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Panorama do mundo
À esq., a Igreja de Sant Martí de la
Cortinada, uma das muitas construções
medievais de Andorra; abaixo, à dir.,
detalhe da moderna ponte sobre o Rio
Valira, no centro de Andorra la Vella,
capital do coprincipado
Andorra
Pequeno, rico
e charmoso
Uma badalada estação de esqui e a fama de paraíso
fiscal são a receita do sucesso do microestado
POR
LU ÍS PATRIA N I (TEXTO) E FE RN A N D O MA RTIN HO/PARAL AXIS (FOTOS)
A
o longo da história da humanidade, povos e países se
enfrentaram em guerras para aumentar e delimitar territórios,
assegurar sua independência ou, pelo menos, concordar em
obedecer a um único senhor. Não é o caso de Andorra, uma peculiar,
rica e badalada porção de terra encravada na Cordilheira dos
Pirineus, entre o nordeste da Espanha e o sudoeste da França, que,
desde o século 12, é o único coprincipado do planeta.
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Isso quer dizer que todas as decisões que regem o dia a dia no microestado – são 468 km2 de área, o equivalente ao tamanho da cidade paulista
de Jundiaí – são fruto do consenso entre duas autoridades que igualmente
dividem o poder. De um lado está a
Igreja, dona daquelas terras desde o
século 9o e representada pelo bispo
Joan dos Sicilies. De outro, a França,
Andorra
pátria da família de um conde que
herdou o encargo de cuidar da região,
cujos interesses são defendidos, hoje,
pelo presidente Nicolas Sarkozy.
Por muito tempo, mais precisamente do século 12 até a metade do
século 20, estar sob a tutela dessas
duas poderosas forças não
ajudou Andorra em nada.
Qual seria o interesse por
um lugar frio, pequeno e, ainda por
cima, pobre? Foi preciso que uma
típica família andorrana, os Viladomat,
olhasse para as íngremes encostas cobertas de neve ao redor de sua propriedade e, em vez de enxergar o onipresente branco de todos os dias – situação comum no inverno do
coprincipado –, vislumbrasse uma
reluzente mina de ouro.
Novos tempos
Em 1956, a pergunta que não
queria calar a boca dos Viladomat era:
por que não fazer uma estação de esqui
ali e tentar tirar o país do atraso? A
resposta afirmativa veio tão rápida
quanto a reação negativa dos conservadores moradores da vila Pas de la
Casa, localizada próximo à área.
A saída para o impasse entre o
velho e aquilo que, de repente, podia
finalmente fazer o país encher os bolsos de dinheiro, foi montar as pistas
na calada da noite, poste a poste, fio
a fio, teleférico a teleférico, até que
em 1960, uma simples, mas emblemática estação de esqui estava pronta
para ser inaugurada.
A partir do feito empreendedor
dos Viladomat, o cenário de Andorra,
até então renegada e desprezada pelos
grandes e endinheirados vizinhos,
transformou-se – e a caixa registradora
desandou a funcionar. A Europa
finalmente voltava os olhos para o
tímido e acanhado Estado nanico.
Com o sucesso da estação de esqui
vieram outras ações que ajudaram
muito a alavancar a autoestima burguesa, até então adormecida pela
Passeio de snowmobile (moto
de neve) em Grandvalira, maior
estação de inverno dos Pirineus
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Andorra
doutrina religiosa. A ideia não era
atrair apenas os praticantes do esporte
de inverno, mas consumidores implacáveis atrás da ausência de impostos
do país (atualmente, a tributação sobre
os produtos é indireta). Assim, Andorra saiu do inferno da ignorância e penúria para virar paraíso fiscal.
Hoje, a sanha consumista faz o acanhado território oferecer pouco mais
de 2 mil lojas. Muitas delas de grife.
Não importa o dia ou a época do ano,
sempre haverá forasteiros do mundo
inteiro – a estimativa é de 10 milhões
de turistas por ano – andando pelas
glamourosas Avenidas Meritxell e
Carlemany atrás de uma camisa Donna
Karan, um perfume Gucci ou uma
bolsa Prada. Andorra agora orgulhase de outro tipo de fé: a capitalista.
Os imóveis também se valorizaram. E muito. No lugar das casas rústicas e humildes dos tempos nem tão
distantes assim, subiram construções
de respeito. Seja o adjetivo empregado ao ramo arquitetônico ou ao
financeiro. O metro quadrado chega
a valer € 7 mil, cerca de R$ 15,5 mil.
É o mais caro do sul da Europa. Uma
casa considerada “normal”, nem
simples demais, tampouco sofisticada,
custa por volta de € 600 mil.
Delícias da neve
Mesmo com a tentação das inúmeras lojas tax free, a maior parte dos
turistas segue para Andorra à procura
das atrações e dos esportes de neve,
principalmente o esqui, uma paixão
local que teria surgido no país antes
mesmo do “estalo” da família Viladomat. Diz a lenda que, em 1924, um
carteiro teve de improvisar duas tábuas
amarradas sob as botas para conseguir
superar o terreno e a forte nevasca
entre o coprincipado e a França.
Histórias à parte, em 1956, o empresário e campeão de esqui Francesc
Viladomat brigou com a geografia da
região e instalou um teleférico movido
por um motor de caminhão em cima
da Montanha Coll Blanc. Desde essa
época, a relação de Andorra com o
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O sucesso da estação de esqui criou outro
tipo de negócio, o comércio ostensivo;
o minúsculo país tem cerca de 2 mil
lojas, que operam no sistema tax free
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Andorra
Vista noturna do centro de Andorra
la Vella, com as montanhas
nevadas dos Pirineus ao fundo
Vilarejo perto da paróquia (cidade) de Encamp: denominação foi mantida porque a Igreja, antes dos franceses, controlava o país
esporte é tão intensa quanto os flocos de
neve que caem durante o inverno. Que o
diga Grandvalira, complexo com 193 km
de pistas, considerada a maior estação dos
Pirineus e uma referência no sul da Europa.
Os quase 2 mil hectares do centro de
esqui são acessíveis através de seis setores,
integrados por meio de gôndolas. Há ainda
um sistema com 1.065 canhões de neve
artificial, que garantem a possibilidade de
esquiar em 43% das pistas o ano todo.
Uma vez lá em cima, basta saber qual
é o seu nível de habilidade e procurar, se
for o caso, um dos 450 monitores para ter
aulas. Entre as 110 pistas, há desde o
circuito infantil Mickey Snow Club até as
vertiginosas descidas de quase 900 metros
procuradas pelos mais experientes, além
de uma área para snowboarders.
Depois da adrenalina, as opções de
aprés ski (depois do esqui) variam entre
comer nos restaurantes fast food ou de
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Andorra é um
dos países
mais pacíficos
do mundo, a
ponto de não
ter contingente
de Forças
Armadas
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alta gastronomia e fazer compras. Ou fugir do frio – ou seria continuar em contato com ele? – no inusitado Iglu Hotel,
feito totalmente de neve, bem como
relaxar no maior centro termal de montanha da Europa, o Caldea, cujas águas forjadas a temperaturas entre 14º C e 36º C
teriam propriedades terapêuticas.
No complexo, que ocupa um edifício
futurista em forma de pirâmide, dá para
se esbaldar em piscinas internas e externas,
jacuzzis e banhos turcos e até romanos.
Sem falar das massagens e tratamentos
estéticos – como a vinoterapia e a chocoterapia –, dos restaurantes e do bar panorâmico, montado no ponto mais alto da
construção, a 80 metros de altura.
A gastronomia andorrana, a propósito, há muito tempo deixou de se restringir à calórica trilogia batata, carne de cervo e pão, típica das regiões frias e montanhosas. Assim, uns dias passados no co-
principado podem incluir sabores
como o de um carpaccio de tomate
com emulsão de azeite de oliva,
criado pelo talentoso chef francês
Patrick Marriot, comandante da
cozinha do restaurante La Cupula.
Também é uma boa ideia o foie gras
com gelatina à base de vinho tinto
feito pelo catalão Pablo Urcelay, que
está à frente do Boletus Edulis.
História preciosa (e religiosa)
Acima, o complexo Caldea, maior centro termal de montanha da Europa; abaixo, a grelha
em plena atividade do restaurante El Rusc, que prepara pratos típicos de Andorra
Em 50 anos, Andorra cresceu muito e ganhou uma “cara” moderna. Por
outro lado, o país não perdeu a maior
riqueza: as construções da Idade Média. São vários edifícios românicos
(estilo arquitetônico vigente na Europa entre os séculos 11 e 13), como
casas, pontes e, principalmente, igrejas. É preciso voltar muitas páginas
no livro de história, mais precisamente
no capí tulo da Recon quista, para
entender a onipresença das igrejas
medievais por lá.
Em 711, os muçulmanos invadiram grande parte da Península Ibérica
e dominaram a região por 750 anos.
A presença dos árabes em parte da
Catalunha e em Andorra, no entanto,
durou apenas cerca de 80 anos. A
resistência dos habitantes nessa região, diz a história, foi motivo para o
conquistador alemão Carlos Magno
retribuir com a fundação do novo
país, no ano de 805.
Qualquer que seja a razão, os templos católicos estão por todos os lados
e se fizeram presentes para expurgar
a influência islâmica e recristianizar o
povo local com muita missa e reza. A
medida parece ter dado certo.
Alguns templos são muito especiais
e guardam verdadeiras relíquias. Na
Igreja de Sant Joan de Caselles, do
século 11, foi encontrado escondido
embaixo do altar um afresco em forma
de pintura e escultura que retrata a
crucificação de Jesus Cristo. Para se
ter ideia, só há duas peças semelhantes
no mundo inteiro.
Já a Sant Cerni de Nagol foi
erguida pelos aldeões de Nagol sobre
um penhasco, com uma espetacular
vista do Vale de Sant Julià. Dentro
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Panorama do mundo
Andorra
Visitantes praticam snowshoeing,
caminhada com uma espécie de
raquete nos pés, em Grandvalira:
complexo fica aberto o ano todo
dela conservam-se algumas das primeiras pinturas murais da época,
assim como um retábulo do século
15 dedicado ao santo.
Andorra parece gostar de ser
ímpar em muitas coisas. Além do status de único coprincipado do mundo,
somente o país tem o catalão como
língua oficial. Se não bastassem os
dois títulos, ostenta também o rele30
vante troféu de nação com a maior
expectativa de vida em todo o planeta: média de 83 anos. O recorde de
longevidade faz sentido. O microestado está entre os três mais pacíficos
do mundo, a ponto de abrir mão das
Forças Armadas.
Dona de fatos e estatísticas pitorescas e séculos após ser relegada pelos espanhóis e sobreviver a duras
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penas, Andorra brilha à luz do turismo, com uma “ajudinha” da fama
de paraíso fiscal. Ou seria o contrário? De qualquer forma, o nativo
Francesc Viladomat, aquele que teve
a ideia de desenvolver o principado
sacro-francês a partir de uma estação
de esqui, morto em 2005, teve tempo
de comemorar o gol de placa que foi
sua empreitada.
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