Camarim 39 - Cooperativa Paulista de Teatro

Transcrição

Camarim 39 - Cooperativa Paulista de Teatro
1º semestre de 2007
1
ENTREVISTA
4
Arquivo Virtual Artes Cênicas
JOSÉ ANTONIO SANCHEZ
ARTIGO
6
Um projeto de pesquisa sobre Teatro de Grupo
ANDRÉ CARREIRA E ANTONIO VARGAS
CENA CONTEMPORÂNEA
8
A Teatralidade e o Teatro
HELGA FINTER
20
Teatro-Cidade
26
O teatro de ação ou as ficções reais
34
SÍLVIA FERNANDES
ÓSCAR CORNAGO
O Festival Internacional de Teatro de Expressão
Ibérica (FITEI): um paradigma dos festivais
contemporâneos
MÁRIO ROJAS
INTERVENÇÃO
EXPEDIENTE
40
2
Mudar para continuar
ANTONIO ROGÉRIO TOSCANO
Camarim é uma publicação da Cooperativa Paulista de Teatro – Ano 10 – Número 39 – 1º semestre de
2007  E d i t o r : José Fernando de Azevedo  C o n s e l h o E d i t o r i a l : Ney Piacentini (Diretoria) 
Diagramação: Pedro Penafiel  Impressão: Hanabi  Foto de Capa: cena do espetáculo BR3, do
grupo Teatro da Vertigem, por Edouard Fraipont  Tiragem: 4000 exemplares  Distribuição Gratuita
Praça Dom José Gaspar, 30  4º andar A  Centro  CEP: 01047-010  São Paulo  SP
Telefone: (11) 3258-7457  Fax: (11) 3151-5655  [email protected]
Camarim  39
1º semestre de 2006
2º
2007
PALAVRA DA COOPERATIVA
APRESENTAÇÃO
Teatro na sociedade do espetáculo: a referência mais
imediata a Guy Debord não esconde o objetivo das
páginas que seguem. Certamente, uma limitada mas
definida colaboração aos debates sobre aspectos da
cena contemporânea, inscrevendo nossa experiência
local num movimento que não apenas é mais amplo,
mas que nos revela.
Comentando as razões de sua encenação brasileira de O
ANJO NEGRO, Frank Castorf dizia que Nelson
Rodrigues antecipava no plano da dramaturgia aquilo que
é cada vez mais evidente no plano social: a brasilianização
do mundo; um mundo cada vez mais canalha. A
percepção de que o mundo está cada vez mais brasileiro –
não sendo lisonjeira – sugere, todavia, potencialidades de
nossa cena, naquilo que ela figura e, mais ainda, nas
condições em que tal figuração de se produz. Assim, o
termo comparativo não aparece mais como imagem para
possíveis compensações, mas contraprovas de nossa
inescapável e aterradora atualidade. Atente-se à
descrição que a pesquisadora Helga Finter faz do teatro
alemão contemporâneo e se perceberá em que ponto sua
tendência à realidade nos concerne (a intervenção
recente de Stefan Kaegi e Lola Arias, Chácara Paraíso,
apresentada aqui, a partir de experiências de policiais e
ex-policiais talvez nos alerte para isso). Retomamos ainda
um texto de Sílvia Fernandes, publicado na extinta
Revista D’ART, da Divisão de Pesquisas do Centro
Cultural São Paulo, com o intuito de trazê-lo a uma maior
circulação, mas sobretudo por aquilo que nele se
apresenta acerca de aspectos do teatro paulistano sobre os
quais o debate faz-se urgente. Como esboços de
mapeamento da produção contemporânea, iberoamericana e mesmo européia, os textos dos pesquisadores
e críticos Oscar Cornago e Mário Rojas apresentam
resenhas de dois importantes festivais. E nessa direção, a
entrevista com o professor José Antonio Sanchez e o
texto de André Carreia e Antonio Vargas, apresentamnos projetos de pesquisa sobre a experiência de artistas e
do teatro de grupo, entre nós, na América Latina e
Europa. Já o texto de Antonio Rogério Toscano
defronta-nos com questões decisivas relativas ao
Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a
Cidade de São Paulo, a partir de sua experiência na
Comissão de Seleção. Com isso, espera-se, Camarim traz
ao debate questões estéticas e políticas cuja urgência é
facilmente verificável em nossa prática artística.
Em maio de 2007 se inicia uma nova
gestão do Conselho Adminsitrativo da
Cooperativa Paulista de Teatro, com novos
quadros e parte dos quadros anteriores.
Entre as principais diretrizes para o biênio
2007/2009 estão a abertura para as relações
internacionais, sendo a II MOSTRA
LATINO-AMERICANA DE TEATRO DE
GRUPOS um passo relevante neste sentido.
Em âmbito nacional a luta é pela
implantação do projeto de lei Prêmio ao
Teatro Brasileiro, cuja coordenação está a
cargo do movimento nacional
REDEMOINHO, do qual fazem parte
diversos coletivos da CPT. Nas escalas
estadual e municipal os objetivos são a
revisão e expansão das políticas públicas
para as artes cênicas.
Igualmente importante é a proposta de
implantação de novos serviços aos
cooperados como aulas de voz/canto, cursos
de línguas estrangeiras e a disponibilização
de espaços para ensaios para os grupos da
CPT. Em segunda instância estão em estudo
convênios na área de saúde e para serviços
de creche aos filhos dos sócios. Entre as
propostas mais ousadas estão a realização de
um programa de televisão sobre as
atividades da cooperativa e ainda um
espaço para construção de cenários e
figurinos das produções dos afiliados.
Para que tudo se concretize é
fundamental a participação dos sócios nos
conselhos, assembléias e reuniôes que
acontecem permanentemente na sociedade
e fora dela. Se há algum avanço nos
programas dirigidos às artes cênicas hoje no
país, o mesmo deve ser acompanhado pelo
interesse dos artistas e gestores às estreitas
questões relativas à cadeia produtiva do
teatro, da dança e do circo.
A nova gestão da CPT reafirma um
princípio que muito vem sendo difundido
em meio ao círculo de atividades que nos
agrega: a cultura como promotora da
cidadania.
3
José Antonio Sanchez (Faculdade de Belas Artes de Cuenca–UCLM)
Arquivo Virtual Artes Cênicas
1
entrevista
4
foto cornago
olho
O objetivo do Arquivo Virtual das Artes Cênicas é colocar à disposição
dos estudantes, docentes e profissionais, material crítico e documental sobre criadores cênicos contemporâneos, em uma primeira fase, espanhóis, e
em uma segunda fase (na qual já nos encontramos) ibero-americanos.
Trata-se de um Arquivo seletivo e crítico, que leva em consideração somente
um número reduzido de artistas ou companhias, com o fim de estabelecer
uma proposta historicamente definida e acompanhar a documentação de
interpretações, comentários e contextualizações. Igualmente, o conceito de
“artes cênicas” foi definido em um sentido restrito, em função do conceito
“artístico” (prescindindo portanto do teatro e da dança), e em um sentido
amplo, entendendo por “cênico” tudo aquilo que ocorre em tempo real e na
presença dos espectadores (incluindo, desta forma, propostas híbridas:
ações, instalações, vídeo-ações, etc.).
Colaboram ou colaboraram na sua elaboração pesquisadores da Argentina, Brasil, Chile, Espanha, México e Cuba. Este arquivo é resultado de uma
linha de pesquisa aberta no Departamento de História da Arte da Universidade de Castilha – La Mancha em Cuenca (Faculdade de Belas-artes).
Em que consiste exatamente o projeto?
O Projeto surge de nosso interesse em documentar e divulgar a obra dos
criadores cênicos mais comprometidos. As artes cênicas sofrem um grave
problema de renovação devido à dificuldade para receber e processar a
tradição, de fixar os modelos e a recepção crítica dos mesmos. Na Espanha,
os estudos cênicos continuam se confundindo, em muitos casos, com os
estudos literários e não existem meios adequados de divulgação das pesquisas em teatro. No âmbito da dança contemporânea, o vazio é ainda maior, e
a dura divisão entre dança e teatro na questão do ensino, inclusive no campo
da produção, dificulta consideravelmente a existência de uma pesquisa
sobre as artes cênicas como fenômeno conjunto, algo comum nas publicações européias e norte-americanas especializadas. A finalidade deste projeto
é abrir uma nova via de investigação, abordando a história das artes cênicas
a partir da arte e da história da arte e utilizando as novas tecnologias de
documentação, suporte discursivo e divulgação.
Não se trata de um arquivo, mas de uma seleção. Parte de uma proposta
historiográfica em forma de arquivo. Uma história da época recente, que se
transforma em crítica das propostas mais contemporâneas. Durante a primeira fase, trabalhou-se sobre a produção cênica espanhola
entre 1978 e 2002. Isto gerou a publicação de um livro, no qual se reformulam
alguns materiais já publicados no arquivo. Na segunda fase, ampliou-se o
âmbito da pesquisa para a América Latina e, ainda que estejamos trabalhando
há alguns meses nisso, pode-se dizer que estamos começando.
O projeto começou na Universidade de Castilha – La Mancha, financiado em primeiro lugar pelo Conselho de Educação e Ciência da Junta das
Comunidades de Castilha – La Mancha e, posteriormente, pelo Ministério da
Educação e Ciência. Além disso, recebemos ajuda do Ministério da Cultura
da Espanha e é previsto que se receba da AECI (Agência Espanhola de
Cooperação Internacional). Também foram realizadas colaborações pontuais de outras instituições: Fundação Antônio Pérez de Cuenca, Casa Encendida de Madri e Casa de América de Madri.
Em que países a pesquisa tem sido desenvolvida e quais os resultados
até esse momento?
A equipe de pesquisa é composta por professores, críticos e/ou artistas
de vários países: México, Cuba, Argentina, Chile e Espanha. Além disso,
foram realizados acordos de colaboração com pesquisadores da Colômbia,
Peru e Brasil. Na próxima fase do projeto, gostaríamos de poder ampliar
notavelmente nossa rede de pesquisadores e colaboradores.
Até o momento, foi documentado o trabalho criativo de 100 artistas ou
companhias. Além disso, foram publicados mais de 50 ensaios críticos
sobre esses artistas ou temas e questões de contexto. Dado que, em sua
primeira fase o projeto esteve limitado a Espanha, o arquivo conta ainda com
uma maioria de entradas espanholas. Mas esta proporção está se corrigindo
rapidamente. Até agora, a Argentina foi o país que avançou mais rápido nas
tarefas de documentação e crítica. Foram muito valiosas as contribuições
realizadas desde o CITRU do México, onde documentou-se o trabalho de
artistas de outros países.
O passo seguinte seria dar uma dimensão européia ao projeto, convidando pesquisadores da Itália, Alemanha, França etc. Ainda que, neste
momento, acredito ser prioritário consolidar a equipe na América Latina.
Como tem sido desenvolvido o projeto da
revista eletrônica?
Nesse momento estamos trabalhando em uma
ampliação do arquivo mediante a incorporação de
uma seção de atualidade mais completa. Nossa
intenção não é tanto editar uma revista eletrônica,
mas tornar mais ágil a relação com o que está
acontecendo, tanto no campo da produção como
no da crítica. Nesta nova seção está prevista uma
subseção chamada EMERGÊNCIAS, que apresentará a obra de artistas jovens cujo trabalho não
deveria ser ainda “arquivado”, uma subseção de
crítica da atualidade e fórum de debate.
Como vê a produção dos coletivos (teatro
de grupo) nesses contextos?
O teatro de grupo tem sido um dos movimentos decisivos na definição do teatro latinoamericano contemporâneo, tanto do ponto de
vista estético como do ponto de vista político.
Pode-se dizer que a sua contribuição é o que
mais nos interessa do ponto de vista historiográfico definido no arquivo. Também nos interessa
de que modo o conceito de “coletivo” se transformou na última década pela influência das novas formas de organização social e política geradas pela extensão da rede. Ao lado do teatro de
grupo, as redes de criação são o fenômeno mais
interessante que se produziu no campo cênico
nos últimos anos: indivíduos que combinam seus
interesses e suas forças com distintos equilíbrios
Camarim  39
Éride Albertine
Hygiene,
e diferentes meios segundo os projetos ou os
contextos nos quais se inscrevem suas obras.
Que notícias tem da produção contemporânea latino-americana, e como a avalia?
Lamentavelmente é escassa a informação que
nos chega da produção cênica latino-americana
além de alguns festivais especializados ou as raras
aparições de companhias ou artistas em festivais
gerais. Especificamente, este é um dos objetivos do
arquivo: contribuir para tornar mais fluída a comunicação e o conhecimento da cena latino-americana. A “europeização” da Espanha nos últimos
anos produziu uma certa desatenção à criação
latino-americana. Mas é evidente que o teatro da
América Latina realizou contribuições fundamentais para a história das artes cênicas do século XX
que devem ocupar o lugar que merecem e não ser
consideradas como exemplos da extensão de conceitos ou estilos concebidos na Europa. Devemos
escrever outra história das artes cênicas, e devemos escrever também outra visão crítica do presente das artes cênicas. Por isso é fundamental o
trabalho em rede e a descentralização do olhar.
Interessa-nos especialmente as propostas que
se situam nas zonas híbridas, realizadas por artistas que são conscientes da mudança de função
que os afeta no novo século e que são capazes
de encontrar novas formas de comunicar socialmente, sem por isso perder o rigor no seu traba-
1º semestre de 2007
lho. Zonas híbridas do ponto de vista da inscrição no próprio meio, mas também do ponto de
vista de sua inscrição social e política, quer dizer,
aquelas propostas a respeito das quais cabe o
comentário: “já não é teatro”. De fato, poderia “já
não ser teatro”, mas é arte, produção simbólica,
comunicação responsável.
E em relação ao Brasil? Quais as perspectivas de desenvolvimento do projeto, aqui?
Nosso objetivo é consolidar a colaboração dos
pesquisadores que já participam no Arquivo, e também estabelecer algum tipo de colaboração institucional que permita uma presença importante dos
criadores brasileiros no mesmo e que garanta a
fluidez de comunicação no futuro. O Brasil é, ao
lado da Argentina e do Chile, um dos poucos países na América Latina onde as artes cênicas recebem uma consideração a partir da Academia: existem pesquisadores de grande qualidade, numerosos estudos e diversas metodologias que podem
enriquecer notavelmente o projeto.
Por outro lado, a produção cênica brasileira é
uma das mais interessantes no momento. E acredito que seja muito necessário que se conheça
essa produção, que contribuamos virtualmente
para gerar o desejo de que esses artistas possam
apresentar seus trabalhos na Europa. E que, além
disso, os possa situar no contexto social, cultural e histórico no qual produzem.
Grupo XIX
Em debate realizado em São Paulo, em 2006,
Mateo Feijóo (curador do Cena Contemporânea)
afirma que o teatro de grupo na Espanha é uma
ideologia do passado... Como vê a situação na
Espanha, hoje, e o legado de grupos históricos
como Fura ou El Joglars?
O conceito de teatro de grupo já não funciona na Espanha. Mas isso não quer dizer
que se tenha voltado a esquemas de produção do passado. Obviamente, em termos gerais, é a produção institucional e comercial a
dominante, e o que se chama de “mercado”
(algo falso, pois o mercado é um eufemismo
para falar de redes de teatros e festivais públicos) está dominado em grande parte pelas
produtoras. Contudo, os criadores interessantes, os que não fazem teatro por inércia ou
por negócio, são herdeiros do teatro de grupo, ainda que não trabalhem em grupos estáveis. Não tornaram-se individualistas. O que
ocorre é que as novas possibilidades aber tas
à criação cênica, sua hibridização formal por
um lado, e a abertura de um espaço europeu
de criação e distribuição, facilitam a mobilidade e o trabalho em rede. Já não existem grupos fechados, mas se pode falar de grupos
dispersos ou redes de criadores que colaboram freqüentemente conformando coletividades instáveis. Este fenômeno me parece muito interessante. n
5
artigo
André Carreira1 e
Antonio Vargas2
1
Diretor do grupo teatral
Experiência Subterrânea,
professor do Mestrado em
Teatro da UDESC e
pesquisador do CNPq.
2
Professor do Mestrado em
Teatro da UDESc e diretor
geral do Centro de Artes da
UDESC.
3
Outros sub-projetos da
pesquisa atualmente em
desenvolvimento: Teatro de
grupo e uso do espaço (Patrícia
Barrufi); Ator Criador e Teatro
de grupo (Daniel Olivetto);
Relação público e grupo
(Adriana Santos); Modelos de
formação do ator (Ana L.
Fortes); A identidade do ator
(Margareth Rueckert); Projetos
pedagógicos e o teatro de grupo
(Éder Sumariva); Arquivo
ÁQIS (Camila Ribeiro);
Artistas e professores no grupo
(Rosângela do Amaral); Mito
do herói e teatro de grupo
(Renata Padrão)
6
Um projeto de pesquisa
Desde 1997 nossa equipe de trabalho (ÁQIS / Núcleo de pesquisa sobre processos
de criação artística da Universidade do Estado de Santa Catarina) vem pesquisando
os processos de conformação de identidade cultural associados ao teatro. O estudo do
fenômeno do teatro de grupo é hoje um elemento fundamental para a compreensão da
cena brasileira, por isso para analisar os desdobramentos do teatro na contemporaneidade parece central identificar o papel que o teatro de grupo joga na conformação de
novos padrões de trabalho.
O projeto do ÁQIS está dividido em dois sub-projetos integrados, a saber: a) O teatro de
grupo e a conformação de modelos de ator, coordenado por André Carreira; b) As manifestações do mito heróico no discurso teatral e suas implicações na construção das identidades artísticas
do teatro de grupo, coordenado por Antonio Vargas3.
Em um primeiro momento, o objeto de estudo do projeto esteve delimitado por questões
relacionadas aos procedimentos da produção, depois o foco esteve posto na especificidade
do trabalho do ator no contexto grupal. Posteriormente, o projeto definiu seu eixo a partir
da idéia de que o teatro de grupo – importante modelo no teatro brasileiro que constitui
uma zona periférica do nosso sistema teatral – estrutura procedimentos de formação que
estão articulados com os discursos artísticos e ideológicos dos coletivos.
Os principais objetivos desse momento do projeto são: estabelecer uma breve história
do movimento de ‘teatro de grupo’; delimitar os modelos de conformação grupal relacionados com o ‘teatro de grupo’; analisar os procedimentos de formação de atores próprios
do ‘teatro de grupo’.
O estudo sobre o ‘teatro de grupo’ busca compreender um fenômeno que se fez mais
presente em circuitos teatrais periféricos no Brasil a partir da segunda metade da década
de 80. Como uma decorrência de novos movimentos teatrais que nos anos 80 buscaram reestruturar espaços alternativos para o teatro e, especialmente, redefinir o papel do teatro
no campo da cultura, a expressão ‘teatro de grupo’ pareceu propor um novo lugar social
para uma forma de estruturação grupal consolidada nos anos 60.
Diferentemente da idéia de grupo teatral como unidade artística com claro compromisso ideológico que dialogava de forma direta com o contexto político, atualmente a modalidade que se encaixa sob o título de ‘teatro de grupo’, parece se relacionar de forma mais
direta com o próprio contexto do teatro. Observa-se neste caso um deslocamento dos objetos da esfera política e social para o terreno das linguagens teatrais com um conseqüente
foco em reflexões sobre papel do teatro frente à complexidade dos fenômenos da cultura.
Certamente não houve apenas uma mudança de conteúdos, mas sim uma complexa reorganização de procedimentos e de percepções sobre o fazer teatral, e o papel do teatro no
contexto sócio-cultural. No ambiente dos grupos – isto é, daquele teatro que escapa à
esfera do profissionalismo comercial – ocorreram, nas últimas duas décadas, transformações significativas no que diz respeito à compreensão do lugar social do teatro. Aqui cabe
destacar que esse fenômeno pertence a uma zona periférica – tanto da cultura em geral
como do próprio Teatro –, e é exatamente por isso que ele reveste grande importância para
os estudos que pretendem abordar a história do teatro no país no século XX. A noção de
grupo representa hoje uma referência que permite estudar um amplo conjunto de grupos
que têm sido responsáveis pela estruturação de um espaço dinâmico de circulação de
espetáculos e de formação de novos atores e atrizes.
O trabalho sobre modelos teatrais periféricos identificou uma tendência acentuada de
aparecimentos de novos projetos relacionados à idéia de ‘teatro de grupo’. Para aprofundar a
Camarim  39
sobre Teatro de Grupo
reflexão sobre as repercussões do teatro de grupo no Brasil, e compreender como esta presença tem formulado novas formas de estruturação coletivas, foi necessário identificar as matrizes que operam como fundamento de uma grande quantidade de trabalhos grupais.
Esta pesquisa tem se apoiado no reconhecimento da condição periférica de experiências teatrais no marco do grupo. Assim, o mapeamento dos grupos tem implicado a
organização de um retrato de um modo de produção teatral periférico. Por isso é interesse do projeto analisar os elementos ideológicos e poéticos que determinam a estruturação de tais projetos.
A equipe tem entrevistado artistas e registrado atividades de grupos tomando como
critério coletivos com pelo menos cinco anos de atividade regular. Os estudantes que
participam do projeto visitaram grupos, assistindo ensaios, apresentações, conversando com
atores, atrizes e diretores, conhecendo sedes, e descobrindo uma complexa realidade de
trabalho diário. Essas visitas produziram um amplo material que serve de base para o desenvolvimento dos sub-projetos que constituem o projeto central.
Iniciamos nosso mapa pelos grupos das capitais da Região Sul, para posteriormente abordar cidades como Belo Horizonte, Campinas, Brasília e Goiânia. Nosso plano de expansão –
sempre dependente de financiamento – supõe visitar outras cidades ao longo de 2007.
Com o material produzido o projeto coloca na internet, agora em abril, um arquivo sobre
teatro de grupo que reúne entrevistas, fotos, vídeos e textos reflexivos. O objetivo primeiro
deste arquivo é estabelecer um diálogo mais amplo com artistas e pesquisadores, de tal
forma que as iniciativas do ÁQIS possam encontrar colaboração mesmo à distância. Acreditamos que o Arquivo contribuirá para a realização de outras pesquisas, pois ao construir
esta fonte de informações estaremos dando mais visibilidade ao trabalho de vários grupos
que ocupam lugares periféricos. Ao mesmo tempo pretendemos que o arquivo contribua
para os estudos teatrais redimensionando o teatro de grupo como fenômeno horizontal com
ramificações nas mais diferentes regiões do país.
Nossa contribuição também se refere à necessidade de conceituar de forma mais clara o
que é o teatro de grupo, ainda que seja a partir da constatação da diversidade de modelos.
Uma das preocupações dessa pesquisa é sondar como o ‘teatro de grupo’, opera nos
contextos periféricos tanto como uma possibilidade alternativa, quanto como uma tendência que pode gerar práticas de hegemonia, neste contexto, a partir da construção
de novas redes de representação de hierarquia. Essa discussão parece importante para
estudar o teatro de grupo sem fazer do nosso olhar uma simples forma de validação
desse modelo de trabalho.
Buscamos desde as diferentes vertentes do projeto integrado compreender o teatro de
grupo, suas relações com o contexto cultural e as principais tendências que funcionam
como base para a estruturação de um sistema teatral periférico.
No campo dos estudos teatrais ainda persistem lacunas no que se refere ao conhecimento
das práticas teatrais periféricas. Por isso abordar as especificidades destas práticas teatrais e
relacioná-las com o movimento do teatro de grupo é fundamental para criar uma base de
reflexão sobre a complexidade dos processos criativos/produtivos teatrais e poder gerar conhecimento que contribua com o movimento teatral do contexto estudado. O objetivo é
dirigir o nosso olhar sobre os grupos desde uma perspectiva periférica. Pretendemos com este
estudo contribuir de uma forma direta com a história do teatro brasileiro contemporâneo
buscando compreender tanto a situação periférica do teatro de grupo, como as estruturas
internas do movimento e suas linhas de influências e articulação de discursos. n
1º semestre de 2007
Diferentemente
do grupo teatral
como unidade
artística com
claro
compromisso
ideológico que
dialogava de
forma direta
com o contexto
político,
atualmente
‘teatro de grupo’
parece se
relacionar de
forma mais
direta com o
próprio contexto
do teatro÷
7
CENA CONTEMPORÂNEA
Der Meister und Margarita, Frank Castorf/Volksbühne
A Teatralidade e o Teatro*
Espetáculo do real ou realidade do espetáculo?
Notas sobre a teatralidade e o teatro recente na Alemanha
Cenas de rua
Helga Finter
Instituto de Teatro (ATW)
– Universidade de
Giessen
Tradução do espanhol:
Marília Carbonari
8
No século passado, inovadores do teatro contemporâneo estabeleceram, em três ocasiões, uma cena de rua como modelo de um teatro futuro. O primeiro foi Antonin Artaud, em 1926, no manifesto que anunciava na NRF sua intenção de fundar “O Teatro
de Alfred Jarry”1. Depois de ter admirado a coreografia de um “espetáculo de ação policial” durante uma batida policial em um prostíbulo, como se fosse um ballet preciso de
uma determinação incontestável, estabeleceu-a como modelo da cena futura por seu
duplo e perturbador efeito no espectador: perseguidor e vítima potencial ao mesmo tempo. O espectador não só liberava sua afeição mas também, simultaneamente, tinha que
chegar a uma reflexão sobre sua própria violência ao vivê-la através da ação dos outros.
A segunda cena de rua é proposta por Gertrude Stein em suas Lectures in America, de
1935. Na parte intitulada “Play”2, a escritora compara uma cena real – real scene – na qual
* Texto originalmente publicado em Teatro Al Sur, nº 25, outubro de 2003. Agradecemos aos editores pela
autorização para sua publicação.
1
Publicado em Oeuvres Complètes, volume II, Paris, Gallimard, 1961, p. 19-22.
2
Gertrude Stein, Lectures in America, New York, Vintage Books, 1975, p. 96.
Camarim  39
alguém participa, com uma cena de teatro
na qual se é somente espectador. Ela prefere
a primeira cena justamente pelo tipo de participação exigida, porque a cena real permitiria uma realização da emoção provocada –
completion of excitement- . Por outro lado, a
cena de teatro representada só causaria um
alívio – relief-. A primeira cena aboliria, além
disso, a diferença de temporalidade entre o
visto e o vivido, entre a cena e o público. A
imediatez da cena real avança contra a mediatização teatral. A cena de rua, ao colocar em jogo uma demonstração de um acesso de violência, permite uma participação
liberada do dever de atribuição de papéis e
de funções sociais, e também uma memória
cultural para os atos e os atores. A cena da
vida se faz, se executa: necessária, implacável, livre de qualquer saber prévio tanto dos
atores como dos espectadores.
A terceira cena de rua é apresentada por
Bertolt Brecht em suas reflexões sobre o teatro
de 1937 a 1951, coletadas no Messingkauf,
(Compra do latão). Uma Strassenszene (cena
de rua) torna-se – segundo o subtítulo – “modelo de base para uma cena do teatro épico”3.
Novamente é uma cena na qual a violência
está em jogo; desta vez, em um acidente de
trânsito. Mas já não é a emoção direta, o acting
out do afeto, senão a emoção narrada, o testemunho do que foi visto e do que foi vivido que
contará e representará um narrador. O tema
desta cena é a reflexão sobre o ato de olhar; a
semiotização e a desconstrução do olhar em
um espetáculo de rua e sua encenação definem, segundo Brecht, o teatro futuro.
Essas três cenas de rua, propostas como
modelo de um teatro futuro, contêm o germe
da estrutura dos três tipos de teatro que determinam a cena teatral a partir dos anos 60
do século passado: o teatro da crueldade de
Artaud, landscape play até a performance art e
o teatro épico. Todos concordam com a importância atribuída ao espectador – theates –
cuja atitude requerida define, em cada modelo, um novo tipo de teatralidade. É sua realidade de sujeito que é interpelada: sujeito
do inconsciente para Artaud, sujeito da inconsciência para Gertrude Stein e sujeito
transcendental de reflexão para Brecht.
Por que agora o espectador é jogado para
o centro? Por que justamente no período
1º semestre de 2007
3
Bertolt Brecht, “Der
Messingkauf”, em Gesammelte
Werke in 20 Bänden, Frankfut/
Main, Suhrkamp, 1967, tomo
16, p. 546-558.
4
Cf. Guy Debord, La Société
du spetacle [1967], Paris,
Lébovici, 1971 e
Commentaires sur la Société du
spetacle, Paris, Lebovici, 1988.
5
Walter Benjamin os constatou
e analisou no seu ensaio “A
obra de arte na época de sua
reprodutibilidade técnica”, de
1935.
entre – guerras, do século passado, recorda-se que do lugar do espectador – theatron – deriva o teatro e que de sua atividade, theaomai – olhar simultaneamente com
os olhos e a mente –, nasceram os termos
teatro e teoria? Ainda que nos três tipos de
teatro o modo de atuação seja decisivo –
encarnação artaudiana, non-acting steiniano ou o gestus brechtiano –, a arte do ator
só é determinante por aquilo que em sua
atuação contribui a uma reflexão sobre a
relação entre teatralidade e espetacular.
Estes paradigmas de um teatro do futuro
foram formulados numa época em que se estabeleceu a sociedade do espetáculo (Guy Debord), que se diferencia em espetacular concentrado, nas sociedades totalitárias e ditatoriais e em espetacular difuso, nas sociedades
post-indutriais4. O atraso da Europa explica a
diferença entre os modelos do francês e do alemão, de um lado, e da dramaturga norte-americana, de outro. Na Europa, diante do espetáculo da estetização da política dos fascismos e
do direito exigido das massas à auto-representação5, a resposta tinha que ser distinta: de um
lado consiste em uma tentativa de fazer surgir,
mediante encarnação, a crueldade subjacente à vida cotidiana na sociedade para analisála em cena e, de outro, propõe submeter à encenação da política ao bisturi do gestus, e desmontar o espetacular pela análise do olhar. Por
outro lado, a dramaturga norte-americana,
originária de um país no qual o estabelecimento
do espetacular difuso estava muito mais avançado que na Europa, já reagia em sintonia com
uma teatralização da vida cotidiana: efetivamente, isso podia tornar o espectador de uma
representação teatral incômodo ou nervoso,
porque o colocava frente à distância entre a
encenação cotidiana de si mesmo e o desconcerto nascido de uma ausência de memória
cultural. Stein concebe o teatro futuro como
um puro fazer, construção de presença e superfície, performance nascida de um non-acting.
Teatro na Alemanha e
sociedade do espetáculo
O teatro de hoje é herdeiro destas concepções teatrais, respostas em seu tempo ao
espetacular concentrado e difuso. Mas agora
o desafio é outro, já que se trata de responder ao desafio do espetacular integrado6 de
9
cena contemporânea
uma sociedade que se transformou, também
na Europa nas duas últimas décadas, em
uma verdadeira sociedade do espetáculo
globalizada. Contudo, subsistem ainda diferenças nas respostas teatrais, marcadas
pela História específica de cada país.
Na Alemanha, esta mutação acarretou
repercussões estéticas no teatro a partir da
década de 90. Antes, desde o final dos anos
1988, que se manifestavam nos anos 90 –, suscitavam as primeiras reconsiderações da resposta que o teatro teria que dar à sociedade.
Deste modo, a geração seguinte – de que alguns membros já se impunham no oeste desde a metade dos anos 80 e que marcaram os
anos 90 – sublinhava a crítica para a outra
forma de espetacular concentrado para a qual
estavam particularmente sensibilizados, por
Chácara Paraíso, Stefan Kaegi e Lola Arias (Rimini-Protokoll)
6
7
Cf. Guy Debord, 1988.
Chamou-se esse estilo de
Reichskanzleistil (estilo de
chancelaria do Reich). O
destaque desse estilo que só
buscava a beleza seria, no
campo musical, a estética de
Herbert von Karajan.
10
60, a geração dos Theatermacher – Peter Stein,
Klaus Michael Grüber, Peter Zadek, Claus
Peymann – ainda estava presa pela herança
do espetacular concentrado do nazismo: por
um lado, tinha que evitar qualquer expressionismo e grandiloqüência, já que os líderes
políticos antigamente onipresentes haviam
confiscado não só o bigode de Charlie Chaplin, mas também sua atuação e as vozes teatrais; e, por outro lado, tinha que tirar o texto
do estilo frio e da superfície lisa (uniforme),
da preocupação somente com a beleza do som,
característica do teatro da época nazista7. A
tarefa consistia em insuflar uma vida contraditória aos grandes textos clássicos, antigamente desviados. Um trabalho encarniçado
sobre a memória e que auspiciava tanto Fritz
Kortner como Bertolt Brecht, um trabalho sobre as memórias das linguagens teatrais, dos
estilos de atuação, dos textos e da História:
esta foi a resposta.
As mudanças da sociedade do espetáculo, que desembocaram em um espetacular integrado – como já constatou Guy Debord em
serem da Alemanha do Leste. Heiner Müller, Frank Castorf, Einar Schleef prosseguiam
e radicalizavam o gesto brechtiano ao fazê-lo
dialogar com Artaud e Shakespeare, e inclusive com Robert Wilson (Müller), ao confrontá-lo às vanguardas da Revolução russa e da
República de Weimar, assim como à cultura
pop (Castorf), ou ao desconstruir a memória
do coro brechtiano mediante o encontro simultâneo do coro antigo, wagneriano e nazista (Schleef). Ao trabalhar assim o afeto e a
corporalidade pulsional estimuladas no ator
e no espectador simultaneamente, propunham
e propõem desconstruções de uma teatralidade ao mesmo tempo da cena política nazista e comunista, e parcialmente do espetáculo
contemporâneo (Castorf).
Novos autores dos anos 90, tais como o
suíço Christoph Marthaler ou o compositor
Heiner Goebbels, propõem socavar uma teatralidade convencional a partir de inserção da música no jogo, analisando a carga
afetiva da musicalidade e dos ritmos do texto no teatro falado, ou da dialética entre
Camarim  39
presença vocal e instrumental, trabalhando assim sobre o inconsciente musical e sonoro, lugar de inscrição de uma afetividade proibida da emissão do texto. Com estes
autores, os atores tornam-se músicos e/ou
cantores, os músicos tornam-se atores.
Se Müller, Schleef, Castorf propunham e
propõem respostas ancoradas, na sua maioria,
em uma problemática e uma estética muito
e as respostas que dão ao teatro. Ao deixar
os espaços tradicionais e renunciar – na
maior parte – a empregar atores profissionais, seu teatro se situa entre a instalação
de vídeo e a instalação sonora, se torna event
encenado ou ação teatral, e tem como campo de intervenção o real, de onde busca
extrair a qualidade espetacular e teatral
para, em um movimento de ida e volta, con-
alemãs, o suíço Marthaler e o alemão “ocidental” Goebbels se inscrevem explicitamente em um contexto cosmopolita, no qual o
horizonte intercultural está tão presente como
as referências estéticas, musicais e textuais
internacionais: o teatro pós-moderno de Robert Wilson, a música e a performance de
Charles Ives e John Cage, os textos de Gertrude Stein, Alain Robbe-Grillet, Paul Valéry, Francis Ponge, Maeterlinck se misturam
tanto com os dos contemporâneos e dos clássicos da tradição greco-romana, inglesa e alemã, como com as músicas e os textos da tradição pop, de modo a dialetizar memória cultural e memória popular.
Esta geração próxima aos cinqüenta anos
abordava e aborda o espetacular integrado
a partir de uma cultura sólida e de uma
leitura dos textos, músicas e estéticas teatrais. Já na geração de trinta anos de hoje,
o background intelectual e vivido é distinto. Com efeito, buscam explicitamente o
novo espetacular integrado e se distinguem
de seus antecedentes, tanto pela formação
e estética como pelas perguntas que fazem
taminar o teatro com uma hiper-realidade.
Seu modelo de referência já não é o teatro
restringido, mas os formatos propostos fora
do teatro pelo espetáculo ambiente: formatos de TV policiais ou de ficção científica,
os reality shows, as revistas, os programas de
perguntas e respostas, os shows pop, os eventos esportivos, os debates políticos, etc.
São eles que propõem hoje o verdadeiro
teatro político de sua geração, esse que
Thomas Ostermeier havia prometido quando retomou em 2000 a direção da SCHAUBÜHNE, em Berlim. O teatro pós-brechtiano desse discípulo da ESCOLA ERNST
BUSCH de Berlim Oriental, igual ao de
Thomas Küln no TAT de Frankfurt, é, portanto, desafiado pelos colegas da mesma idade mas de formação muito diferente que já
não é aquela admirável das profissões de
teatro, senão o resultado da reflexão teórica pós-estruturalista, das concepções estéticas da vanguarda teatral e artística norte-americana e do oeste europeu, e da experiência prática com artistas como Robert
Wilson, Heiner Müller, John Jesurun, Bo-
1º semestre de 2007
11
cena contemporânea
bby Baker, Jean Marie Straub ou Richard
Schechner durante seus estudos no INSTITUTO DE TEATRO (ATW) da Universidade de Giessen. Este instituto, a pouco qualificado pela crítica Renate Klett no
semanal Die Zeit8como “ferraria estética da
nação”, foi fundado por Andrzej Wirth em
1982. Concebido segundo o modelo das drama schools norte-americanas, o ensino simultâneo teórico e prático acentua há uma
década a reflexão sobre o lugar do teatro
em uma sociedade do espetáculo.
No centro das produções desses jovens
performers e dramaturgos existe, efetivamente, uma relação com a sociedade que,
ao mesmo tempo, submete às leis do espetáculo a vida íntima e a vida pública, a
memória, os desejos e os medos. Trabalhando sozinhos, mas aos poucos também em
grupos com nomes que vão mudando conforme os participantes, uma série de jovens
artistas formados nesse instituto se colocou
estes últimos anos na cena nacional, graças ao fórum que lhes deram nos seus primeiros anos, diretores de teatro como Tom
Stromberg, no começo no TAT de Frankfut
e depois no DEUTSCHES SCHAUSPIELHAUS de Hamburgo, mas também graças às cenas alternativas como KAMPNAGEL, em Hamburgo, PODEWIL, em Berlim, e também a festivais e galerias de arte.
Hoje é o PRATER, cena off da VOLKSBÜHNE de Frank Castorf em Berlim, que
é dirigida por um deles, René Pollesch.
Este autor, que costuma encenar ele mesmo suas obras, é uma dos poucos graduados
de Giessen para quem o texto, elaborado
junto com os atores, prevalece9. Suas obras,
ditas em um ritmo acelerado, entrecortadas por gritos que tem uma nova forma de
rima, articulam de maneira lúdica, em espaços trash, o desamparo e a depressão frente
à expropriação do corpo pela tecnologia genética e frente à opinião dos que nos em8
Cf. Die Zeit, n°3, 9 de janeiro de 2003.
9
Restrinjo-me aqui aos nomes que me parecem mais
paradigmáticos para esta nova teatralidade. Também
tinha que citar, entre os autores e dramaturgos
graduados dessa escola, Moritz Rinke, Tim Staffel,
Nora,
12
Jens Roselt e, entre os diretores que se consagram ao
Thomas Ostermeier/Schaubühne
texto e à ópera, a Regina Wenig e Serge Morabito.
Camarim  39
purram ao desfrute do comercial, frente à
globalização; em uma linguagem que mistura jargão sociológico, científico e pós-estruturalista com uma gíria jovem, se desenha um horizonte de experiências íntimas
de aprisionamento em uma cultura midiática de telenovelas, séries B e talk-shows
televisivos, e do vão desejo de fugir.
Outros ex-alunos de Giessen enfrentam
o espetacular integrado em performances que
articulam em sua estrutura o espetacular da
vida cotidiana. Formaram-se vários grupos:
SHE SHE POP, grupo de jovens mulheres,
SHOW CASE BEAT LE MOT, formação de
homens jovens e também GOB SQUAD,
grupo anglo-alemão. Estes performers, que
reivindicam seu non-acting e seu não profissionalismo, trabalham a partir de suas vivências e de sua relação com as promessas de
felicidade e de notoriedade da sociedade do
espetáculo. Converter-se em estrela é, por
exemplo, um de seus temas: pop-stars ou talkmasters onipotentes são os modelos, experimentados com sua carga de incômodo e de
vergonha, assim como seus procedimentos
vitimários e infantilizantes. Outro tema é o
mito da party life que convocam as esperanças e decepções de jovens que cresceram
em uma sociedade de diversão. O impacto
político e estético se pronuncia de maneira
distinta em artistas e performers como Helgard Haug, Daniel Wetzel, Stefan Kaegi e
Bernd Ernst. Eles se juntaram para suas ações
cênicas sob a etiqueta RIMINI PROTOKOLL (Protocolo Rimini) ou HYGIENE HEUTE (Higiene hoje) ou antigamente UNGUNSTRAUM (Sonho e/ou espaço de má
sorte) e desempenham ou produzem também
sozinhos ações cênicas e radioplays, transmitidas por rádio, utilizadas em instalações sonoras e distribuídas como CDs. Distinguemse por um trabalho em sua maioria in situ com
grupos sociais específicos que se convertem
em seus performers, e cuja memória e relatos são postos em situação de experiências
com discursos ou eventos espetaculares provenientes de outro lugar.
Assim colocaram em cena em Kreuzworträtsel Boxenstop (Palavras Cruzadas)10 quatro senhoras octogenárias, do asilo vizinho
ao teatro que os havia contratado, para articular em cena simultaneamente a memória
1º semestre de 2007
10
Produção de Helgard Haug,
Stefan Kaegi e Daniel Wetzel,
no THEATER AM
MOUSONTORM, Frankfurt,
ano 2000.
11
Produção de Helgard Haug,
Stefan Kaegi e Daniel Wetzel,
estreada no MOUSONTURM
de Frankfurt, e produzida pelo
teatro de Lucerna com crianças
de diversas origens dessa
cidade. Nicolas Bourbaki é o
general do exército francês
acolhido pela cidade de
Lucerna em 1871; “
Knabenschiessen” é um
concurso de tiro para meninos
em uma festa popular suíça; a
polissemia da palavra se
estende ao mesmo tempo ao
tiro dos meninos e ao tiro
contra os meninos.
12
No PRATER da
VOLKSBÜHNE, Berlim,
2001.
e as vivências de anciãos com a memória e
as vivências de automobilistas famosos. Do
contraste dos dois tipos de discurso e dos dois
tipos de atividades, em um espaço high tech
com fundo de projeções de corridas através
dos corredores do asilo filmadas do ponto de
vista de alguém sentado em uma cadeira de
rodas, resultava um questionamento apaixonante do lugar construído para a velhice e
as incapacidades em uma sociedade dedicada à juventude e à velocidade. Shooting
Bourbaki: ein Knabenschiessen11, ao contrário
confrontava a realidade dos meninos suíços,
a instrução para o manuseio de armas de cada
cidadão masculino suíço e a história da retirada do exército francês em 1871, que encontrou refúgio em Lucerna: o entusiasmo
dos jovens pelos heróis de guerra do espaço
televisivo, os modos de utilização do tiro ou
o relato de uma derrota convertido em tema
de um imenso painel pintado, a atração turística da cidade, permitiam analisar um imaginário militarista que voltava a dar uma memória ao mesmo tempo singular e coletiva.
Em Apparat Berlin12, o tema é a organização
de grupos humanos: o material de base é a
gravação radiofônica de perguntas e respostas que surgiam na população de Berlim
Ocidental no momento da abertura do muro
para as festas de fim de ano de 1963. O absurdo teatro de temores, restrições e proibições burocráticas que revelam as perguntas
confiadas a um serviço telefônico que funcionava noite e dia, assim como as respostas
dadas em um tom paternalista, aos poucos
intimidantes, está confrontado com os modos contemporâneos de direção comportamental dos cidadãos, tais como uma conferência acadêmica sobre a organização de
massas, ou as estruturas de aprovisionamento de cerveja dos espectadores em uma quadra de futebol, ou a estratégia de exposição
dos mantimentos em um supermercado cujo
dispositivo espacial está calcado em um conjunto militar romano. Aqui os modelos de
atuação são o conferencista acadêmico, o
jornalista radiofônico, ou o especialista de
marketing, que se encontram sob o fundo
sonoro do documento histórico na acidez de
uma teatralidade hilariante.
A mais conhecida de suas produções, tanto pelas reações dos interessados como pelo
13
cena contemporânea
eco midiático, é Deutschland 2 (Alemanha
2)13. Tomando ao pé da letra a inversão dos
códigos teatrais na vida política e a significação de Volksvertreter (deputado), como representante do soberano, se tratava de dublar esse soberano com sua própria voz: um
cast de voluntários eleitos devia produzir a
cópia pirateada instantânea de uma seção
do Parlamento alemão em Berlim, retrans-
mentar, na qual estão ausentes os representados. Aguçando o ouvido para a especificidade corporal transmitida pela voz, pelo sujeito
humano detrás das fórmulas estereotipadas e
formais, esta representação dos representantes do povo por aqueles que representam foi
de fato, como escrevia Renate Klett, um
“exercício de democracia para 200 cidadãos
e cidadãs de Bonn”. Aqui se nota, acima de
Tristão e Isolda, Christoph Marthaler
mitida ao vivo nos fones de ouvido dos participantes na plenária do antigo Bundestag em
Bonn. A proibição do presidente do parlamento, Wolfgang Thierse, de usar a sala do
antigo parlamento, motivada por um temor
pela dignidade da assembléia parlamentar,
confinava esta ação a uma sala de teatro.
Estes temores de ver os políticos caricaturizados pelo karaokê de seus eleitores se revelaram, no entanto, como vãos, já que esses
atores improvisados não somente haviam elegido “seu” deputado – segundo critérios que
mostravam um compromisso e um interesse
verdadeiro pela pessoa política eleita –, como
também os dublavam com grande dignidade e respeito, o que assombrava alguns. Então, o desinteresse político do cidadão foi a
primeira das idéias recebidas e retificadas
por esta ação: ao entrar no corpo de outro
pela repetição simultânea de sua voz; ao renunciar, obrigado pela velocidade, a marcar
sua própria distância do dito, cada duplo de
um deputado se fez uma experiência impressionante. Pela repetição simultânea do discurso soprado do outro, o performer podia
perceber seu funcionamento, a distância irredutível com ele ou a proximidade de seu
modo de pensar, traduzido por frases desarticuladas gramaticalmente, com continuações e adições, ou por passagens retoricamente perfeitas.
Esta deslocalização-desdobramento voltou
a colocar no centro do interesse a cena parla14
13
Produção de Bernd Ernst,
Helgard Haug, Stefan Kaegi e
Daniel Wetzel, em 27 de junho
de 2002, sem parar das nove da
manhã até meia noite, na
Schaupielhalle de Bonn, como
pedido do festival THEATER
DER WELT.
tudo, a preocupação ética deste grupo de artistas: dar voz a quem o espetáculo se esquece, mas também ressuscitar a memória e o
corpo interiorizado dos “possuidores” do espetáculo ambiente. O espectador e o performer são interpelados por sua própria memória
para fazer o trabalho de interpretação das metáforas e oxímoron criados pelo choque dos
lugares, dos discursos, dos modos de ação que
se encontram deslocalizados e descontextualizados em um lugar cênico.
Deslocalização e descontextualização são
de outra ordem quando Stefan Kaegi trabalha em associação com Bernd Ernst ou sozinho. Este artista suíço, já reconhecido em
seu país como performer antes de sua chegada a Giessen, gosta de brincar com os terrores escondidos e os medos inconscientes de
seu público e nem sempre evita o risco de
ser suspeito da instrumentalização desses performers não profissionais. Ele os elege por sua
singularidade física ou psíquica, ou por suas
competências em um campo específico, por
exemplo, um domador de pastores alemães,
um criador de abelhas, um físico das partículas ou um corredor de maratona. Logo,
suas personagens se reúnem em cena para
“congressos” virtuais, por exemplo, ou experiências quase-científicas.
Este interesse pela vivência insólita de
certos humanos, tratados segundo Kaegi
como ready-made vivos, é dobrado por uma
curiosidade etiológica pela vida animal14. O
Camarim  39
“teatro do real” que resulta, traduz as preocupações de sua geração ante as pretensões
de dominação das ciências naturais e técnicas sobre a integridade do corpo e da psique
do ser humano. No centro do questionamento estão as fronteiras do humano, a relação
do humano e do animal, tanto como o que é
considerado por certas pessoas como monstruosidade física ou psíquica. Há algo do
mund, que desapareceu. Cassetes enviados
à sua esposa e à sua filha informam sobre
uma ameaça escondida no aspecto familiar
da cidade, se supõe que estes são os cassetes
que o espectador escuta. Ao final, as vozes o
levam ao lugar do crime, atrás da cortina da
ducha de um apartamento abandonado em
pleno centro, para fazê-lo imaginar ali uma
morte observada da esquina de uma janela
Kaprow City, Christoph Schlingensief/Volksbühne
espírito de Kafka em tal interesse, também
de Artaud, para não citar mais do que os
dois escritores mais significativos que anteciparam a ameaça que as ciências impõem
sobre o sujeito singular como efeito secundário de seus benefícios. Inclusive a insistência nas problemáticas relacionadas com
a sociedade do espetáculo ou a extensão do
reino das ciências e a técnica, parecem suplantar a interrogação sobre o amor ou as
relações afetivas desses representantes de
uma geração confrontada às desilusões da
pós-liberação sexual. Do mesmo modo, o saber psicanalítico só intervém indiretamente
pelo desvio do questionamento do olhar e
da relação com o imaginário do medo.
Um testemunho disso é System Kirchner15,
que estende a deslocalização até o lugar e o
olhar do espectador: adornados com fones
de ouvido e um walk-man, os espectadores
ilhados, se sucedem um ao outro com uma
diferença de 10 minutos; dão uma volta pela
cidade que é lugar desse audio-tour. A voz
no walk-man guia o deslocamento: as indicações exatas não apenas concernem às direções e aos lugares, mas também ordenam
o olhar, a velocidade da caminhada, as paradas, os gestos para executar, e sugerem,
além disso, uma explicação dupla do que se
percebe. Lentamente a cidade e seus habitantes se transformam ante os olhos do passante, já que a voz indica seguir as pegadas
de um tal Kirchner, bibliotecário em Dort1º semestre de 2007
14
Este interesse já havia
manifestado em seu começo em
Giessen com uma instalação de
vermes brancos debaixo de
vidros, que evoluíam como um
húmus, até que razões sanitárias
puseram um fim prematuro. O
nome de HYGIENE HEUTE
eleito depois para o grupo
formado com Bernt Ernst me
parece uma alusão possível a
este episódio. Europa tanst
(Europa baila), Viena 2001,
atribui a 60 porquinhos da índia
o remake da divisão da Europa
pelo Congresso de Viena de
1815; Terrarium, Mannheim
2002, junta populações de certo
tipo de formiga de bosque.
15
Produção de Bernd Ernst e de
Stefan Kaegi para o Festival
internacional dos estudantes de
teatro, Diskurs, em 1999 em
Giessen, este áudio-tour foi
“mostrado” em 2000 em
Frankfurt e retomado com o
título de Canal Kirchner em
2002, no festival SPIELART
em Munich.
16
Procuzido no início como
radiofonia em 2001, depois
como instalação no teatro de
Kassel em 2002.
em uma varanda distante. Este relato policial virtual é vivido pelo espectador, se se presta ao pacto simbólico proposto, como uma
transformação do familiar em insólito, como
uma experiência do unheimlich freudiano,
como a invasão lenta e dissimulada de uma
paranóia digna de um Hitchcock ou de um
David Lynch. A qualidade transformadora
do olhar teatral e seu espaço são experimentados aqui como heterotopia (M. Foucault):
os lugares, objetos e pessoas encontrados casualmente se transformam pelo olhar, dirigido por uma voz do fone de ouvido, em lugares, objetos e personagens de um teatro íntimo, já que resultam ao mesmo tempo da relação do expectador com seu imaginário e
da voz que propõem seguir as pegadas de uma
história vagamente policial.
Outra produção de Stefan Kaegi sozinho, Play Dagobert16, faz da cena vazia e da
cena cheia de um teatro a vítima de um
drama que ocorre em outra parte. Trata-se
de uma tomada de reféns que ocorre nos
bastidores e cujas vozes são retransmitidas
na sala: o teatro está nas mãos de um caloteiro, cujas ações anteriores contra grandes empresas alemãs haviam sido falsamente atribuídas a Dagobert, nome de um caloteiro verdadeiro que havia chegado às colunas da sessão policial dos jornais alemães.
Um primeiro refém, a intendente da cidade; uma mulher, que se encontra em um
lugar desconhecido, é obrigada a ler extra15
cena contemporânea
tos do Käthchen von Heildronn, de Kleist.
Executa esse ato com uma voz trêmula sob
a ameaça de que, se parar a leitura, irão
explodir o lugar. Esta instalação sonora faz
com que o drama ocorra fora de cena; sublinha desta forma que a teatralidade se
articula em uma dialética de presença e ausência. Mas antecipa também um terror
real, que aconteceu um ano depois em um
teatro de musicais em Moscou.
Ao permitir um encontro do teatro com
a forma de uma reportagem ao vivo retransmitindo em uma cena vazia, o dispositivo
do Hörstück tanto como o da instalação consegue livrar a teatralidade da forma e contaminar o teatro – durante um momento –
com o real virtual. Contudo, um dispositivo semelhante só pode funcionar se o pacto
de separação do espaço do teatro e da realidade – ainda que seja espetacular – continue tacitamente respeitado, se o espaço
do teatro só é violado imaginariamente.
Voltarei mais adiante sobre este ponto.
Antes de terminar com reflexões mais
gerais acerca da diferença entre teatro e
espetáculo, quero agregar algumas palavras
sobre um artista de 40 anos, a pouco considerado pela imprensa como um pai espiritual deste novo teatro alemão. Christoph
Schlingensief, cineasta, talk show master e
homem de teatro, intervêm na realidade
política alemã, suíça e austríaca, desde meados dos anos 90. Suas ações poderiam caracterizá-lo como um herdeiro do teatro invisível de Augusto Boal ou de alguns situacionistas franceses. Entretanto, seus modelos são explicitamente formatos nascidos da
vida midiática e política, já que para ele se
trata de fazer confessar – pelos meios do
espetáculo – à sociedade do espetáculo o
que cala e o que rejeita. Ainda que essa
luta impossível de um David das artes contra o Golias dos meios tenha encontrado
seus limites no domínio dos talk shows frente a um mestre do gênero como Harald Schmidt17, a eficiência das ações no domínio
artístico e teatral se comprovou tanto no
que concerne à reação dos meios como nas
respostas do público, que se dividiu entre
opositores ferozes e fanáticos incondicionais.
Estas são algumas ações: Chance 2000
retoma as estruturas das campanhas elei16
17
Cf. a documentação parcial
do talk show, organizado na
VOLKSBÜHNE de Berlim em
1997, com o signo “Cada um
pode, na Alemanha, converterse em talk master“. Talk 2000,
Viena, 1998.
18
Cf. a documentação parcial
Schlingensiefs Ausländer raus,
editada por Mathias Lilienthal
e Klaus Philipp, Frankfurt/
Main, Suhrkamp, 2000.
19
Cf. Peter Kümmel, “Der
Mann der Moralkelle”, em Die
Zeit, n°13, 21 de março de
2002.
20
Cf. Theater heute, Jahrbuch,
2002, p. 146-147.
torais, trata-se de tornar-se membro de um
partido próprio e votar por si mesmo nas
eleições federais; Ausländer raus-liebt Österreich (Os estrangeiros pra fora – Amém
Áustria) transfere o início do reality show
alemão Big Brother para uma ação perto
da Ópera de Viena durante os Festwochen
de Viena no verão de 200018: reuniu-se em
um container, sob a vigilância das câmeras, um grupo de imigrantes que pedia asilo, e o público votava as eliminações consecutivas dos participantes segundo seus
critérios de simpatia ou de antipatia; o jogo
de perguntas e respostas Quiz 3000 – Du
bist die Katastrophe (Quiz 3000 – Você é a
catástrofe) subverte o modelo de programa de perguntas e respostas levando ao
desastre moral e a vergonha inelutável o
candidato, quando este tem que responder perguntas como: “Para quê servia o pêlo
das vítimas nos campos de concentração?”
ou “Ordene de norte a sul os seguintes
campos de concentração: Auschwitz, Bergen-Belsen, Dachau, Ravensbrück”19.
A brincadeira de Schlingensief com fogo,
surgido da mistura explosiva de realidade
cotidiana e de provocar a recusa servindo
para a exibição, falha quando se trata de
fazer falar o terror que se teatraliza (Atta
Atta de janeiro de 2003); e torna-se problemático quando a realidade irreversível alcança a encenação de sua cópia. As reações
dos meios sobre o suicídio do parlamentar
Möllemann recordam uma ação de Schlingensief no teatro de Dortmund durante o
festival THEATER DER WELT: o artista
gritando tötet... (matem...), pisava na foto
deste deputado atacado por declarações ambíguas, consideradas anti-semitas20. Já na
época o artista proclamou a proteção do contexto artístico para defender sua ação.
A significação desse evento supera o caso
isolado de Schlingensief já que, inclusive por
ser o artista que mais contribuiu na Alemanha no domínio das artes para uma supressão virtual dos limites entre vida e arte, entre espetáculo da vida e vida de teatro para
exibir sua contaminação mútua; se um Aktionskünstler recorre – apenas o impacto da
violência de suas ações corre o risco de ter
repercussões no real – à reinstalação da separação entre vida e arte, então uma suspeiCamarim  39
ta se insinua. A eficiência simbólica da
transgressão de dois espaços dependeria em
última instância da existência de um marco
reconhecido no âmbito das artes? E a condição de um marco semelhante não é, justamente, a separação pressuposta, em uma sociedade, de dois espaços distintos: o espaço
potencial da arte e do teatro, e o campo da
realidade social?21
efetiva se pressupõe tacitamente uma separação do âmbito da vida, da realidade da
esfera das artes e do teatro, já que busca
uma recepção de seu espetáculo como natureza, como vida. Esta separação está baseada no pacto simbólico das artes, que confere ao seu espaço o estatuto potencial (Winnicott), por exemplo, pelo “como se” do teatro. Este pacto está, portanto, reconhecido
inclusive pelo espetáculo da vida cotidiana e também pelas arDepois da análise
tes que respondem a
das produções recenesta teatralização.
tes da Alemanha que
Os ataques terrorespondem à sociedaristas do 11 de setemde do espetáculo por
bro de 2001 assim
uma encenação do
como a sangrenta toreal misturando o vemada de reféns em
rossímil teatral com o
um teatro moscovita
teatral do real, surgiem 2002 não mudaram alguns problemas
ram a relação entre
intrínsecos ao contexteatralidade e real,
to no qual intervêm –
espetacular e teatro,
o contexto do espetaapenas atualizaram
cular integrado –, posseus fundamentos: o
to que ao transformar
espetáculo de uma
imediatamente toda a
violência terrorista
crítica do espetáculo Cidade roubada, René Pollesch, Rollende Roadschau em São Paulo
real não significa,
em espetáculo novo, a
como sugeriu Jean
sociedade do espetacular integrado parece,
Baudrillard, o “último que temos”. Ao cona primeira vista, inatacável ao menos por outrário, exibe o ódio de toda a representatro espetáculo.
ção24, já que este ato irreversível é um gesto que afirma a vontade de suprimir todo
Pois bem, os ataques terroristas ao WTC 21 A participação de
espaço potencial por mortos.
assim como a sangrenta tomada de reféns Schlingensief na Bienal de
Parece necessária, então, uma reflexão
em um teatro de Moscou em 2002 foram Veneza este ano com a ação
sobre a violência posta em jogo no teatro,
decifrados por alguns como ataques com Church of Fear parece firmar
sobre a crueldade tanto para performers
êxito contra o espetáculo. A utilização de uma volta ao marco simbólico
como para espectadores. Desde Moscou,
estruturas teatrais para mediatização de sua protetor das artes; o anúncio
nenhum espectador pensará que a apariação terrorista conduzia, por exemplo, Jean como futuro diretor do novo
ção de um grupo de terroristas em um teaBaudrillard à conclusão de que – frente à Parsifal em Bayreuth sublinha
tro é uma ação simulada ou parte de uma
desconstrução do WTC – nos encontráva- essa hipótese.
22
encenação, como faziam as vítimas de Mosmos diante de “nosso teatro da crueldade,
Cf. Jean Baudillard, “L’esprit
22
cou. O jogo com finalidade no teatro e na
de todos nós, o último que temos” . Inclu- du terrorisme”, Le Monde. 3
sive o compositor Kart-Heinz Stockhausen de novembro de 2001, p. 10representação tem que levar em conta isso
qualificava este atentado como “a maior 11.
desde agora...
23
23
obra prima que jamais tinha existido” .
A violência posta no jogo nas artes e no
Citado segundo o jornal tazAqui se impõe uma reflexão sobre, por Hamburg de 19 de setembro de teatro não é efetiva, mas é suscetível a uma
um lado, a relação entre domínio das artes 2001.
leitura simbólica já que, ao limitar-se ao
24
com o do real e, por outro, a relação entre
efeito de choque ou de trauma, resiste à
Dinamitar os Budas afegãos
espetáculo e teatro. A espetacularização da parece uma das primeiras
análise. O teatro e a performance de hoje
vida utiliza estruturas teatrais, mas apenas é etapas do exercício deste ódio.
levaram muito longe esta violência, atacan-
Teatro ou
espetáculo?
1º semestre de 2007
17
cena contemporânea
25
Cf. As publicações da escola
da NYU e também as do
projeto DFG na Alemanha por
Érika Fischer Lichte.
26
Na área francesa os trabalhos
de Josette Feral insistiram
nesses fatos. . Cf. Josette Feral,
La théatralité. Recherche sur la
spécifité du langage théâtral”.
Poétique 5, setembro 1988, p.
347-361.
27
Cf. Roland Barthes, La
chambre claire. Note sur la
photographie, Paris, Seuil,
1980; em Roland Barthes,
L’obvie et l’obtus. Essais
critiques III, Paris, Seuil, 1982,
os seguintes ensaios: “Le
troisième sens” [1970] p. 4361, “Cy Twombly ou Non
multa sed multum” [1979], p.
145-162; “Le grain de la voix”
[1972] p. 236-245. A partir de
Barthes cf. J. Feral 1988 e Jean
Pierre Sarrazac, “L’invention de
la théâtralité”. Bernard Dort e
Roland Barthes. Esprit 1,
janeiro1997 p. 60-73.
18
do também a integridade do corpo, por
exemplo na body art. Mas essa violência do
performer contra si mesmo, essa por exemplo de Chris Burden ou de Marina Abramovic, só é interessante pela semiotização
que permite no contexto da arte. De qualquer outra forma, é apenas uma curiosidade de psicopatologia singular.
No espetáculo ou no teatro, esta violência deve poder ser retirada, porque espetáculo e teatro se definem pela qualidade de
repetição: os vídeos, as fotos das performances de Chris Burdon, e a repetição teatral
de suas ações em Autobiography, de Abramovic, assim o atestam. Desta forma, o teatro exclui a irredutibilidade da morte; o espetáculo pode repetir-la graças à gravação
dos meios, mas o torna irreal por sua qualidade de imagem.
Existe, assim, uma diferença entre espetáculo e teatro ou performance. O espetáculo se dá como “natureza”, como “realidade” e, ao mesmo tempo, se torna irreal enquanto imagem suscetível de repetir-se ao infinito. O espetáculo não é consciente de sua teatralidade; o teatro, por
outro lado, procede dela conscientemente por seu pacto simbólico constitutivo do
“como se”. Instaura um diálogo com o ausente da imagem, uma dialética entre presença e ausência.
As cenas de rua, relatadas por Artaud,
Stein e Brecht, tornam-se teatro com a presença do espectador: seu olhar as transforma em teatro pela existência, por um lado,
de um teatro pré-existente e, por outro lado,
de um teatro imaginário que as semiotiza;
enquanto olhar (re-)presentado por um narrador, Brecht a exibe. A teatralidade do cotidiano só é identificada como tal por um
olhar que a decodifica segundo um paradigma teatral como representação. Não falava Artaud de “ballet” para descrever uma
batida policial?
O beco sem saída de certas pesquisas
sobre a teatralidade, para as quais a distinção entre teatro e espetáculo é obsoleta, se
faz patente aqui. Pois bem, nos estudos teatrais da última década, sobretudo na Alemanha e Estados Unidos, tal distinção caiu
em desuso25. Constata-se o caráter de teatralização, de encenação, de performance
de uma multidão de fenômenos estéticos,
sociais ou políticos segundo o proposto pela
sociologia dramatúrgica, mas deixa de interrogar as premissas de tais teatralizações:
os pressupostos de uma interação de sujeitos transcendentais, de uma realidade imediata, não mediatizada, e o horizonte de
um marco estético universal26.
Ora, a teatralidade do campo estético
se distingue da do cotidiano em vários pontos: ao invés do caráter afirmativo do espetáculo que confirma o espectador no seu
imaginário, ela permite a este uma crítica
da sociedade do espetáculo, já que o espectador não só pode fazer nela a experiência de seu desejo de olhar, como também –
graças à dialética cênica entre presença e
ausência – pode experimentar o pacto performativo e o horizonte dos discursos. Desde os anos 70, não só a prática do teatro de
performance senão também as teorias francesas, e em primeiro lugar a de Roland Barthes com seus conceitos de punctum da fotografia ou do grão de voz27, adiantaram
uma concepção diferente da teatralidade:
frente a uma teatralidade convencional,
que reflete passivamente o olhar do meio,
nasce uma teatralidade analítica e crítica.
Opera trans-códigos sensoriais graças a significantes teatrais que molestam os sentidos e tornam incertas as atribuições de familiar – heimlich – e de sinistro – unheimlich
–. Este conceito de uma teatralidade crítica permite não só desenredar o amálgama
entre teatro e espetáculo, como também
entender o impacto político e crítico do
teatro contemporâneo.
Hoje a teatralidade analítica no teatro
opera pelo questionamento de todas as categorias teatrais: o espaço, o tempo, a figura humana e a ação. O teatro alemão recente ampliou este questionamento ao marco do teatro, à separação entre vida e atuação. Inclusive o papel do público está deformado: desdobrado, o espectador se converte em ator no mesmo instante. A teatralização da vida cotidiana está posta à prova. As ações e performances de Christoph
Schlingensief, Bernd Ernst, Helgard Haug,
Stefan Kaegi, Daniel Wetzel, apresentadas
aqui, testemunham isto. Mas também poderia-se citar as conferências virtuais de
Camarim  39
Hans Peter Litscher, que põe em cena a intersecção entre teatro e realidade histórica. Todos perguntam pela interferência da
fronteira entre espaço estético e real. Por
isso, invalidam no que concerne ao espaço,
ao tempo, à figura humana e à ação no teatro, a certeza de um modelo pré-existente
ou a identificação do artifício. Mas, simultaneamente, ao confrontarmos este modo
com a realidade do espetacular integrado,
desvelam o pressuposto desta sociedade do
espetáculo: a existência de um espaço intermediário das artes que justamente a oferece seus artifícios de verossimilização, seus
instrumentos de transformação de suas imagens em natureza. A sociedade do espetáculo falha pela representação, mas também
é de seu direito à representação em um espaço reservado que pode nascer sua crítica. Por outro lado, a proibição da representação, a supressão deste espaço separado só
leva ao terror.
Uma cena de rua em uma
sociedade globalizada
Para terminar, de novo uma cena de rua,
desta vez contemporânea. Ao visitar Buenos Aires pela primeira vez no final de fevereiro deste ano, comecei minha visita pela
cidade num sábado de manhã na Plaza de
Mayo para dirigir-me ao Café Tortoni, alto
lugar do imaginário literário de um visitante europeu. Tinha a cabeça cheia de imagens de reportagens de TV com as que minha memória enchia o vazio matinal do
imenso espaço ante meus olhos. De repente, a trilha sonora imaginária que acompanhava essas imagens de mães desesperadas
reclamando com dignidade que se encontre a verdade foi substituída por sons concretos, batidas determinadas, repetidas em
um ritmo acelerado. Seguindo esse ruído
cada vez mais insistente, me encontrei finalmente na Avenida Roque Sáenz Pena e
parei à altura da Florida em busca da fonte
deste alvoroço espantoso. Diante da imensa porta metálica de um banco, um grupo
de pessoas, homens e mulheres de todas as
idades dignamente vestidos, se revelavam
para bater sem parar com barras de ferro e
outros objetos metálicos nesta porta fechada detrás da qual se havia perdido todas
1º semestre de 2007
suas economias. Em um instante, os fatos
relatados pelos jornais na Europa se concretizavam em imagens: em uma cena cuja
coreografia, precisão e paciência, impressionavam tanto como o contraste entre o parecer discreto dos atores e a violência que
transmitia o tambor, espantoso resultado do
choque metálico de seus golpes.
Casualmente me converti em espectadora de uma cena de rua, ao mesmo tempo
theates fascinada e voyeur consciente da culpabilidade de seu olhar; ao mesmo tempo
vitima potencial – se vivesse na Argentina,
poderia encontrar-me entre essas pessoas –
e perseguidor potencial – vinha de um país
rico. Ainda que todas minhas emoções concordassem com as que Artaud atribuiu a
sua cena de rua, tinha reagido a uma teatralidade de ordem distinta. Esse espetáculo não era o da sociedade que o organiza
senão a resposta inventiva ao seu poder,
posto que sua violência era uma violência
mediatizada: os que receberam o golpe o
devolvem simbolicamente como golpe de
fato, golpe de teatro.
O que admirava a pouco como “criatividade popular” nos países da América Latina e que estranhava como ausência nos
protestos de meu país, se tornou repentinamente transparente. É a capacidade de
transformar uma violência em linguagem,
de semiotizá-la pela descontextualização e
pela deslocalização do gesto. Aqui se encontra, em um dispositivo espaço-temporal
muito precioso, o gesto dos tambores de
Harlem com o gesto do que bate numa porta injustamente fechada. A cena que resulta é muito comparável a uma cena de
teatro já que, como o teatro, fala à sociedade do espetáculo a partir de outro lugar.
No entanto, esse lugar não é o das artes,
mas também não é o da realidade pura. Porque a transformação do gesto violento em
gesto de percussão significante se faz em
um espaço potencial onde o imaginário se
mede com as exigências do simbólico. É um
espaço potencial ainda livre, não atribuído. A experiência argentina ensina justamente a necessidade de tais espaços potenciais intermediários. Ensina a defender sua
existência ao mesmo tempo em que a das
artes, que a do teatro. n
19
Sílvia Fernandes
(ECA-USP)
Edouard Fraipont
cena contemporânea
T E AT R O - C I D A D E
BR3, Teatro da Vertigem
Esse texto foi publicado em 2003 na Revista d’Art, da Divisão de
Pesquisas do Centro Cultural São Paulo, infelizmente extinta pela
atual administração municipal. Faz parte de uma pesquisa mais
ampla que desenvolvo sobre a ocupação de espaços públicos pelo
teatro, cada vez mais intensa em São Paulo e, não por acaso, de
responsabilidade de grupos que se organizam em movimentos,
como o Redemoinho, para enfrentar as precárias condições de
produção e socialização de seu trabalho.
Já se passaram quatro anos desde a publicação de “Teatrocidade” e gostaria de indicar apenas, entre os coletivos que
analiso, o ciclo dos Sertões que o Oficina encerra neste ano de
2007, e que trata exatamente da luta por um território público,
além de incorporar novos agentes teatrais, como os adolescentes
do Núcleo Bixigão. A luta de Zé Celso, em certo sentido, é
paradigmática desse movimento de invasão da cidade pelo teatro
de grupo, seja pelo contato direto com núcleos de cidadania, como
o Projeto Oficina Boracéia realizado pela Companhia São Jorge de
Variedades, em convívio com usuários de albergues municipais, que
resultou na montagem de As Bastianas (2002-2004), seja pela
experiência com a cultura de rua do Núcleo Bartolomeu de
Depoimentos, com intervenções urbanas de fronteira como
Urgência nas ruas ou as Vigílias culturais organizadas em regiões
centrais da cidade, como o Minhocão e a Praça do Patriarca, em
memória dos moradores de rua assassinados na vizinhança.
Também é sintomática a ocupação teatral da Praça Roosevelt
pelos Satyros, seguidos pelos Parlapatões, que abrem um circuito
independente de criação de teatro de grupo, atualmente
apresentado na mostra E se fez a Praça Roosevelt em 7 dias.
Quanto ao Teatro da Vertigem, estreou no ano passado, em
barcos no Tietê, seu trabalho de maior risco, BR3, ancorado no
desejo de que o espectador vivenciasse, no rio morto, a metáfora
concreta da destruição do país. Resultado de uma investigação
de mais de dois anos por três regiões – Brasilândia, na periferia
de São Paulo, Brasília e Brasiléia, na fronteira do Acre com a
Bolívia, essa exaustiva prospecção de identidades teve suas
apresentações abortadas pelo descaso com o teatro de
pesquisa no Brasil.
20
Nos dias que correm, viver em São Paulo, como em
qualquer outra grande cidade brasileira, é risco de vida.
Não apenas no sentido evidente da vizinhança com o crime e a violenta exclusão social, mas também no metafórico, que Sartre sugeriu com tamanha maestria. A morte na
alma é o resultado mais danoso da anestesia sensível e social que o cidadão paulistano experimenta, gota a gota,
pelo simples fato de viver num espaço público que recusa
sua destinação precípua, sonegando a seu habitante justamente a coisa pública. Os esforços ingentes da administração local para a resolução de um problema geral do país
ainda não conseguiram evitar que a alusão brechtiana da
selva da cidade seja cada vez mais adequada ao estado de
espírito e à inserção física do cidadão nesse caos urbano de
princípio de milênio.
Não me lembro que artista, em viagem recente a São
Paulo, referiu-se à semelhança do sky-line paulistano com
as paisagens catastróficas de Blade Runner, projeção cinematográfica de uma civilização de andróides do final dos
tempos. A comparação com São Paulo não é de todo descabida se pensarmos na progressiva disjunção que, como
no imaginário apocalíptico do filme, parece cavar diferenciações no espaço urbano paulistano, criando ilhas de convívio social restrito nos cada vez mais comuns condomínios
fechados, autônomos nas grades e nas guaritas, com áreas
Camarim  39
Divulgação
verdes, esporte e lazer vendidos a peso de ouro em folhetos
promocionais que alardeiam a intenção explícita dessas
micro-cidades de separar-se da cidade. Os condomínios,
da mesma forma que os shopping-centers, os hotéis transcontinentais, os bancos e certos tipos de centros culturais,
não querem fazer parte da cidade mas, ao contrário, pretendem ser seu equivalente e substituto.
Descrevendo o hotel Bonaventure de Los Angeles, Fredric Jameson liga esses procedimentos de privatização à cidade pós-moderna, destacando que, ao contrário das obrasprimas e monumentos do modernismo canônico, que introduziam uma linguagem utópica no tecido urbano, destacando-se intencionalmente do entorno, tanto simbólica quanto
arquitetonicamente – o MASP de São Paulo é um bom exemplo -, os ostensivos edifícios contemporâneos representam
uma nova categoria de fechamento, na medida em que aspiram a ser espaço total, mundo completo, uma espécie de
cidade em miniatura regida por padrões próprios e segregativos. Jameson observa, com argúcia, que a arquitetura dessas cidades autônomas tem nos revestimentos de vidro sua
contrafação: ao mesmo tempo que espelham, repelem a cidade do lado de fora. Nesse sentido, chama a atenção, na
descrição do ensaísta, a busca de similitude entre os lugares
internos dos edifícios e os espaços de fora, entre as atividades públicas e as atividades supostamente privadas, realizadas na segurança das cidadelas fechadas, mas não destinadas à intimidade. Os elevadores envidraçados, por exemplo,
funcionariam como módulos mínimos do que Guy Débord
chamou de “sociedade do espetáculo”, na medida em que
seriam projetados exatamente para permitir e prodigalizar
visibilidade. Essas “esculturas cinéticas gigantes” seriam uma
entre muitas maneiras de construir modelos narrativos que
o visitante é solicitado a preencher, como acontece com as
escadas rolantes, as praças de alimentação, os corredores/
ruas, os declives, os marcos de localização interna, todos compondo narrativas virtuais que pretendem substituir os equivalentes urbanos. Segundo Jameson, esse percurso sinaliza
uma intensificação da auto-referência da cultura pós-moderna, que sempre tende a se voltar sobre si mesma, desig-
nando sua produção cultural como seu conteúdo. Nesses
espaços fechados, seguros e caros, a cidade é transformada
em imagem anódina e inofensiva ou, como prefere o autor,
no “espetáculo contemplativo da cidade”.1
Não por acaso, o teatro tem encontrado cada vez mais
espaço em edifícios que, se não chegam a constituir microcidades fortificadas, sem dúvida se oferecem em espetáculo,
não apenas simbolicamente mas também fisicamente, já que
salas luxuosas e ostentatórias têm se instalado com certa
assiduidade em redutos urbanos supostamente seguros. Fugindo da criminalidade e da dolorosa visão dos excluídos
sociais, o espectador das classes média e alta procura abrigo
nesses territórios resguardados, onde o policial, o manobrista, o estacionamento, o caixa eletrônico, o bar, o conforto e
o ingresso alto garantem uma discriminação que distritos
especificamente teatrais de São Paulo, como o bairro do Bexiga, nunca puderam nem quiseram sustentar. Trata-se do
mais recente mecanismo de elitização de uma arte que nunca foi exatamente popular nesse país. Acentuando esse processo, o Teatro Alfa, o Credicard Hall, a Sala São Luís e o
Teatro Renaissance vêm se agregar a outras casas de espetáculo que sempre se distinguiram por ingressos caros e público bem pagante, como o Teatro Abril, o Teatro Jardel Filho,
o Teatro Procópio Ferreira ou o Teatro Hilton.
No outro polo de ocupação teatral da cidade aparece o
Teatro Oficina, não por acaso em recidiva oposição ao Grupo Sílvio Santos, que não desiste de construir nada menos
que um Shopping Center para engolir a rua teatral idealizada por Lina Bo Bardi para ligar a Jaceguai ao vale do Anhangabaú. Como nota Zé Celso, o projeto de construção do Bela
Vista Festival Center “desbexiga o Bexiga” e impede a realização do “estádio teatro pau-brasil imaginado pelo morador do
Bexiga, o poeta Oswald de Andrade”. A polêmica construção do centro de consumo liga-se a um projeto mais amplo
de reforma da região da Bela Vista encampado por grupos
como o CIE, o Hudson e o próprio Sílvio Santos com vistas à
criação do que seria uma “Broadway paulista”. A proposta
provinciana de transplante do modelo teatral novaiorquino
para o bairro paulistano diz muito do discutível conceito de
revitalização subjacente ao projeto. A esse respeito, a indignação de Zé Celso ainda é o melhor argumento de acusação
contra um modelo que se aproxima perigosamente daquele
referido por Jameson, descaracterizando uma história teatral paulista que se engasta nas ruas estreitas do bairro, e
tem no Teatro Brasileiro de Comédia da Major Diogo e no
Teatro Oficina da Jaceguai seus marcos mais efetivos de localização. Como observa Zé Celso, as três empresas financiadoras do projeto, “uma de postos de gasolina, outra multi1
Fredric Jameson, “O pós-modernismo e a sociedade de consumo” in
Ann Kaplan (org.), O mal-estar no pós-modernismo, Rio de Janeiro,
Fachada do Espaço dos Satyros
1º semestre de 2007
Zahar, 1993, p. 25-44.
21
cena contemporânea
nacional de importação de musicais empacotados da Broadway, e outra de TV comercial do vice-rei do Brasil, Sílvio
Santos, que pretendem atingir uma vastíssima área deste
território, não podem transformá-lo em lugar nenhum, numa
Broadway. Não foi esse tipo de teatro careta que floriu aqui.
Temos obrigação ética, ecológica, de respeito à soberania
em vastas áreas de vazios verdes, na tradição mais generosa
da arquitetura moderna brasileira e principalmente da renascentista Lina Bardi, que queria construir com o poder de
Sílvio Santos um lugar Bexiguense que realimentasse grandes e fartos espaços públicos. O Bexiga deu para o Brasil e
para o mundo, naturalmente, uma Ágora que merece agora
ser revitalizada como é o vão do MASP, local de encontro
dos que querem descobrir saídas, dos que gritam, discursam, projetam e cantam na rua, nos teatros-virando-ruas,
não se engavetando no espetáculo único do ‘shopping way of
life’”2
A defesa da “ágora dos escravos libertos” ou, dito de outro modo por Zé Celso, da cidade pública que seja um lugar
de encontro e mistura de classes, e onde se promova uma
revitalização cultural de autoria coletiva, vinda da mobilização de movimentos populares como o dos sem-teto, é a utopia maior do projeto do Oficina e funciona como uma espécie de paradigma da união de artistas e cidadãos em organizações comunitárias, não governamentais, teatrais ou não,
buscando interferir na cidade e também no espaço que o
teatro ocupa nela. Um movimento amplo de mobilização teatral, como o “Arte contra a Barbárie”, é um dos exemplos
mais recentes dessa militância, e conseguiu reunir artistas e
estudantes numa atuação conjunta inédita nos últimos anos,
na defesa de uma política pública para o teatro.
É sintomático que as últimas e amplas reuniões do “Arte
contra a Barbárie” tenham acontecido exatamente no Teatro Oficina que, em geral, tem sido escolhido como local
de apresentação de espetáculos distantes anos-luz dos mais
recentes pacotes da Broadway. É o caso de Ueinzz, Viagem
a Babel, trabalho criado por Renato Cohen e Sérgio Penna
em 1996, sucedido por Dédalus (1999) e Gotham SP (2002),
todos realizados com pacientes psiquiátricos do HospitalDia “A Casa”, ligando-se à tendência emergente de um
teatro de minorias, como o dos homossexuais, dos presidiários e mesmo dos deficientes físicos. A verdade é que a
criação desses territórios de alteridade acaba multiplicando os sentidos da cena e age como mecanismo de resistência contra o preconceito e a discriminação, na medida em
que dá voz e visibilidade a grupos que não teriam condições de manifestar-se em outros espaços.
Ligando-se ao Oficina nessa democratização do lugar
do teatro, está o Galpão do Folias, espaço cultural ativo no
2
José Celso Martinez Correa, texto integral da entrevista concedida à
Folha de S. Paulo em 1o de junho de 2001, p. 3
22
centro da cidade, ocupado pelo grupo Folias d’Arte, o TUSP
da Maria Antonia, que tem feito jus à tradição libertária
de sua sede, o novo Teatro do Centro da Terra, nascido
com vocação de polo cultural, assemelhando-se nessa postura ao Teatro Ágora, com atuação intensa nos últimos
anos, da mesma forma que os núcleos do SESC de São
Paulo – o Anchieta, na região central, o Belenzinho, o Pinheiros, o Ipiranga, o Pompéia –, que conseguiram, com
sucesso, descentralizar apresentações teatrais, atividades
culturais e discussões de arte, aproximando-se, nesse aspecto, do Teatro Popular do SESI, do Centro Cultural São
Paulo e, como não poderia deixar de ser, do Teatro de Arena da Teodoro Baima que, desde o final da década de 50,
com inevitáveis e infelizmente longas interrupções, tem sido
um espaço de luta por um teatro público no país.
A referência a esse termo leva à questão intrincada de
decidir o que seria um teatro público. Bernard Dort analisou a expressão em seu livro mais famoso, que leva esse
título e liga esse conceito aos grandes momentos históricos
de manifestação de um teatro da cidade, quando a cena
era uma discussão coletiva da polis, como na Grécia do
século V e na Inglaterra elisabetana. De certa forma, esses
teatros são precursores de toda uma linhagem que pretende conjugar arte e popularidade, renovando o diálogo entre quem vê e quem faz, na ultrapassagem da matemática
óbvia da quantidade de espectadores.3 Seguindo as argumentações de Dort, pode-se concluir que promover um
teatro público não é simplesmente lotar platéias. Trata-se
de formar espectadores dotados de características comunitárias fortes, ampliando o círculo de conhecedores e defendendo não apenas um espaço público para o teatro, mas
também um público-cidadão. Como observa Jean-Pierre
Sarrazac, discípulo de Dort e autor desses argumentos, trata-se de refazer o contrato social entre a comunidade de
artistas e espectadores, recuperando a vocação transitiva e
interventora do ato teatral.4 De acordo com o ensaísta, os
criadores do teatro popular contemporâneo, ao menos do
francês, sentem-se depositários de uma missão pedagógica
para o teatro, preocupando-se, antes de tudo, em difundir
valores seguros para atrair a atenção do público. Isso explicaria o fosso que costuma separar o chamado “teatro de
arte” do teatro público. Sarrazac procura avaliar “em que
medida o argumento pedagógico – ou ‘pedagogista’ – não
serviu, em certo momento, como álibi para encenadores
mais preocupados em brilhar com Shakespeare do que em
se tornar humildes e rigorosos com Beckett”. Continuando
sua argumentação, o crítico considera que o teatro de arte
– e a referência a Beckett é esclarecedora – pode repre3
Bernard Dort, Théâtre Public, Paris, Seuil, 1976.
4
Jean Pierre Sarrazac, Critique du théâtre. De l’utopie au
désenchantement, Paris, Circé, 2000, p. 20.
Camarim  39
Divulgação
sentar uma estratégia de reconstituição de forças, que permita ao teatro público encarar de novo seu destino. 5
A miscigenação dos territórios do teatro público e do
teatro de arte, sugerida por Sarrazac, é evidente nos espetáculos do Teatro da Vertigem de Antônio Araújo, que
também costuma enveredar por zonas fronteiriças do teatro sagrado. Completando dez anos de um percurso de investigação cuja marca mais forte é a experimentação de
idéias em espaços públicos, o grupo inicia sua trajetória
Fátria Amada Brasil, Núcleo Bartolomeu de Depoimentos
com Paraíso Perdido, em 1992, passa pelo polêmico O Livro
de Jó, estreado em 1996 e, sempre em processo colaborativo, cria Apocalipse 1, 11, cujas primeiras apresentações, no
início do ano 2000, acontecem em um presídio desativado.
Concebendo seu trabalho como pesquisa coletiva de atores, dramaturgo e encenador em busca de resposta a questões urgentes do país, especialmente das grandes metrópoles brasileiras, o Teatro da Vertigem dramatiza a insegurança social e a criminalização sistemática das questões
públicas, filtrando-as no véu dos temas sagrados, geralmente
prospectados nos livros bíblicos. A despeito da qualidade
da pesquisa, talvez os espetáculos não tivessem tanto impacto se o grupo não se apropriasse de alguns marcos simbólicos da cidade, espaços públicos com destinação social
precípua e caráter político claro. A Igreja de Santa Ifigênia, o Hospital Humberto I e o Presídio do Hipódromo,
5
idem, ibidem, p. 22.
1º semestre de 2007
escolhidos para as apresentações de Paraíso Perdido, O Livro de Jó e Apocalipse 1, 11, são locais contaminados pelo
uso público e focos do imaginário urbano, já que a cidade
os reconhece como territórios da fé, da doença e da exclusão. É evidente que nesses lugares contaminados de memória coletiva, a cena tem condições maiores de funcionar
como núcleo emocional e político da comunidade.
A perigosa carga social desses espaços ficou evidente
desde as primeiras apresentações do Teatro da Vertigem.
São bastante conhecidos os resultados, no final de 1992,
do que seria a etapa inicial de ocupação desses marcos da
cidade, com a apresentação de Paraíso Perdido na Igreja de
Santa Ifigênia. Em manifestações públicas, católicos fundamentalistas acusaram os atores de profanar o espaço sagrado e, não satisfeitos, prosseguiram com ameaças e intimidações ao diretor e ao elenco, que variaram de cartas
anônimas a telefonemas ameaçadores e culminaram com o
aviso de que uma bomba explodiria durante o espetáculo.
Apesar de mobilizar policiais e bombeiros, e de aterrorizar
o grupo, o atentado acabou não se confirmando. Em resposta, a militância católica progressista organizou atos de
resistência, em que defendia o trabalho e endossava a autorização para as apresentações, vinda do cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Não por acaso,
a peça discutia a perda do paraíso a partir da descrença do
homem contemporâneo.
O Livro de Jó, de 1995, foi apresentado num hospital
desativado, o Humberto I, na região central de São Paulo,
e seu impacto público não foi menor. Mateus Nachtergale,
que interpretava o protagonista, iniciava o espetáculo com
um banho de sangue literal e figurado, assumindo diante
do espectador um risco físico que contaminava e indicava,
na violência ao próprio corpo, parte do suplício do Jó impaciente, que interrogava Deus sobre as causas de seu padecimento. O espectador que acompanhava o protagonista
no questionamento e no percurso pelos corredores do hospital intuía que a caminhada coletiva não era um simples
espetáculo. Ao viver de perto uma violência não representada media, pelo altíssimo grau de entrega dos atores, o
limite mínimo que separava o teatro do ato público. Os
espectadores que seguiam a personagem, que não podia
viver sem Deus, formavam uma espécie de coro de cidadãos unidos num ritual catártico, sem dúvida, mas também crítico, ao projetar a metáfora da aids e, simultaneamente, tematizar a perda da fé.
Apocalipse 1, 11 foi o movimento mais recente de ocupação de espaços públicos empreendido pelo grupo. A mobilização para o trabalho se fez a partir do testemunho de fatos
brutais, como a queima do índio pataxó, em Brasília, e o massacre dos cento e onze detentos no presídio do Carandiru, em
São Paulo. Associando essas atrocidades ao momento brasileiro de violenta exclusão social, os criadores chegaram à analo23
6
Richard Schechner, Performance Theory, Nova York, Routledge, 1988,
p. 161.
24
sentido, como a combinação entre alguns marcos históricos
da cidade e o trabalho de grupos ligados a minorias acaba
funcionando, mesmo à revelia de seus protagonistas, como
foco de resistência e de crítica ideológica. É o caso da emocionante cerimônia dos trinta guerreiros Xavantes da aldeia
de Pimentel Barbosa, apresentada no Parque da Independência em 1999. A dança em frente ao Museu do Ipiranga
foi um momento de iluminação na história de resistência
indígena ao genocídio, e talvez involuntariamente, teve o
Divulgação
cena contemporânea
gia com o Apocalipse de São João. Para ampliar o espectro
temático, abarcando a cidade, visitaram locais de referência
para ações e personagens, como delegacias de periferia, boates da boca-do-lixo, rodoviárias e hotéis baratos, fundamentando, em percursos reais, o testemunho do submundo urbano de São Paulo. Foi também nessa fase que o Teatro da Vertigem passou a realizar oficinas com os detentos do Carandiru,
empreendendo, ao mesmo tempo, desgastantes gestões para
conseguir uma ala desativada do presídio para as apresentações. Negativas sucessivas acabaram levando a peça a estrear
no presídio do Hipódromo, onde Antônio Araújo soube aproveitar as celas, os pátios, os corredores, as grades, os muros e a
entrada para organizar uma apavorante movimentação processional de quedas e ascensões, exacerbada pela interpretação tensa dos atores e pela sonoplastia de sirenes e tiroteios.
Cortes quase brechtianos, geralmente feitos por palhaços, afastavam o espectador, por alguns minutos, desse ataque aos sentidos, que lhe permitia experimentar fisicamente o tema tratado e o colocava numa zona fronteiriça, entre a cena e o
espaço real do presídio, entre o teatro e a cidade. O roteiro de
Fernando Bonassi repetia essa duplicidade, com a personificação de idéias ganhando o contraponto de um naturalismo
feroz, e alegorias como Talidomida do Brasil, a prostituta Babilônia e o Anjo Poderoso convivendo com as cenas impactantes de um negro espezinhado pelo preconceito racial.
Em grandes cidades como São Paulo, onde a decomposição do corpo urbano reflete, em grau apavorante, o esgarçamento do tecido social, espaços públicos como a igreja, o
hospital e o presídio ainda funcionam como marcos efetivos
de localização física e imaginária. São semelhantes às cenografias sociométricas a que se refere Richard Schechner ao
comentar o teatro grego, pois mapeiam a cultura e a estrutura social da cidade, além de preservarem sua memória.6
Refazendo o percurso do Teatro da Vertigem por São
Paulo, é possível perceber claramente um projeto teatral
de sociometria. Na economia simbólica de uma cidade violenta como São Paulo, descontínua, sem coerência estrutural nem marcos efetivos de localização, a trajetória do
grupo é quase uma inversão da geografia urbana, na medida em que ocupa espaços coletivos para reativá-los por meio
do trabalho de teatro.
Outros artistas e grupos fazem percursos semelhantes ao
do Teatro da Vertigem. Seguindo trilhas comuns, apropriam-se de espaços urbanos, usando o corpo da cidade como
material para intervenção. A intenção primeira desses trabalhos também é ativar certos marcos simbólicos, na sondagem dos mitos que eles possam conter e na esperança de
restaurar as muitas cidades invisíveis que se escondem na
poluída metrópole paulistana. É interessante observar, nesse
As Bastianas, Cia. São
Jorge de Variedades
caráter de resgate de uma tradição soterrada e esquecida,
que ganhou visibilidade pública, em suprema ironia, num
dos marcos maiores da suposta autonomia nacional.
Outras vezes a prospecção dos espaços urbanos não teve
esse impacto libertário mas, em contrapartida, ganhou sentido literal, como foi o caso da performance Viagem ao centro
da Terra, criada por Ricardo Karman e Otávio Donasci sob o
túnel do rio Pinheiros, em princípios de 1992. Da mesma
forma, outros eventos da última década usaram a linguagem
da cena para investigar relações possíveis com o espaço da
cidade, no questionamento dos territórios familiares e dos
circuitos fechados das casas de espetáculo, ganhando a rua,
como os Parlapatões, as praças, como o Galpão em Romeu e
Julieta (1992), os jardins de uma Casa Modernista, como o
grupo Orlando Furioso em Tempestade e Ímpeto (1992), as
Camarim  39
varandas de um palacete na rua Maranhão, como o Grupo
XIX de Teatro em Hysteria (2002), os galpões, como Romero
de Andrade Lima no Auto da Paixão (1993), o Vale do Anhangabaú, como a Missa dos Quilombos (1995), iluminada procissão católico-africana de que participaram Zezé Motta e
Milton Nascimento. Essa ocupação chegou ao marco zero
da cidade, o Pátio do Colégio, com o Santeiro do Mangue de
Oswald de Andrade e José Celso Martinez Correa, apresentado durante o carnaval de 1994, que o crítico Nélson de Sá
comenta com emoção. “É o renascimento. O que se prenunciava no teatro brasileiro, nos primeiros anos da década, explodiu anteontem no centro de São Paulo. Na terça-feira
gorda, de Carnaval, uma apresentação de teatro derrubou
finalmente a barreira do público de elite, branco e ‘highbrow’, e terminou com alguns milhares de pessoas dançando
e cantando, muitas delas no palco, numa grande massa de
atores e público. (...) Mistério Gozoso [conseguiu] mostrar que
a festa carnavalesca e a festa teatral têm uma fonte única
num Brasil de festas de massa. As quatro mil pessoas que
viram e participaram do musical foram guiadas por um Oficina que, através de Marcelo Drummond, como um ídolo
7
Nélson de Sá, “Zé Celso faz teatro de massa com ‘Mistério’.” Folha de
S. Paulo, 17 de fevereiro de 1994, p. E-2.
1º semestre de 2007
pop, e Paschoal da Conceição, como um corifeu clássico, é
voltado para as arquibancadas.”7
Por fim, não se pode esquecer que a cidade tem sido
assunto predileto da dramaturgia paulista recente, que tematiza um submundo de marginalizados, prostitutas, policiais corruptos e sub-empregados envolvidos em tragédias de
rua da metrópole. O que se percebe é que o escrever sucinto
e direto, típico de dramaturgos como Fernando Bonassi e
Mário Bortolotto, se impõe como modelo de um novo teatro
urbano, herdeiro violento dos romances de Rubem Fonseca
e dos flagrantes dramáticos de Plínio Marcos.
Semanticamente fortes, as produções de Bonassi, por exemplo, têm uma relação imediata, quase selvagem, com a violência que explode na São Paulo de hoje. Seus textos sofrem
de um “desconforto narrativo” semelhante ao que Flora Sussekind observa na literatura dos 90, que parece acompanhar
grande parte das dramatizações da insegurança social e da
criminalização sistemática das questões públicas. Na dramaturgia de Bonassi, ele é bastante visível na produção de uma
espécie de duplicidade no tratamento do tema, capaz de associar efeitos de real, ou de autenticidade, a recursos da mais
radical teatralidade. São exemplares desse processo os desdobramentos em Um céu de estrelas, em que o dramaturgo trabalha de forma aparentemente realista a história do desempregado que invade a casa da ex-noiva para cometer todo tipo de
violência, até acabar cercado pela polícia.
Indícios da mesma temática são encontrados, sob formas bastante diferentes, em alguns textos dos últimos anos.
Passando pelo embate de professores e alunos de periferia
em Vermuth, que Aimar Labaki situa na zona leste paulistana, pelas releituras da temática urbana feitas por Bosco
Brasil em Atos e omissões, que espelha assustadoramente a
invasão do quotidiano mais íntimo pela brutalidade, pela
repetição urgente e direta dos mesmos temas na dramaturgia de Pedro Vicente, que expõe o desregramento das drogas e dos desencontros em Banheiro ou em PromisQuidade,
quando os protagonistas misturam sexo a planos de ataque
terrorista a shopping-centers. Impulso de expor a violência
de modo casual que persiste em Disk Ofensa linha vermelha,
desta vez através de um serviço de agressões telefônicas.
Mas talvez seja Mário Bortolotto quem mais se aproxime,
em Medusa de Rayban, de um hiper-realismo no retrato da
classe média baixa das grandes cidades, assumindo influências de Charles Bukovski e Sam Shepard, associadas a automatismos de comportamento de assassinos de aluguel, bêbados e artistas frustrados, resgatados de um mundo que o dramaturgo conhece bem, e talvez seja o mais próximo do universo dramático de Plínio Marcos. Reforçando a prática comum no teatro de hoje de filtrar as vozes heterogêneas da
cidade numa espécie de roteiro urbano, cruel e poético ao
ligar a violenta exclusão social brasileira ao espaço público,
em princípio aberto ao cidadão. n
25
cena contemporânea
O teatro de ação
ou as ficções reais
Óscar Cornago (CSIC-Madrid)
Tradução: Leslie Loreto
Todo es distinto
de cómo tú
piensas, de
Carlos
Fernandez
26
Camarim  39
A arte contemporânea constrói-se numa contínua luta
contra si mesma, contra suas limitações e convenções predominantes; o teatro não é uma exceção, daí os atores que
não atuam e as obras que não querem representar nada
que não seja o que nesse momento e nesse lugar está acontecendo. Com um inevitável componente de artifício, de
aparência do que realmente não é, a arte trata de passar por
uma realidade que parece não possuir, realidade espontânea, imediata, sem preparação, pensando que assim se chega
a algo mais autêntico e talvez por isso mesmo, verdadeiro.
São muitas as vias empregadas para conseguir esse efeito
de realidade, entre elas talvez seja a ênfase no componente de ação, que está na base das artes cênicas, um dos
procedimentos mais utilizados. Por isso também a ação, e a
base sobre a qual esta se realiza: o corpo – ou sua tradução
como gênero artístico: a performance –, ocupou um lugar
central não somente no panorama cênico do século XX,
mas também no amplo horizonte artístico e cultural contemporâneo. É verdade que a ação não é algo novo deste
momento, mas é ao longo deste século que se vislumbra
como um elemento singular social e artisticamente. Tratando de chegar ao sentido final das coisas, Fausto, prevendo uma modernidade que aflorava, reflete sobre o sentido das coisas: “No princípio era a Palavra”. Mas este começo das coisas e a criação segundo o Evangelho de São
João não lhe satisfaz, algo lhe faz olhar em outra direção
para entender a realidade, sua própria realidade como homem: “No princípio era a Ação”1, afirma, axioma que muito depois retomará o grupo La Fura dels Baus no começo
de um de seus espetáculos.
Deste modo, do giro lingüístico, sobre o qual tanto já se
escreveu tratando de explicar a realidade como uma construção verbal – o mundo como linguagem –, segue-se o
giro performativo, pensar a realidade e a nós mesmos como
resultado de ações – o mundo como ação –; assim, Gilles
Deleuze, por exemplo, em sua Lógica do sentido, já nos
últimos anos da década de sessenta, baseia-se no fenômeno do acontecimento gerado por uma ação, para chegar assim ao sentido das coisas, um sentido que vive, como
já antecipou Nietzsche, num contínuo suceder(se), acontecer (cênico), uma eterna volta da realidade em forma
de acontecimento, ocasião e manifestação.
O teatro também quer se converter cada vez mais num
acontecimento, manifestação ou ocorrência, derivada do
encontro entre um ator e um espectador; esta é sua realidade última, e daí também decorre sua verdade mais específica. Este acontecimento (teatral) está construído sobre
ações de distintas ordens, sobretudo ações realizadas pelos atores ou atuantes, como diz Ana Vallés, de Matarile
Teatro, ainda que vise o espectador, que em certo modo
1
Johann Wolfgang von Goethe, Fausto, Madrid, Cátedra, 1998, p. 142
1º semestre de 2007
não deixa de ser mais um atuante. A primeira ação que
ocorre num acontecimento cênico é a que realiza o espectador quando entra nesse espaço, aí começa o espetáculo. A primeira personagem de uma obra é o próprio espectador; e fazer o público tornar-se consciente disso é
uma das conquistas de um teatro que tem preferido tirálo de sua condição de consumidor passivo ao qual a sociedade do espetáculo o reduziu.
Uma das obras mais comentadas da última edição do
Festival Cena Contemporânea, A Barraca.Cantina musical,
foi protagonizada pela companhia franco – checa Théâtre
Dromesko-Hnos. Forman, que há tempos vinha rodando
pelos palcos europeus. Trata-se da criação de um ambiente
no qual o público se vê imerso, um espaço de (con)vivência
entre atores e espectadores. Estes apresentam-se como uma
troupe familiar e mal-humorada, em cujo seio pode acontecer qualquer coisa; um mundo barroco e sensual, noturno
e proibido, habitado por personagens extravagantes, por magos e músicos, cozinheiros e animais fantásticos. Todos eles
nos falam de um estar à margem e ao mesmo tempo de um
instinto de gozo e simplicidade diante da vida. Frente à
ausência das convenções habituais, o espectador, que se
encontra no meio dessa barraca de madeira, misturandose aos atores, vê-se obrigado a manter-se bem acordado,
atento a tudo que vai acontecer, atento em procurar onde
está o evento, sem se dar conta de que talvez o maior acontecimento desse espetáculo é ele mesmo transformado em
convidado de um jantar que ocorre no meio da obra. É o
sonho do teatro moderno, romper a quarta parede, confundir o ator com o espectador, trocar seus papéis, uma velha
utopia que não deixou de funcionar como motor de renovação e busca de novas fórmulas cênicas.
O fato de que este recurso venha do passado não quer
dizer que tenha perdido a atualidade: a companhia Teatro do Ar, comandada pela chilena Lidia Rodríguez, há
tempos explora no teatro madrileno A Nave dos Loucos
as possibilidades que oferece um teatro dos sentidos e das
sensações. Se a obra do elenco francês fazia alusão a um
tipo de espaço muito determinado, carregado de conotações específicas, uma velha barraca de feira brilhando no
meio da noite, a companhia madrilena recria em sua última obra, apresentada dentro do Festival na Casa de América, outro tipo de espaço com conotações muito distintas, A cama. Novamente, o espectador é o centro de algo
que está acontecendo, mesmo antes dele perceber. Um ator
sai a procura de cada espectador, aproxima-se dele, rompe as barreiras físicas, cheira, toca, e finalmente pega-o
da mão para conduzi-lo até a entrada de um túnel mole
coberto com lençóis brancos, por onde deve engatinhar
até chegar a um amplo espaço em penumbra, onde é novamente recebido por outro ator, vestido com camisão ou
pijama, que acomoda o espectador em seu espaço, convi27
cena contemporânea
Indigos, Cia. de Amaranto
dando-o a deitar-se numa cama cuidadosamente disposta sobre o chão, de
onde presenciará a peça. Grande parte dela decorre às escuras ou com pouca
luz, e o público, que quase não consegue ver bem o que está acontecendo,
acaba entregando-se aos cheiros, sons e toques que chegam até ele. A obra
teatral transforma-se num espaço de sensações, acompanhadas de alguns relatos; assim se recriam os diversos momentos e idades que acontecem ao redor
de uma cama, o parto de um menino, o jogo e os risos deste, as emoções da
primeira experiência sexual, a solidão e a dor da doença ou da morte. As
reações dos espectadores, com os quais os atores trabalham muito de perto,
ocupam um lugar central neste acontecimento cênico, sempre diferente, porque sempre são outros os que ocupam essas camas.
Como vemos, já não se trata de contar ao público uma história, senão de
envolvê-lo num ambiente, fazendo-o participar de uma atmosfera e de emoções,
frente às quais não sabe como continuar mantendo a trivial distância (de segurança) que costuma protegê-lo no anonimato da escuridão. O fundamental já
não é o que dizem e fazem os atores, de acordo com um roteiro prévio perfeitamente articulado num texto dramático, senão o que ocorre ao longo desse encontro, a criação de uma atmosfera, de uma emoção, de um desconcerto que está
nascendo nesse mesmo instante. Este teatro sublinha essa componente de encontro e convivência, inerente a toda comunicação cênica, até convertê-lo num
acontecimento em si mesmo; o acontecimento, o que ocorre, já não está num
palco situado em frente à platéia, mas na brecha incerta que se abre entre ator e
espectador. A obra triunfa na medida em que consegue criar um sentimento de
coletividade, fazendo com que o público esqueça sua condição de comprador e
consumidor de espetáculos, para fazê-lo sentir-se parte desse algo; o feito cotidiano de assistir a uma obra teatral é transformado na ação central desse espetáculo.
O público torna-se mais consciente de sua condição de espectador, de alguém
que está percebendo com especial intensidade, sentindo algo que transborda os
canais convencionais construídos para estes casos.
Não longe deste ideal de mergulhar o espectador numa atmosfera (cênica),
ainda que com uma referência menos explícita, está o teatro de Carlos Marquerie. Quase ao mesmo tempo que se desenvolvia o Cena Contemporânea,
28
apresentava o criador madrileno, habitual em outras edições deste Festival, Que me sacie de beijos sua boca
(Que me abreve de besos tu boca) no
teatro El Canto de la Cabra. O público volta a ser o convidado especial ao
qual se abrem as portas de um espaço
encantador pela delicada intimidade
que em tudo se percebe. Apenas de
trinta espectadores situados ao redor
de um espaço retangular coberto com
areia. Alguns tubos de néon delimitam este retângulo, em cujo fundo estão dois recipientes de vidro com água,
cujo som, quase imperceptível, será
ouvido em algum momento; sobre a
parede do fundo há quatro enormes
fotografias que mostram em primeiro
plano dois órgãos genitais masculinos
e femininos, de um lado nítidos e do
outro as mesmas fotografias trabalhadas com cera. Sexo, água, terra e escuridão são as primeiras percepções
deste espaço. No centro os corpos das
três atrizes, Estela Llovet, Paz Rojo e
Getsemaní de San Marcos. Este projeto foi concebido a partir de uma oficina dentro do ciclo Invertebrados
(2005), em Casa de América2, sobre
O Cântico dos Cânticos, e estreou posteriormente já com o título e o elenco
atual em julho de 2005 em Citemor,
Festival de Montemor-o-Velho (Portugal). Trata-se, como explica Marquerie, de um projeto aberto que foi mudando, adaptando-se aos diferentes espaços, e em torno do qual materiais
diversos foram gerados. Os corpos transmitem uma sensação de proximidade,
de fisicalidade) e impureza, mas também de hermetismo, atravessados por
um profundo lirismo, como os textos
falados. A obra constitui uma reflexão
sobre o corpo, o amor e a morte num
tom intimista para o qual a escritura
de Marquerie foi evoluindo. Em sua
base pulsa um desejo de interrogar-se
e interrogar ao espectador a respeito
2
Cf. Óscar Cornago, “Teatro de la
experiencia. Invertebrados 05”, Cuadernos
Escénicos 6 (2005), pp. 98-108.
Camarim  39
de emoções, prazeres e medos que só
podem ser abordados pelo verbo poético, da poesia da palavra e da poesia
dos corpos, terríveis e belos por alguns
instantes, herméticos em sua enigmática presença, como os desenhos e as
caretas que são usadas na obra, também feitas por Marquerie:
Uma linha tremula divide o conhecido
do desconhecido.
Minha mão treme e desenha essa linha
princípio da dor e do gozo3
Podemos fazer ao trabalho de Marquerie um paralelo com a obra que
semanas depois Elena Córdoba apresentou em Cuarta Pared, com Patricia
Lamas – também intérprete de Rodrigo García, Montse Penela, que atuou
em 2004 do próprio Marquerie e antes
em Lucrecia e o escaravelho dissidente
(Lucrecia y el escarabajo disiente) – e
María José Pire, que colaborou com
freqüência com Córdoba. Ainda que
ambas peças avancem em direções distintas, a base de sua construção, o corpo nu e físico como matéria prima, corresponde a uma aproximação e uma
maneira de entender a criação cênica
que pode ser comparada. Em ambos
trabalhos empregam-se tempos longos
e quase estáticos, característicos de
Marquerie, e também um olhar plástico sobre o corpo, herdeiro em parte dos
enigmáticos desenhos deste. A cena
transforma-se num quadro vivo, uma
escultura feita de vida, esboços barrocos para um mundo de ternura e penumbra; ainda que esta contenção nos
fale de uma ação suspensa, Fiquemos
um pouco mais sentados (Quedémonos
un poco más sentados), como reza o título da obra de Córdoba. Por trás destes corpos está a ação que lhes dá vida,
ainda que seja a ação na qual se de3
Carlos Marquerie, Que me abreve de besos
tu boca, Madrid, Aflera Producciones S.L.,
2005, p. 12. Colección Pliegos de Teatro y
Danza, núm. 17. Nesta cuidadosa edição de
Antonio Fernández Lera estão inclusos
também os desenhos do autor.
1º semestre de 2007
têm, se deformam, se abrem, sempre com sumo cuidado, sem pressa. No caso de
Marquerie estes corpos chegavam à cena desde a escuridão da memória e do
desejo, nas proximidades da morte, do seu desaparecimento; enquanto Córdoba apresenta-os sobre um solo branco, tudo é mais sereno e luminoso, apesar do
aspecto sinistro de muitas das imagens destes corpos, nos quais se reconhecem
impressões, feridas, tempos. Estas escrituras desviadas do corpo tratam de tirar
deles as imagens vulgares que poderiam ter; recuperar o corpo como uma fonte
inesgotável de emoções e vida, devolvê-los aos espaços disformes nos quais
naufraga a razão e se dilui a lógica do senso comum.
Procurar a ação, demarcá-la, tirar-lhe toda a roupagem supérflua até deixá-la em sua expressão mais sóbria; recuperar o grau zero da ação, diríamos
parafraseando Barthes. Esta busca pode realizar-se por vias diferentes, dependendo de como e de onde nos aproximamos até esse núcleo cênico, unidade
mínima de significado específico da linguagem teatral, que distintamente de
outras linguagens plásticas ou visuais, implica uma postura em movimento,
em ação, talvez por isso também uma postura em vida. Se nos aproximamos a
partir do teatro tradicional do ator que diz um texto, podemos chegar até a
peça de Marquerie Que me sacie de beijos sua boca, ou a obra que Córdoba
vem desenvolvendo ao longo de uma década pode ser considerada como uma
tentativa para atingir o grau zero na escritura do corpo, mas de forma comparativa, ainda que com níveis poéticos muito diferentes, poderíamos aludir ao
teatro de Sara Molina, Rodrigo García, Oskar Gómez, Roger Bernat ou o tipo
de postura em cena que, seguindo o modelo da Volksbühne de Frank Castorf
em Berlim, tem realizado Álex Rigola. O tipo de comunicação próxima e
física que propôs o dramaturgo, ator e diretor português Paulo Castro, ao qual
se dedicou o Ciclo Perfil da VI edição de Cena Contemporânea, tem relação
também com esta aproximação ao público a partir do físico e imediato da
ação, desde sua verdade nua. Trata-se de extrair, demarcar e sublinhar dentre as diferentes linguagens que conformam a cena teatral, as que pertencem
ao aqui e agora da realização de algo em frente ao público, ainda que o revestimento e articulação dramática varie muito segundo cada caso.
No amplo leque de ações há algumas que talvez por serem fundamentais
podem passar mais desapercebidas: a ação do falar, converter a palavra numa
ação física. Carlos Fernández, cuja ascendência cênica vincula-se a alguns dos
nomes citados anteriormente, sobretudo com Marquerie, apresentou em Cena
Contemporânea Tudo é diferente de como você pensa (Todo es distinto de cómo tú
piensas), último prêmio de dramaturgia inovadora de Casa de América. Três
personagens que se encontram numa cena (de suas vidas); encontram-se entre
eles e se encontram com o público. O fundamental é esta situação de encontro,
que anteriormente não incluía ao espectador, somente aos atores, Emilio Tomé,
quem também tinha trabalhado com Marquerie e Elena Córdoba, Miguel Ángel Altet e Quique Castro, com Nilo Gallego como criador do espaço sonoro
(por ter se situado um pouco mais perto do palco pode ser considerado como
mais um atuante), e com o autor e diretor, ajudado nos trabalhos de iluminação
pelo próprio Marquerie. Como todo processo de criação teatral, implica um
encontro entre pessoas, dia a dia através do tempo que duram os ensaios; depois vem outro tipo de encontro, com o público, outro tipo de confrontação com
o outro, mais distante e estranho, que acaba por situar a obra frente a um espelho que lhe devolve outra imagem, porém, do exterior. Não fica claro quem são
as três personagens desta obra, dois jovens e um terceiro, Falstaff, mais um
quarto que no texto dramático se identifica como O Rumor; o que fazem aí, de
onde vêm ou aonde vão. Na peça fazem-se muitas coisas, ações, brigas, encon29
cena contemporânea
tros e desencontros, corridas e saltos,
mas sobretudo vão contar-se coisas,
coisas são feitas com as palavras, compartilhar reflexões, narrar episódios,
recuperar passados, construir ilusões,
costurar sonhos. Não há uma história
linear que conduza o desenvolvimento dramático; este fica substituído por
uma situação, que é sobretudo uma
situação de comunicação e diálogo que
vai evoluindo; é como um atmosfera
que vai adquirindo diversas colorações, fazendo-se progressivamente
mais escura, mais desolada, mas com
inesperados rompantes de brilho, não
isentos de humor. “Dai-me vida, disse-me uma vez Falstaff, dai-me vida,
disse-me uma vez Falstaff” é a frase
com a qual se abre a obra. Ao final as
palavras deste Falstaff, transformado
numa personagem marginal dentro de
sua maturidade, ao qual dá corpo o
ator Altet, procurando o contraste com
a juventude dos outros dois, e marcado pelo extremismo de suas reações,
fecha a obra a partir da solidão da última cena:
um fenomenal desprendimento de energia. A voz de El rumor conta-nos tudo o
que acontece em cena e não vemos, todas as possíveis passagens, que não estão
aí, cenas sonhadas ou imaginadas; não se trata de representá-las, nem de dramatizá-las, mas sim de fazê-las presentes pela palavra e pela emoção dos três
atores, presentes, dialogando, se dirigindo ao público, falando, dizendo palavras, com a consciência de que isso é o que estão fazendo, frente a um público
calado, mas igualmente presente, na outra escuridão.
Num tom diferente mas ainda dentro desta exibição de ações que aspira a
uma impressão de sinceridade, Rosa Casado montou em ARCO, no Ciclo Experiências-Performance um espetáculo precioso por seu efeito de simplicidade. Em
primeiro plano novamente a palavra, dita por ela mesma, através de um microfone, com um ritmo monótono, frio e cálido ao mesmo tempo, que ficará ressoando
na cabeça do espectador, talvez com vontade de mais tempo (a peça mal dura
Deixem-me pensar canalhas, deixemme pensar
Deixem-me refazer minhas visões
Deixem-me organizar minhas lembranças
[...]
Deixem-me reordenar meus ódios
Deixem-me ruminar minha violência4
Pela situação na qual se encontram
pensaríamos em três personagens
olhando para trás, para o passado de
suas vidas, desde o subúrbio da cidade que vivem, da escuridão da noite e
da cena; assim se confessam fracassos
passados e se constroem novos futuros, renovadas ilusões, assim se apresenta a organização dessa “festa para
recuperar a ilusão perdida”, em cuja
delirante descrição Emilio Tomei faz
4
Carlos Fernández, Todo es distinto de cómo
tú piensas, em II Premio Casa de América
Festival Escena Contemporánea de
Dramaturgia Innovadora, Madrid, Casa de
América, 2006, p. 71.
30
Indigos, Cia. de Amaranto
quarenta minutos), depois do final da obra. Em colaboração com o artista visual
Mike Brookes, Casado conta uma história, que na verdade são duas, dois fios
narrativos que caminham paralelamente, mas sem chegar a se cruzar: uma delas
é o relato da mesma viajando como turista pelo mundo, ao mesmo tempo em que
vai desenhando com um giz o mapa do mundo sobre o chão. Ela viaja a Mali e o
Sr. Boyé emigra de Mali a Espanha, dois trajetos muito distintos que vão sendo
marcados sobre o mapa desenhado no solo. Ao mesmo tempo, sobre uma pequena
mesa há uma espécie de ilha de chocolate, com suas montanhas, palmeiras e
habitantes. A artista vai arrancando árvores e pessoas; alguns são comidos, outros
colocados sobre o mapa. Tudo é singelo e esquisito ao mesmo tempo, próximo,
físico e cálido, talvez por essa impressão de estranha simplicidade. Não se dá
respostas, mas sim muitos dados e constatações gerais sobre o mundo e a vida,
enquanto se realiza a ação de narrar uma história ao mesmo tempo em que se
desenha sobre o piso; do modo como tudo isso se desenvolve nos faz pensar a
mesma história de uma maneira diferente, mas não é fácil dizer de que modo. O
tom explicativo, de uma clareza que beira o ingênuo, vai-se tingindo de uma
reflexão escura sobre todos esses dados, enquanto cresce um ruído de fundo, à
medida que a atriz vai arrancando minuciosamente cada uma das palmeiras e os
homenzinhos de chocolate. Ao final esse ruído ocupa todo o espaço sonoro, um
barulho intranqüilo, enigmático em sua simplicidade.
Camarim  39
Em Indignos, apresentado pela companhia catalã Amaranto, a busca de
uma comunicação emocional por meio das ações constitui também o centro
de um mundo cênico no qual cabem formatos e linguagens muito diferentes.
De fundo respira-se um ambiente circense, não isento de certa perversão,
que recorta na escuridão aquilo que se está realizando, expondo a solidão do
artista-ator confrontado ao público, a dificuldade do número que se está fazendo, o indigno que pode ser chegar a esta situação de auto-exibição. Através da performance persegue-se, como se explica no programa da peça, uma
confrontação direta com o espectador, problematizar seu passivo anonimato.
Este desejo de “compartilhar reflexões com o espectador no espaço e tempo
presente que o formato performance oferece”, unido ao conteúdo humilhante, obsceno ou atormentado de muitas das atuações, coloca o espectador numa
situação difícil. Uma vez mais ele é interpelado de forma direta; sua presen-
Quedémonos un povo más sentados, de Elena Córdoba
ça, seu estar-olhando faz-se explícito, como mais um ator desse circo que esconde a vida urbana, mas também o âmbito do privado: “Só faltava dizer
quem se desmascarava e quem continuava representando ao público”.
As ações, com uma explícita vontade exibicionista, são intercaladas com
agilidade entre projeções de pessoas que olham através de uma fenda telescópica; olhar e ser olhado, sujeitos e objetos em constante interação, atores e
espectadores. A cena converte-se num espaço heterogêneo em rápida transformação capaz de alojar essa variedade de linguagens que caracteriza a sociedade atual, colocando como manifesto o caráter direto e até violento de muitos
deles. As ações nos falam de corpos e atitudes indignas, do indigno como uma
maneira de estar no mundo, humilhado, envergonhado, exposto. Os atores apresentam-se diante do espectador para expôr-se, enfatizando a condição de voyeur
do público, preparado para ver tudo, até o mais vergonhoso, o mais monstruoso,
condição talvez também indigna, como se o público ficasse finalmente atingido
pelo reflexo do que se está fazendo em cena: Humilhar a mulher pela violência,
submetê-la sexualmente, expondo-a envergonhada diante do público, rir-se do
outro, do que é mais baixo, mais incapaz, menos astuto, sentir que não se é
ninguém, uma anã feia que nunca chegará a nada. Mas a indignidade também
se apresenta como um modo de resistência (cênico) em frente ao meio profissional do sucesso rápido, igualmente cênico. No espaço reduzido do El Canto de
1º semestre de 2007
la Cabra a obra reclamava uma proximidade que fazia tudo especialmente
intenso, especialmente humilhante,
acentuando o profundo ônus humano
dessas ações, desse estranho mundo
habitado por três pessoas, os criadores
do espetáculo, exibicionistas profissionais: Anjos Ciscar, David Franch e Lidia González Zoilo.
Outra via de aproximação a este
espaço indiferenciado da performance é a dança e as artes visuais. Na
sua tentativa de despir a ação, para
ganhar uma presença física maior, estas artes foram se aproximando ao teatro; por sua vez o próprio teatro, afastando-se de si mesmo, se aproximava
à dança e ao visual, como no caso de
Marquerie. No panorama teatral madrileno, profundamente conservador
artisticamente, talvez sejam alguns
destes percursos, deslocamentos e
traições os que deram maior frescor a
esta VI edição de Cena Contemporânea. Neste sentido poder-se-ia destacar o protagonismo crescente de La
Casa Encendida e o Aula de Teatro
de Alcalá de Henares por seu apoio
a este teatro de dança que em sua
clara identificação com a performance acabou convergindo a um espaço
cada vez mais teatral, pelo menos assim opinava uma das espectadoras da
obra de Juan Domínguez, The Application, quando por meio do convite
do mesmo diretor, convertido em personagem central de seu espetáculo,
expressava com desdém que ela tinha
vindo ver uma obra de dança, como
dizia o programa do festival, e o que
estava vendo era teatro! No entanto,
quando no espetáculo de Cuqui Jérez, The real fiction, numa conjuntura
mais irônica que a anterior, se procurava entre o público uma substituta
para uma das atrizes, que por conta
de um acidente viu-se obrigada a
deixar a obra, esta voltava determinada, apesar de seu frágil estado físico, para afirmar que ela não era uma
atriz, e sim uma performer! Encontros
e desencontros, convergências e di31
cena contemporânea
vergências que contribuíram com momentos enriquecedores à arte e a cultura contemporâneas.
Ainda que distintos, o trabalho de Domínguez apresenta
certa similaridade de tom com a obra de Cuqui Jérez. Em
ambos trata-se de uma reflexão explícita e com uma boa
dose de humor sobre o fato cênico, o ato da representação e
a situação do público frente a este e, portanto, também frente à realidade (da representação) sobre a qual se articula a
paisagem social e humana de uma cultura. A verdade e a
mentira da representação, daquilo que se está vendo, é colocada à prova, até chegar a questionar o papel do público.
Para este fim a ação revela-se como um instrumento privilegiado, o denominador comum, a menor peça na construção
do edifício cênico. Um dos caminhos mais transitados para
evidenciar estas ações mínimas é enfatizar o caráter processual do que se está vendo; a obra não se apresenta como
uma unidade com princípio e fim, mas como um percorrer
incerto que se realiza frente ao público, nesse mesmo momento, de modo que este chegue a sentir uma dose de insegurança, de não preparação de tudo o que aí acontece e,
portanto, talvez de maior realidade ou verdade, ainda que
não deixe de ser apenas mais uma ficção, ficções reais. Deste
modo o público torna-se mais consciente de sua própria situação em frente ao palco, de seu estar-sendo-espectador como
um processo também inseguro, aberto, real
The application apresenta-se como os materiais gerados
a partir da preparação de uma solicitação para procurar
subsídios para uma obra posterior de título tão pouco verossímil como shichimi togarashi. O espetáculo inevitavelmente constitui uma obra em si, mas o tom dele coloca
como condição prévia algo que está por vir e que o público
ainda não viu; tudo se faz em função dessa obra posterior, a
definitiva, a verdadeira, supostamente uma peça de dança, ainda que de realização incerta, porque não se sabe se
a solicitação será concedida. O espectador assiste aos preparativos, nem sequer aos ensaios, mas às idéias prévias,
ainda com uma notável desordem, que vão aparecendo
escritas sobre a tela do computador projetado sobre o fundo; ainda que num ato de generosidade o diretor termine
apresentando a cena inicial dessa suposta peça futura. Como
a mulher que se queixou, o público pode-se sentir decepcionado diante a ausência da obra (de dança) pela qual
pagou; em seu lugar é oferecido algo difícil de definir, a
intra-história de uma obra que não se conhece, dúvidas,
caminhos apontados, o currículo do diretor, interesses estéticos e possíveis vias de desenvolvimento, sobre as quais
não se deixa de consultar ao público. Este acredita em quase
tudo – é sua tarefa –, mas Domínguez dificulta as coisas ao
deixar que ele sinta tudo o que isto pode ter de engano, já
que ele mesmo, que durante toda a obra aparecia com uma
perna imobilizada, termina passando o cargo a outra atriz
que na peça final, a verdadeira, seria a diretora. O que
32
vemos é, inevitavelmente, a obra, e o fato cênico funciona,
também de forma inevitável, como um engano, uma ficção
com pretensões de realidade.
Casualmente, a representação uma semana mais tarde
no mesmo festival da obra de Cuqui Jérez, The real fiction,
ajuda-nos a esclarecer algumas chaves sobre o último sentido do projeto de Domínguez. A cor branca dominante
em ambos os palcos, uma certa assepsia como de sala de
ensaios e experimentação, e o protagonismo de dois intérpretes que já tinham passado por The application, María
Jerez e Amaia Urra, faz pensar num possível paralelismo
entre os dois projetos, ainda que os resultados sejam diferentes. O tom reflexivo e explícito de The application, sua
comunicação direta com o público, é substituído no caso
de Jerez por um encadeamento de ações, realizadas minuciosamente, cujo objetivo final parece ser sua gravação a
fim de mostrá-las depois dentro da própria obra. Ações como
escrever números nas folhas de um caderno, encher uma
sacola de plástico com um ventilador, deslizar um aviãozinho de brinquedo por uma corda, que não parecem ter
outro sentido a não ser estar sujeitas a segundos precisos
nos quais se têm de realizar as gravações, mas carentes em
si mesmas de algum sentido para além de sua inserção dentro de uma determinada sintaxe cênica. O público segue
com atenção a detalhada sucessão de ações, que no seu
vazio deixam ver mais claramente sua dimensão performativa, até que passe uma meia hora, segundo informará depois a diretora, para que uma falha técnica interrompa o
processo: a câmara digital não gravou corretamente e precisa-se começar de novo. O público mostra seu apoio (e
sua paciência) com um caloroso aplauso às esforçadas performers, que nervosas se vêem na obrigação de repetir tudo
desde o princípio. Mas este vai descobrindo cedo a verdade do assunto ao comprovar que tudo começa a falhar cada
vez mais, até chegar ao mesmo momento anterior, quando,
com prévia reunião com o técnico e nova petição de desculpas ao público, têm que começar novamente toda a seqüência desde o início.
A obra devia começar às 21:00, ainda que fosse dito
que haveria um certo atraso, e a interrupção se realiza sempre, segundo informação da própria diretora, às 21:30 – é o
momento fatídico onde se detém o processo –, como se o
tempo se detivesse num ponto para voltar de novo ao começo deste círculo vicioso. Ainda que na terceira ocasião
consiga-se ultrapassar este ponto da seqüência, tudo começa a degenerar cada vez mais e é necessário voltar ao
começo. A exata sucessão de ações termina adquirindo
um significado em si: uma série de ações gratuitas converte-se numa detalhada trama que marca a evolução necessária – e fatal – do espetáculo, mais hilariante quanto mais
carente de sentido. As repetições tornam-se insustentáveis pelos crescentes erros, mas trata-se de levar o espetáCamarim  39
culo adiante apesar de tudo, até que
a própria diretora termina contando o
que falta, quando se vê que é impossível seguir adiante, entre outras coisas
pelo avançado da hora e o fato de que
um suposto grupo de espectadores, que
já se tinha posto em pé, devia ir a outra obra do festival na qualidade de
programadores. Para o final multiplicam-se as intervenções de atores figurantes situados entre o público, que
termina desorientado a respeito da verdadeira identidade destes, até o ponto de pensar que exceto ele e seu
acompanhante, aqui todos devem ser
figurantes!
Entre um clima de caos crescente,
o público sabe em qual momento da
obra se encontra porque já tem memorizado a ordem da série, da trama.
A ordem termina atribuindo um significado a alguns elementos que em si
só não o tinham, como as palavras sem
sentido utilizadas no texto do programa: “Os intérpretes sericumean durante horas para que o culifi nunca se dicada, já que se dicadiera o espectador poderia botinar desde o mundo do
hálito ao mundo da bodenda”. A recorrência do mesmo elemento numa
determinada ordem termina dandolhe um sentido, uma função dentro
dessa sintaxe cênica que articula a gramática própria do espetáculo.
Como se pode ver, nada tem a ver
com a obra de Domínguez; no entanto, em ambos os casos o objetivo é tornar visível o fato cênico como algo que
quer um lugar, de maneira imediata e
de forma incerta. Para isso se recorre
à teatralização do processo, pôr em
cena os andaimes por onde o público
finalmente se supõe que verá; mesmo
que para chegar a este ponto percorram-se caminhos inversos. Domínguez
nos mostra a obra desde atrás (literalmente há uma cena que se representa
como se o público estivesse vendo o
fundo do palco); interessa-lhe que o
espectador não saiba quem é o próximo que vai vir, se trata de um amontoamento desconexo de idéias e ações;
1º semestre de 2007
Gerhard
Maass, Alte
Meanner +
Spuren der
Macht
I Apologize,
DACM (França)
La Barraca –
Cantina
Musical,
Théâtre
Dromesko
Parce que je
t‘aime, Cia.
Buissonnier
(Suíça)
The
Application,
Juan Rodriguez
(Espanha/
Alemanha)
Atlas (o antes
de llegar a
Barataria,
Mal Pelo
(Espanha)
procura-se a idéia de desconexão e casualidade. Jérez, por sua vez, começa
mostrando os resultados, as ações precisas e acabadas, perfeitamente medidas, de modo que o público sabe exatamente qual ação vem em cada lugar e conta com esta previsão. Em
ambos os casos se joga com a previsão
do espectador para fazer ver a realidade que esconde a ficção, os teares do
ato cênico, o jogo do engano, o real
da cena. Ambas fazes consistem numa
estratégia de teatralização para fazer
visível a obra enquanto processo (de
construção) e ação, o suposto performer convertido em personagem de uma
trama fictícia e o jogo da representação posto em pé, que não é outro que
o jogo da vida, como se faz notar em
The Application, onde cada um dos
atores realiza suas respectivas solicitações que necessita para levar a cabo
suas ilusões mais delirantes.
Cada vez que um espectador se
pergunta desconcertado frente a um
acontecimento artístico: o que é isto?,
é dança, teatro, pintura?, será verdade
o que me estão contando?, estão atuando ou é verídico?, quer dizer que essa
ação conseguiu transpassar as margens convencionais de cada gênero
artístico, estar além de sua condição
de espetáculo, sem deixar do ser, comunicar para além das linguagens
pré-fabricadas. Na busca desse além
se joga há tempo o que chamamos de
arte, talvez por isso se foi aproximando cada vez mais ao teatral, ao físico
da atuação, movido pela necessidade de atingir maior realidade, até
chegar a se converter nessa ação que
está no centro de toda representação.
O real é aquilo com o qual o teatro
mais sonhou, chegar a ser realidade
verdadeira, ficções reais, e o mais real
que possui a cena são as ações que
sustentam o fato cênico enquanto encontro; converter isso num acontecimento real, vivo, é a lei do teatro moderno, do que nos falam alguns dos
espetáculos que passaram pelo VI Festival Cena Contemporânea. n
33
cena contemporânea
O Festival Internacional de Teatro de
Expressão Ibérica (FITEI): um paradigma
dos festivais contemporâneos1
Não importa quais sejam os meios de transporte e quão
próximas ou distantes as procedências, todos os artistas que
participam de festivais internacionais de teatro se juntam
em uma cidade para mostrar seus espetáculos, suas concepções estéticas particulares e o contexto cultural que as
sustentam. As diacronias de múltiplas histórias, a do festival, a dos grupos participantes se imantam em uma sincronia que une o talento e a criatividade de distintas culturas
e estéticas. Os grupos convidados, ávidos por aprender algo
novo, se observam entre si, comparam seus modos de atuação, suas cenografias, tudo aquilo que rompe com qualquer convenção teatral. Da dinâmica interação desses dois
encontros, surgirão férteis e recíprocas influências que redundarão em produtivas intertextualidades e novas propostas estéticas. Entre os muitos festivais internacionais que
1
Esta é uma versão modificada de uma resenha que apareceu em
GESTOS 42 (Novembro 2006)
se celebram no mundo ibero-americanos, o FITEI se destaca como um dos mais antigos.
Como ocorre faz 29 anos, Porto em 2006 recebeu, uma
vez mais, artistas de teatro provinientes de Portugal, Espanha, América Latina e Africa para dar vida ao FITEI.
Em seu discurso de abertura Mário Moutinho, o novo
Presidente do FITEI, convidou a todos os assistentes a
“fazer do FITEI uma festa para todos”. Porto é uma cidade litorânea e seus habitantes gozam da frescura do
vento e do azul marinho. Como bons marinheiros sabem
driblar os choques das ondas e a fúria dos ventos, que
de vez em quando, golpeiam as costas atlânticas. Não é
de se estranhar, pois, que apesar de todos os obstáculos
burocráticos e ecônomicos que seus organizadores tiveram que driblar nos últimos anos, o FITEI continua em
Mário Rojas (Universidade Católica
– Washington, EUA)
Tradução: Marília Carbonari
Otelo, Folias d’Arte
34
Camarim  39
frente, vento em popa, com a mesma vitalidade e consigna: reunir o melhor do teatro ibérico, mas não qualquer teatro, senão um teatro sempre humanista, que tem
como meta a perfeição do homem, do homem como sonhador e (im)possíveis utopias, que talvez nunca consiga alcançar, mas que no caminho até elas, se faz melhor.
De 29 de maio ao 9 de junho de 2006, na 29ª edição do
FITEI, participaram 14 grupos, uns com imponentes coreografias e numerosos atores, como As mil e uma noites
do Comediants de Barcelona, outros mais modestos,
minimalista, grotowskianos, mas igualmente transbordantes de criatividade, como foi o caso de Peripécia
Teatro, de Macedo do Cavaleiros-Portugal, que em sua
paródia Ibérica a Louca História de uma Península, conseguiu uma ovação tão entusiasmada como a que recebeu
o espetáculo do Comediants.
Um olhar e leitura do mundo a partir do
palco
Se o homem por natureza não é perfeito, também não
pode ser o mundo criado por ele. Constantemente a imprensa jornalística e televisiva nos aflige com notícias que
nos comovem e escandalizam: fatos delitosos protagonizados por gente comum, por políticos nacionais ou por grandes empresas internacionais. Surpreende-nos a imoralidade e perversão, o roubo, o engano e a corrupção. Fere-nos
o atropelo e nos sentimos vítimas. O teatro é um dos gêneros que registra com maior clareza e veêmencia o que passa no mundo, faz-nos refletir com maior profundidade sobre o que acontece, desvenda muitas vezes com brutal intensidade nossas debilidades, mas sempre com o fim de nos
fazer melhor. Às vezes em um tom amargo, outras mediante
um humor negro ou um delicado lirismo. Como na maioria
dos espetáculos do FITEI XXIX, senão em todos, se fez
uma leitura crítica desta grande textualidade que é o mundo que habitamos. A mais direta e transparente, sem maiores adornos artísticos, foi a de Mar Alto, uma criação coletiva do Centro Cultural Mindelo, Cabo Verde. Nela, três
barqueiros navegam em alto mar empreendendo uma viagem por uma vida melhor. Ao esgotarem suas provisões,
empurrados pela fome, optam por comer um de seus companheiros para sobreviver. Este canibalismo é proposto pelo
grupo como um microcosmo ou uma metáfora dos sistemas
políticos e sociais dominantes de seu país, que por ganância, por dinheiro e poder, fagocitam seus concidadãos. Ainda que não houvesse consistência na verossimilhança do
espetáculo, o público aplaudiu sem reservas, porque no que
ele contava, com simplicidade mas com convicção, podia
reconhecer algo incomodamente familiar.
Na mesma linha de Mar Alto teve a encenação de Ácido do Teatro da Garagem, Lisboa, de autoria de Carlos J.
Pessoa. Também trata de viajantes migrantes, que à dife1º semestre de 2007
rença dos protagonistas de Mar Alto conseguem chegar à
sonhada “tearra prometida” que logo se torna um inferno
terreno onde devem sofrer o monosprezo, a discriminação
e a servidão de trabalho. O elemento cenográfico central é
uma grande rede, como a que se usa nos circos para proteger os trapezistas de uma manobra mal feita, que está posta
no meio do palco na posição vertical. A ação se desenvolve
atrás, em frente e na própria rede. Esta rede representa
uma parede imaginária, mas não menos real, que marca as
fronteiras do eu e do outro, do familiar e do desconhecido,
do amor e rejeição. Mas também é uma rede que se metamorfoseia trasformando-se em uma grande teia-de-aranha
que pega suas vítimas.
Muitos imigrantes, devido às circunstâncias adversas
do mundo estranho ao qual tentam incorporar-se em vão,
terminam na mendicidade, no entanto há outros que emigram para fazer dela um grande negócio; as máfias internacionais que vivem da caridade de muitos ingênuos que
imaginam fazer o bem mas que, contudo, fomentam sem
querer um dos piores abusos: a exploração dos marginalizados, dos descapacitados e o mais abjeto de todos, o abuso
de meninos inocentes. Esta problemática foi a que trouxe
ao FITEI o grupo La Machina Teatro de Santander, Espanha, com sua obra La Sucursal. A escravidão disfarsada de
mendicidade é exemplificada no grupo de acordeonistas
que fazem parte de uma rede de mendigos. Ao estilo de
qualquer negócio de proporções nacionais ou transnacionais, são parte de uma sucursal que é dirigida por um empresário invisível que os explora. Uns colchões são suficientes para recriar o mundo sórdido dos mendigos que, com
os acordes melancólicos de seu acordeom, aprofundam sua
dor e a comiseração do público.
Outra rede de negócios, mas agora com a sofisticação
dos novos tempos da globalização, foi a que apresentou o
grupo Visões Úteis de Porto. Mal vistos (uma tradução
para o português do texto da espanhola Gemma Rodríguez “Estamos quedando fatal”) é um olhar irônico e inquietante da atividade mercantil sem fronteiras. Uma
companhia internacional de estrutura típica piramidal,
os de cima controlam e subjulgam os de baixo. Os mais
castigados, nessa fria, ávida e calculada competitividade
que regula os processo do mercado global, são os trabalhadores, que recebem um sálario baixo, que não têm um
contrato estável e que são despedidos a qualquer momento sem que se leve em conta suas necessidades pessoais e familiares. O espaço cênico, de corte realista, representa os distintos lugares pelos quais transitam os atores,
o qual deu ao espetáculo um certo dinamismo que, no
entanto, não conseguiu sobrepor-se à monotonia imposta
pela espessura e comprimento do diálogo.
Também contemporâneo foi o referente de Wasteband,
um original e engenhoso espetáculo criado por Patrícia Por35
cena contemporânea
Viajeros,
Visitants
tela no qual se tenta vender a um público imaginário, representado pelo espectadores, o espetáculo teatral do futuro. Depois de receber uma breve introdução com instruções de como proceder, o reduzido número de espectadores entra em uma pequena sala que parece um laboratório
de alta tecnologia. Os espectadores se sentam em círculo
ao redor de uma mesa elíptica na qual projetam-se imagens. Mediante o uso de múltiplos instrumentos audio-visuais de alta tecnologia, o público torna-se parte de um
espetáculo futurista no qual se fundem teatro e ficção científica. Foi uma das propostas mais inovadoras do FITEI e,
paradoxamente, por distanciar-se das convenções teatrais
reconhecidas, não criou a empatia com os espectadores
conseguida em outros espetáculos do festival.
Muito bem recebido foi Iberia: A Louca História de uma
Península do Peripecia Teatro. Em um espaço vazio, a magia
de três atores luso-hispânicos recriou a história de Espanha e Portugal, uma “história cheia de guerras, alianças,
traições, amores e conquistas” (Programa do FITEI). O
público ovacionou a engenhosidade de Ángel Fragua, Noelia Domínguez e Sérgio Agostinho que, com uma expressividade corporal e mínimos elementos cênicos, contam com
humor uma inventada, mas não menos verdadeira, história
que põe em evidência quanto permeável e movediça é a
fronteira que separa a história da ficção.
36
Revisitação de textos clássicos ou
canônicos
Existem textos dramáticos que nunca perdem vigência,
que continuam sendo publicados, traduzidos e representados em diferentes lugares do mundo. Em sua encenação
recuperam toda a potência e força original, porém revitalizados com novos sons e cores que dão uma criativa leitura
contemporânea. No FITEI existiram alguns, Comecemos
com os melhores, os que se fixaram em nossa retina e em
nossa memória. O primeiro, por ordem de preferência, foi o
magistral Otelo, uma das grandes tragédias de Shakespeare, que sob a direção de Marco Antônio Rodrigues, trouxe
de São Paulo a Companhia Folias. Otelo é um personagem
que sabe ler bem os signos da guerra da qual sai sempre
invicto, mas que é incapaz de ler os signos da inveja e maledicência que o assediam, erro que leva à sua morte e a
de sua bela esposa Desdêmona. Este Otelo paulistano ressoou com sua potencialidade trágica e assência isabetana
mas renovada, reativado pelos signos de uma contemporaneidade tanto estética como referencial. O espaço de atuação se extendeu e confundiu com o do público. As arquibancadas dos espectadores com rodas giratórias, mudavam
constantemente de posição, o que ia construindo diferentes perspectivas de recepção, focos múltiplos que revelam
todo o gesto e movimento e quase anulava a distância enCamarim  39
tre atores e espectadores separados somente por partições
de cristal em forma de biombos. Um espetáculo de longa
duração mas vivido intensamente, vital e esteticamente.
Sobre o Folias é importante destacar que tem seu galpão
em um bairro do Centro de São Paulo e sua atividade teatral é estreitamente vinculada a sua realidade circundante. Um grupo de grandes méritos, para o qual a conscientização social e exigência estética caminham lado a lado.
Em As mil e uma noites do Comediants, um grupo catalão de destaque, a história e as histórias de Sherazade se
re-significam conectando-as com o que acontece hoje no
mundo. Um valioso volume de As mil e uma noites é resgatado da Biblioteca Nacional de Bagdá em chamas por causa de uma bomba. Vozes familiares da história contemporânea nos referem inequivocadamente ao cenário bélico do
Iraque de nossos dias. A ficção especular de porcelana do
texto original se faz, deste modo, mais complexa, relacionando o tempo da ficção das Mil e uma noites com o tempo
real do espectador. Em uma estrutura metálica vertical que
representa simbólicamente o cenário de nosso quebrantado mundo, se criam múltilos espaços em que constantemente se fundem as ações do presente e do passado.
Também houve espetáculos clássicos contemporâneos. O
mais destacado foi Waiting for Godot (se manteve o título em
inglês) de Samuel Becktt, uma das obras mais conhecidas
do século XX que foi encenada com muito sucesso em mui-
tos países. Desta vez a montagem foi do Teatro Meridional
de Lisboa, com o qual, meritoriamente, se deu a abertura do
FITEI 2006. Em um espaço vazio existem dois personagens
que, ao entardecer, esperam a chegada de alguém. É um
espetáculo de dois atos, de longa duração, mas que apesar
da densidade e extensão do diálogo, graças ao bom ritmo e a
beleza poética da materialidade lingüística fez que o tempo
real do espectador fosse superado/transpassado pelo tempo
da ficção, o que deu passagem a uma maior empatia entre
personagens e espectadores. Miguel Seabra, diretor do Teatro Meridional, criou um Godot em que palavra e gestualidade funcionaram em perfeita consonância. A atuação de
Pedro Gil foi impecável, magistral.
Também se contou com outros dois textos canônicos de
dramaturgos do século XX, Zoo Story de Edward Albee encenado pelo Centro Dramático de Viana/Teatro Noroeste
de Viana de Castelo e A Entrega, da Companhia Teatro Sintra, cujo texto, inspirado na biografia e obras de August Strindberg foi escrito e encenado por João Garcia Miguel. O
conflito se desenvolve a partir de um encontro casual de
dois homens no parque de um jardim zoológico. Um, assediado pela solidão e ansioso por comunicar-se (de modo existencial, plena ou autenticamente) interrompe o outro que
lê em um banco. A tensão entre os dois homens vai crescendo e tudo termina com o suicídio do intruso, incapaz de
suportar a falta de amor, a falta de sinceridade e a falta de
Las mil e una
noches, Comediants
1º semestre de 2007
37
cena contemporânea
autenticidade das relações humanas. A cenografia e iluminação representava um espaço aberto discretamente desenhado, o que permitiu que o diálogo, suporte principal da
obra chegasse, sem interferência, fluído e direto. A Entrega,
como a obra de Albee, trata das complexidades das relações
humanas que nunca podem desenvolver-se com plenitude.
A vida de Strindberg (golpeada por divórcios, pela rejeição
da sociedade) e sua linguagem simbólica, imaginativa e poética, transpareceu nesta adaptação de Garcia Miguel, cheia
de situações imprevisíveis que irritava e remexia o espectador envolvido em uma espetaculariedade na qual se refletia
sua própria precariedade existencial.
Espetáculos de rua: duas estéticas
diferentes
Durante o FITEI houve somente dois espetáculos de
rua. O primeiro Daimonion corresponde a uma montagem
de O Teatro do Mar, Sines, Portugal, que se realizou à meianoite na Praça D. João (em frente ao Teatro Rivoli). Foi
um espetáculo de rua em que se fundiam acrobacia aérea
circense, dança e música e onde foram usadas novas tecnologias de vídeo e de imagem e síntese, para contar a
conhecida lenda de Fausto que vende sua alma ao diabólico Mefistófoles. Nesta adaptação da lenda (baseada na
versão de Goethe), Julieta Aurora Santoa transforma Mefistófoles em um alter-ego de Fausto. Para dar expressão
artística à lenda, emprega-se uma estrutura cênica de nove
metros de altura que tem a forma de uma catedral gótica.
Nela penduram cintas que suspendem os artistas acróbatas. Ao fundo da estrutura metálica se vía uma grande tela
na qual se projetavam imagens de cores brilhantes. O público tinha a possibilidade de se movimentar e apreciar, de
diferentes perspectivas, este belo espetáculo.
De um estilo diferente foi o espaço cênico de Viajeiros
do grupo Visitants de Villa-Real, Espanha, que foi apresentado no parque da Fundação de Serralves, como parte
de um fim-de-semana festivo e cultural no qual o Museu
Serralves, um dos atrativos de Porto, abriu suas portas gratuitamente. Neste espetáculo, o espaço cênico foi múltiplo. Cada viajante conta separadamente sua história e trata de atrair a atenção de um público que, no entanto, não
pode resistir à sedução de outros viajantes, entrando assim
em um olhar lúdico de frente e canto de olho.
Mar alto, GTCCP
Lirismo narrativo, criação musical e
teatro: transpassando bordas
genéricas
Nesta crônica dos espetáculos programados no FITEI
XXIX, merecem menção à parte, Contos de Viagens e Dumcuts, o primeiro do Teatro Meridional de Lisboa e o segundo pelo grupo Amores Grupo de Percussão de Valência, Espanha. Em Contos de Viagens, Natália Luíza, com
38
Camarim  39
Ácido, Teatro da Garagem
impressionante voz e gestualidade, conta história breves
tomadas de conhecidos autores do mundo luso-brasileiro:
Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, Clarice Lispector e Jorge de Lima. O acompanhamento musical
do compositor e intérprete Fernando Mota modula o ritmo
da narração oral e completa a sonoridade da palavra.
Amores é uma colagem resultante da fusão de elementos
musicais, teatrais e circences, mesmo que os primeiros sejam
dominantes. Três excelentes músicos interpretam instrumentos inusuais (objetos) de percussão: que vão de isqueiros e
cocos até outros mais sofisticados confeccionados pelo próprio grupo. No seu figurino se vêem os traços típicos do traje
dos palhaços, o qual junto com a teatralidade da execussão
dos instrumentos e da dança desenfreada de uma bailarina,
meio bufão, saltimbanco e domadora de feras, imprime ao
espetáculo um ar circense que, no entanto, não diminue em
nada a seriedade interpretativa dos músicos, sempre afinados. Impressionou o virtuosismo dos músicos e o uso de instrumentos até agora inexistentes no repertório musical.
Programação paralela
A programação paralela ao festival, foi, de nosso ponto
de vista, uma das mais completas e interessantes das que o
FITEI já ofereceu até agora: leituras dramáticas, espetáculos de estudantes de teatro, uma homenagem a Isabel de
Castro, de quem se apresentou um documentário sobre sua
extradordinária trajetória artística; lançamentos de livros e
recitais de música clássica. O que captou mais nossa atenção foi a exposição Cenas suspensas, montada em uma estação recém construída do metrô de Porto, na qual se exibia
uma galeria de marionetes e bonecos, fotografias e vestuário
do Teatro de Marionetes de Porto, na qual se podia apreciar
sua trajetória de sucesso. O outro evento não menos notável
da programação alternativa foi a exposição do documentário Para além do Tejo, realizado pela fotógrafa Patricia Poção.
Este documentário que mostra o processo de produção de
Para além do Tejo, foi concebido como ponto de partida para
refletir sobre aspectos essenciais do processo teatral: Para
quê fazemos teatro? Que história queremos contar? Como as
queremos contar? Depois da exibição do documentário, o
diretor de Para além do Tejo, Miguel Seabra manteve um
estimulante diálogo com os participantes.
De vento em popa
La sucursal, La machina teatro
1º semestre de 2007
E o FITEI continua de vento em popa. Em 2007 extenderá
toda sua vela para celebrar seus TRINTA ANOS. Como crítico não posso deixar de expressar meu agradecimento aos
organizadores deste e muitos outros festivais que tive o privilégio de assistir como convidado. Os festivais de teatro constituem, para mim, peregrinações que me levam a santuários da
cultura que me submergem em um estado liminar do qual
saio sempre enriquecido, transformado e renovado. n
39
intervenção
Mudar para continuar
Estive, neste início de ano, mais uma vez,
na comissão de julgamento e aprovação de
projetos do Programa Municipal de Fomento
ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Foi
a minha quinta participação, em dez edições. Em todas as vezes fui escolhido nas
votações abertas levadas a cabo por representantes de grupos da classe teatral. Aceitei sempre (agradecido pela confiança no
meu distinto taco) por acreditar no dever
da militância que caracteriza meu trabalho e por pactuar com o necessário diletantismo que uma tarefa como esta exige.
As coisas ali são encrencadas e não há
nenhum glamour para recompensar: muitos projetos e um tempo exíguo para a avaliação; muita pressão e responsabilidade
envolvidas – já que são dezenas de trajetórias artísticas que estão em jogo; estudo
de orçamentos sem nenhum apoio técnico
profissional; contato indireto com grupos
ainda pouco conhecidos, mas extremamente bem articulados e capazes de formular
idéias muito consistentes sobre as intervenções cênicas que desejam promover para
atritar a vida cultural da cidade; fora todo
o aparato afetivo desdobrado para enfrentar as legítimas expectativas projetadas
pelos criadores (que me encontram na rua
e lançam facadas com o olhar) e os cansativos complexos de inferioridade maquiados de ironia fina que pululam nos comentários ocos que freqüentam os terrenos
baldios da ignorância, em nosso meio (enfim, estes fantasmas também existem!).
Embora tenha encontrado parceiros
muito sérios em todas as empreitadas vividas e em raríssimas vezes ter chegado ao
extremo de me arrepender dos votos dados
em cada ocasião (infelizmente, isto aconteceu; felizmente, não sou prisioneiro dos
meus erros), e após ter experimentado debates de altíssimo nível que levaram em
Antonio Rogério Toscano (professor da
Escola Livre de Santo André e na Escola
de Arte Dramática-USP)
40
consideração relevantes conceitos artísticos, éticos e estéticos, tenho percebido certa
limitação na Lei e a permanência de alguns buracos que, de tão renitentes, agora
se evidenciam com uma clareza insuportável. São estas contradições, mais evidentes
neste seu aniversário de cinco anos, que
motivam a escritura deste texto.
Uma delas: não é novidade para ninguém que, para a dimensão alcançada pelo
programa, a disponibilidade de verbas públicas destinadas à iniciativa do Fomento
se tornou piada sem graça. E, com muito
pouca grana, o que se vê como conseqüência é um perigoso acirramento da competição entre facções de pensamento que, a
rigor, poderiam somar forças para, juntas,
extrair dos que mandam vontade política
suficiente para ampliar os recursos.
Em diversas situações (especialmente
naquelas reuniões públicas em que os membros da banca comparecem para dar satisfações a respeito das escolhas feitas – e
para tomar pedradas dos mais malucões),
tive a sensação de que interesses diversos
travavam uma batalha inútil, na superfície do problema. Em geral, uma falsa dicotomia – pois ela só existe no mundo das
aparências – se mostrava clara quando vinha à tona a discussão sobre CONTINUIDADE, aspecto tão caro e fundamental
para a existência da Lei: por exemplo, causava irritação a alguns não-contemplados
o fato de que há grupos, supostamente inimigos nesta hora, que tiveram seus projetos reeleitos, para dar continuidade ao trabalho já fomentado em outras ocasiões.
Insisto que seja uma falsa questão, pois,
com a escassez de verbas, o fator limitante
para a determinação do que seja continuidade está impedindo cedo demais o avanço do debate: o que se consegue, de fato,
aprovar na atualidade da Lei é um número muito inferior de projetos em relação à
quantidade de excelentes propostas enviadas ao poder público e que poderiam realizar brilhantes investidas culturais, caCamarim  39
Nonada,
Cia. do Feijão
1º semestre de 2007
pazes de transformar um pouco os cenários urbanos devastados que nos rodeiam.
Se a Lei, por muitas razões, precisa ser
transformada, é evidente que um aditamento de verbas seria apenas o primeiro ponto
a ser reivindicado. Neste ano, dos 108 projetos inscritos, a comissão considerou que
mais de 60 deles conteriam méritos que justificariam suas imediatas aprovações (está
na ata, basta ler). Apenas 11 foram contemplados, alguns com cortes financeiros na
faixa dos 40% – devido à restrição orçamentária que corrói o nosso pescoço.
Desta forma, caem em um mesmo saco,
competindo deslealmente, projetos que
apresentam diferenças tão profundas que
mereceriam olhares específicos para sua singularidade, para sua identidade, para sua
diferença. Porque grupos já fomentados precisam continuar sendo fomentados, já que
não são auto-sustentáveis (e jamais serão)!
E porque grupos ainda não-fomentados precisam, é óbvio, ser fomentados (para dar
verdadeiro sentido ao nome da Lei).
Um grupo teatral antigo, com décadas
de história construídas aos trancos e barrancos, precisa do fomento para garantir
sua caminhada na selva das cidades – pois
a lógica de mercado nunca lhe favorecerá
a sobrevivência. É a continuidade que está
em jogo, aqui. Mas um grupo um pouco
mais novo, que já teve seu projeto contemplado em algum edital anterior, criou
com isso condições para dar os seus primeiros passos; e, se sua andada pode então se radicalizar, ele também precisa do
fomento para garantir sua continuidade.
Aqui, falamos de uma outra noção de continuidade, diferente da primeira. Mais que
tudo, um grupo ainda não-contemplado,
que engatinha trôpego e precisa do fomento
para amadurecer – já que criou um importante impulso inicial para sua trajetória
coletiva e contínua – situa-se entre os mais
merecedores deste negócio que, afinal de
contas, chamamos FOMENTO! E esta é
apenas uma terceira noção do que seja esta
tal de continuidade...
O que me parece importante reconhecer, para compreender, é isto que está na
camada mais profunda, abaixo do fundo
falso desta falsa polêmica entre velhos e
41
intervenção
novos: sem dinheiro que garanta uma legítima contemplação de bons projetos (e,
para quem está na comissão avaliando, o
que importa é a qualidade dos projetos enviados), a comissão fica obrigada a legislar sobre a Lei (o que é muito temeroso,
para dizer o mínimo), criando para si poderes de curadoria: entre tão poucos escolhidos num universo de tantos bons projetos, o voto da comissão se torna uma resposta capenga e direcionada, para não dizer ideológica e comprometida, ao vasto
campo de possibilidades aberto pela Lei.
Outra contradição: na tentativa de se
adequar aos critérios de aprovação, os grupos vêm praticando uma tenebrosa homogeneização dos projetos, numa espécie de
padronização aprendida em oficinas de
“ Neste ano, dos 108 projetos inscritos,
a comissão considerou que mais de 60
deles conteriam méritos que justificariam
suas imediatas aprovações÷ ”
“como fazer projetos para o fomento”. Em
geral, esta falsificação barata quer mascarar a realidade do grupo, o que vai absolutamente contra o espírito da Lei. Ao invés
de pulsar do projeto sua singularidade artística, sua identidade, com esclarecimentos sobre a concreta viabilidade de tal proposta inovadora, o que se vê é o uso indistinto de penduricalhos que só enchem lingüiça e fazem com que todos os grupos se
pareçam com os grupos já fomentados –
pelo menos nos projetos.
Esta é uma perversão típica que faz
com que um grupo que deveria gastar seu
tempo trancafiado em sua sala de ensaio
para estudar e pesquisar (para então amadurecer – hipótese que somente o Fomento permite) acabe caindo na vida cedo
demais, com disposição para ministrar oficinas sobre o que ainda não aprendeu de
fato... Será que todos os grupos precisam
mesmo realizar oficinas e ter estagiários?
Será que todo projeto incide sempre em
ciclos de leituras públicas ou séries de
palestras sobre temas gerais? Será, enfim,
que tais acessórios correspondem organi42
camente às necessidades de uma coerência interna, própria?
Este ponto abre espaço para uma terceira contradição, que precisa ser urgentemente resolvida, assim que a Lei for modificada pra melhor: quando, com mais
dinheiro, a comissão de análise de projetos não precisar mais legislar sobre a Lei
(os homens do Legislativo é que precisam ser pressionados hoje para realizar
amanhã as devidas transformações, segundo nosso público desejo; mudanças
essas que permitam tratar com diferença
os que não são, por natureza, iguais), então será a época de tornar mais límpido e
claro os processos de avaliação de projetos, em nossas comissões.
Em larga medida, uma comissão paritária já é excelente negócio, grande conquista do Fomento. Mas o processo de escolha talvez ainda possa ser realizado de
forma a se tornar mais visível e compreensível aos olhos de todos. Uma avaliação
feita em reuniões públicas, com fóruns coletivos de escolha constituídos, em etapas
distintas (com diferentes formas de participação da comunidade), talvez fosse a sofisticação merecida pela Lei, para que se
torne de vez a pérola a que se destina ser
entre as leis de cultura; e para que melindres gerados em torno dos pontos anteriores (continuidade, singularidade, padronização das condições de trabalho etc)
possam ser desmantelados na sua origem.
É o que desejamos e é o que conseguiremos, se formos espertos.
Entretanto, com todos os problemas, o
fato é que a Lei está aí, para todo mundo
ver. A semente virou flor. E o teatro paulistano tem motivos de sobra para comemorar: sua realidade foi completamente
modificada, desde que a mobilização em
torno do movimento Arte Contra a Barbárie instilou inquietação e a mobilização coletiva fez valer um novo modo de perceber
a política para a cultura.
A encruzilhada do momento é apenas um ponto em que paramos para refletir e repensar quais mensagens queremos enviar ao mundo. O impasse está
colocado. A hora é de decidir que caminho tomar! Larôye! n
Camarim  38
39
DIRETORIA:
Presidente
Vice-presidente
Secretário
Segunda Secretária
Tesoureiro
Segundo Tesoureiro
Vogal
Ney Piacentini
Cenne Gots ([email protected])
Roberto Rosa ([email protected])
Fernanda Rapisarda ([email protected])
Aiman Hammoud ([email protected])
Alexandre Terreri
Carlos Biaggiolli ([email protected])
Alessandra Cavagna
Aládia Cintra
Theodora Ribeiro
Alessandro Azevedo
Lincoln Rolin
Adailton Alves
CONSELHO FISCAL:
CONSELHEIROS CONSULTIVOS:
Bebê de Soares
Graça Berman
Pedro Pires
Sérgio Santiago
FUNCIONÁRIOS:
capa3
Fátima Ribeiro
Patrícia Barros
Petrônio Nascimento
Gerente Administrativo
Secretária da Diretoria
Secretário Executivo
Darcio Ranção Ricca ([email protected])
Eliana Albieri ([email protected])
Dorberto Carvalho ([email protected])
Supervisora Financeira
Supervisora Financeira
Financeiro
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Luana Kavanji ([email protected])
José Davi Souza Rafael, Adriana Simioni, Felipe de Paula,
Diego Geraldo Nunes, Viviane Souza Silva
Wladimir dos Santos Baptista ([email protected])
Janete Ap. Chessa ([email protected])
Thiago H. S. Olimpio ([email protected])
Éderson Kishimoto
Vânia Longuinho de Souza ([email protected])
Rosana de Oliveira Maciel ([email protected])
Érika Vanessa da Silva Tabosa
Mara Regina ([email protected])
Daniely Diniz ([email protected])
Patrícia Martins ([email protected])
Thaís Albieri ([email protected])
Carla Mestriner ([email protected])
André Luiz ([email protected])
Deivid Ferreira Venancio
Neanddra Silva Lopes ([email protected])
Maria Lira de Jesus, Angela Maria Agostinho
Fernando Moreira Garbo ([email protected])
Lumena Regina Miartins Bispo ([email protected])
Liliane Coda ([email protected])
Fábio Salem ([email protected])
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DEPARTAMENTO JURÍDICO:
Advogados
1º semestre de 2007
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Contabs Assessoria Empresarial ([email protected])
Ivone de Freitas Silva, Paula Romano
Martha Macruz de Sá
Álvaro Paez Junqueira
([email protected])
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