90 anos, Legado e Atualidade
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90 anos, Legado e Atualidade
O dia 10 de julho de 2012 assinalou os 90 anos de nascimento do político, cientista e militar maranhense Renato Archer. Por ensejo da data a Fundação Maurício Grabois promoveu, no dia 24 de julho, a mesa-redonda “Renato Archer, 90 anos: legado e atualidade”. O evento homenageou uma figura emblemática do campo político democrático e nacionalista. Ao envolver antigos colaboradores e atuais herdeiros políticos de Archer, a atividade alcançou boa repercussão e resultou na proposta deste livro, que a editora Anita Garibaldi disponibiliza ao público com apoio do Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer e da Universidade Federal do Maranhão. RENATO ARCHER, 90 ANOS RENATO ARCHER, 90 ANOS 90 ANOS LEGADO E ATUALIDADE Realização Renato_Archer-capa_12cm.indd 1 Homenagens Fábio Palácio de Azevedo (org.) Homenagens RENATO ARCHER, Fábio Palácio de Azevedo (org.) Apoio 04/12/12 13:43 RENATO ARCHER, 90 ANOS LEGADO E ATUALIDADE miolo_renato_ascher.indd 1 04/12/12 13:00 miolo_renato_ascher.indd 2 04/12/12 13:00 RENATO ARCHER, 90 ANOS LEGADO E ATUALIDADE Fábio Palácio de Azevedo (org.) São Paulo 2012 miolo_renato_ascher.indd 3 04/12/12 13:00 Copyright©2012 by Fundação Maurício Grabois Esta é uma publicação da Editora e Livraria Anita Ltda. em parceria com a Fundação Maurício Grabois, com apoio do Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer e da Universidade Federal do Maranhão. Organização e edição Fábio Palácio de Azevedo Secretaria editorial Zandra de Fátima Baptista Assessoria editorial Rosemery de Sousa e Silva Transcrição da mesa-redonda Juliana Mantovani Projeto gráfico, capa e editoração Fernanda do Val e Angela Mendes Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) R394 Renato Archer, 90 anos: legado e atualidade. / Fábio Palácio de Azevedo organizador.----São Paulo : Fundação Maurício Grabois, Anita Garibaldi, 2012. 88p. : il. Vários autores. ISBN 978-85-7277-130-6 1. Archer, Renato, 1922-1996. 2. Políticos – Brasil. 3. Ciência e Estado. 4. Energia atômica. I. Azevedo, Fábio Palácio, org. II. Título. CDD 320.981 Catalogação na Publicação: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250 Direitos desta edição: Editora Anita Garibaldi Rua Amaral Gurgel nº 447 • 3º andar • conj. 31 • Vila Buarque • CEP 01221001 • São Paulo-SP • Brasil Telefone: (11) 3129-3438 www.anitagaribaldi.com.br [email protected] miolo_renato_ascher.indd 4 Fundação Maurício Grabois Rua Rego Freitas , 192 • sobreloja • Centro CEP 01220-010 • São Paulo-SP • Brasil Telefone: (11) 3337-1578 www.grabois.org.br [email protected] 04/12/12 13:00 Presidente Adalberto Monteiro Secretário-geral Augusto César Buonicore Diretor Administrativo e Financeiro Leocir Costa Rosa Diretor de Comunicação e Publicações Fábio Palácio de Azevedo Diretora de Formação Nereide Saviani Diretora de Políticas Públicas Márvia Scárdua Diretor de Estudos e Pesquisas Aloísio Sérgio Rocha Barroso Diretor de Temas Ecológicos e Ambientais Luciano Rezende Diretor de Cultura Javier Alfaya miolo_renato_ascher.indd 5 04/12/12 13:00 miolo_renato_ascher.indd 6 04/12/12 13:00 Homenagens A história já foi vista, em tempos nem tão distantes, como produto da ação de príncipes, reis e personagens sobre-humanos. Na crítica a essa visão unilateral e elitista, ganhou força a concepção de uma história que seria apenas o resultado de férreas necessidades objetivas e impessoais, situadas muito além das vontades, dos desejos e das práticas de homens e mulheres concretos. É claro que isso tinha algo de verdadeiro. Contudo, com a mudança de paradigma algo se perdeu. Na tentativa de desconstruir um mito – o do indivíduo que tudo pode, e de cuja ação exclusiva depende a história humana – criou-se outro, que nega o papel dos indivíduos na história. Não é possível desconhecer que a história também é feita da ação de indivíduos de carne e osso, com seus desejos, paixões e convicções. A série Homenagens busca resgatar essa dimensão. Ela é dedicada àqueles lutadores que, como no famoso poema de Brecht, são “imprescindíveis”. Pessoas cuja trajetória fez a diferença na luta por um Brasil soberano, desenvolvido e democrático. Ao apresentar a trajetória e o pensamento dessas pessoas, a série pretende contribuir para a discussão de ideias e projetos, e também para que se conheça mais e melhor nosso próprio país. Afinal, os grandes empreendimentos transformadores não são ideias que pairam sobre os seres humanos. Ao contrário, eles surgem da vontade e da ação conjunta de indivíduos determinados, com suas trajetórias pessoais, suas veleidades, suas idiossincrasias, sua humanidade. miolo_renato_ascher.indd 7 04/12/12 13:00 miolo_renato_ascher.indd 8 04/12/12 13:00 Toda história da formação e consolidação dos Estados Nacionais é a história de um nacionalismo. R enato a RcheR miolo_renato_ascher.indd 9 04/12/12 13:00 Mesa-redonda “Renato Archer, 90 anos: legado e atualidade”, da qual resultou a maioria dos textos deste livro. Da esq. para a dir. Jair dos Santos Oliveira, Rex Nazaré, José Raimundo Braga Coelho, Alvaro Rocha Filho, Fábio Palácio de Azevedo (coordenador), Antonio José Silva Oliveira (coordenador), José Monserrat Filho e Ricardo Archer. São Luis (MA), 24 de julho de 2012. 10 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 10 04/12/12 13:00 fÁbiO pAl ÁciO de A ze v edO miolo_renato_ascher.indd 11 11 04/12/12 13:00 miolo_renato_ascher.indd 12 04/12/12 13:00 SUMÁriO Agradecimentos 15 Apresentação 17 Um registro necessário 33 Legado e atualidade de Renato Archer Celso Amorim 37 Depoimento sobre Renato Archer Luciano Coutinho 43 Um pequeno pedaço da história de Renato Archer e seu envolvimento com as instituições de desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil José Raimundo Braga Coelho Renato Archer e o Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer Victor Pellegrini Mammana e Luciano Henrique Pondian Valente 45 49 O legado de Renato Archer e a SBPC 2012 Natalino Salgado Filho 61 Homenagem a Renato Archer Jair dos Santos Oliveira 65 Visão estratégica, política externa soberana Alvaro Rocha Filho 67 Renato Archer, um exemplo a ser sempre lembrado Rex Nazaré 75 Renato, visão ampla e interesse público José Monserrat Filho 85 Uma história relevante para o Brasil Ricardo Archer 93 miolo_renato_ascher.indd 13 04/12/12 13:00 miolo_renato_ascher.indd 14 04/12/12 13:00 AgrAdeciMeNtOS No processo de organização e preparação da mesa-redonda “Renato Archer, 90 anos: legado e atualidade” o trabalho de alguns colaboradores revelou-se imprescindível ao sucesso do empreendimento. As instituições responsáveis pela presente publicação externam sua gratidão para com essas pessoas. São elas o Prof. Dr. Antonio José Silva Oliveira, vice-reitor da UFMA; o Prof. MsC. Luiz Alves Ferreira, do Departamento de Medicina da UFMA, e o Prof. Cristiano Capovilla, do Colégio Universitário da UFMA. Agradecemos ainda a Simone Santana Franco, coordenadora geral do cerimonial do Ministério da Ciência e Tecnologia; Gustavo Viana, membro da equipe organizadora local da 64ª Reunião Anual da SBPC, e José Carlos Santos, assessor da Reitoria da UFMA. Esta publicação também não teria sido possível sem a generosa participação de Valquiria Celina Garcia, chefe da Divisão de Relações Institucionais e Gabinete do Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer. Estendemos nossos agradecimentos aos autores dos artigos aqui publicados, gentilmente revisados e cedidos à publicação. miolo_renato_ascher.indd 15 04/12/12 13:00 miolo_renato_ascher.indd 16 04/12/12 13:00 ApreSeNtAÇÃO O dia 10 de julho de 2012 assinalou os 90 anos de nascimento do político, cientista e militar maranhense Renato Archer. Por ensejo da data a Fundação Maurício Grabois promoveu, no dia 24 de julho, a mesa-redonda “Renato Archer, 90 anos: legado e atualidade”. O evento deu-se no âmbito da 64ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ocorrida nas dependências da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), em São Luis, entre os dias 22 e 27 de julho. Proposta pela Fundação Maurício Grabois e realizada em parceria com a UFMA, a secção regional maranhense da SBPC e o Instituto de Estudos e Cooperação Internacional (Iecint), o evento homenageou uma figura emblemática do campo político democrático e nacionalista, destacando o legado e a atualidade de seu trabalho como referência para as novas gerações. Ao envolver antigos colaboradores e atuais herdeiros políticos de Archer, a atividade alcançou boa repercussão local e nacional, resultando na proposta de um livro. Compuseram a mesa da solenidade o presidente da Agência Espacial Brasileira (AEB), José Raimundo Braga Coelho — na ocasião representando o ministro de Estado da Ciência, Tecnologia e Inovação Marco Antonio Raupp; ApreSeNtAÇÃO miolo_renato_ascher.indd 17 17 04/12/12 13:00 o jornalista Alvaro Rocha Filho, autor do livro Renato Archer: energia atômica, soberania e desenvolvimento; o físico Rex Nazaré Alves, ex-presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) e atual diretor de tecnologia da fundação de apoio à pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj); o jornalista José Monserrat Filho, assessor de Cooperação Internacional da AEB; o capitão de mar e guerra Jair dos Santos Oliveira, comandante da Capitania dos Portos do Estado do Maranhão, e o deputado federal Ricardo Archer (PMDB-MA), sobrinho-neto de Renato Archer. A mesa foi coordenada pelo professor doutor Antonio José Silva Oliveira, vice-reitor da UFMA, e pelo autor desta apresentação. Convidado a participar da homenagem, o ministro de Estado da Defesa, Celso Amorim, lamentou a impossibilidade de comparecer ao evento e enviou mensagem saudando a iniciativa e destacando o legado de Archer. A mensagem vai publicada no presente volume, que traz ainda a transcrição das intervenções proferidas na mesa-redonda e outros textos. defesa do interesse nacional Falecido há 16 anos, em junho de 1996, Archer foi o primeiro ocupante do cargo de ministro de Estado da Ciência e Tecnologia. Esteve também à frente do Ministério da Previdência e da estatal Embratel. No campo diplomático, integrou a junta de governadores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Nessa condição, tomou parte nas definições internacionais sobre o uso da energia nuclear. O político maranhense foi ainda subsecretário e ministro interino das Relações Exteriores na gestão de Francisco Clementino San Tiago Dantas, quando o Brasil, sob a presidência de João 18 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 18 04/12/12 13:00 Goulart, deu passos significativos na definição da chamada Política Externa Independente (PEI). Pouco após, entre os anos de 1966 e 1967, Renato Archer desempenhou destacado papel como protagonista de um importante acontecimento da luta contra o regime militar — a formação da Frente Ampla, que mobilizou destacadas personalidades democráticas da sociedade brasileira. Em todas as responsabilidades que ocupou como homem público, Archer destacou-se pela firmeza e pelo entusiasmo com que defendeu os interesses maiores do país. Segundo o jornalista Alvaro Rocha Filho, primeiro a fazer uso da palavra na mesa-redonda sobre Archer, o político maranhense atuava a partir de duas premissas: definição de objetivos de longo prazo — como também dos instrumentos e mecanismos capazes de conferir-lhes operacionalidade — e intensa atuação internacional para viabilizar esses objetivos. “Ou seja: planejamento estratégico de longo prazo e política externa que lhe dê respaldo”, resumiu Rocha Filho. Sem dúvida, um binômio imprescindível quando o assunto em pauta é a defesa do interesse nacional. herdeiro da tradiáão científica dos militares Ex-capitão de fragata da marinha — várias vezes condecorado, como destacou o capitão de mar e guerra Jair dos Santos Oliveira —, Archer pertence à cepa de cientistas militares que tem no nome do almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva uma de suas referências mais importantes. Figura destacada em episódios decisivos da história brasileira, Álvaro Alberto foi professor catedrático de química da Escola Naval. Presidiu a Sociedade Brasileira de Química (SBQ ) ApreSeNtAÇÃO miolo_renato_ascher.indd 19 19 04/12/12 13:00 e, mais tarde, a Academia Brasileira de Ciências (ABC). Foi também membro titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Em 1934, partiu do almirante o convite ao físico italiano Enrico Fermi — um dos líderes do Projeto Manhatan, responsável pelo desenvolvimento das primeiras armas nucleares — para que este viesse ao Brasil proferir conferência na ABC. O almirante também compôs a delegação de cientistas que, em 1925, recepcionou Albert Einstein em sua visita ao Brasil. Na área da química de explosivos, Álvaro Alberto realizou descobertas que o consagraram Já em 1958 Archer internacionalmente. Ainda jovem, paliderava, em aliança tenteou a dinamite rupturita e fundou, com Álvaro Alberto, para explorar a descoberta, uma empresa José Leite Lopes e inovadora na área de explosivos para mioutros eminentes neração. Foi o criador da “fórmula Escientistas, a primeira cola Naval”, método de cálculo que simcampanha pela plificou a determinação da temperatura criação do Ministério de explosão da pólvora. A descoberta da Ciência e Tecnologia implicou importantes avanços no terreno militar, possibilitando a otimização do uso de canhões. Doada à Marinha, foi negociada com a Inglaterra nos anos 1930, quando da assinatura do contrato de construção de navios brasileiros em estaleiros da Escócia. Os navios jamais chegariam ao Brasil — com o início da Segunda Guerra, os ingleses resolveram utilizá-los para seu próprio reforço militar. A fórmula, contudo, foi repassada e garantiu à Marinha britânica importante superioridade tecnológica na Segunda Guerra Mundial. Em 1947 Álvaro Alberto foi designado, por indicação unânime da ABC, para liderar a delegação brasileira na conferência da Comissão de Energia Atômica da ONU, convocada para definir e aprovar as regras internacionais sobre o uso da 20 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 20 04/12/12 13:00 energia nuclear. Na ocasião, a atitude firme do almirante foi crucial para a inviabilização do chamado Plano Baruch, por meio do qual os Estados Unidos pretendiam “internacionalizar” as reservas de urânio dos países detentores desse minério, entre eles o Brasil. De forma engenhosa, Álvaro Alberto aceitou os termos propostos pelo chefe da delegação americana, Bernard Baruch, desde que a “internacionalização” se estendesse também a minérios como o petróleo e o carvão mineral, abundantes nos Estados Unidos. O almirante propôs, além disso, a tese das compensações específicas: uma série de medidas a serem tomadas como contraparte da exportação de urânio para as potências tecnológicas desprovidas do minério. As compensações aos países exportadores incluíam cotas preferenciais de energia, construção de reatores primários, fornecimento de equipamentos e treinamento de pessoal, entre outras contrapartidas. O Plano Baruch acabou aprovado, sem nenhum voto contra e com as abstenções de Índia e Austrália. Mas, com a obrigatoriedade das compensações específicas, acabou virando letra morta. Álvaro Alberto, a política nuclear e a criaáão do cNpq No segundo governo Vargas, Álvaro Alberto foi o primeiro presidente do então Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), hoje Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Principal mentor da criação do órgão, o almirante o concebeu como parte do esforço de criação de uma política nuclear nacional — iniciativa largamente sabotada pelo imperialismo, como atestam inúmeros episóApreSeNtAÇÃO miolo_renato_ascher.indd 21 21 04/12/12 13:00 dios bem documentados. Alguns deles seriam denunciados de maneira contundente por Renato Archer no transcorrer de seu primeiro mandato como deputado federal (1954-58). As denúncias se transformariam no eixo de uma CPI sobre a questão nuclear, fato de grande repercussão política no Brasil dos anos 1950. A realidade é que, após a Segunda Guerra Mundial (e, especialmente, após o estouro da bomba de Hiroshima), a ciência e tecnologia passou a ser concebida como área de grande importância geopolítica. Essa percepção se acentuaria ainda mais com o início da Guerra Fria. Não é por acaso, portanto, que o primeiro órgão de fomento a pesquisas do Brasil, o CNPq, tenha nascido do empenho de um militar de alta patente. Por meio da criação da agência, Álvaro Alberto propunha um ousado plano de formação de recursos humanos, fator indispensável ao domínio da tecnologia nuclear. Nessa mesma área, o almirante ainda voltaria a jogar papel decisivo anos mais tarde, quando da acertada definição brasileira pela inovadora técnica de ultracentrifugação como método para o enriquecimento de urânio. Como afirma ROCHA FILHO (2006, p. 71), na mesma época em que os Estados Unidos investiam rios de dinheiro para enriquecer urânio por meio do caro e ineficiente método da difusão gasosa, Álvaro Alberto liderou a opção pela ultracentrifugação, desenvolvida originalmente pelos alemães. Hoje o Brasil, por meio da Marinha e de suas instalações, domina inteiramente essa técnica — de grande importância para a construção do submarino atômico nacional. Nosso país se coloca, assim, no primeiro plano da pesquisa nuclear em todo o mundo. 22 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 22 04/12/12 13:00 em defesa da ciência e tecnologia Em 1949, Álvaro Alberto convida Renato Archer, seu ex-aluno na Escola Naval, para ajudá-lo na aprovação do projeto de lei 1.310, que criava o CNPq. Era o início de uma longa colaboração, que uniria por décadas duas das mais destacadas personalidades da ciência nacional: o primeiro presidente do CNPq e o primeiro ministro de Estado da Ciência e Tecnologia. Por esse período Archer, após ter concluído seus estudos na Escola Na- A trajetória de Renato Archer repete a val, e já promovido a primeiro-tenente de outros políticos da Marinha, retornara ao Maranhão ligados à indústria para ocupar o cargo de secretário de têxtil — seja em governo de Sebastião Archer, seu pai, tempos remotos, governador do estado no final dos anos como no caso do 1940. Foi nesse período que recebeu de “coronel-empresário” Álvaro Alberto a tarefa de coordenar Delmiro Gouveia, politicamente, no processo de tramitaseja no período mais ção do PL 1.310, a bancada maranhense recente, a exemplo do do Partido Social Democrático (PSD). ex-vice-presidente Archer já integrava então as fileiras do José Alencar Partido, compondo sua Ala Moça (espécie de juventude) na companhia de nomes como Ulysses Guimarães. Em comunhão de propósitos com Álvaro Alberto, Archer foi capaz de perceber desde cedo a centralidade da ciência e tecnologia para a estratégia nacional de desenvolvimento. Construiu, com base nessa percepção, uma trajetória devotada à área científico-tecnológica, um setor sensível e submetido a múltiplas formas de controle, dada sua importância saliente tanto para os interesses do imperialismo quanto, no polo ApreSeNtAÇÃO miolo_renato_ascher.indd 23 23 04/12/12 13:00 oposto, para a conquista da verdadeira autonomia nacional. O vínculo de Archer com a causa da ciência e tecnologia manifestou-se não apenas em sua atividade política, mas também no campo corporativo. No início dos anos 1950 fundou, a exemplo do que fizera anteriormente Álvaro Alberto, uma empresa inovadora, a Prospec, atuante nas áreas de aerofotogrametria e fotogeologia. A empresa destacou-se internacionalmente desenvolvendo tecnologia de ponta, e foi responsável por importantes descobertas mineralógicas. Na esfera cívico-política, já em 1958 Archer liderava, em aliança com Álvaro Alberto, José Leite Lopes e outros eminentes cientistas, a primeira campanha pela criação do Ministério da Ciência e Tecnologia. A bandeira só se tornaria vitoriosa quase três décadas depois, já no governo Sarney, com Renato Archer — um ex-adversário do presidente — como primeiro titular do novo ministério. À frente do Ministério da ciência e tecnologia À frente do MCT, Archer quadruplicou o número de bolsas e auxílios; conferiu novo impulso à produção nacional de fármacos; ajudou a acelerar o processo de edificação do Centro de Lançamento de Alcântara (MA), e iniciou em Campinas (SP) a construção do colisor de partículas Síncrotron — o primeiro e, ainda hoje, um dos únicos em funcionamento em todo o Hemisfério Sul do planeta. Mas talvez a mais importante medida tomada nesse período tenha sido a inauguração do acordo espacial sino-brasileiro, responsável pelo lançamento da família de satélites Cbers e considerado um dos mais importantes acordos de cooperação tecnológica entre dois países em desenvolvimento. 24 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 24 04/12/12 13:00 Ao referir-se, na mesa em homenagem a Archer, às primeiras viagens realizadas à China para a discussão do acordo — das quais tomou parte —, o presidente da AEB, José Raimundo Coelho, explicou: “O cardápio que nos foi então apresentado na China para cooperação era uma agenda do tamanho de um prédio. E Renato Archer foi capaz de extrair dessa agenda um objeto fantástico, com as seguintes características: primeira, uma causa de mútuo interesse; segunda: um objeto que pudesse ser desenvolvido conjuntamente. [...] Essa foi a maior lição que tivemos em nossa vida para situações de desenvolvimento tecnológico em áreas estratégicas”. Segundo Coelho, o que começou como uma simples cooperação foi mudando de patamar e, nos anos 1990, passou a ser denominado “parceria estratégica”. “Agora, recentemente, essa cooperação conheceu uma nova graduação, passando a se chamar parceria estratégica global. Isso foi na Rio+20, numa reunião entre a nossa presidenta da República e o primeiro-ministro Wen Jiabao. Portanto, esse programa foi muito mais do que um exemplo daquilo que foi denominado originalmente “cooperação Sul-Sul”. Hoje ele é exemplo de cooperação para todos os países do mundo. Estamos prestes a lançar o quarto satélite de observação da terra. Em seguida lançaremos o quinto satélite, e já estamos preparando a plataforma de parceria para os próximos dez anos.” Outra área estratégica abordada pelo primeiro titular do MCT foi a das hoje tão comentadas TICs (tecnologias de informação e comunicação). Em 1985, sob a liderança de Renato Archer, o MCT passou a combater os limites, impostos pelas nações centrais — contando muitas vezes com apoio interno — à importação de supercomputadores. Ao mesmo tempo, inaugurou a reserva de mercado no setor de informática, medida responsável por tornar o Brasil, já em fins dos anos 1980, ApreSeNtAÇÃO miolo_renato_ascher.indd 25 25 04/12/12 13:00 um dos poucos países com 60% de sua produção nas mãos de fabricantes nacionais. Mais tarde, já como presidente da Embratel no governo Itamar Franco, Archer ordenou a implantação da rede nacional de fibras óticas, infraestrutura que possibilitou projetos como a Rede Nacional de Pesquisas (RNP) — face institucional da internet de alta velocidade que hoje conecta os principais centros nacionais de pesquisa e desenvolvimento. Como forma de homenagear sua atuação no setor das TICs, foi criado, na cidade de Campinas (SP), o Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer, unidade de pesquisas do MCT. Um aristocrata renovador Renato Archer era oriundo de família ligada à indústria têxtil, fato repleto de significados — ainda mais no Maranhão de primórdios do século passado. Ali os industriais do ramo têxtil compunham setores oligárquicos ligados, por um lado, ao latifúndio mais atrasado e, por outro, às demandas de formação e consolidação do mercado interno. Essa situação ambígua, temperada por sua condição de oficial da Marinha (dita por muitos a “mais aristocrática” das Armas), marcaria profundamente o perfil e a trajetória do político maranhense, como ocorreu, de resto, com outros políticos ligados à indústria têxtil — seja em tempos remotos, como no caso do “coronel-empresário” Delmiro Gouveia, seja no período mais recente, a exemplo do ex-vice-presidente José Alencar. Estudar a trajetória de homens como eles permite-nos não apenas conhecer melhor a história de nosso país, mas também acessar importantes aspectos de sua territorialidade econômico-política. 26 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 26 04/12/12 13:00 As bases eleitorais oligárquicas elegeriam Archer em diversas oportunidades. Em 1950 tornou-se vice-governador do Maranhão na chapa de Eugênio Barros, político apoiado por seu pai. Na década seguinte, candidato do presidente Dutra e do arquioligarca Vitorino Freire ao governo do Maranhão, seria derrotado por José Sarney, então representante da modernização burguesa no estado. Em 1982 Archer sofreria nova derrota na disputa pelo governo do Maranhão, novamente para as forças sarneístas, que dessa vez tinham à frente a candidatura de Luis Rocha. Apesar das derrotas nas eleições para governador, Archer elegeu-se por quatro vezes deputado federal, entre os anos de 1954 e 1967. A última delas pelo MDB; as três primeiras pelo PSD. Em prefácio ao livro Renato Archer: energia atômica, soberania e desenvolvimento, o deputado comunista Aldo Rebelo descreve o PSD como “esfinge da política brasileira, ainda não o bastante desvendada”. A referência ao caráter enigmático do partido viria de seu perfil ambíguo, ao mesmo tempo conservador e reformista. Em conjunto com o PTB, o PSD — que reunia setores das oligarquias tradicionais — formou a base de apoio do segundo governo Getúlio Vargas (1950-1954), embora sempre como um aliado problemático. Ambas as legendas se contrapunham à antigetulista União Democrática Nacional (UDN). Se o PSD era um partido conservador, mas reformista, a UDN pode ser vista, em sentido contrário, como um partido modernizante, mas conservador. E conservador, essencialmente, nos sentidos políticos que atribuía a seu próprio “modernismo”, sentidos estes que afastavam a agremiação da ideia de defesa da pátria e a aproximavam de um cosmopolitismo elitista. O enigma ao qual se refere Rebelo, fazendo alusão às amApreSeNtAÇÃO miolo_renato_ascher.indd 27 27 04/12/12 13:00 biguidades do PSD, é em grande medida elucidado nos trabalhos de outro maranhense, o economista Ignacio Rangel. Em textos como A história da dualidade brasileira, R ANGEL (2005, V.II, pp. 665-667) chama atenção para o fato de que, em nosso país, as transformações costumam ocorrer por meio de movimentos frentistas, que congregam, em torno dos mesmos propósitos, setores democrático-populares e dissidências progressistas das oligarquias tradicionais. Enquanto os primeiros vocalizam as demandas por mudanças, os últimos as promovem, com o fito de permanecer no centro do tabuleiro político. É nessa chave que devem ser compreendidos os governos Getúlio e JK, como também, no período mais recente, a ampla aliança de partidos amalgamada pela liderança de Lula. Atento ao fenômeno descrito por Rangel, Alvaro Rocha Filho assevera, na apresentação de seu livro sobre Archer, que o político maranhense surge, desde seus primeiros passos na vida pública, como um “dissidente oligárquico típico”. Archer teria-se situado sempre como elo “entre os setores mais conservadores e as diversas nuances das lideranças políticas ditas progressistas. Nessa posição, consegue construir e consolidar um perfil próprio de conciliador elegante, hábil negociador, com trânsito permanente entre todos os contrários e com acesso garantido aos núcleos de decisão” (ROCHA FILHO, 2006, p. 17). trajetória frutífera Os grandes nomes da República costumam projetar, com sua estatura, uma sombra de influência e prestígio que se ergue por sobre as gerações seguintes. É o que podemos dizer do almirante Álvaro Alberto. Verdadeiro totem da ciência 28 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 28 04/12/12 13:00 brasileira, o almirante desempenhou, nas palavras de Renato Archer, “o papel de estrela-guia: atraía e conduzia, formulava e impulsionava a ação” (in ROCHA FILHO, 2006, p. 97). Não por acaso Álvaro Alberto segue inspirando e iluminando, com a força de sua autoridade intelectual e moral, os caminhos daqueles que, nas condições contemporâneas, dão continuidade às lutas por soberania e desenvolvimento. Coisa semelhante pode ser dita de Renato Archer. Seu trabalho representou o elo entre a geração nacionalista de Getúlio e Álvaro Alberto, cujas aspirações ajudou a concretizar, e a nova geração republicana que luta, nos Os grandes nomes da dias de hoje, pela realização de um novo República costumam projeto nacional de desenvolvimento. Faprojetar, com sua lar de Archer como “elo” não representa estatura, uma sombra nenhum exagero: herdeiro direto de Álde influência e varo Alberto, ele também ajudou a pro- prestígio que se ergue jetar personalidades de destaque na vida por sobre as gerações política contemporânea. Dois dos atuais seguintes ministros da República sob o governo Dilma — Marco Antonio Raupp, da Ciência, Tecnologia e Inovação, e Celso Amorim, da Defesa — foram lançados no cenário político por Archer, tendo composto equipes de trabalho lideradas pelo ex-ministro da Ciência e Tecnologia. O mesmo se passou com vários dos nomes presentes à homenagem promovida pela Fundação Maurício Grabois, como os físicos Rex Nazaré e José Raimundo Coelho e os jornalistas Alvaro Rocha Filho e José Monserrat Filho. Como de pronto perceberam a Fundação Maurício Grabois e suas instituições parceiras, homenagear a memória de Renato Archer significa refletir sobre o passado e o futuro da ciência brasileira e do projeto nacional de desenvolvimento à luz de um de seus grandes vultos. É isto o que o leitor enApreSeNtAÇÃO miolo_renato_ascher.indd 29 29 04/12/12 13:00 contrará nesta publicação: depoimentos que, em seu conjunto, traçam o perfil de um homem otimista, entusiasmado com o destino luminoso que enxergava para a nação, mas ao mesmo tempo crítico, combativo, irrequieto. Archer jamais se cansou de lamentar o fato de que, quarenta anos após ter denunciado o abandono da política nuclear inaugurada por Getúlio Vargas, o Brasil ainda acumulasse imensas defasagens nessa área estratégica, avançando de forma precária e irresoluta, como se pouco cônscio de sua tradição, de sua capacidade e de suas imensas potencialidades. São Paulo, novembro de 2012. Fábio Palácio de a zevedo Jornalista, diretor da Fundação Maurício Grabois. Texto publicado, em versão modificada, na revista Princípios nº 120 (ago./set. de 2012). 30 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 30 04/12/12 13:00 bibliografia consultada MotoyaMa , Shozo (Org.). 50 anos do CNPq: contados pelos seus presidentes. São Paulo: FaPesP, 2002. 720 p. R angel, Ignácio. Obras reunidas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. 2 V. 1300 p. Rocha Filho, Alvaro; gaRcia , João Carlos Vitor (organização). Renato Archer: energia atômica, soberania e desenvolvimento — Depoimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. 272 p. sociedade bR asileiR a PaR a o PRogResso da ciência . Cientistas do Brasil — Depoimentos. Apresentação de Ennio Candotti. São Paulo: SBPC, 1998. 852 p. videiR a , Antonio Augusto Passos. 25 anos de MCT: raízes históricas da criação de um Ministério. Rio de Janeiro: Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, 2010. 176 p. ApreSeNtAÇÃO miolo_renato_ascher.indd 31 31 04/12/12 13:00 miolo_renato_ascher.indd 32 04/12/12 13:00 UM regiStrO NeceSSÁriO Era o cair da tarde do dia 17 de julho de 2012. Ultimavam-se os preparativos para a mesa em homenagem aos 90 anos de Renato Archer, que aconteceria uma semana depois, em São Luis (MA), durante a 64ª Reunião Anual da SBPC. Em meio à correria das confirmações para o evento, uma mensagem goteja na caixa de emeios da Fundação Maurício Grabois. Vinha de Hélio de Mattos Alves, ex-prefeito do campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaborador da Fundação Grabois e amigo do professor Aloisio Teixeira, ex-reitor da UFRJ. Helinho (como é carinhosamente chamado) não dizia nada. Apenas repassava mensagem de Teixeira sobre o evento. “Pena que não me chamaram...”, lamentou. “Conheci Renato Archer melhor do que todos eles [os convidados para a mesa]: de 1985, quando fui para a diretoria da Finep, até a sua morte, em 1996, falamo-nos praticamente todos os dias. De qualquer forma, a Fundação está de parabéns. Saudações, Aloisio.” Aparentemente insatisfeito com o curto comentário, Teixeira voltaria a escrever para Hélio 25 minutos depois. Nessa nova mensagem afirmou: “Conheci o Renato antes de 1964 — ele era amigo do meu pai — e convivi com ele por muitos anos. Meu pai foi um dos articuladores da Frente Ampla (que, a partir de 1966, até o UM regiStrO NeceSSÁriO miolo_renato_ascher.indd 33 33 04/12/12 13:00 AI-5, procurou juntar JK, Jango e Lacerda em um movimento pela restauração das liberdades democráticas). Renato era o representante do Juscelino (e Talarico, o do Jango). Quando veio a campanha das diretas (e o PMDB do Rio, chaguista, não queria participar), introduzi Renato no circuito dos intelectuais jovens do Rio (os velhos ele Foi a forma conhecia todos, melhor do que eu) para encontrada pelos organizarmos o grande comício das editores deste livro diretas na Candelária (abril de 1984). para homenagear não Ele foi peça essencial, pois fez a ligaapenas o comunista ção entre o Rio e a direção nacional do Aloisio Teixeira, não PMDB (leia-se Ulysses Guimarães). apenas o nacionalista “Quando Sarney tomou posse Renato Archer, mas, em 1985, e Renato assumiu o MCT, para além disso, chamou-me para uma diretoria da os vínculos entre Finep. Quando foi para o Ministério dois grandes nomes da Previdência, levou-me para ser o de nossa história intelectual e política secretário-geral; quando foi presidente da Embratel, levou-me para uma diretoria. E, mesmo quando não estávamos no governo, ligava-me todos os dias para conversarmos sobre a agenda do dia. “Era um grande brasileiro. Aloisio.” De posse das mensagens, a Fundação Maurício Grabois não se fez de rogada. De pronto enviou convite a Teixeira para que compusesse também ele a mesa em homenagem a Archer, no dia 24 de julho. Ele respondeu no dia 19 dizendo: “Prezados companheiros. Sinto-me honrado com o convite, mas infelizmente não poderei estar em São Luis do Maranhão nessa data. Saudações, Aloisio Teixeira.” O professor Aloisio faleceu quatro dias depois, na manhã do dia 23 de julho, aos 67 anos, em decorrência de enfarte fulminante sofrido em sua residência, no Rio de Janeiro. 34 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 34 04/12/12 13:00 Reproduzir aqui as palavras do querido professor — certamente uma das últimas apreciações que externou — foi a forma encontrada pelos editores deste livro para homenagear não apenas o comunista Aloisio Teixeira, não apenas o nacionalista Renato Archer, mas, para além disso, os vínculos entre dois grandes nomes de nossa história intelectual e política — duas destacadas personalidades do campo democrático e progressista. os editoRes. UM regiStrO NeceSSÁriO miolo_renato_ascher.indd 35 35 04/12/12 13:00 miolo_renato_ascher.indd 36 04/12/12 13:00 ARqUIVO l egAdO e AtUAlidAde de reNAtO Archer celso aMoRiM* Saúdo a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência pela iniciativa deste evento e agradeço à Fundação Maurício Grabois pelo convite para participar desta mesa, que evoca o legado de um importante personagem da política brasileira do século XX. Estas minhas breves palavras não são de historiador ou de biógrafo, mas de quem trabalhou com o ministro Renato Archer e teve a oportunidade de testemunhar sua grande vocação de homem público. A característica que ressaltava de imediato em sua personalidade era o carisma. O Comandante Renato Archer, como costumava ser chamado (devido ao tempo em que serviu na Marinha), tinha uma grande capacidade de cativar seus interlocutores e de angariar apoios. Sua trajetória política, sobre a qual outros falarão com mais propriedade, ilustra isso. Quando fui seu assessor no Ministério da Ciência e Tecnologia, entre 1985 e 1987, assisti às muitas articulações políticas que realizava, frequentemente acompanhado de Pedro Simon, Waldir Pires e do Dr. Ulysses Guimarães, bom amigo com quem mantinha relação de lealdade política inquebrantável. Consciente de seu papel como quadro partidário, sabia legAdO e AtUAlidAde de reNAtO Archer miolo_renato_ascher.indd 37 37 04/12/12 13:00 sacrificar seu gosto pessoal à necessidade política. Foi o caso de sua saída do Ministério da Ciência e Tecnologia rumo ao Ministério da Previdência, maior em recursos e em influência, mas, para ele, menos atraente sob o ponto de vista do desafio intelectual. O convívio com Renato era extremamente enriquecedor. Aprendia-se com suas qualidades não apenas na prática de negociações e decisões, mas também pela riqueza de sua experiência. RecordoAo mesmo tempo em -me de ouvi-lo sobre as discussões com que manteve laços históricos, como Juscelino, João Goulart e Lacerda para por exemplo, com a a Frente Ampla; sobre as ocasiões nas França, diversificou quais, em decorrência dessas atividades nossas parcerias políticas, foi preso pelo regime militar, e externas — decisão depois cassado (embora estivesse muito naturalmente longe de ser, na linguagem da época, um tributária da lógica militante “subversivo”). pluralista da Política Renato Archer tinha, claramente, Externa Independente uma visão estratégica para o Brasil, na qual as políticas externa, de defesa e de ciência e tecnologia, entre outras, integravam-se em prol do desenvolvimento nacional. Sua experiência nessas áreas não foi pequena. Como deputado federal e colaborador na obra pioneira do almirante Álvaro Alberto, bateu-se pelo desenvolvimento autônomo da capacidade brasileira de utilizar pacificamente a energia atômica. Feito representante do Brasil junto à Agência Internacional de Energia Atômica no fim dos anos 1950, opôs-se resolutamente aos projetos que importariam na internacionalização dos minérios brasileiros. Como subsecretário parlamentar de San Tiago Dantas, ministro das Relações Exteriores no gabinete de Tancredo 38 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 38 04/12/12 13:00 Neves, contribuiu para a execução da Política Externa Independente, um marco histórico da inserção soberana e universalista do Brasil no mundo. Como primeiro titular da Pasta da Ciência e Tecnologia, organizou a estrutura do Ministério, conduziu a política de informática, criou um setor especializado em biotecnologia, promoveu a pesquisa em novas tecnologias e patrocinou o primeiro grande aumento de bolsas do CNPq, medida precursora do programa Ciência sem Fronteiras, que constitui hoje uma das prioridades do governo da presidenta Dilma Rousseff. A cooperação internacional na área de ciência e tecnologia, em que o assessorei diretamente, foi uma das prioridades de sua gestão. Ao mesmo tempo em que manteve laços históricos, como por exemplo, com a França, diversificou nossas parcerias externas — decisão naturalmente tributária da lógica pluralista da Política Externa Independente. Com a Argentina, a cooperação nas áreas de informática e de biotecnologia ajudou a adensar a agenda que, mais tarde, daria vida ao Mercosul. Buscou parcerias inovadoras com países como Alemanha, Rússia e Japão. Foi com a China que veio a surgir o fruto mais vistoso dessa política. Fizemos uma viagem a Pequim Archer, eu, Mauro Vieira, seu secretário particular (hoje embaixador em Washington), Marco Antonio Raupp, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (hoje ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação) e Crodowaldo Pavan, presidente do CNPq. Foram exploradas várias áreas, e nasceu a idéia da construção conjunta de um satélite, que se tornou realidade e veio a ser conhecido como Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres, o Cbers. Hoje em dia isso pode parecer corriqueiro, mas não havia nada de trivial em meados dos anos 1980 em ir à China legAdO e AtUAlidAde de reNAtO Archer miolo_renato_ascher.indd 39 39 04/12/12 13:00 para fazer um satélite! Durante muitos anos, esse foi o maior projeto de cooperação Sul-Sul do mundo (naqueles tempos, ao menos, a China era indiscutivelmente parte do Sul global). Já que falamos do legado mas também da atualidade de Renato Archer, é justo observar a grande importância que ele teve tanto para o programa aeroespacial quanto para o programa nuclear brasileiro, incidentalmente duas dentre as três áreas que a Estratégia de Defesa Nacional define como estratégicas para a defesa do Brasil no século XXI. Gostaria de concluir com um comentário. Anos depois do meu tempo com Archer no MinistéNão havia nada de rio da Ciência e Tecnologia, quando eu já trivial em meados dos ocupava o cargo de chanceler do goveranos 1980 em no Itamar Franco, voltamos a ter contato ir à China para fazer próximo, já que ele presidia a Embratel. um satélite! Durante Falava-me com animação sobre a necesmuitos anos, esse foi o sária independência do Brasil na área maior projeto de telecomunicações. Pude constatar o de cooperação Sul-Sul mesmo entusiasmo pelo trabalho, a mesdo mundo ma dedicação integral à missão que lhe fora entregue. Ainda mais tarde, quando eu morava em Nova York, servindo na Missão do Brasil junto às Nações Unidas, conversei com Renato em sua condição de diretor do comitê que trabalhava pela realização das Olimpíadas no Rio de Janeiro em 2004. Novamente percebi dedicação e entusiasmo. Um de seus discursos na Câmara dos Deputados traduz de modo muito singelo e verdadeiro esse seu infatigável empenho patriótico. Ao defender-se de ataques desferidos por opositores de suas posições nacionalistas na área nuclear, afirmou: “Está claro, senhor presidente, que a força da verdade e a marcha do destino brasileiro não podem ser facilmente 40 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 40 04/12/12 13:00 fulminados. E aqueles que se colocam na defesa dos legítimos interesses deste país têm de ver as suas ideias transformadas em ações, na medida em que expandem os seus pontos de vista com a devida compreensão dos rumos deste país” (1). Para Renato Archer era natural que a combinação de razão e patriotismo resultasse em transformação, para melhor, da realidade brasileira. Creio que, ao lado das qualidades humanas de que todos os amigos nos beneficiamos, seja essa a herança mais inspiradora que nos deixou. * Ministro de Estado da Defesa. Nota (1) Diário do Congresso Nacional (Seção 1), 1º de setembro de 1956. legAdO e AtUAlidAde de reNAtO Archer miolo_renato_ascher.indd 41 41 04/12/12 13:00 miolo_renato_ascher.indd 42 04/12/12 13:00 ARqUIVO depOiMeNtO SObre reNAtO Archer luciano coutinho* Tive o privilégio de poder aprender muito com o grande brasileiro que foi o doutor Renato Archer. Nossa convivência me deixou muitas lições. Eu o conheci no início dos anos 1980, no círculo do deputado Ulysses Guimarães, e posteriormente trabalhei muito proximamente a ele na estruturação do Ministério da Ciência e Tecnologia, do qual ele foi o primeiro ministro e eu o primeiro secretário-geral. Doutor Renato trazia na sua bagagem a convivência com San Tiago Dantas, com o presidente Juscelino Kubitschek, com o Almirante Álvaro Alberto, fontes inspiradoras. Ele era portador Ele era portador de uma visão desenvolvimentista com de uma visão um alcance incomum. Sua grande cadesenvolvimentista pacidade de articulação política ficou com um alcance expressa em momentos importantes incomum da história do Brasil, como a formação da Frente Ampla, na qual era o representante do então ex-presidente Kubitschek. Ele sempre perseguiu um projeto nacional de desenvolvimento, compreendendo a relevância da inovação tecnológica como mola propulsora para o desenvolvimento do Brasil. depOiMeNtO SObre reNAtO Archer miolo_renato_ascher.indd 43 43 04/12/12 13:00 Da sua convivência, ademais extremamente fidalga e agradável, extraí lições muito caras para minha própria formação. Sinto-me honrado de ter podido trabalhar junto a ele na construção de uma instituição tão valiosa para o país como é o Ministério da Ciência e Tecnologia. * Presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Depoimento concedido aos editores em 3/12/12. 44 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 44 04/12/12 13:00 ARqUIVO UM peqUeNO pedAÇO dA hiStÓriA de reNAtO Archer e SeU eNvOlviMeNtO cOM AS iNStitUiÇÕeS de deSeNvOlviMeNtO cieNtõficO e t ecNOlÓgicO dO brASil José R aiMundo bRaga coelho* Tenho a impressão de que há alguém que cuida de mim, pois me deu a oportunidade de participar deste empreendimento representando a figura do ministro da Ciência e Tecnologia Marco Antonio Raupp. É para mim motivo de muita honra, porque fiz parte da equipe de direção do Inpe na época do ministro Renato Archer (e juntamente com o ministro Raupp). Archer foi um dos criadores do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), e há ainda outro fato circunstancial que me prende a ele — o fato de ambos sermos maranhenses. A única diferença é que ele é de Codó e eu sou de São Luis. Além disso, quando eu tinha seis anos de idade meu pai, que era coletor estadual do Maranhão, levou-me para conhecer o pai dele, que era o governador do estado; ele era o chefe de gabinete. São circunstâncias da vida. Quero aproveitar isso para contar minha experiência de vida com o ministro Renato Archer, figura da qual nós não dispensamos nem a amizade, nem a saudosa convivência. Archer e AS iNStitUiÇÕeS de deSeNvOlviMeNtO cieNtõficO e tecNOlÓgicO miolo_renato_ascher.indd 45 45 04/12/12 13:00 Vou iniciar pela fotografia, que nunca me sai da memória. Renato Archer era um personagem inusitado. Homem barítono, mas flexível. Tinha a qualidade de enxergar momentos estratégicos. Isso é uma coisa fantástica, mas não a única importante. O mais importante para mim é saber, além da estratégia, como é que você desenvolve aquilo para dar resultados positivos. A primeira lição que tivemos com Renato Archer foi a seguinte: quando chegamos ao Inpe, essa instituição e todos os outros institutos de pesquisa de sua categoria estavam abaixo do CNPq. No dia em que Raupp tomou posse como diretor-geral do Inpe, o ministro Archer disse a ele: “A partir de hoje vocês são uma instituição do MCT. Não obstante o decreto, que deverá sair seja quando for, vocês passam a despachar diretamente comigo”. Isso, além de nos mostrar a inteligência estratégica do homem que estava dirigindo o MCT, desencadeou um processo pelo qual todos os outros institutos acabaram indo para a alçada do Ministério. Hoje temos vários institutos que são chamados de unidades de pesquisa do MCT, regidos por uma política pública de Estado. A segunda aula de vida que tivemos com o ministro Archer deu-se no momento da decisão de cooperar com a China. Primeiro os chineses estiveram aqui no Brasil com uma delegação de alto nível e, logo após, o ministro Archer foi à China e decidiu-se pela cooperação na área espacial. A partir da segunda viagem até 2002, quando eu deixei o Inpe, permaneci envolvido com esse programa, do qual viria a ser coordenador geral. Mas a lição — é incrível isto — é para o resto de nossa vida. Não interessa o que aprendemos no banco da escola, o que interessa realmente são essas lições de vida. Aprendemos fazendo, como dizia Confúcio. A genialidade desse pessoal é uma coisa impressionante. O cardápio que nos 46 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 46 04/12/12 13:00 foi apresentado na China para cooperação era uma agenda do tamanho de um prédio. E Renato Archer foi capaz de extrair dessa agenda um objeto fantástico, com as seguintes características: primeira, uma causa de mútuo interesse; segunda: um objeto que pudesse ser desenvolvido conjuntamente. Começou aí o programa de satélites, assunto de que tratamos para fazer a cooperação com a China. Essa foi a maior lição que tiO cardápio que nos foi vemos em nossa vida para situações de apresentado na China desenvolvimento tecnológico em áreas para cooperação era uma agenda estratégicas. Primeiro: objeto de utilido tamanho de um dade mútua; segundo: desenvolvimento prédio. E Renato conjunto. E com isso começamos a traArcher foi capaz de balhar. Em 1986, nós e os engenheiros extrair dessa agenda do Inpe e da agência chinesa Cast comeum objeto fantástico, çamos a nos envolver nisso preparando o com as seguintes chamado working report, construído logo características: após a segunda viagem. Em julho de primeira, uma causa 1988, durante a visita de nosso presidende mútuo interesse; te da República à China, foi assinado o segunda: um objeto acordo, e em agosto as equipes técnicas que pudesse ser começaram a trabalhar. desenvolvido conjuntamente Nos anos 1990, o que começou como uma simples cooperação mudou de patamar e passou a ser chamado de parceria estratégica. Isso é uma graduação na nomenclatura das relações exteriores. Agora, recentemente, essa cooperação conheceu uma nova graduação, passando a se chamar parceria estratégica global. Isso foi na Rio+20, numa reunião entre a nossa presidenta da República e o primeiro-ministro Wen Jiabao. Portanto, esse programa foi muito mais do que um exemplo daquilo que foi denominado originalmente “cooperação Sul-Sul”. Hoje ele é Archer e AS iNStitUiÇÕeS de deSeNvOlviMeNtO cieNtõficO e tecNOlÓgicO miolo_renato_ascher.indd 47 47 04/12/12 13:00 exemplo de cooperação para todos os países do mundo. Estamos prestes a lançar o quarto satélite de observação da terra. Em seguida lançaremos o quinto satélite, e já estamos preparando a plataforma de parceria para os próximos dez anos. Então pergunto a vocês, nessa área tecnológica, qual o outro exemplo que envolve o Brasil em situações como essa, com desenvolvimentos e empreendimentos semelhantes. Encerraria dizendo o seguinte: para mim é motivo de grande orgulho estar aqui hoje contando um pequeno pedaço da história de Renato Archer e de seu envolvimento com as nossas instituições de desenvolvimento científico e tecnológico, com foco no caso especial do Inpe. Hoje sou presidente da Agência Espacial, e tenho a impressão de que devo 90% disso às lições que aprendi com esse grande mestre. * Matemático, ex-coordenador geral do programa Cbers (China Brazil Earth Resource Satellites). Presidente da Agência Espacial Brasileira (AEB). 48 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 48 04/12/12 13:00 ARqUIVO reNAtO Archer e O ceNtrO de t ecNOlOgiA dA iNfOrMAÇÃO reNAtO Archer victoR PellegRini MaMMana * luciano henRique Pondian valente ** A gênese do atual Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI) ocorreu antes de o Brasil passar da fase militar para a Nova República. Em 30 de dezembro de 1982, na cidade de Campinas, era criado o CTI, então denominado Centro Tecnológico para Informática. Aquela transição para a democracia, como é comum em processos sociais de ruptura, combinava a inerente insegurança política com uma grave crise econômica que limitava a capacidade de investimento público. Criado no contexto da política de informática, o CTI teve fortes ameaças externas à sua implantação e sobrevivência, tendo que se ajustar seguidamente às novas dinâmicas do Estado brasileiro para manter-se fiel à sua missão original. O início dos anos 1980 foi muito difícil. A crise econômica vinha acompanhada de um processo inflacionário que, por si só, dificultava a capacidade de planejamento orçamentário da instituição. Pacotes fiscais inviabilizavam os investimentos justamente no momento em que a instituição necessitava de apoio para se estabelecer. A definição da missão do CTI, no apagar dos “anos de reNAtO Archer e O ceNtrO de tecNOlOgiA dA iNfOrMAÇÃO reNAtO Archer miolo_renato_ascher.indd 49 49 04/12/12 13:00 chumbo”, resultou do inusitado debate sobre a política de informática, que, num ambiente ainda de insegurança, ocorreu de forma surpreendentemente plural em várias instâncias da sociedade brasileira. Uma anedota vigente à época dizia, acertadamente, que “ciência e tecnologia era assunto da oposição”. Na verdade, foi o poder da proposta que estabeleceu a convergência de convicções, das mais variadas esferas e tendências, em torno da necessidade de o país buscar capacitação em tecnologia da informação, então referida como “informática”. Transformada em situação, a frente progressista representada por figuras como Ulysses Guimarães, Severo Gomes, Luiz Henrique e Renato Archer criou as condições para a sustentação de uma política industrial com bases democráticas. Ato contínuo, funcionários de carreira do governo, inspirados por esses líderes, mantiveram-se firmes e comprometidos com os ideais de uma sociedade brasileira livre, democrática e autônoma. Hoje, ocupam posições chave no governo brasileiro líderes que atuaram muito proximamente a Renato Archer na década de 1980, como Celso Amorim (atual ministro da Defesa), Luciano Coutinho (atual presidente do BNDES) e Marco Antonio Raupp (atual ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação), mostrando que o legado continua e se renova, dado que o compromisso com o país vem sendo passado de geração a geração. De fato, empossado ministro, Renato Archer foi um dos principais apoiadores do CTI na sua difícil infância, quando o cenário macroeconômico adverso ameaçava sua consolidação. O então ministro Archer, mantendo-se fiel aos princípios da proposta original da política industrial, promoveu sua reinvenção, aprofundando os instrumentos e buscando corrigir rotas. Hoje o Brasil diferencia-se positivamente de todos os demais países da América Latina que não adotaram políticas 50 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 50 04/12/12 13:00 semelhantes em termos de tecnologia da informação. O país tem marcas próprias, produção local e atividades relevantes de pesquisa e desenvolvimento (P&D) na área, provando que cadeias produtivas não se improvisam e o processo histórico requer décadas para consolidar seus benefícios. “A criação da Fundação Centro Tecnológico para Informática — a Fundação CTI — tem como objetivo promover a execução de pesquisas, planos e proTransformada em jetos, emitir laudos técnicos, acompasituação, a frente nhar programas de nacionalização e progressista exercer atividades de apoio às emprerepresentada por sas nacionais do setor.” figuras como Ulysses Foi assim que o ministro RenaGuimarães, Severo to Archer ratificou a missão do CTI, Gomes, Luiz Henrique em palestra proferida no Instituto de e Renato Archer criou Física da Unicamp, em Campinas, as condições para a em 17 de setembro de 1985, lançando sustentação de uma política industrial com a Fundação Centro Tecnológico para bases democráticas Informática, sucedânea do Centro Tecnológico para Informática. Com essa mudança na forma institucional, o CTI adquiria mais responsabilidade no cenário nacional, passando a ser parte integrante do recém-criado Ministério da Ciência e Tecnologia. À época da transformação do CTI em Fundação, Renato Archer já havia assumido o recém-criado Ministério, e tratou da importância do CTI na Abertura do 18º Congresso Nacional de Informática e da 5º Feira Internacional de Informática, em 23 de setembro 1985, eventos realizados simultaneamente na cidade de São Paulo. “[...] O Centro Tecnológico para Informática (CTI), a ser transformado em Fundação, deverá constituir-se em elemento irradiador de novos conhecimentos — elo importante entre a universidade e a indústria.” reNAtO Archer e O ceNtrO de tecNOlOgiA dA iNfOrMAÇÃO reNAtO Archer miolo_renato_ascher.indd 51 51 04/12/12 13:00 Nos seus primeiros anos o CTI confirmou sua vocação para fazer a importante ponte entre a pesquisa e a indústria nacional, numa área em que praticamente tudo tinha que ser criado. Pioneiro, em sua primeira década foram conduzidos vários projetos, entre os quais se destacam a instalação da primeira linha de montagem e encapsulamento de circuitos integrados, que forneceu durante vários anos para a Ericsson, Itautec e Bourroughs. Nesse mesmo período, iniciou-se o projeto de circuitos integrados dedicados, como o do primeiro marca-passo cardíaco eletrônico nacional. Enfrentando um forte bloqueio internacional à transferência de tecnologia para o Brasil, foi também instalada a primeira linha de fabricação de máscaras do Hemisfério Sul. As demais áreas do CTI também cresceram rapidamente. Realizaram-se, a título de exemplo, projetos com a Alcoa para automação da fundição de alumínio, o desenvolvimento de metodologias para testes de software junto à Ericsson e o projeto Fábrica de Software, conduzido em parceria com o Banco do Brasil e a Embrapa. Em colaboração com a Gurgel, o CTI desenvolveu o primeiro sistema de ignição eletrônica brasileiro. Também foram desenvolvidos sistemas de monitoramento de ensaios para avaliação dos motores da Bosch, e o programa de automação da refinaria Replan. Junto à empresa Gyron, colocou-se no ar o primeiro helicóptero não tripulado do país. Em 1985 o CTI desenvolveu o primeiro Display de Cristal Líquido (LCD) baseado em tecnologia totalmente nacional, estabelecendo a primeira linha piloto de produção no final daquela década, contemporânea dos principais esforços internacionais. Em 1989, o CTI, em cooperação com Associação Brasileira de Informática (ABINFO) e a Unicamp, com apoio do Exmo. Juiz Wladimir Valler, do Tribunal Regional Eleitoral, foi pioneiro na demonstração da primeira urna eletrônica do 52 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 52 04/12/12 13:00 mundo, cujo relatório de desempenho abriu o caminho para que o Tribunal Superior Eleitoral viesse a adotá-la em todo o território nacional. Nos anos 1990, liderando o primeiro estudo sobre TV digital do país, o CTI anteviu o papel que as telas de LCD viriam a desempenhar muitas décadas depois. Durante o período de 15 de março de 1985 a 22 de outubro de 1987, em que Renato Archer foi ministro da Ciência e Tecnologia, o CTI era dirigido pelo Dr. Miguel Teixeira de Carvalho, que exalta a visão ampla e estratégica do primeiro ministro da pasta. “Ele concebia a área de ciência e tecnologia como fundamental para o desenvolvimento social, cultural, político e econômico da sociedade brasileira como um todo”, conta Miguel de Carvalho. “Quando ele tinha convicção de que algo era importante, não media esforços para viabilizá-lo. Lembro-me de sua dedicação para criar o projeto Fábrica de Software, conduzido em parceria com o Banco do Brasil e a Embrapa, que criou no CTI o Núcleo Tecnológico para Informática Agropecuária — NTIA”, recorda Miguel de Carvalho. O objetivo do NTIA era aumentar a produção e a qualidade do software nacional, por meio da implantação de metodologias e de ferramentas baseadas nos conceitos mais modernos de engenharia de software, disponíveis internacionalmente, mas ainda não aplicados no país. Análises do cenário atual permitem constatar que aquele trabalho pioneiro teve impacto, até os dias de hoje, em todo o setor de software brasileiro. Anos mais tarde, o NTIA recebeu status de centro nacional e transformou-se no atual Centro Nacional de Pesquisa Tecnológica em Informática para a Agricultura (CNPTIA), que ganhou sede própria, também em Campinas e com vinculação direta com a Embrapa. “O CNPTIA é um centro de referência no Brasil, mas que só existe hoje pela ousadia de reNAtO Archer e O ceNtrO de tecNOlOgiA dA iNfOrMAÇÃO reNAtO Archer miolo_renato_ascher.indd 53 53 04/12/12 13:00 Renato Archer”, afirma Miguel de Carvalho. “O Renato foi muito importante para a estruturação das atividades do CTI em microeletrônica, software e automação. Ele tinha uma visão do Centro como um instituto de pesquisa e desenvolvimento (P&D) aplicado e de atuação próxima à indústria”, conclui ele. Em 1987, Renato Archer deixou "O período de gestão o Ministério da Ciência e Tecnologia do ministro Renato e assumiu o Ministério da Previdência Archer teve um e Assistência Social, onde permaneceu grande significado na por mais três anos. Posteriormente, história da ciência e conduziu a Presidência da Embratel, tecnologia do Brasil, não já na década de 1990, permanecendo somente pela criação mais distante das atividades do CTI. do Ministério, como Os anos 1990 não foram fáceis pela visão estratégica para instituições voltadas ao apoio à e de estadista do então ministro. A consolidação da cadeia produtiva naconsolidação do CTI cional. De 1990 a 2000, a total ausênfoi um dos produtos cia de uma política industrial e o foco de sua gestão, mas numa visão acadêmica do Ministério devemos reverenciá-lo da Ciência e Tecnologia produziram também por suas outras ações desorganizadoras do esforço tecrealizações que tiveram nológico e industrial brasileiro. Como impacto sobre toda a área se não bastasse a total insensibilidade de ciência e tecnologia do para com a questão da tecnologia, a reBrasil. Por essa razão, forma do Estado promovida naquela considerou-se uma honra para o CTI associar década implicou mudanças radicais nas políticas de recursos humanos do o nome do ministro ao da instituição”, conta Carlos governo e na sua forma de organização Mammana administrativa. Nesse período o CTI vivenciou uma redução substancial de seus quadros técnicos, como resultado de uma reforma que reduzia o salário real e buscava promover a demissão voluntária 54 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 54 04/12/12 13:00 de funcionários com alta experiência e competência. A abertura comercial sem visão estratégica inviabilizou uma série de atividades industriais que estavam em incubação no país, eliminando os principais stake-holders envolvidos no processo de consolidação do CTI. Esse conjunto de fatos resultou na ameaça de fechamento da instituição no final da década de 1990, a qual foi enfrentada pela modificação da formatação institucional. Em 18 de agosto de 2000, o CTI deixou de ser fundação, transformando-se num órgão da administração direta cujo nome passou a ser Instituto Nacional de Tecnologia da Informação — ITI. Como pano de fundo, a mudança de nome permitia, num ambiente adverso à visão estratégica de país, romper com o estigma de sua origem ter ocorrido no bojo de uma política industrial. Esse ajuste tático garantiu a continuidade da missão original do CTI, que a partir de 1999 voltava a crescer, dia após dia, aumentando suas parcerias, seu corpo de colaboradores externos e sua inserção na sociedade. Importantes resultados tecnológicos foram conseguidos no período, mesmo nessas condições adversas, as quais consumiam a energia de uma equipe de servidores públicos (internos) cada vez menor. De fato, resiliente e comprometida com sua missão pública, a comunidade do CTI buscou recuperar seu papel de protagonismo na nova organização da cadeia produtiva das tecnologias da informação (TI), resultante da abertura comercial. Foram anos duros de revisão de planos e redirecionamento de carreiras. Sem apoio do governo central para sua recapacitação, a força de trabalho teve que, em harmonia com a gestão local, buscar um novo enraizamento na cadeia produtiva do setor. Ao mesmo tempo em que se fortalecia, apresentando indicadores crescentes de bons serviços à sociedade brasileira, o CTI deparava-se com novos desafios para manter-se conecreNAtO Archer e O ceNtrO de tecNOlOgiA dA iNfOrMAÇÃO reNAtO Archer miolo_renato_ascher.indd 55 55 04/12/12 13:00 tado à sua missão original. Através de medida provisória, em 24 de agosto de 2001, o governo federal decidiu instalar a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), determinando que o então ITI faria sua implantação. A missão do ICP-Brasil, de caráter operacional, era incompatível com o perfil da força de trabalho existente. Atendida a determinação dada pelo governo federal de desenhar integralmente a nova instituição de chaves públicas e respectiva política nacional, o CTI buscou retornar à condição de entidade de pesquisa. Para isso, o então ITI migrou para Brasília em 4 de dezembro de 2001. Na mesma data foi criado o Centro de Pesquisas Renato Archer (CenPR A), que passou a operar nos mesmos prédios e com o mesmo pessoal dos antigos ITI e CTI, em Campinas, sucedendo-os. Nesse processo, a ideia de homenagear Renato Archer, então já falecido (em 1996), surgiu de uma conversa entre o ministro da Ciência e Tecnologia na época, Dr. Ronaldo Sardenberg, e o então diretor do CTI, professor Carlos Ignacio Zamitti Mammana. “O período de gestão do ministro Renato Archer teve um grande significado na história da ciência e tecnologia do Brasil, não somente pela criação do Ministério, como pela visão estratégica e de estadista do então ministro. A consolidação do CTI foi um dos produtos de sua gestão, mas devemos reverenciá-lo também por suas outras realizações que tiveram impacto sobre toda a área de ciência e tecnologia do Brasil. Por essa razão, considerou-se uma honra para o CTI associar o nome do ministro ao da instituição”, conta Carlos Mammana. “Na década de 1980, eu era o diretor do Instituto de Microeletrônica, com a incumbência, entre outras, no âmbito da implantação daquele Instituto, de instalar a linha de fabricação de máscaras fotolitográficas, ferramentas fundamentais para a fabricação de circuitos integrados. As negociações 56 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 56 04/12/12 13:00 foram conduzidas com o apoio decidido do MCT, à época sob o comando do ministro Renato Archer. Foram realizadas inúmeras ações para o sucesso do empreendimento, nas quais foram fundamentais a participação do então secretário executivo do Ministério, Dr. Luciano Coutinho, e do então secretário para Assuntos Internacionais do MCT, ministro Celso Amorim”, recorda Carlos Mammana. “Merece ser lembrada outra relevante iniciativa realizada durante sua gestão, que foi a criação das Escolas Brasileiro-Argentinas de Informática (EBAI), com importantes resultados na formação de recursos humanos e na aproximação das comunidades acadêmicas brasileira e argentina na área da informática. A realização das EBAIs teve o apoio decisivo do CTI, que se envolveu com entusiasmo e para as quais muito contribuiu”, finaliza. O modelo de formação de recursos humanos estabelecido pela EBAI serviu de base, posteriormente, para o estabelecimento do bem-sucedido Programa CI-Brasil do MCTI. As bases do Programa CI-Brasil também foram lançadas pelo professor Mammana, em 2006, como subproduto do Programa Multi-Usuário (PMU) para projeto de circuitos integrados, liderado pelo CTI na década de 1990. Em 2008, no dia 13 de junho, quando o governo federal renovava seu compromisso com a política industrial apresentando os resultados de quatro anos de investimentos na Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE), já não havia mais bases para o preconceito contra esse importante instrumento de desenvolvimento econômico. A realidade internacional apontava, também, para a inviabilidade do modelo adotado na década de 1990. Nesse contexto, a instituição pôde retomar sua sigla original, CTI, agora representativa do nome Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer. Hoje se pode dizer que o nome Renato Archer está reNAtO Archer e O ceNtrO de tecNOlOgiA dA iNfOrMAÇÃO reNAtO Archer miolo_renato_ascher.indd 57 57 04/12/12 13:00 definitivamente associado ao CTI e é possível perceber que isso é um motivo de orgulho para a comunidade interna. Após 30 anos de sua fundação, mantendo-se fiel à missão ratificada pelo ministro Renato Archer e legitimado por sua inegável contribuição para o país, o CTI reforça seu compromisso com as políticas públicas do governo federal. A instituição reconquistou, na última década, uma posição privilegiada no cenário de P&D nacional, consolidando sua capacidade de pesquisa e desenvolvimento em tecnologia da informação. A utilização de um modelo de gestão participativa permitiu mobilizar uma ampla matriz de competências em TI no entorno de seus projetos, garantindo a recuperação de seus stake-holders, o que lhe permitiu um definitivo enraizamento na cadeia produtiva nacional. Consolidado, o CTI Renato Archer está pronto para novos desafios e prepara-se, continuamente, para ser cada vez mais relevante para a sociedade brasileira, seguindo os ideais de seu patrono. * Doutor em Física (USP). Diretor do Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI). ** Pós-graduado em Jornalismo (Unicamp). Colaborador do Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI). 58 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 58 04/12/12 13:00 referíncias bibliográficas A RcheR , Renato. Quem tem medo da informática brasileira. MCT / CNPq. CaRvalho, Miguel Teixeira. Entrevista a Luciano Valente. Campinas, 28 de novembro de 2012. MaMMana , Carlos Ignácio Zamitti. Entrevista a Luciano Valente. Campinas, 30 de novembro de 2012. MaMMana , Victor Pellegrini. Proposta de Plano de Trabalho apresentada ao Comitê de Busca para Diretor do CTI Renato Archer. Campinas, 2011. MoReiR a , Regina da Luz; SoaRes, Leda (organizadoras). Renato Archer: Diálogos com o Tempo. Rio de Janeiro: CPDOC/Fundação Getúlio Vargas, 2007. reNAtO Archer e O ceNtrO de tecNOlOgiA dA iNfOrMAÇÃO reNAtO Archer miolo_renato_ascher.indd 59 59 04/12/12 13:00 miolo_renato_ascher.indd 60 04/12/12 13:00 ARqUIVO O l egAdO de reNAtO Archer e A Sbpc 2012 natalino salgado Filho* O presidente da Academia Maranhense de Letras, Benedito Buzar, em artigo publicado no dia 15 de julho, ressaltou a importância de Renato Archer, que, se vivo estivesse, teria completado 90 anos nesse mês. Buzar destacou, em seu artigo, o viés político daquele maranhense que galgou — numa trajetória de diversas lutas, embates e conquistas — diversos degraus até dirigir o Ministério da Ciência e Tecnologia, hoje transformado em Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, considerado um dos mais importantes órgãos para um país que almeja ser referência — interna e externamente — na área. O artigo de Buzar — que descreve em ricos detalhes os bastidores da vida política de Renato Archer e traça um cenário da política maranhense na época da ditadura militar, com reviravoltas e detalhes pitorescos — traduz-se numa feliz coincidência para este mês de julho, quando acontece, entre os dias 22 e 27, na Cidade Universitária da Universidade Federal do Maranhão, o maior evento científico da América Latina e do Caribe: a 64ª Reunião Anual da SBPC, que reune pesquisadores, cientistas e interessados em adquirir conhecimentos e trocar experiências. A coincidência diz respeito ao fato de que grande é a contribuição de Renato Archer para a ciência brasileira. FormaO legAdO de reNAtO Archer e A Sbpc 2012 miolo_renato_ascher.indd 61 61 04/12/12 13:00 do em Física Nuclear e autor de obras como Política nacional de energia atômica (1957); Aspectos econômicos do uso da energia nuclear (1958), e Diretrizes para uma Política Externa Independente (1963), Archer lançou, ao lado de um grupo de renomados cientistas, campanha pela criação do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). A reivindicação foi atendida na gestão do presidente José Sarney, por meio do decreto nº 91.146, de 15 de março de 1985, o qual criou formalmente o Ministério da Ciência e Tecnologia. Archer foi nomeado o primeiro ministro da pasta. Foi a concretização de um sonho antigo, acalentado por professores e pesquisadores de todo o país. Já em dezembro de 1985, diversas reuniões regionais simultâneas, em onze cidades do país, agregaram empresários, pesquisadores, estudantes e professores, objetivando debater soluções para a ciência no Brasil. Coube ainda a Renato Archer a realização da primeira Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia. A professora Angelise Valladares Monteiro, em sua tese A dinâmica de mudanças estratégicas: estudo de multicasos em institutos de pesquisa, defendida para a obtenção do título de doutora em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina, faz um resgate histórico da gestão do então ministro Renato Archer, creditando a ele, além de diversas outras realizações, a abertura de diálogo com os responsáveis pela produção científica e tecnológica brasileira; a manutenção de órgãos de pesquisa fundamentada na decisão de priorizar investimentos na área; a criação de uma comissão interministerial, com membros representantes da comunidade científica e empresarial, para orientar as ações estratégicas na área de novos materiais, e a criação de uma Secretaria de Biotecnologia. 62 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 62 04/12/12 13:00 Aqueles que tiveram o privilégio da convivência com Archer, enquanto este era ministro, contam que ele era um homem afável, profundo amante da ciência e da pesquisa. A partir de sua passagem pela Marinha, interessou-se por Energia Nuclear e sempre dispunha de tempo para ouvir aqueles que o procuravam com ideias e sugestões. O Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas e dados históricos da Câmara dos Deputados registram ainda que ele integrou como delegado do Brasil a comissão de instalação da Agência Internacional de Energia Atômica, em Viena, na Áustria, em 1957. Foi delegado do Brasil na Conferência Geral da Agência Internacional de Energia Atômica, em 1959, e governador pelo Brasil da Junta da Agência Internacional de Energia Atômica, em 1960. Archer também integrou a Coube a Renato conferência de instalação da Comissão Archer a realização da de Energia Atômica da Organização dos primeira Conferência Estados Americanos (OEA), em WaNacional de Ciência e Tecnologia shington, nos Estados Unidos. Sua importância para a área foi reconhecida de tal modo que seu nome batizou o Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer, unidade do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação que atua na pesquisa e no desenvolvimento em tecnologia da informação. Sua biografia foi tema de duas importantes obras: Renato Archer: energia atômica, soberania e desenvolvimento, de Alvaro Rocha Filho e João Carlos Vitor Garcia (Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. 272 p.) e Renato Archer: diálogo com o tempo, de Regina da Luz Moreira e Leda Soares (Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 2007. 379 p.). Que seu exemplo de abnegação na luta em defesa da ciência sirva para inspirar as novas gerações a também se dedicarem à causa, não apenas nestes dias em que estaremos às voltas O legAdO de reNAtO Archer e A Sbpc 2012 miolo_renato_ascher.indd 63 63 04/12/12 13:00 com a programação rica e extensa da SBPC — que tem como tema “Ciência, cultura e saberes tradicionais para enfrentar a pobreza” — mas em todas as épocas. O país que valoriza seus pesquisadores e cientistas cria oportunidades para que todos cresçam com qualidade, com cultura de inovação. Como consequência, surge o incremento na competitividade global da economia aliada à inclusão social. * Médico, doutor em Nefrologia (Unifesp). Reitor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (IHGM). Artigo originalmente publicado, com poucas modificações, no jornal O Estado do Maranhão em 22/7/2012. 64 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 64 04/12/12 13:00 ARqUIVO hOMeNAgeM A reNAtO Archer JaiR dos santos oliveiR a* Desejaria apenas fazer uma breve saudação. Gostaria de voltar um pouco no tempo, até o ano de 1941, quando um jovem de dezoito para dezenove anos cruzava pela primeira vez os portões de Villegagnon, onde se situa a Escola Naval, que forma os oficiais da Marinha de Guerra no Brasil. Como ocorre com qualquer outro jovem de dezoito para dezenove anos, a cabeça fervilha de ideias e, dentro dos portões de Villegagnon, certamente o coração arde de patriotismo e de uma vontade imensa de servir à Pátria. Não foi diferente com esse jovem de quem estou falando. Refiro-me ao ministro Renato Archer. É a respeito dessa ilustre pessoa que eu gostaria de comentar. Ele iniciou sua carreira na Marinha do Brasil em 1941. Formou-se na Escola Naval em 1945, onde conheceu um professor de química chamado Álvaro Alberto. Após vinte anos de serviços, foi transferido para a reserva no posto de capitão de fragata. Em nossa instituição, recebeu várias condecorações. Passo a citar algumas delas: a Medalha Mérito Tamandaré, a Medalha da Força Naval do Nordeste e a Medalha da Ordem do Mérito Naval no grau comendador. Renato Archer faz parte de uma elite de cientistas da Marinha que, por sua capacidade e visão de futuro, participou hOMeNAgeM A reNAtO Archer miolo_renato_ascher.indd 65 65 04/12/12 13:00 do desenvolvimento da ciência, tanto na minha instituição, a Marinha de Guerra do Brasil, quanto em várias outras instituições. Foi discípulo e amigo do Almirante Álvaro Alberto, que é o patrono da ciência, tecnologia e inovação da Marinha. Iniciativas brilhantes, como a criação do então Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) e a deflagração do audacioso e pioneiro programa nuclear brasileiro, são fruto dessa amizade, dessa admiráFoi discípulo e amigo vel parceria. Hoje o Brasil habilita-se a do Almirante Álvaro Alberto, que é o fazer parte do seleto grupo de países que patrono da ciência, domina o conhecimento necessário para tecnologia e inovação o enriquecimento de urânio, visando a da Marinha abastecer nossas usinas energéticas e alimentar o submarino movido a propulsão nuclear, a ser construído pela Marinha. Assim, deixo registrados nossos agradecimentos ao ministro Renato Archer por sua perseverança e empreendedorismo dedicados ao Brasil e à Marinha. * Capitão de mar e guerra. Comandante da Capitania dos Portos do Maranhão. 66 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 66 04/12/12 13:00 ARqUIVO viSÃO eStrAt ÉgicA, pOlõticA e x t erNA SOberANA a lvaRo Rocha Filho* Falar de Renato Archer é uma oportunidade para focalizar duas de suas características: a concepção básica de ser imprescindível a definição de objetivos estratégicos de longo prazo — e dos respectivos instrumentos e mecanismos capazes de conferir-lhes operacionalidade — e, como corolário, a visão da necessidade de uma atuação internacional daí decorrente. Ou seja: planejamento estratégico de longo prazo e política externa que lhe dê respaldo. Essas duas características explicam a denúncia, por Archer, do abandono formal da política nuclear de Getúlio, inclusive com a explícita ingerência estrangeira, e todo um viés de sua atuação no Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e na Embratel. A questão da energia nuclear no Brasil, creio, pode ser vista em três etapas distintas. A primeira fase caracteriza-se pela luta pelo direito ao acesso e ao desenvolvimento de tecnologia e à formação de pessoal altamente qualificado. Nessa etapa temos a opção pela tecnologia de ultracentrífugas. Esse período é corporificado na pessoa do almirante Álvaro Alberto, responsável por sua formulação e pela institucionalização de uma política de ciência e tecnologia. A respeito disso, tenho em mãos uma cópia da carta do cientista Paul Artec, do Instituto Americano Politécnico de Rensselaer, nos Estados UniviSÃO eStrAtÉgicA, pOlõticA e x terNA SOberANA miolo_renato_ascher.indd 67 67 04/12/12 13:00 dos, admitindo serem as ultracentrífugas a opção tecnológica dos chineses. Tenho também o fac-símile da primeira página de O Globo com a notícia de Álvaro Alberto na Presidência da Comissão de Energia Atômica da ONU, e o inventário do arquivo de Álvaro Alberto organizado sob o patrocínio da Embratel na gestão de Renato Archer (1). Temos exemplos de A segunda fase remete-nos à coninstitucionalização de quista do desenvolvimento de tecnoloestratégias de longo gia própria em todas as etapas do ciclo prazo, mas isolados. de enriquecimento de urânio, propiA institucionalização ciando a integração com a indústria pontual de mudanças nacional. Pode-se dizer que está simde paradigma não nos bolizada nas figuras do professor Rex assegura a integração Nazaré e do almirante Othon Luiz nas transformações Pinheiro da Silva. A propósito, vale mundiais, lembrar um telefonema de 1985 recebitecnológicas, do por Renato Archer no intervalo de econômicas, sociais uma conferência na Escola Superior de e políticas em curso, já cantadas Guerra com a seguinte mensagem: “A em prosa e verso criança nasceu”. A frase foi proferida pelo professor Rex Nazaré. Na terceira fase possivelmente ingressaremos agora — com a conclusão de Angra 3, deve-se ler. O Brasil está em vias de ser talvez o único país a reunir todas as seguintes condições: abundância de jazidas de minério; tecnologia de ponta própria, de baixo custo e alta eficiência; parque industrial capaz de produzir equipamentos, desde a extração de minério até a construção de usinas; escala na capacidade de todas as fases de enriquecimento de urânio; tradição e respeitabilidade internacional. Essas são características que possibilitarão ao Brasil, prescindindo da agressividade da bomba atômica, ingressar no mercado mundial de urânio enriquecido, coisa 68 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 68 04/12/12 13:00 hoje acima de quarenta ou cinquenta bilhões de dólares, dominado por dois cartéis que não dispõem de jazidas de urânio. Seria a oportunidade de participar da estrutura mundial de produção energética e ocupar espaço no balanço de forças do poder político internacional daí decorrente. Tal condição permitiria ao setor de energia nuclear nacional gerar os próprios recursos para seu crescimento conforme as exigências de uma matriz energética autônoma. A partir daqui já temos uma briga de cachorro grande e, permitam-me um pleonasmo, de singularidade ímpar. Agora a exigência é de objetivos estratégicos e de política externa condizente, duas das características que definem, como já disse, a atuação pública de Renato Archer. (A propósito, faz falta um relato factual, isento de controvérsias pessoais, da história da energia nuclear no Brasil — seus desafios, conhecidos desde o passado, suas perspectivas futuras, suas exigências. Considerando estarem situadas no estado do Rio de Janeiro as usinas nucleares e o complexo de enriquecimento de urânio — este em Resende —, a fundação de apoio à pesquisa do Rio, a Faperj, e a Eletronuclear bem poderiam levar em consideração essa proposta.) No processo de estruturação do MCT, em que foram determinantes o atual ministro, Marco Antonio Raupp (à época diretor-geral do Instituto de Pesquisas Espaciais) e também o José Raimundo Coelho, identificam-se igualmente os aspectos já citados: objetivos estratégicos e atuação internacional. No Inpe realizou-se a segunda reunião de planejamento estratégico do MCT. Tenho em mãos o relatório de atividades dos três primeiros anos do MCT. Tenho também em minha posse a carta patente do Banco Central reconhecendo a Finep como instituição financiadora, assinada em 1967 (2). Foi do então diretor do Inpe, Marco Antonio Raupp, viSÃO eStrAtÉgicA, pOlõticA e x terNA SOberANA miolo_renato_ascher.indd 69 69 04/12/12 13:00 a iniciativa da troca de missões com a China a que se refere o ministro Celso Amorim (3), que resultaram no tratado de produção conjunta de satélites, assinado em Pequim pelo presidente da República. Numa das viagens à China (não sei se a primeira), em reação a uma afirmativa do doutor Raupp, o chefe da delegação chinesa rompeu a tradicional postura oriental de formalidade, deu uma volta ao redor mesa e o abraçou calorosamente. Tenho em meus guardados um exemplar do boletim de atividades do Inpe que registra a vinda ao Brasil da segunda missão chinesa, em 1986. Foi no Inpe que se construiu e se inaugurou, com a presença do presidente da República, o Laboratório de Integração e Testes (LIT), parte integrante do programa de satélites. Trago em mãos a fotografia do evento, que mostra a jovem figura do professor José Raimundo (4). Este é um exemplo de outro setor, o setor de satélites, cujos avanços e tropeços devem-se à obstinação de pessoas como o doutor Raupp, o professor Rex Nazaré, os almirantes Álvaro Alberto e Othon Pinheiro da Silva e alguém mais que poderia ser citado. Aliás, da mesma maneira que no caso da energia nuclear, faz falta também uma história da luta pela capacitação nacional nessa área. O Brasil é coberto por uma nuvem de satélites de comunicação, nenhum deles construído no Brasil — os que eram de propriedade nacional foram vendidos. Entre os programas definidos como integrantes dos objetivos estratégicos do MCT registra-se aquele voltado à produção de fármacos básicos. Somente agora, um quarto de século depois, ele teve sua institucionalização, graças às definições do ministro Temporão e às diretrizes de financiamento do BNDES. A experiência acumulada mais do que comprova o quanto é decisiva a integração em inovação e produção industrial. Em Petrópolis, no Laboratório Nacional de Com70 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 70 04/12/12 13:00 putação Científica (LNCC), o doutor Raupp executou um programa de iniciação à informática aberto a jovens e idosos que matriculou mais de vinte mil pessoas, estabelecendo na cidade uma mentalidade aberta ao desenvolvimento da informática e à formação de mão de obra qualificada para atender às necessidades do que é hoje o polo de informática da região. Foi assim também em Aramar e Resende no caso da energia nuclear, tendo a Marinha como pedra angular. Foi assim em São José dos Campos, com o conjunto de instituições de pesquisa e ensino da Aeronáutica, mais o Inpe, cujos resultados não se restringem à Embraer. Todos os problemas Aponte-se recentemente a estruturação, estão tecnicamente em São José dos Campos, de um instituestudados e to que operacionaliza a integração entre equacionados, mas as instituições de ensino e pesquisa e as não se concebe em demandas de inovação da indústria (5). termos institucionais Doutor Raupp criou esse instituto e foi estratégias de longo seu presidente; José Raimundo Coelho prazo e respectivas estruturas era o vice-presidente e tornou-se deinstitucionais pois presidente, quando Raupp assumiu a Agência Espacial. Acrescente-se a importância dos parques tecnológicos implantados a duras penas, como ocorre com o do Rio de Janeiro, cuja existência muito se deve à teimosia de Maurício Guedes, há mais de um quarto de século, e que ganha agora musculatura, dado o interesse de empresas estrangeiras. Temos exemplos de institucionalização de estratégias de longo prazo, mas isolados. A institucionalização pontual de mudanças de paradigma não nos assegura a integração nas transformações mundiais, tecnológicas, econômicas, sociais e políticas em curso, já cantadas em prosa e verso. No Brasil registramos hoje em todos os setores da vida viSÃO eStrAtÉgicA, pOlõticA e x terNA SOberANA miolo_renato_ascher.indd 71 71 04/12/12 13:00 nacional um impasse, um estrangulamento, um paradoxo ou outro nome que se queira dar. Desde que Juscelino desmantelou as estruturas administrativas existentes e mostrou a fratura exposta — ele que era médico — das instituições políticas, há meio século a sociedade brasileira deve a si mesma as reformas operacionais, estruturais e institucionais que se devem impor. A última ruptura geral de paradigmas que houve foi promovida pela Revolução de Chimangos em 1930. Ainda hoje os fundamentos e instrumentos institucionais de indução do desenvolvimento são os concebidos na era getulista, com raras exceções. Temos um quadro paradoxal: a produtividade agrícola mais do que duplica com base na pesquisa tecnológica de ponta da Embrapa, e um navio leva trinta dias para carregar açúcar em Santos. A fila de caminhões para embarque de soja em Paranaguá supera os setenta quilômetros. Temos um ensino básico que não consegue superar o analfabetismo, e uma estrutura institucional administrativa e política anacrônica. Então se aplica o esparadrapo da cota racial. Vivemos tratando o estrutural com os remendos da conjuntura. O mais complexo é que todos os problemas estão tecnicamente estudados e equacionados, mas não se concebe em termos institucionais estratégias de longo prazo e respectivas estruturas institucionais. Voltamos, pois, às premissas iniciais: estratégia de longo prazo e política externa que lhe dê respaldo. É sintomático que, da equipe de Renato Archer, tenhamos hoje Marco Antonio Raupp como ministro da Ciência e Tecnologia, José Raimundo Coelho como presidente da Agência Espacial Brasileira, Celso Amorim nas Relações Exteriores — agora na Defesa — e Luciano Coutinho no BNDES. Registre-se também o professor Rex Nazaré, um dos mais próximos e constantes interlocutores de Archer desde o 72 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 72 04/12/12 13:00 início de sua vida pública. Eu pessoalmente sou apenas um velho repórter. Coube-me registrar e contar a história por meio de alguns fleches, trechos de algumas cenas. O dilema de definir o sentido e o enredo da peça, suas opções, é sobretudo o desafio dos herdeiros obstinados e dos parceiros de Archer, que o foram com tanto empenho. * Jornalista, coautor do livro Renato Archer: energia atômica, soberania e desenvolvimento. Notas (1) Alvaro Rocha Filho levou todos esses documentos a São Luis e, durante a mesa-redonda em homenagem a Archer, entregou-os solenemente ao professor Rex Nazaré. (2) Durante a mesa-redonda em homenagem a Archer, Alvaro Rocha Filho entregou esses documentos a José Raimundo Coelho, para que os levasse aos arquivos do MCT. (3) Cf. texto de Celso Amorim no presente volume. (4) Tanto o boletim de atividades do Inpe quanto a fotografia foram entregues durante a mesa-redonda a José Raimundo Coelho. (5) O autor refere-se ao Parque Tecnológico de São José dos Campos. viSÃO eStrAtÉgicA, pOlõticA e x terNA SOberANA miolo_renato_ascher.indd 73 73 04/12/12 13:00 miolo_renato_ascher.indd 74 04/12/12 13:00 ARqUIVO reNAtO Archer, UM e x eMplO A Ser SeMpre l eMbrAdO R ex nazaRé* Melhor não poderia ser a ocasião escolhida pela Fundação Maurício Grabois para homenagear Renato Archer, no contexto da 64ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, este ano realizada nas dependências da Universidade Federal do Maranhão e situada, oportunamente, na terra natal de Archer, que, se vivo, teria completado no último dia 10 de julho noventa anos. Estou certo de que muitos dos resultados apresentados nessa Reunião da SBPC têm suas origens nas ações por ele realizadas. O atual Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação é resultado, em parte, das condições materiais herdadas do passado, que foram forjadas — não se faz nada a partir do nada — no século XIX e no início do século XX. Nathan Rosenberg, discutindo as interdependências tecnológicas, argumenta que as invenções nunca emergem isoladamente. No processo de inovação e expansão produtiva é mais comum a presença de aglomerados de inovações inter-relacionadas. Aqui assistimos intervenções sobre a atuação de Archer no setor nuclear, nas inovações, na área espacial. Essas afirmações convergem com as de Alcides Goulart Filho, ao indicar que ao longo do século XIX e durante as primeiras décadas do século XX, na indústria de construção naval reNAtO Archer, UM e x eMplO A Ser SeMpre leMbrAdO miolo_renato_ascher.indd 75 75 04/12/12 13:00 do Rio de Janeiro, pôde-se observar um constante fluxo intersetorial entre o Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, os estaleiros navais, as fundições e o comércio exportador e importador, que possibilitou a manutenção e a ampliação do aglomerado de estaleiros navais. Isso atendia às necessidades do transporte de cabotagem de um país com extenso litoral e portos localizados nas principais cidades brasileiras. Vale lembrar que a construção de embarcações de porte um pouco maior começou a ser realizada com a fundação dos arsenais de Marinha, que também produziam munições e armamento, além de realizar obras civis e hidráulicas. A partir de 1761 foram criados arsenais em diferentes cidades brasileiras. Como resultado, entre 1822 e 1890, a construção naval brasileira lançou ao mar 46 navios, incluindo quatro encouraçados e quatro cruzadores, com destaque para o cruzador Tamandaré. O cruzador Tamandaré é dessa época. Iniciado em 1884 e lançado ao mar em 1890, deslocava 4.537 toneladas, sendo o maior navio construído no Arsenal até a década de 1960. Essa estrutura permitiu ao Arsenal de Marinha da Corte durante a Guerra do Paraguai construir quatorze navios, incluindo aí não mais um cruzador, mas o encouraçado que recebeu o mesmo nome, encouraçado Tamandaré. Este é um exemplo de desenvolvimento autônomo, que evoluiu do motor de 70 hp em 1842 para o de 7.500 hp em 1890, demonstrando a trajetória de inovação traçada durante o século XIX e sublinhando a importância de uma continuada atividade industrial e tecnológica nas oficinas e nos diques do Arsenal de Marinha. Lembro-me perfeitamente: quando eu coordenava programas estratégicos na década de 1980, verificamos que todo esse conhecimento a que me referi havia sido perdido. Temos essa obrigação, e por isso eu fiz questão de buscar dados his76 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 76 04/12/12 13:00 tóricos e, mais do que isto, de produzir esta intervenção. É o dever de manter a tradição, de garantir a continuidade. Isso é um dever de todos. A construção naval brasileira cumpriu um papel de indústria motriz nacional, criando um fluxo intersetorial, propiciando o surgimento de outros estaleiros da construção naval e de atividades correlatas e complementares. Essa é a tradição que forjou homens como Álvaro Alberto, Otacílio Cunha e nosso homenageado, Renato Archer. A vida me proporcionou coincidências extraordinárias. Conheci Álvaro Alberto, embora tenha lidado pouco com ele. Substituí Otacílio Cunha na direção executiva da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) em 1975, após seu falecimento em setembro de 1974. Mais tarde, em 1982, já então presidente da Cnen, conheci Renato Archer. Todos esses homens são herdeiros de uma tradição científica militar, o que os coloca como referências importantes para o desenvolvimento nacional. Quando se fala em uma tradição científica e tecnológica dos militares, a explicação pode ser encontrada em sua formação. Essa tradição tem origem em uma escola na qual o indivíduo é criado para observar e dar continuidade àquelas atividades. Aquilo que ele aprendeu, ele passa para o substituto, que passa para o outro, e aí vamos ter algum nível de continuidade e herança. Infelizmente tivemos o momento em que alguns desses arsenais foram desativados, ocasionando a perda de muita informação, tanto no Exército quanto na Aeronáutica e na Marinha. Em 1949, Álvaro Alberto convidou Renato Archer para ajudá-lo na aprovação do projeto de lei 1.310, que criaria o CNPq. Felizmente tive o prazer de conhecer seu sobrinho, também deputado federal, que me fez lembrar esse fato de 1949, quando Renato Archer lutava pela lei para criar o CNPq. reNAtO Archer, UM e x eMplO A Ser SeMpre leMbrAdO miolo_renato_ascher.indd 77 77 04/12/12 13:00 Não resisti e disse ao jovem parlamentar: “Vamos armar coisas semelhantes, porque sem dúvida nenhuma é sempre bom saber que tem alguém com índole e bom cromossoma, tradição e boa raiz, que pode dar seguimento”. É em função de iniciativa liderada por Álvaro Alberto que temos o CNPq, é em função de iniciativa liderada por Otacílio Cunha que temos a Cnen. E devemos muito a Renato Archer a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia, do qual foi o primeiro titular. Dentre as atividades de Renato ao longo da vida, sublinha-se uma constante luta pelas causas da ciência, da tecnologia e do setor público. No início da década de 1950 fundou uma empresa inovadora, a Prospec, que atuava em aerofotogrametria e em fotogeologia. Observemos bem: era um indivíduo que tinha a noção precisa de que havia espaço para o setor privado dentro do modelo adotado pelo Brasil. Archer no MCT foi responsável por várias iniciativas aqui citadas. Porém, sem dúvida nenhuma delas foi tão extraordinária quanto a criação e ampliação da formação de recursos humanos em áreas estratégicas. Formar recursos humanos é garantir boa semente para o futuro. Archer foi um dos grandes e importantes defensores da reserva de mercado no setor de informática. Na mensagem de Celso Amorim, lida no seminário de São Luis e publicada neste livro, está dito que na política de defesa há dois aspectos pelos quais Archer lutou muito, as áreas espacial e nuclear. Eu incluiria nesse rol a cibernética. Ela também faz parte da Estratégia de Defesa Nacional e teve em Renato Archer um de seus pioneiros. Ressalte-se — o que já foi dito também — que a visão desse homem permitiu, da mesma maneira que a formação de recursos humanos para o setor técnico-científico, a atração de uma série de valorosas pessoas, fato que hoje permite à presidente Dilma ter em sua equipe Marco Anto78 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 78 04/12/12 13:00 nio Raupp, Celso Amorim, José Raimundo Coelho, Luciano Coutinho e vários outros que tiveram a chance de acompanhá-lo e tê-lo como exemplo. Isso não se aprende na escola, isso se aprende no convívio, no dia a dia. Na área nuclear a participação de Archer foi extraordinária e, sem dúvida nenhuma, ele teve uma importância A construção muito grande na luta pela preservanaval brasileira ção das reservas de urânio e tório. Na cumpriu um papel Constituição de 1988 foi constante de indústria motriz colaborador de Ulysses Guimarães na nacional, propiciando defesa dos reais interesses de proteção o surgimento de da área tecnológica. outros estaleiros Há alguns fatos curiosos, que me e de atividades complementares. Essa levaram a pensar se eu deveria citá-los é a tradição que forjou ou não, mas como estão escritos no homens como Álvaro livro (Renato Archer: energia atômica, sobeAlberto, Otacílio Cunha rania e desenvolvimento, de Alvaro Rocha e nosso homenageado, Filho e João Carlos Vitor Garcia) eu Renato Archer. Todos tomarei a liberdade de tentar apreseneles são herdeiros tá-los aos senhores. da tradição científica O primeiro deu-se em 1985. O militar, o que os coloca Brasil tinha decidido que teríamos como referências uma política nuclear independente. importantes para Hoje esse programa tem até um apeo desenvolvimento lido que procura caracterizá-lo como nacional um programa paralelo. O termo “paralelo”, por assim dizer, pretendia denotar “sem grande significado”. Mas os resultados estão aí para provar o contrário. Em 1979 fui convidado pelo presidente Figueiredo para desenvolver um programa autônomo de tecnologia na área nuclear como resultado de uma ação, promovida em 1978, que possibilitou ao Brasil produzir hexafluoreto de urânio de maneira reNAtO Archer, UM e x eMplO A Ser SeMpre leMbrAdO miolo_renato_ascher.indd 79 79 04/12/12 13:00 independente. Quero afirmar aos senhores que não adianta ter dinheiro para comprar aquilo que a gente quer, porque nem todo insumo para fazer, digamos, medicamentos está disponível no mercado; nem todo insumo é vendido. Pode-se ter dinheiro, mas nem tudo de tecnologia é vendido. Mesmo as informações, os equipamentos devem ser desenvolvidos autonomamente; garanto-lhes que não se trata de xenofobismo. Conseguimos uma extraordinária parceria com as três Forças Armadas, formando um conjunto com a Cnen e diversas outras instituições públicas e privadas, as quais, em várias ocasiões, tentou-se desmontar. Esse modelo possibilitou que o Brasil possa ter, hoje, independência Tecnologia autônoma tecnológica no ciclo do combustível. Em significa recursos 1990 tivemos um vendaval que passou decisórios nas mãos colorindo tudo; interrompendo uma de um país série de projetos que estavam sendo desenvolvidos. Apesar disso, a Marinha deu continuidade ao desenvolvimento do enriquecimento de urânio em Aramar. Felizmente, como todo fenômeno de vendaval normalmente tem uma duração curta (Itamar, que já pensava diferente, continuou pensando diferente), foram retomadas algumas atividades exclusivamente nacionais. Álvaro Alberto, logo após a Segunda Guerra, tinha adquirido três ultracentrífugas na Alemanha. Os alemães estavam prontos para entregar, mas ainda viviam sob os condicionamentos do pós-guerra. Não havia sido permitido pelos vencedores o embarque das ultracentrífugas para o Brasil. Mais tarde, superada essa dificuldade, elas foram levadas para o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), onde foram realizados alguns ensaios e elas posteriormente foram emparedadas. Quer dizer: eu compro um remédio, ele chega, eu guardo por não ter condição ou motivação de utilizá-lo. O programa autô80 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 80 04/12/12 13:00 nomo de tecnologia nuclear, cujo berço é uma exposição de motivos aprovada por Ernesto Geisel em 12 de março de 1979, teve a chance de transformar-se a partir da década de 1990, com o apoio das três Forças e, em particular, com a continuidade garantida pela Marinha, em um programa que deu resultado. Tínhamos um acordo — o Archer seria um dos primeiros a ser informado quando o Brasil conseguisse enriquecer urânio. Um dia, enquanto ele fazia uma palestra na Escola Superior de Guerra, eu telefonei e pedi que fosse dado um bilhete para ele informando que o Brasil havia enriquecido urânio. Só que isso não podia ser dito abertamente e de forma clara porque era segredo absoluto. O recado que foi transmitido foi uma mensagem cifrada. Quando Renato Archer recebeu, ele proferiu as seguintes frases, que eu vou reler exatamente como se encontram citadas: “É indiscutível que o domínio do ciclo completo do enriquecimento do urânio tem decisiva importância tecnológica, econômica e política. No segundo semestre de 1985, fui fazer uma conferência na Escola Superior de Guerra sobre o Ministério da Ciência e Tecnologia. No intervalo, entre a exposição e os debates, recebi um telefonema [na verdade um bilhete] do Rex Nazaré, então presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen). Ele disse apenas: ‘A criança nasceu’. Era a senha. Naquele instante, tive a plena consciência de que se tratava de um fato de importância histórica.” Essa citação encontra-se na página 77 do livro de nosso amigo Alvaro Rocha Filho. Outra coincidência importante fez com que eu seguisse alguns dos exemplos de Archer. Ele foi governador brasileiro na junta de governadores da Agência Internacional de Energia Atômica, vinculada às Nações Unidas, e eu desempenhei essa mesma função entre 1982 e 1990. reNAtO Archer, UM e x eMplO A Ser SeMpre leMbrAdO miolo_renato_ascher.indd 81 81 04/12/12 13:00 No ano de 1985, pensávamos: “Vai ser muito difícil dar continuidade a esses programas”. Foi quando, no dia 6 de março de 1985, recebi uma mensagem do presidente eleito Tancredo Neves convocando-me para uma reunião no dia 10 de março, um domingo. Imagina-se que o militar é cheio de sigilo (eu sou civil). Mas não, o Tancredo foi mais cuidadoso do que todos os militares com quem eu lidei na vida. Tive que ir para um hotel. Um carro foi buscar-me para me conduzir a um apartamento. Quando cheguei a esse apartamento encontrei dois conhecidos, o general Ivan de Souza Mendes e o coronel Luiz Alencar Araripe. Cumprimentamo-nos e indagamos: “O que a gente está fazendo aqui?”. Sabíamos que os três iriam para o mesmo lugar, mas desconhecíamos se haviam outros. Então o motorista levou-nos à Granja do Torto, onde houve a reunião com o presidente eleito. Nessa reunião ele descreveu o que queria do Ivan, o que queria do Araripe e o que queria que eu fizesse. Convidou o Ivan para ser chefe do SNI, o Araripe para a Polícia Federal e eu para continuar na Cnen. O importante é que ele sabia todos os detalhes de um programa que era mantido em sigilo. Muitos anos depois descobri como Tancredo obteve aquelas informações: o relacionamento entre ele e João Baptista Figueiredo era muito melhor do que se podia imaginar. Hoje eu sei exatamente como foram passados esses dados. A morte de Tancredo, entretanto, fez com que tivesse o sentimento de que tudo desmoronaria. Era como se tudo tivesse, uma vez mais, que começar do zero. Ivan de Souza Mendes, Bayma Denys e Leônidas Pires Gonçalves tiveram uma ação importante ao dizer para o Sarney: “É importante que esse Rex continue porque está dando certo, e o Tancredo, nós assistimos, o convidou para ficar”. Houve uma série de manobras para que eu fosse afastado, que também estão citadas no livro do Alvaro, entre elas a de puxar 82 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 82 04/12/12 13:00 o Archer para apoiar minha saída. E, diante da pergunta “vamos trocar o Rex ou vamos deixá-lo?”, o Archer, no depoimento dado ao Alvaro, afirma: “Fui franco. Respondi que não, pois achava que o projeto estava muito bem nas mãos dele e, como o assunto envolve segurança e uma certa capacidade para lidar com questões desse tipo, eu não colocaria o José Israel Vargas”. É fundamental dizer aos senhores que a visão do Archer era curiosa. Dei esses dois exemplos porque estão citados aqui e dizem respeito a mim. Posteriormente Renato Archer foi para a Previdência Social, que recolhe recursos com duas finalidades: para fazer um fundo de previdência e para fazer face a despesas na área de saúde. Um dia chamou-me e disse: “Rex, vamos montar um programa para que se comece a nacionalizar os materiais e equipamentos utilizados na área da saúde, ao invés de ficar nessa dependência?”. São conhecidas as dificuldades de fazer algo quando o assunto é tecnologia autônoma. Que dificuldades são essas? Tecnologia autônoma significa recursos decisórios nas mãos de um país. Isso quer dizer um enorme valor agregado em dinheiro e ninguém quer abrir mão da sua fatia do mercado. Portanto, se queremos realizar nesse sentido, temos de olhar para o passado, aprender com ele e em hipótese nenhuma deixar de dar continuidade às nossas ações. Hoje procuro aplicar todos esses ensinamentos em outra área sobre a qual venho aprendendo, que é a área de inovação. É lógico que em tudo isso que comentamos há inovação. Devemos promover melhores condições para a atuação das micro e pequenas empresas distribuídas em todo o estado do Rio de Janeiro, onde a Faperj tem sua atuação. O exemplo da Marinha foi decisivo. Em uma edição de Scientific American de 1982, naquela coluna de cem anos atrás, reNAtO Archer, UM e x eMplO A Ser SeMpre leMbrAdO miolo_renato_ascher.indd 83 83 04/12/12 13:00 foi transcrita a seguinte informação: “Se os Estados Unidos decretassem guerra ao Brasil, somente os encouraçados e os cruzadores que eles fizeram por conta própria obrigariam os americanos a uma vergonhosa rendição”. Graças a Deus não tivemos que decretar guerra. Porém, devemos ter cuidado para não perder em momento nenhum — porque isso é fácil, facílimo — esse conhecimento que fomos capazes de produzir. É um legado nosso, do nosso grupo tecnológico, de equipe, ninguém sozinho faz nada. Hoje podemos contar com esse legado. Temos como ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação um homem que trabalhou muito nesse sentido. Sem dúvida acredito que temos a chance de construir muitas coisas juntos. * Físico, especialista em Engenharia Nuclear pelo Instituto Militar de Engenharia (IME), doutor em Física pela Universidade de Paris (Sorbonne). Professor emérito do IME e conferencista emérito da Escola Superior de Guerra. Ex-presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen). Diretor de Tecnologia da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). 84 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 84 04/12/12 13:00 ARqUIVO reNAtO, viSÃO AMpl A e iNt ereSSe pÚblicO José MonseRRat Filho* Agradeço penhorado a oportunidade de participar desta iniciativa em companhia de pessoas tão amigas e ilustres, todas lembrando a figura ímpar de Renato Archer, que muito merece este tributo, e muito mais, pelo bom caráter, por seu espírito público, por tudo o que realizou em benefício do país, pelos exemplos que nos deixou. Quem me deu a chance de conhecer Renato Archer, em 1985, foi o meu prezado amigo Alvaro Rocha. Foi o Alvaro quem me apresentou a Renato. Renato estava procurando um assessor de imprensa para o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), que ele assumira em março daquele ano. O MCT fora criado pelo presidente Tancredo Neves, que, gravemente enfermo, não chegou a tomar posse e acabou falecendo em abril. Eu trabalhava na revista Ciência Hoje, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que ajudara a fundar, e já coordenava o Jornal da Ciência, com o qual me ocuparia depois ao longo de muitos anos. Naquele então, conduzido por Alvaro, fui falar com Renato, a quem não conhecia pessoalmente. Vira-o e ouvira-o no ato de abertura da Reunião Anual da SBPC, quando, em seu discurso, ele elogiou a Ciência Hoje, o que causou muita alegria a toda a equipe da revista. reNAtO, viSÃO AMpl A e iNtereSSe pÚblicO miolo_renato_ascher.indd 85 85 04/12/12 13:00 Conversamos rapidamente e achei por bem informar-lhe que eu era, àquela altura, membro do Partidão (Partido Comunista Brasileiro). Contei isso para lhe evitar eventual constrangimento futuro. Ele deve ter gostado de nosso encontro franco e objetivo, pois logo comecei a trabalhar como seu assessor de imprensa. Felizmente, criou-se entre nós, lembro com satisfação, um clima de entendimento e absoluta confiança. Durante um bom tempo acompanhei diariamente o ministro Renato Archer, junto com seu então secretário particular, hoje embaixador, Mauro Vieira. Renato não se furtava a viajar pelo país, dando entrevistas, esclarecendo a política de ciência e tecnologia, proferindo palestras e conferências, respondendo com altivez a quem pretendesse miniLembro-me de uma mizar a importância do tema na solução frase de San Tiago dos problemas nacionais, lutando para o Dantas que Archer Brasil tomar consciência da necessidade gostava de repetir: “O povo brasileiro é do avanço científico e tecnológico para muito mais digno do o seu desenvolvimento efetivo. Foi uma que sua elite” época pioneira, dinâmica, intensa, rica de experiências inesquecíveis. O Ministério, novinho em folha, defrontava-se com uma realidade desafiadora, logo refletida e discutida na Conferência Nacional que Renato decidiu em boa hora promover. Sob o tema “O papel da ciência e tecnologia numa sociedade democrática”, a Conferência reuniu-se em 1985, sob a Presidência de Alberto Carvalho da Silva. Foi a primeira de uma série de grandes conferências destinadas a discutir e propor as grandes linhas da política científica e tecnológica do país. A segunda ocorreu em 2001, com o nome de Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia. 86 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 86 04/12/12 13:00 A 3ª foi realizada em 2005 e a 4ª em 2010, ambas com o nome de Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. O pioneiro desses eventos essenciais foi exatamente o ministro Renato Archer. Em suma, aprendi tanto e em tão pouco tempo que tenho muito orgulho de ter vivido aquela época. E sou grato a Renato pelo que me ensinou sobre como fazer política com grandeza. Daí que eu gostaria de alinhar alguns fatos que me parecem marcantes e exemplares em sua vida pública. Começaria por definir Renato Archer como alguém que revelava profundo respeito pelo interesse nacional, notável competência e criatividade política, bem como visão estratégica extraordinária. Ou seja, foi um político sério e competente em praticamente todos os sentidos. Sabia mobilizar as pessoas, forjar a solução de problemas aparentemente insolúveis, administrar os conflitos de forma positiva, conversar e convencer pessoas e líderes nas horas mais difíceis, ceder quando preciso, atacar quando necessário. E, no meio de tudo isso, sabia ser gentil, amável, cortês. Era um verdadeiro gentleman, incapaz de cometer grosserias. Nunca o vi elevar a voz com quem quer que fosse, mesmo estando com raiva. Costumava respeitar as pessoas, mesmo nas situações mais desagradáveis. Lembro que, certa vez, numa reunião de amigos na casa do Renato, o Alvaro Rocha tentava explicar, entre risos de todos nós, inclusive do próprio Renato, como era difícil perceber quando ele estava seriamente desgostoso com alguma coisa. Era preciso “ver se ele tinha a sobrancelha virada para cima ou para baixo”. Não recordo Renato dizendo um palavrão, por mais inofensivo que fosse. Era estimulante trabalhar com ele. Ouvia as pessoas e ponderava suas ideias e propostas. Não elogiava nem demais nem de menos. Não se exasperava, procurava ser reNAtO, viSÃO AMpl A e iNtereSSe pÚblicO miolo_renato_ascher.indd 87 87 04/12/12 13:00 isento. Era um tipo reflexivo e moderado — até mesmo no entusiasmo. Não introduzia fatores e paixões pessoais na análise dos problemas. Falava de si com parcimônia. Renato e Ulysses Guimarães, todos sabem, eram muito amigos. Na realidade, mais do que amigos. Havia lealdade absoluta entre eles. Mantinham perfeita sintonia política. Mantinham conversas diárias, que começavam em caminhadas matinais, sobretudo nas épocas mais complicadas: campanha das Diretas Já, crises da Nova República, rusgas crescentes com o governo Sarney... Renato e Ulysses eram tão ligados que, em 1984, este pediu àquele para que dissesse a Tancredo que o candidato a presidente era Tancredo e não ele, Ulysses. Ou seja, foi Renato que comunicou a Tancredo que era ele quem deveria ser o candidato da oposição nas eleições indiretas no Congresso Nacional, e não Ulysses. Na qualidade de maior líder naquele momento, Ulysses certamente quis evitar uma conversa pessoal um tanto constrangedora com Tancredo e confiou a missão a Renato, que tinha a habilidade política exigida para tanto. Outras personalidades que tiveram influência na vida pública de Renato foram o almirante Álvaro Alberto e o embaixador San Tiago Dantas. Com o almirante, que fora seu professor na Escola Naval, aprendeu o valor estratégico da ciência e da tecnologia na vida dos países. Do embaixador, certamente absorveu muito de sua cultura e de sua competência política e diplomática. Renato citava-o com frequência. Lembro-me de uma frase de San Tiago Dantas que ele gostava de repetir — menciono-a de memória, sem responder por sua precisão: “O povo brasileiro é muito mais digno do que sua elite”. Uma das maiores façanhas de Renato Archer foi apostar na China quando ela ainda era um país em desenvolvimento. Ele teve visão estratégica. Logo ao assumir o MCT em 1985, 88 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 88 04/12/12 13:00 examinando as cartas sobre ciência e tecnologia dirigidas ao Ministério das Relações Exteriores e repassadas a ele, Renato leu uma mensagem do governo chinês e vislumbrou a possibilidade de um programa de cooperação na área espacial. Já em julho de 1986 ele embarcava para Pequim à frente de uma delegação brasileira integrada, entre outros, pelo então chefe da Secretaria de Cooperação Internacional do MCT, Celso Amorim (que mais tarde seria, por duas vezes, Ministro das Relações Exteriores e hoje é Ministro da Defesa), e pelo então diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Marco Antonio Raupp (ex-presidente da Agência Espacial Brasileira e hoje Ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação). Apenas dois anos depois, em julho de 1988, o primeiro acordo com a China seria assinado pelo então presidente José Sarney. Nascia o Programa Sino-Brasileiro de Satélites de Recursos Naturais da Terra (Cbers), que em breve lançará o quarto satélite da série. Foi o primeiro acordo Sul-Sul de tecnologia de ponta. Como resultado dessa parceria pioneira, logo definida como estratégica, Brasil e China decidiram elaborar juntos um Programa Decenal de Cooperação Espacial, algo inédito na história das atividades espaciais. Renato deu também especial atenção ao projeto de criação do Laboratório Nacional de Luz Sincrotron (LNLS), que se instalou em Campinas. Seu apoio ao esforço do primeiro diretor do LNLS, Cilon Gonçalves (que depois ocuparia cargos importantes no MCT), foi fundamental para a instalação do Laboratório. Renato continuou apoiando o projeto depois de ter deixado o MCT. Acompanhava passo a passo sua construção e desenvolvimento. O Laboratório é hoje um dos orgulhos da ciência avançada feita no Brasil. Outro avanço histórico foi a decisão tomada em 1986, de aumentar consideravelmente o número de bolsas do CNPq. reNAtO, viSÃO AMpl A e iNtereSSe pÚblicO miolo_renato_ascher.indd 89 89 04/12/12 13:00 Esse número passou de 12 mil para 44 mil. Renato conseguiu esse salto num lance de mestre, que já contei no Jornal da Ciência, da SBPC, e volto a lembrar agora, quando homenageamos as proezas do primeiro ministro da Ciência e Tecnologia do Brasil. Ele tinha uma audiência marcada com o presidente Sarney. Na sala de espera de seu gabinete encontrou-se com o então ministro dos Transportes, José Reinaldo. Conversa vai, conversa vem, José Reinaldo contou que vinha expor ao presidente o plano de compra de novos guindastes para os portos do Rio de Janeiro e de Santos, e relevou quanto eles custavam. José Reinaldo entrou, falou com o presidente e saiu. Era a vez de Renato. Ele tinha que convencer Sarney a autorizar o aumento substancial do número de bolsas do CNPq. Usou o seguinte argumento: “Venho lhe trazer um plano muito importante que custa só alguns guindastes”. Na verdade, a despesa com o aumento do número de bolsas era pequena se comparada com o preço dos guindastes. Assim, Renato deixou claro de imediato que o plano de bolsas era bem mais barato do que o plano dos guindastes, mas teria forte impacto na formação de pós-graduandos e pesquisadores no país. Outro caso curioso, que poucos conhecem. A Nova República, que substituíra o regime militar, fora criada com base em uma frente política muito ampla, que ia da esquerda até a direita. Tinha Renato, que se considerava de centro-esquerda, e tinha Antônio Carlos Magalhães, político reconhecidamente de direita. Ambos eram ministros do mesmo primeiro governo da Nova República. E, como seria de esperar, logo começaram a surgir entre eles divergências e discussões públicas sobre temas de alta relevância, inclusive da área de ciência e tecnologia. Como ministro dessa área, Renato tinha sob sua jurisdição todo o setor de informática. A Secretaria Especial de Informática (SEI) era parte do MCT. O ministro, claro, defendia a polí90 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 90 04/12/12 13:00 tica de reserva de mercado para o setor aprovada pelo Congresso Nacional. Por seu turno, Antônio Carlos Magalhães, ministro das Comunicações, exercia grande poder político à época. Tinha, inclusive, forte influência sobre o então presidente Sarney. Antônio Carlos sempre defendera o regime militar, que o favorecera politicamente durante muitos anos, mas, no apagar das luzes, quando já ficara evidente que o país retomaria o caminho democrático, tinha rompido com o governo Figueiredo. Ele era contra a política de defesa do mercado de informática e queria que parte dessa área passasse para sua pasta. Então, um repórter perguntou a Renato, numa grande expoRenato Archer sição de informática em São Paulo, o que revelava profundo ele achava da pretensão de Antônio Carrespeito pelo los Magalhães de absorver parte do setor interesse nacional, de informática. Renato não poderia ter notável competência sido mais claro e definitivo: “É a raposa e criatividade tomando conta do galinheiro”. A frase política, bem como saiu de manchete em vários jornais. Era visão estratégica extraordinária um retrato sem retoque das lutas intestinas na Nova República. Finalizo com uma história verídica — embora pareça inverossímil — que jamais esquecerei. Trata também da política de reserva de mercado. Numerosa delegação de senadores norte-americanos veio ao Brasil de avião fretado — chegou pela manhã e retornou à noite. A comitiva visitou o Congresso Nacional e o MCT. Os senadores visitantes buscavam pressionar senadores e deputados brasileiros a mudar a lei nacional que estabelecera a reserva de mercado para a informática. Queriam, ao mesmo tempo, intimidar o MCT. Advertiram: “Mudem de política, porque senão teremos de tomar nossas providências...”. Era uma missão bem pouco diplomática. Renato recebeu os senadores com o máximo respeito. Eles reNAtO, viSÃO AMpl A e iNtereSSe pÚblicO miolo_renato_ascher.indd 91 91 04/12/12 13:00 sentaram-se à nossa frente, com um tradutor especializado, certamente para não deixar dúvidas sobre o que pretendiam. Renato convocou algumas pessoas do Ministério e fez questão de que eu assistisse ao incrível encontro a seu lado. Os visitantes começaram a dizer algo mais ou menos assim: o Brasil tem que mudar sua política de informática porque ela prejudica os interesses dos Estados Unidos. E por aí foram, extremamente francos, pois, para todos os efeitos, tratava-se de uma reunião fechada. Renato não se abalou. Terminada a ladainha impositiva, respondeu de modo calmo mas firme. Cito-o de memória: “O Brasil tem um Congresso Nacional soberano, que aprovou por unanimidade a Lei de Informática em vigor. Para mudar essa lei, será preciso uma nova decisão do próprio Congresso. Este é um país democrático. Tem leis e tem Congresso. Não se muda uma lei pela simples vontade destas ou daquelas pessoas...”. Concluída a reunião, os senadores retornaram aos EUA, e a Lei de Informática continuou vigente. Renato foi o único brasileiro a falar na inusitada reunião, mas, para bom entendedor, deixou patente o respeito que o Brasil deveria merecer como país soberano e democrático. Ou seja, ele não se curvou diante de uma atitude arrogante e imperial. * Jornalista, publicitário e jurista. Ex-editor do Jornal da Ciência e ex-diretor de jornalismo da revista Ciência Hoje (SBPC). Prêmio José Reis de Jornalismo Científico (CNPq) de 1994. Ex-chefe da Assessoria de Assuntos Internacionais do Ministério da Ciência e Tecnologia. Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB). 92 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 92 04/12/12 13:00 DOUGLAS GOMES UMA hiStÓriA rel e vANt e pArA O brASil R icaRdo aRcheR* Gostaria de iniciar agradecendo pela iniciativa de divulgar esta ilustre e muito bonita história do tio Renato para todos nós. Sou muito novo e não pude presenciar sua atuação, mas posso hoje, por meio desta apresentação, aprender um pouco mais sobre o tio Renato e reafirmar a importância do seu trabalho para a nossa sociedade. Quero também parabenizar todos os que compõem esta iniciativa, porque tenho certeza de que tio Renato não construiu essa história sozinho. Vários parceiros fizeram parte dessa luta, desse desenvolvimento da democratização da ciência e tecnologia no nosso país. E, como membro da família Archer, quero parabenizar todos os que contribuíram para que essa história se tornasse tão bonita e relevante para o Brasil. Quero, ainda, dizer que sou sobrinho-neto de Renato Archer e estou há pouco mais de trinta dias na Câmara Federal, na qual sou, com muita honra, membro efetivo da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática. Na verdade, não é fácil representar a história de tio Renato, mas é com muita responsabilidade, com muita garra e com muita determinação que estou atuando e lutando para que esse percurso de tantas realizações continue nesta terceira geração que hoje eu represento. Tenho certeza de que tio Renato, lá de UMA hiStÓriA rele vANte pArA O brASil miolo_renato_ascher.indd 93 93 04/12/12 13:00 cima, está recebendo esta homenagem como um presente pelo dia do seu aniversário, que foi 10 de julho. É uma homenagem de merecido destaque, especialmente porque ele teve suas origens no estado do Maranhão e construiu uma história de muito realce como precursor do Ministério da Ciência e Tecnologia. Vários parceiros Eu também represento o Maranhão fizeram parte e a minha família, tanto na cidade de dessa luta, desse Codó quanto em todo o estado, consedesenvolvimento da guiu construir uma história bonita, uma democratização da história de nomes evidentes na política, ciência e tecnologia no da qual tenho muito orgulho. Reafirmo nosso país meu compromisso para com a continuidade desse trabalho em prol do bem e do desenvolvimento de nossa sociedade. Agradeço a todos os parceiros e à Fundação Maurício Grabois pela divulgação de toda a contribuição de Renato Archer e por esta homenagem que deixa nossa família muito honrada e satisfeita. * Deputado federal (PMDB-MA). Sobrinho-neto de Renato Archer. 94 reNAtO Archer: 90 ANOS miolo_renato_ascher.indd 94 04/12/12 13:00 A mesa-redonda "Renato Archer, 90 anos: legado e atualidade" foi filmada na íntegra e encontra-se disponível para acesso no endereço http://grabois.org.br/portal/noticia.php?id_sessao=12&id_noticia=9762. miolo_renato_ascher.indd 95 04/12/12 13:00 Este livro foi composto nas fontes Requiem, Din e Eurostile e impresso no verão de 2012. miolo_renato_ascher.indd 96 04/12/12 13:00