1 - Chovenoscampos1941
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1 - Chovenoscampos1941
JURANDIR, Dalcídio. Chove nos Campos de Cachoeira. 3. ed. Belém: Cejup, 1991. 294p. Corrigida. “Estou vendo que as pessoas desta terra adquirem sobre os moradores das cidades a superioridade que uma aranha numa masmorra teria sobre uma aranha numa casa de campo, aos olhos dos vários ocupantes de qualquer delas. No entanto, essa atração profunda não é devida inteiramente à situação do observador. O povo desta terra vive mais seriamente, mais concentrado, menos em superfície, menos em mudanças e coisas frivolamente exteriores. Poderia conceber aqui um amor eterno como coisa quase possível...” EMILY BRONTË [1818-1848] O Morro dos Ventos Uivantes1 1 BRONTË, Emily. Wutherings Heights. New York: New American Library, 1959. p. 120: “I perceive that people in these regions acquire over people in towns the value that a spider in a dungeon does over a spider in a cottage, to their various occupants; and yet the deepened attraction is not entirely owing to the situation of the looker-on. They do live more in earnest, more in themselves, and less in surface, change, and frivolous external things. I could fancy a love for life here almost possible;”(nota do org.). 2 I [15] A NOITE VEM DOS CAMPOS QUEIMADOS Voltou muito cansado. Os campos o levaram para longe. O caroço de tucumã o levara também, aquele caroço que soubera escolher entre muitos no tanque embaixo do chalé. Quando voltou já era bem tarde. A tarde sem chuva em Cachoeira lhe dá um desejo de se embrulhar na rede e ficar sossegado como quem esta feliz por esperar a morte. Os campos não voltaram com ele, nem as nuvens nem os passarinhos e os desejos de Alfredo caíram pelo campo como borboletas mortas. Mais para longe já eram os campos queimados, a terra preta do fogo e os gaviões caçavam no ar os passarinhos tontos. E a tarde parecia inocente, diluída num sossego humilde e descia sobre os campos queimados como se os consolasse. Voltava donde começavam os campos escuros. Indagava por que os campos de Cachoeira não eram campos cheios de flores, como aqueles campos de uma fotografia de revista que seu pai guardava. Ouvira Major Alberto dizer à D. Amélia: campos da Holanda. Chama-se a isso prados. Alfredo estava cansado, mais cansado ainda talvez porque perdera o caroço de tucumã no princípio dos campos queimados. O caroço saltara da mão e se escondeu num buraco de terra. Então não podia compreender, nem mesmo fazia grande esforço para isso, porque era que voltava mais fatigado, como que trazendo nos ombros a própria noite para o chalé. Ele vem com a noite dos campos para que possa ver a janela iluminada da casa de Lucíola e a voz de Lucíola cantando como se aquela modinha o [16] cha|masse. Voltar para o chalé era, muitas vezes, ter de olhar na saleta o vulto de Eutanázio sozinho com aquela cara amarrada. Era tentar compreender por que motivo D. Amélia não lhe explicava a doença de Eutanázio, misteriosa moléstia essa que parecia invadir todo o chalé. Era encontrar Major Alberto folheando os catálogos como se folheasse os próprios sonhos e recuperasse todos os projetos perdidos depois que imprimia os rótulos de cachaça do Salu e descobria para D. Amélia uma receita para fazer manteiga. Voltar para casa era voltar às feridas, que apesar de saradas [lhe] deixaram marcas nas pernas e na nuca. Não poderia ser mais um menino de pernas limpas como Tales, Jamilo e outros meninos felizes. Agora com a marca das feridas o seu corpo era feio, corpo também moído pela febre. Sentia-se humilhado quando sua mãe ia lavar-lhe as feridas, e por mais que as mãos de D. Amélia fossem leves e pacientes sentia que aquelas feridas nunca lhe deixariam de doer o [naquele] desejo muito seu de partir daqueles campos, de parecer menino diferente do que era. — Menino feridento, dizia D. Amélia brincando. A calma de sua mãe, lavando e curando, talvez viesse daquele instante do poço onde Alfredo caiu. D. Amélia lavava umas camisas, e Alfredo, que brincava tentando fazer figurinhas de barro, junto à tina de roupa, escorregou para dentro do poço. Acontecera isso em Araquiçaua. D. Amélia não deu um grito. Saltou, e foi buscar Alfredo no fundo do poço que era raso. Salvara o filho, e daí em diante parecia mais dela, saindo não somente da sua carne como do seu ressentimento, que ela sempre guardava consigo mesma a respeito do outro filho que morrera afogado. Salvou o menino silenciosamente, podia-se dizer até que o salvou como se já soubesse que havia de cair no poço e certa de que o salvaria. Alfredo voltara de novo para os seus braços como se fosse o outro também que voltasse. — Não quero que diga nada a ninguém. Não conte isso nem pro seu Alberto, ouviu bem? Estou lhe dizendo. — Com que tranqüilidade o salvara! refletiu, admirada de si mesma. D. Amélia resolvera silenciar porque podiam pensar — nesse ponto não era tão bem claro seu pensamento — podiam 3 pensar [17] que era destino dela ser mãe de meninos afogados. Lucíola saberia, e no meio disso era um segredo que ela queria guardar e o achava tão precioso e tão sagrado porque reabilitavase a si mesma. Ficou dominada pelo pressentimento de que todos os filhos podiam morrer afogados e que estava condenada a isso. D. Amélia subiu o poço raso sem a ajuda de ninguém. Fez Alfredo subir devagarinho. A subida era fácil, sim, a água podia afogá-lo, e ela pensou que se não pudesse salvar o filho, já não seriam apenas dois filhos mortos mas a mãe também [atirada por si própria2] ao fundo do poço. Alfredo podia cair outra vez no poço, cair no rio, podia acontecer que morresse nas águas que as grandes chuvas trazem para Cachoeira em Março. Lucíola perdera uma ocasião para justificar aquele direito de maternidade que pretende obter sobre Alfredo. Com aquele segredo, D. Amélia podia rir íntima e sossegadamente de Lucíola. Nem isso porém era capaz de abafar a revolta que sofria com as pretensões de Lucíola. Imagine se fosse Lucíola... Alfredo pensa que as feridas do corpo podem voltar e pensa também no caroço que se perdeu nos campos queimados. Menino feridento. Havia muito moleque sujo, em Cachoeira, que tinha as pernas limpas e bonitas e morava na sujeira, nas barracas de chão. Alfredo por isso queria sair daquele chalé onde o vento vem bater nas janelas, sacudir as redes, bulir com os catálogos do Major Alberto. Quando as chuvas voltavam, então era que D. Amélia sentia mais desejos de levar Alfredo para Belém. Já está crescido, ele, tudo pode acontecer com aquelas águas que iam e vinham mornas e silenciosas. Os jijus vinham nas águas, e para Alfredo não pareciam peixes, pareciam filhos de sapo e de cobra. No chalé não se comia daquele peixe porque era como se comesse lama. 2 Esse trecho e os subseqüentes indicados entre colchetes foram reconstituídos por ASSIS, Rosa Maria Coelho de. Edição crítica de Chove nos campos de Cachoeira. Belém: UNAMA, 1998. p. 78-100. Alfredo gostava das grandes chuvas. Podia ter medo, mas era enorme a sensação de ouvir, uma noite, o ronco dum jacaré debaixo da casa. As montarias andavam pelos campos. Didico ia com seu pequeno barco pegar porfia com o barco do Roldão, na lagoinha atrás da casa do Dr. Adalberto. Alfredo sentou-se na escada. O caroço ficara nos campos queimados contando a história do faz-de-conta. Agora tem que ir ao tanque escolher outro caroço que fale como o outro, lhe [18] mostre os campos da Holanda, o arranque daqueles campos mormacentos. A vila caía num sono como uma menina doente. Por que sua mãe não resolvia logo o caso do colégio? Alfredo não sabia que voltava com a escura solidão dos campos queimados, estava mole, com um indefinido esmorecimento. Ouve sempre Major Alberto dizer a D. Amélia: Uma gente que não se corrige. Não se convencem que não deve queimar os campos. Porque... Ouviste? Psiu. — Major puxa pela manga da blusa de D. Amélia. — Porque... Esteriliza... Ouviste? — Major explica, e Alfredo ouve a explicação, meio sonolento. Quando está em sua rede, à noite, sempre ouve os dois conversarem, e a conversa toma um ar de misteriosas histórias e, depois, um ar de histórias que eles contassem para o adormecer. D. Amélia pouco fala. Sua voz vai para o quarto naquele mesmo tom com que pediu a ele que não contasse a história do poço. E naquela noite, última noite em que Major Alberto falou dos campos comidos pelo fogo lá fora, o clarão era grande e Alfredo sonhou que o fogo também queimava o chalé e via as mãos de sua mãe como carvões. A noite sobre os campos queimados também se queima e perde a paz. Alfredo tem um sono como aqueles campos ardendo, como aquela noite queimada. E quando o vento cresce sobre os campos ouve-se no chalé o gemido da terra e da noite que o fogo queimou. Alfredo ergue-se e olha de novo as marcas de feridas. Os 4 campos se queimam mas em Janeiro as grandes chuvas lavam a marca do fogo. Os campos ficam verdes e se deixam depois ficar dentro d’água e os mururés florescem entre os peixes. Quando sua mãe aparecia com a cuia e o algodão para lavar as feridas, Alfredo se amolecia na rede num quase desejo de morrer, morrer devagarinho com o braço de sua mãe sob a sua cabeça. Aquilo era também da febre. Mas de súbito um ímpeto de chorar alto, de gritar para espantar aquele desejo sem forma. Vontade de bater o pé para a mãe, embrulhar-se na rede, repelindo o curativo, não queria nada. D. Amélia nascera com aquelas mãos para tratar feridas. E agora Alfredo sabe que nem essas mãos nem as grandes chuvas em Março curam a marca das feridas. [19] Os passarinhos revoam em torno do chalé. O caroço de tucumã já imaginou que os passarinhos moravam no chalé. Ficavam livres do gavião, do fogo dos campos e da baladeira dos moleques. Não, não gostava dos moleques sujos que matavam os passarinhos a baladeira. Um moleque não tinha talvez o valor dum passarinho. Ainda ontem viu Henrique balar um passarinho que caiu na calçada da casa do Coronel Bernardo. Henrique riu, e apanhou o pobre morto e disse. — Vou te comê de espeto. — Se come então um passarinho desse? — Se come. E no espeto. Não sabe o que é bom. Pra que tenho mea baladêra [sic]? Tu não gosta? — Eu não. — O que tu perde. És um branco... — Tua boca é doce pra dizer isso... que sou um branco. Tu não vês minha cor? — Alfredo não queria ser moreno mas se ofendia quando o chamavam de branco. Achava uma caçoada de moleque. — Mas tu não é? — Tu és moleque... — Que tem com isso? Sei balá um passarinho. Tu não bala. Vamo um dia no campo, tu arruma uma liga velha ou então me dá um cruzado. Tira do teu pai. Tira escondido. Não te incomoda que tu não come o passarinho que tu bala. Eu como. Alfredo não disse mais nada. Se pudesse dava logo um tabefe naquela cara amarela e empambada de Henrique. Henrique era amarelo, empambado, mas brigador. Alfredo via-se impotente naquele momento para cuspir como queria na cara de Henrique. Henrique não estava caçoando. Para ele era tão natural que Alfredo parecesse branco. Não mora num chalé de madeira, assoalhado e alto? Era filho do Major Alberto, tinha sapatos. Alfredo não comia passarinho balado. Quantas vezes Henrique não matou a fome com um passarinho de espeto? Alfredo queria que todos os passarinhos viessem morar no chalé. Maninha brincaria com eles e quando brincassem — passarinho beliscando no braço de Maninha e Maninha arrancando [20] pena de passarinho, — D. Amélia tinha de vir para ralhar. Quanto ao branco e preto, Alfredo achava esquisito que seu pai fosse branco e sua mãe preta. Envergonhava-se por ter de achar esquisito. Mas podia a vila toda caçoar deles dois se saíssem juntos. Causava-lhe vergonha, vexames, não sabia que mistura de sentimentos e faz-de-conta. Por que sua mãe não nascera mais clara? E logo sentia remorso de ter feito a si mesmo tal pergunta. Eram pretas as mãos que sararam as feridas, pretos os seios, e aquele sinal pretinho que sua mãe tinha no pescoço lhe dava vagaroso desejo de o acariciar, beijando-lhe também os cabelos, se esquecer do caroço, do colégio, das feridas, da febre, dos campos queimados avançando para a vila dentro da noite no galope do vento. Ficar assim como se pela primeira vez, de repente, compreendesse que tinha mãe, a primeira e real sensação que era filho, de que brotara, de súbito, daquela carne escura. Alfredo correu e foi buscar um caroço de tucumã. Começou 5 a ver todos os passarinhos no chalé dançando uma dança esturdia com Maninha no soalho. D. Amélia resolveria explicar a doença de Eutanázio. E distraído, com o caroço pulando na mão, começou a falar bem baixinho, [quando] tão de repente aquela mão lhe tocou muito de leve no ombro. — Falando só, hem? O caroço deslizou pelo braço e rolou para debaixo da escada como se compreendesse o susto e a vergonha do menino que ficou frio e teve um desejo de morder a mão de D. Gemi, quebrar-lhe a cabeça com o caroço. — Sua mãe está? Alfredo sem responder foi logo chamando a mãe. E como, uma hora depois, D. Gemi voltava da saleta, procurou espiar o que se tinha passado com Eutanázio e ficou, de novo, quase assustado quando deu com ele na saleta escura. Subiu-lhe a lembrança dos campos queimados e daquele sapo que o espiava através do chalé, uma tarde, como se o sapo visse e compreendesse o que era que estava acontecendo dentro do caroço de tucumã pulando na mão do menino. Mas sua mãe o chamou. II [21] IRENE, ANGÚSTIA, SOLIDÃO D. Gemi, afinal, se aproximou e disse: — Então, meu filho, por que não disse logo? Se dissesse já estava bom. Mocidade é isso mesmo. Mas num átimo lhe boto bombom. Que tempo tem que está assim? Mocidade é isso mesmo, meu filho. Como Eutanázio não respondesse, dona Gemi não continuou. Se tocara no caso com constrangimento, agora, com a resposta daquele silêncio, ficou sem jeito. Ele ouvia com uma irritação crescente. Mocidade é isso mesmo! Mocidade é isso mesmo, uma ova! Um palavrão chocalhou na boca, como que rolou pelo estômago. Sentiu náuseas de tudo. Uma vontade de esbofetear a velha, enxotá-la com aquela vassoura que Maninha nas suas brincadeiras deixara embaixo da estante. Mocidade e ele com quase quarenta anos! Sim, estava próximo dos quarenta. Como foi que o tempo passou? Como chegou a ter vinte anos sem ter percebido? — Sim, meu filho. Por que não disse logo? A velha deu uma doçura à pergunta. Ia ficando agoniada com aquele sem-ninguém, que escondia uma doença cuja vergonhosa intimidade lhe contamina a imaginação e aquela tão secreta e trágica necessidade de Irene. Lhe deu uma força para suplicar, envolvê-lo de confiança. Do contrário aquele homem morria podre. Morria podre. Era preciso salvar aquele homem. Assim esperava uma resposta. Queria saber se o doente aceitava ou não o conselho dela. De qualquer maneira era preciso abordar o homem, fazer com que ele tire o vexame e cure a doença. Como deve estar sofrendo. Imagine, sem um tratamento! Dona Gemi sentiu até um peso na cabeça. Para se aproximar dele fora um custo. Dona Amélia avisara do gênio de Eutanázio. Que falasse com muito jeito. Eutanázio tinha um gênio complicado. E houve uma luta dentro de D. Gemi, se falava ou não falava. Afinal era um homem apodrecendo por falta dum cuidado, duma criatura mais corajosa que não tivesse medo dele. — Por que, meu filho?... [22] Dona Gemi ficou olhando o silêncio de Eutanázio que engolia palavrões, raivas, nojos, as grandes náuseas de si mesmo. A velha refletia. Aquilo era vexame, um rapaz de sentimento, de educação. Naturalmente se vexava. Embora com aqueles cabelos brancos lhe subindo pela cabeça, podia ser que fosse a 6 primeira vez. Dona Gemi arranhava o pescoço, bulia com o seu rosário, mexia os pés dentro dos chinelos, esperando. Que ele falasse, pelo amor de Deus. Como se podia deixar um homem daquele entregue ao seu gênio, como? Estava resolvida a ficar ali até que ele se decidisse. Havia de falar, de responder, aceitar um oferecimento dado com tanto coração. Não ia apodrecer em vida. Não era vergonha um homem com “aquela enfermidade”. Natural. E ela uma velha, como se fosse mãe, a pôr o doente à vontade. E Eutanázio pensava que doença do mundo ele tinha era na alma. Vinha sofrendo desde menino. Desde menino? Quem sabe se sua mãe não botou ele no mundo como se bota um excremento? Sim, um excremento. Teve uma certa pena de pensar assim sobre sua mãe. Não tinha grandes amores pela mãe. Morrera, e quando o caixão saiu, ele, sem uma lágrima, sentiu sede e foi fazer uma limonada. Aquele choro das irmãs, dos parentes, lhe pareceu ridículo. Enfim, sua mãe tinha morrido. Ele saltou de dentro dela como um excremento. Nunca dissera isso a ninguém. Depois, a sua própria mãe contava que o parto tinha sido horrível. Os nove meses dolorosos. Sim, um excremento de nove meses. A gravidez fora uma prisão de ventre. Eutanázio deu as costas para D. Gemi e ficou debruçado na janela. O tempo anunciava chuva. Ainda mais essa, se essa chuva cair, tinha que esperar. D. Gemi podia ficar. Ele ficava no desespero de aturar D. Gemi e de não poder ir à casa de seu Cristóvão. — Vem chuva, seu Eutánazio? — Hem? D. Gemi ficou como ausente. Ele na janela começou a pensar num livro que vira nas livrarias em Belém. Lembra-se bem. Dores do Mundo, o título. O autor era um nome difícil. Não queria [22] sa|ber do autor, queria saber do livro. Por que essa velha não vai embora? Embora chovesse ele saía. Quantas vezes não foi e não voltou debaixo da chuva? Quis entrar na livraria e folhear o livro. Mas sabia que um caixeiro idiota ia logo perguntando qual o livro que escolhia, se queria comprar o que estava folheando, que tinha livro mais barato, ou se colava nele, rondando, vigiando, até que se resolvesse a comprar o livro ou dar o fora. O nome do autor era complicado. Uma nuvem mais pesada de chuva cresceu no céu. Quando chove, Cachoeira fica encharcada. Os campos de Cachoeira vinham de longe olhar as casas da vila à beira do rio, com desejo de partir com aquelas águas. Quando chovia, mesmo verso, as chuvas eram grandes e os campos ficavam alagados. Eutanázio gostava um bocado de passear pelos campos. De atravessar os campos para chegar à casa de seu Cristóvão que ficava na ponta da rua para os lavrados. As vezes chegava, para ver Irene, com a roupa escorrendo, os cabelos pingando. Irene ria. D. Tomázia sacudia a cabeça com pena. D. Dejanira tirava o cachimbo da boca e suplicava: — Seu Eutanázio, pelo amor de Deus vá tirar essa blusa. Valha-me Deus! A nuvem de chuva crescia. Os campos escureciam ao largo como se fossem um mar no mau tempo. D. Gemi se levantou. — Hem? — Eutanázio voltara-se de repente com o rumor dos chinelos de D. Gemi. — Senhor? D. Gemi parou indecisa, meio atemorizada. Ficou com os olhos muito grandes quando ouviu aquele “hem” rouco, de espanto e aborrecimento. O homem tinha voltado a si. — O senhor não quer. Eutanázio voltou à janela e D. Gemi sentou novamente. Começou a refletir que aquele homem só podia ter um crime nas 7 costas, andava com um remorso lhe perseguindo. Só podia ser. Não era possível acreditar num homem daquele, parecendo até variado da cabeça. Não podia compreender. Um homem emburrado sempre, insensível à bondade dos outros. Ela não fazia [24] aqui|lo por dinheiro, nem mesmo parente era. Sim, fazia por amizade a Major Alberto e D. Amélia. E ele mesmo necessitava de socorro, senão se acabava com aquela doença. — Bem... Então posso vir amanhã? Eutanázio para conter a explosão do seu desespero começou a abotoar e a desabotoar a sua blusa com um trêmulo e minucioso vagar. Os botões custavam a entrar nas casas. Faltava um botão. Mas voltou-se novamente para D. Gemi com uns olhos maus, os seus olhos miúdos fixavam-se na velha com uma perversidade e um escárnio inesperados. D. Gemi ergueu-se rapidamente, um chinelo custou a entrar no pé. Um minuto depois Eutanázio estava só na saleta. Riu-se. Não fez por mal, ou fez? Tinha gostado de experimentar a paciência da velha. De maltratá-la um pouco. Também, por que diabo foi esquecer a roupa no banheiro para D. Amélia descobrir e mais que depressa contar para Major Alberto? Major Alberto, na mesma hora o interpelara. — Como diabo você anda por aqui com essa imundície? Ficas podre em vida. Quem depois agüenta com as despesas sou eu, o besta. Por que não ficou se tratando em Belém? Foi a bem dizer morto e volta com essa... Por que não se tratou lá? Só um insensato. Você não se emenda. O besta que pague. O pai da tropa. O besta que esprema o bolso. Ele engoliu tudo sem responder. Tinha em certos momentos até vontade de receber mil insultos que o magoassem muito, humilhassem-no, sentia delícia na tortura. Mas em outros ficava sensível a qualquer brincadeira com ele. Não queria graça com ninguém. Podia mesmo esbofetear o pai naquela noite. Esborrachar-lhe um olho. Umas gotas de sangue escorrendo pela cara do pai. Era delicioso. Maldita roupa esquecida no banheiro. Que tinha D. Amélia de se meter na sua vida Íntima? D. Amélia chama D. Gemi, que antes andou dando a Eutanázio um lambedor que não tomou, um chá de cana roxa pros rins que apenas provou. Descoberta a doença, a velha lhe pareceu com um risinho de confidência, protetor, próximo da cumplicidade. Muito cínica, achava Eutanázio. Aquelas mãos sem gestos, a saia de merinó, os chinelos rotos, as pelhancas do rosto, a voz compadecida. — Vão ter pena do diabo mas não dele. Deixem ele com a sua doença! Ninguém tinha de andar se incomodando com ele. A voz do pai boiava na sua irritação: Você tem é vício por este coió daqui. Em vez de estar trabalhando pega ainda dessas porcarias. — Bolas! Ninguém andasse se preocupando com ele. Nem tinha sido de Belém que trouxera a doença. Voltou-lhe a náusea daquela noite de luar em que sentiu a sua desgraçada carne pedir, a sua carne fria, mas suada, o empurrar para a barraquinha de Felícia. Tinha saído da casa de seu Cristóvão. Ninguém sabia como saíra do riso de Irene. Ninguém no mundo sabia que um homem saíra da casa de seu Cristóvão cheio de complicações dentro do crânio. Tomou o rumo de Felícia. Uma mulher que cheirava a poeira, a poeira molhada. Cheirava a terra depois da chuva. A fome. Fedia a fome. Estava descalça, gripada, assoando o nariz, no fundo do quartinho, onde tinha, na parede, uma estampa de Nova Iorque. Um pote d’água destampado, um caneco jogado no chão, um pedaço de esteira e um cachorro espiando pela porta. A lamparina era como a língua do cachorro com fome ou sede. Quem teria dado a Felícia aquela estampa de Nova Iorque? Os arranha-céus cresciam dentro do quartinho escuro e sujo. A língua da lamparina dava aos arranha-céus uma cor apocalíptica. A estampa aumentava sobre Eutanázio. Mas numa 8 mesa velha ao canto, e meio arriada, um grande crucifixo mostrava na luz escassa umas vagas costelas redentoras. Onde estavam os olhos de Cristo naquele crucifixo? — Donde você arrumou aquilo? — O quê? A figura? — Não. O crucifixo. — Ah. Foi um tio meu que me deixou. — E a estampa? — A estampa? Ganhei dum canoeiro. — Você está boa? Hem? Anda boa? A mulher baixou os olhos. Eutanázio teve a ilusão de que os olhos de Felícia procuravam na sombra os olhos do Cristo. Ela torceu as mãos. As unhas eram sujas e uma pequena ferida na [26] pal|ma da mão esquerda era como um olho. Tossiu e escarrou, assoou o nariz, limpando as mãos no peito da blusa. Felícia ficou humilde, e cheirava a terra úmida, a terra dos caminhos pisada por todos os caminhantes. — Não está? — Credo, seu Eutanázio... Felícia tinha já estado desde a véspera com um homem suspeito. Não sabia se estava contaminada. Das doenças velhas andava livre. Mas o homem da véspera era suspeito. Viera das canoas encalhadas na beira da doca onde tem cavaquinho, peixe assando na brasa, homens tirando carga. Eutanázio com pena sentiu a quase certeza de que ela não sabia mesmo se estava contaminada ou não. Mas ele tinha vindo da casa de Irene como um homem perdido. Se entregou a Felícia para corromper-se mais, e mesmo seria humilhar a pobre se não ficasse com ela. Era degradá-la ainda mais. Podia dizer: — Tome esse dinheiro e adeus. Mas sentiu que devia se entregar a qualquer coisa que ao mesmo tempo contentasse a carne e castigasse a sua impotência para resistir ao riso de Irene, àquela casa odiosa. Felícia estava tão indecisa e humilhada. Era sempre assim apesar de tudo, aquela Felícia. O homem da véspera tinha se aproveitado dela sem lhe dar um tostão. Felícia apesar de não ser nova naquele ofício era sempre tola, lograda, ingênua. Eutanázio sabia disso. Sentiu que devia se entregar a ela pela força de uma inesperada e misteriosa piedade, enchendo o seu impuro desejo de uma mulher qualquer como Felícia. Mesmo pelo fato de ela estar talvez doente era como uma abstenção que o tentava. Uma absurda necessidade de violá-la. Sentia nisso, ainda que um tanto obscuramente, uma coisa de heróico, de religioso, de anti-egoísta, de inumano. Mas aqueles minutos foram horríveis. No meio daquela luta, ele subitamente se levanta, como se tivesse ido apenas com ela para contrair o mal. Felícia deu um pequeno gemido de dor porque ele a machucara com os joelhos e ficou na rede com os olhos acesos, uma vontade de chorar, de dizer, de gritar contra aquele homem. Eutanázio atira sobre a mesinha, ao pé do crucifixo, o [27] dinheiro que havia no bolso e ainda pôde olhar para a estampa de Nova Iorque. Um nojo e um ódio levantaramno da rede e com a blusa na mão sai apressadamente, limpando com a manga da camisa o suor do rosto. Sentiu violentamente o desejo de transmitir o mal, que suspeitava ter apanhado, a todas as mulheres do mundo. A todas as mulheres aristocráticas do mundo. Saíra mais miserável ainda. Era ridículo, era estúpido, era dum maluco. Toda a miséria que carrega da casa de seu Cristóvão obrigava-o talvez a fazer um sacrifício. Se tivesse pegado o mal era o sacrifício desejado. E saiu molhando as bainhas da calça no capim molhado da rua. Depois de tudo aquilo imaginou ser levado pelas mãos de alguma mulher de história encantada e fazer amor com ela no fundo do mar. Todos os peixes se admirariam de ver um homem magro e feio com uma sereia no fundo do mar. Se lembrava da 9 modinha. Vou amar lá no mar os peixinhos... Ia amar lá no mar os peixinhos. E agora o que ia fazer com aquela doença? Depois daquela noite principiou a não suportar as noites de lua. Não suportar, e quando lhe apareceu a doença, um ódio ao luar tomou um tamanho enorme dentro dele. Guardava dentro da mala uns versinhos ordinários sobre o plenilúnio. Ora, o plenilúnio! O plenilúnio era aquela doença do mundo. Jogou os versinhos no fogão. O luar lhe dera talvez aquela luxúria, lhe mostrando o caminho da Felícia, e aquela piedade de receber como uma graça o mal de Felícia. Uma Felícia podre, que, naquela hora, porque estava com fome, porque baixou os olhos, se fez numa Felícia quase santa, pura pela doença que a corrompia cada vez mais, uma imaculada Felícia que devia ser a mãe de Jesus, daquele corpo pendurado numa cruz, em cima da mesa velha e meio arriada. Uma mulher com fome se prestando para homem. Que sensação a de amar uma Felícia com fome. Possuir pelo triste amor aquela fome. Por que Cristo não transformou a pequena cruz em pão para Felícia? A nuvem de chuva ainda ameaça. Eutanázio vai sair. [28] Sente-se como podre. Por que D. Gemi não volta? Está completa a sua miséria. Irene, se soubesse, daria a sua gargalhada. Quando ela ria, a boca, um pouco grande, não se abria, mas arreganhava, era o termo de Eutánazio, e apesar de ser uma criatura moça e bonita era uma mascara odiosa. Um riso que o cortava todo, caía nos nervos como vidro moído. À noite, muitas vezes, quando os seus nervos se arrepiam e sente-se sé,, sem amigos, sem pensamentos, sem saudade, os risos de Irene voltam tenebrosos. Os risos o cortam como chicotadas. E se Irene soubesse que ele agora está com “aquilo”, então a antipatia dela aumentava, o nojo maior. Ela exclamaria o seu habitual Axi! e cuspiria para o lado. Só vivia cuspindo. Seus olhos ocultavam sombras ruins, perversidades latentes. Os seios tinham um certo impudor, agrediam. No entanto não desejava tanto aquela carne. Instantes havia que o corpo de Irene o agarrava, mas a crise era rápida. Eutanázio quer saltar sobre o tempo. Sobre dois anos, por exemplo. O tempo devia parar dentro dele. Ficaria então à margem e Irene passaria com as horas, desapareceria. As horas pingam vagarosamente sobre a sua solidão. Faltalhe ar, se agonia com aquela nuvem negra e quer gritar para o pequeno relógio de seu pai: — Pára! Pára! Não posso mais! Os risos de Irene caem sobre as horas como pedras pontiagudas. Eutanázio sai da janela e senta-se. Sacudiu a cabeça. A nuvem passava. Tinha de sair logo. Ficou um tempo de cabeça baixa. Estava em casa de seu pai feito um parasita, doente e aquela velha Gemi a persegui-lo. A dizer que mocidade é isso mesmo. Que escárnio falar-lhe em mocidade! Ficou arrependido de ter feito aquilo com a velha. Ela viera com tanta bondade, com ternura mesmo. D. Gemi acostumada a curar doença de toda gente. Como sabia esperar que ele se resolvesse a responder alguma coisa! Mandaria chamar D. Gemi. Falará amanhã com ela. Perdoará a sua ternura. Pedirá ao demônio que não faça pendurar na língua de D. Gemi a “mocidade é isso mesmo”. Aí romperá duma vez, jogará uma cadeira no ar, D. Gemi dará um grito. E ele sairá para estrangular Felícia ou Irene? [29] Felícia. Matar-se-ia em cima de Felícia e Irene havia de saber. Em cima do puro cadáver de Felícia. Por que em vez de Irene não ama Felícia? Santa Felícia. Tratará Felícia D. Gemi se 10 incumbirá disso. Felícia ficará bem boa. alo dinheiro. Onde arranjará dinheiro com que comprar os remédios necessários para Felícia ficar boa? Felícia voltará purificada pela prostituição. Eutanázio como que se acorda. Ora, bolas! Para que estão servindo as horas. Para lhe dar o trabalho de pensar em Felícia, inventar ou sonhar, quando o riso de Irene o fustiga, o cuspo de Irene se agarra nele. D. Gemi devia ter ficado para conversarem, combinarem o tratamento. Eutanázio mostrará a doença aos olhos da velha. Não terá vergonha de nada. — Eis aqui. Não está vendo? Não verifica que é uma imundície? Cure, cure, se curar. Se não curar faço a senhora... D. Gemi não ouviria o resto. Fugiria chamando dona Amélia. Maninha, vendo aquela velha batendo os chinelos e afoita, ficará com os olhos arregalados, esfregando as mãozinhas morenas e gordas. Imagine a cara de D. Gemi se ele contasse como foi que adquiriu a doença. Toda Cachoeira podia rir, se soubesse. Fica assim na moleza da noite, gozando o seu próprio aniquilamento. Um mundo de incoerências flutuava nas suas fatigantes e infinitas auto-análises. Sente um peso no estômago. Não quis jantar. Aqueles cacos de dente lhe doem. Trouxe de Belém uma palavra que só pronunciava para si, achada num velho dicionário: hipocondríaco. Todos os dias repete várias vezes a palavra. Agora repete dez, vinte vezes, esperando D. Gemi que mandara chamar pela Maninha. A noite o enche de obsessões. Felícia desaparece. Mas Irene ri como se o triturasse. Sente que deve se lembrar não sabe bem do quê. Fica num silêncio cheio de náuseas. O silêncio de exumação de Eutanázio. Quantas covas a abrir no seu passado. Uma infância doentia, infeliz. Certos desejos, certos sonhos, as inquietações obscuras da adolescência. Os primeiros desenganos ruins demais para a sua sensibilidade, ou melhor, para a sua irritabilidade. Mas enterrara tudo sem saber se estava morto ou não. Daí o seu silêncio de exumação. Obsessão de rever as ossadas, os vestígios de certos sonhos, certos desejos que mal se [30] com|pletaram, como fetos, na sua mocidade solitária e inútil. Talvez no meio das ossadas algum esqueleto esteja contorcido, denunciando um despertar de cataléptico no fundo da cova fechada. Via contorções desesperadoras dentro de seu passado. Para que enterrara assim? Tudo foi entulhado pela náusea de si mesmo. Os sonhos vieram abaixo como paredões desabados. Mas nem tudo parece que está morto. No meio dos sonhos mortos, dos desejos extintos, das esperanças abortadas, haverá algum tímido desejo palpitando, algum sonho, alguma esperança com sinal de vida. O certo é que os desejos apodreceram e por medo da contaminação era melhor deixar tudo enterrado para acabar mais depressa. Porque, enfim, os que ainda mostrassem sinais de vida, tarde ou cedo morreriam inevitavelmente. Sim, sim, foi melhor contemplar os esqueletos contorcidos no desespero da impossível sobrevivência. Eutanázio criara os monstros que o devoravam, lentamente. Rompiam-se no seu silêncio dores fundas, pequenas dores, meias dores monótonas pingando das horas. Pequenos ódios, remorso de não odiar como devia, de não se maltratar como é preciso. Ter assim um desprezo de si mesmo. Aquele que o levou à barraca de Felícia. Mas o seu passado? Por exemplo, o que foi que fez aos vinte anos? Qual foi o acontecimento aos vinte anos? Tudo enfim entulhado naquele vagaroso e inevitável desabamento. Queria identificar alguma coisa de sua vida no passado. Não pode destacar nada, tudo é irreconhecível. Cenas miúdas, vozes chatas, ralhos, um copo se quebrando, mesa posta, uma criança gritando, suas irmãs enxotando galinhas e cachorros. Um gramofone. Onde essa serenata que todo dia o persegue? Os sonhos se misturam com as cenas perdidas, alguém ri. Irene volta a rir. As mãos ficam frias. Coragem um dia de matar Irene? Não será talvez uma liberação. Os cacos de dente 11 doem. Ele nem podia rir um grande riso de escárnio com aqueles cacos de dente. D. Gemi não vem mais e ele necessita ir à casa de seu Cristóvão. Sem ir lá não podia dormir. Um vício, diz o seu pai. Seja o diabo, Irene morava lá e a melhor maneira de se livrar da lembrança de Irene é estar na casa dela, debaixo daquele riso fustigante. Hoje Raquel lhe pedira uns charutos. Onde arranjar [30] di|nheiro para os charutos de Raquel? O dinheiro que tinha foi para a D. Tomázia que se queixava: Irene precisava de uma chinela. O velho Cristóvão, ontem, teve um longo ataque de tosse e as netas riram. Irene ria do avô. Efetivamente o avô não tem autoridade em casa. Se eu fosse o velho corria aquela gente a chicote... Irene [seria] fechada num banheiro e despida. Ótimo uma surra naquela carne. As nádegas roxas, a voz de Irene um berro, o chicote estalando nas ancas sobre os seios brutos que o agrediam. Irene ficaria ridícula. A máscara empastada de lágrimas. O berreiro. D. Tomázia passando andiroba nas marcas da muxinga3. Seu Cristóvão, sossegaria na rede. Não tossiria o resto da noite. Ouve uns chinelos arrastando pelo corredor. Os chinelos param, D. Gemi vem num vagar irritante, pensa ele. Irritante. Hipocondríaco. Vamos, senhora Geminiana. Eutanázio ergue-se e vai espiar o corredor. Não havia luz. D. Amélia não trouxera o candeeiro para o corredor. Eutanázio vai buscar o candeeiro da saleta para ver se é dona Gemi. No fundo do corredor a vela é como Felícia; por que se lembra de Felícia? O crucifixo vem atrás de D. Gemi e os arranha-céus de Nova Iorque caminham. D. Gemi vem andando. Um rato correu pelo telhado. Um morcego esvoaçou e partiu. Eutanázio volta com o candeeiro e espera. D. Gemi vem com medo. D. Amélia tinha ido a uma ladainha na casa de siá Bernarda. Major Alberto na alcova põe o candeeiro junto da rede em 3 Chicote. cima dum banco e folheia os seus catálogos. Quantos planos em torno daqueles catálogos. Major Alberto mergulha nos catálogos todo o seu sonho, o seu romantismo, o seu impossível. Major Alberto ajeita o candeeiro e tosse. Eutanázio se lembra da tosse de seu Cristóvão e da cara de Irene pregada na parede. Como seria se levassem Irene a um cepo e a degolassem? Embalsamaria a cabeça e mandaria um médico estudar a fisiologia daquele riso... A fisiologia daquele riso. Ande, D. Gemi. Eutanázio deixa o candeeiro na mesa e volta para espiar o corredor. Vê D. Gemi imóvel no meio do corredor. Era uma senhora estranha também, pensava Eutanázio. Ela sente-se atraída [pelo gênio de Eutanázio], sim. [32] Ande, D. Gemi. Tenho que sair. Ande, ande! Pra que foi embora? Tenho que sair! D. Gemi na saleta ouviu as rápidas palavras roucas do homem. — Olhe, eu lhe ensino... — Mas minha senhora, não me diga que mocidade é isso mesmo. Não me diga semelhante coisa. Porque eu estouro, minha senhora. Estou hipocondríaco. A senhora sabe o que quer dizer essa palavra... Hipocondríaco? — Não, seu Eutanázio... — Quer dizer que não admite que ninguém diga que “mocidade é isso mesmo”. A senhora compreendeu bem? D. Gemi mais assustada, sem responder. Eutanázio tinha falado demais. Fatigadíssimo. Se Irene ouvisse ele falar daquela maneira enérgica, seca e rouca, não seria capaz de rir novamente. Os olhos de Irene em certas horas têm traços de paisagens desconhecidas, talvez um reflexo duma alegria dela, perdida. Pudesse e entulharia aqueles olhos dentro do seu passado. — Mas seu Eutanázio, o senhor precisa dum passe. De ser benzido. — D. Geminiana, a senhora veio aqui para ver as minhas 12 enfermidades. Somente. Não me venha com copaíba! Não tem nada que se incomodar com a minha desgraça, ouviu? — Com a sua desgraça, seu Eutanázio? — Como desgraça, como a minha desgraça? Mas a senhora insiste em saber o que tenho? O que tenho além de minha doença? Que tem a senhora com o que achou de chamar minha desgraça? — Mas foi o senhor, seu Eutanázio, que chamou... — Que tem a minha desgraça com a senhora? Que tem a senhora com a minha desgraça, era o que eu queria dizer. Vivo trocando as frases. Pois a senhora vai ver o meu estado. — Não, seu Eutanázio, não precisa. Eu já sei. Eu lhe ensino. O remédio... — Quem lhe disse? Onde escutou? No mercado, na Duduca? Mas a senhora tem de ver. Preciso me livrar do desejo de lhe mostrar. A senhora não compreende? Não? Feche a saleta, feche. [33] D. Gemi não sabe o que faz, arrependida, transtornada, quer fugir. — Feche, dona Geminiana. Feche a saleta. Maninha pode vir. — Maninha foi com D. Amélia. Eu sei a doença, seu Eutanázio... A senhora sabe nada, sabe nada, sabe nada. Apressadamente D. Gemi aconselhou o remédio; os olhos dele fixam-se nela agudamente com minuciosa perversidade. E antes que ele volte a falar, a velha se larga para o corredor, espantada, os chinelos rotos se debatendo no assoalho. Era um homem monstruoso aquele. Vai contar para D. Amélia. Major Alberto se esquece nos catálogos. Os catálogos são bonitos e convidam ao sonho. Eutanázio na cadeira tem os olhos cerrados. O vento dos campos bem pode dar uma impressão de distância, de horizontes. Os campos lhe podiam encher de horizontes a vida. Se pudesse chorar talvez aliviasse. Um quase desfalecimento. Tem de ir à casa de seu Cristóvão, onde as mulheres jogam nesta hora dominó ou baralho, discutem ou cortam a vida alheia. Irene bate os pés para D. Tomázia e come sem termos na mesa. Come com a mão e com a faca, uma vez comeu com o pé, um pedaço de banana entre os dedos. Bebe água fazendo de propósito um gluteglute maçante ou enche a boca para borrifar em cima de Henriqueta. Um barulho. Seu Cristóvão tosse. D. Tomázia grita: Meninas tenham termos! As duas se atracam. Irene o espera para rir, dizer indiretas, falar dos seus fiteiros. Mandaria cortar os bicos agressivos daqueles seios. Os cabelos lisos dela caíam pelos olhos e seus olhos debaixo daqueles cabelos são como aquela boca de corredor escuro por onde D. Gemi espantada fugia como uma bruxa. Sai. O vento dos campos vem bulir com a sua hipocondria. Toma o rumo do aterro que liga a parte baixa da vila à parte alta. A parte baixa é apenas uma rua beirando o rio. A alta é propriamente a vila. Eutanázio há muito tempo não fuma. Agora está decidido a fumar toda a noite. Comprará uma carteira de cigarros bem fortes. Falta é o dinheiro. Ezequias fiará. Jogará baforadas de fumo no riso de Irene. [34] Caminha devagar com a sua bengala noduda, a gravata voando ao vento. Sempre usava gravata. Um ou outro dia que saia de blusa. Anda um pouco curvo, a cara bochechuda e cheia de pregas. Uma boca pequena e uns olhos espremidos. Seu andar é compassado mas cheio de curvas. Está perto da casa do Coronel Bernardo. Vai para a casa de seu Cristóvão puxado pelo riso de Irene. Aquele riso é um tentáculo. Como uma corrente que o enrolasse pelo pescoço e fosse arrastando ele para o suplício daquela varanda de seu Cristóvão olhando as moças discutirem jogo, modas, vida alheia, disputarem restos de pão, brigarem por duzentos 13 réis desaparecidos de cima do oratório. Naquela noite de Felícia ele tinha ido antes à casa de seu Cristóvão. D. Tomázia recebera os presentes que ele trouxera de Belém para Irene. Irene apareceu e começou a rir dos presentes. O par de meia era vagabundo. A pulseira de se comprar na doca do Ver-o-Peso para as cabocinhas do Puca que nunca usaram pulseiras. Os sapatos parecendo de segunda mão. A fazenda do corte era duma cor para enganar babaquara. E assim Irene foi rindo e a mãe ralhando, até que ela num safanão jogou com os troços no soalho e largou uma porção de axi! axi! cuche, com isso tudo, era! D. Tomázia correu pra cima da filha com a chinela. Irene deu um berro. — Axi que eu uso essas porqueiras! Axi! Axi! Ele quer eu sei o que é... — Irene! Irene! Essa atrevida! Seu Cristóvão veio da rede para tomar um pouco d’água pois há uma hora que pedia sem ser atendido. Irene gritava na cozinha. No fundo queria os presentes. Seu Cristóvão quis atirar uma acha de lenha nas pernas de Irene mas não pôde se abaixar para apanhar a acha. Bateu inutilmente os pés e Irene correu para o banheiro, rogando pragas a Eutanázio e chamando velho gosmento pro avô. — Por que esse diabo velho não morre? Por que esse gosmento velho não estica logo a perna? Fechou-se no banheiro. Na varanda, uma discussão tomou pé por causa da má-criação de Irene, da tolerância de D. Tomázia, [35] da falta de humanidade das moças para com seu Cristóvão que não podia ter sossego na sua rede na sala. Eutanázio saiu da casa de seu Cristóvão com uma angústia diferente. Foi então que se lembrou de Felícia. Vai agora pelo aterro como aturdido. Os candeeiros da rua ardem como tédios. Quase quarenta anos e a caminho daquela tortura de todo dia. Toda a sua infância fora triste, indecisa, infeliz. Um pequeno enjambrado, cheio de aborrecimentos crônicos. Era uma consumição para os país. Major Alberto dava-lhe tundas e o pequeno com aquele gênio. O pai, depois da surra, bradava apoplético: — Eu te acabo! Eu te esmurralho a cara, seu patife! Acabo com isso... — E. cerrando-se os dentes, as mãos crispadas: — Te acabo! te acabo! Me saíste uma boa peça. Mas pagas! Costa de chinelo te fará macio, seu brutamontes! A filha mais velha com os olhos muito arregalados, a mão arranhando a gola da blusa, sussurrava: — Nunca vi. Mas Eutanázio está... — E olhava a outra irmã calada, com um esboço de sorriso no canto do lábio enquanto a mãe silenciosa enrolava, lenta e séria, os seus longos cabelos negros. Eutanázio se fechava no quarto, em resmungos e abalava a casa com as pisadas de bezerro brabo, aos tombos, aos pontapés, machucando-se propositadamente nas paredes, nos bancos, nas mesas ou tinindo o caneco no pote quando ia beber água, esgazeado de raiva. Raquítico, tinha os olhos sombrios, os dedos trêmulos, contínuas dores de dentes. Apedrejava os cães que era uma danação. Chicoteava os carneiros de seu tio Bernardo, molestava galinhas, feria os pirralhos que só não se vingavam dele porque era filho do Major Alberto. Mas uma vez empurrara no peito do moleque Marcelo. O moleque não se fez esperar, a mão cantou em cheio na cara de Eutanázio que ficou atordoado. Os outros intervieram. Uma covardia o assaltou, fez ele sorrir para o moleque fingindo ter compreendido que aquilo não passara de brincadeira. Até agora, Eutanázio sente aquela bofetada. O cigarro apagou. Procura os fósforos em todos os bolsos, acende o cigarro e vê as luzes da vila de Cima. Janelas abertas donde [36] saía uma luz de intimidade, de serões, gente talvez contando histórias, moças tranqüilas fazendo bordado, resto de 14 jantar, conversas alegres, meninos vendo gravuras, crianças brincando, a Santa Ceia na parede. Naquelas casas não tinha Felícia esperando um cristão que matasse a fome dela. Eram varandas sossegadas com uma luz vinda para a noite como um agradecimento e como uma ofensa a Eutanázio. Anda. Brigava horas e horas com as irmãs, manhas sem fim, birras, quando não ficava no chão ou na mesa de jantar, armando castelos de canas, construindo navios de papelão e miriti, gaiolas e papagaios, folheando revista, vendo gravuras de livro. Cresce em Belém com a idéia de ser general, um dia. Enverga uma sombria vocação para chacina. A guerra é a sua fascinação. Gosta dias pinturas de batalhas, morticínios e devastações. Saquear cidades, fuzilar, contar, com delícia, o número dos monos, ver os campos queimados e a metralha roncando longe. Nos seus amuos e nas suas birras oculta planos de destruição, de combates, de castigos sem fim. Morta a primeira aspiração, sonha ser um enfermeiro. Vê uma tarde, num hospital, um enfermeiro de avental, muito limpo, curando a ferida dum doente. Começa a praticar o ofício nas galinhas goguentas, cães batidos, perus esmorecidos, todos os bichos que lhe parecem necessitados de socorro. Major resmungava: — Mania. Dai a pouco vão ver. Uma tarde, Eutanázio cura a asa quebrada dum frango. O paciente beliscou-lhe a mão. As irmãs arrancaram o enfermeiro de cima do bicho que ficou com a cabeça em pasta. Eutanázio dava pontapés nas irmãs. Queria meter vivo na máquina de moer carne aquele frango ingrato. Como estudante, sempre descuidado dos sapatos e da roupa. Aprendia com aborrecimento ou com indiferença, frieza ou desapontamento. Ninguém se interessava por ele. O pai era indiferente. A mãe só dava pela existência da escola quando sentia a falta de Eutanázio em casa. Eutanázio acabou não adivinhando a utilidade de saber ler e escrever. Tudo seria a mesma coisa. A vida teria a mesma cara e a mesma coroa, quem era rico e os que eram [37] pobres, o almoço e o jantar, a fome e a morte. Deus, os anjos e S. Pedro com as chaves no céu. O sol nascia e morria. Queria aprender para mudar [a viagem do] de sol. O sol nascer na meia-noite. Mudar de rumo. Em vez de sentar no poente desaparecer no meio-dia. Que a gente não dormisse. Enfim saber ler e escrever para mudar a face das coisas. Nunca respondia mal ao mestre. Tinha, no entanto, uma submissão soturna e distraída. Estudava para não apanhar de palmatória. Se apanhasse, seria capaz de matar o mestre com uma pedrada. O mestre escancarava o seu despeito: — É obediente por birra, ele. E por birra. Por enjambração. Eutanázio olhava interrogativamente, muito espantado. A palmatória atenta à beira da mesa. O mestre tinha os bigodes pontudos, a pastinha dos cabelos puxada para a testa e só vivia palitando os dentes. Com o mesmo palito distraidamente palitava o ouvido. E no fim duma feroz reprimenda, exclamava: — Em matéria de educação sou intransigente. Sou intransigente! Se todos os professores fossem como eu não havia mais analfabeto no Brasil. O analfabetismo, saibam, é um flagelo social! E pior que o cólera, o tifo, a escarlatina... Engasgava. Gostava sempre de se referir a doenças que os pequenos ignoravam. O mestre queria se lembrar de mais doenças da Europa e a memória falhava. — Sou intransigentíssimo. Em matéria de educação sou! Ouviram-me? Eutanázio ficava preso a um vago terror daqueles óculos gramaticais do mestre que apontava para o livro: — Este dicionário de Morais... Eutanázio tentava desenhar em casa umas caricaturas medo- 15 nhas do professor Sócrates de Aquino e Assis. E quando viu o retrato do mestre no jornal por motivo de aniversário, pois o mestre era, além de professor, orador de várias sociedades beneficentes e recreativas, sócio da Associação dos Charadistas e crítico teatral, Eutanázio teve o cuidado de cortar-lhe [os bigodes pontudos, de furar-lhe os olhos, depois de tirar-lhe] a cabeça e enterrar num formigueiro atrás da casa, ao pé dum tajá. [Sentia] Uma grande alegria ao imaginar que o formigueiro pudesse devorar a cabeça do monstro. [38] Nem um amigo. Pouca intimidade com os colegas que só o atraiam quando brigavam. A bofetada o afastou da camaradagem com os moleques. Eutanázio ficava de parte deliciando-se com as brigas. E neutro, satisfeitíssimo, apertava a barriga, com as risadas curtas e abafadas, solitário e feliz, gozando a luta. Pouco se aproximava do Major, mas uma noite lhe falou, com gravidade e temor. — Papai, quero ser encadernador. — Queres morrer de fome? Preferia lidar com os livros, os bacalhaus, os pobres livros maltratados e doentes. Entrevia na vocação tranqüila os seus vagos sonhos de enfermeiro. La ser enfermeiro dos livros, estes pelo menos seriam mais pacientes, mais resignados, mais agradecidos, mais humanos. Não havia entre eles um frango hostil. Sob o seu cuidado, os bacalhaus, as brochuras andrajosas, respirariam um ar de novidade como se nunca fossem lidos. Voltariam a dar a ilusão de que explicariam a dor do gênero humano, a outra vida que se desenrola dentro de cada criatura neste mundo. Um sujeito muito bêbado, com umas roupas espantosas, atravessara a rua para lhe dizer: Por que os livros ficam à margem? Eutanázio recuara. O homem não se podia equilibrar. Sua mão tentava erguer-se. — Diga... Por que os... livros ficam... Ficam... A margem? Porque também... o homem... Fica também... Na margem da... da... vida? Da nossa própria da... nossa própria... Consciência? Consciência? Hem? Diga-me! Eutanázio ficou olhando o homem tresandando a cachaça que, com aquelas roupas teatrais de mendigo, desaparecia na sombra, resmungando. Pareceu-lhe um desconhecido que tivesse saído de dentro de si mesmo, uma voz de sua inteligência insondável, de sua intuição inabordável. Encadernava os livros pensando ou tentando compreender as palavras do vagabundo. Como? Como que os livros ficam a margem? Era uma pergunta inacessível à sua inteligência, talvez fosse igual a certas agonias, a certas sensações que vinham de seu próprio desconhecido. Um dia as irmãs encontraram na mesa de jantar um papel esquecido. [39] — Mas ah! Eutanázio já namora! Vocês não estão vendo? E foram mostrar ao Major Alberto os primeiros versos de Eutanázio. Major Alberto sentou os óculos, leu o papel, esfregando a meia calva. As duas irmãs estavam com os seus grandes, olhos postos nos óculos do pai e ao mesmo tempo receosas de que Eutanázio chegasse e visse a cena. — Uma porcaria. Que ele cuide doutra vida. Uma porcaria. Está vagabundando. Nem métrica sabe, nem parece que na estante tem um livro de versificação. Uma porcaria. Mania. Mania. As irmãs deixaram o papel no mesmo lugar para evitar uma explosão de Eutanázio. Este ficou pálido ao ver que tinha esquecido aqueles versos na mesa de jantar. Trocara naturalmente de papel. Ficou com um incontido aborrecimento de não poder se meter dentro dum quarto e fazer o que entendesse, deixasse os papéis onde quisesse deixar, por cima dos sapatos, malas, no meio da roupa suja. Queria se livrar da curiosidade das irmãs, daquela indiscrição doméstica, daquela vigilância caseira que o tornava 16 cada vez mais intratável. Fazia os versos com uma dedicação ingrata. Mas animou-se quando leu isso num almanaque: O VERSO É TUDO. Absorvia-se em chapear o papel com teimosas metrificações. Tinha a pachorra dum amanuense do Parnaso. Todo dia assinava o ponto na repartição das Musas. Era o mais assíduo dos funcionários. Também o mais desiludido dos burocratas. Sofria com uma heróica indiferença os amargos desapontamentos do ofício. — Largue isso, homem! Largue esse ofício. Não está vendo que você não dá pra isso. Que teimosia! Você é o homem das manias. Estude química, encaderne os seus livros, procure o que fazer. Perdendo um tempo inteiro. Trate de sua vida. Era a voz do pai quando o surpreendia suado, estúpido, a língua de fora, contando nos dedos, catando uma rima, debruçado na mesa de jantar, Mas Eutanázio decorava o Se se morre de amor, O Amor e o Medo e o Ouvir Estrelas. Tinha paixão pelo As Pombas. Se o seu verso de nada valia, não dava murros na mesa, não gritava com as irmãs. Ficava um pouco sombrio mas isso era dos hábitos do ofício. A minuta do soneto estava mal redigida. [40] [Sentia-se que era] Impo|tente, incapaz até de fazer um soneto. Um sofrível soneto na vida. Não alteraria a ordem universal das coisas se fizesse o milagre de minutar um soneto sofrível, mesmo contrariando sua própria natureza cujas leis eram cegas e rígidas. Ficava como que docemente humilhado com a derrota. E sofrendo as melancolias de sua mediocridade voltava a encadernar os livros pacientes, a espiar os passarinhos que bem junto de casa faziam os seus ninhos como ninguém no mundo seria capaz de escrever sonetos. Ser consciente de sua impotência era um consolo, mas às vezes o exasperava. Antes tivesse a total inconsciência de sua mediocridade. Consciente era deixá-lo de qualquer forma em confusão. Em plena lucidez de sua miséria e ainda por cima a inexplicável necessidade de teimar, de prosseguir estupidamente nos seus deveres de amanuense das Musas. Desce o aterro e toma o caminho para os campos. Por baixo, beirando os campos, era mais fácil de chegar à casa de seu Cristóvão. O vento é menos quente.. Os pensamentos mais distantes. À proporção que se aproxima de Irene, vai se tornando vazio, apenas. Duma tristeza inocente e estúpida. Irene é um mito a voz daquele bêbado, a imagem da própria obsessão. Com o vento pelo rosto, com o hálito daqueles campos noturnos, recorda-se duns tempos passados em Muaná. Achava um consolo, uma grave estima na paisagem, na espécie de beatitude que cobria a paz e o desencanto da vilazinha quase mona. Silêncios no mato, passeios na montaria, sestas no alpendre e no copiar dos barracões e das barracas dos sítios. Gostava de ficar num toco de pau no meio do mato, sem pensamentos, numa inércia. Serões muito calmos na varanda da tia Eponina. Conversava sossegadamente com os conhecidos de sua tia. Lia [um romance], lá [.Lá], foi sim, que leu o Paulo e Virgínia, A vingança do Judeu, O Conde de Monte Cristo. Como sonhou com aquele prisioneiro fugindo pelo mar, salvo e pronto para as grandes coisas que ia fazer! Seria bom. Afasta de si a carga daquelas ansiedades obscuras que já o fatigavam. Ouvia contarem das festas do Itupanema. Da crise da borracha. Os seringais desertos. Vez ou outra teimava decifrar uma charada, contava as cartas do baralho, arrumava os dominós na caixinha. [41] En|colhido, enervado ou absorto, ouvia no serão muito calmo de sua tia Eponina, as mil e uma noites domésticas do vilarejo, vida alheia, crise, abusões, quebranto em criança, mau olhado em moça noiva, canoa que tinha de chegar, doenças, negócios bons e maus, marisco, apanha de açaí, a saúva nas plantações, a lembrança dum morto, a idéia de jogar uma bisca, um dominó, chuva, calor. Eu- 17 tanázio abria a boca com sono. — Espera o café com bolacha-maria, Eutanázio. Mas conversa, rapaz. O gramofone tinha sido levado a Belém para conserto. O baile das Almeida não se realizara por falta dum clarinete. Ah! quando mestre Ramiro era vivo, música em Muaná era música. Eutanázio abria a boca com sono. Talvez não fosse sono, pensava, mas sede de solidão, vontade de ficar na rede, solitário, gozando as suas irritações sem causa, o seu mal estar infinito. — Espera o café. O café pra distrair o sono. Vamos, responde esta adivinhação... Tinha de agüentar a língua e as superstições de tia Eponina. Era a organizadora dos únicos bailes da vila e zeladora da igreja. Promovia o Carnaval e as cerimônias da Semana Santa. Ninguém como ela para preparar uma noiva e enfeitar um defunto. Fazia um notável camarão com coco. Seu marido jogava dominó com fúria. Batia as pedras com ferocidade, aos gritos, e se ganhava soltava exclamações, grandes risadas e palavrões se perdiam [perdia]. Eutanázio abria a boca, enfastiado. Não podia mais esperar o café com bolacha-maria. Se pudesse escrever um soneto! Aprenderia com os japuns a fazer um soneto. D. Eponina trazia o café com bolacha-maria e a manteigueira. O marido da tia devorava três bolachas duma vez com os olhos no seu carrão de sena que não saía. Depois, às tardes, divertia-se armando navios de miriti, de papel, couraçados de papelão, com uma paciência que talvez fosse feita dos tédios, dos contínuos bocejos, do mal-estar freqüente, das bruscas melancolias, dos inúteis e indefinidos desejos de viagens, das leituras do Conde de Monte Cristo, da incapacidade para a poesia. Da crescente amargura que mais tarde teria de leválo para casa de seu Cristóvão, para o riso de Irene, para aquelas horas em que [42] tenta retirar de seu passado alguma coisa que o reanime, alguma coisa a descobrir. Para aquelas horas de náuseas de si mesmo, vendo ossadas entulhando o seu passado, risos sobre risos de Irene fermentando dentro de sua angústia. O vento dos campos vinha dos outros campos, de outras luzes tranqüilas e ignoradas, dos vaqueiros esquecidos, dos lagos mortos, dos horizontes que queria ter no seu destino. Os campos levavam-no para o riso de Irene, para aqueles olhos densos de feiticeira estupidez e nojo. Cada marcha daquela era uma dupla marcha, a dos pés fatigados, dos rins doendo, dos tecidos castigados. Era uma caminhada de meia hora, e dura, todos os dias, para o seu corpo. A outra marcha era a obsessão, a das sensações confusas, dos conflitos que lhe deixavam na cabeça cinza e sombra. Mas lhe vem a lembrança dos charutos de Raquel. Comprar os charutos para Raquel aonde? Percebe em Raquel uma estima meio oblíqua para o seu lado. Um amizade cheia de perspectivas. Costumava trocar a pronúncia da palavra: perspectiva... Se habituara a colher certas palavras mais ou menos difíceis para o seu uso íntimo. Ninguém o surpreendia soltando essas palavras de que tinha talvez pudor como de largar palavrões. Raquel lhe pedira charutos. E preciso de qualquer modo dar sempre presentes na casa de seu Cristóvão. Pelo menos manteria alguma autoridade moral. A sua pressão moral em cima das velhas, das moças. Irene mesmo não podia fazer uma hostilidade contínua porque era tolhida pelo desejo de umas chinelas, duns sapatos, um corte, que sua mãe arranjaria por intermédio de Eutanázio. Ouve um grito de moleque, um pássaro noturno voa na sua frente, um latido, vozes indistintas. A casa de seu Cristóvão se aproxima. Mas o problema dos charutos? Não sabe porque lhe vem agora de novo a compreensão de quanto lhe é bem trágica a sua incapacidade para a poesia. A natureza é má, sádica, imoral. Dava a uns uma excessiva capacidade poética e a ele deu a tragédia de guardar um material bruto de poesia e não poder conquistar 18 um pensamento poético nem a linguagem poética. Tinha a substância poética mas enterrada no que havia de mais profundo e inviolável de sua inquietação. Era como um homem mudo. Um [43] cachorro tem a expressão poética muitas vezes nos olhos. Ele não tem senão nas infinitas profundidades de sua consciência, do caos que rola dentro de si. Tinha dentro de si uns trágicos motivos para merecer o dom da poesia. Dentro dele se agitava um caos e só a poesia daria ordem a esse caos. Mas o instante de sua compreensão desaparece. Eutanázio caminha no rumo da casa de Irene. As grandes marchas noturnas. As mesmas marchas solitárias. O caminho nos campos é estreito e sinuoso. O vento mais frio. O olhar de Irene o envenena todo. Mas como comprar os charutos de Raquel? Dinheiro não tem. Seria bom bater na porta de Felícia e lhe pedir dois mil-réis. Ela devia ficar sumida na sombra do crucifixo e os arranha-céus avançariam sobre ele. Não tem dinheiro. Sua vida foi sempre marcada por esse epitáfio: NÃO TEM DINHEIRO Ia pedir fiado no Ezequias. Tem já uma conta grande. Mas Raquel não tem charutos para limpar os dentes, mascar um bocadinho. Tem de dar um pulo no Ezequias. Ezequias fará uma cara franzida inevitavelmente. As mãos sem vontade de Ezequias tirarão da caixa os charutos... E o diabo ter a vida marcada pela horrível falta de dinheiro! Essa exclamação repercute dentro dele que o faz parar. Tem de ser indiferente à cara franzida do Ezequias. E preciso apressar os passos. Já passa da hora invariável de chegar em casa de seu Cristóvão. Irene já deve sentir a sua falta por não ter agora, em que ocupar o seu riso, a sua maldade. Ele é a pedra de amolar onde ela afina a sua perversidade ainda cega como o fio das facas novas. Irene já deve estar na varanda pronta para o seu desprezo pequenino e corrosivo. Aquele desprezo criou raízes gulosas dentro da solidão de Eutanázio. Tem de apressar a marcha, comprar os charutos de Raquel e chegar a tempo na casa de seu Cristóvão. Aquelas vozes o atormentam cada vez mais. Sempre em casa do seu Cristóvão tem barulho. Já está acostumado aquilo. Toda Cachoeira sabe que em casa de seu Cristóvão as discussões em família não acabam, os casos sobre a vida alheia não têm fim, os [44] escândalos entram pela porta como pessoas de intimidade. Mas agora são vozes atropeladas, gritos, pancadas de porta e cadeiras, bater de pés no soalho. Vozes que o atraem, fazem ele andar mais depressa como certo de que tem de desempenhar um papel importante naquela comédia. Talvez seja mesmo o personagem maior do drama. Quando ele chegar, o drama subirá ao seu alto grau de trágico e grotesco. Bem pode levar a maior carga do essencialmente trágico para a chatice daquelas discussões e daquelas brigas de todo dia. Quem sabe se alguma coisa de imprevisto, de diferente não acontecerá em casa de seu Cristóvão? Doutor Campos lhe fala sempre: Aquilo é um coito de escândalos. Uma casa incrível. Não sei como você se meteu ali, meu caro. Não chego a acreditar. Que é que rende? Como se habituou naquilo? Um pandemônio! Um pandemônio aquela casa. Um pandemônio. Doutor Campos esvazia o seu copo de cerveja e limpa com o punho da camisa o seu rosto suado e vermelho como um cervejeiro das velhas estampas alemãs. Pandemônio. Eutanázio acha esquisito que Doutor Campos chame pandemônio para a casa de seu Cristóvão. Como um pandemônio? Teve de ouvir o velho Dicionário Prático Ilustrado de seu pai! Pandemônio é... No fundo daquela palavra a cara de cervejeiro alemão do Doutor Campos, Juiz substituto de Cachoeira, se escancarava numa gargalhada. O rebuliço parece que diminui um pouco. Que terá acontecido em casa de Irene? Alguma das moças naturalmente grávida. 19 Imagine Irene grávida! Com os seus nervos, a sua doença, a absurda visão de Felícia junto ao crucifixo e dos arranha-céus de Nova Iorque, tudo lhe sai da cabeça num exagero contínuo. A sua inclinação para o fantástico, o absurdo, os maus pressentimentos [,] cada vez mais aumentam [aumenta]. Seu sofrimento continua feito de pequenas torturas domésticas, dos risos de Irene, a doença imunda, a falta de dentes, as comichões pelo corpo, o desejo e [o] sem ânimo para tomar um banho. Não terá mais confiança em mais nada? Pode se considerar um simples idiota escravizado pela casa de seu Cristóvão, o Pandemônio? Toda vez que lembra essa palavra ouve o bater das garrafas vazias amontoadas pelo Salu debaixo do balcão e o Doutor Campos com os olhos vermelhos, virando o copo [45] es|pumante de cerveja sem gelo. Eutanázio sente uma fadiga nas pernas, um peso no peito, nos rins. O suor envenena-lhe o pensamento. Sente o mundo através daquele suor e daquela fadiga. O suor das mesmas marchas solitárias, à noite, para casa do seu Cristóvão. A fadiga do regresso, do eterno regresso àquela saleta do seu pai. Seu pai pôs na mesinha da saleta o seu retrato junto dos filhos, um retrato de Augusto Comte, uma Santa Rita de Cássia, o relógio redondo, a pasta com papéis municipais. As duas estantes de livros tomam espaço, as quatro cadeiras, a velha chapeleira negra, a janela para os campos. Não tem mesmo um quarto para dormir à vontade. Na saleta seu pai recebe visitas, Maninha vem gritando: Acorda Tanázio. Acorda! Major Alberto abre a gaveta da mesinha e retira os talões municipais, escreve. D. Amélia quer varrer. Batem na porta. Tem de abrir a porta. E menino pedindo leite, é menino mandando chamar D. Amélia, gente pedindo açúcar e café, homens querendo falar com Major Alberto, Minu latindo, um inferno, ele não dorme, ele que veio da casa de seu Cristóvão a essas tantas horas, lhe dá um ímpeto de chamar nomes, derrubar a mesinha, espumando num furor sobrenatural. Precisa ter um quarto. Mas, ao mesmo tempo, não vê nenhuma necessidade desse quarto. Não sabe o que fazer, não organizou um plano na vida, não tem emprego, Irene o esvazia, paralisa-o, há de reduzi-lo a fantasma. Eutanázio pensa numa coisa onde possa fixar o seu pensamento, a sua imaginação longe de Irene. Vive numa espécie de pesadelo, conversando e lutando com todas as fadigas de seu corpo e com todos os exageros de sua imaginação. As vozes da casa de Irene o puxam para o pandemônio. Doutor Campos deve estar fazendo observações meteorológicas na casa do Salu, defendendo a Igreja e com o monte de garrafas vazias. — Mais cerveja. Mais cerveja. Salu, manda comprar gelo nas geleiras. Salu. Tem a impressão que toda Cachoeira ficou em silêncio para ouvir melhor o barulho da casa de seu Cristóvão. A casa de D. Duduca deve estar atenta. Velho Guaribão não falará nos códigos, velho Araguaia não esclarece um artigo obscuro das leis municipais, D. Duduca pára a máquina Singer, velho Abade com a [46] sua cabeça enorme, os seus bigodes escorridos, não se debruça na janela escutando a conversa, nem defronte a filha do mestre Januário se agarra com o filho do mestre da Banda. Todos estão ouvindo a zoada. Os campos ouvem. Os velhos e a costureira se deliciam para amanha abrirem a sessão em grande solenidade. Que assunto! Velho Abade não pensa nos defuntos, nos doentes que devem morrer para fazer uns caixões. Seu Ribeirão ficará na sua farmácia, de óculos, as graúdas, as espessas sobrancelhas erguidas, o nariz alto, farejando moléstia, catando alguma súbita enfermidade na casa de seu Cristóvão para vender alguma droga, arrumar, que diabo, algum dinheiro. Cachoeira, desgraçadamente, se encontra em bom estado sanitário. Horroroso para o seu Ribeirão. E as suas drogas? E a sua infeliz farmácia? E a utilidade de seu diploma de farmacêutico? E os anos de estudo? 20 E o sacrifício de sair de Belém e se atolar os alagadiços de Cachoeira feito um sapo? Todos agora, para Eutanázio, devem deixar os seus interesses para ficar à escuta do que está acontecendo na casa de seu Cristóvão. Ezequias lhe deu os charutos com a cara fechada. Felizmente não tinha ninguém no balcão. Ezequias não tirou os olhos do jornal quando Eutanázio entrou. — Quero uns charutos... Ezequias fez que não ouviu, fingindo enorme interesse pela leitura. Na verdade o jornal faz Ezequias ficar fora do mundo. Ezequias quer saber o que há no mundo e por isso fica fora dele, desligado da vida. Ezequias queria saber o que havia naquele jornal ou fingiu mesmo? Uma pequena raiva sobe pelo Eutanázio. — Os charutos, Ezequias... — Ah! — Palhaço... — Palhaço? Ezequias levantou-se sem despregar os olhos do jornal. Diabo, não tinha uma nova guerra no mundo! Com uma nova guerra o Brasil venderia gêneros à beça, ganharia dinheiro. Enfim os aliados não acabam com aquele comunismo da Rússia? Teriam morto mesmo Nicolau Segundo? Pobre família imperial! Ezequias [47] teve um instante parado perto da prateleira sempre à procura de notícias sensacionais. Fechando levemente a cara: — Espera, Eutanázio, é os charutos, dois? — É... Sim, sim, dois. Tirou os dois charutos. O palhaço da caixa ria para Eutanázio. A luz do carbureto não tinha pressão. Um moleque espiou na porta, apanhou uma bagana e correu para o pequeno bosque do professor Chiquinho. Eutanázio viu a cara contrafeita de Ezequias. Teve uma vacilação. Aceitava ou não os charutos? Ezequias em pé, lia os telegramas: Londres — A. H. — O governo britânico... — Bote na minha conta... Ezequias não respondeu. A conta estava grande e dentro de Ezequias o caderno de notas se desfolhou todo como se fosse soprado pelo vento. Como ia pagar? Como ia pagar? Ezequias sentou-se com os olhos fixos numa notícia qualquer de Lisboa. Era preciso distrair o pensamento da conta de Eutanázio. Era preciso, em atenção ao Major Alberto, não disparar com Eutanázio. Tinha vexame. O que mais aperreava é que Eutanázio não tira nada para ele e sim para aquela casa de sanguessugas. Eles de lá deviam também uma conta séria. Custou caro o namoro com Bita. Bita, a noiva. Bita, a fala macia. Bita que vinha ao balcão e pedia para arriar aquele organdi branco, aquele morim fino, aquele cetim cor-de-rosa. Ezequias não tinha forças. Bita lhe apertava a pontinha do queixo: — Ezequias, vai cedo hoje, sim? Sim? Embrulha isso e me leva. Eu é que não vou levar embrulho pela rua. Depois é feio. Sair duma taberna, e da taberna do meu noivo, carregada de embrulho. Pessoas maldosas é que não faltam. Vai hoje cedo, sim, Zequias? Vamos, Irene. A conta de Eutanázio vai grande e as coisas dentro de Eutanázio aumentam também. Os olhos de Ezequias remexem as notícias de Nova Iorque. Onde estão os milhões do mister Ford para abarrotar a Amazônia? Ezequias sabe todos os nomes dos milionários maiores do mundo. Sabe o total em milhões de suas fortunas. O seu sonho era todo lastreado pelos milhões dos reis do [48] automóvel, do petróleo, do carvão, dos armamentos. Mas as prateleiras de sua taverninha estão melancolicamente vazias. A c[C]harqueada lhe tinha acabado com o sortimento e o crédito. Os doutores da Charqueada passaram o fiado, não fundaram a Charqueada e sumiram com o dinheiro. Deixaram Ezequias revirando as folhas de seu caderno de contas. Quatro contos, 21 seiscentos e três mil e oitocentos reis. O barulho diminui. Que será, então? — disse Eutanázio entre os cacos dos dentes. A roupa do corpo suado lhe dava uma impaciência viscosa, indefinida. A náusea de si mesmo lhe veio mais aguda. Sente-se como sem ossos, viscoso e sem sangue. Se transformará num molusco e irá acordar Irene na rede. Irene gritaria com aquele enorme uruá dentro da rede com ela. Irene sentia o pico daquele bicho e sairia correndo, aos pinotes, ficaria doida. Doida. Irene exibia uns olhos que a loucura gostaria de possuir. O riso então seria teatral. Levaria a doida para as grandes florestas onde num tapiri ouviria as onças e as cobras fascinadas por aquela loucura. Eutanázio deu com o absurdo. Deu com o começo de seu delírio. O barulho parece distante. E preciso descer do absurdo. Tem de repente uma repugnância daquela casa que está com as três janelas de sacadas fechadas e a porta aberta, pronta para devorá-lo. Se pudesse recuar, dar uma volta para a saleta e se embrulhar na rede, mandar Irene para o inferno! Dar uma vasta banana àquela família pandemônica. O adjetivo ca]ha bem, reflete Eutanázio, pandemônica. Deixaria nas grades da janela os charutos para Raquel. Seria a última lembrança. A conta no Ezequias não aumentaria mais e as coisas de dentro de sua cabeça iriam sumindo, sumindo. Acabava bebendo a cerveja sem gelo do Salu, ouvindo as anedotas e as tiradas do Doutor Campos. Mas Irene o acompanhará sempre, sempre. Aqueles risos estão espalhados nos seus nervos como areia. Ela com a sua cara meio suada, uma espinha no canto do nariz, os cabelos secos e desarrumados, os peitos como garras, os pés sujos, os dentes escarnecedoramente perfeitos. Descasca castanha com os dentes e ele tem a sensação dolorosa de que vão quebrar, que ela ficará desdentada sangrando pelos lábios. Tem uns [49] dentes terríveis. Irene está dentro dele como se fosse a sua espinha dorsal. Sem ela não se mantém em pé, não se equilibrará, tombaria como um saco vazio. Tomou animo e se aproximou do chalé. Junto à entrada floresce um grande jasmineiro. O vento dos campos se derrama macio no grande jasmineiro. É necessário não se alterar. Aquilo não passa dos mesmos acontecimentos tão comuns em casa de seu Cristóvão. Entra como anestesiado. É o fim da solitária marcha de forçado. Tem uma súbita opressão. A doença imunda, “a impura doença”, como diz Doutor Campos, parece abrir-se mais, o sexo como que pesa. Imagina que uma podridão vem do sexo e sobe vagarosamente pelo corpo, vagarosamente. Felícia aparecerá em casa do Major Alberto para assistir talvez o enterro. Depois voltará com medo e se abraçará com o crucifixo para que a visagem de Eutanázio não lhe venha perguntar: — Tu tás boa, hem? Felícia deve estar curando as suas chagas diante do crucifixo. Uma aranha corre sobre os arranha-céus. Mas a voz de Raquel entra pelos ouvidos, pelos nervos de Eutanázio como uma refrega. Na varanda as mulheres gesticulam, praguejam, discutem sempre. Eutanázio entra sem que ninguém perceba. Deixa a bengala e o chapéu na mesa de jantar e vai, que sede! ao banco dos potes d’água. Enche o púcaro que está insuportavelmente pitiú. Bebe um gole, joga fora a água sobre o limoeiro. Vai sentar à espera que dêem pela sua presença quando a velha Dejanira se aproxima com a sua voz rachada e irritada, a sua gordura fofa, o casaco sem botões, o cachimbo apagado na mão e os olhos molhados: — Seu Eutanázio... — Seu Eutanázio, nem sabe o que aconteceu, seu Eutanázio. Uma vergonha, seu Eutanázio! 22 É o grito de Raquel que interrompe a queixa de D. Dejanira. Mas Eutanázio com um gesto, que até não sabe como o fez, impede a sucessão dos gritos de Raquel e atende Dona Dejanira. A velha porém não pode prosseguir. Sobe-lhe um soluço, o cachimbo lhe escapole da mão, Eutanázio apanha-o e D. Dejanira se [50] vol|ta para ficar debruçada na janela tossindo sobre o limoeiro. Eutanázio senta-se. Raquel grita pelo quarto. As vozes descansam inesperadamente. Então Eutanázio olha o seu mundo, a sua humanidade. Numa cadeira, Henriqueta, a irmã de Irene, torcendo os cabelos, tem a cara de indiferença, e v o aborrecimento. Morena, graúda, seus olhos não se fixam em nada, olhando sempre atravessado. D. Tomázia, mãe das duas, fala e cospe incessantemente. Tira o cachimbo, coça os braços, no seu ar de consternação. Triste, os olhos fundos, os ossos da cara lívida apontam sob a pele luzidia. Irene de vez em quando dava um aparte com a sua voz áspera. Sentada num banco, a saia muito levantada deixava ver a grossura dos joelhos, uma zona clara da coxa. Tinha talvez comido uma manga, pois estava com a boca lambuzada. Quando Eutanázio entrou ela fez um gesto de asco, de caçoagem. Eutanázio não entendeu bem. Irene naturalmente fingiu ter asco. No fundo, reflete ele, não é uma criatura para possuir grandes sentimentos de repugnância, ódio, amor a ninguém. Seus pés estão poeirentos dentro das chinelas novas. Sua cara lambuzada de manga, o vestido roto em cima dos peitos que apontam sob a camisa. Sua irmã gêmea Rosália fala sem parar. E encostada na porta que dá para o primeiro quarto, olheiruda, com o queixo espichado, os cabelos em torre, os olhos ferozes, a boca cheia de masca de tabaco, Raquel pragueja e resmunga. Solteirona, ossuda e desiludida do mundo, Raquel acusava. Era filha em primeiras núpcias do velho Cristóvão. E com o filho chorando no braço, de vez em quando atacado por uma crise de coqueluche, Mariana, também filha em primeiras núpcias, casada com um canoeiro, clorótica e suja, mostra os olhos bovinos, a sua amarelidão crônica, as suas olheiras que lembram o luto das longas vigílias ao pé da lamparina, costurando. Debruçada na janela que abre para a latada do maracujazeiro, Cristino fuma, de manga de camisa, chapéu de palha na cabeça. E atirada na velha secretária do pai, com as suas sobrancelhas gentis, a boca contraída faceirosamente como para chupar, Bita chora como uma fonte. É a Bita, a noiva Bita, a gentil Bita de pestanas viradas, a Bitinha dos antigos dengos do seu papai Cristóvão e de sua [51] ma|mãe Dejanira. Há momentos que grandes soluços a sacodem, outros são de tartamudeios, uma tossezinha, machucando os olhos no braço. Aos seus pés, caído no chão, um lencinho molhado. Eutanázio ergue-se [e] de leve, timidamente, toca o braço de D. Dejanira. — Mas que foi? A velha não se move. Cristino acende outro cigarro. Raquel joga uma praga sobre Cachoeira. Eutanázio toca outra vez no braço de D. Dejanira. A velha estica a bainha da blusa para enxugar os olhos, o que não consegue, talvez porque não teve mesmo vontade de enxugar as suas lágrimas, as suas copiosas lágrimas sempre derramadas em vão e tudo por causa da filha, do filho. Deus lhe reservava talvez um lugar no céu por tanta lágrima derramada na terra. Eutanázio toca de novo, um pouco impacientemente, no braço da velha: — Mas o que aconteceu? D. Dejanira volta-se bruscamente. A cara ensopada de lágrimas. Eutanázio sente uma funda impressão de grotesco e de estranhamente agressivo. Os olhos espremidos da velha tremem, a boca se afunda. A gordura mais caída e o casaco desabado mostra a camisa com o peso das mamas fofas, o rosário de quatro voltas, a figa. — Seu Eutanázio, pois o seu Carvalho não desmanchou o 23 casamento com a Bita? Não teve tempo de continuar, Henriqueta salta e larga: [Se o senhor soubesse, seu Eutanázio, o modo boçal] como ele desmanchou, o senhor cairia das nuvens... Tão cavalar... Nem pra cachorro se faz tal coisa. Só a sem-vergonha da Bita, a besta velha — Te cala, Henriqueta, deixa eu falar... — Nem pra uma rapariga das mais ratuínas, digo mesmo, das mais relaxadas da porcaria desta terra... — Te cala, também, Raquel. Dá bom exemplo, tu como mais velha! — Fez como se fosse uma..., interrompe Rosália levantando-se para cuspir sobre o limoeiro. — Esperem, meninas. Me deixem falar. Assim seu Eutanázio... Esperem! Esperem! Oiçam que eu não posso gritar. Estou com [52] a garganta me doendo, seus demônios. Pois estava tão perto do casamento... Esperem! E... Te jogo este tamanco na cara, Rosália! Fez e desfez um compromisso como... Ai meu Deus, eu morro! Eu morro! Estas diabas me matam! Se calem... Não gritem! Passa para dentro, Irene! Minha Nossa Senhora do Socorro, não posso. Vamos pra sala, seu Eutanázio. Isto é um inferno. Agora veja se uma senhora como eu pode viver mais, pode esperar alguma coisa neste mundo. Não sei por que Deus não me tira. Seu Cristóvão não traz nada pra casa. Se mete naquela rede. Um moleirão. Morro de fome. Venha pra cá pra sala. Venha. Vamos sair deste inferno. São gritos por cima de gritos. Veja, seu Eutanázio, se uma senhora como eu nascida na fortuna pode agüentar este desespero, este inferno, esta vergonha. Ninguém respeita os meus cabelos brancos, o senhor vê como um homem como esse seu Carvalho faz de minha cara. Escarrou na minha cara. Fez o que bem entendeu. E eu agüentando esta velhice faminta... Faminta. Faminta, seu Eutanázio, faminta! Vamos por aqui... Seu Cristóvão teve... Mas hoje... Onde vamos com esta miséria, seu Eutanázio... Não posso. Todo dia me dá uma agonia, agonia, o senhor não sabe, meu amigo. O senhor nem imagina. Pois assim aconteceu. Esse seu Carvalho pede a Bita, como o senhor sabe. O senhor até que fez as cartas de resposta pra ele... Agora, sem mais nem menos, desma[n]cha, manda dizer o que entende num bilhete. Bita, coitada, não tem sorte mesmo com os noivos que arranja. E depois, seu Eutanázio, ela ia se arrumar, v[t]er um futuro, diminuta a carga de gente que tem nesta casa. O Sr. vê a quantidade de pessoal que come, bebe e veste aqui. Como meu marido pode agüentar? Tomázia viúva. As filhas precisando de tudo... D. Dejanira respirou. Eutanázio ajeitou-se na cadeira com o olhar esquecido no teto da sala. — Bitinha se comportou. Sim, que era sempre comportada. De falarem de moça isso é do mundo. Quem que está livre da língua dos maldosos? E logo aqui em Cachoeira... Ela, boazinha, se comportando. O Sr. sabe, o gênio da Bita. Feliz do homem que se casar com essa minha filha! Porque, seu Eutanázio, esse tal de Carvalho nunca foi homem! Nunca! Meu Deus, não sei, [53] mas me dava um pressentimento de que minha filha não se casava com esse sujeito. Uma coisa me dizia. Não foi um homem, seu Eutanázio, não foi. Ninguém me tira da cabeça... — Um bandido, um bandido! Os dois se voltam para Raquel que enrolava as mangas da blusa. Seu olhar é ferozmente acusador. Eutanázio diante daquele olhar tem a impressão de que ele é que é o Carvalho. Mas D. Dejanira prossegue: — Agora, um sujeito que foi atrás da conversa de rua. De inveja, de malquerença, de gente que não gosta da Bita só porque minha filha não dá confiança. Minha filha sempre foi uma moça esquisita. Espera um noivo. O seu futuro. Espera do noivo uma 24 amizade, um amparo e coitada, leva essa pela cara. E ainda anteontem ela me dizia: Quando eu me casar, mamãe, Carvalinho ajuda a senhora. Farei tudo para aliviar o peso do papai. Digo pro Carvalinho lhe dar uma mesada... Tudo isso a minha filha pensava. E outras coisas. Sempre pensando fazer o bem pra casa. Esse rompimento é, [é] seu Eutanázio, uma morte pra minha Bitinha! — Um bandido, um bandido!, rosna Raquel, D. Dejanira chora e Eutanázio pisca amiudadas vezes. Raquel arrasta os chinelos com ferozes movimentos. A torre dos cabelos se desmorona e os cabelos se estendem sobre ela como um luto. — Mas... Como foi?, sussurra Eutanázio. — Não se sabe, não se sabe, seu Eutanázio. Uma coisa de não se acreditar. Se a gente não visse, não! nunca podia acreditar em semelhante canalhice! Foi ao Rio Grande. Eu dizia: Seu Carvalho, o que o senhor vai fazer agora na sua terra? Deixe pra ir depois do casamento. Mas o homem teimou. Deu o motivo. Dizque sua mãe estava mal. Bem. Foi. E agora — E eu costurando.., meu filho com tosse de guariba só faltando morrer sufocado e eu me matando pra dar pronto o enxoval dela no dia... (Mariana não tem tempo para concluir porque o menino tosse, tosse, sufoca...) — Leva esse menino pro ar, Mariana! Sacode o menino! — Bandido! Eutanázio sente a acusação, do olhar de Raquel envolvê-lo todo. [54] — Eu uma velha... Nem mereci dele uma explicação melhor. Na volta, como o senhor sabe, ontem, manda dizer num bilhete. Cada o bilhete pra mostrar aqui pro seu Eutanázio? Um bilhete à-toa, que não queria mais. Devolvesse tudo dele. Até o enxoval, até o enxoval, seu Eutanázio. — Um bandido. Pois até o enxoval ele pediu! O enxoval... mandou pedir tudo que... Enfim como o senhor está vendo. A vergonha da casa, da gente. O senhor não sabe o desespero que houve aqui. Ora, posso resistir mais do que tenho resistido? Sou uma senhora muito infeliz, seu Eutanázio. Não passo bem. Como essa carne de todo dia. Eu, eu passava muito bem... Hoje, vivo roendo ossos. Quando que quilo e meio de carne dá pra tanta gente? Um paneiro de farinha mal dá pra três dias. Não sei. Seu Cristóvão não acha de pedir pro Intendente um lugar melhor. Por que não demitem o seu Costa pra dar pra ele o lugar de tesoureiro? É isso o que o senhor está vendo, meu amigo. O senhor é testemunha de toda a minha, de toda a nossa miséria. Onde comprar mais de dois quilos de carne pra matarzinho a fome do familhão? Seu Cristóvão é o administrador do mercado. Mas sendo ou deixando de ser é a mesma coisa. Não se impõe com o talhador pra tirar mais um pedaço de carne. E olhe que no meu tempo na fazenda quanta carne gorda comi de espeto. Miúdo se comia por extravagância... — Está aqui o bilhete que o bandido mandou. Eutanázio volta-se meio espantado com aquela mão estendendo [pra ele] um papel amarrotado: [Dona Bita] O tal do nosso casamento foi por águas abaixo. Besta é outro não eu. A senhora devia ter mais vergonha na cara pra não comer meu rico dinheiro que ganho graças a Deus com o suor do meu rosto. A senhora está acostumada a pegar os bestas. Mande-me as coisas que mandei pro casamento. Tenho nas minhas mãos uns documentos da senhora que provam quanto a senhora é muito descarada. Mande os meus negócios, o enxoval e tudo. Para nunca mais. Mande o enxoval logo. Joaquim Carvalho. [55] Eutanázio dobrou o papel e D. Dejanira abaixou a 25 cabeça. Raquel gritou: — A única palavra que me vem na boca, seu Eutanázio, é de bandido. Um bandido. Eu se fosse homem ia dar na cara, matava aquele bandido! — Já chega de grito, minha filha. Vocês não sabem a dor de cabeça que estou sentindo. O que estão fazendo na cozinha que vem esta fumaça? Tirem esta fumaça do fogão! — O senhor leu a belezinha da carta? Leu bem? — Li. — Que o senhor acha? — Você esta vendo, seu Eutanázio veja se isto se faz... D. Dejanira assoou o nariz, Raquel edificava a torre dos cabelos quando Bita aparece na porta, com uma toalha na cabeça, apertando o peito com as mãos aflitas, chorando rumorosamente. — O senhor está vendo? Sou uma senhora muito infeliz, seu Eutanázio! Esta menina morta de choro, já teve um desmaio. Falta de ar. Benzinho que estava arrumada para o dia marcado. Mas o que é isto? Intriga, inveja, despeito! E o diabo, credo, cruz! que anda na língua desses amaldiçoados! Sujeito perverso. Nunca vi mais relaxado, coisa mais relaxada do que esse homem... — Emprenhando pelos ouvidos, bandido... — Sem dar uma prova dos motivos... Rompeu por canalhice. Homens falsos que vendem a alma. Este mundo anda perdido, seu Eutanázio. O senhor não duvide. Anda mesmo. Perdido... Tanto que ela tinha vontade de se casar logo. — É um homem que tem ruim história, seu Eutanázio. Sentou em banco de réu. Como assassino... — Sim, como assassino... Só estou surpresa é a Bita ter acreditado num bandido desse. Matou um homem. Salu da cadeia porque teve Doutor Amorim por ele. Os jurados foram a bem dizer comprados. Era capanga do doutor Amorim. Um capanga! — E Bita nos braços dum assassino da marca de Carvalho! Nunca um pressentimento deu tanto certo como o meu, seu Eutanázio. Meu coração me dizia que esse homem não casava. Mas eu [56] prendia meu coração, me deixava levar pela maciez do sujeito, pelas promessas que ele fazia pra minha filha. Ah! Seu Eutanázio, não tem senhora no mundo mais infeliz do que esta que o senhor esta vendo debulhada em lágrimas... Do que eu... — Agora eu... ia bater com ele. Dava um tiro nele. Não sei atirar mas ia de faca e pegava ele pela costa. Matava. Esperava um momento e nunca mais havia de ele se gloriar. Bilhete desse, socava no nariz dele depois de ver ele morto. Bandido. Bita só nos tem arranjado vasilha dessa qualidade. Alisa banco, estraga cadeira, empata, o resultado é a gente se agoniar, se danar, perder até o gosto de viver... — Ora, Raquel. A moça também não está no coração dos diabos pra saber qual a intenção deles... Minha filha não merece esta sina... — Pois seu Eutanázio, como você sabe, sete noivados gorados com esse! Essa moça está mais que difamada, mais que rasa em Cachoeira! Eu se fosse a Bita ia embora, me dava logo prum vaqueiro... — Raquel... — Raquel... Vocês mesmo são que... — Bita sufoca-se em pranto. Não pode repelir a insinuação rancorosa de Raquel. — Pois é... Me dava logo prum vaqueiro daí dos lavrados e Cachoeira nunca mais me via. Nunca mais! Agora o silêncio. Eutanázio nada diz. Nem uma opinião. Nem um sacudir de cabeça. Seus olhos que piscavam amiudadamente deixaram de piscar. Raquel levanta a torre dos cabelos. D. Dejanira assoa o nariz e Bita, a meiga Bita, da boca pequenina, chora docemente como uma fonte humilde... 26 Eutanázio tem uma vaga ironia se escondendo no seu tédio. Mas a imunda doença o incomodava. Ouve na varanda Irene e Henriqueta rirem. Ouve Henriqueta dizer rapidamente: — Ah! Mas que é isso, menina... Que e isso... No meio daquelas criaturas descia D. Gemi, com as mãos em súplica, lhe pedindo para curar a doença. Felícia vem duma distância perdida e logo desaparece como se o crucifixo a recolhesse em si mesmo. Entretanto, na varanda, os risos insistem. [57] — Mas é, tu não queres que diga. É, pronto. É o Doce Seco conversando com a Barriga de Baiacu... Eutanázio tem um estremecimento. Que náusea! dona Dejanira não ouviu naturalmente. Doce Seco e Barriga de Baiacu. As duas riem. Ouve bem Henriqueta pedindo: — Mas te acomoda, anda, Irene. Te acomoda, pequena. — E, é mesmo. Doce... O menino da Mariana cai num ataque de guariba, puxando. Dejanira solta um prolongado suspiro. Estão mais uma vez logradas, pensa Eutanázio. Os noivos vêm e vão. Carvalho possui uma regular fazenda. Fazenda ganha com muita safadeza, capangagem, contrabando, que importa? É dele. Propriedade é propriedade. Matara um homem. Fora empregado no Recreio para surrar caboclo, ferrar, fazer o que os Neves queriam. Carvalho foi sempre muito protegido. Ficou mais tarde dono da canoa Deus te guie. Faz negócios de cachaça e mel. Conduz gado. Está a caminho da fortuna. Era o grande futuro de Bita. O ideal da senhora Dejanira. Tinha encontrado a Bita numa tarde de carnaval em Cachoeira depois duma grande chuva. As moças da sociedade cachoeirense saíram para o desfile à fantasia. Passaram em frente à casa azul do Coletor Federal. Henriqueta estava uma morena linda vestida de cigana. Rosália toda de papel crepom verde. Outras moças de encarnado, flores, saia balão, guizos. De repente, da janela da casa azul do Coletor romperam palmas, palmas oficiais porque ali estavam o Juiz de Direito, o Intendente, Dr. Campos, o Tesoureiro, o Coletor de pastinha, empoado, cabelo partido no meio. As prolongadas palmas davam gravemente ao carnavalesco desfile um ar de festa cívica. Era a Bita que passava, toda de verde e amarelo, o barrete frígio representando a República. Bita sentiu a glória daquelas palmas lhe correr pelo sangue. Ficou fria, uma impressão de que podia tropeçar na rua. Foi preciso Henriqueta lhe tocar: — Agradece, menina. E a República, confusa, um pouco trêmula, voltou-se para as janelas da casa azul e curvou, de leve, a .cabeça, sorrindo. Carvalho, que se encontrava na calçada, logo entendeu a grave significação do barrete da moça de verde e [58] amare|lo e, encantado, ficou sonhando com aquela República. Tudo em Bita era miudinho, bonitinho e lânguido. Tinha um precioso álbum de poesias, outro de retratos e cartões postais. Uma vez no baile do Cachoeirense Esporte Clube foi coroada rainha da festa. Ao lhe entregar a Coroa, Dr. Campos aludiu às madonas de Rafael e falou nas figurinhas de Tanagra. Bita, com a sua voz de quem sempre recita ao som da Dalila, solicitou a Major Alberto que agradecesse em seu nome. Tinha sempre um rosto de menina apesar dos seus vinte e nove anos. Ia a Belém para o Círio de Nazaré ou quando as Gonçalves a convidavam. Voltava falando dos teatrinhos, das pilhérias dos matutos, de todas as novidades do arraial. Voltava com unia moda, um chique, uma gíria, uma frase difícil, uma pose, muitos papai-mamães e um crescente horror à “solidão de Cachoeira”. Trazia cartões postais com dedicatórias escritas por si própria, com letra diferente. Eram os fiteiros de Belém que lhe ofertavam, dizia ela, com um vago enfado. O nome dos mancebos era desde Romeu, Manfredo, Cláudio de Tarsis, Aramis de Alencar até Emanuel e Paulo Guido. 27 E mostrava o seu último retrato tirado na Oliveira, em que com o seu ar de lânguida menina, punha o dedo na fronte, pensativa e triste como a flor pendida, como gostava de recitar ao som do violão de Cristino, quando a lua vinha dos campos e Casimiro de Abreu, tão bem copiado no álbum, soluçava e gemia no peito de Bita. Carvalho pediu Bita em casamento. Bita parecia uma moça fina, falando bonito e recitando poesias para ele ouvir ao luar. Carvalho era bruto e ficava preso ao álbum e à Dalila. A voz de pita, as pestanas viradas, a boca gentil, os brinquinhos da orelha, o penteado meticuloso do cabelo, o pescoço com o sinal quase em forma de uma lua nova, a maneira de olhar com os olhos semicerrados, o beijo suspiroso que ela dava com os lábios em bico e o ardor, depois com que se oferecia, languidamente, murmurando: — Ama-me, ama-me. Sou tua. Tu serás meu, Carvalho? Tudo isso agarrou Carvalho, fez dele um namorado fácil e abundante, um noivo, durante o tempo em que não soube de algumas histórias e não recebeu sete cartas anônimas. Agora Bitinha soluça como uma heroína infeliz dos [59] roman|ces que Salu lê a vida inteira na sua taverninha. Bita sente uma grande dor em cima do peito e aniquilada pela brutalidade daquele bilhete, sente que só a morte... Mas os soluços não deixam Bitinha pensar na morte. Os outros noivos, quando deram o fora, não a maltrataram assim. Sempre deixavam um motivo, uma carta, uma suave explicação. Isso não impedia porém que eles fossem falar mal da ex-noiva na porta do mercado, no balcão do Jorge, no sereno dos bailes, nas esquinas. Cristino ia então tomar as devidas satisfações e no Bosque do Professor, local dos encontros, o pau roncava assustando a vizinhança. Ezequias não apanhou porque foi discreto. O mais correto dos noivos que desmancham o noivado. Bita guarda a sua carta com orgulho e melancolia. Bita Só hoje te posso dar explicação do que te disse quarta-feira. Só pude hoje exprimir a minha tristeza, a magoa que corrói meu pobre coração. Sabes perfeitamente o que tenho a cumprir na minha triste vida. Sabes o que me sucedeu com aquela mulher. Ela tem um filho que é meu. Necessita do meu amparo. E tu não poderias aceitar, nem consinto nisso, que eu me case contigo tendo uma amante e filho. Não poderemos assim afrontar a sociedade de Cachoeira. É5 uma criatura sublime que ilumina um lar. És um farol de amor para alguém livre e desembaraçado que possa se casar contigo. Adeus. Adeus. Perdoa. Adeus. Desejo muitas e muitas felicidades que mereces. Foi a sorte do Ezequias. Bita quando relê a carta, suspira: — Ah, se não fosse Dolorosa, essa mulher... Ezequias se casava comigo. Ele, pelos dizeres da carta, mostra que me ama ainda. E Bita respondeu uma carta longa e sentida escrita por Eutanázio. Dizia que estava pronta a afrontar a sociedade e o seu amor era eterno. Mas Ezequias silenciou. Mais cartas ela mandou e Ezequias em resposta mandou a cópia da mesma carta. Esse rompimento foi para D. Dejanira um choque duplo. Primeiro, era a sua filha que não casava. Segundo porque tinha feito umas compras fiado no Jorge contando que Ezequias, casado com Bita, pagasse.[60] Mas apesar de tudo, Bita acha que Ezequias foi o mais correto. Abandonou Dolorosa meses depois, é verdade, mas sabe lá por quê? Raquel é quem brada, solta injúrias ao rapaz, mas era destino do Ezequias e dela não se casarem. Ezequias até hoje respira com tão feliz solução. Entre a Charqueada e o noivado seu coração não balançou. Ficou com a Charqueada ainda que depois, esgotada a leitura do último jornal, ficasse olhando as prateleiras vazias. Dolorosa tinha sido um 28 achado. Mas Eutanázio dá por falta de seu Cristóvão. Adivinha o que aconteceu com o velho. Seu Cristóvão não suportou o barulho. Não pôde ficar com os primeiros gritos de Bita, os primeiros ataques de D. Dejanira, as primeiras acusações de Raquel e Mariana com o filho na ilharga tossindo. As moças explodiam. Irene sacudia os braços. Os ais de Rita sucediam-se, a cólera de Raquel espocava como uma inundação. O velo vestiu o dólmã, arrastou os tamancos pela escada, saiu com o sol em brasa. Andou pela vila como se não conhecesse ninguém. Anoiteceu, e debaixo duma árvore, no campo, o velho Cristóvão cochila. Quer um grande silêncio para a sua velhice, está cansado de D. Dejanira se queixando, de Rita noivando sempre e desmanchando sempre os noivados, de Cristino no violão e na farra armando brigas e metido em cachaçada grossa. De Raquel, os seus ouvidos entupidos de algodão, a sua língua, os seus gritos, a masca de tabaco. Da Mariana com o filho tossindo, puxando como um uivo a coqueluche. Das três moças trazidas pelo demônio. As pernas não agüentam, sente-se expulso de casa, lá ninguém se entende. Ainda deu dois berros no alarido mas sua voz era fraca, fatigada, inútil. Quando que podia impor a sua autoridade? Está sentado debaixo da pixuneira do campo, com o reumatismo, a asma, a zoeira na cabeça. Peno, umas vacas ruminam. Deus, ó Deus, me dê o repouso eterno. Não posso mais. Eu enlouqueço! Não tinha coragem de se levantar. Não tem vontade nenhuma de voltar para o chalé das três janelas com sacadas que ainda pôde fazer no tempo que possuía alguma coisa. Eutanázio, D. Dejanira e Raquel voltam para a varanda. As três irmãs discutem. — Papai não vem mesmo. Onde está papai? Cristino, vai procurar. Tu também... [61] D. Tomázia, a filha mais velha de seu Cristóvão, se impacienta com a demora do velho. — Anda, Cristino. Vai... Mas Raquel volta à cena: — Tudo que está acontecendo com papai se deve àquele bandido. Patife que é. Ir escutar quem logo... Quem! — cerra a mão estira o polegar para trás num furioso escárnio que abala o mundo — quem, quem... — Ora, quem! — rompe Irene, asperamente, — uma Maria Neves, uma Chica Boca Suja, uma Dolorosa, seu Manito, o pessoal da Duduca... — espalma a mão pelas faces como para se livrar de tal gente. — E mais, compadre, disseram tanta coisa. Ah! como se fala em Cachoeira, compadre! — Eu, se fosse homem, ia tomar satisfações. Satisfações nada, pegava ele no meio da rua, dava, dava, cortava a cara dele a muxinga, a vergalho de boi. Cortava a cara dele a faca. Se eu, esta, esta mulher que está aqui fosse um homem! Mas infelizmente tem homem que de homem só tem as tristes calças... — Coragem não e pra quem quer... — chasqueou Irene. — Carvalho, se tivesse homem em casa, não estava agora se gloriando de ter mandado esse bilhete — falou Henriqueta com o olhar em direção de Cristino. — Só queria que Didi estivesse aqui... Mano Didi — diz Rosália. — Carvalho vai fazer coisas piores. Vai. Só quero que faça. Bita será posta nua na porta do mercado. Bita será falada na rua das Palhas como qualquer rapariga. Bita será posta em pelourinho. Virada do avesso e, com ele, Ezequias rindo e falando, Laércio, João, Bentes, o Cobre, o diz-que-diz-que, suplente de Juiz, porcaria... Por que? Didi anda pelas fazendas não sei o que fazendo. Aqui em casa ter ou não ter homem é a mesma coisa. Não troco as minhas saias... 29 — Basta de tramela, de tramela. Basta, suas trameleiras! Eutanázio tem um curto espanto. Cristino voltara-se da janela, com as mãos fechadas e ameaçadoras. — Basta de barulho. Não quer casar, pronto. Agora eu que [62] tome as dores. Tomar satisfações. Já tomei de cinco noivos. Todos apanharam. De que resultou? Da Bita não se emendar? Não tem remédio, isso. Quem nem pra tia não tem Deus nem diabo que ajeite. O que me aflige e vocês andarem também na muamba. Vocês se queixam de que falam. Mas aqui, onde, em que casa em Cachoeira, se fala mais da vida alheia do que aqui? Papai foi não sei pra onde. E agora eu que vá tomar satisfações. Dê no ex-noivo. Todo homem que vem aqui e pede e depois desmancha o troço, lá vou, o besta, para dar no miserável! Estou cansado de ser desordeiro assim. Já basta[m] as minhas farras, os meus porres, não vou mais na onda de tomar explicações na porrada. Nem na calma. Não quero mais saber de noivados de Bita. Agora todo noivo de Bita que rompe tenho por obrigação de família de dar no noivo? — Muito bonito pra nós todas, para a honra da família que um Carvalho qualquer mande um bilhete cavalar desse — aparteou Henriqueta. — Um bilhete desse... Só quem não tem vergonha, não tem dignidade, não tem mais critério, pode suportar que sua irmã receba um bilhete safado, um bilhete imoral dessa espécie. Ele obrou na cara da Bita. Obrou o bandido. E Cristino quer engolir a porcaria... Acabaram-se os homens de vergonha, os que defendiam a honra de uma família ameaçada... — Acabem com o barulho. Se eu falei foi ainda em atenção do Eutanázio. Porque vocês não merecem. Vocês merecem e esse bilhete do Carvalho! — Sim, sim, ele te comprou. Ele te deu dinheiro. Ele te pagou os porres. — E quem mais comeu? Quem menos comeu nesta casa? Quem? Quem? — Mas tu com a tua maneira, parece que vendeste a irmã pra aquele bandido. Ele te deu dinheiro para isso. Prevendo o futuro. — Vocês querem é porrada! Vocês comeram dos seis noivos de Bita o que eu não comi de meu pai, vocês, e falam em honra. Calem-se é que é! Então toda aquela indignação desaba em cima de Cristino. D. Dejanira ergue-se como quem está com falta de ar. Raquel, focinho empinado, olhar em brasa, larga imensos gestos de fúria. [63] As três irmãs avançam numa ofensiva de insultos, D. Tomázia abre os braços, muda, borbulhando lágrimas. Bita, mais pálida, grita fanhosamente e Mariana sai do quarto com o filho e arrastando panos mijados pelo chão. E é num minuto porque Cristino dá um pontapé em Irene, esbofeteia Raquel e sacode Henriqueta até atirá-la no chão. A velha corre num desnalgamento com as mamas saindo pela abertura da camisa e toma um cabo de vassoura. D. Tomázia tomba com ataque. Bita revira os olhos e cai no chão aos gritos. D. Dejanira ao investir com o cabo de vassoura sobre o filho que está agarrado com Raquel e Irene, escorrega e cai também espaçadamente no soalho. E Raquel escuma, esgazeada de raiva e ouvem-se os gritos de Mariana: — Mas o que é isso, Cristino? Mas o que é isso, Cristino? — Cristino salta na frente das mulheres e volteia o cinturão que estala na cara de Rosália, nos cabelos de Raquel, nos peitos de Irene. Eutanázio, atordoado, não sabe o que faz. Cristino recua e entra por um quarto e as mulheres agarram-no pela cintura, são arrastadas por cima das redes e mosquiteiros até que ele cambaleia sobre as malas. Elas se precipitam sobre Cristino como uma avalanche. Eutanázio corre e tenta puxar Irene pelo braço mas recebe tal safanão que cambaleia, ‘tremendo, a amparar-se pela parede e cai, desarticulado, de costas, sobre as 30 mãos com que inutilmente queria se defender do chão. III O CHALÉ É UMA ILHA BATIDA DE VENTO E CHUVA Chove. O vento zune. A chuva bate com violência nas janelas do chalé. Maninha dorme e Alfredo se remexe na rede, sem sono. Eutanázio ainda não veio. Major Alberto deixa os catálogos na estante e bocejando recita baixinho, como sempre gosta de recitar quando chove: Ó que aspérrimo Dezembro... D. Amélia dorme. Minu acorda com um rumor de ratos para [64] a banda da despensa. Major Alberto deixa de sonhar. Os catálogos descansavam. Por que Eutanázio não voltou ainda? Será que agüenta ainda mais uma daquelas doenças? Amanha ou depois, amanhecerá gritando, como daquela vez, com um gemido cavo de moribundo: — Ai, meu pai! Ai, meu pai! — Eutanázio paralítico, os olhos revirados, na rede sebenta, entre roupas sujas e azedas, gemia, chamando o pai. Tinha caído, seu corpo batido de tanto caminhar para a casa de seu Cristóvão não se levanta mais. Suava frio, tremendo todo, os dedos lívidos agarrados na beira da rede. Seus olhos humilhados e aterrorizados envolveram o pai. Nunca se queixara de doença, sempre firme, sempre resistindo às caminhadas, passando fome, chegando tarde, fora de horas em casa, magro, fraco, extenuado. Dona Amélia correu em socorro. Há anos que eram mal. D. Amélia rompeu um dia com o gênio dele porque não podia mais suportar. Eutanázio com as suas explosões quebrava prato, cadeira, soltava berros. D. Amélia tolerou o que pôde mas um dia deixou Alfredo nos braços de nhá Lucíola na casa de Rodolfo e disse: — Hoje rompo com Eutanázio. Rompo. — Subiu o chalé, disse umas palavras duras e rápidas sem que ele tivesse tempo para responder e ficaram mal. D. Amélia limitou-se a ficar mal, não o hostilizava, se preocupava pela sua vida perdida na casa de seu Cristóvão, falava ao Major, guardava comida pra ele quando chegasse. Viviam bem assim. Quando naquela manha ele gritou, gemeu alto, D. Amélia acudiu prontamente. Era uma doença desconhecida. Um homem sem poder andar, tremendo, gemendo, sem explicar bem o que tinha. No curral, Jogo tirava leite das vacas, bezerros berravam. Major Alberto andando a casa toda. Era o que esperava! Era o que esperava! Eutanázio havia de cair assim. Era o resultado das caminhadas pra cima, pra casa de seu Cristóvão. Veio seu Ribeirão. Seu nariz arpoou a primeira nota de vinte do Major. Se queixou da alta dos remédios. Achou uma doença grave. Mas que tivesse paciência. Ele curava. Deu uma conta de remédios que estremeceu D. Amélia e fez Major Alberto estourar: — Não me pega. Nunca! Ele embarca pra Belém. Embarca! [65] Veio D. Tomázia olhar na mesma manhã o doente. Era a sua comadre. Foi logo à cozinha fazer um caribé, mingaus, papas, leite. Era preciso alimentar o doente. Mas Eutanázio se tornou intratável, estúpido, dentro de sua moléstia, do seu tédio, da sua humilhação. D. Tomázia estava acostumada a ver o seu Eutanázio macio na casa de seu Cristóvão e agora encontrava um homem intolerável, recusando os mingaus, os caribés, as papas, tudo. Recusando brutalmente. Não queria saber de nada. Viravase na rede e só Maninha podia dar as coisas, dizer-lhe alguma coisa impunemente. D. Amélia se vingava. Tinham dito que Eutanázio andava caindo de fraqueza porque ela não lhe deixava comida, não deixava nem a farinha pois tudo vivia dentro do chalé trancado a chave. Pouco se importando com a fome de Eutanázio. 31 D. Amélia era tida em muitas casas, em Cachoeira, como uma criatura ma, ambiciosa, somítica. D. Duduca tinha mandado avisar isso a D. Amélia. E a pele da mãe de Maninha era picadinha meticulosamente em casa de seu Cristóvão. Depois que D. Tomázia viu de perto o gênio de Eutanázio, recusando os alimentos, casmurro e incapaz dum sorriso, D. Tomázia abriu-se: — Mas D. Amélia. O que é que a gente fala. Olhe, compadre Eutanázio não está doente por falta de comida. Por falta de cuidado. Jurava, a senhora me desculpa, que ele estava assim porque não comia. Sim senhora, o que é a língua do povo. — Ainda bem que a senhora sabe. Pois eu sabia que lá pra cima falavam que eu andava matando ele a fome. Que eu não deixava a comida de propósito... — Não era tanto assim, também, D. Amélia... Eutanázio repeliu violentamente as queixas de seu Ribeirão, os cuidados de D. Tomázia, mas teve uma vaga melhora. Major aproveitou para embarcá-lo. Foi carregado em cadeira e no trapiche Irene ria, as duas manas riam porque Eutanázio embarcava de ceroulas. Major Alberto sabe que Eutanázio voltará a cair. Desta vez não se levantará mais. Com esta chuva é capaz de vir andando. Chegará com os sapatos encharcados, a roupa escorrendo, a garganta apertada. Um maluco! Um maluco! Devia estar com as [66] ir|mãs em Muaná. Mas não há jeito. As irmãs são a cega e as duas solteironas. Vivem sós numa casa triste e gasta, falando baixo como freiras de avental, os cabelos muito compridos, envelhecendo devagar sem vontade de nada. Vivem criando alguma galinha, enxotando pinto, apanhando as sapotilhas do quintal, fora do mundo, porque não visitam ninguém. A cega... Major Alberto pensa que Eutanázio chegou. A porta se abre. Não é. A chuva aumenta. O vento zune no chalé de madeira. Alfredo agora dorme. Os catálogos dormem também. Major Alberto pensa nas três filhas dis- tantes. Eutanázio naquela penitência. A ceguinha muito branca, o rosto fino, já anguloso. A medida que a chuva vai diminuindo, o sono vem aumentando em Major Alberto. Major da Guarda Nacional, Alberto Coimbra veio para Cachoeira depois de muito pedido do Coronel Bernardo. Sua mulher tinha morrido. Deixara em Muaná uma tradição de bondade e de inteligência. Era festeiro de santo, de S. Sebastião no tempo em que começam as chuvas e as bacabeiras já estão com os cachos maduros. Escrevia os programas das festas, recebia o padre e orientava os mordomos. Muaná nesse tempo era uma cidade. E Major Alberto que nascera em Belém se acostumara em Muaná, tinha amigos, fazia política e fogos de artifício em tempo de festas. Narrador de histórias de guerra do Paraguai onde seu pai lutara como alferes do exército nacional, Major gostava de falar no Imperador, na Princesa Isabel, no Conde D’Eu, no Visconde de Ouro Preto com uma vaga saudade do Império. Contava façanhas da Cabanagem. Seu avô fora morto pelos cabanos no engenho do Curral Panema. Contava a vida de uma velha Belém do tempo de sua avó, quando se esperava navio de mês a mês e se comia muito bem com qualquer patacão imperial. Tinha uma larga e útil memória. Gostava de falar do seu tempo, especialmente da vida barata. Daqueles dias vagarosos com bondes puxados a burro. Recitava bem alto e com que entusiasmo! “O Caçador de Esmeraldas” e os “Jesuítas” de Castro Alves: Tempos idos... Extintos luzimentos O pó da catequese aos quatro ventos Revoava nos céus... [67] Um dia lhe disseram que o maior poeta era Bilac. Major foi a estante e trouxe um retrato de Gonçalves Dias: — Veja! Este que é o nosso poeta. 32 Nas festas públicas, nos bailes, nas sessões cívicas era o orador oficial. Principiava falando baixo e devagar, pontuadamente, os olhos vivos, a testa a reluzir, os cabelos cor de cinza, o gesto sóbrio e o povo admirando o saber do Major Alberto. Gostava de ler os oradores grandes. Falava da gagueira de Demóstenes e repetia de Mont’Alverne o é tarde, muito tarde... Lia para D. Amélia discursos inteiros de Antônio Cândido e contava a história de Nabuco, o Nabuco da Abolição, quando foi a Roma pedir a Leão Treze a bênção para a campanha abolicionista. Repetia a resposta do papa. E com a sua barriguinha de fora, a camisa desabotoada, descalço, tentava imitar diante de D. Amélia o porte de Nabuco. Escrevia nos jornais e lançava manifestos políticos. Fundou e dirigiu o Independente de Muaná. Falava muito na sem-vergonhice da política e repetia que a República no Brasil era uma república de palhaçada. Gostava mais da figura barbuda e doméstica do Imperador. Aquela barba tinha qualquer coisa de vovô ninando os brasileiros. A República? E o encilhamento? E a vaidade de Rui Barbosa? E a pamonhice de Lauro Sodré? Só Floriano com aquele “À Bala!” lhe dava alguma admiração. Porque em Muaná ensinara e chegou mesmo a ser professor público, era chamado também Mestre Alberto. Inclinara-se à5 questões de advocacia e não tinha medo de competir com um bom advogado. Um desembargador, seu amigo, facilitou-lhe um diploma de solicitador. Major recusou. A recusa era-lhe uma virtude tão espontânea como libertadora. Entendia um pouco de Chernoviz e era mestre em pirotecnia. Nas festas de Dezembro e Janeiro, Major armava com perícia e presteza os belos fogos de artifício. Até hoje se fala em Muaná é daquelas criações pirotécnicas do Major Alberto Coimbra. Mas de uma brilhante experiência de fogos subia para a sala e se deixava vergar pela meditação chata e fatigante dos autos e das leis. Quando trabalhava em fogos, sempre dizia risonhamente: [68] — Quer aprender as artes ensino-lhes às vistas. — Tinha ouvido essa frase dum fogueteiro português em Belém. Publicou um Opúsculo sobre a rara e arriscada profissão, composto e impresso por ele mesmo numa tipografiazinha sua. Era tipógrafo de mão cheia. Tinha mesmo paixão pela arte. Mandava buscar catálogos do mundo inteiro. As estantes ficavam cheias. Que alegria quando lhe chegou o primeiro catálogo de linotipo! Afinal o Tônio do Correio tinha criado alguma vergonha. Não fez com o catálogo de linotipo como fez com o catálogo das imagens ficando com ele e negando ao Major que tivesse recebido — Só cadeia! Só cadeia! pra essa gente — resmungava Major Alberto. Quantos sonhos hoje Major Alberto não tem, pensando montar uma boa tipografia em Cachoeira ou em Belém, com as instalações as mais modernas! Trabalhara em Belém, na Junta da Saúde. À noite, revisor de A Província. Falava do velho Lemos, da boemia de João de Deus do Rego e declamava o soneto: E forças ainda mais para adorá-la... Desempregado, procurou a terra de sua esposa. Três filhos e Eutanázio. Vida de interior, a advocaciazinha e a paz como ele gostava. Sim, que às vezes tinha momentos de furor com o gênio de Eutanázio, desaforos na cara dos seus constituintes que o caloteavam sempre. Rindo nas horas mansas, dizia: — Livrem-se da minha explosão! livrem-se da minha explosão! Viúvo, farto de Muaná, daquela politicagem do Antero e do 33 calote dos constituintes, decidiu atender o convite insistente do Coronel Bernardo. As três filhas ficaram solteiras. A menor perdeu a vista aos doze anos. Cega, pálida, muito frágil com a brancura de freirinha que nunca apanhou sol, tateava pela casa velha e triste, embalava-se na rede, o dia inteiro, no quarto, muda. Quando as procissões passavam, tempo de festa, ela ia à janela ouvir. Tinha um sorriso de cega e levava esfregando os dedos nos cabelos castanhos e lisos. Major Alberto não diz da sua amargura a ninguém, mas a ceguinha longe em Muaná o consome, enche o seu pensamento nas horas em que deixa os catálogos e fica na rede, de olhos vigilantes no escuro. [69] No o quarto, sozinha e calada, se embalando, que pensa a ceguinha? Uma pintura o seu perfil. estampa de santas antigas, pequena e frágil, qualquer coisa de pastora e de órfã, com o seu mundo fechado, o oratório perto, o sombrio guarda-roupa, uma armação de cama, uma almofada sem bilros. Lá fora as duas irmãs falam baixo. O gato dorme na mesa de jantar. A folhinha está oito dias atrasada, esquecida do tempo. A ceguinha se embala, seus pés muito brancos se alongam no soalho, esguios e frágeis na sombra do quarto como pombos brancos. Está sentindo o grande sol marajoara lá fora, o mexer dos pratos na cozinha, os pássaros e o vento nas fruteiras. Sua vida é da rede para o almoço. Quando levanta da mesa, se põe na janela para o quintal aspirando o cheiro da terra e das árvores. Uma vez ou outra vai para a janela da frente sentir o ar da praça, se abanando contra o calor, ouvir conversas, a gritaria dos moleques jogando bola de meia. Major quando vai a Muaná não sabe agradá-la. Sabe abençoá-la, nada mais. Ela vive ali ouvindo — Tu queres? que tu tem? vem pro almoço. Toma, pega isto. Vem por aqui. Já mudaste a camisa? Nada de uma palavra de ternura, uma conversa boa em que ele se embalasse como se embala na rede. Falta-lhe uma criatura que se deite no chão junto da rede, lhe cate piolho, lhe tire espinha, lhe conte histórias, traga chocolate, lhe ofereça muitas rosas. Deseja ficar com a rede cheia de rosas. A sua solidão aumenta sempre. As irmãs são, às vezes, impacientes. Marialva fica respondona, brigam. E enfezada na rede, ela pensa fugir assim mesmo cega. Tem horas em que perde todos esses meios desejos, a necessidade dum afago, para ficar idiotamente ouvindo os ratos e os passarinhos no telhado, e o ronrom do gato que se aproxima. O gato vem e se deita embaixo da rede e Marialva toca no pêlo do animal que se espreguiça, se abandona. As mãos da cega se esquecem sobre o pêlo do gato. Se enchem daquele abandono felino, ficam vagarosas e seus movimentos de afago são como o das plantas do fundo do mar. Ficam tão misteriosas como os olhos perdidos. Marialva se lembra, muito menina ainda quando tinha a vista, que o gato daquele tempo era de olhos amarelos e o pêlo cinzento. Não gostava do gato, não gostava do cachorrinho Tufão, nem dos jabutis que suas irmãs [70] cria|vam no chiqueiro dos porcos. Queria criar era uma marreca do Arari, pequenina e arisca que um dia o gato matou. Fora uma menina impossível, trepando nas sapotilheiras, nos cajueiros, nos mamoeiros. Era rosada e não gostava muito de bonecas. Andar no mato, correr na rua, entrar suada, suja e cansada em casa e pedir para puxar água do poço pro banho era o trabalho de Marialva todo dia. O gato adormece, seu pêlo também acaricia os dedos de Marialva. Por que suas irmãs não vêm ler histórias, por que Letícia e Natárcia não se chegam para bem junto dela lhe contando qualquer coisa do mundo? A vida vai secando no seu corpo, seu pensamento morre dentro de seus olhos mortos. E uma sobra de mulher, fininha e branca, andando em casa se embalando, rezando. Seus pés, suas mãos parecem flutuar. Toda ela parece andar suspensa, meio diluída no silêncio. Letícia bem podia abrir As Mil e Uma Noites que seu pai esqueceu dentro do guarda-roupa e ler o conto do Ali-Babá para Marialva ouvir. Tem 34 dezessete anos Marialva? Ninguém sabe. Tudo nela envelheceu, tomou uma cor de gesso, ao mesmo tempo de infância perdida, de silêncio. Mas seus dedos ficam mágicos depois que deixam de acariciar o bichano. Traçam pequenas coisas no ar, sonhos, ilhas e imagens, seu pai, o gato, uma árvore, o sol, a lua, folhas caindo, os olhos das irmãs, coroas de espinhos, teias de ouro. Seus dedos desfiam sonhos e sombras, tecem, num imaginário tear, certos mundos misteriosos que ela mesma desconhece e só os seus dedos sabem e tecem talvez para os seus olhos mortos. Major Alberto sonha agora com Marialva. Marialva linda com os olhos luminosos, subindo na montanha. Ele gritando: — Não sobe, Marialva! Marialva, desce! Estás cega, não vês que estas cega, minha filha? Major Alberto acorda, espantado com o sonho. Marialva estará doente? E Eutanázio? Por que agora com a estiagem, aquela criatura não volta pra casa? Major se levanta. Vai à saleta e abre a janela. Fica olhando a noite. A casa do Rodolfo. A casa grande do Coronel Bernardo. Lhe dá uma saudade daquela casa grande, baixa e azulada, cheia noutro tempo de gente, da política, de ma|talotagem, com trapiche para o rio e o Coronel na cadeira de embalo na calçada lendo os jornais. Bons tempos em Cachoeira. Os mandriões da política viviam à larga no casario. Quatro mesas fartas empanturravam os convivas ávidos. Coronel Bernardo era bolso aberto para os amigos. Reses gordas vinham das fazendas. Despensa como a dum navio de alto mar. Quartos sangrentos de carne nas paredes, pela cozinha donde vinha o cheiro do filé assado. Canoas encostavam no trapiche descarregando farinha. Os potes de mel, os fardos de charque, as caixas de conserva, os contões no Jorge Abifadil, de fornecimentos. Comia-se à beça na casa do Chefe. O Chefe era dum coração largo. Não melhorava as fazendas, era tolerante com os vaqueiros, mas se abandonava todo aos amigos, à Cachoeira, aos correligionários. Era solteiro. O que Dadá não fez para se casar com Coronel Bernardo! Os correligionários disputavam os primeiros lugares da mesa. Invadiam a cozinha, a despensa, tiravam carne, mercadorias, louça, roupa do Chefe. A varanda do Coronel Bernardo era um seio de Abraão, dizia Major Alberto. Coronel degenerara da família. Os parentes viam naquilo a ruína, a desgraça do Bernardo. D. Guilhermina, sua mãe, nem encostava sua lancha na ponte, quando descia das fazendas, com raiva daquele desperdício. Como se fosse para todos, para todos, resmungava ela, na sua rede na lancha, entre as suas latas de coalhadas e as recomendações para o comandante da lancha lhe cobrar a passagem a fim de que servisse de exemplo a todos os que tentavam viajar de graça, confiando que por ser tão rica D. Guilhermina podia ser liberal. — Tás ouvindo, Severiano? Não te esquece de me cobrar a passagem, viste? — Nossa Senhora de Nazaré teria colunas na sua Basílica, altares, dinheiro, se acabasse com aqueles excessos de bondade de Bernardo. Major Alberto sorri para a noite, para a casa grande. Se esquece, lembrando-se do seu amigo Coronel Bernardo. Gostava sempre de contar: — Certa vez, ele me entregou um conto de réis. Pra guardar. Cédulas novas. Passou bem um ano. Um dia Coronel, aqui, não dispunha dum dinheiro à mão e não queria pedir do Jorge. Não [72] sabia como ter um conto de réis naquela hora. E eu então lhe fiz lembrar o dinheiro que guardei. — Eu? Quando? Está brincando... — Sim senhor. Lembre-se. Naquele dia... Quase um ano mais ou menos... Um conto. Contadinho. E cédulas estalando... — Não, não. Não me lembro. Você não esta enganado? Me espanta, é certo. Por Deus que não me lembro, Major. Não, 35 não me lembro... Major arranhava a perna, fazia uns psius, dava um vagar às palavras com uma risonha ingenuidade no olhar: — Fui buscar o dinheiro e [voltei] com o bolo na mão. Bernardo ainda não conformado, exclamou: — Até nisso você é sincero, meu amigo! E eu rindo, respondi na troça: — Até nisso você é sem memória, meu senhor! — Rimos ambos. Talvez ele quisesse me experimentar. Não sei. Só eu sei que não fiquei com o dinheiro alheio. Esta mão aqui, posso dizer sem discurso, que é mão limpa. Major Alberto porém reflete que mãos limpas são mãos infelizes. Podia ter furtado. Furtado, não. Aproveitado. Era o homem de confiança do Coronel. Quem escrevia os relatórios. Até uma monografia de Cachoeira assinada pelo Coronel. Fazia tudo na Intendência. Tinha prática do serviço. Coronel era só para assinar. Cachoeira murmurava: — Major Alberto se empapa com o Coronel. Veio da terra alheia para se encher em nossa terra. Caçula da Intendência. Querem ver. Deixem o tempo passar. Coronel Bernardo fez um aterro, um trapiche, trouxe um moinho de vento, botou uns lampiões de querosene nas ruas, deu bóia à beça aos seus correligionários e ficou em Cachoeira como o intendente modelo. Administração do Coronel Bernardo? Um exemplo! Sim, se admiram? Os que sucederam o Coronel não conservaram nem o aterro. O moinho de vento parou. Cachoeira ficou padecendo de saudosismo: — Ah! tempo do Coronel Bernardo! Qualquer coisa era: No tempo do Coronel Bernardo... E quando os saudosistas vêm pedir ao Major dez mil réis emprestados, pensando que o Major se empapou mesmo, Major esfrega as mãos, impaciente: [73] — O Bernardo foi que estragou essa gente. Acostumou. Pensam que sou ele. Que me empapei. Psiu. Psiu. Que me enchi. A fortuna está nas santas mãos da senhora Guilhermina, gente. Psiu, psiu. Upa! Não fabrico dinheiro. Não sou Casa da Moeda. Não herdei. Viste, Amélia? Psiu, psiu, o Bernardo. Psiu, estas ouvindo? O Bernardo estragou essa gente. Habituou, ouviu? psiu, essa canalha a pedir, a pedir. Os correligionários se espalharam, de cabeça baixa, famintos. Coronel, sim, era um chefe. E agora, como o Diógenes e os velhos da casa da Duduca podiam passar? Coronel tombou com angina do peito e Cachoeira ficou com o seu aterro se arriando, o moinho parado, os lampiões sem luz, a casa grande fechada. D. Guilhermina apertou o nó da saia e Major ficou no seu chalezinho de quatro janelas olhando o Arari, a velha draga abandonada. A Folha Miúda se esgalhando, cheia de pássaros e de vento ao sol dos campos. Major Alberto continuou na Intendência, pobre e sonhador. A Cachoeira resmungava: — Faz de honesto. Disque pobre. Mas guarda. Tem. As filhas luxam em Belém, em Muaná. Major Alberto vai escrevendo os seus ofícios, rubricando talões, redigindo as atas do Conselho Municipal. No salão da Intendência o Júri, às vezes, se reúne. Alfredo espia da porta o Juiz vestido numa vestimenta que não sabe o que é, sacudindo a campainha. Major Alberto sobe i tribuna e começa: — Senhores Membros do Conselho de Sentença... Major fecha a janela. Eutanázio não vem. Maninha sonha e fala no sonho: — Quero, quero. Te acomoda, Alfredo! Major não ouve Dr. Campos na taverninha do Salu conversando e bebendo. Dr. Campos, à tarde, terminou o seu artigo sobre a Sagrada Eucaristia que tem de mandar pra a Verdade, órgão dos interesses da sociedade e da família em Belém. Gosta de escrever os seus artigos sempre no interesse de Deus. Deus anda ameaçado pelos demônios. Aconteceu na Rússia uma calamidade. 36 Dissolveu-se a família, extinguiu-se a propriedade, destruíram-se [74] os templos, assassinaram os sacerdotes, negaram Deus. Padre Bento que veio da Europa me contou bem a terrível história. Pensam que essa onda maldita não pode invadir o mundo como uma onda de terror e de peste? Dr. Campos escreveu cinco artigos contra o bolchevismo e cinco artigos provando a existência de Deus. — Salu, meus artigos são lidos em Belém com respeito e atenção. Sou um exegeta cristão. Sou! — Dr. que quer dizer exegeta? Como se pronuncia? — A exegese, meu amigo, no cristianismo adquiriu relevo sublime. Você não está na altura de compreender os grandes livros da fé. Eu tenho me batido por uma maior educação religiosa, Salu! Você não sabe o que está acontecendo na Rússia. Nicolau? Um santo. O martírio de Nicolau? Se assemelha aos dos mártires cristãos na Roma antiga! Você conhece a história da Roma Antiga? Nunca leu o Gênio do Cristianismo traduzido pelo grande Camilo Castelo Branco, o genial autor do Amor de Perdição? Não sabe o que são as belezas do cristianismo. Eu posso ler e dar uma interpretação do Apocalipse. Sei. Você, Salu, na sua simplicidade você não sabe quem é Santo Agostinho. Grande santo. Grande santo. O Apocalipse profetizou o bolchevismo da Rússia. Os bolchevistas estupram crianças. Degolam velhos. Dinamitam igrejas. Tomam mulheres. Saqueiam, arrombam tumbas e castelos, vão talando tudo. São como os Bárbaros. São os... os... Hunos. Sim, os hunos! Mais cerveja, Salu! Salu abre a boca com sono. Tem uma visão da Rússia devastada pela invasão de enormes homens barbudos e ferozes forçando mulheres, baionetando velhas, fazendo orgias medonhas nos palácios saqueados. — Meus artigos lançam uma advertência. A Igreja tem que ser antes de tudo um baluarte da sociedade. Tem que ser o farol da humanidade. Sou pela disciplina religiosa, pela oficialização da Igreja. Sou pelo Estado Teocrático, Salu! Enquanto doutor Campos bebe, Salu conta que deu mais uma surra no Bartolomeu. — Dou uma por dia, doutor. Pro demônio criar vergonha. Mas se calam para espiar um vulto que vem pelo escuro sob a neblina da chuva. [75] — Quem é? diz Salu. — Ei! Ei, desconhecido! Grita o teu nome e vem beber uma cerveja! O vulto se distingue, escuro e molhado. Tem um saco cobrindo a cabeça e uma cambada de aracus na mão. A roupa fedia a peixe. Está meio ofegante. Seu bafo é cachaça pura. — Dionísio! — Pronto, doutor! — Donde vens e para onde vais, peregrino! Salu ensaia um riso, Dionisio limpa o bigode, espreme as mangas da camisa rota, atira os peixes e o saco ensopado no chão. Doutor Campos, gordo e meio tonto, abraça o homem e o arrasta para o balcão. — Queres cerveja ou cachaça, Dionisio? — Um qualquer gole, meu branco. Doutor, se eu lhe dizê uma coisa o senhô não me prende? Não me manda pro... Quero lhe dizê verdade... — Mas que tu queres afinal? Cerveja ou cachaça? — Um abrezinho, doutor, pra tirá este frio. — Mas qual é o caso, Dionísio? — Acabei de bater na Felícia, doutor. Me mete uma pena mas fui obrigado a dá. Nunca quis que eu... Não me recebeu. Ficou com nojo de mim. Lhe dei esta cambada de aracu, não quis. 37 Em que que ela é mais do que eu, mais do que este arpoadô velho de pirarucu? — Pois é um desgraçado! Espancaste uma mulher! — Mas se, doutor... se ela não me quis! Ela não me quis. Pedi, não tinha dinheiro mas tinha esta cambada de peixe, pedi, pedi, chorei, ela não me quis. Então me deu uma raiva. Dei dois pontapés na barriga. Ela deu um grito e eu me botei... Nunca me quis... Me botei pelo aterro debaixo da chuva. — Mas afinal que tu queres? Cachaça ou cerveja? — Cachaça, doutor, cachaça! Major Alberto se embala na rede. Pensa que sua vida não passará do seu ir e vir da Intendência, daquela advocaciazinha raia, dos catálogos. Bem que podia “ter alguma coisa”. Mas tem uma [76] tranqüila incapacidade para a fortuna. Entrou no mundo com um ar distraído e sonhador. Tem uma filha cega, Marialva, e um filho inútil, Eutanázio. Gado, por exemplo, podia ter muito. Tem atrás do quintal umas trinta e poucas reses. Algumas vacas leiteiras. Mas o leite não lhe dá um tostão de renda. Se lembra: Coronel levou-o à fazenda e lhe disse: — Vamos. Escolha um lote de reses. Pra você, ande. Não se vexe. Você tem trabalhado para mim na Intendência como um devotado. Ande. Major Alberto acanhou-se. Não quis. Levou, para não fazer desfeita, uma vaca branca-malhada. D. Amélia não agüentou o riso: — Mas, seu Alberto, você vai atrás do povo? Você não tem trabalhado pro coronel pra merecer mais? Deixe de ser bobo é que é! — Mas eu sou muito esquisito neste ponto. Sou escrupuloso. O que não diriam os parentes, essa gente! Um escândalo! — Banque honestidade e veja o resultado. Banque! — Deixa eu ficar aqui com as minhas vaquinhas ganhas com a advocacia. — Espere o resto depois. O senhor não precisa ser desonesto mas precisa ver que sua vez apareceu. O homem gosta do senhor. — Prefiro a minha tranqüilidade, prefiro a minha paz. ouviu? Amanha, os parentes... O homem morre. Não quero. Psiu, ouviu? Fico mesmo sem ter nada. Cachoeira via um gadão nas reses que Major espalhava nos campos da vila. O povo via mil reses em vinte. Coronel Bernardo lhe teria dado a fazenda Anabiju e um barco. E com a morte do Coronel Bernardo, Major Alberto, tesoureiro da Intendência, fez tudo para solver certas dívidas que o seu amigo havia deixado. Era uma ocasião para furtar, dizia ele, mas o que fez foi tapar o rombo das dívidas com as economias municipais. — Podia deixar tudo escancarado. A responsabilidade era do morto. E ficaria com o dinheiro. Tinha a faca e o queijo na mão. Quando mais nem menos D. Guilhermina, mãe do Coronel, avança contra o chalé do Major Alberto. Quis tomar-lhe a casa. — Foi meu filho que mandou fazer. A casa é minha. Vou mandar mover uma ação. Se quiser ter casa faça com o seu dinheiro. Major apelou para o empreiteiro da obra. Os recibos, em que [77] nome? Naturalmente o empreiteiro assinara. Material comprado pelo Major. Coronel apenas adiantara o dinheiro mais urgente. — Mas recebi dinheiro do Coronel, disse o empreiteiro. — Neste caso você recebeu duas vezes. Mostro-lhe os recibos do pagamento. Houve falsificação de assinaturas, abonos dados à última hora, recibos feitos de acordo com D. Guilhermina. Gente interessada em acabar com a fama de honradez do Major fez chicana, mas Major Alberto não cedeu. Pulava contra a velhacaria. Coçava 38 a cabeça, rubro de indignação, explodia! E Eutanázio empapuçava as bochechas, rindo: — Devia ter roubado. Não havia nada. Quem manda? Para não ser uma besta. Seria mais bonito questionar por muita coisa do que isso. Dar logo é melhor. Toda Cachoeira vai dizer que ele é apenas um ladrão porco. D. Guilhermina desistiu da ação sem motivo explicado. Major Alberto, no seu chalé, continuava explodindo: — Nunca vi unha-de-fome assim. Além do que fiz para o filho, a fim de não botar o nome da família em maus lençóis, queria me tomar a casa. Uma mulher rica e que riqueza! D. Amélia engomava o fato branco do Major e ria-se: — Os bobos são assim mesmo... Dr. Campos se exaltava: — Reverencio-me ante sua maneira de pensar ou de viver. Mas o furto nas repartições públicas chama-se defesa. É portanto uma lei da conservação da espécie segundo Darwin (aliás não sou por este autor). Ser honesto assim é um escândalo. E contra a natureza. E uma calamidade, dá exemplos nocivos. Falta de solidariedade na defesa da espécie. Major acha que Doutor Campos é um homem feliz. De que valeu ser honrado? Agora esta falta de sono que é talvez o remorso de ter sido honesto. Sempre em dificuldades. Contas no Abifadil, duas famílias a sustentar, o quilo de carne, os catálogos, aquela tipografiazinha jogada na varanda onde Rodolfo vem fazer os rótulos para as garrafas do Salu e do Jorge sem lhe dar satisfações. Aquele [78] Ro|dolfo é um patife. Major gostava de chamar patife com muita facilidade. Uma patifaria grossa, era como definia a política, o inventário dos Rodrigues, a casa de seu Cristóvão e os isguetes do 3 X. Antes de se mudar definitivamente para Cachoeira, Major refletiu que a sua viuvez devia ser uma viuvez sossegada se achasse uma companheira ilegal para ele. — Major não e como eu que vivo, infelizmente, pastoreando fêmeas. Major é um largo produtor de filhos. Só os frutos revelam as virtudes da boa terra. Foi buscar dona Amélia... — Dizia Dr. Campos. D. Amélia era uma pretinha de Muaná, neta de escrava, dançadeira de coco, de isguetes nas Ilhas, cortando seringa, andando pelo Bagre, perna tuíra, apanhando açaí, gapuiando, atirada ao trabalho como um homem. Viu â mãe morrer de uma recaída de papeira, sem recursos, a palhoça caindo, a prostituição, o pai golado dizendo besteiras na hora do enterro, mas Amelinha firme não se deu por achada. Tinha perdido um filho levado pelo sucuriju nas Ilhas. Treme quando pensa que Alfredo quase tivera o mesmo destino. Podia ficar dentro do poço. E mesmo nos poços há, às vezes, poraquês. Andava naquele tempo com a paixão de sua mãe que recaiu de papeira porque foi cozinhar, ainda de resguardo, para uns brancos na casa de seu Jerônimo, o tabelião. Major convidou-a: — Quero uma pessoa pra ir comigo para Cachoeira. Queres ir? — Major sempre achava na Amélia uma pretinha que nunca andava molambenta e azeda. — Não sei, seu Alberto... — Vais, e se te acostumares... — Vou pensar... As filhas brigaram, mandaram recados ameaçadores, peitaram gente para convencer Amélia a não dar aquele passo. Era uma pretinha. Se ainda fosse pessoa de qualidade... Mas uma pretinha de pé no chão! Quem logo! Seu pai estava de cabeça virada para uma negra. Uma cortadeira de seringa! Com filhas 39 moças e amigado com uma preta que virava mundo pelas Ilhas! Amélia só fazia era soltar a sua risada. Suas amigas animavam. [79] — Vai, sua besta! Só por que és preta? Mas és uma preta nova e limpa. És caprichosa. Porque tens esse gênio pensam que andas de fogo aceso para homem. Não te importa. Vai. Deixa de ser besta e embarca. Tu vai tira o pão da boca das filhas? não. Major tem pra elas. E depois vais mais uma cozinheira do que rapariga dele. Vai. Um passeio assim... Deixa o pessoal morrer aí de inveja, de raiva. Vai, pequena. Amélia, resolveu-se: — Ele me convidou. Não me assanhei para o lado dele. Tenho a consciência tranqüila de que não fiz nada para ele me convidar. Se vou é para trabalhar para ele. Sou uma pobre. Cozinho, lavo, engomo e depois é a minha sorte ir agora com ele. Sou mulher para trabalhar. Se a minha sorte está marcada pra ficar com ele, fico. Pensa? Não tenho nem raiva do que as filhas dele dizem de mim. Por que ele não levou elas com ele? Não fui me agarrar nos fundilhos das calças dele para se amigar comigo. Não vou atrás de dinheiro dele porque sei que ele não tem. Ora, pouco estou me incomodando que falem. A única pessoa que me incomodava era mamãe. Essa, morreu. Sinto até hoje a morte dela que ninguém imagina. Papai se largou pelas ilhas. Ajeitava o seu jasmim e a sua baunilha no cabelo e pouco ligava a conversa. Mas não fazia pouco das filhas do Major. Não se considerava inferior a elas mas respeitava-as. Tinha uma risada bonita, espalhando alegria. Um riso inesquecível, um riso com todos os dentes bonitos de sua boca de preta. Já limpava os dentes com charuto mas não mascava. Aprendera a fazer rede, charuto no cabelo, cantando baixinho, esquecida do que seu pai andava fazendo pelas Ilhas e do feitiço que foram lhe deixar uma noite na porta de sua barraca. Varreu a coisa feita do terreiro, desafiando todos os pajés da terra: — Axi porco! Eu acho graça é gente sem o que fazer meter medo, fazendo porcaria desta. — Menina, não brinca! Não toca nem com o pau essa coisa, Amélia. Olha, Amélia, não brinca, aquela menina! — Eu mesmo não tenho pavulagem. Mas essas porcarias para mim é besteira. Estou me rindo delas. Não acredito. Eu me incomodar? Agora eu pegando quem bota porcaria na porta de casa, rá! [80] Amélia desarmou o tear, se despediu de seu povo, foi deixar as suas lágrimas na sepultura de sua mãe e embarcou. As filhas do Major Alberto ficaram batendo língua, com os cabelos desmanchados, os olhos abertos, resmungando. Marialva ficou na rede ouvindo. Sentiu uma vontade de chorar sem saber bem porque. Amélia ficou sendo em Cachoeira a “dona Amélia”. Botou um gosto de terra morna, de mato e maresia na vidinha burocrática e forense do Major Alberto. Dr. Campos falava: — Major Alberto não gosta de café puro nem de leite simples. E sim, café com leite, com mais café que leite. Fica e mais gostoso e eu sei por experiência. Você, Salu, aqui numa confidência, não sabe o quanto me d& ter a minha senhora como é. Muito branca, apesar de muito culta, mas como me enterro, por exemplo, na Maguá, na Aurélia! Major Alberto começou a comer uma comida bem feita. Começou a comer de desapertar o cinturão como o Didico. D. Amélia põe o gosto de seu perfume na cozinha. Um pirão de batata, um peixe com coco, um peixe desfiado no arroz, uns bolinhos de pirarucu, uma fritada de tambaqui, uns cozidões, uns espernegados. Major Alberto convidava Coronel Bernardo para um peru, um capão, um pato do mato com arroz. Era sempre aos domingos. O vento invadia o chalé. D. Amélia socava o café em 40 mão de pilão e Coronel Bernardo de costas para a janela, não se continha: — D. Amélia, não há dúvida nenhuma que café torrado em casa é o que se pode chamar um café. Então Major Alberto falava no excesso de maquinismo que havia de acabar com o bom gosto da cozinha, com a delícia dum café socado em casa, com um boa roupa bem feita a mão. Ele achava um excesso essa corrida do homem para a máquina. Mas enchia os olhos de vivacidade e pasmo quando folheava os seus catálogos e encontrava um novo linotipo, uma nova rotativa! O Coronel ficava horas ouvindo Major explicar o que era um linotipo, a fabulosa tiragem duma grande rotativa. Eutanázio vem com os sapatos ensopados, a roupa pingando, tropeçando nas pedras e nas poças de lama. Tem tonturas. [81] Princi|pia a ver uma quantidade de cabeças, de mortos conhecidos, algumas mulheres que vira ou desejara. O moinho de vento parece girar dentro de sua cabeça. Os gritos daquela gente perseguem-no. Tem a impressão de que Irene vem saltando as poças de lama para agarrá-lo pela cintura, derrubá-lo na vala, deixá-lo morto com a língua de fora. Mas quando se levantou da queda na casa de seu Cristóvão quis correr atrás de uma faca na cozinha e cortar Irene pela cara. Foi um ódio de repente. Toda Cachoeira vai saber, vai saber. Que ridículo, que vergonha, tem que ter talvez alguma complicação com o pai. A água espirra dentro dos sapatos. Diabo! Podia ter tirado essa droga! E agora como poder comprar sapatos? Estes estão acabados. Também se cair numa destas poças não poderá se levantar. Não tem mais forças. As roupas molhadas pingam e pesam. Está coberto de chuva e de ridículo. Tinha esquecido de entregar os charutos para Raquel. Os charutos estão molhados dentro do bolso. Um ódio em Irene que abrange todo o gênero humano. Irene é a espécie humana. É a maldade natural do ho- mem. Como a miséria o atingiu tão profundamente, tão grotescamente. A sua marcha agora é a de um humilhado sem remédio. O seu regresso é o de um Dionísio mais miserável, mais bêbado, mais devastado pela fome e pelo vício. Onde estará o Dionísio? Seria capaz agora de ser um grande companheiro de Dionísio? Como agora ele compreende o velho arpoador de pirarucu! O Dionísio que atravessa a vila cantando ao meio dia a sua modinha de bêbado: a noite é como um sonho... assim tristonho... Bem pode encontrar Dionísio estirado no campo, no aterro, com risco duma cobra pepéua, dum boi pisá-lo, ou de ser jogado dentro duma vala, mono. Eutanázio ouve de súbito a fala do Doutor Campos. Doutor Campos naturalmente bêbado. — Eutanázio! Vieste do pandemônio, vieste do pandemônio. Como vens belo, 6 mancebo. Como vens como aqueles heróis do... da Laguna! — Para onde vai assim? [82] — Vou com Dionísio em casa da Felícia. — E onde está Dionísio? — Tombou sem vida naquele capinzal. Mas sou o Cristo que ressuscita o novo Lázaro. Levanta-te, ó bebaço, vagabundo dos campos, levanta, é, Dionísio e vamos à Felícia. Dionísio ergueu-se do capinzal, ofegante e pesado como um boi. Dr. Campos solta uma risada. Sua barriga alveja no escuro pois a camisa está toda de fora e tem as calças arregaçadas. — Eutanázio. Eu podia dizer: Quo vadis? Mas tu já vens crucificado. Cristo sofreu menos do que tu. Porque tu te crucificas todos os dias, desgraçado redentor! 41 Os dois seguem no rumo da barraca de Felícia. Eutanázio fica parado. Quer ter forças agora, quer correr para a barraca de Felícia e lutar contra aqueles dois brutos que vão bater nela, fazê-la mais infeliz. Por que não acontece isso com Irene? Por que Dr. Campos não aparece no quarto de Irene, assim bêbado e emporcalhado? Os dois chegam na porta da barraca e batem violentamente. — Ó Madalena, acorda que chegou aqui o Cristo! Ó vivandeira, sai dos braços do Morfeu, ó pútrida, e vem abrir a porta para dois viandantes que querem amor, que querem Vênus! Anda, Messalina! As pancadas de Dionísio e a voz de doutor Campos fazem Felícia saltar da rede como uma alucinada, falando com voz surda. — Que é, que é? As pancadas aumentam, os gritos roucos, Felícia sabe que eles vão arrombar a porta. Fica irresoluta, tremendo, acuada a um canto, à espera. Quando Eutanázio, sapatos na mão, roupa encharcada, empurra a porta, dá com a sombra do Major Alberto no meio da saleta escura, de braços cruzados. A chuva tinha voltado. Eutanázio jogou os sapatos no chão junto da chapeleira. — Mas rapaz... Que fazes até esta hora e com essa doença, na rua? Hem, hem, na rua? És mesmo um homem liquidado! Era para te encher a cara de taponas, seu... seu... Vagabundo!... Eutanázio senta-se e enxuga os cabelos com a ponta da [83] cami|sa. Doem-lhe as costas, os ombros pesam, espera a todo momento uma síncope. — Dai a pouco está aí gritando. Morre logo... Morre logo, diabo! Basta[m] as consumições que tenho tido. Embarca, vai ajudar tuas irmãs, vai trabalhar, olhar por elas... Estás perdido nisso. Major dá umas voltas na varanda. Alfredo, que acordara, fica à escuta. As palavras do pai adquirem uma angustiante ressonância em todo o chalé, que parece enorme e estranho no silêncio sob a chuva. Ao mesmo tempo receia que Eutanázio reaja, grite também com o pai, os dois se atraquem. Como que foi um pesadelo acordar ouvindo as palavras do pai, o barulho dos sapatos encharcados no assoalho que lhe parecia ter sido a cabeça do irmão esmurrada na parede, a chuva batendo. A voz alta do pai era como uma voz vinda de longe, dentro do sono e espoucando naquele despertar como a pororoca nas pedras do Moirim. Seu pai andando, Eutanázio mudo, se enxugando, talvez. D. Amélia acordada, chamou: Seu Alberto, seu Alberto, venha se deitar. Que é isso? Alfredo não sabe bem o que se passou. Quem sabe se Eutanázio jantou? Quando acalmar mais, depois que seu pai se deitar, irá perguntar ao irmão se tem fome. Mas se espanta com a mãe já na beira da rede falando baixo. — Alfredo, Alfredo, diz para ele que lá no armário tem carne assada e arroz e que ficou leite no bule. Pergunta se quer um chá, que vou fazer. Vai dizer logo, anda. Não quis a carne nem o leite. O chá podia ser mas disse a Alberto que estava se sentindo bem. A chuva escorre e o sono faz Alfredo ver uma grande cidade cheia de navios, trens apitando, lojas soltando balões, meninos andando em pernas de pau como Joaquim Leio andava em Cachoeira. Eutanázio sabe que ficará acordado a noite toda com as dores e o torpor em que está, como se tivesse rolado duma ribanceira na lama. Major Alberto lembra ainda aquela manha em que Eutanázio apareceu com Dionísio carregando a mala. Tinha se despedido da livraria em Belém porque o patrão não lhe aumentara o ordenado. Era o melhor encadernador da casa. Viera a Cachoeira para [84] descansar. Ficou. Major danou-se. Então, 42 brigar com patrão? Mas com Eutanázio tudo era impossível? Como Major tinha um conto de réis guardadinho, foi atrás do solo do Mariano e montou com este uma taverninha. Eutanázio entrou como caixeiro. Dois meses depois os fiados assombravam. O sócio sem explicar-se, e Eutanázio sorria indiferente. Major perdeu dois contos de réis na maciota. — Primeiro um conto. Depois outros [e] dois contos inúteis foram-se por água abaixo — resmungou Eutanázio, esquecido dos fiados que fizera e da sua indiferença no negócio. — Dois contos inúteis. Se papai me desse eu sabia aproveitar. E Major justificava-se: — É que cada indivíduo tem o seu tino, a sua queda. — Papai tem queda, sim. Caiu no comércio. E Eutanázio continuou a bocejar, enfastiado. Foram apenas dois anos de encadernador e o resto foi a sua vagabundagem solitária, ora em Ponta de Pedras, ora em Muaná com a tia no tempo em que as irmãs estavam em Belém. Em Cachoeira, a princípio, andou fazendo uns versinhos para a senhorita Laurenciana, filha do Coronel Mendes, da Mãe Maria. Tempo de festa da Conceição. Tiração das argolinhas. Mais de quarenta cavaleiros. O arraial cheio. Corrida de cavalos. A vitória do cavalo Champanha do Janoca. Major entregou o prêmio fazendo a apologia das corridas de cavalos. Depois é ainda o Champanha o vencedor na enfiação das argolinhas. Laurenciana se apresentava no largo ricamente vestida, gastando jóias, ao lado do pai. Tinha uma simpatia pelo poeta. Achava os seus versos lindos e se não amava Eutanázio tinha por ele uma visível simpatia. Laurenciana torcia pelos cavalos de seu pai, acompanhava a procissão da Santa montada num castanho luzidio ao lado do Coronel Mendes. Eutanázio ia manufaturar os seus versos e um dia saiu uma poesia dele no O Malho, dedicada a Laurenciana. Laurenciana embarcou para Belém e uma tarde chega a notícia para Eutanázio de que tinha seguido para Recife. Ia ser freira. Major reclamava com D. Amélia o exagero das contas no Abifadil, a falta de regra nas coisas. Fazia uma larga consideração a [85 respeito da economia doméstica, e D. Amélia verificou que não era só ela que tirava mercadorias do Abifadil. E partiu para a taverna: — Olhe, seu Jorge. O que Eutanázio for tirando, o senhor ponha numa nota à parte. Então se descobriu que a conta aumentava porque Eutanázio andava namorando a Mundiquinha da rua das Palhas. A mãe de Mundiquinha se queixava da carestia, da barraca precisando de palha nova, do companheiro que se largando para Maguari nunca mais deu sinal de vida. Seus irmãos trabalhavam nas fazendas como uns cavalos. A velha rogava pragas contra o seu reumatismo, ia fumar na rede e dizia: Seu Eutanázio, o senhor, um branco, agora vi se ocupá em conversá com a gente... Mundiquinha ficava receosa de Eutanázio, acesa no seu desejo e na repulsa. Eutanázio era feio e azedo. E ele começava a se arrastar também no seu desejo como um sapo e como se aquilo fosse uma maneira de sofrer, de se castigar. Ardiam-lhe os olhos e o seu sangue parecia fermentar em todo o corpo, chamando-a: Vem! Vem! Mas o desejo e o enjôo se misturavam nela. Ele era bom, mas por que não tomara banho? A velha fez promessa a Nossa Senhora para o casamento. Seu Eutanázio lhe daria palha para cobrir a barraca, carne todos os dias, um nome à Mundiquinha. Mas Mundiquinha retraía-se. Ficava olhando para o dedão do pé, convencida de que não podia nunca se casar com aquele homem esquálido e soturno que se mexia na sombra como um bicho tapuru. A mãe de Mundiquinha 43 o que não fazia para agradar Eutanázio e o que não fez para convencer a filha! — Essa diaba, essa porquêra. Que é que tu é pra não querê... O rapaz gosta dela, dá as coisas e ela emproada! — Não e não! Eras daquele homem! E Mundiquinha fugiu com um vaqueiro para Sete-Peles. Depois Eutanázio se interessou pela Dadá que tinha umas sardas, uma próspera plantação de espinhas e como filha de siá Rosália, tinha um ar de quem vivia de Montepio, de alta sociedade. Mas o namoro não foi adiante. Eutanázio se afastou enjoado. [86] Da|dá mesmo [a] se aborreceu dele porque nem dançar sabia. Ele se esqueceu das sardas, das espinhas, da língua de Dadá. E no “Ensaios Literários”, secção que dirigia no Cachoeira, jornalzinho do Major Alberto, que durou um ano, publicou a poesia “Ponto Final”. Dr. Campos achou que era o “epitáfio”. — Tolices, Dr. Muita sarda e muita língua naquilo. E que espevitice... — E que espinhas carnais, menino! Que espinheiral, filho! Dadá continuou dançando quadrilha nos bailes da Intendência obrigados a carnê. Major Alberto, fardado de oficial da Guarda Nacional, farda que Dr. Batista, coronel da mesma Guarda lhe oferecera, era o par de honra da senhorita Dadá. Dr. Batista se entusiasmara mais com o Cachoeira quando viu a legenda escrita pelo Major embaixo do título: VITAM IMPENDERE VERO Mas Alfredo acorda com aquela cidade cheia de torres, chaminés, palácios, circos, rodas giratórias que lhe enchem o sonho e o carocinho. De olhos abertos para o telhado, pensa na sua ida para Belém. Seu grande sonho é ir para Belém, estudar. A única vez que esteve na cidade era ainda bem pequeno. Mas tem lembrança de tudo que viu. A cidade não se parecia com a que siá Rosália lhe contava quando vinha de Belém. Siá Rosália lhe trazia senhas de passagens de bonde. Eram vermelho-claras com as letras verdes. Embevecia-se olhando as senhas que siá Rosália lhe dava como se elas lhe contassem a maravilha dos bondes mágicos correndo pelos fios elétricos. Então a cidade para Alfredo era um reino de história encantada, toda calçada de ouro e com casas de cristal, meninos com roupas de seda e museus com muitos bichos bonitos. A cidade onde se fazia o Círio de Nazaré, o fatinho feito na loja, que seu pai lhe trouxe, o par de talher, os brinquedos raros e pobres que duravam uma hora. Tinha visto com os seus olhos não a cidade de siá Rosália mas a cidade da mãe Ciana, da Gualdina, do seu Ulisses, do Sevico. Mãe Ciana, tia da dona Amélia, era velha e meio gaga. Morava numa barraca escura de chão [87] cimenta|do, com uma espécie de saguão atrás onde lavavam roupa. D. Amélia, quando ia a Belém, se hospedava com a sua tia e Major Alberto morava em casa de sua irmã que tinha uma filha casada com o tenente Luiz Amaral, do Exército. Este tenente, nunca pôde conhecer, mas ouve se falar muito dele no chalé. Ainda ontem ouviu Major dizer para D. Amélia: — Eu já disse pro Amaral: pra você, basta estudar Direito Romano. Estude Direito Romano e vera. Sua mãe levou-o para aquela barraca distante, sem linha d bonde, sem passagem para automóvel, cheia de lama e moleque sujos empinando papagaios. O saguão lhe deixara para sempre lembrança do fedor do sabão, da roupa suja amontoada, dos sabugos de milho, das tinas cheias, da torneira sempre vazando, da ceroula e do lençol emporcalhado do Sevico que tinha obrado na cama. Era o filho de seu Ulisses, com mãe Ciana. Estava entrevado por extravagância, dizia sempre D. Amélia. Rolava na cama, de camisão, gemendo, gritando com sua mãe, fazendo manha, se 44 obrando. Sua mãe mimava-o sempre. Vendia papel de cheiro para comprar os remédios do Sevico. Seu Ulisses amanhecia na cozinha esperando o mingau que mãe Ciana mexia no fogão. À5 vezes saiam discussões entre os dois. Seu Ulisses, gordo e dando o nó na gravata, batia a porta e deixava a velha com a tigela do mingau na mão. Ficava chorando e por isso ralhava com todo mundo. Era velha demais, comparada a seu Ulisses e sempre trabalhando e acudindo aflita aos gritos e aos gemidos de Sevico. Contava que bonde não se inventara pra ela. Preferia andar a pé a cidade inteira a tomar um bicho daquele. E andava com o seu chinelo no pé, a cesta de cheiro e uma sacola. Major Alberto e dona Amélia iam ao teatro, aos cinemas, ao Museu, ao Bosque, aos mercados e Alfredo ficava em casa chorando que queria ir porque queria ir! Como não parasse de chorar, ouvia ralho da velha Ciana, grunhido logo sufocado pela sua tosse crônica. Uma noite, depois dos berros de Sevico na cama, Gualdina, filha da velha Ciana, gritou com Alfredo: Menino, te cala! Te cala porque senão... A barraca fedia a sabão, a água de sabão, a resto de defumação, a roupa suja, a sarro do cachimbo da velha e do seu Ulisses. Era escura e [88] úmi|da. Alfredo chorava. Sentia-se perdido naquela barraca, abandonado, quase certo de que sua mãe nunca mais voltaria. Gualdina veio do portão onde conversava com um homem e duas chineladas estalaram na bunda de Alfredo. O menino abriu o bico duma vez. Se lembrou de Lucíola, Rosália, Cachoeira. Seus gritos fizeram Sevico erguer a cabeça na cama e berrar que queria dormir, cala-te, diabo! E minutos depois, surge na sombra do quarto, de manga de camisa, as bochechas inchadas, os olhos saltados, o seu Ulisses, mastigando e arrastando, abafadamente, a voz: Se não se calar, se não fechar o bico, meu cãozinho, sou eu que dou, me ouviu bem? Ora bolas... Inda mais essa... Alfredo se embrulhou, submergiu num silencioso desespero, num medo, e ficou esperando sua mãe. Havia de contar tudo. Que direitos eles tinham para lhe fazerem aquilo? Sua mãe demorava. Nunca mais esquece a cara, as bochechas do seu Ulisses mastigando. E os gritos do Sevico. Ele queria ir embora. Embora. Deixar a barraca, sair daquele Sevico e daquele Ulisses. E já tarde da noite, ouve um rumor na porta, seu coração bateu apressadamente. Era? Era sua mãe? Uma voz vem do portão, uns passos chegam na porta, entram pelo quarto, era, sim, sua mãe! Alfredo pula da rede e se atraca com ela: Mamãe, me deram! Mas [Me] deram! Quero ir-me embora! Me deram! — Foi porque naturalmente você se fez de tolo, não? respondeu sua mãe com voz tranqüila, mudando a roupa. Sem compreender a resposta, Alfredo ficou desapontado, num silêncio. Por que sua mãe não brigou com Gualdina? Não reprovou seu Ulisses? E viu seu Ulisses rindo pra ele, na frente de D. Amélia e Gualdina comendo os doces que sua mãe lhe trouxera! Mas noutro dia sua mãe o levou para tomar a lancha. Era a liberdade, era Cachoeira. O enjôo do sabão, aquele cozido que a velha Ciana fazia, sebento e branco, a gordura e as bochechas do seu Ulisses, o grunhido da velha, as chinelas de Gualdina, a doença de Sevico, ficavam na barraca escura e má onde nem se podia ver os bondes, as lojas, nem a macaca do Museu. Voltou para Cachoeira sem ter visto a cidade de siá Rosália, nem a cidade de seus pais que viam teatro, cinema e muitos bondes. Para Alfredo a cidade era seu Ulisses esperando aquele [89] min|gau amarelo que mãe Ciana adoçava e esfriava. Era o Sevico de camisão, entrevado, se obrando na cama, era a velha Ciana fedendo a sabão, batendo roupa na tina, era a chinela da Gualdina n sua bunda, o peixeiro gritando, com o tabuleiro na cabeça — Olha a tainha e a pescada fresca! Quando for para Belém não quer ir para aquela cidade triste, cheia de lama, com meninos sujos, homens rotos e tisnados que 45 passavam carregados de embrulhos, com carrinhos de mão vendendo bucho, com uns velhinhos batendo na porta e estendendo a mão, uma carroça cheia de cachorros presos numa grade. Queria era ver o Círio, a Santa na berlinda, os cavalinhos, a montanha russa, o museu, queria ao menos ver os colégios e as livram onde se vendiam os livros de histórias maravilhosas que sempre desejava. Viu numa revista o retrato do Colégio Anglo-Brasileiro do Rio de Janeiro. E nele que quer estudar. Os meninos ali devem ser bonitos e fortes. A vista da praia e das montanhas leva Alfredo para uma viagem ao Rio onde estudará no Anglo-Brasileiro Ele precisa sair daquela escola do seu Proença, da tabuada, do “argumento” aos sábados, da eterna ameaça da palmatória embora nunca tenha apanhado, daqueles bancos duros e daqueles colegas vadios que todo dia apanham e ficam de joelhos, daquela D. Flor. O que o diverte na sua ida para a escola são os cajus que seu Roberto apanha de seu quintal e lhe dá quase todas as tardes. Depois o Anglo-Brasileiro o libertaria do que sempre tem: o seu paludismo, a lembrança das feridas que D. Amélia, sentada no chão, lavava com água boricada sob o olhar da Minu, curiosa. De vez em quando aparecem. A febre faz Alfredo mais agarrado à rede, às revistas, aos caroços de tucumã que joga na palma da mão. Com um carocinho daqueles imagina tudo, desde o Círio de Nazaré até o Colégio Anglo-Brasileiro. Todos os dias tem de ir levar u vale escrito com aquela letra miudinha do seu pai, ao mercado e trazer o quilo de carne. E todos os dias vê sentado junto ao primeiro aparador do mercado, a figura cansada de seu Cristóvão com os seus tamancos, a calça preta, o dólman de mescla já cerzido, a sua voz rouca e o tabuleiro de arroz doce que sua filha [90] Ma|riana manda vender. Alfredo gosta de comer daquele arroz doce com canela, que seu Cristóvão vende a 200 réis a latinha. Mas nem todas as manhãs tem sempre 200 réis. Alfredo volta com a figura daquele velho triste e magro, imóvel no seu banquinho junto do aparador. Quando vem com a pesada [da] carne enfiada no dedo, pelo aterro, vem sonhando com o colégio, com a sua viagem, com os seus estudos. Major Alberto continua indiferente ao seu futuro mas dona Amélia se queixa que Alfredo acaba se perdendo em Cachoeira. — Mas eu boto meu filho em Belém. Seu Alberto não se mexe, mas vai ver se não arrumo uma casa para Alfredo ficar... Só eu me resolvendo. Senão... Eutanázio fica de olhos abertos na escuridão da saleta. Irene podia aparecer para ele com todo o consentimento do seu corpo jovem e Eutanázio ficaria silencioso dentro da rede como ninguém. As vozes da casa e de seu Cristóvão acordam dentro de sua angústia como gritos num subterrâneo. Queria esperar uma paz que viesse depois da chuva e lhe desse aqueles horizontes vistos das janelas do chalé. Agora sua mãe podia vir, com aqueles cabelos longos que se derramariam sobre ele. Ele não dirá mais nada contra sua mãe. Seus olhos ficarão mergulhados naqueles cabelos espessos como dentro dum poço morno e profundo. Quer ficar assim extenuadamente de olhos postos no silêncio. Irene já estará dormindo? falando em sonho, como contam? Bita desejando mais do que nunca o seu noivo. Seu Cristóvão terá voltado. Eutanázio sente o peso do sujo no corpo, a vontade dum banho. Como dormiria, talvez, depois dum banho! Cristino deve estar com o violão debaixo do braço nalguma barraca da rua das Palhas. Quer que a chuva que cai em Cachoeira, nos campos, fique caindo toda a noite sobre ele como um sono. Que terá acontecido com Felícia? Por que o crucifixo não defendia Felícia contra o Juiz e Dionísio? Os arranha-céus estarão lá na sombra e Cristo nada fará por Felícia. 46 Seus olhos palpitam como duas aranhas na escuridão. Por que Irene o persegue assim, fatiga-o, esgota-o e mora dentro dele como uma larva crescendo? [91] O chalé é como um mundo de músicas distantes, de vozes que voltaram. A chuva não traz uma esperança para os desassossegos que estagnaram em Eutanázio como balsedos. O vento dos campos vem dos lagos, do sono dos jacarés nos pântanos, do vôo dos patos brabos nas baixas, do miado das onças rondando as malhadas. O chalé é como uma ilha batida de vento e de chuva. Irene vem através da chuva lhe trazer uma roupa macia, limpa, cheirando a roupa guardada em baú de mulata. Cheirando a cama arrumada, a carne de mulher saindo dum banho. Irene vem contar quantos cabelos brancos ele tem, quantos desesperos há na sua solidão. Irene, por que não atravessas a chuva, não vens correndo pelo aterro e pelos campos para embalar esta rede parada, acender um candeeiro na sala, e ficar em silêncio, como um anjo da guarda? As mãos de Eutanázio gelam com a chuva, com a falta de sono e de Irene. Tua voz, Irene, apagará a voz da chuva, a imagem de Felícia acuada entre o Juiz e Dionísio, a imundície da doença, os vagos e mórbidos desejos noturnos, as palavras do Major Alberto: — Morre, diabo! Vagabundo! Que o teu corpo fique ausente mas tua voz sem riso, a tua voz pura, vagarosa, chegue trazendo uma paz, um sono, a madrugada. [Como me sinto miserável, Irene, como me sinto miserável! Foi uma frase que ficou se debatendo no seu pensamento. Não sabes como é esta solidão, Irene, não sabes! Me sinto sem ossos, sem sangue, sem dignidade, sem a própria consciência de minha indignidade, talvez.] Felícia devia estar ao menos aqui junto da rede. Ao menos Felícia era como ele: não tinha dentes, cheia de marcas de feridas, a miséria, os braços cheios de titingas, o sorriso mono. Felícia, por que me apareceste tão casta, tão cheia de Cristo naquela noite? Como desejaria ver na tua fome a presença de Cristo. Mas aquele crucifixo era inútil, não havia nele nenhuma presença divina, não havia senão os olhos de Felícia que o humanizavam. Ele só era grande porque estava humanizado pelos olhos, pelas chagas, pela presença de Felícia. Felícia. Viu Felícia menina brincando de roda com os meninos de Cícero Câmara. Corria pelos campos atrás de muruci, de pegar passarinho, apanhando pixuna e empurrando montaria a vara no tempo da enchente na vila de baixo. Sob a chuva pegava os pintos de sua mãe com um paneiro, enxotava o porco da [92] cozi|nha, tomava banho. Na beira do rio lavava o saco do café ou abria barriga de peixe, cantando. Os joelhos sempre tuíras, as mãos cheias de golpes, nem sinal de seios e os homens com cambadas de peixes, com tarrafas nos ombros, com paneiros nas cabeças, remando nas montarias, passavam por ela, indiferentes. Felícia, uma vez, saiu na procissão vestida de anjo. Era a pastora perdida das “Filhas da Galiléia” do mestre Miranda no tempo de natal. Mas outras chuvas caíram, os campos encheram, os gogozeiros carregaram-se de frutos, o Arari transbordou, os jacarés vinham roncar debaixo das casas e Felícia pela primeira vez sorriu com certa intenção para o Teodoro que, na cabeça da ponte do Delfim, pescava piranha. Uma noite, o namorado arrematou no leilão de S. Sebastião um bonito pão-de-ló para os dois. Quando chegaram na porta da barraca, sentaram no batente e comeram o pão-de-ló como dois ladrões. Ela embrulhou um pedaço para sua mãe que dormia. Ele deu-lhe um beijo que tinha o gosto do doce. Depois foi a tentativa de fuga com um soldado de policia. Ela foi esperar de montaria no meio do rio a canoa Perseverança onde o praça Vinte e Quatro 47 baixava para Belém. As águas corriam. Os tripulantes vaiaram Felícia. O soldado se escondera debaixo do toldo e Felícia voltou para a barraca, com a trouxa no braço — lembra-se que nessa noite também perdeu um broche que D. Amélia lhe dera — e caiu nas ripadas de sua mãe, siá Marocas. Nessa noite seu pai chegava cambaleando. Os bigodes do Sousa pingavam, o seu grito fez Felícia erguer a cabeça e sustar o choro. Que era? Sousa gritava àtoa. Estava dentro dum porre como [n]uma sagrada atuação. Havia nele qualquer coisa de grande e de puro naquela roupa imunda, no rosto inchado, nas mãos molhadas e nodudas. — Hum! Te tiraro o sangue, não! Tá dentro do sangue isso. Tinha de se dar. É do sangue. Não? E ela correu para o quintal debaixo da chuva, como enxotado corria o cão Tigre toda vez que se aproximava do prato de peixe do irmãozinho de Felícia que comia no chão. Sono, vem. Eutanázio espera a madrugada. O frio é maior. [93] Irene não vira trazer a madrugada e à sereno já deve estar branqueando os campos, cobrindo a vila. João deve estar se acordando para tirar o leite. Os bezerros berram com fome. No ingazeiro a maria-é-dia começa a piar. IV DIA CLAREOU EM CACHOEIRA Antes mesmo de clarear, Eutanázio levantou-se para ir beber jacuba de leite no curral atrás do chalé. Já o João principiava a tirar leite da Merência. No curral estavam a Branca Malhada, a Alvaçoa, a Jubosa, a Orgulhosa. Todas as vacas tinham nome. Os rapazes botavam nome das moças nas vacas novas. Era a Irene, a Angela, a Didi, a Porcina. Levavam bem cedo a sua cuia de farinha e se enchiam no chibé de leite. João levava para o chalé uma panela de barro, apenas pelo meio, de leite. De tempo em tempo, Major recebia de Belém o que ele dizia a boa encomenda. Era a filha do Danton, seu amigo, que vinha passar uns meses no chalé para tomar leite. Todas as manhãs, a moça da cidade, loira e pálida, descia para o curral com o seu copo e uma toalha no pescoço. No inverno, o curral era um charco. O chiqueiro dos bezerros, um lamaçal. João, com lama até o meio da perna, assim mesmo tirava leite. O seu maior trabalho era com a Orgulhosa, uma vaca do Goiapi, nova e braba, de cabeça empinada. Precisava amarrar as pernas para tirar leite da bicha. João, todas as tardes ia meter o gado no curral. Um gado manso que pastava por perto. Prendia os bezerros e soltava as vacas. Dava-lhes miolo de cuia para terem muito leite. Major, que era assinante de Chácaras e Quintais, aconselhava o sal. João curava as bicheiras de bezerro e fazia a ferra com ajuda dos rapazes da vila. Major se danava com o povo todo da vizinhança tomar leite e não dar um vintém que fosse. Os meninos iam todas as manhãs, com cujas, tigelas, garrafas. — D. Amélia, pra senhora mandar um tostão de leite pra mamãe que está com Felício doente. — D. Amélia, para senhora, se tem leite, mandá uma cuia pro papai. [94] — Madrinha, mamãe manda lhe pedi um quartilho de leite fiado até amanhã. Se João não cobrava, D. Amélia muito menos, Major passeando na varanda reclamava: — Mas nem para o pão? Nem para pão? Nem para pagar o pão? Tanto leite e não dá nem para pagar a padaria? Esta casa e o seio de Abraão, não há dúvida. Nunca vi! Desse jeito está fresco! Pago quinze mil réis para o João e o leite que sai não põe para 48 dentro de casa um tostão. Isso é mais do que abuso. Amanhã sou eu que vou fiscalizar esse negócio. Sou eu! Se uma vez por outra se matava uma rês do gadinho, era carne para toda a vizinhança que D. Amélia mandava. — Acabas dando tudo! Tudo! És a D. Misericórdia — resmungava, impaciente, Major Alberto com os catálogos na mão — És D. Misericórdia. D. Amélia não tinha jeito de estar negando e a pobreza de junto do chalé comia nem que fosse para tapar um buraco de dente. D. Amélia tinha uma especialidade consigo: sabia curar bem uma garganta. Metia o dedo enrolado de algodão, ensopado de mel e limão assado na goela dos meninos e acabava a inchação e a dor. Tinha um dedo benzido. D. Amélia atendia os moleques pelas barracas próximas que pitiavam a peixe e a poeira, onde os quartinhos lançavam um bafo crônico de febre. Eram amarelinhos, barrigudos, pedinchões. D. Amélia dava purgantes, sobras de pano, conselhos, carões e comidas. Mas não podia acabar com a pobreza. Major dizia: Te convence duma verdade. Quanto mais tu deres mais querem. Te convence disso. Gente mais incorrigível do que essa nunca vi. — Os pequenos sabiam comer traíra inteira com espinha saindo pelos cantos da boca. Pirongós de farinha, cuiadas de chibé, terra, sabão, tabaco. Comiam a se fartar, quando havia, com uma fome crônica, tendo ataques de vermes, cabeludos e viciados. Alfredo não gostava desses moleques. Brincava pouco com eles. Tinha um ar de menino branco. Dava sobras para os moleques, com desdém, negava as coisas, via que eles eram como bichos. — Olha, pequeno, deixa de pedir, vai-te embora! [95] — Farinha não tem! Era preciso D. Amélia estar ralhando. Alfredo era metido a fino, falava de ombro, o contrário do gênio da mãe. Pequenino e já ruim, dizia D. Amélia que fazia era distribuir do que tinha com os pobres, desde a roupa usada até a colher de açúcar que a velha Marcionila sempre mandava lhe pedir. Muitas noites, saía com o farol na mão, atravessando lama ou na montaria em tempo de inverno, a chamado, para dar uma lavagem, aplicar um sinapismo, ajudar D. Maria dos Navegantes num parto difícil, salvar uma criança que já estava com a vela na mão. Eutanázio bebe a jacuba de leite. Major Alberto na janela, depois do café, passa a vista nos seus catálogos, antes de ir à Intendência. — Alfredo, vai ver quem bateu. — Que é? — Ma... ma... mãe... Man... dou... que... qui... qui... — Qui, qui, o que, pequena? — Pra... pra... ela empres...tá... um... sa... co... deee... faaa... riii... nha. — Qui, qui, qui, não tem! A pequena abria os olhos remelentos. A sua cara era encardida e gasta. Menina ainda e parecia uma velha. Gaga, quase todos os dias vem com aquele saco sujo, de pano, que D. Amélia enchia de farinha. — Mas, mas... — Me dá a vasilha, anda. Este... Mas que saco mais sujo! Major vê a menina esfregando os olhos, ao pé da escada e o saco que Alfredo suspendia com repugnância: Isto já é um vício! Não somos ricos, não. Não somos! E preciso acabar com esse seio de Abraão! Um vício, um vício! Agora também o Gomes pra-o-que que botou um nome desses na afilhada. Se nem ao menos lhe dá farinha... Alfredo imita a gagueira da Marialba e D. Amélia vai buscar farinha. Marialba tudo faz para agradar Alfredo. Lhe traz mangas, uma cuia de muruci, uns tucumãs, qualquer agrado. Até um carocinho liso de tucumã que ralou na laje da porta do velho 49 [96] Ara|guaia, presente que Alfredo não gostou porque era segredo a sua história com a bolinha. Jogou fora na presença da menina o carocinho. Marialba só fez foi esfregar com a costa da mão os olhos remelentos e coçar as eternas corubas do braço... Mas Alfredo sempre imitava a sua gagueira, negava a farinha, mandava que fosse pedir ao bispo. Major Alberto bebia com satisfação o vinho de muruci que os moleques, fedendo a peixe, vinham trazer para D. Amélia. — Que pitiú que tu tens, Marialba, te lava! — A menina sorriu e recebeu com timidez e susto o saco de farinha. Deu um no na boca do saco e desceu apressadamente a escada, com as suas pernas secas, o saiote de retalhos, a cabeça cheia de piolhos. Major vai de gravata e tamancos para a Intendência. — Mas seu Alberto, calce o sapato. Então de tamancos? — Ora, então... — Mas assim, não! — Manda Alfredo buscar o vale na Intendência. Hoje deve chegar o novo Intendente. O interino. O Dr. Pedro Segundo. Major sai com a gravata e os tamancos, rindo. Mariinha e Eutanázio conversam na saleta. — E tu faz mesmo um navio pra mim? — Faço sim. — Quando tu faz? — Eu faço. Espera que eu faço. — Mas quando? Entra Rodolfo que vem compor os rótulos da cachaça do Félix Grande. — Rodolfo, papai disse que é preciso fazer novo rolo e não te esquece de compor talões da Intendência. Corta o papel. Rodolfo não responde e brinca com Maninha. Vai à mesa, toma uma xicrinha de café e conta conversas de Cachoeira para D. Amélia. Daí a um minuto, João aparece. — Mas sabe o que aconteceu, D. Amélia? — Espera, João, eu digo para ela. O noivado da Bita foi-se... — Certo, Rodolfo? Mas quando? Me conta! Mas meu Deus! Eutanázio sai apressadamente no rumo do aterro. [97] Rodolfo sai rindo da mesa para as caixas dos tipos. É o único tipógrafo na vila. Filho de siá Rosália, Rodolfo está agora com uma complicação na sua vida. Sua namorada apareceu com um quisto na barriga: D. Maria dos Navegantes afirma que é gravidez! Mas a família da Constança rebate que é um quisto! Constança vai a Belém para consultar os médicos. Na casa de D. Duduca, do seu Cristóvão, provam que é filho e contam os “cinemas” do namoro de Rodolfo com Constança. Nhá Lucíola sai para a rua e conta que andavam enfeitiçando seu irmão para ficar agarrado naquela família das mais ordinárias de Cachoeira. Se a sua mãe existisse nada acontecia daquilo. Triste perder uma mãe! Lucíola se queixa para D. Amélia. D. Amélia esfria com as conversas. Tem medo que sua casa vire casa de Duduca ou casa de seu Cristóvão. — D. Amélia, esta terra... Se eu pudesse ir-me embora... O que me pega é a sepultura da mamãe. Mamãe infelizmente se enterrou aqui... Ora, siá Rosália tinha varias historias confusas na sua vida. Ia todos os meses a Belém receber o dinheiro de seu montepio. Se metia pelas casas alheias durante uma semana, quinze dias, um mas, sem fazer a mínima despesa, sem arredar uma cadeira como se os donos da casa tivessem obrigação de hospedá-la e tratá-la bem. Saía ainda falando mal da família, descobrindo misérias da casa onde se hospedava. Vinha depois contar para Alfredo a beleza da cidade que ele não viu. Embarcava sempre com a Dadá e deixava Lucíola na velha casa que tem na sala um quadro de S. Expedito, um de S. Sebastião e o velho relógio grande, fatigado, contando as horas durante um dia na semana. Lucíola ficava às 50 voltas com Didico, o tocador de pistom, amo do boi Caprichoso, Rodolfo, o tipógrafo e oficial de justiça, Ezequias, comerciante, assombrado com a sífilis e a guerra, campeão de dama na vila e o primeiro que lia jornal novo chegado de Belém. Eram os três irmãos falados de Cachoeira. Siá Rosália tinha o seu ar de gente fina. Mostrava desdém pela gente baixa, escárnio pelas mulheres públicas, se gabando de suas intimidades com gente rica e branca. Contam que o velho Saraiva assinou a herança do montepio na hora da morte. Este montepio dera o que falar em Cachoeira. Era a única [98] criatura em Cachoeira que recebia montepio do Estado! D. Dejanira se ralou de inveja desse montepio tão falado. — Como foi que Rosália arranjou essa herança com que acabou de criar Ezequias, Didico, Lucíola, Rodolfo e Dadá? Como foi para seu Saraiva, em Belém, deixar afinal esse montepio para Rosália? Trinta anos de lenta e longa burocracia. Naquele montepio ressecaram subserviências, tédios, velhos ócios melancólicos, vagos sonhos de acesso, atrozes perspectivas de demissão, desânimos, reumatismos, minutas de informações e de ofícios, tudo ali estava afinal feito montepio para a senhora Rosália. Casara-se com ela na hora da agonia. Era o destino de seu Saraiva na vida. Fazer um montepio pra Rosália. E o velhinho morreu vagarosamente como se já fosse habituado a morrer, como se estivesse assinando o ponto na repartição. As velas, o Juiz, o padre não veio a tempo, o escrivão, um grosso livro na cadeira, um copo com um pouco d’água, o cheiro das fomentações, a atmosfera de arteriosclerose e siá Rosália limpando os olhos. O velhinho deixara o montepio. Isso era uma história que enchia de muitas confusões a vila de Cachoeira. Siá Rosália tinha obrigado o pobre do velho já moribundo a assinar o papel do casamento. Assinar? Alguém assinou por ele. E siá Rosália viera afrontar Cachoeira com o montepio e todos os meses punha o chinelito nos pés, vestia a saia de casimira e o cabeção de linho com peitilho rendado e embarcava na lancha Lobato para Belém. Dadá destampava a caixa de chapéu e soprava a poeira do seu “piniquinho”, como dizia Major Alberto. — É. É. Piniquinho na cabeça, fon-fon na porta e a barriga roncando... Siá Rosália dizia: — Vou ao Tesouro, vou à Fazenda — de boca cheia. E Cachoeira acreditava que aquele Sr. Saraiva só podia ser um santo deixando para D. Rosália uni montepio que sustentava os filhos que não eram dele. Nem um filho era do velhinho, O velhinho tinha sido apenas o predestinado do montepio. Os outros seriam os preferidos pela fome de maternidade de siá Rosália. [99] Exer|ciam a função de lhe dar filhos como o velhinho tinha o encargo de lhe deixar o montepio. Enquanto vários se incumbiam dos filhos, o Sr. Saraiva se encarregava burocraticamente do futuro desses filhos. D. Rosália tinha portanto a preferência e ele a previdência. Tudo em perfeita e santa harmonia universal. E correram os anos lentos e bons para D. Rosália. Didico, Ezequias e Rodolfo cresceram em Cachoeira como rapazes da sociedade, vestindo fatos H. J. e casimira inglesa, fazendo cordões joaninos, bailes só para família, conquistas galantes e alguns filhos clandestinos que D. Rosália não quis abençoar. Lucíola com os seus compridos cabelos e a sua comprida cara de solteirona teve um destino, ao se desiludir por completo dos homens e dos bailes na sociedade: dedicar-se ao menino Alfredo, com uma paixão de mãe, que aborrecia D. Amélia. E Dadá, depois de tantos desastres de amor, de tantos bailes, tanto carnaval e tanta viagem a Belém, tantos suspiros sobre os romances de Escrich e sobre o peitoril da janela ao luar ouvindo Didico tocar violão e Zé Ramos cantar, ficou cultivando, merincoreamente, as suas espinhas carnais, os seus cravos, as suas sardas, as rugas e o seu mau juízo sobre os homens, cantando no coro da Igreja, copiando receita de 51 doce e chorando o montepio perdido depois da morte de sua mãe. Ezequias com o seu comercio começou a imaginar que tinha três cruzes de sífilis. Tomava todos os remédios. A sífilis tomava conta dele. Qualquer tristeza, qualquer dor de cabeça, qualquer moleza era da sífilis. E tempos depois do rompimento do noivado com Bita, ao encontrar-se com ela, não pôde deixar de suspirar e dizer. — Você sabe. A sífilis está me acabando. Vivo perseguido por ela. Ela está para atingir o coração. Toda Cachoeira sabia que Ezequias andava impressionado com a morte. Cachoeira não sabia bem como foi a vida de siá Rosália, em Belém. Contavam que servira como criada no Teatro da Paz. Ela dizia sempre, com a voz cheia: — Eu, eu vesti muita artista. Cada roupagem! Era ver uma princesa. Fui camareira do Teatro da Paz! [100] Camareira do Teatro da Paz! pasmava Cachoeira. Os conterrâneos de D. Rosália achavam demasiado, até mesmo irritante, que ela chegasse a ser camareira do maior teatro do Norte do Brasil! Não sabiam ao certo. Uns viam-na em Belém, com a cesta debaixo do braço, a caminho dos mercados. Outros cansavam de ver siá Rosália, ama-seca, vestida a rigor, empurrando carrinhos de bebês ricos em Batista Campos. Viamna no pé dum charão de doces no arraial de Nazaré, abanando as moscas com um pano. Vendia tacacá no larguinho atrás da igreja de Nazaré, no tempo da festa. Carregava trouxas de roupas na rua para casa do Coronel Soares, fazendeiro em Chaves. Era mulata alegre e festeira no Umarizal, devota do mastro do mestre Martinho, dançadeira de lundu, jogando entrudo na Antônio Barreto com os marinheiros nacionais. Virava muito mulato, soldado de policia e estivador no maxixe, na São João. Andando atrás dos bois-bumbás nas noites de encontro no Umarizal e Jurunas. Ia ao cais esperar navio do Acre que lhe trazia seringueiros cheios, balateiros com os milhos. Tinha o seu espartilho, as suas camisas de renda, as suas voltas, as suas chinelas de veludo, os seus bereguendéns. D. Rosália tudo isso fizera e o povo de Cachoeira tinha de tudo isso uma vaga informação. Falava mais por palpite. Mas em Cachoeira a velha mulata, viúva de seu Saraiva, não se cansava de repetir: — Fui camareira do Teatro da Paz. Conheci o maestro Carlos Gomes, artistas de Portugal. Vesti Lucíola Simões. Ela só não me levou para Lisboa por causa do Saraiva. Saraiva que não deixou. De luto, com os filhos, D. Rosália voltou para a sua terra, de vez. Belém já não lhe servia mais. Tinha acabado a sua mocidade. E D. Dejanira falava: — Viúva! Viúva! Como viúva? Se cada filho tem um pai? Só aqui em Cachoeira, toda vez que vinha para as festas do fim de ano, arranjava um graúdo fazendeiro para lhe dar um. Viúva! E seu Cristóvão, com a sua voz sem dentes, se levantava da cadeira. — Dejanira, te cala. Te cala. Te cala. Pra que estar falando assim? — Te cala, te cala! Tu, seu sem vergonha, era dos que [101] anda|vam enrabichado com ela! Viúva! Ah! montepio mal dado. Não há justiça mesmo na terra! D. Rosália Saraiva morreu já no fim da gripe. Alfredo se lembrava da vila sob o peso dos sinos toda hora dobrando a finados. Era a Espanhola, os enterros atravessando o campo para o cemitério, era a morte em Cachoeira. Seu Leio, o sineiro, tinha a cara dos dobres a finados. Era surdo e batia os sinos espalhando em Cachoeira o terror e o pesadelo. Alfredo acordava à noite com aqueles sinos dobrando. Era impressão. Os sinos alucinavam. Velho Leso surdo, pouco se importava que os sinos invadissem as 52 casas, matassem mais depressa os doentes e adoecessem os sãos. Procissões cruzavam a vila. As preces tristes subiam para o céu morno e cheio de estrelas tranqüilas. Alfredo, menino contemplativo e melancólico, se enchia daqueles sinos, daqueles defuntos seguindo pelos campos estorricados e queimados, daquelas preces. O pesadelo dos sinos fazia Major Alberto exclamar, irritado: — Parem com este sino! Parem. E isso que chama ainda mais a morte! Mas velho Leso almoçava e jantava ao pé dos sinos. Tinha gorjetas. Era preciso sustentar a sobrinha e os sinos tinham que dobrar com fervor e compaixão pela alma dos defuntos que a Espanhola levava. E nos campos, naqueles horizontes pesados de fumo e de fuligem do fogo ateado, havia uma desolação, um terror, o dobre dos sinos, o gado mugindo e chorando rastro de rês morta. Alfredo tinha medo daqueles sinos e o velho Leio parecia uma visagem. A guerra mandara a Espanhola para Cachoeira. E Doutor Campos, vermelho de cachaça com limão, bradava: — É a influenza em Cachoeira e o bolchevismo nas estepes! Eutanázio, com a língua de fora, andava sempre, sem medo da Espanhola, ajudando o pessoal de seu Cristóvão que perdeu o Sinhuca, filho de D. Tomázia, e o menino Bento, cria do velho. Eutanázio não se impressionava com os anos, nem com as preces, nem com o velho Abade, suando e barbado, exclamando: — Não posso mais. Já acabei com toda a madeira da vila. Não posso com tanto defunto. Eu morro. — O homem estava transfigurado, lívido, os olhos esbugalhando, bebendo cachaça com [102] li|mão, a vasta cabeça cabeluda, as orelhas chatas e a eterna coceira nas costas. — Não posso mais, Eutanázio, não posso mais! Os defuntos pobres iam mesmo nas redes velhas, nas esteiras. As covas já nem eram de sete palmos. Enterravam dois, três, numa cova. Os heróis — coveiros da gripe — foram Gaçaba, Dionísio Souza, Maguá, Dionísio, bêbado, enterrava. Abria covas pingando suor e cachaça. Alfredo via as velas acesas na procissão. As vozes soturnas como se fossem de defuntos voltando dos campos. Alfredo queria fugir daquela Espanhola, daqueles sinos, ir para Ponta de Pedras, para a cidade de siá Rosália, para o Lago Arari. Major Alberto, na janela, com os olhos nos campos, exclamava: — Velho Ribeirão, afinal, ganhou um bocado de dinheiro. Já no fim da gripe, quando Rodolfo, metido numa casimira preta foi pedir ao Major Alberto a cópia do convite para o enterro de sua mãe, Major olhou para todos os lados a ver se tinha mais gente que o escutasse e fez primeiro o seu habitual psiu! psiu! para que prestassem atenção: — Vocês não sabem, psiu! psiu! Ouviram? Não sabem o que foi a doença da tua mãe, Rodolfo? Do que todo velho geralmente morre... Nunca viu falar, psiu, psiu, de arteriosclerose? Pois a tua mãe morreu disso. De arteriosclerose. Rodolfo baixou a cabeça, com o seu gesto mecânico de enrolar o bigodinho e Alfredo ficou com os olhos no pai. D. Amélia, com as mâos no cabo da vassoura, olhava para a casa de siá Rosália. E Eutanázio, sentado, examinava que não andavam bem da sola e do salto, os seus sapatos. Os sinos dobravam. Alfredo foi para baixo da casa ver o seu gado de caroço de tucumã que prendia no antigo tanque de galinhas. Arteriosclerose. Siá Rosália tinha morrido de doença com nome difícil. Alfredo ficou à beira do tanque, pensativo. Siá Rosália lhe trazia as senhas da cidade. Quando o fogo corria nos campos e aparecia, nos encobertos, longe, um clarão alto, D. Rosália apontava para Alfredo que escondia a cabeça no colo de Lucíola: — Olha Fredinho. Aquilo não é fogo. Aquilo é a iluminação da cidade. Bonito, não? 53 [103] E Alfredo, maravilhado, contemplava o clarão na grande noite nos campos. Ali estava todo o seu sonho da cidade de bondes elétricos, arraial de Nazaré, largo da Pólvora, as lojas de brinquedos, a Torre de Malakof, das senhas vermelhas. Aquele clarão chamava-o. Era o seu sonho de viagens. Alfredo vivia sonhando e desejando. E ouvia de seu pai que siá Rosália morrera de arteriosclerose. Com ela morria a cidade, apagava-se o clarão, as senhas e que queria dizer arteriosclerose? Por que siá Rosália não tinha morrido de gripe? Não foi ao enterro. Ouvia da janela os gritos de Lucíola. Uns gritos dobrados; Lucíola devia estar fazendo careta com aqueles gritos. Dadá naturalmente com ataque. Viu o caixão sair. Os gritos de Lucíola sacudiam-no todo. Alfredo saiu da janela e se meteu na rede. Parecia que Lucíola também morria, desaparecia para ele. A morte era sempre aquele caixão preto, mal feito, do velho Abade, eram aqueles gritos de Lucíola, aquela palavra dita com um certo e misterioso tom por seu pai, a arteriosclerose! E Ezequias, Didico, Lucíola, Rodolfo e Dadá ficaram na terra e na língua do povo sem o montepio. D. Dejanira se aliviou do peso daquele montepio. — Arre, dizia D. Duduca, talhando uma blusa para Henriqueta, arre, que agora D. Dejanira descansa de falar do montepio da finada Rosália! Velho Araguaia, administrador do cemitério nesse tempo, com os seus olhinhos piscando, amparava o ombro na porta e cutucava o chão com a tatajuba: — A lei como sabes, Duduca, não deixa enterrar ninguém sem licença. Os que não pagam são considerados mendigos. Eu permiti o enterramento de Rosália sem pagar. Eu gostava dela. Falaram muito dela em Cachoeira. Eu nunca falei. Dispensei o imposto. — De qualquer forma foi uma infração à Lei, 6 Araguaia. Considere isto, retrucou o velho Gonzaga. — Mas meu amigo: é preciso saber que há uma palavra no dicionário chamada EQÜIDADE! — Sim, meu ilustre amigo, no dicionário, mas na Lei, na Lei de Meios do nosso Município de Cachoeira, essa palavra não existe! [104] — Você falou aí em infração, Gonzaga. O amigo, tão conhecedor das leis, sabe distinguir a palavra infligir e infringir? — Ora, Araguaia. — Pergunto, sabe? Diga! — Araguaia, não sou menino nem abaeteuara que você logra, meu velho amigo! Perguntava eu se na Lei do nosso município a palavra, o termo, o vocábulo EQUIDADE existia. E você com sofismas! — Mas diga! — Afinal, interrompe D. Duduca, virando o pano e com alfinetes entre os dentes, — afinal... tirou os alfinetes, deixou o pano no banco e dirigiu-se à janela para cuspir. — Afinal estávamos falando a respeito da morte de siá Rosália. Que se diga a verdade; cortamos a pele dela um bocado. Deus te tenha por lá. Estamos falando que D. Dejanira deve descansar desta vez a língua sobre o tão falado montepio da finada. Que acham vocês? — Bem... Eu... Que acha você, Araguaia? — Meus amigos, fico na dúvida... Não sei. São coisas tão difíceis essas de decifrar! — E você, seu Gonzaga? — Homem, eu sou um bocado descrente da perfeição humana. A humanidade é rasteira. E depois sou um simples oficial de justiça. 54 — Que tem isso com a conversa! Estão todos variados hoje... Será por causa da morte da D. Rosália? Foi assim que se despediram, na casa de Duduca, da finada Rosália. Alfredo passava tardes inteiras na casa da siá Rosália, debaixo dos mimos de Lucíola. D. Amélia viu foi Alfredo ficar cada vez mais tolo, emperreado e chorão. Era Lucíola. O mundo era para aquele menino. Lucíola, dizia D. Amélia, mudava-se num vicio para Alfredo. — Ora, me dê o Alfredo, D. Amélia! Me dê, D. Amélia, ele para mim criar, sim? D. Amélia sorrindo só fazia passar as mãos pelos cabelos do [105] filho. Dar o filho quando, a bem dizer, já o pariu duas vezes, salvando-o do poço, pensava. Mas em casa, junto do Major, se aborrecia com a impertinência de Lucíola. Que era que estavam pensando? Dar Alfredo para Lucíola? Se não viam logo! Queriam por força encher Alfredo de titi de galinha, ele que já andava cheio. Que criação podia aquele pessoal dar para o menino? Mas Lucíola prendia-o, fazia camisinhas, sungas, comprava brinquedos, se jogava no chão lhe pedindo para pular em cima dela e Alfredo gostava. Fazia ele dormir com cantigas bem macias de adormecer. O menino admirava os seus cabelos grandes escuros que ela estendia sobre ele como uma sombra. — Me dê Fredinho. D. Amélia! Ora, me dê ele! — Mas menina, te casa, arruma um tu mesma! Da feita que arrumou um não precisa estar pedindo dos outros! Lucíola fingia de desentendida e insistia: — Dá, sim, ele? Não quero senso ele. A senhora não sabe o que é a gente criar amizade numa criança, D. Amélia. Se soubesse... — Ora, Lucíola. Me admira que tu digas isso para a mãe dele, muita inocência tua, na verdade! O menino ia para sua casa, embrulhado nos lençóis de Lucíola, dormindo. Lucíola ia deixá-lo à noite. Alfredo mijava nela, Alfredo botava berreiro para a frente, Alfredo tinha capricho, balbuciava pela primeira vez uma palavra, que graça, que revelação para Lucíola! O mundo tinha sido criado mesmo para Alfredo. Lucíola deixava a sociedade, o namoro, a modinha, a arrumação da casa, para se entregar, se dar toda inteira ao menino. Queria que o menino pedisse bença do S. Expedito, cruzasse as mãozinhas para pedir um milagre a S. Expedito. E levava o pequeno para as plantas de remédio de siá Rosália, as couves esmirradas da hortinha, o canteiro de jerimum. Iam até ao velho cajueiro à beira dos campos, olhando os tucumãzeiros que mostravam os cachos verdes e os periquitos que passavam em algazarra. Ia com ele pelos campos, na calma da tarde já sem sol, quando finado Pedro Amâncio tocava o gadinho do Major no curral, Didico chegava assobiando, com a tarrafa no ombro e uma cambada de acarás e Dionísio enchia do poço do moinho parado a última lata d’água para o banho do doutor Campos. [106] Lucíola chamava as meninas do Cícero e do Silveira para, mesmo à tarde, brincarem de roda, com que se prende o touro, de argolinha, do que ofício dá pra ela, mando tiro, tiro la.. Era para o menino ver e bater palmas. As meninas montavam nos galhos de algodoeiro brabo feito cavalos e tiravam argolinha. Lucíola varria a frente de sua velha casa para Fredinho. Os homens podiam passar, as moças podiam aparecer com vestidos novos e livros de modinhas. Didico podia trazer um novo cantor para acordar os cachorros do Salu na hora da lua. Lucíola tinha encontrado o seu mundo, a sua compensação, o seu Fredinho. Guardava ainda as camisinhas, os cagões, um cueiro, dois pensos de Alfredo, no fundo da mal... Tinha uma enfiada de carretéis de linha vazios que era o trem do menino rodando pelo soalho. Os choros, as zangas, as bobices, as travessuras, as má- 55 criações do menino ficaram embrulhadas nas dobras da saia de Lucíola. E Alfredo sem se saber porque se acostumava a chamar nhá Lucíola. Quando D. Prisca enxergava Alfredo e na presença de Lucíola imitava o menino: — Mamãe! ciá! Mamãe, ciá! Lucíola não gostava. D. Prisca tinha a mania de se intrometer em todas as coisas, dizia Lucíola. Quem tinha o direito de recordar todas essas coisas, de Alfredo, de reconstituir toda a infância de Fredinho, era ela, unicamente ela, Lucíola, porque lidou com ele mais, muito mais que D. Amélia (isso enraivecia D. Amélia que precisava Major Alberto dizer que era besteira estar se incomodando), ela sabia de todos os pequeninos nadas do menino, de tudo, de tudo! D. Prisca gostava de contar que carregou muito ele, que levou muita mijada dele, mas era mentira. D. Prisca podia contar isso era dos sobrinhos, dos negrinhos dela, dizia Lucíola. D. Prisca tinha dado quebranto nele. Quantas vezes siá Rosália não benzeu ele dos maus olhados de D. Prisca! Ninguém, a não ser Lucíola, tinha a autoridade e isso era o seu orgulho, a sua arte, a sua preocupação, pode-se dizer, poética, de contar para Alfredo, o seu já crescido Fredinho, as denguices que fizera. Ora, quem primeiro ouviu Alfredo dizer, [107] choramin|gando, apontando o dedinho para rua; Mamãe, ciá, mamãe ciá! tinha sido ela! Nem dona Amélia, nem D. Prisca, ninguém compreendeu que o que o menino queria dizer naquela tarde era passear! Queria por força passear! E Lucíola levou-o pela mão, apontando os cavalos que pastavam, desviando o menino de Dionísio que vinha cambaleando, comprando no Salu um saco de doces e um Papai-mamãe. Lucíola, porém, viu com quase desespero que Alfredo crescia, perdia a criancice, deixava de bater palmas com o papai-mamãe, de gritar ó Mamãe ciá! Alfredo já estava caneludo, menino feito, comprando carne no mercado e brincando com barquinhos de papel nas valas cheias. Já não podia fazer o Fredinho dormir ao som das modinhas antigas, como O Gondoleiro do Amor, Boa Noite Maria, Vou-me Embora, A Lua na Janela Bate em Cheio. Ele já não cheirava as dobras de sua saia, não comia a papa que ela fazia com muito açúcar e fervura. Os fatinhos feitos na loja, Alfredo sabia vestir sem precisar de ninguém. Os sapatos eram grandes, ela não lhe media mais o pé para mandar siá Rosália comprar um par de sapatinhos bem da moda em Belém, pra ela. Alfredo crescia. Era uma ingratidão bem humana aquela do tempo. Ela ia ficando viúva daquele menino. E a sua vida de solteirona, mais solteira e mais achacada. Não tinha mais carretel para enfiar, nem pensos para lavar, nem papinhas para esfriar. Sua vida se tornava mais deserta, cheia de dores de cabe a de erisipela. Sofria duma erisipela crônica. Seus pés inchavam, suas pernas também. Doía muito e, para Alfredo, Lucíola deixava estampar toda a expressão de sua dor nas rugas, nas pregas no oleoso do rosto comprido, o peso ainda dos imensos cabelos caídos para trás como uma silenciosa e negra imagem de desolação. Alfredo já estava menino entendido e Lucíola ia ficando para trás, para trás como uma abandonada. Tinha sido, afinal, uma simples ama-seca! O calor, o ardor, a ternura, a dedicação de tantos anos em torno de Fredinho de nada serviram, de nada valeu para o tempo, senso para deixar essa reflexão em Lucíola: Fui apenas uma ama-seca... — Fui apenas uma ama-seca... Por que esse menino crescia? Mais se distanciava dela como se fosse um castigo, uma [108] humi|lhação terrível? Como se o tempo não perdoasse aquela falsa maternidade, como se Alfredo, por força da natureza, fugisse daquela outra mãe virgem e ardente, devota de S. Expedito e gemendo com as pernas inchadas de erisipela. Quando queria estender, como outrora, sobre ele a pesada massa dos cabelos. 56 Alfredo recuava, instintivamente. E Lucíola pensava que os cabelos talvez estivessem mofentos, sem óleo de mutamba, sem cheiro. E ela ia ao banho, esfregava os cabelos no sabugo de milho e no sabonete Caboclo e punha loção. E quando Alfredo aparecia, Lucíola ensaiava jogar os seus vastos cabelos bem tratados sobre ele e Alfredo recuava meio temeroso daquela cabeleira e daquela loção. Lucíola perdia o seu Fredinho. As canções de ninar ficavam com ela, as toadas do boi que lhe ensinava morriam na sua memória. Quando Alfredo voltou da sua viagem a Belém, Lucíola contou o que foram as festas de S. João em Cachoeira. E cantou os cânticos, as toadas, as músicas do boi: Topa, topa, o Caprichoso vaqueiro, fama leal Pois já vejo que não cumpre O que me disse o geral. [109] E era a hora do Pai Francisco: Pula, pula, pai Francisco Que o Real nada mais faz Quero ver se ainda te lembra. Do teu tempo de rapaz... Boi chegou Morena vem ver Chega na janela Para acabar de crer. E Chico respondia: Vamos vamos companheiro Com este foi aqui brincar E o que acontecer Pode comigo contar. Vamos ver qual é o primeiro que o bicho vai tocar. Topa, topa, tu primeiro Como vaqueiro geral; Quero ver fera com fera cara a cara se topar. E o padre batizando os caboclos: E o topa-topa: E o vaqueiro real cantava: Pai Francisco tá sabido E o boi não vai topar Os vaqueiros matam o boi E o Chico velho vai pagar. Batizo o caboclo — Não namora mais... E a surra no Chico: Chora, Chico chora Chora que a coisa não está de brincar Chora porque estás preso E o remédio que tens é apanhar. 57 Alfredo se esquecia daquela cidade de lama, Sevico, Ulisses, tinas de roupa, sabão se aguando no cimento que acabava de ver em Belém. Lucíola lhe mostrava as vestimentas de Didico, o amo do boi, as tangas e os capacetes dos índios, a barba do negro Chico, a roupa dos vaqueiros, o retrato do filho do dono do boi, o Pagão, vestido de moça. Depois mostrava o boi Caprichoso, dormindo, esperando outro Junho. Os versos eram feitos por Eutanázio que tinha assim talvez a sua única diversão. Fazer a pedido de Rodolfo e Didico os versos para o boi. Major Alberto criticava duramente esses versos mas o povo gostava, o boi saia bem ensaiado e original, com as músicas do Miranda e os versos de Eutanázio. Eutanázio achava assim que a sua pobre poesia tinha sempre alguma utilidade. Agradava o pessoal dos bumbás, era cantada pelo povo, falada pelos campos do Arari. E a sua tristeza, o seu desespero, todo o seu aborrecimento da vida enchiam os versos do Pai Francisco, as toadas tristes dos vaqueiros, o canto dos índios que vinham com arcos e flechas de Marabá. Mas Lucíola envelhecia com o crescimento de Alfredo. Por que Alfredo [110] não lhe pedia que cantasse as cantigas dos bois e as modinhas? Por que esse menino crescia quando devia ser sempre daquele tamanhinho como via, puxando a bainha do seu vestido, brabo, jogando a colher de papa em cima dela? D. Amélia, que desejava ver seu filho liberto dos dengos de nhá Lucíola, se alegrava vendo o filho crescendo, sem mais mamãe-ciá! sem os berreiros com Lucíola acudindo e exclamando: Coitadinho do menino! Davam uma certa raiva em D. Amélia aquelas denguices em demasia. Queriam assim lhe tirar o filho, predominar sobre Alfredo? Ela ficaria como mãe, diminuída, sem realce no coração de filho. Alfredo não encontrava nela o açucarado de Lucíola, o vovozismo de siá Rosália, as graças do Didico, as reinações gostosas de Dadá. Era mãe sem alarde, sem adocicados, boa mas silenciosa. Alfredo muitas vezes adoecera e ela tranqüila passando as noites em claro sozinha e atenta, pondo panos com vinagre na testa do filho para aliviar a febre. Seus filhos podiam adoecer mal de morte, ela não gritava, não alarmava os vizinhos. Não era áspera mas não se açucarava para os filhos. E Lucíola sofria com a perda de seu domínio sobre Alfredo. Embora emperrado e chorão, ele já se afastava das saias, do colo, dos agradinhos da casa de siá Rosália. Era menino feito. Começava a ter os seus dengos era para as meninas de sua idade. Para Adma. Era levemente morena, pálida, o rosto fino, calada e absorta. Uma tarde descobriram as simpatias de Alfredo. Nhá Lucíola fez ele sentar junto de Adma na frente da casa. Adma, com a cara franzida, queria levantar-se mas Didico que era seu padrinho, gritou: — Deixa de tolice, menina. Fica quieta aí! E Adma mais pálida ficou, com o negror dos seus olhos mais fixos e as mãos estendidas sobre as coxas mordendo os beiços para não chorar. Não gostava dele. Este na cadeira ficou sério, comovido junto de Adma, a triste. Depois, quando Alfredo correndo pisou e matou uma pequena cobra na sapata da casa do Coronel Bernardo, Lucíola exclamou com carinho e um pouco de desalento: Ah! Agora, sim, já é homem. Matou uma cobra! E Lucíola depois da cena de Adma, da cobra, via Alfredo crescer, ficar mesmo um menino sabido, já de jornal no braço, [111] abrin|do as estantes de seu pai com curiosidade. Lucíola se achava na solidão com a sua erisipela e enterrando o pente-coque nos cabelos, Limpando a caspa com clara de ovo. Não custava que ele fosse todas as tardes com ela e conversasse, contasse o que vira no mercado, as Lições que deu, as leituras que fez. Poucas vezes já, ia à sua casa. E Lucíola contemplava-o, com amargura e enlevo ao mesmo tempo, o filho de seu coração, seu filho de titia. Alfredo passava pela frente da casa de Lucíola distraído, quase indiferente, jogando bolinha, ou com o livro debaixo do braço, o 58 quilinho de carne, ou com outros rindo, conversando. Lucíola indagava consigo mesma o que conversavam, quem sabe se aqueles moleques não estavam botando o menino a perder, porque D. Amélia não evitava aquilo. Lucíola queria o Alfredo criado toda a vida com ela, rodeado pelo seu ciúme, inteirinho dela, longe dos campos, das ruas, dos moleques de Cachoeira. D. Amélia tirava uma desforra com o tempo. Alfredo, dizia ela, andava muito estragado pelo mimos babados de nhá Lucíola. Precisava acabar com aquilo. A mãe era ela. E Lucíola sem que pudesse lutar assistia a lenta e irremediável fuga do menino. Era um mundo de carinhos para ele que não soubera aproveitar até o fim. Deixara Lucíola sequiosa de dar carinhos com prodigalidades, com furor. Ela não queria mais homem, não sonhava com mais nada na vida, deixassem ela dar a sua ternura para o menino. Menino ingrato e querido! Nem um beijo mais na testa lhe dava. Nem um beijo. Ele daqui a pouco será um homem. Ela, sumida na velha casa, com aquela parede forrada de esteira, o Didico consertando a tarrafa. Dadá no espelho pinicando as espinhas e S. Expedito com uma cera acesa pela felicidade do menino. Achava que Alfredo mais se afugentou de sua casa depois do que aconteceu, uma tarde. Nas suas más-criações, tão toleradas e mimadas por Lucíola, atirara uma faca na sua mãe. D. Amélia não perguntou quem estava de guarda. Puxou o menino pelo braço, saiu de casa de siá Rosália sem dar nem adeus. Alfredo apanhou a sua surra com Major Alberto dizendo: Isso! isso! Mas a culpa é daquela gente. É! Ficou fechado no quarto três dias, sem que ninguém entrasse a não ser D. Amélia. Três dias de desespero para Lucíola. D. Amélia [112] mandava dizer que o filho estava de purgante há muito tempo aconselhado pelo médico em receita passada em Belém. Mas em casa de siá Rosália começaram a murmurar que D. Amélia tinha batido tanto no filho que fechou ele no quarto para não aparecer com a marca das pancadas. Alfredo, a caminho do mercado, jogando a sua bolinha, olhava o moinho de vento parado, os quintais, as janelas da casa do Cel. [Coronel] Guilherme faiscantes no sol. Os algodoeiros brabos abriam as suas flores roxas para o vento. As batataranas balançavam de leve. O menino sentiu aborrecimento com aquela ida, todo dia, ao mercado. Todo dia tinha de levar o vale. O açougueiro com as mãos sujas de sangue a verificar o vale. Os quartos de carne pingando sangue. O montão de gente a gritar. A bolinha o levava para o Anglo-Brasileiro. Jogaria bola na praia. Não sentia a falta de duzentos réis para comprar o arroz doce do aparador do seu Cristóvão. Também era o que havia no aparador. Nos outros tinha banana, farinha. No do seu Cristóvão nada. Só o triste arroz que pouco vendia. À5 vezes Mariana mandava buscar algum dinheiro. Seu Cristóvão respondia: — Se ainda não vendi um caneco que fosse! Nem o menino do Major Alberto comprou hoje! — Mas era pra comprar sabão. — Mas diz pra Mariana que, assim como o arroz doce veio, assim esta. Não tenho um tostão, quanto mais... Paciência. Não posso botar isso na cabeça e gritar que tem arroz doce. Já estava aborrecido com aquele mercado. Perdeu a bolinha numa toiça. Agora ia sem bolinha. Um quilo de carne. Todo dia isso. Também assim, sem uma esperança para Belém, ficaria perdido em Cachoeira. V METAFÍSICA PARA OS VERMES 59 Eutanázio entrou. D. Duduca Neves costurava. Velho Antônio, sentado, de pernas abertas no banco de couro de jacaré, arranhava as coxas, indignado. [113] — É de estimação. [,] [Duduca!] Um cabresto que fiz com capricho! Sendo uma coisa de estimação a gente se dana! Perca uma sela, um selim, uma jóia, mas tem pequena coisa que só por ser estimação a gente se agarra nela... — Você, seu Antônio, sempre quando perde as coisas ou quando não quer dar, diz que é de estimação. Já devia ser um ditado isso seu, em Cachoeira. Vou espalhar pra ver se pega. Um cabresto de estimação. Mande seu Eutanázio enversar para botar no boi do ano que vem. — Duduca, tu não sabes o que é a gente ter coisa de estimação. Me roubaram mas eu pego o patife que levou do corredor de minha casa. Pego! Quantas vezes não trabalhei com este cabresto por estes campos meu Deus! — E você foi na ferra dos Menezes? — Oito dias de ferra, e que ferra! Não fui. Meus incômodos... Anda de lua? Duduca, porque tu anda amarela e seca, senão ias ver quem é este Antônio que tu tá vendo. — Seu Antônio, axi, que me metia com velho de sua marca! Depois você já deu cacho. Que você acha, seu Eutanázio? — Duduca, me respeita. Tenho idade pra ser teu pai, hem? — É certo, seu Antônio, que agora quando o senhor é convidado pras ferras ou embarques o senhor diz que só vai remanseando. Não trabalha. Come e bebe. Fica em cima da porteira, dá uma ordem, montar nem mais monta. O pessoal vaqueiro e que vem dizendo. O senhor só vai comer e beber. — Não nego. Já fui muito besta. E, no tempo que tinha, trabalhei depois era, axi! desafiava vaqueiro que laçasse como eu, fizesse uma organização de ferra como seu Degas. Mas agora já estou velho. Cansado, muita cachaça, muita saia, muito coice de boi. Tenho dois filhos no Exército, minha filha casada... Vou comer e beber... Agora eu me dano é com o desaparecimento do meu cabresto. Olá, seu Guaribão! — Chamo-me Joaquim Pereira de Queiroz Gonzaga, mestre Antônio! Você tem a mania de botar apelido, em Cachoeira, em todo mundo. Quem botou esse apelido em mim foi você. [114] Espan|co um moleque se chamar perto de mim. Agora mesmo quando eu passava na frente do mercado, os patifes dos filhos do Fermiliano gritaram o apelido! A culpa é sua, mestre Antônio. O senhor não passa de moleque sempre! — Mas Guari... upa! Seu Gonzaga, agora é que você esta reclamando o apelido, meu caro? Há quanto tempo já botei esse belo apelido? E o homem sempre reclamando! Velho Guaribão não respondeu. Sentou-se e logo levantouse majestosamente. Estava acalmando os nervos e pensando numa séria represália aos moleques de Fermiliano. Bem mulato, sobranceiro, a voz pausada e grossa, quase gutural. O andar grave, um pouco inclinado para a frente e o solene cacetão roliço. Virava a cabeça cerimoniosamente como quem preside uma sessão de posse de diretoria. O seu chapéu de carnaúba tinha sido presente dum comerciante do Itacuã. Descalço para melhor conservar as botas dedicadas à missa de N. S. de Nazaré (de quem era mordomo em Cachoeira), a casamentos e enterros de pessoas de certa ordem e às audiências de mais importância. Fora disso os sapatos se guardavam na mala e andava descalço. Mesmo assim parecia ter [tão] calçado como um vereador em dia de instalação do Conselho. Oficial de justiça, gabava-se de dizer na casa de Duduca que era sempre ouvido pelo doutor Juiz de Direito, íntimo do Promotor Público, esperando sempre a sua nomeação para primeiro suplente de Juiz substituto da Comarca ou adjunto de promotor, este mais vantajoso. Era íntimo do Intendente efetivo 60 que nunca aparecia em Cachoeira. Sabia ouvir com oportuna cerimonia e atenta assiduidade as lentas risadas e as graves pilhérias do Doutor Juiz que se dava o luxo de ler Clóvis Beviláqua e a Consolidação das Leis do Estado e gostava muito de garapa. Major Alberto era um dos homens que seu Gonzaga mais admirava neste mundo. Só não admirava mais porque Major Alberto acumulava funções públicas: secretário da Intendência e adjunto de promotor público. De qualquer forma, uma acumulação que Major não tinha precisão de fazer. Era hediondo com a sua barba intratável vegetando nuns beiços empolados e escuros, com a sua pose caricatural, as suas risadas de guaribão. Tinha sido cinco vezes presidente da Irmandade de [115] S. Sebastião em Caracará no tempo que ali era comissário de polícia. Contam que com a Irmandade levantara em Cachoeira a sua barraca. Em Caracará não querem ver seu Gonzaga, o Guaribão. Foi até jurado duma surra. Doutor Campos quando o via chamava “espectro da justiça”. Tinha ares de quem lia o livro de S. Cipriano, de quem conversava com Cavalo Marinho. Era pajé. A barba era feita de espuma de ninho de peixe de tamatauá, dizia velho Araguaia. — Sim, fui pajé noutro tempo. Meu serviço se podia apreciar. Deixei por pedido da finada minha mãe na hora da morte. Ela me chamou e me disse: Quinca, tu não te mete mais em experiência. Já tem toda essa perseguição por cima de ti. Pra que não tenha prejuízo mais, faz de conta que eu levo o teu dom comigo. E foi assim que deixei. Um pedido da finada minha mãe. Mas gente de Cachoeira que viu esta aí pra contar. Duduca mandou Eutanázio puxar uma cadeira e sentar-se. — E perdi o meu cabresto! O meu cabresto de estimação! — Ó senhor! Não acaba mais esta lamentação! — Inda é coisa que se atamanca. O que não se atamanca e a morte!, roncou velho Guaribão. — Não tem polícia, não — disse a costureira enchendo a bobina da sua velha Singer. — Não há princípio de autoridade legal pra que possa apelar. — Tem! — entrava velho Araguaia, suado e o olhar vermelho. — Tem! — Hum! Este vem... — Como Araguaia? — Como? Só o cego que não vê... Então quando se morre não se processa o regesto de objeto [óbeto]? Eu estava escutando a conversa de vocês. Estava ajeitando o tamanco que parece que quer dar o são quati. Egnoram esso? A otoredade não legaleza o celtefecado para exomação do cadavel na sepultura? E nas vestas do ademenestrador? Até na morte mea gente, tem lei. E eu bem sei desso. Velho Araguaia falava trocando o I pelo E. Era especialista em leis municipais. Tinha todas as leis dos municípios em sua casa. [116] — A lei é tudo... — Ah, isso é. — Aprovou Guaribão. — Mas não dá remédio pro meu cabresto... — E não sabe quem foi? — Sei lá. Aqui em Cachoeira anda uma quadrilha. Deixei o cabresto em cima dum mocho no corredor. Ora, eu lá pra dentro. Ana, como sabem, variada sempre... — Não melhorou, seu Antônio? Meu Deus, era pra fazer uma visita e ainda não pude... — Melhorou nada. O Dr. Luiz da Monta diz que é espírito. O espiritismo cura. Não sei. Fico sem saber. E ainda mais esse cabresto... — Mas seu Antônio, não chore um cabresto. Eu já perdi mais disso. Quando eu era moça perdi a minha inocência com um 61 cachorro dum homem que me plantou uma filha e bateu pra Belém, até hoje. Minha filha anda em Belém, estudando na Escola Normal, com que sacrifício. Este trabalho de costura me estafa tanto que só eu mesmo sei. Bota o pulmão da gente para fora. Estou já tísica. É certo. Tísica. Minha cara, vocês, tão vendo, é duma defunta. E o fiado. Gente que tem não me paga. Os pobres sempre tam mais vergonha. Pagam. São sérios. E os metidos a ricos? — Todos perdem. — Sentenciou velho Guaribão. — Todos perdem, é isso. Todos perdem. Estou perdendo meus pulmões aqui nesta barraca velha. Casa velha que já está arriada. Poeira. Não posso me tratar. Acabo tísica. — Acabas tísica de tanto falar de ti mesma e dos outros. — Seu Araguaia, foi Deus que me deu língua. A gente tem no mundo uma provação qualquer. Eu tenho de falar mal da vida alheia. Mas eu só o que vejo e o que me dizem. Não invento. Não infamo. Não ando pela porta alheia de ouvido à escuta para vir contar. Eu oiço mais do que falo mesmo. Agora vão à casa do seu Cristóvão, vão ao mercado, por aí e vejam. Olha, hoje de manhãzinha quem veio me contar,, e eu ainda não tinha nem lavado o rosto, foi o meu compadre Abade. Sobre o que se deu na casa de seu Cristóvão. Que até terçado entrou em cena. Que Cristino quis matar a Raquel. O senhor estava lá, seu Eutanázio? [117] — Não vi nada disso. — Eutanázio compreendeu a perversidade da pergunta e não disse mais nada. — Enfim, só falo as coisas que vejo e me dizem. Não arredo pé desta máquina. Tenho uma filha na Escola Normal para sustentar. Meu ideal é ver a minha filha professora. Não faço segredo disso! Também não quero que ela venha como professora para isso aqui. Deus me livre! — Está exato está exato. Cada um tem o seu ideal. — Roncou Guaribão. — Pois meu amigo Antônio, procure saber quem levou o seu estimado cabresto. Eu não posso saber quem me leva o pulmão. — Mas é a tísica! — Antes eu podia dizer que era sua mãe, seu Antônio. — Cachoeira está impossível — disse Guaribão. — Não se respeita mais. Ontem multei o Mariano por causa daquele porco. Só faltou me dar pancada. — É, Araguaia, é isso. A sem-vergonhice da rapaziada mete pena. No meu tempo, Antônio, eu podia saber quem levou teu cabresto. Era quando eu fazia os meus trabalhos. Eu descobri tanta coisa! Mas finada minha mãe me levou o dom. Está no céu com ela. Sim, que tenho fé que ela esteja. Mas o teu cabresto foi levado, Antônio, foi! — Sim, que foi, não precisa que tu diga. Foi! — Por isso que Nossa Senhora chorou o ano passado no seu altar. Cachoeira está uma lástima de falta de moralidade. Chorou de ver que não se respeita mais uma ladainha. Uma reza. Na ladainha do Maguá botaram pimenta-do-reino. Na capela do seu Francelino espocam na risada, imitam o Maxico quando reza. Uma indecência. — Velho Guaribão inclina mais o busto e atira o indicador ao ar: — Daí a pouca vergonha. Chegam de entrar no corredor duma pessoa e tirar um cabresto! A patifaria é uma coisa medonha em Cachoeira. No quarto do finado Manuelzinho a pouca vergonha foi tanta que foi preciso eu pedir silêncio! Gargalhada na frente do morto. Isto é quarto? Isto é velar um defunto? Olhem o meu caso com o patife daquele Virgilino. Não foi ele ter feito [118] benefí|cio na minha sobrinha porque eu sei que aquela ordinária era mesmo sem comportamento. Mas o que me bato, o que me fez pedir um processo contra ele, o que me levou a botar o patife nas barras do tribunal foi ele fazer o crime com a Izabel no 62 leito da finada! Mea mulher era uma criatura séria; eu respeito sempre a memória dela. O leito duma família é sagrado. Aquilo pertenceu à finada! — Muito abuso, sim. No leito dum lar! — São mesmo ordinários; então fazer uma coisa dessa no leito da finada, não, seu Gonzaga? — piscou D. Duduca para o velho Antônio. — Essa imoralidade, essa pouca vergonha constitui... — O atraso de Cachoeira, a farta de conhecimento da lei! concluiu velho Araguaia. Mas velho Guaribão não gostou do aparte do seu amigo. Araguaia gostava de intervir sempre na hora em que Guaribão ia finalizar a sua tirada com uma frase ouvida no cartório. E ficou desconcertado com a intervenção de Araguaia. Tinha, sem saber, esquecido a última frase do Dr. Juiz de Direito no cartório sobre Cachoeira. — Você, Araguaia, me tirou isso mesmo da boca. — E não é? — Pura verdade. Já tinha dito isso mesmo para o Dr. Juiz na loja do Araújo. Ele estava jogando dama com o Promotor. Então ele se volta e me diz: Gonzaga, você emite conceitos filosóficos, Gonzaga! E eu fiquei olhando para a cara do Araújo admirado com o elogio do Juiz. Ontem o Dr. Juiz me deu uma linda lição sobre inventário. Nisso ele é autoridade. Não sei como este homem não vai logo para desembargador. Mas velho Antônio salta do banco e abre os braços, sacudindo a cabeça. — E o meu cabresto? Tanta conversa e o meu cabresto? — O seu cabresto está esperando você mesmo lá na Delegacia, seu patife! Todos se voltaram. D. Duduca suspendeu a costura. Era Dr. Campos na janela, já debruçado. [119] — Entre, doutor! Entre! — Entro se o Guaribão sair. Não gosto desse indivíduo. — Ora, doutor. Sei disso. E eu vou saindo. — Era brincadeira. Mas se quiseres sair refresca, seu Guaribão Guaribão saiu. Não suportava doutor Campos. Ouviu uma vez falar em Juiz frascário. E doutor Campos ficou sendo o juiz “frascário” de Cachoeira. — Vem cá, Guaribão! Vem contar tuas ladroagens de gado no Caracará, onde está o dinheiro da Irmandade, seu ladrão? — Doutor, não fale assim. Coitado do Guaribão! — Ora, Duduca. Tu és uma cínica. Quem é que tem pena do Guaribão! Tu, tu logo... E então seu Antônio. E o cabresto? — Doutor, perdi um cabresto de estimação. — Pergunte se há casos assim na lei municipal, ao Araguaia. Que tal? Velho Araguaia riu-se. Doutor Campos sentou suadíssimo. — Não posso mais de sufocado com tanto calor. O pior é que tenho de ir, de enfrentar este sol para baixo, no aterro! E sem chapéu de sol. Me esqueci. Com isto nem se pode amar as Musas, hem, seu Eutanázio? Sua-se muito que só se os versos escorreremno suor... No meu tempo de estudante em Recife a gente vivia comendo e purgando versos. Como vão as tuas garridas musas, hem? Teu pai não quis botar o jornalismo [jornalzinho], não? Acabaram-se então os teus Ensaios Literários. A poesia é muito infeliz em Cachoeira, meus amigos. A literatura devia ser cultivada aqui para educar esse povo. Mas qual! Aqui é rua das Palhas, cachaçada e vida alheia. Os poetas são mesmo do passado. Conheci ainda Tobias em Recife. Que gênio! Seu Eutanázio, que gênio! E lírico quando tangia a harpa! Acho ele mais lírico que Castro Alves. Do Castro gosto do seu condoreirismo. Mas as horas já estão adiantadas e preciso ir a[o] Salu. Quer ir comigo 63 beber uma Bier? Hem, Eutanázio? Se eu pudesse mandava buscar de Hamburgo as minhas cervejas. De Hamburgo, não. De Munique! Quando estive em passeio na Alemanha passei dias em Munique. Ah! as cervejarias de Munique! A Alemanha é a pátria de Goethe, de Bismark, da Brahma! Mas sempre Paris me seduziu. Quando estive em [120] Pa|ris, a Cidade Luz, não bebia cerveja, bebia champanhe e bordeaux! Amei uma francesinha no Bois de Boulogne! A gente se deita naquela areia fina e a francesinha faz a gente ter desejos de voltar à França. França, a pátria do intelecto! Gastei algumas dezenas de contos do dote de minha madame mas vi a civilização! Ouvi a Duse! Vi Isadora Duncan! A c[C]omédia f[F]rancesa! Tive paixão pelos ditos do grande, do inimitável Bataille! Depois foi aquela estação em Nice. A minha aventura com uma corista em Milão. Madame teve que tirar cálculos da bexiga na Suíça e voltei para o Brasil juizsubstituto e bebedor de cerveja. — E o que aconteceu ontem com Felícia? — Ontem? Ontem? Nada, Eutanázio. O Dionísio dormiu como um porco na rede de Felícia e ela fugiu. Ah, sim. Primeiro disse a ela faz de conta que és a Mata Hari! Conhecem a história de Mata Hari? Depois eu conto. Pois bem, disse isso a ela. És a Vênus Calipígia! Ela então me pediu dinheiro porque estava com fome! Estragou a poesia, estragou tudo. Além da belezinha que ela é, me pedir para comer! Mata Hari não falava em comida! Dançava. Não comia. E Felícia danada de fome como uma cachorra! Em Cachoeira a poesia tem de levar isso pela cara. Por isso suspendo o meu heptacórdio na chapeleira e bebo cerveja! Mas a propósito o diretor de A Verdade, padre José, mandou me pedir um artigo sobre o teatro e a Igreja. Ando com a cabeça pesada. É preciso escrever as coisas pias em presença da cerveja, da Felícia. Só em presença do Vício é que se pode escrever sobre a Virtude! — Mas o doutor fala! não? — Se vocês nada dizem, nada perguntam! Eutanázio é uma pedra. E afinal, que aconteceu na casa de seu Cristóvão? Um pandemônio, não? Quando me lembro que já pegaram a D. Dejanira debaixo da casa de seu Proença, vestida de matintaperera! E foi o próprio filho! Cercaram a matinta e o filho agarra pelos panos todos da velha e só pode dizer: mas mamãe, a senhora fazendo um papel deste... E assim são as coisas na casa de seu Cristóvão. Ele é o grande infeliz! Bem, Eutanázio. Vamos para baixo. Tens que ir hoje comigo. Não deves aparecer agora por li Vamos. Salu espera-me; que calor e que sede, meu Espírito Santo, minha Santíssima Trindade! [121] Os dois tomam o caminho do aterro. — Mas a coisa foi grossa mesma, não, Eutanázio? Bita, você sabe, uma noite apareceu em casa procurando os jornais católicos que eu lhe tinha prometido. Ela se diz muito católica. Lê com atenção os meus artigos. Você sabe, isto agrada. Chamei ela para a sala. Passei a mão pela cabeça. Dei-lhe um beijo e ela lendo os jornais católicos, lendo o meu artigo sobre os fins da Eucaristia. Depois, como eu me adiantasse, ela voltou-se: — Doutor, nem parece que escreve na A Verdade! Nem parece que escreve estas coisas de religião! — Mas eu na bucha respondi-lhe: Mas nos meus artigos ponho a minha alma, que é casta, e aqui tenho o meu corpo que é humano! Ela riu-se, escorregou e eu amparei-a nos meus braços. E eu dizendo: como eu gosto da tuas pestanas viradas, Bitinha! Fica comigo, hoje, Bita. Leremos os jornais católicos juntos. Mas Bita teve medo de mim. Eu estava com a minha barriga à mostra e meu bafo de cerveja soprava nela. Ela fugiu com os jornais católicos na mão. Coitada da Bita. Ora, o patife do Carvalho não se casar com ela! E sobre Irene soube dumas coisas feias. Por que, Eutanázio, você não cava aquilo? 64 Eutanázio sentiu-se esbofeteado com aquela pergunta. — Hem? Essa Irene andou namorando o catita do filho do Resende. Eutanázio, a gente faz os versos e vem um burro, um imbecil daquele e toma-nos a Elvira! — Mas eu não fiz versos... — Eutanázio, não falo sobre o teu caso. Falo em tese... Irene era para ser amada por um poeta e não pelo filho do Resende. Um burro daquele. Só tem dinheiro. Mais nada. Vive há seis anos na Faculdade de Direito. Se não se aproveitou de Irene o diabo que me leve! Mas Eutanázio não respondeu. Dr. Campos acendeu um cigarro. — Mas o Guaribão anda falando mal de mim por causa do caso dele com o Virgilino. Ora, eu de maldade fiz uma coisa com o Guaribão que, se ele souber, morre. Uma noite dessas, eu vinha da rua das Palhas com a Aurélia. Veio de repente uma chuva. [122] Chu|va grossa. E defronte da casa de Guaribão. Empurrei a porta. A porta estava aberta. Entrei, ninguém. E fui lá para dentro e nada. O quarto estava fechado mas sem chave. O que fiz? Uma coisa remenda, Eutanázio! Fechei a porta da frente, a chuva aumentara por demais e levei Aurélia para o sagrado leito da finada. — Mas Doutor! — A chuva esmoreceu um pouco e saí. Estava escuro na rua. Cheguei em casa na risada. Também disse para Aurélia: Se tu escapulires um pedacinho do que aconteceu, meto-te no xadrez, hem? Sabes que é o Juiz-substituto que te fala! Na verdade, Eutanázio, que eu sou muito impuro. Mas há santos da Igreja que foram também muitos impuros e estão nos altares. Eu, cumprindo com as minhas obrigações intelectuais de escrever para A Verdade, estou bem com a minha consciência católica. Quando vou a Belém, vou comungar e saio na procissão com o meu hábito de irmão de S. Vicente de Paula. Dou dinheiro. Enfim, aqui em Cachoeira não se tem o que fazer! Em Cachoeira morre-se de tédio! Você não acha? Você pelo menos tem um interesse, O de virar santo naquele pandemônio. E eu? Eu só posso andar fazendo das minhas. Senso acabava morrendo de melancolia! Mas que sol terrível, Eutanázio! Para a gente atravessar este aterro ao meio dia é mesmo que atravessar o deserto! Verdadeiro sol senegalesco! E você afinal não me disse uma palavra sobre o barulho. Não foi lá hoje? Aquilo é um pandemônio. A sua vida ali anda muito errada, Eutanázio. Você oculta mas, você sabe, nem vale a pena ocultar. Eu sempre disse a você. Fuja daquele pandemônio. Fuja! Saiba transformar uma Irene numa Aurélia! Você precisa ser um otimista. Não conversa. Anda afastado de todos. Vai pra casa de Duduca e fica lá encolhido. O pessoal estranha sempre essa sua vida. Cachoeira não gosta muito de você, Eutanázio. Se não fosse você fazer os versinhos de S. João você estava perdido em Cachoeira. Dizem que você e um dos que mais cortam a pele na casa de seu Cristóvão. Você vai lá. E de lá. Todos falam, caluniam, você está no meio e logo o povo acusa você de falador, cortador da pele alheia. — Deixa o povo falar... [123] — Em todo caso, você tem sido vítima da casa de seu Cristóvão. Anda magro. Já adoeceu. Veio de Belém, por quê? — Não tinha emprego. — Aqui tem? — Não compare. — Mas lá cavava. Ia falar com o Intendente de Cachoeira que vive em Belém. Arruma-se. Arruma-se. A casa de seu Cristóvão está lhe matando, seu Eutanázio. — Mas vou lá porque me tratam bem. Amigos velhos. Não vou lá por nada. O povo tem [e] uma língua dos diabos para inventar essas coisas a meu respeito. Estão enganados comigo. 65 Nunca tive pretensões de namorar Irene. Sempre achei uma criatura antipática. A irmã é mais bonita e mais simpática. Vou lá, mas que me exploram, me fazem isto, não. Conversa. — Bem. Eu aconselho a você a ser otimista. Sou por isso muito religioso. Não acredito na ciência e acho que há uma palavra, no dicionário, formidável: Incognoscível! Eutanázio, o incognoscível! Vou te marcar uma noite para conversarmos sobre metafísica. Errei a vocação, Eutanázio. Eu era para ser doutor da Igreja. Era para ter a Suma Teológica de cor! Mas quando houver luar falaremos longamente de metafísica no ponto do Salu. Beberas em honra da Idade Média uma cerveja e eu te falarei da metafísica e esmagarei os materialistas. Haeckel foi um charlatão. Convidarei o Dr. Luiz da Monta que embora espírita tem o mesmo juízo sobre Darwin e outros. Depois esborracharei o Luiz com o Kardec dele. Será uma noite de triunfo para a Metafísica. Upa, nunca vi sol de rachar como este! Você não conhece Renan? Eu li umas páginas do Vida de Jesus. Um cretino. Perde-se um tempo precioso lendo essas bestas. E depois só a Imitação de Cristo vale tudo. Leia a Imitação! Falaremos da metafísica e da miséria do homem sem Deus. Minha madame me falou disso, quando? meu Deus? Da miséria do homem sem Deus. Ah! Ela me disse que isso é de Pascal. Pascal. Sim, de Pascal. A miséria do homem sem Deus. — E a miséria do homem sem dinheiro? — Ih! Estás ficando materialista, Eutanázio? Tu, um poeta! Um sensível? [124] — Mas, pergunto, e a miséria do homem sem um tostão no bolso? Duma Felícia? — Eutanázio, conversaremos isto depois da metafísica. Convidarei o Luiz da Monta. Vou medir a cultura do homem. Chegamos enfim ao Salu e vais comigo comer umas sardinhas e beber umas cervejas. — Não, obrigado. Vou para casa. — Mas ó, homenzinho, vamos! — Fica para a noite da metafísica. — Então, combinado. Fica para a noite da metafísica! Eutanázio queria reagir violentamente contra doutor Campos. Doutor Campos enfim era uma criatura quase irresponsável. Vivia na cerveja. Vai de toga para a audiência, baforando cerveja. Mas doutor Campos não tinha direito nenhum de estar botando Irene no meio da conversa como no meio da lama. Depois ninguém tinha de saber do seu segredo. O que mais o torturava era que toda Cachoeira sabia e comentava. Aquilo que ele queria apenas seu, inviolável, era exposto no meio da rua como uma lata de lixo! Uma lata de lixo. Saíam misérias daquele caso. Ele já era um dos grandes faladores da vida alheia na casa de seu Cristóvão. Ezequias mandou-lhe logo de manha um bilhete pedindo pagamento da enorme conta. A doença está no mesmo. Tinha que esperar à tarde a dona Gemi! Estar sujeito a D. Gemi! Seu orgulho ia desabando aos poucos. Sua má vontade para a vida aumentava. Sua má vontade para com os homens. D. Gemi era uma criatura hipócrita e indecente. Devia ser, naturalmente. Uma mulher que se presta a curar doenças dessa espécie não vale nada. Seria melhor pedir para Felícia preparar um remédio, tratar-se lá. D. Duduca a lhe perguntar se não tinha ido naquela noite à casa de seu Cristóvão! Ela já sabia. Disse por maldade. Também não sabia quando Dr. Campos falava sério ou não. Fosse pilhéria ou não, ele não podia tocar “naquilo”. Dr. Campos não tinha necessidade nenhuma de falar no filho do Resende. D. Dejanira encontrara o filho do Resende debaixo da casa com Irene. D. Dejanira fez que não viu. Irene era menor. Qualquer adiantamento do filho do Resende, policia em cima! Mas Resende tem dinheiro. Tem! [125] D. Dejanira pensa que Irene serve para mulher do filho do Resende? Velha muito indecente! Matintaperera duma figa! Só 66 faltava entregar a neta para o filho do Resende. Mas o filho do Resende tinha o dinheiro! Eutanázio sente a sua náusea aumentar, o seu orgulho desabar, o seu desespero crescer. Aquele futuro bacharel Pedro Resende com aquela cara oleosa e gorda, cheia de espinhas, a endireitar sempre o colarinho, a torcer o pescoço. Burro! Burro! Era filho de fazendeiro e burro! Burríssimo! Oh! Não sente nenhum apetite. O almoço da D. Amélia o espera. Mas não quer aquela carne. Preferia tomar uma gemada. Sem fome ou com fome, não sabe. Queria ter a fome de Felícia. Felícia não sofre do estômago. Tem sobre ele a vantagem de sentir fome. Irene ia aos bailes com namorado de braço dado. Pedro, com aquela cara e sempre endireitando o colarinho e a gravata, a dançar danças da moda nos bailes de Cachoeira. Namoro mesmo. Irene só dançando com ele. E indo tomar chocolate com ele. E sentados juntos na sala apreciando os outros dançarem. Em Dezembro, pagando cerveja para ela. Em rodas no botequim do Carivaldo, no arraial. E agora, Dr. Campos. Ele nunca falou ao Dr. Campos sobre seu drama. Não tinha nada de estar falando. Mas afinal todo mundo ia sabendo ia desembrulhando o seu caso! Uma vontade de dizer desaforo esbofetear, chamar de bêbado ao Dr. Campos. Tocar toda e gente infame para a frente como porcos e levar para o cemitério. Vamos, façam as covas! Enterrem-se! Enterrem-se! E ficariam enterrados, Dr. Campos ensinaria metafísica aos vermes. VI CASA DE SEU CRISTÓVÃO Na casa de seu Cristóvão, Eutanázio viu-se cercado pelas mulheres. Queriam saber o que tinha ouvido na rua, no mercado, na casa de D. Duduca. Eutanázio nada disse. Não ouvira nada. As mulheres recuaram, desapontadas. Irene resmungou: — Esse cara de bestalhão! Henriqueta deu a sua risada aguda e Raquel exclamou: [126] — Também seu Eutanázio não é amigo da gente. Se fosse... Mas D. Dejanira contou logo que Cristino naquela mesma hora tinha ido embora para o Alto Arari. Salu com a trouxa nas costas e dois gritos na cara das mulheres. — Não voltava. Safa envergonhado de Cachoeira. A sua casa era ninho de escândalos. Ia embora para o Alto Arari se acabar por lá. D. Dejanira enxuga os olhos. Tem um pano passado no pescoço. As moças ficam de mãos no rosto, olhando Eutanázio com um ar escarninho e maldoso. Eutanázio sente isso. Quer virar de costas mas Raquel arrasta uma cadeira e fica entre as três moças e ele. — E o senhor não sentiu alguma coisa? Não se bateu? — Não tive nada. — Mas o senhor não caiu? — Ia escorregando. Não... — Mas tem um sobressalto com Irene que se levanta e, com a palma da mão na boca para abafar a gargalhada, sai aos pinotes para a rua. — Ó menina! — Essas pequenas precisam de corretivo, ah! Estão impossível! — Pois, seu Eutanázio, pensei que o senhor tivesse se batido. Felizmente... Sabe? Cristino foi embora! Como me saiu o Cristino! O culpado disso tem sido o Cristóvão. Cristóvão apoiou tanto ele que agora é isso. Cristino está ficando perdido. Não safa da rua, do violão, do violão... Sim, é verdade, na mesma hora que saiu, partiu o violão na cara de Raquel. — Como? 67 Então Raquel mostrou as marcas no rosto. — Estão aqui as marcas! O bandido do meu irmão pois não quebrou o violão no meu rosto? Eu não lhe queria dizer, seu Eutanázio, porque já me sinto envergonhada do senhor ser nosso amigo, freqüentar nossa casa e apreciar desses papéis... Pois quebrou o violão em mim... Joguei-lhe um banco que não pegou. O violão ficou aí no chão. Hoje, só de vingança, fiz café com ele. Botei no fogão. — E um violão novinho! Nem sei quanto custou. Ai, seu [127] Eu|tanázio, triste fim de vida é o meu! lhe digo mesmo, o meu casamento com Cristóvão foi para mim só tristeza e prantos! — A senhora também só culpa o papai. Quando a senhora se casou com ele, ele “tinha”! A mamãe tinha morrido. Nós é que podemos dizer que depois que a senhora se casou com ele é que tudo desandou... — Raquel, eu não tenho sido mãe para ti? Tenho sido madrasta? — Pelo menos a senhora diz que seu casamento é uma desgraça. Pobre do papai que tudo fez pela senhora. A senhora com seu luxo, com a sua pompa, com seu estrago, foi que acabou com o dinheirinho dele. Ele possuía a sua fazenda. A senhora fez ele vender para fazer não sei que negócio... — Cale-se, Raquel! Você não tem direito de estar me acusando! Eu não tenho sido madrasta pra vocês. Tenho sido mãe! — Mãe! Mãe! — Cale-se, Raquel, me respeita! Respeita a presença do seu Eutanázio! — Mas foi a senhora que começou! Começou a meter o pau no papai que está na miséria graças à senhora! A senhora matou o Leonardo de desgosto porque não era séria pro papai. Não era séria! Porque, quando a senhora, com seus ciúmes de andar cheirando cueca do papai, fez Leonardo gritar um dia, danado de raiva, que o papai cheirasse primeiro as suas calças! Eu estava entalada para dizer. Para dizer isto. A senhora foi a maior desgraça do papai. Foi! Foi! Foi! — Mas se acomodem. Esperem. Não quero ouvir isso... Mas D. Dejanira levantou-se e quis gritar. Parecia engasgada. Sufocada. Qualquer coisa nela de horrível tinha acontecido, pensou Eutanázio. Mas Bita veio e gritou: — Raquel, respeita as cinzas de Leonardo! Tu estas infamando mamãe e Leonardo nunca disse isto! — Bita, chora o teu casamento perdido é que é! Vai chorar o teu choro e me deixa. Mas há tempos que eu vinha “com essa conversa de se meter o pau no papai” atravessada na garganta Digo o que meu peito sente. Ela traiu papai. Papai não sabe ou não quis saber. Leonardo foi que quis dizer mas não pôde e foi embora. O resultado foi ele se alagar como se alagou! [128] — Tu falas dele nessa alagação porque também ia o teu pobre namorado... — Proíbo-te, Bita, de falares dele! Já morreu! Era melhor do que todos os vasilhas dos teus sete noivos juntos! Já perdeste a conta dos noivados, noiva crônica! Eu só namorei ele. Meu nome não anda na boca dessa canalha imunda por aí... — Tu levaste a conversa para o caso do Leonardo porque querias falar no teu bonzinho do Chico Barraca. Sim, tu só tiveste ele porque só ele mesmo podias arranjar. Com teus “cinemas” com ele na casa de D. Gonçala onde tu ias com a tua boniteza e com a sua língua! E depois o que falam de te meteres lá com ele a pretexto de costuras? — Bita, vai chorar a tua sorte de noiva sempre infeliz! Tu és a eterna noiva! Ordinária, vai-te... Não mexe com minha boca, sua tentação! Tu e Cristino são os dois diabos desta casa. As duas vergonhas. Meu irmão Leonardo morreu foi porque a tua mãe fez ele ir para aquela viagem. Andava com homens. Papai gemendo aí 68 de reumatismo na rede a chamar por ela e ela na pouca vergonha... Foi, sim! Não me olha com essa cara de anjo, não! Foi! — A tua raiva foi não ter arrumado mais nem um namorado. Foi aquela alagação. A raiva que tens da mamãe foi que Leonardo se zangou com ela e pensas que causou assim a alagação do teu namorado de porta fechada na casa de D. Gonçala. Mas mamãe não teve culpa nenhuma disso. A tua raiva é ter perdido o teu único namorado que foi mais feliz de ter morrido do que ter casado contigo. — Axi! Axi! Não quero mais que tu digas o nome dele, Bita! Não quero! — Mas se estás infamando mamãe! Se estás botando mamãe mais rasa do que o chão! Henriqueta levantou-se para gritar: — Mas que roupa suja! E sério! Isso é mais do que uma vergonha! Isso fede! — É a Raquel! A Raquel! — Sim, sou eu. Mas teu irmão Cristino não me pegou andando na rua feito matinta. E não escrevi bilhetes daquela tua marca para namorado. E te cala, Henriqueta. [129] — Sim, tia Raquel, é que isso é uma coisa triste. A senhora acusando vovó e Bita dizendo essas coisas. Seu Eutanázio o que não diz! — Mas também não admito que ela acuse papai! Diga que o casamento dela seja uma desgraça. Porque a desgraça foi para ele. Mulher e filha. D. Dejanira no quarto soluça e Bita vai consolá-la. Os soluços são altos e Bita chora também. Irene na porta da rua olha para Henriqueta torcendo o beiço para Eutanázio. Raquel sente mais do que nunca a saudade do Chico Barraca. Talvez seja verdade o que Bita disse. A raiva não foi a D. Dejanira ter traído o velho nem Leonardo por isso haver sido morto na alagação. A raiva foi que Chico Barraca foi convidado por Leonardo para essa viagem e dias depois aparece na praia podre e todo comido de peixe. Raquel estava esperando esse dia para o desabafo. Raiva de ter perdido Chico Barraca. Não se importava que D. Dejanira desonrasse o pai, Leonardo fosse embora, mas porque tudo isso acabou arrastando o seu namorado para a morte! Assim tem que puxar a discussão até a morte de Chico Barraca. A sua madrasta tinha de ouvir sempre isso. Ela mesma, podia dizer: A morte de Chico Barraca foi conseqüência das suas velhacarias! Bita tinha compreendido mais ou menos. Eutanázio estava atônito. Henriqueta sacudiu a cabeça. — Mas tia Raquel, não fale assim. Aí Raquel não resiste às lágrimas. Fica tremendo no peito de Eutanázio, soluçando. — Eu não queria dizer isso, seu Eutanázio. Mas foi uma coisa. Eu não queria. Foi a raiva. Me envergonha isso. Eu gosto muito do papai. Ela não tem sido ruim para mim. Mas ela fez e agora mete o pau no papai. Que vida, seu Eutanázio. Se eu pudesse... Se eu pudesse... Eutanázio ficou enfiado com aquela mulher chorando junto a seu peito. Irene já espiando pelo buraco da fechadura, ria daquela cena. Henriqueta, porém, tiniu os olhos úmidos. — Se acalme, se acalme. — Eutanázio sabia que Irene espiava, ria, ria daquela sua posição agüentando o choro e o tremor de Raquel. [130] — Esta casa tem sido um inferno! Todo dia é isto, seu Eutanázio. Os soluços de D. Dejanira e de Bita no quarto e os soluços de Raquel davam a Eutanázio uma sensação de náusea, de ódio, de degradação. Sentia-se cada vez mais arrasado, sabendo que o olhar de Irene espiava e o seu riso abafado na palma da mão flagelava-o continuamente. 69 — Se acalme. Sente. Mas que é isso! Ouvia Bita, a eterna noiva, assoando-se. — Aqui todo dia é isto! Parece que morre uma pessoa todo dia. Henriqueta pensou em ir embora. Arranjar um rapaz que a levasse. Estava farta daquele barulho. Tinha medo de ficar como Raquel, como Bita, a eterna noiva, a viver de falar da vida alheia, a se alimentar de discussões, de todo aquele horror. Era uma vida de ração, a bóia não chegava. Era aquela briga por causa de comida, era a luta por um casamento. Carvalho tinha umas simpatias por ela. Bita sabia e se pôs na frente desde aquela tarde de carnaval, Ezequias andou namorando com ela e Bita avançou. Tinha vinte anos. Já não era uma menina. Todo dia, era a recomendação de que comesse pouco, que não havia dinheiro. Não havia nada! Era o regime da ração. E depois aquelas brigas sem fim. Cristino dizendo horrores de Bita. Raquel no seu despropósito. Ó, como queria sair daquele inferno! Vinte anos e ainda nem pensava que podia ser como Bita, a eterna noiva!, refletiu Eutanázio olhando Henriqueta. Quando ela completou dezoito, ele publicou uns versinhos em seu louvor no jornalzinho de seu pai. Falava que festejar aniversario era fumaça. A vida vai andando e a gente envelhece. Hoje, com vinte anos, Henriqueta não pensava ainda de que pode chegar a ser a eterna noiva? Por que [não] aceita as eternas propostas do Felão? Felão era um sírio de dois metros de altura, imenso homem que perseguia Henriqueta desde quando esta ainda festeja[va] as suas dezesseis primaveras. As primaveras de Bita se acabaram com tanto noivado. Eutanázio sentiu Raquel olhando-o obliquamente. Raquel queria ver em Eutanázio um novo Chico Barraca, perguntava ele. Por que seu Eutanázio não deixava Irene em paz e não procurava uma [131] criatura de acordo com o seu gênio, mais ajuizada?, refletia Raquel. Sim, mais ajuizada, mais experimentada na vida. Uma mulher que o tratasse bem, não se incomodasse da feiúra dele, se preocupasse de ser feliz com ele! Isso sim, era de que Eutanázio devia andar cuidando. Ora, Irene. Uma pequena como Irene. Uma moleca que fazia o que entendia com Eutanázio e ele, bestalhão, idiota, com aquela paixão recolhida! Estão agora os dois sozinhos. O riso abafado de Irene cortava os nervos como uma serra. D. Dejanira soluça baixinho no quarto e Bita, com a cara lavada de lágrimas, escreve numa folha de papel almaço. Sente uma fraqueza. Não come. Irene na hora da mesa dissera: — Desta vez rendeu... Bita não quer comer mesmo? Rendeu. O desgosto de Bita tinha poupado a comida da família. Henriqueta discutiu com a irmã porque achava uma brutalidade de Irene dizer aquilo na mesa. Bita na sala escreve. Eutanázio e Raquel na varanda estão calados. Raquel imagina. Se Eutanázio sentisse uma qualquer coisa por dentro e se declarasse? Dissesse: — Raquel, eu agora vou me explicar. Irene foi uma intoxicação minha. Irene era uma alucinação. Mas agora vejo que mereces muito mais. Precisas ter a tua casa, viver dedicando a tua vida a um homem e um homem dedicando a sua existência a ti. E este homem sou eu. Que achas, Raquel? — Não sei, seu Eutanázio, o senhor conhece a minha vida. Sabe que não sou uma moça de ontem. Sou uma moça, sim, mas ajuizada... Sempre lhe digo que o que pode esperar de mim é lhe dar em troca a minha amizade... — Raquel interrompe o pensamento. Velha Dejanira fala sozinha no quarto. Devem ser pragas, queixas, as lamentações de sempre. Raquel ouve apenas a palavra: morte. Morte? Será que D. Dejanira quer morrer? Morte? Eutanázio olha os campos. Procura cigarros. Não tem. Em vez de cigarros depara com um papel. Que diabo de papel é este? 70 Tira do bolso e abre. E o bilhete de Ezequias. A conta. A tal conta. — É verdade, Raquel, ontem trazia uns charutos pra ti. Esqueci de dar logo. Voltei com eles e a chuva estragou. — Ah! Mas o senhor, seu Eutanázio, foi debaixo mesmo da [132] chuva! Coitado. — E Raquel sentiu uma grande piedade por aquele homem andando debaixo da chuva com os charutos que eram para ela se estragando no bolso molhado! — Veio ontem de uma doença e já apanhando chuva. Que sacrifício! Eutanázio entendeu naquele “Que sacrifício” a intenção de Raquel. Era naturalmente com Irene. Um sacrifício? Nada de sacrifício! Ninguém tivesse pena dele. E o seu orgulho? E o seu orgulho? — Molhei-me do Salu para casa. Levava os charutos na mão. Tinha comprado lá... — Mas se molhou! E o senhor já não me trazia os charutos? Como comprou no Salu na volta? Conte essa história direito... Eutanázio enfiou. A intenção veio agora com mais violência. Estava com um desejo de rebentar, de dizer: — A senhora está falando a propósito de Irene? A senhora? Pois eu amo Irene. Amo Irene. A senhora pode rir, Irene pode aparecer e cuspir na minha cara e eu gritarei na cara dela: Ninguém me proíbe de gostar de ti, de te amar, odiosa criatura! Odiosa, ordinária, quem sabe se já não te entregaste ao filho do Resende! Sim, o pensamento de Eutanázio parou aí. Aquela suspeita estagnou dentro dele como um tétano. Sim, se Irene estivesse... Irene, amante do filho do Resende, do que torce o pescoço, do burríssimo sujeito. Amante! Amante é uma palavra bonita. Rapariga dele. Do burríssimo sujeito que torce constantemente o grosso pescoço de cachaço! — Que está pensando, seu Eutanázio? — Estou pensando na minha dor de cabeça agora. — Ah! lhe dou um remédio... Espere... — Raquel saiu para procurar o remédio. É o tempo que vem Bita, com a folha de papel na mão. — Seu Eutanázio, eu queria que o senhor me escrevesse uma cópia de carta... Estou com a cabeça... — Para quem? Bita enxugou os olhos, passa a mão nos cabelos, entrega a caneta para Eutanázio. [133] — Pra ele, seu Eutanázio. Mas não diga nada. Não deixe Raquel ver. Seu Eutanázio, estou com a cabeça em tempo de partir. Eutanázio ficou escrevendo a cópia da carta. E lá pela cozinha, pela despensa, pelo quarto, Raquel falava e praguejava porque tinham naturalmente botado fora o seu remédio para dor de cabeça. Eutanázio ouviu a voz do seu Cristóvão chamando. Tinha chegado da rua com um embrulho. Suas mãos tremiam. A cara era chupada, cor de cera, com uns fiapos de barba. A testa seca e alta e a boca funda lhe davam uma expressão cadavérica. Mal podia falar. Uma voz fatigada e quando sentou-se sentiu dores nas cadeiras, uma dor em todas a juntas do corpo. — Seu Eutanázio, quando acabar de escrever.., ah!... venha... conversar, sim... sim? Venha cá para a sala... ah!... Me dói... Não sei quem possa fazer... ah... um café...zinho... pra nós. Trouxe isto de café. Este açúcar... O açúcar subiu de preço, não? Ah! Que cansaço... Pois não sabe o que aconteceu esta manha.? Vim agora... Fiquei sem comer até agora no mercado. Mariana... se zangou... porque não vendi uma lata de doce... de arroz doce... Sou culpado que não queiram? Danei-me... Não sei o que me deu na cabeça, joguei o charrão no mosaico. Foi uma choradeira de 71 Mariana. O marido veio... Ai, que falta de ar... E... Ai, que as pernas doem! E ele, como sabe, está tuberculoso mas diz que não. Uma coisa horrível.. Veio e disse.. Nem entendi o que foi... Senti uma nuvem pelos olhos. Uma tonteira... Ai, que peso nas costas... Foi preciso me levarem para casa do Isidro. Fiquei lá. O pessoal vai dizer que é... que é... por causa do negócio da Bita. Mas estava com uma fraqueza! Senti uma raiva de Mariana... Todo o arroz doce perdido. Agora... vou pagar quando receber meu ordenado... Agora que ordenado vou receber? Só tenho vale... Janira manda pedir... Disse... o marido disse... Ah! A crise de asma fez o velho erguer-se, dobrar-se em arco, as mãos trementes tentando segurar as ilhargas. Eutanázio procurou ampará-lo. Bita acudiu. Vamos para a sala, papai. Vamos. Deite na rede. Ande. Deite. Espere, deixe abrir a rede, primeiro. Assim. Segure ele num instante, seu Eutanázio. O senhor também não pode... [134] — Ai, meu amigo. Ai, minha filha. E o marido disse... — Espere, papai, depois o senhor diz. Mais tarde. Descanse agora. Olhe como as mãos dele estão frias. E tremem! Deixe eu buscar um calmante. O velho com a canseira. Eutanázio com o papel na mão. Raquel batia os pés na cozinha, procurando o remédio que não encontrava. Henriqueta, Rosália e Irene comparecem para ver o avo. Mas ele com um gesto quer afastá-las dali. — Que vocês... estão fazendo aqui? Vão... embora. Me deixem... só com seu Eutanázio. Irene revira o beiço para o lado de Eutanázio. Bita ainda procurava o calmante. Mas Raquel estava parada no meio da cozinha mascando, já esquecida do remédio para a dor de cabeça de Eutanázio. Era Irene que falava. Rosália e Henriqueta ouviam. — Como tu soubeste? — Ora, se sabe sempre. — Mas namorando ou já amigada? — Bem, não sei! Mas que é a Chica Piolho, é. — Axi! Bita ficou mesmo mais rasa do que o chão. Trocada por uma piolhenta daquele tope... Axi! — Raquel mascou o tabaco e cuspiu. Henriqueta salta com os olhos em cima de Raquel: — Puxa, tia Raquel, veja para onde cospe! Mas lá vêm os chinelos da velha Dejanira que, antes mesmo de ouvir e ver o seu velho, vai catar a conversa da cozinha. — Hem? O que foi? O que estão dizendo? — Apenas isso — explica Henriqueta, fazendo um cumprimento com a cabeça, — a mademoisele Francisca Piolho está mais feliz que Bita. — Chica Piolho? — Chica Piolho, sim. A gente chamava ela na escola de Chica Piolho porque a cabeça dela era uma mina dos bichos. Axi! — Mas o que é, enfim? — A velha já tinha compreendido mas queria que declarassem, contassem melhor. — Digam. — Carvalho, então “vivendo” com a Chica Piolho, que patetice é a sua que já não compreendeu então? [135] VII 30$000, ONDE ANDAIS? Mal Eutanázio saiu, as mulheres na varanda, com sinais e risos, começavam a comédia. — Vamos representar a comédia de seu Eutanázio. Faz de conta que a Henriqueta é ele... — Eras. Tu... — Pois eu sou o poeta triste. — O Doce Seco. 72 — Mas para que isto com meu compadre? — censurou D. Tomázia que esfarela tabaco migado na mão. — Também a gente não pode fazer a nossa brincadeira? Ele, como todo mundo sabe, tem paixão por Irene. — Por mim não. Pelo diabo! — Muito bem. Ninguém melhor do que tu para ser o Diabo! — Olhe, mamãe, acomode Henriqueta! Depois ela está se queixando. Eu sou bruta, bem previno... Aquele Doce Seco. Mas não se enxerga. Anda dizer [dizendo] por aí tudo que me namora. Um bestalhão. — Mas mentira, Irene. Ele não diz. A paixão dele é recolhidíssima... — Paixão da mãe dele. O meu eu sei quem e. — Vai atrás do filho do Resende e verás. — Mas vocês, minhas filhas, pensam que o que vocês fazem para o seu Eutanázio ele não percebe? — Que perceba. Quem manda ser carrapato da gente. Depois intrigante, enredeiro. Vem dizer coisas da gente à senhora. A senhora defende ele porque é seu compadre. Case com ele logo. — Me respeitem... Mas tu, Irene, se tens sapatos, se tens vestido bom e outras coisas, deves a Eutanázio. — Mamãe, põe isso em rosto. Eu jogo fora aquela porcaria toda. A senhora está devendo a ele. Quando se tiver se paga. Ele não deu. Ele empresta. E eu pago. — Paga com que, sua porcaria? Paga!... — Só se for com que... — diz Rosália, rindo. — Só se for o que, diz, descarada! Diz, diz! Se tu for filha do teu pai, diz. [136] — Meninas! E na sala, seu Cristóvão conversava com a velha Dejanira. — Eu que já nem posso mais comigo. Fico... Que canseira. Já estou em situação... Vou ver se seu Eutanázio arruma o dinheiro. Não posso... — Mas por que o Costa não deixa o lugar? Aquele lugar é teu. Major Alberto, agora um homem que nem é do lugar, da terra, e toma conta, é a bem dizer o Intendente. Porque aquele, esse que está aí, é um bobalhão. Ai, seu Cristóvão, é porque você não cava. Vive na rede. Fica aí se embalando. Se acostumou no mercado. Eu veio homens que cavam, ah! Olha o Costa. Olha o Araújo. Quem viu o Araújo. Remou montaria para mim, para a Santa Izabel. Hoje me nega um quilo de feijão. — Mas também, Janira, e a conta de fazendas que fizeste lá? — Na fiúza de que você arranjava o dinheiro. Você não garantiu? — Mas eu? Eu? Eu, Janira? Não põe a tua alma no inferno, Janira! — Estou assim. Onde vamos parar com esta miséria, Cristóvão? Como se pode ser infeliz mais do que eu? — Tu te queixa... — Sim... Carvalho rompe o negócio com a Bita. Era uma ajuda. — Ele deu mais de um conto de reis... — Mas paga o desaforo? O desaforo que nos fez? Até o enxoval! Quero ver se Eutanázio arruma o dinheiro. — Nossa Senhora o acompanhe. Sempre ele arranja. Também, tem por onde. — Por onde como? Como, Janira? — Pai dele tem. Aquela preta passa bem na casa dela. Afrontando a sociedade com aquela preta. Uma preta. Rapariga. O 73 que me mete uma raiva é a gente se casar, fazer tudo pra manter a virtude da gente e no cabo de tudo, a miséria vem para cima de nos e não para cima dos que vivem na amasiagem, fora da lei, da sociedade. São felizes. Olha a Bita. Se ela quisesse se amasiar já tinha se amasiado. E estava bem na fartura. E a gente se casa no católico, na lei, faz tudo para viver na sociedade e a fome roendo [137] a gente. Seu Cristóvão, não posso mais de fome. Tenho um buraco no estômago. Tenho vontade assim de comer uma maça, um figo, ter um prato de filé, comer um peru! Eu quero comer essas coisas, Cristóvão! Pensa que lá na casa de siá Amélia, pensa que aquela preta não come maça? Pensa que ela não come uva? Come maça, come uva. Quando chega semana santa come bacalhau! A preta. Bacalhau. Olha, que eu, uma criatura acostumada com todas essas coisas boas, sou obrigada a comer jiju! A comer este naco de carne velha e magra todo dia, Cristóvão? Tu não tem pena de mim, Cristóvão? 30$000, onde estais? foi a pergunta que se atravessou no pensamento de Eutanázio. Tinha que pagar o arroz doce da Mariana. Comprar um remédio para atalhar a asma do velho. Onde arrumar esse dinheiro? Agora é preciso procurar os trinta mil-réis. Se tivesse feito a encomenda para Felipe Abdul teria seus cinqüenta mil-réis. Era uma caixa para a filhinha do Felipe. Não fez. Felipe espera e agora a caixa salvaria o arroz doce de Mariana e as crises agudas da asma do seu Cristóvão. Ao menos quinze, resignou-se o velho, se não pudesse cavar trinta. Depois duma grande tosse, velho Cristóvão lhe perguntou: — O senhor sabe, seu Eutanázio, se o Carvalho fala mesmo da Bita? — Pergunta idiota. Tão idiota como a respeito de Cristino. — Cristino falou com o senhor, seu Eutanázio, quando foi? Se despediu? E a velha Janira a falar no buraco do estômago. A necessidade de comer comidas bem feitas, cheirosas. Queria sardinhas em conserva e dois ovos estrelando em cima. E mais: uma costela de leitão bem torrada. Esse desejo fez o velho dobrarse numa convulsão de tosse, ficar sufocado, os olhos do homem cresceram, as mãos se debatiam, os pés tremiam, D. Janira se ergue e Eutanázio amparou-o. — Mas me arrume, por amor de Deus, os trinta, sim? — gaguejou o velho, depois que boiou da crise. E onde arrumar? Irene deve estar rindo, gesticulando, fazendo a comédia como gosta de fazer. Ele já a surpreendeu [138] represen|tando o papel de “Eutanázio dançando mazurca com a mulher do Domingão”. A mulher do Domingão era uma enorme mulher, de papada, as pernas inchadas, os pés inchados e pesados como pranchas. E Raquel? Percebeu mais nitidamente que Raquel se inclinava para ele. Ela, com a masca de tabaco, o ouvido entupido de algodão. — Seu Eutanázio, me compre um pacote de algodão... Aquela espécie de desembestamento de Raquel. Eutanázio sentia-se totalmente perdido. Considerava-se um degenerado, tinha traído o seu destino. Não podia se conformar de que “aquilo” era o seu próprio destino. Sina, sorte, nada. Ele mesmo via, via que a força de Irene tinha sido maior que a do seu destino. Havia negado a sua própria realidade. Ninguém acreditaria no que ele andava fazendo. E a cena com Felícia? Não tinha acontecido e estava com a doença dentro do corpo como Irene. D. Gemi não aparecera e a doença a invadir-lhe também os pensamentos. Se não tivesse certo pudor em falar até para si mesmo diria: — Sou afinal um homem sem honra. — Isso Lhe ficava suspenso no pensamento, entrava na sua consciência, como uma sonda. Era moleque de recados de Henriqueta, de Rosália. 74 — Tome, seu Eutanázio, me deixe esse figurino na Mariana. — Me leve essa garrafa e me traga cheia de querosene, sim? para matar formigas. — Me vai buscar dois tostões de sabão borboleta no Felizinho? — Seu Eutanázio, me leve essas camisinhas do filho da Mariana, não deixe cair na rua, o senhor anda parece que leso. Não carece pressa. Ia também buscar uma caixa de fósforos para Raquel acender o fogão e assar um pedaço de jabá que lhe dera. Um homem sem honra. Moleque de recados. Escrevendo bilhetinhos amorosos para Rosália se entender com Janico. Henriqueta obrigava ele a decifrar charadas, a tirar adivinhações, a copiar modinhas e recitativos. Toda Cachoeira sabia. Ele queria viver fechado no seu segredo mas o povo vinha sabendo de quase tudo. O ridículo devastava-lhe o caráter. E a vaia do povo era mais terrível porque não se mostrava, andava nos cochichos da rua, nas casas, debaixo das [139] man|gueiras, na sombra do Bosque do Professor, andava surda, abafada, mas crescendo, implacável e miúda sobre ele. E isso acabava de liquidar o seu resto de orgulho, da sua irritabilidade. Toda a sua vida impregnava-se de pequeninos orgulhos, uns incontidos, como em forma de ímpetos, zangas, suscetibilidades; outros silenciosos e imodificáveis, pequenos orgulhos que não se associavam, não se caldeavam num orgulho só que fosse mais tarde capaz de resistir ao riso de Irene. Orgulhos perdidos no seu tédio, no seu desdém, na sua indiferença, até, aquelas marchas para a casa de seu Cristóvão e aquelas náuseas procurando trinta mil-réis; onde achar, onde achar? Conhecia a história do rapaz que vendera a alma ao diabo. O demônio, infelizmente, não existia em Cachoeira. Ou seria Irene? Demônio, como coisa terrível, como acontecimento inevitável, como fonte eterna do mal, era Irene, sim. E agora, como vender a alma para arrumar os trinta mil se o Diabo era Irene? Apesar de sua vida desorientada e amarga, tinha sempre rompido com todas as situações. Até com o patrão rompera... E só Irene permanecia no seu mundo de orgulho como um tumor que nunca vinha a furo. Irene apresentava-se em condição de Beleza elementar, cega e violenta como redemoinho. Eutanázio tinha sido atingido por essa força da natureza que, no íntimo, era tranqüilo[a] e inocente sem o saber. Mas Eutanázio sentia-se perdido. Irene era uma espécie de nebulosa transfiguração. O que ele chamava o “seu eu” perdia a cor, o movimento, o repouso, a sensação comum. O eu e o mundo também. Irene corrompera-lhe a inteligência e o pior: cada vez mais lúcido de que o que estava fazendo era estúpido, ridículo, aniquilador. Suas irmãs, sabia, necessitavam dele em Muaná. Mas que amizade podia ter para as irmãs? Estava esgotado. A ceguinha se embalava com os olhos monos para o teto e as mãos quase extintas tecendo paisagens e desejos no ar. Podia ir para Muaná. Agora se lembra do sítio de seu tio. O tio cachimbando, mole, na rede, imaginando os mandiocais brotando da terra, os canaviais, canoas cheias de cana para as garapeiras de Belém e cheia de farinha para o Arari. Depois abria a Bíblia e lia o episódio de Rute e Booz. Dentro do oratório uma tradução de Paulo e Virgínia que [140] Eutanázio leu debaixo do cupuaçuzeiro. A erva de passarinho forja nas aflitas laranjeiras sem flor. Na beira do igarapé que vinha sem nome da raiz da terra morna e misteriosa o miritizeiro saído [caído] era a velha estiva para os viajeiros. As montarias encostavam. As sementes paravam na espuma da preamar, se oferecendo. Uma rede de sombra caía n’água e Eutanázio não tinha nem o gosto dum banho. A barraca se escondia ao fundo. Bacabeiras subiam, direitas e conscientes de seu ar magnífico, na monotonia hostil das capoeiras. Seringueiras mostravam as suas velhas feridas saradas. O velho queria ler alto para Eutanázio as parábolas de Salomão. — Leia, antes, o Apocalipse, tio Jango... 75 Mas se ouvia a buzina das canoas que passavam no rio para onde o igarapé se derramava com todo aquele gosto de terra encharcada e morna. A voz dos búzios soprados na calma do rio. — Ei, cunhado! Ei, gente, 6 de casa! Queda o café da gente! — E o Caipirá ele chegava agora. — Não. Não é. É a Pérola. — Então tu não tá conhecendo a buzina? A Bíblia se fechava e Eutanázio não sabia caçar, pescar, andar no mato ou colher as sementes oleaginosas que a maré trazia. As relações com as irmãs eram frias, vexadas como se se envergonhassem de ser irmãos. Elas mesmas não suportavam o não dele. Era incompreensível. Passava o dia todo na rede, sem lavar o rosto, sem comer, mudo. Irene corrompera-lhe o sexo também. Há tempos que seu prazer era solitário. Irene imaginada surgindo da sombra ou dos olhos dele, correndo ou deslizando por cima do seu corpo. Irene sem corpo e com ele na solidão. Felícia tinha sido aquela dolorosa circunstância. Foi uma vingança contra si mesmo. Foi uma sede de degradação. E logo lhe apareceu a imunda moléstia. Sim, que ele teve quase a certeza de que ia adquirir o mal de Felícia. Estava fora de si, como nunca esteve. Tinha chegado de Belém. Tanto tempo afastado de Irene e Irene tratara-o daquela maneira. Mas os prazeres que Irene lhe dava eram puros, doces, cheios dela. Tinham uma corrupção diferente do prazer solitário dos adolescentes. Não era a necessidade sexual de Irene. Era apenas uma contingência para a completa posse espiritual de [141] Irene. Ou simples reflexo. Posse espiritual, era o seu termo predileto e dito em segredo. Agora para ter sensações teria de lutar contra a moléstia, seria agoniado e doloroso e Irene voltaria com um sabor de pus e sangue de Felícia, das feridas de Felícia. Afinal tinha apodrecido o seu orgulho e o seu sexo. Sentia-se mais ridicularizado por si mesmo do que se fosse vaiado por rodo o povo de Cachoeira. A sua solidão era vergonhosa. A presença de Irene já não lhe dava mais a gostosa intoxicação que dantes experimentava. Agora era o riso de Irene. Ele dançando com a enorme mulher do Domingão. A náusea de si mesmo. O esgotamento de todo o seu mundo de orgulho. A certeza meticulosamente terrível do ridículo que fazia. Dr. Campos podia lhe arrumar os trinta mil? No meio de sua angústia a voz de D. Dejanira sobe como uma praga — A minha vida é a mais desgraçada do mundo, seu Eutanázio. Me creia! Pois se desejo comer um pedaço de jabá assado na brasa, cada dinheiro? Minha vida! Minha vida! Sou, seu Eutanázio, é certo, lhe juro, sou a senhora mais infeliz deste mundo! Infeliz, infeliz, mesmo... E Irene imaginando ele e a mulher do Domingão na mazurca. Por isso Eutanázio volta a ver os óculos de Domingão escorregando pela cara colossal do homem gordo. Domingão suado, com fome, arrumando os óculos, as orelhas de gorila: — Seu... Eutanázio... Não tem por aí uns dez tostões vadios... porque... O senhor sabe o que é a gente estar com o estômago vazio. Não é a fome. Fome é na Europa, no inverno. Mas é ter o estômago vazio, assim e para quem como, como eu, quem teve banquetes em minha casa, ah! patifes! ah! bandidos... — Velho Domingão não pode mais ajeitar os óculos, os braços imensos se agitam, é a sua velha cólera de saqueado: — Bandidos! malditos canalhas de advogados! Os advogados me tomaram tudo! Tudo... E as lágrimas jorravam, a sua voz era quase cavernosa, grotesca a vasta barriga nua, empastada de suor. — Tomaram tudo! Eutanázio até se esquecia dos trinta mil. Dr. Campos podia muito bem emprestar os trinta. 76 [142] VIII CAROÇO DE TUCUMÃ Alfredo seguia pelo caminho dos campos para a escola de seu Proença. A enteada de Proença chamava-se Flor. A mulher acudia pelo nome de Rosa. D. Rosa maldizia a sina de ter ficado em Cachoeira, para, todas as manhas, antes do café, ouvir a voz da Euzébia na casinha defronte, rasgar, de propósito: Olha a cara dela, parece da coruja que vai voando parece a peste que vem de leve e que vai matando... Todo dia isso. Essa cantiga era também muito usada por Irene quando Eutanázio ficava sentado na varanda, olhando à-toa. Olha a cara dele... E Irene, assim, fazia dormir o filho da Mariana e se deliciava em maltratar Eutanázio. Proença tinha um jeito especial na voz para chamar: — Flor? Ó Flor... E Flor vinha, langorosa, com papelotes no cabelo e uma tesoura de cortar unhas: — Me estás chamando, pai Proença? D. Rosa achava mimoso que Flor chamasse assim para Proença. Flor tirava caspa de pai Proença. Flor se queixava dos alunos para pai Proença. Flor lia o Tico-Tico e tomava a lição dos alunos, diante dos olhos vidrados, ásperos, depois ferozes, de louco, do seu Proença. Flor, quando Euzébia de lá soltava a fatal cantiga que tanto provocava e abalava os nervos de D. Rosa, cantava à meia voz uma modinha terna. E Proença, com a palmatória, a loucura nos olhos, pensava no lindo corpo de Flor que lhe aparecia bem seu, estalando as juntas dos pés, depois da meia noite, quando D. Rosa roncava conveniente. Alfredo seguia para aquele Proença, aquela Flor, aquela D. Rosa de voz grossa, adversária minuciosa das baratas e das aranhas e doida para se livrar daquela Euzébia que lhe queria namorar [143] Proen|ça, se acender para Proença. Homem era homem, Euzébia era mulher perdida. Proença que se atirasse para Euzébia. Então haviam de ver o que era D. Rosa, com o revólver do Proença! E Flor, langorosa, acenava com a cabeça, os cachos loiros, os olhos azuis como a toalha que D. Rosa punha na mesa, aos domingos, para o cozido que tanto Proença gostava. — Mamãe se mata... Mamãe se mata com a tentação dessa mulher... Mas não está vendo logo, mamãezinha, que pai Proença não vai dar confiança para aquela mulher? Basta saber que ele respeita a senhora. Também se nao respeitasse... Que desânimo para Alfredo aquela escola do Proença. O seu Anglo-Brasileiro ia se desfazendo aos poucos, ou pelo menos, se esfumando. Já queria ficar ao menos em Belém, nalgum grupo escolar. Mas a escola de Proença com a Flor, D. Rosa, o recreio à tarde, o Baltô sempre apanhando séries e séries de dúzias de bolos, Euzébia jogando a cantiga pra D. Rosa, a quantidade de chamadas — Flor? Vem cá, Flor... E Flor vindo, com o seu andar tímido, a pureza dos olhos azuis, das mãos alvas, da boca e daqueles cabelos que deixavam um perfume e uma vaga claridade entre os alunos maliciosos e oprimidos. Tudo aquilo era justamente o anti-Anglo-Brasileiro. Tudo fazia para que Alfredo se encharcasse de sonho, de imaginações. A bolinha subia e caía na palma da mão. A realidade daquela viagem para a escola só estava nos cajus. Alfredo tinha era camaradagem pelos cajueiros. Eles ensinavam mais que o seu Proença. Eram os cajus e a água fria na cuia da casa da siá Águeda. Ia de propósito por lá para tomar água. Uma cuja cheia. Que água! Os potes eram velhos, 77 com limo e, nos fundos do quintal, o poço. As filhas da siá Águeda tiravam água com um balde de cuia. Aquela água fazia esquecer a terrível expectativa de chegar um dia a apanhar um bolo de seu Proença. Uma tarde, foi nos primeiros tempos de escola, ele foi posto nu pelo Proença. Flor sorria candidamente e Proença com os seus olhos de louco e o riso canalha gritava: — Mas Flor, Flor, olha o pipi dele. O pipi, Flor! E Flor punha a mão na boca e seus olhos ficavam de uma cor vaga, indefinida, se enchiam de uma doce censura a pai Proença. [144] Depois ficava séria. Era diante dos alunos. Pai Proença se excedia e então Alfredo via nos olhos já definidos de Flor uma censura azul que era para o menino qualquer coisa de humilhante, de cínico, de pior do que o riso, o olhar, os gritos de Proença. No seu caminho de todas as tardes, Alfredo sentia uma preguiça, um tédio, [um] desalento. Nada de ir para Belém. Seu pai embrulhado com os catálogos e caminhando de gravata e tamancos para a Intendência. Sua mãe sem dinheiro. Lucíola na janela, com os olhos compridos em cima dele. Lucíola de vez em quando lhe mandava uma cocada, uma fruta, um prato de arroz doce, um peixe. D. Amélia caçoava. Isso era um tanto encabulativo para Alfredo. Lucíola incomodava-o. Crescia nele, ainda que obscuramente, uma aversão pelos excessos de ternura de Lucíola, já passada, mas que continuavam nele como tatuagens. Todos os excessos de Lucíola não compensavam as lacunas deixadas por dona Amélia. Não ocupavam aquele vazio que só D. Amélia podia ter povoado. Alfredo deixava em si terras incultas que ninguém mais cultivaria: grandes trechos perdidos para sempre. E por que sua mãe guardaria para sempre, como segredo, a história do poço? Agora, menino solitário, ia criando prevenção contra o mundo. Como lhe doía dentro dessa prevenção a marca das feridas e a quase certeza de que a febre o levaria para o cemitério, para aquelas sepulturas que são, no inverno, como poços. Os mesmos poços dos quais D. Amélia tanto fez para o salvar. A cena de ficar nu no meio da sala e seu Proença gritando: — Ele se sujou. Sujou as calças. Pequeno cagão! Olha, ó Flor — e ficou marcado a fundo na sua prevenção. Faltava quem o compreendesse, o animasse, o ensinasse não só a estudar como lhe mostrar a vida. Sentia-se só, distante, imaginando sempre. Só a bolinha tomava corpo de gente, era uma amiga. Era o corpo da imaginação. Bolinha fiel e rica de sugestão! Ela sugeria tudo, ele achava desde a salvação do Brasil até uma caixa de charutos Palhaço para sua mãe. Sim, tinha idade para pensar já que o Brasil andava errado. E sonhava com um presidente da República que fosse o salvador do país. Nilo Peçanha, por exemplo, era uma espécie de cidadão incorruptível para ele. O mundo dos homens, de longe, ainda se [145] mostrava cheio de esperanças de grandeza. Ele então armava um Brasil faz de conta. O palácio do Catete era um resto de caldeira velha que ficara debaixo da Folha Miúda, na beira do rio. E o Brasil entrava na terra como o primeiro país do mundo. Rio de Janeiro era não só a cidade dos mais belos edifícios do mundo. Guanabara tinha o condão de reunir na sua beleza a entrada do Bósforo, o golfo de Nápoles e outras belezas da Terra. Florença tinha mármores? (Lia isso, um pouco confusamente num livro que seu pai tinha) pois o Rio possuía as maiores obras de arte do mundo. Tudo no Brasil devia ser enorme, esplêndido, mais belo e maior. Ficava intrigado ao saber que o Mississipi era mais comprido que o Amazonas. E o Nilo? Não, não! Pois a sua bolinha ia fazer o Amazonas o mais comprido, o mais largo, o mais belo rio do mundo. Um trecho seu 78 seria mais belo que toda a costa do Mediterrâneo. Comprava ou mandava fazer grandes couraçados, centenas de submarinos, palácios e parques. Tudo que via nas revistas de importante e que pertencia ao estrangeiro, a sua bolinha passava para o Brasil. Bolinha mágica e infatigável. Era mais poderosa que a lâmpada de Aladino, que ele não conhecia. Com ela desapareciam as feridas, a pomada de boião, as palmadas de Gualdina na cidade de seu Ulisses. E assim ia fazendo de conta. Cachoeira que ficava no inverno com os campos debaixo d’água tinha de ficar livre das inundações. Ouvira seu pai dizer: — Isso, psiu, psiu, isso... Isso na mão dos ingleses estaria assim? Dava-lhe um doce. Pois é a Holanda. A engenharia holandesa. Imagine, psiu, psiu, os holandeses em Marajó. Outra gente. Nossos políticos são uns patifes. Uns “venha a nós”... Pois a bolinha fazia os holandeses ficarem por baixo dos engenheiros brasileiros. Cachoeira seria uma obra-prima da engenharia brasileira. A bolinha o levava do insondável e imenso mundo dos meninos para onde quisesse levar. Lucíola ia ficando na sombra daquele mundo como uma coisa perdida ou incômoda. Tinha mesmo delícia em ser ingrato, em se tornar frio ao quente olhar comprido de Lucíola. Ah! Se ela soubesse que D. Amélia o salvou, o arrancou do poço! Talvez fosse assim a caricatura de Maria concebida sem pecado. Lucíola virgem havia concebido [146] atra|vés de D. Amélia, seu Espírito Santo, um filho messias que a tinha de salvar daquele triste croché que já estava fazendo quando ia aos bailes, jogada a um canto sem nenhum cavalheiro que viesse tirá-la. E assim o croché se desdobraria pela vida. Não somente nos bailes mas em tudo. E virgem mãe, mãe de Alfredo, Lucíola se salvava. Era seu filho. Tinha a sua maternidade. Nem pensava, não chegava a imaginar que Alfredo podia crescer, se tornar homem. Ficara tão ingênua com a sua maternidade que Alfredo lhe havia de parecer sempre meninozinho, chorão, precisando das saias dela. E Alfredo vinha percebendo, com inesperada e inquietante nitidez que Lucíola sofria, sofria e o seu sofrimento era aquele olhar comprido, aqueles presentes, aquela reserva para com ele que ela aparentava. Alfredo não chegava ainda a compreender que o regresso de Lucíola ao croché era mais doloroso, mais humilhante, mais aniquilador do que se tivesse ficado logo no croché. Aquela ruptura de sua maternidade tinha sido um desses acontecimentos que no mundo não tem explicação nem limite. A natureza tinha desencadeado em Lucíola uma tal agitação que ela chegou bem a calcular e por isso foi jogada ao seu lugar de solteirona, de crochezeira, como um ser disposto enfim a exercer furiosamente o seu ofício de solteirona. Seria duplamente solteirona. Alfredo era o último elo com a vida, com a humanidade. Não se podia ser mãe contra a natureza? Não podia ter direito a Alfredo? Não podia? E Lucíola para se iludir mais um pouco, tentava aquele olhar comprido, aqueles presentes, lhe mostrava as roupinhas de criança, tudo isso com timidez, com uma preocupação de não se comprometer porque sabia que Alfredo pegava as coisas no ar. Era já entendido demais. Sim, entendido demais! Verdade não atribuladora para Lucíola! Tão entendido! Alfredo de livro no braço, menino inteligente. Enchiam de vaidades o menino, enchiam... E Lucíola começava a odiar aquele entendimento, aquela inteligência. Pensou que Alfredo podia ficar paralítico, mudo ou cego, vitima de alguma congestão, uma doença que o inutilizasse para sempre, para a vida, até para D. Amélia. Assim o menino seria dela, unicamente, numa cadeira de rodas empurrada pelas mãos. [147] Assim, sim. Ela não voltaria ao canto da sala vendo a estúpida Irene dançar no esgulepa com o filho do Resende nem Henriqueta valsando pretensiosamente com aquele sírio empoado e cheirando a charuto caro que quando vinha de Belém era para mostrar que sabia dançar bem. 79 E Alfredo com a bolinha faz tudo para não chegar à escola. Os passarinhos andam pelas moitas, saltando e os calangos correm pelos caminhos. O moinho de vento com as suas asas inúteis. Um galo cantando lhe dá uma vagarosa melancolia, uma espécie de lassidão e não sabe porque lhe vêm certas cantigas de sua mãe cantando baixinho quando costura, quando remenda roupa e engoma. Gostava de ouvir sua mãe cantar. Era onde ia buscar mais ternura, mais jeito de se acomodar com ele, de compreendê-la. E D. Amélia, cantando, se lembrava dos igarapés sombreados de sua terra, de sua mãe, dos açaizeiros com açaí pintando nos cachos, de montarias deslizando na maré, os remeiros com os remos suspensos, os camarões pulando no rio. As suas colegas, os sítios, aquele filho que desceu a escada e caiu na maré debaixo do jirau. Maré cheia. Ela estava ardendo em febre no quarto da palhoça. Sua mãe cantava assim com essa quentura humana, essas lembranças e ele não sabia que quando ela cantava para o adormecer, era com todo esse peso de sofrimento, de saudade. Por isso achava aquele encanto nas modinhas de sua mãe. Vinham da carne, da sua experiência, de sua aventura nos seringais, do filho morrendo debaixo do jirau e sucuriju levando, daquelas febres sombrias e fabulosas das Ilhas. Lucíola não tinha essa vida, essa humanidade nos seus acalantos, nas suas modinhas. Sempre traía um tom artificial, sempre cantava como para se exibir. Bem criança, gostava. Depois foi sentindo em sua mãe, não porque era sua mãe, uma voz que o engrandecia, falava mais de perto com ele. Caminhava com a sua bolinha, o seu faz-de-conta, com tudo, desencontrado e inconsistente. E Lucíola o salvara do poço? Salvara? Lucíola lhe parecia boa mas misturada de ridículo, em liquidação como artigo de comércio que não achara venda e ficava [148] jo|gado debaixo do balcão. Depois percebera as intenções, as insinuações contra D. Amélia. Influencia de D. Amélia? Talvez. Mas descobria isso por observação própria. Lucíola, exatamente, não podia tolerar D. Amélia. Tinha acontecido que Lucíola odiava o seu “Espírito Santo”. Por que... (isso foi violento e muito tempo vivo no pensamento de Lucíola) por que D. Amélia não morria? Por quê? Alfredo ainda estava bem menino e se D. Amélia morresse, o pequeno cresceria junto dela. Voltaria nao agora que está mais taludo, mais entendido. Mais entendido — um calo nos pensamentos de Lucíola. Batesse no calo, era um pulo, o pensamento saltava, não sabia em que se amparar. Agora já era quase inútil D. Amélia morrer. Inútil. Se morresse agora não faria planos. Faria um último e desesperado esforço. Quando viu que ele crescia e se afastava dela e começou a sua terrível certeza de que não passava afinal de nada neste mundo, teve um desejo insistente, minucioso, bem lúcido de ... D. Amélia tomava café em casa. Não, não era assim. Ela ia sempre na casa de D. Amélia, não custava. Veneno de rato havia em sua casa. Era possível. Depois... Chegou a levar o pozinho embrulhado, uma pitada. Conversou e a conversa foi sobre as chuvas, as febres, o cemitério alagado. — E a senhora não tem medo de febre? — Eu? Peguei muita nas Ilhas. A morte não me faz medo. Olhe, eu tinha coragem de me envenenar um dia. Não que tenha esperança de achar um motivo ou que venha a fazer. Aquela afirmação viera de repente, tinha sido desnorteante, com que intenção? Por que o nome de veneno? Mas Lucíola se consertou e pensou: Por que não experimentar? Por que não toma? — É? A senhora não tem medo, D. Amélia? Pois eu tenho. nunca me matava. Deus me livre. E digo mesmo, D. Amélia, tenho medo de morrer, sabendo que vão me enterrar numa rede num tempo desse com o cemitério alagado... 80 — E os defuntos que não sabem nadar? — Como podem se agüentar nas covas cheias? — Mas essa D. Amélia tem cada uma! — Lucíola riu-se. (E senhora”, como sabe nadar, bem podia...) — Imagine que Alfredo ia pegando em veneno de rato, menina... [149] — Hem? Como? Ah? — Mas essa exclamação tinha sido para si mesma. Coisa horrível! Coincidência? Adivinhava? Veneno de rato? O embrulho se afrouxava na mão. Dona Amélia ria com os seus dentes muito alvos. — E a senhora usa esse veneno com meninos assim? Com Alfredo? — Mas os ratos, menina! Mania também do seu Alberto... — D. Amélia tinha percebido uma censura. Ia começar um duelo. Lucíola ao menos se amparava naquela censura. Veneno em casa de menino. Em casa de Alfredo. Mãe relaxada. — Cuidado... A senhora facilita... — Ora, Lucíola. Mãe é mãe. E... — E, mas a senhora perdeu um. Aquele. A cobra. — Não era somente uma censura agora, era uma alusão direta ao passado. Vergonhoso passado. Quem era essa preta? Quem era. O que não fez. D. Amélia comprimiu os lábios como era costume. (Um dia passo um raspa nessa besta). Mas lhe vem logo a lembrança do poço donde salvara o filho. Agora tem em face de Lucíola, desprezo e triunfo. — Quer dizer que foi por falta de cuidado? — Não, senhora. A senhora estava com febre. — Quem lhe disse isso? — Rodolfo. A senhora contou a ele. — Ah! — E a senhora botou fora o veneno? — Guardei. — Mas guardou? Aquela preta quem sabe se não atirou de propósito o filho n’água, não deu para o sucuriju? As vergonhas que fez. Como teria acontecido? E os homens? E o pai do anjo! O veneno não seria a justiça? Hem, a justiça? Sim, sim! Nem se lembrava! Ela matou impunemente o filho e agora Deus pela sua mão a castigaria. Pronto. Mãe condenada. E Alfredo, filho de uma mulher sem honra. De uma mulher assassina! E quantos já não tinha feito, e os abortos? Mãe miserável Febre, febre! Matou o filho. No silêncio que se fazia, Lucíola fervia em planos e idéias, desejos e ódio. D. Amélia tranqüilizara-se, olhando para o folde [molde] do casaquinho até bonitinho de Lucíola. [150] — A senhora tem alfavaca, D. Amélia? — Ah! menina, não tenho. — Didico quer porque quer comer peixe hoje com bem alfa. vaca. A senhora gosta? — Para mim o tempero do peixe é a pimenta. Muita pimenta. Lucíola trocou a pimenta pelo veneno. Pimenta e veneno. Veneno e pimenta. O peixe da morte. Justiça para as mães desnaturadas! Ouvira a voz do promotor, uma tarde, acusando a Evangelina, no Júri, que tinha morto o filho. E D. Amélia vivendo bem com seu Alberto, se fazendo de senhora e sem que ninguém suspeitasse que jogou o filho na maré! — A senhora tem saudade de seu filho, D. Amélia? Era parecido com Alfredo? Aí D. Amélia estacou. — Pergunta essa sua... Não, não tenho... nenhuma. — A senhora está brincando... — Eu vejo que só quem sente as coisas são vocês, não é? 81 — Não, não, D. Amélia. A senhora...Não. Mas a gente pergunta por perguntar. Na verdade foi uma pergunta tola minha... — E o Didico trouxe o peixe? Nem vi ele passar. — Pouco, D. Amélia. Só mesmo para a janta. Mas botou na cabeça que quer alfavaca... E olhe, D. Amélia, mande Fredinho fazer uma bocada de peixe lá em casa. Mande. — Mando. Deixe ele se lavar primeiro, mudar a roupa. — Não, não! Eu dou! Mudo a roupinha dele! Eu faço! Não se incomode! — Era desta vez mais perversa e D. Amélia até o pescoço com aquilo. — Vou dar banho nele primeiro e depois ele vai. — Disse a mãe, num tom resoluto que não admitia mais nada. — Pois mande ele... — disse Lucíola se levantando, apertando o embrulhinho na mão, com o suor de despeito, derrota, da indecisão do plano e para substituir todos os seus grandes gestos que iam resolver o grande problema, fez apenas o gesto de querer abotoar o peitilho do casaco. Quinze noites pensando. Quinze noites. E não pôde, não pôde, não soube, refletia ela mais tarde, arrependida, ter a coragem! [151] Mas Deus havia de castigar D. Amélia que largou o filho na maré. Mãe assassina e tendo como filho um menino como Alfredo! Era capaz de ter tentado matá-lo também. Quem sabe? Pobrezinha da criança. Nas garras de uma fera. D. Amélia era um personagem daqueles romances que Dadá lia emprestados do Salu. Era uma criatura digna da forca. Que remorso não ter vingado a morte do inocente e assim trazido ele para junto dela. Alfredo nunca mais podia esquecê-la. E Lucíola agora sente raiva, o remorso violento e crescente de não ter dado o veneno, de não ter sido a Justiça em pessoa... E o que lhe doeu, o que mais lhe triturou os nervos foi encontrar mais tarde o fatal embrulhinho esquecido no oratório atrás da imagem de S. José. S. José, protetor de Fredinho. Teve então um certo ímpeto de virar todo o embrulhinho na boca. Agora a justiça devia ser sobre ela porque não quis ser justa, não teve coragem. Não foi piedade, dúvida de que fosse crime, nada disso. Foi um medo estúpido, um medo idiota, que se derramou dentro dela, impregnou-lhe os nervos, os tecidos todos, a garganta, a voz, os pensamentos todos. Medo. Mas de que? Não tinha rezado? Não estava convicta de que era a Justiça de Deus? Santo Expedito não estava vendo? Era preciso salvar Alfredo da convivência daquela mãe sem moral, sem alma que matou um filho. E não tivera coragem! Era um frangalho agora. Tinha perdido o sagrado momento que não voltará nunca mais! Alfredo retarda o seu caminho. Que bom não ir à aula! Um passeio nos campos seria uma viagem pelo mundo com a bolinha de tucumã pulando na palma da mão. Lucíola queria falar com ele mais tarde. Para que? Faltava em Lucíola era aquele sinal de ternura que em tão pouco tempo D. Antônia lhe deixara. Era uma preta. Passara uns meses no chalé, carregando-o, fazendo ele dormir, ajudando D. Amélia no serviço de casa. Lucíola tinha o cheiro da eterna estranha, não recendia a catinga da raça, era dum branco encardido. Tinha o cheiro das velas de Santo Expedito, das paredes descascadas da velha casa de siá Rosália, do pistom azinhavrado de Didico, daquelas pomadas que Dadá usava para o rosto. Tudo isso vinha subindo agora em Alfredo. Lucíola pertencia àquele corredor escuro onde se penduravam armações de [152] cadeiras, um peso de dois quilos, uma espingarda velha. Corredor onde, toda a vez que entravam, Rodolfo e Didico cuspiam. Faltava-lhe o ar do sexo que tanto havia em D. Amélia, em D. Antônia, em Aurélia. Na própria D. Prisca. Todas elas conheceram homens, foram mães, tinham os ventres satisfeitos. Talvez Lucíola quisesse subsistir no menino, não morrer de todo. Queria ficar marcada naquele menino que crescia, ia se entendendo, se fazendo arredio de hora em hora. Mas estas 82 marcas eram em Alfredo, em certos pontos, como feridas bem vivas. A própria bolinha abolia Lucíola da primeira infância. Lucíola extinta ou melhor nunca existia no faz-de-conta. Os braços de D. Antônia eram escuros, gordos, macios como travesseiros. Aquela pele lhe deixara, em quatro meses, mais pegadio que Lucíola. Lucíola queria compensação de tudo que dera e Antônia fora embora sem saber mais dele. Tinha dado aqueles braços de graça. Ele porém misturava, em certas horas, no seu quase remorso, algum desejo de ser grato, de ser mais acessível. Alguns momentos a toada do boi, que Lucíola cantava, subia nele como uma reconciliação. Mas o Alfredo agarrado na saia de Lucíola se acabava mesmo e quando D. Amélia lhe contava as cenas de choradeira e denguice, sentia vergonha. Censurava intimamente a mãe por ter consentido naquilo. Em todo caso, as melhores cenas de que tinha lembrança eram ainda uma visão tranqüila e habitual que ia se esfarelando em outros sonhos, se deformando no desejo de partir. E coisa curiosa, apesar de ter se acabado o menino das saias de Lucíola, a Lucíola, com o prato de papa correndo atrás do emperreado Alfredo, não tinha se acabado. Chorão e já crescido e papinhas atrás dele! Lucíola estava mais viva na sua imaginação, na sua memória, do que a própria Lucíola em pessoa. O que havia de real, de inextinguível nela tinha se recolhido em Alfredo na imagem que ele ia fazendo até apagar de vez a Lucíola que acendia velas para Santo Expedito e escamava os aracus para Didico. Siá Rosália tinha levado quase tudo daquelas cinco criaturas. O montepio, certa vaidade de ter mãe, etc. e agora Dadá vivia na janela, de mão na testa, com a floração daquelas espinhas. Mas sempre lhes deixara uma vaidade: a de chorar e lamentar a morte [153] de uma santa mãe. Na verdade que eram sinceros e se não choravam simplesmente a perda de sua mãe (diabo do montepio!) faziam de tudo um motivo para falar sempre chorosamente de siá Rosália. Havia nisso muita coisa de mistificante, sem dúvida. D. Amélia dizia: — Eles querem ser mais que todos. Nenhuma mãe como siá Rosália... Ninguém para chorar a morte de uma mãe, como eles. Ate o menino sentia-se constrangido com aquelas lamentações — e porque mãe era só uma na terra. Ah! uma mãe! E Dadá cantava. Triste no mundo sem ter mãe... E Lucíola: — Sim, que quando se encontra uma pessoa que trata a gente muito melhor que cenas mães... Alfredo repelia e queria pelo menos ser grato ao seu mundo. Siá Rosália lhe dera uma cidade ideal; a velha como que se destilava na sua imaginação. Ficava sem as misérias do montepio e da vaidade. Dentro de Alfredo estava livre da língua de D. Dejanira, da reunião da D. Duduca e dos próprios filhos. A bolinha caía no chão e ele não interrompia o faz-de-conta que estava na cidade. Ulisses ficaria na sua cidade sem bondes e sem calçamento. Seu Proença ficaria chamando Flor toda a vida e D. Rosa podia rezar todas as noites para fechar o corpo das pragas e da modinha de Euzébia. Lucíola ficaria consertando a tarrafa de Didico. D. Amélia, sempre poupada de carinhos, o visitaria de vez em quando e nas férias ele vinha tornar a bênção breve e quase distraída que seu pai lhe dava, com aqueles olhos murchos e tão íntimos dos catálogos. Sua vida solitária crescia com um lagarto. E cheio de superstições, de medos, de covardias, quase rancores, desalentos e vacilações. O paludismo lhe deixara marcas profundas. Sim, precisava também sair de Cachoeira por causa da febre. De vez em vez lá vinha a febre. A febre ainda lhe podia levar para aquele 83 cemitério que o inverno alagava. Amanhecida gritando, batendo os dentes com o frio, a dor no baço, a sede, o amargor na boca. Aquilo lhe deixava preguiças, pessimismos, mau para os pequenos que vinham buscar leite e farinha. Mas a febre lhe deixara uma revelação, que [154] foi quase decisiva para o seu caso com Lucíola. Alfredo voltara de Ponta de Pedras, com o pessoal do Clube Palmares que fora jogar futebol. Seus pais tinham ficado. Ele, por entusiasmo, pedira para vir com os rapazes. Em Cachoeira, a febre deu. Lucíola foi buscá-lo. Já grandinho e já distanciado de Lucíola, Alfredo recebia os cuidados dela com algum constrangimento. E uma tarde, depois da febre, depois do sono, ficou numa quebreira doce, de olhos fechados a que se acostumara. Veio Lucíola. Ele fez então que dormia, de verdade. Apareceu Dadá, e logo Didico. — Está dormindo, disse Lucíola, abanando as moscas de cima da rede. — Teve uma febre fone, não? É o diacho — falou Dadá. — Sim, é preciso tratar dele — disse Didico com voz baixa — como eles trataram de Lucíola. Daquela vez que mamãe estava em Belém eles trataram e... Agora tem que tratar. — Eles ficam nos devendo essa... — Mas não, Dadá, pagamos. — Emendou Didico. Ele, de olhos fechados. E falavam em “eles” com uma certa intenção... “eles”, “eles”... E Lucíola, muda. Por que Lucíola não falava? As palavras adquiriam uma significação particular, uma intenção que o acabrunhava. Ouvindo, de olhos cerrados, depois da febre, aquela conversa baixa sobre a sua rede, como se conspirassem contra ele, sentiu que Didico e Dadá se tornavam figuras desconhecidas, Lucíola se diminuía, o quarto parecia hostil. Lucíola, apesar de todos os cuidados com ele, já não passava duma criatura que o tratava para um favor. E “eles”, “eles”... As três vozes morreram, ouviu passos, as moscas zumbiam, a quebreira da febre lhe deixava uma sensação de depois dum sonho, dum pesadelo. Tinha delirado? Lucíola nunca lhe contou como foi o delírio. Por que? Teria dito alguma coisa de ruim? Queria saber. Mas Didico mais tarde lhe mostrou uma cara de poucos amigos. Dadá... Talvez fosse simples suposição. E quando sua mãe chegou, todos exageraram a febre do menino. O menino passara bem mal. Delirou muito. Febre sem aliviar. — Quem manda você vir logo?... Podia ter ficado. Talvez deixasse a febre por lá... [155] Mas os olhos de Lucíola estavam triunfantes e irônicos para D. Amélia. IX A CONSPIRAÇÃO DOS CATÁLOGOS Dr. Campos ria bem-aventuradamente. Tinha uma ampla risada, os cabelos em desalinho, o anelão de bacharel no dedo e os olhos azuis como que enevoados. Suava, suava, furiosamente. Se desabotoando, se abanando, sem sossego. — Mas entra, Eutanázio. Entra! Não posso. Entra para a sala e espera. Vais ter um edênico espetáculo... Fecha as persianas. Não... Deixa o olho canalha da moral espiar mas desde que o grande vento dos campos entre é o que importa. Esperame... Eutanázio arriou-se na cadeira de embalo. Quebrado de fadiga e de constrangimento. Tinha de pedir os trinta mil-réis. Dr. Campos, porém, não lhe deixou pensar mais. Eutanázio fez um movimento com os olhos como para tentar fechar as janelas. Mal pode erguer o busto da cadeira de embalo. Dr. Campos estava nu em pêlo, a risada, a vermelhidão do rosto e o princípio de embriaguez nos olhos azuis. — Mas doutor... 84 — Que fresco, que fresco, Eutanázio! Ah! os tempos edênicos! Eva e Adão em Cachoeira. Se Bita visse, hem? Que tal meu apolíneo corpo? — Dr., o senhor devia ir assim às audiências... — Sim, com toda a nudez forte da justiça. Os juizes deviam ir nus porque são intocáveis e... — Mas as janelas estão abertas, doutor... — Nada... Me dá aquela toalha para me enxugar. Com toda a minha nudez fico em mísero estado de suor! Ó rapaz lá de dentro, vai ao Salu. Mas é incrível o Salu. Pois dá uma surra todos os dias no Baltô e chora lendo o seu Manuscrito Materno. Um colossal romance. Não sei quantos volumes. Pois o homem sabe o enredo todo de cor. Passa os dias lendo. Se esquece dos fregueses, de tudo, e se encharca no Manuscrito. Uma tarde dessas foi [156] furtado porque estava num pedaço do romance que não era possível deixar. O homenzinho abandona o calhamaço. Fica doido. Acaba no hospício. Eu não leio romances. Nem os bons romances, O único que li e, note-se gostei, foi o Inocência! Sim, o Inocência. Ó rapaz de lá de dentro, vai ao Salu e traz cerveja. Quando será a nossa grande noite de metafísica? Vamos convidar o Luiz da Monta. Luiz da Monta é metido a sondar o infinito, o além-túmulo. Imagine que um dia desses, em presença dos velhos da Duduca, ele me fez a tirada: Imagine que Haeckel quis dar vida ao protoplasma no seu laboratório, quis dar vida à matéria! E tudo isso para mostrar sapiência, como diz Major Alberto. Ora, você sabe que depois velho Guaribão, apesar de toda a sua sabedoria de oficial de justiça, foi ao Juiz de Direito e perguntou se o sábio Protoplasma tinha sido inglês. Doutor Juiz, muito fino, disse que não. Tinha sido brasileiro! E logo velho Guaribão passou para o seu pessoal na casa de Duduca que o Brasil podia se orgulhar de possuir um grande sábio, o Dr. Protoplasma, e Araguaia mordeu os beiços de despeito. Mas o velho Ribeirão suspendeu aquelas sobrancelhas sujas, aquelas pestanas obscenas e botou os olhos no Guaribão como faz quando procura as suas drogas na prateleira: Mas o que o senhor me diz, hem, roncou o Ribeirão, hem? Velho Ribeirão escarrou depois, cuspiu junto da maquina de costura da Duduca que sacudiu os punhos danada. — Pois eu conheço protoplasma não cidadão brasileiro, mas o princípio fundamental da vida. Estudei isso na Escola de Farmácia. — Aí Guaribão pulou como um possesso. Ele não tolera Ribeirão. O parto da sua mulher foi feito por Ribeirão e ela bateu o pacau. Depois foi o Ribeirão contar as misérias íntimas do casal; as coisas que o Ribeirão está habituado a fazer. Ele que conta até os partos da senhora do Gomes, o circunspecto e encolarinhado Gomes que tem um filho de onze anos, uma lesma, mas na mentalidade e na boca do pai, um gênio. Pois tem esse Gomes a paciência, o imbecil, de procurar pelos almanaques, quais foram os meninos precoces, etc. para comparar com o filho. O filho, que inteligência! Ora, todos sabem que Alfredo, filho do teu pai, é na verdade um menino muito inteligente e acho que está perdendo o seu tempo aqui. [157] Pois o Gomes pega o seu filho, a lesma, um pequeno lombriguento e mudo, e diz que nem Alfredo se compara a ele. O pequeno nunca disse nada. Nunca fez uma brincadeira. Não corre. Não ri. O Gomes proibiu a risada em sua casa. Ai de quem ri! Só a circunspecção! E o filho, o Tales de Mileto Gomes, veja o nome, seu Eutanázio!, é circunspecto como o pai. — Sim, mas o caso... Guaribão, um braço na frente e outro atrás e bradou: — Seu Ribeirão, o senhor tem a pretensão de saber tudo. Fique na sua botica, fazendo os seus purgantes da morte. O senhor é um língua de inferno e metido a tudo saber. Pois quem me disse que protoplasma é um sábio e, para nosso orgulho, brasileiro, foi o excelentíssimo Sr. Dr. Juiz de Direito. O nosso meritíssimo julgador! Fique isso para seu exemplo! Para o senhor não se atraves- 85 sar na frente! Então um homem metido a envenenar a gente, a matar, a misturar os venenos dele, um farmacêutico, a emendar um juiz. Um farmacêutico a corrigir um bacharel! A dar ciência para os outros. O senhor estudou farmácia e não estudou as obras do Dr. Protoplasma! O senhor, um farmacêutico, não pode conhecer um sábio como Protoplasma e que é conhecido do Dr. Juiz. — Mas é história sua... — Minha? Pode perguntar a Duduca, a todos os velhos linguarudos de lá que não me deixam mentir. Foi certo. Certíssimo. Pergunte ao Juiz. O promotor faz disso uma conversa inteira na casa do Araújo. Velho Ribeirão danou-se, roncou umas coisas. Chamou de ignorante a Guaribão e Guaribão quis dar pancada no Ribeirão, [!] [Não cabe, absolutamente, na cabeça do Guaribão,] que um farmacêutico esteja à altura de saber quem e o sábio Protoplasma. Seu Eutanázio: Ele e o Gomes... Mas o diabo do rapaz não vem mais ao [do] Salu. Naturalmente, Salu está engolfado no Manuscrito Materno e se esquece de aviar o molongó do rapazinho. E este suor me persegue. Sim senhor, seu Eutanázio. Mas olhe, eu... soube que houve qualquer coisa entre o filho do Resende e a formosa Irene. Parece... Não quero adiantar... Mas. Ei, seu Eutanázio! parece que você cochila. Você precisa de um sono grande. Precisa dormir. Durma aqui em casa. Esta noite. Ótimo para viajarmos para a metafísica. Chamarei o Luiz da Monta. [158] Vem dormir aqui. Você precisa descansar, aliviar os nervos. Você sabe, Eutanázio, gosto de você. Sim, que você é um estranhíssimo sujeito. Mas deixe um pouco as caminhadas, abandone um bocado a rua e fique em casa em sossego. Quer ir comigo à fazenda? Mas o diabo desse pequeno não vem com a cerveja... Acabo saindo assim mesmo — que é que está olhando, menina, hem? Passe daí. Siga o seu caminho. Ó inocência! — Quem é? — Uma menina me olhando, veja! Vai dizer. Também não posso mais tolerar esse pequeno demorando. É o Salu com o Manuscrito Materno. Ai, meu Sagrado Coração de Jesus, que cerveja demorada! Como desejava a minha aposentadoria em Belém! Ficaria na terrasse do Grande Hotel, bebendo gelados. Uma visitinha esquiva e discreta ao lupanar... —Por que não pede? — Falta tempo de serviço. Sim, que minha mulher tem sempre os seus prédios, temos o nosso pé de meia. Mas a gente cria amor ao ofício. Tem pena de perder os anos de serviço. E isso e um vício, Eutanázio, a justiça, a carreira... é um vício o interior. Eu me perdi pelo interior. As caboclas mais cheirosas do Tocantins me tiraram todo o caráter. Fiquei perdido. Cachaça, rede e cabocla com jasmim e a sesta. Resultado: acabei em Cachoeira, visitando Felícia em companhia de Dionísio. Você já reparou que Dionísio tem vaidade de beber? Ele às vezes não está bem babado mas faz por estar. Para parecer embriagado. Uma vaidade. O maior ideal do caboclo é tomar um vasto pifão! Uma glória vê-lo assim tombando, tonto. Que glória? Uma vaidade. Dionísio tem vaidade de seus porres. Não diga que ele está se matando, se degradando mais, etc. Não, ele se enche de dignidade. Uma honra, um pifão! E assim fiquei no interior do Pará, eu que vim das montanhas de Minas. Como sabe, sou mineiro... — E o pequeno? — disse Eutanázio para dizer qualquer coisa naquele curto silêncio. — Desgraçado taverneiro que lê o Manuscrito Materno! Aposto que o romance... ó, vem cá... — Dr. Campos se debruça na janela diante dos olhos assombrados do filho do Luiz Filho, que passava. [159] — Passa pelo Salu e diz pro meu pequeno vir logo. O que é que ele está fazendo? Vai depressa... — Dr. Campos voltase para Eutanázio. — Se minha santa mulher me visse assim! 86 Você sabe, é uma santa senhora. Católica fervorosa. Culta. Que grande cultura! Educada em Lisboa, em Paris. U Homero no original. Formada em letras clássicas... Sabe quantas línguas! Tem sido mártir, não nego. Fica por la.. Os meus cunhados não se suportam muito. Mas que queres? Eu me casei por amor. Um delirante amor. Ela muito romântica. Eu, delirante. Pensaram que foi por causa das fazendas. Do gado e dos prédios. Pois banquei o digno. Casei com separação de bens e fiquei no juizado. A minha toga de juiz está no fundo da mala. Comida de traça, rapaz. Mas antes a traça que o suborno. Os de imaculado arminho. Ah! as que estão impolutas... Mas você sabe o que o safadão do Marcelino me fez? Eutanázio não podia mais suportar a conversa. Mas era preciso. Tinha de achar um meio para pedir os trinta. Velho Cristóvão esperava. Velha Dejanira com o buraco no estômago. Tinha trinta mil-réis. Uma nota de vinte e outra de dez. — Você sabe, fiz aquela sentença por camaradagem. Ele não tinha razão. Pelo direito acabava na cadeia. O resultado foi o canalha ganhar a questão e andar dizendo que me deu dinheiro, me molhou a mão, etc. É claro que pagou umas cervejas. Mas não me emporcalhei com o dinheiro daquele pulha. Devia andar vigiando a mulher. Patife. Pois vou fazer uma declaração à mulher dele. Se ela não quiser, então minha vingança será outra. Pego o bruto e ameaço de reformar a sentença, de meter-lhe na cadeia. Mas Eutanázio, vê se o moleque... Além das cervejas sem gelo, toda essa demora. Ah! a minha aposentadoria... — Uma promoção... — Não quero, Eutanázio... Chama mais responsabilidade e no meu cargo de juiz substituto posso tomar os meus pifões mais tranqüilo e mesmo teria que conviver mais com os desembargadores, toda a maquina da Justiça. Enfim, nem sei mesmo o que sou, o que quero... Quero morrer juiz substituto ou aposentado. De repente há um estalo na rede em que se embala o Dr. Campos, e a rede tomba com a carga do Dr. Campos no soalho. O [160] Juiz salta com a boca cheia de nomes e sua como um carvoeiro. — Aqui as casas em Cachoeira tem o inconveniente das escapulas... — Acende o charuto e passeia pela sala, nu, se abanando. Eutanázio alisa ainda mais os cabelos , sem poder dizer nada. Estava como idiota e com aquela alusão do namoro de Irene lhe roendo os últimos restos de raciocínio. A conversa do Dr. Campos como que o entorpeceu profundamente, prostrou-o na cadeira de embalo. Não havia mais nenhum rumo para o pedido dos trinta mil-réis. Não havia senão a cara de Irene confundida com a cara do Resendinho sempre a torcer o pescoço. Veio-lhe a visão de Irene se despindo para Resendinho e o imbecil... A visão logo se desmanchava para ficar uma confusão de braços de Irene e Resendinho e aquele pescoço... Sentiu-se preso àquela cadeira, uma necessidade de sossego, de repouso, dum grande sono. Torpor e fadiga. Estava oprimido por uma terrível sensação de monotonia. A do seu desespero. E Dr. Campos passeava, o charuto, o ventre disforme, as narinas resfolegantes, as mamas do peito cabeludo. Via o ventre agitado, o peito, um vago desejo de que toda aquela massa branca e grotesca rebentasse. Mas o entorpecimento aumentava, sentia-se tolhido nas pernas, a cabeça doía monotonamente. Será que é a doença que vai voltar? Vai voltar? Quis reagir, quis desentorpecer, esticar as pernas, respirar mais forte; que peso enorme de alguma coisa sobre ele. Irene calcando os seus joelhos grossos no peito fundo. Resendinho e Irene misturados e os berros de Raquel. Irene com a barriga crescendo, os vômitos, os enjôos cada vez maiores e Eutanázio era sempre o motivo dos maiores vômitos... Que peso nas pernas, 87 que desejo de assistir à explosão dessa massa humana que se agita e fuma à espera da cerveja do Salu. Dr. Campos, com a intenção de atirar cada vez mais Irene contra ele. Talvez seja com um fim... Mas a cabeça estava sob aquela sensação de monotonia calcinante de sol de meio-dia com um alvião e os baques. Dr. Campos estava odioso. E lhe vem o seu chicote com o Juiz, nu, batido pelas chicotadas a caminho da cova... Depois nada lhe veio mais ao espírito. Ficou numa treva, num esgotamento absoluto. Cerrou os olhos. Aquela massa de carne bamba e suada não existia mais. Dr. Campos armava a rede para [161] nela esperar a cerveja. Viu aquele silêncio, o recolhimento de Eutanázio e ficou fumando. Liquidado esse homem, liquidado. — Quer a rede, Eutanázio? Sente-se mal? — Não. Não. — Os olhos se abriram vivamente mas as palavras lhe vieram com extraordinário esforço. A língua pesada. Será a doença? — Mas, ó verme, onde estavas? Eutanázio ergue dificilmente o busto. O moleque estendia a cerveja ao Juiz. Dr. Campos põe primeiro as mãos nos quadris para contemplar e investir contra o moleque: — Hem? Põe aí a cerveja. Não estás vendo a mesa? Não tem mais olhos, seu vagabundinho? Sempre na safadeza, peraltíssimo! Arrumo-te um livro... Não se retire, não se retire, antes que eu lhe diga tudo o que tenho de dizer. Já não lhe disse isto? Sempre quando falo tem de ouvir. Como é que só porque mandei por a cerveja na mesa já vai se escapulindo? Onde estava? hem? Que fazia, que demorou tanto? Salu, nada! Salu, Salu é a sua vagabundagem, é a sua vadiação. Patife... Arrumo-te um livro daqui... Não me olhes assim, hem? — E para espantar o moleque atira aos seus pés o primeiro volume do Código Civil comentado. Eutanázio ergueu-se a custo. Dr. Campos abre a cerveja que lhe borrifa de espuma. — Não quer? Não quer uma cervejinha? — Não. Já vou. — Já vai? Mas você esta com a fisionomia doente, assim... Que tem? — Nada... — Dinheiro? — Como? — Falta dele? — Não, não... E o calor... — Ah! E eu vou tomar a minha cervejinha. Assim, nu, sinto-me como um velho bufão germânico... Hem? Assim posso escrever para A Verdade. Eutanázio, para evitar mais uma tirada do juiz, encaminhouse para a porta. E os trinta mil? E agora? Sem coragem nem de [162] voltar para Cima! E o juiz falando em dinheiro... E o velho Cristóvão com a asma e o arroz doce de Mariana derramado no mosaico do mercado. Mas saiu com os braços de Irene enroscados nos braços de Resendinho. Voltar sem os trinta para a casa do seu Cristóvão era para D. Dejanira... Seu Cristóvão nada podia dizer. Mas a velha fecharia a cara, resmungaria no quarto umas tantas coisas e as meninas podiam fazer a comédia, podiam inventar que ele dançou com a mulher do Domingão no Por-Enquanto. E não sabia o que fazer. Tinha de sondar os velhos de Duduca e falar com Gomes. Gomes louvaria o filho. Tales de Mileto Gomes era o menino fadado a dar nome a Cachoeira. Era! E Gomes depois explicaria, com esses e erres na língua, que naquele ínterim”, lamentava deveras não servir o amigo, como andaria, etc. Era assim. E para terminar: — Oxalá que outro mais feliz do que eu sirva o amigo... — Oxalá era a palavra que enchia a boca do Gomes. Tinha ouvido na 88 oração do arcebispo. Gomes beijou o anel e depois o arcebispo falou. Salu o oxalá. Nunca mais Gomes deixou a palavra em paz. Era uma eclesiástica palavra, cheia das regalias dum sacerdote, convivendo entre indulgências, pastorais e imprimatuns no Arcebispado. Era oxalá em toda a conversa, em companhia do “ínterim”, andaria, lamentar deveras, recreia o espírito, apresentar escusas. E trinta mil-réis não apareciam. Tinha de ir à casa de Duduca. Mandaria um bilhete ao Felizinho. Ao Proença. Este, não. O mais safado de todos. Eutanázio vai no sol, suando e quase sem forças. Da janela do chalé, D. Amélia pôde vê-lo ainda: — Minha Nossa Senhora, que aquele filho de Deus vai fazer nesta hora. Pobre Eutanázio. Este homem morre na rua. Morre na rua. Acaba no caminho da casa de seu Cristóvão. Seu Alberto não toma mesmo uma providencia. Não tem energia com o filho. Então com aquela doença, com aquela fraqueza, este homem andando assim pelo sol pela chuva, nessas caminhadas, esse homem se acaba, minha Nossa Senhora... Nunca vi homem mais descansado do que esse seu Alberto... Pois o filho nessa... Hum! Também nunca vi pessoal mais explorador, mais danado do que essa gente dele. Pois não estão vendo que esse homem só falta cair [163] com o vento? Não estão vendo que o homem se acaba com aquela doidice? Tem gente neste mundo mesmo que não tem pena do próximo. Isto é para seu Alberto agarrar ele e mandar para junto das irmãs. Prender ele aí. Rodolfo, que ouvia com o componedor na mão, tinha um sorriso velhaco. — D. Amélia, a senhora não sabe de nada. De nada. A senhora se soubesse ficaria de boca aberta. Eutanázio, coitado, está perdido. Imagine que o turco quer levar a dívida na polícia. Diz que não tem consideração com Major Alberto. Falou isso no mercado. — Conta? — O que? A senhora não sabe que Eutanázio deve a Deus e ao mundo lá para cima? — Mas a conta do Abdul seu Alberto pagou. — Mas e a conta do Nader, do outro turco. Um contão. Quatrocentos e sessenta mil-réis de fornecimentos para a casa de seu Cristóvão e eu vi os fornecimentos lançados na conta. Só fazendas... Um horror. — Mas aquela gente não está vendo, não está vendo? Isto me causa até agonia, é certo, Rodolfo. Me faz ficar sem saber. Olhe que eu sou mal com Eutanázio por causa do gênio dele, mas não posso tolerar uma coisa dessas. Faz pena e dá raiva. Dá, Rodolfo, me mete uma raiva porque isso não se faz a um próximo daquele. Não posso, meu Deus, não sei como foi que Eutanázio se deixou dominar por aquela gente. Caiu, de vez, de vez mesmo. Ó sina. Meu Deus, eu tenho um filho... Deus não me castigue, mas que meu filho não tenha esse destino... E seu Alberto sem energia, um homem que chega da Intendência, pega esses catálogos e pronto. A riscar cálculos, fazer projetos. Parece que estou vendo o fim de Eutanázio, Rodolfo. Estou vendo. Ora, ora, por este sol, sem comer, na certa atravessando esta distância para naturalmente fazer um recado para aqueles demônios... Rodolfo enchia o seu componedor. O riso velhaco, a namorada com o filho feito quisto na barriga. Um quisto. Riso velhaco. Sente uma certa vaidade de ser velhaco, esperto, fazedor de filhos nas moças alheias. Eutanázio é para ele um motivo de eterna e perversa [164] sa|tisfação. Por que, não sabe. Sempre é delicioso assistir à miséria dos outros. E D. Amélia fica na janela, pensando, pensando em Eutanázio, na viagem de Alfredo. Seu Alberto sempre adiando. Não se movia. Os catálogos, na verdade, conspiravam contra a partida de Alfredo. Quem tinha de arrumar tudo era ela. Era ela. Alfredo crescendo em Cachoeira a ver a 89 sem-vergonhice do Proença com Flor. Se pudesse botava no fogo todos os catálogos de seu Alberto. Todos. X FELÍCIA, O CRUCIFIXO E OS ARRANHA-CÉUS Ouviu a velha Dejanira dizer: — Não senhora! Não senhora, Raquel! Não poder [podes] dizer uma coisa dessa do Cristino! De mim diga tudo, mas de Cristino, não. Dizer isso... Horrível, Raquel, Horrível, Raquel! Raquel, onde estas, onde estas, minha filha? O que tu disseste foi horrível... Se alguém me contasse que tu disseste isso, não acreditava que fosses capaz. Raquel, minha filha, não! Com sua irmã? Com a Bita, Raquel? Raquel, tu endoideceste, minha filha! Estamos todos doidos aqui, estamos! Ouviu exclamações indignadas por parte das mulheres. Raquel tinha dito uma coisa horrível? O que foi? Eutanázio estacou na escada. Como sentia-se fraco, fraquíssimo! Sem esforço para subir a escada quanto mais para participar daquela discussão. Era um ator que tinha obrigação de entrar em cena e não podia. Raquel berrava. Ouviu a velha Dejanira dizer: — Te deita, Cristóvão, tu não pode... D. Tomázia, com gritos, tentava acalmar Raquel. E Eutanázio sentou no último degrau da escada com a sua negra desolação. Aquela sensação de monotonia continuava. Imensas pedras batidas de um sol terrível nasciam dentro dele. Irene batia os pés. Conhecia aquele baque de pés que vinha repercutir nos nervos, ficava como uma opressão sobre o peito. Henriqueta, na sala, gemia com dor de dente. Na certa, ia lhe pedir para arrumar um calmante. Os trinta mil-réis estavam enrolados no bolso. Os dedos se impregnavam daquelas cédulas sujas e úmidas, rotas. [165] Davam-lhe repugnância e ódio. Um barqueiro pedira a ele: — Seu Eutanázio, lhe confio esse dinheiro para entregar à Felícia, o senhor conhece. Aquela rapariga... — Sim, conheço... — Disse Eutanázio, com avidez. — Entregue. As notas estão se largando mas é dinheiro. São trinta mil-réis. Tive pena daquela rapariga. Pobrezinha... E doente. É para ela se tratar. Me disse que seu Ribeirão enxotou ela da farmácia. Que lhe deve oito mil-réis. Chamou do que a boca dele achou de dizer. Ela tinha ido pedir um remédio. Tão desesperada que a desgraçada estava com as doenças! Leve esse dinheiro porque agora tenho que sair. Vou aproveitar a maré. Vim e prometi mandar. O senhor veio a tempo. Foi a Providencia. Porque, do contrário, tinha de ir ainda e assim atrasava a viagem. Eutanázio, ouvindo a discussão, sente que devia aviltar-se mais, aparecer coberto de lama na discussão e babado. Andar de dia, como se fosse tempo de entrudo, com a cara pingando Lama, roto, rindo um riso de babado. Arrastar-se de joelhos para Irene. E Irene bater-lhe, bater-lhe, cuspir-lhe. Que ela tivesse a vontade de vomitar com o enjôo da gravidez (Resendinho e o pescoço se torcendo era estranhamente como uma espécie de força...) lhe vomitasse sobre a cabeça e todo mundo visse. Uma vaia. Ele fazia o maior carnaval de Cachoeira e se abraçaria, com toda a sua lama e com todo o seu desespero, nas pernas de Irene. Era capaz do monstruoso, do inacreditável, do que logicamente não podia acontecer com ele. Havia nele esse momento em que todos nós somos depravados e varridos de toda a nossa aparência e mostramos sobre todo o nosso tremendo esforço de recalcação o que há de baixo e de necessariamente crapuloso dentro de nós. Há uma necessidade do mal no ser humano. A sua perversão que pula do inconsciente é como uma advertência. Em Eutanázio, a perversão como sempre vinha do espírito. O instinto e sempre puro. Irene podia vir à porta, descer para se encontrar com 90 Resendinho e pisá-lo na descida. Resendinho teria um risinho e D. Dejanira lá de cima gritando para Raquel: — Isso não! Está variada, Raquel! Cristino? Tudo ele pode ser mas fazer isso? Ele? Ele? [166] Eutanázio riu-se. Quem, Cristino? Não era capaz? Do que o gênero humano não é capaz? Não é capaz? Há forças cegas e soltas em nós que escapam à nossa consciência e assumem às vezes um poder demoníaco sobre... Irene é uma força solta. Um temporal dentro de si. Se pudesse confessar a todo mundo, confessar a sua miséria, a sua desonra, aquilo que de incompreensível e sujo, injusto e pútrido se passa nele! Confessar a um amigo. Um amigo que compreendesse. Não o absolvesse, não o aconselhasse. Mas compreendesse. Um amigo a quem se mostrasse com as suas torpezas e as suas possíveis reações. Somos capazes da maior infâmia e da... “Grandeza” foi a palavra que se esboçou no seu espírito. Todo homem tem o seu momento de grandeza. É capaz dum ato de grandeza. Quando não chega a esboçar esse ato tem, em suma, o ato da morte. Mas Eutanázio sente que ele está infamemente ligado à vida. E se desespera e fica naquela prostração na escada, ouvindo o barulho, sabendo que ainda podia reagir, que so faltava um aceno, um olhar de compreensão de alguém, para se levantar, regressar à casa de suas irmãs. Contar histórias a ceguinha. Criar um gato muito bonito para ela. Tudo fazer para lhe comprar uma vitrola. Se pudesse um dia, comovido e com os olhos úmidos, juntar nas suas mãos as mãos de sua irmã cega e beijá-las, umedecê-las de lágrimas. Coisa absolutamente impossível. Ele seria capaz de fazer isso com a própria Irene, se apareces. se uma contingência, etc. — Raquel, pára de gritar, mulher! Só diz: E certo! Foi! Foi! Foi! — Sobe um alarido. O velho Cristóvão tosse, tosse, tosse. Que noite! Felícia deve estar com fome e com as feridas doendo, esperando o barqueiro. Os trinta mil-réis fazem ela pensar no Ri- beirão. Alegria de ir pagar a conta do Ribeirão. O grunhido satisfeito do boticário seguido de catarro. Os remédios. E ele: — Ganhaste? Quem te deu? Quem foi a vitima, o infeliz? Vai fazendo isso com eles porque ao menos eles podres correm para mim. Quanto? Repetiria o que lhe disse uma vez em presença de Eutanázio, quando Felícia apareceu com quinze mil-réis para comprar um Elixir de Nogueira. As sobrancelhas revelavam cobiça, safadeza, [167] a satisfação de que Felícia contaminava os homens para dar dinheiro à botica. Felícia compreendia o risinho encatarrado, as mãos trêmulas dele com a cédula? Felícia, pensa Eutanázio, ainda está em tempo de correres e me alcançar na escada da casa-pesadelo. Tira o dinheiro do meu bolso. Corre, Felícia. Já não posso voltar para te entregar o dinheiro. O meu último esforço, parece, se reserva para subir esta escada. Vem, Felícia. Matarás a tua fome, pagarás Ribeirão. Tuas feridas ficarão secas. Cantarás então no fundo do quintal, estendendo a tua camisa cerzida no capinzal. Comprarás anil e água sabonosa para desencardir a tua pobre mágoa. Estão aqui no meu bolso as duas notas sujas e úmidas, daquele suor do bolso dos barqueiros. São duas miseráveis notas, Felícia. Eutanázio, depois, sobressaltou-se. Raquel tinha vindo à porta, como cega, cuspindo em cima dele. Felícia, se chegasses e procurasses o dinheiro, eu ficaria calmo. Ficaria na escada, dormindo ao relento, quase feliz. Seria o teu ato de grandeza para mim. Flutua nele a idéia de que Felícia adivinha (o crucifixo lhe dirá?) e pode vir, correr e alcançá-lo. Por que não vens? Que faz aquele crucifixo esfumaçado naquela barraca? Por que ele não grita para toda Cachoeira a fim de que alguém mais forte e veloz chegue à escada e tome-lhe os trinta mil-réis. Que idéia ridícula! Chega a refletir. Que miséria! Endoideço! Mas quem grita o 91 “endoideço!” não é Eutanázio, porém o velho Cristóvão que abre a janela da frente, tossindo: — Eu endoideço! Meu Deus! Meu Deus! Endoideço! Na escada, sumido na sombra, Eutanázio espera ter forças para subir. Felícia se distanciou dele como as estrelas da noite. Deve estar esperando o barqueiro. Felícia volta para ele, num instante, como uma estrela cadente. A lamparina consome a última gota de querosene e Felícia esperará no escuro. Depois chorará baixinho junto do crucifixo, se queixando da maldade do barqueiro. Tinha zombado dela. Esperará toda noite, ouvindo os sapos, as corujas e os grilos atrás da barraca. Os carapanãs a cobrirão como poeira. Esperará no seu banquinho até cair de sono, rolar no chão, desamparada pelo crucifixo e esmagada pelos arranha-céus. Bita saíra antes da discussão. Precisava andar, não ouvir mais [168] nada. Que ele dissesse de cara o que lhe mandou dizer no bilhete. Queria afinal uma coisa que nem sabia bem o que era. Se fosse à casa dele e ele a puxasse para dentro e a prostituísse, já nem se importava. No entanto, o que mais a horrorizava no mundo era o pressentimento de que podia acabar como Felícia. Todos os noivos beijavam-na, corrompiam-na, mas virgem, pensava, virgem era! Seria demais, meu Deus, sonhar com uma casinha sua, ter um marido? E ser, agora, a eterna ex-noiva, como soube que D. Duduca havia dito. Ter agora um apelido pelo mercado, pela casa de Duduca! A eterna noiva, diz Raquel maldosamente, malvadamente. Já estava ridicularizada em sua própria casa. E a cada noivo dera o seu ardor, os beijos, a sua melancolia de moça apaixonada por uma valsa, por um recitativo, um solo de violão, uma serenata, alta noite, embaixo da janela, por uma mesa de doces no dia de casamento, com o bolo de noiva para partir. No seu, sempre dizia, havia de ter um bolo de noiva com a aliança dentro como foi no casamento da Isaura. Ser noiva foi, naquele tempo, uma paixão, o seu ideal de donzela que sabia de cor As noites da Virgem de Vitoriano Palhares. Livro presente de aniversário de Eutanázio. Hoje a sua idade já não é para uma virgem do Vitoriano Palhares. É para Carvalho. E Carvalho aparece, até anel de aliança comprou, e rompe e joga-a na lama. Pior do que se tivesse sido mesmo desonrada. Seu primeiro noivo era fiscal de imposto de consumo. Um rapaz viajado, o ar de galã, gastando casimira e perfume, fumando charutos cubanos. Era alto e fatal, com a sua capa, o seu chapéu-do-chile, os anéis, o seu aprumo dominador. Era tal e qual um noivo de cartão postal, dos cartões postais que Bita adorava e colecionava. Ele falava polido, os olhos grandes, escuros, irresistíveis como os dos fidalgos dos romances de Salu. E Cachoeira falou que Bita namorava com todo o escândalo possível. Conversavam, até alta noite, ao luar. Ele e ela, como uma noite de amor num castelo... Bita se imaginava andando terras com aquele marido ideal, sonhava com aquela sociedade que Lúcio tanto lembrava, donde viera para se enamorar duma simples moça de Cachoeira. Depois foi o solene pedido. Bita não reparara que Lúcio tinha feito uma farsa. Quando pediu, ela podia observar que os [169] olhos dele estavam visivelmente cínicos. Lúcio gostava de fazer isso em quase toda parte. Fazia cerimônia para se divertir. E Lúcio afinal, partiu. Ela veio deixá-lo na lancha, ele, patético, beijou-a na presença de toda a família. E vieram outros noivos, baixando sempre de categoria, como dizia Duduca. Até que desceu ao Carvalho, que era bruto e feio, esverdeado de febre. E com o enxoval, o anel de aliança, a doceira já falada, um bilhete, e que bilhete!... E agora, sem mesmo ter uma vontade firme de vê-lo, vai a caminho da casa desse bruto. Para se humilhar ainda mais, se entregar talvez, chorar e sair enxotada. Alguém, naturalmente espiando, saberá dizer amanha que ela saiu fora de horas da casa de 92 seu ex-noivo. Que interessa? Carvalho mora sozinho na casa que seria dela. Já tinha cama, mobília e Carvalho, quem sabe, deve ter posto alguma mulher na casa. E com que cara se apresentara para o padrinho Jonas, o eterno convidado para paraninfo? E agora? Mostrar o bilhete? Toda vez que rompia com um noivo não levava carão do padrinho, mas os olhos do padrinho caíam sobre ela com uma perversa interrogação. Bita passa pela barraca de Felícia. Pensa então que Felícia é mais feliz do que ela. Não mede a sua desgraça. Não sabe bem o que é ser a eterna noiva. A lamparina chupa a última gota de querosene no quarto de Felícia. Felícia geme e espera o dinheiro do barqueiro. Já espera com uma certa impaciência. Mas Bita passando, invejando a tranqüila miséria, a conformada desgraça de Felícia. Pelo menos se acostumou, vive independente. Não pensa em noivado. Sabe para que veio no mundo. E ela? Sua vida até agora era noivar, ter um futuro. Mas o futuro se adia sempre. Os noivados somem. Os noivos riem, dançam, beijam outras mulheres, têm seus filhos. E eles se misturam no pensamento de Bita. Bita achou uma tranqüilidade tão boa naquele quarto de Felícia, mal iluminado pela lamparina já seca. Um quarto esburacado, cujos buracos eram inutilmente tapados de papel por Felícia. A rapaziada abria os buracos para olhar Felícia, os homens que entravam. Bita sabia disso. (O que é que se fazia em Cachoeira que não se soubesse em casa de seu Cristóvão?) Mas a lamparina [170] devia dar a Felícia a calma que Bita quer depois da barulheira de sua casa e da sua caminhada para Carvalho. Bateu. — Quem bate? Silêncio. [— Quem está batendo?] — Eu... — Eu quem? Quem é? Entre. — Bita viu que Carvalho não reconhecera a voz. Entrou. (Não se pode saber como foi o encontro, como principiou a conversa. Carvalho reagiu logo ou ficou surpreendido ou assombrado? Nem também se soube o que se deu em Bita. Se ela se atirou aos pés dele, etc. Não se soube do que realmente se passou. Ouve-se um grito áspero de Carvalho já no fim e uma voz entrecortada de soluços:) — Mas... Carvalho... Tu queres que eu fique por tua causa... Por tua falta de palavra... Queres que eu fique com o apelido de... de... — Aí Bita abafou a voz com um lenço talvez e Carvalho disse não sei o que, violentamente interrompendo-a. Felícia ficou no escuro. Caiu de bruços na rede, sem chorar como Eutanázio esperava. Também não se pode saber realmente o que aconteceu com Felícia. XI CLARA, AS FRUTAS E O MISTÉRIO DE CLARA Sentado na pontezinha sobre a vala, Alfredo imagina, apreciando a noite. Tinha encontrado a Moça na Boa Vista. Moça voltava, descalça, da escola da professora Lucinda. Batendo o livro no peito, o cabelo meio desmanchado, a saia já não era de menina mas de moça, mesmo. Um pouco pálida de febre, os olhos levianos, os braços, as pernas grossas. Deu-lhe um simples sorriso. Mas todas as tardes, aqueles sorrisos foram dando trabalho ao carocinho. Moça já era um amor. Alfredo, depois de Adma, procurara outras meninas. As do Cícero Câmara brincavam nos algodoeiro, com os joelhos na terra, mascando batatarana. Corriam atrás de jacintas, de borboletas, andavam [171] pela beira do rio. Eram quase ruivas, branquinhas, dançando na rua e pulando corda Ficaram nele não 93 como Acima que parou na sua memória, sentada naquela cadeira, de rosto para o lado, os lábios comprimidos de raiva Eram como figuras de cromo de folhinha. Tomavam banho na chuva, se atiravam nas valas e eram ruivas para Alfredo logo as julgar superiores a ele. Apenas o irmão Claudionor lhe passara a mão pelo ombro, lhe dava biscoitos finos. Mas Valdomira apagou as figurinhas de cromo. Valdomira tinha a voz demorada — Este aqui é o meu noivo, O meu querido. Dou a vida por ele. Sua cabeça recostada no colo dela, as mãos de Valdomira cobriam as suas mãos como asas. Era moça e noiva de Leôncio. Mas Alfredo não entendia bem. Valdomira lhe dava aqueles afagos vagarosos e a sua voz insistia: — Você vai casar comigo, ouviu? Vou esperar você crescer e você me pede à mamãe e casaremos. Eu de véu e você bem bonito, com um fato... Uma noite, ela veio embalá-lo. Tinha um vestido brilhante, pulseiras, estava realmente bonita. E Alfredo dormiu com o perfume que saía dela, com a voz que era mais demorada, com o esplendor daquele vestido. Mas depois dona Amélia contou. Iam para o arraial. Ele precisava dormir, O vestido brilhante ficou. A voz mentirosa e os braços cheios de pulseiras estavam sempre boiando naquele sono mesmo depois que ouviu, uma noite, sua mae conversar com Major Alberto: — Coitada de Valdomira. Leôncio fez o que fez com ela e a pobre quis se matar. Está salva mas ficou estragada. — Maluca, maluca. Em que dão os noivados, em que dão os noivados.., disse Major Alberto. Nunca mais Valdomira. Veio Clara. Clara não era namorada, era diferente. Alfredo já compreendia mais as coisas. Por onde andava era sempre espalhando o seu riso. Quando apanhava água do poço, empurrava montaria, em pé, em riba do banco do casco, se podia ver aqueles braços, aquele corpo vigoro- so. À5 vezes vinha, no inverno, dentro d’água. Chegava rindo, água até os joelhos, o vestido ensopado, batataranas e mururés pelos cabelos, e sanguessugas nas pernas. Mergulhava com os curumins [172] nas valas e montava no boi, batendo com um ramo de algodoeiro nos quartos do animal. Ia de montaria para a baixa do Teso, se punha em pé e da montaria mesmo apanhava os gogós maduros. Uma vez quase um jacaré ia pegando ela no meio do rio. Gostava do verso mas o inverno era que a encantava, as águas lhe faziam mais alegre, mais doida, andando em montarias, pescando jijus para isca, jogando farinha para os matupiris que boiavam na porta da sua barraca, apanhando flor de mururé que desabrochava linda dentro d’água, para pôr ao pé de S. Pedro no oratório. A ocasião, mesmo, em que Clara se revelou mulher para Alfredo, se fez inesquecível, foi num almoço de aniversário do Major. Vieram algumas amigas de D. Amélia. Clara brincando, entrou no quarto, se atirou [na cama] e ficou com o corpo abandonado com os braços jogados à-toa. Clara não lhe dera a mínima sensação de sexo, nada. Mas a impressão de alguma coisa inesperada, misteriosa e profundamente viva, O corpo ficou atravessado na cama. Os olhos pararam no teto e um sorriso se desenhou na boca com uma expressão que Alfredo não compreendia mas sentia vivamente, demoradamente, ate mesmo com uma certa inquietação. Mas se não lhe despertou o sexo, lhe deu uma obscura sensação do proibido, do intocável, a real significação duma nudez que não se podia ver nunca senão através daquele vestido e daquele único instante. Aquele corpo dominou todo o quarto, encheu o chalé, era toda a natureza. As pernas nuas tinham a cor d’água que Alfredo gostava de ver no inverno, ao meio-dia, da janela de seu chalé. Clara depois levava ele para jantar murici nos campos, em novembro, descalça, com aquele seu chapéu de pano. Voltava corada, úmida de suor, com jeito muito seu de morder ou sugar os próprios lábios. Quando ria, 94 todo seu corpo parecia rir, se agitar de uma poderosa energia. Era a alegria que Alfredo desejava. A força que queria para matar a sua febre, limpar-lhe o corpo das feridas. Clara não se queixava de febre. Tudo para ela era como se comesse uma fruta muito saborosa, meio ácida, com o sumo escorrendo pelo canto da boca. Ele a viu comendo um taperebá perto do poço. Os dentes de clara deixavam a marca na polpa da fruta e riam com os fiapos do taperebá. A boca úmida devia estar doce como a fruta. As frutas [173] pareciam ter aparecido no mundo para terem prazer também em ser saboreadas por Clara. As frutas eram mais gostosas comidas por ela, partidas por aqueles dentes. Uma tardinha, Clara comia uma manga quando lhe aparece um rapaz. Era o Honório. Ela fez que oferecia a fruta e ele, num pulo, tomou da mão dela a manga. — Ah! me dá! A manga que está tão doce, estava já no bom. Me dá, anda! Correram um atrás do outro, ele se escondeu atrás do tronco do ingazeiro. Clara agarra-o, segura-lhe um pulso, mas é o tempo que ele se torce e puxa-a para si num inesperado e violento abraço e beija-a uma, duas vezes, como se estivesse provando a doçura da manga que tinha na boca, nos dentes de Clara. Mas Clara lhe tira a manga e recua, meio afogueada, olhando para Alfredo que assistia recostado no caixão do poço. — Mas tu tá doido, Honório. Tu não repara. — E passava a mão na boca e olhava atravessado para o rapaz que ria, escorado no ingazeiro. — Ordinário. Tu queria era que te largasse um balde d’água na cabeça... Para Clara o mundo era aquele taperebá, aquela manga, aqueles beijos. Dava para Alfredo muruci com açúcar, amassado com as suas mãos. E lambia e chupava os dedos lambuzados de muruci e açúcar. Os dedos pareciam mais gostosos do que o próprio muruci. Era como uma criatura que tivesse nascido também das fruteiras, dos muricizeiros, das resinas, dos mururés, daquelas águas e daqueles peixes que as grandes chuvas traziam para Cachoeira. Clara ficava em seus olhos de menino como se nunca mais envelhecesse, como aquela Folha Miúda que está sempre verde na beira do rio. Quantas vezes viu da rolando no campo debaixo do muricizal e logo se erguendo, compondo o vestido por causa do vento. Clara devia ter voltado a ser menina para andar com ele, de mãos dadas, pelos campos, ensinando-o a caminhar entre os juqueris no meio das jacitaras. Clara não era como as outras moças e meninas que vieram depois, lhe dando tentações, curiosidades viciosas, proibições, faz-de-conta lhe fazendo cada vez mais entendido e triste, desconfiado. [174] Mas uns tempos fazia que Clara não vinha. Ouviu também, uma tarde, sua mãe, conversando com Major Alberto: Está aí o que Clara foi fazer no Araquiçaua. Uma menina que sabia nadar tão bem! Também ali é arriscado. Ali jacaré boiou a uns dois metros de mim. A salvação foi a beira, peno... — Quem, mamãe? Perguntou Alfredo, assustado. — Clara, meu filho. — Que foi? [Enterrou-se ontem na Laranjeira.] — Clara? Clara, mamãe? Mas sua mãe teve de enxotar uns patos que se aproveitaram da porta aberta. Não respondeu mais nada. Nem podia talvez responder. Ele mesmo sentiu até medo de perguntar de novo. A pergunta voltou para dentro de si e ficou para sempre. Nunca mais quis tocar no assunto. Dona Amélia não gostava de recordar histórias de afogados. Sua mãe lhe dera a entender que era proibido perguntar e sua curiosidade de menino que tanto se excitava com as proibições, se escondeu na sua esperança de ver um dia Clara 95 estendida de novo na cama. A todo momento podia aparecer, podia vir dos campos com a cuia cheia de murucis. Aparecer com as grandes chuvas, entre os matupiris e os mururés. Vir pela água com o vestido pesando, as sanguessugas agarradas nas pernas com o sorriso cheirando a bacuri e a boca cheia de resina. Poderia Clara ficar reduzida a uma caveira? Era possível a caveira do seu Cristóvão, a gente via-a já sob a pele. A dele, Alfredo, mesmo vista na sombra da parede — via uma forma vaga de esqueleto. Mas Clara? Para onde teria ido o riso dos dentes de Clara? Sonhou: Clara, com os pés n’água como raízes e pelo corpo nu as frutas nasciam já maduras, amarelinhas. Murucis, mangas, bacuris, taperebás. Era só estender o braço. Quanto mais se apanhava fruta cio corpo de Clara, mais nascia fruta. Clara ou a morte de Clara tinha de ficar mistério dentro de Alfredo. Ficou dentro do carocinho. Toda a vez que Alfredo desejava uma menina para passear nos campos, ser amiga dele no colégio, ler com ele os livros de viagens, o carocinho fazia Clara da idade do menino e era meia hora de sonho. Com a morte de Clara as frutas deixaram de ser, como eram, tão gostosas. [175] Agora, Moça. Mas Clara permanece com aquele corpo grande e belo atravessado na cama. E Moça é uma ansiedade, a bolinha subindo e descendo, lhe mostrando a vantagem que há nos meninos maiores para namorar, fazer uma porção de coisas ocultas e proibidas. Alfredo vai agora esperar Eutanázio para lhe contar alguma história. Na janela de casa, como adivinhando que ele está sentado na pontezinha, Lucíola, de mão no queixo, sente sem querer, sem esperar, aquele arrependimento, aquele remorso. Foi o medo. O medo que se entornou dentro dela, gotejando primeiro, depois inundando. E Alfredo para sempre perdido! Não tem também a esperança de um homem parar defronte da janela e apontar: Você vai casar comigo. Agora o noivo é aquele fogão. Dada teima em ficar na sala, como pedindo para Santo Expedito que lhe cave, em todos os recantos da terra, um noivo. E a limpar as unhas, a pôr rodelas de pano nas espinhas e .a abrir o figurino olhando os vestidos de noiva. Lucíola vê que a sua irmã pode, apesar de tudo, conseguir ainda um noivado. Isso lhe é uma eterna ameaça. A solidariedade no infortúnio não é uma frase vã nem nunca envelhece. Lucíola teme que a força de Santo Expedito, das espinhas, das rugas empoadas de Dadá possam ainda atrair um infeliz. Um infeliz, sim, pensa ela. Essa consciência da ameaça vem nascendo justamente quando a perda de Alfredo a martiriza tanto. XII NOITE DE SILÊNCIO NO CHALÉ Velho Cristóvão encontrara-o na escada e carregara com ele para a sala. D. Dejanira se calou e Raquel pôde, no quarto chorar, com o lençol abafando os soluços. Na sala, depois de entregar os trinta mil-réis, seu Eutanázio não pôde deixar de sorrir quando velho Cristóvão lhe perguntou: — Você ouviu? — O quê? — O que Raquel disse? — Não ouvi. [176] — Ah! — E depois de um silêncio: — Pois não dizem que a Bita não é mesmo mais moça? — Velho Cristóvão ingenuamente escondia a discussão escabrosa de Raquel com a velha Dejanira. — Você não vê isto? Não vê? Calaram-se. Um silêncio insuportável, sem remédio. Uma lamparina lenta e de morrão mal feito tinha preguiça de dar luz. Na varanda, as cartas do baralho se espalharam na mesa. As moças iam jogar. Esperavam uns rapazes para o jogo. Os rapazes 96 depois entraram, atirando pilhérias, rindo. Começaram a jogar a tostão e a vintém. — E quem disse? — Eutanázio interrompeu o silêncio da sala. — Como saber? Seu Eutanázio, fazer uma pergunta dessa em Cachoeira? Como? — E não sabe bem a história? — Não, não, seu Eutanázio. Mas me diga. Sabia já, não? Eutanázio vacila, olha para o chão. Henriqueta gritou: Quem quer ver sua sorte! Leio canas! Descubro amores... E Irene ria alto. Velho Cristóvão desejava que ao menos uma pessoa em Cachoeira não soubesse. Era infantil isso. Mas o sentiu profundamente como se essa pessoa, por ignorar, pudesse repelir toda a verdade e salvar Bita. — Hem, seu Eutanázio? O senhor sabia? O seu silêncio diz que sim... — Não, seu Cristóvão. Não sabia. Bita é uma criatura muito falada em Cachoeira. Os seus noivos foram os autores de toda a infâmia. Os homens não prestam... Não prestam... — Ah! Seu Eutanázio, zoa por aqui, zoa por acolá. Mas está na mão de Deus, está na mão de Deus. O incrível para Eutanázio era que velha Dejanira assistisse à cena sem intervir. Calada, a cabeça baixa, talvez chorando. Ouviu o velho dizer [tudo, não esconder o que realmente Raquel teve coragem de dizer]. A velha sentia-se gelada por dentro. Henriqueta insistia Leio a sorte. Descubro os podres... As cartas dizem... A eterna fome desaparecera por momentos. Mas a lembrança do dinheiro na mão do velho lhe fez falar: — Quanto, Cristóvão? [177] O velho ergue os olhos molhados para sua mulher: — Dejanira, é pra pagar o arroz doce de Mariana e comprar o remédio que o Novais me ensinou. — Havia uma cansada súplica nos olhos do velho. — Mas quanto? — Trinta. — E quanto é o arroz doce da Mariana... — Depois se vê, se vê, Dejanira. Estamos agora conversando. A velha quis insistir mas estava sem animo. Raquel tinha lhe dito tanta coisa... Nem se queixar podia mais. Era inútil estar contando para Eutanázio. O velho ouvira tudo. Ouvira tudo. Imagine que Cristino uma vez encontrou Bita aos beijos e abraços com o Bituca, o segundo noivo... Seu Cristóvão, para que falar mais nessas coisas? Cristino também falava muito... Siá Dejanira, Cristino nunca levantou uma infâmia. Pode chamar ele de tudo... E depois já nem me incomodo. Quando que... Eu... Cada uma que tenha a sua sorte. Eu tenho que cuidar de mim... Beijos e abraços... Veio a crise de asma. Na varanda o jogo era interrompido porque Irene descobrira cartas no chão. Houve discussões e os rapazes falavam áspero. Um deles saiu e Eutanázio ainda pôde ouvir: — Bando de ladrões. As mulheres ainda mais. Ainda mais. A voz foi desaparecendo, descendo, se espalhando na noite, correndo pela rua, enchendo Cachoeira. — E a Bita ainda não veio donde disse que ia? — Deixa a menina espairecer, seu Cristóvão. Coitada... Eutanázio escapou-se dos dois velhos, do alarido do jogo na varanda. Ainda ouviu a voz da Raquel atrás dele, na escada: — O senhor já vai tão cedo, seu Eutanázio? Não vá. E olhe, não se esqueça dos charutos. 97 Mas já ia no meio da rua quando, correndo atrás dele, Henriqueta, com um lenço no rosto pediu: — Me arrume, seu Eutanázio, um bálsamo para esse dente. Estou jogando mas a dor ora passa, ora se alteia... E uma panela... Desta vez não soube como não ficou na varanda, só, a um [178] canto, olhando o jogo. Talvez fosse a fadiga. O último riso de Irene, no jogo, lhe deu uma tal impressão de vaia e solidão, ao mesmo tempo, que se sentiu impotente para ficar, para continuar a receber aquela humilhação que em muitas noites era quase doce, necessária, como o seu próprio sangue. Como se fosse vício aquela humilhação de todo instante. Voltava, porém, experimentando já o arrependimento de ter voltado. Seguia para a casa de Duduca. A maldade ali deve estar gostosa como ventrecha de pirarucu assada, a pimenta nas feridas alheias tem um largo consumo sem imposto. Encontra-se com Dionísio cambaleando. Depois, num minuto, o babado fixou um grande olhar sobre Eutanázio e tombou sem uma palavra. Ficou no capim da rua como um mono. Eutanázio teve o vago terror de que podiam suspeitar dele. Sim, muita gente em Cachoeira achava que ele tinha cara de quem praticou um crime. Mas eram idéias absurdas, irritou-se ele. Aquilo era tão comum em Dionísio! Para que acudir? Ele saberia por si mesmo se levantar. Um dia, como Dionísio, tombaria e era possível que fosse para sempre. Mil vezes a vala de Dionísio do que Irene e com este pensamento não sabe por que lhe vem a voz de Henriqueta: Leio as canas. Descubro os podres. E caminhou para a casa do Jorge. O sírio, na porta, apreciava um bom cigarro. Magro e lívido, só se deixava ver na testa, no bigode, nas orelhas, o resto de seu corpo como o de seu caráter, parecia abolido. Eutanázio não parou. Deve ao Jorge uma conta velha. Cento e poucos mil-réis. Remédios para Rosália e Irene. Não sabia mais o que era. Ah, sim! Umas garrafas de vinho para o aniversário de Irene. Nessa noite ela foi dançar na casa do Major Emiliano com Resendinho. Na casa da Duduca, a costureira, na máquina, mostrava o branco dos olhos para velho Guaribão que fala coçando a cabeça, majestosamente. — No leito da finada. E o Dr. campos não quer me dar razão. Além do processo que tenho de levantar contra velho Ribeirão que andou contando todas as particularidades da doença de minha mulher, como conta de todo mundo, tenho ainda de levar pra cadeia esse patife que fez o que fez num lar e num lar [179] póstu|mo, como bem disse o nosso amigo Gomes. Isso parece que só se passa em Cachoeira, seu Eutanázio. Esse Ribeirão, noutro lugar, já tinha sido expulso a toque de caixa. Pois na semana passada uma senhora manda chamar ele para uma consulta e ele vai dizer na farmácia — ora, quem logo! Ao Nico! — que a senhora tem um tumor em certa parte das... — Naquela sua cara, Araguaia? — interrompeu Duduca se dirigindo para o velho funcionário municipal que enrolava o seu cigarro. — Não estou para te dar resposta, Duduca, hoje. Me levaram um porquenho de casa e esso parece que foi castego de Deos. Tanto que caçoei do Antônio, do cabresto dele... — Uma porquinha ou um leitão? — interrompeu Guaribão, com malícia, disse mais tarde o Sr. Gomes que na mesa folheava, aparentemente alheio à conversa, uma revista velha. — Seja o que diabo for. — Não, Araguaia. Tem de especificar. A lei... Mas quando se tratava de um furto na sua casa, velho Araguaia perdia a cabeça e respondeu: — Ao diabo a lei... Velho Guaribão riu, mas no íntimo percebeu que a ofensa era pra ele. Ele tinha de defender, em tese, as sublimidades da lei. 98 Esfregou as mãos, e sentou-se para começar a defesa. Mas o Sr. Gomes se levantou. Era baixo, cabelo partido ao meio, muito penteado e recendendo a brilhantina. O rosto muito bem escanhoado e um bigode curto dava à boca, ao riso, não sei que de irritantemente macio e postiço. De vez em quando a palma da mão alisava o bigode e o dólmã lustroso de goma, tendo ao bolso de cima a corrente de ouro do relógio. Era um pequeno fazendeiro. Criador. Mas estava para vender a fazenda por causa do cerco que lhe fazia o Dr. Lustosa. Dr. Lustosa era advogado em Belém e deseja um dia ser um grande fazendeiro em Marajó. Arranjara grandes inventários, ganhara muito dinheiro. Estava rico. Velho Guaribão dizia que ele, com a ambição de possuir uma grande propriedade perto de Cachoeira, avançara no patrimônio municipal. Viesse a demarcação. Ao que Sr. Gomes acudia com a cabeça, confirmando. [180]— Oxalá que da discussão nasça a luz, meu velho amigo. Eu ia contar da minha demanda com o meu poderoso vizinho Dr. Lustosa mas... Vamos saber se leitão ou porquinho o animal que fugiu ao aprisco do meu amigo Araguaia. Que acha você, Araguaia? — Estou hoje com o meu rematesmo, a menha dor de cabeça e quero a descussão se adeie. Dexa premero saber quem foi o ladrão do porco. — Vocês quando estão para meter o pau na vida alheia, dizer histórias de todo mundo, não têm cerimônia, nem dor de cabeça. Agora mesmo a pele do próximo foi cortada a miúdo. Quando é para alguma coisa que se aproveite, ficam aí, um empurrando na ilharga do outro... — falou Duduca, levantando-se, sacudindo o vestido, procurando uma agulha no chão. Mas o Sr. Gomes, então, para encher aquele silêncio, para evitar de falar contra o Dr. Lustosa que sempre tinha as simpatias de Duduca, começou a dizer: — Tales de Mileto, hoje, me fez uma coisa que me assombrou. Tenho medo de perder aquele menino. Deveras. Menino assim inteligente às vezes não sobrevive. Mas isso é o povo que diz. Afinal o povo vive de abusões. E uma pessoa educada não deve olhar o mundo pelo prisma do povo. Oxalá que todos pensem nesta sala como julgo pensar. Admirei deveras o meu menino. Pois, Eutanázio, o menino me disse: — Papai, já sei quem era Tales de Mileto. O senhor me disse a história dele e sei de cor. — Sabe de cor, meu filho? — “Tales de Mileto era um menino sábio, como papai diz de mim”. Fiquei assombrado. Um menino de dez anos! Que resposta. E ele silencioso. Comportado que só ele. Tenho em mira mandá-lo ainda este ano para Belém. — Quero ver seu Tales de Mileto defendendo no Júri — disse Guaribão. — Oxalá que assim seja. Agradeço deveras o seu desejo. Houve um silêncio que fez Eutanázio se despedir. — Mas já vai, seu Eutanázio? Nem quer um cafezinho? Espe|re velho Antônio que está para vir contar uma história boa. O Sr. vai no quarto? — Que quarto? — O que? Só o senhor ainda não foi na casa de seu Cristóvão. Foi? Mas o que me diz? Pois lá não lhe contaram que a mulher do Domingão bateu o papo? Morreu. Já começou o quarto. Vai? — Vou. Por que sente na morte da mulher do Domingão que alguma coisa de si também vai com ela? Talvez a cena que Irene representa. Um bocado do ridículo que havia nele. Experimenta confusamente uma espécie de alívio naquela morte. A mulher do 99 Domingão talvez não possa mais servir de motivo para Irene ridicularizá-lo. Sim, era uma esperança. Mas Irene tem imaginação para inventar outros motivos. A mulher do Domingão era uma imagem odiosa e grotesca que em certas noites parecia enorme não de gordura mas dos risos de Irene, das maldades de Irene. Ia para o velório com um alívio e esse alívio porém lhe abria mais uma ferida, lhe dava ainda mais a impressão de que não valia mais nada como homem, era um fantoche... Se o mundo soubesse ver, recuaria espantado diante do que tinha de podre e de frustrado na sua vida. Domingão perdia a companheira gorda e esfomeada como ele. Tinham prazer em ficar juntos na varanda e conversar sobre a fortuna perdida. Choravam juntos. Soluçavam abraçados. Mas porque discordassem de certos detalhes no modo como reconstruíam o seu passado, brigavam, afastavam-se como dois inimigos. Viviam dentro do seu chalé escuro e fechado como dois prisioneiros. Uma vez, Eutanázio foi encontrá-los — era o único ser que podia entrar no chalé sem bater palmas — encontrá-los com a mesa arrumada, alguns pratos antigos e caros, uma terrina branca e alta, dois copos cheios d’água. A terrina vazia, os pratos vazios e pelo corredor se podia ver o fogão apagado. Eutanázio não sabia compreender. Também não sabia perguntar. Eles dois que esperavam o imaginário almoço deitaram sobre Eutanázio um olhar tranqüilo e feliz que perturbou o visitante. Estariam loucos? Perguntou ele a si mesmo. Ou eu? Eles nada disseram, ficaram [182] na|quela atitude tranqüila e beata esperando o almoço. A mesa estava posta. Tinham retirado do velho e roído guarda-louça os últimos pratos, o resto de louça da passada fortuna. E esperavam. Domingão não soltou aquela patética exclamação sobre a fome nem a sua maldição sobre os advogados. Domingão, depois de um longo silêncio, fez sinal para Eutanázio puxar uma cadeira. Mas Eutanázio se viu também contagiado daquela súbita loucura, da- quele silêncio, daquela fome. Os dois gordos deviam pesar sobre as velhas cadeiras aflitas não só com o peso da sua gordura mas do seu passado morto, da espécie de certeza de que faziam aquilo porque foram tomados de fraqueza, não sabiam mesmo se era cabeça variada, Eutanázio que decifrasse ou acabasse com aquela cena. Agora ia ao quarto da mulher do Domingão. Uma vitória do povo da rua das Palhas que não sabia ao certo o que se passava naquele chalé. Agora o pessoal entra sem cerimônia, invade a sala, o quarto, a varanda, com uma vingativa satisfação. Aquela piedade é, para Domingão, mais do que uma ofensa, uma vingança. Eutanázio, quando viu o velho sentado num mocho, perto da cozinha, com aquela sua camisa esfrangalhada e os óculos descidos no nariz, compreendeu o seu ar definitivo de derrota, a sua impotente vontade de expulsar toda aquela gente de sua casa e ficar com a morta, conversando sobre a passada fortuna. — Seu Eutanázio, invadiram tudo, — disse abafadamente — vão furtar os meus últimos cacarecos. Cadê dinheiro para o caixão. Agora, se fosse conversar com aquele vasto cadáver na sala, sobre o passado, não se afastariam mais como inimigos por via de detalhes. Ela confirmaria tudo que ele dissesse. Eutanázio, ou por timidez, ou por indiferença, não descobriu o imenso rosto da mulher coberto por um pano. Viu foi o pessoal conversando, rindo, iniciando brincadeiras, fumando. Havia pouca luz. Como se a morte da D. Emiliana fosse apenas um pretexto para aquela gente pobre se divertir, se esquecer. O cadáver parecia ausente. A morte não era grande coisa para eles. Na cozinha, D. Mercedes fazia café. Outras que, sem serem chamadas, entraram pelo quarto e tudo arrumaram para vestir o corpo, cochichavam na varanda, umas de cócoras, outras em pé, cuspindo, conversando [183] tranqüilamente. A desgraça do Domingão fazia aquela gente feliz. 100 Uns felizes porque puderam servir ao próximo, vestir um defunto. Duas latas d’água estavam junto ao fogão. Alguém chegou com o embrulho do café. Houve risadas na sala. No sereno, rapazes brincavam de lutar, tomar cigarros, dizer apelido um ao outro. Domingão, meio derreado à parede, parecia cadáver também. Até que veio o café. Houve um movimento na sala. As velas se derretiam na cabeceira do cadáver. Não havia crucifixo. Domingão não tinha. Quiseram correr para buscar emprestado o crucifixo grande e bonito de Felícia. Mas no tempo que trouxeram o café. Aurélia chegou com um crucifixozinho e pôs na cabeceira de D. Emiliana. Depois de provar o café, Eutanázio mirou bem o fundo da xícara, olhou, e com o dedo minguinho mexeu o café. Bebeu mais um gole e qualquer coisa lhe ficou no beiço. E olhou para as pessoas que já tinham tomado ou ainda bebiam o café que D. Mercedes sabia fazer. — D. Mercedes, o pessoal da sala já tomou? — Já, foi até o primeiro que tomou. — Pois, D. Mercedes, houve um pequeno engano na água desse café. — E Eutanázio, indicando as duas latas d’água perto do fogão, perguntou, sorrindo, pacificamente: — De que é a água daquelas latas? — Uma foi Valdemar que encheu para o café e a outra foi ainda a água em que se lavou o corpo; mas por que, seu Eutanázio? Eutanázio, devagar, levantou-se e foi acompanhado por D. Mercedes verificar as duas latas. — A senhora está vendo? A do café cheia e a do corpo... — Meu Deus, será possível?... — Está aqui na minha xícara esta coisa de cadáver, isso, olhe... E Eutanázio sorria. D. Mercedes na tentativa dum gesto quis ocultar, pedir para seu Eutanázio... Mas. alguém escutara e logo se espalhou violentamente em todo o chalé, no sereno, acordou os vizinhos, encheu Cachoeira, que o pessoal do quarto tinha tomado café feito com a água que lavara a defunta! Eutanázio saiu sorrindo. Todo aquele povo parecia fazer [184] so|bre ele uma obscura acusação. D. Mercedes mesmo não devia perdoá-lo nunca. Eutanázio estava com gosto de cadáver na boca, no seu tédio, na sua náusea. De qualquer forma a mulher do Domingão ia ficar na sua vida, ia ser motivo para Irene inventar novas comédias na varanda. Ficava nele, naquela água com que as velhas lavaram a defunta. Ele vai ver se ainda apanha o Salu aberto. Dr. Campos estaria ainda conversando? O Salu fechado. Dr. Campos devia estar perseguindo Felícia ou a sua Geraldina, aos quinze anos prostituída por ele. Estranho era que ainda não tivesse pensado nos trinta mil-réis de Felícia. Mas a noite é longa para pensar. Felícia tem tempo para encher a falta de sono. Salu está contando o Manuscrito Materno para Dadá e Lucíola. Mas Lucíola está feliz esta noite. Esquece a reclamação de Didico contra o peixe insosso, a dor da erisipela. Na sala, Santo Expedito reclama luz. No quarto uma lamparina. Não houve muito querosene esta noite, na casa dos filhos de siá Rosália. Ezequias andava perseguido pela mania da doença e a sua taverna estava para fechar dum dia para outro. Lucíola não ouve bem Salu contando o compridíssimo romance. Alfredo se acha perto dela mas, atento ao romance, inveja a memória fabulosa de Salu (amanhã o carocinho terá trabalho...) sentindo as cenas, os diálogos, as passagens tristes do Manuscrito Materno. Não sente que Lucíola o contempla na sombra meio clara da noite e deseja, como mãe, fazer, meu Santo Expedito me ajude!, que ele goste infinitamente dela como filho? 101 Salu, Dadá, Alfredo estão mergulhados no Manuscrito Materno, na frente da casa velha. Lucíola recupera toda a sua esperança perdida, volta ao seu remorso, espera que Alfredo volte a ser o menino chorão, lhe pedindo para cantar toadas do Boi Caprichoso. Salu, com o seu vagar, vai contando o seu Manuscrito Materno como contará, amanhã, a Dor de Amar e A mulher Adúltera. Eutanázio puxa a cadeira e senta para ouvir, também. As moças se espantam com aquela inesperada presença. Eutanázio por [185] aqui e nestas horas era quase absurdo. Que aconteceu, que houve? — pergunta Dada para si. Mas para que Eutanázio se esforçar em ouvir se agora os trinta mil-réis chegaram junto dele, agarraram seu pensamento? Gostaria de ouvir Salu como Alfredo gostava. Salu não só tinha memória como dava um sentimento as palavras, narrava a maneira dele, rudemente, com aquele sotaque nordestino. Salu era um homem fabuloso. Pois de outro modo como contar aqueles vastíssimos romances, ter na cabeça todos os romances que enchiam a prateleira onde guardava a linha que vendia aos pescadores? — Bem, — disse Salu — amanhã conto o resto, já esta tarde. — Que pena, seu Salu... Mas como é triste o romance. Depois o senhor me empresta ele, não é, seu Salu? — Sim. D. Dadá. Empresto. Eutanázio e Alfredo vão juntos. Alfredo quer que Eutanázio lhe conte uma das suas histórias também. De versos. Versos, histórias sem interesse, algum comentário, tudo isso tinha ar de confidência para Eutanázio. Lucíola talvez durma com aquela esperança. Para que Salu interrompeu a narração? Também por que as horas assim passam mais depressa? Lucíola fica cheia de perguntas. Dadá interroga-se: por que Eutanázio tão cedo, de volta? Didico deve estar no quarto da mulher do Domingão? Rodolfo resolve ou não a se casar? Ezequias quando deixa de suspeitar que é doente de sífilis? Esta noite é noite de espantoso pessimismo para Ezequias. Encontrou uma mancha no rosto. — Mas não é, Ezequias. É ilusão sua. — E aqui do braço, também não é? Eu conheço. — Titinga, Ezequias. — Sífilis, e da sífilis vem... O amigo sacode a cabeça com aquela mania de Ezequias e este caminha pelo quarto, como desorientado. E Dadá espera o sono com todos os personagens do Manuscrito Materno misturados com aquele seu cansaço que não sabe bem do que é. Alfredo foi à cozinha ver Eutanázio tomar um chibé. Não [186] quis jantar. Eutanázio com as bochechas cheias, a voz rouca, contava o que julgava ser uma confidência. Contava alguma anedota, um dito de Bocage, a falta duma colocação para comprar um sapato, mudar uma camisa, trocar de chapéu. Dizia isso sem queixa, sem raiva, talvez para explicar a sua falta de asseio nas cuecas, nas camisas por cerzir, nas meias podres jogadas atrás da sua malinha. Para insinuar que, se não tem nada, como pode ser explorado... E logo sorri da precária insinuação. Alfredo deve saber história, as conversas que... Dirá, de novo, que não tem roupa, lhe faltam camisas, o que seria disfarçar a necessidade que tem de falar sobre Irene... Mas sente o gosto pungente e corrosivo do recalque. Não gostava que D. Amélia fosse arrumar a sua roupa. Não pedia nada a ninguém. Seu pai bem podia arrumar uma colocação na Intendência. Assim parecia esquecer o seu monstro interior, o café feito com a água da mulher do Domingão, os trinta mil-réis de Felícia. Mas Alfredo queria que ele contasse a história do sapateiro que prometera desde que embarcara para Belém. 102 — Mas tu ainda sabes o caso do sapateiro? Era o aprendiz de sapateiro que matara o mestre. Ao transpor a porta da oficina com o dinheiro no bolso, que furtara, já lhe aparece o fantasma do morto, nítido, com os olhos em chama. O rapaz duvida, recua, mas o medo o leva para adiante e enquanto tenta avançar, o fantasma do morto danava-se em aparecer de todas as formas, ora dançando, ora rindo, ora de cabeça para baixo, ora de quatro pés com os olhos em fogo. O aprendiz corre, apavorado, grita, bate os queixos, esbugalha os olhos, numa opressão. O cabelo se empina, a cara se muda em mil máscaras de medo, quanto mais corria mais se multiplicavam os fantasmas do morto surgindo de todos os lados. E o assassino não sabia mais onde meter-se, onde refugiar-se, onde morrer. Abeirou-se dum rio e vê as águas fosforescentes e ponteadas de mil olhos do morto sobre ele. Mas o rapaz se atira naquele turbilhão de fantasmas que o devora, no meio das águas revoltas. Eutanázio contava fazendo careta, gestos, erguia-se, com os cabelos despenteados caindo pelos olhos. Havia qualquer coisa de trágico e cômico na história. Alfredo não podia deixar de esfriar [187] com aquele pobre rapaz correndo com medo do mestre. Mas Eutanázio contando a história, contava a seu modo a sua própria história. Ele não tinha morto um homem para roubar mas estava como aprendiz, correndo, perseguido pelos fantasmas, sem saber onde cair morto. Tinha furtado Felícia. Por isso Alfredo sentiu que ele parecia representar a cena na cozinha e com a voz rouca, o meio riso, os cabelos caídos, a camisa saltando para fora da calça. Era a figura do próprio sapateiro e do aprendiz ao mesmo tempo, O riso de Eutanázio era convulso e Alfredo se lembrou de Clara. Não, Clara não podia ser hoje uma caveira. Mas Eutanázio já era uma caveira em vida com aquele riso e com aquele silêncio que se fez depois de contar a história e de beber o chibé. Parecia cansado e as suas mãos tremiam. Depois, rindo-se, começou a falar de versos. Contou a história da vingança da porta e concluiu roucamente: A mulher como doida e a filha morta! Alfredo sentado no soalho não compreendia que Eutanázio queria contar histórias trágicas, coisas medonhas e contou a história que lera numa revista. Um urubu que dizia ao homem: Nunca mais! Nunca Mais! — Por que nunca mais, Eutanázio? — Porque a mulher dele tinha morrido. A namorada... — O urubu dizia: nunca mais. A voz de Eutanázio tentando imitar o urubu era tremida e abafada. E Alfredo se lembra que o teatrinho, tempo de festa de arraial, que faziam na casa da professora Lucinda, tinha sido arranjado por Eutanázio no seu melhor tempo em Cachoeira, talvez, Alfredo era para recitar “O Estudante Alsaciano”. Levou dias debaixo da casa decorando o recitativo. Major Alberto doente, D. Amélia andando do quarto para a cozinha e nada do “Estudante Alsaciano” ficar na memória. Na noite da representação, Alfredo apareceu tremendo no palco: O ESTUDANTE ALSACIANO Naquele tempo a escola era risonha e franca... Foi um fracasso. Gaguejava, a poesia mal se punha em pé [188] den|tro da memória. Fracasso completo. Recebeu algumas palmas por cortesia, para que ele não saísse do palco debaixo de vaia. Mas seu triunfo, a sua glória, foi na Intendência. Recitou o “Pássaro Cativo”. Seus dedos tremiam. 103 Talvez os teus ouvidos escutassem Este cativo pássaro dizer... E Alfredo era mesmo um cativo pássaro na gaiola da emoção diante da careca lustrosa do Intendente, do ouvido que por si só parecia já julgar e comentar do Dr. Juiz de Direito e da cara vermelha do Dr. Campos que sacudia a cabeça, com um ar protetor e de entendido, animando-o e aplaudindo-o. Foi então que criou em Cachoeira fama de menino inteligente e que devia ser aproveitado. Eutanázio ficou em silêncio, com a tigela vazia e o candeeiro com a luz diminuída. Os dois não falam mais. Alfredo se levanta para procurar a sua rede quando na porta, parado, Major Alberto o contempla: — Que fazem aí? Vão dormir... Mas Alfredo não dormia, revirando-se na rede. Era na varanda, o velho candeeiro de luz sumida, a velha mesa, os bancos de acapu e o guarda-louça ganho numa rifa. A esquerda da rede as caixas de tipo, os dois prelos, a máquina de cortar papel e uma pequena estante onde se guardavam rolos, chapas, papel de impressão e cartolina. Com a meia escuridão, com o vento que batia e assobiava nas janelas, Alfredo se lembrava de visões, siá Rosália lhe aparecendo, por exemplo, lhe dando senhas e falando dos bondes de 1.ª classe em que ela sempre andava. Bonde bagageiro não era com ela, dizia, tinha muita imundície e ralé. A porta do corredor ficava aberta e o escuro do corredor que ali parava, com receio da minguada luz do candeeiro, lhe trazia não somente siá Rosália, mas Clara comendo mangas, Duquesa, mãe de Adma. Nunca mais esqueceu a manhã em que Adma, mais pálida ainda e com os olhos extraordinariamente aflitos ou espantados, fez uma cara de choro ou de pavor ao ver entrar o caixão para sua mãe. [189] Até então se mantinha calma, como tímida, um pouco atordoada com o entrar e sair de gente e ao seu lado os seus irmãos também olhavam aparvalhadamente. O pai com a boca meio aberta, o filhinho mais novo no colo com a chupeta na mão, não tinha sossego. Adma porém, fez um gesto, aquela cara, o grito, e foi com a entrada do caixão que sentiu mesmo a presença da morte em sua casa. Alfredo tem agora o rosto de Adma que se contraiu, os beiços tremeram, as mãos tatearam a cabeça, os olhos, o peito e caiu na cama gritando e se levantando e se abraçando com os irmãos. Alfredo saiu da casa dela e não pôde, nesse dia, almoçar. O carocinho pulou na palma da mão com a pergunta: por que esse caixão tão negro, tão feio, para vir assustar Adma, fazê-la tão pálida, com o olhar crescendo de tanto medo? Por que fizeram aquilo com Adma? E sentiu um vago ódio ao velho Abade. Agora o escuro do corredor pode lhe trazer aquele caixão da D. Duquesa. Nunca mais esquece aquela cara que parecia a do João Lagarto espiando ele da porta do corredor. Teria sido mesmo João Lagarto ou uma sombra? Gostava de brincar com a sua sombra na parede. Nhá Lucíola dizia que fazia mal. Não brincasse. E talvez porque brincasse foi que lhe apareceu a visão parecida com o João Lagarto. Sempre tinha medo desse escuro que fica na porta dos compartimentos sem luz. Como se fosse um olho enorme da treva e do mistério por onde se derramam as visagens que Lucíola contava e os pensamentos e as histórias que saem da cabeça de Eutanázio. Misturado com o escuro da porta do corredor vem a sua “viagem” para Belém. Sua mãe lhe dera uma esperança mais forte. Mas cada os uniformes, o sapato, a roupa de ir? Enquanto não tivesse isso tudo não se conformava que estivesse tão próximo assim de viajar. Quantas vezes, já com o frio da febre ou ainda com a febre, não ia chorando se queixar, bater os pés na cozinha onde sua mãe lava as xícaras do café ou mexe a panela: — Mamãe, me mande 104 para Belém. Eu morro aqui, mamãe. Cresço aqui e não estudo. Quero estudar, quero sair daqui! D. Amélia assim como ouvia assim ficava. Nem resposta sabia dar. Se envergonhava de não poder dar boa resposta ao filho. Mas Alfredo chorava, se lamentava, mordia o lençol, ainda [190] chei|rando a febre na rede, ficava estúpido e sem forças, coçando feridas com um súbito desejo de sangrá-las mais, abri-las, ficar todo em carne viva, em feridas, querendo fugir de Cachoeira, desaparecer de casa, partir nem que fosse pra o Instituto Lauro Sodré. Sua mãe vinha com a colher, espantando pinto da varanda e juntando os catálogos do major que Maninha tirava da mesa. Chegava no punho da rede de Alfredo, explicando: — Que tu queres que eu faça? Teu pai é um filósofo... Ouvira o próprio Major Alberto chamar assim a Bibiano, um que só vivia rindo, sorrindo, andando na sua canoa de embarcar gado, trazer frete. Tinha um ar distraído e esquecido. Nada o perturbava. Era aquele sorriso, aquele riso entre os dentes. — Esse rapaz é um filósofo. Não está se importando com coisa alguma, a gente pede uma coisa, nem liga, não trata nada sério. Só vive rindo. Major punha a perna em cima do banco de acapu aborrecidíssimo porque Bibiano não lhe trazia o catálogo sobre prelos novos que lhe encomendara. Bibiano vinha rindo com a sua dentadura postiça e murmurava: — Ah... me esqueci... — e tão tranqüilamente que indignava Major Alberto. — Um idiota, psiu, um idiota... — Mas D. Amélia pensava que a mesma coisa Major fazia a respeito da viagem de Alfredo. Bibiano amansava Major contando dos espetáculos do Teatro da Paz, da procissão do Senhor dos Passos, do arco da entrada de Nazaré para a festa, do Museu Goeldi que não tinha mais os grandes e belos bichos de que Major falava quando ia a Belém, do circo novo que chegara, da decadência da Banda do Corpo de Bombeiros. (Bibiano tocava bombardino na banda de Ponta de Pedras). Com a sua conversa sempre vagarosa, minuciosa e cheia de parênteses, começava a contar as graças do palhaço do circo, da mulherzinha que desafiava a morte andando no fio de arame, do domador de feras. Alfredo ia descobrindo na conversa de Bibiano outra cidade. Cidade onde os homens para ganhar a vida andavam no fio de arame, vomitavam fogo, tiravam a Bandeira do Brasil da boca, davam o salto da morte, se metiam na jaula dos tigres, caramboleavam nos trapézios. A proeza dos acrobatas era exagerada pela descrição minuciosa de Bibiano, com a xícara de café [191] na mão. Não se exaltava mas a força da conversa estava no vagar e na minúcia com que sabia narrar. Então Major Alberto, já manso, passando a mão pela testa e pelo começo da calva, contava o que também apreciara em Belém. Os dedos indicadores batiam tambor na mesa de jantar. Seus olhos sorriam. O psiu, psiu, amiudava-se. A barriguinha pulava da camisa e as mãos batiam nela de leve, com delícia. Que bom a barriga de fora da camisa ao vento dos campos de Cachoeira! Major levantava a perna no banco e coçando o joelho principiava a descrever o espetáculo do Guarani no Teatro da paz. Cantava baixinho a abertura da ópera e pintava com gestos lentos e largos cenas e cenários. Imitava Peri — Sento una forza indomita... A platéia de vez em quando gritava: Olha a pera, olha a pera, olha a pera! Era o Peri que não cortara a pêra! Índio com pêra. E ao fim do espetáculo, Major Alberto em gestos largos, descrevia Peri e Ceci na palmeira... — Bonito! Muito bonito! Afirmava, com ar franzido e convicto. E virava as costas, passeando na varanda, cheio de emoção e de saudade. — E o drama de Cristo? Eu vi também isso no Teatro da Paz. O ator que representava Pilatos., que ator! Quando Madalena, psiu! psiu! veio com as maiores jóias, o maior luxo se ajoelhar e pedir a Pilatos que revogasse a sentença, o que psiu, psiu, psiu, 105 não obteve, ela desprende todo aquele luxo de cima de si e joga nos pés de Pilatos! Bonito foi, psiu!, psiu!, quando ele lavou as mãos na bacia. E passeando inquieto! E Cristo com a sua calma, dizendo: Tu o disseste! Alfredo ficava suspenso de embevecimento. Era a cidade! E D. Amélia lembrava as festas de N. S. de Nazaré. — Hem, seu Alberto? E o Tacacá, a revista daquele ano? Major ria-se. E D. Amélia cantava os versos da Doca do Ver-o-Peso e da Doca do Reduto, as duas rivais de Belém. Falavam dos cinemas. Alfredo só sabia que no cinema Olímpia era demais a luz! Dizia D. Amélia: Parecia um dia! E Major Alberto contava a história da estréia do Guarani em Milão. Carlos Gomes chorando e a glória no Scala. Sabia de toda a história. Sabia que D. Pedro aconselhara o maestro a estudar na Alemanha, a pátria da [192] música. Mas Carlos Gomes teimou e foi para a Itália. Rodolfo, Bibiano, D. Amélia, Alfredo, ouviam. Era um serão. E se caíam para o terreno da guerra Alfredo só ouvia Major dizer que os ingleses eram um povo prático e os franceses os donos da melhor artilharia do mundo. Bibiano voltava com o seu riso, a canoa cheia de gado, podia correr o maior perigo do mundo, a sua calma não se abalava. Bibiano se esquecia das encomendas debaixo do toldo, mexia com moças, Major já tinha uma vez tirado ele da porta da cadeia por causa de moça e ele sempre esquecendo os catálogos tão ansiosamente esperados pelo Major. Um filósofo! Mas D. Amélia pensava que mais filósofo do que Major Alberto não tinha neste mundo. Com aqueles catálogos, a calça sempre caindo sem cinturão, a ponta da camisa de fora, a gravata no pescoço cujo laço era ela quem dava e os tamancos nos pés que Maninha lhe trazia, o chapéu de massa enterrado na cabeça, Major Alberto caminhava para a Intendência imaginando os seus pianos de criar abelhas, pombos e porcos Polland China. Tudo projetava. Queria, um tempo, deixar a Intendência e se meter com o seu compadre Modesto no Fé em Deus plantando coco e mamão. — O que, coco e mamão? Uma fortuna! dizia para dona Amélia ocupada em arear os talheres. E as suas gavetas viviam cheias de planos e cálculos sobre despesas e lucros, visões de muito dinheiro, uma granja no Araquiçaua. Seria independente. Teria um pomar. E lia Chácaras e Quintais, Brasil Agrícola La Hacienda, para D. Amélia que não se interrompia, por isso, em jogar a água suja do alguidar onde lavava os pratos. No seu tempo de mais moço comprara coleções de livros enciclopédicos e bibliotecas populares portuguesas. Sempre foi um desejo de ler, de saber, de ter por alto uma noção do mundo e dos homens. E muitos almanaques e revistas de Santa Rita de Cássia. Seu grande sonho era entronizar uma imagem de Santa Rita de Cássia em sua casa. O livro onde ia beber a influencia para os seus discursos era o de Antonio Cândido. D. Amélia, cosicando as ceroulas do Major, se banhava de eloqüência ouvindo discursos inteiros de Antônio Cândido, todo o “Caçador de Esmeraldas” de Bilac, a “Via Láctea”, [193] “I-Juca-|Pirama”. Desse era de que mais gostava. Major ficava dramático. E psiu, psiu, puxando a manga do vestido de D. Amélia. — Estou ouvindo, homem, diga... E Major exclamava: Pois choraste em presença da morte? meu filho não és... D. Amélia ficava era vendo o velho índio danado com o filho que chorou em presença da morte. Mas, se acabava de ler “As Pombas”, Major ia logo puxando D. Amélia para lhe mostrar a resposta da Chácaras e Quintais a um consulente que queria saber a melhor maneira de curar o gogo dos pintos. Major sonhava 106 reformar a casa. Aquele chalé havia sido uma coisa apressada, não tinha saído como imaginara. E mostrava a planta da verdadeira casa, talvez mesmo a casa em projeto fosse mais real que o velho chalé. O novo chalé estava todo desenhado e pintado mesmo. Era bonito e grande. Alfredo, com a sua bolinha, descia para o seu tanque, onde prendia seu gado de tucumã e armava a casa nova no lugar da casa velha. Major tinha planta para uma pocilga dos Polland China, para um apiário, para uma grande horta bem aterrada e estrumada onde tivesse muita couve e quiabo. — O legume é uma das bases da nossa alimentação, dizia padre Souza, — citava Major comendo uma salada de caruru que D. Amélia preparava. Lima vez comprara uma dúzia de ovos Leghorn. Arranjara galinha da terra, à falta da sonhada chocadeira que tanto namorava no catálogo. Oito pintos vieram e que cuidado, que trabalho! Mais por parte de D. Amélia que do avicultor. Veio porém o inverno e lá se foram os pintinhos. O gogo deu, a chuva gorou a produção fenomenal de ovos Leghorn que ficara na cabeça do Major e no caderno de projetos. Assim foi a criação de Oripington preta e amarela, Carijó e gansos. Major danava-se: — A terra não se presta. Mas quer ver para que serve? Psiu! psiu! quer ver? — E curvava, fazendo um psiu e um meneio. — Pato! Criar pato! E Alfredo gostava de ver D. Amélia com a frigideira grande cheia de babugem e milho que os patinhos comiam no próprio corredor da casa. Major encostado à janela, contemplava. [194] Embai|xo do chalé ficou amarelo de patinhos e Major esfregava as mãos, contando para os conhecidos o êxito da sua criação. — Não disse que a terra se prestava para pato? Rumo ao. pato! — Nesse tempo se falava no Rumo ao Mar! E Major achava que a solução do problema de Cachoeira estava em criar patos, rumar ao pato! — Tenho, agora, uma pataria. E mandou, como colaboração, ao Almanaque Agrícola Brasileiro, uma nota sobre a sua criação de patos que leu pra Rodolfo, Bibiano e D. Amélia. Leu três vezes para D. Amélia que assim não podia acabar de esfregar no alguidar a tábua de cortar carne nem Lavar o ralador com que fizera na véspera uma cocada. D. Amélia era que criava mas Major Alberto tinha a glória. Um filósofo. Devia estar cuidando de mandar o filho para Belém em vez de se meter com planos e catálogos, resmungava D. Amélia. Major queria era estar conversando com ela, lhe interrompendo o serviço, a consumição de todo dia, lendo os artigos de Chácaras sobre o cultivo da mamona, o aproveitamento dos restos de comida, o meio de se fazer manteiga em casa (tanto leite dado para esse... pensava Major ao ler) e o combate à saúva. Atacava os fazendeiros de Marajó que não faziam pastagens para seu gado, não construíam silos, não abandonavam o Zebu para introduzir raças inglesas de carne excelente como o Devon, tão aconselhado por Assis Brasil, não faziam charqueadas nem frigoríficos, não tinham as vezes nem sentina na fazenda. Ao menos plantassem capim Jaraguá! — Psiu, psiu! esses fazendeiros são uns cavalos! Entregam as fazendas a administradores analfabetos e venha a nós. Tudo que ganham é para Belém. Não fazem uma benfeitoria em Cachoeira. Não há uma casa deles na vila. Isto aqui vai de mal a pior. Uns atrasadões. Fossem ver o que era um pasto na Holanda, a pecuária na Argentina, as coudelarias na Inglaterra e mesmo no Rio Grande do Sul. Assis Brasil tinha deixado a diplomacia para viver no campo, criando boi e plantando, que dava resultado. Quem planta e cria tem alegria. Não se contava a história do homem que ficou rico criando galinha? Até [tinha um livro com esse título. Mas em Cachoeira só se cuidava de falar da vida alheia, cachaçada, politicagem, vadiação e mexer com a honra das filhas alheias, dizia, dando o pescoço a D. Amélia para o laço da 107 gravata. E Alfredo com sua bolinha, ia para debaixo do chalé] organizar uma grande indústria pecuária em Marajó, seu pai, grande fazendeiro, pastagens com [195] capim Jaraguá e alfafa, gado inglês e holandês, charqueadas e carnes congeladas saindo para o estrangeiro. Cachoeira tinha manteiga marca Arari e queijo marca Coimbra, leite condensado Marajó, de fama universal. A bolinha sabia criar o “faz-de-conta”. Mas se na conversa com algum conhecido ou pessoa vinda de Belém, surgia um assunto como, por exemplo, o espiritismo, Major Alberto ia à estante e trazia o Depois da Morte de Denis, com anotações dele, refutações para provar que conhecia e discutia o espiritismo. E se gostava de Flammarion (tinha as obras completas de Camilo Flammarion e A Pluralidade dos Mundos de Fontenelle) era porque o sábio o levava para o “infinito sideral”, como dizia. — Eu, se pudesse, substituía todos os meus livros por novos. Estes meus estão velhos. Essa ciência, essa filosofia, tudo envelheceu. Será, por exemplo, que em história de Portugal só existia ainda um Alexandre Herculano e em astronomia esse Flammarion? Major levava D. Amélia para a janela e ficavam olhando a noite: Psiu, ó Amélia, aquilo ali que estás vendo é Vênus. A estrelinha, ali, é Sirius, mais adiante a Via Láctea. Aquele ali? Júpiter! O grande Júpiter. Meu maior desejo, psiu, era, psiu, contemplar o maravilhoso espetáculo da queda dos anéis de Saturno de que tanto falam os astrônomos... E penso, psiu, que aquele cometa que nós vimos, o de Halley, nunca mais voltara... O cometa era o eterno assunto na conversa [do Major Alberto sobre astronomia. Ficou brilhando dentro do carocinho de Alfredo. No carocinho o cometa voltava a brilhar no céu de Cachoeira. Mas Alfredo precisava sair daquela conversa] do pai, da própria bolinha, do tanque embaixo da casa, do olho comprido de Lucíola, do quilinho de carne todo dia do mercado e do seu pró- prio desejo espichado para cima do charão de arroz doce de Mariana. Mas hoje soube que o marido de Mariana está tuberculoso. Não quer mais o arroz doce. Prefere o mingau da D. Verônica. Um mingau de milho quente, cheirando a canela e em cuja limpa. Será por que o mingau é mesmo bom ou por que D. Verônica e mãe da Moça? Que vontade de que aquele circo viesse representar em Cachoeira para ele se meter nele e partir feito qualquer coisa. Para qualquer coisa, num circo, havia de dar. Passava a febre, passava a febre de sonhar viagens, tirava o vício do carocinho. Quando o tenor Florentino esteve em Cachoeira leu a mão de Alfredo. [196] — Você vai viajar muito. Em cada terra que chegar se apaixonará por uma mulher. Morrerá com oitenta anos. O tenor Florentino cantava bem mas Alfredo foi ouvi-lo já com a mão lida pelo tenor. Na realidade nunca tinha ouvido um tenor, nem mesmo no gramofone da casa do seu Jovico. Que voz sobrenatural! Tenor Florentino trouxera anúncios que se espalharam em Cachoeira: FLORENTINO SANTIAGO, O MAIOR TENOR DO BRASIL. — Um pouco pau isso, psiu, de se dizer por boca própria, psiu, que é o maior tenor... — estranhava Major Alberto. Mas Alfredo estava diante duma criatura que andou pelo mundo, em cidades grandes, cantou em teatros, falava disso e daquilo e dizia: — Quero ver se Major Alberto tem prestígio político em Cachoeira. Naturalmente tem. Meus bilhetes serão passados. Não é, Major? Major não queria saber de ter prestígio, queria dizer que não dava para passar bilhetes nem que fosse do maior tenor do mundo, do Caruso. Ainda uma encomenda dessas é que o Intendente manda de Belém! Se põe, psiu, lá na cidade, psiu, e manda dessas tetéias. Agora era preciso vender toda a bilheteria do maior tenor do Brasil! E casa onde o tenor possa cantar? E as cadeiras? Tinha 108 de mandar Dionísio carregar os velhos sofás e as cadeiras municipais. E a orquestra para acompanhar o tenor? Se arrumasse com o Miranda, o soprador de música, o mestre da banda. Por que o Intendente não mandou para o Major Emiliano que tinha jeito para aquilo? E depois hospedado no chalé. Dona Amélia não tinha louça, precisava estar emprestando da mulher do Delfim, toalha tinha de vir da casa do Promotor, nem sabia [d]o que o Tenor gostava de comer. Ele vinha falando da hospedagem do presidente do Estado do Rio. Falava do presidente com intimidades: Nós fomos com Raul a Campos. Campos nas grandes águas parece-se com Cachoeira. Que cavalheiro o Raul! Entretanto, na hora do café, faltara manteiga! O tenor ficou compungido. Nunca tinha passado sem manteiga! O carocinho de Alfredo fez aparecer uma lata de manteiga Bretel Frères dos bons tempos do Coronel Bernardo, de que tanto falava Major Alberto. Na parede da taverninha de Salu havia ainda uma estampa de Bretel. A manteiga Bretel era [197] como o cometa. Alfredo nunca tinha visto o cometa. Nem nunca havia provado a manteiga Bretel. Depois, na saleta, Alfredo mostrou ao tenor um catálogo de gramofones e discos: — Caruso é o maior tenor do mundo, não? — Sim, sim. Você, menino, é um menino inteligente. Por que seu pai não manda você para o colégio? E o tenor Florentino foi cantar na sala da casa da professora Lucinda que era a que mais prestava para o espetáculo... A entrada era dez mil-réis. Onde arrumar dez mil-réis para se ouvir o maior tenor do Brasil? Mas Eutanázio pagou a entrada de toda a moçarada de seu Cristóvão, inclusive D. Dejanira. Bita, até hoje guarda entre os seus cartões postais o programa da noite de Florentino Santiago em Cachoeira, como guarda os carnes dos bailes da Intendência no tempo do Dr. Vicente. Quando o tenor apareceu no improvisado palco, não foi cantando, foi reclamando ruidosamente: seu Rodolfo, que é isso, Rodolfo, que é isso. Então não fechou as janelas? Então de janelas abertas? Feche isso. Imediatamente! — A rua estava escuríssima e chovia fino. Nem sereno havia para pirangas- o recital de canto. Mas o tenor exigia acústica e não queria que ninguém ouvisse a sua voz, a maior do Brasil, de beiço. Deu sinal para a orquestra. Mestre Miranda ajeitou os óculos, apanhou a batuta e atacou a abertura. Mas o tenor, danado, gritou: — Comece de novo. Está errada. Como posso cantar assim? Errada. Ó senhor! Mestre Miranda tornou a endireitar os óculos, a batuta lhe tremeu na mão. Major Alberto olhou para Major Emiliano, Dr. Campos fez ao Juiz de Direito um gesto vago e Sr. Comes bateu de leve a testa com o programa, como ofendido e envergonhado. E mestre Miranda a tremer, fez atacar de novo a introdução. Tenor Florentino com a sua patética casaca, suado e impaciente, começou a cantar a Aida. Que serata, murmurava em êxtase Sr. Comes. Alfredo estava maravilhado. Se tivesse o carocinho ia já se tornar no maior tenor da América do Sul, saberia cantar em italiano, gritaria em Cachoeira contra as janelas abertas e a orquestra do Miranda. Não se entendia o que ele cantava mas era uma garganta de ouro, exclamava Dr. [198] Cam|pos que ouvira Caruso em Milão. Uma garganta de rouxinol, exaltou-se Dr. Gomes, acariciando os cabelos cacheados do seu menino Tales de Mileto que cochilava e de repente abria os olhos, entre o espanto e o medo, quando o tenor com a boca aberta e o peito erguido, soltava os seus fortíssimos agudos. Depois o tenor foi pedir no chalé, um escalda-pés para D. Amélia. — Ah! Que saudade de minha Enedina! Ela quando eu resfriava me dava um escalda-pés. Como levo doces recordações de Cachoeira! Pena a senhora não ter ido, D. Amélia. 109 A maior lembrança do tenor foi ele dizer para Alfredo que havia de viajar muito e por onde viajasse se enamorava de uma mulher. Era um homem que cantava em italiano e lia as mãos dos meninos. Um homem que não podia passar sem manteiga no café da manhã nem podia dormir sem primeiro pedir a Deus que lhe desse paz de consciência. Alfredo via o tenor partir na Lobato. Por que o tenor não o levava? Ele ia para o mundo cantar, vestir casacas, receber flores, tirar retratos para os jornais. Bibiano vinha contando dos circos, das companhias teatrais, dos navios de guerra que ancoravam no porto de Belém. E o colégio ficava dentro do carocinho, embaixo da casa, dentro do tanque, na casa do seu Proença ouvindo-o: — Flor, ó Flor... — Chamas-me, papai Proença? Deseja ir para o mundo com o tenor. Partir, deixar o paludismo, o curral onde a Orgulhosa dava coices no João, as reclamações do pai por causa de estrago do leite, de sabão, de farinha. Não passaria mais pela frente da casa de Lucíola nem invejaria o gramofone da casa do seu Jovico. Estava crescendo sem partir do chalé, ouvindo aqueles molequinhos a pedir todo dia farinha, açúcar, leite e café. Estava farto daquelas chuvas alagando os campos, ilhando o chalé, lhe dando o frio ruim das madrugadas. Seu pai devia vender a tipografia, dar os catálogos a Maninha e tratar de mandá-lo para o colégio. Mas o mundo ainda era aquela mesma bolinha infatigável subindo e descendo. Muitas noites levava a companheira para a rede. Adormecia, a bolinha rolava entre o lençol e o camisão. Nem sempre era a bolinha, eram as meninas [199] como Moça. A própria Irene quando ainda não estava moça como está. Irene mandara pedir para ele cinco tostões dos pasteis de D. Martinha. Era ou não era namoro? Uma vez brincara no meio de muitos meninos na sapata da casa da professora Lucinda. Depois, em dezembro, Irene deixou Alfredo sozinho num banco do largo e foi passear ao lado de Licinho. Por que? Quem era esse Licinho? Só porque viera de Belém? Apostava que não era inteligente como ele. Depois Irene cresceu: Alfredo saía sempre derrotado porque as meninas cresciam mais do que ele. Ficavam moças de repente. Mas a sua grande decepção foi um baile por ocasião da morte da Borboleta, cordão da Foluca. As meninas todas dançavam com o menino Rosildo. Quem era esse menino Rosildo? Alfredo aparecia no baile, certo de que ia namorar Maria Rabelo, dançar efetivo com Semíramis e brilhar na festa como aqueles príncipes brilhavam nas cortes das histórias de Salu. Mas qual! Alfredo não foi olhado por nenhuma daquelas lindas meninas da Borboleta. Elas todas iam para o lado de Rosildo. Rosildo era o par preferido, disputado e querido pelas meninas da Borboleta. Aquela noite ficou na sua desilusão, com muita menina vestida de branco fazendo roda em torno do menino Rosildo e ele, numa cadeira, esquecido, sem que ao menos notassem a sua presença no baile! Alfredo voltou com a mágoa dentro do peito. E para ele não devia haver festa mais animada, meninas mais bonitas, do que naquela noite. Adma não estava na festa. Mas elas todas tinham sido piores que Adma. Rosildo teve a glória da noite. Eutanázio na saleta inveja o sono de Alfredo. Alfredo deve estar dormindo e sonhando com o aprendiz de sapateiro. Mas Alfredo está com a sua imaginação acordada e os olhos se fecham para não ver o escuro do corredor que parece mais denso e mais misterioso. De repente pensa nos cinco mil-réis para comprar sua camisa de futebol. Arranjaram um clube infantil e Alfredo é meia-direita do primeiro time. Mas é preciso comprar, cada um, a sua camisa. Encarnado e branco. Custa sete mil-réis. No livro O Primo Basílio da estante de vidraça de seu pai encontrou uma nota de cinco mil-réis. Major parece que [200] es|queceu. Há dois dias que está tira não tira o dinheiro. Mas ama- 110 nhã resolve tirar. Enquanto a sua viagem não vem, vai se distraindo no futebol e mandará comprar uma camisa pelo Jorge turco. Mandará comprar em segredo. D. Amélia não saberá. Cinco milréis na mão dele é muito dinheiro e apanharia uma surra se Major Alberto soubesse que ele tirou dum livro. Hoje teve a grande revelação. Soube pelo José Calazãs como vem uma criança para o mundo... Muito menino ainda, lhe diziam que filho saía pela barriga, pela boca, vinha na asa da marreca, Nosso Senhor trazia. Quando sua mãe estava de parto de Maninha, as velhas que enchiam o quarto lhe perguntavam: — Fredinho, como sua maninha veio? — Pela boca. — Não. — Então abriram a barriga. — Também não, Fredinho. Aí o menino disfarçou, deu as costas e arriscou: — Então veio pela bunda. — Ah! Menino! Que é isso! Não diga mais isso! D. Amélia entre lençóis dando mama a Maninha mandara Alfredo sair do quarto. E Alfredo foi sabendo aos pedaços. A verdade nua e crua foi revelada pelo José Calazãs. O mundo assim vinha descendo muito. A vida se tornando muito baixa, [muito diferente a que ele pensava. Por que? Por que lhe] ensinaram tudo justamente ao contrário do que vinha acontecendo? Uma vez perguntou à mãe: — Mamãe, por que sempre quando urino me vem um tremor? Sua mãe pôs-se a rir e seu pai achando graça lhe deu nas costas, com o catálogo de prelos na mão. Ora bolas! Por que riam? Por que encobriam as coisas? Uma tarde na saleta discutindo com João, disse: — Ouviste? Te esculhambei! D. Amélia ouviu e falou para que nunca mais dissesse a palavra. Fazia mal dizer. Esse fazia mal era tal e qual o chinelo de boca virada que Lucíola não deixava no soalho porque “não prestava”. Lucíola, então, lhe dera um mundo falso, mentiroso, complicado, cheio de Deus, muitos anjos, santinhos, fadas, anjos da [201] guarda e demônios, cobras grandes, visagens, lobisomens, matintas, jacurututu e proibições de toda espécie. Em Deus acreditava. Era aquela figura da estampa no oratório que seu pai tinha. Não sabia bem se era Cristo ou mesmo Deus. Nunca perguntara a seu pai nem à D. Amélia. Uma figura sentada na ponta do rochedo numa noite de treva e uma grande luz caindo sobre ele. A estampa fazia uma confusão nos olhos e no pensamento de Alfredo. Não era parecido com o Cristo da Semana Santa. Aquilo só podia ser Deus mesmo. Mas os pés eram diferentes, tinham muitos dedos, as mãos também e em torno, a noite carregada de treva e a luz descendo num raio sobre a cabeça do Pai do Céu e da Terra. Para que estivesse ali naquela atitude, num rochedo, no meio daquela solidão, só podia ser o Senhor do Mundo. Aquilo nunca que era o Senhor Morto que via na sextafeira da Paixão na igreja. Era um Ser de muitos dedos nos pés e muitos dedos nas mãos e cheio daquele clarão que não era dia nem aurora, nem luar nem uma luz que estivesse acostumado a ver em Cachoeira. Deus lhe dava sobretudo era medo, uma perseguição na consciência. Saber que havia um Todo-Poderoso escutando os seus pensamentos, vendo e medindo todos os seus atos, tomando nota no seu grande livro, de todas aquelas coisas perigosas e secretas que já começava a fazer, era de qualquer modo, doloroso e intolerável. Irremediável em qualquer situação. Deus era o inevitável, a realidade terrível. Mas havia o Pai do Céu de Lucíola, o Deus de dona Amélia e o Supremo Criador do Major Alberto. Três deuses diferentes que complicavam cada vez mais a coisa. Se conseguisse esconder-se do Pai do Céu de 111 Lucíola, não escapava do Deus de D. Amélia e se deste escapulisse caía direitinho nas mãos do Supremo Criador do Major Alberto. Havia também uma coisa terrível para Alfredo: O Juízo Final. Sua bolinha não podia criar um Deus como ele pensasse, feito à sua imagem e semelhança? A bolinha podia fazer de conta que todos os deuses ficassem abolidos e Alfredo se encontrava livre dentro de si mesmo. Lucíola lhe transmitia o terror, Major Alberto o receio, D. Amélia lhe ensinara que esse Deus socorria a gente nas horas de frio e febre e outros perigos. Enfim uma complicação de muito Deus na sua consciência. Não [202] era um só Todo Poderoso que tinha de saber dos segredos tão vergonhosos, que havia de saber que ele ia tirar os cinco milréis de dentro do livro O Primo Basílio e comprar a camisa de futebol. Diferentes, sim, mas acabavam levando ele para aquela estampa onde um Ser estranho e solitário era o senhor da treva e da luz. Nossa Senhora da Conceição era-lhe também uma realidade, mas tão incompreensível como aquela condição de mistério com que ele fora salvo do poço. Quando namorava Irene e sentia que ela lhe parecia um pouco alheia, quase sem ligar para ele, Alfredo ia pelos campos com a bolinha, e se exaltava pedindo a Nossa Senhora da Conceição que fizesse Irene muito dele, não se esquecer um momento do seu nome, sempre receber ele com alegria nos olhos e amor no coração. A santa, sem querer, se tornava cúmplice do furto dos cinco mil-réis. Alfredo se vexava, é certo, de lhe fazer certos pedidos, depois que ela o viu praticar certos atos que um menino temente à Nossa Senhora não deve praticar. Mas a força, o encanto das moças de Cachoeira era mais terrível que o castigo de Nossa Senhora, mais gostoso que o perdão de Nossa Senhora. Que força e que encanto eram esses que ele principiava a experimentar, a sentir, sabendo que era mau, era pecado e so lhe trazia, num minuto, a ilusão da posse das lindas moças? A bolinha seria uma criatura abençoada por Nossa Senhora? Havia muito de pecador, de tentação, na bolinha. Diziam que um menino não deve imaginar muito, não. desejar tanto, não possuir ambição, não invejar. Ser humilde e ele se julgava acima dos meninos que fediam a peixe e a poeira das barracas vizinhas. Todas as noites fazer exame de consciência e exame de consciência era o que não sabia fazer. Crescia sempre alheio à miséria dos meninos que vinham pedir farinha no chalé. Marialba podia agradá-lo como agradasse, qual! nem merecia um simples olhar de simpatia de Alfredo. Sim, simpatia era que lhe faltava pelos meninos rotos e febrentos que pediam leite, farinha, resto de comida, retalho de pano, roupa usada, remédios, fósforos, dois palmos de linha de costura. Preferia estar com a bolinha, reunindo o seu gado de tucumã, olhando as formigas no quintal cortando e carregando folha, do que subir e atender Marialba, que amarelinha e gaga, esperava D. Amélia [203] se desocupar do seu serviço para lhe dar a farinha. Alfredo não queria saber de menino pedindo no chalé. Chegara a expulsá-los. Os pobres temiam-mo e rezavam para não encontrar Alfredo na porta. Maninha com toda a sua criancice era, já, uma criatura que sabia dizer apressada para sua mãe que algum menino pobre estava querendo falar com ela. Por isso Alfredo se achava doido para sair de Cachoeira, ir para o colégio. O Anglo-Brasileiro era já um sonho perdido. Existia na bolinha. Queria fugir daquela perseguição de encher sacos sujos com a farinha do armário que D. Amélia mandava. Dar pratos cheios de resto de comida, sua roupa velha, acompanhar sua mãe pra tratar de alguma criança de barriga dura e com febre naquelas barracas fedorentas. Ouvir Major Alberto reclamar os gastos de casa, falar sempre que não era Casa da Moeda. Ter de ir à Intendência pedir dinheiro para sabão e charuto e Major coçar a perna e a careca, com os olhos sem sossego, e falar: 112 — Puxa, já acabaram o sabão? Comem sabão! E ainda mais a porcaria do charuto! Comem sabão! Comem sal! Comem vassoura! Era assim. Alfredo achava que a vida se reduzia, se diminuía e ainda mais com o impaludismo crônico que lá um dia se lembrava de vir. Que vida maravilhosa era a do Bibiano na sua canoa indo e vindo, trazendo quanta novidade de Belém! Onde estará cantando o tenor? E o circo? E aquelas ciganas que vieram na Lobato e voltaram na mesma viagem? Agora sabe como nasce uma criança. Mas a revelação lhe veio quase sem esperar, recebeu-a um pouco triste, inexplicavelmente triste. Foi perto do moinho de vento. José Calazãs na risada lhe contou tudo, rudemente. Por que seu pai não largava os catálogos e não procurava em Belém uma casa para deixá-lo estudando? Se fosse logo embora não tinha de estar mexendo nos cinco mil-réis, nem pensando na Moça, nas pequenas do Esperidião, na história da Flor e do Pai Proença, nem nas lições cínicas e cruas de José Calazãs. Seu terror era ter de ficar naqueles campos com José Calazãs. Acabava vaqueiro, andando de perna aberta de tanto viver enganchado em costa de boi velho. Uma corujinha cantou. Coruja, te some! Tu és do mundo de Lucíola. Coruja, que mau sinal! Lucíola e a [204] coru|jinha deviam ficar conversando debaixo do ingazeiro. Nunca mais podia varrer de si aquele mundo de Lucíola onde coruja piava, jacurututu gemia, matinta assobiava e pororoca era dois pretinhos mal-assombrados correndo no rio. A corujinha continua piando em cima do telhado. Alfredo quer fugir daquela coruja como deseja fugir de Lucíola, do chalé, de Cachoeira. — Alfredo, Alfredo! Que tu tem? Estás com febre? Por que ainda não dormiste? O rosto escuro de sua mãe desce sobre ele como uma grande maré de sono. XIII EUTANÁZIO ANDA Major Alberto só faltou amarrotar-lhe a conta na cara. Eutanázio respondeu com desaforo. Não se rebaixou. — Seu patife! — E o velho avançou. Sopapou-lhe a cara diante do espanto de Alfredo e Maninha. Eutanázio querendo se desviar, com os cabelos escorrendo pela cara e já por fim se deixando esbofetear pelo pai. — Dá porque é pai! — Era o grunhido de Eutanázio apanhando. — Sem-vergonha, malcriado, seu patife. Quem é você? — Homem, não está vendo? Foi o senhor mesmo que me fez Major tornou a avançar mas D. Amélia tinha vindo da cozinha: — Que é isso, seu Alberto? Então filho e pai... — Madraço. Malandro. Ainda a doença e conta para minha cabeça! Onde vou arrumar dinheiro pra pagar uma conta dessa? Para meter no bandulho daquele pessoal. Vá-se embora para onde estão suas irmãs! Vá para Muaná! Patife! Arranja as suas contas e joga para cima de mim. Não basta a sua doença, não bastam as contas que tenho pago, ainda a vergonha, o ridículo que sofre por si, metido naquele coito! D. Amélia chamava Alfredo para arrumar a mesa do café. Mariinha brincava com a cachorrinha Minu. Major Alberto, com as mãos nas costas, passeava na varanda, ora mexendo numa caixa de tipo, ora resmungando com o desleixo de Rodolfo pois [205] deixa|ra as chapas sem limpar, o papel cortado em cima das caixas. Eutanázio tinha sido sempre uma consumição. Não tinha mais remédio. Dali para pior. 113 — Psiu, psiu, acaba limpando as necessidades de D. Dejanira. Acaba assim. Pois posso pagar uma conta dessa? Não pago. Não assumo responsabilidade. Mal ganho pra comer e ainda sustentar safadezas! E debruçou-se na janela. A manha punha uma suavidade de ninho no sossego da vila. O ar parecia tecido de asas. Donde passava tanto pássaro? Um raio de sol bateu bem na testa do Major e Maninha pulou de contente ao ver um passarinho entrar pela varanda, atordoado, e logo sair para pousar no ingazeiro. Mariinha batia palmas. Minu tinha os olhos cobiçosos. De repente, o dobre do sino. Major saiu da janela, irritado. — Ainda mais isso. Eu acabava com sino anunciando morte. Isso é de aldeia. Agora é o dia todo! Quem morreu? — A mulher do Domingão — disse D. Amélia trazendo o bule de café. O sino dobrado e Eutanázio saiu sem tomar café. Aquele dobre de sino entrou nele como um escárnio. A vila quietinha dentro da manha, tinha um ar dê felicidade que sorria de Eutanázio, do dobre a finados, da explosão de Major Alberto. Didico se arrumava para pescar. Rodolfo já vinha compor os rótulos do Salu. Lucíola puxava água do poço e Dadá cantava. Alfredo se espreguiçou com a lembrança de ir ao mercado. Se ao menos levasse dinheiro para o mingau de D. Verônica! Eutanázio sente os minutos longos como velórios. Queria viver aquele sossego da vila banhado de felicidade, aquela vila de cartão postal na luz da grande manhã que vinha dos campos. Lhe veio a palavra: Hipocondríaco. O livro que desejava comprar chamava-se Dores do Mundo. Vai perguntar ao Dr. Campos. Mas para quê? Não há livro que dê jeito na sua vida, não tem mais na da que lhe tire da cabeça aquela Irene, aquela casa de seu Cristóvão, aquela doença. E D. Gemi? Por que o diabo dessa mulher não aparece? Esbofeteado! A mão do seu pai deixou talvez a marca no rosto. A conta daquele turco ordinário. Se pudesse ia agora [206] com ele e dizia desaforo. Irene deve estar rindo do café feito com a água que lavou o corpo de siá Emiliana. E Domingão esta hora? Mas encontra João que lhe fala: — Seu Eutanázio, queria que você me fizesse um favor. — Que é... — Me fazer uma carta. Mas isso em segredo. Uma carta... — João ria, meio vexado... — de declaração. Eutanázio olhou o caboclo com rancor. Mas logo desanuviou a cara para dizer: — Vamos ali no reservado do Salu; eu peço tinta e papel e escrevo. No quartinho, com a caneta entre os dedos, Eutanázio aguarda o que João quer dizer. João numa confusão, rindo-se: — Escreva da sua cabeça, seu Eutanázio. Da sua cabeça. Não entendo isso. Faz de conta que é você que está sentindo isso. Eu quero me declarar com uma aí... — Mas nem disseste o nome dela. — Ah, sim! A Ângela. — Eutanázio, sorrindo, começou a escrever. João então se lembrava. Ângela tinha custado a dar o sim. — Você aceita uma carta minha, hem Angela? Nessa tarde, a chuvarada de abril estalava no telhado do chalé e varria os campos. Na saleta, só eles dois. Defronte do chalé, a Folha Miúda sacudida pelo vento, coberta de renda que a chuva tecia. — Hem, Ângela? Não? A pequena foi dando as costas, lentamente. Machucou uma folha de ingazeiro na mão inquieta, cuspiu e mostrou o tempo. Ficava tudo branco de água. Era uma alegria de água cobrindo os campos, tufando o rio, dando aquele verde bonito e lustroso no 114 mato. Um par de passarinhos voejava em namoro atarantado pela beira da casa. — Olhe, como estão brincando na chuva. Olhe. O rio cheio passava depressa puxado pelas águas novas da enchente. — Vou ver. Vou pensar. Ângela para disfarçar talvez, fugir daquele assunto, tinha os olhos procurando o par de passarinhos. Onde estava? [207] — Diga, me dê a certeza. Hem, Ângela? — Não, João. Não posso. O pai. Ele é ranzinza. Nem imagina como é o gênio dele. Se ele adivinha que estou aqui conversando sozinha consigo, hum! nem é bom se lembrar. Ciúme do mais besta. Se souber de namoro, pau nas minhas costas. A casa onde sempre mais venho é esta que está vendo e isso porque é do Major... — Que nada... Você é que não quer... A gente quando quer... — Hum... Você tem “tanta” por aí... — E porque tem queixa de mim. Eu sei. Pensa que já esqueci o que você me disse um dia? — Que já foi então? — Você bem sabe. Fiquei sentido. Sim, eu já não sou mais aquilo. Para isso toda gente é testemunha... As vezes era fome que eu tinha. Mamãe me dava pancada, até ferro quente encostou na minha cara. Se danava, se vingava em mim. Papai tinha deixado ela. Fome era de dias. Eu via os outros comerem. Dinheiro na mão dos outros e na minha não tinha. Comecei a tirar, por onde eu via, tirava dinheiro. Roubava. Primeiro foi por necessidade. Depois foi por vício, sei lá. Apanhei bolo na delegacia. Mas D. Amélia me empregou na casa dela, me chamou, eu que roubei tanto dela! Me chamou, entregou o gado do Major para mim tratar e tanto ela me aconselhou, me fez ver as coisas, que hoje até me dói o coração lembrando a vida que tive. E é por isso... Mas lhe confesso, Angela. Não perdoa, Angela? — Perdoar é s6 Deus... — Mas se não quer gostar, aceitar uma carta minha, é porque mesmo tem raiva, tem nojo, ora, eu bem vejo... — Eu? Mas nunca me fizeste mal, rapaz... — Não... Eu sei... Falta de vontade... Eu mesmo não presto. Me dá até uma vontade de ir embora de Cachoeira. Me botar por este mundo. — Hum... Credo. — Você não havia de se sujá, me namorando. Cada qual procura sua melhora. — Ora, João, deixe aí de dizer besteira, eh! — Ângela estendeu a mão para fora da janela para ver se ainda chuviscava. [208] — Sabe duma coisa? Tem tempo! João saiu e tomou a sua montaria que estava encostada na escada do chalé. E empurrando com a vara a montaria para fazer a bigodeira de espuma na proa, espantando os jijus e os matupiris, João se metia pelo alagado. A montaria saltava em cima dos mururezais, rompia o capinzal, topava com tesos, a vara era no ar e na água e o caboclo sem saber se Ângela aceitava ou não a sua declaração. — E você quer que assine o seu nome por inteiro? — Sim. Assine. Está bem sentida? A pequena cai no anzol, não? — disse João numa bruta risada. Eutanázio riu-se. Aquela carta saíra com toda a sua amargura, o seu despeito, as suas humilhações. Ele sabia que Ângela também era analfabeta. Quem ia ler a carta para Ângela? — Quanto é o serviço? — Ora, nada... 115 — Então tem um criado às ordens... — João saiu com a carta na mão. Depois que passou o inverno foi que Ângela, da sua casa, fez um sinal rápido, respondendo ao seu, de que aceitava a tal carta. Custou era saber quem escrevia. Ah! Se soubesse ler e escrever! E sabia que Ângela sabia ler e escrever! Se lembrava que sua mãe levara-o um dia à casa do Zé Paiva, para lhe ensinar a carta de abc. Mestre Paiva era fera para desasnar menino. E João não sabia, não havia meio de sair daquelas letras. Sim, não havia meio de sair daquelas letras. Era medo, era o grito do mestre, era a fama do homenzinho terrível. Sua mãe levarão para escola porque encontrara ele brincando na beira do poço. — Deixa-te estar, porcaria, que tu vai para a escola. Tu assim me paga. Sua mãe botou ele com o seu Paiva e depois foi um nunca acabar de castigo, de não sair do A, de passar a tarde inteira amarrado num banco para não fugir da escola. E por fim, quando seu Paiva sumiu para dentro de casa, João quis desamarrar a perna do banco. Não pôde. O nó estava bem feito. Que fazer? Fugiu assim mesmo. E foi rebocando o banco pela calçada, ganhou o campo e ficou acuado uma noite inteira dentro do mato. [209] Agora se arrepende. Ângela sabia ler, na certa. E para se declarar tinha que procurar outra pessoa que havia de saber o seu segredo. Foi então que se lembrou de Eutanázio. Ângela quando fez o sinal que sim, tinha pensado muito e deu o sim com alguma vacilação. Era a primeira vez que namorava. E sabia que seu pai era capaz de, por causa disso, calcar-lhe os tamancos no peito, matá-la. Vinha-lhe uma incontida repulsa pelo passado de João. Era uma lembrança que queria enxotar e vinha com teimosia se meter entre eles dois. Tinha medo e sobrevinhalhe coragem. Enfim, era uma moça. Precisava se divertir, folgar, ter uma preocupação que não fosse somente a de fazer o almoço do pai, guarda da Intendência. A mãe tinha morrido em cima de uma tina de roupa, em Belém. Viera com o pai, magrinha e amarela, empambada. Em Cachoeira ganhara saúde. Seu pai queria que ela casasse sim, mas com um homem: — Com um que se veja que é um homem. Não é com esses vagabundos daqui. Esses... — e no meio dos vagabundos estava João. Este, então, era marcado pelo velho. Só chamava o rapaz de ladrão de galinha, de caça tostão, afinal, João Galinha! E Angela pensava. João lhe tinha dito aquilo tudo. Não sabia por que seu coração abrandou, amoleceu tanto que a imagem dele ficou nela, perseguia, tinha uma onda de sangue quando o via passar, ou sabia que ele andava nas farras, para Cima. E balançava-se na rede, batendo carapanã. — Mas de repente uma voz: — Ângela, Ângela... — Senhor? — Que tu tens? — Nada... — Tás aí te balançando, não é nada? — A voz do velho arrepiou-lhe toda a carne, que susto! Ficava gelada. Imagine, seu pai adivinhando. Ele que era um gato por ela. Imagine se bispasse que o João Galinha... E os meses passaram, as noites tinham muitos carapanãs e se o medo do pai crescia era porque a simpatia. por João aumentava. Também, se ele escrevesse, quem havia de responder por ela? Era do que seu pai nem tinha se importado. Mulher, para ele, era [210] para viver no fogão, lavar roupa, parir filho e tratar do homem quando doente. — Mulher se cria para servir o homem. Também que seja um homem! Ângela não sabia ler e esperando a carta de João, como podia responder? E pensou numa pessoa que pudesse ter merecimento de saber o seu segredo, merecesse confiança, ah! — 116 refletia, — estava era brincando com seu pai!... E nesta manha, Ângela procura alguém que possa responder logo a carta de João. Se pudessem conversar nem precisava responder... Mas que tempo tinha, quando e que podiam se encontrar, ainda mais que João nunca tinha deixado de ser para seu pai o famoso João Galinha? Eutanázio saiu remoendo ressentimentos daquele caboclo feliz que ia mandar uma carta para Angela. Iam se namorar, se casar talvez. Pelo menos acabavam se encontrando pelos campos e casando na policia. Vingara-se enchendo de fel aquilo que João queria feito de doçura. A carta levava toda a sua doença, as imundícies que arranjara da casa de seu Cristóvão, os pesadelos que Irene lhe dava, os bofetões do pai. Nas entrelinhas da carta ia todo um ódio, toda uma inveja, toda uma necessidade de transformar aquele amor cheio de alegria do João numa qualquer coisa com aquelas feridas de Felícia, aquela conta do turco, aqueles trinta mil-réis entregues ao seu Cristóvão. Como invejava aquele caboclo que laçava as vacas, peava bezerro, gritava em cima da porteira soltando altas gargalhadas, apelidando as vacas com os nomes das moças, sentado muito tranqüilo no seu caixote, ouvindo história de Marina e Alonso que Elias Seixas ia lendo no mormaço da tarde! Foi assim que lhe veio aquele desejo de ser como João, ter uma Ângela, tocar as vacas para o curral. E a inveja arrastou-o para cima, sentido-se mais miserável, mais desgraçado. Uma coisa que não sentira ainda era inveja e eis que vem João, com o riso — que dentes perfeitos! e toda a brutalidade, lhe pedindo para escrever uma carta para Ângela! Teve primeiro um ímpeto de escrever uma porção de coisas na carta, fazer uma maldade para João, escrever, justamente o contrário do que João queria. Como seria ótimo saber que Angela ouviria na carta os dizeres, não duma declaração de amor, mas duma declaração de ódio! [211] Foi por isso que levou indeciso uns minutos para começar a carta. Teve talvez receio de João, vacilação consigo mesmo, afinal escreveu com ódio aquela carta de amor. Mais tarde estariam os dois, como animais, pelo campo. Eram uns bichos. Bichos! Eutanázio achou que aquele pedido de Jogo tinha sido, pelo inesperado e pela felicidade que brilhava nos olhos do caboclo, mais humilhante que os bofetões do pai, mais cruel que o pensamento dos trinta mil-réis de Felícia. O sino festivo. Nem sabia que a mulher do Domingão estava esticada no meio da casa e um homem gordo chorava, esfomeado e roto, no fundo da cozinha. Queria ir falar com Felícia. Era sempre uma dignidade sua surgir lá e dar qualquer desculpa, explicar. Ou mesmo declarar a verdade. Felícia era boa. E se lhe desse no juízo de dizer-lhe: — Olha, Felícia, eu tinha trinta mil-réis para lhe dar mas como você me contagiou fico com os trinta mil-réis! Queria ver o que a pobre da desgraçada dizia! Era uma infâmia, mas infâmia maior já tinha feito. Os trinta mil-réis estavam nas mãos de seu Cristóvão. Se dona Dejanira não foi tirar do bolso do velho, à noite mesmo, é possível que agora Mariana esteja satisfeita e o remédio comprado. Queria ganhar uns contos na loteria para aliviar o peso daquela miséria na casa de seu Cristóvão. Eutanázio só via miséria ali, em parte nenhuma mais. A pobreza de Cachoeira não tinha boca de D. Dejanira para se queixar. Se maldizer tanto por ela, se lembrando de comidas bem temperadas. Mas Eutanázio ouve uns gritos na casa do Dr. Campos, se aproxima e fica parado, à escuta, com uma ansiosa, angustiada curiosidade. — Que dia hoje nasceu para mim! — pensou, Dr. Campos gritava: — Pois lhe mandei chamar para isso, sua podre! Você além de morar naquele casebre porco, fedorento, onde se vende a cinco tostões, dez, quanto der, a troco dum cigarro, dum pedaço de 117 tabaco, além de tudo isso. Rah! Não sei onde estou que não lhe mando botar no xadrez. Sim, porque essa desgraça de Código Penal não previu o delito venéreo. Ia, ia, tu ias para a cadeia! Espere. Pensa que sou algum caboclo besta? Não sabe que tenho uma senhora que nem os pés dela você pode lamber e que... Estou assim [212] de raiva... E quando acaba ia convidar ela para um passeio ao campo a fim de reconstituirmos uma cena grega, uma festa pagã. U para os campos, como fiz com a minha... e essa semvergonha, essa vasilha, me deixa nesta miséria... —Mas Dr... — Cale-se... Lhe dei dois mil-réis, a semana passada, mandei um quilo de açúcar, hem? Um quilo! Tabaco... E agora... Olha que eu enlouqueço, acabo rachando de uma vez, com um pontapé, essa podridão que és tu mesma... E puxe daqui, puxe-se daqui, senão te mando botar creolina e ainda ponho de molho no xadrez e... — Dr. Campos depara Eutanázio que espiava pela janela, pálido. Dr. Campos se desorienta um pouco, sente-se talvez vexado e para que Eutanázio não pense que ele esteja diminuindo tanto Felícia (sempre se compadecia dela diante de Eutanázio) simula que tudo aquilo era uma brincadeira. — Estou aqui... brincando com essa... é a Felícia. Eutanázio. Entra. Mas Felícia, que até então estava esmagada de terror na cadeira, encara Eutanázio e se debulha em soluços. Eutanázio, olhando para aquele corpo magro e que os soluços sacudiam, ficou de pé sem dizer coisa nenhuma. Mas Dr. Campos ao ver as lágrimas e os soluços, aquela coisa convulsa na cadeira, não se conteve mais, explodiu: — Vamos deixar de disfarces! Infantilmente eu... quis esconder esta cena em minha casa, Eutanázio. Mas estou passando um raspa nela que me enganou. Não sou ruim, pago, dou as coisas. Mas para vir fazer isso comigo... Sou um Juiz... Me avisasse... Seu Eutanázio, diga, se acontecesse uma coisa assim consigo você não faria o mesmo? Hem? Não faria o mesmo? Felícia se erguera, esfregando o rosto na manga do vestido, ainda agitada pelos soluços. Eutanázio ficou de cabeça baixa, com um peso atroz sobre a nuca. Como se não pudesse levantar nunca mais a cabeça. Dr. Campos apontou a porta para Felícia. — Eu chamo e antes que lhe diga o que sinto me pede logo dinheiro! — Mas Dr.... Quando... o Sr. foi... O Sr... estava naquele [213] esta|do... Dionísio... Avisei. O Sr. botou a mão na garganta... e não tinha tempo... E... — Cale-se! Cale-se... Vá embora... Enfim é uma inconsciente. Lhe dou dois mil-réis, tome. Tome... Vá embora. Acaba eu lhe mandando para o hospital... Afinal, digam que não sou bom... Isso, vá embora. Uf! Você, Eutanázio, não fazia o mesmo? Não dá raiva uma coisa destas? Depois querer insinuar. Sei o que faço quando bebo... Quando bebo... Afinal, esta humanidade é assim mesmo, arranja desculpa sempre. O diabo é que não posso ir a Belém. E seu Eutanázio, o meu ódio, a minha indignação não e nela, é que, nesta situação, tenho de me entregar ao Ribeirão! Eutanázio continuou em silêncio. Romper com Dr. Campos? Trinta mil-réis, trinta mil-réis, era o seu pensamento. O barqueiro era forte e a voz grossa. Trinta mil-réis. Felícia, porém, saíra com os dois mil-réis do Juiz. Como incomoda Felícia não ter nada, ficar em estado de fome... Levava dois mil-réis. Afinal de contas, dos males o menor, eram dois mil-réis a menos na consciência de Eutanázio. — Eutanázio. Me espera aí que quero ir contigo. Vamos juntos. Tenho finalmente de ver quais os remédios que aquele crápula possui. Não vou lhe dizer que estou doente porque o crápula espalha num minuto em Cachoeira que estou podre! Veja 118 você, Eutanázio, do que escapou! De ser bacharel, para exercer neste cafundó o cargo de Juiz substituto! Quando entrou, tinham falado longamente do quadro da mulher do Domingão. Duduca talhava uma fazenda na mesa larga e velha. Seu Guaribão parecia mais magro e mais escuro. Era o processo da cama, como diziam em Cachoeira, que o atormentava cada vez mais e o ódio a Ribeirão que lhe rola por dentro. Estava mudo, com as queixas contra Araguaia que não quisera servir de testemunha das infâmias ditas pelo Ribeirão. Velho Araguaia, que não achara o porquinho, tinha obrigado um abaeteuara a obedecer a lei. A lei era lhe dar sempre de gorjeta um pote de mel, meio alqueire de farinha, meia frasqueira de cachaça. — A sonegação de imposto — dizia Guaribão — é um crime! Um crime... — E sabia das negociatas do Araguaia com os [214] vendedo|res de cachaça e mel, enchendo a sua dispensa de açúcar moreno, carne de capivara, mel, e farinha à custa da fiscalização municipal. — Mas que coisa, não, seu Eutanázio? Que doloroso equívoco, não? — Sr. Gomes ficou esperando a resposta. Mas o velho Antônio saltou em cima do Sr. Gomes: — Olha, Gomes. Este assunto já foi encerrado. Deixa o Eutanázio em paz. Ele tem o gosto da mulher do Domingão na boca, no estômago... — Do cadáver... — emendou Duduca, abrindo na risada. — Que patifaria, seu Eutanázio! Aposto que siá Mercedes fez aquilo de propósito. Pensa? Está aqui uma que não duvida. Tu pensa? Não duvido de nada neste mundo... Mas Guaribão não se conteve e se dirigindo para Araguaia: — Mas Araguaia, me disseram que você anda esfolando os caioeiros de Abaeté. É verdade isso? Velho Araguaia ergueu-se, subitamente, avançando para a barba lo velho Guaribão: — Guarebão... — Tenho nome... — Olha, tu estás provocando esso... porque não quis server le testemunha pro teu processo contra o Reberão. Mas se eu não ouvê o Reberão dizê! Não ouva e pronto! Quanto meu serveço, tenho de dal conta com o tesorêro e com a menha consciência... — No entanto, há na lei uma contravenção cujo nome se chama concussão... — Guaribão... Essa palavra parece nome feio, Guaribão... Guaribão não se deu por achado com a graça do velho Antônio. Queria desmascarar a honestidade do Araguaia. Araguaia andava furtando o município, andava digno duma demissão a bem Lo serviço público! — Olha, Araguaia... Mas quem sabe da lei e conhece a nossa lei orçamentária sabe quanto tens, desmentido da tua fama de fiscal honesto... Sr. Gomes viu que uma extensa e grave discussão ia explodir acalmou velho Araguaia: — Bem, bem. Vamos continuar a falar do café com a água [215] da senhora Emiliana... Acho que... Oxalá que essa discussão não se prolongue nem aqui nem fora daqui... São dois amigos... Velho Antônio depois de migar o seu tabaco, fez por maldade: — Duduca, tu sabe que eu sou velho... Mas tenho remédio para mulher, agora. Não é livro de S. Cipriano, não. Uma receita e tanto. A mulher que não gosta da gente, a gente espera ela cuspir. Põe-se no cuspo um pouco de tripa de calango torrado... Eutanázio saiu. Mas ah! bolas! tinha esquecido o chapéu. Já se encontrava no meio da rua. Uma dúvida o espicaçou. Suspeita que o imobilizou, fê-lo ficar com o olhar no chão. Era capaz de estar sendo agora a vítima da conversa. Uma coisa torpe aquilo tudo. Os velhos riam. Era dele, com certeza. E o chapéu? Tinha de 119 ir buscar o chapéu. Seu nome em cena e ele chegando assim de sopetão! Teve um certo escrúpulo, vexame, mais com o receio 1 de não desnortear os velhos surpreendidos do que mesmo para saber se era exato que falavam dele. Que choque! Ficou esperando não sabia o que. Acendeu um cigarro como se acende, no intimo, um súbito desespero. Pôs-se a brincar com a bengala. Mas a situação estava salva! Duduca aparecera na janela, na risada, cuspindo. Eutanázio apressou-se, aliviado: — D. Duduca. Me traga o chapéu que esqueci... Entretanto aquela suspeita ficou se debatendo nele como mais um motivo para se desesperar. Era um dos piores dias da sua vida. Parecia já ter vivido tantos anos em tão poucas horas... E ainda não tinha chegado na casa de seu Cristóvão! Velhos torpes, velhos... O cigarro apagava. Passou pela botica do Ribeirão. Dr. Campos às gargalhadas com Ribeirão, este falando baixo, tossindo de vez em quando, curvo e sujo. Recordava de uma carta do Ribeirão que dizia: Já não se pode viver aqui. Doença quase não há e como que posso vender meus remédios, minha pobre mulher? Está uma desgraça esta terra. Acabo fechando o negócio Guaribão queria pegar esta carta, mas quem tinha era o Novais que não queria que Cachoeira soubesse. Ribeirão era íntimo duma doença secreta da mulher do Novais. Agora Dr. Campos rindo daquela conversa. Velho Ribeirão [216] com aqueles olhos enterrados nas órbitas, as sobrancelhas, as pregas da mascara hedionda, estaria revelando alguma doença de senhora, descobrindo os podres de Cachoeira! Eutanázio passou com repugnância daquele .farmacêutico e com ódio daquele Juiz. Caminhava para o seu mundo, a sua humanidade. Fora ao mercado e não encontrara seu Cristóvão. Teria comprado o remédio? O arroz doce de Mariana também não aparecera. Ainda ouvia a risada prolongada do Juiz. Os periquitos faziam zoada nas mangueiras e novamente o sino dobrou. Noutro lado da rua, Ezequias. Passava de cabeça baixa, como se fosse perseguido pelo dobre do sino. Eutanázio tinha de fingir que não o via. Era mais uma conta. Mas Ezequias parecia barbado, andando penosamente. A sífilis, a sífilis! Ia procurar seu Ribeirão para comprar alguma novidade farmacêutica contra o flagelo da humanidade. Qualquer remédio novo que aparecesse Ezequias comprava logo para debelar o flagelo da humanidade”. Só um flagelo se parecia igual à sífilis: era o bolchevismo na Rússia. Sim, dizia, as doze pragas da Bíblia que padre Contente citava nos seus sermões, em dezembro. A sífilis tomara conta da imaginação de Ezequias. E Ford, os jornais, os dólares, os doze maiores milionários do mundo, a conta da charqueada, tudo desaparecia na boca do flagelo. Ezequias se julgava “um dos homens mais infelizes do mundo”. Era o maior freguês do Ribeirão. O boticário diagnosticava: — Meu amigo, é a sífilis. Sífilis de caráter maligno... Queria era vender os remédios. Dr. Campos dizia que tinha mais sífilis nos remédios que Ribeirão vendia do que nos pacientes. Aquela botica é um chiqueiro, de sujo, de porco, dizia Major Alberto. Meteu na cabeça de Ezequias que tinha de se tratar durante cinco anos seguidos. (Era o tempo, pensava, que ainda podia ficar em Cachoeira). E as manchas apareceram. Veio a primeira noite de pessimismo para Ezequias. E Eutanázio passou sem cumprimentá-lo. Ezequias lhe podia cobrar a conta. Ezequias, afinal, não tinha uma casa de seu Cristóvão, pensou Eutanázio. Se tivesse não vivia preocupado com a sífilis, não se deixava dominar pelo Ribeirão. [217] XIV IRENE ASSIM É MAIS AMADA 120 Irene encontrou Eutanázio logo ao pé da escada: — Olhe, seu Eutanázio. Saiba o senhor que eu não sou moça para estar na boca de quem quer que seja. Sei que o senhor se gaba aí de mim, mas andar dizendo que... dizendo mal de mim com Resendinho, isto é de se tomar uma providência. Se tiver vergonha, faça favor, não fale mais comigo! Triste uma pessoa gabola e falando dos outros! Pois já vou comunicar a mamãe que o senhor anda dizendo que Resendinho... Isto passa de abuso e digo mesmo, axi! que eu namore consigo. Se enxergue! E se dizendo amigo de mamãe, falando de mim com o Resendinho. Quando Resendinho chegar ele será sabedor, será. Deixe de ser gabola, tire isso de sua cabeça de que eu vou lhe namorar. Só se o mundo se acabasse. — Irene dá uma risada e ao mesmo tempo franze a cara com os olhos maus sobre Eutanázio. Irene voltou-se e correu para debaixo da casa e Eutanázio nada fez senão sorrir para D. Tomázia. O dia nascera fatal. D. Tomázia levou Irene aos empurrões para cima: — Sua atrevida! que tem o compadre contigo! Se o compadre te dá confiança... Quem te dera, quem te dera... Conversa que metem no ouvido dessa atrevida e ela vem descarregar em cima do compadre. — D. Tomázia queria ocultar aquela antipatia que Irene tinha por Eutanázio. Queria de qualquer forma sustentar Eutanázio em sua casa não para casar com a filha, mas para acudir sempre as necessidades da filha, da família, era lógico. — Seu Eutanázio, me desculpe essa menina. Veio D. Dejanira e D. Tomázia com a vassoura, explicava: — Esse Resendinho e depois... Compadre vai desculpando. Falta de criação não foi da minha pane, mas pau que nasce torto... Espere aí, compadre, vou fazer um café para nós... — Não senhora... Eutanázio adivinhou logo o que queria dizer a prodigalidade dum café às dez horas da manhã. D. Dejanira havia ficado com os trinta mil-réis! Nem o arroz doce de Mariana, nem o remédio [218] para a asma do seu Cristóvão. Resendinho, tomar uma providência. Uma providencia. Uma providencia. Estava imbecilizado, tão dentro dum escuro, um escuro que enchia a cabeça, pesava na vista, se derramava pelo corpo, que se repetiam nele algumas palavras de Irene: providencia... Resendinho... se tiver vergonha... gabola... Não era capaz de reconstituir as frases, compreender aquela explosão de Irene. Com Irene não sabia reagir, mas chegara ao ponto de logo compreender, e de maneira tão lúcida, que D. Dejanira tomara os trinta mil-réis! Seus lábios tremiam, o escuro, as palavras soltas, os olhos de D. Dejanira tentando compreender o que se passava no íntimo de Eutanázio e D. Tomázia caminhando para a cozinha para fazer o café com o dinheiro de Felícia e com a água do cadáver de siá Emiliana. Não. Não queria tomar café. A palavra “cadáver” ficou atravessada no seu cérebro, no meio da sua confusão, do seu escuro. Tinha medo de cair com uma sincope. Que esforção para se manter na cadeira, não sufocar, reprimir aquela onda, aquela coisa que rolava no peito, apertava a garganta! D. Dejanira falava de Bita, de asma do seu Cristóvão, da brutalidade de Irene, das duas que foram ao Espírito Santo a passeio, de Raquel que lava roupa. Teve de desinteirar os trinta mil-réis para comprar sabão, era um haver de roupa que não se podia mais, de suja. Mariana apareceu brigando, chorando. O prejuízo do arroz doce. Mas para Mariana era preciso um ensino. Não podia dar nada. Trinta mil-réis tinha vindo do céu. — O Sr. não acha, seu Eutanázio, que depois de se ter trinta mil-réis assim na mão a gente agora vá querer pagar conta de Mariana... E o trabalho que Cristóvão tem, um velho, um administrador do mercado, de vender? Ela, isso, não fala. Fazendo do pai 121 vendedor de arroz doce! Tive de comprar umas coisas. E depois seu Eutanázio, a asma do Cristóvão já é crônica. Não tem mais cura. Para que a gente está gastando o que não tem, o que só Deus sabe como a gente arranja, para comprar remédio, encher a barriga do seu Ribeirão? Este, sim, vive aí se fazendo. Ele e o Costa. Costa veio para cá com uma mão abanando e hoje já comprou a casa do Finoca, tem dinheiro e come do bom e do melhor na sua casa. Tesoureiro da Intendência. Isso é assim mesmo. O [219] cu|nhado, o intendente, vive em Belém. Cristóvão não sabe ter dinheiro na mão, seu Eutanázio. Quer logo comprar remédios. Eu, não. Compro as coisas de se comer. Mandei buscar daquele jabá gordo do Felizinho e uma lata de carne em conserva. Seu Eutanázio, a gente era para viver bem, mas... Seu Cristóvão também não cava... Bita, coitada da minha filha, Bita saiu até chorando... Eutanázio tomou o café. Irene na janela cuspia. Ele ficou sozinho na varanda, aparentemente sossegado. Vendo Irene, lhe sobe um animo de se arrastar até aos seus pés, lhe dizer: Fui eu... sim — Mentir. Resendinho lhe botou... Grávida. Grávida. O pensamento acendeu. Sentiu um sobressalto no coração. Toda a varanda se encheu com o ventre enorme de Irene e Resendinho torcendo o pescoço, correndo para Belém. Desejou ver Irene grávida, chorando, a fuga de Resendinho, Raquel aos berros e D. Maria dos Navegantes pegando a criança na hora do parto. Irene conversando debaixo da casa com Resendinho. Falavam de Irene nos campos, com ele, passeando. Desapareciam entre as árvores. E da vez que Irene lhe pedira: — Seu Eutanázio, quero que o sr. me faça uma cópia de cana... Para quem era a cópia da carta? Era para Resendinho? Quantos meses fez que escreveu a cópia da carta? Pouco depois adoece. Ele a escreveu, sim, com que peso na mão, o choque, até uma dor nas costas lhe aparecera, naturalmente reumatismo. Agora sabe mais ou menos que aquela cópia da carta tinha trazido Resendinho, jogado Irene nos campos com Resendinho e, por fim, D. Maria dos Navegantes dizendo para D. Tomázia: A criança é macho. Como Irene estava com os olhos nos campos que se estendiam através das cercas da Estação de Monte e se deixavam engolir por aquelas muitas bocas de mato azul ou iam embora para o sem fim, Eutanázio pode observar-lhe os seios que, com o corpo meio curvado, pendiam como cachos dentro da blusa encarnada, o ventre ligeiramente crescido, os quadris abundantes e apertados na saia. Podia ser normal aquela barriga? Não, era já o filho. E cuspindo? E pensativa, parada, olhando o campo, e com ele na varanda? Irene ficou ainda mais curvada, com o queixo ao [220] peitoril da janela, numa atitude estranha. Suas nádegas avançaram para o meio da varanda, as pernas pareciam retesas e alguns dedos da mão esquerda tocavam de leve um dos seios pendentes. Dr. Campos sabia. Resendinho havia levado Irene para o campo como Dr. Campos leva as suas mulheres para o que ele chama “as suas festas pagãs”. Araguaia contou na casa de D. Duduca que surpreendeu, uma noite de lua, Dr. Campos e a sua amasia nus no meio do campo correndo um atrás do outro como doidos. Resendinho devia ter feito o mesmo, atirado com o corpo — aquele corpo agora vergado na janela — por cima dos muricizeiros caídos. Depois lhe vem uma piedade impetuosa e dolorosa por Irene, piedade e logo alegria vingativa e em seguida uma esperança: mesmo grávida, atirada na rua pelo Resendinho, passada pela mão de todos os rapazes de Cachoeira, Irene seria a mesma para ele: Talvez o aceitasse depois que provasse e se bastasse da maldade dos homens. E ali na janela, já com a cabeça abandonada sobre os braços, o corpo curvo, os seios derramados na blusa, Irene parecia já expulsa de sua casa, espancada pelo Cristino, assistida por D. Maria dos Navegantes, desfolhada e batida por todos os homens, reduzida a Felícia debaixo do peito, do ronco, 122 do bafo e cerveja, da luxúria suma do Dr. Campos. Mas permanecia bela naquela postura como uma arvore vergada de fruto e o vento sacudia a manga de sua blusa que parecia tremer como as folhas do limoeiro que crescia junto da cerca, defronte da janela. Não podia observar bem se o ventre crescia, se os peitos se transformavam, se as ancas... Irene podia surpreenda-lo. Nunca se decidiria a um exame tão demorado do corpo de Irene, dos pensamentos, da alma de Irene. Era uma investigação mista de ciúme, ódio, escárnio, libidinagem. O corpo da moça naquela atitude, esquecido pela própria dona, como que tinha consciência de que estava sendo interrogado por Eutanázio e se oferecia para o exame numa confissão. Aquela carne adolescente adquiria todas as formas dum ser que estivesse concebendo. O vento numa tentativa parecia querer tirar-lhe a blusa, invadir-lhe o vestido, levar para Eutanázio, no cheiro daquele ventre, a confirmação da suspeita. Revirava os cabelos dela como revira e levanta folhas secas do chão. Eutaná|zio porem não podia examiná-la minuciosamente bem, apalpar-lhe o ventre. Podia ser uma simples suposição e suposição infamante. Tinha enjôo? Mulher quando cospe muito não é quando está grávida? Havia naquele corpo qualquer coisa de preguiça, de indefinível graça, do abandono das mulheres grávidas. Enfim, era um prazer aquele padecimento; sentia gozo naquela angustiosa e atenta suposição. D. Tomázia, no quarto, arrumava roupa. D. Dejarina veio subindo a escada com um prato ainda por enxugar. Irene se ergueu, tentou endireitar o corpo, sentar o cabelo, sacudiu uma perna e catou uma formiga no braço. Agora, encostada à janela, seu corpo continuava com seu ar de árvore carregada de fruta. Depois ela se voltou para a porta da rua e saiu da janela com a cara franzida como criança zangada. Com os seus passos fortes, a energia do busto, das pernas jovens, dos quadris bem vivos, os cabelos como ninhos, os seios como duas pulsações que acompa- nhassem o ritmo daquele andar resoluto, Irene passava rapidamente diante dele como se tivesse recuperado aquele corpo que há minutos deixara abandonado na janela. De repente um tiro na rua das Palhas. As velhas correram. Irene desceu rapidamente a escada mas voltou no mesmo instante procurando as chinelas. Não achando de pronto, assim mesmo descalça foi para a rua. Eutanázio ficou com a cabeça entre as mãos, sem vontade. Um vago movimento, um canto de galo, o vento no jasmineiro, o maracujazeiro cheirando, a suspeita. Acendeu um cigarro. Mas nem pôde tragar a primeira fumaça. Ergueu a cabeça, espantado. D. Tomázia vinha correndo com um ar dramático, segurando a figa do pescoço. (Bita...) — Seu Eutanázio, pois seu Ezequias não se matou? — Hem? se matou? Ment... Como? — Aquele tiro foi ele que deu na cabeça. Deixou uma carta dizendo que se matava porque estava leproso. Eutanázio vai seguindo. Nem vale a pena ver o corpo. A sua conta deve ter ficado dentro da gaveta. Sempre era bom que os irmãos dele não fossem encontrá-lo. Lucíola e Dadá haviam de falar para todo mundo. Lembra-se que é tolice sua este escrúpulo. [222] Sabe que a sua vida perdeu o mistério para Cachoeira. Pelo me nos, Ezequias era uma conta que não pagava mais, não o perseguia mais. Ele não tinha medo propriamente da conta mas da cara de Ezequias a quem pedira os fiados. A conta se estampava naquela fisionomia martirizada pela sífilis imaginária, pelos dólares pela fome de jornais que não lhe traziam a queda do comunismo russo nem a vinda de Ford à Amazônia. Quatro frases de Ezequias ficavam em Cachoeira. — Eu sei quais são os doze maiores milionários do mundo. — O Brasil é um país arrasado pela sífilis. — Os aliados devem acabar com essa coisa horrível da Rússia. 123 — Ford vem salvar a Amazônia. Por que esta sensação de alívio com a desgraça alheia, com o ridículo alheio que é talvez a pior forma de desgraça? Como se aquele suicídio o compensasse da suspeita, do seu próprio ridículo, dos bofetões do pai, daquele dia estuporado que não se acabava mais. Não compreendia como se achava rodeado tão inesperadamente de tantos acontecimentos, tomado por tão desencontrados sentimentos. Mas sobre tudo isso, sobre o tiro que varou o seu silêncio na varanda, a gravidez de Irene irrompeu na sua suspeita, de novo, como o seu próprio tumor que não vinha a furo. Tinha de saber. Tinha de descobrir nela própria os sinais da gravidez. Ia se tornar em idéia fixa, em vício, numa nova maneira de se corromper ainda mais. Perguntaria a D. Gemi como é que se sabe quando uma mulher está grávida. Procurará dona Gemi para tratar de sua doença e aprenderá como descobrir a gravidez em Irene. Ele quer acompanhar a marcha dessa odiosa germinação, seguir os passos de Resendinho naquele corpo que muitas vezes se tornou impalpável nas suas noites de prazer solitário, sem o resfolego do Dr. Campos mas sob a pressão do sonho. Irene esperava Resendinho, sem dúvida, para casar. Quando? Resendinho está contando como a levou para os campos, entre os seus amigos em Belém. Irene, naturalmente, esperava a promessa do sujeito. Antes que descobrissem. Mas ele já estava descobrindo e sabe que Resendinho não vem. Por isso Irene deve talvez ficar mais bela e mais amada. Pela primeira vez vai vê-la em desespero, com aquela barriga irremediavelmente crescendo... [223] XV ENVENENAR AQUELAS CARTAS Com seu olhar de gata em sesta, Eutanázio cisma olhando o casario da vila, tons de telha entre arvoredos, os campos esfuma- çados, a tarrafa do Didico estendida no jirau, a velha casa do Coronel Bernardo. As mãos tremem no peitoril da janela, a língua se estica para fora como de jararaca, a voz de Irene vem com o vento morno que trás dos campos o cheiro de estrume de gado, da terra assada pelo fogo e pelo sol. Assobia vagamente, Irene, como o vento, o envolve de mormaço. — Tome, Tanázio. Voltou-se. Era Maninha, com os seus olhos saltitantes, o ar de andorinha e borboleta. Trazia o café habitual das duas horas. Eutanázio, passando a mão pelos olhos e na boca, tremulante segurou a xícara. — Rodolfo já chegou? — Não sei... Parece. Não sei também... E num sorriso brincalhão, a menina recuava insensivelmente de costas. Sem que pudesse evitar, chocou-se na cadeira, caindo. Eutanázio acudiu. Por um milagre a xícara não quebra, rolando no chão. — Anda, levanta. Não foi nada. — Disse ele, com a voz abafada e quase indiferente. Assustada, Maninha levantou-se, esfregando os joelhos. Ajeitou o vestido claro e curto e ajuntou a bandeja, balbuciando, com um fio de suor no pescocinho moreno: — Se quebrasse. Eutanázio sorriu e voltou-se para aqueles campos esfumaçados donde vinha o vento morno, o horizonte cheio dos olhos de Irene. Maninha ficou um momento parada, mirando Eutanázio. — É as estrela, é Tanázio? — Não... — Ahn... Maninha perdia-se numa curiosidade, ajoelhada no colo dele a mirar aqueles olhos de névoa, tentando se refletir na menina dos olhos de Eutanázio. 124 [224] — Sou eu? Sou? Mostra. Estou aí dentro dos teus olhos... Mostra. Mas agora não vejo... Uma noite Eutanázio preparava-se para sair. Maninha pulou nos joelhos dele, trepou na cadeira e foi olhar a noite. Eutanázio veio abotoar a camisa junto dela. Maninha segurou-lhe as pernas. — Espera, menina, vai dormir. — Tu me fazes uma coisa, diz? — Hem? — Aquilo disque desce com a gente, vem... — O que? — Aquilo... — O bracinho de Maninha apontava para o céu. — As estrelas? — Sim... — Foram feitas para a menina... Elas vêm te guardar quando dormires... — E a gente vê? Elas embalam a gente? Ouve a voz delas? — Não se ouve... Elas descem... Pergunte à sua mãe... Maninha esperou até muito tarde que as estrelas descessem. Eutanázio pensou que foi talvez a única tentativa melhor de poesia que pudera fazer. Por isso Maninha era a única criatura que ele acariciava. Ela Lhe trazia o café, lhe dava doces, lhe pedia caixinhas, cantava modinha, vinha acordá-lo algumas vezes. Maninha vá logo levar a xícara. Que você está fazendo no armário, menina?... Procurou um cigarro. Precisava encadernar uns livros do Dr. Campos. Mas não tem ânimo para cortar papel, pôr a lata de cola no fogão. Os passarinhos entravam pela janela, brincavam no telhado. Os periquitos no ingazeiro. E aquele sopro de terra queimada que era como a respiração de Irene no amor com Resendinho. Major compõe uma chapa para um convite de festividade. D. Amélia foi buscar lenha no quintal e olhou a sua horta. A sua grande vontade era ter uma horta. Que trabalho no verão para fazer os carneiros e que tristeza no inverno quando tudo ficava alagado! Também no verso faltava água. — Maninha, vai buscar meu charuto. — D. Amélia revira as roupas no quarador pensando na viagem de Alfredo. Hoje [225] cho|rou de novo; não queria ir buscar a carne, por isso que Major reclamou o cozido duro. Agora Alfredo está no tanque olhando o seu gado e o carocinho na mão. As patativas nas pontas da cerca namoravam o chalé. D. Amélia começou a cantar: Um coqueiro bem ao lado que, coitado, de saudade já morreu... De repente, estremeceu com um grito. Correu para a varanda. Maninha soluçava a um canto, apontando para o chão e Major ria e caçoava da filha. As patativas já no telhado voaram, espantadas. O gato espiava com uma curiosidade gulosa que Lhe fazia empinar a cauda oscilante. Dois mimos de ratos, vermelhinhos e viscosos, caíram da cumeeira. E D. Amélia, com nojo, se lembrava que Maria, aos dezoito meses, fora encontrada na varanda, metendo na boca um ratinho rosado e vivo como aqueles. — Hoje vamos dar uma batida nesses patifes. — Disse Major com o componedor na mão. Alfredo tinha vindo ver o que era. O grito de Maninha deixara-o gelado. Por que o medo, o pressentimento de que qualquer coisa pode acontecer com Maninha? Maninha todo mundo dizia que não se criava. D. Amélia levava noites e noites, sozinha, Major nos catálogos, velando o sono de Maninha com febre. Era pano com vinagre, era lavagem, era fomentação. D. Maria dos Navegantes foi a primeira que disse: — Ah, D. Amélia, paciência, mas essa menina não se cria. Parece de sete meses. Alfredo media a grossura do bracinho dela pelo seu dedo polegar. Tudo em Maninha era mole, frágil, sem vida mesmo. Mas D. Amélia perdia noites, ao pé da filha, armando 125 mosquiteiro, fazendo fumaça na varanda contra carapanã. Quando Maninha sossegava, ia colocar na mesa de jantar uma bacia com água para pegar as caturras que vinham bater no vidro do candeeiro. Alfredo saia da rede, pé-ante-pé, para espiar, pelas frestas da porta do quarto, se Maninha estava mal, se o rosto de sua mãe denotava desespero, se, afinal, a doença de Maninha só era mesmo uma simples febre. Mas passava horas acordado, aos sustos, o coração batendo apressadamente com medo, pressentimento, acompanhando [226] to|dos os movimentos de sua mãe, a sua ida para a cozinha. — Que ia fazer? Ferver alguma lavagem? Chá? Por que seu pai não acudia? E ficava espiando, ou se metia na rede com o ouvido à escuta. Maninha morria e vivia. Maninha com ataque. Um acesso que para Alfredo já era a agonia da morte. E chorava devagarinho embrulhado na rede. Não tinha mais sossego, ia para a cozinha atrás da mãe, mudo, receoso de lhe perguntar, sim, porque sua mãe podia dizer: Maninha está mal. Ou mentir para sossegá-lo. Mesmo tudo fazia para que sua mãe não reparasse na sua inquietação, na sua angústia. Perder Maninha era o que a toda hora podia acontecer e Nossa Senhora exigisse tudo dele contanto que Maninha voltasse a brincar na varanda, saísse daquela febre, nunca tivesse mais daqueles acessos. Sua mãe tinha uma calma, uma segurança, uma paciência que em muitas ocasiões o consolavam, faziam-no confiante. Ela ia da cozinha para [o quarto e para] entrar no quarto, tinha de levantar o punho de sua rede armada na varanda. Era uma sacudidela que o sobressaltava como se ela fosse dizer: — Alfredo, acorda e levanta. Vai comprar vela no Jorge que tua irmã está morrendo. — Sua mãe era assim. Se Maninha morresse não dava alarme. Ela mesma confessava. E por isso Alfredo não sabia se Maninha nas suas noites de febre estava mal ou não. D. Amélia não denunciava nada, os olhos de sua mãe não mostravam aflição nenhuma. Era um serão doloroso e fatigante para D. Amélia. Major adormecia. Apenas de hora em hora vinha na beira da rede: — Deste o remédio? Isto não é nada. Psiu. Dando o remédio na hora, passa. Alfredo não queria dormir enquanto Maninha não chorasse como criança já salva da crise. Por que Maninha não chora? A luz no quarto, os remédios na cadeira, a bacia, o irrigador, as caturras caindo na bacia, o mosquiteiro armado, o gato arranhando o soalho, aquele silêncio de febre de Maninha, os passos de sua mãe aumentavam a noite, afastavam o sono, davam ao escuro do corredor a presença física da Morte que se aproveitaria duma ida de sua mãe à cozinha para carregar com Maninha. Por que não havia de acabar aquele cheiro de mamona, de água quente, de [227] si|napismo? Maninha morrendo, o seu enterro. Lembrava-se da morte de siá Rosália, o choro de Lucíola, o terror de Adma vendo o caixão de sua mãe entrar. Não podia dormir. Levantavase e ia sentar no soalho junto da rede onde sua mãe, sentada, tinha o corpinho de Maninha no colo. A cabeça caída, os olhos semicerrados, o pulso batendo. A sua angustiosa preocupação era o pulso de Mariinha. Diziam que quando uma pessoa esta morrendo o pulso foge. E quando D. Amélia deixava a menina sozinha com a vara do mosquiteiro atravessada para abrir a rede ele vinha e rapidamente apalpava o pulso, não o encontrava logo, o frio e o medo não o deixavam encontrar: Hem? Onde foi, onde? Deve estar correndo pelo bracinho, mamãe ande, ande. Corria para a cozinha e então podia dizer para respirar, desabafar: — A senhora viu o pulso? Não achei. Vá... Mas D. Amélia sorria, continuava esfriando a água fervida, com a sua tranqüilidade mais forte do que a morte. E em Alfredo subia a lembrança do poço que D. Amélia encheu de mistério e que era talvez toda a força daquela tranqüilidade. 126 Alfredo, com o carocinho de tucumã, desce a escada para sonhar com a camisa de futebol que Jorge deve mandar buscar, pois já lhe deu os cinco mil-réis. Abriu o O Primo Basílio e tirou a nota. Mas agora espera sempre que seu pai dê pelo desaparecimento, acuse sua mãe, seja capaz de folhear folha por folha O Primo Basílio para encontrar os cinco mil-réis. Tem agora essa ameaça sobre a cabeça e uma pressão na consciência. De qualquer modo é um furto. Os moleques das casas de baixo furtavam, João Galinha, mais rapazola, tirava dinheiro da mesa do filtro, furtava o dinheiro que Major deixava para a carne. Mas quem manda não levarem ele para Belém? Para o colégio? Para longe do quilinho de carne? Do carocinho de tucumã? Do Arari Sport Clube? Sabe que Tales de Mileto embarca breve para o Instituto N. S. de Nazaré. Seu pai pode. Tem fazenda. Tales de Mileto tem fatos de gala branca, calcinha de casimira, sapatos de duas cores. E. Mas não sabe qual é a capital de Santa Catarina e o pai acha que é o menino mais inteligente de Cachoeira! Ora, ora, a capital de Santa Catarina... E depois o modo de Tales de Mileto. Tem uma [228] par|te de olhar para os outros fazendo pouco, mostrando que tem dinheiro, que já vai para Belém. Alfredo receia que Tales, indo para Belém, possa já saber mais do que ele, ficar mais inteligente, lhe deixar muito atrás. Tales tem um olhar, um silêncio e um jeito de quem tem certeza de que em Cachoeira só ele pode ir estudar em Belém. Isso é que dana Alfredo. Tales pensa que não é só porque tem dinheiro mas porque é o único que tem inteligência para estudar em Belém. E o carocinho de tucumã fez Major escrever uma carta ao intendente pedindo dinheiro, mandando falar nos estudos de Alfredo. E depois Major vai à cozinha e diz: — Arruma a minha roupa que vou levar o Alfredo para Belém, Amélia. — Mas como? Como? Se Alfredo não tem ainda roupa? — Bolas! E é preciso luxo? Para tudo vocês arrumam dificuldades. — Sempre o jeito do Major. E toca D. Amélia para o Jorge comprar roupa e mandar tia Violante, às pressas, fazer uns teminhos. Havia de emendar o Tales de Mileto no colégio. Na certa o professor perguntava ao Tales: — Qual é a capital de Santa Catarina? — E o carocinho de tucumã escapulia da mão, corria pelo chão, se escondia numa toiça de capim. Alfredo descia do sonho, como desorientado, e em vão procurava o carocinho. Era uma tortura querer ir para o colégio, emendar Tales de Mileto e ainda ter de procurar o carocinho sem o que não podia nada alcançar e Tales embarcaria para Belém com o seu orgulho e dando a costa aos meninos infelizes e indignos de Cachoeira. Não havia meio de achar o carocinho. Tinha de ir ao tanque e transformar uma rês do seu gado em bolinha de faz-de-conta, em bolinha melhor que a varinha de condão daquela fada que não saía da boca de Lucíola quando lhe contava histórias. Major preocupava-se com a falta de um documento de valor perdido no seu angu de papéis velhos. Atarantava-se procurando. O que irritava mais era a calça caindo; tentava amarrar com um cordão curto, o cordão fugia. E com os dedos na calça, Major procurava de estante a estante, de mesa a mesa, sem encontrar. Eutanázio aproveitou para sair. Major resmungando, revolvendo a [229] papelada. Já não é só a calça mas a indiferença de D. Amélia que cata lêndeas de Maninha. Vendo uma pessoa se matar e bem sentada catando os cabelos da filha! Major impacienta-se cada vez mais. Olha por baixo da estante, abre gavetas, retira caixas de charuto atopetadas de papel, cartas, que se derramam no chão. Mas uma barata o assusta, ergue-se soprando o pó dos braços e olha, pela janela, o vulto seco de Eutanázio que passava pela casa de Lucíola. 127 — Lá vai o maluco! Lá vai. Um dia cai na rua! Lá vai pro ofício. Está bem fresco. Depois, aqui d’El Rei... — Resmunga uma porção de adjetivos em cima de Eutanázio, de sua casa, da indiferença de D. Amélia. E solta: — Aqui sempre foi a casa do procura! Se é um copo se procura. Se é o pente se procura. Se é a caneta não se acha. Se é o tamanco ou a gravata tem de se procurar até no galinheiro... Isso mesmo... Não há mais jeito de endireitar... D. Amélia sabe que metade daquela raiva, daquele falatório, é para tirá-la das lêndeas de Maninha e procurar com ele o documento. Sem que ela não se mexa e não vá procurar nada se acha no chalé. Devia era estar arrumando para Alfredo seguir. Perdendo o menino. Deixando o menino se desanimar e perder a vontade. Depois está aí se queixando. Acaba ficando, a camisa com as pontas de fora [Acaba ficando feito um novo Eutanázio por aí]. A calça escorregava sempre, a camisa com as pontas de fora, descalço, a mão na cabeça. D. Amélia só faltava espoucar para não rir. Enfim socorreu. Lhe deu um cordão para amarrar a calça — Já tinha tempo de comprar um cinturão. Bem lhe digo. — Tudo é comprar. Aqui é a casa de se comprar tudo... — Bem, então você fica sempre com a calça no rendengue ou quando se espantar na Intendência, estão lhe vendo de ceroula. Mas vamos procurar o tal documento. O Sr. onde tem essa cabeça... Olhe, seu Alberto, é preciso mandar Alfredo para Belém... As caixas entulhadas de papel foram derramadas no soalho, baratas corriam tontas. Maninha matava traças. Minu mastigava barata e os ninhos de papel se amontoavam. Era todo o arquivo de Major posto no chão para se descobrir o documento. Sentados no chão ficaram no meio do papelório arrumando e [230] desarruman|do. Mas surgiu do abismo um velho jornal já roto e roído que fez acender os olhos do Major: — E o Grão Pará, psiu, psiu, veja a data. Sete de agosto de mil oitocentos e setenta e nove! Nele vem a morte do Visconde do Arari. E olha os nomes das escravas aqui. Anúncios de venda de negro. Teu avô deve andar por aqui... Major lê alto o testamento do Comendador da Ordem de Cristo e Rosa e chega ao nome dos escravos. Felipe, Libânia, Maria Rosa, Águeda, Gregório. Escravos que o testamento dava alforria. — O que acho interessante é ele deixar quatrocentos milréis à matriz de Cachoeira. Onde estão? Major sacode os dedos sujos de pó. — Mas veja aqui a seção comercial. Que tempo! Tempo de minha avó. Imagine o açúcar, café do bom a quinhentos réis! Farinha a sessenta e cinco réis! — Major repuxa a manga de D. Amélia, psiu, psiu! — A três vinténs e cinco réis! O quilo da farinha! Jabá... Olha. Amélia, psiu, psiu!... o jabá que é hoje ouro... a quatrocentos e quarenta réis... Hoje jabá que é prato de enfeite de casa de rico. Pobre não conhece mais o cheiro. — Major fica com a boca cheia d’água apetitando um bom jabá gordo. Mas D. Amélia procurava o documento. Apareceu a revista de Santa Rita de Cássia. Mostrou para Maninha o retrato da Santa. Major todas as noites fazia Maninha repetir a oração de Santa Rita, antes de dormir. Depois de muito revolver, desarrumar, ler papel velho, velhas cartas, recordar antigas amizades, perdidos amigos, contas pagas e não pagas, foram achar o documento metido entre folhas dum catálogo de tipografia. — Está! Está! Onde mesmo devia estar! Sempre os seus catálogos! Você já devia era ter botado no fogo esses catálogos. Para que quer tanto catálogo, seu Alberto? 128 Major foi se embalar pensando que daqui a uma hora deve dar uma batida nos ratos. Precisa descansar, dormir a sestinha porque o calor e os passarinhos cantando no telhado e no ingazeiro, para tanto o convidam. Ficou no mundo de seus projetos, a mão à altura da testa, a outra arranhando a unha do dedo do pé. [231] So|nhava também com um gabinete seu onde ninguém entrasse, onde pudesse escrever e meditar, com os seus catálogos e a sua rubrica nos talões municipais. Naquele tinteiro da saleta, todo metiam a pena, naquela mesa, todos escreviam. Alfredo já estava com o carocinho na mão e Eutanázio junto da cerca do Delfim conversava com Ângela. — Pois eu quero que o senhor me faça. Está aqui. Quedê... Meu Deus... — Ângela procurava a carta dentro do seio. Batia a blusa por fora, por dentro, já arrepiada de medo, de incerteza. Ah! a carta estava amarrotada no bolsinho da saia. Que facilidade sua deixar aquilo no bolsinho. Jurava que tinha metido dentro do seio. Era melhor queimar a carta. Por uma daquelas facilidades seu pai podia encontrar. — Quero que leia e me dê depois. Só uma coisa lhe peço: pelo bem que o senhor tem no seu pai, em quem mais o senhor quer mais neste mundo, não diga a ninguém. Papai sabendo, o senhor não vem me tirar de cima dos tamancos dele. — E não queres ouvir o que a carta diz? Ninguém leu para ti? — Ninguém leu. Mas isso a gente sabe. Eu ouvia as cartas de declaração que Dionísia recebia. Ela lia para mim. Era sempre aquelas bobagens... E... Tenho vergonha que o senhor leia para mim. Mas não tem importâncias responda ela... E mesmo eu posso logo meter no fogão antes que papai pegue... A resposta o senhor pode me dar quando? — Mas como é? Contrária ou favorável? Angela riu, fechou os olhos fazendo uma careta. Eutanázio sentiu com amargura que ela se tornou bonita, feliz, insultuosamente feliz. — Diga! — disse com impaciência, com a voz mais rouca. Ângela deu dois passos e rindo: — Favorável... E amanhã o senhor me entrega, sim? Mas olhe lá... — Olhe lá uma... — respondeu ele num resmungo e Ângela acorria no rumo de sua casa, as suas pernas brilhavam no sol. A carta ficou amarrotada na mão de Eutanázio. Machucou com raiva o papel. Olhe lá... e ainda mais a recomendação de mistério [232] na safadeza deles! A carta viera parar de novo nas suas mãos. Tinha de pedir licença ao Salu para, no reservadozinho, escrever a resposta a si mesmo. Releu a carta. Assim ele podia escrever, quando quisesse, os maiores desaforos de um para outro, os maiores insultos. Podia fazer Ângela mandar dizer que não queria, que ele era um João Galinha. Podia escrever as infâmias que entendesse de fazer. Ao mesmo tempo penalizava-se deles e de si mesmo. Por que se meter como intruso naquele namoro? Complicar aquela simplicidade? Faria, afinal, Angela dizer as coisas mais doces para João e João as coisas mais tristes para Ângela. Não, tinha de sair como [com] o veneno de seu tédio, de seu aniquilamento, de toda aquela suspeita. Tinha de envenenar aquelas cartas; eles não liam e por isso exploraria a sua boa-fé, enganá-los-ia com perversidade. E depois estava de posse do segredo deles. Uma desforra. Não sabia como proceder em face desse novo problema. Simplesmente responder um para outro? Como? Se quando fosse escrever, se lembrasse de Irene, de Resendinho, da palavra “hipocondríaco”, dos trinta milréis de Felícia? 129 — Ainda mais essa... — disse alto — escrever para mim mesmo sem que eu queira. — João não saberá que ele responde as suas cartas. Angela também não saberá nada. Começou a escrever. Primeiro a data. Que data é hoje? E, ora bolas, tinha escrito o nome da “outra”. Agora tem de pedir outra folha de papel ao Salu... Salu se levanta a custo do seu novo romance: A dor de amar. Eutanázio vai escrevendo o que lhe vem na cabeça, um amontoado de incoerência[s], frases truncadas, insultos, palavras de amor, beijos, obscenidades, o nome da mulher do Domingão, cenas frases de D. Dejanira que ele sabe de cor, Raquel e o seu grito chamando Bita de ex-noiva, Tales de Mileto, a frase: sou um homem sem honra e devo trinta mil-réis, Ângela, a uma rapariga chamada Felícia. Quem sabe, João, se não acabo como uma Felícia? Prefiro ser uma Felícia, uma mulher desgraçada, do que ser tua. Eutanázio parou, fatigado e suado. Tinha escrito a cana. João lhe trará a carta para ler. Responde. Escreve e responde. Depois [233] refletiu que a simplicidade deles dois estava muito acima daquele veneno, daquelas besteiras todas, daquela miserável exploração da boa-fé, da ignorância, da ingenuidade de duas criaturas. Sim, tinha bem consciência de que era uma infâmia. Mas eles não sabiam ler. Devia tirar qualquer proveito daquela felicidade analfabeta e cheia de boa-fé. Uma hora podia escrever canas de amor; outra, sem nenhum senso, alheias ao assunto e assim por diante. Depois acontecesse o que acontecesse. Era até bom. Pois o pai de Ângela podia pegar uma cana... Não ia descobrir talvez muita coisa. Afinal estava decidido: havia de se divertir, dolorosamente, é verdade, mas se divertia com aqueles dois tolos. Foi andando mas se voltou com um chamado. Era Ângela que tinha ido buscar açaí para o pai na amassadeira Senhorinha. — Já fez? Assim tão depressa! Não precisava tanto. Feche para mim. Estou com a cuia de açaí. Seu Eutanázio, o Sr. tem uma amiga, mas ah! seu Eutanázio... chegou [chega], ando fria... Fria mesmo. Obrigado. Olhe... fique com a... dele, é melhor. Me mete uma pena botar no fogo e guardar em casa corre risco. Nem sei mesmo. O Sr. até se ri dessas minhas tolices. A gente podia fazer isso sem cana, não? Também conversar, cada? O jeito é a gente se falar pelo papel. Agora eu logo, que é que tenho para dizer?... Parece que se eu soubesse ler era só para dizer besteira... Pois o Sr. guarde. Não se zangue comigo, seu Eutanázio. Tinha entregue a cana infame! Quis correr, arrebatar a cana das mãos de Ângela. Mas era preciso se divertir, se corromper ainda mais. Irene estava ameaçada de gravidez, se já não estava grávida. Felícia daqui a uma semana pode saber que ele ficou com os trinta mil-réis, o barqueiro vem lhe cobrar o dinheiro, dirá no mercado, em toda a pane saberão. Irene será a primeira a chamálo de ladrão e a própria D. Dejanira ajudará a falar mal dele pelas casas conhecidas, chamando-o de ladrão também e de quem? Da mais pobre e da mais doente das raparigas de Cachoeira! Viu seu Antônio passar, com o carnaúba, a boca cheia de apelidos para os outros, o cacetão. Lembrou-se do calango torrado. Ele também ouvira duns rapazes na rua das Palhas como se podia amolecer o coração duma mulher soberba. Fez em Belém, já [234] con|valescente. Uma faca enterrada até o cabo, nos fundos do quintal e na conta de três dias tirar a faca. A mulher soberba sente toda aquela facada no coração. O coração desperta. Coração de mulher é como terra. É preciso revolver bem, semear para dar. A faca se enterrou no coração de Irene, revolveu, a mão de Eutanázio semeou, a terra não deu nada, o coração não disse nem ai e foi apenas para Resendinho se aproveitar do trabalho. Já tinha se metido em bruxaria, já enterrara faca no quintal, só faltava a do calango torrado! Mas isso era no tempo em que a 130 esperança fazia-lhe cócegas no coração. Hoje tudo é inútil. Sabe. O jeito é escrever as canas de Ângela e receber pela cara mais descomposturas de Irene. Com o calor, o bafo quente subindo da terra poeirenta e ardida, Eutanázio repetir-se no pensamento aquele sonho passado em Belém: Irene com água fervendo até o pescoço, os olhos saltados, o berreiro rouco, as mãos secas saltando n’água já largadas do corpo, os cabelos fumaçando. Depois subitamente via Irene às gargalhadas abraçada com o Diabo. Ardia em febre nessa noite. E agora no calor da tarde se repete a cena no seu pensamento com uma nitidez espantosa. O sino dobra. Atravessou a rua do Mercado. Subia uma fumaceira para as bandas da rua das Palhas. Era o povo que jogava baldes d’água no fogo que atearam nos campos próximos e vinha invadir a vila. Nem com aquela chuva de anteontem o capim deixa de ser devorado pelo fogo. Para que queimam os campos? O céu fica abafado. O povo correndo, apagando o fogo com água e galho de mato. Como seria bom que o fogo virasse o diabo e devorasse todas as barracas da rua das Palhas! Alfredo saiu do “Tríplice”, no único divertimento da escola do seu Proença, sentindo frio. Era a febre. Sempre dava de manhã. Agora vem à tarde. Sai encolhido, se arrepiando de frio e que caminhada ainda para dar! Por que seu pai não joga ele em Belém? Por que Tales de Mileto, que é burro, vai logo para Belém e ele fica ali socado na escola de seu Proença? Mas no caminho vê o Bode. O Bode. Era escuro, meio idiota, surdo. Sua voz era um regougo. Vestia roupas usadas, de casimira rota, era um Judas de sábado de aleluia. Mas metia medo. Alfredo ia se encontrar com ele. Não pode evitar. Ele tinha de fazer o que Bode queria: [235] — Ei, tome a bença, ei. Joelho! O frio era mais intenso, o medo, a raiva do Bode, a certeza de que podiam ver, a humilhação. Era um momento de infinito. desespero para Alfredo. Nem Nossa Senhora nem os três Deuses, nem o carocinho de tucumã. Bode era forte, parecia um chimpanzé das gravuras de sua História Natural. Com aquele frio e o medo, a necessidade de se livrar do monstro, Alfredo se ajoelhou, as pedras pareciam queimar-lhe os joelhos e tomou a bênção ao Bode. O riso dele era de macaco. Alfredo saiu curvado, sumido no seu frio e na sua humilhação, era o resultado de não ir a Belém, de não ser ouvido por seu pai. Chegou chorando em casa, para que dizer o que tinha acontecido? Ninguém lhe tirava a humilhação, Bode era um bicho, Bode se desforrara em nome de todos os moleques maltratados por Alfredo. — Mamãe, é a febre. Eu morro, mamãe. A senhora não me leva para Belém e eu vou é bater no cemitério, mamãe. Dói este frio. Dói. Um chá, mamãe. A febre veio logo e Bode dançava na frente dele. A bolinha no bolso, os passarinhos brincando no ingazeiro, o quarto fechado, aquela roupa na corda, as redes desarmadas, o silêncio, o oratório fechado. Então lhe parecia um pouco bom aquele quarto fechado, ninguém com ele, o suor da febre passara, a rede, a sua bolinha em movimento. Os passos de sua mãe na varanda lhe fazem lembrar, lentamente, sem querer, uma noite em que ele queria dormir embalado por ela. Sua mãe mandara ele se deitar. Prometera ir embalar e cantar logo que se desocupasse da cozinha. Espero Esperou. Sua mãe passava, levantava o punho da rede, voltava e nem se lembrava de embalar e cantar. Seus passos cresciam na varanda, se abafavam no quarto, tornavam a crescer, desapareciam pelo corredor. Que sua mãe fazia? Ele rolando na rede, esperando que aqueles passos chegassem junto da sua rede, o corpo sua mãe deitado, a mão abrisse a rede, balançasse e cantasse: 131 Uma noite, eu me Lembro, ela dormia... Começou a chorar e a pedir: — Mamãe, me embale, mamãe, venha cantar! Mamãe, me embale, mamãe, venha cantar... [236] — Já vou, já vou já. — Calava-se, esperando. Como era bom esperar, dormir embalado, a voz de sua mãe envolvendoo de sono e o rumor dos “esses” da rede nas escápulas... Viu ainda sua mãe trazer o candeeiro aceso para cima da mesa. A casa toda se enchia dos passos dela, em toda parte parecia estar e ele na rede, abandonado, com a promessa de embalar e cantar... Continuava esperando, já sem certeza, bambo de sono; Aquilo ficou marcado na sua memória como um profundo ressentimento. Sua mãe não viera, não embalara. Lhe deixara na rede, dormindo sozinho, O rumor dos passos de sua mãe ficou no seu sono, se repetiu na sua memória e no seu desejo. Foi o embalo que não teve, foi a cantiga que deixou de ouvir. Valdomira também naquela noite o embalara e o seu vestido era brilhante e enganador. — Mamãe, mamãe. D. Amélia abre a porta do quarto: — Estás me chamando? — Não se ouve barulho na casa de nhá Lucíola? — Eles foram todos para Cima. O corpo dele não desceu. Sai de lá mesmo. Alfredo rola na rede, fraco, o amargor da boca, ouvindo a alegria dos periquitos no ingazeiro. Os passos de D. Amélia somem pelo corredor. Ela canta: Nannan, nan, nan. A voz morre. A cantiga que deixou de cantar. Aquele sono sem embalo e sem cantiga foi o primeiro abandono. A primeira sensação de que não era mais menino para ser embalado, ter [alguém na beira da rede para lhe chamar o sono. Alfredo abre] os olhos para as telhas iluminadas de sol. Deixa-se cair na rede, desalentado: — Ó! por que não me mandam para Belém... Quero sair desta febre... Mas aguça o ouvido para a conversa dos dois na sala. A parede é de madeira, há uma porta fechada da sala para o quarto. — Coitado. Pediu pra não lavar o corpo... Coitado. — Um maluco... Um maluco. — Seu pai gosta sempre de chamar maluco para os outros. — Didico estava até ensaiando no pistom, coitado. — Aquele é outro maluco. Pois não está vendo que não dá para tocar pistom? Hum!... Cada um arrota os cabedais que possui... [237] Alfredo sempre ouvia esta frase do Major, dita em galhofa, num sotaque português. — Deixe os outros com as suas manias... Você não tem as suas? Alfredo ouve seu pai remexer papéis. Depois D. Amélia fala mais baixo: — E a Florzinha, não? Quem havia de dizer. Por isso que quando eu fui, ouvi ela dizer para a mãe: Deixe, mamãe, que a senhora há de comer azeite doce. — Como não deve estar por lá... — Pois Duduca me disse: Veio por aqui hoje e me disse. (Sabe, ela se dava lá). Saiu pela porta afora. E agora o tenente Amaral? Seu pai não responde. Tenente Amaral e aquela Florzinha, foram sempre falados pelo seu pai. Não responde. Florzinha era uma moça bonita e inteligente. Professora. Era uma criatura que Alfredo nunca vira mas imaginava-a à sua maneira ouvindo os elogios de seu pai. Cuidava que tivesse nascido dos catálogos e o que teria acontecido com ela? a querida Florzinha de seu pai? 132 E agora o Amaral? — repete D. Amélia. Amaral é o tenente a quem Major aconselhara a estudar Direito Romano. Esses nomes todos, essa conversa, lhe trazem Belém, têm o cheiro de colégio, de rua calçada, de bonde andando, de casa de padrinho Barbosa. D. Amélia falava muito no padrinho Barbosa. Tem uma vaga, diluída lembrança dele. Era dono de armazém em Belém. A filha chamava-se Alda. Lembra-se confusamente duma menina brincando com ele numa escada onde tinha um tapete, não sabe bem como é. Mas o que havia de extraordinário na casa do padrinho era o ganso. D. Amélia contava história desse ganso. Padrinho Barbosa lhe dava queijo na sala de jantar. E o gramofone e as estantes de discos? Depois seu pai contava na cozinha que padrinho Barbosa não possuía senão a casa, o gramofone e o ganso. Um sócio arruinara-o. Estava doente do pulmão (tuberculoso, não?). Se empregara num banco para não morrer a míngua. Alfredo passa a mão no braço morno. Sim, não tinha sorte. Pois com um padrinho, dono de armazém, criando gansos com queijo, comprando discos e mais discos e morando ao lado da casa do governador, acabava esse mesmo padrinho não possuindo mais nem saúde, ma|tando assim a esperança de ir morar com ele para continuar os seus estudos... Se o coronel Bernardo não tivesse morrido. Outra queixa de sua mãe. Coronel fazia Major Alberto tirá-lo de Cachoeira. E o carocinho de Alfredo faz o seu padrinho Barbosa ficar novamente rico... ...Tales de Mileto havia de ter inveja. Num instante acabava aquela soberbia dele em cima do velocípede, andando pela rua ao lado do pai, causando inveja para todos os meninos de Cachoeira. Todos os meninos sabiam que o único velocípede de Cachoeira pertencia a Tales de Mileto. Se o seu padrinho Barbosa estivesse bem, ele não teria velocípede em Cachoeira mas velocípede em Belém, almanaque do Tico-Tico e toda a cidade para os seus olhos! Uma sensação obscura de que é infeliz, de que nada pode alcançar neste mundo. Tudo lhe vem ao contrário. Será o seu carocinho que o impede de ir a Belém? Por que faz umas coisas escondidas de Nossa Senhora e dos Três Deuses? Já não tem mais tempo de aprender a trepar em arvores — achava isso, antes, so para moleque — de montar num cavalo, num boi, de mungir a Merência. Merência era uma vaca tão mansa e tão leiteira que sua mãe fazia dela o que queria. Tirava leite, passava a mão por toda ela, falava zangada quando Merência não tinha muito leite. Só ele não sabia ser forte e alegre como Clara, como sua mãe. Sua mãe quer que faça dieta. Não, não vale a pena. Sabe que febre não tem consideração com essas coisas. Foi a febre, ou o medo de ter febre que o fez recusar aquele peixe com coco e que por ser proibido estava cheiroso e gostoso, aquele peixe comido por todos no Araquiçaua. No Araquiçaua, era seu Raimundo Reis com o seu silêncio. Um homem que só sabia estar calado. Acordava muito cedo e ia abrir o chiqueiro dos porcos, o curral dos carneiros, a casa dos patos e das galinhas e com uma bacia de milho dava comida aos bichos. Comia vagarosamente em silêncio. Os bigodes graúdos e enrolados, a barriga alta, sempre bem penteado e limpo no balcão aviando os seus fregueses em Araquiçaua. Sua companheira, D. Maria das Dores, gorda senhora, mulatona, dona duma horta que era um namoro para D. Amélia. O barracão atrás, bem atrás das goiabeiras. Uma noite de festa, ali. [239] Alfre|do acorda, ainda confuso, sem entender bem aquele som de flauta, o violão, gente desarmando redes, arrastando bancos, acendendo luz, moças rindo e um cheiro de talco, de vaselina, de loção, de roupa nova se espalhando pela sala grande, de chão batido. Se Raimundo Reis devia estar dormindo. Ó homem! Não falava! Major conversava e ele ouvindo, mudo. Major dizia que assim era Napoleão em Santa Helena. O peixe gostoso e cheiroso ficou no seu desejo de febrento. Era como 133 aquele pato do mato com arroz que sua mãe fizera para Bibiano, um jantar. As tardes de Araquiçaua lhe deixaram saudade das goiabas doces, daqueles paredões de engenho caindo, do preto Barnabé, da água batendo nas pedras, da laje enorme e lisa que servia de batente para a porta do lado da casa de negócio. Lá para dentro havia uma varanda escura, rumas de tábuas, sacos, um forno enorme que dava a Alfredo a impressão de uma grande sepultura, um sarrilho, escadas, uma velha canoa imprestável. Mas tudo fedia a bode, a carneiro, a milho. O rio corria agitado para a baía. Como seria o mar? Foi em Araquiçaua que o jacaré ia pegando sua mãe. Clara... Por que sua mãe não ia plantar e criar em Araquiçaua? Sempre era melhor do que esperar na vila aquele dinheirinho escasso da Secretaria Municipal. Major não dava esperanças de que abandonasse os catálogos. Pensar que amanhã tem de ir buscar o quilinho de carne no mercado! — Mamãe, mamãe. — Hem? — Peça ao João para ir buscar a carne, amanhã, sim? Pelo menos amanhã ficará descansado. Descansado, um engano, porque seu pai pode se lembrar dos cinco mil-réis do Primo Basílio e acusar a sua mãe. Agora não é possível a restituição do dinheiro. O pedido já deve estar feito pelo turco. E sua mãe confia tanto nele, pensando que é um menino sem vícios. No entanto, no ano passado, no arraial, pedira duzentos réis a um doceiro. Com o embrulho do doce, aproveita-se da distração do pequeno, sai na carreira pelo aterro. Furto declarado. E as tangerinas que seu Epaminondas mandara de presente ao Major? Quando viu, tinha comido todas as tangerinas antes de chegar no canto do [240] Sa|lu! E as mentiras que vinha contando de que acertava as contas passadas na lousa pelo seu Proença? Quem fazia as operações pari ele era o Tenente Castro quando ele passava, bolinha no bolso, peia prefeitura de polícia... Ia para a escola com um cuidado na lousa para não apagar os números. Aquele Tenente Castro gostava dele. Podia ser mau para ladrão de gado, para bêbedo, para o pobre do Dionísio, mas fazia era ele levar as contas certas para o seu Proença. No quarto fechado, como seria bom que Moça aparecesse e lhe perguntasse se já tinha passado a febre! Moça voltaria à cozinha para trazer o chá com pão torrado que D. Amélia prepara. Maninha na sala, alguma travessura deve estar fazendo. — Que tu estás fazendo aí na sala, Maninha? Não estás cortando o catálogo do papai? Debaixo da cama, o gato dorme regalado. Major dera uma batida na rataria do chalé. O gato tem o pêlo parecido com o do chapéu de Tales de Mileto. Sim, tem um chapéu bonito e cadê que responde quando o Dr. Campos lhe pergunta: — Diga, Tales, quais são os remos da natureza... D. Amélia surge com o chá e o pão torrado e Maninha atrás do pão torrado. — Papai? Onde foi? — Bestando no quintal... Agora entendeu de plantar mamoeiro com o tal do enxerto. Lucíola nunca é como sua mãe. A quentura, o pretume, o cheiro do cabelo, a confiança que há naquelas mãos pretas e nuas. Aquela ternura enxuta de D. Amélia o domina, o sossega. XVI AQUELA FACE VIOLENTAMENTE BELA 134 Não tinha ninguém na casa de Duduca. A máquina tomava a fisionomia da dona. Aquele riso torcido, aquele olhar malicioso e rebuscador. Duduca quando saía deixava o seu espírito naquela máquina. Eutanázio ficou de fora, na janela, espiando para dentro. A [241] sala era grande, uma parte cimentada, outra de chão, esburacada. Os bancos, a cadeira de pano, aquele comprido, como uma tábua, rente a parede. A sala estava impregnada daquelas vozes, pintada com a máscara daqueles velhos, cheia das leis do Araguaia, do ódio de Guaribão ao namorado da sobrinha, das expectorações do Ribeirão, dos apelidos do velho Antônio, da vasta cabeça do seu Abade, pensando onde buscar tábua para o caixão da mulher do Domingão. Na parede forrada de jornais velhos, onde se via a cara do General Foch, um assalto das forças alemães a Verdun (Ah! Ezequias, Ezequias, o teu entusiasmo por Verdun!) uma gaiola vazia e o registro de S. Sebastião. Velho Antônio parou na janela. — Então? Ninguém? Nem Duduca? — Ninguém. A casa para velho Antônio podia estar vazia mas para Eutanázio estava cheia dos velhos, da palavra macia, besuntada de oxalás, do Sr. Gomes elogiando o seu Tales, do seu próprio silêncio. Os apelidos do seu Antônio, quase todos tinham nascido ali. Inventara mais de cinqüenta apelidos em Cachoeira. Doce Seco foi apelido que seu Antônio lhe deu. Novilha Braba era Irene. Guaribão. Todos ganhavam o seu apelido. Velho Antônio levava em casa imaginando apelido, como Araguaia imaginava o melhor meio de enganar os abaeteuaras e a Tesouraria Municipal, como Guaribão pensava numa desforra contra Ribeirão e o Sr. Gomes contava mentiras macias para engrandecer o filho. Se Ezequias tomasse parte daquela assembléia talvez não tivesse se matado. Dr. Campos aparecia para fazer as suas viagens à Europa e falar da Faculdade de Direito de Recife. Duduca, uma noite, foi arrastar a máquina, — botou uma golfada de sangue no cimento. Ri. beirão falou em tuberculose. Mas Duduca gritou com ele e disse que tinha o diagnóstico do Dr. Camilo, do Dr. Osvaldo Barbosa, do Dr. Pondé... Ribeirão deixasse de levantar infâmias. Senão, contava, contava... Ribeirão, depois, emendou: Estava brincando. Era de coração. Duduca olhou e seu olhar pareceu esverdeado, a boca retorcida: — Olhe, seu Abade, não venha com essa sua cara, que quando eu sentir que estou para morrer embarco para Belém... Morro li.. E asneira olhar... [242] Mas velho Antonio como que desperta Eutanázio: — Seu Eutanázio, ando com a minha mulherzinha, lá em casa com o juízo cada vez mais virado. Dr. Luiz da Monta diz que é espírito. Não sei. Não sei. Acho que aquele Dr. Monta quer já é saber de tudo. Toca flauta, ensina remédio, fala inglês, ensina como se dança valsa, se faz uma panelada, espiritismo, mete o pau no governo, diz que se fosse intendente de Cachoeira melhorava essa joça, enfim, o que entende é da profissão, a tal de agronomia. É o que ele mesmo não entende. Para que serve aquela Estação de Monta, seu Eutanázio? Para quê? Melhorar o gado, plantar? Mas quando? Dr. Luiz da Monta sabe é dançar valsa, discutir espiritismo, andar nas farras tocando flauta e mexendo com as pequenas. Só vejo um boi e um cavalo magro lá. Diz que capim não sei que nome... Vejo capim brabo. O tal banheiro carrapa... Como é, bem? — Carrapaticida... — Serve para matar os carrapatos dele... Velho Antônio se despediu. Eutanázio vai para a varanda de seu Cristóvão, mergulhar no silêncio e na suspeita. Irene agora entretida com a morte de Ezequias não lhe surgirá mais naquela atitude. O papagaio da 135 velha Bernarda falava. Tinha voz e a linguagem da velha. Era o papagaio falador de Cachoeira, famoso na rua das Palhas. Eutanázio ouve esse papagaio que considera uma perseguição ao seu negro aborrecimento, ao seu silêncio. Viu Didico passando depressa. Didico e as suas mulheres. Como podia sustentar tanta mulher? Cada a Sancha, Didico? Tinha a voz grossa essa Sancha. Alfredo não esqueceu aquela voz que o embalava. Grande mulher, dando risadas, carregando latas d’água do poço, varrendo a casa, correndo com um pau atrás de João no meio das vacas porque João se aproximava dela com a cuia: Vamos, Merência, vamos tirar essa tipuca. Esse leite... — Sancha era quartuda, voz de homem, os grandes peitos. Sancha. Didico falhara no pistom, na modinha, no violão, no emprego público, nos próprios amores. Suas mulheres o enganavam. Os filhos saíam com a cara do “outro”. Didico sabia que [243] as mulheres grávidas bastavam olhar demoradamente para um homem, tinham o filho com os traços desse homem. Gabava-se de ser pai de muitas crianças em Cachoeira. Era talvez o seu orgulho, nem mesmo o de puxar tambaqui na linha. Lutara com o pistom durante dez anos na banda do Miranda. Quando soprava o pistom tornava-se convulso, desengonçado, apoplético. Era uma fúria. Depois foi o empreguinho na Intendência. Não durou dois anos. Teve de se ocupar só na pescaria. O rio era uma tapera de peixe. Cada aquele mundão de tambaquis, pirarucus, tamuatá? Cada o tempo das ruidosas torrefações na frente da vila? Alfredo lhe cortava muitas vezes caroço de bacuri para isca de tambaqui. A sua montaria era toda roída, sem banco e doida. Mas voltava cheia de peixe pulando, com a tarrafa e a sua grande fome de pirões com gordura de tamuatá e aracus assados. O rio, pai do pobre, não tinha mais a fartura. A tarrafa se espalhava n’água e vinha lama e mais nada. Por isso Dionísio deixou de arpoar. Cada pirarucu para arpoar e pôr de salmoura e comer a ventrecha assada na brasa? Dionísio dizia que a incanigação do rio tinha sido feita pelos geleiros de Belém. Didico largou o pistom, perdeu a esperança no sucesso de Ezequias, vai depressa talvez buscar em casa alguma coisa para pobre cadáver. Didico acaba é ficando com a Cândida desdentada e triste, que mora onde foi a barraca do Souza. A molenga e suja Cândida chorando tristezas e enjôos na velha rede, no quarto mofento e o — Cândida te levanta, Cândida te levanta... — do Didico segurando no braço dela coalhado de titinga... Eutanázio se aborrece com aquela invasão de Didico no pensamento. Não tinha nada com a vida alheia. Tinha... Como sabe, se D. Gemi fora acudir um chamado no Tojal? Com a cabeça empinada, o carnaúba, o cacete, a barba de ninho de tamatauá, Guaribão avança. Tem um passo medido, o ar de cartório e de eterno ofendido. Sim, adquiria o ar de eterno ofendido com “aquilo”, aquela indignidade da sobrinha. Mesmo que não sentisse tanto, era preciso exagerar essa ofensa, essa indignação, mostrar que uma cama de casal era cama sagrada. Bastava aquele ar ofendido para reabilitá-lo, envolva-lo na admiração do [244] Gomes, da proteção da Lei e da sua própria consciência satisfeita. Era um homem que tinha uma ação no cartório. Era também uma atitude grata, essa, para sua consciência, para sua vaidade, ter uma questão no fórum a seu favor, ler os autos com o seu nome, conversar com o juiz e ouvir citações de leis e autores. Passava quase indiferente a Ezequias mono, a Eutanázio que continuou andando. Ia conversar com o Dr. Juiz, tirar a limpo se podia ou não processar Ribeirão e se protoplasma era mesmo um cidadão brasileiro. Lucíola não chora, não faz aquela careta de agonia quando sua mãe morreu. Tudo lhe é sem surpresa, sem grandes choques. 136 Perdeu aquela facilidade de se assustar, de pressentir, de pensar que estava na iminência de perder qualquer coisa preciosa. O suicídio do irmão humilha-a mais do que surpreende. Cachoeira triunfara sobre eles com o montepio perdido e agora aquele suicídio. Era todo um espetáculo para aquele povo. Chorar a sua mãe era sempre um consolo de ter perdido o montepio, a oportunidade de mostrar que tinha sentimento, uma forma de enfrentar com dignidade a cara do povo que só faltava lhe perguntar: — Cadê o montepio? Mas o suicídio de Ezequias é ficar na língua do povo, é se deixar retalhar na tesoura de D. Dejanira, é talvez um motivo para o maior afastamento de Alfredo. Nem mesmo veio ver Ezequias, ele! Ezequias que passava, só de malino, a barba no rostinho da criança. — Ezequias não faz malineza com o Fredinho. Ezequias... Depois de Ezequias, falaram na crise, na falta de farinha, no abuso dos comerciantes. — Aqueles trinta mil-réis, seu Eutanázio... — D. Tomázia estava com medo de pedir um favor a seu Eutanázio. Buscar depressa no Felizinho dois tostões de sal. Chamou Henriqueta que decorava uma modinha no quarto. — Fala para mim, para o compadre me comprar duzentos réis de sal... Eutanázio saiu com a moeda na mão. Duzentos réis de sal no Felizinho. Uma vez chegara a comprar para Irene, uma agulha [245] no Ezequias, se lembra. Voltou logo para saber que D. Dejanira achara bonito um tucunaré comprado pelo Manuel Augusto! Irene chegou. Rosália veio contar que Irene fez o Pepes comprar doce para ela. O doceiro era o Chico Barrigudo. Gente que não se dava com eles. Queria porque queria o doce. Foi preciso Pepes comprar. — Essa esfaimada! Mal educada! Pedichona! Irene não reagiu. Coisa extraordinária! D. Tomázia sacudiu a cabeça. D. Dejanira foi para a cozinha pegar um bocado do jabá gordo. — Parece que anda com desejo... — Rosália olhava, por baixo para Irene, que trazia ainda a boca lambuzada de doce. — Só mesmo desejo... — repetiu Irene rindo. Eutanázio sentiu um riso diferente, pôde ver nela um qualquer movimento confirmativo do que Rosália dizia. Parece desejo. D. Amélia barriguda de Mariinha não desejava muito mas gostava de ingá. Só mesmo desejo — ela tinha escapado. E aquelas velhas não viam? Não viam? Não notaram que Irene muda a cor, o andar, os selos, a voz, não responde a Rosália, não fala muito? Porém, o pior de tudo isso e que a sua barriga não cresce, as suas ancas não mostram ainda nada. Mas... e aquele desejo de doce e doce do Chico, um pequenino odiado por ela, há certo tempo? Aquele desejo não era de moça, de gente normal. Era resultado de andar no campo de braço com Resendinho, debaixo da casa, voltarem dos bailes, agarrados. As velhas não reparam nada mesmo? Velha imbecil essa D. Tomázia, essa comadre, que não se incomodou com um fato claríssimo, aquele de Rosália e o doce... Mas as moças rodopiaram na varanda e saíram. A varanda envelheceu com a ausência de Irene, Rosália e Henriqueta. Bita, na sala, abrira uma caixinha — feita pelo Eutanázio — e desamarra uma fita azul. Eram as cartas do Ezequias. A carta do Ezequias que lhe mandava dizer... As lágrimas pesam nos olhos. Oh, por que não se deu toda para Ezequias, por que não o perseguiu, e convenceu-o de que sociedade e Dolorosa não eram nada diante do seu desejo de ter uma casinha arrumada e sair daquela casa onde Raquel chama-a de eterna noiva... 137 [246] Ezequias, Ezequias, tua barba era cheia de picos quando me beijavas. Tinhas um riso de dentes cerrados, não sei como. Teus cartões postais se não eram tão bonitos como os de Lúcio, eram escritos com sentimento. Ezequias, por que tu não mandaste dizer? Era capaz de me matar contigo, Ezequias, agora com esse meu desespero, essa humilhação, esse estribilho de Raquel. Porque não tenho coragem, Ezequias, não tenho... Também não sei sair de casa, fugir, me entregar a qualquer homem, não sei, sou incapaz de tudo isso, Ezequias. Um homem solteiro matar-se em Cachoeira quando tanta moça sem casamento, Ezequias e tu te matas, Ezequias, solteiro, com a mania de lepra, Ezequias. Ainda é um consolo, Ezequias, saber que outras estão por aí, envelhecendo, sem que avistem um aceno de marido pelo caminho. Os rapazes melhores de Cachoeira casam-se com moças de fora. Os outros rapazes tem receio, são mais baixos, não se comparam a elas que freqüentam bailes finos, vestem bem, são mais instruídas. Mas, Ezequias, eu já tive sete noivos, Ezequias, como Branca de Neve teve sete anões. Sete noivos desmoralizam uma moça em Cachoeira, Ezequias! As outras, nem tuas irmãs que são mais velhas do que eu, não tiveram tanto noivo como eu, finado Ezequias. Eutanázio não ouve a voz de Bita, porque essa voz é apenas pensamento. Bita enxuga as lágrimas. As três moças riem debaixo da casa. Mas Eutanázio repara que Irene ri curto, fala sempre pouco, não solta os seus gritos, não trepa na cerca e fica de coxas a mostra no sol, e os cabelos remexidos pelo vento. Raquel sai do quarto, com as frontes cobertas de folha e a mão na cabeça. — Ah, seu Eutanázio. Dor de cabeça... Ficam em silêncio. Raquel espera que ele fale. (Fale, sim, seu Eutanázio?) Por que seu Eutanázio não a procura, não se desilude de Irene e vem, enfim, lhe pedir que arrume a sua roupa, marque no figurino da Duduca um vestido simples que seja, o tempo que ele vai enfrentar a neurastenia do Viriato para aprontar os papéis. Um homem desse, veja, como está magro, acabado — devia procurar uma mulher, mas mulher! Não Irene! — Seu Eutanázio, ó senhor não sente mais nada? [247] — Não. — Nem dores na cabeça? — Não. — E a febre? — Nunca mais deu. Tinha de ficar o resto da tarde, as primeiras horas da noite, esperando o momento em que Irene se mostrasse mais fácil para o exame. Velho Cristóvão abre a janela e grita: Meus Deus! — sufocado com a asma e com a família. As três netas brigavam na cozinha por um resto de farofa. E Mariana, com o filho tossindo e escanchado na ilharga, reclama o dinheiro do arroz doce. Raquel sacode os braços, arregaça as mangas, e ao mesmo tempo que fala, arruma o cabelo e mastiga o charuto. D. Dejanira se refugiou no quarto debaixo do mosquiteiro. Mariana baixa a voz e chora e se lamenta: — Não sabem quanto custa... Meu marido sem poder trabalhar. O café, o pão do meu filho e dos dois que tenho lá, vem desse arroz doce. Não estou reclamando por reclamar, mas porque papai não devia também fazer uma coisa dessa... E dois pratos quebrados... Não era só caneco, não. Eram pratos também. Onde papai anda com essa sua cabeça? Não sabem a vida que levo, não sabem. Até vela de canoa já faço, estou fazendo, remendando, bujarrona, fora as costuras... Não se faz isso... E meu filho com essa guariba? E quem me paga o feitio da roupa da noiva crônica? Triste vida, meu S. Sebastião. — Mas então não venha com toda essa rompência de indagora. Ninguém está resolvida a ouvir os bonitinhos dos teus 138 nomes como disseste na cozinha. — Raquel volta-se para a porta do quarto: — Também por que meteram o pau nos trinta mil-réis que seu Eutanázio trouxe? Não sabem ver dinheiro. Parece que vivem para comer. Que perseguição de vida. Ó meu Deus... (... se pudesse sair daqui, Eutanázio, consigo... pensamento que se esboçou nas aperreações de Raquel). D. Dejanira debaixo do mosquiteiro comia apressadamente o seu último naco de jabá gordo. Podiam gritar, trocar nomes, falar até o fim do mundo; estava com a barriga cheia, a carne em [248] conserva com ovo tinha caído do céu. Na sala, o velho Cristóvão tentava pedir um chá. D. Tomázia, noutro quarto, acendia uma vela para o seu S. Sebastião. Tinha também de arrumar uma cera para S. Brás por causa da garganta inchada. As três já reconciliadas começam a conversar na varanda, de modinha decorada, do passeio ao Espírito Santo, do convite que Henriqueta recebeu para, quando viesse o tempo próximo da festa, encabeçar a turma de moças na tiração de esmola na vila ao som da banda do Miranda. Depois veio a mulher do Domingão para o assunto, o Ezequias, o Carvalho. Raquel se meteu na conversa para dizer que Cristino fugiu com medo de Carvalho. Do Dr. Luís da Monta que queria namorar com Henriqueta. — Quanto mais se eu não soubesse que é casado... Cuche... Irene se debruça na mesa. Seus braços se derramam na mesa preguiçosamente. Henriqueta e Rosália apanham caturra que se deixa atrair pela luz. — Menina, abaixa essa luz. Amanhã querosene... — falou D. Tomázia que vinha se benzendo do quarto. E ainda foi ela que torceu o pavio, e a varanda tomou para Eutanázio aquele ar de confidencia que sempre há na cozinha do chalé, conversando com Alfredo. Logo, porém, esfregando os braços na mesa, Irene inicia: — Da farrá, de [da] ferré, di firri... — Era a linguagem usual de Irene, muito usada nesse tempo pelas moças de Cachoeira, para maltratar Eutanázio em presença. As irmãs entendiam bem e era um longo e inesquecível divertimento para Irene conversando assim em da-farrá, apelidando, ridicularizando Eutanázio. Ele não pudera nunca entender a linguagem. Mas sabia que Irene o maltratava, ridicularizava-o naquela linguagem do diabo, como dizia velho Antônio na casa de Duduca. E as moças riam. Riam. — E, da-farrá, de-ferré, di-firri, do-forró, du-furru... dá-dedidó-du... elas se entendiam muito bem e Eutanázio dentro da escassa claridade só percebia os lábios de Irene se mexerem, os dentes rebrilharem num riso — o riso não era o mesmo, não, não era o riso exato de Irene — o brilho dos olhos, as mãos que perto do candeeiro se tornavam mais fluas, mais sexuais. Ouve o arrastar dos pés dela debaixo da mesa. Assim, debaixo da mesa, seria [249] perfeito o exame. Por que o gato que se enrola num pano junto das pernas de Rosália não examina, não denuncia? D. Tomázia, comadre, a senhora está a par da vida mais íntima das suas filhas? Não sabe quando é a lua de Irene? Não sabe se a lua em Irene não suspendeu? E o doce do Chico? Agora mesmo cuspiu para debaixo da mesa. Perguntas idiotas. Que fazer? Os deferrés trituram-no vagarosamente entre os risos de Irene, o mexido pés de Rosália, o bater das caturras no vidro do candeeiro, a tosse do seu Cristóvão, o assoar de D. Tomázia. Surpreende Bita, em pé na porta, como uma aparição, sacudindo a cabeça para o lado das sobrinhas. Cerrava e semicerrava os olhos como era costume, uma toalha enrolada no pescoço. Apesar de tudo, Eutanázio pôde sorrir, intimamente, e isso um só instante, daquela ex-noiva. A eterna noiva! Porque ouve logo: — Resendinho chega, amanhã, na Guilherme. — Na Guilherme? Amanhã? Ora, quando,... 139 [— Pela luz divina, a Guilherme, sim.] — Mas quando... — Ele me disse. Me prometeu. Tem de vir... — Os seus serviços se abriram na mesa indolentemente, como braços... Eutanázio esperou aquela pausa de conversa se acabar, as moças pareciam dominadas por um denso torpor. — Irene — disse Henriqueta — então tu vai atrás de Resendinho? Para que tu te convences? Te esquece dele, sua boba, que Resendinho é filho de fazendeiro, é moço rico, rapaz da cidade, não vai agora se preocupar... — Eh! Deixe! Não se importe... — E fica então mais estúpida do que é, essa Novilha Braba... — Mamãe...Rosália!... Não era o apelido, mas a advertência de Henriqueta a causa do choro, a cabeça sob os braços. A luz dava um tom reluzente nos seus cabelos. Houve um silêncio, Eutanázio sentiu um súbita alegria que desapareceu logo para atentar bem naquela cabeça que se baixa e se enxuga na bainha da combinação. Arre! Chorando! Com todo o seu mistério, arre! Rasgando o peito, subindo-lhe pelo pescoço, arre! Então não se pressente que ela espera, [250] doi|damente, Resendinho, por que deve, é preciso esperar? (tem de vir, disse ela) é preciso esperá-lo na Guilherme, por que, por que, ora, ninguém sabe? Porque... Eutanázio ergueu de súbito a cabeça como se a arrancasse de dentro do peito! — Grávida!... As moças se voltaram rapidamente para ele. Irene ergueu os olhos sobre aquela boca murcha, empastada pela sombra, donde saía uma palavra rouca, incompreensível, inesperada. Mas ele encarou aqueles olhos, aquela face ainda úmida das lágrimas voltada para ele, violentamente bela, mais bela do que nunca, e ficou possuído duma inesperada energia, e as suas bochechas tremiam, as pernas tremiam... — Grávida, é! A senhora está grávida! — Levantou-se. Raquel e Henriqueta encararam-no, sem entender. Ainda pôde ver os olhos de Bita, as mãos de D. Tomázia suspensas na sombra, Irene com os olhos crescidos sobre ele (bela, nunca esteve tão bela) e a luz a um sopro maior do vento, apagou-se subitamente. — Grávida! — Era como um arranco, um soluço, uma tosse estranha que saía dele naquela sombra enquanto, confusas, as moças procuravam, a um só tempo, acender o candeeiro. XVII A SALETA ERA O UNIVERSO Com as janelas fechadas, na vaga luz da tarde quase mona, à rede de Eutanázio, na saleta escura e morna, parecia encardida, as roupas, suspensas num cabide, mais sujas, a mesa, as estantes, os retratos de Augusto Comte, de Santa Rita, do Major Aberto, cobertos de pó, se desfazendo. Boiando do lençol, os olhos dele, como os dum bicho sob um balcedo, permaneciam abertos, amarelos, vidrados, fixos na parede onde mal se desenhava uma teia de aranha. Aquele entorpecimento de saleta que não se varre não se arruma, não se espana, não se abre ao sol, não se enche de Mariinha, com o mormaço da febre, o abafado e a exalação dos panos e dos remédios, era o mundo escolhido e preferido por Eutanázio, a sua fuga, a abolição da casa de seu Cristóvão, dos [251] trinta mil-réis de Felícia, das caminhadas noturnas. Tudo se enterrara naquela noite, deixara no meio do caminho, quando tombou, no braço de Dionísio que o trouxe para o chalé. — O chá... Compadre... E o chá... E o chá... Tome... A voz de D. Tomázia escorria na sombra como a voz de D. Gemi, ontem,, medrosa, lhe perguntando pela doença. A palidez de D. To- 140 mázia na penumbra se fez mais viva e mais oleosa. Sua mão, que segurava a xícara, tremia. Ele virou, dificilmente, a cabeça, seus olhos recolheram ao lençol, a cabeça toda recolheu como a dum jabuti. E D. Tomázia ficou sozinha na saleta, desamparada, com a xícara tremendo na mão. [— D. Gemi nunca mais aparecerá na saleta porque viu com que cara ele a recebeu. Mas D. Tomázia não se emenda, insiste, é a teimosia em pessoa.] O medo de morrer continuava obstinado. Que coisa importuna esse medo! E o pior: servia de espetáculo para os outros. Viam naturalmente que estava com medo da morte. Assim aumentava a ansiedade de toda aquela gente, de seu pai que de vez em quando espia-o pela porta entreaberta como para dizer: Não morre mesmo, vagabundo? Ainda não? Da D. Tomázia, que faz questão de acender a vela e lhe pôr na mão, na tal hora, e murmurar: Deus seja contigo... como disse quando Souza expirava. Por que essa mulher não vai embora, ó senhor! não deixa de me perseguir? Da própria Maninha que parecia falar: por que não sais já daí para mim cortar catálogo no chão, escondido de papai, abrir a janela, ver o sol dar na vidraça da estante? Mas sempre era melhor esta imobilidade, esta estagnada certeza de morrer sem inda estar em agonia, do que correr para a morte. Era esperar. Esperar, era ainda a vida, o movimento, os olhos abertos, virar a cabeça contra D. Tomázia quando viesse trazer chá, aquele lambedor do Ribeirão que tinha o gosto do catarro, da língua, da inhaca do Ribeirão. Esperou todo tempo Irene e por que não esperar, devagarinho, com medo, terror, com aquele terror da sífilis que matou Ezequias? Por que não esperar a morte que é menos misteriosa e irremediável apesar de todo o medo, do que a beleza daquela face espantada e desmascarada, úmida de lágrimas, a face, enfim descoberta, de Irene? Pelo menos esperava, se agitava, ainda que fosse uma cega e ridícula agitação. Contemplava nos olhos de todos a espera, a espera que ele desse [252] o sinal e a cera de tostão de D. Tomázia entrasse em cena. Seus olhos viam tudo. Era o Universo a descobrir e explorar. Falavam nas explorações do Pólo, da África. Não tinham comparação com as que ele fazia naquela saleta com os seus olhos e com seu pensamento, com o seu terror. As telhas, contadas, adquiriam certas formas mitológicas, outras como proas de navios, caras conhecidas, mascaras com beiço espichado num riso. Os rumores de fora eram distinguidos agudamente, comparados, preferidos, odiados. No meio deles, vinham os pés de Irene raspando o soalho, batendo com o calcanhar no chão, seu riso, ora entrecortado de berros de Raquel, ora das tosses de seu Cristóvão. Quando o sol nascia, tinha a impressão do peso da luz na janela fechada, na parede aquecida. As telhas se iluminavam e o sol lhe dava, através das telhas vermelhas, a imagem daquela face que se ergueu da mesa e saltou sobre ele como um clarão. Mas sob o olhar de Irene que descia das telhas, os olhos de Felícia se derramavam macios e logo se transformavam em feridas gotejantes de pus. Felícia, Felícia! Teus joelhos estavam tuíras de tijuco, teu rosto respingado de lama, teu vestido rasgado pelo galho de jacitara, teus cabelos salpicados de folha do mato, flor do campo e gotas d’água dos mururés, quando passaste naquela canoa de Pindobal, com o chapéu de carnaúba nas coxas cheio de tucumã que prometeste. Teu namorado era o praça 24 que se escondeu debaixo do toldo quando, a seu convite, saíste na montaria furtada do Delfim para apanhar a canoa veleira no meio do rio. Naquele tempo não conhecia Dr. Campos nem esperavas pelo barqueiro. Teus joelhos estavam sujos mas não havia feridas nas tuas coxas magras nem tuas mãos pregaram na parede mal embarreada e preta da fumaça da lamparina, a estampa dos arranha-céus na Nova Iorque. 141 Os arranha-céus avançavam. O crucifixo se desfazia em pó, caindo aos pés de Felícia. Nem aquele pó servia para sarar as feridas de Felícia? A doença que me deste, Felícia, foi a maneira melhor de te incorporares a mim, ficar dentro de mim como angústia e como depravação. Velho Abade veio ontem vê-lo. Por que não veio há mais tempo? Deixou primeiro que houvesse a certeza... Veio com seu faro [253] funerário. Não era o abade, fora o caixão que o visitara. Os olhos daquela imensa cabeça falavam: — Só falta forrá. Mando já comprá os preguinhos no Jorge... — Assim foi que disse quando Zitão perdera a fala. D. Amélia raspa qualquer remédio na língua de pirarucu. Sempre é o que ouve: remédio, remédio... Ontem naquele calor, ouvira na varanda a conversa de siá Porcina com D. Amélia: — Não senhora. Não deu a febre nele. Agora ele pensa que qué tomá as pírula? vomita. Acha amarguso. Tamanho mininão e e assim. Eu digo que porque ele andava descalço, saía com a febre e vinha pra fora paresque que foi isso que a febre emperriou. Emperriou mas emperriou mesmo. Só onte que não deu. E ainda a tosse. Quis dá o xarope de jaramaracaru mas fica logo duro, parece banha de galinha e peguei, fiz desse bicho, do pirarucu, da folha do pirarucu, um xarope que é mais melhorzinho. Agora... comadre, me apareceu uma mulherzinha das Pindoba que insistiu nu sumu da vassurinha, ora, num minino assim é mesmo que matá. — E comadre, não vá agora dar sumo de mato. Olhe, essa cidreira é bom também. Mas não deixe ele sair do quarto na pancada do vento ou descalço. — Mas, comadre, Perciliano não tem chinela, comadre. Pai dele não tem podido... — O tempo tá ruim, é sim, comadre... Quando isso melhora? Jaramaracaru. Ele queria soletrar e não dava certo. Aquela palavra lhe trouxe siá Porcina para as telhas e siá Porcina ensinando remédio para ele e dizendo depois bem na escada para D. Amélia: — Lhe agaranto, mea comadre. Foi, pensa? Foi. Coisa feita vem de diversas forma... — Não acredito, comadre... Tinha de vir mesmo. O que tem de acontecer... — É porque a sinhora não acredita, mas se acreditasse a sinhora tirava as provas... D. Amélia raspa qualquer remédio... Ó, por que estão ainda se incomodando? Tem medo da morte mas não sabe para que servem os remédios. Todo mundo que entra na chalé deixa uma [254] re|ceita, ensina droga, quer salvá-lo. É o que acabrunha, esse trabalho. Trabalham para ele! Seria melhor que o deixassem sozinho, sem comadre Tomázia, ignorado do mundo. Tão bom ficar doente sem socorro de ninguém, fechado num quarto com o seu terror em segredo, com aquele apodrecimento vagaroso. Sabe que fazem remédio, acodem para tirar um peso da consciência. Sabe, tem a certeza. Fazem remédio para agradá-lo ou talvez agradarem-se a si mesmos. D. Tomázia fazia uma prova de misericórdia e gratidão passando aquele tempo no chalé a tratar dele para Cachoeira assistir, comentar favoravelmente. Faziam, sim, para dar valor ao trabalho, à misericórdia, à gratidão. Ser grato era uma forma de desforra, de se vingar da infelicidade de ter sido forçado a dever um favor. No fundo, sua comadre Tomázia dava graças a Deus que ele adoecesse para ela representar aquela comédia. Que estupidez, essa, de D. Tomázia lhe trazendo caribé, como se mingau curasse. Mandasse o caribé para Felícia, para o velho Domingão que, disse Rodolfo, fica no escuro, com a sua fome, a casa toda aberta, esperando pelo 142 fantasma de D. Emiliana para conversarem, discutirem as recordações do passado. Mandasse o caribé para siá Pureza que de tanto amassar açaí, lavar roupa, fazer feixe de lenha para vender, acabou botando sangue no próprio alguidar de açaí. D. Amélia correu para ver a comadre. Siá Pureza tinha um bando de curumins e a sua filha mais velha pegara um menino com Bráulio que se botou para Anajás. D. Tomázia espiando pela porta. Por que essa mulher está ainda no chalé e junto dele? Como se a sua oleosa presença o salvasse, ao menos lhe tirasse o medo. Pelo contrario, irrita-o mais, fez pensar naquela exibição de misericórdia e gratidão. Por que seu pai insiste com a mania de Chernoviz? E já esperava quando Major ia guardar o livro dentro da malona a tampa da mala caía como uma pá da terra sobre um caixão no fundo da cova. As vezes lembrava um bater de tambor do Espírito Santo. Era o Chernoviz e D. Tomázia. Acabassem com aquilo. Eutanázio sente que alguém bate na porta. Como é bom ouvir essa pancada úmida na porta. Será Raquel? Bate, bate que ninguém abrirá a porta, Raquel! As pálpebras doem. A garganta parece podre. As pancadas se repetem no seu ouvido como se fossem música. [255] Bem pode ser Raquel. Por que também não deixa de vir? Há dias veio, mais magra, mais ossuda, com os olhos batidos, a boca ressequida. Sempre a falar de Irene. (Não me falem de Irene!) Sempre a tocar nas misérias do seu Cristóvão e no desejo de comidas boas da velha Dejanira. — Sabe? — dizia com uma voz de confidencia — que Resendinho embarcou para [a] Bahia para estudar medicina? Sabe? Sabe? E Irene com a sua gravidez adiantada... QUATRO MESES. Que Raquel fosse falar de Mariana, de Irene, de Resendinho, de D. Dejanira, lá para a sua casa, para os velhos da Duduca. (Ouviu Rodolfo contar que Duduca vomitou sangue? Foi certo?) E Raquel repetindo que Irene nem parecia que tinha sentimento. (Quando ela dizia isso o íntimo falava: não lhe dizia, seu Eutanázio, que Irene não era mulher, era uma moleca?) A gravidez, continuava Raquel, nem lhe tinha dado vômitos, enjôos, uma gravidez tão calma! — E como o Sr. soube, seu Eutanázio? D. Amélia encostava o ouvido na fechadura da porta do quarto que dá para a saleta. — Hem, seu Eutanázio? — O ódio de Raquel à sobrinha brilhava nos olhos, se agitava nas mãos secas e luzidias. — O Sr. adivinhou, seu Eutanázio? — D. Amélia saía da fechadura sacudindo a cabeça. Que tem Raquel de estar incomodando o rapaz? — Pois a gravidez dela... Alguém lhe contou? Foi preciso ele fazer uma cara de demônio para ela compreender, se calar, se despedir, e nunca mais voltar, arre! Que nunca mais lhe apareça! E toda vez que vinha, além das perguntas, daquele olhar por cima do seu corpo, era estendendo o lençol sobre ele, aproximando a cadeira para bem junto, com o braço no punho da rede, apalpando-lhe a testa para ver se tinha febre, querendo introduzir o termômetro debaixo do braço, calçarlhe as meias. (D. Amélia ria-se no buraquinho da fechadura e contava para Major Alberto) — Hem? — E as mãos secas recolhendo a ponta do lençol que caíra. — Como soube? — Agora, fica livre dessa. Nunca mais voltará. Então não sentiam que era justamente o que ele [256] não queria saber? Ora, como soube! Por que deu certo aquele pressentimento? Não, não foi pressentimento. Suspeitas? Também não foi suspeita. A conversa do Dr. Campos? Associava a nudez do Dr. Campos com a cena no campo do Resendinho e Irene. Os passeios? A história debaixo da casa? Não sabe, não quer saber. Mas desejava que tudo tivesse acontecido ao contrário. Que não tivesse acertado, passasse por infame, por maluco como passou primeiro. Por que tudo 143 aconteceu como ele suspeitava, como pressentia? Como se a sua suspeita fosse uma praga. Seria aquela ausência, a sua doença em Belém e a certeza de que Resendinho não saía do lado de Irene. Que fizera Irene com Resendinho? Os dias passaram, D. Tomázia veio vê-lo desacordado no fundo da rede, a saleta fechada, seu pai resmungando, dona Amélia fazendo Mariinha se calar para não fazer barulho ao doente, D. Amélia se abeirando da rede com a sua face escura que contrastava com aquela outra face afogueada e surpreendida. O carocinho de tucumã de Alfredo irrita-o. Por que Alfredo não vai embora com aquele carocinho subindo e descendo na palma da mão? (O carocinho fazia Eutanázio ficar bom, arrumar a sua mala, seguir para Muaná e ficar com as irmãs, plantar e criar para ser feliz). Era melhor que Alfredo, quando viesse vê-lo, jogasse aquele carocinho no fogo. Tinha a impressão de que a bolinha podia saltar, lhe cair na cabeça, nos olhos abertos. Cinco dias de melhora aparente fizeram ele sentar na rede e receber João e Ângela. Pôde ainda na cadeira escrever duas cartas para Angela e duas para João. Lia sem que eles precisassem ouvir respondia. Era bastante que somente ele lesse e respondesse. Saberão eles a verdade, depois? Os cinco dias passaram e veio a febre e as outras complicações no organismo. A febre lhe dá a recuperação daquelas caminhadas noturnas, na chuva, os gritos de Eutanázio, a lamparina morrendo no quarto de Felícia, a sensação infinita de distância que a chuva lhe transmitia quando regressava la casa de seu Cristóvão e a palavra GRÁVIDA, GRÁVIDA, se repetindo abafadamente no seu meio delírio até que Irene o jogava dentro do poço do moinho. Quando abriu os olhos foi para ver D. Tomázia esfregando [257] um pano sujo nos olhos, soluçando na cadeira. E Rodolfo contando para... quem? Não sabe, mas Rodolfo contava. O cadáver tinha chegado dentro dum couro de boi, levado em procissão para a casa de seu Cristóvão, já exalando mau cheiro. Alfredo se metia na conversa. Cristino tinha se matado nas Cuieiras. Encontraram antes siá Teresa estrangulada no Bom Jardim e acusaram Cristino. Ele tinha passado por lá, meio no porre, remando numa montaria. Cristino chegou no [nas] Cuieiras dizendo: A fama chega fazer de mim um assassino. Fama quando cai nas costas da gente... — Não disse mais nada. Tomou o rifle e seguiu para o mato. Largou toda a carga da arma embaixo do queixo. Agora, naquele anoitecer, lhe vem a figura de seu Guaribão na casa de Duduca: — Não digo o contrário mas tenho a meu favor a convivência diária do cartório, Araguaia. Não encontrei ainda esse artigo de lei de que tu tanto fala. — Espera, eu sêe. Não me alembra mas eu sêe o numero. Uma lêe velha. Especeá... Olha, Guarebão, tenho todas as lêes na menha casa. Tenho. E as lêes do monecepeo. Qué sabê mais do que eu, Guarebão? — Mas parece ouvir a máquina de costura de Duduca. (De manhã Duduca vomitou sangue perto do cesto de panos, disse a voz de Rodolfo na varanda.) O sol das dez batia como metal nos telhados, nas vidraças, nas árvores e nos rostos. Alfredo com a bolinha voltava da farmácia do Ribeirão, com um pacote de sabugueiro; a manhã tinha o aspecto das coisas secas, faiscantes, chupadas por um silêncio sem fundo. A bolinha de Alfredo afastava-o daquela manhã, daquele riso esburacado do Ribeirão sem dentes, daquela lata velha cheia de quinino, daquela lembrança do Bode. Nunca mais esqueceu o Ei! Joelho! O carocinho inventava um remédio para febre que não fosse quinino, como já inventou remédios para vermes que não eram mamona. João deixara o gadinho do pai (Eutanázio ignora isso), D. Amélia recebia de semana a semana um prato de filé. Que grandeza era essa do Araguaia, durante o mês passado, passando a 144 carne de vitela em sua casa? Ele tinha umas dez reses, será que está se desfazendo delas? E Major comia filé. Alfredo deixou uns dias de ir [258] ao mercado por causa dos presentes de carne do Araguaia. Mas se descobriu tudo. Tudo! Alfredo sofre porque a cumplicidade de João está patente, claríssima. João voltou a ser o João Galinha. Já não furta a galinha nem dez tostões de cima das mesas. Matara a Odete, a Alvaçoa, [a] Jandira, novilhas ainda, pertencentes ao Major, para o velho Araguaia. Velho Araguaia perdeu-o, levou-o a fazer aquele furto. Sangrou as novilhas em casa do velho Araguaia e João no chalé era tratado como filho! D. Amélia encontrou velho Araguaia no caminho do aterro e diz-lhe desaforos. Velho Araguaia só dizia: Eu? Eu? João foi que me vendeu. Comprei. Mas João confessou que fora tentado a fazer de sociedade com Araguaia (Queria comprar um fato, queria aparecer mais bem vestido para Ângela?). D. Amélia ia levar o caso à polícia. João havia de ir para o xadrez e Araguaia tinha de pagar as novilhas. Mas Major fechando os seus catálogos, sossegou a raiva de D. Amélia: — É melhor deixar... Deixar... Foram comidas e ainda recebemos os presentes... Tira-se o gado de João e pronto... Ora, o Araguaia... Hum... Cada um arrota os cabedais que possui... João tinha sido um patife a mais em Cachoeira — pensava Major Alberto — e não valia a pena tanta zanga, tanta coisa e ainda mais com Eutanázio para morrer na saleta. Alfredo sentiu que o mundo tinha o seu lado cada vez mais injusto, mais duro. Não sabia bem compreender o que se passara em João, tão seu amigo. Qualquer coisa de absurdo e de imposto por Deus (qual dos três Deuses?) tinha levado João para o Araguaia. Era triste, era injusto que ele não pudesse mais falar com João, fosse obrigado a odiá-lo, desse inteira razão a D. Amélia. Araguaia lhe parecia a própria figura do Mal, da Injustiça, da Traição. Coisa incrível, João ter ajudado, ter consentido Araguaia a sangrar as novilhas do chalé! No entanto, era certo, a vida tinha sido perversa para ele, Alfredo, fazendo-o perder João. Como se tivesse também se perdido um pouco do [no] amigo, sentia uma espécie de estranha cumplicidade naquele crime, uma simpatia esquisita mas real pela infelicidade de João. Também sentia que sua mãe falava muito, andava diferente, [259] tinha gestos estranhos, um sorriso, em certas horas, que não era o seu natural. Não sabia, mas estranhava sua mãe. Ela agora acariciava-o mais um pouco, lhe dizia cenas coisas que era antes incapaz de dizer, de fazer. O carocinho trazia João para o chalé sem nunca ter furtado as novilhas, sem nunca ter camaradagem com Araguaia. João levava consigo alguma coisa de precioso, de alegre e de feliz do chalé. A bolinha ia embora na palma da mão. Nessa mesma manhã vira o pai de Tales de Mileto comprar três quilos de carne e ele com o seu quilinho... Vamos, carocinho, leva quatro quilos de carne para o chalé! O carocinho tinha o dom do maravilhoso. Quantas vezes não fez D. Amélia, branca, casada com o Major, cheia de cordões de ouro no pescoço, Alfredo às vezes se aborrecia ou tinha pena que fosse moreno e sua mãe preta. Caçoavam dele porque, mais pequeno, não tomava café para não ficar preto. Se muitas vezes o perfume [pretume] de sua mãe era bom (aquele perfume [pretume] em cima de Maninha tirando a menina das mãos da Morte) entristecia um pouco, quando via a mãe de Tales passar, branca, casada, com o anel de senhora casada brilhando no dedo. Essas senhoras gordonas e cheias de seda olhavam, sentia Alfredo, para D. Amélia um pouco por cima do ombro. Como se livrar daquele quilinho de carne? Os moleques sujos não podiam senão levar, e isso em grandes dias de fartura, meio quilo da pior carne para casa. Mas Alfredo não queria ver os moleques. Tinha uma certa vaidade quando os moleques olhavam, com olhar comprido, seu quilinho. Passava por eles com superioridade. Tudo isso porém se afundava com o 145 desejo de partir para o colégio. Não queria saber das discussões sobre leis de Araguaia e Guaribão na porta do Jorge nem mesmo das exclamações colhidas na casa de seu Cristóvão, [naquela manhã] em que entrou o cadáver de Cristino em cima do couro, a cara esbagaçada, as moscas em redor e o povo. D. DEJANIRA: Que infâmia botaram em cima de ti, meu idolatrado filho! HENRIQUETA: Revolvi a mala dele e não encontrei nada, carta nenhuma... RAQUEL: Meu Deus! Meu grande Deus! Acabou-se o [260] nos|so homem! O homem da casa! O nosso homem! BITA: Meu mano, meu irmão que eras o único que defendia a honra de tua infeliz irmãzinha! Alfredo saia de lá, com a bolinha, surdo daquele tumulto. O carocinho não conheceu o pensamento de Duduca: — Até que enfim os ex-noivos se vingaram, descansaram. Agora os futuros a serem ex-noivos podem avançar, sem susto. Alfredo debaixo da casa está emendando Tales de Mileto no Instituto N. S. de Nazaré. Quando o professor perguntasse: — Sr. Tales, diga quem foi o primeiro regente do Brasil. — Tales baixava a cabeça e mordia o beiço, olhava os botões da blusa de cetim e mordia o beiço de novo, espiava para fora, batia com a caneta na carteira, como sempre fazia. Não, não sabes, Tales de Mileto Comes? Pois eu sei. Volta para Cachoeira, Tales de Mileto Gomes, porque até o Zé Calazãs sabe mais depressa do que tu quais são os remos da natureza... D. Tomázia torceu a taramela da porta e entrou sacudindo a saia. Suspirou. Procurou entre os cabelos a masca de tabaco. — Mas D. Amélia, nem o chá... Ele está bruto, Nossa Senhora. Para o quê que foi [fui] dar o chá... se a senhora visse. D. Amélia ficou espertando o fogo para o café. Maninha furtava farinha da despensa e Major Alberto com a mão na testa, os olhos no teto, pensava na ceguinha, nos catálogos, em Eutanázio. Não tinha Chernoviz que desse mais jeito. Embarcá-lo era impossível. (Marialva mais fina [, mais frágil] e mais coisa nenhuma, ouve o garoto do Raimundo Alves lhe contar uma história de cinema, do Chico Bola que viu em Belém. Marialva sorri e as suas mãos desenham um homem muito gordo caindo e pulando como borracha. Tem horas que o seu mundo dentro dos olhos fica muito azul, cheio de todas as paisagens da infância e na luz azul as meninas dançam em torno dela, o sol fica como uma rua e as arvores azuis da cor de mar, dançam como ondas. As irmãs na cozinha envelhecem como [com] as panelas, o papagaio que deixou de falar e os cacaueiros frutificando. A fumaça do fogão embranquece os seus cabelos e Marialva, ouvindo aquelas histórias de cinema, vai se diluindo, secando cada vez mais, fria, os pés gelados, o mundo [261] azul se tornando escuro e as mãos caídas como folhas secas sobre o peito.) Major Alberto espera o candeeiro para ver aquele prelo Mergenthaler que tem o catálogo novo. Assim que queria um para a sua tipografia. Nunca deixa de soltar a respeito dos efes e erres do Sr. Gomes, do pistão do Didico, da vaidade do Guaribão e a dos homens, a velha frase: — Cada um arrota os cabedais que possui. Depois Major sente um desanimo quase doce, uma delícia de desiludido. Na saleta o seu filho nem geme. Esquisito. Nem um gemido. Não põe a sua presença no chalé. Como se estivesse sempre a caminho da casa de seu Cristóvão. O tempo vai fechar. Começará o inverno e Major repetirá o: Ó que aspérrimo Dezembro! nas manhãs de Março, esperando a chuva passar para seguir para a Intendência. 146 As montarias encostarão na ponte mandada fazer por ele todos os anos, ligando o chalé à ponta do aterro e o chalé dentro d’água será uma ilha nos campos de Cachoeira entre mururés, matupiris e poraquês. — Andem com esse candeeiro... A saleta mais escura. Os retratos se diluíram, escorreram na sombra. A teia de aranha se diluiu na parede. Eutanázio atraca as gengivas no lençol com o último esforço de seu desespero. Por que D. Tomázia não vem com essa luz? Mas será bom viver enterrado na sombra, voltar ao desconhecido, se encher daquela escuridão dos olhos de Irene e sentir uma coragem, de repente, para morrer. D. Tomázia lhe trouxe a luz. Veio como o seu próprio destino com o candeeiro na mão. Devagarinho colocou-o na mesa com aquele medo de D. Gemi ao perguntar pela doença. Será que D. Tomázia sabe que a sombra é melhor do que essa estúpida luz de querosene? A luz se entorna na saleta como um óleo morno e impalpável. Os retratos ressurgem, quase irreconhecíveis, todas as coisas mortas na sombra revivem e só Eutanázio fica morto, sem fala, os olhos esbugalhados para o teto. Os [262] vi|dros da estante brilham vagamente. Alfredo tinha ainda de buscar querosene. A garrafa presa no cordão, a bolinha no bolso. Agora, com a noite, não pode jogar o carocinho. Mas é bom, quando no escuro, dentro da rede, a bolinha sobe e desce na palma da mão. Assim dá um encanto maior, varinha mágica, varinha de condão que as fadas invejariam. Os meninos do mundo inteiro não conhecem o carocinho de tucumã de Alfredo. As fadas morreram, o encanto vem dos tucumãzeiros da Amazônia. O carocinho tem a magia, sabe dar o Universo a Alfredo. Tem um poder maior que os três Deuses reunidos. Por que não disseram que o querosene não dava? Todo dia era isso, era isso! Buscar carne, comprar querosene, trazer pão e açúcar do Delfim. Aquele padeiro tossindo, botando catarro na massa do pão. Na inauguração do cilindro da padaria o velho Antônio Padeiro fedia, expectorava e todo aquele suor escorre na masseira. — Menino, você lê as coisas até o fim? Lê nada! Leu isso da Dra. Orminda Bastos ate no ponto final? Alfredo ficava zangado porque o padeiro dizia mesmo a verdade. Alfredo não lia as coisas até o fim. Velho Antônio lia uns livros misteriosos. Sebentos e massudos, ficavam por aí, por cima do forno, da lenha, das sacas de farinha, Alfredo dana-se porque a sua mão fica fedendo a querosene. Imagine se as meninas vissem-no com a garrafa de querosene, com o embrulho de pão, com o quilinho de carne. Carocinho, faça Alfredo no colégio, livre do querosene, da carne, do açúcar e do pão! O turco não lhe comprou a camisa. Ele foi tirando, com melancolia, doces, pão, cabeça de macaco, charutos de chocolate por conta daqueles perigosos cinco mil-réis. Mas D. Amélia depois soube. Falou. — Para que fez isso, hem? E se o seu pai soubesse? — Sua mãe lhe falara com ar de cúmplice. Mas tudo se apagava diante do ar estranho que havia nela. Diferente. O chalé se tornava mistério para Alfredo. João se perdera. Major distante. Eutanázio na saleta. A vida lhe dava uma inesperada e dolorosa incompreensão. O corpo de Clara com os quadris levantados na cama lhe [263] dera aquela incompreensão de delicioso torpor, de inquietante encantamento. A de João era também uma luta dentro de suas interrogações. Rompia-se qualquer coisa de um bem oculto no chalé e sua mãe cada vez mais estranha, ora tomada dum súbito ardor, ora dominada por uma sonolência que se derramava nas palavras, nos gestos, no olhar. Que havia em sua mãe? Por que aquele torcer de boca, tão habitual nela se tornava num ríctus, num sinal de incompreensão, de mudança, da desconhecida que 147 começava a surgir nela, aparando [apagando] a outra, a que não dizia palavra, velando Maninha com febre? Lucíola já estaria reparando na transformação de sua mãe? Era um instante de profundo desapontamento, de desamparo.. Se desgarrava dos Três Deuses e Nossa Senhora era um ser que não podia compreender tão inesperados sentimentos. Só o carocinho compreendia todas as coisas e mudava os caminhos do destino, da vida e da morte. Alfredo não sabia. Estava longe de compreender, de pressentir. Mas sua mãe se transformava, ia perdendo aquelas qualidades que tanta segurança davam à vida do chalé. Era um princípio de desordem que fazia Alfredo ver dona Amélia mais longe, mais distante de si, como se o chalé fosse repartido por compartimentos fechados como uma casa de estranhos. Seu pai era aquele homem que, manso ou impulsivo, vivia entre os catálogos, sem dar, não porque fosse austero, a intimidade que o filho sonhava. Alfredo via-se solitário, [irremediavelmente solitário]. Cada vez mais desconhecendo o que se passava em torno de sua solidão. Que tinha acontecido, afinal? Lucíola era uma criatura do passado. Sempre sacudindo a sua cabeleira, cantando, remedando a tarrafa do irmão e indo encher de plantas as sepulturas dos seus mortos. Mas se sua mãe com a sua mudança se tornava mais desconhecida para ele, mais amada se tornava, muito mais querida, porque talvez pressentia nela um começo de enorme sofrimento, como se um destino começasse a enxotá-la do chalé. Com Eutanázio parado em casa, a sua angústia se espalhava e contaminava o chalé. Major tinha, às vezes, discussões terríveis com dona Amélia. Ela se tornava incoerente, se desdizia, se queixava, dizia que nem que fosse vender tacaca em Belém, mas Alfredo tinha de ir para o colégio. Depois ficava [264] num entorpecimento e isso fazia Alfredo ter por ela uma desesperada afeição de que ele chegava a ter medo como se tudo se ligasse ao permanente pressentimento de que Maninha podia morrer a qualquer hora. D. Amélia vivia já mergulhada num mundo extravagante, a caminho talvez do filho que sucuriju levara. Seu estado anormal aumentava. Major parecia mais isolado, menos conversador, mais perdido nos catálogos. Bibiano não aparecia. D. Amélia deixava de ser a calma criatura. Outra, extravagante e desordenada, vinha brotando da sua boca, de seus olhos, de suas mãos, das discussões com Major Alberto. O chalé se fragmentava, fazia-se em pedaços que se ocultavam em cada criatura. Estavam ligados por hábitos, mas dentro crescia uma poderosa incompreensão mútua. Não havia entendimento possível. Major chegara a pensar que alguma coisa inconfessável atormentava D. Amélia. Mas a sua ingenuidade fazia-o ignorar que o que realmente se passava nela só depois seria brutalmente revelado. Todos os gestos de D. Amélia eram em Alfredo duma repercussão dilacerante. Seus nervos, seus sonhos, seu futuro, seu carocinho, chocavam-se com a mudança. A doença de Eutanázio trouxera a perda de João, o ar estranho de dona Amélia, aquela surda desunião toda no chalé. Depois das festas de Dezembro o chalé se enchera de mais tristezas. Veio a tiração de esmolas para a santa, com a banda do pistom do Luiz Peru, o bumbo de Zé Ramos; o trombone do Rosa ardia nos ouvidos do enfermo. Veio a alvorada do foguetório e musica e sino batendo. Depois o Círio, o arraial, o leilão que seu Paiva apregoava e as moças deviam ter também apregoado. As argolinhas e a porfia dos cavalos de corrida. O cheiro de pão-de-ló que D. Amélia trouxera do arraial, o sino dando sinal da hora da novena e Major falando na varanda no padre que em vez de pregar sermão só dizia desaforo no púlpito para o povo e ia depois namorar no largo, bebendo cerveja no Leopoldo. — O que falta em Cachoeira é um bom padre. Cachoeira era pra ter um pároco. A Igreja acha-se mal. Faltam-lhe pregadores... 148 Depois veio a Missa do Galo, o ano bom, Janeiro. Major [265] Al|berto um pouco distraidamente murmurava na varanda o seu que aspérrimo Dezembro!” Eutanázio sentiu as primeiras chuvas batendo no chalé e se lembrou das marchas no inverno, para Irene que a chuva fazia mais distante, mais impossível. Alfredo fez a sua bolinha trabalhar com mais ardor e magia durante as festas. Fez Major Alberto dar muitas moedas na bandeja das moças quando vieram tirar esmolas. O pai de Tales deixara na bandeja uma nota de dez mil-réis. A bolinha fez Alfredo ficar crescido e ganhar argolinha na tarde da procissão. Arrematou aquele peru gordo que seu Paiva apregoava, olhando para um e outro, mordendo a ponta do charuto. Sem a bolinha viu o Palmares arrematar depois de uma luta de lances com o Cachoeira Sport Clube, corbeille de flores. Uma disputa de honra para quem desse mais e Paiva tinha a voz cansada: duzentos... duzentos e cinco... e dez... e vinte... e trinta... Mordia o charuto. Alfredo torcendo pelo Palmares, olhando o Joanico que, com um simples levantar de sobrancelha, fazia o lance. Ó, se naquela noite no arraial, tivesse o carocinho! E como desejou que na Missa do Galo houvesse a ceia da Meia-Noite em sua casa como tinha na casa do pai do Tales de Mileto, na casa do Jovico, na casa do Delfim, na casa do Promotor Público. Seu carocinho foi lá em cima e caiu com a ceia posta na varanda. Eutanázio, já bom, picando devagarinho, meticulosamente as fatias de peru, mastigando com as gengivas, as bochechas empapuçadas. E aquela lembrança do Bode se metendo na conversa dele com Neusarina, num banco de arraial. Bode fizera-o ajoelhar, nunca mais esquece. Devia ter reagido e se Neusarina soubesse... Carocinho, [carocinho,] apaga a cena do Bode, faz-de-conta que nunca aconteceu. E aquela tarde junto ao poço do moinho, a ouvir Amâncio contando que Moça aceitara um carta dele. Veja só, o Amâncio! Quem que ela preferiu. Aquela amarelidão crônica, os beiços roxos, sempre descalço, remendado, Amâncio! Amâncio! Trazendo trouxa de roupa que sua mãe lavadeira mandava para a casa do Delfim! O carocinho não teve forças para acabar com o namoro de Amâncio com a Moça. Moça não queria o filho de Major Alberto, quis o filho da lavadeira, o amarelo, o beiço roxo, o pé descalço, o papa-piranha. [266] Amân|cio vivia pescando jiju — peixe que causava repugnância a Alfredo, ajudando o pai na tarrafeação, vendendo cambadas de pescada e tucunaré na porta do chalé. Ia vender arroz doce no arraial. Moça não estava vendo nada. Aceitou a cana de Amâncio. Alfredo invejou, sonhou, desejou e o seu carocinho macio, liso, na palma da mão sem parar, não abandonou nunca. Sem o carocinho, como imaginar as coisas, como ser mais que Tales de Mileto, como saber viver no faz-deconta? Veio Janeiro. Dentro do carocinho bem redondo não muito leve nem também pesado, se escondiam todos os poderes do sonho, toda a graça do maravilhoso. Carocinho na palma da mão saltando no ar era toda a vida solitária de Alfredo, lhe tirando as tristezas lhe dando a presença de um colégio onde pudesse apagar a figura do Tales e não ir buscar no mercado o quilinho de carne. Com as primeiras chuvas, o campo ficou verde, encharcou, Cachoeira ficou mais escura e mais triste. Faltava nos campos encharcados a sombra de Eutanázio andando. O chalé fechado parecia condensar toda a angústia, aumentar os pressentimentos, das [dar] forças à Desconhecida que despertava em sua mãe, aumentar a luta misteriosa que separava as criaturas que ali moravam. Alfredo sofria a quase certeza de que era impossível partir. Depois de tanto sonhar com o carocinho, se deixava ficar numa indefinida moleza como quem sentisse prazer no abandono. Major reclamava sempre os gastos do chalé. 149 — Pensam que fabrico dinheiro! Pensam que fabrico dinheiro! Nunca que se vai para adiante! — E procurando o pente ou o componedor, bradava: — É! É! Aqui será sempre a casa do procura. Arre! Alfredo ficou com aquele “nunca que se vai para diante” dentro de sua inquietação, com aquele mesmo poder de inquietar e amedrontar que vinha do corredor escuro. Na saleta Eutanázio sem viver mas também sem morrer. Major Alberto, depois de voltar da cozinha, indignado com as respostas incoerentes de D. Amélia que tinha um riso frouxo a lhe dar uma expressão quase idiota ao rosto, se embalava na rede e, como num lençol, [267] se deixava ficar dentro da lembrança de Marialva. Marialva, nessa mesma hora, via dentro de sua treva, as arvores azuis dançando como ondas... Raquel voltou. Fez uma tarde de sol. Eutanázio esperava outra sombra de vôo de pássaro no telhado. Na varanda o bater do prelo imprimindo rótulos. Raquel abriu a porta devagarinho e seus olhos dominaram a saleta. Eutanázio esperava a sombra rapidíssima dum vôo de pássaro no telhado batido de sol. — Seu Eutanázio... Como vai? Ele comprimiu os lábios, fez um gesto de raiva e voltou a cabeça. Ficaram distantes um do outro na saleta, abolidos pelo silêncio. Depois Raquel se aproximou mais da rede e viu que o lençol estava um bolo nos pés do doente. — Espere, seu Eutanázio. O Sr. embolou o lençol. Nele permanecia aquele mesmo sentimento de repulsa, de ódio, da necessidade de ficar abandonado. Nela o consolo de jogar toda a sua ternura, há tanto tempo recalcada, em cima daquele corpo acabado, daquela criatura sem esperança. Ao menos deixasse que ela se abrisse naquele instante, tirasse de seus desenganos, de seus rancores, do seu abandono, a paixão que ninguém descobriu, o bem que havia nela para dar a um homem. Um homem, um homem! — Seu Eutanázio , papai mandou saber como vai passando. (Velho Cristóvão não tinha mandado saber. Sua asma aumentava. Mal podia caminhar para o mercado. D. Dejanira reclamando que o Costa era o que era em Cachoeira porque seu Cristóvão não passava dum banana. Como acabar a asma do seu velho pai?) — Ando também doente, seu Eutanázio. Doente. Minha vida, seu Eutanázio. O Sr. sabe o que se passa lá em casa. (Um desejo de lhe dizer: Me falta amor, seu Eutanázio. Os homens foram maus pra mim, seu Eutanázio. Eles me fizeram linguaruda, má, invejosa, briguenta, digna de toda a lástima. Me falta amor, seu Eutanázio. Aquele que ainda podia ser uma esperança, morreu [268] numa alagação...) — D. Dejanira chorou ontem a noite toda quase porque queria comer uma galinha de forno... (Não era isso que queria dizer, seu Eutanázio, quero confessar que o Sr. devia ter me procurado, eu sabia [ser boa, sabia] não ter mais inveja, sabia receber um homem no meu coração, seu Eutanázio. Irene é uma sem-vergonha. E eu sou virgem, virgem, sou uma donzela. Mas de que serviu, se me julgo mais desgraçada do que Felícia?) — Seu Eutanázio, tem chovido, não? Hoje que o tempo endireitou mais... Aquela desgraça do Cristino, seu Eutanázio... — Então deu em Raquel aquele desabafo, aquele ímpeto que não soube como foi, arrependida que ficou depois. — Cheguei a acreditar, seu Eutanázio, que Cristino matou mesmo. O suicídio dele... O Sr. não acredita? (Eutanázio ficou num absoluto estado de tolerância para Raquel, naquele momento. Deixasse ela dizer tudo. Era bom naquele fim se envolver na maluquice de Raquel). — O Sr. não acredita? 150 A pergunta ficou suspensa no silêncio envenenando todas as coisas da saleta. Eutanázio se divertia, pungentemente. Não podia falar, O vôo de pássaro não vinha. O sol batia o telhado com violência. O prelo parou. Rodolfo com certeza escuta a conversa. — Tudo é possível, seu Eutanázio. Não duvido das maiores monstruosidades, meu amigo. É horrível pensar nisso. Eu não queria pensar mas pensei, pensei e não houve força que me tirasse do pensamento. Foi preciso dizer isso a uma pessoa amiga, ao Sr... É horrível, seu Eutanázio, mas não tenho sossego. Aquilo me persegue. Sei que fui eu que maldei. Irene não diz nada [, não diz nada]. Não diz assim: quem foi o meu autor foi Resendinho. Não diz nada. Cala-se quando a gente fala no nome dele. Mas não sossego, não deixo de pensar que Cristino era capaz de matar. Irene parece que me fez pensar assim e... Ela traiu a gente, seu Eutanázio. Eu já tenho falado tanto, tanto, seu Eutanázio, mas aquilo sobre Cristino não falei, nem sei como falei. Não sei por que. Não sei. Mas minha cabeça, seu Eutanázio, vive cheia de pensamentos infernais. Digo mesmo: maldo tudo, queria uma pessoa que me livrasse disso. Quis comungar mas a hóstia ficou [269] rolan|do na boca. Cuspi o Corpo de Deus, seu Eutanázio. Me perdoe chorar, seu Eutanázio, mas isso tudo que se passa em mim e horrível, é horroroso, meu amigo. Me sinto infeliz demais, seu Eutanázio. Tenho uma intolerância de tudo. De tudo! Raquel fez silêncio. Supõe que Eutanázio não a ouça talvez. Continuou a falar, a dizer em pensamento: Acabo enlouquecendo, seu Eutanázio. Acabo gritando pelo campo com as mãos nos cabelos. Não sei quem possa ter pena de mim. Aqui em Cachoeira, devido ao meu gênio, ninguém gosta de mim. Não me arrependo, seu Eutanázio. Isso me dói, nio me arrepender. Mas que o Sr. quer, sinto isto. Cristino, por exemplo, deve sofrer noutro mundo com este meu pensamento sobre ele... Os olhos de Eutanázio ficaram abertos para o telhado como se fossem para ouvir melhor. Raquel não pôde mais se conter. Sentia um alívio se bem que doloroso alívio naquelas palavras incoerentes e aflitas que soltava em voz baixa e que, na maior parte, nem pronunciava. — Seu Eutanázio, me sinto tão desamparada. Tão desamparada! Deu-me ontem uma vontade de gritar, enorme. De gritar. Me botar pela rua e gritar. De me atirar num poço. Falam que há pessoas que se encantam. Pois, sem mentira nenhuma, seu Eutanázio, eu queria me encantar num poço, ficar flechada de bicho, ficar gritando como a filha da velha Bernarda que foi olhada de bicho. Assim era melhor. Irene parece que se envaidece de estar grávida. Tem orgulho de ficar desonrada, seu Eutanázio. Ela lhe fez tanta coisa que o Sr. por isso se tornou num santo, seu Eutanázio. Brigamos com ela para ela não aparecer assim a todo mundo com a barriga, mas qual! Que nada. Nem se vexa. Aparece, faz por pirraça! Não se aperta, mostra mesmo a barriga crescendo. Acho isto, seu Eutanázio, tão imoral, tão ofensivo a Deus, que nem sei. Irene acaba rapariga das mais baixas. Tem todos os jeitos. Não tem um tantinho assim de tristeza. Sente satisfação em ficar abandonada pelo patife de Resendinho. Não sei por que, também, seu Eutanázio... mas senti-me alegre porque ele foi embora, fez isso com ela, deixou ela nesse estado. Mas o que me dói é pensar que parece que nada sucedeu com ela! Gostei [270] que Resendinho fizesse por causa do assanhamento dela. [— O Sr. adoeceu por causa dela.] Eutanázio mexe com a cabeça que não, não! Uma raiva tumultuosa rompe dentro dele. Por que não vai embora essa mulher, por que não se atira logo num poço? — Se eu pudesse, seu Eutanázio, pelo mal que ela lhe fez, cortar-lhe a cara com os meus dentes! Sinto também uma vontade de estraçalhar à dentada aquela minha maldita madrasta! Deus 151 devia me tirar este ódio. Ela, das que casou com papai me encheu de ódio. Aquela mulher mansarrona que o senhor vê, foi matintaperera, já fez do papai o que quis fazer. Quem sabe se não consentiu que Resendinho fizesse aquilo a troco de um queijo, dum dinheiro para comprar comida boa? Houve um tempo que ela andava com dinheiro. Uma mulher fingida, uma mulher bandida! Também é ela que me faz ter maus pensamentos, seu Eutanázio. Quando ela se queixa de fome, eu me alegro, gozo. Todas as infelicidades dela são poucas. Ela foi que reduziu papai àquele estado. Mas é horrível que a gente não saiba tirar estas coisas da cabeça! Ah! seu Eutanázio, sou o anjo mau daquela casa! E para cúmulo de minha infelicidade venho atormentar o Sr., que está no fundo duma rede, com estas minhas coisas. Me perdoe, mas me deixe chorar... A raiva sobe em Eutanázio ao ouvir aqueles soluços de Raquel. A sombra dum vôo passou pelo telhado. Raquel limpa os olhos, assoa-se. Que desespero estar com a garganta assim sem largar os maiores nomes em cima desta estúpida! Que tem ele com as suas histórias! Meta-se dentro dum poço, vire matintapereira... — Bita está lá. Já foi mais de cinco vezes ao cemitério botar flores na sepultura do Ezequias e do Cristino. Encontrou lá a Dadá e tiveram um bate-boca. Não consentiu a Dadá que Bita fizesse, tratasse da sepultura do Ezequias. Um bate-boca no cemitério. Nossa casa esta assim mesmo. Bita voltou. A eterna noiva virou agora a noiva dum defunto. Disque agora já deu para falar que vai tratar de Felícia. De cabeça mole a Bita. Depois de um silêncio e uma sombra de vôo sobre a luz do telhado, Raquel saiu sem se despedir. Eutanázio ficou com a lembrança de Bita, uma noite de lua [271] a brincar com as outras moças e os rapazes, em frente ao chalé do seu Manuel Pires. — Ai! — Que tens? — Saudade. — De quem? — Duma flor... — Que flor... Bita sabia fazer essas brincadeiras ao luar com langor e suspiro. De vez em quando ela dizia: Que luar, meu Deus! Agora Dadá expulsa-a da sepultura do Ezequias. Bita, Bita, vai tratar de Felícia. Pode ser que Felícia aceite o seu tratamento. Nem mais uma sombra de vôo de pássaro. Major Alberto ia desta vez um jornal novo chegado na Lobato. Um pequeno fala na varanda: — D. Amélia pra senhora emprestá o regradô... Aquele irrigador tem uma história. Sempre andando emprestado. Toda aquela gente de baixo, qualquer coisa que tem, lá vai emprestado o irrigador de D. Amélia. Tinha salvo muita gente. Andara em garupa de cavalo até pelas fazendas para dar lavagem em doente mal. Agora o molequinho está pedindo o irrigador, naturalmente para desentupir um desgraçado qualquer. Só ele, Eutanázio, não consentiu que aquele irrigador ambulante servisse para ele. Podia servir para Raquel. O seu medo de morrer aumentava. A garganta podre. Não pudera curar a garganta e assim, sem fala, só mesmo o caixão que o velho Abade já deve estar preparando. Como se com a aproximação da morte subissem do fundo do seu ser aqueles ignorados mundos de poesia que sempre ignorou. Mas lhe vinham até o pescoço. A garganta estava tapada. Ouve o mendigo teatral repetindo: — Hem? Por que ficam à margem? Hem? Depois uma porção de cenas, de vozes, acontecimentos se repetem. Domingão gritando contra os advogados. Seu tio lendo a 152 Bíblia à luz do crucifixo de Felícia e o corpo de D. Emiliana boiava inchado dentro duma lata enorme cheia d’água no meio do [272] campo. Mas D. Tomázia aparece. Dona Tomázia e a morte, lhe faz ter maior medo de morrer, o terror de sair do chalé dentro do caixão do velho Abade. Tem impressão de que a morte e mais terrível e mais definitiva dentro daqueles caixões do velho Abade. — Tome. É o chá. Pelo amor de Deus, meu compadre, tome. Pelo amor de Deus, meu compadre. D. Tomázia enxuga os olhos com o guardanapo, sentada na cadeira. O chá esfriava na bandeja. Eutanázio escondera o rosto no lençol. Dentro, seus olhos ardiam, o sexo doía, a garganta, a fraqueza. À noite começou a chover. A vida da varanda entrava pela saleta lhe trazendo noticias: — Dionísio tinha queimado a barraca de Felícia. Depois ouvia o choro de Felícia se queixando para D. Amélia. Chorando. O fogo queimara os arranha-céus e o crucifixo. Felícia fugindo do fogo pelo campo. Caíra pelo campo encharcado e foi quando começou a chover. Chegara, a ponto de botar o coração pela boca, no chalé, como podia chegar em qualquer casa. Deu-lhe um desejo de morrer assim vendo Felícia enlameada, sob o pavor do fogo, a cara lustrosa de lágrimas, perto dele... A chuva apodrecia os campos e os homens. O chalé, com a inundação, devia flutuar e iria deixá-lo até o cemitério. Ficaria sepultado debaixo dos mururés, debaixo dos cabelos de Irene. Lucíola adoecera. Didico correra à noite para Ribeirão. Ribeirão respondeu que era tarde e muito escuro e não podia vir. Didico esbofeteou o Ribeirão e lá foi Didico preso. Lucíola, delirando de febre, gritava por Alfredo, gritava que D. Amélia andava perdendo o juízo. Alfredo era dela. Era dela! A raiva de D. Amélia na varanda. Major Alberto dizendo: — Cale-se. Cale-se. — Não me calo. Ela se faz de delirando. Não me calo! A varanda entrava pela saleta com aquelas misérias. Dentro a morte chocava o seu ovo na garganta do Eutanázio. A noite trouxe também a voz de Dr. Campos na varanda falando da burrice do Dr. Luiz da Monta. Major Alberto foi à cozinha: [273] — Eis aí o fim. Não dizia, não dizia? Completou a obra. Dessa não se salva. Nunca mais que se salva. Que se quer? E isso, procurou, procurou até achar de vez. Eu sempre dizia: olha isso. Aquilo é um coito. Depois, aqui d’El Rei. Volta para os seus catálogos mas não acha sossego. Seus dedos tamborilam a janela. A chuva se prepara. Cachoeira vai ficar toda sumida na chuva. Era preciso mandar fazer a ponte. As chuvas aumentavam. O rio estava para se derramar nos campos. Sente a saudade de Muaná, terra firme, chão enxugando logo depois da chuva. Será que o resto de sua vida ficaria ali fazendo ponte no inverno e desmanchando ponte no verão? Sonha uma velhice farta ente fruteiras e galinhas num sítio, engordando capados, puxando melaço dos potes, comendo capões gordos e macaxeira com café sem as apepinações da Intendência, o vício dos catálogos e D. Amélia lhe mandando pedir o vale para o quilo de carne, o dinheiro para o sal, o açúcar e o inevitável charuto! Breve, Alfredo, D. Amélia, Inocência, estarão de anzol na janela pescando cachorrinho de padre. Não se esquece da noite em que D. Amélia puxou um aruaná. Também uma noite o jacaré roncou debaixo do soalho. Agora seu pensamento é a ponte e o caixão do Eutanázio. O homem estava a bem dizer morto. Alfredo segue os movimentos do pai. Não tem a bolinha na mãos Rodolfo distribui os tipos. Maninha brinca no quarto. Inocência, a nova empregada, é uma cabocla grossa de ancas pesadas, cara de índia. Alfredo sente aquele corpo grosso e suado que domina a sua curiosidade. Mas a menina Orlandina veio passar 153 um domingo com o padrinho, Major Alberto, e foi se deitar na cama com Alfredo. Orlandina lhe pediu para se deitar com ela. Coisa esquisita. Sua mãe veio tirá-lo da cama. Inocência joga os quartos para o lado. Orlandina tem um cheiro nos cabelos, um abandono, uma voz quase rouca. Bem que queria esquecer o desastre de ontem. Sua mãe mandara comprar um vidro de Quinado Constantino que ela bebia como tônico. D. Amélia gostava. Alfredo se distrai e deixa a garrafa deslizar do papel que a embrulhava e cair na sapata da casa do Coronel Bernardo. D. Amélia viu da janela. Não disse nada. Mas Alfredo não se conforma. [274] Qualquer coisa também se partiu nele, uma sensação de derrota, de logro feito a sua mãe. Que pena! Uma garrafa de Quinado Constantino! O quinado ensopara o capim, a calçada gasta. Ele nem ajuntara os cacos da garrafa. Voltara com as mãos vazias. Sentia nisso uma angústia e maior foi o seu sofrimento ao ver que sua mãe nada disse, se conformara com o acontecido. Vai procurar o carocinho. O carocinho deve estar dentro da rede. Na saleta, Ângela espera que ele volte a cabeça para poder falar. Veio com o seu desassossego. Que falta de calma! Por que veio? Não valia a pena vir. Eutanázio voltou-se. Os olhos dele sobem para aquele olhar surpreendido e inquieto de Ângela. — Seu Eutanázio. O Sr. sabe o que aconteceu com João. Eu queria pedir para D. Amélia perdoar ele. O Sr. sabe, ele não teve juízo. O Sr. nem imagina como tenho sofrido. O que papai diz e eu teimando em gostar dele. João agora foi sorteado. Embarca para o Rio... Mas ele queria se despedir aqui. Sei que o Sr. está assim... mas faça para... Também o Sr. nem escrever pode... Tanto que o Sr. fez por nós... A gente não sabe como agradecer a sua bondade... Mas não tenho jeito de falar com dona Amélia. Ela tem razão. Mas não sei o que se passa em mim, seu Eutanázio. Mas eu gosto do João. Gosto. Criei tanta amizade nele... O Sr. sabe bem como é? Angela saiu sem ter coragem de falar com D. Amélia sobre o caso. João tinha de ir para o Exército assim mesmo. Voltaria? Era melhor que ele fosse. Ela sofria muito, mas bem podia vir regenerado ou já esquecido dela. Era preciso que seu pai nunca soubesse. A chuva cresceu sobre Cachoeira. Ângela correu debaixo da chuva e, na janela, Lucíola, já melhor, se esquece de que a chuva lhe faz mal. Com as chuvas, Salu lê os seus romances com mais gosto e nao vem contá-los para Dadá. Os campos enchem. O chalé para Alfredo fica mais distante do colégio, do mundo, de si próprio. Os que vivem no chalé separaram-se, desconheceram-se. Não há mais conversa de Carlos Gomes, nem Bibiano, nem as risadas de João. Nem a calma de D. Amélia. Na saleta, Eutanázio parece ver entrar o caixão que o velho Abade já fez. As águas [275] invadem os campos. O chalé é agora uma ilha. A pontezinha que liga ao aterro foi feita por Dionísio. Fica mais difícil a caminhada para o mercado. Os cascos encostam. Alfredo se põe a observar as montarias que vêm e vão. Velho Araguaia espera que o venham buscar. Vem o Neves no casquinho a vara e Araguaia com as leis debaixo do braço vai para a sua casa com a paz na consciência. A montaria de Marialba não vale mais nada. Toda aberta e roída tomando água por todos os lados. Ela dá duas varadas e logo com a cuia precisa estar esvaziando a montaria. Bernardina anda num casquinho de nada para vir pedir uma colher de açúcar no chalé. Ótimo é Aristides quando empurra o seu casco a vara. Tem um jeito magnífico. Seu corpo se retesa todo e as mãos na vara comprida fazem o casco correr em cima d’água como um peixe. Alfredo, então, se lembra de Clara. Mas os pobres que não tem montaria nem casco, vêm como o Argemiro. Têm de passar perto da barraca do Rosa com água ate o peito. Os moleques trazem os seus trapos na mão e se vestem no aterro. Primeiro tiram as sanguessugas do corpo. 154 Todos agora sentem a miséria maior. O tanque dos carocinhos desapareceu n’água e Alfredo ouve D. Amélia se queixar que o inverno de novo matou a horta. Lucíola chora silenciosamente, na sua rede, enquanto a chuva enche os campos. Ninguém sabe, ninguém deve saber. Será por Alfredo, por Ezequias, por sua mãe? Nem ela mesma sabe. Chora. Dadá ainda pode esperar um sujeito para se casar. Ela ficará mais so. Alfredo parece ausente para sempre. XVIII BEM COMUM CERCOU OS CAMPOS Pois embarque esta noite mesmo. O Sr. fez um papei desgraçado, Dr. Campos. Saiu de cueca e foi para a casa do Major Alberto de revólver na mão. Apontou a arma para a janela justamente quando apareceu o Alfredo. Por um milagre que o revólver não disparou. O Sr. fez uma que nunca se deu. Disse desaforos pro Major. Voltou cambaleando. Caiu numa poça de [276] lama no aterro. Depois deu outra queda defronte da padaria. Embarque hoje mesmo. Tem canoa aí. Foi uma coisa tremenda, Dr.! — E Salu, depois com os óculos na página do romance, sacode a cabeça: que pena! Um doutor com tamanha inteligência... Alfredo ainda parecia ver Dr. Campos, gordo, vermelho, de cueca, apontando o revólver para ele. Precisou D. Amélia gritar: — Menino sai da janela! Salu voltou ao seu romance. O Juiz substituto, de porre, andara de cueca e revólver pela rua, caindo nas valas, gritando nomes, pior que Dionísio. Salu não via isso nos seus romances. Nos seus romances as autoridades não pegam porre. Os homens ou são maus ou são bons, ou se apaixonam. Eutanázio respira com mais dificuldade. Acabara de receber uma visita. A do Dr. Casemiro Lustosa. Por que se encheu de prevenção, de particular mal-estar contra esse homem? Um senhor que nunca lhe fez mal. Pelo contrário, sempre gentil, lhe trouxe uma vez um vidro de Salsaparrilha de Bristol. Visitava-o, lhe oferecia empréstimos [os préstimos]. Um cavalheiro afável, risonho, incapaz de divergir com alguém numa discussão. Sempre cordato, fino, com uma linha de... (Eutanázio esquece a palavra gentleman que o Dr. Campos sempre dizia), Dr. Casemiro Lustosa é o novo proprietário dos campos de Cachoeira. Com ele os pobres não podem mais tirar lenha, a cerca já foi levantada e de arame farpado. Velho Guaribão teve razão quando disse que o advogado comeu o patrimônio da vila. Veio com gana de comprar todos os campos da redondeza e cercou-os com arame farpado. Eram os campos onde o povo podia tirar a sua lenha, o seu muruci, um ou outro ovo de camaleão, fazer seu passeio. Tudo agora tem um dono só. A vila não pode se estender mais para os campos porque na cerca tem uma tabuleta com letras pintadas pelo Raul com uma negra mão indicando: BEM COMUM Propriedade do Dr. Casemiro Lustosa Dr. Casemiro Lustosa fala inglês com aquele cientista americano que foi buscar no Pacoval uma porção de troços da [277] cerâmi|ca marajoara. Eutanázio chegara a conhecer a história do Dr. Lustosa. Advogado, fizera excelentes negócios vendendo terrenos ao município de Belém, prédios, causara a falência da Segurança da Amazônia, advogava pela Port Of, pelas concessões Ford e Japonesa, enriquecera, ganhara comendas, cultura, prestígio político, honradez, inumerável clientela e uma cátedra na Faculdade de Direito. Comprara uns terrenos na 155 Estrada de Ferro de Bragança e a título de incremento à lavoura solicitara benefícios do Governo Federal para ajudá-lo a plantar, a construir, etc. Como depois o Governo desejou instalar uma Estação Experimental de Agricultura no Pará, Dr. Lustosa organizou a propaganda dos seus terrenos. Nenhuma terra mais recomendável, nenhum lugar mais propício ao futuro da Estação e da Lavoura Paraense do que o seu. Vendeu por dois mil contos os terrenos, inclusive as únicas benfeitorias feitas pela Nação. Então decidiu ser um sonhador. Era preciso aparecer [como] um homem idealista, desinteressado, amigo do povo. Resolveu instalar em Cachoeira uma fazenda modelo. Mas necessitava comprar campos, convencer os pequenos criadores vizinhos de Cachoeira a cederem as suas fazendas para aquela obra de patriotismo e desprendimento. Era também necessário explicar que a grande fazenda de nenhuma maneira se compararia com o latifúndio dos grandes fazendeiros. Ele queria reunir todos os campos numa so propriedade para instalar uma fazenda modelo, não um latifúndio. Foi a primeira vez que o povo de Cachoeira ouvira a palavra: Latifúndio. Sabia, porém, que de qualquer forma, Dr. Lustosa, diferente dos fazendeiros grandes, era um homem moderno e liberal. Doutor Lustosa era a simplicidade em pessoa. Guaribão consultou o doutor Juiz, senhor Gomes, consultou o doutor promotor e muito[s] dicionários em Cachoeira foram, afinal, abertos na letra L, para saber o que era que doutor Lustosa queria dizer. senhor Gomes, senhor Amorim, senhor Pinto, a viúva Marques, foram, por bem ou por mal, se desfazendo, melancolicamente, de seus campos de criação, vendendo o seu gadinho, alto e magro, à civilização que enfim chegava na pessoa do doutor Lustosa. — Sei que sou utopista. Isto é um sacrifício, não de dinheiro, [278] o que não tem importância, mas de energias físicas e morais. Depois, só o grande capital pode explorar a Pecuária em Marajó. — Doutor Lustosa ergueu-se da cadeira, esfregou as mãos e deu dois passos para Major Alberto: — Fique certo, Major, só o grande capital. Major Alberto, com os seus olhos murchos e irônicos, coçou a barriguinha, alisou a testa e se recostou na parede, com aquele seu ar distraído que dava impressão de humildade, de subserviência, quando apenas essa distração vinha da rede com os catálogos, da janela do chalé olhando os campos, das suas simpatias a Santa Rita de Cássia. Mas quando contava a D. Amélia não se esquecia de acabar o comentário com: — Tá fresco! Hum. — Dava uma viravolta no meio da varanda — psiu, cada um arrota, psiu, viste, Amélia, os cabedais que possui. Doutor Lustosa desejava era servir Cachoeira. Simpatizara com a terra e com o povo e queria por isso, a todo custo, proteger aquele povo e aquela terra. Com os campos comprados e reunidos, doutor Lustosa achou extravagante que a vila de Cachoeira, com uma população diminuta e com quase nenhuma possibilidade de se desenvolver, continuasse com aquele largo patrimônio. Não era crivei que, pelo fato de ser um patrimônio, Cachoeira tentasse passivamente limitar ou esmorecer a realização do imenso plano do Bem Comum. Doutor Lustosa provocou a demarcação dos seus campos. Que simplicidade em pessoa! Como sabia falar baixinho no Cartório, como sabia pousar a mão, de leve, no ombro das pessoas que em tão poucos minutos sabia envolver e dominar! Fez-se a demarcação. A cerca de arame farpado veio até perto do fundo das casas da rua das Palhas. Então, doutor Lustosa, alto e dominador, abraçando os que o rodeavam e admiravam, disse: 156 — Então [Estão] vendo o espetáculo? Vejam! S6 a cerca de arame já dá uma idéia do que será o Bem Comum e de quanto Cachoeira vai lucrar. Está bonita a cerca. Já dá um aspecto de civilização, não acham? Já lembra as granjas americanas... A tabuleta apareceu com as letras bonitas, o nome bem [279] dese|nhado, e aquele dedo esticado, que era uma curiosidade para os moleques de Cachoeira. Estava demarcada a patriótica propriedade Bem Comum. O povo também não decifrava quase nada desse nome. Que importava? Chegava material para a fazenda, maquinismo (uma vitrola, um administrador). Chegava a civilização na canoa do Bibiano, na Lobato, na Guilherme. Bem Comum não seria como a Estação de Monta, apenas um emprego e uma verbazinha à disposição do doutor Luiz da Monta que assim, sossegadamente, podia cultivar o seu espiritismo, explicar Allan Kardec, falar mal do materialismo e tocar a sua flauta nas boas farras pelas fazendas. Para melhor começar, doutor Lustosa conseguiu com o governo do Estado um benefício de efeito incalculável para o povo de Cachoeira: Saiu um decreto elevando à categoria de Cidade a Vila de Cachoeira! Ora, Cachoeira recebeu doutor Lustosa com banda de seu Miranda na ponte embandeirada, muitos foguetes no ar, muitas meninas com discursos e recitativos na ponta da língua, alas de moças para lhe jogarem flores na cabeça, seu Araguaia com o braço esticado pronto para gritar o primeiro “viva” ao doutor Lustosa, e o baile. (Que pena não viver Ezequias quando o doutor Lustosa falou no grande capital! Que tristeza para Bita, de luto, não podendo estar à frente das moças para a homenagem! E Dadá? E Lucíola? E Salu teria fechado por algum instante o seu romance na página mil duzentos e dezesseis?) Guaribão não pôde deixar de ficar comovido. — Sim, senhor, já é um progresso. Cachoeira e uma cidade. Doutor Lustosa merece um retrato no salão da Intendência. — E ai de quem, daí por diante, ousasse chamar de vila a Cachoeira! Tinha de chamar cidade, cidade. Os pobres podiam se orgulhar de possuir uma fazenda modelo, cujo proprietário, sacrificando os seus cômodos, subira os degraus do palácio do governo e exigira do Governador o decreto acabando com o humilhante “vila de Cachoeira” para dar oportunidade a Bita de principiar as suas cartas para a família Gonçalves, em Belém: Cidade de Cachoeira, 16 de Janeiro... Major Alberto, na varanda, com o seu catálogo de encontro [280] ao peito, sorria, coçando a perna levantada no banco. — Cidade! Cidade! Está fresco, psiu, psiu, com a casa da Intendência para cair e o intendente mudando a luz elétrica, que já era uma porcaria, psiu, psiu, porque já não funcionava mesmo, psiu, psiu, por luz de carbureto. O relatório do intendente explica, que por medida de economia resolve vender o motor e a caldeira da usina para substituir por carbureto. Carbureto dava até uma luz mais clara... A eletricidade de Cachoeira não foi de muito proveito... Está fresco... E uma ou outra noite, lá ia o Sabino, com a escada acendendo os lampiões de carbureto nas ruas. Que importava a luz elétrica se a vila de Cachoeira tinha sido elevada à categoria de Cidade? Eutanázio não podia tragar esse homem. Muito gentil, muito inteligente, muito ativo, mas achava naquele homem um inimigo, um ladrão de patrimônio, furtara a viúva Marques na compra de sua fazenda, apertara e lograra os criadores e, gentilmente, proibira a tiração de lenha nos campos. Que importava não poder mais ajuntar pau seco para a lenha, deixar de apanhar muruci, não passear, não se utilizar dos campos se o Bem Comum exibia caminhão e eletricidade na sua sede, no antigo Prazeres do senhor Gomes? E esse advogado, dizia senhor Gomes, já reconciliado com o grande benfeitor, oxalá que seja o nosso Intendente 157 municipal, depois deputado federal e mais tarde Governador do Estado! — Oxalá que assim seja! — E ofereceu um jantar ao doutor Lustosa, regado a copiosíssimos elogios ao menino Tales de Mileto. E o povo ao parar diante da cerca viu que era impossível tirar o seu feixinho de lenha. Doutor Lustosa mansamente proibira, falando até que o grande mal do Brasil está na derrubada sistemática das nossas matas. No Bem Comum, entre outros problemas que visavam o futuro da ilha de Marajó, se destacava o problema do reflorestamento. E o povo admirava o arame farpado novo da cerca, o gasto de dinheiro, aquela mão cuidada e hábil que pousava, de leve, nas costas e no ombro dos cachoeirenses. Não havia dúvida, o sonho desse homem era de proteger [281] os pobres, dar nome a Cachoeira. Merecia até que os pobres não acendessem mais o fogão para que Bem Comum crescesse e progredisse. Durante as festas de Dezembro, doutor Lustosa enchia de moedas as salvas de N. Senhora, arrematava nos leilões e dava presente às moças, distribuía caramelos aos meninos, prometeu um altar ao Sagrado Coração de Jesus para a igreja, foi padrinho em trinta e oito batizados a dez mil-réis. E padre Contente, no dia do levantamento da cumeeira da nova casa do Bem Comum, em Prazeres, bebendo champanhe, abençoou, em nome de Deus, a propriedade. Doutor Lustosa podia contar com a proteção do Sagrado Coração de Jesus. Podia contar com a graça de Deus. Quando se encontrava com as velhas benzedeiras, doutor Lustosa perdia amor aos seus níqueis e falava: — Façam promessa a Nossa Senhora para que tudo corra bem no Bem Comum. Aquilo é para vocês. Não é meu. — Dêxe está dotô, nós rezemo... Eutanázio ficou pensando nos campos perdidos de Cachoeira. Que diabo! Por que não sentou a cerca antes de Resendinho levar Irene para o campo? Sentia isto como um logro. Era infantil, absurdo, sim, mas sentia. Doutor Lustosa tinha chegado muito tarde com o seu arame farpado. E se pudesse fazia uma campanha contra doutor Lustosa, desmascarava-lhe os propósitos. Não sabia ao certo quais eram os propósitos, mas tinha a intuição de que o doutor Lustosa queria era fazer do Bem Comum, uma gentil oferta para o governo federal, a troco de algumas centenas de contos, quando quisesse instalar em Cachoeira o Luxo duma Estação Experimental de Pecuária, com muitos funcionários e a verba para o Diretor. Doutor Lustosa já andava embarcando gado para o Matadouro, trazia amigos para passar as férias em Prazeres. Não sabia, mas doutor Lustosa devia estar preparando um grossa negociata com aquele Bem Comum. Esperassem. XIX CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA Eu queria que o Sr., seu Eutanázio, soubesse que depois que o Sr. adoeceu deixei de gritar tanto em casa. Agora só posso [282] de|sabafar diante do Sr. Louca esperança a de ver o Sr. bom. Calculo misturado com esta tristeza, esta tristeza que me rói as entranhas. Esta tristeza que é como tísica... Duduca é mais feliz do que eu. Nem se incomoda com a sua tísica. E eu sinto, venho sufocar o Sr. com isso, com esse meu desabafo, essa minha tristeza, esta minha horrível inquietação. — Raquel torce as mãos, quer se abanar e ao mesmo tempo passar as mãos entre os cabelos de Eutanázio, alisar aquela barba, enxugar-lhe o suor. E como gostaria de dizer: — Se o Sr. me olhasse com mais brandura, com mais acolhimento, eu seria feliz, deixaria de pensar mal de Cristino, de minha madrasta, não desejaria que Rosália e Henriqueta seguissem o mesmo destino de Irene. Eu queria que o Sr. enxergasse em mim o que eu podia ser, deixei de ser, para o Sr. 158 Por que tudo faz para não se restabelecer? Por que não tem medo da morte? Parece um suicídio. A sua presença em casa era sempre uma ilusão, uma esperança, uma possibilidade. Uma coisa enfim que não compreendo. Em casa, todos se separam, se odeiam, se entreolham com raiva. A morte de Cristino nos deixou em tal estado de ódio, de lástima, de isolamento que a vida lá se torna insuportável. O Sr. não imagina, seu Eutanázio. Se eu tivesse a coragem que tem o Sr. de morrer, eu me matava. Me matava. Mas a vida e um vício, seu Eutanázio, um vício. — Passa-lhe pela cabeça a visão de sua madrasta batendo as saias no inferno, com o Diabo avançando sobre ela. Tem certeza de que Eutanázio ouviria mal, [mal] compreendia. Mas era preciso falar. Um catarro lhe sobe pela garganta, enche-lhe as palavras. Nunca pensara fazer tamanha confissão, mas não podia mais se dominar: — Esta miséria prende a gente. Queria uma coisa que abrandasse os meus nervos, este desespero, esta raiva, esta vontade de cortar a dente a cara de Irene, a cara de D. Dejanira. Sinto que o padecimento de papai é intolerável para mim. Se eu pudesse davalhe remédio, um remédio que matasse logo, para deixar de sofrer. Basta de sofrer neste mundo. Papai tem sofrido demais. Bita vive chorando, chorando. Recebeu ontem uma carta anônima lhe fazendo proposta como se faz a Felícia. Aquilo deve ser [283] do Carvalho. — (E sentir que a situação de Bita é para mim um consolo, uma desforra que tive sobre ela — Raquel pensava sem ter força desta vez para confessar.) — Queria que alguém me tirasse um pouco o peso desta tristeza. Agora, com as chuvas, tudo me dói, me fatiga, me atormenta. Não posso ver aquelas caras de casa. O senhor aí no fundo da rede... Sinto que tudo isso me queima por dentro, seu Eutanázio. Vejo nos seus olhos que o Sr. começou a odiar-me, a desejar que nunca mais eu volte aqui. Não, não volto. Minhas palavras não têm mais sentido... Raquel já nem sabia o que falava. Eutanázio não entendia mais nada. Estava sempre com os olhos abertos. Os olhos saltavam do esqueleto para o telhado. Seria o vôo de pássaro pincela[n]do de sombra rápida a luz que escorre das telhas? Perdida a voz, a febre aumentando, os olhos sempre acesos, Eutanázio não morria. Todos se retiravam da saleta atordoados com a vida desesperada e fulgurante que restava ainda naqueles olhos de morto. Na varanda, Rodolfo, Major Alberto, D. Amélia, Alfredo, Didico, esperavam. Major deitava-se na rede, abanando as moscas, esquecendo o catálogo, sob o horror daquela espera. — Venha ver seu filho, seu Alberto. Vá para perto dele. Raquel já saiu. — Ora... — Ora, não. Ande. Ergue-se. Detém-se ao pé da rede. Eutanázio antes não quisera a cama no quarto. Queria aquela rede mesma na saleta. Major nada diz. Apalpa o pulso. As mãos do filho ardem. O corpo se encolheu dentro da rede. Major lembra a morte de sua mulher. Lembra-se de Marialva. A morte é a volta ao estado natural. Como ficou reduzido esse homem. Osso e pele... A morte... Mariinha corre e se agarra nas pernas cio pai. D. Amélia manda abrir a janela da saleta. Os campos inundados fervem ao sol da tarde. Sobe um calor das águas paradas que subiram meio metro. Os peixes bóiam n’água transparente comendo o resto de comida que Inocência sacode da toalha. Major senta e espera. Os ratos corriam pelo telhado. Alfredo, com o carocinho na palma [284] da mão afastava a morte, dava alegria ao chalé, seguia na Lobato para Belém. Sua mãe estava, nesta tarde, no seu natural. Ontem, porem, esteve demais estranha. Que teria acontecido com sua mãe? Que foi aquilo que Lucíola disse no seu delírio e que tanto enraiveceu D. Amélia? D. Amélia saiu da saleta e procurou D. Tomázia. 159 — Olha, D. Tomázia, Eutanázio só morre se a senhora trouxer Irene aqui para ver ele... — Mas como, D. Amélia. Como? — Mas traga, D. Tomázia! Ora essa... O rapaz está nas últimas. Aquele olhar dele parece dizer tudo. Ela que tenha um pouco de coragem e venha. E um ato de piedade. — Mas se Irene não quiser vir? Ai, meu Deus... — Traga ela. Faça tudo. Ela vem. Enquanto ela não vem ele não fecha aqueles olhos. Isso é horrível, D. Tomázia. Vá, vá buscar a sua filha. Ande logo... Ande logo... — Mas D. Amélia, ela grávida... Que coisa, meu Deus. Que coisa. — Mas D. Tomázia, criatura de Deus, ele está para morrer, ele está penando. A senhora não vê que ele pena, ele espera que ela apareça. Eu sinto... Vá buscar a sua filha como ela esteja... Tenha dó dum homem... — D. Amélia irritava-se. Alfredo ficara olhando espantado. Major voltou ao quarto e abriu distraidamente o seu catálogo. As nuvens escureciam a tarde. Rodolfo distribuiu tipos. D. Tomázia foi andando pela ponte, ganhou o aterro, foi sumindo, sumindo. Alfredo saiu da janela e voltou ao seu carocinho. Estava certo de que não sairia mais daquele chalé onde todos pareciam cada vez mais desconhecidos, mas irremediavelmente separados. Não podia fugir. O colégio era um sonho, faz-de-conta era a única salvação; mas as mãos paravam fatigadas de tanto jogar o carocinho. Feito uma ilha nos campos cheios, defronte do rio cheio, o chalé ficava mais distante do mundo, mais longe da cidade, parecia boiar nas águas e se perder pelos campos, desaparecer pelos lagos. Alfredo sentiu uma vontade de chorar, de gritar, de perguntar a Eutanázio: Por que tu não morres? Uma vontade de [285] lutar contra tudo que conspirava contra ele, que lhe fechava o caminho do colégio, da cidade, o caminho do mundo. Foi ao quarto e voltou, O sol semeava nas águas uma poeira de reflexos. Irene virá? Depois se atirou na rede, embrulhou a cabeça no lençol e chorou, soluçou como se estivesse chorando a morte de Mariinha. Ficou sem ar, e sem forças, aniquilado na rede. A febre era capaz de voltar. Major, no corredor, experimentava o rolo novo para o prelo, murmurando: — Este Rodolfo... nunca vi. Acabo pondo daqui para fora. Abusa... Abusa... depois... aqui d’El Rei. Vinha chuva. E quando, sob a chuva, a noite chegou, Irene também chegou. XX IRENE É O PRINCÍPIO DO MUNDO Sim, como veio tão bela! Perdera aquela brutalidade, aquele riso, aquele desleixo. Veio calma na sua marcha para a maternidade. Eutanázio abriu mais os olhos. Ninguém ficou na saleta. Desejou passar a mão naquele ventre que crescia vagaroso como a enchente, com a chuva que estava caindo sobre os campos. Desejaria beijá-lo. Estava vendo ali a Criação, a Gênesis, a Vida. Havia nela qualquer coisa de satisfeito, de profundamente calmo e de inocente. Não dava mostra nenhuma de sofrimento, nem de queixa, nem de ostentação. Era como a terra no inverno. Seu ventre recebeu o amor como uma terra. Como a terra dos campos de Cachoeira recebia as grandes chuvas. Por isso ela já humilhava-o de maneira diferente. Tinha sido falada em Cachoeira e não mostrava senão a aceitação do filho como um triunfo. Tinha um filho, tinha um filho, seu ventre estava alto e belo. E ele no fundo da rede ia morrer sem aceitar a morte, sem ter aceitado a vida. Quando podia se reconciliar com ela, a serenidade 160 daquele ventre humilhava-o, cobria-o de ridículo. Irene estava mansa, sorria para ele com um sorriso de ser fecundado, de criatura que renova em si mesma a vida. Irene restituíra-se a si [286] mesma. O sorriso dela era manso e nascia de seu coração como luz de amanhecer. Quanto ele não soube sofrer! Morria miserável, ridículo, com aquele medo da morte. Diante de Irene queria se encher duma coragem imensa para aceitar o seu destino. Irene era o Princípio do Mundo. As grandes chuvas lhe traziam o filho. Seus peitos cresciam, se enchiam de leite como os das vacas. Ela era tão magnificamente animal, que em seu rosto calmo, em seu ventre, em suas mãos só havia inocência, a inocência de todo o mistério criador. Só ela era a vida! Só ela era a vida! Irene estava bela com a sua gravidez de terra inundada, O silêncio dela era uma voz que [o] percorria tudo com doçura e desespero. Seus olhos cobriam-no de maternidade, de vida em germinação, de beleza. Ele queria beijar, se ajoelhar diante daquele ventre poderoso e amado da Criação. Deixou talvez de sentir qualquer revolta ou ódio. Mas ficou maior a consciência de sua miséria e de sua culpa. Viu que levava de Irene o riso mau, aqueles modos, o olhar, tudo que constituía a “outra” Irene, a sua Irene, a inimiga. Não, não era a mesma. Não era a mesma que o levava para as caminhadas noturnas, para Felícia, para aquele fundo de rede na saleta, para aquela insondável necessidade de degradação. Irene era outra. Seria capaz de amar essa desconhecida? De cair pelos caminhos, de furtar trinta mil-réis de Felícia, de morrer afinal, por uma Irene assim sem o riso, o olhar, a maldade da outra? E Irene continuou sobre ele, com o seu hálito, o seu cheiro de maternidade, tranqüila e doce no seu silêncio. Eutanázio virou a cabeça para a parede. Os olhos se fecharam como se em si mesmos procurassem a Irene perdida. D. Tomázia que, nesse último instante, espiava da porta, pensa logo que ele, agora sim, poderá morrer consolado. Major Alberto fecha o catálogo e murmura, dando um embalo na rede: — Será que não pára mesmo de chover? Que aguaceiro! Toda a noite será assim? Vamos amanhecer com a casa debaixo d’água. É o dilúvio. O dilúvio. O dilúvio. Alfredo, que ouvira, repete a palavra. [287] O dilúvio. Ainda não pudera dormir. Era chegar o inverno e Major gostava de repetir: — Quarenta dias e quarenta noites... — E se chegando mais para o ombro de D. Amélia, galhofava: — ... e o velho Noé num pau d’água, minha senhora... num pau d’água... Na saleta, D. Amélia, D. Tomázia, Dadá, nhá Porcina, Rodolfo e Salu estão passando a noite como num velório. Eutanázio podia morrer de madrugada. Alfredo sacode o lençol, o carocinho salta no soalho correndo para debaixo da rede do Major, como se fugisse. E o menino, como que desamparado, perguntava a si mesmo: — E agora? — Major, na rede, parecia proteger aquela fuga. Sem coragem para recolher o carocinho, com medo que Major tivesse visto e quisesse ralhar, Alfredo se aquietou na rede e esperou que seu pai ao menos se levantasse para ouvir Salu, na saleta, contando baixinho a Dadá o romance da Rainha e Mendiga.