermo presenta
solamente una “successione di istanti” che in realtà non dice
assolutamente nulla della maniera con cui l’uomo fa esperienza
del tempo. Prove ne è che chiunque ha sperimentato quanto un
tempo oggettivamente breve (l’attesa di un autobus) può essere
in realtà lungo e, viceversa, quanto un tempo oggettivamente
lungo (vacanza) può essere breve. Non c'è bisogno, dunque, di
soffermarsi ulteriormente a mostrare come simile
presentazione del tempo, nel nostro caso, sarebbe letteralmente
inutile.
Risulta vantaggioso, invece, indicare come esista
un’altra visione che, apparentemente rispettosa del “tempo
vissuto”, conduce anch’essa ad una impasse che precluderebbe
la possibilità di rispondere alla domanda che si è posta. Tale
soluzione ultimamente è riconducibile a ciò Heidegger ha
chiamato il “concetto volgare di tempo”: la ri(con)duzione del
passato e del futuro al presente98. In altri termini passato e
futuro sarebbero un doppio “non-presente” o un doppio “nontempo”, sulla pacifica convinzione che solo il presente “è” il
tempo del quale l’uomo può fare esperienza: il passato termina
e il futuro comincia nel momento stesso in cui il presente
comincia o finisce. Pertanto, l’equivalenza tra presente ed
essere, condurrebbe all’affermazione dell’inesistenza ontica
del passato e del futuro come ciò che rispettivamente “non-èpiù” e “non-è-ancora”. In questa interpretazione che, sempre
seguendo Heidegger, accomuna la storia della metafisica da
Aristotele a Nietzsche (passando per Hegel), la mutua
relazione tra passato e futuro sarebbe disponibile solo nel “qui
e ora” della coscienza umana che al presente si assicura la
presenza del passato e del futuro. Nel nostro caso, dunque,
l’unico orizzonte temporale della famiglia sarebbe quello
dell’attività intenzionale del soggetto che, al presente, anticipa
97
Tra gli altri, cfr. J. -Y. LACOSTE, Notes sur le temps. Essai sur les raisons de la mémoire et de l’espérance, PUF, Paris 1990; C.
ROMANO, L’événement et le temps, PUF, Paris 1999; E. FALQUE, Métamorphose de la finitude. Essai philosophique sur la naissance
et la résurrection, Cerf, Paris 2004.
98
M. HEIDEGGER, Essere e tempo, §§ 81-82, tr. it., Longanesi, Milano 1976, pp. 502-520.
197
la presenza del futuro ed estrae dalle sue reminiscenze il tempo
ormai trascorso. Il matrimonio si troverebbe, pertanto,
confinato nel passato inteso come un’entità o una località in
cui giacerebbero i ricordi dimenticati che l’anámnesis potrebbe
estrarre.
A questo punto dovrebbe essere chiaro che conferire un
favore indiscusso al presente non aiuta una reale comprensione
della temporalità, poiché l’esperienza del tempo mette in crisi
proprio questo univoco privilegio del presente e corrompe
l’idea che non esiste passato e futuro senza presente. Mai come
in questo caso, infatti, la celebrazione del presente va di pari
passo con un riduzione del linguaggio che, mentre tende a
sostantivare i tempi (“il passato”, “il futuro”), ne proclama allo
stesso tempo quella sostanzialità che finisce per omologarli a
due entità o località99. Così, non deve suscitare meraviglia
affermare come il linguaggio stesso possa ribaltare la “visione
volgare del tempo”, denunciando, da una parte, la scelta –
ancora una volta unilaterale – di privilegiare una dizione
puramente privativa del passato e del futuro (ciò che “non-èpiù” e “non-è-ancora”), dall’altra, evidenziando che del
passato e del futuro se ne possa parlare anche nei termini di ciò
che “è stato” (essente stato) e “sarà”. Se la prima definizione,
di tipo avverbiale, ha carattere privativo; la seconda, di tipo
verbale, lo ha positivo. Anzi, si può perfino dire che la seconda
accentua il carattere “reale” del passato e del futuro poiché
entrambi sono affermati non in relazione ad una mancanza
d’essere (“non-è più” “non-è ancora”), ma per riferimento alla
loro realtà effettuale: “è stato” e “sarà”.
Quanto a questa seconda indicazione è noto che proprio
Heidegger, nel quadro di un’ontologia del Dasein incentrata
sulla Sorge (cura), ne abbia imposto la legittimità, giungendo a
decretare il primato del futuro che nella «risolutezza
precorritrice (vorlaufende Entschlossenheit)» anticipa il
«precorrimento (Vorlaufen)» della morte. Le differenze delle
tre istanze temporali, sono, pertanto, poste a partire dall’unità
presunta che il futuro garantisce alla temporalità e che,
nondimeno, si contrappone nettamente al privilegio del
presente proprio della “visione volgare del tempo”. L’antitesi
che in questo modo si crea tra l’affermazione del carattere
“privativo” e di quello “reale” del passato e del futuro sancisce
la netta opposizione tra le due, consegnando alla riflessione
successiva un’inconciliabilità radicale.
La lezione di Heidegger è, dunque, di resistere a tutti i
costi rifiutando ogni compromesso e ogni tentazione di
accordo tra le due visioni. Pur tuttavia, è lecito ritenere che
questa scelta heideggeriana possa a buon diritto essere messa
in discussione, affermando, contrariamente al filosofo tedesco,
99
In questo senso sarebbe preferibile non parlare più de “il passato” e de “il futuro”, ma ipotizzare una nuova terminologia, come
propone, per esempio, P. Ricoeur parlando di “passeità” e “futurità”. In proposito cfr. P. RICOEUR, Ricordare, dimenticare,
perdonare. L’enigma del passato, tr. it., Il Mulino, Bologna 2004.
198
che probabilmente entrambe le visioni hanno pari diritto di
coesistere e che, anzi, proprio dalla loro reciproca implicazione
possa emergere una comprensione del tempo che – non
limitandosi ad affermare il primato del presente – consente
l’apertura di nuove prospettive.
3. REALTÀ, PERDITA E ASSENZA
Chiediamoci, allora, quale sia questa reciproca
implicazione, iniziando col mettere in evidenza che la memoria
del passato e l’attesa del futuro è legata indissolubilmente ad
una duplice e simultanea esperienza: da una parte proprio il
carattere “reale” del passato e del futuro afferma quanto
l’uomo ritrovi in essi la condizione della sua attività, dall’altra
il passato e il futuro implicano un’assenza rispettivamente
anteriore e irreale che determina l’impossibilità dell’uomo ad
intervenire su quello che è successo e succederà. In altri
termini fa parte dell’esperienza di ognuno verificare come il
passato è ciò su cui non è data nessuna possibilità di intervento
da parte dell’uomo poiché esso è definitivamente perso e,
quindi, “non-è-più”. Ma, parimenti, questa esperienza non è
dissociabile dalla consapevolezza che nessuno può disfarsi del
suo passato, dal momento che quel che “non è più” è realmente
accaduto e, come tale, si ripercuote sulla vita presente. Allo
stesso modo niente è tanto più assente dalla vita di quel che
“non-è-ancora”, ma nulla è tanto più determinante per la vita di
un uomo quanto ciò che “sarà” il suo futuro: l’attesa del futuro,
infatti, è quanto più fortemente individua l’esperienza umana
tanto meno è a disposizione dell’uomo.
Di conseguenza il carattere di perdita del passato e di
assenza del futuro non contraddicono la realtà effettiva con cui
l’uomo percepisce il suo passato e il suo futuro, anzi, ne
costituiscono un elemento essenziale. La perdita del passato e
l’assenza del futuro si ritrovano indissolubilmente legate alla
“realtà” del passato e del futuro in modo tale da poter
affermare che il passato “non-è-più” solo perché “è stato” (e
viceversa) e il futuro “non-è-ancora” solo perché “sarà” (e
viceversa).
Il passato, infatti, è qualcosa di inderogabilmente perso
e sul quale non si può intervenire, ma proprio questa sua
definitività non gli impedisce di essere stato realmente ciò che
determina il presente del vivente. Analogamente il futuro è
effettivamente assente, ma questa sua assenza non gli vieta di
poter essere veramente il costitutivo della decisione attuale
dell’uomo. Il passato e il futuro possono, dunque, essere
osservati partendo dal legame che essi hanno col presente, a
condizione, però, di stabilire contemporaneamente il legame
che il presente possiede col passato e col futuro. In altri
termini, se il presente è il non essere più del passato e il non
essere ancora del futuro, allora solo nel legame al presente si
199
può pensare il passato e il futuro, perché solo nel presente “ciò
che è stato” non è più e “ciò che sarà” non è ancora. Tuttavia,
questo non può fare dimenticare che esiste anche un legame
del presente al passato e al futuro, dal momento che solo nel
passato ciò che ora “non è più” è stato; e solo nel futuro ciò
che al presente “non è ancora” sarà.
L’univoco privilegio del presente proprio della “visione
volgare del tempo” cade e con esso decade anche la possibilità
di descrivere la temporalità favorendo indiscriminatamente una
delle sue dimensioni. La complessità dell’esperienza temporale
fa intuire che il profilo riflessivo capace di accostare la
questione del tempo deve salvaguardarne anzitutto l’unità. Ma
tale unità rimanda a un interesse per la piena valorizzazione
della specificità delle tre istanze del tempo che – proprio
perché si tratta dell’unico tempo – emerge dalla loro reciproca
implicazione. È per questo, allora, che la formula sintetica
della “visione volgare del tempo” – secondo cui “non esiste
passato e futuro senza presente” – ha da essere rifiutata nella
sua unilateralità, ma il suo rifiuto non si condensa, per così
dire, nella mera indicazione della sua faziosità: in gioco non c'è
solamente la battaglia contro il privilegio del presente, semmai
la richiesta di restituire al presente la sua appartenenza
all’unità del tempo, lasciando apparire “al presente” il peso
reale del passato e del futuro. Null’altro che la temporalità
stessa può permettere simile restituzione, per cui non si tratta
di cancellare (in nome di una ragione postmoderna)
l’affermazione che “non esiste passato e futuro senza
presente”, ma solamente di indicare che essa deve –
obbligatoriamente – andare di pari passo assieme all’altra
secondo cui “non esiste presente senza futuro e senza passato”.
In questo senso si comprende come l’iniziale citazione
di Agostino possa essere assunta quale filo conduttore del
ragionamento proposto. Il legame, infatti, che il Vescovo
d’Ippona vede tra le tre dimensioni della temporalità non è
esclusivamente indirizzata a affermare – come suggeriscono i
critici moderni e postmoderni – una “metafisica della
presenza”. Agostino è sicuramente preoccupato di segnalare
quello che abbiamo chiamato il carattere privativo del passato
e del futuro, che al presente acquistano “presenza”, ma tale
attenzione non è separabile dal fatto che esistono tre differenti
forme di conoscenza del tempo (la memoria, la visione e
l’attesa). Questo significa che, allora, non si tratta
semplicemente di raddoppiare il presente, trasferendo la
coscienza del momento attuale al passato e al futuro, quanto
nel riconoscere che “c'è stato” e “ci sarà” un modo di essere
dell’uomo differente da quello presente e che può essere
conosciuto solo rispettando la sua differenza dall’oggi del
vivente. In questo senso per Agostino si dà un triplice presente
perché la memoria e l’attesa sono il presente rispettivamente
del passato e del futuro dal momento che, non solo fanno
200
ricordare il passato e immaginare il futuro, ma appartengono al
passato e al futuro in quanto si l’una si è realizzata nel passato
l’altra si realizzerà nel futuro. Pertanto, Agostino può
affermare che esiste un presente che è realmente del passato e
del futuro e che si pone come requisito indispensabile alla
conoscenza dell’unità del tempo, poiché la condizione che
rende possibile pensare la presenza dell’assente al presente è
quanto effettivamente appartiene al passato e al futuro, dunque,
quanto “è stato” e “sarà”: «I tempi sono tre: il presente del
passato, il presente del presente e il presente del futuro […] il
presente del passato è la memoria, il presente del presente è la
visione, il presente del futuro è l’attesa».
4. L’EVENTO E LA PROMESSA
L’esito a cui è giunto il confronto con la “visione
volgare del tempo” permette, a questo punto, di riprendere il
filo del ragionamento sul futuro della famiglia. Rispetto alle
aporie precedentemente segnalate, adesso, si può per lo meno
evidenziare che qualsivoglia discorso sulla famiglia deve
necessariamente integrare il momento del matrimonio. A
richiederlo non è solamente la positivistica dichiarazione che
non esiste famiglia senza matrimonio, ma l’evidente necessità
che l’uomo ha di ritornare alla realtà del suo passato, in quanto
anteriormente passato e, per questo, effettivamente reale. Lo si
è or ora evidenziato: non esiste presente senza passato e senza
futuro, e la memoria del passato non ha mai la forma della
puntualità dell’intuizione sensibile o intellettuale, nel senso che
l’uomo non ricorda il proprio passato alla maniera con cui
conosce il suo presente. La memoria, per riprendere ancor una
volta Agostino, è del passato; ad esso appartiene e, pertanto, il
riandare al passato per l’uomo non è solamente il far emergere
immagini più o meno nitide dall’oblio, sforzandosi di trasferire
il proprio io nel tempo andato. Semmai, si tratta di occuparsi
dell’uomo che ciascuno di noi è stato e di confrontarsi con la
sua realtà effettiva.
Confrontarsi significa agire e interagire, quindi,
avvicinare il proprio passato equivale mettere in gioco le
proprie passioni, desideri e attese: tutti elementi che sarebbe
astratto limitare retrospettivamente, perché essi sono
appartenuti, appartengo e apparterranno all’uomo. In breve, si
tratta di riconoscere che il passato ha un rapporto indiscutibile
col presente e il futuro e che, proprio tale relazione, determina
la qualità del ricordo. Agostino ce lo ha ricordato
congiungendo il presente del passato al presente del futuro,
adesso si tratta di farlo valere specificatamente per la realtà
della famiglia, con l’avvertenza, tuttavia, di riconoscere che in
questo caso non è in questione solamente il peso che la
protensione al futuro fa pesare sul ricordo (nel senso di come i
201
progetti, le attese e desideri influenzano l’apprensione del
passato), quanto l’influsso che il passato esercita sul futuro.
Da questo punto vista, il matrimonio è qualcosa di
privilegiato: esso, qualunque sia il suo contesto (religioso o
civile), rappresenta un evento passato che ha un influsso diretto
sul futuro. Il matrimonio, infatti, obbliga e l’obbligazione che
stabilisce ha, fin dal primo istante, il carattere della promessa
futura. La promessa di una comunione di vita stabilita da una
comunanza di interessi, la promessa di un impegno reciproco,
la promessa di darsi reciprocamente una discendenza, la
promessa (perché no?) di un amore eterno. Certo, in alcuni casi
la promessa potrà non essere mantenuta, e, allora, il
matrimonio sarà un fardello che il passato fa pesare sul futuro,
in altri casi sarà una risorsa sulla quale costruire il proprio
futuro. In tutti i casi, comunque, appartiene intrinsecamente al
matrimonio questo carattere di promessa, e come tale è
immediatamente evidente che la memoria del matrimonio non
si riduce nel riandare a riappropriarsi del suo significato,
quanto nel riconoscere che il futuro deve fare i conti con quel
momento passato che realmente influisce sull’avvenire.
Questa posizione ha, tuttavia, da essere precisata
poiché, se la promessa appare incontestabilmente come il
contrassegno del peso che il matrimonio esercita sul futuro
della famiglia, nondimeno occorre riconoscere che la promessa
è direttamente resa possibile solo dal matrimonio. In altri
termini, il matrimonio non è il nudo evento trascorso che la
promessa trasferisce sul futuro della famiglia: il decidersi di
promettere – e quindi l’obbligarsi per il futuro – è il modo con
cui l’uomo trasmette il fatto accaduto come memoria del
passato. Di conseguenza, prima di promettere, l’uomo ha visto,
sentito e sperimentato quel che è successo, e quindi è stato
raggiunto e toccato dal fatto accaduto. Verrebbe, allora, da dire
che il matrimonio reclama la promessa dal fondo stesso della
sua essenza, in quanto esso anticipa la possibilità di poter
promettere da parte dell’uomo e, dunque, anticipa il suo futuro.
Così, si comprende che non ha senso contrapporre la
definitività del matrimonio (poiché il passato non può essere
cambiato) all’incertezza del futuro della famiglia, dal momento
che il fatto del quale non ci si può sbarazzare è proprio
l’inesauribile risorsa del futuro della famiglia. Anzi la
differenza sta proprio qui: rimanere imprigionati nel
sentimento doloroso dell’irreversibile che fa apparire la storia
della famiglia come il cimitero delle promesse non mantenute,
oppure imparare a ridire continuamente l’evento originante
della famiglia facendo risorgere – nelle nostre promesse – tutte
le promesse che il matrimonio possiede, anche quelle che non
sono state mantenute.
202
5. IL SACRAMENTO: DONO E COMPITO
Pensare il futuro dell’esperienza famigliare si ritrova in
questo modo inevitabilmente congiunto al momento passato
del matrimonio in quel binomio di promessa-evento che non
per nulla sigla, emblematicamente, anche la base sulla quale
riproporre una lettura teologica della famiglia. È indubbio,
infatti, che il legame evidenziato tra la promessa e l’evento del
matrimonio induce a una ripresa dell’insegnamento della
Scrittura che, contro ogni possibile determinismo, fissa nella
formula del “mito” genesiaco l’evento originario al quale
guardare per interpretare la totalità della vicenda affettiva
dell’uomo e della donna. La ripresa di quell’evento, che libertà
che è chiamata ad operare nel dispositivo rituale messo a
disposizione dal sacramento, appare contemporaneamente
come un dono e un compito: il dono di una totalità che,
rappresentando l’unità delle forme storiche con cui l’uomo si
attua, si offre all’uomo come lo spazio in cui egli può di volta
in volta effettivamente determinare se stesso, senza però mai
affermare una volta per sempre. Il mito allora predispone una
visione del rapporto trascendenza/libertà in cui si evitano gli
estremi di una pura passività dell'uomo e di un insensato
attivismo antropologico: l'attività dell'uomo è necessariamente
anticipata nella figura assolutamente originaria della
condizione umana, la quale assume la forma di una storia
umana al di là dell'umano che rende umana la storia dell'uomo,
giacché dona a quest'ultimo la possibilità concreta di dare
forma a se stesso. Il rapporto alla differenza della trascendenza
si caratterizza pertanto nel mito come relazione ad un evento
assoluto che, proprio per questa sua caratteristica, può essere
ritualmente ripetuto. Ciò che fonda la vicenda storica
dell'uomo non può avere la forma del principio da cui dedurre
le scelte umane, ma deve caratterizzarsi come una storia di una
libertà assoluta che donandosi concretamente comprende tutte
le possibilità della libertà umana, e pertanto si rivela come la
verità dell'uomo che necessita di essere continuamente ripetuta
per favorirne la ripresa nella forma di un accadimento nuovo e
libero. La verità del mito è pertanto ciò che consente alla
libertà di essere tale e quest'ultima, a sua volta, diventa la
manifestazione e l'attuazione della verità perché la verità stessa
nel suo accadere l'ha già implicata100.
Di conseguenza la «rappresentazione» mitica
dell'esperienza culmina nel riconoscimento che la figura di per
sé assolutamente originaria della condizione umana, che
ripetendosi consente alla libertà di essere stessa, deve assumere
la forma di un evento. Ciò che unifica il senso della
particolarità del tempo della libertà finita deve accadere nella
100
In proposito cfr. N. REALI, Fino all’abbandono. L'eucaristia nella fenomenologia di J. -L. Marion, Città Nuova, Roma 2001, pp.
271-284; S. UBBIALI, La teologia della famiglia in Italia. A proposito dell’uomo, la donna e l’originario simbolo della vita, in «La
Famiglia» XXVI (1992), pp. 5-17.
203
forma di quanto è indisponibile alla libertà, per questo rimanda
ad un'iniziativa trascendente che deve avere la forma
dell'evento dove verità e libertà coincidono. Solo l’evento della
rivelazione cristologica nel suo carattere insuperabilmente
evenemenziale dà ragione di una comprensione dell'esistenza
dell'uomo resa possibile unicamente a partire da un'origine di
cui il soggetto non dispone e che gli diviene accessibile
simbolicamente, grazie all'evento della sua attuazione
definitiva. La simbolicità di questa donazione va pertanto
compresa nel senso di ciò che indica il carattere libero del
fondamento non separatamente dalla libertà umana: soltanto
riconoscendo in atto l'iniziativa attraverso cui Dio ha già posto
nel tempo di Gesù il compimento della libertà, è possibile per
l'uomo riconoscere e attuare effettivamente la propria
condizione di uomo libero. Compito del sacramento è proprio
quella di rendere presente l'evento assoluto della redenzione
umana, che avendo preso la forma di un atto di libertà, si pone
come manifestativo dell'identità di Dio e dell'uomo. Ripetuto
ritualmente poiché assoluto, l'evento prende la forma della
mediazione simbolica dell'attuazione della fede, poiché
l'esistenza dell'uomo viene dischiusa da un'origine che non è a
disposizione della libertà umana, ma diviene ad essa
accessibile nella donazione simbolica che il sacramento
garantisce. Il simbolo sacramentale non ha quindi solamente il
significato di ciò che indica il carattere libero della libertà di
Dio – per cui Egli si dà e si ritrae, si dona e si nasconde – né
tanto meno specifica platonicamente il richiamo a quell'aspetto
spirituale del dato materiale che si cela all'attitudine
naturalistica dello sguardo del soggetto. Il rito liturgico della
celebrazione identifica nel simbolo del sacramento la necessità
della presenza della libertà di Dio e dell'uomo perché ci possa
essere manifestazione della verità assoluta.
Va da sé che, in questo modo, si possa garantire una
considerazione appropriata e non nominalistica del movimento
d’inclusione che esiste tra matrimonio e famiglia, unitamente
al chiarimento del motivo che spiega l’altrettanto necessaria
distinzione tra il matrimonio e la famiglia. Dal momento che il
sacramento offre l’inderogabile promessa di amore di Cristo
alla sua chiesa, questo diventa l’unico ambito in cui l’uomo
può decidere dell’orientamento del suo amore: la famiglia non
sorge sul presupposto di un’impossibile adeguazione
dell’amore di Cristo, ma dalla possibilità effettiva di poter
ridire l’unico amore di Cristo.
La famiglia ha un unico punto al quale guardare per
capire che “tipo” di futuro possiede: il matrimonio.
204
BIBLIOGRAFIA
CICCONE, L., Per una cultura della vita a partire dalla
famiglia. Responsabilità generosa nel dono della vita, LDC,
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205
9
Infâncias
Maria de Fátima Pessôa LEPIKSON: [email protected]
CV: http://lattes.cnpq.br/7702914755827440 - Doutor pelo PPGE/UFBA; Mestre em
Educação pelo CED/UFSC; Graduada em Serviço Social pela Escola de Serviço Social/UCSAL;
professora e coordenadora da Escola de Serviço Social/UCSAL.
206
BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC
Resumo A despeito da melhoria dos indicadores sociais do Brasil, a realidade de grande parte
das crianças e adolescentes ainda é de elevado nível de desproteção. Tem-se, em função
do conhecimento e das pesquisas realizadas ao longo dos últimos anos, a
responsabilidade social e acadêmica de socializar o conhecimento sobre uma cruel
realidade. Apesar dos direitos conquistados a partir da década de 80 e das ações
afirmativas dos últimos anos, até hoje milhões de crianças e adolescentes brasileiros
vivem em situação de extrema vulnerabilidade, mas este quadro pode e precisa ser
revertido. Este, portanto, é o objetivo primordial deste texto. Para alcançá-lo, discuto as
ideias construídas sobre a infância a partir de sua condição de classe. Concluo o texto
demonstrando que a condição de inserção socioeconômica dos sujeitos em questão
diferencia tempos de vida coetâneos, não só em relação ao seu presente, como também
nas suas possibilidades de inserção social futuras.
Palavras-chave infâncias, proteção, desigualdade social.
Abstract Despite the improvement of social indicators in Brazil, the reality of its most children
and adolescents is still a high level of defenselessness. As a function of the knowledge
acquired during my research work over the last years, has the social and academic
responsibility of socializing my conclusions about this cruel reality. Despite the rights
gained from the 80s and affirmative actions in recent years, even today millions of
Brazilian children and adolescents are living in a situation of extreme vulnerability, but
this situation can and must be reversed. This is, therefore, the primary objective of this
paper. To reach it, I discuss ideas built about children taking in account their class
condition. Concluding demonstrate how the socioeconomic condition of the children of
similar age have different time of living, not only in relation to their present, but also on
their potential for future social inclusion.
Keywords Childhoods; Protection; Social Inequality.
207
A INFÂNCIA NA SOCIEDADE
A infância como categoria social não esteve sempre
presente na história da humanidade, ao menos tão demarcada,
assistida e valorizada. Nas diferentes civilizações e culturas as
crianças e adolescentes foram percebidas e “tratadas” das mais
diversas e contraditórias formas. O surgimento da preocupação
com a infância se deu entre os séculos XII e XVII. Até este
período os adultos só a tomava como objeto de sua atenção a
partir dos oito anos de idade101. Em relação às ideias
construídas sobre a infância, já na idade média, este "ser de
pouca idade”102 foi aproximado ou distanciado da convivência
familiar e do mundo dos adultos103.
Ao analisar a presença da criança na sociedade, Ariès
(1978) destaca não só os diferentes sentimentos que ela
desperta, mas também, a posição que ocupa, a evolução de sua
participação no mundo dos adultos e o tratamento à ela
dispensado. Como bem expressa Gouvêa (1990, p.66).
A demarcação de fronteiras entre o
universo adulto e o mundo infantil foi um
processo lento, em que a criança foi
apreendida de diferentes formas pela
sociedade e mais especificamente pela
família, educadores, eclesiásticos e
posteriormente por médicos psicólogos,
pedagogos e psicanalistas.
Isto não significa afirmar que não houvesse um
reconhecimento da criança enquanto tal, mas esta participava
em comum com o adulto nos espaços de trabalho, jogos e
brincadeiras. Não havia, portanto, uma preocupação, como
atualmente, de separar a criança num mundo próprio, livre dos
perigos do mundo adulto.
Vale ressaltar que, não só a criança, mas também a
família se diluía num espaço social que transcendia a
convivência doméstica. Nesse período a ordem cultural era
demarcada pela supremacia da sociedade sobre o indivíduo. A
família era mais definida como um grupo vinculado à
preservação dos bens do que por sua vinculação afetiva ou
101
Antes disto, as famílias abastadas, normalmente, entregavam suas crianças aos cuidados de uma ama de leite até a idade em que
esta era entregue a uma outra família que deveria educá-la. Ao retornar do período em que eram entregues a ama de leite, as crianças
assumiam o status de componente do grupo familiar com todos os direitos e deveres então decorrentes desta condição (ver ARIÈS
1978).
102
Ainda não se definia, como aponta Ariès, diferenças significativas em relação a faixa etária referente a idade cronológica entre a
infância e a adolescência.
103
A este respeito ver Cerizara, em seu estudo sobre Rousseau coloca que ao estudar a infância ele " execra a ideias de que as
crianças só sejam objetos de atenção dos adultos depois de terem passado o período crítico que vai do nascimento até por volta dos
oito anos [...] O regresso ao lar constituía uma nova etapa na vida da criança - a maioridade. Por tal razão, ao retornar, a criança
assume o status de membro do grupo, com todos os direitos e os deveres decorrentes" (CERIZARA, 1990,p. 44-45).
208
moral.104 Os primeiros cuidados e a preservação das crianças
eram de responsabilidade das amas até que estas fossem
entregues a outra família, na qual seria educada. A educação
restringia-se ao aprendizado de normas, valores e regras
sociais. Aponta Gouvêa que (p. 69)
Num universo marcado por uma rígida
hierarquia, onde cada indivíduo tinha seu
lugar na estrutura social definida pela
genealogia, a socialização consistia
basicamente no aprendizado das normas e
regras do seu grupo social. No dizer de
Poster 'a criança nobre estava inserida num
mundo público e complexo em que a lição
básica dizia respeito ao conhecimento o
lugar de cada um ...' a vida para os
camponeses tinha um padrão fixo
governado por inúmeras tradições que não
eram postas em dúvida pelo indivíduo.
Se a aprendizagem das posições sociais, até então, dos
nobres e camponeses se revelavam próximas, apesar do lugar
social ocupado nas estruturas sociais, esta proximidade vai
sendo demarcada mais intensamente com o surgimento das
relações capital/trabalho, ou seja, separação dos meios de
produção e produtores.
O século XVII caracterizou-se por modificações de
ordem social e econômica. O surgimento do capitalismo
engendrou uma nova organização das relações de trabalho que
determinou por sua vez, a reorganização das relações
cotidianas. A presença e importância das crianças tomam nova
conotação. Esta conotação passa, tanto no meio familiar, como
entre os educadores e moralistas, a ter valor e a ocupar espaços
sociais específicos.
Os sentimentos105 despertados pelas crianças na sua
relação com os adultos são então modificados. A este respeito
Ariès (op.cit.) destaca os sentimentos despertados de
paparicação e irritação em relação à infância. São sentimentos
contrários que demarcam o lugar social e o tratamento
dispensado à infância da época.
Na primeira infância a criança era reconhecida por sua
fragilidade e dependência física. Por sua inocência e graça se
tornou alvo central das atenções da família, sendo vista como
objeto de benevolência e paparicação (brinquedo dos adultos).
Contraditoriamente, o segundo sentimento, gestado por
104
A este respeito ver Gouvea, 1990, p.67.
Ariès coloca que o sentimento de infância diz respeito a “consciência da particularidade infantil, essa particularidade que
distingue, essencialmente, a criança do adulto, mesmo do jovem" (Ariès, p. 134). O sentimento de infância, expresso por Piacentini,
“não está circunscrito às idades da vida, nem a uma periodização fixada pelos ciclos da natureza ou da organização da sociedade,
que poderia ser sintetizada, a grosso modo, em infância, juventude e velhice. Não se liga, também, a uma idéia de dependência. (...)
Trata-se de uma sensibilidade em relação à infância”. (PIACENTINI, 199, p. 01).
105
209
educadores e moralistas, transpõe a criança da posição de
entretenimento dos adultos para objeto de preocupação. A
característica relativa à inocência infantil é contraposta à
característica de ignorância e irracionalidade. Surge o
sentimento de irritação em relação à infância e a necessidade
de sua moralização.
Tal preocupação tinha mais um cunho moralizante do
que propriamente uma preocupação com a boa saúde: “um
corpo mal enrijecido inclinava à moleza, à preguiça, à
concupiscência, a todos os vícios”(ARIÈS, 1978 p. 164). Com
o controle e a moralização da infância pretendia-se prepará-la
para o exercício de seus papéis inerentes ao mundo adulto.
Nesta ótica, educadores e moralistas direcionam preocupações
e ações específicas106.
Com o sentimento de “irritação” o objetivo da educação
da infância passa a ser o de penetrar na mentalidade das
crianças para melhor adaptá-las, torná-las homens racionais e
cristãos. Nesta perspectiva, as escolas operam como
mecanismos orientados para a redução da convivência
promíscua entre as idades e, mais tarde, para separar situações
de classe que conviviam, sem distinção, num mesmo espaço
com propósitos indistintos, visando a preparação do “homem
honrado, proba e racional” (idem, p. 163).
A partir de então, a ideia de infância é construída de
forma fragmentada em fases determinadas e seu período de
desenvolvimento e dependência prolongado. As escolas,
concorrendo com a família, ou mesmo, substituindo-a
tornaram-se, aí, agentes retentores e disciplinadores da infância
e preparadores para o futuro.
INFÂNCIAS E JUVENTUDES
A ideia de infância na sociedade moderna não
corresponde à visível desigualdade social vivida pelas
diferentes infâncias em todo o planeta. (MARCHI, 2007).
Ao analisar a dinâmica das concepções e sentimentos
despertados pelo ser infantil ou juvenil, especialmente aqueles
vítimas dos processos desiguais de inserção social,
contradições decorrentes da divisão social são desvendadas107.
Este desvendar aponta para a construção histórica de diferentes
e antagônicas posições sociais ocupadas por estas crianças e
adolescentes. As relações histórica, econômica, política e
cultural revelam, assim, que a infância e juventude não só
heterogêneas, mas, especialmente, contrastantes.
O desvendar da heterogeneidade infanto-juvenil,
construída por relações capitalistas excludentes, aponta para a
dinâmica de relações que nega aos e às meninas que vivenciam
106
107
No que diz respeito ao controle e moralização da infância Rago, 1987, oferece significativa contribuição.
Ver Kramer (1992)
210
situações de extrema pobreza o direito de se desenvolver a
partir de sua condição infanto-juvenil. Condição essa
reconhecida, com mais ou menos intensidade, por mais ou
menos tempo, como vulnerável, dependente dos cuidados e
proteção de um adulto e, especialmente, como tempo de
formação para o mundo adulto (a partir de épocas e sociedades
específicas).
O reconhecimento deste tempo de formação, entretanto,
não impediu que, ao longo da história, as infâncias e
juventudes fossem tratadas de forma contraditória à sua própria
condição infantil. É importante ressaltar que aqui é
considerada, especial e não exclusivamente, as desigualdades
sociais e econômicas, visto que se reconhece que a riqueza da
diversidade cultural produz indivíduos e relações culturalmente
diferentes. Apesar desta peculiaridade cultural e histórica a
infância é reconhecida como vulnerável e em tempo de
formação, por esta razão, carente de cuidados especiais.
Cuidados estes que são dispensados até que o indivíduo seja
considerado apto para assumir um lugar social determinado
pelas relações de produção
Para os meninos e para as meninas em situação de
pobreza as atenções dispensadas limitaram-se a responder o
que as representações108 das classes dominantes construíam
sobre os direitos, capacidade e importância social do pobre, ou
melhor dizendo, corresponderam à condição social que foi
determinado e permitido. Tais representações, inclusive, se
contrapuseram às representações e definições sobre as
características necessidades infanto-juvenis.
INFÂNCIAS
TRABALHO
HETEROGÊNEAS,
ESCOLA
E
O lugar da infância das camadas populares tem relação
direta com o modo de produção, com a política, a organização
e as relações engendradas pela sociedade capitalista.
Com o surgimento do capitalismo as formas de
organização e divisão das relações de trabalho e das relações
cotidianas são alteradas. A nova posição ocupada pelo mundo
do trabalho aponta para a necessidade de estender o controle
sobre o trabalhador para além dos espaços de trabalho, no caso,
a fábrica. O modelo burguês pautado em relações de
privacidade, intimidade, aparência e familiaridade, torna-se,
então, hegemônico. (GOUVEA, op.cit. p. 69-70).
Nas famílias burguesas passam a ser priorizadas as
relações cotidianas, a privacidade dos espaços, as relações
domésticos e a conjugação de esforços dos pais na criação dos
108
Adoto aqui o conceito de Cury sobre representação: "A representação é um complexo de fenômenos do cotidiano que penetra a
consciência do indivíduo, assumindo um aspecto abstrato quando essa percepção do imediato está desvinculada do processo real que
determina a sua produção.(...) é a projeção, na consciência do sujeito, de determinadas condições históricas petrificadas" (CURY,
1979, p. 24).
211
filhos e filhas. Estes colocados como o centro das atenções e
dos recursos do casal. Na medida em que a família passa a
centralizar sua vida nas relações cotidianas do grupo doméstico
o sentimento despertado pela infância também é alterado.
Neste espaço familiar mais íntimo e reduzido, a criança
passa a ocupar lugar central e os pais a se ocuparem mais da
educação dos filhos e filhas. Nas camadas populares, no
entanto, nem sempre a sua organização correspondeu ao
modelo dominante. A este respeito Gouvea (op.cit) destaca a
relação e interação cotidiana entre o mundo da casa e o mundo
da rua, isto é, a vizinhança. A concepção burguesa de infância,
como ser que precisa de cuidado, ser escolarizado e preparado
para a vida adulta se contrapunham à necessidade de inserção
precoce da criança no mundo adulto tão logo pudesse
dispensar dos cuidados de um adulto. Na sociedade capitalista
industrial, portanto, o lugar social e o papel da criança foi
visivelmente diferenciado a partir de sua condição material
objetiva.
TEMPOS E TIPOS DE FORMAÇÃO
As grandes escolas e universidades ao reterem, por um
longo período, a infância e a juventude, visando a preparação
para a inserção no mundo adulto, criaram uma divisão que até
hoje repercute na vida e destino da criança e do jovem: nem
todas as crianças e adolescentes podiam aguardar que a escola
lhes proporcionasse o certificado e habilitação exigidas para a
inserção no mundo adulto do trabalho. Estas precisavam, e
precisam ainda hoje, responder às necessidades imediatas de
sobrevivência decorrentes da sua condição de classe.
O jovem operário que obtém o certificado
de conclusão do primeiro grau e não passa
por uma escola técnica ou um centro de
aprendizagem entra direto para o mundo
adulto do trabalho, que continua a ignorar
a distinção escolar das idades. E aí ele
pode escolher seus camaradas numa faixa
de idade mais extensa do que a faixa
reduzida da classe do colégio. O fim da
infância, a adolescência e o início da
maturidade não se opõem como na
sociedade burguesa, condicionada pela
prática dos ensinos secundário e superior
(idem, p.177).
Esta situação foi a propulsora do modelo de regime
escolar que restringia o tempo de formação e instrução por
classes social. Com a dilatação do tempo de escolarização, as
crianças se tornaram mais ausentes de casa e do controle da
família, e, com isto, maior importância passou a ser dada a
212
escola como espaço de formação. A família viu, assim, sua
função educativa dividida com a escola.
O fato é que o prolongamento da infância e da
juventude, decorrente especialmente do extenso ciclo de
formação escolar, gerou possibilidades de acesso diferenciados
para a população burguesa e aristocrata em relação às classes
trabalhadoras, aqui percebida como forte candidata aos
processos geradores de situações de exclusão.109 As classes
trabalhadoras, compelidas historicamente pela necessidade de
garantir a sua sobrevivência, inclusive de inserir precocemente
seus filhos e filhas no mundo do trabalho em prejuízo do
tempo de escolarização, na melhor das hipóteses reduziam o
tempo de estudos, habilitação profissional e formação integral.
[...] e, a partir do século XVIII a escola
única foi substituída por um sistema de
ensino duplo, em que cada ramo
correspondia não a uma idade, mas a uma
condição social: o liceu ou o colégio para
os burgueses ( o secundário) e a escola
para o povo (o primário). O secundário é
um ensino longo. O primário durante
muito tempo foi um ensino curto [...] Do
momento que o ciclo longo foi
estabelecido, não houve mais lugar para
aqueles que, por sua condição, pela
profissão dos pais ou por fortuna, não
podiam segui-lo nem se propor a seguir até
o fim (idem, p. 193).
Esta passou a se responsabilizar pelo repasse dos
conhecimentos, valores, moral, pela preparação profissional
adequados às exigências do mercado e pela formação da
juventude para a futura inserção no modo de vida adulto. A
escola, portanto, como espaço de formação voltado para o
futuro, “implica uma grande dose de segregação do mundo
adulto e um longo adiamento da maturidade social, que assim
se desconecta da maturidade sexual e biológica” (ABRAMO,
1994. p.3).
A figura da escola contribuiu, então, para definir a
categoria juventude pautada na condição de classe das
famílias. Visto que só alguns segmentos da burguesia e setores
da aristocracia “podiam – e incorporavam a perspectiva de
manter seus filhos e filhas longe da vida produtiva e social,
para prepará-los para funções futuras" (idem, p. 60).
Instituiu-se, assim, a escola como um instrumento de
legitimação e de camuflagem das desigualdades (acesso e
desempenho). Não quero aqui estabelecer uma compreensão
simplista da escola. Ela, como as demais instituições sociais,
faz parte de um modelo social pautado em divisões da
109
A respeito das situações que geram a exclusão ou as situações de risco veremos mais adiante no cap. 3.
213
sociedade em classes sociais distintas cujos interesses, são
contraditórios e dinâmicos. A dinamicidade das relações
permite, inclusive, que na própria escola sejam construídas
relações que provocam rupturas dos mecanismos que a
constrói como repassadora de valores e interesses específicos.
A escola, mesmo reconhecida pelo seu potencial de contradizer
as estruturas que a gera, historicamente, tem sido colocada a
serviço do capitalismo, como bem expressa Cury
De modo mais eficaz quando os efeitos
contraditórios
desse
exercício
são
neutralizados
pelo
sistema.
Essa
neutralização pela limitação ao acesso do
saber (barreiras à democratização do
ensino), pela alteração do saber que
transmite de modo que se possa limitar,
pela exclusão e ou seleção, o poder de
desvelamento sobre a estrutura social
(CURY, 1995, p. 79).
Quer se tratasse da noção de “reprodução,” da noção de
“aparelho ideológico” ou de “escola capitalista, as diversas
abordagens culminaram sempre na visão de um ensino
portador de um nítido caráter de classe” (NOGUEIRA, p. 11).
Na primeira metade do século XIX esta ideia foi reforçada pela
necessidade de inserção da mão de obra infantil na indústria
têxtil.
As diferentes possibilidades do tempo e tipo de
formação, a partir da condição de classe, inegavelmente
reforçaram as desigualdades sociais, ou seja, as formas e
oportunidades de inserção do mundo adulto, especialmente no
mundo do trabalho bem remunerado e reconhecido
socialmente.
Nogueira destaca elementos significativos, não só em
relação à exploração do trabalho infantil, mas o processo de
luta pelos direitos daqueles inseridos precocemente no mundo
dos adultos.110 A partir da Revolução Industrial, foi constante a
luta da classe operária pelos direitos negados à população
infanto-juvenil “operária” contra a sua inserção desmesurada
no trabalho industrial, precoce, forçado e explorado.111 O
processo de exploração e exclusão dos trabalhadores adultos,
no entanto, não poupou as crianças (juntamente com as
mulheres) da responsabilidade precoce de contribuir com as
despesas domésticas.
As crianças e os adolescentes das classes trabalhadoras,
especialmente a partir do capitalismo urbano-industrial, foram
prejudicados no seu direito de vivenciar a infância como as
110
Marx previa a união do trabalho, ensino, ginástica considerando, inclusive, o tempo livre como exigência para a formação
integral do indivíduo (Nogueira, 1993).
111
A respeito da participação dos operários adultos na luta pelos direitos do trabalhador infantil ver Marx, Nogueira e Rago (1985).
214
demais em decorrência da imposição de assumir,
precocemente, responsabilidades inerentes ao mundo adulto,
ou seja, garantir a própria sobrevivência, subsistência e
proteção.
Sendo assim, as crianças e os adolescentes viram
sequestrado o seu direito à infância e juventude como período
de proteção, formação e preparação para o futuro em função da
precocidade com que lhes foi retirada a possibilidade de
convivência familiar, escolarização completa e que lhes era
apresentada a responsabilidade da auto-subsistência e autoproteção.
A exploração desenfreada da força de trabalho no
capitalismo se, por um lado, deteriorou as condições de vida da
classe empobrecida, ampliando a população submetida a
múltiplas situações de exclusão, por outro, cada vez mais
concentrou nas mãos de poucos, não só os meios de produção,
mas as possibilidades de acesso aos mecanismos de
socialização e de reprodução do saber instrumental, ou seja, os
conhecimentos que viabilizariam a inserção, participação e
aceitação pelo modelo vigente.
A escola e o trabalho foram, assim, grandes
responsáveis pela diferenciação dos tempos da vida, na medida
que reforçaram um modelo segregacionista determinante dos
tempos de escolarização e especialização da educação. O
tempo que esta passou a reter a infância, logicamente já
determinado pela realidade da classe social, passou a demarcar,
junto com o trabalho, a intensidade das rupturas dos tempos de
transição, se brusca ou tênue, da juventude
para as
responsabilidades inerentes ao mundo adulto.
Vale aqui acrescentar que o direito universal à
educação imprimiu uma nova relação entre a população
infanto-juvenil das camadas pauperizadas e a escola. Esta, no
entanto, não considera as experiências diversas trazidas por
seus estudantes. A escola, na sociedade hodierna além de não
atender as especificidades dessa população, tem se constituído
como palco de violência demandando um sério e substancial
olhar sobre a Escola que se tem e aquela que a sociedade
contemporânea demanda. (GOMES, 2013)
O trabalho infantil, por sua vez, na sociedade
contemporânea é expressamente combatido, mas, como aponta
Marchi (op. cit): “o afastamento das crianças do mercado de
trabalho e das ruas é antes exceção do que condição de vida
das crianças em contextos de pobreza em todo o mundo” (p.
553).
A condição de vida dessa população de vida desigual
imprime, inclusive, uma diferenciada forma de transição para o
mundo adulto.
JUVENTUDE E TRANSIÇÃO
215
A noção de juventude, como a de infância, não é
homogênea. Ela demarca um tempo de transição determinado
por uma condição histórica, por um modo de produção
determinado, por relações sociais e políticas específicas e por
práticas culturais próprias. “A definição do tempo de duração
dos conteúdos e significados sociais desses processos
modificam-se de sociedade para sociedade e, na mesma
sociedade, ao longo do tempo e através das divisões
internas”(ABRAMO, 1994, p.1). A sua definição portanto, está
condicionada por relações sociais dinâmicas que afetam
diretamente o indivíduo. Conforme Carmo (1990, p. 10)., o
conceito de juventude “será relativo e dinâmico de acordo com
as condições sociais também variáveis"
A passagem da condição infantil ou juvenil para a vida
adulta, portanto, varia conforme a época, a cultura e,
especialmente as relações de produção de cada sociedade.
Se pensada a juventude como categoria homogênea,
esta seria uma mera, (simples e natural continuação da
infância. A juventude conforme define Carmo, é
uma fase do comportamento do indivíduo
em que ele não exerce ainda o papel de
adulto como pleno titular das instituições
sociais, mas faz-se jovem quando seu
status e papéis já se esgotam no interior da
família mas também não ainda maduros
para serem individuados como adultos, isto
é, caracterizados pelas responsabilidades
sancionadas socialmente (idem. p. 10).
O termo juventude normalmente está relacionado com
um período da vida, uma determinada faixa etária, localizada
entre a infância e a vida adulta. Nesta fase encerra-se o período
de desenvolvimento físico do indivíduo e o período de
mudanças psicológicas e sociais e se “inicia assim a sua
entrada para o mundo adulto (ABRAMO, op. cit. p. 1).
Nas sociedades capitalistas urbano-industriais o período
de transição para a vida adulta é difícil e complexo. A divisão
do trabalho, a especialização econômica e o distanciamento
das famílias de outros espaços institucionais reforçam “a
descontinuidade entre o mundo dos adultos, implicando em
tempo longo de preparação que, comparado ao das sociedades
primitivas, é menos institucionalizado e com papéis menos
definidos” (idem, p. 3).
O tempo de transição visto como um “entre-tempos e
entre-situações”, isto é, o ser criança e o ser adulto, o depender
e o assumir responsabilidades, faria do jovem um ser de
impotência, de “meio de caminho”. Os tempos não são
fragmentados e as relações estabelecidas neste período não são
homogêneas e repetitivas. Se as relações estabelecidas com a
família, o mundo dos adultos e o ambiente “extra-casa”, já se
216
fizeram diferentes; se a escola já reteve uma parcela desta
infância por tempos diferenciados e, se desde cedo, uma
parcela destes jovens já conviveu como o mundo das
responsabilidades de manutenção do grupo doméstico,
obviamente, os tempos de transição, ocorreram de formas e
intensidade diferenciadas. Inclusive, com mais ou menos
impacto, isto é, rupturas entre o tempo passado, o tempo
presente e a relação com o tempo futuro se deram de modo
diferenciado (isto em decorrência de realidades distintas).
No dizer de Freire, no processo de transição há uma
profunda ruptura entre o passado e o futuro, ambos presentes
conflitantes. O tempo de trânsito é um tempo de crise, de
opções e esforços. Não se dá de forma imediata visto que os
temas, valores, comportamentos ainda oscilam entre o
dinamismo do trânsito se dá através de idas e vindas, avanços e
recuos que confundem o homem (FREIRE, 1983).
A situação “de ser um ser em transição” coloca o
jovem, a depender de sua condição de classe, em uma posição
marginal
provisória
ao
sistema
produtivo
ou,
contraditoriamente, para a sua definitiva inserção precária,
prematura e marginal no sistema de produção capitalista 112.
O jovem, em sua relação com o mundo adulto, passa a
vivenciar momentos de conflitos decorrentes das novas
exigências sociais. Nesse ponto, Lapassade (1968) aponta para
as crises da juventude. As crises juvenis decorrentes dos
processos de ruptura com a família e escola nos grupos em
situação de exclusão são diluídas ao longo do prematuro
distanciamento da convivência e dependência doméstica e,
consequentemente, da aproximação precoce com o mundo
adulto das relações de produção. Talvez, a priori, pudéssemos
interpretar esta situação como um privilégio dos jovens adultos
caso a divisão do trabalho, característico da industrialização,
da tecnicidade e das aceleradas mudanças nas ciências e
tecnologias de ponta característicos da sociedade hodierna que
a acompanha, não requisesse também uma especialização
sempre maior. Para isto, precisa, inevitavelmente, de
especialização específica. A juventude em situação de pobreza
extrema, portanto, ao ser inserida precocemente no mundo
adulto do trabalho não tem tempo nem condições, até porque já
aprendeu outro modo de se relacionar com a sociedade em
geral e com o mundo adulto do trabalho em particular, para
acompanhar
as
exigências
decorrentes
do
modo
contemporâneo das relações de produção, isto é, não foi
preparada funcionalmente para nele ser inserida.
O processo de formação do jovem deveria possibilitar,
ao menos, a sua inserção, ou melhor, dizendo, a sua preparação
112
Não quero aqui delimitar a transição como elemento exclusivo da infância e juventude. Destaco sim, a transição juvenil como um
tempo de transição para as novas responsabilidades e papéis sociais esperados pelos padrões e representações de determinadas
sociedades e tempos históricos.
217
para que viesse assumir as expectativas em relação às
responsabilidades inerentes aos adultos113.
O surgimento de novos papéis exige do jovem o
preparo e a formação para tomar e assumir decisões. O jovem,
portanto, deveria ser formado para escolher e tomar decisões.
Este direito nem sempre é dado a todos, especialmente o de
escolher os caminhos a tomar e nem ao menos a participação
na construção de um "projeto de vida".
ADULTIZAÇÃO PRECOCE
Se usarmos o artifício da simples memória do recurso
da imagem, dos inúmeros artigos de jornal ou, ainda, dos
meios de comunicação de acesso ao grande público,
constataremos a presença de pequenos seres cronologicamente
coetâneos mas que a condição social de classe impôs situações
de vida visivelmente contrastantes. Ao dirigir a atenção para os
espaços públicos de circulação, perceberemos claramente que a
infância e a juventude empobrecidas, involuntariamente se
contrapõem aos conceitos e cuidados específicos previstos para
os seres de pouca idade.
Nestes espaços de circulação, enquanto as ideias,
trazidas pela memória das imagens dos espaços públicos,
crianças e adolescentes caminham protegidos por um adulto,
outros pequenos seres cronológica e legalmente (mas nem
tanto fisicamente) semelhantes aos primeiros, quase que
saltitam independentes da companhia de adultos, pelos bancos
das praças, pelas ruas do centro. Atravessam as avenidas entre
os carros com a desenvoltura que não é comum, nem mesmo
entre a maioria dos adultos.
Independentes da companhia de um adulto, não deixam
de comer por falta de quem lhes provenha a alimentação. A
intimidade com que abordam os transeuntes, e que definem
espaços para batalhar, garantir a sobrevivência diária,
“descolar uma canto para dormir,” demonstra, com nitidez, que
existem “infâncias e infâncias e juventudes e juventudes"114.
Ao contrário dos seus pares pertencentes a outras
classes sociais, os meninos e meninas e meninas em situação
de exclusão têm as suas vidas submetidas a constantes
situações de risco visto que
113
Segundo Abramo estes papéis correspondiam à profissão, ao casamento, à cidadania política, dentre outros. (p.170)
A respeito da precocidade que estes meninos e meninas precisam "batalhar", Moraes explica que esta “é uma dinâmica dos
meninos e meninas e das meninas , que se encontram nas ruas. O desenvolvimento da infância cede lugar desde cedo para as
preocupações, atividades para que costumeiramente são exercidas só na vida adulta”... “O termo batalhar é muito utilizado por eles,
e pode ser entendido como sair para pedir, ou para roubar. É interessante perceber o quanto o ato de buscar algo básico (alimento)
para a vida, passa a ser pesado, difícil, sacrificado. Esse termo traz consigo toda a representação que esses meninos e meninas e
essas meninas criam para o ato que irá garantir a sua sobrevivência (o alimento) A batalha representa esses movimento de busca de
alimento ou de dinheiro, através do roubo ou da esmola, para suprirem suas necessidades diárias. Mais que isso, a batalha diária está
relacionada ao movimento permanente de circular, de se manter, de procurar estratégias de permanência na rua” (MOARES, 1997:
p. 77).
114
218
[...] quem vive na rua precisa de agilidade,
flexibilidade e muito movimento corporal,
para sustentá-la. Daí precisar mudar
sempre de espaço e procurar outro
território. A rua constitui-se em
transitoriedade permanente, dada a sua
insegurança total. Não é possível prever o
que vai acontecer na próxima hora, no
próximo dia. Há que estar sempre
preparado para agir ou reagir, criar e
recriar, inventar e reinventar formas,
maneiras de sobreviver na rua ou mesmo
viver na rua, o que conta é a troca e o
consumo imediato daquilo que se ganha. A
rua é apropriada pelos menores de rua, e
isso demonstra o embate e o confronto
com os outros interesses, muitas vezes
contraditórios. (GRACIANI, 1997, p 131).
A condição de classe e as situações vividas sobrepujam,
portanto, a condição biológica da idade ou ao menos o que dela
se espera social, econômica e culturalmente. Como bem coloca
Ariès (op.cit. p. 40), as idades da vida não correspondem às
etapas biológicas, mas às funções sociais. Se cruzarmos as
imagens provocadas pela nossa memória (construirmos estes
dois grupos de infância e juventude contrastantes) com os
sentimentos que a infância desperta na sociedade concluiremos
que, de fato, são duas categorias extremamente distintas. Os
sentimentos, despertados por estes meninos e meninas muitas
vezes transitam entre o desconforto e compaixão à irritação e
autodefesa (o adolescente que representa risco e, por isso,
necessita de ser controlado, disciplinado e contido).
Para o grupo dos meninos e meninas que tem como
relação básica à proteção da família e da escola, o grupo
daqueles que vivem em situação de rua permanente "até mete
medo". Como bem colocam Silva e Cláudia Milico (1995, p.
32) no trabalho de pesquisa que resultou na publicação Vozes
do Meio-fio, "a relação da sociedade com a pobreza mudou.
Com a intensificação do quadro de pobreza nacional a relação
de ajuda e responsabilidade que se tinha com o pobre foi
substituída pelo medo". Os autores, em suas entrevistas,
perceberam que
As fantasias de nossos entrevistados
exprimem um desolador sentimento de
vulnerabilidade, que não cessa nem quando
nos espaços mais íntimos, nos logradouros
mais familiares, esse medo é sem trégua
porque o cotidiano mostra o quanto se
infiltram tentacularmente em todos os
desvãos da cidade assaltantes, gatunos,
mendigos doentes, crianças de rua [...]Dão
219
base a tais fantasias em desprezo extremo
pelo marginal, tipo difuso, retratado na
imaginação medrosa apenas com traços
negativos: ontologicamente devastado
porque se funda na carência, socialmente
devastados porque suas relações são
predatórias". (idem, p. 32)
Vale ressaltar que ao apontar a diversidade do lugar
social conforme condições de classe, não implica que exista,
necessariamente, no imaginário social uma diferenciação
flagrante entre os meninos e meninas (as) a partir de sua
situação social e econômica. O sentimento despertado pela
infância ainda é carregado de uma conotação de dependência e
de fragilidade. Ver a criança ter que buscar seu próprio
sustento provoca, no adulto, um sentimento de desconforto ou
de piedade cristã, como aponta Vogel, (1991, p. 145).
Em primeiro lugar, o quotidiano na rua
impôs o ‘pedir’. Esse recurso está inscrito,
seja na piedade cristã, seja, mais
recentemente, no desconforto gerado por
um fenômeno convencionalmente incluído
na noção de ‘dívida social.’Apelar com
êxito para esse tipo de sentimento é, talvez,
a primeira lição da arte de sobrevivência
diária nas ruas.
O esmolar, o pedir, torna-se uma das estratégias da
batalha diária, sendo utilizada principalmente enquanto a
sociedade ainda enxerga com comoção e pena. Esses
sentimentos são mais fortes quando as crianças que esmolam
são pequeninas, mostrando- se enquanto “presas fáceis ao
perigoso mundo da rua (...) Os adolescentes têm maior
dificuldade em conseguir comida pedindo, quase sempre têm
que roubar, ou utilizar os pequenos para conseguir”
(MORAES, p. 87).
Saber usar as prerrogativas dos sentimentos despertados
pela condição infantil denota que estes sentimentos nem
sempre condizem com uma interpretação parcial, a-histórica e
descontextualizada sobre a fragilidade de ser infantil. Não se
quer com isto defender a ideia de que a criança não precise de
proteção, mas que, de fato, não depende com a intensidade que
lhe é atribuída, nem é tão dependente como os adultos querem
e a tornam. Ao dirigirmos a atenção para os meninos e meninas
e meninas de modo de vida adulto, aqueles que repartem, com
seus pares e com os transeuntes, os espaços públicos
contemporâneos, pode-se identificar a cruel distinção entre as
idades semelhantes e as aberrantes diferenças nas
possibilidades de viver a infância e a juventude como tempo de
formação biológica, emocional e funcional. São
220
[...] crianças que não têm um
desenvolvimento peculiar adequado a sua
idade. Não dispõem de um espaço de
proteção, nem de afeto, nem de 'pessoas de
referência apoio, orientação (...) desde
muito cedo, têm sua vida condicionada à
luta pela sobrevivência (GRACIANI,
1997, p. 123-124).
Sobre a luta pela sobrevivência, faz-se necessário
reproduzir as palavras de Jerusa Vieira Gomes onde destaca
que essa "luta" não pode se tornar um tom impessoal.
(GOMES, 1995, p. 65)
O tom impessoal, acadêmico não nos pode
impedir de ter em mente que me parece
essencial: a expressão 'luta pela
sobrevivência' refere-se à luta travada por
uma ou mais pessoas, no dia a dia, de
maneira a garantir o mínimo necessário à
subsistência individual ou de um grupo
doméstico. É crucial mantermos viva a
consciência de estarmos lidando com a
concretude da vida humana, e não com
alguma coisa abstrata, como a linguagem
acadêmica pode induzir-nos a pensar".
Diante das circunstâncias e tratamentos diversos
apresentados, foi imposta aos meninos e meninas e meninas
das classes populares a adultização precoce, como se refere
Graciani (1997, p. 126)
[...] pode-se dizer que esses jovens de ou
na rua não tiveram adolescência, como
outros privilegiados da sociedade. Vivem
num processo de 'adultização precoce',
obrigados a serem arrimo de famílias e/ou
complementadores da renda familiar,
sofrendo um processo de mortificação
interna, com danos indeléveis para a sua
personalidade e identidade.
Os meninos e meninas e meninas protegidos (as) por
sua vez, ao serem amparados por um prolongado tempo (até
pelo acúmulo de atividades decorrentes dos processos de
preparação para o futuro) talvez não possam viver livremente a
infância mas, certamente, não terão sacrificado o seu futuro.
Hoje, em pleno século XXI, grande contingente dos
meninos e meninas em situação de múltiplas exclusões luta
sozinho (a) pela sobrevivência, enquanto os outros (as) são
amparados (as) por instituições de proteção e formação, que
221
cuidam e protegem a infância incluída. Dispensam a esta,
atenção qualificada, de modo a evitar que experiências
prematuras lhe criem traumas e transtornem o seu
desenvolvimento integral. O sistema a protege e retém, o
máximo possível, a sua dependência em relação aos adultos e
ao prazo de formação.
A precocidade de inserção, no modo de vida adulto, se
por um lado restringe as possibilidades de formação e
preparação funcional para a sua inserção social, esta mesma
perda estimula o desenvolvimento de características, tais
como: criatividade, autonomia, capacidade de resistência e
solucionar problemas imediatos, que não deveriam ser
relegados e sim valorizados.
Revendo a questão, sob este prisma, a formação das
crianças submetidas a situações de exclusão não deveria ser
pautada nas suas faltas, mas pelo potencial adquirido na luta
pela sobrevivência diária. Maltratados pela sociedade podem
ser nela inseridos se devidamente respeitados e consideradas a
sua experiência de vida, como por exemplo, a sua autonomia e
capacidade de sobreviver em situações adversas.
Sob esta ótica o fundamental no processo educativo,
não seria o que eles não trazem, o que não aprenderam, mas o
aproveitamento daquilo que lhes potencializa para responder
positivamente na construção de seu projeto de vida, da sua
participação ativa processo.115 Esta perspectiva, inclusive, lhes
abriria novas e importantes possibilidades de crescimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Temos, até então, duas construções distintas
determinadas a partir de formas de inserção social diversas: o
adolescente “tipo estudante” que desperta sentimentos de
esperança no futuro e o grupo que a simples presença é vista
como ameaça e sujeito ao controle repressivo do Estado. Os
primeiros são reconhecidos e protegidos como cidadãos que
estão sendo formados para assumir a sua cidadania e o
comando das decisões. Este grupo, portanto, precisa ser mais
do que protegido, formado e preparado para tomar decisões e
coordenar instâncias deliberativas e executoras.
O segundo grupo é, em geral, considerado uma ameaça
à ordem social. A "falta" de quem controle e eduque, da
suposta falta de disciplina, de valores e princípios norteadores
faz com que sejam vistos (e ajam) como agressivos, rebeldes e
irresponsáveis. A impotência ou insuficiência de instituições
que consigam frear e dar limites a esta juventude, (como assim
alardeia a imprensa conservadora e comprometida com a
manutenção da ordem e do status quo sobre este segundo
grupo), lhe impõe o estigma de perigoso.
115
A este respeito ver Costa. 1990c.
222
Para os adolescentes do primeiro grupo o tempo de
transição e sua inserção no mundo adulto são retardados e
cuidadosamente construídos de forma promissora, ao menos
dentro das possibilidades de inserção que a conjuntura social e
econômica globalizada tem permitido. Em sentido oposto, o
segundo grupo é atendido em instituições de assistência que
nem sempre lhe permite a inserção social adequada.
Talvez a independência e a autonomia, a priori,
pudessem ser interpretados, como já ressaltado, como um
privilégio dos jovens pauperizados, em relação à sua inserção
no mundo adulto. Assim poderia ser interpretado, caso a
tecnicidade da divisão do trabalho não impusesse a
necessidade de instrução, preparação e formação. Não
respondendo às exigências das relações modernas de produção,
o distanciamento dos meios de escolarização e formação
oficial se tornam obstáculos para a sua inserção adequada no
modo de vida adulto (como percebido pelo modelo
dominante).
Os meninos e meninas e meninas em situação das
camadas populares (pauperizadas) ao serem inseridos (as),
precocemente, no mundo adulto do trabalho, não
correspondem, portanto, as exigências decorrentes do modo de
produção contemporâneo, isto é, não são habilitados (as)
“funcionalmente” para nele ser inserido.
É uma situação paradoxal: de um lado, jovens
preparados para batalhar e sobreviver nas condições mais
desfavoráveis e extremas, mas que são excluídos por não
corresponderem às expectativas do modelo vigente. Do outro,
jovens protegidos que não sobreviveriam em situações
exigentes, mas que estão preparados para manter a reprodução
do modelo. Finalmente o que se tem na sociedade hodierna:
uma infância e juventude com fome e “safas”, mas totalmente
desamparadas pela sociedade. A outra infância e juventude,
embora cuidadas e protegidas têm medo de seres coetâneos
que não frequentam a escola e nem são protegidos por sua
famílias e muito menos pela sociedade.
Esta sociedade certamente precisa ser urgentemente
revista!
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225
10
Construção da imagem e estética corporal entre
fisiculturistas*
Azenildo M. SANTOS: [email protected]
CV: http://lattes.cnpq.br/5577002613490737 - PhD Candidate in Public Health, Instituto de
Saúde Coletiva/ISC – Universidade Federal da Bahia/UFBA, Brazil, Bolsa de doutorado CNPq
e Bolsa PDSE- Capes no Sociology Departament, Goldmisths College Univesity of London.
Thomas ZACHARIAS, PhD:
Lecturer of the Department of Educational Studies, Goldsmiths University of London, UK.
* O presente estudo faz parte de um projeto maior sobre os sentidos do corpo em relação à
imagem corporal entre homens praticantes de musculação em uma grande cidade do
Nordeste do Brasil. Os dados deste projeto foram apresentados em forma de seminário no
16th Annual Congress of the European College of Sport in Liverpool, 2011.
226
BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC
Resumo A sociedade de consumo contemporânea é caracterizada hoje, com ênfase na aparência do
corpo. O objetivo deste estudo incidiu sobre a estética motivações dos fisiculturistas do sexo
masculino para exercer a prática de musculação para melhorar a sua aparência corporal. Uma
vez que alguns estudos sugerem que as normas culturais do corpo masculino ideal estão
crescendo cada vez mais muscular Métodos: Empregando uma abordagem etnográfica, com
entrevistas em profundidade, que investigou qualitativamente a construção da imagem
corporal entre 7 fisiculturistas (20-30 anos de idade) em uma academia de calsse economica
baixa no Nordeste do Brasil. Utilizou-se o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) a fim de
tabular e organizar os dados qualitativos obtidos durante as entrevistas semi-estruturadas.
Aderindo à Teoria das Representações Sociais, esta técnica permite a síntese de narrativas
individuais - escrito no singular, primeira pessoa - em "uma só voz", a fim de expressar o
"pensamento da comunidade". Em outras palavras, o discurso de sete indivíduos se torna um.
Resultados: Principais temas que surgiram "O objetivo do meu treino é para chegar à
perfeição" e "amizades influenciaram a minha formação", entre outros. As interpretações DCS
para estes temas são: “Por questões estéticas resolvi praticar musculação, pela influência de
amigos, saúde e ver o pessoal malhando. As pessoas começam a notar, e as meninas. Faço
muito a sério, a definição é o alvo, a perfeição, o corpo fica desenhado, embora tenha pessoas
que prefiram volume”. Discussão: Com base em nossos resultados, acreditamos que este grupo
de fisiculturistas - com o nítido propósito de modificar seus físicos para atender às
expectativas pessoais e / ou sociais - é mais suscetíveis a práticas de comportamento de alto
risco e transtornos tais como o abuso de esteróides anabolizantes e dismorfia muscular.
Pesquisas futuras devem fornecer aos profissionais de saúde c estratégias eficazes para lidar
com esta proplema de saúde pública.
Abstract The consumer contemporary society is characterized today with emphasis on body appearance.
The aim of this study focused on the aesthetics motivations of male bodybuilders to engage in
the practice of bodybuilding to improve their body appearance. Once some studies suggest that
cultural norms of the ideal male body are growing increasingly muscular. Methods: Employing
an ethnographic approach, with in-depth interviews, we qualitatively investigated body image
construction among 7 bodybuilders (20-30 yrs of age) in an economically impoverished
bodybuilders’ gym in Northeast of Brazil. We used the Discourse of the Collective Subject
(DCS) in order to tabulate and organize the qualitative data obtained during the semistructured interviews. Adhering to the Theory of Social Representation, this technique permits
synthesis of individual narratives – written in the singular, first person – into “one voice” in
order to express "community thought". In other words, the discourse of seven individuals
becomes one. Results: Principal themes that emerged included “the objective of my workout is
to reach perfection” and “friendships influenced my training”, among others. The DCS
interpretations for these themes are: "For aesthetic reasons, I decided to practice
bodybuilding", "Definition, perfection, and keeping my body ‘taut’ are my goals”, "People
prefer muscle mass”, "I work out very seriously”, "I was influenced by friends, a desire for
good health, and by seeing other guys working out", and "Other people, especially girls, began
to notice". Discussion: Based on our results, we believe this group of bodybuilders – with the
apparent purpose of modifying their physiques to meet personal and/or societal expectations –
to be more susceptible to high-risk behavioural practices and disorders such as anabolic steroid
abuse and muscle dysmorphia. Future research should provide health professionals with
effective strategies to address this public health concern.
227
Introdução
A aparência física, incluindo hiper-musculosidade
masculina, atualmente tem se tornado um imperativo
existencial no mercado de consumo e relações de alteridade.
Pesquisas atuais sugerem que as normas culturais do físico
ideal masculino tem evoluído para um ideal cada vez mais
musculoso, e que a modificação e o melhoramento cosmético
do corpo através de uma serie de regimes e tecnologias pode
ser usado para construir uma aparência bonita e alguma forma
uma melhora de si (Featherstone, 2010; Leit et al, 2002; Leit
et al, 2001). Contudo, quais são os ideais de imagem e
masculinidade os indivíduos, as quais os sujeitos estão
expostos à aparência física como modelo para modificarem
seus corpos? Quais as motivações para os homens praticantes
de musculação buscarem corpos cada vez mais musculosos?
Lê Breton (2006:9) fala que “a expressão corporal é
socialmente modulável, mesmo sendo vivida de acordo como o
estilo particular do indivíduo”. Discorre ainda o autor que é
pela corporeidade que o homem faz do mundo a extensão de
sua experiência e o transforma em tramas que são familiares e
coerentes, que são disponíveis à ação e permeáveis à
compreensão. Bydlowski e colaboradores (2004) chamam a
atenção do quanto os meios de comunicação têm hoje um
grande papel na determinação da construção de ideais e
comportamentos dos indivíduos, acompanhando e, às vezes,
provocando reações na sociedade. Em se tratando de
influência, os meios de comunicação parecem exercer
manutenção da hegemonia, quer dizer, dos valores e práticas
da sociedade atual, propagando e reedificando modelos
específicos de feminilidade e masculinidades considerados
ideais. Pode-se notar que nesta mesma sociedade o consumo é
supervalorizado: o indivíduo é “medido” pelo que possui ou
consome e não pelo que é, e dessa maneira, sugerindo que o
corpo também é um capital, passível de ser melhorado, gerido
e modificado (Goldemberg, 2010). Featherstone (2010; 1991)
também corrobora para tal afirmação onde quando analise que
em uma cultura com ênfase no consumo, aspecto muito
evidente na cultura brasileira, os anúncios, a imprensa popular,
imagens
da
televisão e
dos
filmes, proporcionam
uma proliferação de imagens do corpo estilizados; como se a
a lógica e verdade dessa cultura dependesse do cultivo de um
apetite insaciável de consumir imagens. A hegemonia do apelo
ao corpo e à imagem, remete-nos à Zygmunt Bauman (1998)
onde o autor afirma que o sujeito que não se encaixa nessa
sociedade de predomino pós-moderno de consumo, pode ser
interpretado por seus pares como um ser impuro. Normam
(2011), em estudo conduzido no Canadá com homens entre 1315 anos de idade constata que a mídia e o discurso
contemporâneo sobre o corpo colocam os homens desde
228
estágios muito precoces em uma Double-blind, onde o corpo é
alvo de preocupação estética, sendo esse segmento convocado
a cuidar e transformar o corpo, mas de forma secreta, para não
serem vistos como homossexuais ou ter sua masculinidade
posta em dúvida. Este é um fator importante na construção do
conjunto de motivos que levam os homens à não só o uso de
anabolizantes, mas métodos insalubres de busca de um corpo
nos moldes do ideal da cultura midiática ocidental.
Nesse sentido a insatisfação corporal pode está
fortemente relacionada com a exposição de “corpos ideais”
pela mídia, assim contribuindo nas últimas décadas para o
surgimento de compulsões na buscar da forma física perfeita
nos “templos” do corpo, eufemismo para as academias de
ginástica segundo alguns autores, lugar de culto ao corpo
(Estevão & Bagrichevsky, 2004). Mais recentemente no Brasil
Abrahin e colaboradores (2013), investigaram a prevalência do
uso de EAA entre 117 estudantes e professores de educação
física que atuam em academias de ginástica, como o maior
percetentual de prevalência entre os profissionais especialistas
(39,3%) e como principal motivação para o uso de EAA a
estética (75,6%). Nós investigamos o uso e abuso ilícito de
EAA, e constatamos o uso irrestrito dessas substâncias como
prática comum na busca da melhoria aparência por parte de
fisiculturistas homens, mas não obstante as mulheres estarem
na mesma linha com repercussões bem especificas (Santos,
Rocha & Da Silva, 2011).
Não obstante, um ponto muito importante a observar este
tipo de uso e abuso de AAS entre os jovens fisiculturistas
amadores, é que em sua maioria eles não são atletas
competitivos ou desejam um objetivo no esporte, mas eles são,
como nós chamamos, os praticantes recreacionais (mesmo
fazendo por estética ou saúde, diferente daqueles que
consideram um estilo de vida). Em um relatório pesquisa
preliminar descrevemos e documentamos pela primeira vez a
venda e injeção por instrutores na academia de ASS em uma
pesquisa no Brasil, não por atletas profissionais, mas apenas
pela 'boa aparência' (Santos, Rocha & Da Silva, 2011).
Entretanto é importante destacar que essa relação de
apresentação de corpos ideais pela mídia não implica em uma
organização mecânica de adesão do público à busca dessas
imagens corporais. Diversos fatores como raça, renda,
escolaridade e etnia se entrecruzam nesse processo. O
indivíduo não é uma folha em branco, onde a mídia imprime
seus ideais de maneira rápida e inexorável. Logo, trata-se de
uma correlação, não de uma relação de causa-efeito.
Em uma meta análise realizada por Groesz, Levine e
Murnen (2001), a partir de 25 estudos sobre o efeito da mídia
de massa no ideal de magreza, os resultados apresentados
reforçaram a hipótese de que as perspectivas socioculturais
produzem um ideal de magreza que propaga a insatisfação
229
corporal a partir da comunicação de massa, na medida em que
estes veículos difundem tipos físicos praticamente inatingíveis
para a maioria das populações, o que pode estar relacionado à
busca de um corpo hegemônico a qualquer preço.
Neste sentido tomamos como base um estudo
desenvolvido realizado entre jovens, do sexo masculino,
fisiculturistas, fixados em uma grande cidade do nordeste
brasileiro que tinham por objetivo a melhoria da aparência
física, aumento da massa corporal e muscularidade.
A escolha do desenho metodológico da pesquisa citada,
para atingir os objetivos estipulados, recaiu sobre o método
etnográfico, etendo sido escolhida uma academia considerada
adequada para os fins do estudo. A academia escolhida na
ocasião era freqüentada eminentemente por sujeitos
delimitados para a pesquisa: fisiculturistas dedicados,
favorecendo a abordagem e observação participante. Após esta
etapa metodológica, houve uma revisão bibliográfica e escolha
do repertório teórico interpretativo para abordagem do
fenômeno e sua articulação com o método etnográfico,
buscando garantir coesão epistemológica. Iniciado o campo,
um dos primeiros elementos evidenciados e importantes foi a
condição sócio-econômica e demográfica sobre a população
das academias. Por este motivo escolheu-se por conveniência
uma população que estivesse inserida num segmento sócioeconômico mais equânime, porém buscando garantir a
diversidade necessária para uma maior riqueza dos dados.
Assim tratou-se da camada média residente na região
metropolitana da cidade. Considerou-se que essa população
poderia atender o perfil que se esperava encontrar na
observação e entrevistas.
No primeiro momento as entrevistas foram realizadas nas
instalações da academia previamente descrita pelo primeiro
autor da pesquisa. No procedimento metodológico inicial,
estimou-se 15 participantes para comporem a mostra do
estudo. Todavia no decorrer das entrevistas foi observado que
certas informações/idéias se repetiam, determinando que um
bom número para mostra fosse sete sujeitos, entrevistados em
profundidade.
Para identificação dos indivíduos adotamos nomes
fictícios de substâncias usadas como anabolizantes, para
garantirmos o sigilo dos entrevistados. Figura 1.
No segundo momento metodológico, uma vez gravadas e
transcritas as entrevistas, estas foram convertidas em
narrativas, onde aplicou-se a metodologia de análise do
Discurso do Sujeito Coletivo. Segundo Lefrève - método
desenvolvido pelo autor em 2000- (Lefèvre F, Lefèvre, AMC.
2010; Lefèvre F, Lefèvre, AMC. 2003). Tal metodologia tem
por finalidade tornar mais clara as representações sociais das
questões levantadas no estudo, evidenciando as idéias e
representações coletivamente compartilhadas. Basicamente, o
230
procedimento metodológico consiste em: 1. selecionar o
conteúdo essencial de cada depoimento; 2. associar à estes
conteúdos selecionados uma descrição sucinta de seus
sentidos; 3. agrupar os depoimentos de sentido semelhante
numa categoria ou conjunto; 4. reunir o conteúdo destes
depoimentos de sentido semelhante em discursos únicos, os
chamados Discursos do Sujeito Coletivo, redigidos na primeira
pessoa do singular. Buscou-se dessa forma, confrontar os
dados coletados em campo com a literatura condizente com o
tema da pesquisa. Aderindo à Teoria das Representações
Sociais, esta técnica permite a síntese de narrativas individuais
- escrito no singular, primeira pessoa - em "uma só voz", a fim
de expressar "comunidade de pensamento". Em outras
palavras, o discurso de sete indivíduos se torna um. Em outras
palavras, o discurso de sete indivíduos se torna um.
Sujeito 4:
“Durateston”
Sujeito3:
“Primobolan”
Sujeito 5:
“Creatine”
Sujeito2:
“Deposteron”
Sujeito1:
“Testosterone”
Sujeito 6:
“Deca”
Discurso do Sujeito Coletivo DSC
“Por questões estéticas resolvi
praticar musculação, pela influência
de amigos, saúde e ver o pessoal
malhando. As pessoas começam a
notar, e as meninas. Faço muito a
sério, a definição é o alvo, a
perfeição, o corpo fica desenhado,
embora tenha pessoas que
Sujeitot 7:
“Halotestin”
prefiram volume”."
Figure 1 . Diagrama de DSC - Motivação. O nome do sujeito foi modificado para manter o anonimato e usar o nome de
substâncias que eles usaram.
A utilização da técnica de construção do Discurso do
sujeito Coletivo – DSC - viabilizou o desenvolvimento da
pesquisa e possibilitou identificar as representações que o
231
grupo possui e explicita como foram articuladas as motivações
das práticas de mudança corporal, no caso presente, a adesão
ao fisiculturismo. O início da análise partiu da confecção de
um quadro associado aos objetivos. Na primeira coluna a
categoria Motivação / Estética (relação de outras motivações),
na segunda os discursos literais de cada entrevistado, na
terceira coluna foi colocado o DSC para os discursos dos
entrevistados e na quarta coluna foi extraída a idéia central do
DSC. A idéia central é a afirmação, o ponto principal
destacado nos discursos dos sujeitos que possibilitou captar os
sentidos das falas e dos depoimentos.
Resultados e Discussão
Idéias centrais encontradas:
“... é que hoje eu não faço prioritariamente por estética, faço
por que me sinto bem”
“As amizades me influenciaram, mas principalmente por que
me viciei...”
“Eu sempre quando faço minhas coisas, levo tudo a serio”
“A minha malhação é para buscar a perfeição”
“Tô satisfeito mais não 100%, quero melhorar mais um
pouco...”
“o corpo começa a ficar mais desenhado, as roupas começam
a ficar mais apertadas, as meninas já começam a notar”
DSC – Motivação
“Por questões estéticas resolvi praticar musculação, pela
influência de amigos, saúde e ver o pessoal malhando. As
pessoas começam a notar, e as meninas. Faço muito a sério, a
definição é o alvo, a perfeição, o corpo fica desenhado,
embora tenha pessoas que prefiram volume”.
Perspectiva analítica desde a análise do DSC - Motivação
De acordo com Sabino (2002: 157) o corpo além de
representar a verdade do indivíduo, é também sua vitrine e seu
suporte indentitário. A imagem por ele exposta apresenta-se
como suposta via para o sucesso ou o fracasso. Diante do
imperativo de permanecer sempre jovem, forte, magro, bonito
e com aparência saudável, muitas vezes não se hesita em
consumir drogas, exercícios e produtos com o objetivo de
aperfeiçoar esta vitrine-máquina [...] assim, enquanto a forma
física é alçada a novo objeto de adoração da sociedade de
consumo, o corpo, enquanto conteúdo torna-se mero objeto de
troca monetária. Portanto, percebemos uma considerável
associação entre imagem corporal e processo de embodiment;
ainda que o corpo e a imagem não sejam sinônimos, nem
232
únicas vias na construção da identidade de um indivíduo,
parece estar claro que a imagem corporal é uma via
importantíssima no caso dos sujeitos investigados, posto que
eles são não o corpo, mas a imagem que eles recebem como
reflexo nas relações de alteridade, nas relações com o outro
(ser reconhecido como forte, atraente, perfeito e desenhado).
Neste caso, a imagem corporal parece ser referida de maneira
simbólica e não como um elemento perceptivo, que poderia ser
medido ou avaliado objetivamente do ponto de vista
psicométrico.
Na análise dos enunciados proferidos, percebe-se uma
procura pela melhoria estética, com uma busca que relacionase fortemente a sentimentos de prazer e insatisfação dentro do
ambiente da academia, indicando certa ordem de modelos e
ideais “intra-grupo”, mas não descolados da sociedade, como
pode-se facilmente perceber nas imagens masculinas de
embalagens de suplementos e nos modelos de corpos tomados
como ideais a serem atingidos. A musculação converte-se em
ritual ascético/obsessivo e o corpo metaforiza-se em máquina,
e o que faz a máquina funcionar são as substâncias utilizadas
para potencializar esse corpo/máquina.
No entanto, não existe no Mundo anabolizantes (Santos,
2007) uma hierarquização daqueles que estão iniciando e os
que já são considerados veteranos e os fisiculturistas (Sabino,
2002), tratando-se desse chamado mundo anabólico uma
cultura com valores, imagens e ideais específicos a serem
atingidos
O sentimento de insatisfação com a imagem, euforia,
obsessividade e compulsão podem levar a transtornos da
imagem corporal, denominado Transtorno Dismórfico
Corporal (TDC) aqui tomado no sentido psiquiátrico do termo,
e não de maneira simbólica no sentido social abordado nessa
pesquisa. A alteração na percepção da imagem corporal é
acompanhada por uma alteração radical na dieta, que passa a
ser hiperprotéica e acompanhada de diversos suplementos
alimentares a base de aminoácidos (Assunção, 2002, Pope, et
al, 1993, Pope, et al, 1997).
Como argumenta Rodrigues (2006:62) “Arranhando,
rasgando, perfurando queimando a pele – imprimi-se cicatrizes
– signos que são formas artísticas ou indicadores de status [...]
.
E ainda discorre que
“[...] reconhecemos no nosso corpo e no
das pessoas que conosco se relacionam um
dos diversos indicadores da nossa posição
social e o manipulamos cuidadosamente
em função desse tributo. Vemos no nosso
próprio dia-a-dia o corpo se tornando cada
vez mais carregados de conotações:
liberado física e sexualmente na
233
publicidade, na moda, nos filmes e
romances; cultivado higiênica, dietética e
terapeuticamente; objeto de obsessão de
juventude,
elegância
e
cuidados
(2006:63)”.
Existe nessa prática prazer em ver em si a forma
desejada sendo esculpida no corpo, e, paradoxalmente,
insatisfação, pois a perfeição na maioria das vezes é o objetivo,
e quase sempre o modelo de perfeição é mutável e móvel,
sempre se deslocando para um ideal mais distante do atingido
pelo praticante. Os exercícios físicos, por ocupar horas e
dedicação do dia do indivíduo, chegam a comprometer as
atividades sociais, ocupacionais e recreacionais (Pope et al,
1997; Pope, Phillips & Olivardia, 2000; Pope, Katz, Hudson,
1993). Os relacionamentos pessoais e românticos (Pope et al.,
1997), convertendo a vida em um projeto corporal pelo qual se
paga qualquer preço.
C.D., 30 anos, afimar: “A minha malhação é para
buscar a perfeição”. M.L., 30 anos, outro dos entrevistados
assume: “Tô satisfeito mais não 100%, quero melhorar mais
um pouco...” .
Como já referido, Le Breton (2003) afirma que cada uma
dessas práticas corporais se explicam por uma razão particular,
ritual ou estética: ritos propiciatórios, marca tribal, signo de
status social, ritos de passagem etc.
A questão que envolve as rotinas do bodybuilder diz
respeito ao controle de seu corpo, que se converte nos casos
extremos, no controle de sua existência. Ele está preocupado
em adquirir massa muscular; a seus olhos, a gordura é um
parasita que mobiliza uma estratégia permanente de
alimentação (Le Breton, 2003: 41). Se Le Breton compara o
corpo a uma máquina que pode ser montada, o bodybuilder
constrói seu corpo a maneira de um anatomista montando seu
corpo peça por peça preso apenas à aparência subcutânea (Le
Breton, 2003:42). É buscada a força muscular em si, em sua
dimensão simbólica de restauração de identidade.
O mesmo autor ainda coloca que pouco a pouco o corpo
se apaga e com ele a civilidade, em seguida à civilização dos
costumes, estes passam a regular os movimentos mais íntimos
e os mais ínfimos da corporeidade (2006:20). Ao que foi
investigado podemos concordar com o que concluiu Le Breton,
que o fisiológico esta subordinado à simbologia social. Por
fim, há uma influência sócio-cultural no comportamento do
homem que impõe marcas ao seu corpo, chegando a alterar a
imagem que ele tem de si. Essa imagem corporal trata-se
justamente do risco, pois uma vez convertida em ideal de
existência e projeto de vida, todos os preços possíveis serão
pagos na busca do que, ao cabo é impossível, que é o conceito
de perfeição, por natureza não atributo do humano.
234
Algumas limitações da pesquisa
Estamos conscientes de que todas as técnicas de
avaliação, existem algumas vantagens e desvantagens de usar
informante-chave, como poderíamos descrever alguns deles
supomos em nossa pesquisa. Entre as vantagens: 1.
Oportunidade de estabelecer relatório / Confiança e obter uma
"visão de dentro, pode fornecer informações detalhadas sobre
as causas do problema, Permite esclarecer ideias e informações
em base contínua, permite-lhe obter informações de diversas
pessoas, incluindo minoria ou" maioria silenciosa "pontos de
vista (isso foi um dos principais pontos de vista do informantechave). As desvantagens que podemos observar entre: 1.
Informantes podem dar-lhe as suas próprias impressões e
preconceitos, 2. Tempo para selecionar bons informantes e
construir a confiança (mesmo nesta pesquisa, temos um muito
bom informante-chave); pode-se ignorar as perspectivas dos
membros da comunidade que são menos visíveis no processo.
(Baseado na Universidade de Illinois Extension ServiceGabinete de Planeamento e Avaliação de Programa)
SUMÁRIO
Temos testemunhado o interesse e pesquisas com a
pressão na imagem corporal em mulheres. Existem algumas
particularidades neste campo de pesquisado como o associado
TDC com os modelos de corpo magro como anorexia nervosa
e bulimia. Nos últimos anos temos observado um interesse
crescente em distúrbios psiquiátricos que envolvem imagem
corporal entre os homens. Na história, problemas de imagem
corporal não têm sido um problema dos homens, esses
problemas eram exclusivos no pensamento de ser o território
apenas as mulheres. Acreditava-se que os homens fossem
imunes a pressões para obedecer as regras para a forma
corporal definida para a sociedade (Grieve, Truba, Bowersox,
2009). Além disso, os homens têm estado a frente de uma
pressão crescente dos meios de comunicação para cumprir uma
forma magra, muscular. Muitas vezes, os homens estudados
com maior nível de musculosidade com o uso de esteróides,
nunca estavam satisfeitos com o seu físico não melhorada.
Como Pape et al (1997), nos anos de 1990 observou, uma
reflexão interessante "Por que eu deveria voltar a ser Clark
Kent, quando eu posso ser o Superman?" Parece ser muito
comum e real. Pope et al (1997) descreveu a nova forma de
TDC, denominado "dismorfia muscular".
Esta pesquisa mostrou, com base nos relatórios
apresentados aqui, parece que este grupo de fisiculturistas com o objetivo aparente de modificar suas expectativas físicas
para atingir pessoal e / ou social - podem ser mais suscetíveis a
práticas de alto risco e distúrbios comportamentais, como
235
abuso de esteróides anabolizantes, e substancias para melhorai
da aparência e da desempenho (APED), sofrimento ou prejuízo
em áreas sociais, ocupacionais, ou outras importantes de
funcionamento e comportamentos, como fundada em outros
estudos (Baghurst & Kissinger 2009; Pope et al, 1997; Pope,
Phillips, Olivardia, 2000; Pope, Katz, Hudson, 1993, Maida &
Armstrong, 2005).
A literatura sobre imagem corporal e distúrbios
associados as mulheres é extensa, em contraste com a literatura
com o a imagem corporal em homens. E os estudos
concentram-se no padrão magresa, obesidade, aptidão e
resistência diferente deste estudo, mas musculosidade em
homens é uma importante dimensão adicional na investigação
imagem corporal (Olivardia et al, 2004). Pesquisas sobre as
motivações são muito limitados com um foco etnográfico. A
musculosidade e a capacidade de retratar sinais de poder
parece ser, para os homens uma espécie de avaliação. As
pesquisas indicam que é invasivo atribuir a mídia que a média
-ou ao social e culturalidade- oriente e pode levar alguns
homens / garotos a adotar estratégias como dietas pouco
saudáveis, expressar atitudes mais positivas sobre o doping
mais do que meninas, abuso de AAS e de substâncias para
melhora do desempenho (PES), e as estratégias de
fortalecimento muscular e programas de exercícios excessivos
(Santos, Rocha & Da Silva, 2011; Zelli, Lucidi, Mallia, 2010;
Baghurst, Kissinger, 2009; McCreary & Saucier, 2009; Cafri,
Thompson, Ricciardelli, McCabe, Smolak & Yesalis, 2005;
Bahrke & Yesalis, 2004).
Este impulso para de físicos dotados muscularidade, e
inalcançáveis para o homem médio, pode refletir nas pressões
sociais e dos meios de comunicação sobre os homens
modernos para tornarem-se cada vez mais musculoso foram
descritos em todas as formas de mídia e até mesmo em
bonecos de brinquedo (Olivardia, Pope, Borowiecki, &
Cohane, 2004; Pope et al., 1999).
Considerações finais
O presente estudo concorda com as proposições de Le
Breton (2006) de que todo comportamento pode ser explicado
por uma motivação especial, razão, estética, ritual, ou de
propiciação. Analisou-se assim, as motivações de
fisiculturistas para o aprimoramento estético (dentro dos
limites teóricos de satisfação e insatisfação).
A pesquisa desenvolvida por Leit, Pope e Gray (2001)
sobre as expectativas culturais de musculosidade em homens,
construída a partir da análise de posteres de homens em uma
revista destinada ao público feminino, observou que entre os
homens, os ideais culturais de musculosidade podem contribuir
para a baixa auto-estima em relação ao seu corpo. Pope e Katz
236
(1994), vão mais longe e apontam que para esses indivíduos
um possível caminho para a busca de “corpos perfeitos”, seria
o abuso de esteróides anabólico-androgênicos (EAA).
A relação do uso de EAA e a imagem corporal em
fisiculturistas homens foi analisada por Blouin e Goldfield
(1995), onde os autores observam que entre as preocupações
com a imagem corporal podem ser maiores para aqueles que se
encontram abaixo do peso em relação a média para altura. Tal
insatisfação pode acarretar em sérios problemas de auto-estima
e sentimento de inadequação social. Como resultado esses
homens que se vêem com baixo peso podem buscar na
musculação, hormônios masculinos e EAA obter um visual
“hipermersomórfico”
(proporcionalmente
musculoso)
exagerado. Estas tendências dos ideais culturais para a imagem
corporal podem contribuir para o crescimento de quadros
psicopatológicos importantes (Leit, Pope & Gray, 2001).
Vale destacar, como já referimos que nesse aspecto
os meios de comunicação não são a principal forma
propagadora de ideologias das camadas dominantes que podem
aquilatar ou estigmatizar determinados valores ou mesmo
segmentos sociais. Outras variáveis nesse complexo jogo
podem estar inseridas e composto por diferentes ordens e
ideologias. Por ideologias, neste trabalho, entendem-se como
conjuntos de significados e sentidos existentes na vida social
que atuam como corpos de idéias de determinados grupos ou
camadas sociais (Santos e Silva, 2008).
Baseado nos relatos aqui apresentados, deduz-se que este
grupo de fisiculturistas - com o nítido propósito de modificar
seus físicos para atender às expectativas pessoais e/ou social podem ser mais suscetíveis a práticas de alto risco e distúrbios
comportamentais, tais como o abuso de esteróides
anabolizantes, transtorno da imagem corporal, prejuízo nas
relações sociais e alta vulerabilidade à agravos na saúde.
Pensa-se que mais pesquisas podem fornecer aos profissionais
de saúde e atores sociais ligados as práticas corporais
instrumentos, estratégias e políticas de prevenção e cuidado
quanto a este fenômeno de risco com proporções
consideráveis; aos quais o segmento masculino está mais
vulnerável que o feminino. Os estudos que apontam o riscos da
busca de um corpo perfeito e de imagens inatingíveis já estão
difundidos nas mídias, políticas públicas, escolas e meios
pedagógicos, que não podema ser considerado a solução desde
uma vez que ainda não existe uma politica nacional com
programas de prevenção. O mesmo não acontece no Brasil,
deixando a população masculina considerávelmente menos
informada e mais vulnerável á agravos. Um outro ponto de
grande relevância que nós consideraramos é que o uso de AAS
têm sido considerado no Brasil uma epidemia silenciosa
negligenciada. Todos os anos muitos jovens não atletas
morrerem em conseqüência de AAS tentando melhorar a
237
aparência e apenas "ter uma boa aparência". O ser atleta, não
justificaria, mas a dieferenciação para um atleta cercado por
uma estrutura e discplina esta muito longe dos padrões
"domésticos" de uso de PES.
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240
Normas de
Publicação
241
da Revista É uma publicação semestral da FSBA. Pode ser comprada, assinada
e/ou permutada. Cada número trata de questões relativas ao ensino
superior privado e à produção e difusão do conhecimento.
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Superior – Séries Iniciais do Ensino Fundamental e Educação Infantil,
Pedagogia, Ciências da Religião.
Incluem-se ainda os assuntos referentes ao modelo de organização
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