CASOS TÍPICOS DE DISH NO CONTEXTO DE UMA CIDADE

Transcrição

CASOS TÍPICOS DE DISH NO CONTEXTO DE UMA CIDADE
CASOS TÍPICOS DE DISH NO CONTEXTO DE UMA CIDADE MEDIEVAL PORTUGUESA
(SÉc. XII-XVI)
Susana GARCíA e Eugenia CUNHA
A doen<;a hiperostótica (DISH) aparece pela prime ira vez referida na literatura médica no século
XIX (ver Ortner 2003), no entanto só foi descrita C0111 mais pormenor por Forestier e Rotes--Querol em
1950. Mas, e apesar da sua descri<;ao tardia, esta condi<;ao parece afectar a espécie humana desde o
paleolítico superior, tendo Crubézy e Trinkaus (1992) observado UI11 esqueleto de umFlol/lo
/len/ldert/ln/CIlsis com várias características associadas a DlSH.
Esta condi<;ao é relativamente fácil de identificar en:l restos humanos e talvez por isso tenha sido
descrita em diversos contextos arqueológicos de diferentes períodos (ex. Cunha 1994; Roberts e Cox
2003; Reale et al. 1999; Arriaza et al. 1993; Oxenham et al. 2006). Mas, tal como Roberts e Cox (2003)
demonstraram, em rela<;ao a Inglaterra, a DISH tem aumentado consideravelmente ao longo do tempo,
sendo muito rara entre os grupos de ca<;adores-recolectores. Este aumento pode estar relacionado corn
vários factores e, entre eles, a populariza<;ao de alimentos mais calóricos e a adop<;ao de um estilo de
vida mais sedentário.
Embora a etiología exacta desta condi<;ao seja desconhecida, tem sido considerada LIma
deficiencia metabólica associada a idade avan<;ada, obesidade, diabetes Jl7ellitus, gota, entre outras (ver
entre outros autores Rogers e Waldron 1995). Em termos arqueológicos, esta condi<;ao também. parece
ser mais comum em cemitérios ingleses onde eraminumados membros do clero que teriam uma posi<;ao
social privilegiada (Waldron 1985; Roberts e Cox 2003).
Neste trabalho, após a análise macroscópica de 63 esqueletos adultos com pelo menos tres
vértebras torácicas, identificaram-se seis casos com les6es compatíveis com o diagnóstico de DISH. Estes
casos sao aqui analisados.
2. Material e métodos
2.1. Mn/-erin/
Os esqueletos descritos forarn exumados no contexto de um cemitério medieval localizado em
Leiria (Portugal), entre Novembro de 2000 e Mar<;o de 2001, tendo-se recuperado no total 77 sepulturas e
162 indivíduos (Filipe et al. 2003). Ao laboratório de Antropologia do Museu Nacional de História
Natural chegaram apenas 155 indivíduos, sendo 61 nao adultos e 94 adultos (40 mulheres, 48 homens e 6
de sexo indeterminado). Os restantes esqueletos estavam muito mal preservados e, possivelmente,
foram classificados apenas como material osteológico. Segundo fontes históricas, o cemitério escavado
estava associado a Igreja de S. Martinho que terá sido construída no século XII e destruída no final do
século XV ou início do século XVI, uma vez que eln 1553 jánao existia (in Filipe et al. 2003).
2.2. Métodos
Todos os indivíduos aqui descritos pertencem ao sexo masculino, tendo este diagnóstico sido
feito com base na lnetodologia pro posta por Bruzék (2002) para o coxal. A idade estimada para todos
eles foi de mais de 40 anos com base, essencialmente, na superfície auricular (Lovejoy et al. 1985;
Buckberry e Chamberlain 2002). Possivelmente, um indivíduo teria mais de 60 anos, devido a presen<;a
410
LAS SOCIEDADES HISTÓRICAS PENINSULARES: EDAD MEDIA Y MODERNA
de macroporosidades na superfície auricular e perda ante-mortem de todos os dentes. A estatura foi
estimada com base no comprimento fisiológico do fémur (Mendon\a 2000). Os indivíduos analisados
estavam em média melhor preservados que o conjunto da amostra, pois o índice de conserva\ao geral
obtido para os casos com DI5H foi de 79,1 %, enquanto que para a amostra total foi de 50% (estes seis
indivíduos também foram incluídos neste cálculo). Este índice foi calculado com base em Dutour (1989)
e representa a quantidade óssea preservada, assim, cerca de 79% dos ossos contemplados no método,
estavam disponíveis para estudo.
O critério primário adoptado para a identifica\ao da DI5H foi a presen\a de fusao anterolateral
de quatro corpos vertebrais torácicos contíguos. A presen\a ou nao de entesopatias exuberantes (' spurs')
também foi investigada, mas a sua presen\a serviu apenas para refor\ar o diagnóstico, nao sendo por si
só critério suficiente para a classifica\ao de doen\a hiperostótica.
3. Resultados
3.1. Características sugestivas de DISH comuns a todos os esqueletos
1. Fusao anterolateral de pelo menos quatro corpos vertebrais torácicos contíguos com preserva\ao
do espa\o intervertebral;
2. Nao envolvimento das apófises vertebrais;
3. Ausencia de anquilose óssea;
4. Presen\a de entesopatias exuberantes em várias zonas do esqueleto.
Nesta série, esta condi\ao foi apenas observada em indivíduos do sexo masculino apesar de a
amostra ser constituída por 40 mulheres adultas. Como se pode observar na tabela 2, todos os indivíduos
com DI5H também apresentavam sinais de artrose severa em várias articula\oes. E, como seria de
esperar, o indivíduo mais velho é o mais afectado (ind. 52).
Como esta condi\ao tem sido associada a algum 'conforto' alimentar e social, tentou -se inferir se
estes indivíduos gozariam de algum modo de um estatuto privilegiado na sociedade. No entanto,
apenas com base nos indicadores disponíveis nao nos é possível fazer esta afirma\ao. De facto, apenas
um indivíduo (ind. 52) nao foi inumado em sepultura (o indivíduo 158 também nao foi, mas nesta
unidade estratigráfica nao se verificou a constru\ao de sepulturas), mas todos eles apresentam
indicadores de stress nao específico como a cribra orbitalia ou as hipoplasias lineares do esmalte dentário.
Todos os indivíduos com DI5H também tinham nódulos de 5chmorl em várias vértebras e alguns
sofreram de outras patologias, tais como a espondilólise (ind. 14) e infec\oes (ind. 44). A tíbia e o tálus do
lado esquerdo do indivíduo 92 apresentavam lesoes compatíveis com osteomielite, possivelmente de
etiologia traumática
4. Discussao
De um modo geral, os casos de DI5H analisados enquadram-se no perfil epidemiológico desta
doen\a, que afecta essencialmente indivíduos do sexo masculino e com urna idade superior a 40 anos. A
incidencia da DI5H nesta série é relativamente elevada - 9,5% (6/63), enquanto em Inglaterra, no mesmo
período, era apenas de 3,3% (Roberts e Cox 2003). Os valores encontrados aproximam-se dos valores
obtidos em cemitérios onde eram inumados indivíduos de classes mais favorecidas (ver Mays 1991). No
entanto, Arriaza et al. (1993), também encontraram urna frequencia elevada de casos (13,4%) numa
popula\ao Núbia (5udao) com cerca de dois mil anos.
411
CASOS Tíl'lCOS DE DISH NO CONTEXTO DE UMA C1DADE MEDIEVAL PORTUGUESA (SI2C. XII-XVI)
Dois ter¡;os dos indivíduos com DISH tambél11 sofriam de artrose severa, manifestando-se, par
vezes, de forma poliarticular. Os esqueletos cuja estimativa da idade a l11arte indicou unla idade mais
avan¡;ada apresentam mais vértebras fundidas, e um maiar envolvimento das zonas de inser¡;ao
muscular, o que se explica pela evolu¡;ao lenta e gradual da doen¡;a.
A análise preliminar dos dados desta série sugere-nos que a vida em Leida na Idade Média era
dura, pois registou-se uma elevada prevalencia de indicadores de stress, fracturas e doen¡;as infecciosas.
Mas, por outro lado, tambénl se encontrou alguns indicadores que sugerem que algLU1S indivíduos
conseguiam atingir idades relativamente avan¡;adas para a época. A perda allte-JIIOrtelll total ou quase
total de dentes, a artrose da anca e do joelho e alguns casos de osteoporose sao disso exemplo.
5. Conclusao
Alguns autores consideram que a DISH nao afecta significativamente a qualidade de vida dos
pacientes. Rothschild (2002) defende, inclusive, qLle nao se pode considerar esta condi¡;ao Llma doen¡;a,
mas sim um fenómeno assintomático que poderá ter um efeito protector da coluna vertebral. Mesmo que
esta afirma¡;ao esteja correcta, a identifica¡;ao da DISH em popula¡;5es do passado permite-nos tirar
algul11as ila¡;5es sobre as condi<;5es de vida das comunidades investigadas.
A análise paleopatológica nao nos permite afirmar que os indivíduos com DISH tal11bél11
soirerial11 de obesidade OLl diabetes lI1ellitus, até porque esta associa¡;ao nao está cOlTlpletamente
esclarecida, mas a alta prevalencia desta doen¡;a em Leiria na ldade Média, sugere-nos que pelos lTlenOS
u l11a franja da sociedade teria uma posi¡;ao socia I privilegiada que, possivell11en te, se trad uziria no
acesso a dietas mais calóricas.
Agradecimentos
A Cámara MLmicipal de Leiria, por ter disponibilizado a série para estudo, e ao Museu Nacional
de História Natural (Museu Bocage) por ter cedido o espa¡;o para acondicionar e analisar o espólio. Ao
Instituto Superior de Ciencias Sociais e Políticas (UTL) pelo apoio financeiro para participar no
congresso.
BIBLIOGRAFÍA
ARRTAZA, B.T., MERBS, C.F. e R.oTHSCHILD, B.M. (1993): DiffLlse idiopathic skeletal hyperostosis in
Meroitic Nubians from Sudan. American ]ournal ofPhysical Anthropology 92: 243-248.
BUCKBERRY, J.L. e CHAMBERLAIN, A.T. (2002): Age estimation from the auricular surface of the
¡Iium: a revised method. AlI1erican ¡oumnl of Physical Anthropology 119: 231-239.
BRUZEI<, J. (2002): A method for visual determination of sex, using the human hip bone. AlI1erican
¡oumal of Physicnl Anthropology 117: 157-168.
CRUBÉZY, E. e TRINKAUS E. (1992): Shanidar 1: a case of hyperostotic disease (DISH) in the MiddJe
Palaeolithic. AJllericnn ¡oumnl ofPhysical Anthropology89: 411-420.
CUNHA, E. (1994): Paleobiologia das popLlla¡;5es 11ledievais portuguesas. Os casos de Fao eS. Joao de
Almedina. (Tese de doutoramento inedita). Universidade de Coimbra.
DUTOUR, O. (1989): HOlllllles Fossiles du Snhnra. PeupleJllellls Holocenes du Mnli Septentrio/nal. París.
HUPE, 1., BRAZUNA, S. MATOS, V. e FREITAS, J. (2003): Necrópole de S. MartinJlo: análise preliminar
dos dados arqueológicos e antropológicos. Era 5: 54-79.
412
LAS SOCIEDADES HJSTÓRICAS PENINSULARES: EDAD MEDIA Y MODERNA
FORESTIER, J. e ROTES-QUEROL 1. (1950): Senile ankylosing hyperostosis of the spine. Annals of the
Rheumatic Diseases 9: 321-330.
LOVEJOY, e.O., MEINDL, R.S., PRYZBECK, T.R. e MENSFORTH, R.P. (1985): Chronological
metamorphosis of the auricular surface of the ilium: a new method for the determination of adult
skeletal age at death. American Journal of Physical Anthropology 68: 15-28.
MAYS, S. (1991): The Mediaeval Burials from the Blackfriars Friary, School Street, Ipswich, Suffolk. AML
Report 16/91 Londres.
MAYS, S. (1998): The Archaeology ofHuman Bones. Nova York.
MENDON<::A, M.e. (2000). Estimation of height from the length of long bones in a Portuguese adult
population. American Journal of Physical Anthropology 112: 39-48.
ORTNER, D.J. (2003): Identification of Pathological Conditions in Human Skeletal Remains. Washington (2 a ).
OXENHAM, M.F., MATSUMURA, H. e NISHIMOTO, T. (2006): Diffuse Idiopathic Skeletal
Hyperostosis in Late Jomon Hokkaido, Japan. International Journal of Osteoarchaeology 16: 34-46.
REALE, B., MARCHI D. e TARLI S.M.B. (1999): A case of diffuse idiopathic skeletal hyperostosis (DISH)
from a Medieval Necropolis in Southern Italy. International Journal ofOsteoarchaeology 9: 369-373.
RESNICK, D. e NIWAYAMA G. (1995): Diagnosis ofBone and Joint Diseases. Philadelphia (3 a).
ROBER'fS, e. e COX M. (2003): Health & Disease in Britain. From Prehistory to the Present Day. Sutton.
ROGERS, J. e WALDRONT (1995): A Field Cuide to Joint Disease in Archaeology. Nova York.
ROTHSCHILD,
B.M.
(2002):
Diffuse
idiopathic
skeletal
hyperostosis
<http:j /www.emedicine.com/orthoped/topic74.htm> (Consultado a 14 de Novembro de 2005).
WALDRON, T. (1985): DISH at Merton Priory: evidence for a 'new' occupational disease? British Medical
Journa1291: 1762-1763.
413
CASOS TíPICOS DE DISJ-I NO CONTEXTO DE U,'vI A CIDADE M WIEVAL PORTUGUESA (SI~C. XII-XVI)
Índice de
Númel'@do
indivíduo
Sexo
(Bruzek 2002)
Idade
(Lovejoy et al. 1985;
Mays 1<998)
14
Masculino
40-60
162 cm± 6,90
53,1%
44
Mastulino
40-60
165 cm ± 6,90
94,4%
Masculino
+60
160 cm ± 6,90
83,9%
92
Masculino
40-60
167 cm ± 6,90
95,5%
135
Masculino
40-60
164 cm ± 6,90
54,7%
158
Masculino
40-60
162 cm ± 6,90
92,8%
52
,
Estatura a)
(Mendon~a
Conserva~ao
2000)
An.atómica b)
(Dutour 1989)
1
:1
,
.
n) MedJn de 164 C/II; /J) MedJn de 79,1 %.
Tabela 1.
N° de
Ind.
Sep.
Idade
yértebras
afectadas
14
Sim
40-60
6
44
Sim
, 40-6Q
7
!
,
j
,
52
Nao
92
Sim
Descri~ao
dos esqueletos com DISH
Nódulos
de Schmorl
Artrose
Indicadores de
Stress
Sim
Sim, mao
SI órbita,
dentes
Sim
Nao a)
SI cribra, cl
hipoplasias
Sim
Sim, apófises
vertebrais e mao
(trapézio)
(el eburna~ao)
"
+60
11
CI cribra, perda
ante-mortem de
todos os dentes
SI cribra, cl
hipoplasias
SI cranio, si
dentes
"
,
,)
I
158
e)
,
.
.
.'
_jI,.".
Sim
"
'lO
':,., . :;:1, I .;:', \
.}
j
') • ,.t
,
40-60. ~.
Sim
Nao
¡.
5
40-60'4,
' . J
"\
135
si
,
Sim
1" "
,
i,
~
l-dl:" . 1".¡ , ¡
;t'l. '¡:.m~,6d 1 1"
~~t~~;t(:¡i
,.! ~. ~;'/{)I ·i~.r ;',
re:' " h . :,f¡,1¡. ,
I
j
"
1:
tSi~
.,
!
:1"
Nao b)
Sim, anca e pé
(Mn)
Sim; omblio e
apófises
cervicais
Outras patologias
Espondilólise
Pleura calcificada.
Infec~ao recorrente
melTlbrosinferiores
Osteomielite na
tíbia esquerda
-
í
,
CI cribra, si
hipoplasias
-
n) O.'leófi/o,; ncelllllndos e porosllfode 110011/[,1'0 e OIlCO.
/J) O,;leófi/o, ocelllllodos e l?Orosidode 110'; segllillle,; nrtiCl/lo(6es: ocrollliocim'iclllnr, esterJIocim'iclllnr e oll/llro. Osteófitos ncelllllndo, 110'; /,lIls05 ellos IIlño,.
e) Todos os illllllJn(6es desto 11 11 idode eSlroligrríficoforolllfeito, direclOlllellte 110 terro.
Tabela 2. Co-existencia entre DlSH e outras
414
condi~6es patológicas.
1
LAS SOCIEDADES HISTÓRICAS PENINSULARES: EDAD MEDIA Y MODERNA
Figura 1. Fusao anterolateral de quatro vértebras contíguas (indivíduo 135).
Figura 2. Patela esquerda com ossifica<;ao exuberante (indivíduo 135).
415
CASOS TÍPICOS DE DISH NO CONTEXTO DE UMA CIDADE MEDIEVAL PORTUGUESA (SÉc. XII-XVI)
Figura 3. Fusao anterolateral de seis vértebras torácicas (indivíduo 158).
Figura 4. Ulna direita com espículas ao nível do Triceps brachii e artrose na faceta articular (indivíduo 52).
416

Documentos relacionados