l`o sse rvator e romano - Paróquia Nossa Senhora da Conceição
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y(7HB5G3*QLTKKS( +.!"!/!@!z! Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00 L’OSSERVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL Unicuique suum EM PORTUGUÊS Non praevalebunt Cidade do Vaticano Ano XLVII, número 30 (2.424) quinta-feira 28 de julho de 2016 Durante o voo rumo a Cracóvia para a Jmj Francisco falou dos últimos acontecimentos dramáticos Não é uma guerra de religião mas de interesses O Papa Francisco está em Cracóvia. Recebido por centenas de milhares de jovens provenientes do mundo inteiro para a trigésima primeira jornada mundial da juventude, o Pontífice chegou na tarde do dia 27 de julho àquela cidade polaca, primeira meta da viagem — a décima quinta realizada por Francisco fora das fronteiras italianas — que o levará também a Częstochowa e a Auschwitz, e que se concluirá no domingo 31. «Vivamos juntos a Jmj de Cracóvia» escreveu num tweet lançado pelo account @Pontifex poucos minutos antes de partir de Fiumicino. Precedentemente, o Pontífice desejou fazer uma oração junto do túmulo de João Paulo II, na basílica vaticana, acompanhado por um grupo de crianças e adolescentes doentes de tumor assistidos pela associação Peter Pan onlus. Outro momento significativo de oração, realizou-se no final da tarde de terça-feira, quando o Pontífice foi à basílica de Santa Maria Maior a fim de rezar diante da imagem da Salus populi Romani, confiando-lhe esta viagem. Durante o voo, saudando como é habitual os jornalistas e referindo-se à atual situação mundial, o Pontífice, retomando as palavras do padre Lombardi, disse que «uma palavra que se repete muito é “insegurança”. Diante do mal GIOVANNI MARIA VIAN Assustam e enchem de dor as notícias que se vão multiplicando do último ataque atroz, reivindicado pelo autoproclamado Estado islâmico, a inocentes reunidos para rezar. Na França setentrional, na paróquia de uma pequena cidade como tantas, um sacerdote idoso com 84 anos, padre Jacques Hamel, foi assassinado sem piedade, como o servo sofredor descrito pela antiga profecia judaica, e um fiel gravemente ferido; depois os dois responsáveis deste ato horrendo e ignóbil foram mortos pelas forças se segurança. Ainda sangue, sangue sobre sangue, que se acrescenta ao que foi derramado em muitos lugares, desde há muito tempo, mas sobretudo no Médio e no Próximo Oriente, na África, agora também na Europa, muitas vezes ostentando e portanto profanando abertamente o nome de Deus, contudo ofendido e ferido todas as vezes que se mata um ser humano. «A voz do sangue do teu irmão brada até mim da terra» exclama Deus na dor estupefacta diante do assassínio de Abel, numa das narrações que estão na base das crenças monoteístas, demasiadas vezes erradamente consideradas responsáveis de violências e guerras. Deve ser dito e repetido mais uma vez, com a maioria dos representantes religiosos de todas as crenças, que as religiões em si não estão na origem da violência, mas ao contrário, que nelas existem as Angelus de domingo Violência contra inocentes PÁGINA 3 Padre Jacques Hamel sementes da convivência e da paz. Sementes que podem e devem ser cuidadas e cultivadas por todos os seres humanos que professam uma crença religiosa, juntamente com cada mulher e homem de boa vontade. Contudo, não se devem fechar os olhos face às instrumentalizações violentas da religião: o ódio semeado para fomentar o confronto entre culturas e religiões evocando e agitando fantasmas do passado deve ser de todas as maneiras rejeitado e prevenido por todos. Um site laico observou que a igreja onde o padre Hamel foi assassinado está dedicada a santo Estêvão, o primeiro mártir de Cristo, e pode-se acrescentar que o idoso sacerdote se chamava como o apóstolo Tiago, também ele testemunha da fé até ao sangue. Diante do mal infligido a resposta dos cristãos só pode ser a do seu Senhor e dos mártires de todos os tempos. Recordou abalado o arcebispo da diocese tão cruelmente atingida, que decidiu regressar de Cracóvia, onde inicia nestas horas a jornada mundial da juventude, para estar com os seus fiéis. Jornada convocada no sinal da misericórdia, coração do Evangelho, como repete sem se cansar o Papa que reza e desta maneira está próximo das vítimas, de cada vítima. Mas a palavra verdadeira é “guerra”. Desde há tempos que vimos dizendo: “o mundo está em guerra aos pedaços”. Esta é guerra. Talvez não seja tão orgânica (organizada, sim; digo… orgânica), mas é guerra. Este santo sacerdote [padre Jacques Hamel], que foi morto mesmo no momento em que oferecia a oração por toda a Igreja, é um; mas quantos cristãos, quantos inocentes, quantas crianças... Pensemos na Nigéria, por exemplo. “Mas aquela é África...”. É guerra. Não tenhamos medo de dizer esta verdade: o mundo está em guerra, porque perdeu a paz». «Muito obrigado pelo vosso trabalho — disse aos jornalistas — nesta Jornada da Juventude! A juventude sempre nos fala de esperança. Esperemos que os jovens nos digam algo que nos dê um pouco mais de esperança, neste momento». «A propósito do facto de ontem — prosseguiu — gostaria também de agradecer a todos aqueles que me fizeram chegar as suas condolências, de modo especial ao Presidente da França que me quis telefonar, como um irmão. Agradeço-lhe». E acrescentou que «gostaria ainda de dizer uma palavra para esclarecer. Quando falo de guerra, falo de guerra a sério, não de guerra de religião. Há guerra de interesses, há guerra por dinheiro, há guerra pelos recursos da natureza, há guerra pelo domínio dos povos: esta é a guerra. Alguém poderia pensar: “Está a falar de guerra de religião”. Não. Nós de todas as religiões queremos a paz. A guerra, querem-na os outros. Entendido?». Entrevista ao secretário de Estado Caminho de misericórdia PÁGINA 2 Sobre a «Amoris laetitia» Fidelidade criativa PÁGINAS 6 E 7 NA PÁGINA 8 «Vultum Dei quaerere» A formação é o futuro NICOLA GORI L’OSSERVATORE ROMANO página 2 quinta-feira 28 de julho de 2016, número 30 Entrevista ao secretário de Estado sobre a viagem à Polónia Caminho de misericórdia Publicamos a transcrição da entrevista ao secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, realizada pelo Centro televisivo do Vaticano por ocasião da viagem do Pontífice à Polónia, de 27 a 31 de julho, para as celebrações da jornada mundial da juventude. ALESSANDRO DI BUSSOLO O Papa encontrar-se-á com os jovens de todo o mundo em Cracóvia, cidade de são João Paulo II, criador das Jmj. Retomará os temas principais do magistério de Karol Wojtyła para os jovens? O Papa Francisco por-se-á no mesmo caminho iniciado por João Paulo II e depois, naturalmente, percorrido também por Bento XVI. Um caminho com os jovens, uma vereda de fé, esperança e caridade. Uma via com uma meta, que é sempre a mesma, isto é, o encontro com Jesus Cristo: eis a proposta que o Papa continuará a fazer a todos os jovens que participarem na Jornada mundial. Um caminho que tem um mapa — o Evangelho — e o ensinamento — o magistério da Igreja — e também um pão, um nutrimento, que é a Eucaristia. Portanto, mudam os cenários, obviamente são diversos os continentes, os países, mas digamos, o caminho continua, há uma continuidade nesta estrada. E parece-me que no que diz respeito ao magistério de João Paulo II podemos evidenciar também o facto de que esta jornada mundial da juventude se insere no coração do Ano santo da misericórdia. Dizer misericórdia significa fazer referência a uma parte fundamental da herança magisterial e espiritual do Papa Wojtyła, de são João Paulo II, que dedicou uma das suas primeiras encíclicas, Dives in misericordia, precisamente à realidade da misericórdia, e depois promoveu muitas iniciativas para evidenciar este aspeto, seria suficiente recordar a canonização de santa Faustina, no Ano santo, e ainda a instituição do Domingo da divina misericórdia, in albis, segundo Domingo de Páscoa. Por conseguinte João Paulo II frisou este aspeto, que será retomado precisamente pelo Papa Francisco durante esta jornada, a fim de acender a centelha da misericórdia nos corações dos jovens, e fazer com que o fogo da misericórdia se espalhe em todo o mundo segundo o tema da jornada: «Bem-aventurados os misericordiosos porque encontrarão misericórdia». Cracóvia é também a cidade de santa Faustina Kowalska, a apóstola da divina misericórdia. A passagem pela porta santa em Łagiewniki será um dos momentos importantes deste jubileu? Sem dúvida, precisamente na dimensão deste vínculo com o tema da divina misericórdia. O Papa disse claramente, inclusive na mensagem enviada aos jovens que participarão, que esta passagem será um caminhar ao encontro de Jesus Cristo e um deixar-se olhar por ele, um encontrar o seu olhar misericordioso, para lhe poder dirigir com toda a confiança e abnegação a oração que santa Faustina nos ensinou «Jesus, confio em ti». Diria que esta será também a experiência do Papa: ele será o primeiro a realizar esta experiência de encontro pessoal com o Senhor, esta experiência da divina misericórdia. Portanto, o Papa visitará o santuário da divina misericórdia e ali ouvirá algumas confissões, exercerá o ministério da misericórdia, rezará também nos lugares onde santa Faustina viveu, sobretudo na capela onde teve a maior parte das suas visões e escreveu os seus diários dos quais nasceu precisamente esta particular espiritualidade de Jesus misericordioso, e depois, juntamente com os peregrinos, passará pela Porta santa. O Papa volta ao coração da Europa e com a Polónia visita o primeiro grande país europeu depois da viagem a Estrasburgo. Qual mensagem lançará ao continente? Esta é uma viagem à Jornada mundial da juventude, portanto imagino que o Papa não se dirigirá só à Polónia, país que hospeda esta iniciativa, nem à Europa, porque diante de si estarão os jovens representantes do mundo inteiro. Mesmo se é verdade que esta jornada se realiza num país que está no coração do continente e penso que a maior parte dos jovens participantes provenham sobretudo da Europa. No que diz respeito à Europa o Papa repetirá a estes jovens, penso, a mensagem que já expressou ao Parlamento de Estrasburgo e depois por ocasião da entrega do prémio Carlos Magno. Diria que se pode resumir esta mensagem em duas palavras: uma mensagem de esperança, face ao futuro da Europa, e também aos muitos desafios que são postos diante da construção europeia; e uma mensagem de coragem, no sentido de redescobrir as autênticas raízes cristãs da Europa, que permitiram que a Europa se tornasse o que é. O Papa recordava sobretudo este espírito humanista que sempre a caracterizou e, ao mesmo tempo, também a coragem que significa saber anunciar o Evangelho nas mudadas condições de vida nas quais se encontra e dian- L’OSSERVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL Unicuique suum EM PORTUGUÊS Non praevalebunt GIOVANNI MARIA VIAN diretor Giuseppe Fiorentino vice-diretor Cidade do Vaticano [email protected] www.osservatoreromano.va Redação via del Pellegrino, 00120 Cidade do Vaticano telefone +390669899420 fax +390669883675 Jan Komski, «Chegada a Auschwitz» te das grandes questões que deve enfrentar diariamente, sobretudo o problema das grandes pobrezas, tanto espirituais como materiais. criativa e aberta para encontrar modalidades novas inclusive para responder a estes problemas novos. Em Częstochowa diante da Nossa Senhora negra, Francisco recordará o 1050º aniversário do batismo da Polónia. A comunidade católica polaca ainda é testemunha fiel e corajosa desta fé, ou o secularismo está a aumentar? Os horrores de Auschwitz e Birkenau e os sofrimentos dos pequenos doentes do hospital pediátrico de Cracóvia. Sentindo de perto os sofrimentos de ontem e de hoje, recordará o Papa o testemunho de quem deu a vida pelos outros, como são Maximiliano Kolbe? Sinto-me muito feliz por este facto, porque o Santo Padre me privilegiou com a nomeação em abril passado como seu legado, por ocasião da mesma circunstância e por conseguinte estive em Poznań e em Gniezno e presidi às celebrações pelos 1050 anos de batismo da Polónia, que num certo sentido completam o que faltou na celebração do milénio quando, dada a situação política, foi impedido que Paulo VI participasse como tinha desejado fervorosamente. Portanto haverá quase uma continuidade com esta celebração de há 50 anos, e é uma comemoração antes de tudo de ação de graças: o Papa vai dar graças, juntamente com a Igreja polaca, com os pastores e fiéis, por estes mil anos de fé cristã, e diria também pelo que aconteceu nestes últimos 50 anos: a redescoberta da liberdade e da possibilidade de exprimir livremente a própria fé. Acredito que a Igreja polaca, pelo que pude ver também durante a visita que realizei e nas precedentes, é uma Igreja ainda vigorosa, viva, que unida aos seus pastores continua a testemunhar a fé também nas diversas circunstâncias atuais. Há muitas famílias boas, muitos jovens que se comprometem na formação e na vida cristã, há o impulso missionário e o desejo de apostolado. Ainda há vocações à vida sacerdotal e religiosa. Portanto um tecido que fundamentalmente ainda se mantém; sem dúvida é chamado a responder aos novos desafios e como o senhor recordou antes, o desafio principal é o secularismo, a perda do sentido de Deus e viver como se Deus não existisse nas nossas sociedades. Neste sentido a Igreja polaca deverá ser É interessante que o Papa, desde o início, quando se programava esta viagem, desejou estes dois momentos, que eu definiria como o lugar do horror e da dor. O lugar do horror, Auschwitz e Birkenau, o testemunho de são Maximiliano Kolbe, o holocausto do povo judeu, mais horror do que isto! E é uma presença que significa sobretudo uma evocação, uma chamada silenciosa, porque o Papa não pronunciará discursos nessas circunstâncias. Penso que diante dos horrores o silêncio às vezes é mais eloquente do que as palavras. E a recordação de todas estas vítimas do ódio e da loucura humana, para recordar que também hoje infelizmente existem situações de violência, de desprezo da vida humana, da pessoa, situações nas quais se fomenta a divisão, situações nas quais se usa o terror, o terrorismo, para interesses pessoais ou para a construção de interesses económicos e políticos. Por outro lado, o hospital como proximidade à dor das pessoas. O Papa evoca com frequência que a Igreja deve estar próxima, a Igreja deve ser o próximo de todos os que se encontram no sofrimento. Quem mais do que as crianças doentes se encontra nesta situação de necessidade de ter alguém perto, como o bom samaritano? Penso que a visita ao hospital tem precisamente este significado. O Papa realizou outras. Lembro-me que no México, pareceme, quando visitou outro hospital pediátrico falou sobre a terapia do afeto, a afetoterapia. Também desta vez usará a mesma terapia e exortará todos nós a fazê-lo, a estas crianças e a quantos sofrem. TIPO GRAFIA VATICANA EDITRICE L’OSSERVATORE ROMANO don Sergio Pellini S.D.B. diretor-geral Assinaturas: Itália - Vaticano: € 58.00; Europa: € 100.00 - U.S. $ 148.00; América Latina, África, Ásia: € 110.00 - U.S. $ 160.00; América do Norte, Oceânia: 162.00 - U.S. $ 240.00. Administração: telefone +390669899480; fax +390669885164; e-mail: [email protected] Serviço fotográfico Para o Brasil: Impressão, Distribuição e Administração: Editora santuário, televendas: 0800160004, fax: 00551231042036, e-mail: [email protected] telefone +390669884797 fax +390669884998 [email protected] Publicidade Il Sole 24 Ore S.p.A, System Comunicazione Pubblicitaria, Via Monte Rosa, 91, 20149 Milano, [email protected] L’OSSERVATORE ROMANO número 30, quinta-feira 28 de julho de 2016 No Angelus dedicado à oração o Papa falou da página 3 JMJ Jovens do mundo rumo a Cracóvia Pesar pelos atentados de Munique e Kabul «A oração é o primeiro e principal “instrumento de trabalho” nas nossas mãos. Recordou o Papa Francisco no Angelus de domingo 24 de julho na praça de São Pedro, comentando o trecho evangélico de Lucas (11, 1-13) dedicado ao Pai-Nosso. Queridos irmãos e irmãs, bom dia! O Evangelho deste domingo (Lc 11, 1-13) tem início com o episódio no qual Jesus reza sozinho, separadamente; quando acaba, os discípulos pedem-lhe: «Senhor, ensina-nos a rezar» (v. 1); e Ele responde: «Quando orardes, dizei: “Pai...”» (v. 2). Esta palavra é o «segredo» da oração de Jesus, é a chave que Ele mesmo nos oferece a fim de podermos en- As relíquias da santa Maria Madalena na Polónia Maria Madalena entre os padroeiros dos jovens que participam na Jmj em Cracóvia: os organizadores decidiram inserir o nome da «apóstola dos apóstolos» — da qual no dia 22 de julho a Igreja celebrou a nova festa litúrgica desejada pelo Papa Francisco — entre aqueles aos quais os jovens podem dirigir-se em oração durante os dias que passarem na Polónia. Para a ocasião as relíquias da santa, provenientes de FréjusToulon (França), foram levadas por voluntários dominicanos à cidade polaca e ali expostas na igreja franciscana de São Casimiro. Venerada como «testemunha da misericórdia», Maria Madalena não é a única santa cujas relíquias serão expostas à veneração dos jovens em Cracóvia. Com efeito, também as dos padroeiros oficiais da trigésima primeira Jmj, Faustina Kowalska, João Paulo II e Maximiliano Kolbe, mártir em Auschwitz. E da Itália, também nesta edição como já aconteceu no passado, foram levadas as relíquias do beato Piergiorgio Frassati que, na Polónia desde meados de julho, passaram em peregrinação por diversas dioceses e no dia 23 chegou à sede da Jmj, acolhidas no mosteiro dominicano da rua Stolarskiej. «Piergiorgio era um jovem — escreveu o Papa Francisco em setembro na tradicional mensagem de convite à Jmj — que compreendeu o significado de ter um coração misericordioso, sensível aos mais necessitados. A eles doava muito mais do que coisas materiais; doava-se a si mesmo, dedicava-lhes tempo, palavras e capacidade de escuta. Servia os pobres com grande discrição, sem se pôr em mostra». Enfim, um jovem — falecido com 24 anos — será proposto como modelo aos seus coetâneos. trar também nós na relação de diálogo confidencial com o Pai que acompanhou e amparou toda a sua vida. Ao apelativo «Pai» Jesus associa duas solicitações: «santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino» (v. 2). Portanto a oração de Jesus — a oração cristã — é antes de tudo dar lugar a Deus, deixando que ele manifeste a sua santidade em nós, fazendo com que se aproxime o seu reino, a partir da possibilidade de exercer o seu senhorio de amor na nossa vida. Outros três pedidos completam esta oração que Jesus ensina, o «PaiNosso». Três solicitações que exprimem as nossas necessidades fundamentais: o pão, o perdão e a ajuda contra as tentações (cf. vv. 3-4). Não podemos viver sem pão, sem perdão, sem a ajuda de Deus contra as tentações. O pão que Jesus nos ensina a pedir é o necessário, não o supérfluo; o pão dos peregrinos, o justo, um pão que não se acumula nem se desperdiça, que não pesa durante a nossa marcha. O perdão, antes de tudo, é aquele que nós mesmos recebemos de Deus: só a consciência de sermos pecadores perdoados pela infinita misericórdia divina pode tor- nar-nos capazes de realizar gestos concretos de reconciliação fraterna. Se uma pessoa não se sente pecadora perdoada, nunca poderá fazer um gesto de perdão nem de reconciliação. Começa-se pelo coração, onde nos sentimos pecadores perdoados. O último pedido, «não nos deixeis cair em tentação», exprime a consciência da nossa condição, sempre exposta às insídias do mal e da corrupção. Todos sabemos o que é uma tentação! O ensinamento de Jesus sobre a oração prossegue com duas parábo- Carta da presidente da Ucei Silêncio como um trovão NOEMI DI SEGNI Caríssimo Papa Bergoglio! O destino quer que uma terra bendita nos una nos sentimentos e nas intenções, a Terra de Israel. Mas, ao mesmo tempo, e com imenso sofrimento, o destino quis que houvesse também uma terra maldita, a dos campos de extermínio, onde no coração da Europa, nos anos do Shoah foram exterminados milhões de inocentes. Escrevo-lhe, em nome dos judeus italianos, poucos dias antes da sua visita ao campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau. Um evento muito esperado, que chamará a atenção de milhões de pessoas para a página obscura da história que é uma ferida aberta no coração da Europa e continua a questionar as consciências de todos os cidadãos preocupados, do fundo do coração, com a defesa da paz, da liberdade e da democracia. Gostaria de lhe dizer que apreciei muito a sua escolha de não pronunciar um discurso formal mas concentrar a emoção desta visita, tão significativa, num longo e intenso silêncio. Uma forma de oração que clama e fará eco, tenho certeza, aos gritos e à dor das muitas crianças, mães, jovens, homens que daquela terra nunca voltaram. Uma sua oração que, unida às muitas nossas, transformará aquela terra de sofrimento em lugar de culto. A sua visita torna-se o emblema de um percurso introspetivo de redescobertas e defesa de valores mais profundos — respeito pelo outro e pela vida — que hoje novos e terríveis inimigos parecem pôr em questão juntamente com as formidáveis conquistas que a Itália, a Europa e o mundo inteiro souberam realizar a partir do pós-guerra. Fruto de um pacto entre gerações nascido precisamente das cinzas de Auschwitz-Birkenau e de outros lugares de morte daquela época, a democracia, a integração europeia e a existência de Israel são a prova do longo caminho percorrido a fim de não esquecer a dramática lição do Shoah e para garantir a todos, sem excluir ninguém, um futuro próspero e melhor. Nunca como hoje as religiões e os seus líderes são chamados a ser um exemplo para todos os cidadãos, prescindindo de cada pertença ideal, espiritual e cultural. Por conseguinte, à sua espera tem um longo caminho de compromisso e colaboração na consciência de que os elementos que nos unem são mais numerosos e significativos do que os que nos dividem. Só assim as terras malditas do extermínio e do ódio poderão assumir a santidade de todos os mártires que em nome do amor e da tolerância aí sacrificaram a própria vida. Bendita seja a nossa recordação. *Presidente da União das comunidades judaicas italianas las, com as quais Ele cita a atitude de um amigo em relação a outro amigo e a de um pai em relação ao seu filho (cf. vv. 5-12). Ambas pretendem ensinar-nos a ter plena confiança em Deus, que é Pai. Ele conhece melhor do que nós as nossas necessidades, mas quer que lhas apresentemos com audácia e com insistência, porque este é o nosso modo de participar na sua obra de salvação. A oração é o primeiro e principal «instrumento de trabalho» nas nossas mãos! Insistir com Deus não serve para o convencer mas para fortalecer a nossa fé e a nossa paciência, isto é, a nossa capacidade de lutar juntamente com Deus pelo que é deveras importante e necessário. Na oração somos dois: Deus e eu, lutando juntos pelo que é importante. Entre as coisas mais importantes que Jesus diz hoje no Evangelho, há uma, na qual quase nunca pensamos, é o Espírito Santo. «Concedeime o Espírito Santo!». E Jesus diz: «Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas coisas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai celestial dará o Espírito Santo aos que lho pedirem!» (v. 13). O Espírito Santo! Devemos pedir que o Espírito Santo venha a nós. Mas para que serve o Espírito Santo? Para viver bem, com sabedoria e amor, fazendo a vontade de Deus. Que bonita oração seria, nesta semana, se cada um de nós pedisse ao Pai: «Pai, concedei-me o Espírito Santo!». Nossa Senhora demonstra-o com a sua existência, inteiramente animada pelo Espírito de Deus. Que ela nos ajude a pedir ao Pai, unidos a Jesus, para viver não de maneira mundana, mas segundo o Evangelho, guiados pelo Espírito Santo. Depois da oração mariana, o Pontífice expressou a sua dor por causa dos atentados de Munique e Kabul e pediu aos fiéis para o acompanhar com a oração durante a próxima viagem à Polónia por ocasião da trigésima primeira jornada mundial da juventude. Nestas horas o nosso espírito foi de novo abalado por tristes notícias relativas a deploráveis atos de terrorismo e de violência, que causaram dor e morte. Penso nos dramáticos eventos de Munique na Alemanha e de Kabul no Afeganistão, nos quais CONTINUA NA PÁGINA 4 página 4 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 28 de julho de 2016, número 30 Aimee Perez «Maria Madalena» (detalhe) ROBERT SARAH* A 22 de julho, por decisão do Papa Francisco e no ano da misericórdia, celebramos santa Maria Madalena como festa litúrgica. O novo prefácio, intitulado De apostolorum apostola («apóstola dos apóstolos»), seguindo Rábano Mauro e são Tomás de Aquino, apresenta a santa amada pelo Senhor como testis divinae misericordiae («testemunha da divina misericórdia»), primeira mensageira que anunciou aos apóstolos a ressurreição do Senhor (cf. João Paulo II, Mulieris dignitatem, 16). Pretendo analisar duas atitudes da santa que estão no centro do novo prefácio e dos textos da missa e que podem ajudar todos os cristãos, homens e mulheres, a aprofundar a tarefa de seguidores de Cristo: a adoração e a missão. No prefácio apresenta-se a Madalena que amou apaixonadamente Cristo enquanto estava viva, que o viu morrer na cruz, o procurou quando jazia no sepulcro e foi a primeira que o adorou ressuscitado dos mortos. O texto ressalta que a santa, honrada com a missão de ser apóstola dos apóstolos, anuncia a boa nova de Cristo aos apóstolos, que por sua vez difundiram esta notícia até aos confins da terra. É o amor que caracteriza a vida de Maria Madalena. Amor apaixonado, como recordam as duas leituras possíveis da missa: «Procurei o meu amado; procurei, porém não o encontrei. Levantar-me-ei, pois, e rodearei a cidade; pelas ruas e pelas praças buscarei aquele a quem ama a minha alma» (Ct 3, 1-2), porque «o amor de Cristo nos constrange» (2 Cor 5, 14). Um amor que leva a procurar o Senhor, como cantam o salmo responsorial e o prefácio da fes- Primeira festa litúrgica desejada pelo Papa Francisco Testemunha da divina misericórdia ta: «Ó Deus, tu és o meu Deus; de madrugada te buscarei; a minha alma tem sede de ti; a minha carne te deseja muito numa terra seca e cansada, onde não há água» (Sl 63, 1). Por isso, dilexerat viventem e quaesierat in sepulcro iacentem («amou-o quando estava vivo» e «procurou-o quando jazia no sepulcro»). Com efeito, «foi ao sepulcro de madrugada, sendo ainda escuro» (Jo 20, 1). É o amor que deve caracterizar a nossa vida de cristãos, de verdadeiros amigos de Jesus. Um amor que nos leva a procurar o Senhor. É este o único programa válido para a Igreja, como recordava João Paulo II: «não se trata de inventar um “programa novo”. O programa já existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na Tradição Jovens do mundo rumo a Cracóvia CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 3 perderam a vida numerosas pessoas inocentes. Sinto-me próximo dos familiares das vítimas e dos feridos. Convidovos a unir-vos à minha oração a fim de que o Senhor inspire propósitos de bem e de fraternidade em todos. Quanto mais insuperáveis parecerem as dificuldades e obscuras as perspetivas de segurança e paz, tanto mais insistente deve ser a nossa oração. Queridos irmãos e irmãs! Nestes dias muitos jovens, de todas as partes do mundo, encaminhamse rumo a Cracóvia, onde terá lugar a trigésima primeira Jornada Mundial da Juventude. Também eu partirei na próxima quarta-feira para me encontrar com estes jovens e celebrar com eles e para eles o Jubileu da Misericórdia, com a intercessão de são João Paulo II. Peço-vos que me acompanheis com a oração. Desde já saúdo e agradeço a quantos estão a trabalhar para receber os jovens peregrinos, com numerosos bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos. Dirijo um pensamento especial aos seus numerosos coetâneos que, não podendo estar presentes, seguirão o evento através dos meios de comunicação. Estaremos todos unidos na oração! E agora saúdo-vos, queridos peregrinos provenientes da Itália e de outros países. Em particular os de São Paulo e de São João da Boa Vista, no Brasil; o Coro «Giuseppe Denti» de Cremona; e os participantes na peregrinação de bicicleta de Piumazzo a Roma, enriquecida pelo compromisso de solidariedade. Saúdo os jovens de Valperga e Pertusio Canavese, Turim: continuai a viver e não a ir vivendo, como escrevestes na vossa t-shirt. A todos desejo um bom domingo. E por favor não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista! viva. Concentra-se, em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para n’Ele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste. É um programa que não muda com a variação dos tempos e das culturas, embora se tenha em conta o tempo e a cultura para um diálogo verdadeiro e uma comunicação eficaz. Este programa de sempre é o nosso programa para o terceiro milénio» (Novo millennio ineunte, 29). Procurar Cristo para o amar, como fez Maria Madalena. Nisto ajudam-nos as palavras do Papa Francisco quando nos confidencia: «Como é doce permanecer diante de um crucifixo ou de joelhos diante do Santíssimo Sacramento, e fazê-lo simplesmente para estar à frente dos seus olhos! Como nos faz bem deixar que Ele volte a tocar a nossa vida e nos envie para comunicar a sua vida nova! Sucede então que, em última análise, “o que nós vimos e ouvimos, isso anunciamos”» (1 Jo 1, 3)» (Evangelii gaudium, 264). Procurar Cristo para o amar e dá-lo aos outros. É o programa para a Igreja e para cada um dos seus filhos. Santa Maria Madalena procura o Senhor e quando o encontra adorao. É a primeira que adora o Senhor, como canta o prefácio: quaesirat in sepulcro iacentem, ac prima adoraverat a mortuis resurgentem. Em primeiro lugar a adoração. Madalena recordanos a necessidade de recuperar a primazia de Deus e a primazia da adoração na vida da Igreja e na celebração litúrgica. Este era um objetivo fundamental do concílio Vaticano II e ainda hoje o continua a ser. Deus deve ocupar o primeiro lugar, mas isto não se pode dar por certo. João Paulo II, no vigésimo quinto aniversário da Sacrosanctum concilium, recordava: nada de quanto fazemos na liturgia pode parecer mais importante de quanto Cristo faz invisível, mas realmente por obra do seu Espírito. A fé viva pela caridade, a adoração, o louvor ao Pai e o silêncio de contemplação, serão sempre os primeiros objetivos a alcançar para uma pastoral litúrgica e sacramental» (Vicesimus quintus annus, 10). Adorar Deus, como afirma o bispo de Roma, em «cada cerimónia litúrgica», o que é mais importante é a adoração» e não «os cânticos e os ritos», por mais bonitos que sejam: «Toda a comunidade reunida olha para o altar onde se celebra o sacrifício e se adora. Mas eu penso, digo isto com humildade, que talvez nós cristãos perdemos um pouco o sentido da adoração. E pensamos: vamos ao templo, reunimo-nos como irmãos, e é bom, é agradável. Mas o centro é onde está Deus. E nós adoramos Deus» (22 de novembro de 2013). O Papa pergunta: «Tu, eu, adoramos o Senhor? Vamos ter com Deus só para pedir, para agradecer, ou vamos também para o adorar? Que significa então ir ter com Deus? Significa aprender a estar com ele, a parar para dialogar com ele, sentindo que a sua presença é a mais verdadeira, a melhor, a mais importante de todas» (14 de abril de 2013). Meio século depois da Sacrosanctum concilium é ainda o Pontífice quem nos recorda a necessidade de dar a Deus o primeiro lugar: «Não serve perder-se com tantas coisas secundárias ou supérfluas, mas concentrar-se na realidade fundamental, que é o encontro com Cristo, com a sua misericórdia, com o seu amor e amar os irmãos como ele nos amou. Um encontro com Cristo que é também adoração, palavra pouco usada: adorar Cristo» (14 de outubro de 2013). Maria Madalena é a primeira testemunha desta dúplice atitude, adorar Cristo e dá-lo a conhecer. Como diz ainda o prefácio, seguindo o evangelho do dia: prima adoraverat a mortuis resurgentem, et eam apostolatus officio coram apostolis honoravit ut bonum novae vitae nuntium ad mundi fines perveniret. «Vai ter com os meus irmãos e diz-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus. Maria Madalena foi e disse aos discípulos de Jesus: “Eu vi o Senhor!”. E contou o que Jesus lhe tinha dito» (Jo 20, 17-18). Em síntese, trata-se de centrar a nossa vida em Cristo e no seu Evangelho. Na vontade de Deus, despojando-nos dos nossos projetos para poder dizer com são Paulo: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 20). A apóstola dos apóstolos, Maria Madalena, sai de si mesma para ir ao encontro de Cristo com a adoração e com a missão. Nesta mesma linha afirma o Papa Francisco: «Este “êxodo” de si mesmos significa pôr-se num caminho de adoração e de serviço. Um êxodo que nos leva a um caminho de adoração do Senhor e de serviço a ele nos irmãos e nas irmãs. Adorar e servir: duas atitudes que não se podem separar, mas que devem caminhar sempre juntas. Adorar o Senhor e servir os outros, nada retendo para si» (8 de maio de 2013). *Cardeal prefeito da Congregação para o culto divino e a disciplina dos sacramentos número 30, quinta-feira 28 de julho de 2016 L’OSSERVATORE ROMANO página 5 Meditações sobre Maria Madalena apóstola Um olhar internacional e ecuménico «A recente iniciativa do Papa Francisco de elevar à dignidade de festa a memória litúrgica de 22 de julho, consagrada a Maria Madalena, foi profética», lê-se no editorial de introdução do último número de «Ihu», a revista brasileira do Instituto Humanitas Unisinos, inteiramente dedicado a Maria de Magdala, apóstola dos apóstolos, com uma coleção de textos variegada e rica, com um forte cunho ecuménico. Com efeito, as contribuições provêm do mundo inteiro; além dos textos de duas estudiosas como Wanda Deifelt, coordenadora do Departamento de religião do Luther College de Decorah no Estado de Iowa, nos Estados Unidos, e Ivoni Richter Rainer, teóloga luterana que ensina na Pontifícia Universidade Católica de Goiás, o número inclui também artigos assinados por Marcela Zapata-Meza, arqueóloga bíblica e egiptóloga que ensina na universidade mexicana de Anáhuac e trabalha nas escavações em Magdala, e do sacerdote jesuíta belga Johan Konings, professor de estudos bíblicos e exegese na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje) de Belo Horizonte. Há inclusive um artigo do autor do livro intitulado Marie-Madeleine. De la pécheresse repentie à l’épouse de Jésus (Les Éditions du Cerf), Régis Burnet, que ensina Novo Testamento na universidade católica de Lovaina. A memória de Maria Madalena nunca esmorece, porque às mulheres Jesus reserva um lugar que não se encontra nos demais contextos religiosos. Por conseguinte, recuperando a memória desta personagem bíblica — põe em evidência o estudioso — o Papa Bergoglio volta a abrir o debate na sociedade e na Igreja: o gesto do Pontífice parece uma maneira de reconhecer o lugar, extraordinário para aquela época, que as mulheres ocupavam ao lado de Jesus, «mas sobretudo um apelo a um seu maior reconhecimento no seio da Igreja de hoje». A liderança de Maria Madalena — escreve a teóloga Elizabeth Johnson, religiosa da congregação das Sisters of Joseph e docente de teologia na Fordham University of New York — desafia a Igreja inteira a converter-se à participação das mulheres, como discípulas, a um nível de igualdade no século XXI. A pesquisa bíblica a partir de uma perspetiva feminina torna claro que inclusive a literatura bíblica nasceu num contexto patriarcal. Portanto, os autores antigos prestavam atenção aos homens, sem ter em conta figuras então consideradas de menor importância como as mulheres ou escravos de sexo masculino. Por conseguinte, se as mulheres são citadas num determinado texto é provável — na opinião da estudiosa — que sejam importantes, a tal ponto que a história não poderia ser narrada se elas fossem ignoradas; em síntese, qualquer mulher mencionada nos livros da Bíblia deve ser con- siderada como a ponta de um iceberg. Estes e outros instrumentos interpretativos fazem com que Maria Madalena, chamada «apóstola dos apóstolos», assuma finalmente o seu lugar legítimo na história como discípula amada de Jesus, e protagonista de relevo na Igreja primitiva. Seguem-se ainda artigos assinados por Wilma Steagall De Tommaso, do Museu de Arte Sacra de São Paulo, por Salma Ferraz, professora na Universidade Federal de Santa Catarina, por Chris Schenk, religiosa das Irmãs de São José, diretora da Future Church, organização promotora do culto de santa Maria Madalena como primeira testemunha da Ressurreição, por Katherine L. Jansen, professora em Washington, coautora de The Making of the Magdalen: Preaching and Popular Devotion in the Later Middle Ages, por Thomas Stegman, docente de Novo Testamento no Boston College, e por Elisabeth Schüssler Fiorenza, teóloga feminista e biblista. Mas também não faltam autores italianos: Gianfranco Ravasi, Antonietta Potente, Lucetta Scaraffia, Lilia Sebastiani e Carlo Molari. «Noli me tangere», ícone cretense (séc. XVI) No Studium para a vida consagrada Formação no centro Foi delineado o programa do novo ano académico da Escola interdisciplinar para a formação ao magistério eclesial e à normativa canónica sobre a vida consagrada (Studium), que terá início em meados de outubro na Pontifícia universidade Urbaniana. É uma iniciativa promovida pela Congregação para os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica destinada a confirmar a importância da formação contínua. Entre as novidades do ano académico de 2016-2017, os cursos lecionados pela subsecretária do dicastério, Ir. Nicla Spezzati, sobre a vida consagrada nos processos socioculturais, e por Simona Paolini, sobre a teologia da vida consagrada à luz dos princípios hermenêuticos e examinados a partir do Vaticano II. Sem esquecer os cursos de Dario Vitali sobre os prolegómenos de eclesiologia, de Giorgio Zevini sobre os fundamentos bíblicos da vida consagrada no magistério eclesial, de Xabier Larrañaga Oyarzabal sobre o magistério pontifício e eclesial relativo à vida consagrada e de Giovanni Grosso sobre a vida consagrada na história da Igreja. Na secção prática, distinguem-se os cursos de Marcella Farina e Orlando Manzo sobre a mulher consagrada na Igreja e de Amedeo Cencini e Sandro Perrone sobre os planos institucionais (Ratio institutionis et formationis, ordo studiorum) nos institutos de vida consagrada e nas sociedades de vida apostólica. O Studium propõe, in Ecclesia et cum Ecclesia, um percurso formativo de alta qualidade para acompanhar a vida consagrada nas sociedades atuais. A sua metodologia interdisciplinar une pesquisa e prática e relaciona a Traditio da Igreja aos impulsos das instâncias culturais contemporâneas, ajudando a viver, segundo o Evangelho, a eclesiologia de comunhão. É acreditado junto das universidades e dos ateneus pontifícios com sede em Roma e concede o diploma em especialista em magistério eclesial e normativa canónica da vida consagrada. Prevê lições, exercícios, exames em cada disciplina e elaboração de uma tese final em matéria didática e prática. O Studium destina-se aos responsáveis de serviços atinentes ao governo dos institutos de vida consagrada, como secretários e secretárias-gerais e provinciais, procuradores e procuradoras, superiores e superioras, aos vigários episcopais e aos delegados para a vida consagrada, aos responsáveis pela formação e programação formativa nos seminários diocesanos e nos colégios internacionais. Está aberto também aos presbíteros que desempenham um papel de animação e de acompanhamento da vida consagrada, aos consagrados que desejam aprimorar a própria formaçãopermanente e aos leigos. Tem uma estrutura bienal, articulada em duas secções complementares: interdisciplinar e prática. As lições semanais realizam-se às quartas-feiras enquanto a secção prática tem lugar na primeira e terceira terças-feiras do mês. As lições apresentam as diversas formas de vida consagrada, analisadas sob o ponto de vista histórico, teológico e jurídico. Para obter informações e fazer as inscrições pode-se contactar a secretaria telefonicamente (06.69892509) ou através do correio eletrónico ([email protected]). L’OSSERVATORE ROMANO número 30, quinta-feira 28 de julho de 2016 página 6/7 São Tomás de Aquino (1600, esmalte, Toulouse) Da reflexão de Karol Wojtyła à exortação «Amoris laetitia» Fidelidade criativa RODRIGO GUERRA LÓPEZ* eve lugar em Cracóvia a 16 e 17 de dezembro de 1970 um importante debate. O arcebispo Karol Wojtyła tinha escrito um denso livro que, entre outras coisas, procurava mostrar a antropologia que está na base da Gaudium et spes, a constituição pastoral do concílio Vaticano II. O livro intitulava-se Pessoa e ato (1969) e para debater este intenso esforço especulativo foi convidado um numeroso grupo de filósofos. É muito interessante examinar os diversos contributos daquele encontro publicados pouco tempo depois por An- T drzej Szostek. Por um lado havia importantes consensos ao novo livro; de facto, todos os que tinham estudado a fenomenologia e o personalismo viram em Wojtyła o início de um novo percurso: o reconhecimento objetivo da subjetividade não é subjetivismo. Aliás, a ação humana é um momento privilegiado para aprender a verdade sobre a pessoa. Esta intuição permitia que o arcebispo polaco adiantasse uma hipótese acerca de como superar a unilateralidade da teoria marxista acerca da primazia da prática revolucionária através de uma renovada antropologia da ação e da comunhão. Mas por outro lado havia quantos consideravam com reserva e/ou com evidente desconfiança a refle- ça com Deus tendo como base as faculxão de Wojtyła. Alguns deles eram im- dades superiores do ser humano, como portantes professores de orientação to- a inteligência, a vontade livre e assim mista que não estavam habituados a por diante. A lista dos exemplos poderia ser voltar às mesmas coisas, mas antes a repetir um certo cânone de ortodoxia fi- imensa, tão longa como a doutrina crislosófica. Em vez de afirmar a verdade tã. A realidade natural e a do depósito como adequação da inteligência à reali- da fé possuem sem dúvida alguma uma dade, pareciam afirmar implicitamente estrutura definida e objetiva. Contudo, que a verdade é a adequação da inteligência a são Tomás. Para eles tuUma hermenêutica da rutura, do parecia insatisfatório em Wojtyła: o método, a como a que alguns estão a procurar introduzir linguagem, a proposta. com as críticas ao Papa Francisco Quis recordar este episódio para mostrar que na nossa opinião, incorre nalguns erros não é estranho encontrar Não existe de facto uma fratura no magistério resistências no momento em que o pensamento papal dos últimos decénios cristão dá um novo passo em frente. Estas resistências, em geral, aduzem como seu motivo a falta de fi- a sua compreensão admite desenvolvidelidade à herança recebida, o mentos orgânicos, que exploram novas uso de uma linguagem renovada virtualidades e que pedem para ser reque se considera ambígua e os conhecidas nalguns períodos particulamuitos riscos que podem derivar res. Por conseguinte, a leitura atenta adotando uma ou outra iniciativa dos sinais dos tempos não é alheia ao a partir do novo ponto de vista esforço de reflexão necessário quando fazemos uma reflexão filosófica, teolóescolhido. Teríamos podido não recordar o gica ou pastoral. Tenho a impressão de que isto faz caso da obra Pessoa e ato de Karol Wojtyła e recorrer a parte de quanto acontece quando o outros exemplos. Antes de Pontífice nos oferece a exortação apostudo, a controvérsia so- tólica Amoris laetitia. O Papa Francisco bre a noção de liberda- não muda a doutrina essencial da Igrede religiosa, na qual ja. Não o faz porque sabe bem que o uma aparente oposi- depósito da fé não é uma invenção arção entre a encícli- bitrária que se pode transformar com ca Libertas de ideias mais ou menos felizes. Leão XIII e a deO depósito da fé é um dom que se claração Dignita- deve preservar. Mas esta preservação tis humanae do não consiste em colocar o mesmo deVaticano II teria pósito da fé num congelador de maneilevado alguns a ra a hiberná-lo e fazer com que o seu classificar como he- metabolismo se interrompa. Ao contrárético o próprio con- rio, é o dinamismo de um Deus vivo cílio. Ou a introdução do que entra e se compromete com a nossa significado unitivo e pro- história a fim de a redimir a ter que se criativo do ato sexual na abrir todos os dias através da atividade Humanae vitae no lugar pastoral da Igreja e, em particular, do da teoria tomista de ministério do sucessor de Pedro. O um fim primário e Pontífice trairia a sua vocação e o seu dois secundários. serviço se sufocasse a presença real de Ou ainda a novi- Deus na história, lá onde ela se encondade do reconhe- tra: na sagrada Escritura, nos sacramencimento que o tos e no povo, em particular em quanser humano é tos sofrem exclusão e dor. Por este motivo algumas das críticas imagem e semelhança de Deus que o Papa recebeu ultimamente nos a partir da «uni- parecem infundadas e injustas. Amoris dualidade rela- laetitia é um verdadeiro ato de magistécional» entre ho- rio pontifício. É muito imprudente, mem e mulher além de ser teologicamente inexato, inrealizada por são sinuar que esta exortação apostólica é João Paulo II, uma espécie de opinião pessoal, quase que completa e privada. O Pontífice exerce o seu muamplia a tradi- nus docendi de muitas maneiras: pensecional compre- mos nas suas mensagens, discursos, hoensão da ima- milias e, sem dúvida, nas suas encícligem e semelhan- cas ou exortações apostólicas pós-sino- dais. Depois, estas últimas nascem pre- ficadas situações cisamente de um amplo exercício de si- «irregulares», nodalidade, e este facto não deve ser eventualmente videscuidado. vidas por alguns Além disso, Amoris laetitia não impli- casais, com o peca rutura nem descontinuidade com o cado mortal, feEvangelho, com as exigências da lei na- chando deste motural ou com o magistério pontifício do a porta ao precedente. Em particular, o tão co- acesso à eucarismentado oitavo capítulo da exortação tia. Afirmar de apostólica é um bom caso que exempli- maneira tácita ou que fica aquilo que Bento XVI ensinou de explícita maneira geral no seu discurso à Cúria qualquer situação romana a 22 de dezembro de 2005. «irregular» é por Mutatis mutandis, permitimo-nos dizer definição pecado que a doutrina sobre a natureza do sa- mortal e priva cramento do matrimónio, da eucaristia quantos a vivem da e sobre as condições para que exista graça santificadora, realmente um pecado mortal não mu- parece-nos um erro dou no magistério pontifício mais re- grave que não está em cente. Mas é necessário que esta doutri- conformidade com o na verdadeira e imutável, à qual se de- Evangelho, com a lei nave prestar obediência, seja aprofundada tural e com o ensinamene exposta com base nas exigências da to autêntico de são Tomás mudança da época que estamos a viver. de Aquino. Amoris laetitia é isto: um desenvolviO Papa Francisco publicou uma mento orgânico com fidelidade criativa. exortação que não resolve nem dissolve Uma hermenêutica da rutura, como a estrutura da vida ética da pessoa nua que alguns estão a procurar introdu- ma acentuação unilateral de certos abzir com as críticas ao Papa Francisco, solutos morais, nem sequer dilui a dina nossa opinião, incorre nalguns erros, mensão universal da norma no meracomo os seguintes. mente factual, concreto e contextual. Antes de tudo, há uma interpretação Sob este ponto de vista, o Pontífice escarente de são Tomás de Aquino. O Dou- creveu uma exortação profundamente tor Angélico soube compreender e tomista que recupera de maneira sadia amar com paixão o singular. Todas as a participação e a analogia e permite categorias universais que utiliza, incluí- encontrar um caminho para responder, das as da ordem moral, diminuem na além das teorias, ao drama das pessoas sua necessidade e aumentam na sua reais nas suas situações concretas. contingência à medida que se realizam Há depois uma interpretação carente de são João Paulo II. O Papa Wojtyła, em realidades cada vez mais concretas. A compreensão carente de alguns tomistas precisamente sobre este ponto Os críticos do Papa Francisco pode tornar-se mais visível de diversas maneiras. mostram uma interpretação carente Permito-me frisar só de são Tomás de Aquino uma: a tendência mais ou menos difundida a interMas também de são João Paulo II pretar a razão como uma e de Bento XVI faculdade que diz respeito ao universal, descuidando as contribuições importantes do Aquinate para o reconhecimento da ratio particularis e o seu papel no conhecimento teórico e prático. O caminho do conhecimento começa no singular, passa pelo universal, mas volta de novo ao concreto. Descuidar metodologicamente este ingrediente elementar produziu uma espécie de ahistoricidade de grande parte da reflexão tomista contemporânea e uma dificuldade em compreender o nível no qual se encontram a preocupação pastoral da Igreja e muitíssimos comentários, indicações e avaliações que o Papa Francisco desenvolve fundadamente na sua exortação apostólica. Como exemplo, pense-se em como alguns identificam, de maneira mais ou menos unívoca, as complexas e diversi- primeiro como filósofo e depois como Pontífice, conseguiu abrir uma porta importante no processo de refundação da antropologia e da ética. Uma consideração puramente objetivista da pessoa humana não é suficiente para apreciar aquilo que possui de irredutível. É necessário olhar com atenção para a experiência humana fundamental a fim de encontrar no seu interior o mundo amplo e rico da subjetividade e da consciência. No interior deste mundo, a lei natural, para João Paulo II, não aparece como uma dedução a partir de algumas inclinações, mas é o seu fundamento normativo que se encontra na razão prática entendida como capacidade de reconhecer, pouco a pouco, a verdade acerca do bem. Encontra-se precisamente neste último terreno a gradualidade pastoral, ou seja, a paciência com a qual é preciso ouvir e compreender uma pessoa que não entendeu plenamente um determinado valor moral e/ou as suas exigências práticas. A gradualidade pastoral que acabamos de mencionar em Familiaris consortio adquire maior densidade quando se veem os conteúdos de toda a exortação Amoris laetitia. É claro que para interpretar corretamente esta gradualidade é necessário não só não a confundir como se fosse uma forma de gradualidade doutrinal mas também assimilar que o discernimento é necessário em cada caso concreto. Uma repetição puramente formal do magistério de João Paulo II que não dê espaço ao acompanhamento, ao discernimento e à eventual integração atraiçoa a índole pastoral de qualquer ato magisterial. Por fim, há uma interpretação carente de Bento XVI. Poderíamos dedicar muito espaço a este tema. Simplesmente observo que não é conforme com a verdade interpretar o Papa Ratzinger como uma espécie de justificação pontifícia para afirmar o rigorismo. Alguns gostariam de fazer parecer o bispo emérito de Roma como um defensor apaixonado de valores inamovíveis em contraste com o Pontífice. Não é assim. A realidade é muito mais complexa. O Papa Francisco está em continuidade com Bento XVI. Um dos exemplos mais comovedores para o mostrar é um trecho no qual Joseph Ratzinger reconhece claramente que até no âmbito de uma imperfeita adesão a Jesus Cristo é possível descobrir e cultivar um caminho de vida cristã. «Uma pessoa continua a ser cristã — escreveu Ratzinger em Fé e futuro (1971) — quando se esforça por prestar a sua adesão central, quando procura pro- nunciar o sim fundamental da confiança, mesmo se não sabe situar bem ou resolver muitos aspetos particulares. Haverá momentos na vida nos quais, na multíplice obscuridade da fé, nos deveríamos realmente concentrar no simples sim: creio em ti, Jesus de Nazaré, confio que em ti é mostrado o sentido divino pelo qual posso viver a minha vida seguro e tranquilo, com paciência e com coragem. Se este centro está presente, o ser humano está na fé, mesmo se muitos dos seus enunciados concretos lhe resultam obscuros e no momento impraticáveis. Porque a fé, no seu núcleo, não é, digamo-lo mais uma vez, um sistema de conhecimento, mas uma confiança. A fé cristã é «encontrar um tu que me ampara e que, não obstante a imperfeição e o carácter intrinsecamente incompleto de cada encontro humano, doa a promessa de um amor indestrutível que não só aspira à eternidade, mas que também a concede». Portanto, a nosso parecer, não existe uma rutura no magistério dos últimos Pontífices. O que temos diante de nós é uma fidelidade criativa que permite, em termos práticos, ver quanto é importante dar a primazia ao tempo e não ao espaço, como ensina o amado Papa Francisco. Só assim é possível viver a paciência com quantos são atingidos e feridos, só assim é possível acompanhar-nos reciprocamente sem nos escandalizarmos pelas nossas misérias e ao mesmo tempo descobrir que na Igreja, verdadeira presença de Jesus Cristo na história, existe um caminho pleno de ternura para a reconstrução da vida, para a cura de todas as nossas feridas, até das mais profundas. *Professor e pesquisador Centro de Investigação Social Avançada (Querétaro, México) L’OSSERVATORE ROMANO página 8 quinta-feira 28 de julho de 2016, número 30 Diálogo com o secretário da Congregação para os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica A formação é o futuro NICOLA GORI Mais de quarenta mil mulheres dedicadas à vida contemplativa são as destinatárias da nova constituição apostólica Vultum Dei quaerere do Papa Francisco. É um documento que chega a mais de cinquenta anos do precedente, Sponsa Christi de Pio XII. No novo texto são introduzidas algumas novidades, em especial sobre a formação, sobre a autonomia e sobre o papel das federações, incluindo a clausura, explicou o arcebispo José Rodríguez Carballo, secretário da Congregação para os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica, nesta entrevista ao nosso jornal. Quem são os destinatários da constituição apostólica? As monjas contemplativas ou inteiramente contemplativas, também chamadas claustrais, da Igreja latina. Segundo as últimas estatísticas, no total são 43.546 e vivem em cerca de 4.000 mosteiros. Deles, a Europa conta com a presença mais maciça, aproximadamente 2.000. E o resto do mundo, os outros 2.000. As quatro nações com mais mosteiros são: Espanha com 850, Itália com 523, França com 257 e Alemanha com 119. Neste momento os mosteiros estão organizados em 166 federações, 47 associações e 5 congregações. Algumas ordens como as redentoristas, ou partes de ordens como as carmelitas descalças da Polónia, não têm vínculo algum entre os mosteiros. Muitos mosteiros estão ligados à correspondente ordem masculina, outros estão sob a «vigilância» do ordinário do lugar. Este vínculo com a ordem masculina, que de resto é recomendada pela própria constituição apostólica, está a aumentar, tendo em consideração o mesmo carisma que ambos professam. Nisto há que ter presente a vontade dos fundadores. Em algumas ordens este vínculo, que comporta também conotações jurídicas, é questão de fidelidade. Qual é a atual tendência «demográfica» da vida monástica feminina? Dado que a presença dos mosteiros está na Europa e dois terços da população monástica feminina vivem na Espanha e na Itália, a demografia das monjas contemplativas ou inteiramente contemplativas segue o andamento geral das vocações no continente e nestes dois países, ou seja: tendência ao envelhecimento e à diminuição. Este trend parece evidente tendo presente o número de supressões de mosteiros e de novas aberturas. De 2003 a 2015 foram suprimidos 185 mosteiros e abertos 154. No total, o país onde mais mosteiros foram fechados é a Espanha: 95. Seguem-se a França com 22, a Itália com 19, a Grã-Bretanha com 11, os Estados Unidos com 8, a Bélgica com 7, o Canadá com 6, o México com 3, a Venezuela e a Irlanda com 2, Holanda, Alemanha, Portugal, Dinamarca, Peru, Uruguai, Chile, Brasil, Japão e Líbano com 1. Na América Latina foram abertos 62 mosteiros, na Ásia 35, na África 24, na Europa 23, na América do Norte 9 e na Oceânia 1. Quantas são as monjas contemplativas ou inteiramente contemplativas? Neste momento as monjas, segundo os dados de que dispomos, pertencem a 43 ordens. Por famílias carismáticas, a mais numerosa é a franciscana que conta 13.066 monjas, distribuídas nas seguintes ordens: clarissas irmãs pobres de Santa Clara, 7.201; clarissas capuchinhas, 2.127; clarissas urbanistas, 873; concepcionistas franciscanas, 1.584; coletinas, 563; terciárias regulares franciscanas, 690; terciárias franciscanas isabelinas, 28. A segunda família mais numerosa é a carmelita com 11.175 monjas: as carmelitas descalças com as constituições de 1990 são 1.739, as que têm as constituições de 1991 são 8.778 e as carmelitas de antiga observância 671. A seguir, entre as ordens com o maior número de monjas, estão as beneditinas com 6.627, as cistercienses com 2.622, as dominicanas com 2.614, as visitandinas com 1.851, as agostinianas com 1.192. Entre os grupos mais pequenos recordamos o das cartuxas: 32 e as batistas: 13. Há depois outras pequenas comunidades que contam todas juntas cerca de 60 membros. Quais são as principais novidades do documento? Há diferenças substanciais com a «Sponsa Christi» de Pio XII? Por um lado, a constituição retoma e reitera elementos que são desde sempre típicos da tradição monástica, já contidos na Sponsa Christi; por outro, responde a algumas instâncias das quais se fizeram voz os próprios mosteiros, sentidas como lacunas na legislação precedente, em particular no que se refere a três temas: formação, autonomia e papel das federações, clausura. No que diz respeito à formação, recomenda-se grande atenção ao discernimento, sem se deixar levar «pela tentação do número e da eficiência», e ao acompanhamento das vocações, pedindo um «acompanhamento personalizado das candidatas» e promovendo «percursos formativos adequados» (VDq, 15). Uma nova indi- cação, ligada ao particular momento sociocultural, é a de não recrutar candidatas de outros países só para garantir a sobrevivência do mosteiro (cf. art. 3 § 6). Outras duas recomendações referem-se primeiro ao cuidado pela formação inicial, à qual se deve reservar um amplo espaço de tempo (cf. art. 3 § 5). Sobre este aspeto certamente influiu o elevado número de abandonos da vida religiosa, que hoje atinge até as irmãs professas de vida contemplativa; e depois a formação das formadoras, para cuja dedicação as irmãs poderão participar também em cursos fora do mosteiro, contanto que estejam atentas a preservar um clima adequado e coerente com o carisma (art. 3 § 3). Outro elemento importante da nova constituição apostólica é o convite a promover a colaboração entre os mosteiros para garantir uma formação adequada a esta época, quer na formação permanente (cf. art. 3 § 2. 4), quer na inicial, promovendo casas comuns de formação (cf. art. 3 § 7). No que se refere ao equilíbrio delicado autonomia/federação, devemos à Sponsa chado (art. 8 § 1.2). Um tema que se refere à autonomia é a relação entre as ordens monásticas femininas e as ordens masculinas correspondentes, pedindo explicitamente que seja favorecida «a associação, também jurídica, dos mosteiros à ordem masculina correspondente» (art. 9 § 1). Terceiro tema importante tratado pela constituição é a clausura, que já tinha sido revisitada pela Sponsa Christi segundo as exigências do tempo. A exortação apostólica Vita consecrata de são João Paulo II (cf. n. 59) e a seguir a instrução Verbi sponsa (cf. nn. 9-13) já se expressaram ulteriormente sobre este tema, preparando a indicação que é dada na atual constituição. Esta distingue quatro tipos de clausura: a comum a todos os institutos, a papal, a constitucional e a monástica (cf. n. 30). A novidade é a possibilidade dada aos mosteiros de fazer o pedido à Santa Sé para abraçar uma forma de clausura diversa da vigente, depois de um discernimento atento e respeitando a própria tradição (cf. art. 10 § 1). A nova constituição insiste muito sobre a vida fraterna em comunidade, como elemento constitutivo da vida religiosa e da vida monástica em particular (cf. nn. 24-27) e indica como elementos próprios desta forma de vida também o trabalho (n. 32), o silêncio (n. 33), a ascese (n. 35). Além disso, aborda o tema dos meios de comunicação (n. 34) e do testemunho das monjas (cf. nn. 3637), dando na parte dispositiva indicações claras sobre todas estas temáticas. À luz destas considerações, não me parece totalmente correto falar de «diferenças substanciais» em relação à Sponsa Christi, mas antes da evolução dos temas e das normas que ela contém, por um lado, à escuta do caminho fecundo e importante que a Igreja percorreu à luz dos ensinamentos do concílio Vaticano II nos últimos decénios e, por outro, do rápido progresso e das mudanças socioculturais recentes, como o próprio Papa Francisco evidenciou na constituição. Christi a primeira legislação em relação à finalidade e ao papel das federações. Mas enquanto inicialmente a adesão a uma federação era muito recomendada mas não imposta, hoje pede-se a todos os mosteiros que façam parte de uma federação, exceto em casos particulares em relação aos quais o juízo é reservado à Congregação para os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica (cf. art. 9 § 1). O receio do isolamento dos mosteiros é grande porque se viram os efeitos deletérios que isto comporta. E ainda, dado que até agora o critério de formação das federações foi essencialmente geográfico, a nova constituição prevê que elas se possam configurar também com base em afinidades de espírito e de tradições, segundo modalidades que a Congregação indicar (cf. art. 9 § 2). Além disso, no respeitante à autonomia, afirma-se que «à autonomia jurídica deve corresponder uma real autonomia de via», indicando critérios a fim de que ela seja possível. Caso contrário, dão-se normas para que o mosteiro se torne filial de outro mosteiro ou seja fe- Quais são os principais desafios com que se depara neste momento a vida monástica feminina? O primeiro desafio que vejo na vida monástica feminina neste momento é comum à vida consagrada em geral: a formação, sobretudo a permanente, verdadeiro húmus da formação inicial. Sinto-me muito feliz por a nova constituição apostólica insistir sobre isto. Sem formação permanente não se pode falar de formação inicial. Dado que uma das finalidades principais da formação é transmitir a beleza do seguimento de Cristo a um determinado carisma, isto só é possível se a formação permanente for levada a sério. Sempre no âmbito da formação, um desafio importante é o discernimento vocacional das candidatas à vida monástica. O critério para acolher novas vocações não pode ser a necessidade de um número suficiente para manter o mosteiro aberto. Deve ser evitada a tentação do número e da eficiência. O que conta é a qualidade evangélica de vida e em vista desta devem-se aceitar as candidatas. número 30, quinta-feira 28 de julho de 2016 Atenção depois ao acompanhamento das novas vocações. Nem todas as comunidades são idóneas para acompanhar. Por isso, a nova constituição encoraja a ereção de casas de formação federais ou interfederais. Não se pode sacrificar a qualidade da formação em vista de ter mão de obra disponível. Outro desafio é harmonizar a justa autonomia com a interdependência entre os mosteiros. Penso que será necessário dar mais autoridade à presidente de uma federação com o seu conselho, de maneira a evitar o isolamento. Por fim, entre muitos outros desafios que podem ser indicados, vejo que é urgente atuar uma reestruturação das presenças monásticas. Pelo menos na Europa, não se pode continuar com tantas presenças. São insustentáveis. Por vezes para as manter sacrifica-se a vida monástica com todas as suas exigências (liturgia, oração pessoal, vida fraterna) ou acolhem-se vocações estrangeiras sem critérios adequados, dando a impressão de que são chamadas para servir de «assistentes». Se assim fosse, isto seria «tráfico de noviças», ou «inseminação artificial», como disse o Papa Francisco. O que seria simplesmente inaceitável, evangélica e carismaticamente falando. Isto não pode ser permitido na Igreja. Voltando à constituição apostólica, foi acolhida a voz das monjas em fase de redação? Certamente. Há mais de um ano a nossa Congregação para os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica predispôs um questionário enviado a todos os mosteiros do mundo sobre a formação, a autonomia e a clausura. Houve muitíssimas respostas. Destas respostas foram feitas diversas sínteses, que depois serviram para a redação do texto atual que, como se sabe, trata fundamentalmente os mesmos temas do questionário: formação, autonomia e clausura. Pelo que conheço, no esboço do texto colaboraram diversas contemplativas mesmo se, como é lógico, o texto tem claramente a «marca» do Papa Francisco, como se pode constatar de uma simples leitura. Partindo de quanto eu sei, posso afirmar que o texto da constituição reflete plenamente o parecer das monjas que responderam ao questionário. Isto não significa que satisfaz todas. Como se pode compreender, as respostas eram muito diversas, acima de tudo sobre o tema da autonomia e da clausura. Havia quem queria mudar tudo e quem não queria que se tocasse uma só vírgula dos documentos prece- L’OSSERVATORE ROMANO dentes. O texto da constituição é equilibrado e oferece muitas possibilidades para que cada mosteiro possa encontrar com responsabilidade e discernimento o seu caminho, por exemplo sobre o tema da clausura. Faz-se referência com frequência ao projeto de vida de cada comunidade. Isto é sinal também da confiança que a Igreja tem nas nossas irmãs contemplativas. Existem sinais exteriores da clausura. No documento são revistos? Como já disse nas respostas a algumas perguntas precedentes, a constituição fala certamente da clausura. Exige-se uma separação do mundo, mas não entra nos pormenores de como deve ser garantida. Por outro lado já agora há uma grande variedade no respeitante aos sinais da clausura, aliás, há muita diversidade no próprio modo de viver a clausura, dependendo da tradição carismática de cada mosteiro, da própria cultura e também de outros fatores que influem sobre a vida de cada mosteiro. Em relação aos sinais, há mosteiros que usam as grades, outros que usam uma corda ou um simples muro que, garantindo a clausura, permitem uma comunicação mais fácil. Contudo, dado que a constituição remete para uma instrução por parte da Congregação para os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica que será elaborada a seguir, talvez este documento seja mais explícito. O importante é que cada uma viva a clausura do coração e que cada mosteiro, com responsabilidade e em clima de profundo discernimento, tendo em conta a tradição genuína do próprio carisma, possa optar por uma determinada forma de clausura e a respeite. Que não se brinque. Num mosteiro que escolhe viver a clausura papal as monjas vivam-na, e não «carreguem a grade às costas», como disse numa ocasião o Papa Francisco. Também em relação à clausura a chave é a responsabilidade e a maturidade: quando se deve sair que se saia, quando não se deve sair permaneça-se dentro. Por outro lado, as irmãs contemplativas ou inteiramente contemplativas têm diante de si um desafio importante que diz respeito aos meios de comunicação. Como usá-los? Quando? Quais usar e quais evitar? A constituição fala deste desafio. Competirá à instrução do dicastério dar indicações ulteriores e mais claras. Às vezes não há muita participação das comunidades contemplativas na vida das Igrejas locais. Procurou-se envolvê-las mais? Para a vida contemplativa ou inteiramente contemplativa é válido quanto se afirma acerca da vida consagrada em geral: nasce na Igreja, vive-se na Igreja, cresce na Igreja. A comunhão e a inserção na Igreja é um elemento essencial também por este modo de sequela Christi. Mas a maneira de inserir e de manifestar a comunhão é diversa de outras formas de vida consagrada. Reside também aqui a beleza da vida consagrada. Na vida da Igreja nem todos somos chamados a fazer o mesmo ou a fazê-lo do mesmo modo. Por outro lado, recorde-se que a Igreja não se edifica apenas com aquilo que se faz, mas sobretudo com aquilo que se é. A importância da vida consagrada, e menos ainda a importância da vida contemplativa, não se pode julgar apenas pela sua funcionalidade. Esta é uma grande tentação na nossa sociedade, que procura apenas eficiência e resultados visíveis. E isto é um grande erro que está a levar a consequências não indiferentes, quer na Igreja quer na vida consagrada. As monjas contemplativas ou inteiramente contemplativas colaboram com a Igreja particular e com o mundo com a sua oração de intercessão, que na constituição é bem evidenciada (cf. nn. 16-18.36). A oração é plenamente missionária. Não se deve esquecer que a padroeira das missões é uma contemplativa, santa Teresinha do Menino Jesus, a qual viveu grande parte da sua vida em clausura. Clara de Assis dá às suas irmãs como missão apoiar com as suas orações os membros débeis da Igreja, como é recordado pela mesma Constituição. Depois, não se deve esquecer que com o próprio trabalho, realizado com devoção e fidelidade, elas partilham o destino dos pobres da terra fazendo-se instrumento de evangelização na Igreja e no mundo (cf. n. 32), e com o seu testemunho de vida contemplativa são um «necessário complemento daquela de quantos, contemplativos no coração do mundo, dão testemunho do Evangelho permanecendo imersos nas realidades e na construção da cidade terrena» (n. 36). Que papel desempenharão os bispos e os superiores dos institutos religiosos na vida dos mosteiros? Tanto uns como outros continuarão a desempenhar o papel de ordinários dos mosteiros, com as mesmas competências que lhes foram atribuídas pela normativa particular e pelo Código de direito canónico, e segundo os cânones 615, 625 § 2, 628 § 2, 1º, 637, 638 § 4, 688 § 2, 699 § 2. Deve-se recordar contudo que nem os bispos nem os superiores dos institutos religiosos são os superiores dos mosteiros. A abadessa ou a priora é sempre a superiora maior, analogamente a um superior provincial de qualquer outro instituto de vida consagrada (cf. cân. 620). Os bispos e os superiores dos institutos página 9 religiosos — e com mais razão os vigários/delegados ou os assistentes religiosos — não devem por conseguinte interferir na vida ordinária nem no governo dos mosteiros. Tais intervenções de bispos ou de superiores de institutos religiosos, se não forem explicitamente estabelecidas ou permitidas pela normativa particular e/ou universal da Igreja, devem ser consideradas impróprias e contudo ilegítimas. O superior hierárquico da abadessa é unicamente a Sé Apostólica, não outras autoridades da Igreja, não obstante a normativa lhes atribua competência sobre os mosteiros e sobre cada uma das religiosas que a eles pertencem. Em consideração da minha experiência no dicastério, posso dizer que surgem muitos problemas devido às interferências impróprias na vida interna dos mosteiros, por parte quer de alguns bispos quer de alguns superiores de institutos religiosos ou assistentes. Sobretudo nos casos de supressão de um mosteiro, não são raros os interesses e as finalidades económicas pessoais por parte de muitos, sem excluir os eclesiásticos. Contudo, deve ser considerado que as monjas não são «menores» ou contudo pessoas não totalmente competentes, que precisam de ter alguém ao seu lado, para ser apoiadas, aconselhadas e contudo para não adotar escolhas erradas. São também elas pessoas adultas que devem gerir com autonomia e responsabilidade a sua vida. Diria que os bispos e os superiores maiores dos institutos devem ater-se unicamente às competências e ao papel que lhes é atribuído pela normativa da Igreja. Também sob este aspeto, a futura instrução que o dicastério está para publicar, a fim de pôr em prática a constituição apostólica (cf. art. 14 § 2), conterá esclarecimentos a este propósito, a fim de evitar intervenções com conotações mais ou menos evidentes de um verdadeiro controle — ou até de autoritarismo antievangélico — acerca dos mosteiros. O que pediria a uma monja contemplativa ou inteiramente contemplativa? Respondendo com palavras da nova constituição: «Que as vossas comunidades ou fraternidades sejam verdadeiras escolas de contemplação e oração. Não cesseis de interceder constantemente pela humanidade, apresentando ao Senhor os seus temores e esperanças, as suas alegrias e sofrimentos. Não vos priveis desta vossa participação na construção de um mundo mais humano e por conseguinte também mais evangélico. Unidas a Deus, ouvi o brado dos vossos irmãos e irmãs (cf. Êx 3, 7: Tg 5, 4) que são vítimas da «cultura do descarte», ou que simplesmente precisam da luz do Evangelho. Exercitai-vos na arte de ouvir, “que é mais do que sentir”, e praticai a “espiritualidade da hospitalidade”, acolhendo no vosso coração e levando na vossa oração tudo o que diz respeito ao homem criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26). Obrigado pelo vosso grande serviço à Igreja, ao mundo e a toda a vida consagrada». L’OSSERVATORE ROMANO página 10 quinta-feira 28 de julho de 2016, número 30 Apresentação da constituição apostólica sobre a vida contemplativa feminina Uma oração sem confins JOSÉ RODRÍGUEZ CARBALLO Entre os muitos frutos de graça que o Ano da vida consagrada, que se concluiu há pouco tempo, deu à vida da Igreja, devemos destacar a nova constituição apostólica que o Papa Francisco destinou a quantos professam a vida contemplativa ou integralmente contemplativa. Esta «porção eleita do rebanho de Cristo», como são Cipriano gostava de definir, circundada desde sempre por particulares cuidado e atenção por parte da Igreja, da qual constitui o coração pulsante de fé e de amor pelo Senhor e por toda a humanidade, nas últimas décadas viu-se negligenciada a nível legislativo, a ponto que usava ainda a regulamentação da constituição apostólica Sponsa Christi, que remonta a 1950, por conseguinte ao Pontificado de Pio XII: portanto, a constituição é ainda mais preciosa porque vem preencher uma lacuna dos anos pós-conciliares, da qual se começava a sentir deveras as consequências. Deve-se a isto a solicitude do Papa Francisco, pastor atento à vida do seu rebanho, e a decisão de doar um novo documento a quantos na Igreja «homens e mulheres, chamados por Deus e apaixonados por Ele, vivem a sua existência totalmente orientados para a busca do seu Rosto, desejosos de encontrar e contemplar Deus no coração do mundo» (Vultum Dei quaerere = VDq 2). O seu título é Vultum Dei quaerere, significando o que mais especificamente caracteriza esta forma de consagração especial: se de facto «a busca do rosto de Deus atravessa a história da humanidade desde sempre chamada a um diálogo de amor com o Criador» (número 1), é também verdade que os contemplativos cumprem a sua especial missão na Igreja, como evidencia o documento repetidamente nas páginas iniciais. «Sois faróis, para os próximos e, sobretudo, para os distantes. Sois chamas que acompanham o caminho dos homens e das mulheres na noite escura do tempo. Sois sentinelas da manhã que anunciam o sol que surge» (número 6): foi a exortação inicial do Papa, frisando a estima que nutre por esta forma de particular consagração, chamada a iluminar misteriosamente a humanidade inteira através do silêncio e do recolhimento do claustro. Assim o Papa ofereceu indicações exatas relativas aos vários elementos essenciais para uma vida de contemplação: elementos por si só fundamentais para cada vida consagrada mas declinados pelo Papa com um acento particular, considerando justamente uma vida dedicada à contemplação como tarefa e missão fundamentais. Não só. Se é verdade que a vida contemplativa não é atributo só das mulheres, também é verdade que foi e ainda é «em grande parte declinada no feminino» (número 5): portanto, ao delinear os elementos essenciais não faltam referências explícitas às contemplativas, às quais é entregue o ícone de Maria como summa contemplatrix. Não é por acaso que o primeiro elemento a ser evidenciado é a formação, nos seus dois momentos — permanente e inicial — já há alguns anos objeto de atenção particular por parte do Magistério. A este propósito o Pontífice, enquanto por um lado recordou que o lugar frequente de formação para uma comunidade contemplativa deve ser o mosteiro, por outro exortou a colaboração entre os mosteiros, através de várias modalidades: intercâmbio de material, uso prudente dos meios digitais, casas comuns de formação inicial, disponibilidade dada por religiosas preparadas para ajudar mosteiros com menos recursos. É importante que a fantasia da caridade contribuam para estreitar vínculos de ajuda recíproca, sempre salvando as normas que regulam uma vida contemplativa (números 13-14). No documento não falta uma recomendação, fruto de constante preocupação do Papa: «se evite absolutamente recrutar candidatas à vida contemplativa de outros países, só com a finalidade de manter a sobrevivência do mosteiro» (número 15). Amplo espaço — e não poderia ser diferente — foi dedicado à oração como elemento essencial. Se é um desejo do fundo do coração do Papa Francisco construir uma «Igreja em saída» (cf. Eg 20-24), isto vale também para as pessoas chamadas a dedicar a própria existência dentro das paredes de um claustro: a atenção do coração, na sua solicitude materna, deve dilatar continuamente os confins da oração, para que não só haja um impulso para o alto, a contemplar o Rosto santo de Deus, mas para que desça na profundidade, a fim de se encontrar com a dor do homem mais sozinho e marginalizado. Depois, para nutrir a vida de oração o Pontífice recomendou a centralidade da Palavra de Deus, «primeira fonte de toda a espiritualidade» (Vv 39), mantendo vivo o hábito já muito difundido nos mosteiros da lectio divina. A tal propósito espera-se que os mosteiros se tornem verdadeiras escolas de oração, onde os irmãos possam formar-se, encontrar Deus e entabular um diálogo com Ele, que permeie toda a vida (VDq 17.21). Serão também nutrimento da vida de oração a celebração da Eucaristia e do sacramento da reconciliação, como vias privilegiadas para encontrar o Senhor vivo e presente e fazer experiência da sua misericórdia, para Assinado o Avenant sobre Trinità dei Monti Entre a Santa Sé e a França No dia 25 de julho, no Palácio Apostólico do Vaticano, foi assinado entre a Santa Sé e a República francesa, representadas respetivamente por D. Paul Richard Gallagher, Secretário para as Relações com os Estados e por Philippe Zeller, Embaixador da França junto da Santa Sé, um «Avenant» às Convenções diplomáticas de 14 de maio e de 8 de setembro de 1828 e os «Avenants» de 4 de maio de 1974, de 21 de janeiro de 1999 e de 12 de julho de 2005, relativos à igreja e ao covento de «Trinità dei Monti». Um claro exemplo «do excelente espírito de entendimento bilateral que existe entre Santa Sé e França», disse o arcebispo Gallagher. De facto, segundo Philippe Zeller, trata-se do «novo testemunho» de uma «relação antiga e forte» a favor de «um lugar único para a difusão da presença espiritual e cultural francesa na Roma pontifícia». Recordando o caráter francês de «Trinità dei Monti», o presente Acordo internacional exprime reconhecimento pela obra ali realizada pela Ordem dos Mínimos entre os séculos XV e XVIII, pela Sociedade do Sa- grado Coração de Jesus a partir do século XIX até 2006 e pela Fraternité monastique des Frères de Jérusalem e pela Fraternité monastique des Soeurs de Jérusalem de 2006 até hoje. Dada a impossibilidade das mencionadas Confrarias de continuar tal missão, a igreja e o convento da «Trinitá dei Monti» serão confiados a partir de 1 de setembro à Comunauté de l’Emmanuel, associação pública internacional de fiéis de direito pontifício, fundada na França em 1972. se tornar instrumentos de paz e perdão em toda a Igreja e na humanidade inteira (números 22-23). Do perdão recebido de Deus e doado aos irmãos o Pontífice passou naturalmente a falar sobre a vida fraterna, como elemento essencial irrenunciável para uma vida de contemplação, porque «quem não ama o próprio irmão que vê, não pode amar Deus que não vê» (1 Jo 4, 20). O Pontífice recomendou que se construam comunidades que sejam reflexo límpido e legível do amor trinitário por parte dos irmãos e irmãs. Em seguida, o Papa Francisco tratou dois elementos que atualmente para todos os mosteiros de vida contemplativa são fonte de discernimento e reflexão: a autonomia, à qual está ligado o papel das federações, e a clausura. A propósito das autonomias, foram evidenciados dois aspetos: a atenção para que a autonomia não se torne sinónimo de isolamento e auto-referencialidade; e a verificação de que a autonomia jurídica corresponda a uma real autonomia de vida, com critérios claramente delineados. Dado que o tema é delicado e debatido, já foram traçadas algumas linhas de comportamento que os sujeitos interessados devem seguir no caso em que já não haja autonomia de vida, mesmo se depois se recorra à Congregação para os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica para a última decisão (números 28-29). Todos os mosteiros, exceto casos particulares a juízo da Santa Sé, deverão ser federados; é interessante a possibilidade contemplada de que as federações sejam configuradas já não só segundo um critério geográfico, mas «de afinidade de espírito e de tradições». Deseja-se também a consociação jurídica dos mosteiros com a ordem masculina correspondente, assim como a formação de confederações e de comissões internacionais das diversas ordens (número 30). Em relação à clausura, foram redefinidos os três tipos de clausura já contemplados num certo modo pela Vita consacrata 59, isto é, clausura papal, constitucional e monástica, permitindo a cada mosteiro um discernimento atento, que respeite o direito próprio, a fim de pedir eventualmente à Santa Sé para poder abraçar uma forma de clausura diversa daquela vigente. número 30, quinta-feira 28 de julho de 2016 L’OSSERVATORE ROMANO página 11 Em diálogo com o subsecretário do Pontifício Conselho Cor unum A caridade do Papa para com os indígenas e camponeses MAURIZIO FONTANA Oitenta microprojetos de apoio às populações indígenas, afro-americanas e camponesas na América Latina acabaram de ser aprovados pela fundação Populorum progressio que se reuniu recentemente em Bogotá, informou monsenhor Segundo Tejado Muñoz, subsecretário do Pontifício Conselho Cor unum que nesta entrevista a L’Osservatore Romano falou sobre a recente viagem realizada à Colômbia e ao Equador para levar a caridade do Papa. Quais intervenções foram decididas na capital colombiana? Trata-se de pequenos projetos, muito diferentes entre si por tipologia, idealizados para ir ao encontro das necessidades das pequenas comunidades. Por conseguinte, não são empreendimentos faraónicos, mas um apoio concreto para a vida diária das pessoas nas áreas rurais ou nas periferias das grandes metrópoles da América Latina. Por exemplo, a Fundação Populorum progressio ajuda a dar início a atividades de pecuária, agricultura ou artesanato. Os financiamentos que não superam 25.000 dólares americanos para cada projeto às vezes servem para comprar ani- tão previstas no Cone Sul (Argentina, Uruguai e Paraguai) e na América Central, sobretudo no Caribe: muitos no Haiti. Como é nosso costume, serão levados em frente pela população local através da coordenação dos bispos das respetivas dioceses e da ajuda dos missionários que depois farão um relatório do trabalho realizado e dos resultados obtidos. Poucos dias antes da reunião em Bogotá o senhor esteve também no Equador para planificar as intervenções de Cor unum depois do devastador tremor de terra de abril passado. Habitualmente o nosso dicastério, em casos de calamidades como o sismo no Haiti, o furacão nas Filipinas ou o tsunami no Japão, manda em nome do Papa uma primeira ajuda para enfrentar a emergência. Depois de alguns meses, com base na situação do país, realizamos uma visita para identificar um projeto de reconstrução a apoiar através das ofertas recebidas. No Haiti, por exemplo, construímos uma escola; nas Filipinas, o centro para idosos e órfãos que depois foi benzido pelo Papa Francisco durante a visita em janeiro de 2015. Trata-se de um sinal de presença e proximidade do Pontífice. Mas tais projetos não esgotam a intervenção da Igreja em cada país: obviamente é muito mais ampla, envolvendo as Cáritas e outras organizações. Levamos um dom do Papa que deseja estar presente também na fase de reconstrução, depois da grande tragédia. Geralmente, as intervenções nesta fase envolvem escolas e hospitais. E qual foi o resultado da sua visita ao Equador? Acompanhado durante toda a viagem pelo núncio, arcebispo Giacomo Guido Ottonello, visitei três circunscrições eclesiásticas: o vicariato apostólico de Esmeraldas, a diocese de Babahoyo e a arquidiocese de Portovejo. Sem dúvida, esta última foi a mais atingida pelo sismo. Por conseguinte o Pontifício Conselho decidiu Casas destruídas pelo tremor de terra no Equador destinar os fundos angariados, cerca de 600.000 euros, à mais, como vacas, ou instrumentos, maquinarias ou construção de uma escola gerida por uma congregacomputadores. Além disso, aprovámos projetos que ção religiosa. Mas estamos também na expectativa de preveem a construção de centros nos quais além das outros dois projetos que envolvem as dioceses de Esatividades sociais também se pode celebrar a missa. É meraldas e Babahoyo. Prevê-se a edificação de alguimportante mencionar que no conselho de adminis- mas casas para famílias pobres. Nisso contamos semtração de Populorum progressio há seis arcebispos la- pre com a atenção e a generosidade das pessoas: estino-americanos: uma representação que garante um peramos encontrar um ulterior financiador porque a perfeito conhecimento da realidade e das exigências situação é deveras difícil. locais. Que realidade encontrou? Qual é o âmbito mais solicitado? O sismo foi muito forte, devastador. Algumas reEm grande parte trabalhamos no campo da educa- giões foram completamente arrasadas, muitas estrutução: preparação do pessoal, aquisição de material di- ras desabaram, inclusive muitas igrejas. Isto preocupa dático, reestruturação ou construção de locais e salas. bastante os bispos locais, porque é ainda mais difícil É importante evidenciar que as intervenções em geral encontrar fundos para reconstruir ou reparar os edifínão incidem exclusivamente na vida social das pescios sagrados. E em muitos lugares já não há lugar soas, mas procuram prever uma ajuda integral: quereonde celebrar. Durante a viagem pude verificar de mos prestar atenção ao homem na sua integridade e portanto estão envolvidos também aspetos pastorais e perto o esforço, a dedicação amorosa e a eficiência da Igreja equatoriana na organização e ofertas das priespirituais. meiras ajudas de emergência para a população atingida, assim como a tenacidade e a vontade de apoiar a Qual é o papel de Cor unum? reconstrução apesar das muitas dificuldades, inclusive Recebemos os projetos, fazemos uma avaliação, e burocráticas. Passando por cidades e aldeias pude ense forem aprovados, são financiados pela Conferência contrar-me com pessoas, procurando levar-lhes o episcopal italiana. De facto, somos uma ponte entre amor e a solidariedade do Papa e da Igreja. Eles ainas necessidades destas populações e as ajudas que po- da mantêm viva a recordação da visita que o Pontífidem chegar de quem tem maiores possibilidades. ce realizou ao país há um ano: é uma lembrança suave e belíssima. As pessoas sentem com vigor a proxiQuais países foram destinatários dos projetos aprovados midade do Papa e para eles esta presença de Cor este ano? unum significa a continuação, se não física contudo Sobretudo os andinos: Peru, Colômbia, Equador e muito concreta, do afeto que Francisco lhes demonsBolívia. Algumas intervenções em número menor es- trou. INFORMAÇÕES Audiências O Papa Francisco recebeu em audiências particulares: A 22 de julho D. Nunzio Galantino, Secretário-Geral da Conferência Episcopal Italiana. Renúncias O Santo Padre aceitou a renúncia: No dia 25 de julho De D. Tomé Makhweliha, S.C.I., ao governo pastoral da Arquidiocese de Nampula (Moçambique), em conformidade com o cânone 401 § 2 do Código de Direito Canónico. Nomeações O Sumo Pontífice nomeou: A 25 de julho Administrador Apostólico «sede vacante et ad nutum Sanctae Sedis» da Arquidiocese de Nampula (Moçambique), D. Ernesto Maguengue, até à presente data Auxiliar da mesma Sede metropolitana. Bispo de Kidapawan (Filipinas), D. José Colin Mendoza Bagaforo, até agora Auxiliar de Cotabato. Membros do Conselho diretivo da Agência da Santa Sé para a Avaliação e a Promoção da Qualidade das Universidades e Faculdades Eclesiásticas (Avepro), para o quinquénio de 2016-2021: Pe. Franco Imoda, S.I., Presidente da Agência; Doutor Riccardo Cinquegrani, Diretor interino da Agência; Pe. Friedrich Bechina, F.S.O., Subsecretário da Congregação para a Educação Católica; Doutor Sjur Bergan; Professor John H. Garvey, Presidente da «Catholic University of America»; Doutor Achim Hopbach, Diretor da AQ da Áustria («Austrian Quality Assurance Agency»); Pe. Roberto Repole, Presidente da Associação Teológica Italiana; Doutor Jan Sadlak; e Mons. Guy-Réal Thivierge, Secretário-Geral da Fédération internationale des Universités catholiques (FIUC). Início de Missão de Núncios Apostólicos D. Peter Bryan Wells, Arcebispo Titular de Marcianopolis, na África do Sul (13 de maio). D. Peter Bryan Wells, Arcebispo Titular de Marcianopolis, em Botsuana (31 de maio). L’OSSERVATORE ROMANO página 12 quinta-feira 28 de julho de 2016, número 30 MARGARET S. ARCHER Desde que o Papa Francisco escreveu uma nota de próprio punho (maio de 2013), na qual nos pedia «para estudar o tráfico humano e a escravidão moderna», tive a clara impressão de que se pediria à Pacs para sair da sua comfort zone feita de debates teóricos abstratos, ligados de modo ténue, para usar um eufemismo, à realidade. Portanto, a Pacs encontrou-se diante de três tarefas. Primeira, a construção do consenso interno; segunda, a formação de alianças externas; e, terceira, a avaliação de onde e como exercer uma pressão política eficaz. Mas antes de enfrentar estes três pontos, era necessário que nós educássemos a nós mesmos: relativamente aos 30 milhões de pessoas vítimas do tráfico (segundo as estimativas da Onu), ao trabalho e à prostituição forçados, ao tráfico de órgãos e à escravidão doméstica. Por conseguinte, o workshop inicial (novembro de 2013), consistiu em ouvir os ensinamentos e as informações de ilustres representantes das Nações unidas, da Organização internacional do trabalho (Ilo), da União europeia, da Interpol e de comissários de polícia encarregados de prender os traficantes. Aprendemos muito Contributo da Pontifícia academia das ciências sociais na luta contra o tráfico Para romper as cadeias das escravidões modernas Como especialistas em ciências sociais, os nossos horizontes ampliavam-se graças à colaboração com os peritos em ciências naturais na nossa antiga academia irmã, a Pontifícia academias das ciências (Pac); juntos, tínhamos enfrentado Injustiças intoleráveis «Calcula-se que no mundo aproximadamente 40 milhões de pessoas são vítimas das modernas formas de escravidão e do tráfico de seres humanos destinados ao trabalho forçado, à prostituição, à venda de órgãos e ao narcotráfico. Ao mesmo tempo, como consequência das guerras, do terrorismo e das mudanças climáticas, contam-se cerca de 60 milhões de deslocados e 130 milhões de refugiados»: eis os números terríveis recordados pelo bispo Marcelo Sánchez Sorondo, chanceler da Pontifícia academia das ciências sociais (Pacs), apresentados durante o encontro internacional que no início do passado mês de junho reuniu, na Casina Pio IV no Vaticano, juízes e magistrados para um confronto sobre as temáticas do tráfico de pessoas e do crime organizado. Agora, a Pacs imprimiu um livrete com as principais intervenções feitas naquele congresso, entre as quais o discurso proferido no dia 3 de junho pelo Papa Francisco. Na sua conferência, D. Sorondo sublinhou que diante de uma situação tão dramática como esta, «nenhuma instância de justiça pode tolerar a violência da escravidão ou do crime organizado», e que «nenhum poder deve corromper a justiça». Os juízes, acrescentou, «são chamados a adquirir consciência deste desafio, a compartilhar as suas experiências pessoais e a trabalhar juntos para abrir novos caminhos de justiça e promover a dignidade humana, a liberdade, a responsabilidade, a felicidade e a paz». O prelado concluiu dirigindo um convite a salvar as vítimas da escravidão e do crime organizado, alcançando deste modo a paz social, a começar pela justiça na sociedade global. Publicamos nesta página o discurso da senhora presidente, inserido no mencionado livro da Pacs. destes generosos especialistas. No entanto, eles concentravam-se na identificação, na criminalização e na ação penal, ou seja, na «oferta» e nos fornecedores, mais do que a «procura» que a alimenta; sobre os «maus» e não sobre as vítimas; sobre a «repatriação» dos sobreviventes como habitual êxito jurídico em muitos casos e lugares. o tema «humanidade sustentável; natureza sustentável» (abril de 2014), apreendendo os rudimentos de uma «ecologia integral». A construção de alianças tinha começado «em casa», mas já no final daquele mesmo ano o consenso «humanista» permitisse que os chefes religiosos mundiais se encontrassem e assinassem uma Declaração conjunta para condenar o tráfico humano (dezembro de 2014). A assembleia plenária da Pacs (abril de 2015) representou a obtenção da nossa maturidade. As nossas Recomendações foram vigorosas e todas centradas nas vítimas. Assim, não obstante tenhamos concordado plenamente que a «criminalização» dos traficantes é uma condição necessária para a eliminação do tráfico, contudo pusemos em evidência que não era uma condição suficiente para erradicar as suas consequências para os sobreviventes. Além dos esforços envidados por agências de voluntariado e por ordens religiosas, fazia-se pouco para restituir aos sobreviventes a dignidade e para os reinserir no tecido humano como seres livres. Por conseguinte, os pontos de vista da Pacs tornaram-se mais específicos; se as nossas Recomendações tinham um lema, era: «Reinserção, não repatriação». A Pacs tinha esclarecido as suas finalidades, mas não os seus meios. Além disso, a Onu teria renovado os objetivos de desenvolvimento do milénio no mês de agosto, portanto naquele mesmo verão, e assim nós haurimos novamente da nossa colaboração com a Pac para fomentar conjuntamente a redução das emissões de dióxido de carbono e a eliminação do tráfico humano, em vez de os tratar como dois movimentos separados e unívocos. Quando, vários dias mais tarde (28 de abril de 2015), o secretário-geral da Organização das nações unidas, Ban Ki-moon, visitou a sede das Academias, proferiu palavras encorajadoras a favor de ambas as causas, mas admoestou ao mesmo tempo que era quase impossível alterar um parágrafo do Esboço dos novos objetivos de desenvolvimento sustentável. Procurando superar este impasse, o nosso incansável Chanceler propôs e organizou uma assembleia dos presidentes das câmaras municipais de algumas grandes cidades, «que deveriam enfrentar as dificuldades»; sessenta deles assinaram a favor. Contudo, aquilo que se aproximava não era um temporal mas um dilúvio que nos atropelava sob a forma de «crise migratória», a qual confundiu ainda mais a compreensão por parte do público das diferenças entre tráfico, contrabando e migração por motivos económicos, sobretudo por causa das informações transmitidas pelos meios de comunicação. Simultaneamente, aumentou também o apoio aos partidos e aos movimentos políticos de extrema direita, surdos à emergência humanitária. O que impediu que também as esperanças da Pacs fossem sufocadas? Somente a publicação, com sincronismo perfeito, da carta encíclica do Papa Francisco Laudato si’ (18 de junho de 2015), que insistia sobre a necessidade que todos têm de cuidar da nossa «casa comum», o planeta Terra, ressaltando inclusive que o bem-estar social no mundo globalizado é completamente incompatível com a tolerância em relação a uma atitude que julga os seres humanos como indivíduos «descartáveis». Esta encíclica social é provavelmente mais lida e citada pelos intelectuais leigos, do que qualquer outra que a precedeu. No dia 1 de setembro de 2015 foi adotado o texto definitivo dos objetivos de desenvolvimento sustentável da Onu que, no número 8.7, auspicia «medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, pôr fim à escravidão moderna e ao tráfico de seres humanos, garantindo a proibição e a eliminação das piores formas de trabalho infantil». Que rumo deveria tomar a Pacs para ser útil? Voltando a construir alianças externas, das quais a assembleia de juízes internacionais, comprometidos mais diretamente nas sentenças mas também nas medidas a favor dos sobreviventes, deu um testemunho eloquente quando 103 deles assinaram a Declaração definitiva.