Evasão

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Evasão
Evasão
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Fora de Série Abril 2015
O PAR AÍSO É AQUI
Existe um céu na terra para aqueles que gostam de campo, bom vinho, gastronomia, tratamentos
de spa, boas histórias e um tempo muito próprio. Fomos até Martillac, a poucos minutos de Bordéus, em
França, para conhecer este éden chamado Les Sources de Caudalie. O mais difícil foi sair de lá…
T E X T O D E R I TA I B É R I C O N O G U E I R A , E M M A R T I L L A C
Abril 2015 Fora de Série
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Evasão
C
onhecemo-la como a marca
de cosmética com extractos retirados das vinhas e
das uvas com propriedades anti oxidantes, mas há
mais. Debaixo do chapéu
Caudalie há também uma
cadeia de spas, um hotel vínico e… vinho, claro. É um
pouco como a história do
ovo e da galinha. Qual nasceu primeiro? Ao contrário
do que acontece com muitas marcas na área da beleza,
que assentam o negócio sobre um produto e depois o
diversificam, na Caudalie a história começa no vinho.
Florence e Daniel Cathiard eram um casal de franceses campeões de esqui e foram os responsáveis pelo
primeiro capítulo desta história sem fi m à vista, mas
que já conta com 25 anos de felicidade. Conheceram-se
em 1965, ambos integravam a equipa de esqui francesa, a mesma de que fazia parte Jean-Claude Killy, uma
lenda que ganhou três medalhas de ouro nos Jogos
Olímpicos de Inverno de 1968. Daniel tinha herdado
dos pais um pequeno supermercado que rapidamente, em pouco mais de vinte anos, transformou numa
cadeia de sucesso com mais de 300 lojas. Ao mesmo
tempo lançou a loja de artigos de desporto Go Sport,
que de França chegou também à Bélgica, a Espanha e
à Califórnia. Já Florence, depois da carreira desportiva, começou a trabalhar com Daniel até que fundou a
sua própria agência de publicidade. Entretanto, com as
voltas da vida, em 1985 tornou-se vice-presidente da gigante McCann Europe.
Com fortuna feita e uma carreira realizada, os Cathiard, numa visita à região vínica de Bordéus, encantaram-se com o Château Smith Haut Lafite, que produzia um vinho simpático (e apenas isso) desde 1365.
Venderam os negócios e em 1990 compraram o ‘château’, uma mansão do século XVIII onde decidiram viver e dedicar-se à arte de produzir vinhos de excelência. Durante os primeiros anos entregaram-se ao trabalho árduo de revitalização das vinhas enquanto, em
simultâneo, tentavam integrar-se no ambiente elitista
dos produtores de vinho da região.
Três anos depois, Mathilde, uma das filhas, estava
encarregue da vindima quando recebeu a visita de Joseph Vercauteren, professor universitário e responsável pelo laboratório de farmacologia de Bordéus. Andava a passear pela propriedade, onde todos se ocupavam
da colheita, e mostrou-se particularmente interessado
naquilo que Mathilde menos esperava: um monte de
borras e sementes de uva prensadas, prontas a serem
descartadas. “Vão deitar fora?!”, perguntou. “Isto é um
verdadeiro tesouro!”.
Vercauteren explicou a Mathilde que as sementes
de uva contêm polifenóis, que têm a capacidade de eliminar os radicais livres, a principal causa do envelhecimento do corpo humano. Isto, claro, se conseguissem estabilizar os ingredientes, coisa que ainda não
tinha sido conseguida em laboratório. Foi a vez de Mathilde, farmacêutica de formação, ficar seduzida por
este lado científico que desconhecia do negócio e apostar na inovação e na pesquisa. Até porque não custava
nada: a matéria-prima de que precisava era considerada desperdício – no máximo seria reutilizada para
adubar a terra.
Com o seu envolvimento, em 1995 nascia a Caudalie, uma marca cujo nome tem um significado bem conhecido entre os enólogos. “Caudalie” era o termo utilizado nas degustações e servia para definir a unidade, em segundos, de persistência do sabor do vinho na
boca. Quanto mais ‘caudalies’ um vinho tivesse, me36
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HÁ QUEM ATR AVESSE
CONTINENTES PAR A
FREQUENTAR AQUELE
QUE FOI O PRIMEIRO SPA
VÍNICO DO MUNDO.
lhor seria. Mathilde estava empenhada em mostrar ao
mundo a magia anti oxidante dos seus polifenóis.
Ao mesmo tempo, dá-se a feliz coincidência de a
família descobrir que uma parte da propriedade dava
uvas de qualidade inferior. Fez-se uma análise ao subsolo e esta revelou que a existência de uma fonte de
água naturalmente quente e muito rica em minerais
(a mais de 500 metros de profundidade) é a causa do
fenómeno. Com a descoberta desta fonte estavam lançados os dados para o surgimento do primeiro spa de
vinoterapia do mundo. Assim fizeram.
Com tanta coisa a acontecer à sua volta, Alice, a outra filha dos Cathiard, mais voltada para o negócio da
hospitalidade, decidiu construir ali, à beira das vinhas
e junto à fonte, um hotel de charme. Da vinha se fez vinho, beleza, bem-estar e um hotel que vem referenciado em todo o lado como “a não perder”. Não é um negócio de família, são vários negócios numa só família.
O empreendedorismo corre no sangue dos Cathiard
há 25 anos.
Os pais, Florence e Daniel, continuam a viver no
Château, a produzir os vinhos – altamente cotados no
mercado – Smith Haut Lafite, com vista para o Source
de Caudalie, o hotel e spa soberbamente conduzidos
pela sua fi lha Alice com a ajuda do marido, Jerome.
Já a Caudalie, marca de cosmética, ganhou asas e rumou a Itália, Espanha, Brasil, Turquia, Nova Iorque –
onde vive agora Mathilde – e até Portugal (não só com
os produtos, que conseguimos encontrar nas melhores farmácias, como nos spas, disponíveis no L’AND
Vineyards, no Alentejo, e no The Yeatman, no Porto).
ARTE À CHEGADA
É Primavera em Martillac, a melhor época do ano para
passar uns dias no paraíso a que alguém baptizou de
Les Sources de Caudalie. O sol morno, o vento no cabelo, o cheiro a campo. A paisagem é absolutamente bucólica. Vinhas por todo o lado, de uma geometria imaculada. Aqui e ali o verde é salpicado por um ‘château’. Na estrada vazia, os carros passam a uma média
de dois por hora, sem pressas. O silêncio ajuda. Não há
ruído, só o murmúrio da brisa, a canto dos pássaros. O
ritmo é lento, de passeio, de contemplação. Toda esta
região vínica convida a isso: a desligar do universo que
não pára de girar.
Última curva e estamos quase a chegar. No meio
das vinhas há obras de arte, esculturas em tamanho
real, uma Venus de Milo de interpretação contempo-
tes, ocres, laranjas, rosas e azulão da região. O mais espectacular? A suite “L’Ile aux Oiseaux”, uma cabana de
jardim decorada com um design de interiores ‘avant-garde’, construída sobre um lago com cisnes e nenúfares. Dizem-nos que está ocupada. Que é a preferida
de celebridades como Johnny Depp que, de quando em
quando, procuram a paz deste lugar.
Não ficámos nesta suíte VIP, mas calhou-nos um
muito simpático e confortável quarto no jardim, com
vista para as vinhas que durante estes dias foram lavradas à antiga, por cavalos. À noite, o silêncio só era
cortado pelo coaxar das rãs do lago. Um sossego que
não parece real. Mas é e rapidamente nos acostumamos a ele.
rânea pelo artista pop americano Jim Dine, algumas
figuras da escultora francesa Nathalie Decoster, na sua
visão muito peculiar do tempo – algo que ali, naquele
paraíso perdido, parece ter parado e sabe tão bem essa
ausência de pressão.
Uma obra, em particular, capta a nossa atenção. É
uma lebre gigante, em bronze, brilhante, que se impõe
sobre tudo o que a rodeia. Fica no meio das vinhas, à
entrada da adega do Château Smith Haut Lafitte, mesmo em frente ao nosso destino nos três dias seguintes.
Foi feita pelo artista galês Barry Flanagan, que morreu
há meia dúzia de anos. Mais tarde, num dos passeios
de bicicleta que demos pela vinha, contam-nos que há
uns anos, os funcionários do hotel estranharam a presença permanente em frente à escultura de uma figura
decadente, um homem de aspecto enlouquecido. Mirou a obra em silêncio, durante três dias seguidos. Souberam mais tarde que se tratava de Flanagan, dias antes de morrer. Foi lá como que despedir-se da sua lebre,
uma das muitas que fez.
Ao fazer o ‘check in’, descobrimos que a arte não se
fica só pelas vinhas. Ela está em todo o lado neste hotel
de charme. Nos edifícios contemporâneos feitos com
base na reciclagem de materiais locais, com assinatura do arquitecto Yves Collet. Nos jardins maravilhosamente tranquilos, rodeados de vegetação campestre,
vinha e lagos naturais. Nos quartos, todos diferentes,
decorados com pinturas e antiguidades, nas cores for-
ALIMENTO PAR A A ALMA
Apesar de tudo aqui ser um convite a relaxar a valer,
não faltam no Sources de Caudalie coisas para fazer.
Entre passeios de bicicleta pelas vinhas, visitas a adegas (míticas) da vizinhança, provas de vinhos, tratamentos no spa, horas de boa mesa nos dois restaurantes do hotel, o bar de charutos panorâmico no segundo
andar… Por onde começar?
Pelo spa, talvez. Não são poucos os hóspedes que
atravessam continentes para poderem frequentar
aquele que foi o primeiro spa vínico do mundo. Ali é
possível experimentar terapias que combinam ervas,
óleos essenciais e moléculas estabilizadas da vinha
sem qualquer espécie de conservante químico. Entre as castas que não bebemos mas demos a beber ao
corpo estavam a Cabernet e a Merlot, qua ajudaram
a eliminar as células mortas da pele numa primeira abordagem; a Sauvignon, por sua vez, mais usada nos tratamentos por causa das suas propriedades
relaxantes, deixou-nos K.O., prontos a enfrentar um
banho de fi m de tarde na barrica de carvalho cheia
de água termal aquecida. Se a ideia era promover o
rejuvenescimento, o relaxamento, a desintoxicação,
missão cumprida.
A adega do ‘château’ também merece uma visita.
No exterior, há mesmo um tanoeiro que passa os dias a
construir as barricas de carvalho onde vão estagiar os
vinhos da próxima colheita – um ofício que passámos
toda uma tarde a admirar, o que prova que ali o tempo
tem mesmo um vagar muito próprio. Depois de um almoço de sabores mais rústicos no La Table Du Lavoir,
sempre bem regados com o vinho produzido “na casa” (abrimos uma das mais de 15 mil garrafas da adega
do ‘château’), à noite estamos restabelecidos e preparados para saborear a alta-cozinha recentemente premiada com uma Estrela Michelin do La Grand Vigne,
supremamente chefiado por Nicolas Masse. Masse lidera também aqui uma escola de culinária. É comum
vermos os cozinheiros, de casaca branca, a cuidar da
horta do restaurante. Uma forma de assegurar ingredientes frescos e locais, um dos segredos da cozinha
sofisticada do ‘chef’.
Os fumadores têm um espaço privilegiado no segundo piso do edifício principal, onde fica a recepção.
O bar tem vista panorâmica a perder de vista sobre os
vinhedos. Há biblioteca com livros e um espaço com
charutos. No outro bar, o French Paradox, os hóspedes
podem terminar a noite em grande estilo, com vinho
e champanhe servidos a copo. Mas é preciso não abusar do álcool. As degustações de grandes néctares de
baco produzidos na região tendem a multiplicar-se e
convém não perder o norte. Especialmente se optar pelos passeios de bicicleta. Ou, pior, se decidir conhecer
a oferta vínica e gastronómica da vizinhança em passeios organizados para o efeito: “terrine de esturjão”
no Château Prieuré Lichine; “rillette de canard au foie
gras” no Château Rauzan-Gassies, o doce “canelé” no
Château Kirwan e um chocolate no La Tour de Bessan
são bons exemplos.
Não fosse Primavera e as uvas ainda terem muito
sol para apanhar até estarem prontas para a vindima,
o programa perfeito era mesmo participar na colheita,
que acontece todos os anos entre 15 de Setembro e 15
de Outubro, outra época fantástica para relaxar neste
éden que descobrimos e não queremos largar no dia da
partida. Foram três dias, mas souberam a umas férias
de três semanas. Só nos resta regressar, desta vez à suíte de Johnny Depp. Com ou sem ele.
LES SOURCES DE CAUDALIE
Chemin de Smith Haut-Lafitte, 33650, Martillac, França
(a 20 minutos do centro histórico de Bordéus)
Mais informações em www.sources-caudalie.com
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FOTOGRAFIAS CEDIDAS PELA MARCA
Ao mesmo tempo que descobriam a magia anti-oxidante dos
polifenóis, a família descobria a existência de uma fonte de água
quente e muito rica em minerais na propriedade. Ao negócio do
vinho somavam-se os da cosmética e da hotelaria.