A relação escola-pais- da tese das "esferas de influência separada"

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A relação escola-pais- da tese das "esferas de influência separada"
A RELAÇÃO ESCOLA-PAIS- DA TESE DAS “ESFERAS DE INFLUÊNCIA
SEPARADA” À TESE DAS “ESFERAS DE INFLUÊNCIA SOBREPOSTA
Virgínio Sá
Universidade do Minho/IEP
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A complexa geografia das relações dos pais com a escola (e da escola com os pais) tem
vindo a ser balizada por fronteiras cuja localização tem sido objecto de disputa (e “relocalização”). Se
até meados da década de setenta, do século passado, predominou um certo consenso político
pedagógico, com reflexos no enquadramento jurídico-normativo, que acentuava a demarcação de
territórios entre aquelas duas “potências educadoras”, nas décadas seguintes tem vindo a ser
consolidado um novo “saber convencional” que enfatiza a responsabilidade partilhada e as “esferas de
influência sobreposta” (Epstein) entre a família e a escola na educação das crianças. Contudo, o
mapeamento do território partilhado (e disputado) entre pais e professores põe em evidência um
conjunto de inconsistências e desarticulações entre discursos, decisões e acções, com reflexos na
forma como se vêm concretizando as parcerias advogadas para operacionalizar aquela relação
Nesta comunicação pretendemos interrogar o sentido das ambiguidades/duplicidades
discursivas que marcam o novo consenso político-pedagógico que, ao mesmo tempo que eleva os pais
a “primeiros e principais responsáveis pela educação dos filhos”, simultaneamente, os recrimina, ora
por se “desinteressarem”, ora por se “intrometerem” nos assuntos escolares,
A explicitação da pluralidade de sentidos do conceito de participação e a sua articulação
com a problemática do poder, constituirão démarches essenciais à dilucidação de alguns dos
paradoxos e da “hipocrisia organizaciona”l (Brunsson) que marcam a relação escola-pais.
1. A construção da escola pública e a marginalização dos pais
Num texto escrito no início da década de 90 do século passado, e retomando uma ideia que
já tinha defendido meia dúzia de anos antes, António Nóvoa (1992: 32-3) observou:
“Num certo sentido, o aparelho escolar edificou-se contra as famílias e as comunidades, que foram
marginalizadas, ora com o argumento político (a legitimidade do Estado para decidir em matéria
educativa), ora com o argumento profissional (a competência especializada dos professores em
matéria educativa”
Na verdade, no caso português, até meados da década de setenta do séc XX, o espaço de
intervenção dos pais terminava à porta da escola. Guilherme Pimentel, então subdirector do 1º ciclo
do Liceu Normal de D. João III, num texto publicado na Revista Labor em meados do século
passado, traduziu de forma muito clara esta demarcação de territórios. Este autor sintetizou nestes
termos a sua concepção das relações da escola com as famílias:
“[…] é preciso que os encarregados de educação nos ajudem na difícil tarefa de ministrar a educação
e instrução aos homens de amanhã, que hão-de guiar os nossos destinos de Nação imortal. Que
venham ao liceu; que procurem interessar-se pelo aproveitamento e comportamento dos nossos
alunos; que vigiem, amiúde, os cadernos diários- magnífico meio de comunicação do Liceu com a
Família; em suma, que façam pelos seus filhos tudo o que puderem fora do liceu, pois cá dentro, nós
faremos o resto, Deus sabe, por vezes, com que sacrifícios, mas da melhor boa vontade!” (Pimentel,
1953: 134)
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Ao mesmo tempo que, progressivamente, se estabelece uma demarcação de territórios
entre o espaço de intervenção da escola e o espaço de intervenção das famílias, discursos de vária
natureza e proveniência convergem na produção de um estereótipo parental caracterizado por uma
incompetência presumida e por um défice cívico: os pais não se interessam pela educação dos
filhos, não cumprem a sua obrigação de cooperadores, não comparecem na escola quando são
convocados, apenas se preocupam com os educandos nos finais de período, concebem a educação
como uma empreitada, pressionam o poder político (e os professores) no sentido do facilitismo,
etc, etc, etc.
2. A emergência de um novo consenso político-pedagógico: A ‘tese’ das esferas de
influência sobreposta.
Em diversas geografias sócio-políticas, a partir das décadas de 60/70, à ‘tese’ das esferas
de influência separada sucede-se, a partir das décadas 60/70, a tese das esferas de influência
sobreposta (J. Epstein). A “crise da educação” e o fim do “optimismo pedagógico” pressionaram o
poder político para uma maior abertura da escola à comunidade. Na União Europeia, em 1995, o
tema da participação social na educação foi escolhido, no âmbito da presidência espanhola, como o
elemento central da reflexão comunitária sobre os factores que influenciam a qualidade da
educação escolar.1
Por seu lado, J. Epstein e colegas (1997), numa obra que dedicam às “Parcerias Escola,
Família e Comunidade”, afirmam na Introdução:
“Não há tópico na educação em relação ao qual haja maior consenso do que em relação à
necessidade do ‘envolvimento parental’. Todos o desejam, mas muitos não sabem como desenvolver
programas eficazes de parcerias escola-família-comunidade” (Epstein et al., 1997: xi)
Também S. Sarasson (1995), numa obra intitulada “O Envolvimento Parental e o Princípio
Político”, observa que:
“Está na moda proclamar que é necessário e desejável o envolvimento parental nas nossa escolas
públicas. Estas declarações públicas têm uma aura de virtude, inclusão e ethos democrático.”
(Sarasson, 1995: 11)
Contudo, este autor é bastante mais céptico em relação ao optimismo subjacente à
perspectiva de Epstein e colegas pois considera que, com frequência, tais projectos não passam de
1
Para uma análise da cronologia normativa da progressiva institucionalização da participação parental nos
sistemas educativos europeus, ver o estudo intitulado “La Place des Parents dans les Systèmes Éducatifs de
l’Union Européenne”, publicado pelo EURYDICE: Lle réseau d’information sur l’éducation en Europe
(1997).
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uma retórica discursiva (eventualmente bem intencionada), embalada em alguns slogans
‘politicamente correctos’, faltando-lhes a dimensão operativa e um conteúdo substantivo.
A participação que pretende superar a mera “encenação participativa” (que pretende ir
além do “mudar o suficiente para não ter de mudar nada”) implica sempre reconfiguração das
relações de poder e esta, por sua vez, implica invariavelmente tensão, disputa, conflito. Nota
Sarason que, em tal situação (alteração das relações de poder) o conflito é tão previsível como o
nascer do sol. Contudo, e ao contrário do que os discursos mais normativos sugerem (ou
afirmam explicitamente), o conflito não é nenhuma doença organizacional cuja erradicação se
torna imperiosa. O conflito, além de ser inerente a qualquer interacção social e organizacional,
pode ser fonte de vitalidade, de dinamismo e de criatividade organizacional (Brunsson, 1989).
Como afirmam Crozier & Friedberg, a participação tem custos, portanto, ela só
interessará aos participantes na medida em que seja compensadora. Caso contrário, o
participante (potencial) poderá não estar interessado na “oferta” participativa em causa.
Recusar uma “oferta” participativa que não confere ao participante capacidade de
influenciar os processos em que participa não é desinteresse, mas sensatez! Não se pode recriminar
alguém por não querer ser usado/manipulado/instrumentalizado ao serviço de agendas alheias!
Os pais são com frequência chamados a participar nas “boas bausas”. Não se lhes
reconhece, contudo, legitimidade para decidir o que são (ou quais são) as “boas cauasas”. Estas
são apresentadas como “produtos acabados”, como se a sua “bondade” fosse “natural”. As
“causas” nunca são “naturalmente” boas ou más. As “boas causas”, como as “más causas”,
reflectem sempre certos interesses, portanto, nunca todos os interesses!
Quem participa “compromete-se”, ou seja, perde uma parte da sua liberdade, da sua
independência, da sua autonomia. Enquanto parte de um colectivo, passará a ser
(co)responsabilizável pelos “produtos” desse colectivo, mesmo quando não foi parte activa na
sua produção. São estes (alguns) (d)os custos da participação! A sua inclusão num modelo de
análise da participação introduz outra(s) racionalidade(s) na não participação.
3. A (não) participação dos pais na escola: a eloquência das ausências
À análise simplista que equipara não participação a desinteresse, contrapõem-se agora
leituras alternativas que admitem, por exemplo, que a não participação possa não só não significar
desinteresse como, bem pelo contrário, possa estar associada a um “excesso de interesse”. Ou seja,
certos segmentos de encarregados de educação podem não participar porque recusam as ofertas
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participativas (“presentes envenenados”) que lhes são proporcionadas com o argumento de que
aquelas os reduzem ao papel de “colaboradores subordinados”, de meros ecos da escola, sem
direito a voz própria. A utilização (instrumental) da participação como uma simples “técnica de
gestão”, como forma de cooptar vozes incómodas, evitando que estas configurem uma ameaça ao
status quo, constitui uma táctica gestionária bem conhecida (e estudada). Só que, como esclarece
Selznick, neste caso (cooptação formal), o que se partilha não é o poder de decisão, mas os
“encargos do poder”, ou seja, a responsabilidade por decisões sobre as quais, de facto, não se pesou
(porque elas podem ser tomadas, independentemente da posição assumida pelo(s) elemento(s)
cooptado(s)).
A natureza “sedutora e enganadora” do conceito de participação leva a que os discursos (e
os normativos) que a invocam estejam atravessados por diversas duplicidades que expressam
aparentes dissonâncias cuja inteligibilidade pressupõe um persistente esforço de clarificação
conceptual.
Desde logo, no quadro da política educativa podemos contrapor duas orientações
aparentemente contraditórias. Se ao nível da "participação consagrada" (Constituição, Lei de Bases
do Sistema Educativo, preâmbulos dos decretos e outros instrumentos normativos) se reconhece aos
pais o legítimo direito de participar no governo das escolas, no momento de operacionalizar essa
participação, além de se lhe não definir um conteúdo particular, tem-se tendido a concentrá-la em
áreas e órgãos que dispõem de um limitado poder de decisão (L. Lima, 1992; P. Silva, 1994). Além
disso, essa participação tem-se limitado a uma representação mínima, habitualmente situada entre
os 5% e os 10% do total dos membros da estrutura em causa. Tudo se passa como se o poder
político ao mesmo tempo que vem declarando, na arena pública, o direito e a legitimidade de
participação dos pais na definição da política educativa, de forma subtil, na arena privada, através
da estratégia regulamentadora, procurasse excluir os pais dessa mesma participação, reservando-se
o quase exclusivo dessa definição.
Também o discurso dos professores em torno desta problemática parece estar mergulhado
naquela mesma duplicidade. Se, por um lado, há um substancial consenso em relação à importância
dessa participação, considerando que ela é fundamental para o sucesso educativo dos alunos,
reconhecendo-a, não só como um direito, mas também (sobretudo) como um dever, mostrando-se
receptivos para a aceitar e mesmo promover; por outro lado, com a mesma regularidade e
veemência, insurgem-se contra a participação considerando-a ilegítima, abusiva, invasiva, inútil e
mesmo nefasta para o desenvolvimento da acção pedagógica da própria escola. Esta mesma
duplicidade reflecte-se na análise que os professores fazem das práticas participativas dos
encarregados de educação. Assim, por exemplo, se por um lado os pais são considerados como "não
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participativos", ao mesmo tempo, parecem ser igualmente recriminados por "participar de mais" (N.
Afonso, 1994).
Não menos intrigante é a posição dos pais em relação a esta mesma problemática. Ao
mesmo tempo que reclamam mais espaço de intervenção e maior representação na discussão e na
tomada de decisão nos assuntos da escola, parecem evidenciar um aparente desinteresse em
colonizar os territórios que progressivamente têm conquistado, não os ocupando, ou fazendo-o de
forma intermitente e, aparentemente, pouco empenhada. Aliás, Silva (1994: 324) refere mesmo que
há indicadores que apontam para uma correlação negativa entre a progressiva institucionalização
da relação escola-famílias e a mobilização destas em torno da participação na escola.
A dilucidação destes aparentes paradoxos não é compatível com uma utilização sincrética
do conceito de participação. Seguramente que o sentido da participação não é o mesmo nos vários
cenários a que nos reportámos acima. Quando pais e professores falam de participação não estão
necessariamente a reportar-se à mesma realidade. Como pude constatar numa investigação que
concluí recentemente (Sá, 2004), as expectativas de pais e professores sobre a participação dos
primeiros na escola não são sempre convergentes. Se há áreas de relativa consensualidade, também
há domínios de clara divergência. Num certo sentido, as expectativas dos professores continuam a
apontar para uma intervenção dos pais na escola que deve concretizar-se, sobretudo, “fora da
escola” (“preparar a criança para o ofício de aluno”). Em contrapartida, os pais, embora aceitem
assumir responsabilidades “fora da escola”, aspiram também a uma intervenção mais activa mo
“interior da escola”( Definição do calendário escolar, definição do horário escolar, constituição de
turmas, avaliação dos alunos, definição das medidas educativas de natureza disciplinar, avaliação
dos professores, etc.).
4. Alguns obstáculos ao “diálogo” escola-pais
Claro que o(s) sentido(s) da não participação não se esgotam no “excesso de interesse”
a que nos reportamos acima. Noutros casos, as “ausências” orientam-se por outras
racionalidades. Por exemplo, para certos grupos de pais, as esferas de influência da escola e da
família continuam a não se interceptar. Em condições “normais”, o campo de intervenção
daquelas duas instâncias educativas é balizado por fronteiras bem claras que devem ser
cuidadosamente respeitadas. Numa versão popular podemos afirmar que, para este subconjunto
de encarregados de educação, “aos pais compete dar o pão e a educação, à escola a instrução”.
Se cada parte cumprir o seu papel, no seu território específico, estão criadas as condições para o
sucesso da empresa educativa. Note-se que, para este segmento de encarregados de educação,
chegar ao termo do ano lectivo sem nunca ter tido “necessidade” de ir à escola é a melhor prova
503
de que se foi um “pai responsável”. Haverá segmentos da classe docente que também pensam
assim?
4.1 A escola “perfeita” dispensa os pais?
Uma das implicações do pressuposto da “tese” das “esferas de influência separada” é
que a relação dos pais com a escola (e, eventualmente, da escola com os pais) tende a
circunscrever-se às situações em que “há problemas” o que, por sua vez, leva à associação entre
“participação” e “experiências pouco gratificantes”. Talvez por isso alguém já comparou o “ir à
escola” ao “ir ao dentista”, uma experiência de que poucos guardam boas recordações! Vai-se
quando se tem de ir, mas, quase sempre, adia-se até ao limite. Às vezes já é demasiado tarde!
A longa tradição das “esferas de influência separada” conduziu também à
desnaturalização da presença dos pais na escola. Como consequência, para alguns, a presença
dos pais na escola é percepcionada como a “quinta roda da carroça”. Esta imagem é passível de
duas leituras: i) Como as carroças não têm cinco rodas, os pais são o elemento que está a mais,
que destoa, que não faz sentido; ii) ou, numa interpretação mais benevolente, podemos admitir
que a quinta roda da carroça é a roda suplente, aquela que utilizamos quando as coisas não
correm bem, aquela que, no limite, gostaríamos de nunca ter de utilizar. O facto de a escola
convocar os pais sobretudo quando há problemas parece conferir mais pertinência à segunda
hipótese.
4.2 Comunicação escola-pais: um diálogo de surdos?
A comunicação escola-pais (e pais-escola) é suposto ter como objectivo o
estabelecimento de um diálogo entre ambas as partes de modo a permitir uma troca de
informações consideradas relevantes. Os pais são, em princípio, quem melhor conhece a
criança, estando, por isso, na posse de um largo espectro de informações cuja partilha com a
escola pode ser muito importante para uma melhor contextualização e condução do processo de
ensino-aprendizagem.
A hora semanal de atendimento dos encarregados de educação, a cargo do director de
turma, proporciona, aparentemente, um dos momentos mais propícios à partilha dessa
informação. Contudo, diversos autores que têm centrado os seus estudos sobre as interacções
que se desenvolvem nesse espaço/tempo (por ex.: MacLure e Walker, 2000) têm posto em
evidência o carácter assimétrico da relação que aí se estabelece. O facto de para aí convergirem
actores dotados de códigos e competências linguísticas muito diversos pode levar a que uma boa
parte das interacções comunicacionais entre pais e professores se possam resumir a um “diálogo
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de surdos” (Silva, 1996) ou a um “não diálogo” (Vieira, 1996)2. É que, como observa Dulce
Pereira:
“[…] os que se consideram detentores da norma fazem às vezes do seu saber um capital
linguístico que usam como sinal exterior de riqueza, mais do que como fonte de capacidades
expressivas, comunicativas e interpretativas, caindo em excessos verborreicos e em fracassos de
comunicação”. Por isso, interroga mais adiante esta autora, “Se os pais têm a sorte de partilhar a
linguagem da escola, tudo bem. Se não, sobre que mundos paralelos assentará o aparente diálogo
entre a escola e a família?” (Pereira, 1997:130).
A questão torna-se, contudo, ainda mais intrigante quando se constata que, estando,
aparentemente, criadas as condições favoráveis ao diálogo (ou seja, ambos os interlocutores
falam a “mesma linguagem”), com frequência ocorrem as interacções mais crispadas e
marcadas pela confrontação. O caso mais paradigmático é o dos pais-professores, segmento dos
encarregados de educação consensualmente considerados pelos directores de turma como dos
mais “difíceis” (Sá, 1997).
4.3 Os “muros invisíveis” e outros obstáculos à interacção escola-família
Se qualquer obstáculo à interacção escola-pais, pela sua natureza intrínseca, representa
sempre uma dificuldade a vencer quando pretendemos promover uma concepção de escola
como comunidade educativa, a tarefa torna-se particularmente problemática quando esses
obstáculos assumem a configuração de “muros invisíveis”. Neste caso, o primeiro e mais difícil
desafio é a sua localização/identificação. Tornar “muros invisíveis” em “muros visíveis”
pressupõe uma equipagem teórico-conceptual sensível às idiossincrasias e às diferenças que
caracterizam a complexa geografia sócio-cultural que recobre o vasto mundo dos encarregados
de educação. A indiferença à diferença pode constituir um desses “muros invisíveis” que
deixam do lado de fora todos aqueles que não se ajustam ao “figurino”.
Na verdade, subordinados à actualização de papéis cujos guiões lhes prescreveram, mas
que nem sempre assimilaram e em cuja construção raramente participaram, a maioria dos
actores sociais, quando veste a pele de encarregado de educação, parece condenada a transportar
consigo a infame insígnia do pai irresponsável, que despeja os filhos à porta da escola, que
2
Ricardo Vieira, comentando um conjunto de diálogos entre pais e professores recolhidos em quatro
escolas públicas do distrito de Leiria, afirma: “Induz-se dos diálogos quão difícil parece ser a existência
duma relação Escola/Família paritária. [...] às vezes essa comunicação entre professores e pais, esse
desejável diálogo entre duas partes interessadas na aprendizagem das crianças, torna-se um “não-diálogo”.
[...] assiste-se na prática muito à continuidade da metáfora da grande boca do professor que fala e pouco
ouve.” (Vieira, 1996: 173-4). Comentando o mesmo corpus, Pedro Silva observa: “Que a relação entre a
escola e as famílias pode, em grande parte dos casos, ser caracterizada como um ‘diálogo de surdos’ prova-o
uma vasta bibliografia [...]. Sabemos, por exemplo, que as reuniões entre professores e pais podem, sob a
capa de uma escola mais democrática e participada, constituir a melhor forma de os professores
manifestarem o seu poder e reforçarem distâncias sociais e culturais.” (Silva, 1996: 179).
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despreza as aprendizagens e apenas valoriza os canudos, que responsabiliza os professores pela
sua própria incúria, que invade territórios alheios e não cultiva os próprios, que não reconhece o
empenhamento docente, que não colabora ou, pior ainda, que critica e desautoriza a escola e os
professores. Em contrapartida, o pai reverente, cortês, humilde (reconhece a sua laicidade),
assíduo (ma non troppo), disponível (responde às convocatórias da escola), educador (prepara o
filho para o ofício de aluno), vigilante (controla o estudo e a elaboração dos trabalhos de casa),
cúmplice (partilha com os professores os problemas particulares do educando), colaborador (em
causas alheias) e, finalmente (mas não menos importante), solidário (com a escola e os
professores- reconhece/reforça as suas decisões), representa o guião idealizado do pai
responsável com que uma boa parte dos agentes educativos, aparentemente, gostaria de
contracenar. O problema é que este estereótipo (versão idealizada) de pai responsável não tem
correspondência nos “pais mesmos”, como diria Freire, ou, no “pai sociológico” (Stoer e
Cortesão, 1999).
5. Conclusão
Apesar da nova retórica discursiva que enfatiza o novo paradigma da “esferas de
influência sobreposta”, as expectativas normativas que circunscrevem os pais ao papel de
“colaboradores subordinados”, aliadas à “incompetência presumida” e à ideologia do “défice
cívico” (Lima & Sá, 2002; Sá, 2004) com que se desqualificam aqueles actores educativos (“não
se interessam”; “despejam os filhos à porta da escola”), vêm contribuindo para o esvaziamento
do território (supostamente) partilhado entre os pais e a escola, minando os alicerces do diálogo
que todos reclamam como condição indispensável à reinvenção da escola como cidade
educativa sensível à polifonia das vozes plurais que aí (co)habitam.
Esta descrença no outro é, possivelmente, mais uma das razões pelas quais o diálogo
escola-pais continua a ser um “diálogo de surdos” (Vieira: 1996)3, onde os “desencontros” e os
“mundos paralelos” (Pereira, 1997) constituem barreiras geradoras de desconfianças mútuas
capazes de induzir comportamentos de fechamento que apenas reforçam aquelas desconfianças.
Ora, como tão sabiamente observa um dos personagens de Saint-Exupéry, “Se não me cativares,
não me sentarei a teu lado”. Não se trata, contudo, de “conquistar” o outro, ainda que recorrendo
a formas “adocicadas”4, mas antes acreditar nele, “cativá-lo” pela prática dialógica que
(re)conhece as diferenças e as potencia enquanto capital educativo gerador de experiências
3
Note-se, no entanto, que essa surdez pode apresentar níveis de profundidade bastante variáveis.
4
Afirma Freire (1975: 193): “O antidialógico, dominador, nas suas relações com o seu contrário, o que
pretende é conquistá-lo, cada vez mais, através de mil formas. Das mais duras às mais subtis. Das mais
repressivas às mais adocicadas, como o paternalismo.”
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formativas mais ricas e intensas. Afinal, como lapidarmente expressa um velho ditado africano,
“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. Todos não seremos de mais!
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