revista de estudos orientais - Letras Orientais

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revista de estudos orientais - Letras Orientais
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Reitor: Prof. Dr. Jacques Marcovitch
Vice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS
Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert
Vice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz
DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS ORIENTAIS
Chefe: Profa. Dra. Aida Ramezá Hanania
Vice-Chefe: Prof. Dr. Mário Bruno Sproviero
Endereço para correspondência
Comissão Editorial
Compras e/ou assinaturas
Departamento de Línguas
Humanitas Livraria – FFLCH/USP
Orientais – FFLCH/USP
Rua do Lago, 717 – Cid. Universitária
Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 – Cid. Universitária
05508-900 – São Paulo – SP – Brasil
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© Copyright 1998 dos autores.
Os direitos de publicação desta edição são da Universidade de São Paulo.
Humanitas Publicações – outubro/1998
ISSN 1415-9171
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS
Revista do Departamento de Línguas Orientais da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
N. 2
PUBLICAÇÕES
FFLCH/USP
Revista de Estudos Orientais • n. 2 • p. 1-169 • São Paulo • novembro 1998
DIREÇÃO EDITORIAL
· Aida Ramezá Hanania (DLO – curso de Árabe)
· Arlete Orlando Cavaliere (DLO – curso de Russo)
· Yervant Tamidjian (DLO – curso de Armênio)
· Eliana Rosa Langer (DLO – curso de Hebraico)
· Madalena Natsuko Hashimoto (DLO – curso de Japonês)
· Mário Bruno Sproviero (DLO – curso de Chinês)
CONSELHO EDITORIAL
· Alexander Chung Yuan Yang (USP)
· Alexandre Jebit (Academia de Diplomacia-M.R. Ext. Moscou)
· Ana Szpiczkowski (USP)
· Antonio Kandir (UNICAMP)
· Boris Schnaiderman (USP)
· Franz Shumann (Univ. Califórnia)
· Haquira Osakabe (UNICAMP)
· Helmi Nasr (USP)
· Homero Freitas de Andrade (USP)
· Kate Windmüller ( Edit. Rev. Judaica)
· Lídia Massumi Fukasawa (USP)
· Milton Hatoum (Univ. Amazonas)
· Richard Hovannisian (Univ. Califórnia)
· Roshdi Rashed (CNRS – Paris)
· Sakae Murakami Giroux (Univ. Strasbourg)
· Saul Sosnowski (Univ. Maryland)
· Sun Chia Chin (Univ. Normal de Taiwan)
· Yessai Ohanes Kerouzian (USP)
Revista de Estudos Orientais / Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas / USP. – n. 1 (1997) –.– São Paulo, Humanitas / FFLCH/
USP, 1997 –
Anual
ISSN 1415-9171
1. Línguas orientais 2. Literaturas orientais 3. Artes do Oriente
4. Pensamento do Oriente 5. Culturas do Oriente I. Universidade de
São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
CDD 490
Ficha catalográfica elaborada por Márcia Elisa Garcia de Grandi – CRB 3608 SBD FFLCH USP
SUMÁRIO
EDITORIAL ..................................................................................
7
HOMENAGEM
PRESENÇA DA GRAÇA ...................................................................... 11
Aida R. Hanania e Mário B. Sproviero
ARTIGOS
OS ESTUDOS ORIENTAIS
NO
ÂMBITO DA UNIVERSIDADE .............................. 17
Aida R. Hanania e Mario B. Sproviero
A ESSÊNCIA
DO
HEBRAICO ................................................................ 23
Ana Szpiczkowski
ALMADA NEGREIROS E O FUTURISMO RUSSO: INTERSECÇÕES
ESTÉTICAS ................................................................................ 29
Arlete O. Cavaliere
ARQUIVO
HISTÓRICO:
MADENATARAN .................................................... 47
Chake Ekizian Costa
O BILINGÜISMO
CHINÊS/PORTUGUÊS SERÁ EXTINTO?
.................................. 57
David Jye Yuan Shyu
RESSURGIMENTO DA LÍNGUA HEBRAICA E SUAS IMPLICAÇÕES
CULTURAIS ............................................................................... 63
Eliana Rosa Langer
O CICLO ÉPICO
CORVO NO PALEOASIÁTICO E O MITO DO
BRASIL:
EM BUSCA DE ELOS .................................................................... 77
DO
DESANINHADOR DE PÁSSAROS DOS ÍNDIOS BORORO NO
Helena S. Nazário
LÊNIN, TRÓTSKI E STÁLIN POR BULGÁKOV ............................................... 89
Homero Freitas de Andrade
REVISTA DE LÍNGUAS ORIENTAIS.
O SISTEMA DE
ESCRITA DA LÍNGUA JAPONESA E ALGUNS ASPECTOS
DA SUA HISTÓRIA
..................................................................... 109
Junko Ota
AL-INSAN, L’HOMME, CE GRAND OUBLIEUX ......................................... 121
Luiz Jean Lauand
ELEMENTOS PARA A CONFIGURAÇÃO DO CAMPO LÉXICO DA
“LINGUAGEM” (VÂC) NO RGVEDASAMHITÂ ...................................... 125
Mário Ferreira
O
CONTO-CRÔNICA DE
ARTISTA ISRAELENSE
YEHUDIT HENDEL: UM RETRATO DO
................................................................... 137
Nancy Rozenchan
ARMÊNIA: ROTA
DE MUITOS POVOS
.................................................... 143
Yêda de M. Camargo
TRADUÇÃO
LETRADOS E ALMOCREVES: UM
TRATADO ÁRABE DO SÉCULO
VIII ................... 153
Mamede Mustafa Jarouche
ENTREVISTA
OS ESTUDOS ORIENTAIS ................................................................. 163
Georges Nivat
–6–
EDITORIAL
Nossas primeiras palavras buscam exprimir – ainda que insuficientemente – a admiração e a saudade com as quais todos nós, membros do
Departamento de Línguas Orientais, necessariamente convivemos desde a
irreparável perda da queridíssima colega Maria da Graça de Campos Mendes Segnibo, ocorrida em março de 1997.
Em consonância com a proposta que lhe deu origem, a Revista de
Estudos Orientais, neste número 2, traz a público uma série de artigos referentes aos diversos Orientes, seja no campo da Língua, da Literatura e da
Cultura.
No âmbito do Extremo Oriente, situa-se uma interessante abordagem que visa ao conhecimento do sistema da escrita da língua japonesa.
O idioma chinês é analisado sob o ângulo da coexistência com outros idiomas, voltando-se basicamente ao exercício do bilingüismo sinoportuguês.
O Oriente Médio está presente na interessante matéria sobre a linguagem que remete à cultura indiana.
Ligado ao Oriente Próximo, acha-se o artigo sobre Al-Insan, o Homem, que, apoiando-se na cultura árabe, ressalta a profunda relação existente entre memória e educação, tão viva no Oriente.
Também da realidade próximo-oriental, procedem artigos sobre a
língua hebraica, sobre sua relação com a cultura judaica e sobre a obra do
israelense Yehudit Hendel, bem como o artigo que realiza sugestiva incursão na Madenataran (biblioteca que reúne o acervo mais completo de manuscritos armênios e seus estudos) e o texto que visa à trajetória histórico –
cultural da Armênia.
A literatura russa mereceu um artigo que salienta a visão de Lenin
pelo escritor Bulgákov e outro que estabelece elos entre o futurismo russo
e Almada Negreiros.
Inusitado e curioso, o tema desenvolvido sob inspiração do pesquisador Meletinski que relaciona um ciclo épico do Paleoasiático e um mito
dos índios bororos no Brasil.
Inaugurando a seção Tradução, registra-se, mais uma vez, a presença
da cultura árabe por meio da Epístola aos Letrados de Abd-ul-Hamíd-il-Kátib.
Editorial.
O n. 2 da REO traz ainda outra novidade: uma seção de entrevistas
que se inicia com o diálogo estabelecido com o Dr. Georges Nivat, diretor
do Departamento de Línguas e Literaturas Mediterrâneas, Eslavas e Orientais da Université de Genève
Não por acaso, o presente número da Revista de Estudos Orientais
abre-se com o rastreamento e análise dos estudos orientais no âmbito da
Universidade e fecha-se com as importantes considerações do ilustre visitante genebrino: ambas as matérias revelam a preocupação atualíssima com
o modo de inserção dos estudos orientais no contexto do ensino superior,
de maneira a fundamentar e ampliar – em momento de particular interação
mundial – as profícuas relações entre Oriente e Ocidente.
Aida Ramezá Hanania
Pela Direção Editorial
–8–
HOMENAGEM
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 11-13, 1998.
PRESENÇA
DA
GRAÇA
Aida R. Hanania e
Mário B. Sproviero*
Certo dia da década de sessenta, ela trocou o Maranhão e a tranqüilidade do campo pela turbulência de São Paulo. Turbulência, entretanto, que
era também cultural, o que irremediavelmente a atraiu, colocando-a na senda do Extremo Oriente, à primeira vista, de cultura estranha, distante da
cultura brasileira e particularmente de sua peculiar cultura nortista.
Curiosamente, porém, ao voltar-se à Cultura Chinesa, que foi assimilando sólida e progressivamente (valendo-lhe a pertinente observação
do Dr. Sun Chia Chin de que esse seu modo calmo e persistente de assimilação era muito oriental e muito chinês...) reencontra suas raízes, num momento em que sua terra natal já sofrera modificações...
Na verdade, o estudo da China – cuja filosofia e história cultural
estão marcadamente ligadas ao meio rural – veio de encontro a um projeto
pessoal de pesquisa e contribuição à própria realidade maranhense, plena
de dificuldades, tanto quanto a chinesa, sobretudo do ponto de vista social
e econômico.
A vontade e mesmo, a necessidade de ir à China para ampliar sua
formação foram proporcionais às dificuldades encontradas para essa realização em tempos de rigor ditatorial e de intrincadas relações entre o Brasil
e a China.
Após cerca de vinte anos de tentativas, no entanto, eis que a sonhada
permanência na China se concretiza, coroando um percurso intelectual dos
mais valorosos pela dedicação e persistência com que se desenvolveu.
Em meio à vigência da bolsa que lhe foi concedida, presenciou o
trágico acontecimento ocorrido na Praça da Paz Celestial de que todos,
*
Aida Ramezá Hanania é Chefe do Departamento de Línguas Orientais e Mário Bruno
Sproviero, Suplente de chefia do Departamento de Línguas Orientais e docente do Cur– 11 –
so de Chinês da FFLCH/USP.
HANANIA, Aida R. e SPROVIERO, Mário B. Homenagem. Presença da Graça.
lamentavelmente, temos lembrança. O episódio, naturalmente, fê-la interromper seus estudos, mas, chegando ao Brasil, retomou de imediato a luta
por seu projeto, voltando, em seguida, à China para finalizá-lo.
Enquanto aqui esteve, concedeu várias entrevistas à imprensa escrita
e falada, promovendo – em momento tão crucial – uma real aproximação
entre os dois países.
A Dissertação de Mestrado “O San Zi Jing no “Reino Celestial” dos
Taiping – China, 1851-1864” (defendida em 1983, antes de ir ao Oriente)
abordou tema que trata da Revolução dos Taiping, a grande revolução do
século passado que precedeu a revolução marxista deste século.
Este mesmo tema foi aprofundado na China, com vistas à Tese de
Doutoramento “O “Reino Celestial” dos Taiping (China 1851-1864): O Imaginário político-pedagógico no Taiping Tian Ri e no San Zi Jing” apresentada em 1993, representando um ápice na carreira, uma vez que lhe permitiu, no plano acadêmico, um engajamento cultural extremamente objetivo,
apesar de suas convicções políticas muito bem definidas.
Seu último projeto, o de Livre-Docência, buscava, em linhas gerais,
examinar as razões de permanência e valorização – na Cultura Chinesa – do
Confucionismo (surgido no século VI antes de Cristo), a ponto de constituir-se, o mesmo, em sua própria identidade.
Seu trabalho intelectual foi interrompido no momento em que o campo
já estava todo semeado... A colheita que não teve tempo de fazer legou-a a
seus alunos e seus colegas que, profundamente saudosos e emocionados,
são hoje seus maiores beneficiários.
A sinóloga consciente, zelosa cumpridora do dever, conviveu permanentemente com a colega solidária, colaboradora, positiva e com a amiga afetuosa, alegre, otimista e profundamente autêntica em sua brasilidade.
Relacionava-se bem com todos os colegas de Departamento, preservando sempre sua independência: não integrava grupos divisionistas e
tampouco estimulava facções. Ao contrário, era tolerante e conciliadora,
sem ser concessiva; equilibrada, discreta, convicta.
E é com estas características que a Graça nos emocionou até o fim:
sem diminuir em nada sua disponibilidade, suportou silenciosa e solitaria– 12 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 11-13, 1998.
mente seu sofrimento, poupando os colegas do peso de sua tragédia, participando ativamente – até o último instante – da vida acadêmica, comparecendo com todo seu entusiasmo à festa de encerramento do ano que promovemos no DLO, brindando e cantando conosco, visivelmente esperançosa
de um 1997 melhor e mais justo...
Assim era a Graça1 e é assim que ela estará sempre presente entre nós.
1
Maria da Graça de Campos Mendes Segnibo nasceu na cidade de Caxias no Maranhão,
em 28 de março de 1949 e faleceu em São Paulo, em 17 de março de 1997. Era casada
com o Sr. Bernard Segnibo e não deixou filhos.
Esteve ligada à Universidade de São Paulo desde 1973, exercendo, inicialmente, atividade administrativa na FFLCH – setor de Pós-Graduação (1973-1988).
De 1988 a 1997 integrou o quadro de Professores do Departamento de Línguas Orientais, exercendo as atividades de docência e pesquisa junto ao Curso de Chinês, especializando-se em Cultura Chinesa.
– 13 –
ARTIGOS
REVISTA
DE
ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 17-22, 1998.
OS ESTUDOS ORIENTAIS
NO ÂMBITO DA UNIVERSIDADE
Aida R. Hanania e
Mário B. Sproviero*
Resumo: O presente artigo busca, a partir de breve retrospectiva histórica
localizar os estudos orientais no nível da universidade e sua importância,
bem como seu modo de presença ao longo do tempo
Palavras-chave: universidade, estudos orientais, pluriculturalismo, oriente
e ocidente.
A Universidade, tal como hoje existe, desenvolve-se, como se sabe, a
partir de suas origens na Europa da Idade Média.
Muito embora registrem-se instituições congêneres em outros contextos ao longo da História (Grécia antiga, Oriente Médio, China etc), devese dizer que se tratava de escolas voltadas para conhecimentos específicos
como Filosofia, Retórica, Literatura... não se constituindo em centro permanente de sistematização, produção e transmissão da totalidade do saber
com a finalidade de perpetuá-lo.
Período privilegiado da História, que antecedeu a formação das nações modernas – ecumênico por excelência – a Idade Média permitiu reunir no mesmo espaço – a Universidade – os saberes humanos do mundo
conhecido à época.
Como fato ilustrativo, convém lembrar que o Ocidente (sobretudo
dos anos 800 a 1200 aproximadamente) recebeu a cultura grega por meio
dos árabes que, a par de outras contribuições, traduziram e interpretaram a
Filosofia de Aristóteles, tendo como figuras centrais, Avicena (Ibn Sina –
980/1037) e Averróes (Ibn Rushd – 1126-1198).
*
Os autores são Profª. Titular e Prof. Associado do Departamento de Línguas Orientais da
FFLCH/USP.
– 17 –
HANANIA, Aida R. e SPROVIERO, Mário B. Os Estudos Orientais no Âmbito da Universidade.
Desse modo, a recém-criada Universidade já abrigava a presença de
outros elementos culturais que não os exclusivamente veiculados pela cultura cristã o que, naquela altura, já se constituía numa primeira manifestação pluriculturalista.
Pode-se mesmo afirmar que o estabelecimento da Universidade foi
possível a partir do contacto estreito do Ocidente com a civilização árabe –
instigante na medida em que despertou a curiosidade intelectual com relação a vários ramos da ciência e do saber filosófico – e, em grande parte, em
virtude do processo de urbanização com a conseqüente organização social
que vinham sofrendo as cidades, bem como pela educação do clero, cada
vez mais qualificada.
Com a posterior formação das nações, já na Idade Moderna, e surgimento dos respectivos “nacionalismos”, a coexistência dos saberes viu-se
restringida em sua dimensão pluriculturalista que, no início, fôra tão dinamizada.
A ampla interação cultural que advinha também da diversidade de origem dos professores e alunos (tomemos, como exemplo, a Universidade de
Paris que abrigou quase que ao mesmo tempo, Alberto Magno, de Colônia (ca
1193-1280), Santo Tomás de Aquino, da região de Nápoles (ca 1227-1274),
Duns Escoto, da Escócia (ca 1266-1308) e muitos outros), praticamente deixou
de existir, configurando-se a Universidade Francesa, a Alemã, a Italiana, a
Inglesa..., situação que, de certa forma, perdurou até nosso século.
No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, pudemos assistir ao
ressurgimento – de maneira ainda mais universal – da interpenetração de
culturas, o que levou as nações – pela primeira vez na História – a interagirem em nível global, malgrado sua menor ou maior resistência.
As universidades ocidentais (também com maior ou menor resistência)
acabaram por refletir naturalmente a nova ecumene. Tenha-se em conta que
as grandes universidades do mundo ocidental contemplam, em suas atividades
acadêmicas, a integração de saberes procedentes de várias culturas.
O encontro das diversas culturas do Oriente com a cultura ocidental
ocorreu de modo paulatino e desigual, conforme os processos históricos
específicos que as envolveram. Em seqüência a esse encontro, surgiram os
estudos relativos ao mútuo conhecimento Ocidente/Oriente.
– 18 –
REVISTA
DE
ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 17-22, 1998.
No campo destes estudos, principalmente após os grandes descobrimentos, deve-se mencionar o trabalho pioneiro de missionários (primeiramente
jesuítas) seguidos por ministros protestantes e outros europeus que, por razão
de ordem vária, encontravam-se envolvidos in loco pelas culturas orientais.
A curiosidade das “grandes potências” da época com relação às culturas milenares do Oriente, determinou um interesse inusitado pelo conhecimento das mesmas em muitas direções, interesse que se intensificou ainda
mais na vigência do colonialismo que delineou, por assim dizer, a fisionomia do
século XIX. Em outras palavras: até o século XIX, predominou o que poderíamos chamar hoje de “pesquisa de campo”, desvinculada, entretanto, da Universidade que, então, rechaçava a idéia de abarcar o estudo de tais culturas.
Cabe aqui um exemplo típico do que se diz: deve-se destacar que o
conhecido filósofo Leibniz (1646-1716) foi o primeiro intelectual de que se
tem notícia, a admitir, a par de seu interesse e dedicação ao Extremo Oriente,
que “a Europa tinha algo que aprender com a China1”. Não obstante, foi
reduzida a influência que tal posicionamento teve na condução de sua obra.
Seu famoso discípulo, Christian Wolff (1679-1754), tão-somente conhecido, entre nós, como o grande sistematizador da filosofia racionalista
de Leibniz, inclinou-se também ao pensamento chinês, a exemplo do mestre e, ao querer expor a filosofia chinesa na Universidade Alemã, dela foi
praticamente expulso, por não constituir, tal filosofia, matéria digna de ser
incorporada ao ensino universitário...
A resistência da Universidade ao estudo de culturas “estranhas” ou
“distantes” da realidade eurocêntrica foi superada, grosso modo, a partir de
meados do século passado, quando os conhecimentos já divulgados sobre
as mesmas eram de tal vulto que não podiam mais ser desconsiderados.
Assim, coincidindo com o arrefecimento da época colonialista, as universidades acabaram por assumir a tarefa de dar continuidade aos estudos
que vinham sendo feitos fora de sua esfera de atuação. Passaram, então, os
estudos que se faziam in loco, motivados por interesses outros, para os
gabinetes universitários, agora com perspectiva marcadamente acadêmica.
1
Cf. Manfred W. K. FISCHER – “Leibniz und die chinesische Philosophie”, in Conceptus,
vol. XXII, n. 56, Viena, 1988.
– 19 –
HANANIA, Aida R. e SPROVIERO, Mário B. Os Estudos Orientais no Âmbito da Universidade.
Ao longo do século XX, como se sabe, os estudos orientais enraizaram-se nas principais universidades e centros culturais do Ocidente – Universidade de Paris, Munique, Berlim, Oxford, Veneza, Yale, Columbia,
Colegio de Mexico, dentre outros – consolidando definitivamente seu perfil acadêmico. Curiosamente, este modelo inspirou as universidades orientais que se instalaram a partir do formato ocidental (caso da Universidade
Japonesa, por exemplo).
Com o advento e formidável desenvolvimento da Informática, o
mundo do saber – agora sensivelmente mais integrado – aproximou, necessariamente, as realidades culturais existentes, exigindo uma dimensão mais
ampla dos estudos em pauta e estimulando sobremaneira, a integração de
universidades – as mais distantes culturalmente – no sentido da comunicação total do saber humano.
O ideal da unidade do saber, ínsito no homem, coexiste, de fato, com
a pluralidade dos saberes. No entanto, a inadequação entre a globalidade
ideal do saber e sua “fragmentariedade”, assim como o estranhamento dos
múltiplos saberes entre si, geram, compreensivelmente, insatisfação e angústia.
A solução parcial para tentar superar tal desproporção tem sido a de
colocar em contacto, vários saberes, visando à comunicação dos mesmos.
E é norteada por esse espírito que surgiu, como vimos, a Universidade na
Idade Média.
Convém ressaltar que não pretendemos enfocar aqui, a pluralidade
do saber em sua ampla complexidade. Apenas a consideramos como momento essencial para situarmos as culturas orientais.
Quando se considera a pluralidade das ciências particulares, a par de
seu inegável desenvolvimento autônomo, deve-se visá-las como partes de
um todo – a ciência – a integrarem-se em múltiplos níveis: é o que se busca,
promovendo a interdisciplinaridade. O fato, entretanto, de estarmos distantes
de uma real integração (o néo-positivismo nem chegou a unificar a linguagem da ciência) impõe que se redobre o empenho em direção a essa meta.
O ideal de um conhecimento racional e “apriorístico” (no sentido de
uma ciência geral anterior e comum a todas as ciências: uma ciência das
– 20 –
REVISTA
DE
ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 17-22, 1998.
ciências, o ideal de uma “Mathesis Universalis” proposta por vários autores
ao longo da História – dentre os quais destacamos o arabista catalão
Raimundo Lúlio (ca 1232-1316) e o próprio Leibniz, já citado – redundou,
em termos concretos, nas empíricas e “aposteriorísticas” enciclopédias dos
séculos XVIII, que perduram até hoje, onde ocorre apenas a justaposição
de saberes e não sua desejável urdidura em um único tecido2.
Porém, as várias tentativas de efetivar a unificação do saber também
perduram e partem de uma pluralidade filosófica, aparentemente irredutível,
ligada a diferenças político-ideológicas, religiosas e culturais. Se, de certo
modo, acentuam as distâncias entre os saberes, estas diferenças – como
uma pluralidade sempre em maior interação imposta pelo mundo hodierno
(sobretudo com a Revolução da Informática) –, fazem com que a aproximação dos diversos saberes e diversas culturas, seja a tarefa primordial de
nosso tempo.
É oportuno salientar aqui, uma idéia muitas vezes reiterada no meio
acadêmico francês, atribuída ao Pe. Chenu: “Les vraies découvertes se font
aux frontières des sciences, là où, pourrait-on dire, elles se contaminent et
se fécondent les unes par les autres”.
Extremamente apropriada a generalização do dito, pois é no contacto
dos vários setores do conhecimento e das várias culturas que se fertiliza o
saber e se integra a Civilização Humana.
Modernamente, o conhecido filósofo Edmund Husserl (1859-1938),
participando desse ideal, propôs uma metodologia comum da Ciência, além
das metodologias particulares das ciências: a ciência das ciências...
A pluralidade do saber, enquanto tal, não se constitui em valor, excetuando-se, porém, as recentes propostas hermenêuticas que reduzem as
opções filosóficas e ideológicas a pura literatura, sob um ponto de vista de
absoluto relativismo cultural. Já no caso das várias culturas, a própria
pluralidade pode constituir-se em valor, uma vez que o homem se adapta a
várias condições e é permeável a várias soluções existenciais na reprodu-
2
Hoje, chega-se ao extremo de valorizar a pluralidade do saber diante da unidade, no
pensamento pós-moderno proposto pela Hermenêutica (Habermas).
– 21 –
HANANIA, Aida R. e SPROVIERO, Mário B. Os Estudos Orientais no Âmbito da Universidade.
ção de sua vida material e cultural. Pode-se afirmar que a pluralidade de
culturas é enriquecedora pela complementaridade que acarreta e não por
sua oposição, como no caso das ideologias.
Agudamente, no mundo de hoje, as culturas estão obrigatoriamente
em contacto, ocorrendo, por isso, vários problemas com vistas a sua mediatização, o que torna imprescindível a reflexão e o saber universitários para a
integração das mesmas3. Mais do que isso: verifica-se hoje uma integração
tal das universidades (propiciada amplamente pela comunicação eletrônica)
que se espera, em breve espaço de tempo, a formação de uma única Universidade, com sede no mundo...
Decorrência da automação e substituição do trabalho humano, não
só do trabalho mecânico, manual, mas – e principalmente – daquilo que é
mecânico no trabalho intelectual, chega-se a uma crescente redução do
trabalho especificamente humano4, circunscrevendo-o, sempre mais, ao âmbito intelectual criativo. Dito de outro modo, restará sempre ao homem, o
trabalho reflexivo, criativo, que, em última análise, é o que se desenvolve no
meio universitário; trabalho este que jamais será substituído por qualquer
dispositivo tecnológico.
A Grande Universidade tenderá, então, a assimilar de modo cada vez
mais acentuado, o serviço humano na sua globalidade. A pluralidade de
culturas – em contacto – é, certamente, fermento de criatividade. Nesse
ponto, o Oriente, em suas múltiplas facetas culturais, constitui uma dimensão essencial na recomposição da unidade humana, superando – espera-se
– o estigma histórico da ruptura Ocidente/Oriente...
Abstract: The present article – from a brief historical back-ground – aims to
situate the oriental studies in the sphere of the University and consider their
importance and way of presence along the time.
Keywords: university, oriental studies, pluriculturalism, east and west.
3
4
Lamentavelmente, o mundo tende a uma empobrecedora monocultura global, sustentada
tecnologicamente pela Mídia, o que alerta, ainda mais, para o papel que deve cumprir a
Universidade.
Basta atentar para o fato de que o desemprego é um dos principais problemas sociais de
nosso tempo, com a nítida propensão de agravar-se sempre mais.
– 22 –
REVISTA
DE
ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 23-28, 1998.
A
ESSÊNCIA DO
HEBRAICO
Ana Szpiczkowski*
Resumo: A palavra hebraica é gerada, de uma raíz, composta, geralmente,
por três letras consonantais. Essas três letras consistem na essência da
palavra e irão permitir, por sua derivação, a formação de outras. É possível, portanto, à partir de sua raíz, analisá-la semânticamente e obter a
revelação de seu verdadeiro sentido. Entretanto, em alguns casos, o radical
diz respeito à mais de um campo semântico, pelo fato de serem de origens
diferentes, pois no hebraico moderno coexistem, indistintamente, elementos lingüísticos de todas as fases anteriores de sua utilização (período bíblico, período talmúdico e literatura da Idade Média).
Como exemplo, para esse estudo, foram escolhidas as palavras ‫– אמן‬
Amen e Eden – ‫עדן‬, que transmitem algo, não somente para os hebraístas,
mas que, por sua abrangêcia, fazem parte do saber universal.
Palavras-chave: radical, três letras consonantais, coexistência de elementos lingüísticos, análise semântica e lingüística.
Quando nos deparamos com uma língua, qualquer que seja, e enveredamos na compreensão de seus vocábulos, iremos nos encontrar, inevitavelmente, com a história e os valores do povo que a usa.
Isso ocorre, também, com a língua hebraica, a qual, permite, pelo
entendimento de suas palavras e pelo rastreamento da sua composição, a
compreensão do processo de pensamento e da cultura do povo judeu.
O hebraico, língua clássica, após muitos séculos de utilização para
as práticas religiosas, para a comunicação escrita e para a expressão literária, transformou-se, à partir do empenho de Eliezer Ben Yehuda, numa
língua moderna, capaz de expressar as necessidades de uma sociedade
moderna e dinâmica.
Atualmente, após cento e sete anos do início do renascimento do
hebraico, a maioria das inovações para a criação de novos termos continua
sendo feita, pela Academia de Língua Hebraica, a partir da adequação dos
*
A autora é Profª. Drª. do Departamento de Línguas
– 23 – Orientais da FFLCH/USP.
SZPICZKOWSKI, Ana. A Essência do Hebraico.
radicais das fontes tradicionais, acrescidos de prefixos e sufixos, ou ainda,
combinando várias palavras básicas para criar uma nova.
A ordem de prioridade das fontes pesquisadas por esta Academia
para a formação de novos vocábulos foi, em primeiro lugar a Bíblia, depois
o Talmude, e em seguida a vasta literatura da Idade Média, demonstrando,
por esse método de trabalho, uma preocupação constante de que o acréscimo de novos vocábulos, não afete as características básicas da língua.
No hebraico moderno, portanto, coexistem, indistintamente, elementos lingüísticos de todas as fases anteriores de sua utilização.
Na língua hebraica há vinte e duas (22) consoantes, que são escritas
da direita para a esquerda e, dez (10) vogais, que são sinais diacríticos
escritos sob, sobre e ao lado das consoantes (nem sempre presentes na escrita sem vogais).
A palavra hebraica é gerada, de uma raíz, composta, geralmente, por
tres letras consonantais. Essas tres letras consistem na essência da palavra
e irão permitir, por sua derivação, a formação de outras.
Isso significa que, ao nos determos em uma palavra hebraica, poderemos, à partir de sua raíz, analisá-la semânticamente e obter a revelação de
seu verdadeiro sentido. Entretanto, em alguns casos, o radical diz respeito a
mais de um campo semântico, pelo fato de eles serem de origens diferentes.
Tomemos como exemplo a pequena palavra hebraica Amen – ‫ןמא‬,
presente e popular em tantas outras línguas, e que revela ao mundo uma das
essências da civilização judaica, a afirmação. Sua popularidade se dá, talvez,
porque ela é a resposta afirmativa que se dá após uma bênção ou uma oração.
A raiz Aman – ‫ןמא‬, quando utilizada para o verbo, significa “criar,
educar; amarrar, juntar”. Sua equivalência mais próxima em outras línguas,
pode ser encontrada no inglês americano moderno, na expressão Right On.
Na medida em que essa palavra viajou através do tempo, na história
judaica, ela foi sofrendo transformações, de caráter morfológico e semântico.
1
Festa judaica. Comemora, em quatorze de Adar, a história do Livro de Ester, que é lida de um rolo
manuscrito (Meguilá). Origina-se do persa, e significa “lançar a sorte”.
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REVISTA
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ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 23-28, 1998.
A história de Purim1, por exemplo, relatada no livro de Ester, registra um desses primeiros significados, quando utiliza a raiz Aman – ‫ןמא‬,
para relatar que Mardoqueu foi o Omen – ‫ אוןמ‬de Hadassa, isto é, a pessoa
que a criou, seu tutor.
A palavra Omanut – ‫( נמאתו‬a terceira letra da raíz, o “‫”ן‬, quando
inserida no meio da palavra recebe a forma de “‫)”נ‬, cuja tradução é arte,
origina-se, como podemos observar por sua composição, da mesma raíz.
Isso, porque, a obra artística, além da habilidade, exige, também, treino e
exercício – Imun – ‫אימון‬, em hebraico.
Àqueles que acreditam que a medicina é uma arte, a expressão Rofe
Oman – ‫ – אפור ןמא‬médico especialista, criada pela combinação de dois
vocábulos básicos, demonstra o estabelecimento de relações morfológicas
e semânticas para a sua criação, além de outras associações possíveis, tais
quais as de caráter filosófico.
A palavra Amana – ‫ ( נמאה‬o “ ‫ ”ן‬recebe a forma de “‫)”נ‬, significa
convênio, aliança, crença e, também, crédito monetário.
A Convenção de Genebra, por exemplo, recebe em hebraico a nomenclatura Omnat Geneva – de ‫נמאג ת 'הבנ‬, enquanto Isch Amana –
‫שיא נמאה‬, significa “fiel” (composição das palavra:homem e crença) e, KtanAmana – ‫נמאה‬-‫ןטק‬, (composição das palavras: pequeno e crença) quer
dizer “cético, sem crença”.
A pergunta Ha-umnam – ‫הנמאם‬, cujo significado é: “será que?”,
“é possível?” pode nos ajudar a explorar um outro filão de seu significado. Esse mesmo vocábulo, na forma afirmativa Omnam – ‫נמאם‬, significa
“certamente”, “deveras”, “na verdade”. A palavra “verdade” – Emet –
‫מאת‬, provém da palavra Emenet – ‫נמאת‬, baseada na mesma fonte, e que,
com o passar do tempo, perdeu a letra “‫”נ‬. Os traços da letra “‫ ”נ‬podem
ser encontrados na palavra Neeman – ‫נןמא‬, que significa “ser fiel”,”ser
de confiança”.
Outro exemplo interessante da derivação de radicais no hebraico pode
ser dado pelas três letras que compõem a palavra Eden – ‫ןדע‬. Nesse caso,
todos os seus derivados pertencem ao mesmo campo semântico.
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SZPICZKOWSKI, Ana. A Essência do Hebraico.
Há no hebraico uma série de sinônimos para o conceito de prazer,
mas um dos mais fascinantes é encontrado na Bíblia, pela forma com que a
matriarca Sara reage à notícia de que ela se tornará mãe, quando ela pergunta:” Terei ainda deleite depois de haver envelhecido...” (Gênesis,18:12).
A palavra “deleite” no texto original hebraico aparece como ‫נדעה‬, da mesma raíz.
No próprio livro de Gênesis (2:8), encontramos referência à criação
do Jardim do Éden – ‫ןג ןדע‬, quer dizer, um jardim prazeiroso.
No Talmude, Gan Eden – ‫ ןג ןדע‬é o nome que se dá ao prometido
mundo vindouro.
No hebraico moderno, o termo Oden – ‫ןדע‬, significa “prazer, deleite,
delicadeza”. Quando as pessoas querem se referir de maneira entusiástica à
respeito de um lugar, dizem: Gan Eden Alei Adamot – ‫ןג ןדע תומדא ילע‬
(o paraíso na terra).
A expressão Taam Gan Eden – ‫( ןג םעט ןדע‬gosto do Éden-literal) é utilizada para se referir a algo delicioso. À propósito, a marca registrada de uma
água mineral em Israel é Mei Eden – ‫ימ ןדע‬, (as águas do Éden).
Um adjetivo derivado do radical ‫ ןדע‬é Adin – ‫( דעין‬masc.) e Adina
(fem.) – ‫דעינה‬, cujo significado é “delicado (a)”, “refinado (a)”.
A palavra Maadan – ‫מןדע‬, além de prazer e deleite, significa, também,
dentre outras explicações, “guloseima, iguaria”. Assim, a palavra Maadanya
– ‫מנדעהי‬, oriunda do mesmo radical, pois como já afirmamos acima, o “‫”ן‬,
quando no meio da palavra, passa a ser “‫”נ‬, significa “casa de iguarias”, “casa
de delicatessen”.
A forma verbal da raiz ‫ ןדע‬é utilizada para “mimar, refinar, enobrecer,
tornar delicado “.
As expressões Hayei Maadanim – ‫( ייח מנדעםי‬vida de prazeres), do
hebraico moderno, assim como Idnu Maadanay – ‫( נדעו מנדעי‬deleitem-se
com minhas iguarias), do hebraico medieval, vêm confirmar aquilo que afirmamos no início desse estudo:a preocupação lingüística dos hebraístas em
preservar as raízes da língua hebraica.
Tal preocupação, no entanto, não impede que o hebraico mantenha
suas características de língua moderna, em constante atualização. Os
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REVISTA
DE
ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 23-28, 1998.
estrangeirismos, presentes, praticamente, em todas as línguas modernas, exigem, daqueles que possuem o interesse em preservar a pureza lingüística,
muita atenção para a criação de vocábulos hebraicos. Mas o hebraico, como
todas as línguas, dispõe até mesmo de gíria própria, utilizando dentre outros,
elementos do ídiche e do árabe.
A escolha dos radicais ‫ ןמא‬e ‫ןדע‬, para esse estudo, não se deu ao acaso.
Vários outros poderiam ter sido selecionados para mostrar a linha de raciocínio que comanda a formação dos vocábulos hebraicos. Houve aqui, entretanto, uma preocupação em buscar no vasto repertório que compõe a língua
hebraica, aqueles radicais que transmitam algo, não somente para os hebraístas,
mas que sejam mais abrangentes, e façam parte do saber universal.
Para finalizar, concluímos que o estudo dos radicais hebraicos vai
além de sua simples análise lingüística. Inclui a possibilidade de conhecimento da realidade de vida do falante do hebraico, da maneira como ele
sente e pensa.
A língua hebraica, com seus nomes e verbos, adjetivos e advérbios,
ativos e passivos, em que todos são remetidos à raíz de três letras consonantais, convidam e encorajam o estudioso para uma viagem pela história e
pela cultura do povo judeu, o núcleo de sua essência.
BIBLIOGRAFIA
“A Bíblia Sagrada”, Rio de Janeiro, Sociedade Bíblica do Brasil, tradução de João Ferreira
de Almeida,1957.
“A Lei de Moisés – e as “Haftarot” – Rio de Janeiro, S. Cohen & Cia. Ltda., 1968, tradução,
explicações e comentários do Rabino Meir Masliah Melamed.
BEREZIN, Rifka “Dicionário Hebraico-Português”, EDUSP, São Paulo, 1995.
LOWIN, Joseph “Hebrewspeak, An Insider’s Guide to the Way Jews Think”, Jason Aronson
Inc., Northvale, New Jersey, London, 1995.
UNTERMAN, Alan “Dicionário Judaico de Lendas e Tradições”, Jorge Zahar Editor, Rio
de Janeiro, 1994, tradução de Paulo Geiger.
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SZPICZKOWSKI, Ana. A Essência do Hebraico.
Abstract: The Hebrew word derives from a root. Usually it is composed of
three consonantal letters. These make up a word which will generate other
words. Thus, it is possible to analyze semantically the word, and get its real
meaning from its root.
However, in some cases, the radical is subject to more than one semantic
field, given that they are from different origins.
In modern Hebrew, regardless of linguistic elements which are from phases
prior to its use (biblical period, talmudic period, and Middle Ages literature) they coexit.
For example to this study, we have chosen the words Amen and Eden which
translate not Therefore, they are part of the universal knowledge.
Keywords: radical, three consonantal letters coexistence linguistic elements,
semantic and linguistic analysis.
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REVISTA
DE
ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998.
ALMADA NEGREIROS E O FUTURISMO
RUSSO: INTERSECÇÕES ESTÉTICAS
Arlete O. Cavaliere*
Resumo: O presente artigo procura estabelecer as relações e as implicações
estéticas dos movimentos que constituem as vanguardas russas no trabalho
artístico de Almada Negreiros.
Palavras- chave: vanguardas russas, modernismo português, literatura comparada.
Com o recente lançamento entre nós da “Obra Completa” do poeta,
romancista, dramaturgo e pintor Almada Negreiros (Editora Nova Aguilar,
novembro/1997), torna-se mais do que oportuna, necessária mesmo, uma
reflexão sobre a obra e a personalidade artística desse polimorfo artista
português, ainda muito pouco conhecido no Brasil.
A obra de Almada se apresenta como um campo profícuo, em particular, para a investigação de certos pressupostos estético-teóricos dos cubofuturistas russos, tais como, a intersemiotização dos signos artísticos e a
inter-relação entre as diversas artes que marcaram a pesquisa e a criação
de uma nova linguagem neste século.
Em que medida seria, então, possível pensar nas implicações estéticas dos movimentos que constituem as vanguardas russas no trabalho artístico de Almada Negreiros?
O próprio Almada chegou a se pronunciar na Revista “Portugal Futurista”, em 1917, sobre a inovação estética e a “compreensão feliz da arte
moderna” que expressava a Cia. de Ballet de Diáguiliev, quando da apresentação da Cia.russa em Lisboa, num artigo intitulado “Os Bailados Russos em Lisboa”(Revista “Portugal Futurista”, 3. edição fac-similada, Lisboa, 1984, p.2).
*
– 29
–
A autora é Prof a. Dra. do Departamento de
Línguas
Orientais da FFLCH/USP.
CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas.
José de Almada Negreiros (1893-1970) representa no contexto do
Futurismo em Portugal, em companhia talvez apenas de Santa-Rita Pintor, a
ala mais radical desse multiforme movimento de revolução estética que
permeava a Europa nos princípios deste século, com uma intensidade e
diversidade estéticas, certamente menos detectáveis no ambiente artístico
português.
Sabe-se que foi com a publicação em 1915 da revista “Orpheu” que
a revolução modernista parecia se instaurar em definitivo no contexto da
arte e das letras portuguesas. Sabe-se o quanto as novas propostas estéticas viriam abalar o academismo e a estagnação provincianista que caracterizavam os anos que se seguiram à proclamação da República em Portugal. Mas sabe-se também o quanto permaneceram resistentes, ainda por
muito tempo, os cânones do naturalismo que em outros países já haviam
sido questionados e mesmo superados, sob o impacto das novas tendências
artísticas e dos primeiros escritos teóricos referentes a uma renovada estética que abria os primeiros decênios deste século.
A pesquisa de novas formas de linguagem e de uma linha estética
assumidamente vanguardista que inseria a arte (pintura, poesia, romance,
dramaturgia) no âmbito do modernismo português e também dos programas
e experiências futuristas de outros países da Europa, ficou representada,
sem dúvida alguma, por Almada Negreiros, uma das figuras mais radicais
da vanguarda artística em Portugal, embora permaneça ainda hoje como
uma espécie de “distração cultural”, principalmente além das fronteiras de
seu próprio país.
Se levarmos em conta a progressão de seu trabalho criativo, desde o
experimentalismo provocativo nos anos heróicos da geração do “Orpheu”
até o final de sua diversificada carreira, verificar-se-á que sua atividade
artística quer como ficcionista, poeta, desenhista, coreógrafo ou dramaturgo
perfaz uma única linha de continuidade que acaba por confluir para essa
espécie de visão plástica do mundo, que adquirira, certamente, como artista
plástico que sempre foi, atividade à qual dedicou a maior parte de sua energia criadora.
E, com efeito, todas as modalidades artísticas a que se dedicou Almada
Negreiros parecem promover esse encontro singular entre as artes verbais
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REVISTA
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ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998.
e as artes plásticas, numa busca incessante de atrelar, de forma orgânica, a
palavra às formas, aos volumes, às cores.
À visualidade derivada da espacialidade dos corpos, das formas e da
concreção própria das artes plásticas para a captação da multiplicidade do
real, o Almada-pintor fundiu magistralmente em seus textos, a abstração e
as figurações mentais próprias do mundo anímico contido no universo verbal.
Reside, certamente, nessa inter-relação literatura-pintura, a singularidade da obra, e mesmo da vida de Almada Negreiros. Aqui se situa também a sua contemporaneidade. Nisto está, enfim, sua ampla abertura.
Muito já se falou do aspecto “teatral” e das “figuras em drama”, ou
melhor, do “drama em gente”, em vez de atos que caracterizaria a obra
“dramatizada” pelos heterônimos de Fernando Pessoa.
De forma análoga, a diversidade da personalidade artística de Almada
Negreiros, expressa neste caso através das inúmeras atividades e suas formas de expressão, configuraria também certa teatralidade subjacente a todo
o trabalho criativo do artista: “personagens”, facetas diferenciadas “dramatizam”, por assim dizer, a diversidade de caminhos que sua obra percorreu.
As figuras do poeta, ficcionista, dramaturgo, desenhista, interagem, reagem
uma às outras, comunicam-se, enfim “dialogam” para constituírem, afinal,
uma “obra”, uma “unidade”, talvez uma única ação, para nos servimos ainda da terminologia teatral.
Assim, o artista plástico faz confluir uma verdadeira poética de imagens visuais, sem desprezar contudo, a densidade das idéias, reveladas também pela palavra poética e expressas em linguagem de alto teor simbólico,
procedimento empregado em muitos de seus poemas, contos, peças de teatro (lembre-se “Saltimbancos” e “A Engomadeira”), ou em seu romance
“Nome de Guerra”.
Por outro lado, é curioso verificar de que modo uma galeria inteira de
personagens, bonecos que dialogam (por exemplo, na peça “Antes de Começar”), verdadeiros Pierrots e Arlequins, marionetes e bufões remetem às
tipologias da “commedia dell’arte”e estão presentes em vários de seus textos: figuras estilizadas, alegorias de categorias existenciais mais do que personagens-indivíduos se projetam nas máscaras, palhaços, figuras expressio– 31 –
CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas.
nistas, inúmeros “clowns” que invadiram também seus desenhos, figurinos,
caricaturas e muito da produção pictórica da Almada Negreiros.
É portanto, com razão que Almada foi considerado desde logo um
“homem-ponte entre as artes visuais e as artes plásticas”.1
É nessa perspectiva de análise que nos interessa uma aproximação
reflexiva com os pressupostos estéticos e teóricos do movimento futurista
russo.
A expressão “futurismo russo” abrange, como se sabe, uma grande
variedade de fenômenos na obra criadora de muitos indivíduos, tendo apesar disso alguns denominadores comuns. É possível avaliar hoje a importância do cubismo para o desenvolvimento do que podemos denominar a estétia
do futurismo russo. Costuma-se dizer, por exemplo, que a transformação
direta do cubismo em poesia se encontra no futurismo russo. Daí a denominação de “cubo-futuristas” para uma grande parte dos futuristas russos que
estiveram ligados à pintura.
De fato, é difícil enfeixar no conceito de futurismo russo a idéia de
um grupo absolutamente unificado. Um ponto universal do programa parece ser, todavia, a idéia de que na arte a “forma” é em si um tema e a
necessidade de uma “arte de nossa época “como complemento do desenvolvimento técnico e do ritmo da civilização moderna. Aqui se cruzam, certamente, outros caminhos da arte moderna e contemporânea, como por
exemplo, o construtivismo russo que marcará fortemente, não apenas o teatro russo da década de 20, mas também o trabalho posterior de muitos
artistas do Ocidente.
Há já por volta de 1912 um grande movimento de protesto anti-simbolista que alimentará toda a orientação estética da vanguarda russa em
suas várias modalidades artísticas.
A ala realmente revolucionária deste amplo movimento ficou a cargo
dos chamados “budietliane” (futuristas, em russo). Certamente, o cubismo,
1
Cf. Freitas, Lima de. “Almada Negreiros e o Teatro” in: Pintar o Sete – Ensaios sobre Almada
Negreiros, o Pitagorismo e a Geometria Sagrada, Impresa Nacional Casa da Moeda, Lisboa,
p. 75.
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REVISTA
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ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998.
ao propor o conceito de “forma” como problema artístico básico, exercerá
grande impacto nas preocupações estéticas dos futuristas russos: a arte
verbal como também a arte visual cessariam de imitar a natureza pela descrição de seus objetos. O mundo artístico, o mundo poético torna-se, assim,
válido por si mesmo e a “inteligência” do artista substitui a sua “observação”.
Georges Braque dirá sobre a pintura cubista: “Não acredito em coisas. Acredito apenas nas relações mútuas entre as coisas”. Está aí o conceito essencial da pintura cubista, segundo o qual um objeto é apresentado
simultaneamente de diferentes pontos de vista, ao mesmo tempo analítica e
sinteticamente.
Não foi por acaso que a maior parte dos futuristas russos esteve
ligada à pintura e por isso, a ala mais representativa do movimento recebeu
o nome de “cubo-futuristas”, numa clara conexão das artes verbais com as
artes visuais. Ao lado da crítica dos futuristas a uma literatura “temática”,
se alinha a atitude dos cubistas em sua rejeição de uma cópia servil dos
objetos pela pintura.
Em seus manifestos, os cubo-futuristas David e Nicolai Burliuk,
Vielímir Khilébnikov, Alekséi Krutchônik e Vladímir Maiakóvski não se cansam de proclamar que a palavra deveria seguir “audaciosamente” as pegadas da pintura” (Khlébnikov, 1912). O que importa é o aspecto sonoro da
palavra: esse é o único material e tema da poesia. Os novos poetas cubofuturistas procuram trabalhar a “palavra pura”, sem relação com qualquer
função referencial no que diz respeito ao objeto. Para eles, a “palavra em
liberdade” deveria operar com sua própria estrutura, criando “objetos novos”. Isto corresponde, sob certo sentido, à “arte sem objeto” dos cubistas
com sua busca da forma geométrica, do espaço e da cor.
O que está em pauta é uma orientação estética voltada para a
concreção, o que significa uma referência direta ao objeto, ao invés de alusões indiretas ao mesmo. Portanto, a arte passa a ser cada vez mais vista
como ofício em lugar da “teurgia” dos simbolistas e sua programática nebulosidade e ambiguidade. Como uma espécie de ciência experimental, um
ofício especializado(saber “como fazê-lo”), a arte se opõe à noção de inspiração. O artista é uma espécie de operário que trabalha seu ofício com a
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CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas.
precisão das fórmulas científicas. Não celebra mais os estados de alma, os
símbolos etéreos, mas as cidades com suas luzes, as fábricas com o ruído de
suas máquinas. Há, por certo, um claro programa social aí veiculado: a
participação da arte na vida social que acompanha a proclamação de uma
maneira nova de viver, de uma arte e uma ciência novas que venham completar a transformação iniciada com o movimento revolucionário. Clama-se
pelo valor democrático da palavra, até mesmo pelo valor universal da arte.
Logo após a Revolução de Outubro os futuristas se auto-denominam
“tamboreiros da revolução” e o que pretendem com seu programa é “ensinar o homem da rua a falar”, o que significa destruir os antigos valores e
construir os novos, isto é, propõem a reorganização consciente da língua
aplicada a novas formas de ser.
De tanto analisar e decompor as palavras os cubo-futuristas haviam
chegado à chamada linguagem “transmental”(linguagem “Zaúm”). Haviam
levado ao extremo a experiência sonora, a articulação informe de vocábulos
inexistentes, mistura de tramas fonéticas abstratas, de nexos arbitrários.
Abandonavam assim a natureza e a transcendência do símbolo para inserir
a prática poética na concretude do mundo da produção, como que utilizando
os recursos modernos da técnica e da ciência para a construção de espécies de piruetas verbais e combinações absurdas de sons.
Com a linguagem “zaúm” a poesia alcançava a negação total dos
valores precedentes e continuava seguindo o mesmo caminho da pintura.
Krutchônikh, o principal teórico da linguagem “zaúm”, tece as relações:
“Os pintores “budietliane” gostam de usar partes anatômicas, divisões, e os “budietliane” criadores da linguagem usam palavras partidas, meias
palavras, com que fazem austuciosas e bizarras combinações (linguagem
transmental). Dessa forma,obtém-se a máxima força expressiva. E é justamente nisso que se destaca a linguagem da nossa época violenta, a linguagem que aniquilou a linguagem estagnada de antes”.2
2
A. Krutchônikh e Khliébnikov, Slovo Kak Takovóie (A palavra como tal), apud Ripellino,
A. M. Maiakóvski e o Teatro de Vanguarda, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971, p.37.
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REVISTA
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ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998.
É claro que no seu jogo abstrato a “Zaúm” coincide com o abstracionismo pictórico e sua ruptura decisiva com a representatividade, com o
figurativismo. Na Rússia, uma das propostas mais radicais neste sentido é a
pintura de Maliévitch, representante do Suprematismo. Assim como
Krutchônikh, Maliévitch procura escapar na pintura aos esquemas lógicos e
indo mais além das propostas dos pintores cubo-futuristas, radicaliza a
dissociação da pintura com os problemas externos, procurando uma expressão pictórica totalmente abstrata e não figurativa. É a ruptura total da dependência da pintura com os objetos exteriores. A matéria prima de
Maliévitch é a sensibilidade pura que tem como exemplo o quadrado negro
sobre fundo branco de 1913. O objetivo do Suprematismo é distanciar-se da
realidade e do caráter figurativo e utilitário da pintura.
Com o Suprematismo de Maliévitch a pintura deixa de representar a
vida e passa a fazer parte dela, alcançando assim, o seu estatuto de independência. É a consciência suprema do valor da obra de arte enquanto tal,
da forma pura desenraizada, baseada apenas na sensibilidade que está na
base daquelas tramas fonéticas, daqueles jogos sonoros inusitados da linguagem Zaúm, despidos de qualquer ligação com o mundo exterior. Os “caprichos” geométricos do suprematismo (constelações de triângulos, círculos, trapézios) e os “malabarismos” transracionais da “zaúm” pareciam sonhar devolver ao fazer artístico uma pureza primitiva, uma “pureza do nada”
e vão prosperar enormemente no período da Revolução em que a busca de
novos valores humanos se orienta para uma reconstrução que reconduz aos
valores primitivos originais.
Ora, no que se refere à renovação das artes visuais e suas repercussões em outros campos de expressão artística como a poesia, a literatura e
o teatro, característica, como vimos, do amplo movimento de renovação
estética dos inícios deste século, o conjunto da obra de Almada Negreiros,
quer enquanto caricaturista, dançarino, ator, romancista, dramaturgo, poeta,
ensaísta e pintor, parece corresponder no âmbito do modernismo português
ao mesmo impacto revolucionário que exerceu a figura de V.Maiakóvski no
contexto do futurismo russo. Em muitas atitudes e frases do poeta futurista
russo é possível ver por refração a personalidade e o pensamento de Almada
Negreiros.
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CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas.
Numa primeira sondagem, quer nos parecer que a trajetória de Almada
como artista e pensador define-se, segundo suas próprias palavras, entre
um certo “futurismo” dos inícios e um certo “cubismo” da maturidade, querendo certamente contrapor aí a atitude irreverente nos anos inconformistas
do primeiro modernismo português com uma postura mais “construtiva”,ou
talvez “construtivista “ orientada à regra, à valorização do cálculo geométrico, da proporção e do número.
É oportuno lembrar, que também o construtivismo russo, movimento
que embasou todo um período da arte russa de vanguarda, formula a idéia da
arte enquanto construção de objetos, através da elaboração técnica de materais,
do cálculo matemático, do número,do laconismo nos meios de expressão artística. O construtivismo renega o decorativo não motivado funcionalmente e
busca esquematizar, logicizar e maquinizar a linguagem da arte, seja na arquitetura, escultura, teatro, literatura e pintura. Na Rússia o movimento é considerado como um desenvolvimento consequente do cubo-futurismo e das tendências pictóricas de vanguarda, e seu triunfo no campo do teatro foi uma das
suas mais importantes contribuições. V. Meyerhold figura como o diretor teatral que melhor soube explorar as possibilidades da cena construtivista. E de
certa forma, também a poesia e as peças teatrais de Maiakóvski e, sob certo
sentido, a cinematografia de S.Eisenstein devem muito a essa espécie de cálculo algébrico com que os construtivistas pretendiam estruturar suas obras.
Entretanto, se a trajetória do artista português parece em certo ponto
se cruzar com os caminhos teóricos e estéticos formulados por esses movimentos, é certo também que ela traçou atalhos próprios, desvios muito pessoais que acabaram por conferir uma personalidade muito original a Almada.
Sua especificidade, inclusive no âmbito geral europeu, reside essencialmente, quer nos parecer, na busca incessante da criação ou invenção de uma
linguagem que Almada denominava “canônica”, isto é, o desejo de concretizar o sonho da “canonização” da arte, ou melhor dizendo, criar uma linguagem canônica de “unanimidade”, conforme a terminologia do próprio artista. Daí sua necessidade de “desenterrar todo o segredo do clássico”, como
se a Antiguidade pudesse revelar a ele um segredo consubstanciado numa
espécie de geometria “visionária” ou “simbólica”, capaz de uma decomposição e de um entendimento mais profundo da realidade.
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REVISTA
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ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998.
O próprio artista assim se expressa ao se referir à sua longa pesquisa
sobre os painéis ditos de Nuno Gonçalves, patrimonio artístico da pintura
antiga portuguesa:
“Estava bastante bem informado das tendências de Maliévitch, Kandínski, Paul Klee, Mondrian, cubistas, enfim, de todas as feições tomadas pela
arte moderna depois da fantástica revolução dos impressionistas. E, por
outro lado, pelo geómetra Hambidge e pelos arquitetos Ernest Mössel e
Lund. Simplesmente, todos esses nomes que acabo de citar me tinham
francamente elucidado, em arte, da expressão exata do movimento
impressionista. O movimento impressionista foi um ponto final e não um
ponto de partida – o ponto de partida seria depois do ponto final.[...] Não
era absolutamente um resultado sobre os painéis a que eu me acometia,
mas exatamente àquilo que buscava a arte moderna depois dos impressionistas. Isto é, ir ao encontro de um cânone. Eis a razão fundamental de todo
o meu trabalho”.3
O artista português, na esteira de tantos artistas neopitagóricos, propõe-se redescobrir a geometria “sem cálculo” dos antigos pitagóricos.4 Sua
constante pesquisa em torno do Número, da Proporção ou Razão, da Euritmia
e Aritmologia, o situa junto às concepções da antiga tradição que considera
a arte como uma atividade de conteúdo sagrado: a arte sagrada, tal como a
entendiam os egípcios, os gregos e os cristãos europeus dos primeiros séculos. Almada parece buscar no conhecimento antigo o “segredo perpétuo da
criação da arte” e suas leis de proporcionamento e traçados reguladores. A
“língua sem opinião do Número” e do traçado geométrico levou-o à busca
de um saber unitivo,harmonia universal que concilia os opostos, racional e
irracional, consciente e inconsciente, conhecimento intelectivo e emoção
profunda.
Daí a impressão que nos deixa o conjunto de sua obra de uma busca
quase obsessiva por uma dimensão para lá da realidade aparente, como
que, forçando ultrapassar os meios sensoriais, pleiteasse alcançar a essên3
4
In Diário de Notícias, 9-6-1960, entrevista de Antonio Valdemar, apud Freitas, L., Almada
e o número, Editora Soctip, Lisboa,1987.
Cf. a respeito, em especial, o excelente ensaio “Almada Negreiros, um neopitagórico”, In
Freitas, L., Pintar, o Sete, Editora Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa.
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CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas.
cia universal e o princípio de todas as coisas, talvez uma chave para a harmonia dos mundos.
O Número, considerado assim Número divino ou Número idéia, diferente do número matemático ou quantitativo, ligado, portanto, a concepções
cosmológicas, ao transverbal, ao mito e ao símbolo, representou na teoria e
prática artísticas de Almada, uma espécie de eixo central em torno do qual
gravitaram sua profunda visão de mundo, sua acurada filosofia da arte, enfim toda uma poética que o artista deslindou em suas múltiplas formas de
expressão.
Conhecer, portanto, o Número sagrado, seria penetrar no inteligível
das coisas, no incompreensível do ser, pois ele é o ser em todas as suas
categorias, ao mesmo tempo matéria e forma. Para os pitagóricos, o Número universal é o princípio de tudo e conhecer esses números e suas relações
significava apropriar-se das chaves para o conhecimento dos princípios divinos que vibram no interior das coisas e das criaturas.
É nesta orientação que se deve entender a procura de Almada pelo
enigmático “ponto da Bauhütte”,traçado geométrico ligado aos “grandes
mistérios” de uma Federação, sob a forma de associação autonoma de ritual secreto, de todas as lojas de entalhadores de pedra do Santo Império
Germânico que persistiu até o fim do século XVIII e que se denominava
Bauhütte. O chamado ponto da Bauhütte é mencionado numa quadra popular transmitida tradicionalmente pelos entalhadores de pedra da época gótica, transcrita por Almada da seguinte forma:
Um ponto que está no círculo
E que se põe no quadrado e no triângulo
Conheces o ponto ? Tudo vai bem.
Não o conheces? Tudo está perdido.
Essa espécie de polo ou “umbigo”, relacionado à segmentação polar
do círculo e a uma ciência do círculo e dos polígonos inscritos, faz alusão a
um sinal lapidar colocado no círculo diretor pelos pedreiros, os compagnons,
como prova iniciática dos membros da Bauhütte; isto é, uma fórmula iniciática
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REVISTA
DE
ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998.
dos antigos construtores de catedrais. Tal ponto esquecido, cujo conhecimento anunciaria a salvação,a integração harmoniosa dos “três mundos”,
representados pelo quadrado, pelo triângulo e pelo círculo, ou ainda o
mysterium conjunctionis prometido pelos antigos alquimistas5 , esse ponto
secreto, ao que tudo indica, teria sido expresso num dos motivos do painel
“Começar”, traçado na pedra no átrio do edifício da Fundação Calouste
Gulbenkian, em Lisboa, inaugurado em 1969, um ano antes da morte de
Almada.
Não se trata simplesmente de encontrar numa única figura geométrica um ponto que simultaneamente esteja no círculo, no quadrado e no
triângulo,mas de fazer refletir através dessa sobreposição geométrica, um
questionamento mais profundo da quadratura do círculo, isto é, o possível
encontro de um ponto do espírito que possa conciliar a totalidade do ser: o
círculo divino com o universo humano e social das leis, expresso pelo quadrado, mediante a intercessão do espírito, representado pelo triângulo. Conhecer esse ponto de fusão pressupõe uma espécie de sagrada iniciação,
capaz de fazer emergir um ponto do espírito, espécie de foco de “visão”que
abre o olhar da própria consciência e a partir do qual as contradições possam se resolver numa única unidade, centro de si mesmo, harmonia dos
contrários e dos opostos numa fusão orgânica do divino e do humano, do
macrocosmo e do microcosmo.
Não resta dúvida que as idéias e as propostas estéticas de Almada
Negreiros apresentam virtualidades cujas consquências permanecem ainda
imprevisíveis.
De fato, verifica-se que data apenas das últimas décadas uma releitura
revivificadora do papel importante que representam a diversidade da personalidade artística do artista português e o consequente polimorfismo da sua
arte para uma compreensão mais profunda do movimento artístico e estético contemporâneo.
A partir dos pontos acima assinalados, depreende-se ao final uma
linguagem artística orientada para a primazia da visualida de, expressa pelo
Almada escritor-pintor, segundo as leis do abstracionismo geométrico, ca5
Cf. Freitas, L., op. cit. p.101.
– 39 –
CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas.
ras ao espírito das vanguardas russas, especialmente o cubo-futurismo e o
construtivismo,na sua busca da desmontagem/montagem, (des)construção/
construção, desequilíbrios e equilíbrios compositivos para, afinal, como pretendia Almada, encontrar as secretas leis geométricas da arte.
Com efeito, a clara conexão das artes verbais com as artes visuais,
aspecto central manifesto no conjunto da sua obra como um todo, orienta
uma apreensão do universo do pensamento e da arte do autor muito afim à
estética do Futurismo russo, movimento que, como vimos, proclamava, antes de mais nada, que arte deveria cessar de imitar a natureza para que o
mundo artístico e o mundo poético pudessem se tornar válidos por si mesmos.
É evidente, neste sentido, a radical oposição a uma arte mimética,
naturalista, vinculada aos princípios estéticos de um academismo considerado passadista.
Sem dúvida, é com base nessa irrestrita adoção das regras da estética futurista que se pode depreender o posterior alcance e o desdobramento
de todo o trabalho criativo de Almada. Talvez, por ter sido um dos poucos
que assumiu a ruptura até às últimas consequências, sua personalidade ultrapassa o momento agitatório vanguardista para se inscrever, além da provocação, na busca permanente de uma nova estética e de uma nova filosofia da arte para a vigência do século XX.
BIBLIOGRAFIA
FRANÇA, José Augusto. Almada, o Portugês sem Mestre. Lisboa, Editorial Estúdios Cor,
1974.
________. Começar, Colóquio. Lisboa, 1970.
FREITAS, José Lima de. Almada e o número. Lisboa, Arcádia, 1977.
________. Pintar o Sete – Ensaios sobre Almada Negreiros, o Pitagorismo e a Geometria
Sagrada. Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa,s/d.
GONÇALVES, Rui Mario, Almada. Colóquio, n. 25, out/1963.
GOURFINKEL, N. “Les recherches esthétiques et la Révolution”, In Théâtre Russe
Contemporain. Ed. la Renaissance du livre, Paris, 1931.
– 40 –
REVISTA
DE
ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998.
PERLOFF, Marjorie, O Momento Futurista. São Paulo, Edusp, 1993.
POMORSKA,Krystyna, Formalismo e Futurismo. São Paulo, Perspectiva, 1972
RIPELLINO, A.M., Maiakóvski e o Teatro Russo de Vanguarda. São Paulo, Perspectiva, 1971.
VARPAKHÓVSKI, L. Nabliudênia, analiz, ópit (Observações, análise, experiência). Editora
VTO, Moscou, 1978.
Abstract: The aim of this article is to establish the relations and aesthetic
connections between Russian vanguard movements and Almada Negreiros's
artistic experiences.
Keywords: russian vanguard, comparative literature, portuguese modernism,
Almada Negreiros.
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CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas.
Almada Negreiros
1
2
3
4
1 – Relação 9/10 (1957).
2 – Pintura (c. 1957).
3 – A porta da harmonia (1957).
4 – Quadrante.
5 – O Ponto da Bauhütte (1957).
5
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ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998.
Almada Negreiros
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CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas.
K. Maliévitch – Quadradro Negro, 1913
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REVISTA
DE
ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 29-46, 1998.
K. Maliévitch – Círculo Negro, 1913
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CAVALIERE, Arlete O. Almada Negreiros e o futurismo russo: Intersecções estéticas.
K. Maliévitch – Cruz Negra, 1915
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ARQUIVO
HISTÓRICO:
MADENATARAN
Chaké Ekizian Costa*
Resumo: O artigo remete a Madenataran (que significa em armênio biblioteca) e focaliza este acervo composto de manuscritos, iluminuras, miniaturas armênias e algumas estrangeiras. Acrescenta ainda informações sobre
a história, exposição e possibilidade de consulta do mesmo
Palavras-chave: arquivo, público, manuscritos, miniaturas, iluminuras,
Armênia, Erevan.
Madenataran significa em armênio biblioteca. Em Madenataran,
Mesrob Machtotz1 se concentra o resultado da investigação e dos estudos
sobre os manuscritos armênios. Este tema foi escolhido por materializar o
nobre sentimento de orgulho que os armênios dedicam à sua língua, e ao
seu alfabeto, valorizando suas produções literárias e artísticas e louvando
as investigações históricas. Esta casa de cultura e ciência tem registros históricos desde o século V d.C. Nesta época, a biblioteca está sediada no
monastério de Etchmiadzin, residência dos respeitados patriarcas dos
armênios, por todo o sempre. Durante a Idade Média, diversas bibliotecas,
algumas pequenas outras grandes, estão abertas nos monastérios do país.
No decorrer de todo esse tempo, os invasores estrangeiros destróem as vilas e cidades, tentando dominar o povo armênio. Assim, como os depósitos
de manuscritos de Etchmiadzin, as bibliotecas de todo o país desaparecem
com os impetuosos saques e roubos dos invasores. A última pilhagem na
biblioteca de Etchmiadzin acontece em 1804, quando grande número de
manuscritos foram vendidos nos mercados, próximos e longínquos.
*
1
A autora é Profª. Drª. do Departamento de Línguas Orientais da FFLCH/USP.
Criador do alfabeto armênio, em uso até a nossa atualidade. O alfabeto soma 38 letras entre consoantes e vogais e caracteriza-se por conter, destacadamente, todos os sons da língua armênia.
– 47 –
COSTA, Chaké Ekizian. Arquivo histórico: Madenataran.
Existem, igualmente, nas comunidades da diáspora, como a da Rússia,
do Irã, Índia, Polônia, Hungria, Bulgária etc., importantes bibliotecas onde
os textos restaurados ou copiados e até criados, nestas regiões, dispersamse por todo mundo e são locados em outros museus e bibliotecas.
Estas bibliotecas configuram-se na imagem que os armênios outorgam
à sua história e a sua cultura, pois o povo armênio cultua seus valores contínua
e sistematicamente, interna ou externamente, sob condição pacífica ou de guerra.
A mobilização dos pesquisadores para reunião destes documentos dispersos,
após a anexação da Armênia às Repúblicas Socialistas Soviéticas, foi valorizada com subsídios, prédios e instrumentos para restauro.
Os manuscritos contêm, em suas páginas amareladas, a história deste povo, que ao lutar para preservar sua cultura, sua língua e a convicta
herança cristã transmitida por gerações de sábios, escritores, pintores, filósofos, carregam a marca das influências, que assimiladas foram acopladas
à originalidade da Cultura.
Desde que as condições político-sociais se tornaram favoráveis, os
pesquisadores e estudiosos das bibliotecas antigas, em lugar dos manuscritos destruídos, criaram novos manuscritos, copiando e restaurando os velhos, recolhendo-os em todos os cantos da Armênia e traduzindo as melhores obras de outros povos. Por conseguinte, o século XIX foi um período de
renascimento para o Madenataran; a libertação do poderio arbitrário dos
senhores persas e a aliança da Armênia Oriental2 com a Rússia trouxeram
a paz necessária para garantir a segurança dos valores materiais sobre o
território armênio. Basta notar que os dois mil e oitocentos e cinqüenta
volumes iniciais alcançam, às vésperas da 1ª Guerra Mundial, o número
de quatro mil, seiscentos e sessenta manuscritos e documentos arquivados. Baseados nestes documentos e manuscritos, deu-se início à pesquisa
histórico – filosófica, à publicação de textos críticos sobre os marcos da
2
As comunidades armênias estabelecidas na ex-URSS, cujos membros usam a língua falada na
própria Armênia, são consideradas Orientais, destacando-se a Rússia, a Geórgia, o Azerbadjan, e
o Irã. Da mesma maneira, a população que se espalha pela Turquia, Líbano, América do Sul e do
Norte, e Europa construindo a abrangência da Diáspora desenha a Armênia Ocidental, pela prática da língua armênia ocidental.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 47-55, 1998.
literatura e historiografia armênia antiga e medieval, assim como a coleta
de documentos.
No entanto, tudo foi interrompido pela Primeira Guerra Mundial,
quando, em 1915, o povo armênio vive um trágico e atroz massacre. A
Turquia Otomana empreende a deportação e o massacre organizado dos
armênios que vivem na Armênia Ocidental3 e sobre o território do Império
Otomano. Mais de um milhão e meio de armênio são vítimas do genocídio,
as cidades e os vilarejos transformam-se em ruínas e inúmeros monumentos e bibliotecas são destruídos. Em 1920, o poder soviético na Armênia
resgata o povo e a cultura armênia da desaparição mundial. Os manuscritos
do Madenataran de Etchmiadzin constituem-se em ponto de partida para a
formação da primeira casa científica da Armênia Soviética: Instituto Histórico – Cultural, fundada em 1921. Os primeiros anos são dedicados à restauração e descrição dos manuscritos em fichas e catálogos para posterior
arquivamento de obras históricas e filosóficas.
Para atender às exigências do progresso das pesquisas e da conservação de toda a produção do arquivo, o Madenataran foi transferido de
Etchmiadzin para a capital Erevan, instalando-se em um andar na Biblioteca Miasnikian. Em 1939, nas ondas das reformas em geral, e especificamente do planejamento urbano que se vivia nesta capital, decide-se construir um edifício próprio para alojar o Madenataran em uma das colinas da
cidade.4 É então, desde 1959, que os pesquisadores desta instituição podem montar exposições, divulgar sistematicamente os resultados de suas
investigações e trabalhar na Biblioteca Mesrop Machtotz, tendo diante de
si a paisagem de toda cidade de Erevan.
3
4
A população que se espalha pela Turquia, Líbano, América do Sul e do Norte, e Europa construindo a abrangência da Diáspora desenha a Armênia Ocidental, pela prática da língua armênia ocidental, principalmente.
Projetado pelo arquiteto Marc Grigorian, o prédio do Madenatarn foi construído entre 1945-1957.
Sua fachada é ornamentada com esculturas de eminentes representantes da cultura armênia: da
direita à esquerda 1 – Thoros Rosline, pintor miniaturista do século XIII (escultor A. Chahinian);
2 – Grigor Tathevatsi, filosófo do século XIV (esculpido po A. Grigorian); 3 – Anania Chirakatsi,
matemático e astronomo do século VII (escultor G. Badalian ); 4 – Movses Khorenatsi historiador
do século V (escultor E. Vardanian); 5 – Mkhitar Goch, jurista e autor de fábulas do século XIIXIII (escultor G. Tchubarian); 6 – Frik, poeta do século XIII-XIV (escultor S. Nazarian).
– 49 –
COSTA, Chaké Ekizian. Arquivo histórico: Madenataran.
OBJETOS DOS
ESTUDOS
Torna-se necessária a explicitação do que pode se entender por manuscrito, iluminura e também miniatura: manuscrito, genericamente, significa qualquer documento escrito à mão. “No sentido restrito é termo consagrado pela literatura universal às obras da Antigüidade e da Idade Média,
comumente escritas em pergaminho, com estilete metálico ou cálamo pontiagudo e na forma dos caracteres em uso naquelas épocas”5 .
Na literatura armênia, manuscrito é extensivo também às obras escritas nos séculos posteriores à Idade Média. É o caso dos manuscritos em
pergaminho ou em papel, em sua maioria elaborados na Diáspora Armênia,
nos séculos XVI e XVIII, período em que a arte gráfica de Gutemberg não
está generalizada no universo da produção cultural armênio. “Apesar de ter
sido publicado em 1512, em gráfica de Veneza, o primeiro livro em armênio,
Parzatomar (calendário simples), impresso com a nova técnica, a praxe do
texto – manuscrito prolongou-se por mais tempo”.6
Assim como a iluminura, a miniatura é, intimamente, ligada ao trabalho do manuscrito. No original, a miniatura é a arte de traçar em mínio7
a letra inicial dos capítulos dos manuscritos; estendem-se, mais tarde, à
prática de pintar em pequenas proporções, em escala mínima, ampliando as
margens do manuscrito, algumas vezes com folhagens e flores, outras com
pássaros; e ocupam, também, vitrais de igrejas, ornamentos de murais, que
apresentam, de forma narrativa, aspectos da vida de conquistas dos cavaleiros cristãos; e ainda nas inscrições egípcias e nos textos de ciências exatas
e geográficas dos sábios gregos.
Assim, quando se alia o manuscrito à ilustração e à ornamentação,
fica conhecida a iluminura originando-se o iluminarista, que, por meio de
pintura a cores vivas, ouro e prata, ornamentando as letras iniciais com
folhagens, figura e cenas, este profissional complementa o texto com ima-
5
6
7
Enciclopédia Italiana, XXIII, p. 143.
Kerouzian, Y. O. A técnica nos antigos manuscritos armênios – Comunicação apresentada na
2ª Sessão de Estudos, Equipe A, no dia 19 de julho de 1977.
Óxido de chumbo de cor vermelha, anteriormente denominado cinábrio.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 47-55, 1998.
gens em combinações variadas, ocupando parte da superfície, comumente
reservado ao texto e estendendo-se pelas margens, em barras e molduras.
Também, desde o século X é introduzido o papel, que permite novas práticas de escrita, tornando o uso do pergaminho, preparado a partir da pele do
cordeiro, cabrito ou veado, obsoleto para a escrita.
O trabalho dos pesquisadores do Madenataran abrange o setor de
Bibliografia Científica e Miniaturas que investiga as origens, influências,
cores e imagens dos manuscritos, iluminuras e miniaturas, passando pelo
estudo e publicação dos manuscritos do século V e XI, o estudo de textos e
de documentos arquivados desde o século XIII até o século XVIII e a conservação científica dos manuscritos.
A edição de textos críticos sobre as obras dos historiadores armênios
da Idade Média e a publicação de numerosos documentos ocupam lugar de
destaque na produção científica do Madenataran, o que se torna fonte preciosa para o estudo multidisciplinar, não só da História Armênia como também da história de países vizinhos; seus pesquisadores estudam e investigam o pensamento filosófico armênio e a literatura medieval. Igualmente,
encontram-se trabalhos consagrados ao estudo e à publicação das obras dos
sábios armênios em matemática, astronomia, medicina etc., constituindose em referencial valioso para o estudo da iluminura medieval desse país
que se caracteriza como uma área de pesquisa especial. Muitos álbuns do
Madenataran Mesrop Machtotz, consagrados a diversas épocas e escolas,
já foram publicados.
O mais antigo manuscrito, um Evangelho do século VII, conservado
integralmente, foi descoberto em 1976, seguido pelo Evangelho Lazareff,
de 887 e pelo Evangelho de Etchmiadzin, de 984, compõem o acervo do
Madenataran, expostos ao público em geral, juntamente com o mais antigo
manuscrito sobre papel: uma coleção de obras históricas e filosóficas, escrita em 981. Ainda, no salão circular de exposição da Biblioteca de Erevan,
os visitantes podem conhecer os documentos mais antigos da cultura
armênia, transmitidos pela escrita: fragmentos de manuscrito, em pergaminho, datados dos séculos V e VI; manuscritos do IX e do X séculos e dos
séculos seguintes, petrificados, encontrados em cavernas.
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COSTA, Chaké Ekizian. Arquivo histórico: Madenataran.
Em janeiro de 1983, o número total de manuscritos do Madenataran
alcança 16.210 unidades, cujos 10.895 são manuscritos conservados integralmente, 2.031 manuscritos fragmentados, 387 talismãs, 248 manuscritos modernos, 2.479 manuscritos estrangeiros e 160 catálogos inéditos de
manuscritos.
AO PÚBLICO VISITANTE
O corpo de pesquisadores da Instituição organiza, periodicamente,
exposições das conclusões de seus trabalhos. No entanto, há uma mostra
permanente do rico acervo do Madenataran Mesrob Machtotz; em vinte e
uma vitrines, montadas circularmente, apresentam-se documentos, fazendo conhecer aos visitantes a cultura e a história do povo armênio, desde
quando as suas escolas e igrejas adotam a escrita armênia, que vêm substituir a grega e a assíria, até o século XIX. Aberto todos os dias, o Madenataran
recebe operários, agricultores, estudantes, turistas estrangeiros e armênios
da Diáspora. Em um grande salão, a mostra do acervo documenta a permanência, até a atualidade, das características do alfabeto criado em 405: foneticamente leal à sonoridade da língua, com a escrita destacada e a singular grafia; comprova, pela presença do Evangelho encontrado em 1976,
assim como o de Lazareff e o de Etchmiadzin, o amor convicto ao cristianismo. Expõe, igualmente, manuscritos fragmentados, com a mais antiga
espécie de escritura, assim como sob a forma de inscrições lapidares gravadas nos muros das igrejas, cuja antigüidade remonta aos séculos V e VII.
A lavagem e a raspagem do pergaminho, técnica comum na Idade
Média e justificada pelo alto preço ou pela escassez do material, possibilitando a sua reutilização para nova escrita. Esta qualidade de manuscritos,
com uma camada de escritura antiga, é conhecida pelo nome de palimpsesto;
alguns exemplos de palimpsesto estão no Madenataran. O Evangelho
Sanassarian é um destes exemplos, cuja primeira escrita é datada do século
V e o texto posterior é de 986.
Os visitantes podem conhecer a obra do historiador Khorenatsi, autor da primeira cronologia da História Armênia, documentando as antigas
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 47-55, 1998.
lendas e canções pagãs (século V), enquanto Agathanghel descreve a luta
contra o paganismo e a vitória definitiva do cristianismo na Armênia, em
301. Há ainda a obra de Ghevond (século VIII), cujo estudo é fonte fundamental para o conhecimento da invasão árabe na Armênia e na Ásia Menor.
O acervo histórico é significativo e documenta até o período dos movimentos de libertação do século XVIII. Todos os volumes ficam expostos ao
público permanentemente e trazem informações sobre terminologias e conhecimento lingüístico do período. A historiografia armênia caracterizouse sempre por não se limitar ao quadro nacional, mas traz informações sobre os povos vizinhos e dominadores. Ainda, são os historiadores que nos
transmitem informações sobre a medicina e os médicos.
A retórica e a lexicologia têm seu desenvolvimento em ligação estreita com a gramática; a coleção de regras e exercícios retóricos traduzido
no século V, assim como um Dicionário(século XIII) que fornece sobretudo as explicações sobre as palavras armênias raras usadas nas obras poéticas e gramaticais estão expostas na mesma vitrine. Refutação das Heresias,
escrita por Eznik Kohbatsi, representante da filosofia do período do alto
feudalismo, no século V, é a primeira publicação de cunho filosófico que é
escrita após a criação do alfabeto, e também faz parte da exposição permanente do Madenataran. Em mesma área de estudo, até mesmo em mesma
vitrine está exposta a obra Definição da Filosofia. “Seu autor, Davi Invencível (V e VI séculos) produziu uma das obras mais importantes do pensamento filosófico armênio profano, obra única em seu gênero, que perpetua
as tradições da filosofia antiga. Fundador da ética e da lógica na Armênia
antiga, o autor traz em sua obra fundamentos para o desenvolvimento da
filosofia contemporânea da Armênia.”8 Torna-se ainda, possível apreciar a
antiga edição da tradução de Categorias, de Aristóteles. Entre as obras
estrangeiras, algumas das quais foram trazidas pelos invasores, destacamse o Exercício da Retórica, de Theon de Alexandria (1º século), Arte da
Gramática, de Denys da Trácia. Os originais de algumas destas obras não
foram conservadas e estes livros não nos são conhecidos senão pela tradução armênia. É o caso do “Comentário ao Pentateuco” de Filon de
8
Tchukaszian, B .L. “Madenataran” 1983, Erevan
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COSTA, Chaké Ekizian. Arquivo histórico: Madenataran.
Alexandria (1º século), da Crônica de Eusébio da Cesaréia (260-340), da
Refutação das Decisões do Concílio de Chalcedônia, de Timoteu Elur de
Alexandria.
As obras de química estão representadas por três manuscritos: Da
matéria e da forma de Hovhanes Yerzyngatsi (s. XIII), Sobre a Fusão do
Ouro (s. XIV) e Sobre as Plantas Medicinais,(s. XVIII) de autores anônimos. “É interessante notar que o último manuscrito traz também o desenho
das plantas e seus respectivos nomes não só em armênio, como também em
iraniano, com o objetivo de não haver nenhum engano na preparação dos
medicamentos”.9
O teatro, que é banhado pela fonte da dramaturgia grega, é matéria
dos historiadores, cujos relatos trazem a informação de montagens de peças de Eurípedes, documentam a existência de teatros populares, de pequenas companhias marginais representando comédias mascaradas.
A Armênia da antigüidade tem uma valiosa cultura musical. E isto é
preservado, desde Mesrop Machtotz, que introduziu a música e a poesia
sacra, a princípio ligada à liturgia, escrita em sistema de neumas10 , conhecidos como khazes que são igualmente objeto de pesquisa da Instituição;
no entanto, nem sempre estes códigos são decifrados com sucesso. Os khazes
apareceram na Armênia entre os séculos VIII e XI e se desenvolveram e
aperfeiçoaram até o XIII e XIV; aos poucos, entre os séculos XIV e XVII,
a pauta substitui esta arte que desaparece. Fragmentos destes documentos
são ainda hoje conhecidos por mérito de Movses Khorenatsi, o historiador,
assim como os textos literários de poesia pagã, de lendas antigas e prosa
histórica.
A poesia sacra conhece um grande desenvolvimento a partir de
Mesrop Machtotz, criador do alfabeto e padre da Igreja Apostólica Armênia.
Mas no século X, Grigor Narekatsi(951-1003), em O Livro das Lamentações,
demonstrando maestria no conhecimento da alma humana, abre uma nova
9
10
Idem.
Neuma – notação musical da Idade Média, precursora da atual anotação. Utilizada sobretudo no
cantochão constituía-se basicamente de pontos e acentos que antes do advento da pauta (séc. X)
eram escritas no espaço. O termo também é usado como sinônimo do melisma gregoriano.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 47-55, 1998.
vertente para a poesia. Por conseguinte, a literatura de poetas como Nerces
Chnorhali (1102-1173), Frik (s. XIII), Constantin Yerzyngatsi (s. XIII-XIV),
Naghach Hovnatan (s. XVII), Sayat-Nová (1712-1795) revela o universo
espiritual complexo e contraditório do homem medieval, o conflito entre o
espírito e a matéria, relata a vida de luta do povo contra os invasores estrangeiros e de suas esperanças. A poesia de numerosos poetas medievais é
desenvolvida paralelamente às fábulas, lendas, sermões, apresentando padrões nacionais e influências estrangeiras.
Os desígnios do povo armênio, desde a Idade Média, levam-no à
formação de grandes e ativas comunidades em outros diversos países. Assim, a produção de uma literatura armênia em língua estrangeira é volumosa, até os dias de hoje. Em contraponto, o Madenataran também guarda um
número considerável de manuscritos em língua árabe, latina, russa, persa,
azerbadjã e turca escritas com o alfabeto armênio, o que faz caracterizar a
Armênia, para o observador, como um país de nacionalidade múltipla, que
assimila e sedimenta valores e códigos de outras diferentes culturas.
BIBLIOGRAFIA
APKARIAN, K. V. Madenataran. Ed. do Instituto de Pesquisa Histórico – Cultural dos
Antigos Manuscritos Armênios. Erevan, 1962.
PALOMO, Sandra M. S. “Sobre a Posição do Armênio Dentro do Indo-Europeu”, Revista
de Estudos Orientais, DLO/FFLCH/USP – Humanitas Publicações, 1997, p. 177 e ss.
TCHUKASZIAN, B. L. Madenataran. Erevan, 1983.
Abstract: Modenataran means, in armenian, Library. It contains a valuable
heap of oldest manuscripts, most of them in armenian langague. This text
presents the cataloguing description of that wealth.
Keywords: file, heap, manuscript, Erevan, Armenia.
– 55 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 57-62, 1998.
O
BILINGÜISMO CHINÊS/PORTUGUÊS
SERÁ EXTINTO?
David Jye Yuan Shyu*
Resumo: Saber até quando a cultura chinesa pode ser preservada, dentro de
uma outra cultura, não é uma resposta fácil de ser respondida. A princípio,
tudo indica que a língua chinesa – principal pilar da cultura – será a primeira a desmoronar. Ela vai sendo lentamente substituída pela língua que é falada no ambiente, ficando restrita ao meio familiar. No entanto, este último
reduto da língua chinesa vai, progressivamente, sendo “invadido”, à medida
que os filhos de imigrantes começam a se integrar mais facilmente à sociedade brasileira, tendo como padrão a língua portuguesa .
Caso não haja interferência dos outros fatores, a língua chinesa (com seus
dialetos) dentro da colônia chinesa está fadada ao desaparecimento. Estes
fatores podem ser, dadas as circunstâncias atuais, uma grande imigração de
chineses ao Brasil, o que remediaria o desaparecimento, e o crescente poder
econômico e político da China que estimularia não só os descendentes, como
também encorajaria os estrangeiros a dominar a língua chinesa.
Palavras-chave: cultura chinesa, meio familiar, língua portuguesa, extinção.
Muitos imigrantes chineses da primeira geração freqüentemente perguntam até quando seus descendentes poderão preservar a cultura e a língua
chinesa. Até mesmo um jornalista do jornal chinês do Brasil fica preocupado com a possibilidade de não haver mais leitores daqui a alguns anos. E
além disso, de escritores chineses do Brasil reclamam: “não queremos ser a
última geração de escritores chineses.”
Um interessante estudo de Fishman mostra as etapas que o bilingüismo
segue em direção ao monolingüismo, neste caso, o inglês:
*
O autor é Auxiliar de Ensino do Departamento de Línguas Orientais da FFLCH/USP.
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SHYU, David Jye Yuan. O bilingüismo chinês/português será extinto?
“Etapa 1: o inglês é aprendido através da língua nativa dos “estrangeiros”, com uso restrito a alguns domínios em que a língua
nativa não pode ser utilizada.
Etapa 2: os imigrantes começam a usar ou a língua nativa, ou o
inglês entre eles mesmos e em vários domínios. Inicia-se o
processo de integração.
Etapa 3: a língua nativa ou o inglês são usados na maioria dos domínios.
Etapa 4: o inglês substitui a língua nativa em todos os domínios,
exceção feita unicamente aos domínios mais locais e particulares, como, por exemplo, no convívio familiar dos estrangeiros.”1
Apesar de alguns estudiosos discordarem de Fishman, achando que a
língua francesa do Canadá será preservada através da proteção do governo, o
chinês no Brasil já não tem todo esse benefício, além de não ser preservado por
nenhuma instituição educacional. Por isso, é mais provável que a língua chinesa siga as etapas sugeridas por Fishman: o chinês vai sendo progressivamente
substituído pelo português, caminhando então para o monolingüismo, assim
como Christine de Heredia2 ilustra que, à medida que a criança cresce em um
ambiente onde é falada uma outra língua, ocorre uma inversão de dominância
lingüística, ela vai lentamente substituindo sua língua materna pela língua que
é falada no ambiente, fora do meio familiar.
Segundo uma pesquisa feita entre alunos do curso de chinês de uma
escola chinesa de São Paulo, há um grande desequilíbrio no bilingüismo chinês/português. Vale ressaltar que a pesquisa foi feita numa escola de chinês;
portanto, não daria para imaginar como seria se a pesquisa fosse conduzida
num ambiente mais amplo, talvez a proporção do desequilíbrio fosse muito
maior.
Se duas línguas de uma sociedade bilíngüe não forem bastante equilibradas, pode ocorrer que, com a progressiva fusão das duas comunidades
1
2
Fernando Tarallo & Tania Alkmin, Falares crioulos: línguas em contato, p. 67.
Do bilingüismo ao falar bilingüe, in Multilingüismo. p. 177-218.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 57-62, 1998.
lingüísticas, a comunidade com menor força de domínio perca sua língua
naturalmente, entregando-se ao domínio da língua de uma outra comunidade3.
A integração ou não de “estrangeiros” a uma outra comunidade depende basicamente do número de imigrantes, da cultura educacional e da
economia dessa comunidade. No sudeste asiático, citando como exemplo a
Indonésia, a imigração chinesa já havia começado há mais de um século,
sendo seu número de imigrantes superior a 5 milhões. Naquele país, os
chineses sentiam-se melhor beneficiados em relação aos indonésios em diversos aspectos, tanto na educação como na economia. E há uns trinta anos
atrás, eles formaram um sólido sistema educacional, construindo dentro da
sociedade indonésia uma comunidade independente. Até que, nos anos 60,
o governo proibiu o uso da língua chinesa, extinguindo então sua força
naquele país. Mas os dialetos sobreviveram no dia-a-dia da comunidade
chinesa. No período da imigração, a Indonésia ainda era um colônia holandesa; por isso, o nível social dos indonésios ainda não superava o dos chineses. Mas, no Brasil, por outro lado, há poucos imigrantes chineses, pelo
menos não o bastante para conseguirem um caráter independente e autosuficiente. Além disso, no início da imigração chinesa, o Brasil já se tornara um país independente, com população predominantemente branca, por
isso seria mesmo impossível os chineses sentirem-se melhor beneficiados,
e menos ainda distanciarem-se da cultura, da língua e dos costumes brasileiros; sob estas condições, a fusão torna-se inevitável.
No início da década de 80, refugiaram-se de Moçambique mais de
500 chineses ao Brasil, estabelecendo-se em Curitiba. Nessa cidade, fundaram uma escola semelhante à que tinham em Moçambique, uma escola
chinesa com cinco dias de aula, tendo como principal língua, a chinesa.
Mas, passado um semestre da inauguração, diminuíram o número de aulas de chinês para três vezes por semana, e depois de um ano, mudaram as
aulas para os fins-de-semana. Finalmente, com a contínua desistência dos
alunos, a escola acabou sendo fechada. Isso mostra que o ambiente brasileiro diferencia-se do de Moçambique e também do da Indonésia há uns
anos atrás. Os imigrantes chineses daqueles dois países não queriam, e
3
Yeh Fei-Sheng & Xu Tong-Qiang. (Teoria da língüistica). p. 238.
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SHYU, David Jye Yuan. O bilingüismo chinês/português será extinto?
tampouco precisavam integrar-se na sociedade local, pois eles eram autosuficientes. Mas no Brasil, eles se misturaram naturalmente, assim como
no Peru. Neste último, a imigração chinesa já possui 147 anos de história, e
já possui 1 milhão de pessoas, entre eles, descendentes, naturalizados e
cerca de 40 mil chineses. Porém nos últimos 20 anos, a imigração chinesa
naquele país não tem aumentado muito e além disso, é grande o número de
chineses que se casam com peruanos. Por isso, atualmente, chineses acima
de 40 anos de idade já consideram o espanhol como língua prioritária e
descendentes que falam o dialeto yue correspondem a apenas 4%; conseqüentemente, o número de falantes da língua oficial mandarin torna-se menor ainda.
Podemos facilmente perceber que os chineses de segunda geração
aqui no Brasil consideram o português como sua língua prioritária; então
poderíamos até ter a certeza de que a terceira geração usaria o português
como língua fundamental em suas famílias. Além disso, com o crescente
número de casamentos mistos, o número de falantes do chinês (incluindo
dialetos) vai decrescendo e, com isso, podemos prever a possível “morte da
língua”.
Uma sociedade livre e aberta tem influencia certamente na integração ou não de uma comunidade estrangeira; porém os laços sentimentais
que esta mantém com seu país de origem constituem também, um importante fator. Assim como F. Tarallo e T. Alkmin dizem, “enquanto os imigrantes alemães e japoneses, por exemplo, mantiveram sua identidade cultural e lingüística ao longo de várias gerações, o grupo italiano se integrou
fácil e rapidamente à nova comunidade, privando dessa forma as gerações
subseqüentes da herança lingüística e cultural característica do grupo. Não
é raro, pois, ouvir de um brasileiro, italiano de segunda ou terceira geração,
que de seus pais herdou tão somente o gosto pela pizza e pelo spaghetti e o
hábito de algumas expressões de insulto.”4
Em junho 1996, numa conferência em Nova Iorque, Estados Unidos,
quando John Naisbitt (autor do livro Megatrends 2000) discutia sobre o
4
Falares crioulos: línguas em contato, p. 74-75.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 57-62, 1998.
poder econômico de empresas controladas por imigrantes chineses, relatou
que 90% destes possuem a nacionalidade do país onde residem5. No entanto, não é de se estranhar que os chineses integram-se sem muita dificuldade
numa nova comunidade, especialmente os de províncias litorâneas. Poderíamos até dizer que isto seja uma tradição chinesa; e mesmo tendo dificuldade na primeira geração, devido à barreira lingüística, esta acaba sendo
superada na segunda geração; dessa maneira, a integração torna-se natural.
Podemos encontrar muitos exemplos na história da China, citemos alguns:
na própria China, os hakka (sulinos) são originalmente imigrantes do norte
e os taiwaneses eram imigrantes originais da província de Fujian; a população nordestina emigrou principalmente da província de Shandong e outras
províncias setentrionais. Fora da China, podemos citar como exemplo, a
família real tailandesa cujos membros são descendentes de chineses.
De acordo com as teorias e as observações de fatos verídicos dos
estudiosos, acreditamos que a língua chinesa (inclusive os dialetos) dentro
da colônia chinesa, está, aos poucos, caminhando para o desaparecimento.
Claro que, caso haja interferência dos outros fatores, é possível que tenhamos outras respostas. Como exemplo, a ocorrência de grande imigração
dos chineses. Cabe lembrar que é necessário que estes imigrantes saibam
falar chinês; do contrário a extinção será inevitável.
Dentro da colônia chinesa brasileira, os dialetos são os que estão
desaparecendo com maior rapidez. Acreditamos que, mesmo que a língua
chinesa não consiga se manter no mesmo nível dentro do contexto de duas
línguas, pelo menos se tornará o alvo de aprendizado dos chineses (inclusive dos brasileiros), e é possível que este desnível se perpetue.
Como está havendo um aumento do poder econômico dos chineses
no mundo todo, e também o desenvolvimento econômico e a elevação do
nível, internacionalmente, da China, o mandarim é a linguagem comum do
povo chinês; nos países do mundo todo, principalmente nos últimos vinte
anos, os desenvolvidos têm formado uma onda de aprendizagem da língua
chinesa. Por isso, de acordo com a tendência do momento, mesmo que a
língua chinesa dentro das colônias chinesas do mundo todo possam estar
enfrentando um desafio impiedoso, pelo menos, do ponto de vista internacional, está tendo um novo rumo e uma nova esperança.
– 61 –
SHYU, David Jye Yuan. O bilingüismo chinês/português será extinto?
Abstract: The question “How the Chinese culture can be preserved in another culture” is not easy To be answered.
In the beginning, it is indicated that the Chinese language itself, which is
the heart of its culture, will be the first to disappear.
Howerer, the last evidence of Chinese language will be progressively replaced, while the children of Chinese immigrants begin to integrate intro
the Brazilian society. Consequently, the Portuguese will be the basic language.
If there is no intereference of other factors, the Chinense language (including the dialects) in the Chinese community is condemned be replaced.
These factours could be, according to current circumstances, the Chinese
large immigration which could save its language. Another relevant factor
could be the increasing Chinese economical and political power that could
stimulate not only the children of chinese immigrants, but also could encourage foreigners to learn the Chinese language.
Keywords: bilinguism, Chinese language, culture, contact, Chinese immigrants.
5
<Central Daily News> Taipei, 27.junho.1996.
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ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 63-76, 1998.
RESSURGIMENTO
DA LÍNGUA HEBRAICA
E SUAS IMPLICAÇÕES CULTURAIS1
Eliana Rosa Langer*
Resumo: O ressurgimento da língua hebraica foi um fenômeno interessante ocorrido com um idioma depois do mesmo ter-se exilado de seu país de
origem juntamente com o povo que o falava. O hebraico permaneceu silencioso durante um período muito longo, porém não se extinguiu. A volta do
referido idioma como língua nacional dos judeus, teve implicações culturais, sem as quais tal fato não teria ocorrido. O hebraico falado atualmente, é resultado de um grandioso trabalho executado por um grupo de pessoas que ao reimplantar o hebraico cuidou para que o idioma partisse das
fontes escritas. Este artigo procura relatar um pouco deste trabalho.
Palavras-chave: língua e cultura, língua e nação.
O hebraico é uma língua muito antiga que tem suas origens na família das línguas semíticas. Nossos antepassados usavam-na no seu cotidiano, bem como em conversas sobre assuntos sagrados, em profecias e também na exposição de sua sabedoria. O hebraico é o idioma do povo hebreu,
foi o idioma utilizado na época bíblica e no qual a Bíblia foi escrita.
O povo continuou utilizando o hebraico como língua falada até ser
expulso de sua terra no ano 70 da E.C., período do Exílio da Babilônia,
quando os judeus passaram a viver dispersos pelo mundo. Os judeus que
viviam na Babilônia falavam o aramaico, aqueles que viviam no Egito falavam o grego, e aqueles que viviam em algumas regiões da Palestina falavam o aramaico e o grego. A língua falada pelos judeus passou a ser a
língua oficial dos lugares por onde foram passando e se fixando. Porém,
apesar de dispersos o povo manteve sua identidade judaica através da conservação de sua cultura e tradição.
*
1
A autora é Profa. Assistente do Departamento de Línguas Orientais da FFLCH/USP.
Aula ministrada no dia 15 de outubro dentro do curso de difusão cultural do DLO “As relações
entre língua e cultura no oriente”.
– 63 –
LANGER, Eliana Rosa. Ressurgimento da Língua Hebraica e suas implicações culturais.
Os judeus apesar de terem deixado de utilizar o hebraico como a
língua de seu cotidiano para adotar idiomas diversos, jamais abandonaram
por completo o idioma de seus antepassados, continuaram a ler e a escrever
no referido idioma. Durante aproximadamente 1.700 anos, o hebraico permaneceu presente na vida de todo judeu mas não como língua de uso diário. O hebraico manteve-se através dos estudos bíblicos, das orações e criações literárias, livros de viagem e obras históricas, sendo que uma vasta
literatura foi se acumulando durante tal período. Em alguns países os judeus chegaram a manter a tradição de escrever cartas e documentos particulares na língua de seus ancestrais.
O bilinguismo e mesmo o trilingüismo, é uma característica do povo
judeu que ao espalhar-se pelos quatro cantos do mundo passou a usar a
língua local para o seu cotidiano, e o hebraico como um elemento de manutenção de sua tradição religiosa, filosófica enfim cultural. Podemos falar
em bilingüismo ainda no período bíblico, quando o aramaico era utilizado
como língua diplomática. Em Reis 2 cap. 18, vers.26, temos a narração de
um episódio em que um rei assírio envia uma comitiva ao rei de Israel e
esta comitiva pede para que se fale o aramaico pois a língua dos judeus não
era por eles compreendida.
O aramaico persistiu como língua falada pelos judeus até o séc.VIII
com as conquistas árabes. Alguns capítulos do livro de Daniel e do livro de
Ezra foram escritos em aramaico bem como uma grande parte do Talmude2 .
Temos ainda uma tradução aramaica da bíblia e algumas orações que são
recitadas, ainda atualmente em aramaico. A língua árabe, a partir do séc.
VIII foi substituindo o idioma aramaico, através de conquitas territoriais.
O grego penetrou no oriente ainda no séc. IV A.C. como segunda
língua, com a expansão do helenismo. Judeus de Alexandria e da grécia
falavam grego, assim como aqueles ricos intelectuais da palestina que haviam se helenizado. A literatura judaica helenística inclui a tradução bíblica, “A Septuaginta”, que data do séc.III A.C.
Nos meados da idade média, temos o árabe judaico proveniente do
árabe, o iídiche proveniente do alemão e o ladino proveniente do dialeto
2
Talmude é o código básico da lei civil e canônica do judaísmo pós-bíblico.
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REVISTA
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ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 63-76, 1998.
castelhano dos espanhóis que imigraram para os países mediterrâneos: a
Turquia, os Balcãs, Israel e África do norte. Tais idiomas são falados pelos
judeus até nossos dias, eram as línguas dos locais onde viviam, porém estes
idiomas eram representados graficamente em caracteres hebraicos e recheados de palavras e expressões emprestadas do âmbito religioso, familiar, da
literatura bíblica e rabínica: espiação (kapará) ‫הרפכ‬, sábado (shabat) ‫תבש‬,
arrependimento (teshuvá) ‫הבושת‬, justo (tsadik) ‫קידצ‬, dia festivo (yom tov)
‫בוט םוי‬.
O árabe judaico é falado atualmente pelos judeus provenientes do
Iêmen, dos países árabes, da África do norte, do Iraque, da Síria e do Líbano. O ladino nos legou uma grande produção literária a partir do séc. XV. O
iídiche fundamenta-se principalmente no vocabulário alemão, no românico, no hebraico e aramaico, eslavo e ultimamente temos influências do inglês, do espanhol e etc.
O iídiche teve seu início por volta dos séc. X-XI com as comunidades do Reno, e com a imigração do povo, em função das ameaças de extermínio, para terras eslavas, onde o iídiche recebeu influências. O número de
falantes chegou a aproximadamente dez milhões, antes do holocausto. Uma
vasta literatura foi escrita neste idioma e o escritor Bachevis Singer recebeu o prêmio Nobel de literatura por sua obra em língua iídiche.
Atualmente porém, o idioma está desaparecendo. A guerra mundial
e o holocausto exterminaram uma multidão de falantes, o governo soviético coibiu o desenvolvimento do iídiche e na América do Norte e do Sul sua
coibição vem por parte da língua inglesa e de outras línguas faladas pelos
judeus dentre elas o próprio hebraico.
Na Idade Média, a língua ainda não era considerada um atributo de
nacionalidade. Os povos Europeus já lutavam por uma independência nacional a qual incluía o direito de usar sua língua nacional em assuntos públicos e governamentais, e os judeus ainda não se consideravam uma nação
como as outras. Produziam uma literatura ocidentalizada em língua hebraica,
porém não aspiravam uma função oficial para tal língua.
Eliezer Ben Yehuda – Nascido em 1856 na Lituânia, foi quem encabeçou o movimento para o ressurgimento do hebraico falado. Imigrou para
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LANGER, Eliana Rosa. Ressurgimento da Língua Hebraica e suas implicações culturais.
Israel em 1881 e ainda na Europa concebera a idéia de nacionalidade judaica que teria o hebraico como seu idioma oficial. Desde o início de sua
atividade colocou duas metas a serem alcançadas: fazer ressurgir o hebraico
como língua falada na terra dos antepassados, e juntar num dicionário os
tesouros da língua na totalidade de seus períodos.
Tendo abandonado seus estudos de medicina em Paris, imigrou para
Israel com sua jovem esposa. Junto a um grupo de amigos, em Jerusalém,
começou a atuar efetivamente para a concretização de suas idéias. Escreveu artigos e livros pregando o novo assentamento em Israel, e a volta do
hebraico como língua falada. Ampliou e difundiu a língua, e num trabalho
incansável produziu o “Dicionário do Hebraico Novo e Antigo”, composto
de 17 volumes sendo um deles “A Grande Introdução”.
A língua falada , está ligada ao povo na terra de seus antepassados. O
hebraico tendo sido afastado de sua terra de origem e tendo deixado de ser
uma língua falada estava defasado do desenvolvimento da humanidade em
relação ao seu cotidiano como também em relação à ciência e à filosofia.
Um grande trabalho portanto, teria que ser feito para atualizar o hebraico e
torná-lo uma língua do cotidiano.
Não foi fácil a concretização do sonho de Ben Yehuda, ele teve muitos opositores que lutavam contra suas idéias de forma bastante agressiva.
Como exemplo disso, instalou-se uma discussão nos anos 1912-1914 sobre
o lugar que o idioma hebraico deveria ocupar no sistema de educação e
seus diversos campos. A discussão culminou com “a guerra dos idiomas”
na qual o hebraico saiu vitorioso.
Naquela época havia em Israel uma rede de escolas dirigidas por
judeus alemães que restringia cada vez mais o lugar do hebraico em seu
currículo, introduzindo em seu lugar o idioma alemão. Os dirigentes da
escola técnica, situada ao lado de Haifa, a qual mais tarde transformou-se
no “Technion” – a atual mundialmente respeitada Escola Politécnica – decidiram, em 1913, que não haveria uma língua oficial naquela entidade e
que as aulas de ciências naturais seriam ministradas em alemão pois, era a
mais cultural das línguas, e que portanto funcionaria como uma ponte para
o desenvolvimento da ciência na nova era. E em atenção ao hebraico, haveria um compromisso de adaptar o alemão ao caráter judaico de tal escola.
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REVISTA
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Tal decisão suscitou uma grande revolta dos sionistas judeus em Israel e na dispersão. Surgiu um movimento muito grande de oposição, com
a participação de toda a nação: professores, pais e alunos. A nação, em
massa, se opunha à substituição do hebraico pelo alemão. O sindicato dos
professores exigia que a língua hebraica fosse a língua de ensino para todas
as ciências.
As reivindicações não foram atendidas e a luta tornou-se mais acirrada, culminando com a demissão dos opositores das instituições de ensino
onde trabalhavam.
A luta passou a ser em função de proteção ao idioma hebraico e da
instalação de escolas hebraicas. O sindicato sionista declarou que assumiria os assuntos de educação. Entrementes, a guerra mundial findou, com os
amargos resultados para os alemães, e terminou também “a guerra das línguas”, sendo que nesta última o idioma hebraico saiu vitorioso.
Na verdade, esta “guerra de línguas” em certo aspecto foi útil, pois
contribuiu para a difusão do hebraico, o qual passou a ser falado num âmbito muito maior. Falar hebraico tornava-se uma questão de “princípio”, e de
“moda”, uma reação contra a imposição de uma outra língua.
Eliezer Ben Yehuda foi um dos primeiros a usar o método de “ensinar hebraico em hebraico” e foi um dos que introduziu o acento sefaradita,
ou seja, a pronúncia oriental da língua hebraica que privilegia o acento
tônico sobre as últimas sílabas, sendo que os judeus ocidentais privilegiavam o acento na penúltima sílaba.
Junto com seus amigos Ben Yehuda fundou a “Comissão da Língua
Hebraica” que mais tarde transformou-se na “Academia da Língua Hebraica”.
Esta comissão fixou termos básicos para a vida cotidiana, sua pronúncia, sua
escrita e sua gramática. Estas inovações eram publicadas em seus jornais,
livros e em seu dicionário.
Tais inovações faziam-se necessárias para suprir a falta de palavras
básicas para a comunicação diária. Isto se deu de duas formas:
1. Criando novas palavras a partir de raizes consonantais existentes em
hebraico e combinando-as com formas derivacionais.
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LANGER, Eliana Rosa. Ressurgimento da Língua Hebraica e suas implicações culturais.
2. Extraindo palavras que apareciam na antiga fonte (Bíblia, Mishná) e atribuindo-lhes novos significados.
A primeira forma refere-se ao uso de sufixos e prefixos seguindo os
paradigmas constitutivos da língua chamados de “mishkalim”. A segunda
forma refere-se a diversos métodos de empréstimos: empréstimos semânticos, decalques, analogias entre as línguas e outros. O empréstimo, um dos
mecanismos utilizados para ampliação de vocabulário, pode ser identificado desde as camadas mais antigas. Vejamos alguns empréstimos que vieram para o hebraico através de línguas antigas:
– BABILÔNICO: sal (melakh) – ‫חלמ‬, galinha (tarnegolet) – ‫לוגנרת‬
– ACÁDICO, através do aramaico: divórcio (guet) – ‫טג‬, dote
(nedunia) – ‫הינודנ‬
– ARAMAICO: meio – ‫עצמא‬, fato – ‫הדבוע‬
– PERSA: pomar (pardes) – ‫סדרפ‬, arroz (órez) – ‫זרוא‬, através do
GREGO: açúcar (sukár) ‫רכוס‬, através das línguas européias: engenharia (handassá) – ‫הסדנה‬
– ÁRABE: (idade média) centro (mercaz) – ‫זכרמ‬, damasco
(mishmesh) – ‫ ;שימשימ‬mesquita (misgad) – ‫ דגסמ‬gorjeta (bakshish)
– ‫שישקב‬
– TURCO: (através do árabe) selo (bul) – ‫לוב‬, sabão (sabon) – ‫ןובס‬
– ROMÂNICO: (através do árabe) pneumático (tsmig) – ‫גימצ‬, parafuso (boreg) – ‫גרוב‬, guarda-sol (shimshiyá) – ‫היישמש‬
Podemos falar de vários tipos de empréstimos, há aqueles empréstimos semânticos que geram alteração apenas no significado de um item lexical
já existente, como exemplo temos a palavra “estrela” – (kokhav) ‫ בכוכ‬a
qual aparece na Bíblia e que assume o significado de pessoa proeminente
cuja profissão está ligada ao teatro ou ao cinema. Tais empréstimos resultam numa polissemização de um item lexical existente, ou na substituição
de um significado antigo por um novo. Há um movimento de ocidentalização
semântica sem afetar porém, a estrutura da língua.
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REVISTA
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Há um outro tipo de empréstimo que é o empréstimo por tradução.
Enquanto o anterior fica no nível do conteúdo este implica na criação de
uma nova palavra, ou como mais freqüentemente de uma locução, por exemplo: jardim de infância (gan-yeladim) – ‫ןג‬-‫םידלי‬.
Outro método de modificação semântica é o da secularização de termos sagrados. Este método é habitual em sociedades que passam por uma
transformação e passa de tradicional à moderna, por exemplo: sacrifício
(korban) – ‫ןברק‬, sacrificar-se por alguém (lehakriv) – ‫בירקהל‬.
A analogia de formação de línguas constitui um outro método de
modificação semântica, por exemplo: máscara – masekhá – ‫ הכסמ‬esta palavra aparece no texto bíblico significando uma imagem modificada.
Academia da Língua Hebraica – Esta entidade foi fundada em 1953
dando continuidade ao trabalho iniciado pela “Comissão da Língua
Hebraica”, fundada em 1889 por Eliezer Ben Yehuda e seus amigos. A
função desta academia é direcionar o desenvolvimento da língua hebraica
com base na pesquisa da mesma. Suas decisões são no âmbito da gramática, da escrita e da criação de novos termos. Esta Academia atua nas instituições educacionais e científicas, bem como governamentais.
O hebraico moderno, é composto por 4 camadas lingüísticas as quais
convivem simultaneamente:
1– PERÍODO BÍBLICO – base da língua falada atualmente – 2.000 A.C.
2 – PERÍODO MISHNAICO – Talmud/Mishna e Midrash – séc. VII D.C.
– basicamente a língua bíblica
– diferenças – elementos de coesão, sinonimia, língua popular falada desde o 2o Templo até o séc. II D.C.
– aramaico, grego e românico.
3 – PERÍODO MEDIEVAL – o hebraico vai para o exílio – final do séc. II
D.C. até o séc. XIX
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LANGER, Eliana Rosa. Ressurgimento da Língua Hebraica e suas implicações culturais.
– literatura – poesia hebraica (piyut) – E s p a nha – Yehuda Halevi, Shlomo Guevirol e outros
– academias rabínicas – Maimônides
4 – PERÍODO CONTEMPORÂNEO – os últimos 200 anos – o hebraico
reaparece com o movimento de volta ao lar judaico (depois de 1.700
anos)
– literatura do hebraico novo – antes
do retorno ao lar.
– iluminismo – centro europeu – Alemanha, Áustria, leste europeu – Mendelsson (1729-86) – cultura hebraica
– purismo lingüístico leva à reativação do hebraico falado – Mendale
Mocher Sefarim (1835-1917), Echad
Haam (1858-1922) Eliezer Ben
Yehuda (1856-1927)
A maior parte do vocabulário usado no hebraico falado atualmente
provém da camada bíblica, chegando a 2/3 o número destes vocábulos,
sendo que o 1/3 restante divide-se entre as demais camadas.
Não podemos deixar de mencionar as modificações que o hebraico
vem sofrendo frente a globalização. Assim como todos os idiomas falados,
também o hebraico tornou-se um organismo vivo, aberto à inovações provenientes do desenvolvimento humano, bem como à influências de outros
idiomas com os quais entra em contato, seja o inglês, idioma que penetra
amplamente através da cultura americana, como o russo e vários outros
idiomas levados para uma convivência íntima com hebraico através das
constantes imigrações.
O hebraico modernamente sofreu algumas modificações, o que ocorreu também durante o período em que não foi usado como língua da comu– 70 –
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nicação cotidiana, pois o idioma serviu para importantes atividades intelectuais. As construções singulares do hebraico bíblico mantiveram-se e
o desenvolvimento lingüístico deste período não chegou a perturbar o antigo esplendor deste idioma. Podemos afirmar que o vocabulário utilizado
atualmente no hebraico falado em Israel, é em número muito amplo, o bíblico. O lingüista Reuven Sivan, analisou um texto de 1948 “A Carta da
Independência” e concluiu que 63% dos vocábulos utilizados são originários da literatura bíblica.
Através das ilustrações a seguir podemos ver a presença marcante da
camada do período bíblico no hebraico chamado moderno, com as relativas
adaptações para a realidade da vida atual.3
3
Colaboração de Miriam Kleingezinds, aluna que do projeto de iniciação científica.
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LANGER, Eliana Rosa. Ressurgimento da Língua Hebraica e suas implicações culturais.
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LANGER, Eliana Rosa. Ressurgimento da Língua Hebraica e suas implicações culturais.
BIBLIOGRAFIA
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Departamento de Lingüística e Línguas Orientais n. 2, USP, São Paulo, 1980.
NIR, Raphael. Semantic Processes In The Adaptation of an Ancient Language to a Modern
Society – palestra proferida. The Hebrew University, Jerusalem.
RABIN, Chaim (tradução de Berezin Rifka). Pequena História da Língua Hebraica. Summus
ed. 1973.
ROZEN, Haim. Haivrit Shelanu. Am Oved, Tel Aviv, 1956.
SIVAN, Reuven. Toldot Leshonenu. Ed. Rubinstein, Jerusalém, 1979.
Abstract: Modern Hebrew as it is spoken in our days, has a peculiar history.
This article is about the path of this idiom from ancient times until today.
Jewish people for a long period had been out of his land and his language
– Hebrew stoped to be used as their every day language. Hebrew was used
only for religious, literary or commercial purposes. When Jews returned to
their land, Hebrew reappeared, in special conditions, as the official language
of the State of Israel. This language is based on the biblical Hebrew and it
contains also the language of later periods, besides renewal and updantig
made by by the Hebrew Language Academy.
Keywords: Hebrew, Language and Culture.
– 76 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 77-87, 1998.
O CICLO ÉPICO DO CORVO NO
PALEOASIÁTICO E O MITO DO DESANINHADOR
DE PÁSSAROS DOS ÍNDIOS BORORO NO BRASIL:
EM BUSCA DE ELOS
Helena S. Nazário*
Resumo: Este trabalho visa estabelecer comparações entre o ciclo épico
do Corvo, estudado por Eleazar Meletínski em O Epos Mitólogico Paleoasiático, e o mito bororo denominado “o desaninhador de pássaros” estudado por Claude Lévi-Strauss em O Cru e o Cozido.
Palavras-chave: Eleazar Meletínski, O Epos Mitólogico Paleoasiático, ciclo épico, Corvo, Claude Lévi-Strauss, O Cru e o Cozido, mito bororo, “desaninhador de pássaros”.
Em seu livro O Epos Mitológico Paleoasiático, Eleazar Meletínski,
pesquisador russo do mito e do folclore, dedica-se ao estudo do ciclo
épico do Corvo. O autor examina o epos do Corvo entre os aborígenes da
Kamtchatka e da Chukotka (na Sibéria), entre as populações do Alasca
(os esquimós, os atapascos) e, principalmente, entre os índios da costa
noroeste americana (os tlinguit e os haida). Entre essas etnias, o Corvo se
destaca como um demiurgo, um protoancestral humano e tribal, um herói
cultural e totêmico. Essa ligação com antepassados totêmicos explicaria
os nomes e os atributos de muitos heróis culturais: o Corvo, o Coiote, o
Coelho, o Urubu.
Em O Cru e o Cozido, Claude Lévi-Strauss estuda o mito dos índios
bororos, denominado o desaninhador de pássaros, em que a representação
mítica do herói bororo surge como um possível contraponto ao Corvo.
Este trabalho se propõe a estabelecer comparações entre o epos do
Corvo e a lenda bororo.
...
*
A autora é Profª. Drª. do Departamento de Línguas
– 77 – Orientais da FFLCH/USP.
NAZÁRIO, Helena S. O ciclo épico do Corvo no Paleoasiático e o mito do desaninhador de passáros...
Para E. Meletínski, os contos sobre o Corvo constituem um ciclo
épico original e arcaico. O caminho este epos seguiu em sua transmigração
da Ásia para a América faz supor que os antepassados dos índios americanos trouxeram os mitos do Corvo da Ásia para a América do Norte, introduzindo-os entre os grupos étnicos que habitavam a costa noroeste americana.
O principal mito heróico, entre os índios americanos, relata a história do Corvo Yel, o qual mantém uma ligação amorosa com a mulher de seu
tio. Caracterizado o incesto, o tio cumula o sobrinho de provas difíceis de
realizar. Todavia, o sobrinho (o Corvo) possui dons mágicos que lhe permitem sair ileso das provas. Como último recurso, o tio provoca o dilúvio
universal, a fim de liquidar o sobrinho. O Corvo, para se salvar, sai em
busca da plumagem de um pássaro celeste e, vestido com essa plumagem,
perfura a abóbada celeste com o bico. Desse modo consegue permanecer
suspenso no céu. Finalmente, quando as águas baixam, o Corvo pousa sobre um outeiro que se eleva sobre as águas. O dilúvio termina e ele se salva.
Meletínski esclarece que, em princípio, a história do Corvo trata do
tema do incesto que deflagra a vingança do tio. Na realidade, porém, o
início do conflito entre tio e sobrinho no conto é provocado pelo tio e não
pelo sobrinho. Tomado de um acesso de ciúmes de seus sobrinhos, o tio
resolve matá-los. Apenas um deles, o Corvo, consegue escapar com vida.
Ao atingir a maturidade, ele resolve vingar-se do tio. É então que comete
incesto com a mulher dele. O tio, no afã de se vingar e aniquilar o sobrinho,
impõe-lhe as provas difíceis. O Corvo, no entanto, as supera, tornando-se
herói e demiurgo, dando início a uma série de feitos culturais como a obtenção do fogo, da luz, da água fresca etc.
Este seria, em nível mais superficial, o enredo do mito. Porém, de
acordo com Meletínski, em nível mais profundo, existe um outro significado
fundamental: os índios têm uma tradição matrilinear, em que o vínculo com o
irmão da mãe (o tio) é muito estreito. Uma vez que o tio é o parente masculino mais próximo pela linha materna representa o poder da autoridade, como
chefe da tribo. Por outro lado, o sobrinho (filho da irmã) representa, para o
tio, o futuro da espécie, uma vez que é seu herdeiro mais próximo. É dever do
tio (o velho chefe) perpetuar o processo de mudança das gerações e a vida da
– 78 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 77-87, 1998.
espécie, pois a vitória da geração mais jovem é condição necessária para a
continuidade permanente do clã. Nesse sentido, as provas que o tio impõe ao
sobrinho impregnam-se de um significado ritualístico, constituindo autênticos rituais de maturidade, que propiciam a formação da personalidade do
herói. Assim, o aprendizado da caça ao pássaro celeste e a transformação
chamânica do herói (o vôo do herói vestido com a plumagem do pássaro
celeste) representariam o coroamento das provas.
O autor constata que o motivo do incesto assume função relevante ao
simbolizar a maturação do jovem que completa o ciclo das provas iniciáticas.
As provas se associam ao ritual da mudança de gerações, principalmente
no aspecto da sucessão do chefe. O triunfo do herói corresponderia a uma
transformação radical de seu status social, sendo que a força erótica e mágica revelariam seu preparo à sucessão do chefe decadente da tribo. Disso
decorre que, por trás da disputa familiar e da vingança, aparente em primeiro nível, o que de fato desponta, em segundo nível, é o conflito de duas
gerações.
Em Arquétipos Literários, Meletínski reafirma que os motivos erótico
e do incesto atuam como sinais de decadência de uma geração e de maturidade da geração seguinte. Como exemplo cita o mito de Édipo, em que o velho
rei, ao ser avisado de que o jovem herdeiro (ou qualquer outro recém-nascido) iria ocupar seu lugar, faz todas as tentativas para aniquilá-lo. Tentativas
frustradas, uma vez que, após a morte do pai, Édipo se torna rei. À morte
ritual do rei, segue-se o casamento do herói com a mãe e a sucessão ao trono,
o que vem confirmar a troca de poder pela geração mais jovem.
De um outro ângulo, observa o autor, considerando-se que o incesto
representa uma transgressão do tabu, e que a proibição do incesto bem como
a instituição de uma exogamia dual caracterizam o começo de um corpus
social, segue-se que a violação do tabu, através do incesto, traz como conseqüência o caos social. O motivo do incesto configuraria, então, uma espécie de pivô – atuando ao mesmo tempo como instrumento de vingança
superficial, símbolo de maturidade do herói, e violação do tabu que deflagra
o caos social. A uma transgressão máxima no nível social (configurada
pelo incesto) corresponderia uma transgressão máxima no nível cósmico
(configurada pelo dilúvio).
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NAZÁRIO, Helena S. O ciclo épico do Corvo no Paleoasiático e o mito do desaninhador de passáros...
Mais grave, porém, que a transgressão do incesto, segundo Meletínski,
deve ser considerada a transgressão das normas de parentesco (ou seja, a
destruição dos sobrinhos pelo tio). Assim, tanto o motivo do incesto como o
motivo da destruição dos sobrinhos se associam ao motivo do dilúvio, num
tema único, o qual será traduzido na luta entre o caos e o cosmos. Uma vez
que do triunfo do cosmos sobre o caos deriva a criação do mundo (ou a sua
ordenação), a “cosmização” do caos pode ser representada não apenas como
uma troca de gerações de deuses, mas também como uma luta entre jovens e
velhos deuses. Embora as provas impostas ao Corvo revelem os aspectos de
uma iniciação, o objetivo do tio seria, na realidade, aniquilar o sobrinho, pois
essa aniquilação diz respeito à sucessão de poder das gerações.
Ainda em Arquétipos Literários, Meletínski se refere ao estudo de Claude
Lévi-Strauss sobre o desaninhador de pássaros para observar que, enquanto
no ciclo épico do Corvo se origina uma relação ambivalente entre o tio e o
sobrinho, no mito bororo esse tipo de relação ocorre entre o pai e o filho.
...
O mito bororo, estudado por Lévi-Strauss, à semelhança do mito do
Corvo, tem como motivo inicial o incesto. Diferido do mito do Corvo, porém, o herói bororo comete incesto com a mãe. Em seu estudo, Lévi-Strauss
destaca que o mito bororo não evidencia a idéia da culpa do herói; é apenas
do ponto de vista do pai que o filho é culpado. Por isso, o pai deseja a morte
do filho e faz planos para concretizá-la, por meio de provas difíceis que lhe
impõe.
O que Lévi-Strauss destaca nesse mito é a indiferença dos bororo em
relação ao incesto: a culpa recai muito menos no filho incestuoso que no
marido ofendido que busca vingança. Em princípio, o mito bororo isenta o
herói de culpa, uma vez que ele recebe a ajuda que solicita da avó para a
realização das provas. Toda culpa é atribuída ao pai, por ter desejado vingar-se do filho, enquanto o herói aparece sobretudo como vítima.
O herói bororo comete incesto no momento em que se recusa a separar-se da mãe, incumbida de desempenhar uma missão feminina: ir à flores– 80 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 77-87, 1998.
ta colher folhas para confeccionar estojos penianos, utilizados pelos rapazes nas provas de iniciação. Relutando em se desligar dos laços maternos, o
herói acaba reforçando-os, por meio de um ato cuja natureza sexual o coloca muito além das provas de iniciação. Esse erro ocasiona uma disjunção: o
pai convida o filho para capturar filhotes de pássaros nos ninhos junto aos
rochedos e o abandona numa rocha escarpada, onde o rapaz permanece
separado dos seus.
Ansioso em se livrar da situação em que se encontrava, o herói se
envolve nas peles de lagartos putrefatos e, assim, transformado em carniça,
excita o apetite dos urubus, os senhores do fogo, atraindo-os. Passa, então,
a participar do poder deles sobre o fogo. Os urubus, que deveriam devorar
o herói, consomem apenas uma parte da carne crua de sua vítima, o traseiro. Em seguida, atuam como autênticos salvadores, servindo de montaria
para transportar o herói da rocha onde ele se encontrava para a terra. Vencidas
as provas impostas pelo pai, o herói retorna à aldeia, onde uma tempestade
apagara todos os fogos, exceto o da casa de sua avó. Ao refugiar-se ali,
torna-se senhor do fogo e todos devem se dirigir a ele para obter uma brasa
e reacender o fogo perdido.
A mitologia indígena sul-americana costuma estabelecer relações
entre o fogo e o urubu, considerado o dono do fogo. No mito dos índios
apapocuvas, o herói civilizador finge que morre e que seu corpo começa a
se putrefazer. Os urubus, senhores do fogo, juntam-se em volta do “cadáver” e acendem uma fogueira para cozinhá-lo. No entanto, o herói consegue safar-se das brasas, afugenta os urubus, tira-lhe o fogo e o entrega aos
homens. Desde então, os urubus começam a se alimentar de carne podre.
Lévi-Strauss enfatiza que, ao contrário dos outros mitos indígenas,
os quais em geral privilegiam a origem do fogo, o mito bororo se sobressai
como um mito da origem do vento e da tempestade, elementos que conseguem apagar o fogo. Entre os bororo, o vento, a tempestade e a chuva se
associam à constelação do Corvo, a qual evoca a estação das chuvas (a
água do céu). Ritos e lendas antigas consideravam o corvo um pássaro que
anunciava as chuvas porque, ao ficar com sede, invocava a água celeste
ausente. Segundo o autor, o pensamento mítico sul-americano distingue
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NAZÁRIO, Helena S. O ciclo épico do Corvo no Paleoasiático e o mito do desaninhador de passáros...
dois tipos de água – uma criadora, de origem celeste, e outra destruidora, de
origem terrestre. Para os bororo, que vivem nas terras baixas do pantanal, o
signo da água é um elemento extremamente familiar e tem uma conotação
de morte, de destruição. Depois da inumação do cadáver, os ossos do morto
são lavados, colocados dentro de um cesto e imersos no fundo do rio, “a
morada das almas”. Água e morte, por isso, estão sempre associados no
pensamento desses indígenas.
O chefe bororo, para vingar-se do filho, envia-o ao reino aquático das
almas de onde este teria que lhe trazer instrumentos musicais destinados a
fazer barulho (as maracas). Nos mitos, recorda-nos Lévi-Strauss, o ruído tem
o poder de evocar as uniões condenáveis, sancionadas pelo charivari, pois
acreditava-se que a algazarra era eficaz para as forças do mal. Do ponto de
vista do chefe bororo, o incesto do filho, considerado união condenável, deveria atrair uma sanção cosmológica. Ou seja, as almas do rio, avisadas pelo
ruído, encarregar-se-iam de punir o herói. A prova consistia, portanto, em
“não fazer barulho”, pois qualquer ruído implicaria em risco de morte. Graças à ajuda da avó, também desta vez o herói consegue sair-se bem da prova.
No entanto, a vingança do pai acaba atraindo a sanção sobrenatural e, no
final, ele é quem será punido e morto. Durante uma caçada chefiada pelo pai,
o filho se disfarça de veado e desempenha o papel de seu matador. Em seguida, o corpo é lançado pelo filho nas águas do pantanal, morada dos espíritos
canibais, as piranhas. São elas que se encarregam de fazer justiça com os
próprios dentes, devorando o chefe bororo.
...
Tanto o mito do Corvo, estudado por Meletínski, como o mito bororo, estudado por Lévi-Strauss, destacam um motivo comum – o incesto –
em torno do qual se articulam as duas narrativas. O incesto é o motivo que
deflagra a vingança do tio do Corvo, na primeira narrativa, assim como do
pai bororo, na segunda. A vingança, por sua vez, implica a imposição de
provas, superadas por ambos os protagonistas (o Corvo e o herói bororo).
As provas confluem para um denominador comum – as águas. Na narrativa
– 82 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 77-87, 1998.
do Corvo, as águas se manifestam em forma de dilúvio e constituem a última prova imposta pelo tio ao sobrinho. No entanto, este se salva e o próprio
tio morre.Na narrativa bororo, as águas do lago-pântano, escolhidas para a
prova final que o pai impõe ao filho, revertem em morte para o chefe bororo, também.
Na narrativa do Corvo, a simbologia do dilúvio se caracteriza por
sua dupla função: de um lado, suas águas são destrutivas porque reduzem
tudo a um estado de indiferenciação. De outro, desempenham uma função
amniótica, regeneradora, na medida em que uma nova criação se segue à
destruição. No dilúvio, o mundo desaparece e, com ele, a humanidade original e seus pecados. Surge, então, uma outra humanidade, purificada, da
qual são eliminados os maus elementos. Os sobreviventes do dilúvio – os
heróis – são imortalizados e vão assegurar a continuação da espécie. É assim que o Corvo se transforma em herói cultural e demiurgo.
Na narrativa bororo, as águas do lago-pântano, à semelhança do dilúvio, simbolizam, numa primeira instância, o caos primordial de lama e
água, maléfico e destruidor, que serve de receptáculo para o corpo do chefe
bororo morto. As águas assumem o poder de engolir, punir o pecador, “matar o morto”, abolindo definitivamente sua condição humana. Por ter desejado a morte do filho (à semelhança do tio do Corvo que aniquilou os sobrinhos e desejou a morte do Corvo) o pecado do chefe bororo incide na transgressão das normas de parentesco. Com isso, produz-se uma tensão mortífera na comunidade, uma ruptura do equilíbrio social: o sistema organizado
de mundo em que o chefe atuava como liderança tribal é rompido; a transgressão gera o mal e este terá de ser expiado.
Para restabelecer o equilíbrio perdido, o bom relacionamento da comunidade, torna-se necessário um sacrifício. E o assassinato do chefe bororo pelo filho assume as características de um ritual sacrificial. A vítima (o
pai) é consagrada e oferecida a uma força sobrenatural – os espíritos canibais das águas (as piranhas) – enquanto o filho assume o papel de ofertante
do sacrifício. Com isso, o filho se investe do papel de chefe da tribo, pois é
a este que, naturalmente, se destina tal função. O sacrifício é oferecido aos
espíritos da natureza, pois são eles os mediadores e intercessores junto ao
ser supremo o qual aprova e controla as ações humanas. A finalidade da
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NAZÁRIO, Helena S. O ciclo épico do Corvo no Paleoasiático e o mito do desaninhador de passáros...
expiação será apaziguar a ira dos espíritos canibais, sedentos de sangue,
para que estes deixem a comunidade em paz.
Neste ponto, convém abrir parênteses e reportar-se aos ritos funerários dos bororo, cerimoniais que chegam a se prolongar por trinta dias –
prazo considerado suficiente para a passagem da decomposição do cadáver
à mineralização. Nesses cerimoniais, destacam-se dois momentos importantes: uma primeira etapa, o rito da separação visa “matar o morto”, ou
seja, matar o que ainda permanece de vivo nele. Isso porque, no decorrer do
processo de decomposição, o corpo se corrompe e é considerado perigoso;
em uma segunda etapa, os ossos são exumados, lavados e transferidos para
um outro lugar, considerado “puro”. É como se o corpo em decomposição
tivesse corrompido a terra e, por isso, fosse necessária a remoção dos ossos
purificados para um local isento de impurezas. Uma vez que o cadáver é
considerado a essência da impureza que polui a “boa criação”, ele é isolado, evitando-se que sua presença contagie o processo de purificação. O
corpo é deixado num local distante, freqüentado por animais carnívoros, e
estes se tornam os seus “purificadores”, pois desembaraçam o morto da
carne putrefata.
Na lenda bororo são os espíritos da laguna (as piranhas) que vão
cuidar dos “funerais” do chefe bororo. Ao consumir as carnes do morto, se
tornam os purificadores que desembaraçam o cadáver da carne ainda não
putrefata. As carnes “enterradas” em suas barrigas cumprem, por sua vez, a
função da terra, com uma vantagem – a digestão acelera a passagem do
corpo morto para a mineralização, evitando a decomposição lenta do cadáver.
Os pulmões e os ossos do chefe morto são descartados pelas piranhas. Enquanto os pulmões, transformados em plantas, permanecem flutuando na superfície das águas, os ossos vão se depositar no fundo do lago,
que os recebe como sepultura. Conforme menção anterior, para os bororo a
água é um elemento familiar e traz a conotação de morte. Nos rituais funerários da tribo, após a exumação do cadáver, os ossos são lavados, colocados num cesto e imersos no fundo do rio, “a morada das almas”. Uma referência às crenças das tribos indígenas dos zuni e dos xesana nos revela que,
para os zuni, os ancestrais viveriam no fundo de um lago, enquanto que
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para os desana, uma região banhada em água estender-se-ia por baixo da
terra, constituindo como que um domínio uterino, considerado a origem da
vida. Os homens que se destinavam a nascer estariam ligados a esse domínio, por uma espécie de cordão umbilical. Em relação inversa, um retorno
às águas amnióticas seria considerado morte feliz.
Os pulmões do chefe bororo, transfigurados em plantas, flutuam nas
águas lamacentas do pantanal, altamente favoráveis à formação de matéria
orgânica, as hilogenias. O pulmão tem, realmente, forma de planta: uma
árvore oca, constituída de ramificações, os brônquios, e de folhas ocas também, os alvéolos. O simbolismo de uma planta, o lótus, identificava-se com
o potencial criador e gerador da vida e da própria criação; oriundo do Egito, este simbolismo é retomado pela tradição hindu: um dos deuses (Prajapati), imaginando como deveria ser a criação, viu uma folha de lótus, mergulhou e do fundo das águas trouxe lama para a superfície, espalhando-a
sobre a planta. Esta se tornou símbolo da vida que emergiu das obscuras
profundidades do caos aquático.
Assim como a reabsorção nas águas do lago-pântano (na lenda bororo), a reabsorção nas águas do dilúvio (no epos do Corvo) determina o tema
central das cosmogonias: a reintegração no indistinto, no caótico, é essencial para a formação de novas existências. No que diz respeito ao epos do
Corvo, quando as águas do dilúvio baixam, o herói se salva, pousando sobre um outeiro que se eleva sobre as águas; a partir de então, ele se investe
das funções de um demiurgo.
Neste ponto do trabalho, convém deter-se na obra de N. Cohn, Cosmos, Caos e o Mundo que Virá, na qual o autor estuda as diversas cosmogonias. A cosmogonia egípcia era imaginada como modelagem que transformava a matéria informe em um mundo ordenado; o caos era um oceano
ilimitado em meio às trevas. No interior do abismo escuro e líquido encontrava-se, em estado latente, a substância primeira a partir da qual seria formado o mundo. Em certo momento, chamado “a primeira época”, uma ilha
minúscula emergia das águas – o outeiro primordial (grifos meus): uma
terra quase submersa que em seguida surgia renovada das águas, coberta de
solo fresco e fértil. Fazia-se necessária a existência de um demiurgo para
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NAZÁRIO, Helena S. O ciclo épico do Corvo no Paleoasiático e o mito do desaninhador de passáros...
ordenar e organizar o mundo; este se manifestava justamente no momento
em que aparecia o outeiro primordial. Por isso, o demiurgo (Ptah) era também chamado “a terra que se erguia”, o que o vinculava ao outeiro primordial e ao solo que reaparecia após a inundação anual. Verificava-se nesse
relato da cosmogonia egípcia como é surpreendentemente sua semelhança
com o epos do Corvo!
Ambos os protagonistas, tanto no epos do Corvo, como na lenda
bororo, repetem um padrão de combate, seja no conflito entre o tio e o
sobrinho, seja na disputa entre o chefe bororo e o filho. Tanto o Corvo
como o filho bororo saem triunfantes, tornando-se novos chefes e heróis.
Enquanto no epos do Corvo o tio simplesmente desaparece nas águas do
dilúvio, na lenda bororo o corpo do chefe morto é oferecido pelo herói aos
espíritos da laguna, que se incumbem de desmembrar o cadáver do velho
chefe para o novo chefe instituído, separando-o em duas partes: uma delas
(os pulmões) se direciona para um local superior, a superfície das águas, a
outra (os ossos) se deposita num local inferior (o solo do lago).
Em Cosmos, Caos e o Mundo que Virá, N. Cohn destaca a importância de um mito – o mito babilônico da criação – considerado muito mais
elaborado esse que a cosmogonia tradicional. Segundo esse mito, no início
havia apenas um caos aquoso, no qual a água doce, subterrânea, se misturava à água salgada do mar (Tiamat). Nesse cenário trava-se um combate
entre o monstro do caos, Tiamat, manifestação do repouso, da inércia, e o
jovem guerreiro, representante do movimento, o deus Marduk. Este vence
Tiamat e divide sua carcaça em duas metades para com elas criar o céu e a
terra. O traço que distingue esse mito é o fato de a criação efetua-se a partir
do desmembramento de um ser primordial, derrotado após tremenda batalha, com a separação de seu corpo em duas partes. Nesse aspecto fica devidamente evidenciada a semelhança entre o mito da cosmogonia babilônica
e o mito bororo.
Se em certos momentos da comparação entre o epos do Corvo e a
lenda bororo foi possível perceber pontos de aproximação conectando os
dois mitos, em outros, delinearam-se as diferenças, sobretudo ao se considerar que vertentes cosmogônicas distintas participam de seus enredos.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 77-87, 1998.
BIBLIOGRAFIA
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Abstract: This paper will seek to establish comparisons between the epic cycle
of the Raven, studied by Eleazar Meletínski in The Paleoasiatic Mythological
Epos, and the bororo myth known as “the unsheltered birds” studied by Claude
Lévi-Strauss in The Raw and the Cooked.
Keywords: Eleazar Meletínski,The Paleoasiatic Mythological Epos, epic
cycle, Raven, Claude Lévi-Strauss, The Raw and the Cooked, bororo myth,
unsheltered birds.
O trabalho teve como motivação o curso a que assisti no Núcleo de Poética da Oralidade da
PUC, A Poética do Mito, sob responsabildade dos professores Jerusa de Carvalho Pires
Ferreira e Fernando Segolin. O curso contou com a participação especial de Eleazar
Meletínski, como professor convidado.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998.
LÊNIN, TRÓTSKI E STÁLIN
POR BULGÁKOV
Homero Freitas de Andrade*
Reumo: O presente ensaio constitui a primeira parte de um estudo sobre a
representação artística das figuras de Lenin, Trotsky e Stalin, na ficção e na
dramartugia de M. Bulgákov. Nele examinam-se ainda as relações entre
autobiografia, história e literatura na obra do escritor.
Palavras-chave: Bulgákov, Revolução Russa, Lenin.
PRÓLOGO: BULGÁKOV, A REVOLUÇÃO DE 1917
E A RÚSSIA SOVIÉTICA
Quando eclodiu a Revolução de Outubro de 1917, conduzindo os
bolcheviques ao poder, o escritor russo Mikhail Bulgákov (Kíev, 1891 –
Moscou, 1940) passava uma temporada na casa do pai de sua primeira
mulher, nos arredores de Sarátov. Tentava, a duras penas, abandonar o vício da morfina que contraíra atuando como médico no front da I Guerra. À
época, sua visão dos acontecimentos, descontando-se o fato de que a notícia da revolução bolchevique demorou cerca de duas semanas para atingir
os rincões mais distantes da Rússia e foi encarada num primeiro momento
pela maioria dos cidadãos da província como simples boato, não deve ter
sido muito diferente daquela que teve o médico Poliakóv, também viciado,
personagem da novela A morfina (1927), que acompanhou tudo “através de
uma bruma espessa”.
De família nobre, filho de um professor de teologia e de uma professora primária, Bulgákov foi criado num ambiente extremamente liberal para
*
O autor é Prof. Dr. do Departamento de Línguas
– 89 –Orientais da FFLCH/USP.
ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov.
a época. Os pais professavam e incutiram nos filhos os ideais típicos da
intelligentsia russa1 não radical do século XIX. Como membro (não militante) dessa intelligentsia, Bulgákov era um liberal democrata, que não vivia a
trovejar publicamente suas tendências ideológicas, como era costume então.
Porém, nunca foi um “monarquista roxo”, coisa de que o acusavam seus
contemporâneos de esquerda. Na verdade, durante os anos de universidade
(1909-1916), único território livre para discussões políticas e ideológicas,
sentia-se muito incomodado com as frequentes manifestações e greves estudantis que prejudicavam o andamento de seus estudos e colocavam todos os
estudantes, indistintamente, sob a mira da polícia política tsarista.
No entanto, não se pode dizer que fosse apolítico, era antes apartidário.
Simpatizante das idéias de Tolstói na adolescência e juventude condenava
os princípios da autocracia, a inexistência de um regime parlamentar e,
sobretudo, a guerra. Como médico, defendia a teoria da evolução como
fundamento das ciências naturais e humanas. Para ele, o aperfeiçoamento
da sociedade só se daria através da evolução do ser humano (animal político e social) e não pela violência e a imposição de ideologias totalitárias.
Quando da Revolução de fevereiro, saudou a vitória do ideário da intelligentsia e não lamentou a queda da monarquia, mas criticou satiricamente
as veleidades ditatoriais de Keriénski no momento em que este assumiu o
Governo Provisório2.
Após ter recebido baixa como médico no front, Bulgákov foi enviado a um pequeno hospital do zémstvo3 de Nikólskoie, na província de
Smoliénsk, onde atuou de setembro de 1916 a setembro de 1917, sendo
transferido em seguida para Viázma, onde permaneceu até fevereiro de 1918,
1
2
3
O termo designava a elite intelectual de oposição à autocracia e era formada predominantemente
por liberais, socialistas e anarquistas.
É o que se depreende pela leitura de depoimentos de familiares e amigos mais achegados. Nessa
época, Bulgákov ainda não estreara como escritor.
Espécie de assembléia com funções administrativas, constituída de representantes eleitos entre os
membros da nobreza, burguesia e agricultores. Membros da intelligentsia participavam ativamente dessas assembléias com a missão de “ir ao povo” para conhecer sua real condição de vida e
conscientizá-lo de sua situação. O sistema vigorou na Rússia desde a emancipação dos servos
(1864) até 1918.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998.
passando à reserva. De volta a Kíev natal, recuperando-se das seqüelas do
vício (crises de depressão profunda, mania de perseguição, pânico) montou
um consultório e passou a atender portadores de doenças venéreas.
A guerra civil (1918-1921) estendia-se pelo território do antigo Império. Na Ucrânia, destituída a Rada4 pelo comando alemão e substituída pelo
hetman Skoropádski, Kíev passou a ser disputada ora pelos nacionalistas,
partidários de Petliúra, ora pelos bolcheviques, ou pelos Brancos. Em agosto
de 1918 ocorria uma violenta insurreição armada: cadáveres cobriam as ruas
da cidade. Em novembro, o general do Exército Branco Deníkin, no comando da situação, ordenava a moblilização de todos os oficiais e soldados em
território ucraniano. Os irmãos de Bulgákov foram mobilizados. No início de
1919, Petliúra convocava os médicos da reserva, mas Mikhail Bulgákov, quando os Vermelhos invadiram a cidade, conseguiu escapar das fileiras do exército nacionalista. Mas não escapou à mobilização determinada pelos Brancos
em fins de setembro e foi despachado para um hospital militar em Vladikavkáz,
principal cidade do Cáucaso. Ali, aproximou-se dos círculos literários e artísticos e passou a participar ativamente da vida cultural da cidade. Jornais da
cidade e dos arredores, dos Vermelhos, dos Brancos, dos sem-partido começaram a disputar seus feuilletons5 humorísticos.
Em sua primeira “Autobiografia” (1924), um breve curriculum vitae,
ao referir-se ao início de sua carreira de escritor, ele destacava: “Certa noite
do outono já avançado de 1919, viajando num trem todo desconjuntado, à luz
de uma velinha fincada numa garrafa de querosene vazia, escrevi meu primeiro texto curto. Na cidade onde o trem me deixou, levei o conto à redação
de um jornal. Publicaram-no. A seguir publicaram alguns feuilletons. No início de 1920 abri mão de título e distinção e pus-me a escrever. Vivia numa
província distante e encenei três peças no teatro local. Mais tarde, já em
Moscou, ao relê-las em 1923, tratei de destruí-las sem demora. Espero que
não tenha sobrado nenhum exemplar por aí.”
4
5
Assembléia Nacional da Ucrânia.
Gênero literário originário da França (século XIX). Na Rússia, o gênero, geralmente de caráter
cômico ou satírico, foi amplamente utilizado na publicística por escritores como Belínski, Nekrássov,
Saltikóv-Schedrín, Anfiteátrov, Dorochévitch e outros. No início do século XX, o feuilleton foi
desenvolvido por Górki, Maiakóvski, Ilf e Petróv, Zóschenko, Bulgákov, Oliécha etc.
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ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov.
Nesse primeiro texto curto, intitulado “Perspectivas futuras”6, Bulgákov
abordava justamente questões relativas à Revolução de Outubro e aos seus
desdobramentos, chamando a atenção para os progressos da recuperação européia no pós-guerra enquanto “nossa infeliz pátria mergulha nos abismos
sem fundo da ignomínia e da calamidade, impulsionada pela ‘grande Revolução socialista’” “O que será de nós doravante?” – perguntava-se e previa
que ao cabo dos conflitos da guerra civil, caberia a todos e às gerações futuras “pagar pelo passado com um trabalho descomunal, com a dura pobreza da
vida. Pagar tanto no sentido figurado como no literal da palavra. Pagar pelos
desatinos dos dias de março e de outubro, pelos traidores da pátria, pela
corrupção, por Brest7, pelo uso das máquinas para imprimir dinheiro... por
tudo!”
Uma das principais marcas da literatura russo-soviética em formação no começo dos anos 20 é o uso da história contemporânea como material para obras de ficção e essa tendência pode ser observada na maioria dos
escritores da época, sejam eles engajados, “proletários”, popúttchiki8, ou
emigrados. As vicissitudes decorrentes do “grandioso e inolvidável ano de
1917”, as agruras da guerra civil, a desagregação da Rússia tzarista, as mudanças de costumes decretadas pelo novo regime constituem alguns dos
temas recorrentes nas obras de Bulgákov, sobretudo no romance O Exército Branco, nas peças Os dias dos Turbín e A corrida, nos contos e novelas
“Anotações nos punhos”, “Boemia”, “Eu matei”, “A coroa vermelha”, “O
fogo do khan”.
Outro traço dominante de sua poética é o autobiografismo. As aventuras que viveu como médico da roça, por exemplo, suas impressões sobre
os costumes e mazelas dos habitantes dos vilarejos e arredores foram de6
7
8
O artigo ^Uhzleobt gthcgtrnbds^ foi recuperado integralmente apenas em 1988 a partir de
fragmentos encontrados no álbum de recortes reunidos por Bulgákov na década de vinte, e conservado atualmente no Arquivo M.Bulgákov da Seção de Manuscritos da Biblioteca Lênin (Moscou). Em pesquisas posteriores, descobriu-se que fora publicado em 26/XI/1919, no jornal Uhjpysq
(Grózni) 47, de Vladikavkáz. O texto foi publicado novamente, após reiteradas recusas da imprensa especializada por considerá-lo anti-soviético, apenas em 199l.
Referência ao tratado de paz de Brest-Litóvski, assinado entre Rússia e Alemanha em 1918.
Literalmente, “companheiros de jornada”, expressão cunhada por Trótski em seu Literatura e revolução para designar os escritores não engajados porém simpatizantes do ideário da Revolução.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998.
pois utilizadas como material para a série de contos escritos de 1925 a 1926
Relatos de um jovem médico, de forte cunho autobiográfico, mas elaborados de modo a não evidenciarem essa nuance num primeiro momento.
Aliás, transformar em material literário acontecimentos reais, históricos ou pessoais, lugares públicos e privados, pessoas das relações particulares do autor e figuras públicas notórias de sua época, além de falas,
opiniões e anedotas é procedimento artístico comum na práxis poética de
Mikhail Bulgákov. No entanto ele o faz de tal modo que, apesar da existência de provas documentais, torna-se difícil perceber com nitidez até que
ponto a fantasia reveste o fato vivenciado na realidade e onde a confissão
cede lugar à fantasia. Pois quando Bulgákov metamorfoseia-se em personagem, confere-lhe somente os traços autobiográficos indispensáveis para
que ele represente sempre apenas uma das possíveis máscaras do homem e
escritor. Por isso também, talvez as diversas personagens autobiográficas
que permeiam sua obra não sejam lá muito parecidas entre si.
De qualquer modo, esse recurso, estudado no âmbito das relações
entre autobiografia, história e ficção presentes na produção bulgakoviana,
evidencia não só a necessidade do autor de colocar-se como voz dissidente
diante da univocidade exigida pela política cultural da época no tratamento
literário dos fatos da atualidade, mas também adquire valor documental
enquanto depoimento que apresenta uma versão diferenciada dos acontecimentos.
Transferindo-se para Moscou em meados de 1921, depois de enfrentar inúmeras dificuldades, Bulgákov começou a publicar seus escritos em
jornais, suplementos e revistas literárias da capital. Trabalhou durante alguns anos como folhetinista, repórter e jornalista do jornal O Apito. Seus
textos satíricos, temperados com humor sarcástico e fina ironia, trouxeramlhe o sucesso junto ao público leitor de periódicos e chamaram a atenção de
editores de revistas literárias e antologias que passaram a disputar suas
obras de ficção.
Nesses primeiros anos de Moscou, a sátira foi a arma literária utilizada por Bulgákov contra a confusão do período da Nova Política Econômica (NEP), contra o burocratismo que comandava o novo estilo de vida.
Os fatos do cotidiano eram o material por excelência para sua prática
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ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov.
publicística e ficcional. Não se limitava a descrever as situações geradas a
partir de um determinado fato, mas procurava expressar em seus textos a
sensação do homem comum ante o acontecido, reconstruir a ambiência do
momento histórico, recriando a linguagem das ruas, os modismos e os novos ícones da cultura soviética. Ridicularizou o discurso oficial e sua reprodução automática na fala do homo sovieticus. Manifestou suas próprias
impressões, vestindo a persona do narrador. Com a mesma virulência do
comunista Maiakóvski, mas como um sofredor saudosista da intelligentsia,
que sente na pele as novas contradições desse período nebuloso da história
da URSS, combateu com humor ferino a mentalidade pequeno-burguesa
renascente, a barbarização dos costumes, o banditismo, a trapaça, a especulação dos novos empresários e comerciantes, desnudando em seus escritos
os contrastes entre a aparência e a essência do fenômeno NEP. E as más
línguas da crítica não lhe davam sossego.
Entretanto, uma resolução do Comitê Central do Partido, exarada na
I Conferência Panunionista dos Escritores Proletários em 1925, conclamava
à luta contra todas as manifestações de ideologias burguesas em literatura.
A resolução não coibia a atividade dos popúttchiki, decerto porque isso
implicava um empobrecimento das qualidades artísticas da literatura em
formação. Mas a recém-nascida RAPP (Rússkaia Associátsia Proletárskikh
Pissátelei – Associação Russa dos Escritores Proletários), que reunia sob
a mesma sigla todos os agrupamentos de escritores do proletariado antes
dispersos, viu na medida a possibilidade de aumentar a pressão sobre aqueles que não pertenciam a seus quadros. Para eles criou-se o rótulo
persecutório de escritor neo-burguês. Sob ataque cerrado, popúttchiki e independentes, de vanguarda ou não, começavam a perder seus espaços. Uns
aderiam, outros silenciavam ou eram silenciados aos poucos. A censura
contribuía para aparar as diferenças e promover a “seleção natural” dos
escritores.
Os problemas de Bulgákov com a censura foram crescendo e culminaram com a apreensão em 1926 de seus diários e das novelas que escrevera após o lançamento de seu único livro publicado em vida, a coletânea de
contos e novelas Diabolíada (1925). A partir de então suas obras foram
proibidas e rompia-se definitivamente para ele um dos elos da cadeia autor– 94 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998.
obra-público. A crítica oficial classificava-o como “faxineiro literário”,
possuído de uma “velhice canina”, que era e continuaria sendo “um rebento
neo-burguês, que espirra sua baba venenosa, mas inócua, sobre a classe
trabalhadora e seus ideais comunistas”9. Impedido de publicar, Bulgákov
foi relegado enquanto escritor a uma espécie de ostracismo que ele caracterizava como “morte em vida”. Suas peças, verdadeiros sucessos de público10, foram retiradas dos repertórios dos teatros soviéticos. Seu nome desapareceu das edições subseqüentes da Enciclopédia Literária. De 1926 a
1930, quando foi admitido como encenador do Teatro de Arte de Moscou,
Bulgákov sobreviveu miseravelmente com os parcos rendimentos dos direitos autorais provenientes da publicação de algumas obras no Exterior11.
Escritor proibido, não parou no entanto de escrever. E, uma vez que
não tinha mais a censura em seus calcanhares, com total liberdade de expressão. Destacam-se dessa última fase, os romances A vida da Senhor de Molière,
Romance teatral, O Mestre e Margarida, as novelas “Um coração de cachorro”, “A morfina”, “A uma amiga secreta”, as peças A beatitude, Ivan
Vassílievitch, Adão e Eva, Molière, Dom Quixote, Batum, Os últimos dias.
Considerado sua obra prima, o romance satírico-filosófico O Mestre
e Margarida, iniciado em 1928 e terminado às vésperas de sua morte (1940),
representa a quintessência da práxis do escritor, seja no que se refere à
decantação de seu estilo e procedimentos artísticos, seja quanto ao amadurecimento de suas reflexões sobre a vida e o regime soviético, que impediam a diversidade de pensamento e a liberdade de expressão em nome das
quais combatera desde o início de sua carreira.
9
10
11
O próprio escritor deu-se ao trabalho de coletar 298 referências hostis e ofensivas à sua obra
publicadas na imprensa, que mais tarde utilizaria na redação de sua célebre “Carta ao Governo
Soviético” (1930), denunciando a impossibilidade de sobrevivência de um escritor satírico na
URSS. A carta encontra-se traduzida para o português no meu ensaio “A literatura que Stálin
proibiu” (Revista de Estudos Orientais 1. São Paulo, Humanitas, 1997; p. 40-46).
Conta-se que Stálin teria assistido cerca de 19 vezes à representação da peça Os dias dos Turbín,
que Bulgákov adaptara de seu romance O Exército Branco, para, nas palavras do próprio ditador,
“aprender como pensavam seus inimigos da intelligentsia”.
Perversamente, para demonstrar a liberdade de expressão vigente, a URSS permitia quando não
incentivava a publicação no Exterior de certas obras de autores proibidos no país, e ainda recolhia
sua parte nos direitos autorais sob forma de imposto.
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ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov.
Não é difícil perceber hoje, face aos acontecimentos que desmantelaram a URSS a partir de 1991, um certo tom profético nas obras do escritor. Aliás, pode-se dizer que esse mesmo tom perpassa toda sua obra literária, jornalística e dramatúrgica, a ponto de tê-lo transformado mais tarde, já
no final da década de 80 quando sua produção e seu nome começaram a ser
reabilitados no país dos sovietes, numa espécie de mito, por ter “profetizado” as causas que levariam ao esfacelamento da URSS.
I. LÊNIN
Se, por um lado, o leitor percebe com facilidade o que Bulgákov
pensava dos bolcheviques, através das situações ficcionais que eles vivem
e das caracterizações tipológicas que lhes dá em suas obras, já em relação
ao líder dos Vermelhos a coisa é mais complexa. Sabe-se que em público
tanto Lênin como os demais chefes, não obstante seu elevado grau de instrução e formação mas visando maior aproximação com as massas, falavam e comportavam-se com a falta de polidez e urbanidade, a rusticidade e
violência de gestos que a Revolução introduzira no cotidiano russo ao abolir as regras da etiqueta “burguesa” e substituí-las pela selvageria comportamental decorrente da guerra civil e do comunismo de guerra, ao proibir as
formas de tratamento diferenciadas e impor no lugar o továrisch (utilizado
no início apenas entre os membros do partido e os soldados vermelhos)
como única forma de tratamento possível numa sociedade que eliminara as
diferenças de classes, ao coibir o uso dos rapapés que permeavam as relações humanas na Rússia ante-revolucionária.
Esses elementos eram duramente criticados e ridicularizados por
Bulgákov nas caracterizações que fez, num primeiro momento, dos
bolcheviques em particular e, depois, dos comunistas em geral, sobretudo
os militantes do partido. Para ele, isso representava a deterioração total dos
costumes e uma nova sociedade não conseguiria sobreviver tornando norma elementos desagregadores das relações humanas. No entanto, a ridicularização da figura de Lênin é mais sutil do que a dispensada a seus liderados, beirando por vezes a ambiguidade.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998.
O conto “História de chinês”, escrito e publicado em maio de 1923
quando Lênin já se encontrava doente, insere pela primeira vez na ficção de
Bulgákov o nome do líder bolchevique. Antes ele havia aparecido apenas
em artigos e ensaios jornalísticos. No conto, um velho chinês tenta explicar
a um viajante misterioso, que “voara, feito folha seca, milhares de verstas e
fora dar às margens de um rio [Moscou] sob uma muralha corroída e
encimada de ameias [do Kremlin]”, aquele mundo novo e desconhecido
que ele mesmo não consegue entender e que lhe parece absolutamente caótico:
“Das palavras do chinês depreendiam-se desconsolo e brevidade.
Em russo, corresponderia a algo assim: pão, não. Nenhum, nada. Eu,
faminto. Para comprar, nada não. Cocaína, pouca. Ópio, não. O velho e
finório chinês ressaltou suas últimas palavras. Não tem ópio. Ópio não
tem, não tem. Pena, mas ópio não tem. (...)
“– E o que é que tem? – perguntou desesperado o viajante, dando de
ombros convulsivamente.
“– O que tem? – (...) – Frio tem. Tcheká12 prendendo tem. (...) Pinga
caseira tem.
“(...) Olhando para a muralha, o velhote balbuciou em russo:
“– Bandido tem!
(...)
Lênin tem. Chefe-mor tem. Burguês, não, oh, não! Mas Exército Vermelho tem. Tem muito. Música? Sim, sim. Música pra Lênin. Na torre do
relógio, ele lá, ele lá. Atrás da torre? Atrás tem Exército Vermelho.”13
Pergunta-se, antes de mais nada, como a censura permitiu a publicação desse conto e, ainda por cima, no suplemento ilustrado do Pravda de
Petrogrado. Como permitiu sua inclusão na antologia Diabolíada14, de 1925?
Teria cochilado? É pouco provável pois, embora ela ainda não fosse em
1923 tão rigorosa como se tornaria três anos mais tarde, estava sempre
12
13
14
Abreviatura da Comissão Extraordinária para o Combate da Contra-revolução, Sabotagem e Especulação, primeiro órgão da polícia política, que vigorou de 1917 a 1921.
Cf. ^Rbnfqcrfz bcnjhbz^, traduzido do original em russo constante do volume 1 das Obras
Completas em 5 volumes, op.cit., p.451-452.
Único livro que o autor pode publicar em vida.
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ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov.
atenta não só a eventuais críticas ao regime e à ideologia dominante, mas a
tudo que pudesse macular a imagem dos líderes da Revolução. Presume-se
então que o censor não tivesse percebido a ambiguidade intencional do
autor.
Num primeiro nível de leitura, o que se tem é a descrição da realidade factual da época. Não havia pão que chegasse para todos, o racionamento de víveres ainda estava na ordem do dia, a fome não fora totalmente
debelada, a polícia política perseguia os “inimigos do povo”, os bandidos e
os fabricantes de aguardente clandestina. A normalidade não fora restabelecida no cotidiano. Por outro lado, ícones do velho regime também tinham
sido eliminados: os vícios (ópio, cocaína), o burguês. Mantinha-se a alegria
(música) e o Exército Vermelho estava lá na fortaleza do Kremlin para
garantir a integridade do novo regime e dos cidadãos soviéticos. E de quebra havia Lênin na torre do relógio para controlar a marcha do novo tempo.
Nesse plano de leitura o escritor atendia perfeitamente às orientações da
política cultural ao denunciar as mazelas que afligiam o povo. E, ao colocar
Lênin na torre, demonstrava que o governo estava preocupado em resolver
esses problemas, mesmo que fosse preciso utilizar novamente o Exército
Vermelho. Repare-se também que Vladímir Ilitch não é tratado como personagem da narrativa, mas como herói da história recente do país, como
uma espécie de guardião da nova vida. Nada mais lisongeiro.
O segundo nível de leitura, não alcançado pela censura, remete a um
subtexto extremamente crítico e satírico, desmistificador daquela figura de
Lênin construída pelos burocratas e militantes do partido. A Revolução
eliminou o burguês. Num primeiro sentido, eliminou a possibilidade de
comércio. Ao mesmo tempo, o governo não conseguia solucionar a contento a questão da produção e distribuição de alimentos. E mais: a recém implantada Nova Política Econômica, que recuperava procedimentos do capitalismo e permitia o estabelecimento de pequenos comerciantes e a produção em cooperativas, poderia ser quanto muito um paliativo mas não a
solução para a crise, já que o Estado mantinha controle total sobre a economia e os meios de produção. Eram restabelecidos certos mecanismos típicos da economia capitalista, mas não estava previsto o ressurgimento da
burguesia e do livre mercado. Portanto, na visão do autor, a NEP enquanto
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998.
modelo para a recuperação da normalidade da vida social e a construção do
socialismo após o comunismo de guerra, do modo que vinha sendo aplicada, soava como mistificação15. Para ele, a responsável pela reordenação das
condições de vida depois de tantos sofrimentos era a própria vida, o impulso vital inerente ao ser humano.
Se não há ópio, significa que não havia meios de se acalmar as doenças
de fundo nervoso geradas pela situação de guerra e se a cocaína é pouca,
então não havia analgésico suficiente para aplacar as dores físicas. Reagindo a isso, o povo fabricava aguardente clandestina para “curar” todos os
males. Outra possibilidade conotativa remete à proibição das manifestações religiosas e do funcionamento da Igreja ortodoxa e de outros cultos
determinada justamente em 1923. Não há ópio, não há religião (“o ópio do
povo”). Ainda na clave religiosa, é significativa a entronização de Lênin na
torre do relógio, a chamada Torre do Salvador. Aqui, endeusado pelos bolcheviques como salvador da pátria, ele no entanto é alçado à condição de
falso messias, pois demonstra-se incapaz de perpetrar o milagre dos pães.
Como figura constitui o símbolo do poder supremo que se mantém pela
força das hostes do Exército Vermelho, mas como pessoa é uma espécie de
refém daqueles que o deificaram.
Em 22 de janeiro de 1924, Bulgákov registrava em seu diário, como
única anotação do dia e sem comentários adicionais, o anúncio oficial da
morte de Lênin, que ouvira do vizinho. A notícia caiu como uma bomba,
deixando a jovem república em polvorosa. Em Moscou, a situação era agravada pela onda de boatos, que gerava insegurança na população temerosa
de novas turbulências. À estupefação inicial dos cidadãos, seguiu-se a comoção generalizada, orquestrada pelo Governo e pelo Partido num suntuoso e solene funeral que durou quatro dias.
O caos que se instalou de repente no cotidiano moscovita, despertando incertezas quanto ao futuro imediato, o espetáculo fúnebre e a catarse
popular que ele desencadeou são reconstruídos por Bulgákov na reporta15
Numa série de artigos e crônicas sobre o restabelecimento das condições de vida e do cotidiano
moscovita, publicados em jornais entre 1922-1923, Bulgákov explicita mais claramente essa posição. Diga-se, também, que os comunistas mais ortodoxos condenavam a NEP.
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ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov.
gem “Relógio da morte”16 e no conto em forma de feuilleton-reportagem
“O relógio da vida e da morte”17.
Na reportagem, Bulgákov não tece nenhum comentário a respeito da
personalidade de Lênin nem de sua atuação como presidente do Conselho
dos Comissários do Povo. Trata-se de um registro seco da cronologia dos
acontecimentos e de suas interferências no cotidiano moscovita18. Lênin
aparece apenas como “o imóvel rosto amarelo conhecido de todo mundo”,
enquanto a multidão que se apertava na fila para as exéquias do líder é
comparada a “uma serpente negra”.
Já em “O relógio da vida e da morte”, o narrador faz a crônica dos
acontecimentos como alguém19 que estivesse na fila quilométrica diante da
Casa das Uniões, para prestar sua última homenagem a Lênin. O resultado
é uma mistura de conto e necrológio.
Logo no início, a epígrafe, parodiando uma notícia de jornal20, dá o
tom de solenidade próprio da situação que será narrada e introduz o leitor
no clima de comoção geral. Ao mesmo tempo, inicia a elaboração da persona
do narrador, que observará tudo na pele de um cidadão comum, figurante
de um espetáculo coletivo. Ele também, a partir da notícia, percorrerá o
mesmo caminho dos cidadãos-personagens da narrativa. Estará na longa
fila-procissão, entrará na câmara-ardente e sairá novamente para a rua, como
um anônimo na multidão.
O conto divide-se em três momentos. No primeiro e no terceiro, o
narrador capta o que se passa na praça. As vozes que ali se levantam não têm
identidade própria, servem para dar corpo à massa. Nesses dois momentos, a
16
17
18
19
20
Escrito na manhã de 24/I/1924 e publicado no jornal O operário de Baku, em 1/II/1924.
Publicado em 27 de janeiro de 1924, no jornal moscovita O apito.
Ao que tudo indica, percebendo a importância histórica da morte de Lênin, Bulgákov teria escrito
uma espécie de diário dos acontecimentos que serviu de material básico para a elaboração tanto de
“Relógio da morte” como de “O relógio da vida e da morte”.
Certamente o próprio Bulgákov, que presenciou os funerais não só como cidadão mas como escritor-jornalista atrás de assunto para suas crônicas do cotidiano.
“Na Casa das Uniões, no Salão das Colunas, está o ataúde com o corpo de Ilítch. O dia inteiro,
noite e dia, reúnem-se na praça enormes aglomerações de pessoas, as quais, fluindo em filas
intermináveis, que se perdem nas ruas e travessas vizinhas, desembocam no Salão das Colunas.
“É a Moscou operária indo prestar sua última homenagem aos restos mortais do grande Ilítch.”
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998.
multidão é personagem, e o coro de vozes disparatadas expressa a “vox populi”.
No primeiro, predomina o sentimento de estupefação diante do ocorrido. Tropas do Exército Vermelho organizam a fila para a visitação, contêm a massa
ululante, que se encontra acéfala com a morte do líder. O nome dele não é
mencionado uma única vez no conto inteiro, mas sua presença páira sobre
todos, irradia-se a partir da câmara-ardente e toma a cidade.
A onipresença do morto é tão intensa na primeira parte da narrativa,
que faz lembrar o momento da eucaristia de uma cerimônia cristã21. Não foi
um cidadão qualquer a morrer, foi o “grande homem”, o condutor dos rebanhos vermelhos. Bulgákov detecta na multidão o desejo ainda latente de se
canonizar o falecido, como se pode observar nesse breve diálogo:
“– A morte chega para todos...
“– Pense com a cabeça, o que está dizendo? Você morto, por exemplo, não faz a menor diferença. Que diferença faz, cidadão, quer me
dizer?
“– Está me ofendendo!
“– Não tive a intenção, só quero que perceba. Morreu um grande
homem, portanto, silêncio. Faça um minuto de silêncio, pense um pouco sobre o que aconteceu...”
No segundo momento, o narrador reconstrói o fausto, a solenidade
do ambiente, o silêncio que se impõe na câmara-ardente ante o corpo morto. A reconstrução é sóbria, a linguagem perde o colorido popular presente
no primeiro momento e torna-se solene, comedida, espelho da comoção
que tomava o visitante e o fazia sentir-se comungando do sentimento geral
da perda. Novamente Lênin não é nomeado. O narrador o descreve pelos
traços físicos mais característicos. Ele é apenas “o homem que a morte
condenou ao silêncio eterno”:
“No caixão sobre um pedestal vermelho jaz o homem. Ele está amarelo como cera, sobressaem as bossas da testa de sua cabeça calva. Ele
21
Bulgákov partilhava da opinião dos filósofos N. Berdiáiev e S. Bulgákov, segundo a qual o marxismo em sua vertente russa apropriou-se de uma série de colocações do cristianismo e deturpouas, prometendo a salvação e o paraíso na terra através do comunismo.
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ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov.
se cala, mas tem o semblante de um sábio, altivo e sereno. Ele está
morto. Metido num paletó cinza, e sobre o cinza uma mancha vermelha, a
Ordem da Bandeira. As bandeiras nas paredes do salão branco formam um
xadrez em negro e vermelho, negro e vermelho. Uma ordem gigantesca,
uma reluzente rosácea de ramos de luzes, e no centro dela, sobre o pedestal
repousa o homem que a morte condenou ao silêncio eterno.
“Como com sua própria palavra incitou em palavras e ações incontáveis capacetes de guardas, assim matou agora com seu silêncio as guardas
e o rio de gente que vem para o último adeus.
“A guarda está em silêncio, fuzis colados às pernas, e em silêncio flui
o rio.”
Mas esse “homem”, que incitava a multidão a segui-lo com suas palavras quando vivo22, também já não é um simples homem morto. Tornouse um símbolo dentro do cenário e do espetáculo montados com esse propósito. O líder despojado, que em vida recusara todas as honrarias e emulações, agora calado para sempre, não pode se rebelar contra aqueles que
estão decididos a endeusá-lo, a fazer de sua imagem um elemento catalisador
das massas.
Tudo fora cuidadosamente preparado de modo a tornar imediata ao
visitante a associação do homem vivo ao ícone em que o transformaram
depois de morto: a gigantesca rosácea iluminada com seu ataúde no centro,
as bandeiras vermelhas enlutadas e, ironia das ironias, a Ordem da Bandeira Vermelha em seu peito23.
22
23
Há indicações de que o segundo parágrafo do trecho citado tenha sido escrito por recomendação
expressa do comitê de censura do jornal em que o escritor trabalhava (O apito).
Era conhecida de todos a aversão que Lênin demonstrava pelos galardões. Ele mesmo se recusara
a receber em vida qualquer uma das condecorações outorgadas pelo novo regime. E isso era alardeado aos quatro ventos como exemplo de despojamento pessoal, de dedicação desinteressada e
absoluta à causa. Fazia parte da imagem pública do chefe. No entanto, o cadáver aparece com a
Ordem da Bandeira Vermelha no peito. Esse mistério intrigaria a todos por um bom tempo e
motivaria uma série de estudos de sovietólogos a respeito. Finalmente, mais de cinquenta anos
depois da morte, “descobriu-se” que a fita pertencia ao administrador do Conselho dos Comissários do Povo e fora alfinetada à indumentária do finado, com a intenção óbvia de demonstrar,
simbolicamente, que a morte do líder não representava qualquer possibilidade de ruptura na estrutura do poder. Afinal, corriam tantos boatos desde que Lênin adoecera...
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998.
A Ordem constituía um gesto de desrespeito à vontade do falecido, à
sua postura política, mas prenunciava o tipo de uso que fariam de sua imagem no futuro. Com esse gesto, ele passava de mentor intelectual e condutor do processo revolucionário à condição de chefe espiritual da URSS. E
Bulgákov parecia estar sempre pronto a desmascarar os indícios de manipulação da figura de Lênin, a demonstrar que o homem se tornara uma
espécie de prisioneiro da imagem que dele construiam. Tanto que inicia sua
narrativa a partir do relógio da Torre do Salvador, lugar onde o entronizara
na “História de chinês”. E vai mais longe, no parágrafo com que encerra a
descrição do espetáculo fúnebre:
“Tudo está claro. Vão acorrer até este ataúde durante quatro dias
através do frio de rachar que faz em Moscou, e depois no decorrer dos
séculos através dos longínquos caminhos das caravanas dos desertos
amarelos do globo terrestre, lá, onde outrora, antes ainda do nascimento
da humanidade, brilhava sobre o berço d’Ele a estrela que não se apaga.”
O trecho, enigmático para um leitor da época, antecipa o caráter
religioso de que se revestiria o culto à personalidade de Lênin durante a
existência da URSS. Mas, então, nada disso estava claro, a despeito do que
afirma o narrador. Ainda sequer tinham pensado em construir um mausoléu
próximo à Torre do Salvador e muito menos em transformar o corpo de
Lênin em relíquia, expondo sua múmia à veneração pública.
Lênin torna-se a aparecer como personagem da ficção bulgakoviana
no conto “Reminiscência...”, escrito também em 1924 e publicado no jornal O Ferroviário. O conto, elaborado a partir de materiais autobiográficos, ironiza a tendência da imprensa na época a publicar reminiscências,
depoimentos e similares a respeito de Lênin24:
“Muita gente, muita gente mesmo possui reminiscências ligadas a
Vladímir Ilítch, e eu também tenho uma. É tão forte que livrar-me dela eu
24
Essa tendência, como não podia deixar de ser, era uma orientação da política cultural vigente e
visava a formação de uma fortuna rememorativa do líder. No entanto, apareceram inúmeros textos
de pessoas que jamais tinham tido qualquer contato com Lênin, que sequer o tinham visto pessoalmente.
– 103 –
ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov.
não posso... Afinal, livrar-me como, se toda noite, mal as sanfonas de
canos cinzas irradiam o calor e uma onda agradável vai enchendo o quarto, vêm-me à lembrança tanto a folha amarela de meu inesquecível requerimento quanto a katsavéika25 surrada de Nadiéjda Konstantínovna26?...”
Na verdade, a reminiscência de Bulgákov está ligada à mulher de
Lênin, que lhe arranjara acomodação quando de sua ida para Moscou em
1921. O governo não conseguia solucionar a questão da moradia, sobretudo após ter decretado que cada cidadão tinha o direito de ocupar, no mínimo, onze metros quadrados de espaço para morar. Famílias inteiras, quando não várias famílias, amontoavam-se num mesmo cômodo exíguo das
recém-instituídas habitações coletivas. A ironia corre solta na voz do
narrador ao retratar os percalços que marcavam o cotidiano miserável do
cidadão moscovita às voltas com problemas de acomodação e outros logo
ao término da guerra civil. E atinge o clímax, beirando o ridículo, quando o
narrador revela que sua reminiscência sobre Lênin é produto de um sonho:
“Acendi à noite um círio nupcial grosso e espiralado em ouro. A
eletricidade fora cortada há uma semana já, e meu amigo pusera em uso
as velas à luz das quais sua tia entregara o coração e a mão ao tio. A vela
chorava lágrimas de cera. Desdobrei uma grande folha de papel em branco
e pus-me a escrever algo que começava com as palavras: Ao Presidente
do Conselho dos Comissários do Povo Vladímir Ilítch Lênin. Escrevi
de um tudo naquele papel: como arranjara emprego, que ia sempre ao
Departamento de Habitação, que ficava a ver estrelas a duzentos e
dezessete graus negativos no alto da igreja do Salvador, e que me gritavam:
“– Pode bater suas asinhas como um pato.
“Nessa noite negra de carvão, em pleno frio (o aquecimento também não funcionava), adormeci estirado no sofá imundo e sonhei com
Lênin. Ele estava sentado em sua poltrona atrás da escrivaninha, dentro
do círculo de luz das lâmpadas, e olhava para mim. Eu também estava
sentado numa cadeira, com minha peliça curta, e contava-lhe sobre as
estrelas na alameda, sobre o círio nupcial e o presidente.
25
26
Casaco feminino curto em forma de bata (N. do T.).
Nadiéjda Konstantínovna Krúpskaia Uliánova (1869-1939), mulher de Lênin (N. do T.).
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998.
“– Pato eu não sou, não, pato não, Vladímir Ilítch.
“Lágrimas corriam copiosamente de meus olhos.
“– Ora...ora...ora... – respondia Lênin.
“Daí pegou no telefone.
“– Dê-lhe uma ordem para habitação coletiva com seu companheiro. Para que fique lá no quarto escrevendo versos sobre estrelas e outras
tolices que tais. (...)”
No sonho, Lênin aparece como numa fotografia de larga circulação à
época. Ou seja, o narrador não sonhou com Lênin, e sim com uma das
imagens do líder, que eram divulgadas oficialmente. A foto original mostra
Lênin em seu gabinete de trabalho no Kremlin, o semblante sério mas afável. Porém, o narrador retocou essa imagem fotográfica, acrescentando-lhe
uma auréola de luz como num ícone. No entanto, o “santo” dos bolcheviques
reage no sonho como ser humano, comove-se diante do desespero do cidadão-escritor que não tem onde morar. E age quase como um deus, resolvendo um problema que ninguém mais podia resolver.
Depois dos quatro textos aqui abordados, todos de 1924, Lênin não
voltaria a ser personagem de Bulgákov, pelo menos não diretamente. Entretanto, traços característicos de Lênin foram ainda utilizados na construção
da tipologia da personagem principal da novela “Os ovos fatais”27.
Nessa novela fantástica, o zoólogo e professor Vladímir Ipátievitch
Pérsikov descobre o “raio vermelho da vida”. Mas sua descoberta leva à
criação involuntária de monstruosos répteis, que se tornam uma ameaça à
humanidade. Esse raio vermelho e as desgraças decorrentes de sua utilização irresponsável simbolizam a revolução socialista na Rússia, que se iniciou sob o signo da construção de um futuro melhor e foi dar no terror e na
ditadura. É como se Bulgákov tivesse pressentido que a experiência socialista, devido às mazelas que acabou gerando, não chegaria a bom termo.
As relações entre Pérsikov e Lênin são sugeridas logo no primeiro
capítulo da novela, “O curriculum vitae do Professor Pérsikov”. Pérsikov
nasceu em 16 de abril de 1870, no mesmo mês e ano do nascimento de
27
Há tradução para o português em O diabo solto em Moscou (para um estudo da obra de Mikhail
Bulgákov no Brasil), v. II; p.53-121 (Cf. Bibliografia).
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ANDRADE, Homero Freitas de. Lênin,Trótski e Stálin por Bulgákov.
Lênin. Por outro lado, a ação da novela começa no dia 16 de abril de 1928,
dia e mês da volta do líder bolchevique à Rússia em 1917. No dia seguinte
à sua chegada, Lênin apresentou as Teses de Abril, que conclamavam à
revolução socialista. Segundo depoimentos de contemporâneos, Bulgákov
considerava a chegada de Lênin e as Teses de Abril como um marco importante no caminho da Rússia para a Revolução de Outubro.
Traços físicos e gestuais de Pérsikov, certos tiques e peculiaridades
de pronúncia lembram Lênin: “Uma cabeça digna de nota, em forma de
pilão, calva, com tufos de cabelos amarelados, que se eriçavam nas têmporas. (...) olhinhos brilhantes, miúdos, e ele era alto, encurvado. (...) ao falar
algo em tom convicto e sentencioso, transformava o dedo indicador da mão
direita num gancho e apertava os olhinhos. E como sempre falava em tom
sentencioso, pois que em seu campo era de uma erudição absolutamente
fora do comum, o gancho aparecia sempre diante dos olhos dos interlocutores do professor Pérsikov”. Como Lênin, o zoólogo também tinha dificuldade de pronunciar certos fonemas, tanto que o repórter que o entrevistou sobre a descoberta do raio vermelho entendeu que seu nome era Pévsikov.
Mas Lênin não é o único que serviu de protótipo a Pérsikov. Além da
“figura do zoólogo do Museu de Zoologia de Moscou (e até 1911 professor
de zoologia da Universidade de Kíev), Alekséi Nikoláievitch Seviértsov, o
qual Bulgákov conhecia e cuja casa frequentou algumas vezes”, como afirma a biógrafa do escritor M. Tchudakóva28, Pérsikov teria sido inspirado
também no biólogo e patologista Alekséi Ivánovitch Abrikóssov29, que autopsiou o corpo de Lênin e extraiu-lhe o cérebro.
O próprio nome de Pérsikov, Vladímir Ipátitch (na forma apocopada),
aproxima-se sonoramente de Vladímir Ilítch. E não só: o patronímico Ipátitch,
como infere o estudioso B. Sokolóv30, “alude, possivelmente, ao fato de que
na casa Ipátieva, em Ekaterinburg, foram executados por ordem de Lênin a
família dos Románov e o último imperador da Rússia Nicolau II”. Também a
“erudição absolutamente fora do comum”, que distingue a personagem, é
28
29
30
Cf. :bpytjgbcfybt Vb[fbkf <ekufrjdf (Uma biografia de Mikhail Bulgákov), p. 242-243.
O sobrenome Pérsikov é uma paródia de Abrikóssov.
Cf. pywbrkjgtlbz <ekufrjdcrfz (Enciclopédia bulgakoviana), p. 258.
– 106 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 89-108, 1998.
comparável a de Lênin, tão louvada por seus contemporâneos. Finalmente,
numa última alusão, Bulgákov acrescenta depois do final da novela a indicação “Moscou, outubro de 1924”, que corresponde ao ano da morte de
Lênin e ao mês da Revolução bolchevique.
Já em O Mestre e Margarida não são mais os traços característicos
de Lênin a servirem de protótipo à composição das personagens. O que
ocorre no romance é a parodização de alguns episódios da biografia do
líder, e algumas características de Woland, o demônio prestidigitador que
revira Moscou de pernas para o ar como Lênin e a Revolução de Outubro
reviraram a Rússia, podem ser associadas à sua figura através dessa caracterização indireta. O mefistofélico Woland é tomado por um espião dos
alemães tal como Lênin o fora pelo Governo Provisório após a Revolução
de Fevereiro.
Outro exemplo remete ao episódio em que o cão Tuzbuben ajuda a
polícia a procurar Woland e seu séquito após o escândalo que este promoveu com seus números de magia negra no Teatro de Variedades. Foi encontrado no arquivo de Bulgákov, como informa Sokolóv, um recorte do Pravda,
de 7/XI/1921, intitulado “Lênin na clandestinidade”, no qual se afirma que
no verão e no outono de 1917 cães da polícia foram postos no encalço do
líder dos bolcheviques, então muito bem escondido. Como a polícia e a
matilha, tendo à frente Trief, o mais bem treinado entre os cães, não encontraram Lênin em 1917, assim os policiais e Tuzbuben não acham nem rastro de Woland.
Se Bulgákov disse o que pensava de Lênin somente em suas obras
literárias e ainda assim através de metáforas – não há registro de que tenha
emitido sua opinião sobre o líder em discussões públicas ou em conversas
particulares –, o mesmo não aconteceu em relação a Trótski e a Stálin.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, H. F. de – O diabo solto em Moscou (para um estudo da obra de Mikhail Bulgákov
no Brasil). São Paulo, Tese de Doutorado em Teoria Literária, FFLCH/USP, 1994; 2 vv.
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Djcgjvbyfybz j Vb[fbkt <ekufrjdt (Reminiscências sobre Mikhail Bulgákov). VjcrdfCjdtncrbq Gbcfntkm- 1988=
RBHBKTYRJ- R= (KIRÍLENKO, K.) – ^Celm,f kbnthfnehyjuj yfcktlbz V= F= <ekufrjdf^
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CJRJKJD- <= (SÓKOLOV, B.) – zywbrkjgtlbz <ekufrjdcrfz (Enciclopédia bulgakoviana).
Vjcrdf- Kjrbl_Vba- 1996=
XELFRJDF- V= (TCHUDAKÓVA, M.) – :bpytjgbcfybt Vb[fbkf <ekufrjdf (Uma
biografia de Mikhail Bulgákov)= Vjcrdf- Rybuf- 1988=
________ ^Vb[fbk <ekufrjd b Hjccbz^ (“Mikhail Bulgákov e a Rússia”), in Kbnthfnehyfz
Ufptnf (Gazeta Literária) n. 19, 15/V/1991; c= 1- 11=
Abstract: The following text is the first part of a study about the literary
representation of Lenin, Trotsky and Stalin in the work of the russian writer
Mikhail Bulgakov.
Keywords: Bulgakov, Lenin, Russian Revolution.
– 108 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 109-120, 1998.
O
SISTEMA DE ESCRITA DA LÍNGUA JAPONESA
E ALGUNS ASPECTOS DA SUA HISTÓRIA
Junko Ota*
Resumo: O presente artigo tem como objetivo descrever o atual sistema de
escrita adotado pelos japoneses e abordar alguns aspectos das letras que
contribuíram historicamente para a formação desse sistema.
Palavras-chave: língua japonesa, história da escrita, ideogramas chineses, fonogramas.
1. O SISTEMA
ATUAL DE ESCRITA JAPONESA
É possível afirmar que o atual sistema de escrita da língua japonesa
pressupõe dois sub-sistemas, uma vez que é constituído de:
a) ideogramas chineses, comumente chamados de kanji “letras da dinastia
Hang”, com as leituras chinesa e japonesa, e
b) dois tipos de fonogramas, hiragana e katakana.
Os fonogramas ou silabários representam o som silábico, cada letra
representando o som de uma vogal ou da junção de uma consoante e uma
vogal, o que os distinguem essencialmente dos ideogramas que representam um conceito, uma idéia, cuja leitura pode ser chinesa ou japonesa.
Usam-se hoje 46 de cada um dos fonogramas e suas combinações, e por
volta de dois mil ideogramas para escrever o japonês. Esses dois sistemas
de escrita totalmente diferentes coexistem hoje na língua japonesa, como
resultado da evolução e também da permanência dos ideogramas chineses
introduzidos no Japão.
*
A autora é Profa. Dra. do Departamento de–Línguas
109 – Orientais da FFLCH/USP.
OTA, Junko. O sistema de escrita da língua japonesa e alguns aspectos da sua história.
Há, no mundo, poucas línguas que possuem tal complexidade, podendo-se estabelecer correspondência com a língua coreana na Coréia do
Sul, onde se tem adotado a escrita mista de fonograma hangul e ideogramas
chineses, porém a política lingüística atual do país parece ser a de usar cada
vez mais o hangul, substituindo-se gradualmente os ideogramas chineses,
diferentemente do Japão, que tem optado pela manutenção do seu uso.
Porém, não se usam hoje no Japão todos os ideogramas chineses
existentes. O maior dicionário de ideogramas, Daikanwa Jiten “Grande
Dicionário de Ideogramas Chineses/Japoneses”, do lingüista japonês Tetsuji
Morohashi, compilado em 1959, registra 49.964 caracteres no total, incluindo as variantes de todos os caracteres que existiram até então. De fato,
existiu a preocupação de se restringir o número de ideogramas em uso já
em 1923, quando o Ministério de Educação instituiu pela primeira vez o
Quadro de Ideogramas para Uso Comum, e seguidamente em 1942, mas
nenhum quadro foi colocado em prática devido aos incidentes do terremoto
e da guerra. O primeiro quadro que realmente foi instituído foi o Quadro de
Ideogramas Atuais, Tôyô Kanjihyô, em 1946, estabelecendo 1.850 caracteres
que incluíam os 881 para ensino obrigatório no primeiro ciclo.
O Quadro de Ideogramas Usuais, Jôyô Kanjihyô, atualmente vigente, foi instituído em 1981 pelo Ministério de Educação para servir de
parâmetro na restrição do uso geral de ideogramas em textos oficiais e nos
meios de comunicação, e contém 1.945 caracteres, sem contar os 166 para
uso em nomes próprios. Dentro desse Quadro, 996 são ensinados no
1º ciclo do ensino obrigatório, do 1º ao 6º ano do primário do Japão.
Os ideogramas utilizados no Japão são majoritariamente chineses,
mas há também aqueles criados pelos próprios japoneses, chamados “letras
vernáculas”, kokuji, sobretudo para representar o léxico referente às espécies da fauna e da flora inexistentes na China.
Dentro do sistema de escrita japonesa, os ideogramas são na sua
maioria associados a dois tipos de leituras: um, de origem chinesa adaptada
ao sistema fonológico japonês e outro, da tradução japonesa de conceitos
representados por ideogramas. A leitura (de origem) chinesa é usada predominantemente quando ocorre a combinação de dois ou mais caracteres
– 110 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 109-120, 1998.
na expressão de um determinado conceito. A leitura japonesa de ideogramas ocorre predominantemente quando o ideograma é usado para escrever
os termos de origem japonesa, podendo ser encontrada, por exemplo, nas
raízes de verbos e adjetivos.
Enquanto os ideogramas desempenham um papel fundamental no léxico devido à carga informacional neles contida, o fonograma hiragana, por
sua vez, representa as partes essenciais da estrutura frasal japonesa: os
morfemas indicadores de sujeito, objetos direto e indireto, lugar, tempo etc.
que ocupam a farte final de cada unidade sintática, além de expressões de
negação, polidez, passado, volição, que se posicionam na parte final da frase.1 Ainda, as desinências flexíveis de verbos são sempre escritas em hiragana.
Outro fonograma, o katakana, representa os empréstimos de línguas
ocidentais e os nomes estrangeiros, a maioria das expressões onomatopaicas,
além de ser utilizado na substituição de termos usualmente escritos em outras letras, enquanto recurso estilístico.
No Japão, adota-se hoje o sistema de escrita que usa juntamente os
ideogramas e os fonogramas hiragana e katakana, constituindo o “texto
misto de ideogramas e fonogramas” (kanji kana majiri bun), embora se
faça também uso de outras letras, como as de alfabeto romano. Há quem
afirme, no entanto, que o hiragana e os ideogramas assumem um papel
fundamental, como por exemplo Satake (1988). O teórico emprega o nome
de “texto misto de ideogramas e hiragana” (kanji hiragana majiri bun),
excluindo o fonograma katakana. Ele considera a relevância do hiragana
sobre o katakana dentro da frase, pois aquele representa elementos gramaticais e modais, enquanto este se limita a representar palavras de origem
ocidental e expressões onomatopaicas. Mas, na nossa opinião, não é desprezível o número de estrangeirismos que tem aumentado sobretudo após a
segunda guerra mundial que, apesar da alta rotatividade, tem marcado sua
presença dentro do léxico da língua japonesa.
Apresentamos, a seguir, um exemplo contendo ideogramas e fonogramas:
1
A estrutura frasal da língua japonesa constitui-se de SOV (sujeito+objetos+verbo), contrastandose com a estrutura da língua chinesa que apresenta a ordem de SVO (sujeito+verbo+objeto).
– 111 –
OTA, Junko. O sistema de escrita da língua japonesa e alguns aspectos da sua história.
Restoran-de / nihongo-no / sensei-o / mi-mashi-ta.
(restaurante-LOCAL/japonês-GENITIVO/professor-O.DIRETO/verPOLIDEZ-CONCLUSIVO)
“Vi o professor de japonês no restaurante”
Os ideogramas, que expressam noções e idéias, representam no exemplo citado o substantivo nihongo “língua japonesa”, sensei “professor” e a
raiz do verbo miru “ver”.
O fonograma hiragana grafa elementos considerados relacionais, como
morfemas que indicam a relação sintática dos elementos constituintes da oração, tais como o de indicando lugar, no indicando o caso genitivo e o de
acusativo, bem como os morfemas de polidez mashi, de ação conclusa ta etc.
O katakana, por sua vez, é empregado para escrever palavras de origem estrangeira, principalmente ocidental, como resutoran, proveniente do
inglês restaurant.
Há uma divisão clara de papéis entre os ideogramas – representando
conceitos e noções em termos de origens japonesa e chinesa – o hiragana –
indicando funções sintáticas e elementos modais, e o katakana – representando termos de origem ocidental e onomatopéias.
As formas das letras se distinguem pelo maior grau de complexidade
dos traços nos caracteres chineses e dentre os fonogramas, o hiragana se
caracteriza por seus traços arredondados e o katakana, por seus traços angulosos. Apoiado nessas características próprias de cada tipo de letra, o
texto, em seu conjunto, constitui uma organização de diferentes tipos de
escrita, cada um com suas convenções. É justamente essa variedade visual
existente no texto que dispensa a separação entre um termo e outro, ou seja,
wakachigaki “separação de escrita” (Nomura: 1975).
Uma pesquisa realizada em 1971 com jornais japoneses mostra que
os ideogramas ocupavam 46,1% da totalidade de ocorrência, o hiragana
35,3% e katakana 6,1%, sendo que o restante foram alfabeto romano, numerais e símbolos (Kyôdô Tsûshinsha: 1971, apud Okimori: 1997), e acreditamos que o quadro não tenha sofrido grandes modificações até hoje.
– 112 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 109-120, 1998.
O texto em japonês é tradicionalmente escrito no sentido vertical
mas, hoje, encontram-se também os escritos em linhas horizontais, principalmente em documentos e nos textos científicos com fórmulas contendo
algarismos arábicos ou exemplos grafados em alfabeto romano.
O sistema de escrita, inexistente no início da civilização japonesa,
começou a tomar forma com a introdução dos caracteres chineses no Japão
e, desde então, sofreu inúmeras modificações ao longo dos séculos, até
chegar ao estado atual.
2. A INTRODUÇÃO DA ESCRITA NO JAPÃO
E SUAS TRANSFORMAÇÕES
A introdução dos ideogramas chineses no Japão foi certamente uma
conquista importante e um marco na história do país, que até o século IV
desconhecia a escrita. A primeira transmissão da escrita chinesa parece ter
ocorrido entre séculos IV e V, através das inscrições em empunhaduras de
espadas e espelhos de cobre trazidos da China. Livros chineses sobre filosofia e traduções chinesas de doutrinas budistas escritas originalmente em
sânscrito foram trazidos ao Japão por volta dos séculos V e VI, e estudados
pelos japoneses.
Acredita-se que foi por volta desse período que os japoneses, eles
próprios, passaram a estudar a escrita chinesa, reproduzindo textos em chinês na sua fase inicial. Mas entre as línguas chinesa e japonesa há diferenças muito grandes: a primeira é uma língua tonal, isolante e com a estrutura
frasal SVO, e a segunda, uma língua predominantemente atonal, aglutinante e com a estrutura SOV.
Não obstante as diferenças existentes entre as duas línguas, e mesmo
com muitos dos primeiros escritores desconhecendo a fala chinesa, deu-se,
no Japão do século VII, início à tradição da escrita de textos em chinês
(kanbun), que teve continuidade, com maior ou menor variação, por muitos
séculos até o fim do século XIX, antes da Revolução Meiji. Até o início do
período Meiji, os japoneses, ainda voltados para a cultura milenar chinesa e
inspirando-se nela cultural e filosoficamente, tinham a consciência de que o
– 113 –
OTA, Junko. O sistema de escrita da língua japonesa e alguns aspectos da sua história.
texto marcado pelo tom formal ou oficial deveria ser escrito em estilo chinês.
Atribui-se, ainda, ao conhecimento profundo da língua chinesa dos japoneses a facilidade com que se traduziram termos ocidentais na adequação aos
novos tempos por ocasião da Revolução Meiji, quando se introduziu uma
profusão de informações do Ocidente, um mundo até então desconhecido.
O contato com a língua chinesa propiciou a prática de se escrever em
chinês – foi o caso do registro histórico Nihonshoki, compilado sob ordem
imperial em 720, e do registro Kojiki, compilado em 712, este já escrito em
chinês com algumas adaptações (junkanbun). Mas escrever utilizando
ideogramas chineses não era trabalho fácil, como registra Ôno Yasumaro
no prefácio da obra Kojiki:
“Entretanto, é um tempo antigo, todas as palavras e os significados
são simples e expressar-se em frases e montar os versos utilizando-se das
letra56 é deveras difícil. Escrevendo tudo através do estilo japonês57, não
coincidiriam as palavras e os sentidos58 e, escrevendo tudo através do estilo chinês59, a narrativa dos fatos tornar-se-ia deveras longa.”
56 Isto é, expressar-se por escrito por meio dos ideogramas chineses.
Estilo japonês, literalmente “leitura pelo significado”, é a utilização do ideograma chinês no seu aspecto semântico.
57
Isto é, não haveria coincidência dos significados dos ideogramas
com o das palavras antigas em japonês.
58
59 Estilo chinês, literalmente “leitura pelo som”, é a utilização do
ideograma chinês com o aproveitamento apenas de seu caráter fonético.
(de Kojiki, tradução e notas de Mietto: inédita)
A ORIGEM DO FONOGRAMA HIRAGANA
Ao longo do exercício árduo de se escrever em letras estrangeiras, os
japoneses passaram primeiramente a escrever os nomes próprios japone– 114 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 109-120, 1998.
ses, utilizando caracteres chineses. Para tanto, fizeram uso de ideogramas
levando em conta apenas o som atribuído a cada um deles, sem considerar
o conceito associado. A primeira inscrição que atesta tal fato data do ano
471, na espada encontrada na província de Saitama.
Posteriormente apareceram as frases inteiras escritas em japonês. As
citadas obras Nihonshoki e Kojiki continham poemas compostos segundo a
sintaxe japonesa, aproveitando os ideogramas chineses como fonogramas,
ignorando-se portanto os conceitos a eles associados. Aparecem então os
morfemas, indicando funções gramaticais próprias da língua japonesa, representados pelos mesmos ideogramas.
Mas foi na antologia poética Man’yôshû, considerada a primeira obra
literária japonesa, compilada em 759, que se vêem registrados poemas predominantemente escritos em sintaxe japonesa com o aproveitamento apenas da parte fonética dos ideogramas. A alta incidência dos ideogramas
utilizados para representação como fonogramas nessa obra deu-lhes a denominação de man’yôgana, literalmente “fonograma Manyô”. Essa representação fonogramática de ideogramas tem seus precedentes na própria
língua chinesa, em sua utilização para a transcriçao de nomes próprios estrangeiros e de orações em sânscrito.
Porém, o uso do man’yôgana acarretava alguns problemas:
a) a correlação som/letra tornava a escrita extensa demais, como já havia
apontado com precisão Ôno Yasumaro no prefácio de Kojiki, uma vez
que cada som deveria ser representado por um ideograma;
b) a escrita era trabalhosa porque cada ideograma possui vários traços;
c) a apreensão imediata do significado dos termos tornava-se bastante prejudicada, devido à utilização de ideogramas originariamente portadores
de conceitos.
Assim, a partir do man’yôgana que foi escrito em forma cursiva,
desenvolveu-se na sociedade aristocrática de por volta do século IX o
fonograma hiragana, que se manifestava nos diários, cartas e poemas trocados pelos nobres entre si. Usava-se predominantemente a grafia hiragana,
com alguns poucos ideogramas, buscando-se um efeito estilístico pela harmonia das letras de diferentes tamanhos, com inclinações diversas, pela
– 115 –
OTA, Junko. O sistema de escrita da língua japonesa e alguns aspectos da sua história.
utilização do claro e o escuro da caligrafia a nanquim, além do cuidado
com a escolha do papel.
Com relação a textos em prosa, havia no Japão, até o fim do século
VIII, diferentes tipos de textos: em chinês autêntico; em chinês com algumas adaptações para a sintaxe japonesa; em japonês, porém com man’yôgana
(os ideogramas utilizados como representação de som); e ainda, um tipo de
texto chamado senmyô, em que os ideogramas em tamanho maior representavam os conceitos próprios, e os ideogramas em tamanho menor eram os
man’yôgana. O texto de estilo senmyô era usado para ordens imperiais e
orações para rituais xintoístas e supõe-se ser a forma que deu origem ao
atual sistema de escrita, uma vez que os man’yôgana passam a ser substituídos pela sua forma cursiva, o hiragana.
A ORIGEM DO FONOGRAMA KATAKANA
Outro fonograma, o katakana, são letras formadas de partes de
ideogramas, tendo sido criado também por volta do século IX pelos monges e nobres letrados. A origem do katakana é atribuída a anotações inseridas
em textos chineses para facilitar sua leitura/tradução.
A diferença sintática existente entre as duas línguas fez com que os
monges e nobres japoneses, estudiosos de sutras budistas e de textos chineses, desenvolvessem um sistema de leitura chamado kanbun kundoku2 “leitura japonesa do texto chinês”, para adaptar o original chinês à leitura ou
tradução em japonês, a língua-alvo. Os materiais existentes indicam que no
Japão, desde o século VIII até o século XIV, praticava-se a leitura japonesa
dos textos chineses por esse sistema de kanbun kundoku. É um método de
leitura voltado ao processo de tradução, com certas adaptações, pois visa a
apoiar-se no texto em chinês autêntico. Com a finalidade de facilitar a lei2
Segundo Kindaichi (1995), o sistema de leitura do texto chinês em língua do país existiu também
em outras línguas que tiveram contato com a cultura chinesa, como o coreano, uygur(língua falada em Uygur, atual região noroeste da China) e vietnamita. O modo de leitura diferia ligeiramente
de uma língua para outra.
– 116 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 109-120, 1998.
tura, os monges e estudiosos de textos chineses escreviam nas entrelinhas
os man’yôgana, só representando o som, que foram posteriormente substituídos por pontos e sinais marcados ao redor dos caracteres do texto principal ou sobre os mesmos. A marcação desses sinais era feita ora com pó
branco (gofun) ora com tintas de cor vermelha, preta, azul anil, verde, ou,
em alguns casos especiais, era feita mediante riscos no papel, utilizando
objetos rígidos como marfim, chifre, bambu e outros.
Havia diferentes formas de adaptação para a leitura/tradução do chinês para o japonês. Como a seqüência sintática do chinês difere da do japonês, os estudiosos inseriam numerais ou sinais de inversão, chamados
kaeriten “pontos de inversão”, indicando que a ordem de determinada parte
da oração deve ser invertida, para facilitar a leitura. O símbolo era colocado ao lado esquerdo superior do trecho onde deveria ocorrer a inversão,
que valia tanto para unidades sintáticas ou partes da oração. Assim, por
exemplo:
a) a locução [não √ ler] em chinês, com sinal de inversão no meio, será lido
[ler não], de acordo com a regra gramatical japonesa; e
b) as unidades sintáticas [Eu estudo 2 os textos chineses 1] em chinês, que
será lido em japonês:[ Eu os textos chineses estudo], seguindo a orientação dos numerais.
Apresentamos a seguir um trecho de texto chinês (kanbun) com a
inserção de numerais citados no item b:
n. 2
n. 1
– 117 –
Fonte: Bunkachô (org. 1985)
OTA, Junko. O sistema de escrita da língua japonesa e alguns aspectos da sua história.
Uma outra adaptação consistia em escrever as letras denominadas
kanaten, nas entrelinhas do texto chinês, para indicar os morfemas próprios
da língua japonesa. Eram utilizados man’yôgana, sua forma cursiva hiragana
e katakana, com a predominância deste.
Outra adaptação era a inserção de sinais chamados okototen (são
pontos, linhas retas, cruzadas, círculos, tais como: . – | \ / O ^ + ), que se
convencionou para indicar morfemas do japonês, a língua-alvo, porém
inexistentes na língua-fonte. Esses sinais, em cores diferentes da do original, eram aplicados ao redor dos ideogramas, ou seja, em determinada parte
da margem quadrada que cerca os ideogramas ou, em alguns casos, até
sobre as letras, como por exemplo, no centro do quadrado.
Apresentamos um trecho do comentário sobre o sutra Amida-kyô,
com okototen, marcado com as bolinhas claras ao redor dos ideogramas:
Os pontos de okototen indicavam ora morfemas indicadores de função
sintática, ora morfemas flexíveis indicando passado, negação, polidez, suposição etc., verbos auxiliares e de tratamento, entre outros. As aplicações de
okototen tiveram sua fase de pleno uso em séc. VIII a XII e depois começam a
– 118 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 109-120, 1998.
declinar, tendo sido completamente substituídos por kanaten por volta do século XVII, quando as técnicas de impressão já estavam desenvolvidas.
Juntamente com os textos chineses marcados pelas anotações, diferentes tipos de textos anteriormente citados permaneceram ainda nos séculos posteriores, acrescentando-se o texto em estilo japonês (wabuntai), em
que prevalece a sintaxe japonesa, e as letras, seguindo o man’yôgana em
estilo cursivo, passam a ser hiragana. O texto ao estilo senmyô passa a ser
escrito com ideogramas (com seu conceito próprio) e com katakana, e não
mais com man’yôgana. Esse estilo manifesta uma influência muito grande
dos textos ao estilo de kanbun kundoku, ou seja, texto que reproduz o estilo
de tradução literal do chinês para o japonês, sendo adotado também para as
obras literárias em prosa, como por exemplo o Konjaku Monogatari “Narrativas de Agora e Outrora”.
Assim, o katakana passa a ser usado para suprir a ausência dos
morfemas e partes flexionais inexistentes em textos de língua chinesa, em
substituição aos diferentes sinais usados para tal fim. Se, por um lado, essas formas bastante abreviadas de ideogramas contribuíram para o anotador
acelerar o processo de sua inserção nos textos, por outro, facilitaram o trabalho dos leitores que puderam, assim, distingui-las dos caracteres ideogramáticos do texto original.
Ainda, o katakana tinha um caráter de notação provisória, sendo funcionalmente sempre subordinado aos ideogramas. Esperava-se dele apenas
a função auxiliar, e seu uso era restrito ao nível do indivíduo ou de pequenos grupos de pessoas como, por exemplo, grupos de monges de um determinado templo.
Constatamos, ainda, que no Japão antigo, o ideograma tinha o estatuto de “letras de verdade” mana, em contraposição a “letras provisórias”,
kana, nome genérico para designar os fonogramas, sendo que o hiragana
tinha um caráter mais intimista e particular, estendendo-se seu uso às camadas mais populares em épocas posteriores, e o katakana assumia uma função auxiliar dentro do âmbito da oficialidade onde reinavam os ideogramas,
usados pela camada dos intelectuais.
Os fonogramas, existentes desde o século IX, tiveram sua aceitação
social e oficial somente por volta do século XIX, quando houve a consoli– 119 –
OTA, Junko. O sistema de escrita da língua japonesa e alguns aspectos da sua história.
dação do Movimento da Unificação das Línguas Falada e Escrita, Genbun
Icchi Undô, movimento resultante da grande diferença constatada entre os
estilos da fala (kôgotai) e da escrita (bungotai). Mas a presença dos dois
fonogramas e os ideogramas se manifestou ao longo dos séculos em diferentes tipos de textos, caracterizando cada um de seus estilos.
BIBLIOGRAFIA
BUNKACHÔ (org. 1985) Kokuhô 1a, Shoseki II “Tesouros Nacionais 10, Escrituras II ”
Tokyo, Mainichi Shinbunsha.
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japonesa”. Tokyo, Tokyo Daigaku Shuppankai.
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KANEDA, Hiroshi & MIYAKOSHI, Masaru (1989) Shintei Kokugoshi Yôsetsu. “Considerações essenciais da história da língua japonesa – edição revisada”. Tokyo, Shûei Shuppan.
KOKUGO GAKKAI(1986) Kokugoshi Shiryôshi “Materiais referentes à História da Língua
Japonesa”. Tokyo, Musashino Shoin.
MIETTO, Luiz F. M. R. (1996) Apresentação e estudo do processo de elaboração da obra
Kojiki. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Departamento de História, FFLCH-USP.
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língua japonesa”, Tokyo, Gakuseisha.
OKIMORI, Takuya (org. 1997) Nihongoshi “História da Língua Japonesa”. Tokyo, Ôfûsha.
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Daijiten “An Encyclopaedia of the Japanese Language”. Tokyo, Tainskûkan.
SATO, Kiyoji (org. 1986) Kokugoshi “História da Língua Japonesa”. Vol.1. 2. ed., Tokyo,
Ôfûsha.
Abstract: The present article aims to describe today Japanese writing system
and analyse some of its historical aspects contributed for the formation of
the system.
Keywords: Japanese language, history of writing system, Chinese ideograms,
phonograms.
– 120 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 121-124, 1998.
AL-INSAN, L’HOMME, CE GRAND OUBLIEUX
Luiz Jean Lauand*
Résumé: Le texte qui suit rétablit la relation fondamentale qui existe entre
l’être humain et la mémoire et ses reflets sur l’éducation, tout en envisageant les traditions orientale et occidentale.
Mots-clef: Mémoire, être humain, éducation, tradition.
LA TRADITION
OCCIDENTALE1
L’homme est fondamentalement, un être qui oublie! Dans cette caractérisation anthropologique aigüe coïncident les traditions de sagesse
orientale et occidentale.
Parmi les grecs, nous trouvous déjà l’extraordinaire rôle attribué à la
Mémoire, Mnemosyne, dans les arts et la philosophie.
“Mnemosyne, c’est la mère des Muses” dit Hésiode sept cents ans
avant le Christ. Un siècle plus tard, Sappho affirme qu’il n’y a pas de mémoire sans les Muses (qui auraient hérité de leur mère, des aspects de leur
don) et, après cent ans encore, Pindare établit aussi le caractère “souveneur”
des muses dans son hymne grandiose, l’Hymne à Zeus. La scène est limpide : sous le pouvoir de Zeus, toute la confusion et toute la déformité ont
donné lieu à l’harmonie et à l’ordre. Quand le monde atteignit sa perfection
de beauté, Zeus, dans un banquet, demande aux dieux s’ils croient qu’il
manque quelque chose. “Oui – c’est la réponse – il manque des créatures
divines qui louent cette beauté”...
*
1
O autor é Prof. Associado da Faculdade de Educação da USP e do Departamento de Línguas
Orientais da FFLCH/USP.
Tout au long de cette partie, nous avons suivi les chapitres de SIMONDON, Michèle, Mnémosyne,
mère des Muses, in La mémoire et l’oubli dans la pensée grecque jusqu’à la fin du Ve. siècle avant
J.C., Paris, Société d’édition “Les Belles Lettres”, 1982; de SNELL, Bruno, Pindar’s Hymn to Zeus, in
The Discovery of Mind – The Greek Origins of European Thought, Cambridge, Harvard Univ. Press,
1953; et surtout, de PIEPER, Josef, Nur der–Liebende
121 – singt, Schwabenverlag, 1988, p.35 et ss.
LAUAND, Luiz Jean. Al-Insan, l’Homme, Ce Grand Oublieux.
Ce choeur de poètes ne s’exprime pas seulement au sujet de l’art ou
de la philosophie de l’art; il s’exprime aussi et surtout, de profondes convictions anthropologiques; l’homme est fondamentalement, un “oublieux”:
d’où le besoin des filles de Mnemosyne pour qu’il puisse se souvenir.
C’est pour cette même raison que les grands penseurs de la tradition
occidentale considéraient les découvertes philosophiques non exactament
comme un “tomber”sur quelque chose de nouveau, insolite, mais précisément en tant que dé-couvertes: amener à la conscience quelque chose de
déjà vu, de déjà connu mais qui, par une raison quelconque n’était pas
restée dans la conscience.
Et tout d’un coup, un insight, une lumière intérieure permet de s’apercevoir de la réalité déjà vue: une ratio, jusque là, couverte.
Ainsi, la mission de la Philosophie n’est pas non plus celle de nous
présenter quelque chose de déjà vécu et su qui, cependant, restait inaccessible: justement ce qui s’exprime par le mot souvenir.
Il est évident que tout en affirmant le caractère “oublieux” de l’homme,
on n’affirme pas qu’il oublie tout, mais surtout – et c’est presque une constatation d’ordre empirique – l’essentiel.
En vérité, l’homme se souvient de beaucoup de choses: naturellement,
lui, “créature triviale” (Guimarães Rosa) n’oublie pas de vérifier sa monnaie,
n’oublie pas, non plus, la date de l’interview pour un nouvel emploi, ni la
date du dernier match d’un championat et même pas des réalités qui composent la routine du quotidien. Beaucoup plus facile est le fait que précisément
devant les sollicitations toujours urgentes du “journal des jours” (Guimarães
Rosa), on puisse oublier les grandes vérités, comme la grandiosité de la création divine ou l’inexorable réalité de la propre mort. Ou, comme dit Dieu par
la bouche du prophète Jérémie: “La fille, oublie-t-elle ses ornements? La
fiancée, sa ceinture? mais mon peuple M’a oublié à jamais (Jér,2,32).
Le remède pour cet oublieux-né c’est l’art (Pindare) et la philosophie en tant que reminiscence (Platon)2 .
2
La religion a aussi un caractère souveneur. PIEPER se rapporte à la distinction oportune faite en
anglais entre remember (se rappeler) et remind (faire rappeler). Les vraies philosophie, art et religion
nous font rappeler (remind) les vérités fondamentales qui, pendant la routine d’au jour le jour, ont
tendance à “tomber” dans l’oubli.
– 122 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 121-124, 1998.
Pour conclure, encore un témoignage de la tradition occidentale qui
provient de la théologie de S. Thomas: la mémoire est une puissante vertu
intellectuelle-morale, une partie importante de la principale des vertus cardinales, la prudentia. D’où l’affirmation de S. Thomas sur la mission décisive de la méditation: maintenir vivant le souvenir de l’enthropique devant
l’enthropique tendance à l’émoussement .
LA TRADITION ORIENTALE
Si cette façon oublieuse d’être est considérée, comme nous disions,
une caractéristique essentielle de l’être humain dans l’anthropologie classique de l’Occident, dans la tradition orientale, telle considération est encore plus radicale.
Dans la langue arabe, depuis des temps immémoriaux, le mot pour
l’être humain3 est Insan4 .
La surprennante profondité anthropologique contenue dans ce mot,
se manifeste quand nous faisons attention à son signifié littéral, donnant
emphase à une caractéristique humaine qui s’est “absolutisée” pour désigner l’homme: Insan – dérivé du verbe nassa / yansa, oublier – indique
celui qui oublie.
L’infinie sagesse de la langue arabe, tout en désignant l’homme par
Insan, l’ “oublieux”, se trouve confirmée par le fait que le parleur arabe luimême ne s’aperçoit pas, au jour le jour, de ce fait. D’où le vers judicieux:
Wa ma sumya al-insan insanan illa linissyanihi
L’être humain (Insan = être humain ou “oublieux”) ne fut appelé
oublieux que par son oubli.
Evidemment, il y a dans la formulation originale un jeu de mots délicieux, comme si on disait, en français, toujours à cause de tous les jours.
3
4
Proche à l’allemand der Mensch.
Dans l’arabe, Insan est l’un des très rares mots utilisés indistinctement au masculin et au féminin
– 123 –
LAUAND, Luiz Jean. Al-Insan, l’Homme, Ce Grand Oublieux.
On peut, donc, comprendre que dans la Bible, Dieu se présente fréquemment comme “celui qui n’oublie pas” en opposition à l’ “oublieux”
par excellence, Insan.
Est-ce qu’une femme peut oublier celui qu’elle allaite? Même si elle
l’oubliait, Moi je ne t’oublierais pas (Is 49,15). Et l’homme dans sa prière,
demande à Dieu “souveneur”: depuis Moïse (Ex 32,13) jusqu’au bon larron
(Lc 23,42), la Bible est remplie de prières: “Souviens – Toi, ó Seigneur...”
L’oubli humain est fréquemment diagnostiqué comme auto-suffisance
qui provient de la prospérité: “Qu’il arrive, dit Dieu, à l’entrée du peuple
dans la terre promise, d’où jaillit lait et miel – qu’après avoir mangé à
satiété ... et augmenté ton or etc., tu viennes à oublier le Seigneur, ton Dieu
(Dt 8, 12 et ss). Et en fait, Jesurun s’est engraissé et a oublié (Dt. 32,15).
“Moi, je les ai fait paître et ils se sont rassasiés; une fois rassasiés, leur
coeur s’est exalté et, pour cela, ils M’ont oublié” (Os 13,6).
Conscient du fait que l’homme est Insan, oublieux, l’Orient développa une pédagogie – méprisée, oubliée et incomprise par l’homme occidental contemporain – la pédagogie du dhikr, la pédagogie du souvenir, la
pédagogie fondée sur la répétition, sur le savoir par coeur5 , sur les fêtes, les
gestes, les rituels...
L’homme occidental d’aujourd’hui est tellement déraciné (il oublie
même sa condition d’oublieux ...) si écarté de la sagesse, si auto-suffisant
dans son habitat technologiquement domestiqué, dans son monde si incolore et sans âme que ne se sensibilise par rien (exceptés, peut-être, les nouvelles formes de consommation ou les effets spéciaux ...). L’occidental pourrait s’exposer à la nécessaire complémentarité du dialogue avec l’Orient
pour récupérer les racines d’une sagesse qui, finalement, ne sont que les
racines de sa propre tradition occidentale.
Resumo: O presente texto restabelece a relação fundamental que existe
entre o ser humano e a memória e seus reflexos na educação, visando às
tradições oriental e ocidental.
Palavras-chave: memória, ser humano, educação, tradição.
5
Savoir de cor , avec le coeur, by heart.
– 124 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 125-136, 1998.
ELEMENTOS
PARA A CONFIGURAÇÃO DO
CAMPO LÉXICO DA “LINGUAGEM” (VÂC) NO
RGVEDASAMHITÂ*
Mário Ferreira**
Resumo: É hoje consensual a constatação de que o Rgvedasamhitâ (= RV)
constitui, no conjunto de suas expressões e torneios metafóricos, uma vasta
reflexão sobre os poderes da linguagem. O presente texto tem por objetivo
estudar, apontando analogias com conceitos lingüísticos, oito palavras que
se empregam recorrentemente no RV e que configuram um campo léxico
centrado no tema da “linguagem” (vâc).
Palavras-chave: campo léxico da linguagem no Rgvedasamhitâ, vâc.
Existe hoje consenso, entre os estudiosos da literatura sânscrita, no
postulado de que o Rgvedasamhitâ (= RV) – coleção de textos ritualísticos,
composta provavelmente ao redor do século XII a.C. – exibe marcada orientação poética e metalingüística, conforme o sentido que R. Jakobson (s.d.:
122-130) confere a tais conceitos, ou seja, como funções da linguagem nas
quais se torna exponencial, respectivamente, ou a mensagem ou o código.
Dada tal característica tipológica, que convoca para o texto uma função
auto-reflexiva e especular, tem o RV sido utilizado como um verdadeiro
“informante metalingüístico”, apto a lançar luz – quando elucidadas as
metáforas nele contidas – sobre questões diversas pertinentes ao período
cultural mais arcaico da Índia Antiga. Exemplo do emprego da obra na
função referida encontra-se em D. M. Knipe (1975: passim), que decodifica
as metáforas relativas ao fogo, constantes no texto, no fito de recuperar o
*
**
Na transcrição das palavras sânscritas, empregam-se caracteres redondos nos vocábulos em itálico
ou – pelo critério contrário – caracteres itálicos em vocábulos em redondo, para assinalar, quando
necessário, uma distinção diacrítica. Assim, em Rgvedasamhitâ, o /r/ redondo marca a vogal
retroflexa, por oposição ao /r/ semivocálico, e o /m/ redondo assinala a nasal anusvâra, por oposição ao /m/ nasal bilabial. O acento circunflexo indica o alongamento das vogais.
O autor é Prof. Dr. do Departamento de Letras
Clássicas
e Vernáculas da FFLCH/USP.
– 125
–
FERREIRA, Mário. Elementos para a configuração do campo léxico da “linguagem” (Vâc)...
sentido ritualístico dos processos de evocação ígnea. São também exemplares, neste sentido, os trabalhos de A. Bergaigne (1878: passim) e J. Gonda
(1963: passim), que descrevem as técnicas e procedimentos dos ritos védicos,
com base igualmente no recurso da redução semântica das figuras de linguagem – constituindo tal opção de exegese estratégia bastante eficaz, porquanto, no RV, a operação do rito consiste em princípio num processo de
manipulação dos planos da expressão e do conteúdo da língua sânscrita (a
esse propósito, ver M. Ferreira [1997: passim]). É certo, contudo, que a
área de maior relevo da obra, no que respeita ao seu potencial documentário,
diz respeito ao tema da linguagem, o qual é, como se sabe, o ponto fulcral
do discurso metalingüístico. Neste sentido, pode-se afirmar que o RV, exibindo-se, não obstante, como uma seleção de textos rituais de excelência,
constitui em verdade uma imensa reflexão sobre a linguagem, de que se
discriminam a forma, o uso e os poderes.1
O presente texto tem por objetivo aduzir elementos com vistas à compreensão do discurso metalingüístico inscrito no RV. Para tanto, analisa-se
o significado de oito vocábulos – a saber: vâc, manman, mati, dhî/dhîti,
dhisanâ, vipâ e dhâman – que se empregam recorrentemente na obra e que
configuram um campo léxico centrado no tema da linguagem. Na análise
das palavras referidas, procura-se: 1. relacionar os valores semânticos que
o texto lhes atribui; 2. estabelecer as conexões que as palavras mantêm
entre si; e 3. estabelecer possíveis equivalências, à luz dos conceitos da
lingüística (tomando-se Dubois et alii [1973] como obra de referência),
1
Vários são os autores que têm assinalado o cunho marcadamente lingüístico da obra em questão.
L. Renou (1955: 26) postula que, sendo “a técnica poética” do RV um “fim em si mesma”, tornase possível sustentar que “todo o RV é uma alegoria (de si mesmo)”. J. Kristeva (s.d.: 123), neste
mesmo sentido, propõe que “os textos védicos procedem a uma sistematização ‘científica’ da
fala”. E G.-J. Pinault (s.d.: 295; 297-298), em parágrafo de síntese, afirma: “Os poetas [do RV]
dizem-nos que constituem equipes de associados, que rivalizam em engenhosidade e em profundidade no manuseio das palavras (...) A fala (...) expressa o brahman [o poder criador do rito],
sendo virtualmente idêntica a ele. Além de favorável à reflexão sobre a atividade poética, a linguagem passa a ser uma realidade com a qual o compositor de hinos se vê confrontado: os acontecimentos rituais, cósmicos e míticos, evocados pelo poeta, constituem uma alegoria velada da poesia, de seus meios e de seus fins”.
– 126 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 125-136, 1998.
para o sentido das palavras em estudo. Quanto ao último item, cumpre ressaltar que não se trata aqui – por incorreto, do ponto de vista historiográfico
– de estabelecer relações simétricas entre as palavras védicas e conceitos
lingüísticos. No que segue, apontam-se tão-somente possíveis analogias
entre os conceitos aduzidos. Cumpre assinalar também que a idéia de configurar um campo léxico centrado na linguagem, relativamente aos valores
inscritos nos textos védicos, não é estranha à própria tradição sânscrita. No
Nighantu (lit. “relação [de palavras]”) (ed. de L. Sarup [1967: 3]) – pequeno léxico de cunho analógico pertencente ao nirukta, ramo semântico do
Vedânga (lit. “[textos] anexos ao Veda”), e que se vincula às tradições de
exegese do texto védico –, consta, na parte relativa às coisas do mundo, a
rubrica vâc-nâmani, isto é, “nomes dados à palavra”, a qual enfeixa o seguinte rol:
“çlokah (“som, barulho”)/ dhârâ (“fluxo de água”)/ ida (= nome de
Agni, a quem se invoca com um fluxo de palavras)/ gauh (“vaca”)/ gaurî
(“palavra”)/ gândharvî (“fala, recebida de Gandharva”)/ gabhîrâ (“a que
é ressonante”)/ gambhîrâ (“a que é grave”)/ mandra (= o tom grave)/
mandrâjanî (“a que se pronuncia no meio do céu”)/ vânî (“som”)/ vâçî
(“som produzido em coro”)/ vânini (“linguagem”)/ vânah (“som”)/ pavîh
(“a que é brilhante”)/ bharatî (“a que sustém”)/ dhamanih (“a que se
derrama”)/ nâdîh (“canal do corpo”)/ menâ (“a linguagem, como fêmea”)/ medîh (“a que é sonora”)/ sûryâ (“a linguagem, como esposa do
sol”)/ sarasvatî (“a linguagem, como o rio S.”)/ svâhâ (“oblação”)/ vagnu
(“grito”)/ upabdih (“a rumorejante”)/ mâyuh (“a que bale”)/ kâkut (“palato”)/ jihva (“língua”)/ ghosah (“som sonoro”)/ svarah (“sol/céu”)/
çabdah (som)/ svanah (“som do vento”)/ rk (“estrofe recitada”)/ hotrâ
(“a linguagem, como oferenda”)/ gîh (“vocábulo”)/ gâthâ (“estrofe
ritualística”)/ ganah (“a linguagem como conjunto de versos [texto ?])/
dhenâ (“fala”)/ gnah (“a linguagem, como esposa dos deuses”)/ vipâ [<
vip]/ nanâ (“a linguagem, como mãe”)/ kaça (“rédea/freio [do pensamento]”)/ dhisanâ/ nauh (“nau [que leva a oferenda aos deuses]”)/
aksaram (“sílaba”)/ mahî (“a grande”)/ aditih (“a que é imensa/inesgotável”)/ çacî (“a linguagem, como eloqüência”)/ vâc/ anustup (= nome
de um metro)/ dhenuh (“a linguagem, como vaca”)/ valguh (“a bela”)/
– 127 –
FERREIRA, Mário. Elementos para a configuração do campo léxico da “linguagem” (Vâc)...
galdâ (“linguagem”)/ sarah (“a fluente”)/ suparnî (nome próprio = a
mãe dos metros)/ (...)//”
Observa-se, nessa relação (na qual constam, grafadas em negrito,
três das palavras estudadas a seguir), que o vínculo que une os vocábulos
radica no emprego de critérios semânticos diversos, havendo, para citar
apenas algumas das correlações, palavras aproximadas por sinonímia (vâc,
gaurî, vânini), por metonímia (gâthâ, svâhâ, gîh, anustup), por pertença ao
campo fisiológico da fala (jihva, kâkut, nâdih), por referência ao caráter
sonoro da linguagem (çloka, medih, vâçî, aksaram), por referência ao princípio da linearidade (vânî, dhârâ), por referência ao princípio da articulação (ganah) e por metaforização, calcada nos mitos que o rito presentifica
(gauh, sûryâ, gnah). Por pequena que seja esta amostra, basta ela para confirmar a riqueza de projeções semânticas de que a linguagem, nas concepções védicas, é o suporte. E também para indiciar o viés ideológico que
subjaz à configuração das relações de sentido propostas.
Eis as palavras em estudo:
vâc. Substantivo feminino derivado da raiz VAC – a qual denota, no
âmbito do sânscrito védico, as acepções “falar”, “dizer”, “narrar”, “pronunciar”, “anunciar”, “declarar”, “mencionar”, “proclamar” e “recitar” –,
o vocábulo vâc ocorre 107 vezes nos 1028 textos do RV (citado aqui sempre segundo a edição de T. Aufrecht [1968]), constituindo desse modo a
terceira palavra de maior freqüência da lista. A recorrência do emprego da
palavra não é casual. Em X, 125, a vâc é louvada como uma divindade,
atribuindo-se-lhe uma série de epítetos, que a transformam num poder cósmico onipresente. Diz-se que ela, nascida nas águas e deposta no céu e na
terra, é a “parceira e sustentáculo dos deuses”, “intermediária entre os deuses e os homens”, “morada, alento e alimento dos homens”, “fonte da inteligência”. Enquanto conceito, vâc designa, em princípio, a “voz” ou a “fala”
dos seres humanos, ou a “fala” produzida, quando antropomorfizados, por
seres não humanos, por objetos ou por fenômenos da natureza. Eis alguns
exemplos. Em II, 43, 2, afirma-se que Indra, “à maneira de um cantor, emite
a fala (em dois tons), de acordo com as regras” (ubhe vâcau vadati sâmagâ
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iva [...] cânu râjati/). Em VII, 103, 1, mencionam-se as rãs que, à semelhança dos brâmanes, adormecidas durante um ano, e banhadas pela chuva,
“levantam sua voz, incitadas por Parjanya”, o deus das chuvas (vâcam
parjanyajinvitâm pra mandukâ avâdisuh/). Em X, 76, 7, “as pedras de moer,
macerando as folhas do soma, elevam sua voz, por entre o sacrifício”(sute
adhvare adhi vâcam akratâ/). E em X, 23, 5, evoca-se o trovão que, como
a “voz”de Indra, “tendo como arma o relâmpago, mata os perversos, extraindo-lhes gritos injuriosos” (yo vâcâ vivâco mrdhravâcah purû sahasrâçivâ
jaghâna/). Nestas passagens – que são paradigmáticas –, pode-se assinalar
que a “fala”, proferida por seres humanos ou por não humanos e inanimados, apresenta sempre um conteúdo significativo, denotando a idéia de que
o som produzido pela linguagem se vincula a um significado – ou seja, as
rãs falam para louvar a recorrência das chuvas; as pedras falam para entoar o elogio do soma; o trovão fala a fim de manifestar a ira de Indra. Neste
sentido, vâc opõe-se a nâda, substantivo que traduz o significado de “grito”, “barulho”, “rumor” e que se aplica, exclusivamente, a objetos inanimados, ou a animais e fenômenos naturais desprovidos de personificação
mítica. É correto, portanto, propor que a palavra vâc designa no RV, em
suma, a linguagem – ou, precisando melhor, a linguagem articulada, provida de uma face verbal, que se manifesta, como voz, por meio de signos
vocais, e de uma face mental (v. mati, adiante), em que se articula o sentido.
Proposta de tradução: “linguagem”.
manman.Oriundo
de inusitada composição por redobro da raiz
MAN, “pensar”, “considerar”, “compreender”, o vocábulo manman (que se
atesta exclusivamente no RV, em 63 ocorrências) constitui, em princípio,
um sinônimo de vâc, na medida em que, como esta palavra, designa a “linguagem” (= som + sentido) manifesta no rito. Nesta acepção, pode-se rastreála em diversas passagens. Destas, a mais esclarecedora é a que consta em
VI, 38, 4, em que se pede ao soma que incite Indra, “exaltado pelos melhores cânticos”, a “propiciar” o sacrifício, no qual estão aninhados o canto
(gira), a fórmula (brahman), a sentença (ukthâ) e o manman (vardhâd yam
yajña uta soma indram vardhâd brahma gira ukthâ ca manma/). A oposição neste passo entre as quatro palavras – que são sinônimos parciais de
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FERREIRA, Mário. Elementos para a configuração do campo léxico da “linguagem” (Vâc)...
vâc) – sugere que manman constitui, tal como o canto, a fórmula e a oração,
um recorte da linguagem – possivelmente, a linguagem dotada de um formato, como a estrofe, ou talvez como o texto composto de estrofes. O sentido de “texto”ou de “fala metrificada” é, porém, reconstrução incompleta
do termo. Para completá-la, deve-se recorrer a outra série de passagens –
assim, I, 121, 6; I, 129, 6; I, 148, 2; I, 151, 8; I, 165, 13; II, 4, 8; III, 14, 5; IV,
6, 1; VI, 5, 6; VII, 10, 2; X, 57, 3. Nesta última ocorrência, que sintetiza as
anteriores, lê-se: “Evocamos nossa mente, por meio do soma e do fogo, e
também por meio dos textos (manmabhis) compostos pelos Pais” (mano nv
â huvamahe nârâçamsena somena/ pitrnâm ca manmabhih//). Neste passo, observa-se a conjunção de manman com o adjunto pitrnâm (“relativo
aos Pais/Ancestrais) , a qual ocorre, também, nas estrofes citadas, como tal,
ou com substituição do adjunto por adjetivo sinônimo (uçija, “arquetípico”;
prathama, “primordial”; pûrva, “ancestral”). Para o mesmo termo, Renou
(1959: 75; 1964: 22, 38; 1966: 34; 1969: 42) propõe as traduções “evocação poética”, “lembrança poética”, “evocação (na forma de) hino”, “palavras (produzidas) por um pensamento concentrado” – com o que se pontua
o trabalho mental da enunciação da linguagem. Cumpre porém acrescentar
a tais acepções a referência – recorrente nas passagens antes mencionadas
– à presentificação da fala como criação intertextual (pois que radica ela na
memória da linguagem), à concepção de que a fala, ao se manifestar, se
projeta num eixo de formas paradigmáticas, desdobradas, desde o princípio, pelos poetas ancestrais.
Propostas de tradução: “texto regido por um cânone”; “intertexto”.
mati. Derivado igualmente da raiz MAN, mati (135 ocorrências)
designa, em princípio, o “pensamento”, a “intenção” ou a “devoção” do
ritualista, por ocasião da celebração do sacrifício. Mas, no texto, são várias
as passagens em que, correlacionando-se a linguagem e o pensamento, esta
palavra se emprega como sinônimo, também parcial, de vâc, de que mati
assinala a face mental – ou simbólica, para empregar um termo contemporâneo. Gonda (1963: 109) propõe, neste sentido, para o termo, a glosa “pensamentos que adquiriram o molde de fórmulas hínicas”. Para Renou (1961:
95), mati opõe-se a dhî (v. adiante), significando, esta, “intuição” e, aquela,
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 125-136, 1998.
“manifestação concreta [do pensamento] num poema”. As ocorrências do
termo permitem estabelecer as correlações entre linguagem e pensamento,
tal como entendidas no texto. Conforme aí se atesta, a fonte do pensamento
localiza-se na mente (manas) e esta, no coração (cf. III, 39, 1: indram matir
hrda â vacyamânâchâ/, “Em louvor de Indra, procede o pensamento do
coração.”). É a ação da luz (cf. III, 30, 20), do fogo (cf. III, 26, 8) ou do
soma (cf. IX, 21, 7: eta u tye avîvaçan kâsthâm vâjino akrata/ satah
prâsâvisur matim/, “As gotas [do soma], gritando, tumultuosas, quais corcéis em carreira, trazem à vida o pensamento do homem liberal”) que
extroverte o conteúdo depositado no coração, e tal conteúdo – a “devoção”,
o “pensamento” ou outra forma de cognição – , quando derramado, se molda na forma de hino. Ou seja, a atividade mental, quando manifesta (quer
dizer, revestida duma face sonora – composta dos “sons” [çabda] da sílaba
[âksara], da palavra [pâda] ou da sentença [ukthâ]), transforma-se em linguagem. (Cf. I, 141, 1: yad im upa hvarate sîdhate matir rtasya dhenâ
anayanta sasrutah/, “Quando, oriunda dos bastões friccionados, brota, no
sacrifício, a divindade ígnea, torna ela, fecundo, o pensamento, o qual enseja
hinos que, manando, mantêm as flamas coesas.”) Linguagem e pensamento
são assim funções homólogas da mente, contrastando-se mediante o diferencial da presença ou da ausência da face fônica.
Proposta de tradução: “pensamento manifesto”.
dhî/dhîti. (Ocorrências: 240 e 82, respectivamente.) Dhî e dhîti, vocábulos oriundos ambos da raiz DHÎ, denotam no RV, como mati, a atividade
de manas. Ao passo porém que mati denota a atividade dirigida da mente –
assim, o “raciocínio”, o “desígnio”, a “devoção” –, os dois termos assinalamlhe a atividade espontânea e autônoma, orientada por mecanismos que escapam ao controle do ritualista. Trata-se, portanto, duma atividade cognitiva,
do tipo “intuição” (cf. C. G. Jung [1974:529-530) – devendo-se ressaltar que,
no RV, ela se circunscreve ao contexto do rito, ao qual parece estar ligada, em
razão dos estímulos da luz, do fogo e do soma. À semelhança de mati, dhî e
dhîti constituem também a face virtual de conteúdos que, quando manifestos, se transformam em linguagem. Eis três abonações para o sentido proposto: I, 161, 7: niç carmano gâm arinitadhîtibhir/, “por meio das intui– 131 –
FERREIRA, Mário. Elementos para a configuração do campo léxico da “linguagem” (Vâc)...
ções, criastes, (ó Rbhus,) a vaca, revestindo-a com a pele [= criastes a Terra,
dando-lhe forma]”; X, 31, 3: adhâyi dhîtir asasrgram amçâstîrthe na dasman
upa yanty umâh/, “Obtida a intuição, compomos o hino, irmanando-nos,
íntimos, com os imortais.” – passo que se glosa em VI, 9, 6, em que se
descreve o processo do arrebatamento poético: vi me karnâ patayato vi
caksur vîdam jyotir hrdaya âhitam yat/ vi me manaç carati dûra âdhih kim
svid vaksyâmi kim u nû manisye//, “Lançam-se ao vôo minhas orelhas, abremse meus olhos; desperta (a intuição) a luz deposta no coração. Avança a
mente, sem limites. O que deverei dizer? O que deverei pensar?”; e VII, 64,
4, em que se percebe claramente a relação de causa e efeito projetada sobre
o vínculo inspiração–fala: yo vâm gartam manasâ taksad etam ûrdhvâm
dhîtim krnavad dhârayaç ca/, (Ó Mitra-Varuna,) bênção vos peço, em favor daquele que molda vosso trono [= o texto do rito], com a intuição, que
ergue o hino e o mantém”.
Proposta de tradução: “intuição”.
dhisanâ.
(Ocorrências: 30.) Associado diretamente a vâc e a
manman, o vocábulo dhisanâ alinha-se entre os conceitos que particularizam o processo de criação da linguagem, denotando a “inspiração” por
meio da qual a fala do rito se articula. A análise etimológica confirma o
sentido básico do termo. Dhisanâ provém da raiz DHIS, a qual consta no
Nirukta (ed. Sarup: VIII, 3) (que a aproxima de DHÂ) e que traduz a noção
de “soar” – ou, conforme a modalidade causativa inerente à forma, “fazer
soar”. No contexto das ocorrências no RV, a raiz indica uma das atividades
de manas, a qual “faz vibrar” a linguagem. Como dhî/dhîti, dhisanâ é também uma função mental, sendo neste sentido função correlata à do pensamento e da intuição (em VIII, 15, 7, diz-se que a inspiração aguça a “pujança, a força e a inteligência de Indra” [tava tyad indriyam brhat tava çusman
uta kratum]). Cognitiva e intuitiva, a dhisanâ difere do pensamento, por
não ser totalmente dirigida, e da intuição, por não ser totalmente espontânea. Com efeito, ela depende, ao contrário da intuição, de estímulos específicos – como a recitação de textos, a memorização de estrofes e o estudo –
para realizar-se. Em analogia a mati e dhî, a dhisanâ é a linguagem em
estado virtual – não provida de face sonora. Para a abonação do sentido do
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 125-136, 1998.
conceito, confiram-se as seguintes passagens: III, 32, 14: vivesa yan mâ
dhisanâ jajâna stavai purâ pâryâd indram ahnah/, “A Indra louvarei, quando a inspiração me penetrar, gerando o (texto de) louvor”; VI, 11, 3: dhanyâ
cid dhi tve dhisanâ vasti pra devân janma grnate yajadhyai/, “(O poeta,)
sábio entre os sábios, cantando com regra, no sacrifício, articula a intuição
(do texto), por obra da inspiração.”; e VIII, 15, 7: tava tyad indriyam brhat
tava çusman uta kratum/ vajram çicâti dhisanâ varenyam//, “A inspiração
aguça a pujança de Indra, sua força, sua inteligência, o desejado relâmpago.”
Proposta de tradução: “inspiração”.
vip. (Ocorrências: 18.) Derivada da raiz VIP, “vibrar”, vip, como adjetivo, designa “o que vibra” e, nesta acepção, constitui ele adjunto freqüente
de vâc, dhî e manas. Seu sentido é análogo ao de dhisanâ. A palavra denota a
“vibração” da mente, representando esse “tremor” o processo a que se entrega o homem ou o deus, no propósito de “gerar” o hino. Ao contrário de dhisanâ,
vip, porém, desborda por sobre a linguagem, incutindo-lhe a vibração oratória, que a inspiração, por si só, não produz. Linguagem + ênfase oratória, esse
o sentido do conceito, conforme se pode constatá-lo analisando-se-lhe as ocorrências. Cf. VIII, 6, 7: imâ abhi pra nonumo vipam agresu dhîtayah/ agneh
çocir na didyutah//, “Semelhante a um relâmpago, a vibração, à testa dos
pensamentos, incendeia os cânticos”; IX, 96, 7: prâvîvipad vâca ûrmim na
sindhur girah somah pavamâno manîsah/, “O soma, purificando as canções
e as orações, faz vibrar as ondas da palavra, como ao oceano.”; e IX, 73, 3:
samyak samyañco mahisâ ahesata sindhor ûrmâv adhi venâ avîvipan/, “Os
poetas fazem o soma vibrar em seu íntimo, extraindo das ondas do oceano o
seu cântico.”
Propostas de tradução: “vibração oratória”; “eloqüência”.
dhâman. (Ocorrências: 93.) Derivado da raiz DHÂ, que significa
“estabelecer”, “instituir”, “dispor”, “criar”, o substantivo dhâman tem significados múltiplos no RV. Ele expressa, primariamente, a “sede” (em que
permanecem os deuses), a “regra”, a “ordem estabelecida”, o “poder” (especialmente, do rito) e, secundariamente, a “forma que se manifesta” ou,
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FERREIRA, Mário. Elementos para a configuração do campo léxico da “linguagem” (Vâc)...
também, a “função concretizada numa forma”. Nestas duas últimas acepções,
dhâman denota também uma instância virtual da língua. Diferentemente de
dhisanâ e vipâ, tal instância resulta do poder sagrado emanado da “ordem”
(rta) – da regra que o rito, ao se realizar, configura. Assim, em VIII, 101,
5.6, mencionam-se os “poetas imortais” que, responsáveis pelo curso do
[sol, o] tesouro vermelho [e, portanto, custodiadores da ordem], perfazem
as formas produzidas pelos homens” (te hinvire arunam jenyam (...)/ te
dhâmâny martyânâm adadbha abhi caksate//). Em I, 85, 11, são os Marutas,
os deuses alados do vento, que, “socorrendo à inspiração (vipra) do poeta”,
preenchem de amor a forma da fala” (kâmam viprasya tarpayanta
dhâmabhih/). Conforme se pode entender nas passagens mencionadas,
dhâman conjuga, portanto, duas idéias complementares: de um lado, à semelhança de mati, pontua o caráter de forma manifesta da linguagem; de
outro, marca a linguagem como sede da “potência” (çakti) do rito. Trata-se,
assim, da forma que, enraizada na mente pelo impulso da ordem – derivada
esta do rito –, desencadeia o poder da fala.
Proposta de tradução: linguagem-poder como ordem manifesta.
Esquematizando-se as notas aduzidas no que antecede, compõe-se o
seguinte campo léxico:
Conceito nuclear: vâc
[a faculdade da linguagem, própria dos seres humanos, provida de
duas faces articuladas: som + sentido]
Conceito nuclear paralelo: dhâman
[vâc como forma e poder manifestos da ordem (rta)]
Particularizações do conceito nuclear:
manman
mati
dhî/dhîti
dhisanâ
vip
[vâc como
[vâc como
[vâc como
[vâc como
[vâc como
cadeia
pensamento
intuição]
inspiração]
vibração oratória]
de intertextos]
manifesto]
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 125-136, 1998.
Observa-se, no quadro, a riqueza dos conceitos projetados, no texto
do RV, sobre a linguagem – e, também, a dificuldade de traduzir, de forma
simétrica, as acepções analisadas acima nos tópicos. Espera-se que estes
elementos possam contribuir para o estudo da reflexão lingüística vazada
na obra nuclear do vedismo.
BIBLIOGRAFIA
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GONDA, Jan. (1963). The vision of the vedic poets. Haia, Mouton.
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VIII.
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SARUP, L. (ed.) (1967). The Nighantu and the Nirukta. Delhi, Motilal Banarsidass.
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FERREIRA, Mário. Elementos para a configuração do campo léxico da “linguagem” (Vâc)...
Abstract: Nowadays it is consentaneous the certification that the Rgvedasamhitâ (= RV) constitutes, at the body of its expressions and metaphorical
turnings, a vast reflexion upon the powers of the language. This paper has
the purpose of studying, pointing analogies with linguistic concepts, eight
words that are used recurrently at the RV and that shape a lexical field
centered at the topic of “language” (vâc).
Keywords: language lexical field at Rgvedasamhitâ, vâc.
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 137-142, 1998.
O
CONTO-CRÔNICA DE YEHUDIT HENDEL:
UM RETRATO DO ARTISTA ISRAELENSE
Nancy Rozenchan*
Resumo: Ao abordar um conto de uma das mais conhecidas escritoras israelenses, Yehudit Hendel, pretende-se indicar como elementos de um gênero, a crônica, servem para abranger aspectos da vida pessoal da narradora/escritora, transformando o relato num conto em que se imbricam, aparentemente, elementos destoantes.
Palavras-chave: Literatura hebraica, Gêneros literários, Hendel,Yehudit.
Foi comprar jornal, falou com o cachorro, apagou o cigarro no pé
descalço da moça feia, foi destratada, pediu desculpas, não adiantou, sentiu-se mal, o cachorro correu atrás da ambulância, ela morreu. Estes são os
elementos iniciais do conto “Sipur bli ktovet” (Uma história sem endereço), de Yehudit Hendel, que nos propomos a abordar aqui.
Pelos ítens mencionados, temos um simulacro de crônica que bem
poderia ter surgido em qualquer dos nossos jornais ou revistas. Na crônica,
gênero estritamente ligado ao jornalismo, segundo Afrânio Coutinho em
seu Notas de Teoria Literária, menos importa o assunto, em geral efêmero,
do que as qualidades de estilo: menos o fato em si do que o pretexto ou a
sugestão que pode oferecer ao escritor para divagações várias. Partindo dos
elementos e narrativa mencionados, Yehudit Hendel, uma das veteranas
autoras de Israel, escreveu este primoroso conto em que os aspectos locais
entremeiam uma escritura que conduz a um retrato do artista israelense.
Yehudit Hendel com freqüência fala para a rádio e televisão de seu país a
respeito de temas variados. Sua vivência e expressão sobre assuntos aparentemente “pequenos” transparecem nos seus livros, alguns dos quais, justamente por isto, são de definição impossível quanto à questão de gênero e
*
A autora é Profª. Associada do Departamento
de Línguas
Orientais da FFLCH/USP.
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ROZENCHAN, Nancy. O conto-crônica de Yehudit Hendel: um retrato do artista israelense.
forma. “Uma história sem endereço”, em que a crônica dá origem a um
conto, é um bom exemplo destes temas e abordagens.
Neste conto, seguindo-se à morte da mulher, o sofrimento e o desaparecimento do cachorro, a narradora-escritora introduz vários outros motivos. Estes motivos, aparentemente desconectados, ao mesmo tempo em
que conduzem, por pinceladas, a alguns aspectos da sociedade israelense,
levam à exposição da figura da própria escritora-artista, suas observações
da poética, da morte, temática sempre recorrente em sua obra, do sentido
da existência através das memórias conscientes e inconscientes em que as
experiências pessoais são revistas.
A narradora (que podemos identificar com a escritora) testemunha
os fatos que mencionamos inicialmente, inclusive o desfalecimento da dama
de branco que comprava jornal. A morte desta é atestada no hospital. Até
aí, a crônica. O que se segue nos faz penetrar numa ligação de detalhes e
associações que conduzem ao âmago existencial da narradora. A narradora
viu o cãozinho acompanhar a ambulância. Ela própria, movida por sentimentos diversos não mencionados, dirige-se ao hospital mais tarde, para se
informar do ocorrido e lá encontra o animal. Os seguintes fatos e detalhes
são alguns dos narrados em seqüência: sugestão de que o cachorro identifique a falecida que não tem documentos, narradora voltando pela Avenida
David Hamelech, penumbra, rapaz à sua frente de walkman usando camiseta vermelha, menção da construção da muralha da China feita por um
milhão de pessoas, lembrança de que os egípcios tocavam os olhos do morto e a boca e assim tentavam devolver-lhe os sentidos, comentário do rapaz
de camiseta vermelha dizendo que não havia cachorro nenhum por ali, em
casa, na televisão, reportagem sobre o enterro de um soldado israelense
morto no Líbano ao pisar numa mina, reflexões sobre o suicídio do poeta
Paul Celan, cujo corpo boiou no rio Sena e a indagação de que roupa estaria
ele usando então, lembrança de Zvi, mostrando olhos de vidro em Veneza,
volta ao hospital, desaparecimento do cachorro, lembrança da própria mãe
e de sua morte há muitos anos, descrita apenas como partida e não como
morte, volta para casa, programa de rádio abordando manchas solares, conversa com o rádio, volta o hospital, volta à avenida.
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Como e por que a narrativa passa da crônica para o conto composto
de fragmentos isolados, fios de memória desconectados, sendo o bloco maior
destes fios, o relacionado com a mãe, quase no fim do texto? A empatia
inicial dirige-se à mulher de branco que compra o jornal: a moça desagradável cujo pé é queimado pelo cigarro não desperta simpatia; o cachorro,
abandonado depois da morte da dona, é o alvo maior das atenções da narradora. Ela acompanha o seu comportamento quando a dona desfalece, quando fica rondando o hospital, quando se dirige ao necrotério para “reconhecer” o corpo, quando anda pela avenida, como se fosse um animal morto.
Ele desaparece. O estranhamento começa a ser mais marcado a partir da
figura do cão. No nível estilístico o leitor defronta-se com frases como
“atrás de mim, mudo e paciente, vinha o cachorro. Seu pequeno corpo era
grande e ele andava morto”. Os oxímoros aqui presentes, “pequeno corpo
grande” e “andava morto” são um ponto divisor entre a crônica aparente e
o que se desenrola em seqüência. O cão, que tanto sofre com o impacto da
morte da sua dona, desperta na narradora-escritora toda uma série de imagens concretas ou não tão concretas e lembranças acionadas através do
subconsciente. Alguns dos ítens mencionados anteriormente, a morte do
poeta, o enterro do soldado mostrado na televisão, Zvi apontando peças de
vidro em Veneza (Zvi é Zvi Maierovitch, o falecido marido de Yehudit
Hendel; era pintor) servem de preâmbulo à menção da morte da mãe da
narradora-escritora, na verdade tema principal desta narrativa, ainda que
somente lhe ocupe um capítulo. Ela havia morrido jovem, aos quarenta
anos e à pequena filha órfã isto não foi comunidado textualmente. O avô
apenas lhe disse “ela não morreu... ela só partiu”. O desfalecimento da
dama de branco na loja de jornais serviu para trazer à lembrança a mãe,
também vinculada à cor branca (“penteava-se diante de um espelho pequeno num quadro de maderia com verniz branco”) e a sua morte, tão despropositada quanto a daquela. O desconcerto da situação percebido particularmente através do animal que fica desacorçoado (é assim que narradora o
vê, enquanto o rapaz de camiseta vermelha diz que não há nenhum cachorro) faz com que a narradora passe a retrabalhar os seus sentimentos relacionados à morte da mãe. Estes sentimentos, principalmente a sensação de
abandono inexplicado, ainda que a tivessem acompanhado durante toda a
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ROZENCHAN, Nancy. O conto-crônica de Yehudit Hendel: um retrato do artista israelense.
vida, não tinham aflorado ao seu consciente e lhe causaram uma certa sensação de incompreensão e de desconhecimento de tudo o que se referia à
mãe e à sua morte (“Que idade ela tinha então? Quantos anos ela tem
agora? O que é que eu sabia então? O que é que eu sei hoje?”) Nestes
sentimentos fundem-se, além da profunda dor, também muita raiva e fortes
sensações de culpa. Daí, por exemplo, temos a importância da cena do apagar o cigarro no pé da moça descalça. Apesar da mulher elegante ter feito o
que fez, apagou o cigarro sem prestar atenção a onde o fazia, a narradora
nos faz simpatizar com ela: era elegante, de branco, cuidava do cachorrinho. Mas ela surge na história para brigar com a moça descalça, uma metamorfose da narradora quando menina, transformada numa briguenta grosseira. É verdade que a moça tem razão em reclamar. O confronto criado
pela narradora é chocante; choca também porque a narradora, identificando-se com a dor e a raiva da moça (desagradável, feia, de pés grandes e
nada elegantes), não consegue perdoar a dama elegante, mesmo que o ato
tivesse sido cometido involuntariamente, e talvez por isto mesmo. Paralelamente, a narradora se envergonha com a raiva que refreia o perdão, uma
raiva desabonadora, que se liga à morte da mãe. É como se esta ira, resultante da morte da mãe (ira representada pela queimadura no pé e a sensação
subjetiva de desprezo), fosse, na realidade, a causadora da morte. Na parte
que denominamos de crônica, a dama morre aparentemente devido a um
ataque cardíaco em conseqüência da discussão.
O principal foco emocional do conto não se concentra, porém, na
morte da mãe e nos sentimentos que se seguiram, mas no que ocorreu mais
tarde, no decorrer dos anos. A figura da mãe continuou a dominar os aspectos emocionais da vida da filha. Da mãe foi dito que não havia morrido, só
partido. A filha passou a carregar a morte da mãe dentro de si. Daí, a sua
identificação com o cachorro e com o seu caminhar estranho. Quando a
dama de branco desfaleceu, o cão assumiu, de certa maneira, a impossível
missão de salvá-la. A narradora menciona como ele estreitou a mulher, em
desespero, com o focinho e as patas. Ela não teve a oportunidade de fazer
isto com a mãe. Mais adiante ela se lembra como os antigos egípcios tocavam olhos e boca do morto para tentar reanimá-lo, exatamente como fizera
o animal. Depois ela o descreve, dizendo para si própria, “o cachorro con– 140 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 137-142, 1998.
tinuou a andar atrás de mim morto, e eu disse a mim mesma que, como ele
está morto, andará atrás de mim eternamente.” Por esta colocação temos
que o cão é então uma representação da mãe (que não morreu, mas partiu,
andou, portanto anda morta, eternamente atrás dela). Mas, sem dúvida, mais
do que isto, é uma representação da filha, que deve continuar a caminhar
carregando a morte dentro de si. Este é o motivo pelo qual a narradora faz
convergir grande parte da carga emocional para o animal no decorrer da
narrativa. E quando ela se zanga com os funcionários do hospital por não
darem maior atenção ao animal, é sobre si própria que ela pretende chamar
a atenção. Quando ele desaparece, o que não significa que seus problemas
estão resolvidos, ela passa a outros elementos/saídas. O rapaz do walkman,
ao mencionar a construção da muralha da China a respeito do que ouviu no
aparelho, pode ser entendido como um astronauta (pela aparência com os
fones de ouvido) que, do planeta Terra, não enxerga outras minúcias, só a
muralha. Outra saída diferente é aquela representada pelo suicídio do poeta
Paul Celan. Como estas soluções não podem ser satisfatórias, ela transfere
seu ressentimento aos objetos que, mortos, guardam a beleza: os olhos de
vidro de Veneza comentados pelo falecido marido e uma velha árvore morta citada pela mãe. Por fim, a menção ao enterro do soldado. É algo mais
concreto, este morre mesmo, não parte, é enterrado, há uma mãe presente,
sofredora. Os outros presentes ao enterro, as autoridades, estão todos de
óculos escuros, alheios, enxugando o suór. Apesar da morbidez, o enterro
verdadeiro pode simbolizar alguma saída. É o único caso em que ao menos
existe uma pessoa viva sofrendo, extremamente oposta, como nos outros
casos, aos presentes alheios, aqui as autoridades impassíveis que, com seus
óculos escuros, parecem vir de outro planeta e a quem esta morte não toca.
O conto se encerra com a narradora no espaço aberto da avenida, entre as
árvores, no calor. Sobre as árvores, uma estreita senda branca. É um caminho?
“Uma história sem endereço”, como as outras obras de Yehudit
Hendel, traz uma energia explosiva que irrompe de um espaço interior ardente à procura de expressão, e nele a escritora revela sua face mais dolorosa. Concluímos com Afrânio Coutinho, quando este diz, referindo-se à crônica, que é um gênero altamente pessoal, uma reação individual, íntima,
– 141 –
ROZENCHAN, Nancy. O conto-crônica de Yehudit Hendel: um retrato do artista israelense.
ante o espetáculo da vida, as coisas, os seres, motivo pelo qual o cronista é
um solitário com ânsia de comunicar-se. Se conseguirmos entender as
mensagens e códigos de Hendel, teremos aprendido muito sobre nós mesmos. Somos os destinatários.
BIBLIOGRAFIA
HENDEL, Yehudit (1988) “Sipur bli ktovet” in Késsef katan. Keter & Hakibutz Hameuhad,
Jerusalém. Versão brasileira: “Uma história sem endereço” (tradução de Nancy
Rozenchan), maio de 1994. Shalom n. 301, p. 64-68.
COUTINHO, Afrânio (1976) Notas de Teoria Literária. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
Abstract: By approaching a story of one of the leading Israel’s writers,
Yehudit Hendel, this paper intends to point out how chronicle-genre’s
elements are used to encompass aspects of the narrator /writer’s personal
life, transforming the narration into a story where apparently discording
elements mingle together.
Keywords: Hebrew literature, genres, Hendel, Yehudit.
– 142 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 143-150, 1998.
ARMÊNIA: ROTA
DE MUITOS POVOS
Yêda de M. Camargo*
Resumo: Armênia, país da Ásia Menor, orgulha-se pela sua trajetória histórico-cultural há mais de trinta séculos. Foi muito visada, durante muitos
séculos, por romanos, gregos, árabes, turcos, etc., por situar-se, geograficamente, numa “encruzilhada”, obrigando a passagem de povos vizinhos
nesta região, objetivando transações comerciais.
As maiores influências deixadas nos costumes, arquitetura, vocabulário...
são de gregos, siríacos e árabes. Em contrapartida, influenciou consideravelmente a Geórgia.
Estabeleceu o Cristianismo – como religião oficial do país – em 301, firmado, a partir de então, a base social-política para sustentação do povo.
Palavras-chave: nacionalidade, civilização, influência, religião, alfabeto.
O armênio orgulha-se de sua antigüidade de mais de trinta séculos –
desde 1.200 a.C. – que viveu num setor delicado da Ásia Menor, numa
pátria sujeita às guerras contínuas, por ser sua posição geográfica uma
“encruzilhada”que serviu de rota de trânsito de diversos povos e ponto de
choque entre Ocidente e Oriente. A causa de todas as suas desgraças foi a
de estar no caminho dos grandes impérios, na charneira das civilizações
rivais e de ideologias opostas.
A Armênia teve – como vizinhos – povos e impérios numericamente
e materialmente superiores a ela, com os quais teve relações históricas,
culturais e comerciais, e muitos deles estão hoje desaparecidos da face da
Terra e o povo armênio, apesar de suas desvantagens e de sua inferioridade
numérica e os acontecimentos trágicos de sua história moderna, sobreviveu
e continua com dignidade sua existência do mundo civilizado, tendo representantes dignos em cada setor das ciências e da arte e até nas mais altas
esferas do mundo atômico.
*
A autora é Profa. Assistente do Departamento
de Línguas
Orientais da FFLCH/USP.
– 143
–
CAMARGO, Yêda de M. Armênia: Rota de muitos povos.
A posição geográfica da Armênia, historicamente, está sempre ligada aos três rios: Araxes, Eufrates e Tigre, onde, segundo a Bíblia, estava
situado o Éden.
Os etnólogos e os antropólogos concordam com o fato de que os
antigos povos da Ásia Menor: hititas, urartus, frígios, armênios, troianos
etc. pertencem ao mesmo grupo racial indo-europeu, e tiveram o mesmo
lugar de origem, ou seja, a vasta região que se estende entre os mares Báltico e Cáspio, que foi a pátria comum dos povos indo-europeus em geral.
Portanto, a base da língua armênia é indo-européia.
Do ponto de vista:
a) fonético – está no centro, entre os grupos eslavo, lituano e albanês;
b) do vocabulário – oferece semelhanças surpreendentes com o grego.
O armênio era falado muito antes da invenção do alfabeto, se não
pelo povo, mas, pelo menos, pela corte, nobreza e o clero. A prova está na
rapidez em que as obras foram traduzidas e a quantidade apresentada, após
a invenção do alfabeto: sem hesitações, nem revisões e nem correções.
Se a primeira tradução da Bíblia foi mais revisada não ocorreu pela
imperfeição do estilo, mas por se preocuparem com uma tradução mais
precisa.
E, assim, no princípio do século V, assistiu-se ao florescimento de
um idioma não somente puro e harmonioso, mas também maravilhosamente desenvolvido para permitir a tradução, em admirável estilo, das melhores obras gregas e siríacas.
O armênio antigo, o clássico, conhecido como “grabar”(língua escrita), que foi o literário durante muitos séculos, esteve em uso até final do
século passado.O outro, chamado “rancoren”(língua vulgar) foi empregado, a partir do século X, da nossa era.
No século XIX, esse idioma deu nascimento ao “ashjarabar” (fala do
povo), voltado ao grabar, como o francês e o italiano têm origem no latim.
Hoje, o “grabar” é utilizado na liturgia.
– 144 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 143-150, 1998.
No entanto, hoje, o “ashjarabar”- o armênio moderno – é adotado universalmente. Fala-se na Armênia e nas colônias armênias que se estendem
desde a Índia até a América. É, igualmente, o idioma da literatura moderna.
Distinguem-se dois grupos de armênio:
a) o armênio ocidental;
b)o armênio oriental.
O armênio ocidental se fala e se escreve na Ásia Menor e nas partes da
Armênia conquistada pela Turquia, como também nas colônias originárias
deste país.
O armênio oriental se fala na Armênia e em outras comunidades armênias
da ex-União Soviética, principalmente Rússia, Geórgia, Azerbaijão, Irã, como
também nas colônias armênias da Polônia, Hungria e Extremo Oriente.
RELIGIÃO
O Cristianismo havia começado sua penetração na Armênia, muito
antes de 301.
As bases da igreja Armênia foram estabelecidas por dois apóstolos
de Jesus Cristo: Tadeu e Bartolomeu, que pregaram a nova doutrina no país
e foram martirizados. Por essa origem, a igreja se intitulou Apostólica.
A obra dos dois apóstolos foi prosseguida por outros evangelistas
provenientes das regiões de Edesa e Cesaréia.
Em fins do século II, o número de cristãos na Armênia era bastante
numeroso.
Como os armênios não tinham letras próprias até então, empregavam o grego e o siríaco nos rituais das igrejas, incompreensíveis para a
maioria do povo.
Somente depois da invenção do alfabeto armênio (em 405 ) é que o
armênio foi a língua oficial empregada em todas as igrejas do país.
– 145 –
CAMARGO, Yêda de M. Armênia: Rota de muitos povos.
O povo armênio estava intimamente ligado a seus deuses pagãos e
foram necessários muitos anos de árduo trabalho para convertê-lo à doutrina cristã.
Por esse motivo, Trdat (monarca armênio) e São Gregório1 – o
Iluminador – (catholicós de 302 a 325 )foram obrigados a recorrer a meios
mais severos contra o paganismo, até mesmo com a força das armas.
Mas não era somente o fanatismo religioso o que impelia Trdat a
adotar medidas de força: o Cristianismo era uma arma política poderosa
para defender a independência da Armênia e a existência nacional de seu
povo.
Mais tarde, quando a Armênia enfrentava uma grave crise política, o
Cristianismo e as letras armênias foram as únicas armas que permitiram
preservar o povo armênio do perigo de sua fusão com os persas e os maometanos.
Somente adotando o Cristianismo, puderam os armênios manter sua
existência como entidade nacional.
Com a queda de Constantinopla, em 1453, e a subseqüente islamização
da Ásia Menor, os armênios – que recusaram a conversão ao Islamismo que
os incorporaria naturalmente à Grande Porta – adquiriram o “status” precário
de povo e religião minoritários, piorando muito sua situação legal. Essa situação delicada influiu consideravelmente no destino dos armênios, conduzindo-os a nichos de especialização funcionais no Império2,
Quando as dinastias turcas praticavam políticas internas de tolerância, a situação dos armênios era razoável, formando um contraste com paí-
1
2
Fez seus estudos em Cesaréia e exerceu seu apostolado na Armênia. Com o apoio moral e material
do rei converteu o povo armênio à fé cristã. Convencido da necessidade de ter sacerdotes instruídos para ajudá-lo em sua ação de propagar o Cristianismo, solicitou ao rei que abrisse escolas em
todos os distritos, nas quais milhares de adolescentes receberam não somente o ensinamento religioso mas também se iniciaram nas ciências profanas e aprenderam o grego e o siríaco.
“Nesta sociedade muçulmana turca, alguns armênios assumiram o papel de alguma forma parecido com o que os judeus ocupavam na Europa predominantemente cristã: eles transformaram-se
em banqueiros, artesãos habilidosos, burocratas e homens de negócio, alguns mesmo chegando ao
papel de conselheiros dos sultãos.”(Mirak, 1980: 137)
– 146 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 143-150, 1998.
ses da Europa Ocidental. E, nesse momento, os turcos acolheram diversos
judeus, expulsos da Península Ibérica pela Inquisição.
No período mais grave da história da Armênia, quando esta perdeu
sua autonomia política e esteve completamente submetida ao jugo das potências (séc. XV e XIX ), a Igreja assumiu a responsabilidade da direção
política do mundo armênio.
A aceleração da decadência do Império, no final do século XIX, tornou problemática a situação dos povos minoritários, acelerando uma política de assimilação dos povos não muçulmanos, tidos como enfraquecedores
da fibra guerreira dos turcos e como causadores da não-ajuda de Deus para
os empreendimentos do governo. Nessa época, começa uma série de
progrons que tinham nos armênios um dos alvos principais que, em conseqüência desses infortúnios, começam a emigrar.
Em 1908, com o advento do regime dos “Jovens turcos” o processo
se acelera, unindo-se às tradicionais tentativas de conversão e “turquificação” do Império a ideologia moderna do nacionalismo, ampliando o alcance das políticas assimilacionistas como justificativa à intolerância religiosa
que aparece de maneira intermitente.
O cerne desse processo foi o massacre em 1915: os turcos mataram
cerca de 1,5 milhão de armênios e milhares de sobreviventes, principalmente mulheres e crianças, foram deportados para a Síria e Líbano. Os
alvos realmente desses massacres eram os religiosos e intelectuais, o que
demonstrava a ânsia de desestabilizar a produção cultural da nação armênia.
A adoção do Cristianismo é um dos fatores mais importantes da história do povo armênio, possibilitando mais ainda a união do povo pela fé
única que sempre lutou pela não-divisão de suas terras e pela preservação
de sua identidade cultural, tão rica, tão marcante.
Na Diáspora Armênia há a igreja protestante, católica e apostólica.
Os protestantes são minoria; os apostólicos são maioria; os católicos
ocupam a segunda posição. Estes remontam-se à origem do cristianismo
armênio e jamais deixarão de existir pela sua missão, pela sua crença.
A imensa maioria dos armênios deve obediência à Igreja gregoriana,
ou seja, apostólica. A expressão própria para designar a Igreja dita gregoriana
é Igreja armênia apostólica. Na verdade, o ritual é que é gregoriano.
– 147 –
CAMARGO, Yêda de M. Armênia: Rota de muitos povos.
O ALFABETO
ARMÊNIO
Os armênios não dispunham de uma escritura própria, ou melhor, de
um instrumento de expressão escrita de sua própria língua e, então, viam-se
forçados a escrever na língua de povos vizinhos.
Portanto, a língua grega e a siríaca foram utilizadas em documentos
oficiais da época e como veículo de expressão literária e teológica, criando
uma situação constrangedora, assim como produzindo riscos para a identidade cultural e nacional.
Muito se pensava sobre qual caminho tomar. O grego foi analisado
para servir como fonte para um alfabeto nacional.
Foi Mesrob Mashdotz (360-440) e seus colaboradores, com apoio de
autoridades políticas (rei Vramshabuh) e religiosas (catolicosse Sahague) 1
que criou, por volta do ano de 405,o alfabeto armênio. Para salvaguardar a
“armenidade”, a arma da escrita própria era a solução que garantiu, para a
nação, a intangibilidade de sua alma e assegurar-lhe uma reserva de forças
para os dias vindouros. Os fatos não tardariam a confirmar a sabedoria
desta criação. Portanto, foi nessa base cultural que o povo armênio organizou a vida em previsão das vicissitudes de sua história política, naquela
adversa composição étnico-geográfica. Passando mesmo os limites, colocou a religião a par com a nacionalidade, fazendo da “Igreja” um sinônimo
de “Escola” e desta a trincheira da sobrevivência nacional.
A criação do alfabeto armênio teve razões políticas e sociais que
objetivava a guarda da cultura dos ancestrais.
Jamais coube, em qualquer época e em qualquer país, à escrita, ou
seja, a um alfabeto, papel tão relevante e significativo na vida políticosocial de um povo, como ao armênio.
3
Sahague, chamado “O Grande”, era filho do catholicós Nersés – o Grande. Sucedeu seu pai com
a colaboração de Mesrob, dando um grande impulso à instrução do povo. Independente da ação
diplomática que exerceu diante dos persas ou dos gregos, a pedido do rei e dos príncipes feudais,
revelou-se como um grande animador do novo espírito cristão. Realizou profundos estudos em
Bizâncio e Cesaréia. Era muito respeitado pela sua eloqüência e seus escritos. Sabemos que participou das traduções das obras gregas, especialmente à da Bíblia.
– 148 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 143-150, 1998.
INFLUÊNCIA GREGA, SIRÍACA E ÁRABE
• A cultura grega na Armênia data da conquista de Alexandre Magno, mas
o helenismo concebido por esse monarca progrediu muito lentamente.
Foi Tigran II (94-54 a.C.) quem estabeleceu o grego como língua de sua
corte. Seu filho Artabast (56-34 a.C.) foi autor em língua grega, compondo nesse idioma tragédias e discursos. A Armênia deu boa acolhida aos
monges gregos que penetraram ali pelo lado oeste.
• O princípio das relações com a Síria foi mais freqüente que com os gregos, devido às tradições comuns entre o povo armênio e o siríaco de
Edesa, com suas célebres escolas. Foram nestas escolas que os armênios
buscavam o equilíbrio espiritual e o conhecimento intelectual que lhes
faltava. Ao retornar à Armênia, liam a Bíblia nas igrejas nacionais e praticavam os ritos na língua siríaca. A partir do momento em que os armênios
apreciaram a superioridade da cultura greco-romana, partiram de Edesa
e dirigiram-se às escolas de Bizâncio, Atenas e Alexandria. No século
VII, os estudos gregos foram retomados, todavia, sem muito empenho. A
influência grega e siríaca tinha se manifestado:
no vocabulário: pela adoção de palavras gregas e siríacas;
na sintaxe e no estilo: pelo emprego de gírias próprias dessas línguas.
Os monges siríacos penetraram na Armênia pelo lado sul, com o
objetivo de evangelizar o país.
• Segundo muitos críticos armênios, a língua e a literatura armênia foi influenciada pela literatura árabe. Alguns autores transpareceram muita
prodigalidade e prolixidade: próprio do árabe. Estes permaneceram na
Armênia por um século e meio. Contudo, não se tem registro de que os
autores que sofreram a influência árabe conheciam o árabe.
Além da influência grega, siríaca e árabe, a Armênia recebeu influências de outros povos, assim como também influenciou outras localidades, como a Geórgia, por exemplo, na religião, na cultura, na arquitetura.
– 149 –
CAMARGO, Yêda de M. Armênia: Rota de muitos povos.
BIBLIOGRAFIA
ALEM, J. P. L’Arménie. Paris, Presses Universitaires de France, 1959, p. 88-104.
ARTZRUNI, A. História do Povo Armênio. Editora da Comunidade da Igreja Apostólica
Armênia do Brasil, 1976.
GRÜN, R. Negócios & Famílias: armênios em São Paulo. S.Paulo, Editora Sumaré, 1992.
NERSESSIAN, S. Os armênios. Editorial Verbo, 1973.
SAPSEZIAN, A. História da Armênia. S.Paulo, Paz e Terra, 1988, p. 15-35.
________ Literatura Armênia. S. Paulo, Paz e Terra, s/d
KEROUZIAN, Y. O. “O povo armênio e sua evolução histórica”. Revista de História, Ano
XV Vol. XXVIII, n. 58, DH/FFLCH/USP, abril-junho, 1964.
THOROSSIAN, H. Historia de La Literatura Armenia. Buenos Aires, Organización Juvenil de la Iglesia Armenia, 1959.
Abstract: Armenia possesses historical and cultural trajectory embracing
more than thirty centuries. Romans, greeks, arabs and turks all invaded
Armenia with the objective of conquerting it, besides taking advantage of
its stratetig posicion on the commercial route between East and West which
crossed Armenia with an established religion, with own alphabet it was
able to defend itself and exists until today.
Keywords: nationality, civilization, influince, religion, alphabet.
– 150 –
TRADUÇÃO
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 153-159, 1998.
LETRADOS
E ALMOCREVES:
UM TRATADO ÁRABE DO SÉCULO
VIII
Mamede Mustafa Jarouche*
Resumo: Em língua árabe, a epístolografia de caráter profano começou a
desenvolver-se a partir de finais do século VII – as manifestações anteriores são de importância reduzida. Foi com cAbd-ul-Hamíd, al-Kátib, que o
gênero ganhou características por assim dizer “literárias”. Neste artigo,
apresenta-se uma tradução de seu principal trabalho, denominado “Epístola aos letrados”, composição na qual se apresentam regras de comportamento a esse grupo.
Palavras-chave: Epístologia árabe, literatura árabe, letrados, islamismo,
poder e letras, política muçulmana medieval.
Primeiro em data, ou mais propriamente fundador da epistolografia
em língua árabe, são poucos os dados concretos a respeito de ’Âbú Ghálib
c
Abd-ul-Hamíd bin Yahya bin Sacd bin cAbd-Illáh bin Jábir bin Málik bin
Hajr bin Mucís bin cÁmir bin Lu’í bin Ghálib, ou simplesmente cAbd-ulHamíd, al-Kátib (“o escriba”, por antonomásia). Sabe-se que descendia de
uma das inúmeras famílias de clientes persas que se agregaram a clãs árabes (no caso, os Banú cÁmir) durante a expansão islâmica. O historiador e
crítico libanês cÛmar Farrúkh presume que tenha nascido por volta de 680
d.C. (60 H.) na cidade de al-’Anbár, às margens do rio Eufrates. Após ter
trabalhado como professor na cidade de Kúfa, estabeleceu-se como escriba
dos califas da dinastia omíada desde cAbd-ul-Mâlik (685-705) até Marwán
(744-750), tendo sido morto em 756 d.C., após a deposição desse último
pela dinastia abássida. Contam os relatos históricos que ele teria sido ligado por fraternal amizade a Ibn-ul-Muqaffac, o tradutor do Livro de Kalíla e
Dimna. Nos textos que a tradição atribui a Ibn-ul-Muqaffac – basicamente,
o Livro de Kalíla e Dimna, o Grande livro da boa conduta e a “Epístola
sobre os companheiros [dos califas]” –, o estilo é muito semelhante.
*
O autor é Prof. Dr. do Departamento de Línguas
da FFLCH/USP.
– 153 Orientais
–
JAROUCHE, Mamede Mustafa. Letrados e almocreves: um tratado árabe do século VIII.
Além do texto cuja tradução ora se apresenta, parece que cAbd-ulHamíd redigiu diversas outras epístolas, uma das quais sobre a caça e outra
sobre o jogo de xadrez. Desde as observações do crítico e escritor egípcio
Táha Husayn (1889-1973), houve quem atribuísse a cAbd-ul-Hamíd conhecimentos da língua grega; trata-se porém de suposição. Só se tem certeza de
que o mestre com quem ele supostamente estudou – Sálim bin cAbd-Illáh,
também seu cunhado e, como ele, agregado persa – conhecia o grego; o autor,
por outro lado, não ignoraria a língua de seus ancestrais, o persa. A data exata
de composição da “Epístola aos letrados” é desconhecida, podendo-se apenas situá-la na primeira metade do século VIII. Deve-se observar, contudo, que
algumas de suas comparações são trans-históricas, diga-se assim; além do
mais, a obrigação dos letrados de servir ao Poder – muito explicitamente
colocada – reveste-se de notável atualidade. Nada de velho no front.
Para a tradução, foi utilizada a excelente edição crítica estabelecida pelo escritor e crítico saudita cAbd-ul-cAzíz ar-Rifácí.1 É um texto que se afasta
bastante da única versão conhecida no Brasil, e que está contida nos Prolegômenos, de Ibn Khaldún, traduzidos por José Khoury na década de 60. A versão
que Ibn Khaldún reproduziu em seu livro do século XIV, e que foi largamente
utilizada no Mundo Árabe, apresenta diversas falhas, incongruências e
embaralhamentos que ar-Rifácí corrigiu ao estabelecer sua edição crítica, cotejando todos os textos da tradição antiga que contêm a “Epístola aos letrados”.
EPÍSTOLA AOS LETRADOS2
c
Abd-ul-Hamíd, al-Kátib
’Amma bacd3 : Ó gente que pratica este mister, que Alláh vos preserve,
proteja, dê sucesso e oriente, pois Alláh exalçado e poderoso criou as pessoas
1
2
Rifácí, cAbd-ul-cAzíz ar- (org. e intr.). Min cAbd-il-Hamíd al-Kátib ’ilàl-kuttábi-wal-muwazzafína.
Riad (Arábia Saudita), al-Mâktabatus-Saghíra, 1973 (texto às p. 49-62). O tradutor agradece ao
Prof. Dr. Helmi Nasr e à Profa. Safa Jubran pelo esclarecimento de diversas passagens obscuras do
texto original, bem como à Profa. Dra. Aida Hanania pelo estímulo e pela revisão da versão final.
Em sentido estrito, a expressão “kuttáb” (plural de “kátib”) pode significar “escribas”, “escreventes” ou “escritores”. Preferiu-se aqui a expressão “letrados”, mais abrangente que as demais.
–154 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 153-159, 1998.
– após os profetas e os enviados, que suas preces estejam sobre eles todos, e após
os reis veneráveis – como um rebanho, e as distribuiu em várias atividades das
quais retiram seu sustento4 . Ele assim vos colocou, ó letrados, na atividade mais
digna: gente educada, viril, ajuizada, ponderada, grave, laboriosa, capacitada nos
méritos e nas dádivas. É convosco que o reino se organiza, e os assuntos dos reis
são tratados corretamente; é com vosso preparo e condução que Alláh faz que o
poder dos reis seja bem exercido, seu imposto, bem recolhido e seu país, bem
construído. O rei precisa de vós nas graves questões de seu reino, e o governante,
nos altos e baixos desígnios de seu governo. Ninguém pode dispensar-se de vós,
pois só entre vós se encontram pessoas capazes para isso. Vossa posição relativamente a eles é a da audição com a qual escutam, da visão com a qual vêem, da
língua com a qual falam e das mãos com as quais arremetem. Vós – caso as
coisas estejam em seus devidos lugares – sois as pessoas de sua confiança, logo
abaixo dos membros de sua casa, dos filhos, dos parentes e dos conselheiros.
Alláh, que vos privilegiou com o mérito de vossa atividade, não vos privará do
manto da benesse.
Ninguém, dentre todas as outras atividades, tem mais necessidade de
se apropriar das louváveis porções do bem, e das lembradas e limitadas
frações do mérito, do que vós, ó letrados. Se acaso tiverdes as mencionadas
qualidades aqui citadas, sabei que o letrado necessita em seus graves assuntos, para si mesmo e para o colega que nele acredita, ser generoso quando a generosidade for adequada, sábio quando a sabedoria for adequada,
arrojado quando o arrojo for adequado, cauteloso quando a cautela for adequada, afável quando a afabilidade for adequada e rude quando a rudeza for
adequada; inclinado à honestidade, justiça e eqüidade, discreto e solidário
nas adversidades. Sabedor do que deve ou não ser feito, coloca todas as
questões em seu lugar pertinente, após ter observado e dominado todas as
espécies de conhecimento, se não na totalidade, ao menos na parte suficiente, a tal ponto que prevê, com a espontaneidade de sua inteligência, com
a excelência de sua educação e com o mérito de sua experiência, o que lhe
ocorre antes de sua ocorrência, planejando para cada caso uma solução e pre3
4
Expressão que se utiliza quando se vai entrar diretamente no assunto tratado.
Em alguns manuscritos, consta a observação de que “as pessoas, na verdade, são iguais”.
– 155 –
JAROUCHE, Mamede Mustafa. Letrados e almocreves: um tratado árabe do século VIII.
parando para cada problema uma saída. Acorrei, pois, ó letrados, a todos os
ramos do conhecimento e da educação; aprimorai-vos na religião, começando
pelo livro de Alláh5 poderoso e exalçado, pelos preceitos religiosos, pela jurisprudência e pelo direito de herdade, e a seguir pela língua árabe, que é a ferramenta de vossas línguas; lapidai a caligrafia, que é o ornamento de vossos
escritos, e recitai as poesias, não sem lhes conhecer as obscuridades e os sentidos, e as guerras dos árabes e dos persas, suas histórias e biografias, e isso vos
auxiliará a elevar-se em vossas missões. Que vossas vistas não vacilem de
forma alguma no que se refere ao cálculo, que é a base do livro de impostos.
Afastai-vos das altas e baixas ambições, e das questões baixas e vis, que produzem cervizes inclinadas e letrados corrompidos. Aperfeiçoai vossa atividade e
afastai vossos espíritos da maledicência, da intriga e dos demais procedimentos das gentes pérfidas e ignorantes. Muito cuidado com a arrogância e a autosuficiência, que são inimizade conquistada sem ódio6 . Queirai-vos bem, em
Alláh poderoso e exalçado, no âmbito de vossa atividade; recomendai-vos a
ela, que é peculiar, entre vossos predecessores, às pessoas de mérito e nobreza.
Se o destino for cruel com algum de vós, solidarizai-vos e acorrei a
ele, até que retome seu antigo estado. Se a velhice impedir algum de vós de
sustentar-se e conviver com os colegas, visitai-o, louvai-o, consultai-o e
demonstrai o mérito de sua opinião, sua experiência e seus conhecimentos
há tanto tempo adquiridos. Que cada um de vós seja, para quem foi generoso e ajudou num momento de necessidade, mais amável e solícito do que
para um irmão ou um filho; assim, caso ocorra em vosso trabalho algo
louvável, deveis atribuí-lo ao colega, e, caso ocorra algo adverso, deveis
carregá-lo sozinhos. Acautelai-vos do erro, deslize e pessimismo quando a
situação estabelecida se modifica. Para vós, ó letrados, a desonra chega
mais rápido do que à mulher7 , e a vós é mais danosa do que a ela. Já sabeis
que cada um de vós deve, inicialmente, compreender as pessoas com a
quais convive mediante sua presteza, gratidão, tolerância, paciência, bons
5
6
7
Refere-se ao Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos.
Entenda-se: quem se comporta de forma arrogante e auto-suficiente conquista inimigos entre pessoas contra as quais não nutre qualquer ódio.
Em algumas edições consta “espelho” em vez de “mulher”. A grafia de ambas as palavras é quase
idêntica em árabe.
–156 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 153-159, 1998.
conselhos, discrição, sobriedade e prevenção, mas a partir do que as pessoas fazem quando tais virtudes não são necessárias8 . Doai – que Alláh vos
dê sucesso – de si mesmos, tanto nos momentos de abundância quanto de
dificuldade, de penúria ou de favorecimento, de melhora ou de piora, de
revolta ou de satisfação, de riqueza ou de pobreza, pois esses sinais caracterizam as pessoas dessa digna atividade.
Se alguém dentre vós for empossado no Poder, e lhe for conduzida
uma questão de algum dos servos e criaturas de Alláh, que Alláh vigie a
decisão a respeito, e que a obediência a ele influencie tal decisão; que seja
amigo do fraco, e justo com o oprimido, pois as criaturas são adoradoras de
Alláh, que tanto mais as ama quanto mais sejam generosas com os adoradores
dele. Que governe com a verdade, dignifique e reconheça as pessoas dignas, economize o dinheiro público, faça o país prosperar, e seja amistoso
com o rebanho, humilde em seu conselho, generoso e afável, e indulgente
na coleta de seus impostos e na cobrança de seus direitos.
E quando alguém dentre vós estiver com um companheiro, que procure examinar seu caráter da mesma forma que examina uma roupa que
compra para si, pois distinguir suas qualidades de seus defeitos ajuda a
beneficiar-se das primeiras e a evitar os últimos; isso deve ser feito com a
mais sutil estratégia e a maior dissimulação e doçura. Já sabeis que, quando
hábil e experiente, o almocreve procura conhecer as características da
azêmola: se ela for dada a coices, tomará cuidado com suas patas traseiras;
se for teimosa, evitará deixá-la agitada; se for violenta9 , prevenir-se-á de
suas patas dianteiras. Caso tema uma mordida, precaver-se-á de sua cabeça; se ela for recalcitrante10 , não a provocará, deixando-a seguir o caminho
até que se acalme. Assim, seu trabalho estará facilitado.
Nessa descrição – do almocreve e de sua habilidade – há lições e
educação para quem conduz as pessoas, ou serve, lida e convive com elas.
8
9
10
Entenda-se: as virtudes citadas (presteza, gratidão etc.) só são válidas quando o contexto em que
se dão não as exige. Ou seja, quando não se é coagido a demonstrá-las. Postula-se, aqui, a naturalidade na afetação.
Usa-se, no original, a palavra “šamús”, que indica o animal que, erguendo-se, golpeia com as
patas dianteiras.
Usa-se, no original, uma palavra intraduzível (“harún”), que indica o animal que repentinamente
pára de correr e começa a voltar para trás.
– 157 –
JAROUCHE, Mamede Mustafa. Letrados e almocreves: um tratado árabe do século VIII.
Com o mérito de suas opiniões, a dignidade de sua atividade, seu
sutil trato e estratégia em relação àqueles com quem dialoga e discute, ou
com quem lhe pede explicações, ou com quem o teme, o letrado é mais
capaz de dominar, dissimular e avaliar os defeitos das pessoas com as quais
convive do que o almocreve, pois a azêmola não fala nem discerne o certo
do errado, e depende do caminho que lhe é imposto pelo condutor, ou por
quem nela esteja montado. Assim, que Alláh tenha misericórdia de vós,
aguçai a visão, utilizai a reflexão e o pensamento, e dessarte evitareis, com
a permissão de Alláh, o desdém, o tédio e a rudeza das pessoas com as
quais conviveis, assegurando-vos, pelo contrário, de sua concórdia, amizade e solicitude, se Alláh quiser.
Que nenhum homem dentre vós ultrapasse, em sua maneira de sentar-se, vestir-se, montar, comer e beber, e em sua prole e serviçais, e em
outros assuntos que lhe sejam atinentes, os limites impostos por sua condição, pois vós – apesar do mérito que Alláh vos concedeu em vossa digna
atividade – sois também serviçais em cujo trabalho não se suportam falhas,
e tesoureiros e guardiões dos quais não se toleram dilapidação ou desperdício. Orientai-vos honestamente no bom caminho em tudo que vos enumerei. Para vós a melhor assistência é a manutenção de vossa religião, a preservação de vossa segurança e a obtenção de vosso sustento. Precavei-vos
das desgraças da ostentação e das más conseqüências do exibicionismo,
que prenunciam a pobreza, fazem a cerviz inclinar-se e expõem quem as
pratica ao escândalo, sobretudo os letrados.
Para cada assunto há um outro que lhe é similar, e uns fornecem
indícios para os outros; assim sendo, orientai-vos, nos assuntos novos, em
vossa experiência prévia, e depois percorrei, na senda de seu planejamento,
aquela cujos caminhos sejam os mais claros, cujas justificativas sejam as
mais corretas e cujas conseqüências sejam as mais louváveis. Sabei que
cada forma de planejamento implica transtornos e problemas que não se
concentram jamais numa só delas. É essa a característica que atrapalha a
execução do trabalho e as reflexões sobre ele. Que cada um de vós seja,
portanto, no seu local de planejamento, o mais reservado possível, que só
fale o essencial, que seja breve ao iniciar as exposições, que leve em consideração todas os aspectos da questão: disso decorrerá benefício para seu
raciocínio, ajuda para sua inteligência e economia de seu tempo; que se
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 153-159, 1998.
humilhe diante de Alláh rogando sucesso e bom desempenho, por temor de
cometer erros perniciosos no que se refere a sua religião, inteligência ou
educação. Se algum dentre vós pensar ou disser que sua eficiência no trabalho e seu intenso desempenho somente se devem ao mérito de sua estratégia, à correção de seus pontos de vista e a seu bom planejamento, estará
exposto a ser abandonado sozinho por Alláh, ficando assim sem ter quem o
valha. Que nenhum de vós alegue ser mais educado, inteligente ou capaz de
planejar e trabalhar do que o colega de atividade, pois, entre dois homens,
o mais inteligente será, para as pessoas ajuizadas, aquele que diz que o
colega é mais inteligente, e o mais néscio será aquele que acredita ser ele
próprio mais inteligente que o colega, [e isso porque o último ostenta autoadmiração e faz pouco caso da capacidade do outro. Essa é uma das grandes calamidades da inteligência.]11 Isso não impede, porém, que o homem
reconheça os méritos do bem-estar que Alláh lhe proporcionou, sem que
isso implique necessariamente auto-admiração por seus pontos de vista ou
prosápia ou arrogância para com colegas e companheiros, e sim, humildemente, gratidão e louvor a Alláh por sua grandeza.
E aqui finalizo citando um provérbio já conhecido, “quem aceita
conselhos trabalha bem”, e que constitui a essência deste escrito e a parte
principal de sua argumentação, logo após a citação de Alláh poderoso e
exalçado. É por isso que a pus no final e com ela finalizo, que Alláh nos
proteja e a vós, ó letrados, da mesma forma que protegeu quem já conheceu
sua felicidade e orientação. Tudo isso pertence a ele e está nas mãos dele.
Que a paz e a misericórdia de Alláh estejam sobre vós.
Abstract: In Arabic, epistography in a profane manner has begun developing
towards the end of seventh century as earlier manifestations are of less
importance. Tanks to cAbd-ul-Hamíd, al-Kátib, the genre has gained
somewath “literary” characteristics. The study will focus on a translation
of his main work – “Epístola aos letrados” (“Epistle to learned men”),
wich includes rules of behaviour for this group.
Keywords: Arabic epistography, Arabic literature, learned men, Islamism,
power and letters, Medieval Muslim politics.
11
O trecho entre colchetes é obscuro e sua tradução, duvidosa.
– 159 –
ENTREVISTA
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 163-169, 1998.
GEORGES NIVAT
OS ESTUDOS ORIENTAIS
O Professor Georges Nivat é diretor do Departamento de línguas e literaturas mediterrâneas, eslavas e orientais da Universidade de Genève e esteve no Brasil a convite do CEPST (Centro de Estudos sobre os Países
Socialistas em Transformação) e do IEA (Instituto de Estudos Avançados)
para participar do Seminário Internacional “Revolução de Outubro – 80
anos” que ocorreu de 3 a 5 de novembro/97 na USP, sob a coordenação da
Profa. Dra. Lenina Pomeranz, diretora científica do CEPST.
O professor Nivat é especialista em literatura e cultura russas e proferiu
também, a convite da Área de Russo e do Departamento de Línguas Orientais, uma palestra sobre o tema “A dissidência e a “inteliguêntsia” na Rússia”.
Ele concedeu, em sua rápida passagem por São Paulo, uma entrevista à
Profa.Dra. Arlete Cavaliere, coordenadora do Curso de Russo da FFLCHUSP, que a traduziu do Francês ao Português.
A.C. Como o senhor vê hoje os estudos de línguas orientais na Europa diante
das condições políticas, econômicas e sociais desse final de milênio?
G.N. Mais do que nunca as línguas orientais são necessárias. Elas dizem
respeito a um vasto arco continental que vai da Europa ao Pacífico, isto é,
o imenso arco eurásico, no centro do qual está a Rússia.
O árabe, o russo, o chinês, o japonês são línguas e culturas chaves do
futuro do mundo, na medida em que se pode prever que, num fututo próximo, será lá que vai se dar o próximo drama geopolítico, tendo a China
como eixo.
Além disso, essas culturas do futuro estão também entre as mais antigas da
humanidade, como a chinesa, a coreana ou a japonesa. Eu mesmo tive
contacto com a cultura japonesa, sem saber o japonês, infelizmente. Publiquei dois livros no Japão e fiquei bastante seduzido pela mistura estranha
de modernismo e arcaísmo que há–nesse
163 – país.
NIVAT, Georges. Os Estudos Orientais.
A.C. Que papel desempenham, ou deveriam desempenhar, os estudiosos da
arte e da literatura desses países do oriente, cujo interesse mundial parece
hoje recair muito mais nas oscilações de seus mercados de capitais?
G.N. Nenhum intercâmbio econômico profundo pode se dar sem um intercâmbio cultural. Penso que é totalmente falso pensar que o inglês “global”, este dos traders e dos pilotos de avião, pode ser suficiente para o
bom andamento da economia. Pelo contrário, pode-se constatar que não
existe penetração duradoura, importante e significativa sem o conhecimento do espírito característico desses países, o que implica o conhecimento da língua e da sua civilização.
Assim, evitaremos a criação de esteriótipos grotescos sobre os quais o
Ocidente exerce frequentemente um triste monopólio a respeito desses países longínquos: as formigas laboriosas do Japão, a homogeneidade da
China são verdadeiros absurdos.
Quanto ao diálogo das culturas, para retomar a bela fórmula de Denis de
Rougemont, ele nos é absolutamente necessário para compreendermos a
nós mesmos e para podermos escapar à essa falsa globalidade de produtos
culturais enlatados, provenientes unicamente dos Estados Unidos.
A.C. Com relação à Rússia, quais seriam os seus prognósticos para um
futuro a médio e longo prazo? Que país está surgindo depois da queda da
URSS? Há progressos? Há retrocessos?
G.N. Penso que a Rússia está indo definitivamente rumo ao progresso. Sair
do comunismo foi extremamente difícil, já que o comunismo havia destruído
todo o antigo regime: não havia mais sociedade civil no sentido ocidental
deste termo. A crise não acabou, mas dois fatos se impõem: primeiro a
estabilização política e a instauração de uma democracia política, imperfeita, de onde desapareceu o medo e onde o pluralismo plantou raízes. Em
segundo lugar, a estabilização econômica, no sentido de que a inflação foi
controlada e que o crescimento econômico acaba de de ser retomado, mas
sobre novas bases econômicas que são as do mercado*. Os vários votos
significativos da Rússia desde que a ditadura comunista acabou confirma– 164 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 163-169, 1998.
ram, de maneira surpreendente, que a maioria dos russos não quer dar um
passo atrás, e, como consequência, tem aceito as privações e desordens
sociais graves que resultaram do fim daquilo que eu chamaria de o
“welfare” do pobre soviético. As eleições presidenciais foram um referendum contra ou a favor da volta dos comunistas, e confirmaram esse voto.
Por outro lado, as eleições parlamentares dispersaram as vozes e mostraram uma maioria de descontentes, mas que, infelizmente, não representa
muito bem as queixas das diferentes classes sociais da Rússia.
A.C. Como se situaria hoje a Rússia em relação ao oriente, já que, como sabemos, sua história tem raízes e vínculos profundos com o mundo oriental?
G.N. A Rússia é uma grande potência asiática. Ela tem uma brilhantíssima
escola de orientalistas. Hoje ela mantém com a China uma política de
cooperação bastante cínica, uma espécie de prolongamento das alianças
do século XIX. Com a Europa, sua cooperação é muito mais profunda porque há numa parte da sociedade russa, um profundo desejo de se tornar
europeu em pé de igualdade com a Europa ocidental. Um terceiro sonho
geopolítico russo é o de se tornar uma grande potência do Pacífico. Teoricamente, isto não é impossível e o Extremo Oriente russo se transformaria
numa espécie de Califórnia siberiana, com a ajuda dos japoneses. Mas
isto é ainda apenas uma longínqua música do futuro, e a questão ridícula
das ilhas disputadas com o Japão é um obstáculo atualmente a qualquer
progresso real.. Mas eu não excluo absolutamente que durante o século
XXI esse sonho do pacífico da Rússia não se tornará realidade.
A.C. E com relação ao ocidente? Ainda prevalece a antiga querela “ocidentalistas X eslavófilos”?
G.N. Numa parte ainda pouco modernizada da Rússia de hoje a clivagem
Ocidentalistas-Eslavófilos existe e persiste, na medida em que, depois do
*
Esta avaliação se refere à situação da Rússia em fins de 1997, quanto foi feita a entrevista ao Prof.
Nivat, antes portanto dos recentes acontecimentos que vêm abalando a economia russa e a mundial. N. da T.
– 165 –
NIVAT, Georges. Os Estudos Orientais.
desaparecimento da ideologia soviética, o nacionalismo serviu para a parte pobre e desamparada da sociedade como uma ideologia de substituição,
com uma aliança entre comunistas e nacionalistas de diferentes escolas.
Mas a metade ativa, e sobretudo jovem da Rússia, nem mesmo se coloca o
problema: está determinado, a Rússia é “ocidentalista”, no sentido de que
ela quer entrar no mercado mundial, numa sociedade de abundância, e no
livre comércio e circulação das coisas e das pessoas. O problema talvez
seja mais: a Rússia vai se tornar mais européia ou mais americana?
A.C. Que avaliação o senhor faria dos resultados das discussões que ocorreram no Seminário Internacional: “Revolução de Outubro: 80 anos”?
G.N. A conferência de São Paulo nos ajudou a fazer um balanço moral da
Revolução de Outubro à luz das transformações atuais, e de ver aquilo que
há de cinismo político, de utopia, e também as outras utopias que existiam
na Rússia em 1917. Como, por exemplo, a utopia de Tchaianov sobre quem
nos falou um de nossos jovens colegas brasileiros, Ricardo Abramovay1 . Ou
ainda, a utopia cristã-socialista, aquela de Pierre Pascal, que foi meu mestre, e sobre o qual falou o professor Carone2 , evocando a figura de Jacques
Sadoul. De fato, existia uma abundância de utopias, de sonho utópico na
Rússia durante todo o século XIX e a utopia “cientista” marxista que impôs
o seu monopólio era apenas uma das fórmulas do sonho social russo.
O enfoque regional dado pelo professor Raleigh3 foi também muito interessante e redimensionou a questão.
O professor Afanássiev4 tentou indicar todos os caminhos que ainda podiam ser explorados e enfatizou a via cultural, que é um pouco a minha. Ele
1
2
3
4
Professor do Departamento de Economia da FEA-USP e seu tema foi “O cosmopolitismo da utopia camponesa da Alexander Chaianov”. N. da T.
O Professor Edgar Carone do Departamento de História da FFLCH-USP falou sobre “Duas visões
sobre a Rússia: André Marty e Jaques Sadoul”. N. da T.
Donald Raleigh, Professor de história russa da Universidade de North Carolina expôs sobre o tema
“A Revolução de Outubro na Rússia provinciana”. N. da T.
Iuri Afanássiev, Reitor da Universidade Estatal Russa de Humanidade, apresentou uma exposição
sobre “Outubro de 1917 na herança histórico-cultural do século XX”. (N. da T.)
– 166 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 163-169, 1998.
teve razão em demonstrar que tudo deveria ser repensado depois da queda
do dogma soviético e de sua aura em todo o mundo, inclusive no Brasil.
A.C O senhor é diretor do Departamento de línguas e literaturas mediterrâneas, eslavas e orientais da Universidade de Genève. Quais são as áreas de
estudos de língua e literatura que integram o seu Departamento?
G.N. Nossas áreas são muito variadas e trabalhamos com plena autonomia, mas eu diria que a orientação geral é a orientação da História da
Cultura e também a História da Religião, na medida em que os modos de
pensamento religioso são marcos importantes de uma civilização. Em minha área de russo, estudamos particularmente a emigração russa enquanto fenômeno cultural e social, assim como a vanguarda cultural soviética,
igualmente enquanto fenômeno social e político. Estudei bastante também
a dissidência russa dos anos 60 e 70, enquanto fenômeno anunciador, sem
o qual não se pode compreender a evolução ulterior da URSS e o desmoronamento da ideologia soviética.
A.C. Há áreas mais concorridas do que outras no que se refere ao número
de estudantes? Quais seriam elas e qual o número médio de alunos?
G.N. Numa ordem estatística podemos classificar nossas áreas da seguinte
forma: russo (por volta de 150 alunos), chinês (quase o mesmo), japonês,
árabe, grego moderno e armênio. Meus estudantes estudam com frequência
autores russos contemporâneos, como Pietsoukh ou Makanin, Petruchevskaia,
ou um autor de que gosto muito e que eu fiz conhecer na França: Mark
Kharítonov.
A.C. E o número de docentes? Há um número suficiente de professores
para cada área?
G.N. Temos dois titulares de russo, um de chinês, um de japonês, um de
árabe e um número razoável de assistentes. O grego moderno e o armênio
– 167 –
NIVAT, Georges. Os Estudos Orientais.
não possuem titulares. Temos grandes dificuldades em convencer os outros
departamentos da Faculdade de Letras à qual nós pertencemos, que cada
área é em si um departamento e que seriam necessários seis orçamentos
para a biblioteca, seis cotas de pesquisa distintas etc. Além disso, a Universidade de Genève está em crise orçamentária, com reduções anuais na
ordem de 3%. É muito.
A.C. O seu Departamento mantém intercâmbios com outros centros de estudos europeus ou americanos? Há regularmente professores visitantes?
G.N. Nossos intercâmbios são principalmente pessoais, iniciativas de cada
professor. Há intercâmbios com Tokyo, Moscou, Pekin. Com os colegas
americanos são contactos pessoais (eu mesmo passei um ano em Harvard).
Recebo colegas do Leste num acordo com o Instituto Europeu de nossa
Universidade, do qual me ocupo também: todo ano dois professores por
três ou quatro meses, sobretudo russos e ucranianos. Consegui estabelecer
todo um programa de intercâmbio e de convites com a Universidade de
Kíev que retomou o velho e prestigioso nome de Academia Mohyla.
A.C. Quais as principais linhas de pesquisa que o seu Departamento desenvolve em nível de pós-graduação?
G.N. Neste momento tenho alguns doutorandos que trabalham sobre a
emigração russa (a revista Vozrozdenie), sobre o satirista e sociólogo
Zinoviev, sobre o filósofo eslavófilo Leontiev. Tenho também um trabalho
em desenvolvimento sobre as relações entre a maçonaria de Genève e a
maçonaria russa no início do século XVIII.
Recentemente foi defendida uma tese sobre Mallarmé na Rússia. Os problemas da recepção de um poeta numa outra cultura tem sido frequentemente objeto de meus seminários de pesquisa.
A.C. E quanto à sua própria linha pessoal de investigação? Sobre o que o
senhor está escrevendo no momento?
– 168 –
REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n. 2, p. 163-169, 1998.
G.N. Em janeiro próximo vai sair um livro de 300 páginas intitulado “ Um
olhar sobre a Rússia do Ano VI”que é uma reflexão muito pessoal, ao mesmo tempo um ensaio histórico e um diário de viagem sobre a Rússia de
hoje. Trabalho num livro sobre a história do nacionalismo russo em suas
expressões artísticas.
A.C. Apesar de sua rápida passagem pelo Brasil, é possível fazer alguma
análise sobre o país a partir dessas suas primeiras impressões?
G.N. A Universidade de São Paulo me impressionou fortemente pelo seu
tamanho, por sua arquitetura monumental. A cidade que eu pude ver me
surpreendeu pelo funcionamento relativamente regular de seu movimento
interno. Apesar de gigantesca a cidade me pareceu possível de ser viver,
graças a uma certa heterogeneidade. Eu esperava encontrar muito mais
guetos sociais. Minha viagem pela costa de São Paulo até o Rio de Janeiro, com paradas em Ilha Bela e Paraty foi um encantamento e guardo a
lembrança da primeira noite num pequeno pátio de um restaurante baiano,
se não me engano, o Soteropolitano, como um momento muito agradável
da descoberta da pinga, excelente mesmo!
– 169 –
REVISTA DE LÍNGUAS ORIENTAIS.
Título Revista de Estudos Orientais n. 2
Normalização Técnica Márcia Elisa Garcia de Grandi – SBD/FFLCH-USP
Caligrafia da capa Hassan Massoudy
Editora de Arte Eliana Bento da Silva Amatuzzi Barros
Coordenação editorial Mª Helena G. Rodrigues
Projeto gráfico Walquir da Silva
Digitalição de imagens
e diagramação Selma Mª Consoli Jacintho
Revisão dos autores
Arte-final e capa Erbert Antão da Silva
Divulgação Humanitas Livraria – FFLCH/USP
Tipologia Times New Roman 11 e Futura 16 e 12
Mancha 11,5 x 19 cm
Formato 16 x 22 cm
Papel off-set 75 g/m2 (miolo)
cartão branco 180 g/m2 (capa)
Impressão da capa Pantone 4625U, 145U, amarelo escala e preto
Impressão e Acabamento Gráfica – FFLCH/USP
Número de páginas 170
Tiragem 500– exemplares
7–

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