curso de instituies de direito romano

Transcrição

curso de instituies de direito romano
CURSO DE INSTITUIÇÕES DE DIREITO ROMANO
Thomas Marky
***
DUAS PALAVRAS
Distinto especialista em Direito Romano, tendo convivido na
Itália com sumidades como Riccobono, Arangio-Ruiz e De Francisci, para mencionarmos alguns dentre OS luminares que conheceu,
vem o Professor THOMAS Marky lecionando, com invejável êxito, a
tão árdua e proveitosa ciência de Papiniano, tanto na Faculdade
Paulista de Direito como em nossa Faculdade de Direito do Largo
de São Francisco.
Além do saber notório, possui o Professor Marky inegáveis qualidades didáticas, tendo conseguido formar um grupo de jovens discípulos voltados, como ele e graças ao seu exemplo, para os estudos
romanístiCoS em suas relações com o direito atual.
Oferece, agora, o eminente professor à juventude estudiosa brasileira o fruto de seu tirocínio, iniciando-a na justi atque injuSti scientia.
Trata-se de curso de instituições de Direito Romano, destinado
aos principiantes, sem dúvida, mas revelando em suas linhas sóbrias
e claras os sinais nítidos do trabalho orientado por inteligente intuito
pedagógico.
Só um professor, com efeito, experiente e animado pelo vivo
amor ao ensino, ao cabo de vários anos de trabalho e de observação paciente da psicologia estudantil, consegue elaborar manual digno
do nome, servindo o objetivo de iniciar as inteligências nos elementos
duma ciência. dando-lhes o essencial e eliminando o supérfluo.
"Nada em excesso" já diziam os Sete Sábios. Como tudo, também a ciência se adquire por graus. E saber proporcioná-la ao nível
do discente é a marca distintiva do verdadeiro professor.
Por essa razão, temos o prazer de recomendar o curso do Professor Marky à cupida legum juventus, certos, por outro lado, de ver
corroborado pelos doutos nosso julgamento a respeito de seus méritos
didáticos.
São Paulo, 15 de março de 1971.
ALEXANDRE A. CORRÊA
Professor catedrático da Faculdade
de Direito da Universidade de
SÃo Paulo.
PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO
Aqui está o fruto de experiências de dois decênios de magistério.
Ao entregá-lo aos acadêmicos de direito, não posso deixar de
expressar a minha profunda gratidão aos amigos Antonio Mercado
Júnior e José Fraga Teixeira de Carvalho, que, com tanta generosidade e competência, me ajudaram a imprimir-lhe não só forma vernacular aceitável, como, também, a dar-lhe conteúdo condizente com os
propósitos que nos guiaram.
São Paulo, nos idos de março de 1971.
THOMAS MARKY
ÍNDICE SISTEMÁTICO
Duas palavras
Preládo à primeira edição
INTRODUÇÃO
Utilidade do estudo do direito romano
Introdução histórica
Parte I
PARTE GERAL
CAPITULO 1
Direito objetivo. Conceito de direito e suas classificações
CAPITULO 2
Fontes do direito
Costume
Outras fontes do direito
- Leis e plebiscitos
- Senatus-consultos
- Constituições imperiais
- Editos dos magistrados
- Jurisprudencia
Evolução histórica das fontes do direito
CAPITULO 3
Norma jurídica
Aplicação da norma jurídica
Eficácia da norma jurídica no tempo e no espaço
CAPITULO 4
Direito subjetivo
Conceito e classificação
CAPITULO 5
Sujeitos de direito
Pessoa física
Capacidade jurídica de gozo
- Liberdade (Status libertatis)
- Cidadania (Status civitatis)
- Situação familiar (Status familiae)
Capitis deminutio
Outras causas restritivas da capacidade
Pessoa jurídica
CAPITULO 6
Objetos de direito
Conceito
Coisas corpóreas e incorpóreas
Res mancipi et res nec mancipi
Coisas móveis e imóveis
Coisas fungíveis e infungíveis (não-fungíveis)
Coisas consumíveis e inconsumíveis
Coisas divisíveis e indivisíveis
Coisas simples, compostas, coletivas ou universais
Coisas acessórias
Frutos
Benfeitorias
CAPITULO 7
Ato jurídico
Conceito
Capacidade de agir
Classificação dos atos jurídicos
Vício do ato jurídico
- Simulação e restrição mental
-Erro
-Dolo
- Coação
Conteúdo dos atos jurídicos
- Condição
- Termo
-Modo
Representação
Parte II
DIREITOS REAIS
CAPITULO 8
Propriedade
Conceito
Limitações da propriedade
CAPITULO 9
História da propriedade romana
Direito primitivo
Propriedade quiritária
Propriedade pretoriana
Propriedade de terrenos provinciais
Propriedade de peregrinos
Unificação dos diversos tipos de propriedade
CAPITULO 10
Co-propriedade
Conceito
CAPITULO 11
Posse
Conceito
História da posse
CAPITULO 12
Aquisição da propriedade
Conceito
Modos originários de aquisição da propriedade
Modos derivados de aquisição da propriedade
Usucapião (Usucapio)
Praescriptio longí temporis
Praescriptio longissimi temporis
Reforma do usucapião por Justiniano
Perda da propriedade
Aquisição e perda da posse
CAPITULO 13
Proteção da propriedade
Rei vindicatio
Actio negatoria
CAPITULO 14
Proteção da posse
Interdictum uti possidetis
Interdictum utrubi
Interdictum unde vi
Interdictum de vi armata
Interdictum de precario
CAPITULO 15
Direitos reais sobre coisa alheia
Conceito
Servidões
Servidões prediais
Servidões pessoais
- Usufruto
-Uso
- Habitação e trabalho de escravos e de animais
Constituição, extinção e proteção das servidões
Superfície e enfiteuse
CAPITULO 16
Direitos reais de garantia
Conceito
Fiducia cum creditore
Pignus
Hypotheca
Efeitos dos direitos reais de garantia
Parte III
DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
CAPITULO 17
Obrigações
Conceito
Partes na obrigação
Objeto das obrigações
Efeitos jurídicos da obrigação e responsabilidade pelo inadimplemento
Mora
Mora do devedor (Mora debitoris, mora solvendi)
Mora do credor (Mora creditoris, mora accipiendO
Purgação da mora
Obrigações naturais
CAPITULO 18
Fontes das obrigações
Conceito e evolução histórica
CAPITULO 19
Contratos
Conceito
Contratos formais
Contratos do direito clássico
Contratos reais
- Mútuo (Mutuum)
- Depósito (Depositum)
Comodato (Commodatum)
Penhor (Contractus pignoraticius)
Contratos inominados
Contratos consensuais
Compra e venda (Emptio venditio)
Locação (Locatio conductio)
Sociedade (Societas)
Mandato (Mandatum)
Pacta
Doação
CAPITULO 20
Obrigações "ex quasi contractu
Conceito
Gestão de negócios (Negotiorum gestio)
Enriquecimento sem causa
CAPITULO 21
Delitos
Conceito e evolução histórica
Furto (Furtum)
Roubo (Rapina)
Dano, danificação (Damnum injuria datum)
Injúria (Injuria)
Dolo (Dolus malus)
Coação (Metus)
Obrigações ex quasi delicto
CAPITULO 22
Garantia das obrigações
Conceito
Arras (Arrha)
Multa contratual
Outras garantias
- Fiança
CAPITULO 23
Transmissão das obrigações
Conceito
(Poena conventionalis)
Delegatio
Procuração em causa própria (Procuratio im rem suam)
Sistema das actiones utiles
CAPITULO
24
Extinção das obrigações
Conceito
Pagamento (Solutio)
Compensação (Compensatio)
Novação (Novatio)
- Extinção da obrigação por acordo das partes
- Fatos extintivos das obrigações, independentes da
vontade das partes
Parte IV
DIREITO DE FAMÍLIA
CAPITULO 25
Família
A família romana: conceito e histórico
Pátrio poder
- Aquisição e perda do pátrio poder
CAPITULO 26
Casamento
Conceito do matrimônio romano
Esponsais
Requisitos e impedimentos para contrair matrimônio .
Efeitos do matrimônio
Dissolução do matrimônio
Dote
- Constituição do dote
- Restituição do dote
Doações entre cônjuges
CAPITULO 27
Tutela e curatela
Conceito e histórico
Espécies de tutela
Poderes e obrigações do tutor
Curatela
Parte V
DIREITO DAS SUCESSÕES
CAPITULO 28
Sucessão ("Successio in universum ius")
Conceito e breve histórico
Herança (Hereditas)
Abertura da sucessão (Delatio hereditatis)
Aquisição da herança (Acquisitio hereditatis)
Hereditas jacens e usucapio pro herede
Hereditas - bonorum possessio
CAPITULO 29
Sucessão testamentãria ("Successio secundum tabulas")
Testamento
Capacidade de testar (Testamenti factio activa)
Capacidade de herdar (Testamenti factio passiva)
Formas de testamento
Conteúdo do testamento
Testamentos inválidos
CAPITULO 30
Sucessão legítima ("successio ab intestato")
Conceito e histórico
Sucessão legítima no direito quiritário
Sucessão legítima no direito pretoriano
Sucessão legítima no direito justinianeu
CAPITULO 31
Sucessão necessária ("successio contra tabulas")
Sucessão necessária formal no direito quiritário
Sucessão necessária material
Reformas de Justiniano na sucessão necessária
CAPITULO 32
Colação ("Collatio")
Conceito e histórico
CAPITULO 33
Sucessão singular ("Successio Singularis mortis causa")
Conceito
Legado (Legatum)
Fideicomisso (Fideicommissum)
Indice alfabético-remissivo
Indice das fontes
INTRODUÇÃO
UTILIDADE DO ESTUDO
DO DIREITO ROMANO
A importância do estudo do direito romano não precisa ser
explicada, pois é de conhecimento mesmo do leigo que o nosso direito e o de todos os povos do Ocidente derivam do direito romano.
Portanto, ao estudá-lo, vamos às origens do nosso próprio direito
vigente.
Por outro lado, não é simples saudosismo ou preocupação esotérica esse retorno às origens do nosso direito. Tem esse estudo um
papel importante no currículo do curso de bacharelado das nossas
Faculdades de Direito.
O direito, como regulamentação do comportamento humano
dentro da sociedade, é também um fenômeno histórico. Suas regras
não são fruto de pura especulação, nem conseqüência de inexoráveis
forças da natureza. Essas regras são produtos, sim, da longa experiência humana e, por isso, para compreendê-las, é muito útil, senão
imprescindível, conhecer sua evolução histórica.
Além dessas considerações teóricas há outras, de valor prático
também, que falam da utilidade, senão da necessidade do estudo do
direito romano no início do curso jurídico.
O curso elementar de direito romano é um curso introdutório.
Corresponde às Institutas de Justiniano (século VI d.C.) e, respectivamente, ao modelo destas, que eram as Institutas de Gaio (século
II d.C.).
Elas eram obras didáticas, visando à iniciação dos estudantes
no aprendizado sistemático da ciência do direito.
O cabeçalho das Institutas de Justiniano traz o título esclarecedor de "Instituições ou Elementos... ". Assim, o nosso curso, seguindo uma tradição de quase dois milênios, também é um curso
elementar. E nesse papel de disciplina propedêutica, com a função de
introduzir os alunos no estudo do direito (especialmente no do direito
civil), é que o direito romano tem uma utilidade incomparável.
Ele apresenta as categorias jurídicas fundamentais nas quais o
direito moderno se baseia e, por isso, se presta magnificamente a dar
aos principiantes uma visão geral de todo o sistema jurídico, especialmente do direito civil. Ao mesmo tempo os inicia na técnica do raciocínio jurídico. Tudo isto com a vantagem de explicar as categorias
básicas conforme sua evolução histórica, o que facilita a compreensão.
INTRODUÇÃO HISTÓRICA
O direito romano é o complexo de normas vigentes em Roma,
desde a sua fundação (lendária, no século VIII a.C.) até a codificação de Justiniano (século VI d.C.). A evolução posterior não será
objeto de nossos estudos, porque a codificação justinianéia foi conclusiva: foram recolhidos os resultados das experiências anteriores e
considerada a obra como definitiva e imutável.
Realmente, a evolução posterior dos direitos europeus baseouse nessa obra de codificação, tanto assim que os códigos modernos,
quase todos, trazem a marca da obra de Justiniano.
Por isso consideramos a codificação de Justiniano como termo
final do período que estudamos.
Nos treze séculos da história romana, do século VIII a.C. ao
século VI d.C., assistimos, naturalmente, a uma mudança contínua
no caráter do direito, de acordo com a evolução da civilização romana, com as alterações políticas, econômicas e sociais, que a caracterizavam.
Para melhor compreender essa evolução, costuma-se fazer uma
divisão em períodos.
Tal divisão pode basear-se nas mudanças da organização política
do Estado Romano, distinguindo-se, então, a época régia (fundação
de Roma no século VIII a.C. até a expulsão dos reis em 510 a.C.),
a época republicana (até 27 a.C.), o principado até Diocleciano (que
iniciou seu reinado em 284 d.C.), e a monarquia absoluta, por este
último iniciada e que vai até o fim do período por nós estudado, isto
é, até Justiniano (falecido em 565 d.C.).
Outra divisão, talvez preferível didaticamente, distingue no estudo do direito romano, tendo em conta sua evolução interna: o
período arcaico (da fundação de Roma no século VIII a.C. até o
século II a.C.), o período clássico (até o século III d.C.) e o período pós-clássico (até o século VI d.C.).
O direito do período arcaico caracterizava-se pelo seu formalismo e pela sua rigidez, solenidade e primitividade. O Estado tinha
funções limitadas a questões essenciais para sua sobrevivência: guerra, punição dos delitos mais graves e, naturalmente, a observância
das regras religiosas.
Os cidadãos romanos eram considerados mais como membros
de uma comunidade familiar do que como indivíduos. A defesa privada tinha larga utilização: a segurança dos cidadãos dependia mais
do grupo a que pertenciam do que do Estado.
A evolução posterior caracterizou-se por acentuar-se e desenvolver-se o poder central do Estado e, conseqüentemente, pela progressiva criação de regras que visavam a reforçar sempre mais a
autonomia do cidadão, como indivíduo.
O marco mais importante e característico desse período é a codificação do direito vigente nas XII Tábuas, codificação feita em 451
e 450 a.C. por um decenvirato, especialmente nomeado para esse fim.
As XII Tábuas, chamadas- séculos depois, na época de Augusto
(sécúlo I), fonte de todo o direito (fons omnis publici privatique
iuris), nada mais foram que uma codificação de regras provavelmente
costumeiras, primitivas, e, às vezes, até cruéis. Aplicavam-se exclusivamente aos cidadãos romanos.
Esse direito primitivo, intimamente ligado às regras religiosas,
fixado e promulgado pela publicação das XII Tábuas, já representava um avanço na sua época, mas, com o passar do tempo e pela
mudança de condições, tornou-se antiquado, superado e impeditivo
de ulterior progresso.
Mesmo assim, o tradicionalismo dos romanos fez com que esse
direito arcaico nunca fosse considerado como revogado: o próprio
Justiniano, 10 séculos depois, fala dele com respeito.
A conquista do poder, pelos romanos, em todo o Mediterrâneo,
exigia uma evolução equivalente no campo do direito também. Foi
aqui que o gênio romano atuou de uma maneira peculiar para a nossa
mentalidade.
A partir do século II a.C. assistimos a uma evolução e renovação constante do direito romano, que vai até o século III d.C.,
durante todo o período clássico. Essa revolução e renovação se fez,
porem, por meios indiretos, característicos dos romanos e diferentes
dos métodos modernamente usados.
A maior parte das inovações e aperfeiçoamentos do direito, no
período clássico, foi fruto da atividade dos magistrados e dos juris-
consultos que, em princípio, não podiam modificar as regras antigas,
mas que, de fato, introduziram as mais revolucionárias modificações
para atender às exigências práticas de seu tempo.
Entre os magistrados republicanos, o pretor tinha por incumbência funções relacionadas com a administração da Justiça. Nesse
mister, cuidava da primeira fase do processo entre particulares, verificando as alegações das partes e fixando os limites da contenda,
para remeter o caso posteriormente a um juiz particular. Incumbia,
então, a esse juiz, verificar a procedência das alegações diante das
provas apresentadas e tomar, com base nelas, a sua decisão. Havia
pretor para os casos entre cidadãos romanos - era o pretor urbano
e havia também, a partir de 242 a.C., pretor para os casos em
que figuravam estrangeiros. Era o chamado pretor peregrino.
O pretor, como magistrado, tinha um amplo poder de mando,
denominado imperium. Utilizou-se dele, especialmente, a partir da
lei Aebutia, no século II a.C., que, modificando o processo, lhe deu
ainda maiores poderes discricionários. Por essas modificações processuais, o pretor, ao fixar os limites da contenda, podia dar instruções ao juiz particular sobre como ele deveria apreciar as questões
de direito. Fazia isto por escrito, pela fórmula, na qual podia incluir
novidades, até então desconhecidas no direito antigo. Não só. Com
esses poderes discricionários, podia deixar de admitir ações perante ele
propostas (denegatio actionis) ou, também, admitir ações até então
desconhecidas no direito antigo. Essas reformas completavam, supriam e corrigiam as regras antigas (Ius praetorium est, quod praetores introduxerunt adiuvandi vel supplendi vel corrigendi iuris civilis
gratia. D. 1.1.7.1).
As diretrizes que o pretor ia observar eram publicadas no seu
Edito, ao entrar no exercício de suas funções. Como o cargo de pretor era anual, os editos se sucediam um ao outro, dando oportunidade a experiências valiosíssimas.
O resultado dessas experiências foi um corpo estratificado de
regras, aceitas e copiadas pelos pretores que se sucediam, e que, finalmente, por volta de 130 d.C., foram codificadas pelo jurista Sálvio
Juliano, por ordem do Imperador Adriano.
Note-se bem, entretanto, que esse direito pretoriano nunca foi
equiparado ao direito antigo (ius civile). A regra antiga, pela qual
o
pretor não podia criar direito (praetor ius facere non potest), continuou em vigor. Assim, esse direito pretoriano, constante do Edito
e chamado ius honorarium, foi sempre considerado como diferente
do direito antigo (ius civile) mesmo quando, na prática, o substituiu.
A essa característica peculiar da evolução do direito romano,
temos que acrescentar uma outra, de igual relevância.
A interpretação das regras do direito antigo era tarefa importante
dos juristas. Originariamente só os sacerdotes conheciam as normas
jurídicas. A eles incumbia, então, a tarefa de interpretá-las. Depois, a
partir do fim do século IV a.C., esse monopólio sacerdotal da interpretação cessou, passando ela a ser feita também pelos peritos leigos.
Essa interpretação não consistia somente na adaptação das regras jurídicas às novas exigências, mas importava também na criação de
novas normas.
Tal atividade jurisprudencial contribuiu grandemente para o desenvolvimento do direito romano, especialmente pela importância
social que os juristas tinham em Roma. Eles eram considerados como
pertencentes a uma aristocracia intelectual, distinção essa devida aos
seus dotes de inteligência e aos seus conhecimentos técnicos.
Suas atividades consistiam em emitir pareceres jurídicos sobre
questões práticas a eles apresentadas (res pondere), instruir as partes
sobre como agirem em juízo (a gere) e orientar os leigos na realização
de negócios jurídicos (cavere). Exerciam essa atividade gratuitamente,
pela fama e, evidentemente, para obter um destaque social, que os
ajudava a galgar os cargos públicos da magistratura.
Foi Augusto que, procurando utilizar, na nova forma de governo por ele instalada, os préstimos desses juristas, instituiu um
privilégio consistente no direito de dar pareceres em nome dele, príncipe: ius respondendi ex auctoritate principis. Esse direito era concedido a certos juristas chamados jurisconsultos (Inst. 1.2.8). Seus pareceres tinham força obrigatória em juízo. Havendo pareceres contrastantes, o juiz estava livre para decidir.
O método dos jurisconsultos romanos era casuístico. Examinavam, explicavam e solucionavam casos concretos. Nesse trabalho não
procuravam exposições sistemáticas: eram avessos às abstrações dogmáticas e às especulações e exposições teóricas. Isso não impediu,
entretanto, que o gênio criador dos romanos se manifestasse por intermédio dessa obra casuística dos jurisconsultos clássicos.
O último período, o pós-clássico, é a época da decadência em
quase todos os setores. Assim, também no campo do direito. Vivia-se
do legado dos clássicos, que, porém, teve de sofrer uma vulgarização
para poder ser utilizado na nova situação caracterizada pelo rebaixamento de nível em todos os campos.
Nesse período, pela ausência do gênio criativo, sentiu-se a necessidade da fixação definitiva das regras vigentes, por meio de uma
codificação que os romanos em princípio desprezavam. Não é por
acaso que, exceto aquela codificação das XII Tábuas do século V
a.C., nenhuma outra foi empreendida pelos romanos até o período
decadente da era pós-clássica.
Após tentativas parciais de codificação de partes restritas do direito vigente (Codex Gregorianus, Codex Hermogenianus, Codex Theodosianus), foi Justiniano (527 a 565 d.C.) quem empreendeu a grandiosa obra legislativa, mandando colecionar oficialmente as regras de
direito em vigor na época.
Encarregou uma comissão de juristas de organizar uma coleção
completa das constituições imperiais (leis emanadas dos imperadores),
que foi completada em 529 e publicada sob a denominação de Codex
(de que não temos texto nenhum).
No ano seguinte, em 530, determinou Justiniano que se fizesse
a seleção das obras dos jurisconsultos clássicos, encarregando dessa
tarefa Triboniano, que convocou uma comissão para proceder ao trabalho ingente.
A comissão conseguiu no prazo surpreendente de três anos confeccionar o Digesto (ou Pandectas), composto de 50 livros, no qual
foram recolhidos trechos escolhidos de 2.000 livros (com três milhões
de linhas) de jurisconsultos clássicos.
Os codificadores tiveram autorização de alterar os textos escolhidos, para harmonizá-los com os novos princípios vigentes.
Essas alterações tiveram o nome de emblemata Triboniani e
hoje são chamadas interpolações. A descoberta de tais interpolações e
a restituição do texto original clássico é uma das preocupações da
ciência romanística dos últimos tempos.
Paralelamente à compilação do Digesto, Justiniano mandou preparar uma nova edição do Codex, isto por causa da vasta obra legislativa por ele empreendida naqueles últimos anos. Em 534 foi publicado, então, o Codex repetitae praelectionis, o Código revisado, cujo
conteúdo foi harmonizado com as novas normas expedidas no curso
dos trabalhos. Somente temos o texto desta segunda edição do Código
Justinianeu.
Além dessas obras legislativas, Triboniano, Teófilo e Doroteu,
estes últimos professores das escolas de Constantinopla e de Bento,
elaboraram, por ordem de Justiniano, um manual de direito para estudantes, que foi modelado na obra clássica de Gaio, do século II a.C.
Esse manual foi intitulado Institutiones, como o de Gaio, e foi publicado em 533.
Depois de terminada a codificação, a qual, especialmente o
Código, continha a proibição de se invocar qualquer regra que nela
não estivesse prevista, Justiniano reservou-se a faculdade de baixar
novas leis.
Nos anos subseqüentes a 535, até sua morte em 565 d.C., Justiniano publicou efetivamente um grande número de novas leis, chamadas novellae constitutiones. A coleção destas, intitulada Novellae,
constitui o quarto volume da codificação justinianéia.
O Código, o Digesto, as Institutas e as Novellae formam, então,
o Corpus Iuris Civilis, nome esse dado por Dionísio Godofredo, no
fim do século XVI d.C.
Foi mérito dessa codificação a preservação do direito romano
para a posteridade.
Parte I
PARTE GERAL
CAPÍTULO 1
DIREITO OBJETIVO. CONCEITO
DE DIREITO E SUAS CLASSIFICAÇÕES
O termo "direito", entre outros, tem dois sentidos técnicos.
Significa, primeiramente, a norma agendi, a regra jurídica. Assim,
falamos de direito romano, de direito civil brasileiro, como complexo de normas. Noutra acepção, a palavra significa a facultas
agendi, que é o poder de exigir um comportamento alheio. Assim
a entendemos quando falamos em "direito à nossa casa", "direito
aos filhos", "direito à remuneração de nosso trabalho". No primeiro
sentido trata-se do direito objetivo e no segundo, do direito subjetivo.
No momento interessa-nos apenas o direito no sentido de direito objetivo, que é o preceito hipotético e abstrato, cuja finalidade
é regulamentar o comportamento humano na sociedade e cuja característica essencial é a força coercitiva que a própria sociedade lhe
atribui.
A famosa definição romana, pela qual os mandamentos do direito são: viver honestamente, não lesar a ninguém e dar a cada um
o seu (Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere,
suum cuique tribuere, D. 1.1.10), não faz referência a essa importante característica. Nós, entretanto, ao estudarmos o conceito, não
podemos prescindir da análise dessa sua característica e de sua explicação.
A força coercitiva atribuída à norma jurídica significa que a
organização social, o Estado, interfere para que o preceito seja obedecido. Para esse fim, a regra jurídica contém, normalmente, além
do mandamento regulamentador da conduta humana (norma agende,
uma outra disposição: a de estabelecer as conseqüências para o caso
de transgressão da norma. Essa outra disposição da regra jurídica se
chama sanção (sanctio).
A sanção pode ser de dois tipos: de nulidade ou de penalidade.
Pela primeira, a inobservância do preceito legal gera, como conseqüência, a invalidade do ato, que será, assim, ineficaz. Por exemplo,
o impúbere não tem capacidade para vender, sozinho, seus bens. Vendendo nessas condições sua casa, o ato será nulo, isto é, sem eficácia
jurídica. Por isso mesmo, tal sanção se denomina restitutiva, pois visa
ao restabelecimento da situação anterior à transgressão. O outro tipo
de sanção é a punitiva, que prevê uma pena para o transgressor.
Comumente a norma jurídica estabelece a sanção de nulidade:
a tal espécie de norma as fontes romanas chamavam lei perfeita (lex
perfecta, Regulae Ulpiani, 1.1). A lex Aelia Sentia, por exemplo, do
ano 4 d.C., declarava nulas as alforrias feitas contrariamente às suas
disposições (Gaio 1 .37 e 47).
A lei menos que perfeita (lex minus quam perfecta, Reg. Ulp.
1.2) era, conforme as mesmas fontes romanas, a regra cuja sanção
não previa a anulação dos efeitos do ato transgressor, mas cominava
uma punição. Era o que se dava no caso do casamento de viúva antes
de decorridos 10 meses da morte do marido; o casamento seria válido,
mas os cônjuges sofriam certas restrições no campo do direito
(D. 3.2.1).
Por outro lado, a falta de sanção caracterizava a lei imperfeita
(lex imperfecta), que não cominava nem a nulidade do ato infringente, nem qualquer penalidade. Por exemplo, a lei Cincia, que, em
204 a.C., proibiu a doação além de certo valor sem estipular sanção
alguma para os transgressores.
Logicamente, a regra de direito pode prever sanção de nulidade
e, também, punição, concomitantemente. À lei desse tipo dá-se hoje
a denominação de lei mais que perfeita. Outros, contudo, enquadram
essa modalidade entre as leis perfeitas. Assim eram as disposições da
lei Julia de vi privata, de 17 a.C., que, proibindo o uso da força,
mesmo no exercício de um direito, declarava nulo o ato e, além disso,
aplicava penalidade: um credor que, fazendo justiça com as próprias
mãos, tomasse pela força, em pagamento de seu crédito, um objeto
pertencente ao seu devedor, perdia o crédito e tinha que devolver o
objeto também.
O direito, no sentido objetivo, pode ser classificado do ponto de
vista histórico e sistemático.
Historicamente, temos que distinguir o ius civile do ius gentium.
Na verdade, a distinção baseia-se na diversidade dos destinatários das
respectivas regras. O antigo ius civile, também denominado nas fontes
como ius Quiritium, destinava-se, exclusivamente, aos cidadãos romanos (Quirites): quod quisque populus ipse sibi ius constituit, id
ipsius proprium est vocatUrque ius civile, quasi ius proprium civitatis
(Gai. 1.1). Por outro lado, as normas consuetudinárias romanas, consideradas como comuns a todos os povos e por isso aplicáveis não
só aos cidadãos romanos (Quirites), como também aos estrangeiros
em Roma, constituíam o ius gentium: id quod apud omnes populos
peraeque custoditur, vocaturque ius gentium, quasi quo iure omnes
gentes utuntur. Populus itaque Romanus partim suo proprio, partim
communi omnium hominum iure utitur (Gai. 1.1, cf. também Inst.
1.2.1).
Para os juristas romanos da época clássica, o ius gentium era um
direito universal, baseado na razão natural (naturalis ratio, Gai. 1.1).
Por outro lado, encontramos na codificação justinianéia outra
distinção que contrapõe o ius gentium ao ius naturale (Inst. 1.2.2).
Este seria constituído de regras da natureza, comuns a todos os seres
vivos, como as relativas ao matrimônio, procriação e educação dos
filhos.
Também havia distinção entre ius civile, de um lado, e ius honorarium, de outro. A distinção baseava-se na diversidade de origem das
respectivas regras. O ius honorarium era o direito elaborado e introduzido pelo pretor que, com base no seu imperium (poder de mando),
introduzia novidades, criava novas regras e modificava substancialmente as antigas do ius civile. Essas regras, contidas no edito, eram
as do ius honorarium, do direito pretoriano.
Em contraposição, as regras do ius civile provinham do costume, das leis, dos plebiscitos e, mais tarde, também dos senatus-consultos e constituições imperiais. Assim, nesse contexto, o termo ius
civile abrangia não só o antigo direito quiritário, como, também, o
mais novo ius gentium.
Ainda a respeito da divisão de regras, quanto à sua origem,
pode-se falar de ius extraordinarium, que era o direito elaborado na
época imperial, mediante a atividade jurisdicional (quase legiferante)
do imperador e de seus funcionários, que então tinham substituído o
pretor nesse mister.
Por outro lado, examinando as classificações sistemáticas, encontramos a distinção entre direito público e direito privado. O primeiro
regula a atividade do Estado e suas relações com particulares e outros
Estados. O direito privado, por sua vez, trata das relações entre particulares: Publicum ius est quod ad statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem pertinet (Inst. 1.1.4 - D.
1.1.1.2).
Relacionada ainda com esta distinção é aquela de ius cogens
e de ius dispositivum (direito cogente e direito dispositivo). Cogente é a regra que é absoluta e cuja aplicação não pode depender da
vontade das partes interessadas. Tem que ser obedecida fielmente; as
partes não podem excluí-la, nem modificá-la. Neste sentido os romanos
diziam: ius publicum privatorum pactis mutari non potest (D. 2.14.38):
o
direito público não pode ser alterado por acordo entre particulares.
Assim, para que houvesse compra e venda, precisava-se do acordo das
partes sobre a mercadoria e preço. As partes não podiam alterar essa
regra, celebrando compra e venda sem estipular o preço, por exemplo.
O direito dispositivo, por sua vez, admitia uma autonomia de
vontade dos particulares: suas regras podiam ser postas de lado ou
modificadas pela vontade das partes. Assim, na compra e venda, o
vendedor respondia pelos defeitos da coisa vendida. Essa era uma
regra dispositiva, pois, por acordo expresso, as partes podiam excluir
essa responsabilidade do vendedor.
A distinção entre ius commune e ius singulare referia-se, de um
lado, às regras que visavam a uma regulamentação generalizada, aplicável a todas as pessoas e a todas as situações nela previstas (ius
commune). Por outro lado, as regras que valiam somente com relação
a determinadas pessoas ou grupos de pessoas, bem como a situações
específicas, eram do ius singulare. Estas últimas constituíam, portanto, exceções às regras gerais e comuns. Por exemplo, as normas relativas ao usucapião das coisas furtadas (já conhecidas pelas XII Tábuas e reafirmadas pela lei Atínia do século II a.C.) eram regras do
ius singulare.
Outra classificação do direito objetivo se baseava na sua forma
de criação. É aquela feita de acordo com as fontes do direito.
CAPÍTULO 2
FONTES DO DIREITO
A produção das regras jurídicas se faz pelas fontes do direito.
Elas são os órgãos que têm a função ou poder de criar a norma
jurídica e, por isso mesmo, se chamam "fontes de produção". Exemplo: os comícios (comitia), que votavam as leis em Roma. Por outro
lado, podemos denominar "fontes de revelação" o produto da atividade
dos órgãos que têm aquele poder ou função de legislar. Assim, a
própria regra jurídica, na forma como ela aparece ou se revela.
Exemplo, a lei (lex rogata) resultante de uma proposta feita pelos
magistrados e votada pelos comícios em Roma.
COSTUME
Entre as fontes do direito romano, no segundo sentido, está o
costume, que, no período arcaico, foi quase que exclusivamente a
sua única fonte. O costume (mos, consuetudo, mores maiorum) é a
observância constante e espontânea de determinadas normas de comportamento humano na sociedade. Cícero o definiu como sendo aprovado, sem lei, pelo decurso de longuíssimo tempo e pela vontade de
todos: quod valunt ate omnium sine lege vetustas compro bavit (De
inv. 2.22.67). Juliano o caracterizava como "inveterado": inveterata
consuetudo (D. 1 .3.32. 1) e Ulpiano como "diuturno": diuturna con-
suetudo (D. 1.3.33). De qualquer modo, a observância da regra consuetudináría deve ser constante e universal.
OUTRAS FONTES DO DIREITO
Ao tratar das fontes do direito na época clássica, Gaio, nas
Institutas (Gai. 1.2), nem sequer menciona o costume entre elas. Para
ele, as fontes são somente a lei (lex), os plebiscitos (plebiscita), os
senatus-consultos (senatusconsulta), as constituições imperiais (constitutiones principum), os editos dos magistrados (edicta magistratuum)
e a jurisprudência (responsa prudentium).
Leis e plebiscitos
As leis e plebiscitos eram manifestações coletivas do povo. As
primeiras, leges rogatae, tomadas nos comícios, de que só participavam
cidadãos romanos (populus romanus). Os comícios eram convocados
pelos magistrados para deliberar sobre texto de lei por eles proposto.
Os segundos, plebiscita, forma anômala de fonte de direito, eram
decisões da plebe, reunida sem os patrícios. Essas deliberações passaram a ser válidas para a comunidade toda desde que a lei Hortensia,
em 286 a.C., assim determinou.
Interessante observar que são pouquíssimas as leis romanas de
real importância para o direito privado: não mais de 25. Conservou-se
o nome de aproximadamente 800 leis nos 500 anos em que tais
fontes produziram direito.
Senatus-consultos
Os senatus-consultos (senatusconsulta) eram deliberações do
senado, cuja função legiferante foi somente reconhecida no início
do Principado (27 a.C. - 284 d.C.). Na República, os senatus-consultos eram deliberações do senado, dirigidas mormente aos magistrados.
No Principado, eram propostos pelos imperadores e, no início, consistiam, também, em instruções aos magistrados sobre o exercício de suas
funções. Mais tarde, a partir do imperador Adriano (117 - 138 d.C.),
passou-se a aprovar simplesmente, por aclamação, a proposta do imperador (oratio principis), transformando-se, destarte, o senatus-consulto
numa forma indireta de legislação imperial.
Constituições imperiais
As constituições imperiais eram disposições do imperador que não
só interpretavam a lei, mas, também, a estendiam ou inovavam. As
denominações variavam, conforme o conteúdo ou natureza delas:
edicta - ordenações de caráter geral, à semelhança das ordenações
dos magistrados republicanos, de que trataremos logo a seguir; decreta
decisões do imperador, proferidas num processo; rescripta - respostas dadas pelo imperador a questões jurídicas a ele propostas por
particulares em litígio ou por magistrados; mandata - instruções
dadas pelo imperador, na qualidade de chefe supremo, aos funcionários subalternos.
Editos dos magistrados
Os editos dos magistrados são fonte de direito importantíssima
na República (510 - 27 a.C.). A determinação da regra jurídica a
ser aplicada pelo juiz na decisão de uma questão controvertida cabia
ao magistrado, especialmente ao pretor. Essa função se chamava
jurisdição (jus dicere) e, no desempenho dela, os pretores tiveram
prerrogativas bastante amplas, baseadas no poder de mando, denominado imperium. Podiam eles, quando julgavam necessário ou oportuno,
denegar a tutela jurídica, mesmo contra as regras do direito quiritário,
ou, inversamente, conceder meios processuais a pretensões que não
tinham amparo legal no mesmo direito. Assim, dependia de seu poder
discricionário a aplicação ou não daquelas regras do direito quiritário.
Tinham eles outros meios processuais também para introduzir inovações, a fim de ajudar, suprir e até corrigir as regras do direito
quiritáriO.
Nesse mister, o pretor, tal qual os outros magistrados, promulgava seu programa ao assumir o cargo, revelando como pretendia agir
durante o ano de seu exercício. Essa atividade normativa manifestava-se através do edito, como era chamado aquele programa. Com o
edito, na realidade, o pretor criava novas normas jurídicas, ao lado
das do direito quiritário. Essas novas normas pretorianas não podiam
derrogar o direito quiritário, mas existiam paralelamente a ele.
Embora houvesse a mudança anual dos magistrados, o edito
passava a conter um texto estratificado, fruto da experiência dos antecessores, formando o chamado edictum tralaticium. Inovações também
podiam ser introduzidas pelo novo pretor, mediante o edito chamado
repentinum.
A redação definitiva do edito do pretor foi obra do jurista Sálvio
Juliano, por ordem do Imperador Adriano, por volta do ano 130 d.C.
(Edictum Perpetuum Salvii Juliani). Tal compilação representou o
fim da evolução desta fonte de direito.
Jurisprudência
Os pareceres dos jurisconsultos exerceram papel importante na
evolução do direito romano, desde os tempos antigos. As regras consuetudinárias do direito primitivo, bem como as das XII Tábuas e
e outras, todas bastante simples e rígidas, tinham que ser interpretadas
para que pudessem servir às exigências de uma vida social e econômica
cada vez mais evoluída. Essa interpretação, nas origens remotas do
direito romano, estava afeta aos pontífices, que eram chefes religiosos.
Mais tarde, porém, passou a ser obra de juristas leigos (prudentes),
conhecedores do direito. Eles inovavam, criavam novas normas, partindo das existentes: isto por meio dà interpretação extensiva destas.
Por exemplo: as XII Tábuas conheceram uma regra que punia, com
a perda do pátrio poder, o pai de família que vendesse três vezes
o filho. Desta regra, a interpretação jurisprudencial criou o instituto
da emancipação. Para isso, o pai deveria vender, formal e ficticiamente, três vezes seu filho a um amigo de confiança. Este o libertava
imediatamente após cada venda, com o que o filho voltava automaticamente para o poder do pai. Após a terceira venda, porém, o filho
libertado já não retomava à sujeição do pai, cujo poder sobre ele
assim se extinguia.
A interpretatio prudentium, entretanto, não foi enquadrada entre
as fontes do direito na época republicana, que somente conheceu
uma influência de fato dos juristas de renome.
O papel oficial dos juristas na atividade produtora de normas
jurídicas começou com o imperador Augusto (27 a.C. - 14 d.C.), que
conferiu a jurisconsultos mais conhecidos e apreciados o privilégio
de darem pareceres sobre questões de direito. Nesse mistér, eles
podiam agir como expressamente autorizados pelo imperador: ius respondendi ex auctoritate principis. Por isso mesmo, esses pareceres
vinculavam o juiz que decidia a causa, a não ser que houvesse pareceres contraditórios de igual valor. Posteriormente, os pareceres dos
jurisconsultos (responsa), versando sobre a aplicação das regras jurídicas aos mais variados fatos da vida, concorreram para a elaboração
dos princípios fundamentais do direito e representaram, desse modo,
a manifestação mais original do gênio criador dos romanos nesse
campo. Durante o Principado, nos primeiros séculos de nossa era,
uma plêiade de ilustres juristas deu sua contribuição grandiosa à elaboração do direito de Roma.
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS FONTES DO DIREITO
Historicamente considerando, o costume, as leis e os plebiscitos,
com a respectiva interpretação jurisprudencial, representaram as fontes
do direito quiritário (ius civile) na República (510 a.C. - 27 a.C.)
e o edito do pretor, evidentemente influenciado pelos senatus-consultos
antigos, a fonte do direito pretoríano (ius honorarium) na mesma
época.
Essas fontes continuaram formalmente no período do Principado
(27 a.C. - 284 d.C.). Entretanto, decaindo a importância dos comícios legislativos e estratificando-se o edito pretoriano com o Edito
Perpétuo de Sálvio Juliano, a atividade legislativa passou à alçada
do imperador. Ele a exercia, então, pelos senatus-consultos por ele
propostos e simplesmente aclamados pelos senadores. Depois, cada
vez com menor disfarce, o imperador legislava por meio das constituições imperiais, que eram as normas jurídicas por ele expedidas.
Na época pós-clássica, de organização política monárquica absoluta (284 d.C. - 565 d.C.), a única fonte de direito era, praticamente, a vontade do imperador, expressa em suas constituições. O
conjunto de regras de direito por ele editadas chamou-se de leges,
em contraposição ao direito elaborado pelos pareceres dos jurisconsultos da época clássica, cuja importância jurídica e validade os imperadores reconheceram e que se denominou jura. As compilações pósclássicas, culminando com a de Justiniano (527 d.C. 565 d.C.), continham justamente leges e jura. O Código de Justiniano compõe-se das
constituições imperiais. O Digesto é uma coleção de fragmentos das
obras e pareceres dos jurisconsultos clássicos.
CAPÍTULO 3
NORMA JURÍDICA
APLICAÇÃO DA NORMA JURÍDICA
A norma jurídica contém disposições abstratas a serem aplicadas
aos casos concretos que a vida apresenta.
Por isso, sua aplicação pressupõe o conhecimento perfeito, seguro
e completo da norma jurídica abstrata e dos fatos concretos.
A norma jurídica abstrata é de conhecimento do juiz (iura novit
cur ia). Não a conhecendo, deve procurar conhecê-la.
Para esse conhecimento da norma jurídica o aplicador tem de
proceder, de início, a um trabalho de "crítica", para verificar se a
norma é válida e se o texto é autêntico.
Além dessa "crítica externa" da norma jurídica, o aplicador tem
que procurar estabelecer o verdadeiro sentido e alcance de seu texto.
Essa atividade se chama "interpretação" da regra jurídica. Por ela
se efetua a avaliação das palavras do texto da norma para conseguir
obter-se seu significado verdadeiro e certo.
A "interpretação" pode ser autêntica ou doutrinal. A primeira
é a que se faz mediante uma nova norma jurídica expedida pelo órgão
legiferante competente. A segunda, por meio do trabalho dos cultores
do direito. Pode basear-se no exame gramatical, lógico, histórico ou
dogmático-sistemático do texto e de sua origem.
Quanto aos resultados da "interpretação", pode ela simplesmente
confirmar o sentido (interpretatio declarativa), estendê-lo (interpretatio extensiva) ou restringi-lo (interpretatio restrictiva).
A arte de bem interpretar a norma jurídica é a grande virtude do
verdadeiro jurista: conhecer as leis não é considerar seu texto, mas,
sim, sua força e majestade (scire leges non hoc est verba earum
tenere, sed vim ac potest atem) (Celso, D. 1 .3. 17).
Às vezes não bastam os métodos de crítica e interpretação para
o conhecimento do direito aplicável, porque pode acontecer que não
exista preceito abstrato para um determinado caso concreto. Verificando-se tal hipótese, o aplicador do direito tem que suprir a lacuna da
norma jurídica. Essa atividade se chama "analogia": por semelhança,
presume-se a vontade do legislador.
Chama-se analogia legis quando se estende a aplicação de determinada regra a fatos nela não previstos. Chama-se analogia iuris, por
sua vez, o processo de se criar uma nova norma para ser aplicada a
um caso concreto, com base nos princípios gerais do sistema jurídico
vigente.
Voltando, agora, ao segundo aspecto da aplicação da norma jurídica, pode-se dizer que ela pressupõe o conhecimento objetivo dos
fatos em discussão no caso concreto.
Os fatos são comprovados por todos os meios de prova em
direito permitidos, especialmente por documentos, testemunhas, depoimentos das partes, perícias etc.
Entretanto, às vezes, o direito se contenta com um acontecimento provável, mas não provado, dos fatos e, até, com fatos inverídicos.
No primeiro caso fala-se da presunção e no segundo, da ficção.
Presunção (praesumptio) é a aceitação como verdadeiro de um
fato provável. Aceitação com base numa simples alegação, sem necessidade de prova do fato. Por exemplo, a legitimidade do filho é presumida quando é ele nascido entre 180 e 300 dias depois da convivência
conjugal.
Normalmente a presunção não é absoluta; quer dizer, o contrário
pode ser provado. Em tal hipótese falamos da presunção simples
(praesuniptio iuris tantum), pois, no exemplo, pode o marido apresentar contraprova.
Às vezes, porém, a contraprova não é permitida. É o caso da
presunção de direito (praesumptio iuris et de iure). Por exemplo: a
verdade da coisa julgada ou a presunção de se considerar ilegítimo o
filho nascido além de 300 dias após a dissolução da sociedade conjugal pela morte do pai.
Note-se que, na realidade, a presunção simples (praesumptio
iuris) nada mais é que a inversão do ônus da prova: aceita-se uma
situação provável como verdadeira, dispensando-se a comprovação.
Daí decorre que cabe à parte interessada a produção de prova contrária para derrubar a presunção.
A ficção é diferente da presunção, pois nela o direito considera
verdadeiro um fato inverídico: fecha conscientemente os olhos diante
da realidade. Assim era, no direito romano, a ficção de considerar o
nascituro como já nascido, sempre que se tratava de seus interesses
(nasciturus pro iam nato habetur, quotiens de commodis ipsius partus
agatur) ou a fictio legis Corneliae, que considerava o cidadão romano
que caía prisioneiro do inimigo e em seu poder falecia como tendo
morrido antes de ser capturado.
EFICÁCIA DA NORMA JURÍDICA
NO TEMPO E NO ESPAÇO
O direito romano destinava-se aos cidadãos romanos, pois ele
se baseava no princípio da personalidade, em contraposição ao do
território, pelo qual o direito se aplica a todos os que residem no
respectivo território. Note-se; entretanto, que os estrangeiros também
podiam estar em relações jurídicas com cidadãos romanos, ou entre
si, no território romano, caso em que o direito a eles aplicável seria
o ius gentium.
A eficácia da regra jurídica se inicia comumente com a promulgação, a não ser que ela disponha diferentemente a respeito da data
em que deva entrar em vigor.
A regra geral no direito romano era a da irretroatividade da
norma jurídica, que assim se aplicava apenas aos acontecimentos e
fatos posteriores à sua entrada em vigor (C. 1.14.7). Esse princípio
não era, contudo, absoluto. Admitia-se, também, a possibilidade de
ter a norma efeito retroativo, desde que o legislador assim o quisesse.
Entretanto, os casos já findos, com sentença ou por acordo entre as
partes, não podiam estar sujeitos a normas retroativas, pois nessas
hipóteses a lei que retroagisse estaria ferindo direitos adquiridos
(C.
1.17.2.23).
A regra jurídica em vigor é aplicável a todos. A ignorância dela
não isenta ninguém de suas sanções: iuris ignorantiam cuique nocere
(D. 22.6.9. pr.). Não se aplicava, porém, essa norma rigorosa, no
direito romano, aos menores de 25 anos, às mulheres, aos soldados
e aos camponeses (rustici).
A norma jurídica deixa de produzir seus efeitos quando termina
sua vigência, se o prazo estiver nela estipulado. Não havendo estipulação de prazo, revoga-se a norma por uma que lhe seja contrária:
lex posterior revocat priori. A revogação pode dar-se também pelo
costume: quer por regra contrária por ele introduzida, quer pela
simples inaplicação constante da norma (desuetudo). Esta última
forma foi a característica da evolução do direito em Roma. As regras
antiquadas, caindo em desuso, eram praticamente abolidas, ainda que
não expressamente.
CAPÍTULO 4
DIREITO SUBJETIVO
CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO
Direito, no sentido subjetivo, significa a facultas agendi, que
é um poder de exigir determinado comportamento de outrem, poder esse conferido pela norma jurídica. Assim, o direito subjetivo
é o lado ativo de uma relação jurídica, cujo lado passivo é a obrigação. Por exemplo, a regra que responsabiliza o vendedor pelos
vícios ocultos da coisa vendida é um direito no sentido objetivo. O
direito de pedir rescisão da venda pelo vício descoberto na coisa
recém-comprada é um direito subjetivo do comprador.
Os direitos subjetivos, por sua vez, não têm todos as mesmas
características. Conforme o tipo do poder que representam e, por
outro lado, de acordo com a obrigação que geram, podem ser classificados. E, com essa classificação, na realidade, fazemos a divisão
da matéria do direito privado romano em conformidade com os conceitos da dogmática moderna e traçamos os planos de nosso estudo.
Em grandes linhas, os direitos subjetivos (e obrigações) são de
dois tipos, decorrentes de relações familiares ou patrimoniais. Os
primeiros incluem os relativos ao casamento, ao pátrio poder e à
tutela e curatela.
Os direitos subjetivos (e obrigações) patrimoniais dividem-se
em dois grupos: os direitos reais e as obrigações.
Os direitos reais são direitos que conferem um poder absoluto
sobre as coisas do mundo externo. Sua característica essencial é
valerem erga omnes: "contra todos". O comportamento alheio que
o titular do direito subjetivo pode exigir é o de todos, que são obrigados a respeitar o exercício de seu direito (poder) absoluto sobre
a coisa.
Os direitos obrigacionais, por sua vez, existem tão-somente
entre pessoas determinadas e vinculam uma (o devedor) à outra (o
credor).
Por exemplo, o proprietário tem um direito real sobre o prédio
em que mora. Todos devem respeitá-lo. Por outro lado, o locatário de
um prédio só tem direito obrigacional contra a pessoa que o alugou
a ele. Pode exigir dele que o deixe morar no prédio, mas não tem
direito nenhum contra outros, entre os quais pode estar o verdadeiro
proprietário também.
Naturalmente, há direitos patrimoniais relacionados com os de
família ou deles decorrentes.
As relações e modificações patrimoniais decorrentes do falecimento de uma pessoa, intimamente ligadas também ao direito de
família, são tratadas pelo direito das sucessões.
O nosso plano é tratar desses direitos, iniciando pelo estudo dos
direitos patrimoniais, por razões didáticas, e continuando com os de
família e das sucessões.
Antes de examiná-los, porém, é necessário explicar os conceitos
e princípios gerais de nossa ciência, cujo conhecimento é pressuposto
necessário para o bom entendimento da matéria. Assim, estudaremos,
como parte geral introdutória, o sujeito de direito, depois os objetos
de relações jurídicas e, ainda, os fatos jurídicos, que criam, modificam ou extinguem direitos subjetivos.
A defesa dos direitos subjetivos, que é feita pelo processo, não
será tratada expressamente, mas seus princípios gerais serão mencionados sempre que necessários ou úteis para a melhor compreensão
do assunto.
CAPÍTULO 5
SUJEITOS DE DIREITO
São as pessoas que possam ter relações jurídicas e, portanto,
direitos subjetivos, tanto do lado ativo (poder de exigir o comportamento de outrem), como do lado passivo (obrigação ao referido comportamento nessa relação).
Pessoa natural é a pessoa humana. O direito, contudo, reconhece
também personalidade, isto é, a qualidade de sujeito de direito, a
entidades artificiais, que são chamadas pessoas jurídicas.
PESSOA FÍSICA
A pessoa natural, também chamada pessoa física, é o homem.
Sua existência se inicia com o nascimento.
O nascituro não é ainda pessoa, mas é protegido desde a concepção e durante toda a gestação, que o direito presume durar o prazo
mínimo de 180 dias e o máximo de 300 dias (praesumptio iuris et
de jure). Já o direito romano conheceu essa proteção: considerava o
nascituro como já nascido (ficção), para fins de reservar-lhe vantagens: nasciturus pro iam nato habetur, quotiens de commodis ipsius
partus agatur (cf. Gai. 1.147 e D. 1.5.7).
O feto tem que nascer com vida e com forma perfeita. Não
é pessoa o nati-morto. Por isso havia discussões entre os jurisconsultos
romanos sobre o que significava sinal de vida do parto: seriam necessários vagidos ou bastariam quaisquer movimentos do corpo? O
aborto e o monstro não eram considerados pessoas para fins de direito.
Extingue-se a pessoa física com a morte do indivíduo. Sua verificação não dependia de formalidades no direito romano, que não conhecia o registro civil como nossa época. Desconhecia, também, o
direito romano, a declaração e a presunção de morte pelo desaparecimento durante longo tempo. Quem tivesse interesse relacionado com
o falecimento de alguma pessoa teria que produzir a respectiva prova.
No direito justinianeu estabeleceram-se regras para o caso de
várias pessoas, principalmente da mesma família, perecerem em um
mesmo acidente. Presumia-se que o filho impúbere morrera antes do
pai e o filho púbere depois (D. 34.5.9, D. h.t. 23). Essa presunção
era simples (praesumptio iuris tantum), admitindo prova em contrário.
CAPACIDADE JURÍDICA DE GOZO
Capacidade jurídica de gozo, também chamada capacidade de
direito, significa a aptidão do homem para ser sujeito de direitos e
obrigações. Modernamente todo homem tem capacidade de direito,
desde o nascimento. Não era assim no direito romano, pois nele se
distinguiam diversas categorias de homens.
Para ter a completa capacidade jurídica de gozo, isto é, para
ter a idoneidade de ter direitos e obrigações, era necessário, no di-
reito romano, que a pessoa fosse: 1.o) livre; 2.o) cidadão romano; e
3.o) independente do pátrio poder (sui iuris, paterfamilias).
Verifiquemos, pois, esses três requisitos, examinando a liberdade
(status libertatis), a cidadania (status civitatis) e a situação familiar
(status familiae), pressupostos da capacidade jurídica de gozo em
Roma.
Liberdade (Status libertatis)
Os homens podiam ser livres ou escravos, conforme as regras
do direito romano.
Eram livres aqueles que não eram escravos. Esses últimos não
podiam ser sujeitos de direito; eram apenas objeto de relações jurídicas. Não podiam ter direitos ou obrigações, nem, tampouco, relações familiares no campo do direito.
A escravidão era um instituto reconhecido por todos os povos
da antiguidade. Sua origem vem da guerra: os inimigos capturados
passavam a ser escravos dos vencedores. Mas não só os prisioneiros
de guerra. Todos os estrangeiros que pertencessem a um país que não
fosse reconhecido por Roma, ainda que não estivesse em estado de
guerra, eram considerados escravos, se caíssem no poder dos romanos.
O mesmo se dava com o romano que caísse em mãos do inimigo. Mas
o cidadão romano que se tornava prisioneiro de guerra do inimigo, ao
voltar à pátria, recuperava automaticamente a liberdade e todos os
direitos que tinha antes de ser capturado (D. 49.15.5.2, D. 41.1.7 pr.).
Isso se chamava ius postliminii.
Outra fonte da escravidão era o nascimento. Era escravo o filho
de escrava, independentemente da classe social do pai (livre ou escravo). Foi somente o direito justinianeu que concedeu o favor da liberdade ao filho de escrava que tivesse estado em liberdade em qualquer
momento da gestação. Isso com base na ficção estabelecida pela
regra já mencionada, isto é, a de que o nascituro era considerado como já nascido (Inst. 1.4 pr., D. 1.5.5.2).
Havia outras fontes da escravidão, porém de menor importância.
Assim é que alguém podia ser reduzido à condição de escravo a
título de pena, ou por insolvência. O mesmo acontecia no direito
antigo com o filiusfamilias vendido pelo pai fora dos limites da cidade
de Roma. O direito clássico considerou os filhos assim vendidos pelo
pai não mais como escravos, mas sim em situação especial (in causa
mancipii). Posteriormente, Justiniano aboliu o instituto por completo.
Quanto ao conteúdo da escravidão, escravo não podia ser sujeito de direitos, por lhe faltar a capacidade jurídica de gozo. Não
podia ter direitos privados nem públicos. Sua união conjugal (contubernium) não era casamento no sentido jurídico romano. Não havia,
assim, entre ele, a mulher e os filhos, relações de parentesco, para
fins de sucessão e outros. Não tinha patrimônio e tudo que adquiria
pertencia ao dono (Gai. 1.52). Este tinha sobre ele poderes tão
amplos como sobre as demais coisas de sua propriedade. Podia alienálo; em princípio, até matá-lo. Entretanto, mesmo assim, a condição
humana do escravo o distinguia da das outras coisas do patrimônio
do dono. O direito romano reconheceu sempre a personalidade humana
do escravo (persona servilis). Ele também participava, desde as origens, do culto religioso da família. Seu túmulo era lugar sagrado, à
semelhança do dos livres. Matar um escravo era crime, a que, já na
República, correspondia a pena pública do homicídio, pela lex Comelia de sicariis. No período imperial, ao dono foi proibido seviciar os
escravos. Podiam estes impetrar a proteção dos magistrados (Gai:
1.53). Do ponto de vista patrimonial, verificou-se, também, uma evolução favorável ao escravo. Já na República o escravo podia possuir
um pequeno pecúlio, cedido pelo seu dono, que ele geria livremente.
Legalmente o pecúlio continuava a pertencer ao dono, mas na prática
estava sendo administrado pelo escravo, como se fosse dele.
A condição de escravo era permanente. O escravo sem dono,
por qualquer razão que fosse (por exemplo, por ter sido abandonado),
não se tomava livre. Continuava escravo, escravo sem dono (mes
nullius).
A atribuição da liberdade ao escravo fazia-se, ordinariamente,
por meio de um ato voluntário do dono e se chamava manumissão.
Havia, contudo, a possibilidade de o escravo obter a liberdade por
direta disposição de lei.
O direito quiritário (ius civile) conheceu três formas de manumissão, pelas quais o dono conferia a liberdade a seu escravo: a manumissio vindicta, a manumissio censu e a manumissio testamento.
A manumissio vindicta nada mais era que a utilização do processo judicial em que se discutia a questão de liberdade. É muito
instrutivo examinar em que este consistia.
O problema vital da liberdade de uma pessoa era objeto de um
processo, que se chamava vindicatio in libertatem ou vindicatio in
servitutem, conforme se visasse a declaração da liberdade de uma
pessoa que servia como escravo, ou da condição de escrava de uma
pessoa que vivesse como livre. Para isso era necessário que a pessoa,
de cuja liberdade se tratasse, fosse defendida por um terceiro, cidadão
romano, capaz, chamado defensor da liberdade (adsertor libertatis).
Assim, as partes no processo eram o dono (que alegava ser escrava
a pessoa envolvida) e o defensor da liberdade desta. A questão era
resolvida pelo juiz a quem o pretor remetia o caso para decisão.
Na manumissio vindicta o dono utilizava esse processo. Pedia
a um amigo que intentasse uma vindicatio in libertatem perante o
pretor, como defensor da liberdade. Quando o defensor declarava sua
fórmula, alegando que o escravo era livre: Hunc ego hominem ex iure
Quiritum liberum esse aio, tocava-o ao mesmo tempo com a vindicta
(varinha), sinal do poder. O dono não contestava e o silêncio dele
era tido, processualmente, como confissão ou admissão da veracidade
das alegações da outra parte. Em face disto, o pretor declarava livre
o escravo, sem remeter o caso ao juiz para ulteriores averiguações e
decisão final.
Posteriormente, as formalidades tão complicadas da manumissio
vindicta foram simplificadas, passando ela a ser uma declaração simples mas solene do dono perante o pretor e pela qual se conferia a
liberdade ao escravo (Gai. 1.20, D. 40.2.23).
A manumissio testamento, ou alforria testamentária, já era conhecida pelas XII Tábuas. O testador podia determinar no seu testamento que, com sua morte, o escravo fosse livre: Stichus servus meus
liber esto (Gai. 2.267).
A manumissio censu processava-se mediante a inscrição, com
autorização do dono, do nome do escravo na lista dos cidadãos livres
da cidade. A lista era elaborada pelos censores a cada cinco anos.
Além desses modos de alforria do direito quiritário, o pretor
reconhecia outros, sem solenidades. Tais eram a alforria feita perante
testemunhas (manumissio inter amicos), por escrito (per epistulam),
fazendo-se sentar o escravo à mesa (per mensam), colocando-se-lhe o
chapéu (per pileum). Tais modos também conferiam a liberdade.
Mas enquanto a alforria, realizada por um dos modos do direito
quiritário e praticada pelo dono ex jure Quiritum, sem contrariar as
restrições legais impostas ao direito de manumitir, conferia, além da
liberdade, também a cidadania romana, a alforria pretoriana colocava
o escravo libertado numa situação inferior. Neste caso, o liberto passava a ter a posição de latino, por força da lei Junia Norbana (19
d.C.), sendo chamado latino Juniano.
A legislação de Augusto introduziu reformas em matéria de
alforria, restringindo-a consideravelmente. A lex Fufia Caninia (2
a.C.) limitou o número dos que podiam ser alforriados em proporção
com o total dos escravos pertencentes ao dono (Gai. 1.42-43). A lex
Aelia Sentia (4 d.C.) foi além: restringiu o direito de alforria, condicionando-o a uma certa idade do dono e dos escravos, declarando,
por outro lado, nulas as manumissões praticadas em prejuízo dos
credores do dono (Gai. 1.18 e 37).
O escravo libertado se chamava liberto (libertinus ou libertus).
Seus direitos políticos eram limitados. No campo do direito privado,
encontrava-se sob o patronato do ex-dono. O patronato implicava
uma relação de interdependência entre o ex-dono, patrono, e o escravo, alforriado, liberto e até uma espécie de sujeição deste àquele.
Do patronato decorriam direitos e obrigações recíprocas, mas
nem sempre equivalentes, entre as duas partes. Essa relação de patronato subsistiria enquanto o liberto vivesse, não se transmitindo, porem, aos seus herdeiros. Por parte do patrono, entretanto, a relação
passava aos filhos, no caso de ele morrer antes do liberto.
Quanto ao conteúdo do patronato, incluía ele, primacialmente
o dever recíproco de prestar alimentos no caso de necessidade. O
liberto passava a ter o nome do patrono e devia a ele respeito e reverência contínua (obre quium). Por isso, era-lhe proibido intentar ações
criminais ou infamantes contra o patrono. E a propositura de qualquer outra ação contra ele exigia a autorização prévia do magistrado.
Além disso, o liberto devia certos serviços ao seu patrono (operae).
Finalmente, o patrono tinha um direito de sucessão legítima (bona)
nos bens do liberto, visto que o liberto não tinha legalmente nem
ascendentes nem parentes colaterais. O pretor garantia ao patrono a
metade da herança do liberto que morresse sem deixar filhos ou que
os deserdasse em vida. Essa metade da herança cabia ao patrono,
mesmo contra outros herdeiros estranhos, nomeados em testamento
pelo liberto.
Com o favor imperial chamado natalium restitutio (D. 40.11.1),
cessam totalmente os direitos do patronato e o liberto adquire, retroativamente, a posição de um ingênuo, pessoa nascida livre, que nunca
foi escrava. O ius aurei anuli era outro favor, também conferido pelo
imperador, e pelo qual se eliminavam as restrições político-sociais
impostas aos libertos, como as de não poderem ser magistrados, não
poderem ser nomeados senadores, não poderem servir nas legiões do
exército. Do ponto de vista dos direitos privados, o ius aurei anuli
eliminava o impedimento matrimonial entre liberto e pessoa de classe
senatorial, mas não extinguia os direitos do patronato. Com ele o
liberto passava a ser um quase ingênuo.
Ficavam livres por lei, a título de punição do dono (edictum
Claudii, D. 40.8.2), os escravos velhos e doentes por ele expostos;
a título de recompensa, o escravo que delatasse o assassino de seu
amo (senatusconsultum Silanianum, 10 d.C.). Também ficavam livres
por lei os escravos que vivessem em liberdade por mais de 20 anos.
Os ingênuos são os nascidos livres e que nunca deixaram de o
ser, desde o nascimento. Não sofrem, destarte, nenhuma restrição
decorrente de seu estado de liberdade.
Cidadania (Status civitatis)
Em princípio, o direito romano, tanto público como privado,
valia só para os cidadãos romanos (Quirites).
Os estrangeiros (peregrini) não tinham a capacidade jurídica
de gozo no concernente aos direitos e obrigações do ius civile. Entretanto, a eles se aplicavam as regras do ius gentium. O estrangeiro
podia adquirir propriedades pelo direito dele, mesmo em Roma. Também podia fazer testamento, conforme as regras de sua cidade. Somente os peregrini dediticii, os inimigos vencidos, cujo direito e independência política não foram reconhecidos pelos romanos, estavam
privados do uso de seu direito de origem. Eles se sujeitavam pura e
exclusivamente às regras do ius gentium romano.
Entre os estrangeiros, os latinos tinham uma posição especial.
Os latinos, vizinhos de Roma (latini prisci), tinham capacidade jurídica de gozo semelhante à dos cidadãos romanos. Tinham o direito
de votar nos comícios (ius suffragii), quando se encontravam em Roma, e podiam comerciar e contrair matrimônio: ius commercii e ius
conubii. Com a extensão da cidadania romana a toda a Itália, em 89
a.C., essa categoria de latinos deixou de existir. Como segunda categoria, porém, aparece a dos latini coloniarii, que eram os cidadãos
das colônias fundadas por Roma e às quais fora dado o ius Latii.
Estes gozavam da capacidade de ter os direitos privados (ius commercii e ius conubii), mas não os públicos (ius suffragii e ius honorum). Essa categoria, também, desapareceu com a extensão da cidadania a todos os habitantes livres do império, por Caracalla, em 212
d.C. (constitutio Antoniniana). Uma terceira categoria de latinos existiu desde a lei Junia Norbana (19 d.C.) e sobreviveu às demais. Como
foi mencionado, os escravos alforriados pelos modos pretorianos ou
mesmo contra as disposições restritivas das leis de Augusto, adquiriram a posição de latinos e não a de cidadãos romanos. Sua capacidade jurídica de gozo era mais restrita que a dos pertencentes as
outras categorias de latinos. Só tinham, os latini Juniani, o ius commercii inter vivos, o direito de serem sujeitos de relações patrimoniais
entre vivos. Não podiam eles, pois, casar pelo ius civile, nem fazer
testamento ou herdar. Diz-se que "viviam como livres, mas morriam
como escravos" (Salvianus, adv. avar. 3.7). Por falecimento do latinus
Junianus, seu patrimônio era devolvido ao patrono iure peculii, isto
é, não a título de sucessão, mas como devolução ao próprio dono.
A cidadania romana adquiria-se por nascimento de justas núpcias
ou mesmo fora delas, se a mãe fosse cidadã no momento do parto.
Os filhos nascidos de matrimônio misto (isto é, em que um dos cônjuges fosse estrangeiro) seguiam a condição de estrangeiro, de acordo
com as disposições da lei Minicia (Gai. 1.78).
Adquiria-se a cidadania também pela alforria quiritária, como
já foi explicado. Além disso, a cidadania podia ser conferida pelos
comícios por determinação dos magistrados e, mais tarde, pelos imperadores. A concessão podia ser feita a estrangeiro, quer em caráter
individual, quer como medida de ordem geral. Por exemplo, a extensão da cidadania a toda Itália em 89 a.C. e a todos os habitantes
livres do império em 212 d.C.
O cidadão romano, desde que preenchesse também o requisito
da independência do poder familiar, tinha plena capacidade jurídica
de gozo. Assim, ele podia ter a totalidade dos direitos públicos e privados e as obrigações respectivas.
Perdia-se a cidadania pela perda da liberdade. Podia-se, contudo, perder a cidadania sem a perda da liberdade, como no caso do
exílio, da deportação, da renúncia.
Situação familiar (Status familiae)
Para ter a completa capacidade jurídica de gozo, era preciso que
o sujeito, além de ser livre e cidadão romano, fosse também independente do pátrio poder. A organização familiar romana distinguia
entre pessoas sui íuris (paterfamilias), independentes do pátrio poder,
e pessoas alieni iuris, sujeitas ao poder de um paterfamilias. A independência do pátrio poder não tinha relação com a idade. Um recémnascido, não tendo ascendente masculino, era independente do pátrio
poder, ao passo que um cidadão de 70 anos, com o pai ainda vivo,
era alieni iuris, isto é, sujeito, na qualidade de filiusfamilias, ao poder de seu pai.
Os alieni iuris não eram absolutamente incapazes. Tinham plena
capacidade no campo dos direitos públicos: podiam votar e ser votados para as magistraturas (ius suffragii e ius honorum) e, também,
servir nas legiões. No campo dos direitos privados podiam casar-se
(ius conubii), desde que obtivessem consentimento do paterfamilias,
que, aliás, exercia o pátrio poder também sobre os netos. Nas relações
patrimoniais, tudo o que o alieni iuris adquirisse, adquiria para o
paterfamilias; nas obrigações assumidas pelos alieni iuris a situação
era diferente: o paterfamilias somente respondia excepcionalmente por
elas. A evolução do direito romano se caracterizou pela responsabilização sempre crescente do paterfamilias no respeitante às obrigações
contraídas pelos seus familiares. Por outro lado, foi conferida cada
vez maior independência patrimonial aos alieni iuris por meio do
desenvolvimento do instituto do pecúlio (peculium). Este era uma
parte do patrimônio da família, entregue à administração direta dos
alieni iuris.
"CAPITIS DEMINUTIO"
A situação da pessoa, quanto à capacidade jurídica de gozo,
era determinada pelos três estados: o de liberdade, o de cidadania
e o de família. Mudando-se qualquer um desses requisitos, mudavase a situação jurídica da pessoa também, mudança essa que se chamava capitis deminutio. Embora representasse principalmente a perda
de determinados direitos (sendo equiparada à morte civil, cf. Gai.
3.153), a idéia básica da capitis deminutio não é essa, mas a de-extinção da personalidade do ponto de vista jurídico, para ser substituída
por uma nova. Isso podia significar, também, uma mudança para
melhor, como a passagem da situação de alieni iuris para sui iuris.
Assim, pode-se falar de capitis deminutio no caso da emancipação.
Tendo em vista os três estados (liberdade, cidadania, família),
requisitos da capacidade jurídica de gozo, três podiam ser as alterações sofridas por capitis deminutio: 1 .a) a perda da liberdade, que
acarretava a capitis deminutio maxima; 2.a) a da cidadania, a média;
e 3.a) a mudança no estado familiar, a capitis deminutio mínima.
A perda da liberdade verificava-se quando o cidadão romano
caía prisioneiro do inimigo, servus hostium (Gai. 1.129). Embora tivesse perdido o prisioneiro sua capacidade de ter direitos e obrigações,
enquanto ele ficasse em poder do inimigo, sua situação era a de
pendência, pois, pelo ius postliminii, quando ele voltasse a Roma,
recuperaria todos os direitos que anteriormente tivesse, como se nunca
os houvesse perdido. Note-se, entretanto, que o ius postliminii se aplicava tão-somente aos direitos e não às situações de fato. Estas últimas
tinham que ser restabelecidas. Essa distinção terá sua aplicação com
relação ao matrimônio e à posse.
Por outro lado, se o prisioneiro morresse nas mãos do inimigo,
pela ficção introduzida pela lei Cornelia (fictio legis Corneliae), ele
seria considerado como falecido antes de ter caído prisioneiro, isto
é, como falecido no estado de livre. Isso para o efeito de abertura da
sucessão por sua morte.É que não se podia abrir sucessão de pessoa
morta na condição de escravo, tornando ineficaz o testamento eventualmente deixado por ela (testamentum irritum factum).
Perdia-se, também, a liberdade a título de punição, como, por
exemplo, no caso do ladrão colhido em flagrante (fur manifestus).
No direito arcaico, o devedor executado, que não conseguisse pagar
sua dívida, também podia ser vendido como escravo, fora de Roma
(trans Tiberim).
A perda da liberdade acarretava a perda da cidadania e da situação na família romana também, pois a liberdade era pressuposto
da cidadania e do status familiae.
Na capitis deminutio media, o cidadão passava à condição de
estrangeiro pelo exílio voluntário ou pelo imposto por punição (interdictio aqua et igni). A pena de deportação foi instituída por Tibério
(14-37 d.C.). Podia alguém voluntariamente transferir-se para uma
colônia latina. Era renúncia à cidadania romana, que representava
capitis deminutio media também (cf. Gai. 1.131).
A alteração no estado familiar representava a capitis deminutio
minima. Nesse caso o capite deminutus (quem sofreu a mudança)
perde todas as relações jurídicas (mas não as de consangüinidade)
com a família anterior, adquirindo novo estado familiar. Pode-se verificar pela passagem de uma pessoa alieni iuris de sua família de origem para uma nova família (adoção ou conventio in manum) ou para
o estado de sui iuris (emancipação). Vice-versa, um sui iuris podia
passar à sujeição, na qualidade de alieni iuris, na família do adrogator
(espécie de adoção).
OUTRAS CAUSAS RESTRITIVAS DA CAPACIDADE
Havia outras circunstâncias que tinham influência na capacidade
jurídica de gozo.
As mulheres não tinham capacidade para direitos públicos e
sofriam restrições no âmbito do direito privado também. A mulher
não tinha direito ao pátrio poder, nem à tutela, e não podia participar dos atos solenes na qualidade de testemunha.
Restringiam a capacidade jurídica de gozo a intestabilitas, a
infamia e a turpitudo, que eram penalidades impostas em conseqüência de atos ilícitos, penalidades que importavam na falta de honorabilidade.
A religião também, com os impedimentos matrimoniais, incapacidade de testar e de herdar, podia ser fator que concorresse para certas
restrições da capacidade jurídica.
PESSOA JURÍDICA
Como já mencionamos, além da pessoa física, o direito reconhece personalidade também às pessoas chamadas jurídicas ou morais, que são entidades artificiais.
Trata-se de organizações destinadas a uma finalidade duradoura, que são consideradas sujeitos de direito, isto é, com capacidade de
ter direitos e obrigações.
Pela doutrina moderna, a pessoa jurídica pode ser de duas espécies: corporação (universitas personarum), que é a associação de pessoas, e fundação (universitas rerum), que é um conjunto de bens,
destinados a uma determinada finalidade.
Parece que o direito romano clássico somente conheceu as corporações. As origens das fundações, nós as encontramos somente no
direito pós-clássico.
A característica essencial das pessoas jurídicas é terem elas personalidades distintas da de seus componentes, bem como terem patrimônio e relações de direito distintas das de seus membros: Si quid
universitati debetur, singulis non debetur, nec quod debet universitas,
singuli debent (D. 3.4.7.1).
No direito romano, as corporações incluíam o Estado Romano
(populus Romanus) e seu erário, as organizações municipais e as
colônias, todas estas predominantemente de caráter público. Além
delas, havia associações de caráter privado, chamadas sodalitates,
collegia e societates, que tinham fins religiosos, como os colégios de
sacerdotes da era pagã, ou fins econômicos, como as corporações
profissionais de artesãos, as de comércio e as sociedades dos coletores de impostos e também as associações visando a garantir funerais decentes a seus membros.
As fundações começaram a surgir somente na época cristã. Considerou-se, então, como sendo sujeito de direito um determinado patrimônio, vinculado a certas finalidades, especialmente para fins de
beneficência ou fins religiosos (piae causae). O ato constitutivo, prevendo a finalidade e regulando a sua organização interna, bastava
para constituir a fundação.
Quanto às corporações privadas, exigia-se para seu funcionamento autorização do senado e, posteriormente, do imperador.
Para sua constituição, era necessário o mínimo de três membros
(tres faciunt collegium, D. 50.16.85).
Tais corporações eram reguladas pelos seus estatutos (lex collegii), que tinham que determinar, além do fim social, também os órgãos
representativos (actores, syndici) da pessoa jurídica.
O nascimento e extinção das corporações públicas não interessam
ao direito privado.
Extinguia-se a pessoa jurídica quando sua finalidade era preenchida ou quando o senado, e mais tarde o imperador, revogava a
respectiva autorização para funcionar. Nas corporações privadas, motivo de extinção era o desaparecimento de todos os seus membros. A
fundação extinguia-se pela perda da totalidade do patrimônio.
CAPÍTULO 6
OBJETOS DE DIREITO
CONCEITO
Coisa é um termo de significado muito amplo. Usa-se para designar todo e qualquer objeto do nosso pensamento. Isto significa
que a noção vulgar de coisa vale tanto para o que existe no mundo
das idéias, como no da realidade sensível.
Na linguagem jurídica, porém, coisa (res) é o objeto de relações
jurídicas que tenha valor econômico. Não o é, portanto, aquilo que
não possa ser objeto de tais relações. Assim, não é res o corpo celestial. Podem sê-lo, contudo, no direito moderno, certas idéias que representem valor econômico: patentes de invenção, obras de arte, direitos
autorais.
Os romanos faziam distinção entre coisas em comércio (res in
commercio) e fora dele (res extra commercium). As primeiras eram
equelas que podiam ser apropriadas por particulares. As segundas
não podiam ser objeto de relações jurídicas entre particulares pela
sua natureza física ou por sua destinação jurídica. Assim, estavam
excluídas do comércio as coisas dedicadas aos deuses, res extra commerciunz divini iuris, e outras por razões profanas, res extra commercium humani iuris. Na primeira categoria encontramos as coisas sagradas, dedicadas diretamente ao culto religioso, como os templos
(res sacrae), as coisas santas (res sanctae), que eram as consideradas
sob a proteção dos deuses, como as portas e os muros da cidade, e as
coisas religiosas (res religiosae), que eram os túmulos. Por razões de
ordem profana, eram consideradas fora do comércio (res extra commercium humani iuris) as coisas comuns a todos (res communes
omnium), isto é, as indispensáveis à vida coletiva ou a ela úteis, como
o ar, a água corrente, o mar e as praias. Além dessas eram consideradas fora do comércio as coisas públicas, pertencentes ao povo romano (res publicae), como as estradas e o Fórum.
Res in commercio podiam realmente estar no patrimônio de
alguém, ou encontrar-se fora de qualquer relação patrimonial. As expressões romanas res in patrimOnio e res extra patrimonium são usadas nas fontes em dois sentidos: às vezes indicam a mesma distinção
que já fizemos entre coisas in commercio, suscetíveis de serem objeto
de relações jurídicas, e coisas extra commercium; outras vezes servem para distinguir aquelas que se situam efetivamente no patrimônio de alguém ou fora dele. Por razões didáticas, preferimos a segunda interpretação.
Portanto, as coisas extra patrimonium eram as que, em dado
momento, não se encontravam no patrimônio de ninguém, mas que
poderiam ser apropriadas. Assim, as res nullius (coisas sem dono), as
res hostium (coisas dos inimigos de Roma).
No que se refere às coisas in commercio e ao mesmo tempo in
patrimonio, há várias outras classificações que até hoje sobrevivem,
feitas pelos romanos.
COISAS CORPÓREAS E INCORPÓREAS
Já Gaio (2.12-14) distingue entre as coisas corpóreas e incorpóreas (res corporales et incorporales). A diferença para ele reside
na tangibilidade, sendo corpóreas aquelas que podem ser tocadas e
existem corporeamente. As outras, isto é, as incorpóreas, somente
existem intelectualmente. A mesma distinção foi conhecida por Cícero (Top. 5.27) e Sêneca (Ep. ad Luc. 58.14), além de outros. Na
realidade, essa classificação jurídica servia para distinguir entre coisas e direitos, pois as primeiras são corpóreas e os segundos incorpóreos.
"RES MANCIPI ET RES NEC MANCIPI"
A distinção entre res mancipi e res nec mancipi tem bases históricas. As primeiras, para se lhes transferir a respectiva propriedade,
requeriam a prática das formalidades da mancipatio, ato solene do
direito arcaico. As segundas podiam ser transferidas pela simples entrega, sem formalidades (traditio).
Faziam parte da categoria das res mancipi os terrenos itálicos
(não os provinciais), os animais de tiro e carga (como o cavalo, a
vaca, o burro), os escravos e as quatro servidões prediais rústicas
mais antigas, que eram via, iter, actus e aquaeductus. As demais coisas
eram nec mancipi.
COISAS MÓVEIS E IMÓVEIS
O terreno e o que estivesse definitivamente ligado a ele distinguiam-se das coisas transportáveis e semoventes. Já as XII Tábuas
(450 a.C.) conheceram essa distinção ao estabelecer prazo diferente para o usucapião delas. A terminologia coisas imóveis e móveis (res immobiles et res mobiles) é mais recente. Ela data do período pós-clássico,
quando modos especiais de aquisição de propriedade foram exigidos
para as primeiras.
COISAS FUNGÍVEIS E INFUNGÍVEIS (NÃO-FUNGÍVEIS)
O termo "fungível" não é romano. Foi criado no século XVI por
Úlrico Zásio, com base na definição romana de Paulo, que procurava
precisar o princípio da substituibilidade das coisas: res quae in genere
suo functionem recipiunt (D. 12.1.2.1) (coisas cuja função consiste
em serem determinadas pelo seu gânero).
Fungíveis são as coisas substituíveis por outras do mesmo genero,
qualidade e quantidade. Aparecem normalmente no comércio como
determinadas apenas pela sua quantidade, peso e medida: quae pondere numero mensura constant (Gai. 2. 196). São elas caracterizadas
por pertencerem a um genero extenso, para o qual a individualidade
de cada unidade componente não tem relevância jurídica. Por isso
são coisas facilmente substituíveis entre si. Assim, o arroz, a farinha,
o metal. Infungíveis são as coisas especificamente consideradas, cujas
características individuais impedem sejam substituídas por outras do
mesmo gênero. Assim um quadro, uma estátua.
COISAS CONSUMÍVEIS E INCONSUMÍVEIS
Há coisas que podem ser usadas uma só vez e outras que permitem uso repetido. As primeiras se exaurem com o seu uso normal
e são chamadas coisas consumíveis (quae usu consumuntur), porque
quem as usou fica privado de utilizá-las mais de uma vez. É o caso
dos alimentos e das bebidas, que desaparecem com o uso normal; do
dinheiro, que se gasta. Inconsumíveis são as coisas suscetíveis de utilização constante, sem que sejam destruídas. Conservam, assim, mesmo quando usadas, sua utilidade econômico-social anterior. Exemplo:
um quadro, uma estátua, um vestido, um carro.
Entre as coisas inconsumíveis, os romanos da época pós-clássica
propuseram uma subclassificação, distinguindo as coisas realmente
inconsumíveis das que perdem lentamente seu valor pelo uso repetido:
quae usu minuuntur (D. 75. ruhr.). Assim, um vestido, um carro, em
contraposição a um quadro, a uma estátua. Tratava-se, pois, de uma
categoria intermediária entre as coisas consumíveis e inconsumíveis.
COISAS DIVISÍVEIS E INDIVISÍVEIS
O conceito jurídico da divisibilidade está intimamente ligado ao
do valor econômico das coisas. Físicamente toda e qualquer coisa
pode ser dividida. Juridicamente, porém, a divisibilidade depende da
circunstância de a coisa repartida conservar ou não o valor proporcional ao do todo. Divisíveis são as coisas que podem ser repartidas
sem perder esse valor proporcional, como um terreno, o arroz. Indivisíveis são aquelas cujo valor sócio-econômico se reduz ou se perde
com a divisão. É o caso de uma estátua, de um carro.
COISAS SIMPLES, COMPOSTAS, COLETIVAS
OU UNIVERSAIS
A distinção é romana e se refere a coisas simples - quod continetur uno spiritu (D. 41. 3. 30 e 6. 1. 23. 5) -, representando uma
unidade orgânica, natural ou artificial. As coisas compostas - quod
ex contingentibus, hoc est pluribus inter se cohaerentibus constat (D.
41.3.30) - são formadas da união artificial de várias coisas simples. Assim, são simples um bloco ou uma estátua de mármore, um
escravo, e são compostas um edifício, um carro.
A terceira categoria, ou seja, a das coisas coletivas ou universais, abrange um aglomerado de coisas simples, que só juridicamente
estão ligadas entre si. Assim, um rebanho, uma biblioteca, constituídos respectivamente de várias ovelhas ou de vários livros, cujo único
liame é a sua destinação jurídica comum.
COISAS ACESSÓRIAS
Ligado ao conceito de coisa composta, temos que examinar o
dos acessórios e pertenças. A reunião de várias coisas simples pode
criar uma coisa completamente nova, que absorva todos os seus componentes. Exemplo: um carro, que é composto de centenas de elementos. Mas pode verificar-se uma união diferente, na qual uma coisa
principal absorva uma outra coisa, considerada acessória. Por exemplo: o terreno é sempre principal e tudo o que a ele se junte é acessório. Assim, as construções, as plantações nele feitas.
O acessório segue sempre a sorte da coisa principal: accessio
cedit principali (D. 34. 2. 19. 13).
Podemos distinguir do conceito do acessório o das pertenças
(instrumenta), onde há um liame menos íntimo de uma coisa com
outra principal. As pertenças conservam certa autonomia, mas sua
destinação jurídica está ligada à da coisa principal. Assim, os instrumentos de trabalho (instrumenta fundi), destinados ao cultivo da terra, estão ligados a ela, embora conservem certa independência.
FRUTOS
Frutos são coisas novas produzidas natural e periodicamente por
uma outra, que, por isso mesmo, se chama coisa frugífera. Por exemplo: os frutos do solo, da árvore, o leite, as ovelhas do rebanho (assim
consideradas, no direito romano, aquelas excedentes após a compensação das ovelhas mortas pelas novas). Todas essas coisas são chamadas frutos naturais. As rendas obtidas com a locação ou o arrendamento de coisas são também consideradas frutos. São os frutos civis
(loco fructuum, pro fructibus). Por razões filosóficas, o parto da escrava não era considerado fruto pelos romanos. Ele passava a pertencer ao dono da escrava-mãe pelo nascimento.
Enquanto faz parte da coisa frugífera, o fruto, por isso chamado
pendente, não tem individualidade própria, seguindo, assim, a sorte
da coisa principal. Destacado o fruto da coisa frugífera, fruto separado, passa ele a ter individualidade própria e pode, então, ser objeto
de relações jurídicas separadamente da coisa produtora. Neste último
aspecto, do ponto de vista jurídico, os frutos separados podem ser
considerados como colhidos (percepti), a serem colhidos (percipiendi),
já consumidos (consumpti) e também extantes, que são os colhidos e
existentes no patrimônio de alguém, aguardando o consumo oportuno
e posterior.
BENFEITORIAS
Benfeitorias são os gastos com as coisas acessórias ou pertenças
juntas à coisa principal, para melhorar e aumentar a utilidade desta.
Podem ser elas necessárias, quando imprescindíveis para garantir a
existência e subsistência da coisa principal. Por exemplo: telhado novo.
São úteis, quando aumentam a utilidade da coisa principal, que, porém, pode subsistir sem elas. Por exemplo: uma pintura nova no prédio. Voluptuárias são as de mero luxo, como uma piscina ao lado da
residência.
CAPÍTULO 7
ATO JURÍDICO
CONCEITO
A doutrina do ato jurídico não é obra dos romanos. As construções dogmáticas modernas a ela referentes, entretanto, têm bases
romanísticas. Expô-las-emos numa forma simplificada, a fim de servir
de fundamento aos estudos posteriores.
Os eventos, acontecimentos de toda espécie, são chamados fatos.
Entre estes, há fatos que têm conseqüências jurídicas e há outros que
não as têm. Chove, por exemplo. Normalmente não decorre nenhum
efeito jurídico de tal fenômeno natural. Trata-se, neste caso, de um
fato simples. Pode, entretanto, a chuva estragar uma colheita, acabando com os frutos a serem colhidos (percipiendi). Nessa hipótese,
trata-se de um fato jurídico, de um evento que tem conseqüências
jurídicas.
Entre os fatos jurídicos distinguimos os fatos causados pela vontade de alguém dos fatos que se verificam independentemente dessa
vontade. Os primeiros são os fatos jurídicos voluntários, os segundos
os fatos jurídicos involuntários. Interessam-nos, naturalmente, mais os
primeiros que os segundos.
Os fatos jurídicos voluntários, por sua vez, podem ser lícitos ou
ilícitos, dependendo da sua conformidade ou não à norma jurídica.
Os fatos jurídicos voluntários ilícitos são os delitos, mas nos
interessam muito mais os fatos jurídicos voluntários lícitos. Entre
estes se destacam os atos jurídicos, que são manifestações de vontade
que visam à realização de determinadas conseqüências jurídicas. Ao
ato jurídico assim concebido podemos dar também o nome de negócio
jurídico, sendo ambas as denominações de origem moderna.
Aliás, o Código Civil Brasileiro (art. 81) dá mui elegantemente
o conceito do ato jurídico, que foi por nós explicado com demasiada
simplicidade. Diz a lei: "Todo o ato lícito que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos,
se denomina ato jurídico".
Analisando, então, o ato jurídico, verificamos que ele nada mais
é que uma declaração de vontade. Com referência a ela, logo se pergunta, qual deve ser a sua forma?
O direito antigo era formalista, deu mais importância à forma
do que ao fundo. Por isso, os atos jurídicos do direito quiritário (ius
civile) exigiam formalidades complicadas, de cuja observância dependia a validade do ato e o seu conseqüente efeito jurídico. Assim, os
atos per aes et libram, que eram a mancipatio, o nexum e a solutio
per aes et libram; os atos pela in jure cessio e a stipulatio (e semelhantes como a dotis dictio, cretio etc.). Os do primeiro grupo requeriam as formalidades de uma compra e venda real, uma troca efetiva
de mercadoria contra preço, que, nos tempos primitivos, era um pedaço de metal não cunhado e que por isso tinha que ser pesado. Donde
a necessidade de um porta-balança e das formalidades extrínsecas de
pesagem (mesmo que simbólicas). Além disso, exigiam-se as formalidades da presença das partes, do objeto, de cinco testemunhas idôneas
e do pronunciamento de certas fórmulas verbais, quase sacramentais.
Os do segundo grupo, atos pela in jure cessio, requeriam a imitação
de um processo e os do terceiro uma fórmula verbal, com pergunta
e resposta, que gerava efeitos jurídicos, desde que pronunciadas as
palavras sacramentais da maneira prescrita.
A evolução posterior acentuou cada vez mais o valor do elemento
intencional do ato jurídico, em detrimento do externo e formal. Isso
não significa, naturalmente, que a vontade não devesse ser devidamente declarada, mas apenas que a sua manifestação deveria ser feita
de maneira clara, sem tanta prevalência das formas solenes.
Assim, no direito evoluído, o ato jurídico nada mais era que
uma inequívoca manifestação de vontade. Além dela, somente em
casos especiais era exigido algum ato suplementar, como, por exemplo,
a entrega da coisa na tradição, que é um dos modos de transferência
da propriedade.
A manifestação de vontade pode ser expressa, quando se empreguem os meios usuais para se declarar aquilo a que a vontade visa.
Assim, palavras, gestos ou redação e assinatura de documentos.
Por outro lado, a manifestação também pode ser tácita mediante
um comportamento de significado inequívoco, podendo-se deduzir
dele a vontade, tal como se fosse expressamente declarada. Assim, se
um herdeiro toma conta dos negócios deixados pelo defunto, conclui-se
que aceitou a herança, sem necessidade da declaração expressa e
formal de aceitá-la.
O silêncio não é propriamente manifestação de vontade, mas pode
ser considerado como tal: qui tacet, non utique fatetur; sed tamen
verum est eum non negare (D. 50. 17. 142). No caso de o pai dar
a filha em casamento, o silêncio dela era considerado como consentimento: quae patris voluntati non repugnat, consentire intellegitur
(D. 23.1.12 pr.).
CAPACIDADE DE AGIR
Pressuposto da validade da manifestação da vontade era a capacidade de agir da pessoa que praticava o ato jurídico. Essa capacidade
de agir tem outras denominações também: é chamada capacidade de
fato, capacidade de exercício ou capacidade de praticar atos jurídicos.
Ela se distingue da outra capacidade já estudada, isto é, da capacidade jurídica de gozo ou capacidade de direito.
Nem toda e qualquer pessoa tinha capacidade de agir. Esta
dependia da idade, do sexo e de sanidade mental perfeita. Em regra
geral, os púberes, varões, perfeitamente sãos, tinham plena capacidade
de agir. Por outro lado, as limitações à capacidade de agir decorriam
desses mesmos fatores.
Quanto à idade, a summa divisio era a puberdade, que, segundo
opinião de jurisconsultos clássicos, acolhida por Justiniano, era adquirida aos 14 anos pelos varões e aos 12 anos pelas mulheres. Os púberes, em princípio, tinham completa capacidade de agir; os impúberes,
não. Estes se dividiam em infantes (qui fari non possunt), isto é,
menores de 7 anos, que eram absolutamente incapazes de agir, e os
infantia maiores, isto é, dos 7 anos até a puberdade, que tinham uma
capacidade restrita de agir. Estes últimos podiam praticar atos que os
favorecessem, mas não podiam obrigar-se sem a intervenção de um
tutor, que devia tomar parte no ato jurídico, conferindo a sua autori-
zação (auctoritatis interpositio). No caso dos infantes, absolutamente
incapazes de agir, eram os tutores que agiam por eles, praticando os
respectivos atos jurídicos. Os atos jurídicos eram praticados em nome
do próprio tutor, mas no interesse dos infans. No fim do exercício do
cargo, o tutor, naturalmente, tinha que prestar contas.
Quanto aos púberes, como já foi dito, eram eles plenamente
capazes de agir, ao menos em princípio. Entretanto, com relação
a eles houve uma distinção, introduzida pela lex Laetoria (século II
a.C.), que conferiu ao menor de 25 anos, ou a qualquer pessoa que
por ele quisesse agir, uma ação contra quem o tivesse enredado num
negócio que lhe era prejudicial. A razão dessa regra foi procurar
proteger os adolescentes púberes e já capazes de agir, mas na realidade
ainda inexperientes. Posteriormente, o pretor estendeu essa proteção
a todos os casos em que um menor tivesse sido prejudicado, concedendo meios processuais para anulação dos atos praticados pelo
menor púbere, que, como já acentuamos, era, em princípio, plenamente capaz de agir. Não valiam, entretanto, esses meios, quando o
menor púbere tivesse agido com a anuência de um curador (note-se
bem: curador e não tutor), especialmente nomeado para assisti-lo na
prática do ato jurídico. Assim, aos menores de 25 anos tornou-se de
costume pedir a um curador que os assistisse na prática dos atos jurídicos. Daí se originou a regra, que se desenvolveu no direito pósclássico, de que os menores de 25 anos, tendo um curador, tinham
capacidade restrita, semelhante à dos impúberes infantia maiores, isto
é, que só podiam praticar atos jurídicos que os favorecessem, mas para
obrigar-se precisavam sempre da assistência do curador.
Dessa equiparação pós-clássica nasceu a necessidade de se oferecer a menores de 25 anos a oportunidade de conseguirem, antes dessa
idade, a plena capacidade de agir. Por isso, os imperadores concediam,
em casos especiais, um favor legal, chamado venia aetatis, conferindo
a pessoas individualmente determinadas a capacidade de agir. Essa
concessão só seria possível, no caso de varão, se tivesse pelo menos
20 anos, e no caso de mulher, se tivesse pelo menos 18 anos.
É de se notar que as regras acima se referiam tanto aos sui iuris
como aos alieni iuris. A única diferença é que os primeiros passariam
a fazer aquisições para si e os segundos adquiriam sempre para o
paterfamilias a quem estivessem sujeitos. No que se refere às obrigações, os na condição de alieni iuris não as podiam assumir; nem por
elas, em princípio, responderiam os respectivos paterfamilias. Entretanto, o pretor introduziu meios visando a responsabilizar cada vez
mais o paterfamilias. Eram as chamadas actiones adiectitiae qualitatis,
que foram admitidas pelo pretor contra o paterfamílias. Este responderia pelas obrigações contraídas pelos alieni iuris na esfera da atividade econômica da família e na medida do enriquecimento desta.
O sexo era outro aspecto da limitação da capacidade de agir.
As mulheres, mesmo púberes, estavam sob tutela perpétua, necessitando sempre, sem limite de idade, da assistência do tutor mulierum
na prática de atos jurídicos que as obrigassem. Assim, a situação delas
era semelhante à dos impúberes infantia maiores.
Essa limitação foi decaindo com o passar dos tempos, desaparecendo completamente no período pós-clássico. Já no direito justínianeu
a mulher teria plena capacidade de agir, quando sua idade o permitisse.
A insanidade mental tornava absolutamente incapazes os loucos
de todo gênero, que eram, então, representados por um curador. Os
surdos-mudos tinham capacidade limitada, já que não podiam praticar
atos verbais, e os pródigos sofriam restrições semelhantes às dos
impúberes infantia maiores. Esses últimos também eram assistidos
por um curador.
CLASSIFICAÇÃO DOS ATOS JURÍDICOS
Sendo os atos jurídicos manifestações de vontade, com a finalidade de produzir determinadas conseqüências jurídicas, a primeira
distinção que se faz é entre atos unilaterais e bilaterais.
Examinando a declaração de vontade verificamos que ela pode
partir de uma pessoa só ou depender de duas vontades. No primeiro
caso as conseqüências jurídicas se verificam pela declaração de uma
só pessoa. Assim, a alforria do escravo, a nomeação do tutor, o
testamento, a aceitação ou renúncia da herança. Por outro lado, a
maioria dos atos jurídicos exige declarações de vontade de duas
partes, fundindo-se num só acordo. Tais atos jurídicos bilaterais são
também chamados contratos. Por exemplo: a compra e venda, a
locação, e mesmo a doação, que requer, além da declaração do doador,
também a aceitação da doação pelo donatário.
Já os romanos distinguiam os atos jurídicos mortis causa dos
demais, isto é, dos inter vivos. Os primeiros são os praticados para
ter efeitos quando do falecimento de uma das partes. A eficácia dos
segundos não depende disto. Servem de exemplo, respectivamente, o
testamento e a compra e venda.
Costuma-se distinguir, também, entre atos jurídicos onerosos e
gratuitos, conforme tenham, ou não, como objeto, uma contraprestação de valor igual - prestação. Assim, era onerosa a compra e venda
e gratuita a doação.
A distinção entre causais e abstratos já é mais sutil. Os primeiros
são aqueles cujo fim prático está intimamente ligado ao ato e aparece
claramente no próprio ato. Nos segundos, prevalece a forma externa
do ato, sendo irrelevante o fim prático a que se destina. Assim, é
causal a compra e venda e são atos abstratos no direito romano a
mancipatio, a in jure cessio ou a stipulatio, que podiam ser utilizadas
para as mais variadas finalidades.
No direito romano fazia-se distinção entre os atos do ius civile
e os do ius honorarium, dependendo da origem dos institutos. Pertenciam ao primeiro grupo a mancipatio, a in jure cessio (institutos
típicos do direito quiritário), e ao segundo os pacta praetoria (acordos sancionados pelo pretor).
Semelhante distinção havia entre atos do ius civile e do ius
gentium. Entre estes últimos podemos citar a compra e venda consensual, praticável não só pelos cidadãos romanos, como também por
estrangeiros em Roma, ao passo que a mancipatio, com suas formalidades, era ato que só romanos podiam praticar.
VÍCIO DO ATO JURÍDICO
Já foi explicado, reiteradamente, que o ato jurídico é uma manifestação de vontade, visando a determinadas conseqüências jurídicas.
Pressupõem-se, pois, a vontade interna e sua exteriorização clara e
perfeita (nos casos normais).
Pode, entretanto, acontecer que haja discrepância entre a vontade
interna e sua manifestação. Surge, então, o problema da eficácia ou
ineficácia do ato jurídico. Com relação a esse problema, o ato jurídico
pode ser nulo (não tendo efeito jurídico nenhum), ou anulável (o que
significa que o ato pode ser tornado sem efeito, mas ele existe enquanto
não for anulado pelo juiz a pedido do interessado).
No direito romano os atos do ius civile eram ou válidos, ou
nulos. Foi o direito pretoriano que introduziu, pelos seus meios indiretos, a anulabilidade dos atos jurídicos e foi o direito justinianeu
que alargou e generalizou este último conceito.
Note-se que um ato inicialmente viciado não se convalida com
o decurso do tempo: Quod initio vitiosum est non potest tractu
temporis convalescere (D .50. 17.29).
Simulação e restrição mental
A discrepância entre a vontade interna e a sua manifestação
externa pode ser voluntária, isto é, querida pelo agente. É o caso de
alguém que finge querer praticar uma compra e venda, quando, no
íntimo, não quer praticá-la, ou quer um outro ato, como, por exemplo,
uma doação.
Se as partes são concordes nesse fingimento, sendo então as
declarações de vontade divergentes das vontades internas, chama-se a
isso simulação. Esta pode ser absoluta, quando as partes não querem
ato nenhum, mas declaram externamente querê-lo. Chama-se relativa
a simulação quando as partes concordes praticam um determinado
ato, querendo realmente ato diverso do praticado.
Como princípio geral, o negócio simulado, isto é, o praticado
e declarado, é válido frente a terceiros (C. 4.22 rubr.), mas entre as
partes prevalecerá o ato dissimulado, isto é, aquele a que realmente
visava a vontade interna. Só no caso de ser evidente a simulação,
como quando se pratica no palco, na escola, é que ela acarreta a nulidade do ato. Modernamente, a simulação é motivo de anulabilidade.
A restrição mental é a simulação unilateral, quando uma parte
faz declaração divergente de sua vontade interna. Como essa divergência não pode ser conhecida pelos outros, a restrição mental não
influi na eficácia do ato, que permanece válido (D. 2.15.12).
Erro
No ato jurídico, distinguem-se a vontade interna e a sua manifestação externa. Além disso, tratando-se de ato jurídico bilateral, que
é um acordo entre duas pessoas, exigindo duas manifestações de vontade congruentes, pressupõe a concordância de vontade das duas
partes.
Ora, pode acontecer que haja divergência entre a vontade interna
e a sua manifestação externa, como pode haver, também, discrepância
entre as duas declarações de vontade num ato jurídico bilateral.
Quando essas divergências não são conhecidas das partes, tratase do erro.
Erro é o falso conhecimento de um fato. Exemplo: compro um
anel de cobre, pensando que se trata de anel de ouro.
É evidente, e os romanos pensavam assim também, que o erro
impede a validade do ato. Mas nem sempre é, também, nem em
todos os casos.
Para que o erro tenha o efeito de invalidar o ato é preciso que
se refira a um elemento essencial do ato jurídico (error essentialis)
e seja oriundo de uma atitude escusável do agente (error probabilis),
isto é, que, comparando com o comportamento de outras pessoas, se
afigurasse perdoável ter o agente cometido aquele erro.
Os erros que acarretavam a nulidade do ato no direito romano
eram:
a) O erro quanto ao negócio (error in negotia), quando a discrepância se referia à própria essência do ato. Exemplo: alguém, pensando alugar a casa de sua propriedade, na verdade a vende.
b) O erro de pessoa (error in persona), quando a divergência
se referia à identidade de uma das partes ou de pessoa que fosse elemento essencial do ato. Exemplo: Fulano empresta dinheiro a Caio,
pobre, pensando que ele fosse Tício, pessoa riquíssima.
c) O erro quanto ao objeto (error in corpore), quando recaia
na identidade física do objeto do ato. Exemplo: comprar o lote n.
12, pensando tratar-se do lote vizinho, de n. 13.
d) O erro referente à substância (error in substantia) era o que
se relacionava com as qualidades essenciais do objeto do ato. Exemplo: comprar um anel de cobre, pensando tratar-se de um anel de ouro.
Ocorrendo qualquer desses erros, referentes a elementos essenciais do ato, este era nulo.
O erro podia existir com relação a outros elementos do ato, que
os romanos não consideravam essenciais. Em tais casos o respectivo
ato era considerado válido.
Assim, o erro quanto à qualidade (error in qualitate) e à quantidade (error in quantitate) não invalidavam o ato. Exemplo: comprar
vinho estragado pensando tratar-se de vinho bom ou, querendo comprar 100 litros de vinho, comprar 1.000. Semelhantemente, o erro de
pessoa, quando a pessoa não é elemento essencial do negócio. Exemplo: vender à vista a Fulano, pensando que seja Sicrano, uma mercadoria exposta na minha loja. Nesse caso a pessoa do comprador nenhuma relevância tem no ato.
O erro ainda pode consistir numa ignorância da regra do direito
(error juris). Normalmente ninguém pode ignorar a lei: ignorantia iuris
neminem excusat. As exceções do direito romano nesse particular já
foram mencionadas. As mulheres, os menores de 25 anos, os soldados,
os caipiras (rustici) podiam escusar-se por ignorar a lei.
Dolo
A divergência entre a vontade interna e a sua manifestação externa, inconsciente, podia ser provocada também por uma das partes do
ato jurídico para fazer a outra incidir em erro.
O comportamento malicioso de alguém, com o fito de enganar
a outra parte, falsificando a verdade, para tirar disso vantagem própria, é o que o direito romano chamou de dolo (dolus malus): omnis
calliditas, fallacia, machinatio ad circumveniendum, fallendum, decipiendum alterum adhibita (D. 4.3.1.2).
O pretor Aquilio Gallo (68 a.C.) introduziu uma ação penal, a
actio de dolo, pela qual o autor do dolo podia ser obrigado a pagar
à vítima o valor do prejuízo por ela sofrido em conseqüência do dolo.
Além disso, o pretor deu outros meios processuais (exceptio dali, in
integrum restitutio ob dolum) para a reparação de injustiças provocadas por comportamento doloso.
É de se notar que no caso de actio de dolo, uma ação penal de
suma gravidade, que gera a infamia do condenado, somente se podia
a ela recorrer, quando não houvesse outros remédios jurídicos cabíveis.
Coação
A divergência entre a vontade interna e a manifestação externa
pode advir da coação por parte de alguém: vi metusque causa (D.
4.2.1). Trata-se de pressão física ou psíquica, ilegal, exercida por
alguém contra o agente, a fim de que este pratique, contra sua vontade, um ato jurídico.
O direito antigo, o ius civile, formalístico e rígido, não levou
em consideração essa circunstância determinante daquela manifestação. Para aquele direito importava mais a forma externa do ato que
a vontade interna da parte: tamen coactus volui - "embora coagido,
quis" (D. 4.2.21.5). Foi o pretor, um tal Octavio, em 80 a.C., que
introduziu regra, com o fito de invalidar os atos jurídicos praticados
em conseqüência de coação. Previu ele tanto a coação física quanto
a moral. A primeira consiste em forçar fisicamente alguém a praticar
um ato contra a sua vontade (vis). A segunda é a ameaça, causadora
de medo (metus) no sujeito, impelindo-o, assim, à prática do ato
contra a sua vontade: quod metus causa gestum erit, ratum non habebo (D. 4.2.1). Com base nessa regra, o pretor concedeu uma ação, a
in integrum restitutio, para anular os efeitos de tais atos e restabelecer a situação anterior. Concedeu, também, uma exceção processual
contra aquele que pretendesse fazer valer um direito decorrente do
ato coagido. Uma outra disposição edital do pretor considerou a coação como delito, punindo-a com o quádruplo do valor do negócio.
A ação penal se chamava actio quod metus causa.
CONTEÚDO DOS ATOS JURÍDICOS
Há atos jurídicos que têm conteúdo predeterminado pelo di-
reito. Assim a manumissão, a mancipatio etc. Por outro lado, existem
outros atos, cujo conteúdo pode ser estabelecido pelas partes. No
direito romano antigo a stipulatio, ato jurídico abstrato, servindo às
mais variadas finalidades práticas, seria exemplo de tais atos.
O direito romano evoluído elaborou os demais atos jurídicos bilaterais, chamados contratos, que, além de seu conteúdo essencial, podiam conter outras avenças livremente escolhidas pelas partes. As
únicas limitações quanto ao conteúdo dos atos jurídicos eram as de
que fosse possível física e juridicamente, lícito e determinado.
Portanto, não teria sido válido um ato de compra e venda cujo
objeto fosse uma coisa inexistente, porque seu conteúdo seria fisicamente impossível de se realizar.
Do mesmo modo teria sido inválido um ato cujo conteúdo fosse
ilegal ou imoral. Exemplo: a venda, como escravo, de um cidadão
romano em Roma.
A determinação do conteúdo do ato deve ser objetiva, mas pode
ser feita por terceiros também, se as partes assim o quiserem. Exemplo: posso vender o meu cavalo por 100 asses, ou pelo preço que
Tício, amigo comum das partes, arbitrar.
Ainda em matéria referente ao conteúdo do ato jurídico, podemos fazer distinções a respeito de seus elementos. Estes podem ser
essenciais, naturais e acidentais.
Essenciais são os elementos do conteúdo do ato jurídico sem os
quais este não pode existir; são eles, portanto, necessários para sua
realização. Assim, a determinação da mercadoria e a do preço na
compra e venda são seus elementos essenciais.
Naturais são os elementos naturalmente incluídos num ato jurídico, porque a ordem legal os considera como normalmente fazendo
parte deles, conforme seu tipo. Assim, a responsabilidade do vendedor
pelo vício oculto da coisa vendida faz parte integrante da compra e
venda, sem necessidade de estipulação expressa a respeito. Por outro
lado, tais elementos naturais podem ser livremente excluídos ou modificados pelas partes interessadas, desde que o façam expressamente.
Destarte, é possível excluir a responsabilidade pelos vícios ocultos da
coisa vendida, se isto constar categoricamente das cláusulas do respectivo contrato.
Além dos elementos acima mencionados, podem ser incluídos outros, eventuais e secundários, que as partes livremente acrescentarem
ao ato. A compra e venda, por exemplo, pode conter disposições sobre
o modo e a data de entrega da mercadoria, maneira de pagamento
do preço etc. Como tais cláusulas não são necessárias para a realização
do ato jurídico, são elas chamadas acidentais.
O número de tais elementos acidentais dos atos jurídicos é amplísimo, pois dependem eles da vontade das partes. Toda e qualquer
cláusula secundária de um ato jurídico é elemento acidental e a vida
apresenta uma variedade imensa de tais cláusulas.
Ora, entre esses inúmeros elementos acidentais, a doutrina e a
legislação costumam salientar três, amplamente tratados pelos romanos
e também pelos modernos. São eles a condição, o termo e o modo.
Condição
Trata-se de uma cláusula acidental por meio da qual a vontade
das partes faz depender os efeitos do ato jurídico de um evento futuro e incerto. Exemplo: prometo dar-lhe 100 asses, se o navio chegar da Ásia.
Três são, pois, os requisitos ou as características essenciais do
instituto.
Em primeiro lugar, é mister que seja realmente o arbítrio das
partes que subordine à ocorrência de determinada circunstância os
efeitos jurídicos da manifestação da vontade. Por isso, não é condição a chamada condicio iuris. Nesta última hipótese, é o próprio
direito que faz depender os efeitos do ato jurídico de uma outra circunstância, sendo irrelevante que as partes também tenham incluído
cláusula cogitando do mesmo assunto. Exemplo: "Que Tício seja meu
herdeiro, se eu morrer antes dele". A regra jurídica já prevê, como
pressuposto da nomeação de herdeiro, o fato de este sobreviver ao
testador. A repetição da regra jurídica não dá ao ato o caráter de ato
condicionado, pois a inclusão daquele elemento não depende da vontade das partes.
Em segundo lugar, o evento de que dependem os efeitos do ato
jurídico deve ser futuro, isto é, deve verificar-se após a estipulação
da condição pelas partes. Portanto, não é condição a condicio in
praesens vel in praeteritum callata, que é a cláusula que faz depender
as conseqüências do ato de evento verificado concomitantemente com
a estipulação ou mesmo anteriormente a ela. Isto porque em tais casos
não há pendencia. O ato é válido ou nulo desde o início, apenas as
partes podem não ter conhecimento daquele pormenor no momento da
estipulação.
Em terceiro lugar, é característica da condição a incerteza quanto
à verificação do evento de que dependem os efeitos jurídicos do ato.
Havendo certeza na verificação, mesmo que a data seja incerta, não
se trata de condição, mas sim de termo, de que trataremos adiante.
As condições que não preenchem esses requisitos, especialmente
aquelas em que falte a futuridade ou a incerteza do evento, são chamadas impróprias.
Quanto ao evento de que dependerem os efeitos jurídicos do
ato, não deve ser ele impossível, proibido jurídica e moralmente, ou
indeterminado, requisitos esses relativos, aliás, a todos os elementos
constitutivos dos atos jurídicos em geral. Além dessa limitação, o
evento não pode ser cogitado de maneira perplexa, isto é, através de
uma disposição ilógica e contraditória, como, por exemplo: se Tício
for meu herdeiro, seja Seio meu herdeiro, e se for Seio meu herdeiro,
seja Tício meu herdeiro (cf. D. 28.7.16).
As condições que contrariam tais regras são nulas e anulam o
ato jurídico a que se referem: vitiantur et vitiant. Somente no campo
das disposições de última vontade é que os romanos consideravam inexistente apenas a condição - pra non scripto habetur (Inst. 2.14.10;
Gai. 3.98) - e válido o ato sem a condição - vitiantur sed non vitiant. Isto para manter a última vontade do testador (lavar testamenti).
O evento previsto na cláusula condicional pode ser um acontecimento ou um não-acontecimento. Assim, distinguimos a condição
positiva da condição negativa, como, por exemplo, "se o navio chegar" ou "se o navio não chegar".
Outrossim, o evento pode depender da vontade de uma das partes (condicio potestativa), ou exclusivamente do acaso (condicio casualis), ou, também, de ambos, naturalmente em parte (condição mista).
Exemplo: se você casar (patestativa); se chover (casualis); se você casar com Tícia (mixta), porque depende, além da vontade da parte,
também da de Tícia.
Quanto aos efeitos jurídicos, as condições podem ser constituídas
de duas maneiras: ou as condIções podem suspender o efeito do ato,
para que ele só tenha eficácia quando o evento se verificar, ou podem
rescindir o efeito do ato. Nesse último caso, o ato tem eficácia imediatamente, cessando ela, porém, com a verificação do evento. Distinguimos, pois, a condição suspensiva e a condição resolutiva.
Note-se que o direito romano somente conheceu a condição na
sua forma suspensiva. A condição resolutiva, como instituto, é do
direito intermédio e do moderno.
Os efeitos da condição suspensiva se encontram em situação de
pendência (condicio pendet), enquanto não se verificar o evento. Tratase de fase de incerteza e, ao mesmo tempo, de expectativa, caracte-
rizada pela esperança (spes). O direito pré-clássico reputava o ato
nesta fase não só ineficaz, mas, também, inexistente. Já no direito
clássico surgiu dúvida a esse respeito e, finalmente, o direito pósclássico considerou como já existente o ato nesta fase de pendência.
A conseqüência disto foi a de considerar tal ato como fazendo parte
do patrimônio de seu titular e, sendo assim, transmissível por atos
entre vivos ou mortis causa.
Quando o evento da cláusula condicional se verifica (condicio
existit), o ato passa a ser considerado puro, como se nunca tivesse
estado sujeito à condição.
O problema que surge é o de saber quando começa a eficácia
do ato: se no momento inicial da prática do ato condicionado (ex
tunc) ou no momento da verificação do evento (ex nunc).
A solução é diferente no direito romano e no moderno.
O direito romano clássico considerava os efeitos do ato condicionado produzidos ex nunc; o moderno considera-os produzidos
ex tunc.
Quando o evento previsto na cláusula definitivamente não se
verifica (condicio deficit), o ato é considerado como se nunca tivesse
existido.
Temos que mencionar, ainda, que no direito romano alguns atos,
como a conventio in manum, a designação de herdeiro, a mancipação,
a in iure cessio e outros atos formais, chamados actus legitimi, não
admitiam cláusula de condição, sob pena de nulidade de todo o ato.
Termo
A cláusula que subordina os efeitos de um ato jurídico a um
evento futuro e certo chama-se termo (dies).
A diferença, pois, entre termo e condição, reside na certeza da
ocorrência do evento. Essa ocorrência pode verificar-se em data certa
ou em data incerta: dies certus an, certus quando ou dies certus an,
incertus quando. Exemplo de data incerta de um evento certo é a
morte (cf. D. 12.6.17), porque não há dúvida de que se verificará,
apenas sua data não é certa.
A cláusula de termo pode determinar que os efeitos do ato se
iniciem a partir da verificação do evento futuro e certo, ou cessem
nesse momento. Distingue-se, então, o termo suspensivo (dies a quo)
do termo resolutivo (dies ad quem).
No termo não há incerteza, portanto, não há pendência do ato
jurídico estipulado sob termo. O ato é válido desde o princípio; somente sua eficácia, seus efeitos jurídicos, ficam suspensos até o advento do termo suspensivo. No caso de termo resolutivo, o ato é perfeito
e ao mesmo tempo é eficaz desde o início, cessando os seus efeitos
com o advento do termo resolutivo.
Como o ato jurídico sob termo existe desde o momento inicial
e antes da verificação do evento (D. 45. 1 .46 pr.), tratando-se de
uma relação obrigacional, ela passa aos herdeiros, se o titular morrer
antes. Por outro lado, no referente aos atos que visam a transferir
ou a criar direitos reais, como a propriedade, eles não se transferem
ou não se constituem antes de se verificar o evento, mas o direito de
disposição do proprietário anterior sofre limitação em razão do ato
sob termo.
Os atos formais não podem ser praticados sob termo, como também não podem ser praticados sob condição, conforme, aliás, já foi
visto: actus legitimi, qui non recipiunt diem vel condicionem, veluti
emancipatio, acceptilatio, hereditatis aditio, servi optio, datio tutoris,
in totum vitiantur per temparis vel condicionis adiectionem (D.
50.17.77).
É de se notar que várias relações jurídicas, como a propriedade,
os direitos de servidão, a qualidade de herdeiro, eram consideradas,
no direito romano, permanentes, não podendo ser constituídas a termo
resolutivo.
Modo
A cláusula acessória que se junta eventualmente a atos jurídicos
gratuitos e que consiste em impor ao destinatário da liberalidade uma
obrigação que não influi na eficácia do ato chama-se encargo ou modo
(modus). Exemplo: o testador que pede ao herdeiro para construir
um monumento em memória dele (D. 40.4.44).
Os efeitos jurídicos do ato de liberalidade independem do cumprimento ou não da obrigação modal. O ato é juridicamente válido e
eficaz ab initio. No exemplo dado, o herdeiro adquire esse título imediatamente, com a morte do testador. A diferença, portanto, do que
ocorre com a condição é que, no negócio modal, não se subordinam
os efeitos do ato ao cumprimento da obrigação.
Mesmo assim, o encargo não é um simples pedido destituído de
eficácia jurídica. Já no direito romano clássico havia meios legais
indiretos para constranger o favorecido pela liberalidade a cumprir
a obrigação a ele imposta. O pretor impunha àquele que assumisse,
expressamente, tais obrigações por uma estipulação, que as transformavam em uma obrigação autónoma. Também quando havia interesse público envolvido, intervinha a autoridade pública para constranger o favorecido a cumprir a obrigação (D. 5.3.50.1). Finalmente,
o direito justinianeu garantiu diretamente a execução dos encargos
(D.23.3.9; C. 8.54. (55). 3.1).
REPRESENTAÇÃO
A manifestação da vontade num ato jurídico podia ser feita, já
no direito romano, por intermédio de outra pessoa. Nesse caso, o
intermediário, chamado nuntius, apenas transmitia a vontade de outrem. Por isso era preciso que o manifestante tivesse capacidade de
agir, enquanto o núncio podia ser até uma pessoa incapaz, como uma
criança. É que o núncio não manifestava vontade própria; era apenas
um mensageiro da vontade do manifestante. É natural que os efeitos
do ato assim praticado recaíssem na pessoa do manifestante e não na
do núncio. Não se tratava aqui, porém, de representação.
Naturalmente, sentiam os romanos a necessidade de ter um instituto que possibilitasse a substituição de uma pessoa por outra na prática de atos jurídicos. Nesse campo, porém, a própria organização familiar romana, na qual os filhos e escravos adquiriam sempre para o
paterfamilias, já atendia praticamente a essa finalidade. Não era isso
propriamente representação. A grande falha desse sistema foi a de os
sujeitos ao poder do paterfamilias não poderem assumir obrigações
por ele. Isto se remediou posteriormente. O pretor procurou responsabilizar o paterfamilias pelas obrigações contraídas pelos escravos e
alieni iuris por incumbência do paterfamilias. Concedeu contra este
uma ação chamada actio quod iussu. Mais tarde essa regra foi estendida a todos os atos praticados na administração de uma empresa
(especialmente de navegação ou de natureza industrial ou comercial)
pertencente ao paterfamilias e da qual o escravo ou alieni iuris fosse
preposto do dono (actio exercitoria et institutoria). Essas faziam parte
das actiones adiectitiae qualitatis, já mencionadas acima ao tratarmos
da capacidade de agir.
No período pós-clássico, essas regras foram estendidas aos prepostos estranhos à família. Mesmo assim a responsabilidade do representante e do representado coexistiam.
Diferente disto é a representação, na qual uma pessoa, o representante, manifesta sua própria vontade com a finalidade de substituir outra, a do representado, mas visando a que as conseqüências
da sua manifestação redundem em favor da pessoa representada e não
da do representante.
Age, em tal caso, por conta e em nome de outrem. Essa idéia
de representação, chamada representação direta ou perfeita, era estranha ao direito romano (per extraneam personam nobis adquiri non
potest - Gai. 2.95).
Só conhecia ele a representação indireta ou imperfeita, pela qual
o representante agia em seu próprio nome, mas no interesse do representado. Nesse caso o ato produzia efeitos para o representante, que,
por sua vez, tinha a obrigação de transferi-los ao representado, com
base na relação jurídica entre eles existente.
O direito romano conhecia a representação direta só no campo
da aquisição da posse: tanto o procurador, pessoa que cuidava de
negócios alheios, normalmente sem representação, como o tutor, podiam adquirir a posse e conseqüentemente a propriedade como representantes diretos.
Salvo as exceções acima expostas, o direito romano não conheceu outro sistema senão o da representação indireta ou imperfeita, e
somente o direito moderno foi que elaborou, com base nas regras excepcionais romanas acima mencionadas, o princípio geral da representação direta.
A representação, em geral, seja direta, seja indireta, pode basearse na regra jurídica, na vontade das partes, ou então decorrer da vontade unilateral do representante.
Na primeira hipótese, a representação cabe por lei aos que têm
a incumbência de tratar dos interesses alheios, como o tutor, o curador,
o syndicus de uma pessoa jurídica.
Na segunda, a representação decorre de um acordo entre as partes. Daí a figura do procurador, incumbido de tratar de interesses da
outra parte. Figura especial era a do procurator omnium bonorum,
encarregado de cuidar de todos os negócios de alguém (D. 3.3.1.1).
Por outro lado, pode alguém encarregar-se espontaneamente de
tratar de negócios alheios, o que se chama gestão de negócios (negotiorum gestio). Nessa relação representa o gestor a pessoa de cujos
interesses ele, espontaneamente, se prontificou a cuidar.
Parte II
DIREITOS REAIS
CAPÍTuLO 8
PROPRIEDADE
CONCEITO
A propriedade (dominium, proprtetas) é um poder jurídico absoluto e exclusivo sobre uma coisa corpórea.
Neste conceito, que é da jurisprudência clássica, a propriedade é
considerada como uma relação direta e imediata entre a pessoa, titular
do direito, e a coisa. Explica-se tal acepção pela preponderância do
aspecto do poder nas relações de senhorio no direito romano primitivo, quer seja seu objeto uma coisa pertencente à família, quer sejam as pessoas livres sujeitas à patria potestas. Não é por acaso que
as Institutas de Justiniano ainda definem o domínio como in re plena
potestas (Inst. 2.4.4).
No sentido positivo, a propriedade confere ao titular o direito de
usar, gozar e dispor da coisa e, no sentido negativo, exclui toda e
qualquer ingerência alheia, protegendo-o, no exercício de seus direitos,
contra turbação por parte de terceiros.
A característica dominante do ponto de vista jurídico é a exclusividade da propriedade, que impõe a todos a obrigação de respeitá-la.
Já o conteúdo positivo desse instituto - a subordinação completa da
coisa a seu proprietário - é um aspecto mais econômico do que
jurídico.
Interessa-nos, porém, quanto ao ponto de vista jurídico, a amplitude dessa subordinação.
LIMITAÇÕES DA PROPRIEDADE
O poder jurídico do proprietário sobre a coisa é, em princípio,
ilimitado, mas limitável. O poder completo pode ser limitado voluntariamente pelo próprio proprietário ou pela lei. As limitações impostas pela lei visam proteger o interesse público ou justos interesses de
particulares.
Limitações de interesse público são, entre outras, as seguintes,
citadas a título exemplificativo:
a) o proprietário de um terreno ribeirinho deve tolerar o uso
público da margem;
b) a manutenção de estradas marginais ao terreno fica a cargo
do proprietário;
c) há várias proibições de demolição de prédios sem autorização
administrativa, estabelecidas no período imperial;
d) no século IV d.C., uma constituição imperial concedeu ao
descobridor de jazida o direito de explorar a mina em terreno alheio,
mediante indenização a ser paga ao proprietário.
Limitações no interesse de particulares são, na maioria, as constituídas em favor de vizinhos, como por exemplo:
a) os frutos caldos no terreno vizinho continuam de propriedade do dono da árvore. O vizinho tem de tolerar que este os recolha
dia sim, dia não;
b) o vizinho deve suportar a inclinação dos ramos numa altura
superior a 15 pés, podendo, entretanto, cortá-los até essa altura;
c) o fluxo normal das águas pluviais deve ser suportado também.
São limitações legais, ainda no interesse particular, as regras de
inalienabilidade, que proibem ao proprietário transferir ou onerar seu
direito. Tal inalienabilidade existia no terreno dotal, sobre os bens
do pupilo, nas coisas em litígio, e visava proteger os interesses da
mulher, do incapaz ou da outra parte na lide, respectivamente.
Aqui, nas limitações legais, temos que mencionar ainda as regras
e sanções da legislação imperial quanto ao abuso do poder e aos maus
tratos cometidos contra escravos pelo proprietário, limitações que tinham uma finalidade humanitária.
Além das limitações impostas pela lei, o proprietário podia, voluntariamente, restringir a amplitude de seu direito, destacando e concedendo a outrem certa parcela deste. Esta é a maneira da constituição
de direitos reais sobre coisa alheia por meio de ato jurídico. Deles
trataremos no lugar próprio. Note-se, porém, que uma vez cessada a
limitação, a propriedade automaticamente recupera a sua inteireza,
seja qual for a razão da cessação. Este fenômeno se chama, modernamente, elasticidade da propriedade.
Cumpre-nos mencionar, ainda, a proibição dos atos emulativos,
que, modernamente, é considerada como limitação da amplitude do
exercício da propriedade. A teoria foi elaborada na Idade Média, com
base nos textos da Codificação de Justiniano. São considerados atos
emulativos aqueles que o proprietário pratica não para sua utilidade,
mas para prejudicar o vizinho.
CAPÍTULO 9
HISTÓRIA DA PROPRIEDADE
ROMANA
No retroexposto, encaramos a propriedade como um instituto
unitário. Sua evolução histórica, porém, apresenta diversas formas e
fases, que devem ser explicadas em seguida.
DIREITO PRIMITIVO
O pátrio poder do paterfamilias abrangia, além das pessoas livres
e dos escravos pertencentes à família, também os bens patrimoniais
desta. Assim, o poder jurídico sobre coisas, na origem, estava incluído
na patria potestas e a propriedade não tinha nome distinto.
Discutia-se, outrossim, sobre os objetos dessa primitiva propriedade particular: se abrangia apenas os bens móveis ou também os
imóveis.
Não faltam provas da originária propriedade coletiva sobre terras, exercida pelas gentes (conjunto de famílias coligadas por descenderem de um tronco ancestral comum), terras que passaram, posteriormente, à propriedade do Estado (agri publici).
Conforme a lenda, a propriedade particular foi reconhecida desde a fundação de Roma, mas, quanto aos imóveis, limitada a dois
lotes (jugera) de terra, que podiam servir para construir a casa e
plantar a horta. Evidentemente, porém, grandes terras aráveis foram
distribuídas em propriedade particular, já antes das XII Tábuas, no
século V a.C. Realmente, o direito nesta legislação primitiva já conhecia a propriedade particular, tanto sobre móveis como imóveis. A
distribuição das terras públicas e particulares verificou-se em todo o
período da República. De outro lado, com a ocupação de novos territórios, estes passaram para a propriedade do Estado, mas os situados
na Itália foram, até o fim da República, distribuídos, ficando, assim,
como propriedade do Estado só os das províncias, formalmente excluídos da propriedade particular em todo o período clássico, como, aliás,
veremos mais detalhadamente adiante.
PROPRIEDADE QUIRITÁRIA
O conceito abstrato da propriedade, distinto do do pátrio poder,
e sua denominação de dominium e proprietas, datam da segunda metade da República. O instituto faz parte do ius civile; chama-se dominium ex iure Quiritium.
Pressupõe, naturalmente, que seu titular seja cidadão romano.
Outro pressuposto é que a coisa, sobre que recaía a propriedade quiritária, possa ser objeto dela. Estão nesta condição todas as coisas corpóreas in commercio, exceto os terrenos provinciais. Terceiro pressuposto é que a coisa tenha sido adquirida, pelo seu titular, por meio
reconhecido pelo ius civile. Tais meios eram: 1.o) os modos de aquisição originários; 2.o) o usucapião; e 3.o) para as res mancipi, a mancipatio e a in jure cessio, e para as res nec mancipi, a simples traditio.
Os detalhes desses vários modos de aquisição serão tratados oportunamente.
Cumpre ainda adiantar que o usucapião - modo de aquisição
da propriedade pelo simples fato de alguém ter a coisa em seu poder
por certo tempo e sob certas condições - gerava propriedade quiritária, tanto no caso das res mancipi como no caso das res nec mancipi.
Assim, se alguém comprasse uma res mancipi, sem que o vendedor
transferisse a propriedade dessa coisa pelos atos jurídicos solenes acima mencionados, mas sim apenas pela simples tradição da coisa, o
comprador não adquiria a propriedade quiritária. Só o usucapião, após
decurso do prazo prescrito, gerava tal domínio. Assim, o usucapião,
como modo de aquisição da propriedade reconhecida pelo ius civile,
supria nestes casos a falta da mancipatio ou da in jure cessio.
PROPRIEDADE PRETORIANA
O sistema do ius civile acima exposto era rígido e complicado
demais para o rápido desenvolvimento dos negócios, exigência natural
do comércio. Além disso, a aplicação das regras acima atentou, em
muitos casos, contra a eqüidade, princípio que foi ganhando vulto na
segunda metade da República. Tome-se, por exemplo, o caso da transferência da propriedade de res mancipi pela simples tradição ao invés
dos atos solenes prescritos. Naturalmente, a simples entrega atende
muito mais às necessidades do comércio do que às formalidades complicadas da mancipatiO e da in jure cessio. Praticada aquela, porém,
perante o ius civile o vendedor ainda era proprietário, enquanto não
se completasse o prazo do usucapião. Isto era uma injustiça contra o
comprador, que pagara o preço ao vendedor.
O pretor, em obediência aos princípios que nortearam sua atividade, socorreu os prejudicados com tais situações. Considerando que
o comprador, no exemplo acima descrito, aliás muito comum, estava
em vias de usucapir, protegeu-o contra o antigo proprietário que lhe
vendera a coisa e que, depois, baseando-se no formalismo do ius civile,
de má-fé exigisse a devolução daquela. O meio de defesa era uma
exceptio rei venditae et traditae, concedida pelo pretor na fórmula
da ação, que paralisava a pretensão do proprietário antigo. Por este
meio, o comprador ficava protegido contra o antigo proprietário.
Depois, tal defesa foi estendida pelo pretor para os casos em
que a coisa, que havia sido entregue ao comprador pela simples tradição, caísse em mãos de terceiros. Neste caso o comprador não tinha
direito reconhecido pelo ius civile em que pudesse basear sua pretensão e reaver a coisa. Entretanto, o pretor, considerando-o como
tendo usucapião em curso, concedeu-lhe uma ação, chamada actio
Publiciana, de um pretor Publicius, que a introduziu, e pela qual o
comprador podia exigir a devolução da coisa de qualquer pessoa que
a tivesse em seu poder. Processualmente, a actio Publiciana baseou-se
na ficção de que o prazo do usucapião tivesse realmente decorrido.
Os remédios processuais acima expostos foram utilizados em outros casos semelhantes, como na aquisição a não-proprietário, na doação, bem como nos casos da missio in possessionem, em que o pretor
conferia a posse definitiva da coisa, com base no seu imperium a
pessoa outra que não o proprietário quiritário. Exemplos destes casos
encontramos na execução do devedor insolvente (bonorum emptor),
na sucessão pretoriana (bonorum possessio) etc.
Assim, o pretor construiu um novo tipo de propriedade, diferente e até contraposta à propriedade quiritária. Formalmente o pretor
não podia derrogar o ius civile. Por isso, o proprietário quiritário, nos
específicos casos regulados pelo pretor, continuava nominalmente dono,
mas seu direito ficava reduzido só ao nome (nudum ius Quiritium), e
do ponto de vista prático nenhum valor teria, porque o pretor assegurava o poder definitivo sobre a coisa a quem julgasse mais justo.
Esta propriedade pretoriana se chamava também propriedade
bonitária, por terem os romanos usado sempre as expressões in bonis
esse para indicar o domínio concedido pelo pretor, em contraposição
à propriedade quiritária: dominium ex jure Quiritium.
PROPRIEDADE DE TERRENOS PROVINCIAIS
Conforme já mencionamos, os terrenos situados nas províncias,
fora da península itálica, ficaram de propriedade do Estado. Na época
imperial umas províncias pertenciam ao povo romano e foram administradas pelo Senado, ao passo que outras eram propriedades do
Imperador.
Os terrenos nelas situados eram chamados praedia stipendiaria e
praedia tributaria, respectivamente.
A propriedade particular foi excluída de tais terrenos. Entretanto, o Estado podia conceder, e realmente concedeu, o gozo deles
a particulares, concessão semelhante, mas não idêntica, à propriedade.
Os textos indicam-na com as expressões habere possidere frui e Gaius
a chama possessio vel ususfructus. Na prática aplicam-se-lhe todas as
regras referentes ao domínio em geral.
PROPRIEDADE DE PEREGRINOS
Por falta do requisito da cidadania, o estrangeiro não podia adquirir propriedade pelo ius civile. Os romanos reconheciam-lhe, entretanto, a propriedade pelo seu próprio direito estrangeiro, chamando
esta de simples dominium, em contraposição ao dominium ex iure
Quiritium e admitiam para ela meios processuais de defesa que imitavam os da defesa da propriedade quiritária.
UNIFICAÇÃO DOS DIVERSOS TIPOS DE PROPRIEDADE
Justiniano aboliu a diversidade de propriedade, unificando o
instituto, uma vez que as causas da distinção já haviam desaparecido
em sua época.
CAPITULO 10
CO-PROPRIEDADE
CONCEITO
O caráter absoluto e exclusivo da propriedade incompatibiliza-se
com a existência de duas propriedades ao mesmo tempo sobre a mesma coisa: duorum in solidum dominium esse non potest (D. 13.6.5.15).
É possível, entretanto, que o direito de propriedade pertença a mais
de uma pessoa, dividido entre elas. Trata-se da co-propriedade (condominium), tendo cada co-proprietário direito a uma parte ideal da coisa
(totius corporis pro parte dominium habere - D. 13.6.5.15). Tal copropriedade pode originar-se por vontade das partes (adquirindo, por
exemplo, uma coisa em comum) ou incidentalmente (herdando em comum, por exemplo). A coisa não é dividida entre os proprietários,
mas cada um deles tem direito, na proporção de sua parte, a cada
uma das parcelas componentes da coisa inteira. Assim, o direito de
propriedade de cada um, em princípio completo, está limitado pelo
direito do outro co-proprietário. Uma vez, porém, que a propriedade
de um dos co-proprietários se extinga (renunciando, por exemplo), tal
propriedade passará a pertencer aos demais (ius accrescendi). Do mesmo princípio segue-se que o co-proprietário tem poder ilimitado sobre
a parte do direito que a ele pertence; pode aliená-la, doá-la etc., mas
o seu direito de disposição sobre a coisa inteira está limitado pela
concorrência do direito dos outros co-proprietários. Disposição relativa à coisa inteira exige o acordo unânime, ou, ao menos, tolerância
passiva de todos os outros co-proprietários. Em outras palavras, qualquer deles pode vetar disposição dos outros (ius prohibendi), não prevalecendo a vontade da maioria contra a minoria (in re communi neminem dominorum jure facere quicquam invito altero posse - D.
10.3.28).
Naturalmente, tal estado de co-propriedade não podia ser imposto às partes, pois suas regras possibilitariam a obstrução completa
por qualquer delas ao desejo das outras. Havia, realmente, um meio judicial para conseguir a divisão: a actio communi dividundo. Esta
podia ser proposta a todo tempo por qualquer dos co-proprietários.
A divisão se verificava pela fragmentação real da coisa, se esta
era divisível, ou, em caso contrário, pela sua adjudicação a quem
maior lance oferecesse. O adjudicatário ficava com a obrigação de
pagar a cada um dos proprietários, em dinheiro, a parte que lhes
coubesse.
CAPfTULO 11
POSSE
CONCEITO
A posse é um poder de fato sobre uma coisa corpórea: a efetiva
subordinação física da coisa a alguém. Distingue-se da propriedade,
que é poder jurídico absoluto sobre a coisa. O primeiro é um fato,
o segundo é um direito.
Os dois conceitos são nitidamente distinguidos: Nihil commune
hábet proprietas cum possessione (D. 41.2.12.1).
A linguagem vulgar não faz tão clara distinção. Usam-se como
equivalentes as expressões posse e propriedade. E, realmente, a pro-
priedade inclui o direito de exercer o poder de fato. Mas além disto
inclui muito mais, sendo um direito absoluto. O poder de fato faz
normalmente parte do exercício do direito da propriedade, mas não
sempre: empresto o meu cavalo; alugo a minha casa; perco a minha
carteira; um ladrão roubou minha jóia. Nestes casos, citados a título
exemplificativo, o direito de propriedade fica inalterado, mas a coisa
passou a estar efetivamente subordinada ao poder de fato de alguém
diverso da pessoa do proprietário.
Para que haja efetiva subordinação física da coisa a alguém,
não é preciso direito algum. O ladrão não tem direito à coisa, mas
tê-la-á em seu poder de fato. De outro lado, a propriedade pode existir
sem a posse. Por exemplo: quando empenho a minha jóia.
A posse compõe-se de dois elementos: um material, outro intencional.
O primeiro é o fato material de a coisa estar subordinada fisicamente a alguém. Chama-se corpus. Os limites de tal submissão de fato
dependem das circunstâncias. O meu carro estacionado na rua, em
frente à minha casa, é considerado na minha posse. Mas não assim a
carteira que deixei no mesmo lugar.
O segundo elemento da posse é o intencional, chamado animus.
É preciso a intenção de possuir, animus possidendi; não basta a proximidade real. Por isso, não possuo a carteira que um ladrão colocou
no meu bolso, porque estava sendo perseguido no ônibus, nem possuo
a galinha que, do terreno vizinho, entrou no meu galinheiro.
Os dois elementos têm que existir simultaneamente. Não basta
só a intenção, sem o fato material do exercício do poder. Perseguindo
o animal ferido na caça, só o possuirei pela apreensão material. Dependerá da praxe e das circunstâncias estabelecer quais as situações de
fato que são consideradas como compreendendo ambos os elementos.
Assim, conservo a posse da galinha que entrou no jardim do vizinho,
mas não a do meu canário que saiu da gaiola.
A posse, como poder de fato efetivo, tem grande importância
jurídica:
a) Em certos casos é preciso a posse para a aquisição da propriedade, como no caso da ocupação, do usucapião, da tradição, institutos que estudaremos no capítulo sobre os modos de aquisição da
propriedade.
b) Na reivindicação, que é o meio judicial de proteção do
direito de propriedade, o réu é o possuidor. Isto significa que o ônus
de provar o seu direito incumbe a quem não está na posse, ficando
o réu na cômoda posição de simplesmente negar o direito alegado
por aquele, isto é, pelo autor.
c) A posse, quando reconhecida pelo ordenamento jurídico como tal, é protegida contra turbação.
Essa proteção é a primacial conseqüência jurídica da posse.
Nem todo poder de fato efetivamente exercido tem os efeitos
acima enumerados.
Embora constituído dos dois elementos, animus e corpus, tal
poder dependerá ainda de outros requisitos para ter efeitos jurídicos.
Ficará, naturalmente, a critério do ordenamento jurídico estabelecer
quais as situações de fato que merecem tutela jurídica e quais as que
não a merecem.
Distinguimos, assim, entre o poder de fato chamado detenção,
que não gera conseqüências jurídicas, e o poder de fato chamado
posse, que as tem. A esta distinção terminológica correspondem os
termos técnicos latinos possessio naturalis e possessio ad interdicta.
No direito romano tiveram posse todos aqueles que possuíram
a coisa com a intenção de tê-la como própria, isto é, com o animus
rem sibi habendi. Tal comportamento independe, naturalmente, da
questão de o possuidor realmente ter ou não ter direito de comportarse como dono. O ladrão, por exemplo, é possuidor, embora não tenha
direito nenhum sobre a coisa. Sendo, assim, possuidor, terá proteção judicial contra turbação indevida. Naturalmente, tal proteção será
ineficaz contra o proprietário mesmo, como veremos mais tarde, mas
valerá contra qualquer terceiro.
De outro lado, os que exercem o poder de fato reconhecendo a
propriedade de outrem não possuem, mas detêm, a coisa. A sua intenção é simplesmente a rem alteri habere, não vai além de ter a coisa
em seu próprio poder, mas em nome do proprietário.
Os detentores não têm proteção jurídica. O seu poder de fato,
chamado detenção ou possessio naturalis, é destituído de conseqüências jurídicas.
Nesta situação estão, no direito romano, o locatário, o depositário e o comodatário, para dar uns exemplos.
Entretanto, houve exceções a essas regras gerais. Quatro casos
isolados, entre eles o do enfiteuta e do credor pignoraticio, receberam
tratamento diferente. Embora se trate de poder de fato exercido sem
a intenção de ter a coisa como própria, pois estes todos reconhecem
o direito do proprietário, o direito romano estendeu a proteção possessória a eles.
Estas exceções, provavelmente motivadas por razões práticas,
criaram muitas dificuldades à dogmática moderna, elaborada com
base nas fontes do direito romano. Deixo de versar este aspecto do
problema para não dificultar a compreensão do assunto, já por si
tão intrincado.
Há que se esclarecer ainda ser a posse caracterizada pela intenção inicial de possuir: nemo sibi ipsum causam possessionis mutare
potest (D. 41.2.3.19). Assim, caso o locatário, no curso da locação,
decida apropriar-se da coisa, nenhum efeito terá essa nova intenção
no que se refere ao tipo de sua posse, que ficará sempre detenção.
HISTÓRIA DA POSSE
O conceito da posse é bem mais recente do que o da propriedade. Embora a época das XII Tábuas já conhecesse a distinção
entre o direito e seu exercício (este último chamado usus, que era a
base do usucapião), não conhecia a conseqüência primacial da posse:
a sua proteção judicial contra turbação. Tal proteção foi introduzida
pelo pretor, por meio dos interditos, que, na origem, protegeram o
gozo do ager publicus. O precarista, a quem se concede gratuitamente
o uso revogável a qualquer tempo de uma coisa, era, provavelmente,
um destes casos. Depois, tal proteção foi estendida, pelo pretor, a
outros casos em que defendeu a preexistente situação de fato contra
turbação arbitrária. Tal proteção não era definitiva, como nunca será.
É sempre provisória e serve apenas para preparar a questão jurídica
sobre a propriedade. A finalidade do pretor era estabelecer a posição
processual das partes. Na questão sobre a propriedade, quem tem a
posse da coisa terá a posição mais favorável de réu na reivindicação.
A outra parte, o autor, ao atacar, terá que provar o seu direito, problema sempre gravíssimo, não só nos tempos antigos, como também hoje.
A jurisprudência romana elaborou o conceito da posse com base
na proteção pretoriana, que, por sua vez, data de época anterior à
lex Aebutia, no início do século II a.C.
CAPITULO 12
AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE
CONCEITO
O direito de propriedade, como os direitos em geral, adquire-se
em conseqüência de determinados fatos jurídicos. Estes são os modos
de aquisição da propriedade, que podem ser classificados conforme
vários critérios.
Os romanos distinguiam entre os modos iuris civilis e os iuris
gentium. Não há base dogmática para tal distinção, que se justifica
só por considerações históricas.
Distinguem-se, ainda, os modos de aquisição inter vivos dos mortis causa.
Nestes últimos a aquisição da propriedade depende do evento
da morte de alguém. Só cuidaremos agora dos modos de aquisição
entre vivos, deixando os da segunda categoria para o capítulo das
sucessões.
A classificação dos modos de aquisição em originários e derivados
é da dogmática moderna e servirá como base de nossa exposição.
Adquire-se a propriedade por modo originário quando não há
relação entre o adquirente e o proprietário precedente. Do mesmo
modo inexistia tal relação quando a coisa não era de propriedade de
ninguém ao ser-lhe adquirido o domínio.
Os modos de aquisição derivados são os que se fundam na transferência do direito de propriedade pelo dono ao adquirente. Vige
aqui o princípio pelo qual ninguém pode transferir mais direito do
que ele mesmo tenha: nemo plus iuris ad alium transferre potest, quam
ipse haberet (D. 50.17.54). Assim, o direito do adquirente dependerá
do direito do dono precedente. Continuará a existir com todas as limitações que eventualmente tiver.
MODOS ORIGINÁRIOS DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE
Os romanos consideraram os modos originários como fundados
na naturalis ratio e provenientes do ius gentium. Conseqüentemente,
podem ser praticados também por estrangeiros.
a) Ocupação (occupatio). Consiste na tomada de posse de
uma coisa in commercio, que não está sob domínio de ninguém (res
nullius), e gera o direito de propriedade dela. É bastante que se estabeleça o poder de fato com a intenção de ter a coisa como própria: a
posse com animus domini.
Assim, podem ser apropriados pela ocupação: os animais selvagens, as ilhas nascidas no mar, os bens dos inimigos de Roma, bem
como as coisas abandonadas pelo seu dono (res derelictae).
b) Invenção. Tesouro é coisa preciosa desaparecida por tanto
tempo que seu dono tornou-se desconhecido. Conforme uma constituição do Imperador Adriano (século II d.C.), pertencerá em partes
iguais ao descobridor (inventor) e ao proprietário do terreno onde
foi achado. Excetuam-se os casos em que o inventor foi mandado à
procura do tesouro pelo próprio dono do terreno, ou em que foi procurado e achado contra expressa proibição deste último. Nestes casos
o tesouro pertencerá integralmente ao proprietário do terreno.
c) União de coisas. Acessão (accessio). Na junção material
de duas ou mais coisas, o direito do proprietário da coisa principal
estende-se ao todo. Trata-se, naturalmente, de junção em que a coisa
principal absorve a acessória, perdendo esta última a sua individualidade.
O terreno é sempre principal e incorpora tudo que lhe estiver
ligado definitivamente. Assim, as construções (inaedilicatio), sementes (satio), plantas, árvores (inplantatio).
Semelhantemente, os acréscimos naturais do terreno; o acréscimo do terreno pelo depósito de cascalho (alluvio); a junção, ao
terreno, de uma porção de terra arrancada de um outro terreno por
força natural (avulsio); o Leito do rio desviado, que acresce aos terrenos ribeirinhos, dividindo-se no meio (alveus derelictus); a ilha
formada no rio, que se divide da mesma forma entre os proprietários
ribeirinhos (insula in Ilumine nata).
Semelhantemente, a coisa principal móvel absorve o acessório
móvel, como na solda de metais (ferruminatio), na tecedura (textura),
na escritura (scriptura), na pintura (pictura) etc.
Outro tipo de união é a mistura de líquidos ou de sólidos homogêneos (confusio commixtio). Sendo a nova coisa divisível em seus
componentes, a união não modifica os respectivos direitos de propriedade. Não sendo, porém, separáveis os componentes da mistura, haverá co-propriedade na proporção dos respectivos valores.
d) Especificação (specificatio). É a confecção de coisa nova
com material alheio, como, por exemplo, balde feito de metal pertencente a outrem. Os jurisconsultos da escola sabiniana atribuíam a
nova coisa ao proprietário da matéria-prima, os proculianos ao autor
da obra (especificador). Sobreviveu a opinião intermediária, pela qual
a nova coisa só pertencerá ao especificador se não for mais possível
reduzi-la à sua forma primitiva. Naturalmente, tal aquisição de propriedade não exclui a obrigação do adquirente de indenizar o proprietário da matéria "especificada".
e) Aquisição dos frutos. Os frutos, em regra, pertencem ao proprietário da coisa que os produz. Há casos, porém, em que os frutos
são de propriedade de pessoa diversa da daquele. Assim, no caso do
enfiteuta, no do possuidor de boa-fé, no do usufrutuário.
A propriedade do fruto é adquirida pelo fato da sua separação
da coisa frugífera; exceto no caso do usufrutuário, que só adquire a
propriedade pela percepção, isto é, pela apreensão material.
Temos que mencionar que o locatário também pode adquirir a
propriedade dos frutos pela sua percepção, se assim for convencionado no contrato de locação. Sua aquisição, entretanto, difere dos
outros acima mencionados, porque se funda numa concessão do proprietário, ao passo que os outros adquirem independentemente de
autorização contratual.
MODOS DERIVADOS DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE
O direito clássico conheceu três atos jurídicos cuja finalidade era
transferir a propriedade: a mancipatio, a in iure cessio e a traditio.
Já estudamos, detalhadamente, os dois primeiros.
a) "Mancipatio". Como vimos, destinava-se à transferência
da propriedade das res mancipi. Sendo, no início, uma compra e venda
real, no período clássico adquire caráter abstrato: praticando-a, transfere-se a propriedade, independentemente da natureza ou validade do
ato jurídico em que se funda. Por exemplo: a mancipatio de um escravo era válida, embora viciada, por dolo praticado pelo comprador,
a venda em que ela se baseia.
b) "In iure cessio". Também já vimos, era originariamente um
processo simulado, passando, no período clássico, a ser um ato jurídico abstrato. Serve para transferir a propriedade não só das res
mancipi, mas também das res nec mancipi.
c) "Traditio". A tradição é a simples entrega sem formalidade. É o modo mais natural de transferência. Sendo ato jurídico do
ius gentium, não serviu, em todo o período clássico, para transferir
a propriedade das res mancipi, mas só a das res nec mancipi.
Na realidade, trata-se de transferência da posse, qualificada pela
intenção das partes de transferir o respectivo domínio. Daí se segue
que não basta o simples acordo entre as partes no que se refere à
transferência: esta tem que se materializar nos fatos, pela entrega
física da coisa (traditionibus dominia rerum, non nudis pactis transferuntur, C. 2.3.20).
Verifica-se a entrega real pela apreensão física no que se refere
aos móveis, e pelo "ingresso e percurso" no caso dos imóveis (glebas
circumambulare).
Basta, às vezes, uma entrega simbólica, como, por exemplo, a
entrega das chaves do armazém onde está a mercadoria a ser transferida para a propriedade do adquirente. Semelhante é a traditio longa
manu, que também consiste na entrega simbólica da coisa, como, por
exemplo, indicando do alto de um morro os limites de um terreno,
que se transfere. Tais modos representam sempre uma entrega real,
porque os atos praticados a simbolizam.
Há casos excepcionais também que são considerados como de
entrega real, embora esta efetivamente não exista. Tais são os da
entrega fictícia (traditio lida). O primeiro é a traditio brevi manu.
O detentor converte-se em possuidor só pela intenção das partes: solo
animo. Exemplificando: Fulano detém, a título de locação, uma casa,
que pertence a Sicrano. Este vende a casa a Fulano. Para efetuar a
transferência, isto é, para praticar a traditio, basta o acordo entre as
partes. Outro caso da traditio ficta é o do constituto possessório
(constitutum possessorium). Trata-se do inverso da traditio brevi manu.
O possuidor converte-se em detentor, só pela intenção das partes. Por
exemplo: Fulano, proprietário de uma casa, está morando nela. Depois vende-a a Sicrano, mas continua a ocupá-la como locatário. Para
efetuar a traditio real seria preciso que Fulano entregasse a casa a
Sicrano que, por sua vez, a devolveria a Fulano. A primeira entrega
para transferir a propriedade e a segunda para efeitos da locação. Seria
ociosa tal prática complicada. É mais simples que Fulano fique morando na casa, naturalmente não mais como dono, mas em nome de
Sicrano. Realizou-se, assim, a traditio (ficta), sem a entrega real da
coisa, simplesmente pelo acordo entre as partes.
USUCAPIÃO (Usucapio)
É um tipo especial dos modos de aquisição da propriedade. Funda-se, essencialmente, na posse, por tempo prolongado, que transforma uma situação de fato em direito. Justifica-se pela natural preocupação de eliminar a incerteza nas relações jurídicas fundamentais,
como a propriedade: ne rerum dominia in incerto essent (cf. D.
41.3.1).
Trata-se de um instituto jurídico antigo; já as XII Tábuas o
regularam: usus auctoritas fundi biennium... ceterarum rerum annuus
est usus. Daí o seu nome usucapzo.
O uso ininterrupto de um terreno durante dois anos, e o de outra
qualquer coisa durante um ano, independentemente de outros requisitos, gera propriedade, segundo o direito das XII Tábuas. O que
adquire por este modo fica dispensado de justificar a sua posse, uma
vez decorrido o prazo prescrito, e o direito de propriedade, que adquire, independe, por sua vez, do direito de seu antecessor.
Originariamente, este instituto aplicava-se a todas as relações de
senhoria, inclusive às do poder do paterfamilias. Por isso foi possível
o usucapião do poder marital (manus). Mais tarde, porém, ficou restrito à propriedade.
Deste primitivo instituto do direito quiritário, a jurisprudência,
no fim da República, elaborou o novo conceito do usucapião, estabelecendo os requisitos necessários para sua verificação, que eram até
então desconhecidos.
O usucapião do direito clássico pressupõe uma coisa suscetível
(res habilis) de dominium ex iure Quiritium. É natural tal exigência,
pois o usucapião gera propriedade quiritária. Conseqüentemente, excluem-se desse modo de aquisição as res extra commercium, bem como os terrenos provinciais. São, ainda, excluídas do usucapião, por
uma regra das XII Tábuas, as coisas roubadas (res furtivae), enquanto
não voltarem às mãos de seu legítimo dono. Outras leis estabeleceram
regra idêntica quanto às coisas cuja posse fora obtida por violência
(res vi possessae).
Segundo requisito do usucapião clássico é a "posse" da coisa
qualificada pela intenção de tê-la como própria (chamada possessio
civilis).
Terceiro requisito é um iustus titulus ou iusta causa usucapionis.
Esse título ou causa é o ato jurídico precedente em que a posse se
baseia e que, por si só, justificaria a aquisição da propriedade. Títulos
ou causas podem ser, por exemplo, a compra, a doação, o dote, o
pagamento de dívida etc.
Temos que recordar, aqui, que para a transferência da propriedade não basta o simples acordo entre as partes: é preciso, ainda, a
prática de um dos atos de transferência. Tais atos foram estudados
no parágrafo relativo aos modos derivados de aquisição da propriedade.
Se, entretanto, o ato de transferência for viciado, não se transfere a propriedade. Assim, nos casos de:
a) transferência por quem não é dono ou por pessoa incapaz
de agir;
b) vício formal do ato de transferência; por exemplo, a prática
da traditio ao invés da manctpatio na hipótese de se tratar de um
escravo, ou qualquer outra falha cometida nas formalidades prescritas
na mancipatio ou na in iure cessio.
Nestes casos, embora nulo o ato de transferência da propriedade,
adquire-se o domínio pelo usucapião, se for válido o título em que se
fundou o ato de transferência viciado.
Quarto requisito é a boa-fé do possuidor (bona lides). Esta é a
convicção do agente de que a coisa legitimamente lhe pertence. Tratase, naturalmente, de um erro de fato de sua parte.
A boa-fé é exigida apenas no momento inicial da posse. No direito romano, a superveniência de má-fé não prejudica o usucapião:
mala lides superveniens non nocet. De outra parte, a boa-fé sempre
se presume, só deixando de ser admitida ante prova em contrário.
Quinto requisito é o decurso do prazo (tempus) necessário para
a aquisição da propriedade pelo usucapião. É de dois anos, ou de
um ano, conforme se tratar de terreno ou de outra coisa qualquer,
respectivamente.
Com o herdeiro continua a correr o prazo inicIado pelo defunto
(successio possessionis). O mesmo não se dava, porém, com quem
adquirira a coisa a título particular, como por compra, doação etc.
Mais tarde, a partir da época dos Imperadores Severus e Caracalla
(século III d.C.), tais adquirentes foram equiparados aos herdeiros,
autorizando-se-lhes a contagem do prazo do usucapião a partir do
início da posse do seu antecessor (accessio possessionis).
A perda da posse interrompe o prazo do usucapião (usurpatio).
Recuperando-se a posse, inicia-se novo prazo. O direito clássico não
conhece ainda a interrupção causada pelo exercício do direito de ação
reivindicatória, nem a suspensão do prazo em favor dos incapazes ou
ausentes. Estes, porém, podiam ser socorridos pelo pretor, por meio
da restitutio in integrum.
"PRAESCRIPTIO LONGI TEMPORIS"
A praescriptiO é um instituto muito mais recente que o usucapião e também completamente diferente dele, quanto ao caráter. Enquanto o usucapião é um modo de aquisição da propriedade, a praescriptio, na sua origem, é um meio de defesa processual, concedido ao
possuidor contra quem lhe exigisse a coisa por meio de ação reivindicatória.
Trata-se de um instituto de origem grega, que foi criado no fim
do século II d.C. É uma espécie de exceptio na ação reivindicatória,
que paralisava a pretensão do autor contra o réu, em virtude de possuir este pacificamente a coisa durante um determinado prazo. Este
era muito mais comprido do que o do usucapião: 10 anos quando
ambas as partes moravam na mesma cidade (inter praesentes) e 20
anos em caso contrário (inter absentes). Exigiam-se, também, os requisitos do usucapião: o justo título e a boa-fé (iustum initium possessionis). Mais tarde, tal defesa processual se transformou num modo
de aquisição da propriedade, tendo, por meio dela, o adquirente completa proteção processual não só contra o proprietário antecedente,
mas contra qualquer terceiro.
Embora aplicada primacialmente aos terrenos provinciais, a praescriptio longi temporis foi estendida também aos móveis, sobretudo em
favor dos peregrinos, em vista de estes não poderem utilizar-se do
usucapião, por ser um instituto do direito quiritário.
"PRAESCRIPTIO LONGISSIMI TEMPORIS"
Considerando a evidente negligência do proprietário que, durante tempo excessivo, não usasse do seu direito contra o possuidor,
os imperadores do último período entendiam que tal proprietário deixava de merecer a proteção judicial. O imperador Constantino foi o
primeiro que estabeleceu a extinção da ação reivindicatória depois de
decorridos 40 anos. Mais tarde, Teodósio, no século V d.C., reduziu
o prazo a 30 anos. Tal extinção da ação reivindicatória opera-se sem
exigência de boa-fé, nem de justo título por parte do possuidor. Este
porém nunca será proprietário; terá, apenas, contra o proprietário,
um meio de defesa processual, fundado na alegação da praescriptio
longissimi temporis.
REFORMA DO USUCAPIÃO POR JUSTINIANO
Justiniano remodelou o usucapião completamente. Fundiu o usucapião e a praescriptio longi temporis e modificou essencialmente a
praescriptio longissimi temporis.
A praescriptio longi temporis transformou-se em modo de aquisição da propriedade, aplicável apenas aos imóveis. Exigia boa-fé e
justo título, sendo o prazo de 10 anos inter praesentes e o de 20 anos
inter absentes.
A usucapio era o nome do modo de aquisição dos móveis, sujeita aos mesmos requisitos do período anterior, e seu prazo foi aumentado para 3 anos.
A praescriptio longissimi temporis, por sua vez, passou a ser
também um modo de aquisição da propriedade, pelo decurso do prazo
de 30 anos, sem justo título, mas com boa-fé do possuidor.
PERDA DA PROPRIEDADE
Perde-se a propriedade:
Pela extinção; pelo perecimento da coisa; pelo abandono (derelictio) da coisa, com a intenção de não mais a querer; pela transferência do domínio a outrem ou aquisição originária feita por outra pessoa,
como, por exemplo, a especificação de material alheio, aquisição de
fruto por possuidor de boa-fé, usucapião etc.
AQUISIÇÃO E PERDA DA POSSE
Adquire-se a posse pela detenção da coisa com a intenção de
possuí-la (corpore et animo). O que estudamos sobre a traditio aplicase plenamente à aquisição material da posse. No que se refere ao elemento intencional, é preciso haver capacidade de agir para que possa
existir a intenção reconhecida pelo direito. Loucos e infantes, por
exemplo, não podem, por si, adquirir a posse por falta de capacidade
de agir. Mas podem adquiri-la por intermédio de seus representantes.
Perde-se a posse também corpore et animo. Em certos casos, entretanto, considera-se que a posse subsiste apenas com o elemento
intencional, como no caso das pastagens hibernais, no do escravo
fugitivo.
CAPÍTULO 13
PROTEÇÃO DA PROPRIEDADE
A propriedade é um direito absoluto e exclusivo. Conseqüentemente, o dono é protegido contra toda e qualquer interferência alheia
que turbar o exercício de seu direito. A proteção se efetua por meio de
determinadas actiones in rem, que são assim chamadas porque, na sua
fórmula, têm como objeto um direito sobre a coisa.
A turbação pode consistir na violação dos direitos dominicais na
sua totalidade ou em parte. Os meios processuais de proteção no primeiro são distintos dos usados no segundo caso.
"REI VINDICATIO"
O meio processual de proteção contra a lesão do direito da propriedade na sua totalidade é a rei vindicatio. Era a ação do proprietário quiritário que não possuía a coisa contra aquele que a possuía,
mas não era proprietário. O autor na reivindicação alegava ter o direito de proprietário quiritário, violado pelo réu, que exercia a posse,
situação essa incompatível com aquele direito de propriedade na sua
plenitude. O réu, por sua vez, ao defender-se, negava a alegação do
autor, que ficava obrigado a provar o seu direito. Seria relativamente
fácil prová-lo, se o tivesse adquirido de modo originário. Seria mais
difícil, entretanto, essa prova, nos casos de aquisição por modo derivado, porque nestes não bastava provar a existência e validade do
ato de aquisição, mas era necessário ainda fazê-lo quanto ao direito
do alienante, bem como o de seus antecessores. Era natural tal exigencia, pois, nos atos traslativos da propriedade, o direito do adquirente depende do direito do alienante, de acordo com a regra nemo
plus iuris ad alium transferre potest, quam ipse haberet (D. 50.17.54).
Na prova da aquisição da propriedade, o usucapião era, como vimos,
de grande utilidade, por ser um modo de aquisição que não dependia
do direito do antecessor. Mesmo assim, era tão difícil, na prática, essa
prova, que os medievais apelidaram-na de diabólica (probatio diabolica).
A finalidade da rei vindicatio era a de obter a restituição da
coisa. A propriedade, como direito absoluto e exclusivo sobre uma
coisa corpórea, inclui o exercício do poder de fato (posse) sobre ela.
Conseqüentemente, o autor pleiteava pela rei vindicatio a entrega da
coisa, com seus frutos, pelo ilegítimo possuidor. Tratando-se de réu
que possuía de boa-fé, só deviam ser restituídos os frutos separados a
partir da litiscontestação de ação reivindicatória. Após este momento
o possuidor não mais podia alegar a sua boa-fé, pois, pela impugnação feita pelo autor na fase inicial do processo, passava a ter ciência
de que a coisa não lhe pertencia de direito. Quanto aos frutos percebidos pelo possuidor de boa-fé antes da contestação, pertenciam-lhe
pelo direito clássico, mas Justiniano impôs a ele a restituição daqueles,
enquanto não consumidos (fructus extantes).
No que se refere às benfeitorias, as feitas pelo possuidor de boafé deviam ser indenizadas pelo proprietário, se necessárias ou úteis.
As primeiras integralmente, de acordo com o que foi desembolsado
pelo que as fez; as segundas, pelo real aumento de valor proporcionado à coisa.
O possuidor de boa-fé podia reter a coisa até receber a
indenização (ius retentionis). Advirta-se que o possuidor de má-fé
não tinha direito a qualquer indenização.
O sistema do direito clássico, que acabamos de expor, foi modificado por Justiniano, que permitiu, em determinados casos, retirar a
coisa acessória junta a título de benfeitoria, se isto se pudesse fazer
sem deteriorar a coisa principal (ius tollendi).
A propriedade pretoriana era protegida pela actio Publiciana.
Tratava-se, na realidade, de uma rei vindicatio baseada, como já vimos,
numa ficção: considerava-se o prazo do usucapião em curso como se
já tivesse decorrido. Outros detalhes foram expostos no ponto referente à propriedade pretoriana.
"ACTIO NEGATORIA"
O meio processual de defesa contra a lesão parcial do direito de
propriedade era a negatoria in rem actio. Tratava-se de ação do proprietário possuidor contra quem, alegando ter um direito real sobre
a coisa, violava, parcialmente, o exercício do direito de propriedade
daquele. Tome-se, por exemplo, o caso do vizinho que atravessasse
diariamente um terreno, alegando ter direito de servidão de passagem. Nessa ação, o autor teria que provar seu domínio; o réu, por
sua vez, o seu direito real que limitasse o do proprietário.
CAPÍTULO 14
PROTEÇÃO DA POSSE
Explicamos que a conseqüência jurídica primacial da posse (possessio ad interdicta) é a sua proteção contra turbação indevida e arbitrária. Salientamos também que, na questão da posse, não se tomava
em consideração o direito em que ela, eventualmente, se baseasse.
Assim a justa posse que se baseava num direito de exercer o poder
de fato (como o do proprietário) era equiparada à posse injusta, que
era exercida sem direito (como, por exemplo, a de um comprador de
boa-fé que adquiriu de um não-proprietário). A posse injusta era protegida do mesmo modo que a justa posse, porque o fundamento de direito era estranho à questão da posse.
Tal proteção indiscriminada da posse tinha, entretanto, uma limitação no que se refere à posse viciosa (vitiosa possessio). A posse era
viciosa, quando adquirida por violência, clandestinamente ou a título
precário: vi, clam aut precario. Mas o vício existia apenas com relação à pessoa desapossada por esses modos. Contra esta o atual pos.
suidor não tinha proteção judicial para a sua posse. Contra terceiros,
entretanto, tinha tal proteção. Assim, por exemplo, quem perdeu a
posse por violência poderia recuperá-la do autor de tal ato, mesmo
violentamente (embora não com armas). Mas só ele podia agir de tal
maneira, terceiros não. Para terceiros a posse não era viciosa, porque
o vício existia só com relação à pessoa de quem foi obtida vi, clam aut
precario.
A proteção da posse foi elaborada pelo pretor. O meio judicial
utilizado para este fim era o interdito (interdictum): um processo especial baseado no poder de mando do pretor e caracterizado pela maior
rapidez e simplicidade em comparação com as ações do processo formular.
A finalidade dos interditos possessórios era proteger o possuidor
contra turbação ou perda indevida de sua posse. Dividem-se, conseqüentemente, em interditos contra turbação da posse (interdicta retinendae possessionis causa) e interditos para recuperação da posse perdida (interdicta recuperandae possessionis causa).
INTERDICTUM UTI POSSIDETIS
Aplica-se em casos de turbação duradoura da posse de um imóvel. Por exemplo, alguém abriu os alicerces de sua construção num
lugar. Vencia quem possuía de fato o terreno.
No caso da posse viciosa, o efeito do interdito uti possidetis era
duplo. Nessa hipótese, aquele que possuía de fato perdia sua posse
para aquele de quem a obtivera por violência, clandestinamente ou a
título precário. Então, o interdito servia não apenas para conservar,
mas também para recuperar a posse perdida (interdictum duplex).
"INTERDICTUM UTRUBI"
Meio processual de proteção da posse de um móvel contra turbação. Em contraposição ao interdictum uti possidetis, protegia não
o possuidor atual, mas o que possuíra durante mais tempo no período
de um ano imediatamente anterior. Assim podia servir também para
recuperar a posse, conforme o caso.
O que acima foi dito da posse viciosa, aplica-se igualmente a
este interdito.
INTERDICTUM UNDE Vi
Protegia a posse não viciosa de um imóvel contra o esbulho violento. Só podia ser intentado dentro de um ano a contar do esbulho.
Para móveis não era necessário tal meio processual de proteção, pois
o interdictum utrubi servia também para recuperar a posse. Além
disto, para os móveis havia ainda a proteção dispensada com base
na existência de furto ou de roubo.
"INTERDICTUM DE VI ARMATA"
Proteção em defesa de qualquer tipo de posse, inclusive a viciosa,
contra esbulho violento a mão armada.
"INTERDICTUM DE PRECARIO"
Visava recuperar a posse de quem a recebera a título temporário,
por liberalidade, para ser restituída a pedido do proprietário.
Justiniano modificou o sistema dos interditos, mas deixamos de
estudar as suas alterações, a fim de facilitar a compreensão do assunto.
CAPÍTULO 15
DIREITOS REAIS
SOBRE COISA ALHEIA
CONCEITO
A propriedade é um direito absoluto e exclusivo, a ser respeitado por todos. Chama-se ius in re pelo fato de os romanos considerarem a relação entre o proprietário e a coisa como sendo direta e
imediata. Evidenciava-se tal conceito também na construção da fórmula dos meios processuais de proteção da propriedade que fazem
parte das actiones in rem. Nestas, a primeira parte da fórmula, chamada intentio, incluía apenas o nome do autor e o direito que ele alegava ter sobre a coisa, sem mencionar o réu que o teria violado.
Desta forma, as actiones in rem traduziam perfeitamente o conceito
de que o direito de propriedade, protegido por elas, valia contra todos
(erga omnes). Por causa desta característica é chamado o direito de
propriedade de um direito real.
Aliás, a propriedade é o direito real por excelencia. Há, porém,
outros direitos reais também que tem a mesma característica de valerem contra todos, mas que são restritos quanto à sua amplitude. Estes
são os direitos reais que conferem uma parcela do poder jurídico
sobre a coisa, normalmente pertencente ao proprietário, à pessoa outra
que não ele, limitando, assim, a plenitude da propriedade.
Os direitos reais sobre a coisa alheia (jura in re aliena) compreendem:
a) os direitos reais de gozo, que são as servidões prediais e
pessoais, enfiteuse e superfície;
b) os direitos reais de garantia, que são a fidúcia, o penhor o
a hipoteca.
SERVIDÕES
As servidões são direitos reais que têm por fim proporcionar
uma participação na utilidade da coisa a quem não é seu proprietário.
São chamadas servidões (servitutes), porque a coisa onerada serve,
presta utilidade ao titular deste direito.
A servidão pode existir em favor de um terreno ou em favor de
determinada pessoa. No primeiro caso, são as servidões prediais
(servitutes praediorum), no segundo, as servidões pessoais (servitutes
personarum).
Há que se salientar que o período clássico não conheceu o
conceito amplo da servidão como acima exposto. Este é fruto do
direito justinianeu.
SERVIDÕES PREDIAIS
As servidões prediais existem sempre entre dois prédios. Um, o
prédio dominante, em cujo favor a servidão subsiste, outro, o prédio
serviente, gravado pelo ônus- da servidão.
O titular do direito de servidão é o dono do prédio dominante.
Naturalmente, mudando o dono, mudará, concomitantemente, o titular
da servidão.
Assim, o direito do titular da servidão não está ligado a sua
pessoa, mas só existe em virtude da relação de domínio que ele tem
com o prédio dominante e enquanto subsistir essa relação.
O dono do prédio serviente é gravado pela servidão pelo só fato
da sua relação dominical com esse prédio, aplicando-se-lhe, mutatis
mutandis, o que foi dito sobre o proprietário do prédio dominante.
Quanto ao seu objetivo, ou seja, seu conteúdo positivo, as servidões prediais são inúmeras (paene innumerabiles). Para dar uns
exemplos: servidão de passagem, de trânsito, de canais, de fontes, de
esgotos, de não construir acima de certa altura etc.
Os romanos distinguiam as servidões prediais rústicas das urbanas. A distinção não tem base dogmática; funda-se em razões históricas. As mais antigas eram as rústicas. Lembramo-nos das servidões
de passagem, chamadas iter, via e actus, e da servidão de aqueduto,
que foram consideradas como res mancipi, demonstrando a sua antigüidade no sistema legal romano. Parece que foi o caráter do prédio
dominante que determinou se a servidão devia ser considerada rústica
ou urbana. Normalmente, as servidões urbanas eram constituídas em
favor e no interesse de uma construção e na maioria eram do tipo
negativo: proibiam ao proprietário do terreno serviente uma ação
que normalmente poderia fazer, mas que já não pode por causa da
servidão. Era o que se dava com a servidão de não construir acima
de certa altura. As servidões rústicas eram precipuamente positivas:
autorizavam o dono do prédio dominante a fazer uma coisa, interferindo no uso do prédio serviente, ação que o dono deste último tinha
que tolerar em conseqüência do gravame da servidão. Por exemplo:
uma servidão de passagem.
As característÍcas comuns das servidões prediais são a perpetuidade e a indivisibilidade. A servidão liga perpetuamente o prédio
serviente e o dominante e faz parte da qualidade jurídica deles.
A servidão é indivisível, porque constitui um direito uno, que não
pode ser partilhado. Assim, os condôminos não podem dividir entre
si o direito de servidão, mas cada um terá direito de exercê-lo
integralmente. De outro lado; a servidão grava o prédio serviente no
seu todo, sendo o ônus uno e indiviso.
Quanto ao seu objeto, a servidão deve proporcionar uma vantagem real e constante ao prédio dominante e não apenas ao seu dono
no momento em que é constituída.
É essencial, ainda, que os dois prédios estejam próximos para
que possa existir, entre ambos, servidão.
SERVIDÕES PESSOAIS
São direitos reais sobre coisa alheia, estabelecidos em favor de
determinada pessoa. Tais eram o usufruto, o uso, a habitação e o
trabalho de escravos. Todos são direitos de gozo sobre coisa pertencente a outrem. São diferentes, quanto ao seu caráter, das servidões
prediais, porque as servidões pessoais proporcionam um direito mais
amplo ao seu titular do que as prediais. Por isso, as servidões pessoais
são limitadas no tempo e não são perpétuas. É, assim, contrabalançada
nelas a maior amplitude no uso, pela duração limitada. Já as servidões
prediais conferem um direito bastante restrito ao seu titular, mas este
fica perpetuamente ligado aos prédios vinculados pela servidão.
Usufruto
É o direito ao uso de uma coisa alheia e ao gozo de seus frutos.
Seu titular é individualmente determinado e, por isso, o direito se
extingue, o mais tardar, com a morte do usufrutuário (usufruto vitalício). Pode ser constituido por certo prazo também (usufruto temporário), mas a morte do titular extingue-o mesmo antes do vencimento do prazo estabelecido. Caso o titular fosse pessoa jurídica, o
usufruto extinguia-se depois de decorridos 100 anos, pois este era
considerado como o último limite da vida humana.
O usufruto é um ônus gravíssimo que pesa sobre o direito de
propriedade. O uso da coisa e a percepção de seus frutos representam,
praticamente, as vantagens reais do gozo da coisa, normalmente reservadas ao dono. A coisa objeto de usufruto fica pertencendo a seu
proprietário, mas este quase não tirará proveito real dela, enquanto
subsistir o usufruto. O seu direito é chamado pelos romanos, acertadamente, de nuda proprietas (Gai. 2.30), que significa um direito
despido de suas conseqüências normais. Entretanto, o proprietário,
chamado nu-proprietário, conserva a expectativa de recuperar a plenitude desse direito. A temporariedade do usufruto dá um cunho de
certeza a essa expectativa.
Outrossim, para salvaguardar os interesses do proprietário privado do uso e gozo de sua coisa durante a existência do usufruto, deve
este ser exercido dentro de certos limites legais. A definição romana
do usufruto contém essa limitação: ius alienis rebus utendi fruendi,
salva rerum substantia (Inst. 2.4 pr.).
Entretanto, o significado das palavras salva rerum substantia
está longe de ser claro. Exprime, com efeito, implicitamente, várias
idéias, tais como a de que o usufrutuário, no exercício de seu direito,
não deve modificar substancialmente a coisa, a de que o usufruto se
extingue se a coisa perecer ou se transformar de maneira que mude
seu caráter, e ainda esta outra, que constitui princípio fundamental,
a de que o usufruto só pode existir sobre coisa inconsumível. Todas
elas são regras cuja inobservância acarreta a extinção ou nulidade do
usufruto. Assim, por exemplo, o usufrutuário não pode transformar
um terreno arenoso em vinhedo, embora isto possa representar um
aumento do seu valor, porque desta forma modificaria a coisa substancialmente, o que é vedado.
De outro lado, o usufrutuário é obrigado a exercer seu direito
boni viri arbitratu: como homem cuidadoso. Assim, ele deve consertar
a casa, adubar o terreno, manter completo o rebanho pela substituição
das ovelhas perdidas com as que vierem a nascer. Esta sua obrigação
devia ser reforçada por uma caução (cautio usufructuaria), que
servia também para assegurar a devida devolução da coisa no estado
em que estava quando recebida.
O direito do usufruto era intransferível, mas seu exercício podia
ser cedido, tanto a título gratuito como a título oneroso.
Usufruto irregular. Das regras acima segue-se que o usufruto só
podia ser estabelecido sobre coisa inconsumível, porque a consumível
não pode ser usada, normalmente, sem que se lhe destrua a substância.
Entretanto, no início do Principado, um senatus-consulto permitiu o
usufruto de coisas consumíveis. Neste caso, porém, a coisa na realidade passa para a propriedade do usufrutuário que, conseqüentemente,
fica com a obrigação de devolver, findo o usufruto, coisa equivalente
do mesmo gênero, qualidade e quantidade. Tratando-se de forma anômala, por chocar-se com os princípios fundamentais do usufruto, os
romanos chamavam este, que recaía sobre coisas consumíveis, de
quasi ususfructus.
Uso
Outro direito real sobre coisa alheia, enquadrado na categoria
das servidões pessoais, é o uso (usus) - o direito de usar de uma
coisa, originariamente não podendo perceber seus frutos, mais tarde
admitindo-a, porém apenas para a satisfação das necessidades do
titular e na medida delas. O usuário pode servir-se da coisa para seu
uso pessoal e para o de sua família. Aplicam-se ao uso as regras do
usufruto, com a única diferença de que o exercício do uso não pode
ser cedido.
Habitação e trabalho de escravos e de animais
São formas mais restritas de uso. A primeira se refere ao uso
de uma casa, conferindo ao seu titular o direito de habitá-la. O segundo é o direito de usar dos serviços de escravos ou de animais de carga.
CONSTITUIÇÃO, EXTINÇÃO E PROTEÇÃO DAS SERVIDÕES
O modo normal de constituição das servidões, no período do
direito quiritário, era a in jure cessio. Quanto às servidões prediais,
que foram consideradas res mancipi, estas podiam ser constituídas
pela mancipatio. Modo especial de constituição era a deductio servitutis, que era a cláusula, incluída no ato de alienação (mancipatio),
reservando para o alienante uma servidão sobre a coisa alienada.
Havia, ainda, a servidão constituída por adjudicação em partilha da
coisa comum entre os condôminos. Também era muito usado, especialmente para a constituição das servidões pessoais, o legado, que é um
ato de última vontade.
A usucapio de uma servidão era possível também, até que uma
lex Scribonia, no fim da República, a proibisse.
O pretor, por sua vez, deu proteção processual a servidões constituídas sem as formalidades retro expostas. Assim, para efeitos dessa
proteção era bastante uma espécie de traditio, seguida pela patientia,
isto é, tolerância por parte do dono da coisa, do exercício da servidão.
As servidões nos terrenos provinciais eram constituídas por ato
especial: pactionibus et stipulationibus.
Justiniano remodelou os modos de constituição das servidões,
por haverem desaparecido, no seu tempo, diferenças entre os modos de aquisição da propriedade (quiritários e pretorianos). Nessa
época, aplicou-se às servidões também o usucapião pela praescriptio
longi temporis.
Extinguem-se as servidões pela in jure cessio; pela conlusio ou
consolidatio, que são a reunião, na mesma pessoa, do direito à servidão e do domínio; pelo não uso, que implica, nas servidões prediais,
o exercício, pelo dono da coisa, de uma atividade contrária ao direito
da servidão (usucapio libertatis), e, também, pelo perecimento do
prédio serviente ou do dominante. Usufruto, uso e os direitos análogos
extinguem-se pela morte do titular.
Para proteção judicial das servidões, havia, à semelhança da rei
vindicatio, uma vindicatio servitutis e vindicatio ususfructus, cujo
nome foi transformado por Justiniano em actio confessoria. O pretor,
de sua parte, também proporcionou meios processuais para defesa
de servidões que não tivessem proteção quiritária, e, além disso, por
meio dos interditos, protegeu a posse das servidões.
SUPERFÍCIE E ENFITEUSE
O direito justinianeu conheceu mais dois tipos de direitos reais
de gozo sobre coisa alheia: a superficies e a emphyteusis. Os institutos eram excepcionais, porque conferiam ao seu titular direito tão
amplo que, na realidade, suprimia, quase totalmente, o direito do
dono da coisa.
A superfície era o direito de usar e gozar, por longuíssimo prazo,
de um terreno urbano alheio, para fins de construção, contra o pagamento de um foro anual ao proprietário do terreno.
Originou-se do arrendamento, a particulares, de terrenos perten-
centes aos municípios. Devido à regra superfícies solo cedit, tudo o
que foi definitivamente ligado ao terreno pertencia ao proprietário
deste (accessio). Assim, a construção feita pelo arrendatário pertencia ao município. Nestes casos, entretanto, para fins práticos, o pretor concedeu uma proteção possessória ao arrendatário construtor sobre a sua construção (interdictum de superficiebus). Estendendo-se tal
instituto a terrenos pertencentes a particulares e com a concessão, no
direito justinianeu, de uma actio in rem, criou-se um novo instituto
de direito real sobre coisa alheia.
Naturalmente, a construção pertencia sempre ao proprietário do
terreno, mas o superficiário tinha um direito real, oponível a todos,
autorizando-lhe usar, gozar e dispor daquela construção pertencente
a outrem. Por isso era um direito sobre coisa alheia.
A superficies era alienável a título gratuito e oneroso e transferia-se aos herdeiros.
A enfiteuse era o direito de usar e gozar, por tempo ilimitado,
de um prédio rústico alheio, para cultivo, contra pagamento de um
foro anual ao proprietário do terreno.
Suas origens remontam ao arrendamento, por prazo longo ou
para sempre (in perpetuum), das terras públicas a particulares, contra
pagamento de um foro anual chamado vectigal. Daí o nome de tais
terras arrendadas: agri vectigales. O pretor concedeu a tais arrendatários, para proteção dos direitos destes, uma actio in rem vectigalis
elevando, assim, o instituto a direito real, oponível a todos, que sobreviveu, até difundindo-se muito, em todo o período imperial.
Separadamente e bem distinto dos agri vectigales, a partir do
século III d.C., os imperadores costumavam conceder, contra um
foro anual (canon), terras incultas a particulares, pertencentes à família imperial, para cultivo. Tal concessão era feita, porém, por prazo
determinado e não muito longo. Este instituto é de origem grega, observado e copiado pelos romanos no Egito e em Cartago, e chama-se
emphyteusis.
A partir do século IV d.C., os dois institutos, o ager vectigalis,
também chamado ius perpetuum, e a emphyteusis fundiram-se e assim
apareceu o novo instituto, sob o nome do último, na codificação justinianéia.
Os direitos do enfiteuta são bem amplos, mais do que os do usufrutuário: são quase iguais aos do proprietário. Pode transformar o
terreno, modificando-o substancialmente, mas não deteriorando-o; adquire os frutos pela separação; seu direito é alienável e se transfere
aos herdeiros; pode gravá-lo por servidão, ou apenhá-lo; e possui o
terreno (possessio ad interdicta).
O direito do proprietário do terreno se restringe à percepção do
foro anual e à expectativa de recuperar a inteireza de seu domínio,
caso a enfiteuse se extinguir. Tem ele direito também ao chamado
laudemium, que era a percentagem de 2% do preço pela alienação do
direito da enfiteuse, devida pelo alienante ao proprietário.
Extinguia-se a enfiteuse: pela destruição da coisa; reunião, na
mesma pessoa, das qualidades de titular da enfiteuse e do domínio;
renúncia; ou, como pena, por não pagar o enfiteuta durante 3 anos
o foro anual, ou não avisar o proprietário para que ele pudesse exercer o seu direito de preferência em caso de venda da enfiteuse. As
regras acima aplicam-se também à superfície, com ligeiras modificações.
CAPÍTULO 16
DIREITOS REAIS DE GARANTIA
CONCEITO
O pagamento de uma dívida pode ser garantido de dois modos:
com garantia pessoal ou com garantia real. No primeiro, uma pessoa
se responsabiliza a pagar ao credor, caso o devedor não o faça; no
segundo, uma coisa fica vinculada para tal fim.
O direito real de garantia, portanto, é o que o credor, eventualmente, tem sobre uma coisa para assegurar-lhe o recebimento do seu
crédito. Tal direito é acessório: pressupõe uma relação obrigacional
principal que garante e de que depende sua existência. Cessando a
obrigação principal, extingue-se a garantia também.
No direito romano, havia três formas diferentes de direitos reais
de garantia, cada uma tendo construção jurídica diferente:
"FIDUCIA CUM CREDITORE"
Garantia de uma obrigação principal por meio da transferência
da propriedade de uma res mancipi ao credor. Efetuava-se por meio
da mancipatio ou in iure cessio, com cláusula (pactum fiduciae) adjeta,
conforme a qual o credor se obrigava a devolver a coisa, retransferindo a propriedade, logo após receber o que lhe era devido pela
obrigação principal garantida.
O credor, desta maneira, passava a ser dono da coisa. A sua
obrigação de restituí-la era sancionada por uma actio fiduciae, mas,
naturalmente, não lhe impedia de dispor da coisa como dono até a
devolução. Assim, o credor ficava bem protegido, mas muito menos
o dono da coisa dada em garantia.
Esta forma de garantia, muito usada em todo o período clássico,
desapareceu na época pós-clássica, junto com a mancipatio e a in
iure cessio.
"PIGNUS"
Coexistindo com a fiducia, havia um outro modo de garantia
real de uma obrigação: o pignus (penhor). Consistia na transferência
da posse da coisa dada em garantia ao credor, que tinha, nesta qualidade, a proteção possessória contra qualquer turbação alheia, inclusive por parte do dono. O credor não, podia dispor juridicamente da
coisa, mas a tinha em seu poder de fato, assegurando-se a possibilidade
de, por meio dela, obter o pagamento da dívida, caso o devedor não
o fizesse. Instituía-se por um acordo sem formalidades, seguido pela
entrega da coisa ao credor. Quando o acordo previa que os frutos da
coisa penhorada pertencessem ao credor pignoratício, chamava-se isso
anticrese (antichresis). Se este usasse a coisa apanhada sem expressa
autorização, cometia furto.
"HYPOTHECA"
Tanto na fiducia, como no penhor, o dono perdia a posse da
coisa em favor do credor. Economicamente, isto representava grave
ônus para o dono.
A hipoteca, forma mais recente que as outras, eliminava tais
inconvenientes.
Tratava-se de uma garantia real, estabelecida pelo simples acordo, sem que a respectiva propriedade ou posse da coisa passasse
ao credor. A coisa dada em garantia ficava vinculada simplesmente
pelo acordo, tendo o credor um direito oponível contra todos de, por
meio dela, obter satisfação do seu crédito, se não liquidado pelo
devedor.
O nome hypotheca é grego, mas o instituto é romano, tendo o
nome grego aparecido só no período pós-clássico. Originou-se do arrendamento de terras para cultivo, em que o colono (colonus) vinculava
utensílios e instrumentos (invecta et illata) para garantir sua obrigação
para com o dono da terra. Tendo necessidade deles para poder trabalhar e pagar a dívida principal, estes ficavam na sua posse. No fim
da República, um pretor, chamado Salviano, concedeu um interdito
possessório ao dono da terra para adquirir a posse, chamado interdictum Salvianum (que era um interdictum adipiscendae possessionis
causa, porque fazia adquirir a posse nunca tida antes), de tais coisas
vinculadas como garantia, em caso do não-pagamento da dívida principal. Por esta forma de garantia, criou-se um instituto distinto. Mais
tarde, mas antes da codificação do Edito, na época de Adriano, um
pretor, Servius, admitiu uma actio in rem ao dono do terreno, chamada
actio Serviana, elevando, assim, o instituto a um direito real sobre
coisa alheia, oponível a todos. Foi Salvio Juliano quem estendeu a
actio Serviana a todos os casos de hipoteca e também ao penhor.
EFEITOS DOS DIREITOS REAIS DE GARANTIA
O fiduciário ficava proprietário da coisa dada em garantia, mas
com a obrigação de devolvê-la quando liquidado o débito garantido.
Assim, durante a existência da fidúcia, ele tinha todos os direitos
que competiam ao proprietário. Não assim o credor pignoratício nem
o credor hipotecário. Estes só tinham o direito de possuir (ius possidendi). O primeiro desde logo, a partir da constituição do penhor, e
o segundo a partir do inadimplemento da obrigação principal.
A finalidade dos direitos reais de garantia é a de assegurar a
satisfação do credor, caso o devedor não pague. Na fiducia, em tal
caso, o credor ficava com a coisa, sendo dono, como era. Desta maneira, na prática, vinha a receber ou menos ou mais do que o seu
crédito, segundo o valor da coisa com relação à obrigação principal
garantida. Por este inconveniente, bem cedo introduziu-se outra modalidade de fiducia, com o pacto de poder vender a coisa: pactum ut
vendere liceret. Esta cláusula, anexa à fiducia, previa a venda da
coisa, pelo credor fiduciário, a fim de ele se pagar com o preço obtido.
Caso este não chegasse a cobrir a dívida garantida, o devedor continuava obrigado pelo resto; caso contrário, tinha direito de receber
o excesso (superfluum, hyperocha).
No pignus e na hypotheca aplicavam-se, originariamente, ambos
os modos de realização da garantia acima expostos. Na época imperial, as partes podiam escolher entre a cláusula chamada lex comissoria, que estabelecia a passagem da coisa para a propriedade do credor pignoratício, caso o devedor não pagasse no vencimento, e a outra
modalidade, chamada ius distrahendi, com base na qual o credor
podia vender a coisa para, com o preço, pagar-se do seu crédito. A
partir da época dos imperadores Serverii, século III d.C., o ius distrahendi fazia parte do penhor sempre que as partes não estipulassem
diversamente. Mais tarde, Constantino, no século IV d.C., proibiu a
lex comissoria, passando, assim, o ius distrahendi ao único e exclusivo efeito do penhor e da hipoteca. Não encontrando comprador, o
credor podia pedir ao imperador que lhe fosse atribuída a propriedade da coisa (impetratio dominii).
Era possível haver mais de um direito de hipoteca sobre a mesma coisa. Não era assim no penhor, que exige a entrega real da coisa.
Quando, então, concorriam vários direitos de hipoteca, prevalecia o
mais antigo (prior tempore, potior jure) e o mais novo tinha direito
só ao excesso verificado após a satisfação do credor hipotecário mais
antigo. Ao credor hipotecário subseqüente era lícito sub-rogar-se nos
direitos do credor hipotecário mais antigo, oferecendo-lhe o pagamento integral de seu crédito (ius offerendi).
Cumpre-se mencionar que a regra de prior tempore, potior jure
sofreu muitas exceções no período pós-clássico, em favor de tipos privilegiados de hipoteca.
Parte III
DIREITO DAS
OBRIGAÇõES
CAPÍTULO 17
OBRIGAÇÕES
CONCEITO
A obrigação (obligatio) é um liame jurídico entre o credor e o
devedor, pelo qual o primeiro tem direito a exigir determinada prestação do segundo, que, por sua vez, é obrigado a efetuá-la. Esta
idéia é expressa na famosa definição das Institutas de Justiniano:
Obligatio est iuris vinculum, quo necessitate adstringimur alicuius solvendae rei secundum nostrae civitatis jura (Inst. 3.13 pr.).
Analisando o sentido da palavra obrigação verificamos que é
bem amplo e não fica restrito ao conceito acima indicado. Em sentido lato, a palavra obrigação, como contraposto a direito, inclui todos
os deveres jurídicos. Neste sentido amplo já a encontramos ao tratar
do direito de família e também dos direitos reais. O filho é obrigado
a respeitar seu pai e todos são obrigados a respeitar e não perturbar
o exercício de um direito real pelo seu titular. Tal obrigação, porêm,
difere da obrigação no sentido técnico da palavra.
Os direitos reais implicam um dever negativo: não perturbar o
direito do titular deles. Tal dever é geral e de todos: vale erga omnes.
Nas obrigações, entretanto, a relação existe só entre determinadas
pessoas e o dever pode ser tanto negativo como positivo. Outrossim,
os direitos reais são normalmente duradouros, até muitas vezes perpétuos; ao passo que a obrigação é, em princípio, temporária, tende
sempre para seu cumprimento e extingue-se por este. Isto é expresso
em outra famosa definição dos textos romanos: Obligationum substantia non in eo consistit, ut aliquod corpus nostrum aut servitutem
nostram Iaciat, sed ti filium nobis adstringat ad dandum aliquid vel
faciendum vel praestandum (D. 44.73 pr.).
A obrigação no sentido técnico da palavra difere ainda dos deveres do direito da família. Nas relações familiares há sempre uma
subordinação, que se baseia no poder do paterfamilias. Não se dá
tal subordinação entre o credor e o devedor; eles são partes, em pé
de igualdade, na mesma obrigação.
Voltando, agora, ao conceito da obrigação (obligatio), se o devedor deixar de solver sua obrigação, o credor tem uma actio in
personam contra ele para forçá-lo à execução. Tal execução, nas
origens, era pessoal: o devedor respondia com sua pessoa, até com
seu corpo (podia ser retalhado em pedaços pelos credores, conforme
disposição das XII Tábuas). Mais tarde, a responsabilidade do devedor passou a ser patrimonial, respondendo ele com seus bens. Podemos distinguir, pois, no conceito da obrigação, dois elementos: a
existência de um débito e a responsabilidade do devedor pelo seu
pagamento (Schuld e Haftung). Essa responsabilidade, a rigor, nada
mais é que a conseqüência jurídica pelo não-cumprimento da obrigação.
PARTES NA OBRIGAÇÃO
As partes essenciais na obrigação são o credor e o devedor. Sem
os dois não há obrigação.
Entretanto, é possível que haja mais de uma pessoa no lugar
do credor ou no lugar do devedor. Em tal caso, normalmente, o crédito ou o débito das várias pessoas é partilhado entre eles: cada uma
é credora ou devedora de uma parte da obrigação. Tais obrigações
são chamadas parciais (obligationes plurium pro parte, vel pro rata).
Excepcionalmente, porém, pode haver uma relação diversa entre os
vários credores ou entre os vários devedores. Trata-se de obrigações
em que a prestação é encarada como indivisível, na sua totalidade (in
solidum). Nestas obrigações, chamadas solidárias, cada credor ou
cada devedor pode exigir ou deve a prestação toda, mas o recebimento
por um dos co-credores ou pagamento por um dos co-devedores extingue a obrigação para todos. A solidariedade que se verifica entre os
credores se chama ativa, e entre os devedores, passiva.
Várias podem ser as causas da solidariedade:
a) ser a prestação indivisível. Por exemplo: um cavalo devido
por várias pessoas;
b) disposição contratual entre as partes. Esta visa, naturalmente,
fins práticos, como o de garantir o pagamento, no caso da solidariedade passiva, ou de facilitar a liquidação, no caso da ativa;
c) ser a prestação devida em conseqüência de um ato ilícito
praticado por mais de uma pessoa.
Os manuais costumam distinguir ainda entre a solidariedade perfeita ou co-realidade e a solidariedade imperfeita, afirmando que a
primeira tem efeitos diferentes da segunda no período clássico. Estudos recentes, porém, demonstram a unidade da solidariedade não somente no período clássico, mas também no pós-clássico. Por isso deixamos de tratar da distinção, que, aliás, é produto da doutrina romanística do século passado.
Além das partes essenciais, isto é, credor e devedor, podem ser
incluídas outras pessoas na obrigação, como o fiador, ao lado do devedor, ou uma terceira pessoa autorizada a receber ou a acionar em
nome do credor. Estudá-las-emos nos devidos lugares.
OBJETO DAS OBRIGAÇÕES
O objeto das obrigações (id quod debetur) é a prestação. Esta
pode ser variadíssima, não sendo possível enumerar todas as suas
espécies. Por isso seus limites só podem ser estabelecidos negativamente.
Assim, dizemos que a prestação não deve ser fisicamente ou
juridicamente impossível, ilícita, imoral ou totalmente indeterminada.
Costuma-se, ainda, incluir a exigência de que a prestação tenha valor
pecuniário, motivada pelo fato de o processo romano só conhecer a
condenação do réu ao pagamento de quantia de dinheiro.
Caso seja impossível a prestação desde a constituição da obrigação, ela é nula (impossibilium nulla obligatio est). Em caso de impossibilidade superveniente, a obrigação se extingue, exceto quando tal
impossibilidade for imputável ao devedor. Nesta última hipótese a
prestação se transforma em obrigação de ressarcir o dano sofrido
pelo credor.
Na variedade das diversas prestações possíveis e imagináveis podem-se fazer diversas classificações:
a) Os romanos distinguiam entre dare, facere e praestare. O
primeiro significa a transferência da propriedade ou da servidão. O segundo e o terceiro indicam toda e qualquer prestação. A distinção
não tem base dogmática, nem pode ser justificada sistematicamente.
b) O objeto da prestação pode ser determinada coisa (certa
species), como o prédio situado em frente do barbeiro. Tal obrigação
é chamada específica (obligatio speciei). De outro lado, pode ser objeto da prestação uma coisa genericamente determinada (genur), como
um saco de trigo. Esta obrigação é chamada genérica (obligatio generis).
Esta distinção não deve ser confundida com a fungibilidade da
coisa. Coisa fungível pode ser objeto de obrigação específica (obligatio speciei), referente a determinada coisa, como quando compro o
carro de chapa n. X. Outrossim, coisa infungível pode ser objeto de
obrigação genérica (obligatio generis): autorizo meu agente em Roma
a comprar o melhor quadro que vir num leilão.
A importância da distinção entre obligatio speciei e obligatio
generis reside no fato de que a primeira se extingue facilmente, quando
perece a coisa, objeto da obrigação, ao passo que tal extinção difidilmente se dá com as obrigações genéricas (genus perire non potest).
A escolha da coisa, objeto da prestação, nas obrigações genéricas, cabe ao devedor, exceto quando for diversamente convencionado entre as partes. Assim, tendo vendido 50 das 100 sacas de café
da mesma qualidade que possuo, a mim é que compete escolher den-
tro das 100 as 50 a entregar.
c) O objeto da prestação pode ser determinado de maneira
que, contendo várias prestações, caiba a uma das partes escolher entre
elas. Dependerá do acordo feito, quem tenha direito à escolha, se o
credor ou o devedor. Na falta de tal acordo, o devedor é que poderá
escolher. Naturalmente, a execução ou pagamento de uma das prestações extingue a obrigação. Tal obrigação se chama alternativa. Por
exemplo, eu me obrigo a vender um dos meus cavalos x ou y.
Se uma das prestações se torna impossível, a obrigação fica reduzida à outra. No caso do exemplo, morrendo o cavalo y a obrigação
fica valendo para o cavalo x.
Não é de se confundir a obrigação alternativa com a obrigação
cujo objeto é uma só e única prestação, mas cujo devedor tem a faculdade de entregar em pagamento outra diferente da devida. A doutrina moderna chama-a facultas alternativa. Por exemplo, ao invés de
fornecer a mercadoria vendida, pago a multa contratual previamente
estabelecida para o caso do inadimplemento.
d) A obrigação é divisível quando a prestação pode ser dividida em partes, sem que diminua o valor proporcional de cada parte.
Caso contrário, a obrigação é indivisível. Assim, a confecção de uma
estátua a que se obriga o escultor é obrigação indivisível; não o é,
porém, a obrigação de pagar uma importância.
EFEITOS JURÍDICOS DA OBRIGAÇÃO E
RESPONSABILIDADE PELO INADIMPLEMENTO
A obrigação existe para ser cumprida. Conseqüentemente, o
efeito normal da obrigação é o cumprimento espontâneo da prestação pelo devedor: seu adimplemento se chama pagamento, solução
ou liquidação, por meio do qual a obrigação se extingue.
Pode acontecer, porém, que o devedor não cumpra sua obrigação, seja porque não quer, seja porque não pode solvê-la. O nãocumprimento da obrigação se chama inadimplemento.
O efeito do inadimplemento da obrigação é que o credor pode
constranger o devedor, por meio de uma actio in personam, ao pagamento da prestação. O devedor que não cumpre a obrigação será
condenado, pelo juiz, ao pagamento do valor em dinheiro da prestação não cumprida.
No direito romano, o valor era estabelecido pelo que a prestação
subjetivamente representava para o credor. Para obter seu pagamento, cabiam todos os meios de execução do processo romano.
Entretanto, nem todos os casos de inadimplemento terão o efeito
acima exposto, mas somente aqueles em que o devedor for responsável pelo inadimplemento.
Já mencionamos que o não-cumprimento pode advir da vontade
do devedor ou da impossibilidade da prestação.
No primeiro caso a atitude do devedor é claramente condenável
e acarretará a sua responsabilidade pelo inadimplemento.
Mais delicado é, porém, o problema da impossibilidade da execução da prestação. Quando tal impossibilidade se verifica em conseqüencia do comportamento do devedor, ele é responsável pelo inadimplemento. Não assim quando a impossibilidade se verifica independentemente do devedor, isto é, quando a impossibilidade não for imputável a ele. Neste caso a obrigação simplesmente se extingue.
Em vista do acima exposto, temos que examinar as possíveis
condutas do devedor com relação à impossibilidade da solução da
obrigação.
Quanto ao seu comportamento, o devedor pode ser culpado
ou não.
A culpabilidade, em sentido lato, tem duas formas bem distintas: o dolo (dolus) e a culpa em sentido estrito (culpa).
O dolo é a intenção de agir contra a lei ou contrariamente às
obrigações assumidas, agir de má-fé, porque com pleno conhecimento
do caráter ilícito do próprio comportamento.
A culpa é a negligência, a falta de diligência necessária, isto é,
não prever o que é previsível, porém sem intenção de agir ilicitamente e sem conhecimento do caráter ilícito da própria ação. Tal
negligência pode-se verificar em um ato positivo (culpa in faciendo),
como, por exemplo, guiar com velocidade excessiva, ou numa omissão (culpa in non faciendo). Por exemplo: a enfermeira que não dispensa ao doente os devidos cuidados.
O dolo não tem graduações, mas a culpa as tem: distingue-se
a culpa levis da culpa lata. A primeira é a negligência leve, em comparação à diligência e cuidado do homem médio (bonus paterfamilias).
A segunda é a negligência exorbitante: não agir com o cuidado que
todos têm (non intelligere, quod omnes intelligunt).
A culpa levis é referida normalmente a uma medida objetiva:
ao cuidado do bonus paterfamilias. Em certas relações contratuais,
entretanto, a medida da culpa levis é diferente; é comparada à diligência e cuidado costumeiro do próprio devedor (diligentia quam suis
rebus adhibere solet - D. 17.2.72). Tal medida será mais favorável ao
devedor quando este for habitualmente desleixado. A culpa leve, cuja
medida tem como referência a diligência do bonus paterfamilias, é
chamada de culpa levis in abstracto; e a culpa que se reporta à conduta costumeira do próprio devedor é denominada culpa levis in concreto. Se a impossibilidade da prestação não podia ser evitada nem pela
diligência ou cuidado de um bonus paterfamilias, o acontecimento
havido é considerado casus, ou acaso, caso fortuito. Os romanos distinguiam entre os casos fortuitos também. O acontecimento inevitável
e contra o qual não há meio de defesa (casus cui resisti non potest) é
chamado casus maior ou vis maior. Tais eram o raio, o incêndio, a
guerra, a morte etc. Os outros que não têm tal força e contra os quais
é concebível a defesa, mas que podem acontecer até com a pessoa mais
cuidadosa, chama-se casus minor. Tais eram o furto, o estrago, a quebra ou a perda acidental e fortuita.
Conhecendo, assim, a classificação dos diversos comportamentos
do devedor sob o ponto de vista da culpabilidade, temos que examinar a sua responsabilidade conforme os diversos graus de culpa ou
mesmo por acontecimentos que independem de sua culpa.
A regra geral era a seguinte:
O devedor só responde pelo próprio dolo e não por culpa quando se tratar de obrigações oriundas de contratos em que ele não lucra,
isto é, que foram constituídos no exclusivo interesse da outra parte.
Nestes ele faz um favor ao credor. Por exemplo: quando o devedor
aceita uma coisa em depósito para guardá-la e oportunamente devolvêla ao credor.
Contrariamente, o devedor, além de responder pelo seu dolo,
responde também por toda e qualquer negligência nas obrigações provenientes de contratos que lhe proporcionam um proveito (seja só
para ele, como no caso do comodato: recebendo gratuitamente uma
coisa para uso e posterior devolução, seja para ambos, como nos contratos de mútuo interesse das partes: por exemplo, a locação da coisa,
entregue para uso, contra pagamento de aluguel).
Há várias exceções à regra geral acima exposta nos textos do
direito romano.
Vários textos equiparam a culpa lata ao dolo, ampliando, assim,
a responsabilidade dos devedores que não tiram vantagem da obrigação, também para os casos de comportamento extremamente negligente.
Em certos casos, como no mandato, na gestão de negócios, a
responsabilidade do devedor vai além do dolo e inclui também a
culpa levis, embora neles se trate de obrigação no exclusivo interesse
do credor.
Em Outras relações, a culpa levis é determinada pela medida subjetiva ao invés da objetiva, aplicando-se assim a culpa in concreto ao
invés da culpa in abstracto, como nas relações de sociedade, de tutela,
de matrimônio.
Quanto ao casus, somente os transportadores e hoteleiros (nauta,
caupo et stabularios), segundo disposições especiais do pretor, respondem pelo casus minor.
O casus maior exime de responsabilidade o devedor, seja qual for
o tipo da sua obrigação, exceção feita ao caso da mora.
MORA
A responsabilidade do devedor pelo inadimplemento é modificada
por uma circunstância que merece especial tratamento: trata-se da
mora, que é a delonga, o atraso no cumprimento da obrigação. Pode
haver mora tanto por parte do devedor, como por parte do credor.
A primeira é o atraso do pagamento ou solução da prestação por parte
do devedor. A segunda é o atraso na aceitação da prestação pelo seu
credor. As duas têm conseqüências bem diferentes.
Mora do devedor (Mora debitoris, mora solvendi)
Verifica-se quando o devedor, por motivo que lhe é imputável,
não paga sua dívida vencida. Tal motivo pode ser apenas a sua vontade (como quando se recusa a cumprir sua obrigação), ou a impossibilidade da execução decorrente do seu próprio comportamento, pela
qual é responsável (per debitorem stetit quo minus daret - cf. D. 17.
1.37). No direito justinianeu, não basta o mero vencimento da dívida,
mas é preciso, além disso, um ato do credor, reclamando o pagamento
(interpellatio), para que o devedor fique constituído em mora. Estudos recentes demonstraram que o direito clássico não conheceu tal
exigência, que constitui uma inovação dos compiladores da codificação justinianéia.
A conseqüência da mora do devedor é dupla.
a) Aumenta a responsabilidade do devedor. Ele, independentemente do grau de sua responsabilidade originária em virtude do tipo
de sua obrigação, responderá não só pelo próprio dolo ou pela própria
negligência, mas também por caso fortuito, inclusive a vis maior.
Por exemplo: o depositário, via de regra, só responde por seu comportamento doloso, mas depois de atrasar o cumprimento de sua obrigação, consistente na devolução da coisa, responderá pelo perecimento
desta última, causado por sua negligência, e até por caso fortuito,
inclusive a força maior, como raio, enchente etc.
No período imperial admitiu-se que o devedor pudesse provar
que a coisa teria perecido, igualmente, se estivesse com o credor,
ficando nesse caso o devedor isento de responsabilidade. Por exemplo, se o cavalo guardado na cocheira do devedor depositário perecesse numa enchente, que invadiu igualmente os estábulos do credor
depositante.
O aumento da responsabilidade do devedor nesse caso de mora
era expresso pelos romanos como uma perpetuação da obrigação:
obligatio perpetuatur (cf. D. 45.1.91.3). Significa essa expressão que
a obrigação continuará, independentemente da eventual impossibilidade subseqüente da execução da prestação. Por exemplo, se o raio
mata o cavalo depositado, não há mais obrigação a cumprir: extinguiuse o dever da devolução por causa do perecimento do cavalo em conseqüência da vis maior. Entretanto, se o raio matar um cavalo que já
devia ter sido devolvido pelo depositário devedor, e não foi restituído
por culpa deste, ele é responsável, devendo pagar o valor que o cavalo
representar para o credor.
b) Nas obrigações baseadas na bona lides, o devedor em mora
tinha que pagar os juros da dívida e entregar os frutos adquiridos
durante a mora.
A finalidade dessas duas conseqüências da mora do devedor era
colocar o credor na situação em que ele estaria caso não tivesse havido
mora na solução da obrigação (quod interest creditoris moram factam
non esse - cf. D. 7.1.36.2).
Mora do credor (Mora creditoris, mora accipiendi)
Verifica-se quando o credor não aceita, por culpa sua, a prestação oferecida pelo devedor no vencimento dela.
A principal conseqüência da mora do credor se refere também
aos limites da responsabilidade do devedor. A partir do momento
em que a mora se verificar, o devedor só responde por comportamento doloso, sejam quais forem os limites de sua responsabilidade
anteriormente. Assim, a mora do credor diminui a responsabilidade
do devedor.
O devedor pode exigir indenização pelas despesas havidas e pelo
dano sofrido em conseqüência da mora do credor.
Purgação da mora
Em ambos os casos de mora, tanto na do devedor, como na do
credor, há possibilidade de purgação (purgatio morae). A mora do
devedor pode ser purgada pelo oferecimento da prestação tal como
devida, que, uma vez aceita pelo credor, extingue a obrigação. Se o
credor recusar receber a prestação, sem motivo justificado (sine justa
causa), cessam as conseqüências da mora do devedor e verifica-se a
mora do credor.
A mora do credor também pode ser purgada com o oferecimento,
pelo credor, de aceitar o pagamento do devedor, indenizando a este
último, ao mesmo tempo, pelas despesas e pelos danos que sofreu em
conseqüência da mora.
OBRIGAÇÕES NATURAIS
Neste capitulo, relativo aos efeitos das obrigações, temos que
falar das obrigações naturais. Como já vimos, o efeito do inadimplemento da obrigação é que o credor pode constranger o devedor,
por meio de uma actio in personam, à execução da prestação. Há
obrigações, porém, em que a prestação não é exigível por meio de
ação, embora a obrigação tenha formalmente o aspecto de uma obrigação perfeita.
Essas obrigações em que o devedor não pode ser compelido à
prestação, por faltar ao credor tutela jurídica processual, são chamadas obrigações naturais.
O principal caso de obrigação natural era, no direito romano,
o da obrigação contraída por pessoa alieni iuris, que não tinha capacidade jurídica de gozo, e que, conseqüentemente, não podia obrigarse civiliter. Pelo mesmo motivo, as obrigações contraídas por escravos,
ou as decorrentes de mútuo feito a filius familae, ao qual as disposições do senatus-consulto Macedoniano proibiam tomar empréstimo de
dinheiro, eram obrigações naturais. Semelhante era o caso do ímpúbere infantia maior que contraía a obrigação sem a assistência do
tutor, bem como as obrigações de um devedor que havia sofrido a
capitis deminutio, ou a de um menor de 25 anos que obtivera a in
integrum restitutio do pretor.
Tais obrigações, então, não podiam ser objeto de ação do credor,
mas tinham outros efeitos secundários: o mais importante deles é que
a prestação, objeto da obrigação, podia ser validamente executada pelo devedor. Assim, a prestação era considerada como pagamento e,
conseqüentemente, o devedor que a satisfizera não podia pedir a
sua devolução sob alegação de haver pago o que não era devido. Ainda
a obrigação natural podia ser garantida por fiador ou por garantia
real, e podia ser confirmada por vários modos.
CAPÍTULO 18
FONTES DAS OBRIGAÇõES
CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA
Nascem obrigações dos mais variados fatos jurídicos. Estes são
as fontes das obrigações. Os mais importantes são os contratos e os
delitos. Omnis obligatio vel ex contractu nascitur, vel ex delicio (Gai.
3.88): assim divide as obrigações Gaio nas suas Institutas. Esta divisão é, porém, incompleta. Há várias obrigações oriundas de fatos
jurídicos que não podem ser enquadrados nas duas categorias acima
mencionadas. Por exemplo, meu vizinho viajou. Na sua ausência o
telhado de sua casa é danificado pela tempestade e eu o conserto, embora não tenha recebido qualquer pedido ou incumbência de fazê-lo.
Não é contrato, nem delito o que dá origem à obrigação proveniente
desse meu gesto.
Em vista disso, outros textos distinguem uma terceira categoria
nas fontes das obrigações: obligationes aut ex contractu nascuntur,
aut ex maleficio aut... ex variis causarum figuris (D. 44.7.1. pr.).
Justiniano, em suas Institutas, prefere a quadripartição: aut enim ex
contractu sunt, aut quasi ex contractu, aut ex maleficio, aut quasi ex
maleficio (Inst. 3.13.2), desdobrando em quasi ex contractu e quasi
ex maleficio a terceira categoria acima mencionada.
A classificação das fontes das obrigações não tem valor dogmático. A do período clássico se explica por fatos históricos. O direito
romano conforme nos ensinam Gaio e Justiniano em suas Institutas,
distingue entre ações reipersecutórias e ações penais. Visam, as primeiras, a obter uma satisfação patrimonial em conseqüência de um
contrato entre as partes, e as segundas, a obter a punição do autor de
um ato ilícito. Nesta distinção é que se baseia a divisão de Gaio das
fontes de obrigações. Modernamente não se faz mais tal distinção,
mas a divisão romana das fontes das obrigações subsiste por tradição
milenária. Seguimo-la nós também.
CAPÍTULO 19
CONTRATOS
CONCEITO
Modernamente, o contratos é o ato jurídico bilateral (acordo das
partes e sua manifestação externa) que tem por finalidade produzir
conseqüências jurídicas. Todo contrato gera obrigações no direito moderno. Não assim no direito romano. Neste, desde o início até o fim
de sua evolução, o simples acordo não gerava obrigação: nuda pactio
obligatiof em non parít (D. 2.14.7.4). Para que haja liame jurídico,
chamado obligatio, era preciso, além do acordo, um fundamento jurídico: a causa civilis. Essa causa civilis é que elevava o ato jurídico
bilateral a um contractus e só o credor de um tal contrato tinha à sua
disposição uma ação (adio) reconhecida pelo direito quiritário para
constranger o devedor a efetuar a prestação.
CONTRATOS FORMAIS
O direito romano primitivo só conheceu os contratos formais.
Nestes, a causa civilis, que conferia força obrigatória e conseqüências
jurídicas ao ato, era a prática das formalidades prescritas. Dois eram
os contratos formais: o nexum e a stipulatio. O primeiro era um empréstimo, realizado por um ato formal per aes et libram, isto é, ato
em que, na presença das partes, do objeto, de 5 testemunhas, de uma
balança e seu portador, se pronunciavam certas fórmulas verbais e se
praticavam outros atos simbólicos. O ato é semelhante à mancipatio.
Dela difere porque o nexum, além da transferência da propriedade
do objeto, normalmente dinheiro emprestado, cria para o devedor a
obrigação de devolver outro tanto do mesmo gênero, qualidade e
quantidade. Ele responde pessoalmente, inclusive com seu corpo, por
esse pagamento.
A stipulatio era a promessa solene de uma prestação, pronunciada em resposta à pergunta do credor, ambos com o uso do verbo
spondere, que tinha, claramente, caráter sacramental. Daí a sua força
obrigatória.
CONTRATOS DO DIREITO CLÁSSICO
Os dois contratos formais do período primitivo, naturalmente,
não podiam satisfazer às exigências de um comércio já desenvolvido
como o de Roma depois das Guerras Púnicas. Tornavam-se necessárias outras formas mais adequadas a esses reclames, Elas foram
elaboradas pela jurisprudência republicana.
Bem cedo o nexum caiu em desuso.
A stipulatio, porém, constando de formalidades amenas e permitindo o uso de outros verbos, além do spondere, continuou em
vigor durante toda a evolução do direito romano. Os contratos por
este modo constituídos eram chamados verbais, porque se realizavam
por meio de pronunciamento de palavras.
Pode-se notar que os romanos tinham aversão às formalidades
escritas dos documentos. Como exceção a essa regra, introduziu-se,
por influência das práticas gregas, um tipo de contrato formal, puramente escrito, que consistia no lançamento no livro contábiL do credor (codex accepti et expensi) da dívida do devedor (expensum ferri).
Tais contratos, por serem realizados por escrito, chamam-se literais
(de littera: letras, escrita). São poucos os textos que nos explicam os
detalhes deste tipo de contrato e mesmo Gaio dele trata superficialmente. No fim do período clássico caiu em desuso.
Muito mais importante que as categorias até agora tratadas é a
dos contratos reais. Estes se originavam de um novo tipo de empréstimo, realizado sem as formalidades do nexum e com a só entrega
(traditio) da coisa ao devedor. Desta entrega resultava a obrigação
do devedor à devolução. O fato em que se fundava a obrigação era a
entrega realizada. Tal entrega não constituía simples transferência da
posse, mas sim a transferência da propriedade e o contrato assim realizado chamava-se mutuum. Gaio incluiu apenas este na categoria dos
contratos reais. Mais tarde foram admitidos outros três contratos, que
tinham idêntica finalidade, isto é, a devolução da coisa entregue. Estes
eram o depósito, o comodato e o penhor. Neles, porém, ao entregar
a coisa objeto do contrato, não se transferia a propriedade, mas só
a posse, ou, conforme o caso, a detenção. Mais tarde, no direito justinianeu, todos os contratos que se perfaziam pela entrega da coisa, com
a subseqüente obrigação de restituí-la, passaram a ser considerados
contratos reais.
Ao lado destes, sob influência do ius gentium, introduziam-se os
quatro contratos consensuais, que se perfazem pelo simples "acordo
das partes, sem outras formalidades. Estes, a compra e venda (emptio
venditio), a locação (locatio conductio), a sociedade (societas) e o
mandato (mandatum) são, realmente, os mais importantes e os mais
usados contratos no intercâmbio diário e com eles o direito obrigacional romano chegou à sua mais alta expressão.
Toda e qualquer outra convenção, não enquadrada nos quatro
tipos de contrato acima expostos (verbais, literais, reais e consensuais), era chamada pactum, que, em geral, não tinha força coercitiva.
Excepcionalmente, porém, certos pacta obtiveram reconhecimento e tutela jurídica; uns pelo costume, outros pela atividade do pretor e mais
outros em conseqüência de disposições de constituições imperiais. São
estes os pacta adjecta, os pacta praetoria e os pacta legitima.
O direito romano, ao contrário dos direitos modernos, não chegou a reconhecer força obrigatória a toda e qualquer convenção em
geral, uma vez que obedecesse aos limites estabelecidos. Foi, porém, a
invenção dos contratos consensuais e sua ampliação por meio de determinados pacta, que preparou o terreno para aquele reconhecimento
na dogmática moderna do direito das obrigações.
Ato jurídico unilateral, a simples promessa não gerava obrigação
no direito romano, exceto o voto feito aos deuses (votum) e a promessa pública (pollicitatio ob iustam causam).
CONTRATOS REAIS
Mútuo (Mutuum)
A entrega, com a conseqüente transferência da propriedade, de
uma coisa fungível, especialmente dinheiro, com a obrigação para
aquele que a recebe de restituir igual quantidade de coisa fungível
do mesmo gênero e qualidade, chama-se mútuo. O credor que empresta chama-se mutuante; o devedor que toma emprestado chamase mutuário.
Economicamente, o mútuo visa a proporcionar ao devedor o
gozo completo do dinheiro ou de outra coisa fungível emprestada.
Conseqüentemente, é preciso que o devedor possa dispor de maneira
absoluta desta. Por isso, no mútuo se transfere a propriedade da coisa.
Tratando-se de coisas fungíveis, que são res nec mancipi, a transferência opera-se pela traditio.
A característica do mútuo é que gera uma só e única obrigação:
a da devolução de outro tanto recebido. Por isso, ele é um contrato
unilateral. Sendo o mútuo gratuito, não admite cláusula referente à
contraprestação do devedor, que seriam os juros. Eventualmente, juros podem ser convencionados, mas em contrato separado, por meio
de stipulatio.
A ação do credor contra o devedor, para compeli-lo à devolução,
era a condictio certae creditae pecuniae, quando referente a dinheiro,
e a condictio triticaria, quando relativa a outra coisa fungível.
Depósito (Depositum)
É a entrega, pelo credor, de uma coisa móvel ao devedor para
que este a guarde, gratuitamente, e a restitua quando pedida pelo
primeiro. O credor se chama depositante e o devedor, depositário.
O depositário só detém a coisa (possessio naturalis). Não pode
usar dela, porque sua obrigação é de guardá-la, devolvendo-a em seguida no estado em que a recebera. Usando a coisa recebida em depósito, comete furto (furtum usus).
O depósito é um contrato gratuito; o depositário faz um favor
ao depositante. O depósito é contrato no exclusivo interesse do credor depositante. A responsabilidade do depositário é determinada
por este fato.
A obrigação do depositário é de guardar a coisa recebida e restituí-la, findo o depósito. De outro lado, o depositante é obrigado a
indenizar o depositário pelas despesas por este feitas com a guarda da
coisa e a ressarci-lo dos danos que eventualmente tenha sofrido em
virtude do depósito.
As obrigações do depositário e do depositante não são equivalentes. As do primeiro são essenciais, existem forçosamente em qualquer depósito, que, sem estas, não existe. Já as do depositante são
secundárias e eventuais, podendo haver depósito quando não se verifiquem, como, por exemplo, no caso de o depositário nada despender
na guarda da coisa e nenhum prejuízo sofrer com essa guarda. Além
disto, as obrigações das partes não têm o mesmo valor econômico. Por
causa desta diferença nas obrigações de cada uma das partes, o contrato de depósito é contrato imperfeitamente bilateral (contractus bilateralis inaequalis).
Comodato (Commodatum)
É a entrega de uma coisa para uso gratuito, com a obrigação
do devedor de restituí-la. O credor que entrega a coisa e que pode
exigir a sua restituição se chama comodante. O devedor que recebe a
coisa para usá-la com a obrigação de restituí-la, findo o comodato, se
chama comodatário. Do ponto de vista econômico, o comodato é semelhante ao mútuo, mas difere dele quanto à sua estrutura jurídica.
No mútuo, a coisa é fungível e o mutuário passa a ser seu dono.
No comodato, o comodatário é mero detentor da coisa (possessio naturalis). Conseqüentemente, no primeiro, o mutuário é obrigado a devolver outro tanto do mesmo gênero, qualidade e quantidade da coisa
recebida. No comodato, o comodatário terá que restituir especificamente a própria coisa recebida. Assim, a primeira é obrigação genérica, a segunda obrigação específica.
Por isso, o objeto do comodato é normalmente uma coisa inconsumível. Pode, entretanto, recair, também, sobre coisa consumível,
uma vez que esta não seja consumida pelo uso convencionado no
contrato. Por exemplo, a entrega de garrafas de vinho estrangeiro não
para ser bebido, mas para ser exposto na vitrina da loja do comodatário.
O comodato é um contrato no interesse exclusivo do devedor
comodatário. Sendo gratuito, o comodante credor faz um favor ao
comodatário devedor, cedendo-lhe o uso da coisa. A responsabilidade
do comodatário é determinada por este fato.
A obrigação do comodatário é de usar da coisa consoante o que
foi estabelecido no contrato e de acordo com a bana lides. Findo o
comodato, deve restituir a coisa ao comodante. De outro lado, o comodante é obrigado a permitir o uso da coisa pelo comodatário durante
o prazo estabelecido no contrato, não podendo exigir a devolução
antes do vencimento e devendo indenizar o comodatário não só pelo
que este despendeu com a coisa, como também pelos danos que eventualmente sofrer na execução do contrato. Exemplo desses danos podese ter no caso de um animal com peste, dado em comodato, que infeste
o rebanho do comodatário.
Como no depósito, também no comodato as obrigações do comodatário são essenciais, e as do comodante só eventuais, e as duas não
são equivalentes. Conseqüentemente, é um contrato imperfeitamente
bilateral (contractus bilateralis inaequalis).
Penhor (Contractus pignoraticius)
É a entrega de uma coisa para servir de garantia real de uma
obrigação e para ser restituida ao extinguir-se a obrigação garantida.
No direito romano a coisa apenhada tanto podia ser móvel, como
imóvel, ao contrário do que se dá com o direito moderno, em que o
penhor só pode ter por objeto coisa móvel. O credor da obrigação
principal garantida pelo penhor, chamado credor pignoratício, é obrigado a guardar a coisa e subseqüentemente a devolvê-la. Não tem
direito a usar da coisa, exceto havendo convenção expressa que o
autorize. Por outro lado, o devedor da obrigação principal garantida
pelo penhor é obrigado a indenizar o credor pignoratício das despesas
feitas com a coisa e dos danos que a sua guarda lhe houver causado.
CONTRATOS INOMINADOS
Ao lado dos contratos reais anteriormente expostos, há no direito
justinianeu uma vasta categoria de contratos, que, não se enquadrando nos moldes dos contratos tradicionais, foram chamados, desde
a época bizantina, de contratos inominados (contractus innominati).
Trata-se, na maioria dos casos, de acordos em que ambas as partes
se obrigam a prestações equivalentes. Eles são contratos bilaterais perfeitos, chamados também contratos sinalagmáticos. Tais contratos adquiriam força jurídica, e a conseqüente tutela processual, quando uma
das partes executava a sua prestação. Com isso, a outra parte ficava
automaticamente obrigada a efetuar a contraprestação.
Como o nascimento de tais contratos dependia da realização, por
uma das partes, da sua prestação, incluíam-se eles entre os contratos
reais. É de contrato inominado a troca (permutatio). A categoria, porém, como concebida no direito justinianeu, abrangia todos os contratos referentes a prestações recíprocas e equivalentes, quando realizada uma delas.
Era permitido, de outro lado, à parte que cumpria sua obrigação,
rescindir o contrato, pedindo a devolução de sua prestação a título
de enriquecimento sem causa, ao invés de exigir a contraprestação
respectiva da outra parte.
CONTRATOS CONSENSUAIS
Compra e venda (Emptio venditio)
Contrato em que as partes se obrigam a trocar mercadoria contra
dinheiro.
Difere da compra e venda real como representada nas formalidades da mancipatio. Nesta há efetiva e imediata troca de mercadoria
contra dinheiro (nas origens contra metal não cunhado). Na compra
e venda consensual, de que ora tratamos, só há o acordo entre as partes que as obriga à prestação e contraprestação.
A prestação é a entrega .da mercadoria, que pode ser coisa de
qualquer espécie. A contraprestação é o pagamento do preço. Assim,
a transferência da propriedade relativa à mercadoria ou ao preço é a
conseqüência do contrato de compra e venda. O vendedor é obrigado a entregar a coisa ao comprador, em virtude do contrato, mas o
comprador não adquire a propriedade dela pelo contrato; ele só tem
um direito obrigacional contra o vendedor, para exigir a entrega da
coisa como lhe foi prometida. A propriedade somente se transfere
com a efetiva entrega da coisa, na forma da mancipatio, da in jure
cessio ou da traditio.
O objeto da compra e venda é a mercadoria (merx), que pode
ser qualquer coisa in commercio. A contraprestação é o preço (pretium), que deve ser em dinheiro, porque em caso contrário tratar-se-á
de troca (permutatio) e não de compra e venda.
Pois que a prestação e contraprestação são equivalentes na compra e venda, é ela um contrato bilateral perfeito (contractus bilateralis aequalis).
As obrigações do vendedor são as seguintes:
a) Sua principal obrigação é a de entregar a coisa. A finalidade
da entrega é proporcionar, ao comprador, todas as vantagens, sejam
econômicas, sejam jurídicas, que a coisa representar. Isto, logicamente,
implicaria a obrigação de o vendedor transferir a propriedade da
coisa vendida ao comprador. Entretanto, o direito romano não chegou
a este resultado. Nele o vendedor é obrigado apenas a transferir a
posse da coisa vendida (vacuam possessionem tradere) e assegurar ao
comprador a posse mansa e pacífica até este último usucapir o direito
da propriedade (praestare rem habere licere).
b) Conseqüentemente, o vendedor é responsável pela turbação
que, ao comprador, no gozo da coisa, for causada por terceiro que
tenha direito real sobre ela (evincere, evictio). Esta é a responsabilidade pela evicção. No direito romano tal responsabilidade era inerente
à venda que se houvesse processado pela mancipatio, tendo, então, o
comprador adquirente uma actio auctoritatis contra o vendedor. Esta
ação tinha caráter penal e, por isso, o vendedor era obrigado a pagar
o dobro do preço. Nos outros contratos de compra e venda, que não
se processavam pela mancipatio, costumava-Se convencionar a responsabilidade pela evicção por estipulação especial, o que se tornou obrigatório mais tarde.
c) O vendedor é responsável, outrossim, pelos vícios ocultos da
coisa vendida. Tal responsabilidade foi introduzida pelo edito e pelas
atividades dos aediles curules. Esses magistrados tinham a função de
fiscalizar os mercados. Nesta sua atividade exigiam dos vendedores
de escravos e de animais de carga, que declarassem os vícios da coisa
vendida e se obrigassem, por meio de estipulação, a assumir expressamente a responsabilidade por tais vícios. Como sanção a tal obrigação,
o edito dos aediles curules concedeu uma actio redhibitoria ao comprador para pedir a rescisão da venda, dentro de seis meses, no caso
de vício oculto descoberto após a venda. Mais tarde, admitiu-se a actio
redhibitoria independentemente da prévia estipulação e do conhecimento do vício pelo vendedor. Além deste remédio judicial, houve um
outro, chamado actio quanti minoris, a ser intentada dentro de um ano,
para obter a redução do preço da coisa, na medida da diminuição de
seu valor, causada pelo vício posteriormente descoberto. A praxe, depois, estendeu ambas as ações a toda e qualquer compra e venda.
É de se salientar que a responsabilidade, tanto pela evicção, como
pelos vícios ocultos, pode ser excluída por meio de expressa convenção
entre as partes.
O vendedor tem que guardar a coisa até a entrega, com todo cuidado. Responde pelo dolo e pela negligência com que se houver,
porque é devedor que lucra com o contrato; não, porém, pela vis
maior. Daí se segue que o risco pela perda da coisa por vis maior é do
comprador, desde o momento da conclusão do contrato de compra e
venda. Se a coisa perecer por tal causa, o vendedor pode exigir o
preço sem entregar a coisa, aliás então já inexistente (periculum est
emptoris - D. 18.6.7 pr.).
As obrigações do comprador são mais simples: o pagamento do
preço e o recebimento da coisa comprada. Com o pagamento, naturalmente, opera-se a transferência da propriedade do dinheiro.
Locação (Locatio conductio)
É o contrato pelo qual uma pessoa, mediante retribuição em dinheiro, se obriga a favor de outra a colocar à disposição desta uma coisa, ou a prestar-lhe serviços, ou a executar determinada obra. As partes
neste contrato são chamadas locador (locator) e locatário (conductor).
Decorre da definição acima que o nome locação na realidade aplica-se a três contratos diferentes:
a) locação de coisa (locatio conductio rei), em que se faz a
cessão temporária do uso e gozo de uma coisa contra o recebimento
de um aluguel;
b) locação de serviços (locatio conductio operarum), em que se
põe à disposição de outrem os próprios serviços contra o recebimento
de um salário;
c) empreitada (locatio conductio operis faciendi), em que
alguém se obriga a produzir uma determinada obra, igualmente contra
retribuição em dinheiro.
O direito romano clássico não conhecia a distinção acima, que
é obra dos intérpretes modernos. Ela é fundada nas três diversas espécies do objeto do contrato.
A locação, como as prestações de cada uma das partes são equivalentes, é um contrato bilateral perfeito (contractus bilateralis
aequalis).
Tratando-se de um contrato que visa proporcionar vantagem a ambas as partes, tanto o locador, como o locatário respondem pelo dolo
e pela culpa com que se houverem.
Para proteger os direitos decorrentes do contrato de locação, o
locador tinha à sua disposição a actio locati e o locatário a actio conducti.
Sociedade (Societas)
Contrato que obriga as partes a cooperar numa atividade lícita, visando fins lucrativos. A cooperação das partes normalmente con-
sistia em contribuição pecuniária; mas podia ser uma determinada atividade também, a ser exercida para obter o fim comum.
Originou-se, evidentemente, da primitiva comunidade dos co-herdeiros (consortium, societas ercto non cita), que se conservavam unidos, após a morte do pai, para enfrentar a vida em comum. Conserva,
pois, nas fases de sua ulterior evolução, lembranças desta comunidade
fraternal: a relação entre os sócios da sociedade, no período clássico,
é indicada nos textos como um ius quodammodo fraternitatis
(D. 17.2.63 pr.) e considerada como um liame baseado na recíproca
confiança.
Constitui-se a sociedade pela simples convenção sobre o seu
objeto. Tratando-se de contrato bilateral, ou seja, plurilateral perfeito,
cada sócio deve entrar com sua parte na sociedade e, na medida dessa
contribuição, participará dos lucros ou prejuízos auferidos.
Advirta-se que, no direito romano, a sociedade é um liame obrigacional entre as partes, mas não é pessoa jurídica distinta de seus membros. Os bens da sociedade pertencem aos sócios em comum (condomínio).
A sociedade é sempre temporária. Dissolve-se quando sua finalidade foi alcançada, ou se tornou impossível, ou pelo vencimento do
prazo de sua existência. Podem os sócios, por comum acordo, dissolver
a sociedade. A sociedade constituída por tempo ilimitado dissolve-se
pela renúncia de um dos sócios. O mesmo efeito têm, também, a
morte, a capitis deminutio, ou a insolvência de qualquer deles.
Dissolvida a sociedade, sua liquidação se processará por meio da
actio pro socio. Havendo bens comuns, estes serão divididos pela actio
communi dividundo.
Mandato (Mandatum)
Contrato pelo qual o mandatário se obriga a praticar um ato,
gratuitamente, e conforme instruções do mandante.
A incumbência pode ser a prática de qualquer ato, material ou
jurídico, desde que não seja ilícito. O importante é que seja gratuito:
mandatum nisi gratuitum, nullum est. Caso contrário, tratar-se-ia de
locação de serviços ou de outro contrato qualquer (por exemplo, contrato inominado). É essencial, ainda, que o mandato seja no interesse
do mandante, ou, pelo menos, no interesse conjunto do mandante e
do próprio mandatário ou de terceiro. Mandato no interesse exclusivo do mandatário é um simples conselho, não constituindo contrato.
O mandato é um contrato bilateral imperfeito, porque gratuito.
A obrigação principal é a do mandatário, de praticar o ato. Seu inadimplemento era sancionado pela actio mandati directa do mandante
contra o mandatário. A obrigação secundária e eventual é a do mandante, de indenizar o mandatário das despesas havidas na execução
do mandato e ressarci-lo pelos danos sofridos nessa execução, exigíveis pela actio mandati contraria.
Extingue-se o mandato pela satisfação da incumbência ou pelo
distrato, isto é, acordo entre as partes visando à rescisão do contrato.
Além destes casos, sendo o mandato um contrato que se baseia na
mútua confiança pessoal, cessa pela morte de qualquer das partes, ou
quando qualquer delas o declara rescindido. A rescisão por vontade
unilateral, porém, só é possível enquanto não for iniciada a execução
do mandato.
"PACTA"
Já mencionamos que simples acordo não gerava obrigação no
direito romano; só a gerando aquele que tinha uma causa civilis.
A convenção em geral foi chamada pactum no direito romano, em
contraposição ao contrato como fonte de obrigação. Mencionamos
também que, excepcionalmente, determinados pacta obtiveram a tutela jurídica. Estes eram os pacta adjecta, os pacta praetoria e os
pacta legitima. Explicá-los-emos sucintamente.
Pacta adjecta eram as convenções acessórias que acompanhavam
um contrato, modificando-lhe ou ampliando-lhe os termos. Por exemplo: na compra e venda a cláusula que exclui a responsabilidade do
vendedor pela evicção ou pelos vícios redibitórios.
Pacta praetoria eram aqueles que encontravam tutela jurídica
pela atividade do pretor.
Pacta legitima eram aqueles não compreendidos nas classes anteriores, aos quais foi concedida tutela jurídica por decisões imperiais.
DOAÇÃO
A doação não era um contractus no direito romano; era simplesmente uma causa, que justificava um ato jurídico qualquer. Os
atos jurídicos que podiam servir para doação eram inúmeros: por
exemplo a constituição, transferência ou extinção de direitos reais;
qualquer ato obrigacional, como a estipulação; o contrato literal; a
remissão de dívida etc.
Assim, um ato jurídico qualquer, que tinha a finalidade, por
acordo das partes, de enriquecer uma delas à custa da outra, era
considerado como doação no direito romano. Neste havia várias restrições legais às doações, que, porém, deixamos de expor.
Temos que mencionar que no direito justinianeu a simples convenção entre o doador e o donatário passou a ser pactum legitimum e
como tal sancionado pelo direito. A partir desta inovação não mais
era preciso praticar um ato jurídico diferente para realizar a doação.
Bastava o simples acordo das partes a respeito, para que o doador
ficasse obrigado a efetuar a doação prometida.
CAPÍTULO 20
OBRIGAÇõES "EX QUASI CONTRACTU"
CONCEITO
Há fatos jurídicos voluntários lícitos que criam relação obrigacional entre as partes sem que estas tenham convencionado criá-las.
Tais fatos, por gerarem obrigações semelhantes às obrigações contratuais, são enquadrados nesta categoria dos quase-contratos. Tais eram
a gestão de negócios, a tutela, as relações entre o herdeiro e o legatário, a comunhão incidental, o enriquecimento sem causa etc.
Explicaremos só o primeiro e o último.
Gestão de negócios (Negotiorum gestio)
É um liame obrigacional semelhante ao mandato. Na gestão de
negócios alguém, espontaneamente, se encarrega de praticar atos no
interesse de outrem, sem que este o tenha incumbido de assim agir.
Por exemplo, conserto, espontaneamente, o telhado danificado pela
tempestade da casa do meu vizinho. O negotiorum gestor é obrigado
a agir de boa-fé e no interesse da outra parte, chamada dominus negotii, e a terminar a gestão iniciada. O inadimplemento dessa obrigação era sancionado por uma actio negotiorum gestorum directa do dominus contra o gestor, em que aquele podia exigir a ultimação do ato,
a prestação de contas e a entrega dos frutos ou do lucro auferido, bem
como a indenização pelos danos causados dolosa ou culposamente. De
outro lado, o gestor podia exigir, por meio da actío negotiorum gestorum contraria, a aceitação pelo dominus de sua gestão, o reconhecimento dos resultados dela e ainda indenização das despesas e dos
danos decorrentes da gestão. Não tinha, entretanto, tal direito, quando
sua intervenção fora inútil ou quando agira contra expressa proibição
do dominus.
Enriquecimento sem causa
Outra obrigação criada ex quasi contractu é a decorrente do
recebimento de pagamento não devido. Quem recebe o que não lhe é
devido fica obrigado à devolução. Os meios processuais do credor
para obtê-la eram as condictiones.
A condictio era, no processo romano primitivo, uma legis actio
especial e, no processo formulário, uma actio in personam que se fundava estritamente nas regras do ius civile: tinha por fim a obtenção
de determinada quantia (certam pecuniam dare) ou determinada coisa
(aliam certam rem dare), cuja fórmula não mencionava a causa da
obrigação. Conseqüentemente, a condictio servia às mais variadas finalidades, tanto para sancionar obrigações de empréstimo, de contrato
literal e estipulação, como de furto, e, em nosso caso, de enriquecimento sem causa.
O direito clássico não distinguiu entre as diversas condictiones
aplicáveis ao enriquecimento sem causa. Sua classificação detalhada
é de origem justinianéia, o que passamos a expor em seguida.
A ação para reaver o que fora pago por débito inexistente era a
condictio indebiti. Advirta-se que era necessário que o pagamento
indevido tivesse sido feito por engano, erroneamente, porque caso
contrário tratar-se-ia de doação.
Quando o pagamento fosse feito tendo em vista uma contraprestação ou um evento a ser realizado posteriormente, na falta dessa
realização, ou da contraprestação, a prestação paga podia ser reavida,
por meio de condictio ob causam datorum ou condictio causa data
causa non secuta. Por exemplo, no caso do dote dado antecipadamente,
quando o matrimônio não se realizou.
A condictio ob iniustam causam servia para exigir a devolução
do que fora pago a título de causa ilícita, por exemplo juros exorbitantes ao agiota.
Quando o pagamento tivesse sido efetuado por motivo imoral
(adversus bonos mores), utilizou-se para exigir a devolução a condictio
ob turpem causam.
O direito justinianeu conhecia ainda uma ação que se aplicava
a todos os casos de enriquecimento sem causa que não podiam ser
enquadrados nas categorias acima enumeradas. Era a condictio sine
causa.
CAPÍTULO 21
DELITOS
CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA
O delito, ou ato ilícito,. é considerado hoje como a violação de
uma norma jurídica estabelecida no interesse coletivo. Por isso, o
infrator é perseguido em nome da coletividade pelo representante do
Estado, que pede punição daquele. Essa punição (poena) consiste em
pena de restrição da liberdade do culpado, ou em pagamento de uma
multa ao Estado, ou em outras penalidades secundárias, podendo estas
últimas ser impostas isoladamente ou como acessórios de qualquer
das primeiras. Nas relações entre o Estado e o autor do delito cogitase apenas de punição. Nas relações entre os particulares, isto é, ofensor e ofendido, não há outro liame, senão a obrigação do primeiro de
ressarcir os danos causados ao segundo, liame que tem a finalidade de
restabelecer a situação patrimonial anterior ao delito cometido. Tal
obrigação se chama, hoje, obrigação ex delicto.
No direito romano era diferente. Nele faltava a distinção nítida
entre a punição e o ressarcimento do dano. A conseqüência jurídica
do delito no direito romano era, apenas, a sua punição, e esta punição
servia também para satisfazer o ofendido do dano que sofrera.
O conceito da punição era, conseqüentemente, diferente do moderno.
Os delitos que lesavam a coletividade, também no direito romano primitivo, eram perseguidos pelo poder público. Assim era nos
casos de traição à pátria, deserção, ofensa aos deuses etc. De outro
lado, nesta mesma época, o Estado, por falta de organização eficiente
dos poderes públicos, deixou a cargo do próprio ofendido a punição
dos delitos que lesavam interesses particulares. O ofendido tinha direito à represália, podia vingar-se.
Distinguem-se, então, delitos públicos (delicta publica) dos delitos privados (delicta privata).
No período primitivo não havia limitação quanto à represália
do ofendido. Ficava a seu livre arbítrio o exercício da vingança, sua
forma e extensão. O ofendido, naturalmente, podia deixar de vingarse e, conseqüentemente, estabelecer as condições mediante as quais
o deixaria. Assim, havia possibilidade de um acordo entre o ofendido
e o ofensor, mediante o qual o primeiro aceitava uma compensação
de valor pecuniário (compositio) em lugar da vingança. Mas, no início,
dependia exclusivamente do arbítrio do ofendido aceitar ou não tal
resgate, bem como a fixação do seu montante.
Com o fortalecimento da organização dos poderes públicos, restringiu-se o arbítrio no exercício da vingança. Estabeleceram-se condições para esse exercício: determinou-se, por exemplo, que ela só
seria admitida em caso de flagrante delito, e, ainda mais, fixaram-se
os limites da represália. Quanto a estes últimos, o direito mais evoluído limitou a vingança ao talião (olho por olho, talio) ou à compensação pecuniária (compositio) obrigatória.
Essa evolução é caracterizáda também pela transferência de um
número sempre crescente de delitos privados para a categoria dos
delitos públicos.
Naturalmente, as transformações acima expostas foram fruto de
uma longa evolução, não se verificando de maneira instantânea e uniforme. A Lei das XII Tábuas, por exemplo, apresenta-nos, em conjunto, no seu texto, todas as fases dessa evolução.
Ela conhece delitos públicos, como a traição (perduellio), o homicídio (parricidium) e o incêndio. No campo dos delitos privados, em
certos casos aplicou a vingança a arbítrio do ofendido, em alguns, o
talião, e, em outros, a compensação pecuniária obrigatória.
A evolução posterior à Lei das XII Tábuas generalizou a compositio para todos os delitos privados, de maneira que no período clássico a punição destes consistia sempre na condenação do ofensor ao
pagamento de certa quantia em dinheiro. Daí resulta que do delito
privado (delictum privatum), no direito clássico, originou-se uma obrigação do ofensor para com o ofendido, chamada obligatio ex delicto,
cujo objeto é a pena pecuniária.
Os mais importantes delitos privados no direito romano clássico
eram: furto, roubo, dano injustamente causado e injúria. Estes eram,
aliás, os únicos delitos privados do ius civile.
Além destes, entretanto, o pretor perseguiu por ações penais pretorianas vários outros atos ilícitos. Dentre estes, trataremos do dolo e
da coação apenas.
Furto (Furtum)
Furto é a subtração fraudulenta de coisa alheia contra a vontade
de seu dono. Tal era o conceito inicial do furto no período republicano. Mais tarde, porém, a subtração, expressa pela palavra latina
contrectatio, passou a significar, além da subtração material de coisa
alheia, também o uso indevido dela, ampliando-se, dessa forma, o conceito do furto. Assim, por exemplo, comete furto o depositário que
usa da coisa a ele confiada.
Além do elemento material da subtração (contrectatio), é preciso,
porém, que o ladrão tenha conhecimento de que age ilicitamente: furtum sine affectu furandi non committitur (Gai. 2.50 D. 41.3.37 pr.;
cf. Gai. 3.197).
Quanto às sanções contra o autor do furto, eram elas bem dife-
rentes nas diversas épocas da evolução do direito romano. No início,
quem tinha sofrido o furto ficava com o direito de vingar-se na pessoa
física do ladrão colhido em flagrante (fur manifestus), matando-o em
determinadas hipóteses, ou reduzindo-o à situação de escravo. Mais
tarde, tal direito do ofendido foi transformado no de exigir uma multa
pecuniária do ladrão, a qual, segundo o caso, era o quádruplo, o
triplo ou o dobro do valor da coisa furtada.
Essas multas podiam ser exigidas por meio da actio furti, que
é uma actio poenalis.
Além dessa ação penal, o dono naturalmente podia agir pelos
outros meios processuais que lhe dava a sua qualidade de proprietário.
Por exemplo, podia exigir a coisa pela rei vindicatio. Podia, também,
utilizar-se da condictio furtiva, baseada no enriquecimento ilícito do
ladrão em prejuízo do legítimo proprietário. Essas duas ações, porém,
não eram penais, mas sim reipersecutórias: visavam simplesmente
recuperar a coisa. Conseqüentemente, nestas o ladrão era condenado
somente no valor simples (simplum) da coisa furtada.
Roubo (Rapina)
É um furto qualificado pelo ato violento do ladrão ao subtrair a
coisa. O ofendido, para perseguir o ladrão, tinha a actio vi bonorum
raptorum, que acarretava a pena do quádruplo do valor da coisa.
Dano, danificação (Damnum injuria datum)
Quem causa prejuízo a outrem fica obrigado a reparar o dano.
A elaboração deste princípio foi feita com base nas disposições
de uma lex Aquilia, de época incerta, mas provavelmente do século
III a.C.
Consoante as disposições dessa lei, quem matasse um escravo ou
animal pertencente a outrem ficava obrigado a pagar o maior valor
que tal coisa tivera no ano anterior.
Era determinado, também, que no caso de ferimento de escravo
ou animal alheio, bem como no de danificação de coisa alheia, o
autor do dano ficasse obrigado a pagar o maior valor que a coisa
tivera no último mês.
Originariamente, a sanção da lex Aquilia só se aplicava a dano
causado por ato positivo e consistente em estrago físico e material da
coisa corpórea.
Assim, quanto ao primeiro requisito, não constituía dano, perante
aquela lei, o deixar sem alimento um cavalo, causando, com isso,
sua morte.
Quanto ao segundo, não era considerado, pela lex Aquilia, como dano o deixar fugir o animal alheio, porque não ocorria estrago
físico e material.
Além destes requisitos, a lex Aquilia exigia que a danificação
fosse feita iniuria, isto é, contra a lei.
Mais tarde, os jurisconsultos entenderam que a palavra iniuria
não significava apenas o ilícito, o contrário à lei, mas implicava, também, a culpabilidade do autor do dano. Exigiu-se, pois, que o dano
causado ou fosse dolosa ou ao menos culposamente, sendo imputável
também a mais leve negligência: in lege Aquilia et levissima culpa
venit (D. 9.2.44 pr.).
Outrossim, as sanções da lex Aquilia aplicavam-se, mais tarde,
outros casos de danificação, além das restrições originárias acima
mencionadas, como aos prejuízos causados por omissão ou verificados
sem o estrago físico e material da coisa.
No cálculo do valor do dano, originariamente, se limitava a estabelecer o valor objetivo da coisa, mas no período clássico incluía-se
todo o interesse do proprietário relativamente a ela. Assim, desde essa
época, o cálculo do dano incluía, além do dano efetivo e material
(damnum emergens), também a perda de lucro (lucrum cessans) so-
frida pelo proprietário por causa do ato ilícito do ofensor.
Injúria (Iniuria)
É o delito consistente na ofensa ilícita e dolosa de alguém, causada à pessoa de outrem. A ofensa pode ser de qualquer espécie, assim
física como moral.
No direito clássico, o ofendido podia pedir, por meio da actio iniuriarum, uma indenização pela ofensa sofrida, tomando em conta todas
as circunstâncias do delito e das pessoas nele envolvidas, seja ativa,
seja passivamente.
Dolo (Dolus malus)
A repressão do dolo foi inovação introduzida pelo pretor Aquilio
Galo. Dolo, como ato ilícito, é todo comportamento desonesto com a
finalidade de induzir em erro a parte por ele lesada. Esta última tinha
uma actio de dolo contra o ofensor para obter o ressarcimento do dano
sofrido.
Coação (Metus)
É o fato de compelir alguém à prática, de certo modo, de determinado ato jurídico. A violência pode ser física (absoluta) ou moral
(compulsiva). Neste último caso, tratar-se-ia de ameaça grave de praticar uma violência física. A parte ofendida tinha, como ação penal,
uma actio quod metus causa contra o autor da violência, seja ela a
outra parte da relação jurídica decorrente do ato jurídico coagido, seja
terceiro.
OBRIGAÇÕES "EX QUASI DELICTO"
Trata-se, nesta categoria, de obrigações decorrentes de fatos que
não implicavam a culpa do devedor. Ele ficava devendo mesmo sem
ter causado, voluntária ou involuntariamente, o fato.
Actio de effusis et deiectis era a ação, concedida pelo pretor, contra o morador (habitator) de um prédio, donde uma coisa sólida ou
líquida caiu ou foi atirada à rua, causando dano a alguém, independentemente de quem a jogou.
Actio de deposito et suspenso era concedida pelo pretor, também contra o morador de um prédio, quando um objeto, colocado em
terraço, teto ou qualquer lugar externo, ameaçasse com a possível
queda causar dano aos que passassem na rua. Aqui também a responsabilidade do morador não dependia de sua culpa.
Actio furti adversus nautas, caupones, stabularios era também
enquadrada nesta categoria. Decorre da responsabilidade dos transportadores e hoteleiros pelo furto sofrido pelos seus passageiros ou
hóspedes, quem quer que seja o autor do furto. A ação em epígrafe
cabia ao ofendido contra o transportador ou contra o hoteleiro, independentemente da culpa destes últimos.
CAPÍTULO 22
GARANTIA DAS OBRIGAÇõES
CONCEITO
Do ponto de vista subjetivo, o cumprimento da obrigação pelo
devedor depende, inteiramente, de sua vontade, e, do ponto de vista
objetivo, de sua capacidade econômica ou física de cumpri-la. Pode
acontecer que o devedor não queira ou, mesmo querendo, não possa
cumprir sua obrigação.
Por conseguinte, o interesse do credor é de assegurar o cumprimento da obrigação contra ambos os tipos de inadimplemento.
Para assegurar-se contra o inadimplemento voluntário do devedor,
o credor pode concluir com ele vários acordos acessórios e secundários para reforçar a obrigação principal. Tais são:
Arras (Arrha)
A entrega, pelo devedor ao credor, de uma coisa ou de uma
quantia, com o fim de que ela sirva para confirmar a conclusão de
um acordo e para garantir o seu cumprimento.
O direito romano clássico só conhecia as arras no primeiro sentido, chamada arrha confirmatoria, que tinham a única finalidade de
confirmar e provar, de maneira visível, a existência de um contrato
consensual. Conseqüentemente, essa arrha confirmatoria era um meio
de prova da conclusão do contrato.
Justiniano modificou esse caráter das arras do período clássico
e com as modificações voltou aos princípios pelos quais o instituto
era regulado no direito grego, donde fora copiado pelos romanos. Justiniano considerou nas arras, além do caráter confirmatório, também
a faculdade das partes de rescindirem, unilateralmente, o contrato confirmado. Essa era a ardia poenitentialis. A rescisão baseada nesta faculdade, conferida pela arrha poenitentialis, acarretava a perda do
valor das arras: assim, se a rescisão era motivada por quem dera as
arras, perdia-as em favor da outra parte; se, ao contrário, esta, que
recebera as arras, é que desse causa à rescisão, ficava obrigada a devolvê-las em dobro.
Multa contratual (Poena conventionalis)
a promessa, por meio de stipulatio, do pagamento de uma indenização pecuniária, predeterminada, para o caso do inadimplemento
de uma obrigação. Havendo tal estipulação, não era preciso provar as
perdas e danos para obter indenização. Esta era devida com base na
estipulação da multa contratual. Entretanto, cumpre-nos salientar que,
quando as perdas e danos excediam o valor estabelecido no contrato,
a diferença a mais podia ser exigida separadamente.
OUTRAS GARANTIAS
Muito mais importante que os institutos até agora expostos são
os meios que visavam a garantir o adimplemento da obrigação contra
a superveniente incapacidade econômica ou física do devedor para executar a sua prestação. Para essa finalidade servem as garantias pessoais e as garantias reais. Das últimas já falamos. Resta-nos, portanto,
expor as primeiras.
Enquadram-se na categoria de garantias pessoais todas aquelas
que aumentam o número das pessoas responsáveis pelo adimplemento
da obrigação; assim, a solidariedade dos devedores principais, de que
já falamos, e a inclusão no contrato, ao lado do devedor principal, de
outros devedores acessórios, chamados fiadores.
Fiança
um contrato pelo qual um devedor acessório junta-se a um
devedor principal, a fim de garantir o adimplemento da obrigação por
este assumida. Por isso, o fiador é um devedor acessório, que se obriga
a cumprir uma obrigação, caso o devedor principal não o faça.
A forma desse contrato era a stipulatio e, historicamente, o direito romano nele distinguia três tipos diferentes, que são a sponsio,
a fidepromissio e a fideiussio.
As duas primeiras são antigas e diferem entre si sobretudo na
forma. A sponsio se realizava pelo uso da palavra spondeo: Idem
spondesne? Spondeo. Ao passo que na fidepromissio utilizavam-se
outras palavras: Idem fide promittisne? Promitto. A primeira só podia
ser usada por cidadãos romanos e por latinos, a segunda também pelos
estrangeiros (peregrini).
A obrigação do sponsor e do fidepromissor não passava a seus
herdeiros: com sua morte extinguia-se. Outrossim, havia várias leis
no período republicano que limitavam a responsabilidade dos fiadores
em diversos sentidos, o que, naturalmente, diminuiu bastante o valor
prático do instituto que, em primeiro lugar, visava a garantir os interesses dos credores.
Em conseqüência disto, ainda no fim da República, às duas primitivas formas acima descritas juntou-se uma terceira figura de fiança,
chamada fideiussio. Suas regras divergiam bastante das anteriores. Na
forma externa, a diferença montava em pouco: na do uso de palavras
diferentes no formulário: Idem fide tua iubesne? Iubeo. Mas quanto
às suas conseqüências jurídicas, a diferença era notável. A fideiussio
aplicava-se a todos os tipos de contrato, e não somente aos contratos
verbais; a obrigação dela proveniente passava aos herdeiros do fideiussor; e, ainda, não era afetada pelas limitações da legislação republicana, acima mencionadas. Com esta nova forma, a fiança obteve uma
regulamentação condigna com a importância econômica do instituto
numa sociedade evoluída como a de Roma nessa época.
Quanto às conseqüências jurídicas da fiança, é comum a todas
as três formas a regra de que ela não pode exceder a obrigação principal, embora possa ser de valor menor que o dela. Também ao fiador
cabiam todas as exceções que o devedor principal tinha contra o credor. Outrossim, a partir da época de Adriano, século II d.C., em caso
de vários fiadores, eles podiam pleitear uma responsabilidade parcial,
dividindo-se o valor da obrigação garantida entre os fiadores solventes,
cada um respondendo na proporção de sua parte (beneficium divisionis).
Note-se que, em regra, o fiador sempre respondia acessoriamente,
isto é, só quando o devedor principal fosse insolvente. Como conseqüência desse princípio, Justiniano concedeu ao fideiussor a faculdade
de pretender que o credor acionasse em primeiro lugar o devedor
principal (beneficium excussionis).
Entretanto, se o fiador cumprisse a obrigação que garantia, tinha
uma ação de regresso contra o devedor principal (chamada actio depensi), caso este não o indenizasse dentro de seis meses. Além deste
meio processual, não dispunha o fiador de outro contra o devedor
principal: as relações entre ambos ficavam subordinadas ao vínculo
jurídico que os ligasse (mandato, sociedade, por exemplo), se existisse
tal vínculo.
Os jurisconsultos clássicos encontraram ainda uma outra via que
permitia ao fiador recuperar o que desembolsara por conta do devedor principal. O fiador podia exigir do credor principal, a quem pagara, a cessão das ações que lhe competiam contra o devedor principal
(beneficium cedendarum actionum).
O mandatum qualificatum e o constitutum debiti alieni também
serviam para constituir uma garantia semelhante à fiança.
CAPÍTULO 23
TRANSMISSÃO DAS OBRIGAÇÕES
CONCEITO
O conceito de considerar os devedores e os credores como substituíveis em suas pessoas, ficando inalterada porém a própria obrigação como relação jurídica, é moderno e contrário ao pensamento dos
romanos. Eles consideravam as relações obrigacionais como intransmissíveis, o que era conseqüência, evidentemente, da antiga idéia da
responsabilidade pessoal e corpórea do devedor pela prestação. Por
isso, o princípio vigente era o da intransmissibilidade das obrigações.
Entretanto, as exigências do comércio forçaram a praxe a encontrar meios legais para atingir a transmissibilidade das obrigações entre
vivos. Estes meios eram a delegatio, depois a procuratio in rein suam
e finalmente o sistema das actiones utiles, tendo este último, na prática,
os mesmos resultados econômicos e jurídicos da cessão das obrigações
na sua acepção moderna. Vejamos, então, a evolução histórica.
"DELEGATIO"
As Institutas de Gaio salientam que os modos de transferência
dos direitos reais não se aplicam às obrigações. Caso o credor desejasse que a prestação que lhe era devida passasse a ser devida a outrem,
só poderia obter esse resultado por meio de novação da obrigação.
Esta se verificava com nova estipulação (delegatio activa), cujo objeto
era prestação idêntica à da obrigação originária, e que, por ordem do
primitivo credor, era feita entre o devedor e o novo credor. Este último, na moderna terminologia, se chama cessionário. Com a nova estipulação, cessavam os efeitos da obrigação originária, verificando-se,
destarte, a transmissão do crédito. Operação semelhante servia também para transmitir a obrigação de um devedor a outro (delegatio
passiva).
O procedimento da delegatio tinha, naturalmente, os seus inconvenientes. Eram sempre necessárias a anuência, a presença e a cooperação ativa das duas partes da obrigação originária. Isto, que é natural
na transmissão do débito, porque ao credor muito importa quem seja
o seu devedor, não se justifica, entretanto, na delegatio activa, na cessão do crédito, pois ao devedor tanto faz quem seja o seu credor,
desde que a obrigação permaneça inalterada. Outro inconveniente era
ainda que a delegatio só se realizava pela stipulatio e que as eventuais garantias que acompanhavam a obrigação originária ficavam extintas, uma vez feita a delegatio.
PROCURAÇÃO EM CAUSA PRÓPRIA (Procuratio in rem suam)
A praxe, buscando uma forma de transmissão das obrigações que
melhor atendesse às exigências do comércio, encontrou-a no mandatum
agendi, isto é, no mandato- processual.
No processo formular era permitido ao autor fazer-se representar
por um procurator. Este era um mandatário especial, incumbido de
agir em juízo, no interesse do mandante.
Aproveitando esse instituto, o credor-cedente (assim o chama a
terminologia moderna) encarregava, como mandante, o cessionário
(também expressão moderna) de representá-lo, como mandatário, no
processo contra o devedor. Tal ato era um mandatum agendi. Este, porém, não transmitia, por si mesmo, a obrigação. Para que a transmissão se desse, o mandante (credor-cedente), ao constituir o procurador,
renunciava à sua actio mandati directa, pela qual poderia exigir não
só a execução, como também prestação de contas do mandato. Assim,
o procurator ficava senhor da obrigação, verificando-se, destarte, a
transmissão dela. Tal mandatário chamava-se procurator in rem suam,
porque ele agia no seu próprio interesse e não no do mandante.
Naturalmente, esta forma de transmissão tinha também os seus
inconvenientes. O cessionário por este meio não adquiria o crédito,
ele não podia agir contra o devedor em seu próprio nome, mas só
naquele do cedente. De outro lado, a vantagem da procuratto in rem
suam sobre a delegatio consiste no fato de, na primeira, não ser necessária a anuência do devedor da obrigação cedida, e, ainda, na subsistência das garantias dessa obrigação.
SISTEMA DAS "ACTIONES UTILES"
Na época imperial, a fim de remediar os inconvenientes da procuratio in rem suam, sobretudo para tornar o direito do cessionário
independente do direito do cedente, a praxe introduziu o sistema da
concessão das actiones utiles.
As actiones utiles, aliás conhecidas originariamente no processo
formular do período republicano, eram também chamadas actiones
ficticiae, porque se baseavam numa ficção. Em nosso caso, a ficção
era considerar o cessionário como legalmente sucedendo ao cedente
no seu direito com base na transmissão do crédito havida por ato jurí-
dico inter vivos, sucessão que perante o direito estrito não ocorria. Utilizando-se desse meio processual, as ações que cabiam ao credor-cedente podiam ser intentadas também pelo credor-cessionário, qualquer
que fosse a forma da cessão.
Contornando, desta manêira, as disposições rígidas do direito estrito, a jurisprudência e a praxe da época imperial estabeleceram as
bases do instituto da cessão como o conhecemos modernamente.
Como regras gerais da cessão, ela pode ser feita a título gratuito
e a título oneroso. No primeiro caso o cedente é responsável apenas
pela existência do crédito (verum nomen) cedido e não pela solvência
do devedor (bonum nomen). Na cessão a título oneroso, o cedente é
responsável por ambas as coisas.
O cessionário adquire o crédito nas mesmas condições e com as
mesmas garantias que o acompanhavam antes da cessão. Entretanto,
para evitar abusos, no período pós-clássico foi proibido ao cessionário
cobrar do devedor mais do que pagara pela cessão do crédito. De
outro lado, as defesas processuais do devedor contra a pessoa do cedente subsistem também contra o cessionário.
CAPÍTULO 24
EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES
CONCEITO
Cria-se a obrigação para ser cumprida. O cumprimento (solutio)
é seu fim natural e com ele a obrigação se extingue. Mas há outros
atos jurídicos que igualmente acarretam a extinção da obrigação. Assim, podem as partes compensar as obrigações que reciprocamente
tenham, ao invés de solver cada uma a sua (compensatio). Da mesma
forma, a transformação da obrigação numa outra (novatio) acarreta
a extinção da obrigação anterior. Podem, ainda, as partes extinguir a
obrigação por comum acordo.
Todos estes meios de extinção dependem da vontade das partes.
Há, além deles, outros fatos que, independentemente dessa vontade,
produzem os mesmos resultados.
Estudaremos, então, cada um dos meios de extinção, separadamente.
Pagamento (Solutio)
É o modo natural da extinção. O adimplemento da obrigação extingue o liame entre o credor e o devedor. Recebendo o credor a prestação, objeto da obrigação, o devedor fica libertado do vínculo obrigacional.
No período clássico, bastava o fato do cumprimento fiel da obrigação para que se verificasse a sua extinção. No direito primitivo não
era assim. Este era formalístico e rígido. Já conhecemos as formalidades
exigidas para a constituição do liame obrigacional. Logicamente, este
direito primitivo não exigia o cumprimento de formalidades apenas
para a constituição das obrigações, mas também para a sua extinção.
Por isso, cada contrato formal tinha o seu contrário, que era um ato
jurídico liberatório. Assim, ao nexum correspondia a solutio per aes
et libram ou nexi liberatio, que exigia cinco testemunhas, a presença
das partes e do libripens, da balança, pronunciamento de determinadas
fórmulas verbais e certos atos solenes. De outro lado, a stipulatio,
também, se resolvia pela acceptilatio, que consistia na pergunta e congruente resposta do devedor e do credor respectivamente: Quod ego
tibi promisi habesne acceptum? Habeo.
No início, quando a forma tinha mais valor do que o conteúdo,
era este ato contrário formal o único meio de extinguir a obrigação,
para tal não bastando o seu cumprimento efetivo, que, sem as formalidades do ato contrário, nada valia perante o direito.
Nas novas categorias de contratos reais e consensuais, para cuja
realização não era necessário o uso de formalidades, a solutio por si
acarretava, naturalmente, a extinção da obrigação. Este princípio foi,
depois, estendido a todos os contratos no período clássico, inclusive
aos formais. Daí por diante, o ato formal de extinção tornou-se supérfluo nos casos em que houvesse pagamento efetivo. Conservou, porém,
seu papel nos casos em que as partes convencionassem a extinção da
obrigação sem que tivesse havido adimplemento. Tal ato é chamado
nas fontes como immaginaria solutio.
Quanto às regras gerais referentes à solutio, notamos as seguintes:
a) o objeto do pagamento deve ser exatamente o da obrigação.
O cumprimento de prestação diferente da prevista no contrato
não é pagamento, a não ser que o credor o aceite como tal. Nesse
último caso, em que o pagamento é chamado dação em pagamento
(datio in solutum), a obrigação extingue-se. Por outro lado, o credor
não é obrigado a aceitar pagamento parcial, exceto quando previsto
no contrato;
b) o pagamento deve ser efetuado ao credor ou ao seu representante para este fim designado;
c) a obrigação deve ser cumprida pelo devedor, mas o pode
ser também por outra pessoa a menos que o credor tenha interesse
especial na prestação pessoal do devedor;
d) o prazo e o lugar do cumprimento dependem da convenção
das partes. Faltando a determinação desses elementos, a prestação é
devida logo que cobrada e no lugar escolhido pelo devedor.
Compensação (Compensatio)
A compensação pressupõe a existência de mais de uma obrigação
entre as mesmas pessoas, sendo elas ao mesmo tempo credor e devedor
uma da outra. Tais obrigações recíprocas entre as mesmas partes extinguem-se pela compensação enquanto equivalentes, continuando devido o excedente não compensado.
No direito clássico, a compensação se operava só em três casos:
nas ações baseadas na boa-fé (bonae fidei iudicia), nas obrigações entre
banqueiros e no concurso de credores. Parece que, já no fim deste
período, o campo da compensação foi estendido além dos casos acima
mencionados. No período pós-clássico, por sua vez, aplicou-se em geral aos créditos, sem restrições, contanto que do mesmo gênero (dinheiro contra dinheiro, trigo contra trigo), certos quanto a seu montante e vencidos (líquidos).
No direito romano a compensação não se operava ipso jure. Era
sempre necessário que as partes a convencionassem ou que uma delas
a pedisse numa ação que lhe fosse intentada pela outra parte. Operava, portanto, exceptionis ope: por meio de defesa processual.
Novação (Novatio)
É a extinção de uma obrigação pela sua substituição por uma
nova, com o mesmo conteúdo da anterior: novatio est prioris debiti
in aliam obligationem transfusio atque translatio (D. 46.2.1 pr.).
A prestação, objeto da obrigação antiga e da nova, devem ser
idênticas (idem debitum); do contrário haveria constituição de outra
obrigação ao lado da antiga, ambas coexistentes. Entretanto, malgrado a exigência de identidade de prestação em ambas as obrigações, a
nova tinha que trazer um elemento novo (aliquid novi, que justificasse a novação. O elemento novo podia concernir à prestação (novas
condições, novo prazo, novo lugar para pagamento), às partes (substituição da pessoa do credor - delegatio activa, ou do devedor delegatio passiva), ou ainda à causa da obrigação (por exemplo, transformação de uma obrigação ex empto numa obrigação verbal ex
stipulatu).
No direito justinianeu, como no moderno, exigia-se, ainda, o
animus novandi das partes.
A novação extingue ipso jure a obrigação antiga com todos os
seus acessórios (fiança, garantias reais, cláusulas acessórias eventuais etc.).
Extinção da obrigação por acordo das partes
As partes podem fazer cessar os efeitos da obrigação sem que
haja solutio, se assim convencionarem. Isto era possível no direito
quiritário por meio da immaginaria solutio, de que já falamos. No
direito clássico, os efeitos de um contrato consensual cessavam em
virtude de rescisão por mútuo acordo: contrarius actus. O pretor, por
sua vez, dava tutela jurídica a todo acordo rescisório de obrigação,
chamado pactum de non petendo.
Temos que mencionar que o pactum de non petendo, assim como
a compensação, no período clássico, tinham tutela jurídica do pretor.
Outrossim, para sua aplicação em juízo, era preciso que fossem alegados pela parte interessada por meio de exceptio, na ação que lhe
fosse movida. Os outros modos de extinção se operavam ipso jure.
Fatos extintivos das obrigações, independentes
da vontade das partes
Extinguem-se as obrigações, também:
a) quando seu cumprimento se torna impossível, a não ser que
a impossibilidade seja imputável ao devedor;
b) em certos casos, pela morte das partes.
Assim, o falecimento de qualquer delas extingue o mandato ou
a sociedade; o do credor, as obrigações provenientes de delitos vindictam spirantes, como a injúria; o do devedor, as obrigações do sponsor
e do fidepromissor;
c) pela capitis deminutio do devedor, exceto as obrigações ex
delicto;
d) pela confusio, isto é, a junção, na mesma pessoa, da posição
do credor e do devedor. É o caso do herdeiro universal do seu credor;
e) pelo concursus duarum causaram lucrativum, isto é, pelo
cumprimento de uma de duas obrigações a título gratuito, com o mesmo objeto. Nesse caso, como o objeto é o mesmo, o cumprimento de
uma das obrigações extingue a outra. Por exemplo: alguém nomeia
seu herdeiro de determinada coisa a quem também faz doação, para
entrega futura, da mesma coisa. Morrendo o testador antes de vencido
o prazo para entrega da coisa doada, o herdeiro recebe como tal a
coisa, extinguindo-se a doação;
f) pelo decurso do prazo de vigência convencionado pelas partes ou estabelecido pela lei;
g) pela verificação da condição resolutiva nas obrigações sujeitas a essa espécie de condição;
h) pela extinção da obrigação principal, no caso da obrigação
acessória;
i) por ordem legal, em determinados casos, a título de penalidade. É o que se dá com o crédito de quem, para haver o que
lhe é devido, se apossa de bens do devedor. A extinção do crédito
nesse caso foi determinada por decreto de Marco Aurélio (decretum
divi Marci).
Parte IV
DIREITO DE FAMÍLIA
CAPÍTULO 25
FAMÍLIA
A FAMÍLIA ROMANA: CONCEITO E HISTÓRICO
A organização familiar romana era fundamentalmente diferente
da moderna. Suas instituições básicas, parentesco, pátrio poder, matri-
mônio e tutela, têm princípios muitas vezes diversos dos nossos.
A palavra família, no direito romano, tinha vários significados:
designava precipuamente o chefe da família e o grupo de pessoas
submetido ao poder dele, mas podia tambêm significar patrimônio
familiar ou determinados bens a este pertencentes. Aliás, etimologicamente, família prende-se a famulus, escravo, que, em Roma, tinha
obviamente valor econômico.
Interessa-nos, aqui, de modo especial, a família no sentido de
conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo direto.
Na sua acepção original, família era evidentemente a familia
proprio jure, isto é, o grupo de pessoas efetivamente sujeitas ao poder
do paterfamilias: jure proprio familiam dicimus plures personas, quae
sunt unius potestate aut natura aut jure subiectae (D. 50.16.195.2).
Noutra acepção, mais lata e mais nova, família compreendia
todas as pessoas que estariam sujeitas ao mesmo paterfamilias, se
este não tivesse morrido: era a familia communi jure. Communi jure
familiam dicimus omnium adgnatorum: ...... qui sub unius potestate fuerunt recte eiusdem familiae appellabuntur, quia ex eadem domo
et gente proditi sunt (D. 50.16.195.2).
Em ambos os conceitos de família, a base do liame são a pessoa
e a autoridade do paterfamilias, que congrega todos os membros. A
patria potestas podia ser atual, como na familia proprio jure, ou ter
existido precedentemente, o que se verificava na familia communi jure.
O liame ou vínculo que une os membros de uma família chama-se parentesco e ele era, no direito romano arcaico, puramente
jurídico. Dependia, exclusivamente, do poder que o paterfamilias
tinha ou teve sobre os membros da família. Esse parentesco jurídico
chama-se adgnatio (Vocantur autem adgnati qui legitima cognatione
iuncti sunt. Legitima autem cognatio est ea, quae per virilis sexus
personas coniungitur, Gai. 3.10) e se transmitia só pela linha paterna,
pois somente o varão podia ser paterfamilias. A adgnatio era chamada
também de cognatio virilis.
Esse parentesco agnatício se contrapõe à cognatio (cognação ou
parentesco consangüíneo), existente entre os pais e os filhos e todos os
que tem ascendentes comuns. Tal parentesco era entendido como
incluindo os liames pela linha materna: at hi, qui per feminini sexus
personas cognatione coniunguntur, non sunt adgnati, sed alias natarali iure cognati (Gai. 1.156).
O parentesco consangüíneo foi reconhecido pelo direito romano desde os tempos mais remotos, acarretando impedimento matrimonial e, também, gerando outras conseqüências jurídicas.
Na evolução do direito romano, desde os tempos arcaicos até a
época do direito pós-clássico, pode-se notar a luta entre os dois princípios, o da agnação e o da cognação, verificando-se a prevalência cada
vez mais acentuada do princípio do parentesco consangüíneo que, ao
final, suplantou totalmente o da agnação.
O cálculo do grau de parentesco fazia-se pelas gerações: quot
generationes, tot gradas. Assim, na linha reta, entre ascendentes, contava-se o número de gerações. Pai e filho, por conseguinte, eram parentes do 1.o grau, avô e neto do 2.o grau. Na linha transversal, entre
parentes colaterais, para o cálculo do grau de parentesco era preciso
remontar ao ascendente comum e contar todas as gerações intermediárias. Assim, dois primos eram parentes em 4.o grau, porque há duas
gerações entre o avô comum e um dos primos e outras tantas gerações
para chegar do avô ao outro primo. O parentesco não era reconhecido
além do 7.o grau (D. 38.10.4 pr.).
O liame de parentesco existente entre um cônjuge e os parentes
do outro chamava-se afinidade adfines sunt viri et uxoris cognati (D.
38.10.4.3). Ele se limitava, porém, ao cônjuge, não se estendendo dos
parentes de um aos parentes do outro.
PÁTRIO PODER
O caráter arcaico do poder que o paterfamilias tinha sobre seus
descendentes era revelado pela total, completa e duradoura sujeição
destes àquele, sujeição esta que tornava a situação dos descendentes
semelhante à dos escravos, enquanto o paterfamilias vivesse.
A organização familiar romana repousava na autoridade incontestada do paterfamilias em sua casa e na disciplina férrea que nela
existia.
Assim o paterfamilias exercia um poder de vida e de morte
sobre seus descendentes (ius vitae ac necis), o que já era reconhecido
pelas XII Tábuas (450-451 a.C.). Esse poder vigorou em toda sua
plenitude até Constantino (324-337 d.C.) (Codex Theodosianus, 4.8.6
pr.). O paterfamilias podia matar o filho recém-nascido, expondo-o
(abandono), até que uma constituição dos imperadores Valentiniano I
e Valêncio (em 374 d.C.) proibisse tal prática (e. 8.51(52).2). A
venda de filho era também possível. O filho vendido encontrava-se
na situação especial de pessoa in mancipio, pela qual ele conservava
seus direitos públicos. Continuava cidadão romano. Quanto aos seus
direitos privados, todavia, ele os perdia. No direito clássico tal venda
só se praticava para fins de emancipação ou para entregar à vítima o
filho que cometera um delito (noxae datio). Originariamente o paterfamilias podia casar seus filhos, mesmo sem o consentimento destes.
No direito clássico, porém, exigia-se o consentimento dos nubentes.
Por outro lado, o pátrio poder, tão amplo originariamente, incluía o direito de o pai desfazer o matrimônio de filhos a ele sujeitos. O imperador Antonino Pio (138-161 d.C.) aboliu expressamente essa faculdade com relação às filhas. Para os filhos, o direito em questão desapareceu mais cedo (Pauli Sent. 2.19.2).
Do ponto de vista patrimonial, o pátrio poder implicava a centralização de todos os direitos patrimoniais na pessoa do paterfamilias.
No direito clássico, este era a única pessoa capaz de ter direitos e
obrigações. As pessoas sujeitas ao pátrio poder não tinham plena capacidade jurídica de gozo; assim, não podiam ser os alieni iuris sujeitos
de direito: lulas nihil suum habere potest (D. 41.1.10.1). Semelhantemente aos escravos, os filhos, adquirindo qualquer direito, o adquiririam para o paterfamilias. Pelos seus atos, porém, não o obrigavam.
Se o filiusfamilias cometesse um delito, de que decorresse uma obrigação delitual, a responsabilidade seria do paterfamilias, que poderia,
ele mesmo, ressarcir o dano causado pelo filho ou, então, se o preferisse, entregar o filho ao ofendido. Era isto que se chamava de noxae
datio, assunto de que já falamos. Quanto às obrigações contratuais,
eventualmente assumidas pelo filiusfamilias, elas, em princípio e pelo
direito quiritário, não obrigavam o paterfamilias. Nesse campo, porém,
veio o pretor e alterou as regras rígidas do direito quiritário, passando
a admitir ações especiais dirigidas contra o paterfamilias. Assim agia
quando o filiusfamilias fosse preposto do pater em empresa de navegação ou outro empreendimento dele (actiones institoria, exercitaria)
ou quando o filho agisse sob ordens expressas do pai (actia quod
iussu). Também quando a vantagem correspondente à obrigação aumentasse o patrimônio do pai (actio de in rem verso) ou quando o
ato do filho fosse praticado na administração do pecúlio que o pai
lhe entregava (actio de peculio). Essas ações pretorianas, visando à
responsabilização do paterfamilias pelas obrigações assumidas pelo filho, chamavam-se actiones adiectitiae qualitatis.
Nesta altura temos que mencionar o senatusconsultum Macedonianum, da época do imperador Vespasiano (70 a 79 d.C.), que proibiu aos filiifamilias, de qualquer idade, tomar empréstimos de dinheiro. Com base nessa regra, o filiusfamilias tinha um meio de defesa
processual: a exceptio senatusconsulti Macedoniani, que paralisava a
ação do credor. Essa defesa não se aplicava, porém, quando o filiusfamilias contraía o empréstimo autorizado pelo pai ou em favor deste
(D.14.6.7.11).
Por outro lado, a independência parcial, no campo patrimonial,
do filiusfamilias começou a ser reconhecida desde a época de Augusto
(31 a.C. - 14. d.C.), que considerou o patrimônio adquirido pelo filiusfamilias durante o serviço militar (peculium castrense) como pertencente exclusivamente a ele (D. 49.17.11). Esses bens, portanto, não
mais pertenciam ao pai e o filho podia deles dispor livremente. Mas se
o filho falecesse sem deixar testamento, os bens passariam a pertencer ao paterfamilias, como se sempre a ele tivessem pertencido: iure
peculii (D. 49.17.2). Depois do imperador Constantino (324 a 337
d.C.), esses princípios se estenderam ao patrimônio adquirido pelo
filho no serviço público, o que os modernos chamam de peculium
quasi castrense. Outrossim, semelhante separação de patrimônio teve
lugar com relação aos bens do filius familias, provenientes de sua mãe
ou de ascendentes pela linha materna. Eram os bens denominados bona
materna. Assim, a independência patrimonial do filho foi cada vez
se acentuando mais com o passar do tempo. Por fim, Justiniano qualificou de desumano o sistema de pertencer ao pai o que o filho adquirisse (Inst. 2.9.1) e determinou que somente o usufruto dos bens do
filho coubesse ao pai. Com isto, o sistema quiritário foi basicamente
modificado.
Aquisição e perda do pátrio poder
É ordinariamente fonte do pátrio poder o nascimento do filho
havido em justas núpcias.
Presumia-se a filiação legítima se o parto se dera, no mínimo, 180
dias da data em que se contraiu o matrimônio ou, no máximo, 300
dias após a dissolução do casamento (pater vera is est quem nuptiae
demanstrant - D. 2.4.5).
O reconhecimento da criança dependia do pai. Antigamente faziase mediante a formalidade de tomar o recém-nascido nos seus braços
(tollere liberam). Na falta de tal reconhecimento da paternidade, podia-se, através de uma ação especial, provocar uma decisão a respeito
(praeiudicium) (cf. D. 25.3.1.16).
Os filhos naturais, nascidos fora do casamento e não reconhecidos, não estavam sob pátrio poder. Eles não se ligavam por parentesco agnatício nem à sua mãe nem à família desta. Entretanto, viviam
com ela e se encontravam numa situação semelhante à dos filhos in
mancipio, de que já falamos.
Extraordinariamente, a aquisição da patria potestas poderia darse pela adoção. Desta havia duas formas: a adrogatio e a adoptia.
A primeira, a adrogatio, mais antiga, fazia-se perante o povo reunido em comício, que, assim, intervinha no ato. Mais tarde, desaparecendo os comícios, o costume substituiu o povo por 30 lictores, que
representavam, então, as 30 antigas cúrias.
Somente se podia adrogar uma pessoa sui iuris do sexo masculino
e púbere que, em conseqüência da adrogação, perdia sua independência no plano familiar e, por conseguinte, também a sua capacidade
jurídica de gozo. O adrogado passava, juntamente com todos os seus
dependentes, para a família do adrogante, na situação de alieni iuris.
Por isso, o patrimônio do adrogado também passava a pertencer ao
adrogante, não ocorrendo o mesmo com relação às dívidas, que pelo
direito quiritário se extinguiam (Gai. 3.84 e 4.38). O pretor, contudo,
concedia um remédio processual aos credores, visando a proteger seus
direitos.
Exigia-se para a adrogação que o adrogante fosse mais velho
que o adrogado, mesmo porque a adoção imita a natureza (Inst.
1.11.4).
A adrogação acarretava a capitis deminutio do adrogado, pois
ele perdia sua condição de sui iuris ao entrar na família do adrogante.
A transmissão do pátrio poder de um paterfamilias a outro, sobre
uma pessoa alieni iuris, chamava-se adoção (adoptio). Por este meio,
um filiusfamilias saía de sua família de origem, para entrar na família
do adotante. Também as filhas e os netos podiam ser adotados.
Para romper o liame com a família de origem era necessário que
se praticasse a venda fictícia do filho. A Lei das XII Tábuas previa
a perda do pátrio poder, caso o filho tivesse sido vendido três vezes
pelo pai, sendo que para os netos e filhas isso se verificava logo após
a primeira venda. Para fins de adoptio, a interpretação elaborou um
complicado ato jurídico. Consistia ele na venda do filho a um amigo
de confiança e na subseqüente alforria ou revenda por este, o que
deveria repetir-se três vezes no caso de um filiusfamilias. Depois da
terceira venda, porém, era ele cedido, pela in jure cessio, ao adotante,
que, assim, adquiria sobre o adotado o pátrio poder.
Essa passagem do filho, de uma família para outra, também era
considerada como capitis deminutio.
Extingue-se o pátrio poder pela morte do paterfamilias ou do
alieni iuris. A capitis deminutio do pai é equiparada à morte nesse
particular. Além disso, extingue-se o pátrio poder pela adoptio do
alieni iuris e pelo casamento cum manu da filha.
A emancipação tornava o filho sui iuris, extinguindo-se com ela,
naturalmente, o poder do pai sobre ele. A emancipação baseava-se,
também, naquela regra das XII Tábuas, que punia quem vendesse
três vezes seu filho com a perda do pátrio poder sobre ele. Portanto,
para a realização da emancipação, praticava-se a venda fictícia do
filho a um amigo, com subseqüente libertação. No último ato, porém,
era costume que, ao invés de libertar o filho, este fosse vendido ao
pai, para que ele, então, o libertasse. A razão disto foi garantir ao pai
os direitos decorrentes do patronato sobre o filho emancipado.
CAPÍTULO 26
CASAMENTO
CONCEITO DO MATRIMÔNIO ROMANO
A união duradoura entre marido e mulher, como base do grupo
familiar (nuptiae, matrimonium), é a idéia fundamental no direito
romano. As duas famosas definições dos textos romanos bem salientam isto: Nuptiae sive matrimonium est viri et mulieris conjunctio,
individuam consuetudinem vitae continens (Inst. 1.9.1). - Nuptiae
sunt coniunctio maris et feminae et consortium omnis vitae, divini et
humani iuris communicatio (D. 23.2.1).
Mesmo assim, há grande diferença entre as concepções romanas
e modernas a esse respeito.
A nossa idéia sobre matrimônio baseia-se nos conceitos da dogmática e da ética do Cristianismo.
Em Roma antiga, o matrimônio, regulado pelos costumes e pela
moral, distinguia-se dos direitos dele decorrentes ou a ele ligados. O
matrimônio era considerado no direito romano não como uma relação
jurídica, mas sim como um fato social, que, por sua vez, tinha várias
conseqüências jurídicas.
É verdade que o direito quiritário conheceu a manus, isto é, o
poder do marido sobre a mulher, originário de atos formais de aquisição daquele (conventio in manam).
Para o estabelecimento de tal poder, pelo qual se sujeitava a mulher ao marido, era preciso praticar-se a confarreatio, formalidade antiga, de tipo social religioso. Os nubentes deviam realizar uma série
de atos rituais, culminando numa oferenda de pão a Júpiter.
O mesmo objetivo (o estabelecimento do poder marital) tinha
a coemptio, que era a venda formal da nubente pelo seu paterfamilias
ao nubente, venda esta que se fazia através da mancipatio.
A terceira forma de aquisição do poder marital se dava pelo
usus. Este se baseava na idéia da aquisição do poder jurídico abso-
luto pela posse prolongada. A Lei das XII Tábuas conferia ao marido
a manas sobre a mulher com quem convivesse em matrimônio por
mais de um ano. Entretanto, a mesma lei previa a possibilidade de se
evitar tal sujeição, bastando para tanto, para interromper o usucapião
em curso, que a mulher se ausentasse de casa, por três noites seguidas:
trinoctii usurpatio.
Observa-se, pois, que o poder jurídico do marido sobre a mulher
era um reflexo eventual, mas não absoluto, do matrimônio. Desde os
tempos antigos podia existir matrimônio sem poder marital. Era o
casamento sine mana.
Conclui-se, portanto, que a idéia de matrimônio, na concepção
romana, era distinta da do poder marital (manas).
A distinção que fazemos entre o matrimônio e a manas ainda
mais se reforça pela observação de que, na época clássica, a forma
de matrimônio que prevaleceu foi, precisamente, a do matrimônio
sine manu.
Assim sendo, examinaremos o matrimônio, deixando de lado o
instituto da manus, que é o poder jurídico do marido sobre a mulher.
O matrimônio, no direito romano, era um ato consensual contínuo de convivência. Era uma res facti e não uma res iuris, como se vê
nas regras do ius postiiminii, onde os romanos enquadravam a relação
matrimonial entre aquelas que tinham que ser restabelecidas pelas
partes.
A regra romana consensus facit nuptias (D. 35.1.15) deve entender-se como um acordo contínuo entre os cônjuges para viverem em
comum, com a finalidade de realizar uma união duradoura entre eles.
Exigiam-se, naturalmente, além desse acordo, também fatos positivos
de convivência.
Assim é que se costuma distinguir dois elementos constitutivos
do matrimônio romano, que são a affectio maritalis (intenção de ser
marido e mulher) e o honor matrimonii (a realização condigna dessa
convivência conjugal).
Desse conceito do matrimônio romano seguem-se a possibilidade
do divórcio e, até, a grande facilidade dele.
Tratando-se de um ato contínuo de consentimento entre os cônjuges, o matrimônio dissolvia-se, logicamente, quando desaparecia
aquele consenso. E isto podia acontecer não só pelo dissenso (ato bilateral), mas também pela vontade unilateral de um dos cônjuges (repúdio), com base na concepção liberal e individualística que os romanos
tinham do casamento: libera matrimonia esse antiquitus placuit (C.
8.38.2), instituto este que estava praticamente fora da interferência direta do Estado.
Embora tendo o caráter apontado, o matrimônio romano não
deixou, contudo, de ser um instituto jurídico, pois decorriam dele
importantes conseqüências jurídicas. Primacialmente, os filhos de cônjuges romanos eram cidadãos romanos também, sujeitos ao poder do
pai, adquirindo a situação de sui iuris após a morte dele. Além desses
efeitos jurídicos havia outros, especialmente patrimoniais, que estudaremos mais tarde.
ESPONSAIS
A promessa de contrair matrimônio fazia-se, no direito romano
antigo, por uma estipulação em que se utilizava o verbo spondeo (prometo). Daí o nome sponsalia.
Fortalecendo-se cada vez mais, com o correr do tempo, a idéia
de liberdade no campo matrimonial, no direito clássico chegou-se a
considerar tal promessa como destituída de efeito jurídico no que diz
respeito à obrigação de contrair o matrimônio prometido, ou à obrigação de pagar a multa contratual estipulada para o caso de não-cumprimento do avençado. Assim mesmo, os esponsais tiveram certos efeitos jurídicos secundários, como o de acarretarem a pena de infâmia
na hipótese de serem celebrados com mais de uma pessoa concomitantemente, além de outros efeitos de ordem patrimonial.
REQUISITOS E IMPEDIMENTOS PARA CONTRAIR
MATRIMÔNIO
Para contrair matrimônio reconhecido pelo direito quiritário (iustum matrimonium), era preciso:
a) capacidade jurídica matrimonial das partes (conubium);
b) capacidade de fato delas para esse fim;
c) consentimento.
A capacidade jurídica para contrair matrimônio (conubium) pressupõe necessariamente a capacidade jurídica de gozo ou capacidade de
direito. Tinham-na os cidadãos romanos em geral. Por outro lado, o
casamento de pessoas estrangeiras entre si ou de pessoa estrangeira
com pessoa de cidadania romana era considerado matrimonium iniustum, também chamado matrimonium iuris gentium. Os escravos não
podiam casar-se legalmente. Sua união chamava-se contubernium e não
era considerada uma relação de direito, mas uma mera relação de fato.
A capacidade de agir para casar era adquirida com a puberdade
e coincidia sua aquisição com a da capacidade física e moral para o
matrimônio.
O consentimento exigido para contrair matrimônio era o dos
nubentes e, no caso de estarem sujeitos ao poder do paterfamilias,
também o deste. Há diferença, entretanto, entre esses dois tipos de
consentimento.
Como vimos, ao estudar o conceito do matrimônio romano, o
consentimento dos cônjuges tinha que ser permanente. Já o do paterfamilias era exigido apenas no ato da realização do matrimônio.
Entre outras circunstâncias, impediam o matrimônio:
a) a loucura, por implicar a falta de capacidade de fato;
b) a existência de liame matrimonial, visto que o casamento
romano era estritamente monogâmico;
c) a consangüinidade entre os nubentes na linha reta sem restrições e na linha colateral até o terceiro grau;
d) o parentesco adotivo enquanto existente;
e) a diferença de classes, pois entre ingênuos e mulheres taxadas
de infames ou entre pessoas de classe senatorial e da dos libertos havia
proibição de casamento;
f) a condição de soldado em campanha;
g) a relação jurídica entre tutor e sua pupila;
h) também era proibido o casamento do governador de província e de outros magistrados com mulheres residentes no território
onde exerciam jurisdição.
EFEITOS DO MATRIMÔNIO
O casamento gera efeitos ou conseqüências jurídicas quer quanto
às pessoas quer quanto aos bens.
Quanto aos da primeira categoria, podiam referir-se, no direito
romano, à pessoa dos cônjuges ou à pessoa dos filhos.
O filho, quando nascido de matrimonium Iustum, ficava sob o
poder do pai (patria potestas). A situação dele era, então, a de filiusfamílias. Os filhos nascidos na constância do casamento eram presumidos (praesumptio iuris tantum) como sendo legítimos: pater vero is
est, quem nuptiae demonstrant (D. 2.4.5). Presumia-se que a gestação
durava de 180 a 300 dias após a concepção (praesumptio iuris et
de jure).
Quanto à pessoa da mulher, no casamento cum manu ficava ela
sujeita ao poder do marido, na qualidade de alieni iuris. Por outro
lado, no matrimônio sine manu, aliás a forma que prevaleceu no direito
clássico, a mulher conservava sua independência com relação ao marido. Continuava, mesmo depois do casamento, na situação anterior,
isto é, se estava sob o poder de seu paterfamilias, permanecia naquele estado, e se era sui iuris, continuava nessa mesma condição, ou
seja, sui iuris.
Mesmo assim, o marido exercia certa autoridade sobre a mulher,
cabendo-lhe a chefia na direção da vida familiar. Era ele quem estabelecia o domicílio da família e a ele cabia, também, a obrigação de
prover o sustento dos seus. Tinha o marido meios judiciais para defender a mulher contra atos injuriosos de outrem e podia, por outro
lado, exigir o retorno da mulher ao lar conjugal, mesmo se o paterfamilias dela a retivesse: interdictum de uxore exhibenda et ducenda.
O adultério da mulher era considerado crime previsto pela lex Julia
de adulteriis, da época de Augusto.
Do ponto de vista patrimonial, no casamento sine manu os bens
que a mulher tivesse eram dela. Chamavam-se bens parafernais. Em
vista dessas regras é importante o preceito da praesumptio Muciana,
que considerava todos os acréscimos verificados no patrimônio da
mulher como provenientes do marido. Tratava-se de uma presunção
simples (praesumptio iuris tantum), admitindo, portanto, contraprova.
A administração não cabia ao marido, a menos que a mulher o determinasse.
A doação entre os cônjuges foi proibida, sendo tais atos nulos,
com exceção daqueles praticados mortis causa. A estes foram, postoriormente, equiparadas as doações feitas pelo cônjuge premorto quando não as tivesse revogado em vida.
Os cônjuges não podiam propor ações penais e infamantes um
contra o outro, por contrariarem o caráter íntimo da união familiar.
Assim, o regime patrimonial do casamento sitie manu era o da
separação de bens, modificado, em parte, pelo sistema do dote que
adiante estudaremos.
DISSOLUÇÃO DO MATRIMÔNIO
Dissolvia-se o liame matrimonial pela morte ou pela capitis deminutio maxima de um dos cônjuges.
É de se notar que o prisioneiro de guerra também sofria capitis
deminutio maxima. Entretanto, sabemos que, ao voltar a Roma, recuperava ele, pelo ius postliminii, todos os seus direitos. Era como se
nunca tivesse sofrido perda de sua liberdade. Sabemos, contudo, que
nessa recuperação de direitos não se enquadravam as situações de
fato, como a posse e também o matrimônio. Este tinha que ser restabelecido novamente.
Por outro lado, o matrimônio romano podia ser dissolvido também por vontade dos cônjuges. Já o direito romano arcaico previa
o divórcio. Ele era praticado através de formas solenes: a diffarreatio
e a remancipatio. No casamento sine manu, essa dissolução era ainda
mais fácil. Podia ocorrer por acordo entre as partes: divortium communi consensu, ou mesmo por vontade unilateral: repudium. Somente
na época dos imperadores cristãos foram introduzidas limitações nesse campo, sem se abolir, contudo, o instituto do divórcio.
DOTE
O instituto característico do regime patrimonial da sociedade conjugal no direito romano era o dote.
Sua origem remonta, precisamente, à época do casamento cum
manu, quando a mulher ficava na sujeição do marido também do
ponto de vista patrimonial. Se era sui iuris, isto é, independente de
um pátrio poder, todos os seus bens passavam a pertencer ao marido.
No caso mais comum de se tratar de uma filha sob o poder de seu
pai, ela, ao se casar cum manu, saía de sua família para entrar na do
marido. Perdia, assim, os laços de parentesco agnatício com a família
de origem. Decorria disto, naturalmente, a perda de seus direitos hereditários na sucessão do pai, direitos estes que naquela época se ba-
seavam no parentesco agnatício. Para remediar tal injustiça, costumava-se dar à filha, ao se casar cum manu, o equivalente de sua parte
hereditária, que, pelas regras desse tipo de matrimônio, passava a pertencer ao marido dela, ou ao paterfamilias deste.
Foi essa praxe, provavelmente, a origem do instituto do dote,
que persistiu e ganhou regulamentação própria no sistema do casamento sine manu.
Na sociedade conjugal deste último tipo, a independência patrimonial dos cônjuges se conservou. Mesmo assim, como já vimos, o
ônus de sustentar a família cabia exclusivamente ao marido Nada mais
justo, portanto, do que a mulher contribuir, também, para isso. Essa
contribuição consistia em bens patrimoniais, destinados a reforçar as
bases econômicas da família: ad sustinenda onera matrimonii. Podia
ser dada ou prometida, tanto pelo paterfamilias da mulher ou por ela
mesma (se sui iuris), como também por parte de terceiros.
O dote deste modo constituído passava a pertencer ao marido.
Mesmo assim, o dote se distinguia dos outros bens integrantes do patrimônio do marido, pois os bens dotais tinham uma finalidade especial: destinavam-se à família toda.
Por essa razão, a princípio, a constituição do dote costumava-se
fazer acompanhar de uma stipulatio do marido, chamada cautio rei
uxoriae, pela qual ele prometia sua restituição no caso de dissolução
do matrimônio. Isto era importante, dada a facilidade do divórcio
no direito romano.
Mais tarde, tal obrigação de restituição passou a fazer parte
integrante do próprio instituto do dote. Para a garantia dessa restituição, regras foram introduzidas, restringindo o direito do marido
quanto à livre disposição dos bens dotais.
Constituição do dote
O dote, que podia constar tanto de coisa corpórea quanto incorpórea, constituía-se por mancipatio, in iure cessio ou traditio. Falavase, então, em dotis datio, ou seja, dação em dote. Quando o constituinte do dote apenas o prometia, por ato unilateral, falava-se em dotis
dictio. Esta requeria forma solene especial. Quando a promessa de
dote se fazia pela stipulatio, falava-se em dotis promissio.
A constituição do dote podia ser feita antes ou na constância do
casamento. Na primeira hipótese, entretanto, os efeitos dependiam da
realização do casamento (condicio iuris).
Restituição do dote
Conforme a pessoa que o constituísse, distinguia-se o dote em
dos profecticia (quando proveniente de um ascendente da mulher) e
dos adventicia (quando constituído pela própria mulher ou por um
terceiro). Essa distinção tinha relevância jurídica em matéria de restituição do dote.
A princípio, o único caso de restituição dos bens dotais, após
dissolução do matrimônio, se dava quando o marido expressamente
o prometera. O nome do dote nessas condições era dos recepticia
e sua restituição obedecia às regras estabelecidas na estipulação.
Posteriormente, o pretor concedeu meios para exigir-se a restituição ainda que esta não tivesse sido prometida pelo marido:
Em regra:
a) quando a dissolução do matrimônio se dava por causa de
divórcio ou pela morte do marido, podia essa restituição ser somente
pleiteada pela mulher (ou por seu paterfamilias, mas sempre com o
consentimento expresso da mulher); e
b) quando a dissolução do matrimônio se dava pelo falecimento
da mulher, então somente a dos profecticia era restituível ao ascendente que a constituíra; o dote chamado adventício ficava com o marido.
O objeto da restituição eram as coisas tais como foram recebidas.
Os frutos ficavam com o marido.
Com relação à obrigação de restituir, temos que mencionar as
proibições da legislação de Augusto a respeito da alienação, pelo marido, do Iundus dotalis (terrenos itálicos recebidos a título de dote). O
marido, sem o consentimento da mulher, não podia aliená-los nem
onerá-los.
O valor dos bens alienados pelo marido tinha que ser restituído.
O mesmo não ocorria com os bens perecidos ou danificados sem
culpa dele.
Quando os bens dotais eram entregues ao marido já avaliados,
dote esse chamado dos aestimata, o marido devia sempre aquele valor
em dinheiro.
Em certas hipóteses cabia ao marido o direito de retenção de
parte dos bens dotais, a título de punição da mulher que cometera
faltas, pelos filhos etc.
DOAÇÕES ENTRE CÔNJUGES
Como já vimos, ao tratar dos efeitos patrimoniais do matrimônio,
a doação era proibida entre cônjuges.
Em vista disto e considerando a situação desfavorável da mulher
na relação sucessória, costumava-se garantir a subsistencia dela, quando a dissolução do casamento se dava sem culpa sua, por meio de uma
doação feita pelo marido à mulher.
Esta doação, logicamente, tinha que ser feita antes do casamento.
Daí sua denominação donatio ante nuptias.
Na época pós-clássica ela ganhou importância e Justiniano permitiu que se fizesse mesmo durante o casamento, chamando-a donatio
propter nuptias.
Os bens não eram propriamente entregues à mulher, apenas prometidos a ela e ficavam gravados durante o casamento com a cláusula de inalienabilidade, se se tratasse de imóvel.
CAPÍTULO 27
TUTELA E CURATELA
CONCEITO E HISTÓRICO
A finalidade principal desses institutos é a de cuidar dos interesses de uma pessoa que sozinha não possa tomar conta dos seus
negócios. Assim, tanto a tutela como a curatela se relacionam com o
problema da capacidade para a prática de atos jurídicos.
A tutela tinha como fim precípuo proteger o interesse da família, isto é, dos herdeiros, e aplicava-se aos casos normais de incapazes
(pela idade e sexo).
A curatela, por sua vez, visava a acautelar interesses patrimoniais, mas em casos excepcionais de incapacidade, como a loucura,
a prodigalidade e, posteriormente, em alguns outros.
Com o decorrer do tempo, revelou-se e acentuou-se cada vez mais
o caráter de proteção do interesse do incapaz, caráter este que os
institutos da tutela e da curatela não tinham primitivamente, quando
apenas visavam à proteção da família.
Por isso mesmo é que se diz que, a princípio, esses institutos
representavam mais um direito (vis ac potestas) do que um ofício ou
munus publicum. Nos últimos tempos foi esse último caráter o que
prevaleceu.
ESPÉCIES DE TUTELA
Estavam sob tutela os impúberes e as mulheres sui iuris. Os
alieni iuris não, pois eles se encontravam sujeitos ao poder de seu
paterfamilias, que cuidava, também, de sua proteção.
A tutela dos impúberes era conferida pela Lei das XII Tábuas
ao parente agnatício mais próximo: chamava-se tutela legitima.
A mesma lei previa, também, a possibilidade de o paterfamilias,
em testamento, nomear o tutor a seus descendentes impúberes. Era a
tutela testamentaria, que preferia à legítima.
Na falta de tutor testamentarius e de tutor legitimus, o magistrado podia nomear tutor, com base nas disposições da lei Atilia
(186 a.C.), chamado tutor dativus.
A tutela das mulheres púberes regia-se praticamente por princípios semelhantes.
Eram incapazes para exercer a tutela as mulheres e os impúberes. O direito pós-clássico estendeu essa incapacidade a outras categorias também, como à dos menores de 25 anos, à dos surdosmudos, à dos bispos, à dos monges e à dos credores ou devedores
do tutelado.
Por outro lado, exceto o tutor testamentário, os demais eram
obrigados a aceitar o encargo, a não ser que obtivessem a dispensa
(excusatio) do magistrado. Motivos para essa escusa foram a idade
avançada, o cargo público, ter vários filhos etc.
PODERES E OBRIGAÇÕES DO TUTOR
O tutor dos impúberes tinha por incumbência a administração
do patrimônio do pupilo, isto é, da pessoa sob sua tutela.
Quando o impúbere era menor de sete anos, infans, o tutor geria
todos os seus negócios, praticando os atos de administração em seu
próprio nome, mas no interesse do pupilo. Os impúberes infantia
maiores, que tinham capacidade de agir limitada, praticavam os atos
de administração junto com o tutor, que apenas os assistia, conferindo-lhes a sua autorização: auctoritatis interpositio.
Na administração do patrimônio do pupilo, o tutor tinha que
agir de boa-fé e sempre no interesse do impúbere. Se o tutor prejudicasse este, qualquer cidadão podia denunciá-lo para que fosse removido do cargo (accusatio suspecti tutoris). Se condenado no processo, essa condenação lhe acarretaria a pena de infamia. No direito
mais evoluído, o tutor só podia alienar imóveis do pupilo se autorizado pelo magistrado. Assim, seus poderes ficavam restritos à simples administração do patrimônio do pupilo.
Finda a tutela, o ex-pupilo podia exigir a prestação de contas,
e, com essa, a transferência a ele dos direitos adquiridos e, naturalmente, das obrigações assumidas pelo tutor durante a administração do seu patrimônio. No caso de desonestidade do tutor, cabia
uma ação penal, chamada actio de rationibus distrahendis, para obtenção do duplo do valor do dano causado. A condenação acarretava,
também, a infamia.
Os poderes do tutor das mulheres são diferentes. A administração
do patrimônio cabia a elas, mas exigia-se sempre a assistência do
tutor. Isso significava que o tutor tinha que acompanhar os atos praticados pela mulher, autorizando-os (auctoritatis interpositio).
A tutela das mulheres, com a evolução do direito romano, perdeu cada vez mais a sua importância. A praxe introduziu a possibilidade de a mulher escolher o seu tutor. No período pós-clássico desapareceu por completo a tutela das mulheres.
CURATELA
A curatela (cura), dotada de características semelhantes às da
tutela, era um instituto paralelo a esta, aplicando-se-lhe, praticamente,
as mesmas regras. Tinha lugar a curatela em casos de proteção de incapazes outros que os impúberes e as mulheres.
Suas espécies eram as seguintes:
Cura furiosi: era a curatela do louco furioso e consistia na administração de seus bens. Já a Lei das XII Tábuas a conhecera, determinando que coubesse aos parentes agnados mais próximos. Na
falta destes, o pretor nomeava curador.
Cura prodigi: também provém das XII Tábuas. Por essa lei, o
pretor podia proibir que o indivíduo que esbanjasse seu patrimônio
continuasse a administrá-lo ou viesse a dispor dele (bonorum interdictio). O pródigo ficava, assim, com sua capacidade de agir restrita,
precisando sempre da autorização do seu curador para assumir obrigações. A nomeação do curador ao pródigo era feita conforme as
mesmas regras por que se fazia a dos loucos.
Cura minorum: era a curatela eventual dos púberes menores de
25 anos, que pediam um curador, por exigência das pessoas que receavam contratar com eles, em vista das disposições da lei Laetoria.
O menor, nessas condições, tinha sua capacidade de fato restrita; sua
situação era semelhante à do impúbere infantia maior.
Casos especiais de curatela foram o do nascituro, o dos surdosmudos, o dos ausentes etc.
O curador tinha por função, de um modo geral, ou representar
o curatelado absolutamente incapaz, gerindo seus negócios, ou assistir
o relativamente incapaz, dando-lhe o consentimento para a prática
de atos jurídicos.
Parte V
DIREITO DAS SUCESSÕES
CAPÍTULO 28
SUCESSÃO
("SUCCESSIO IN UNIVERSUM IUS")
CONCEITO E BREVE HISTÓRICO
Os direitos e obrigações patrimoniais geralmente não se extinguem pela morte de seu titular, ao contrário do que acontece com
outros direitos e obrigações pessoais e de direito público. Deste último tipo são os direitos decorrentes de relações familiares ou da posição do defunto para com a organização política do Estado.
Os romanos chamavam succedere in ius a passagem de todos os
direitos e obrigações transmissíveis do defunto a uma outra pessoa,
seu sucessor.
A palavra hereditas significava tanto o processo desta passagem,
como o seu objeto, isto é, o patrimônio do defunto, transmitido ao
sucessor.
Destarte, na mente dos romanos, até a época bizantina, o conceito se restringia ao de sucessão universal, isto é, de toda a herança.
Foram os bizantinos, da época de Justiniano, que introduziram
o novo conceito da successio in singulas res, isto é, o da transferência
de determinados direitos ou obrigações de um para outro sujeito de
direito. Esse novo conceito bizantino se contrapunha ao da successio
in universum ius, que para eles se referia a um corpus quod ex distantibus constat, isto é, à coisa coletiva, que era o conjunto dos direitos e obrigações do defunto.
Na ordem natural das coisas, a família sobrevivia ao defunto.
Os sucessores naturais do pai eram seus filhos, na consciência social
de outrora, como o são em nossos tempos.
Daí que, originariamente, no direito romano, tal sucessão se restringia exclusivamente aos filhos.
Eles eram considerados, conforme atestam as fontes romanas,
como quase donos, mesmo em vida de seu pai, na expectativa de
receber, futuramente, a herança: etiam vivo patre quodammodo dommi existimantur (D. 28.2. 11).
Pelos romanos da época clássica, conservadora das idéias tradicionais dos tempos passados, a sucessão dos filhos era caracterizada, ainda, como toda especial: não como aquisição da herança,
mas, sim, como aquisição da livre administração daquela: itaque post
mortem patris non hereditatem percipere videntur, sed magis liberam
bonorum administrationem consequuntur (D. 28.2. 11).
A sucessão dos sui heredes, isto é, das pessoas livres que passavam de alieni iuris a sui iuris pela morte do paterfamilias, era considerada tão natural na mente dos romanos, que nem a regularam expressamente: a Lei das XII Tábuas continha disposições apenas para
o caso de eles não existirem: si intestato moritur, cuius suus heres
nec escit... (T. 5.4).
Não havendo descendentes, podia a família extinguir-se com a
morte do paterfamilias. Em tal caso, o culto dos deuses do lar não
subsistiria, e, com isso, deixaria de existir, também, o centro de atividade agrícola que era, nesses tempos primitivos, a família.
Para evitar que isso acontecesse, praticava-se ou a adrogatio
ou a designação solene do herdeiro, perante o corpo político do Estado,
na mesma forma da adrogatio, que se chamava testamentum comitiis
calatis: eis a origem da escolha voluntária do sucessor.
A esta forma de nomeação de sucessor se juntou, mais tarde,
outra, menos complicada e mais prática: por meio do ato per aes
et libram.
Por outro lado, a Lei das XII Tábuas previa o caso de inexistência de testamento, e determinava a linha dos sucessores, como já
mencionamos acima.
Em fase ulterior dessa mesma evolução, introduziu-se a liberdade de testar do paterfamilias, dando-se-lhe poderes para dispor,
livremente, de seu patrimônio, o que a Lei das XII Tábuas já previa.
HERANÇA (Hereditas)
Como já explicamos, significava, além do processo de sucessão,
principalmente o objeto dela: os direitos e obrigações transmissíveis.
Não eram consideradas transmissíveis as servidões pessoais, como o
usufruto, o uso; a posse; algumas relações obrigacionais, como o mandato, a sociedade; as obrigações delituais; as actiones vindictam spirantes, que visavam obter uma satisfação pessoal pelo próprio ofendido, como em caso de injúria etc.
Os demais direitos e obrigações constituíam o patrimônio transmissível. Conforme o balanço entre o ativo e o passivo patrimonial,
a herança podia ser, também, ativa ou passiva (neste último caso se
chamava damnosa hereditas), pois o herdeiro, substituindo a pessoa
do defunto também nas suas obrigações, arcava com as dívidas deste.
Todo o patrimônio passava universalmente (per universitatem)
ao herdeiro ou aos herdeiros, que sucediam em todos os seus direitos
e obrigações ao defunto: is de cujus hereditate agitur (aquele de cuja
herança se trata). Daí a denominação moderna do defunto: de cujus.
No caso de pluralidade de herdeiros, cada um sucedia ao de cujus
no patrimônio todo, sendo os direitos e obrigações de cada herdeiro
limitados apenas pelo concurso dos demais, cabendo a todos alíquotas
ideais, sem divisão real: concursu partes fiunt.
As dívidas eram transmitidas totalmente aos herdeiros nessa hipótese. Quanto às obrigações divisíveis, eram divididas entre eles;
em caso contrário ficavam os herdeiros devendo em comum.
A responsabilidade do herdeiro, no direito romano clássico,
era pessoal e ia além do ativo da herança. Respondia com seu
próprio patrimônio, como se tivesse ele próprio contraído o débito.
ABERTURA DA SUCESSÃO (Delatio hereditatis)
Distinguiam-se, no direito romano, a fase da abertura da sucessão, em que ela era deferida, oferecida ao sucessor, e a fase da
aquisição daquela.
Abria-se a sucessão pela morte do de cujus. Oferecia-se, então,
a possibilidade ao sucessor de adquirir a herança: dei ata hereditas
intelligitur, quam quis possit adeundo consequi (D. 50. 16. 151).
Duas eram, e ainda hoje são, as formas de sucessão: sucessão
legítima e testamentária, segundo se baseasse na lei ou na última
vontade do de cujus.
Como já mencionamos, a sucessão legítima era a originária e a
sucessão testamentária se juntou a ela posteriormente. Entretanto,
no direito clássico, o costume fez grandemente prevalecer esta última
forma, como nos provam os textos e as informações epigráficas.
A liberdade de testar, princípio básico da sucessão testamentária, que, porém, podia prejudicar os descendentes (considerado o
seu direito à herança como decorrente da ordem natural das relações
familiares), foi-se restringindo no direito romano mais evoluído. Primeiro exigia-se que o testador incluísse seus parentes mais próximos
no testamento. A inclusão era, inicialmente, uma exigência formal,
porque significava que o testador tinha que mencioná-los no testamento, nomeando-os herdeiros ou deserdando-os. Só depois, numa
segunda fase, foram introduzidas regras com a finalidade de assegurar, a esses parentes próximos, uma participação real na sucessão,
que o testador não podia desrespeitar.
Daí uma terceira forma de sucessão: contra o testamento (successio contra tabulas).
Característica típica da sucessão romana era que a legitima e a
testamentária se excluiam uma à outra: nemo pro parte testatus pro
parte intestatus decedere potest (cf. Lnst. 2. 14. 5). Nomeado herdeiro,
embora o fosse para uma parte da herança ou para determinados
bens, a sucessão se abria com base no testamento: conseqüentemente
era ele o único herdeiro e seu direito se estendia a todo o patrimônio
do de cujus; os herdeiros legítimos não podiam concorrer com ele, a
não ser em obediência às regras da successio contra tabulas.
A mesma exclusividade se aplicava, também, aos testamentos
entre si: valia só o último. Testamento posterior derrogava o anterior,
mesmo quando dispunha apenas sobre parte da herança.
AQUISIÇÃO DA HERANÇA (Acquisitio hereditatis)
A aquisição da herança se fazia ipso jure ou por expressa manifestação da vontade, dependendo da qualidade do herdeiro, que poderia ser ou suus heres ou heres extraneus.
Os sui heredes, incluindo-se nesta categoria, além das pessoas
livres que ficavam sul iuris pelo falecimento do paterfamilias, também os escravos alforriados em testamento e nomeados herdeiros, adquiriam a herança automaticamente. Eram, pois, herdeiros necessários:
o filho, o heres suus et necessarius e o escravo, o heres necessarius.
Significa isto que eles adquiriam a herança sem a manifestação da
vontade de aceitá-la e, ainda, contra a eventual manifestação de não
querer aceitá-la. Eram, pois, forçados a responder pelas dívidas do
espólio, mesmo além das vantagens reais que a herança lhes oferecia:
ultra vires hereditatis (cf. D. 29.2.8 pr). Somente o pretor amenizou
a situação de tais herdeiros necessários de herança passiva, concedendo
a facultas abstinendi aos sui, isto é, aos filhos e o beneficium separationis aos necessarii, isto é, aos escravos. Pela primeira, o herdeiro
que se abstinha de comportar-se como herdeiro era considerado pelo
pretor como estranho para os efeitos patrimoniais da herança. Pelo
segundo, o escravo que não praticava atos de gestão relativos à herança podia conservar separados os bens adquiridos após a sua alforria, não respondendo com eles pelas dívidas da herança.
É de se notar que no direito moderno os herdeiros necessários
são os descendentes ou ascendentes sucessíveis, aos quais pertence
de pleno direito a metade dos bens do testador, consoante o artigo
1.721 do Código Civil brasileiro.
No direito romano os demais herdeiros extranei, que se chamavam heredes voluntarii, só adquiriam a herança com a expressa manifestação da vontade de aceitá-la, denominada aditio hereditatis.
Três eram as formas da aceitação da herança pelos extranei:
a) A forma antiga, formalística e solene, a cretio, mediante pronunciamento de formulário verbal: utilizando as palavras adeo cernoque (Gai. 2.166).
b) A aceitação tácita pela prática de atos relativos à herança:
pro herede gestio, da qual se deduz, implicitamente, a vontade de
aceitar.
c) A aceitação sem formalidades, expressa por modo diverso
dos acima referidos: aditio nuda voíunt ate.
Naturalmente, o heres extraneus podia renunciar expressamente
à sucessão, o que se fazia sem qualquer formalidades; bastava que a
manifestação de vontade fosse evidente e clara. Não podia ser retratada, a não ser que se tratasse de menor de 25 anos, que podia
pleitear a in integrum restitutio propter minorem aetatem.
"HEREDITAS JACENS" E "USUCAPIO PRO HEREDE"
Das regras referentes à abertura da sucessão e aquisição da herança segue-se que podia facilmente decorrer algum tempo entre
as duas. Nesse ínterim, aberta a sucessão, mas ainda não aceita a herança, o que, naturalmente, só podia ocorrer no caso de fieres extraneus, o patrimônio do de cujus ficava sem dono, porque já não era
deste (embora representasse a sua pessoa: hereditas personam defuncti sustinet) e ainda não era do herdeiro. Chamava-se herança
jacente: hereditas jacens.
Tratava-se de um patrimônio em situação toda especial: a de
pendência, de transição.
Com relação à herança jacente há que mencionar um instituto
curioso, controvertido e bastante antigo, a usucapio pro herede. A
posse, durante um ano, de uma coisa pertencente à herança, gerava
propriedade (embora houvesse imóveis na herança, pois esta era uma
das ceterae res, na linguagem da Lei das XII Tábuas). Por ela, adquiria-se, também, a posição de herdeiro e, em conseqüência, toda a
herança. Esse usucapião não exigia nem iustus titulus nem bona lides.
O direito mais evoluído condenou esse instituto. Os jurisconsultos clássicos o apelidaram de improba usucapio. Por fim, Marco
Aurélio aboliu-o, sendo por ele a ocupação de coisas hereditárias considerada um crimen expilatae hereditatis.
"HEREDITAS - BONORUM POSSESSIO"
O dualismo dos institutos do ius civile e do ius honorarium se
repete no direito das sucessões também.
A hereditas era um instituto tipicamente quiritário; por conseguinte regulado, exclusivamente, pelo antigo costume.
A bonorum possessio era, como o nome indicava, a posse dos
bens hereditários, deferida pelo pretor. Sua instituição se deve à
mesma necessidade prática que orientava o pretor na introdução desse
instituto como preliminar da rei vindicatio.
No campo da sucessão, a questão referente ao título de herdeiro
decidia-se mediante uma actio in rem, chamada hereditatis petitio,
semelhante à rei vindicatio. Nela, também, a iniciativa cabia ao nãopossuidor, contra o possuidor. Por conseguinte, nas situações incertas
intervinha o pretor para qualificar um dos contendores como possuidor. Para esse fim, o pretor examinava, sumariamente, as circunstâncias e decidia pelo seu bom senso.
Por isso, quando as regras rígidas do direito quiritário lhe pareciam contrárias à justiça e à eqüidade, que norteavam a atividade
pretoriana, o pretor conferia a posse a quem julgasse merecedor dela.
Um interdictum quorum bonorum, concedido pelo pretor, possibilitava ao herdeiro, como tal considerado por esse magistrado,
entrar na posse dos bens hereditários de quem os retivesse indevidamente (eis mais um interdito para adquirir a posse nunca tida, in-
cluído na categoria dos interdicta adipiscedae possessionis causa).
Naturalmente, tal posse, concedida pelo pretor, não era definitiva. Só pelo usucapião assim se tornava. Antes de decorrer o respectivo prazo, o herdeiro quiritário podia exigir a herança e ganhava
a causa. Nessa fase, então, a bonorum possessio era sine re, isto é,
sem efeito contra o ius civile.
Mais tarde, ao completar, suprir e corrigir o direito quiritário
(adluvandi, supplendi vel corrigendi iuris civilís gratia - D. 1. 1. 7. 1),
estabelecia o pretor novas regras referentes à vocação hereditária,
que prevaleciam sobre as regras do ius civile. Passou, então, o instituto da bonorum possessio a ser cum re, isto é, ter força contra o
direito quiritário.
Por esse meio, o pretor introduziu, na sucessão romana, profundas modificações, que serão estudadas nos devidos lugares.
CAPÍTULO 29
SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA
("SUCCESSIO SECUNDUM TABULAS")
TESTAMENTO
O testamento é um ato unilateral, formal, para o caso de morte
do testador, pelo qual este nomeia seu sucessor, chamado herdeiro:
voluntatis nostrae justa sententia de eo, quod quis post mortem suam
fieri velit (D. 28.1.1).
Característica essencial do testamento era sua revogabilidade
usque ad supremum vitae exitum (D. 34.4.4), isto é, até a morte
do testador. Por esse motivo eram inadmissíveis os pactos sucessórios
e o testamento conjuntivo, que tornariam irrevogáveis as disposições de
última vontade.
CAPACIDADE DE TESTAR (Testamenti factio activa)
Para poder testar, era necessária a testamenti factio activa, isto
é, a capacidade jurídica para esse mister.
O ius comercii não implicava forçosamente essa outra capacidade.
Não tinham capacidade de fazer testamento:
a) Os alieni iuris, por não terem patrimônio próprio, exceto
com relação ao peculium castrense e, posteriormente, ao peculium
quasi castrense.
b) Os latini Juniani que morriam escravos, passando seu patrimônio ao patrono, como pecúlio.
c) As mulheres, no direito antigo, limitação essa que desaparecia, sempre mais, no direito mais evoluído.
d) Os intestabiles, punidos por se terem negado a depor sobre
atos de que houvessem participado na qualidade de testemunha.
e) Os incapazes de fato, como os impúberes, loucos, pródigos.
CAPACIDADE DE HERDAR (Testamenti factio passiva)
Para ser nomeado herdeiro exigia-se, também, capacidade: testamenti factio passiva, na linguagem dos intérpretes modernos.
Para ter tal capacidade era preciso que o herdeiro fosse cidadão
romano livre. Escravo podia ser nomeado herdeiro, quando, no mesmo
ato, fosse alforriado.
Não tinham tal capacidade:
a) os peregrini;
b) os intestabiles;
c) durante uma certa época, as mulheres com relação à herança
de cidadão pertencente à primeira classe, em conseqüência de disposições proibitivas da lex Voconia (século II a.C.);
d) em geral a incerta persona, como tal os postumi, isto é, os
nascidos após o ato da última vontade, assim como a pessoa jurídica.
Estas últimas limitações foram abolidas no direito justinianeu.
As regras da testamenti factio passiva se aplicavam, igualmente,
aos herdeiros legítimos.
FORMAS DE TESTAMENTO
a) Testamentum publicum. Duas eram as formas de testamento
no período mais antigo. Pela primeira, o testamento se fazia perante
o comício curiato, que se reunia, para essa finalidade, duas vezes
por ano, e se chamava testamentum calatis comitiis. Tratava-se de
processo semelhante à adrogatio. Pela segunda, o testamento era feito
perante o exército, pronto para o combate, que, na prática, era a
mesma assembléia popular do comício acima mencionado, reunido
numa oportunidade diferente.
b) Testamentum privatum. A forma clássica do testamento era
o per aes et libram. Tratava-se de mais uma aplicação da mancipatio:
o testador mancipava seu patrimônio a uma pessoa de sua confiança,
familiae emptor, que se obrigava a transferi-lo à pessoa designada pelo
testador. Sucessivamente, a mancipatio familiae passou a ser uma
forma usual de testamento, na qual o familíae emptor, junto com o
libripens, ocupava a posição de testemunha apenas, com as demais
cinco. Daí o famoso número sete de testemunhas exigidas para o testamento privado romano, diante das quais o testador nomeava, oral
e solenemente, seu sucessor.
Mais tarde, costumava-se redigir documento escrito do testamento, assinado pelas sete testemunhas, que se chamava tabulae testamenti septem signis signatae, a que se juntava, ainda, a formalidade oral da mancipatio testamenti, porque a validade do testamento
decorria exclusivamente desta parte oral, sendo as tabulae apenas elementos de prova do conteúdo verbalmente enunciado do testamento,
chamado nuncupatio.
Por outro lado, o pretor considerava válido o documento de
testamento que apresentasse forma perfeita, embora tivesse faltado a
formalidade verbal da nuncupatio. Tratava-se da bonorum possessto
secundum tabulas para o que ele exigia, apenas, um documento firmado pelas sete testemunhas.
No direito pós-clássico as formas de testamento sofreram modificações, que, porém, deixamos de expor.
CONTEÚDO DO TESTAMENTO
O conteúdo primacial do testamento era a designação do herdeiro: heredis institutio velut caput et fundamentum totius testamenti intelligitur (Gai. 2.229). Sem isto não havia testamento, tratava-se, pois, de seu elemento necessário.
A nomeação do herdeiro era considerada fundamental para o
testamento. Este tinha que se iniciar com essa formalidade. Qualquer
disposição testamentária que precedesse à nomeação do herdeiro era
considerada nula: ante heredis institutiOnem inutiliter legatur (Gai.
2.229). Só Justiniano modificou este excessivo formalismo.
A designação do sucessor havia de ser feita inequivocamente,
certis et imperativis verbis, e havia de se referir a determinada pessoa:
Titius heres esto. Por esse motivo era inválido, no direito romano, o
testamento feito em favor de incerta persona, como por exemplo: a
favor dos pobres, ou de quem chegar primeiro ao funeral do testador - quis quis primus ad funus meum venerit, heres esto - cf.
Gai. 2.238.
Dependia, naturalmente, do testador designar um ou mais herdeiros. Neste último caso podia também determinar as respectivas
quotas. Caso não o tivesse feito, herdavam eles partes iguais.
A nomeação de herdeiros, para determinado bem da herança
(heredis instituti ex certa re) contradiria ao caráter universal da sucessão. Para salvar o testamento (favor testamenti) a jurisprudência
não tomava em consideração a limitação a certa res em tais casos, conferindo ao herdeiro nomeado a qualidade de sucessor universal.
Em geral a tendência da jurisprudência era a de procurar fazer
valer as disposições testamentárias: benigna interpretatio.
O testador podia nomear substituto a seu herdeiro (substitutio
vulgaris), caso ele não pudesse suceder. Tratava-se de nomeação condicional de herdeiros: Titius heres esto; si Titius heres non erit, Gaius
hares esto.
Diferente era a substitutio pupillaris, que consistia na nomeação
pelo pai de herdeiro de um filho ainda impúbere, para a eventualidade de este morrer antes de atingir a puberdade (isto é, antes de
poder o filho testar). Foi o único caso de nomeação do herdeiro de
outra pessoa. Justiniano concedia, também, a nomeação de herdeiros
para filho púbere desde que louco; substitutia quasi pupillaris. Hoje
inexistem tais institutos.
Além da nomeação do herdeiro, o testamento podia conter outras
disposições, como atribuições de Legados, fideicomissos, nomeação de
tutor, alforria de escravo etc.
TESTAMENTOS INVÁLIDOS
O testamento era nulo ab initio:
a) quando o testador não tinha testamenti factio activa
testamentum irritum;
b) quando lhe faltava alguma formalidade essencial - testamentum non jure factum;
c) quando o testador desrespeitava a legítima de seus descendentes - testamentum nullum.
O testamento se tornava ineficaz:
a) quando nascesse um filho ao testador, após feito o testamento em que não fora mencionado este filho superveniente - testamentum ruptum;
b) quando o testador perdia, após feito o testamento, sua capacidade de testar por capitis deminutio ou por adrogatio - testamentum irritum factum;
c) quando os herdeiros não aceitavam a herança - testamentum destitutum;
d) quando o testamento era rescindido pela querela inofficiosi
testamenti - testamentum inofficiosum.
Revogava-se o testamento:
a) pelo contrarius actus nos testamentos formais;
b) quando um novo era feito pelo testador;
c) pela destruição voluntária do documento do testamento, porém não pela sua perda ou danificação involuntária.
CAPÍTULO 30
SUCESSÃO LEGÍTIMA
("SUCCESSIO AB INTESTATO")
CONCEITO E HISTÓRICO
Na falta, invalidade por revogação do testamento, operava-se a
sucessão pela lei.
No direito romano havia três sistemas de vocação hereditária: o
do direito quiritário, baseado exclusivamente no princípio agnatício;
o do direito pretoriano, que corrigiu o sistema quiritário pela introdução de novas regras em favor dos parentes cognatícios; e o do
direito imperial da época pós-clássica, culminando com a legislação
justinianéia, que fez prevalecer, com exclusividade, o parentesco
cognatício.
SUCESSÃO LEGÍTIMA NO DIREITO QUIRITÁRIO
Na Lei das XII Tábuas três eram as classes (ordines) de her-
deiros chamadas a suceder na falta de testamento: Si intestato moritur, cui suus heres nec escit, agnatus proximus familiam habento. Si
agMtus nec escit, gentiles familiam habento (T. 5.4).
Por conseguinte, a primeira classe da ordem da vocação hereditária, nessa época primitiva, era a dos sui ou sui heredes, que tinha
o significado de herdeiro por si próprio, por causa da idéia do direito
inerente dos descendentes sobre os bens familiares: itaque post mortem patris non hereditatem percipere videntur, sed magis liberam
bonorum administrationem cansequuntur... (D. 28.2. 11).
Os sui eram os descendentes sujeitos ao pátrio poder do de
cujus e as mulheres casadas cum manu e assim fazendo parte integrante da família proprio jure, não porém os que, por emancipação
ou casamento cum manu, tivessem saído da família.
Os sui sucediam em partes iguais e independentemente do grau
de parentesco com o de cujus, isto é, os filhos sucediam com os netos, quando o antecessor destes já houvesse morrido por ocasião da
abertura da sucessão. Os sui de grau mais distante, porém, tomavam
o lugar de seu ascendente, isto é, recebiam a parte que a este caberia, sendo este o princípio da representação ou da sucessão por estirpe (in stirpes).
Para exemplificar, deixando o de cujus três filhos vivos e mulher
casada cum manu, cada um deles teria uma quota-parte da herança
(eis o significado de ser a mulher considerada, no casamento cura
manu, na situação de filha: filíae loco est). Mas, deixando o de cujus
dois filhos e dois netos, filhos de um terceiro filho premorto, os dois
filhos teriam um terço cada um e os netos um sexto cada um da
herança.
A sucessão dos agnados colaterais, por outro lado, se verificava
por cabeça, isto é, per capita. Por exemplo: tendo o de cujus deixado
dois tios paternos e três sobrinhos paternos de um terceiro tio paterno falecido, cada um havia um quinto da herança.
A sucessão dos gentiles já desaparecera no fim da República.
Característica comum da sucessão legítima do direito quiritário
era que ela não conhecia a sucessio graduum vel ordinum. Isto significava que a abertura da sucessão, neste caso, se verificaria somente uma única vez. Se o agnado mais próximo tivesse deixado de aceitar a herança, esta não se transmitia aos agnados mais distantes. Se
todos os agnados não aceitassem a herança, ele não passava para os
gentiles. Tanto num como noutro caso a herança se tornaria jacente,
ou, então, vacante.
SUCESSÃO LEGÍTIMA NO DIREITO PRETORIANO
O sistema do direito quiritário chegou a ser considerado injusto,
já no fim do período republicano. No casamento cum manu, havendo
liame agnatício entre os cônjuges e os filhos, reciprocamente, havia
também sucessão. A prevalência do matrimônio sine manu nesse período, porém, dividia, do ponto de vista da sucessão, esses mesmos
cônjuges e a mãe dos filhos, por não estabelecer laços de adgnatio sucessíveis entre eles. Por outro lado, nesse mesmo período, outros liames
de sangue, não reconhecidos como jurídicos para fins de sucessão, foram considerados como merecedores de tutela jurídica para aquele
efeito: assim o caso de filhos emancipados e de outros parentes da
linha materna.
As correções do sistema vigente do direito quiritário, nos moldes
acima indicados, foram feitas pelo pretor por meio da bonorum possessio, como já explicamos. Na bonorum possessio sine tabulis, o pretor, de um lado, estendeu a ordem de vocação hereditária a determinados parentes consangüíneos (cognati) não contemplados para o efeito
de sucessão no sistema do ius civile e, de outro lado, introduziu a
sucessio graduum et ordinum, isto é, a abertura sucessiva, na ordem
da vocação hereditária, da sucessão legítima. Assim, não aceitando os
parentes mais próximos a herança, abria-se novamente a sucessão para o grau mais distante ou para a classe subseqüente.
Na primeira classe eram chamados, pelo pretor, os liberi. A categoria compreendia, além dos sui, também os sui fictícios, isto é, os
descendentes que já tinham saído da família agnatícia, por causa de
emancipatio ou conventio in manum praticada pelo paterfamilias.
Na falta de liber, o pretor chamava à bonorum possessio sine
tabulis os legitimi, isto é, os herdeiros designados pelo direito quiritário, que, na prática, significavam os agnados (pois os sui foram
chamados na categoria dos liberi, e a sucessão dos gentiles desaparecera nessa época).
Na falta de herdeiros legitimi, eram, como terceira classe, chamados os cognati, isto é, os parentes cognatícios, da linha materna,
até o sexto grau (ou, excepcionalmente, até o sétimo grau).
Finalmente, em último lugar, isto é, na falta de todo e qualquer
parente sucessível, herdava o cônjuge sobrevivente de um matrimônio sine manu, que era, como sabemos, a forma usual do casamento
desta época.
Alargavam ainda mais o campo de aplicação do princípio cognatício, em matéria de sucessão, as modificações introduzidas pela legislação do período imperial, com os senatusconsulta Tertullianum
et Orfitianum e as constituições de Valentiniano II e Teodósio, bem
como de Anastácio.
SUCESSÃO LEGÍTIMA NO DIREITO JUSTINIANEU
A reforma definitiva foi feita por Justiniano, com a Novella 118.
A sucessão legítima tal qual vem regulada nessa Novella já se
baseava, exclusivamente, no princípio cognatício.
Por ela, foram chamados a suceder, na primeira classe, os descendentes; na segunda classe, os ascendentes e os irmãos germanos
(isto é, os que tinham ambos os progenitores comuns) e respectivos
sobrinhos; na terceira classe, os irmãos consanguinei ou uterini (isto
é, os que só tinham um genitor comum) e os seus filhos; na quarta
classe os cognados, sem limite de grau. Na falta de herdeiros dessa
última classe, aplicava-se a já mencionada bonorum possessio unde
vir et uxor, deferindo-se a herança ao cônjuge sobrevivente.
Também no direito sucessório justinianeu havia abertura de sucessão consecutiva para os graus e classes mais remotas, caso os parentes mais próximos não aceitassem a herança successio ordinum et
graduum).
A herança definitivamente sem herdeiro (bona vacantia) passava
ao Fisco, que a adquiria loco heredis.
Em cada um desses períodos, aplicavam-se aos libertini regras
especiais, que podemos deixar de examinar.
CAPÍTULO 31
SUCESSÃO NECESSÁRIA
("SUCCESSIO CONTRA TABULAS")
Um dos problemas mais delicados era o de assegurar a sucessão
às pessoas mais intimamente ligadas ao de cujus. Nos tempos primitivos, grande influência tinha que exercer a acepção coletiva da propriedade, que antecedera a idéia da propriedade particular. Na propriedade de tipo coletivo, o titular é a comunidade familiar. Lembrança dessa idéia primitiva conservou-se, ainda, na época em que a
propriedade representava já a titularidade exclusiva de um indivíduo.
Por outro lado, as regras referentes à sucessão necessária de
certos membros da família, ligados pelos liames mais diretos e íntimos de parentesco, resultavam da luta de dois princípios básicos,
mas que se chocavam: o do respeito à última vontade do testador e
o da preocupação de garantir as melhores condições econômicas pos-
síveis aos parentes mais estreitamente ligados, para com os quais o
testador tinha responsabilidade decorrente dos laços familiares.
SUCESSÃO NECESSÁRIA FORMAL NO DIREITO QUIRITÁRIO
Nos tempos históricos, na legislação decenviral, o princípio básico do direito sucessório foi o da liberdade absoluta do testador em
escolher seu sucessor ou sucessores.
Nessa legislação, da época das XII Tábulas, transparecia, porém,
a idéia de um direito originário dos sui sobre os bens do testador,
como a evidencia a exigência formal da deserdação. O testador tinha
obrigação legal de, no testamento, mencionar os sui, seja intitulandoos herdeiros, seja deserdando-os: instituendi sunt aut exheredandi, Reg.
Ulp. 22. 14.
No caso de preterição (isto é, de falta de menção no testamento)
de um sui, a conseqüência jurídica dependia da categoria do preterido:
a) tratando-se de filius suus, o testamento era considerado nulo
(testamentum nullum); por conseguinte, abria-se a sucessão ab intestato;
b) tratando-se de outros sui, como filhas ou netos, o testamento
era considerado válido, mas os preteridos recebiam sua parte, que
consistia numa quota igual à dos outros herdeiros, quando estes fossem sui, ou na metade da herança, quando os outros fossem herdeiros
extranei, isto é, estranhos à família;
c) tratando-se de postumus suus, isto é, suus havido após feito
o testamento, e por isso não mencionado nele, o testamento era inválido (ruptio testamenti), abrindo-se a sucessão ab intestato, independentemente de ser esse suus filho, filha ou neto do testador.
As modificações que o pretor introduziu pela bonorum possessio
contra tabulas consistiam na extensão da sucessão necessária à categoria dos liberi. Outra inovação foi que a conseqüência da preterição
não era a invalidade do testamento, mas, apenas, a de dar uma faculdade ao preterido para obter a parte que lhe caberia como herdeiro
ab intestato.
SUCESSÃO NECESSÁRIA MATERIAL
No fim da República e no início do principado surgiu um novo
meio judicial, colocado à disposição dos parentes mais próximos, pelo qual podiam impugnar sua deserdação injusta, feita em testamento.
Chamava-se querela inofficiosi testamenti.
Sua origem remonta à atividade do tribunal especial dos centumviri (cem membros), competente para julgar as questões hereditárias.
A idéia básica, copiada, talvez, de costume prevalente na Grécia,
era a de que o testamento em que se nomeavam estranhos como herdeiros, em detrimento de familiares mais próximos, ofendia o officium
pietatis, esse liame moral que liga entre si tais parentes. Daí o testamento ser considerado inofficiosum, pois a última vontade do testador
seria evidentemente motivada por ódio injustificável, que o tornava
equiparável ao louco (color insaniae), cujo ato é, como sabemos, nulo
do ponto de vista jurídico.
Por esse meio judicial, admitido perante aquele tribunal, os descendentes, ou, não os havendo, os ascendentes, ou na falta também
destes, os irmãos, podiam pedir a invalidação do testamento que não
lhes deixasse, no mínimo, um quarto da parcela da herança a que
teriam direito pela ordem de vocação legítima.
Para tomar sua decisão na querela inofficiosi testamenti, o referido tribunal examinava os motivos da deserdação ou, então, da preterição, pelo testador.
Quando invalidado o testamento, pelo tribunal, os herdeiros
deserdados ou preteridos tinham direito à sua parte legítima na herança. Assim, se eles tivessem direito à herança toda, o testamento
era rescindido totalmente. Caso contrário, só na medida da portio
legitima, parte da herança que, como legítima, caberia ao herdeiro
que reclamava.
Nessa última hipótese verificava-se a exceção à regra nemo pro
parte testatus pro parte intestatus decedere potest, pois as disposições
testamentárias continuavam em vigor na parte não invalidada.
Pela mesma forma supra, podia ser invalidada a doação ou dote constituídos pelo testador, antes de seu testamento, quando tais
atos prejudicassem o direito daqueles herdeiros à sua legítima.
REFORMAS DE JUSTINIANO NA SUCESSÃO NECESSÁRIA
As reformas de Justiniano, pelas Novelas 118 e 115, unificaram
a sucessão necessária formal e material, aumentaram a parte legítima
de um quarto para um terço, ou para a metade da parte ab intestato,
conforme se tratasse de quatro ou mais herdeiros necessários, e determinaram, taxativamente, quais os motivos justos para a deserdação.
Quando o titular da partio legitima nada recebia no testamento
tinha à sua disposição a querela, visando a invalidação das nomeações de herdeiros, na medida em que elas prejudicassem seu direito.
Quando, porém, ele recebia menos do que lhe cabia, tinha um actio
ad supplendam legitimam, para pedir a diferença.
CAPÍTULO 32
COLAÇÃO ("COLLATIO")
CONCEITO E HISTÓRICO
Ao se partilhar a herança entre vários herdeiros com direito à
parte ab intestato havia de se considerar os bens patrimoniais por
eles adquiridos antes da abertura da sucessão. Para esse fim servia
o instituto da colação, cuja finalidade consistia em assegurar igualdade na participação dos descendentes no patrimônio familiar.
O primeiro caso foi o da collatio bonorum vel dotis na bonorum
possessio unde liberis. Na classe dos liberi, como já vimos, foram
incluídos, além dos sui, também os filhos emancipados e filhas casadas. Os filhos emancipados, entretanto, levavam uma vantagem econômica sobre os sui, porque ainda na vida do parens manumissor
eles podiam adquirir patrimônio próprio, ao passo que os sui, sujeitos ao poder do pai, adquiriam não para si, mas para seu pai, aumentando, destarte, com sua atividade, o patrimônio familiar, objeto da
herança.
Para igualar as partes dos filhos, o pretor exigia do filho emancipado que trouxesse à colação o patrimônio por ele adquirido após
a emancipação e antes da abertura da sucessão.
Esse primeiro tipo de colação foi desaparecendo com o reconhecimento, sempre mais amplo, da capacidade dos alieni iuris de adquirir patrimônio próprio.
No lugar da colação descrita, surgiu uma nova, chamada collatio descendentium, no período imperial, consistente na obrigação
de conferir tudo o que fora recebido a título gratuito, em vida do
de cujus, como, por exemplo, dote, donatio propter nuptias etc.
Justiniano, por sua vez, estendeu a colação, além da sucessão
legítima, também à sucessão testamentária.
A colação, nesta última fase, era considerada como condição
legal à sucessão. Cabia, então, ao sucessor, para poder adquirir a
herança, conferir os bens recebidos a título gratuito e, se não os
conferisse, não podia recebe-la.
A colação se fazia in natura, isto é, entregando-se à massa o
bem (dinheiro, casa etc.) recebido, para que se realizasse, depois, a
partilha entre os herdeiros. Podia-se fazer, também, a colação per
imputationem, isto é, deduzindo da quota do herdeiro o valor da
liberdade recebida do de cujus.
CAPÍTULO 33
SUCESSÃO SINGULAR ("SUCCESSIO
SINGULARIS MORTIS CAUSA")
CONCEITO
Da sucessão universal, distinguiam-se as disposições de última
vontade pelas quais o testador deixava determinados bens de sua
herança. Tratava-se, nestes casos, de sucessão titulo singulari.
A diferença entre a sucessão universal e a singular consistia no
seguinte: na primeira, transmitia-se a herança, no todo ou em parte,
contendo sempre, porém, um complexo de direitos e obrigações relativas à herança; na segunda, transferiam-se ao sucessor designado
pelo testador somente determinados direitos destacados da herança.
Era o caso dos legados e, eventualmente, do fideicomisso.
LEGADO (Legatum)
A disposição testamentária a favor de pessoa individualmente
designada, referente a determinado bem da herança, chamava-se legado. Por este diminuía-se a parte ativa da herança deixada ao herdeiro.
As Institutas e o Digesto justinianeus o chamavam, também, de
donatio testamento relicta (cf. Inst. 2.20.1 e D.31.36), que bem
caracterizava a essencia e finalidade do instituto.
O legado devia ser feito em forma solene, de maneira imperativa (verbis imperativis), ficando, seu cumprimento, a cargo de um
herdeiro testamentário. Originariamente, só no testamento podia ser
estipulado; mais tarde, admitiu-se, também, sua constituição em codicilo, isto é, num apendice do testamento, devidamente confirmado
Suas regras básicas são:
a) o legado não podia subsistir por si só; dependia, sempre,
da nomeação de herdeiro;
b) o legado representava, sempre, uma diminuição da herança dos herdeiros testamentários;
c) o legado era recebido, sempre, por intermédio de um dos
herdeiros;
d) o legatário não era sucessor da pessoa do testador; ele somente recebia algo da herança;
e) por conseguinte, o legatário não respondia pelas dívidas da
herança; os respectivos credores só podiam acionar os herdeiros;
f) o legado pressupunha o saldo ativo da herança; só neste
caso o legado era entregue a seu titular.
Quatro eram as modalidades do legado no direito romano:
a) o legado do tipo real, chamado legatum per vindicationem,
que, pelas suas formas solenes, expressas no testamento, conferia ao
legatário, direta e imediatamente, o respectivo direito real: o legatário tinha à sua disposição a rei vindicatio para exigir a coisa do herdeiro;
b) o legado do tipo obrigacional, chamado legatum per damnationem. Ele criava uma obrigação do herdeiro para com o legatário, que, então, tinha a seu dispor uma actio ex testamento, que era
uma actio in personam, para haver do herdeiro o legado.
Duas outras formas, subtipos dos acima enumerados, completavam o quadro: legatum per praeceptionem e legatum sinendi modo.
O primeiro, do tipo real; o segundo, obrigacional.
Como a instituição de legados podia prejudicar o herdeiro, foilhe assegurado por uma lex Falcidia (70 a.C.) o direito a um quarto,
no mínimo, do líquido da herança.
FIDEICOMISSO (Fideicommissum)
A disposição de última vontade, a título universal ou singular,
expressa sob a forma de solicitação ou pedido feito ao sucessor, se
chamava fideicommissum. Podia ser feita em testamento, separadamente, ou num codicillus (ato contendo disposições para o caso de
morte, sem, porém, nomear herdeiro).
Originariamente, a execução do fideicomisso dependia exclusivamente da boa-fé do onerado, constituindo, assim, uma obrigação
moral, referente, na maioria dos casos, à entrega da quota hereditária
ou bem de um legado, ao fideicomissário.
A partir da época de Augusto, foi admitida a possibilidade de
o fideicomissário propor ação para obter o que lhe fora deixado em
fideicomisso, o que deu grande impulso à evolução do instituto, o
qual passou a ser uma das formas preferidas de disposição de última
vontade, na época do Principado.
O fideicomisso apresentava muitas vantagens sobre as outras
formas de disposição de última vontade, pois nele se prescindia de
toda e qualquer formalidade. Demais, servia essa forma de disposição de última vontade às mais variadas finalidades, dando, destarte,
ampla liberdade ao testador para formular sua última vontade.
No direito justinianeu fundiram-se os institutos do legado e do
fideicomisso.

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