ovelha negra - Marquês de Casanova

Transcrição

ovelha negra - Marquês de Casanova
OVELHA NEGRA
Autor: MAGGIAR VILLAR DE CASANOVA
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CAPÍTULO UM
A Maior vingança do ser humano é ver seu sonho realizado. Seja ele qual for.
O meu, eu realizaria um dia, custasse o preço que custasse. Se é que eu ainda
tinha algum sonho.
Eu já estava naquela droga de banco há seis anos. Meu último dia de férias era
na quinta-feira. Ainda era Quarta.Decidi então, emendar as férias e retornar ao
trabalho somente na segunda-feira seguinte. E foi o que fiz. Aproveitei o resto
das férias para beber todas as cervejas que estivessem por perto de mim.
Aquelas eram as minhas melhores férias do mundo. Nunca desejei tanto que
elas nunca mais acabassem. Se dependesse de mim, nunca mais voltaria a
qualquer trabalho. Passaria o resto da vida curtindo tudo que eu tivesse direito
e desejo. Principalmente ao meu trabalho atual.
Pensar no banco e em seus clientes chatos me dava nojo. Pensar no que me
aguardava quando voltasse para aquele lixo de trabalho cheio de funcionários
e clientes chatos, e que eu não sentia um pingo de saudades, me dava vontade
de emendar as férias até o fim do ano, até o resto da minha vida. Minha
vontade de retornar ao banco era nenhuma. Nunca suportei aquela merda. Para
falar a verdade, arrependi-me de ter entrado naquela porcaria. E o pior: Não
havia sequer um veado para me botar no cu da rua.
Voltei. Sem querer e contra minha vontade, mas voltei. Para meu azar, os
caras até tinham me preparado uma boa surpresa. Há seis anos que eu era
caixa e nunca tivera sequer uma porcaria de uma promoção, ou coisa parecida.
Os sacanas não davam, nem eu pedia. Se dependesse de mim, me aposentaria
como mísero caixa. O mesmo cargo que comecei. Um ridículo caixa.
Nem bem comecei a droga da limpeza do meu setor e já apareceu um xereta
urrando e berrando o meu nome. Admito que sou um bocado desleixado, mas
o fulano que me substituiu nas minhas férias já deve ter ganho todos os
prêmios dado ao cara mais fedorento e anti-higiênico do mundo. Larguei a
droga do meu caixa e fui atender o ditador.
- Bonfim, você poderia dar uma chegadinha aqui?
Levantei a cabeça e logo vi a cara do gerente administrativo. Caminhei
lentamente até sua sala e parei na porta. Bronca ou esporro? Nem um nem
outro. Apenas as perguntas de sempre. A mesma bobajada de sempre. Como
passou de férias? Foi viajar? Trepou com a filha do bispo? Nossa, como você
está queimado! Mais forte. Mais bonito. Quer comer minha filha...e coisas do
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tipo. Sempre, sempre a mesma palhaçada. Sem muito interesse respondi que
tinha passado mais ou menos. Pura mentira. Nunca passei umas férias tão
bem como aquelas. Com muita boceta gostosa e a melhor cerveja do mundo.
- Bonfim, sente-se. Precisamos ter uma conversa, - disse o sujeito do alto de
sua cadeira giratória e confortável. Parecia um rei em seu trono. Odeio quando
alguém me chama pelo sobrenome. Meu nome é Raul. Raul Bonfim. Não que
eu não gosto do meu sobrenome, não é isso. Mas prefiro que me chamem pelo
primeiro nome e não pelo sobrenome, como os babacas dos ingleses fazem.
- Pois não Sr. Davi - esse era o nome do canastrão. Aquele cara já estava
naquela porcaria de banco há uns vinte anos ou mais e era o maior safado
que já conheci. A única coisa de bom que ele tinha era uma filha gostosa pra
burro, que sempre aparecia por lá para ver o veado do papai. Como não sou
idiota e nem nada, eu saía com ela, bem secretamente, sem que nem o imbecil
soubesse.
- Muito bem, senhor Bonfim; você está atrasado um dia de trabalho. - Eu
sabia que o cretino se lembraria disso.
- É, eu sei. Tive problemas na viagem.
- Primeiro as obrigações, depois as diversões - disse o tal Davi com uma cara
de ditador. “... obrigações, depois as diversões”; fiquei pensando quem fora o
grande filho da puta que inventou essa frase. Acho que foi um desses grandes
nojentos que gostam das coisas bem certinhas.
- Só que não é sobre isso que quero falar, - continuou ele, - como você sabe,
nosso banco está sempre crescendo e nós gostamos de dar uma oportunidade
para nossos funcionários...
- É mesmo?! - Claro que eu estava satirizando ironicamente aquele babaca.
Toda a ironia do mundo, para mim, era pouca.
- Pois é, estivemos estudando sua ficha, - pegou minha ficha sobre a mesa e
deu umas folheadas - não é das melhores, mas levamos em consideração seu
tempo de casa.
- E minha conduta o que diz?
- Não muito boa.
- O quê? Como assim? - Disse eu quase me levantando da cadeira.
- Isto é, razoável. Por essas e outra razões, resolvemos premiá-lo com uma
promoção de cargo. É assim que retribuímos, com voto de confiança, todos os
nossos funcionários que fazem jus a tal merecimento.
- Puxa, que bom! - Essa foi de doer. Só me faltava essa agora. Voltar de
férias e logo de cara ouvir tanta besteira e demagogia de uma única pessoa.
“Comecei bem meu trabalho. Agora só faltam os clientes nojentos e reclamões
para acabarem de vez com meu apetite de almoçar”, pensei.
No dia seguinte eu estava me sentindo um verdadeiro pateta. Fui obrigado a
trocar minhas gostosas camisetas por ridículas camisas mangas-compridas e
gravata. E meus irreverentes jeans e tênis por calças largas de velho. Escolhi os
sapatos mais horrorosos do mundo. Não sabia nem dar nó na droga da gravata
que roubei numa loja.
Fiquei morrendo de medo de alguma das minhas paqueras, secretárias,
princesinhas, ninfetas, balzaquianas, gatinhas, e muitas outras, todas clientes do
banco, que me paqueravam, aparecerem por lá naquele dia. Tesoureiro! Que
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bela piada. De mandado a mandão. Nem podia acreditar nisso. Até as
vagabundas das colegas de agência, secretárias, recepcionistas, caixas e até uma
bunduda gostosa, encarregada de seção, começaram a arreganhar os dentes
para mim. Fiquei puto da vida. Furioso. Minha vontade era sair com todas, uma
de cada vez, foder aqueles belos rabos e depois dar uma cusparada na bunda
delas. Era o que todas mereciam.
Até minha namorada Vâni, seu nome era Vânia Cortes, mas só a chamava de
Vâni, ficou sabendo da minha promoção, sem que eu lhe dissesse. Ela ficou
sabendo quando telefonou e pediu para falar comigo. Não sei qual foi a cretina
ou cretino que atendeu e perguntou:
- Com qual Raul a senhora deseja falar? Com o tesoureiro ou com o boy?
A burra da Vâni - eu vivia chamando-a de burra, como faço com algumas
mulheres que merecem ser tratadas assim, - não entendeu e perguntou que
história era aquela. A gente já estava numa lenga-lenga de namoro há cinco
anos e tínhamos uma filha de quatro. Apesar de eu me entender bem, numa
boa, com minha querida Pérola, e todos nós nos entendermos bem, não
morávamos continuamente juntos. Nunca moramos juntos. Vâni e Pérola
moravam com meu futuro sogro, se é que seria um dia, que me casaria um dia
com sua filha, tinha minhas dúvidas. E eu morava sozinho. Algum tempo em
pensões fajutas e baratas, outros, em alguma kit esculhambada e imunda.
Mesmo morando separado de minha filha, ela me amava muito e eu também.
Pérola era uma menina hiper inteligente, não é porque é minha filha não, mas
também era a menina mais linda do mundo. Ela estava com quatro anos e já
parecia uma mocinha. Com seus lindos cabelos longos e dourados, todos
encaracolados.
Acho que puxou pelo pai. Mas Vâni também sempre foi muito bonita e ainda é
até hoje. Eu saía todo fim de semana com as duas. Sempre passeios
diferentes. Um dia restaurante, outro, cinema ou jardim zoológico. Minha filha
gostava muito de sair comigo. E se eu me descuidasse um pouco dela e olhasse
para qualquer outra criança, ela sacudia meu braço e ficava com ciúmes.
- Que história é essa de tesoureiro? Você não me disse nada. - perguntou
Vâni, ao telefone. Odeio quando alguém me telefona só para fazer perguntas
cretinas. - Precisamos ter uma conversinha. E bem longe da Pérola, continuou ela.
- Está bem, está bem. Agora me faça a droga de um favor e me deixe em paz
nesta porcaria de serviço. - E desliguei. Estou sempre desligando o telefone na
cara de alguém, ou coisa parecida.
Fui para casa fodido da vida. Mas antes de sair, arranquei a droga da gravata,
meti uma camiseta e fui direto para o bar. Já tinha bebido umas cinco cervejas,
quando me lembrei que precisava sair com a Vâni. Eu já estava até vendo a cara
da vagabunda me cobrando para a gente ir morar juntos. Mas ela sabia que
seria inútil qualquer pedido. Saímos. Conversamos e brigamos mais uma vez.
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CAPÍTULO DOIS
Voltei para meu apartamento já bêbado naquela noite. Mas antes de voltar
encontrei uma velha amiga, cliente do banco, que bebeu comigo. Depois me
acompanhou e foi dormir lá em casa.
Remi Lanny. Mas fazia questão que todo mundo só a chamasse de Lanny. Ela
era a maior prostituta que já conheci e a mais bonita também. E a pilantra era
finíssima. Falava cinco idiomas. Só freqüentava hotéis de primeira classe. O
cachê só recebia em dólares e era o mais alto de todas as prostitutas. Acho que
era por isso que a conta dela, (só fazia depósitos comigo) vivia sempre gorda.
Mesmo assim eu gostava de dormir com a pilantra. Porque ela não cobrava
nada e tinha prazer em dormir comigo. Nessa noite, Lanny me disse que tinha
comprado um grande e lindo apartamento em São Paulo, nas proximidades dos
Jardins, próximo à Avenida Paulista. E que seu irmão, um tal de Joel, iria morar
com ela. Eu queria morrer quando a vadia começava a falar do tal irmãozinho
veado. Ela vivia defendendo e protegendo o cara só porque o filho da puta era
homossexual.
Eu já estava muito bêbado, quase babando e meio dormindo, quando a ouvi
resmungar no meu ouvido: “Por que você não se muda para São Paulo
também?”. Dei uma gargalhada e perguntei que diabo eu iria fazer naquela
merda de cidade nojenta e cheia de garoa e poluição e sem mar, ainda por cima.
Dormimos juntos e bêbados. Acordei com um puta mal humor. Lanny já havia
desaparecido, mas antes, deixou um bilhete pendurado no espelho do banheiro.
“Querido Raul. Quando for a São Paulo me procure. Te amo muito. R. Lanny”.
Deixou o endereço com telefone e tudo.
Depois do primeiro porre na ativa, acordei de ressaca. Ressaca da brava. Orgia
também provoca ressaca. Fantasiei-me de Pateta quando deixa de ser super, me
sentindo o maior ser inútil e ridículo do mundo e fui para o trabalho. Mais um
dia de cão. Clientes brigando com os caixas. Dinheiro faltando para algumas
vagabundas, que não paravam de chorar. Mil e um pepino para eu resolver. A
droga da matriz exigindo cota máxima de depósito e perfeição no atendimento.
Os filhos da puta estavam sempre exigindo alguma porcaria. Mas nunca
aparecia um veado sequer, para ver a chatice dos clientes que viviam sempre
enchendo o saco. Comecei a perceber como era difícil ser tesoureiro e porque é
que não parava ninguém nessa droga de cargo. Eu estava disposto a voltar para
minha antiga função. Juro que estava. Nesse dia saí do serviço duas horas mais
tarde. Fiquei resolvendo erros das vagabundas que não conseguiram bater seus
malditos caixas. Cheguei na minha maloca arrasado e além do mais, eu já não
suportava aquela porcaria de banco. Vâni. Tudo, me dava nojo.
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Eu estava completamente de saco cheio.
Era sempre a mesma coisa. As mesmas pessoas. Os mesmos lugares. Tudo
estava me enlouquecendo. Toda a minha vida até agora era uma verdadeira
merda. Meu aluguel já estava atrasado dois meses. A dona da masmorra não
saía de lá para me cobrar. Mais cedo ou mais tarde eu acabaria sendo expulso,
como sempre acontecera em muitos outros lugares. Fiquei uns vinte minutos
parado diante do espelho olhando para o bilhete e pensando. No dia seguinte, a
primeira coisa que fiz foi pedir minha transferência para São Paulo. Uma
semana depois estava eu num novo endereço de trabalho. Fui transferido para a
agência que ficava na maior e mais importante avenida da América Latina: a
Avenida Paulista. Deixei tudo para trás. Vâni. Minha filha Pérola. Todos os
lixos que me pertenciam, só levei alguns livros, do tempo da escola, como
Salinger e Kerouac, umas calças jeans, dois pares de tenis e nada mais.
Joguei a chave no mato e me deu vontade de botar fogo no prédio. Só não o fiz,
porque estava sóbrio. Nem tive trabalho de avisar Vâni ou qualquer pessoa.
Ainda não falei da minha família? Então logo vocês saberão.
CAPÍTULO TRÊS
São Paulo. O que será que existe de bom nessa cidade? Nunca estivera aqui
antes. Na rodoviária perguntei para a recepcionista de informações, qual o
melhor caminho para se chegar à tal da 5ª Avenida dos Paulistanos. Ela logo
percebeu que eu era do Rio. Disse-me que morava lá perto. E que eu
apanhasse o Metrô ali mesmo na rodoviária e descesse na estação Paraíso.
Gostei de como ela me olhava. Pedi seu telefone. Uma semana depois, já
estávamos na cama, - Ufa! Como essas paulistas não perdem tempo. - Fui
direto conhecer a agência em que eu iria trabalhar. Mas não cheguei a entrar.
Era um desses prédios altos e bonitos pra burro. Gostei do lugar, por enquanto.
Já era quase meio-dia. A Rua estava parecendo um formigueiro. Todo mundo
correndo para almoçar. Não entendo por que o paulistano só anda correndo;
está sempre com pressa. Procurei um hotelzinho, não sabia onde iria ficar.
Pensão, república, apartamento. Qualquer droga serviria. Mas não conhecia
nenhuma até agora. Eu tinha o telefone da minha mais cara putinha do mundo.
A Lanny. Mas queria fazer-lhe uma surpresa. Só ligaria depois que estivesse
trabalhando, para convidá-la a abrir uma conta na minha agência. Fiquei
hospedado num hotel barato numa das ruas paralelas da Avenida Paulista, do
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lado da Bela Vista. O engraçado é que quando saí para conhecer a cidade, só
começaria a trabalhar no dia seguinte, percebi que a droga do hotel ficava bem
no meio de duas pensões. Não agüentei e dei uma gostosa gargalhada. Tive
que pegar uns duzentos ônibus para ir ao centro. E depois a um Shopping
Center. Estava me sentido um verdadeiro turista na Paulicéia de Mário de
Andrade. E muito curioso para ver o que me aguardava. Eu estou sempre
curioso por uma nova aventura, ou coisa parecida. Não sei pra que diabo tem
que ser sempre assim. Mas mesmo incerto, já tinha decidido a começar nova
vida, - outra coisa que estou sempre querendo fazer - novo tempo, novo
amor e nova identidade. Coisa que duvidei muito. Começar vida nova e mudar
de identidade não é fácil assim como a gente pensa e quer. Lembrei-me de
uma frase de Napoleão Bonaparte, que aprendi no exército, (esses caras
também são outros imbecis que vivem ensinando um bocado de besteiras pra
todo mundo que aparece lá): “Ou você muda de atitude, ou muda de nome”.
Meu problema era esse. Eu tinha porque tinha que mudar de atitude. Pô! Mas
se era isso. Então estava tudo resolvido. Comigo estava tudo bem. O que eu
não suportava eram todos os cretinos que me deixavam puto da vida. E quem
é que não se emputece com um país e mundo fake como o nosso? O que
causou minha desgraça não foi a minha maneira de pensar. Foi a maneira de
pensar dos outros. Lembrei do escritor e teatrólogo maldito francês Marquês
de Sade na hora.
Que eu saiba, nunca sacanei ninguém ... Sei lá, talvez alguma briguinha de
merda na praia, desentendimento com uma garota, ou qualquer coisa desse
tipo.
Troquei a roupa cafona por um lindo blazer azul-marinho esporte. Comprei
algumas camisas de executivo, todas da moda, três gravatas de seda muito
bonitas e estreitas. Calças Pierre Cardin e sapatos esportes. Tomei um
verdadeiro banho de loja. Passei em um salão de beleza, tirei a barba e
bigode. Raspei a cabeça no zero. Coloquei a roupa e me olhei no espelho.
Estava uns dez anos mais novo. Fiquei parecendo um garoto de vinte anos.
Estou com trinta e dois hoje, parecendo um garoto. Aliás, sou um garoto até
hoje. Sou e serei um eterno garoto.
Apresentei-me na agência às nove horas. Quando o gerente, um sujeito novo e
com cara de boa “pinta” me apresentou a meus novos colegas de trabalho,
percebi logo os olhares curiosos das mulheres, que geralmente eram muito
bonitas e gostosas. Eu estava tão elegante, mas representando para ser
simpático, o máximo possível. Nisso eu sou bom ator. O que não me faltaram
inúmeros convites para almoçar juntos.
Teve até uma gostosíssima morena de olhos verdes, que me convidou para um
chopinho depois do expediente. Não gosto de nada muito fácil, mas juro que
estava adorando. Perguntaram-me porque diabo eu havia raspado o cabeça.
Respondi que tinha entrado na faculdade. Lá no rio. Pura mentira. Quase não
minto. De cada dez palavras que falo, oito são mentiras. E se percebo que o
camarada com quem estou falando também é mentiroso, arredondo para dez.
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CAPÍTULO QUATRO
Comecei a trabalhar. Estava gostando do novo ambiente. Novas caras, novo
sistema de trabalho. Tudo novo.
Parecia até que meu desejo rumava o caminho certo. Aqui só se falava em
grandes projetos. Metas e todo tipo de promessas para os recentes
companheiros promovidos. Essas palhaçadas de sempre e coisas do tipo. Não
liguei pra nada. Só queria apostar para ver o que me aguardava. Apostei tudo.
Pelo que percebi, eu seria promovido a gerente de qualquer porcaria bem antes
que imaginava. Porque aquela agência tinha gerente por todo canto. Nunca
vi tanto gerente num único lugar, em toda a minha vida.
Tinha gerente de área, gerente de divisão, de atendimento, de operação, de
faturamento, de investimento. Resumindo. Tinha mais gerente do que
funcionários e clientes juntos. Fiquei doido para que me promovessem a
gerente para assuntos de mulheres. Abertura de contas e investimentos só para
mulheres. Estaria feito se isso acontecesse. Pena que essa função não existe
nas grandes empresas. Eu sou especialista em mulheres. Em entender as
mulheres.
Fui morar numa daquelas pensões ao lado do hotel, onde me hospedara. Meu
companheiro de quarto, escolhi um quarto para duas pessoas, era um
sujeitinho muito esquisito. Confesso que não gostei nem um pouco dele. Era
uma criatura que mais parecia um verme do que gente. Ele tinha um cabeção
colado no corpo, era mais fino que um palito e uma boca tão feia, que
assemelhava-se a um rinoceronte. E tudo indicava que era mais imundo do
que eu. Pensei: “fazemos um ótimo par”. Mas o inseto era mal encarado.
Essa não. Faço qualquer coisa nesse mundo para não arranjar confusão, mas
se isso acontecer, quem me provocar está fodido comigo. Quando abri a porta
e pedi licença, o filho da puta gritou:
- Apague essa droga de luz - ele estava deitado totalmente nu, por causa do
calor abafado e se virou de lado para a parede. O veado trabalhava de garçon
numa dessas espeluncas da boca do lixo à noite e dormia durante o dia. Toda
Pensão está cheia de garçon e coisas do tipo.
Porra! Eu não ia ter que aturar um troço desses. Deixei minha bagagem no
quarto e saí correndo para falar com a dona daquela merda. A puta, ao invés de
me dar outro quarto, disse que falaria com o esqueleto ambulante para ser mais
gentil. Resolvi dar o fora. Me arrependi por não ter dado uma olhada na outra
pensão. Acho que o bairro inteiro é cheio dessas espeluncas. Mas já havia
pago. E essas vadias, donas de pensão, são verdadeiras muquiranas. Nunca
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devolvem dinheiro algum. Já que tinha pago resolvi ficar. Atento com a lulalelé, que morava no meu quarto. Com todas as desgraças, consegui ficar dois
meses. Só saí expulso. A droga da pensão era cheia de regulamentos. Veja só!,
uma espelunca de merda, querendo impor regulamentos. Na porta, do lado de
dentro, tinha um quadro que dizia o seguinte:
“01 - Proibido fazer barulho, falar alto ou ligar aparelhos sonoros, após as
vinte e duas horas”. “02 - Terminantemente proibido entrar no quarto
acompanhado de mulher”. - Acho que é proibido levar mulher em qualquer
pensão do mundo. Pelo menos nas que passei, mais de vinte, era assim. - E
mais um monte de besteiras que dava uns dez ítens. Primeira coisa que fiz foi
dar um sumiço na droga daquele regulamento.
O veado do garçon, um dia disse que ia viajar para a terra dele, que era Santa
Catarina. Já fazia vinte dias que eu estava na pensão. “Oba!” pensei. Sou o
maior desrespeitador de regulamentos do mundo. Sou mais que isso.
Eu estava bem no melhor do gozo, com uma bonequinha que tinha conhecido
no dia anterior, perto do meu trabalho. Quando ouço a porta se abrir. O
grandissíssimo filho da maior puta rampeira, havia me enganado.
Não foi viajar porra nenhuma. E ainda pra variar, me entregou para a dona do
galinheiro. A velha safada, era uma portuguesa desdentada, tão gorducha, que
parecia uma baleia, desceu como uma cascavel, de tão furiosa. Me mandou
pegar meus troços e dar o fora. Eu não ia sair assim de graça. Disse que não
sairia enquanto meu mês não estivesse vencido. Fiquei até completar meu
contrato. Mas no dia que era para eu sair, ninguém apareceu. Então fui
ficando sem pagar e nem nada. No fim de uma semana, a velha se tocou e
tirou o cobertor da cama. Fiquei assim mesmo. Mais uma semana, ela tirou o
lençol e o travesseiro. Nem assim saí. Mais outra semana sem que eu desse
sinal de sair. Como eu não dava sinal de sair, a portuguesa desdentada quase
endoidou. A puta me tira o colchão. Dormi uma noite no extrado duro.
Acordei com as costas arrebentadas. Peguei minha tralha e caí fora.
Já tinha dormido várias vezes no apartamento da Lanny, mas não queria morar
lá. Apesar de ela insistir para que eu fosse. Dessa vez fui. Ficaria lá até
arrumar outro lugar. Talvez uma kit, agora. Estava ganhando bem. Dava para
um bom apartamento, mandar dinheiro para a Vâni, mas não mandava, - ela
não pedia porque tinha pai rico - e reservar o sagrado para a cerveja e
mulheres.
No banco estava ocorrendo tudo bem. Estava indo às mil maravilhas. Sempre
sobrava umazinha bem deliciosa para sair comigo. Comecei até a namorar
uma tal de Dora. Aquela recepcionista morena linda e gostosa, de olhos verdes
e que me convidou para meu primeiro chopinho paulista, no meu primeiro dia
de serviço. Ela tinha quase tudo, do tipo de mulher que gosto. Só era um
pouquinho ciumenta. Mas ainda não era dessa vez que eu ia me amarrar.
Fiquei dois meses morando com a Lanny. Só fiquei porque era de graça e
porque gostava do rabo dela e ainda podia ficar assistindo de camarote, as
fantasias eróticas do seu queridinho irmãozinho pederasta. O grande puto.
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CAPÍTULO CINCO
Um dia saí do trabalho, por volta das dezenove horas, a minha namoradinha da
recepção já havia ida para a faculdade, - sei lá que droga de curso fazia.
Então resolvi procurar um lugar diferente. Parei no primeiro barzinho que
estava cheio de bebedores profissionais, como eu. Não procurei mesa. Sentei
numa cadeira alta, no balcão. A casa estava fervendo de gente. Executivos
com suas secretárias, que dali iriam direto para um motel qualquer. Todo
executivo trepa com suas secretárias. E elas adoram. E os pilantras, são tão
filhos da puta, que vivem elogiando suas secretárias, para as esposas idiotas.
Comecei a beber minha cerveja, quando de repente alguém me deu um
tapinha nas costas. Me virei e vi uma baita de uma loira que quase desmaiei de
felicidade.
- Oi ! Tudo bem? – ela disse.
- Olá ! Puxa que susto você me deu.
- Tá lembrado de mim?
- Não sei seu nome ainda, mas já a vi algumas vezes.
- Janice. Mas pode me chamar de Jane. E agora que já me conhece, me peça
um drinque, por favor.
- Oh! Desculpe. Vamos procurar uma mesa.
Bebemos até umas onze horas. E depois fomos para um motel, longe pra
burro, em seu carro novinho em folha.
Janice. Essa foi boa! Eu transando com a gerente de marketing do banco! Uma
secretária e uma gerente. Que bom! As coisas estão melhorando. Não era isso
que eu queria? A vida nova estava começando. Será que estava mesmo?
Resolvi me mudar. Ainda não foi dessa vez para um apartamento. Achei uma
pensão boa. Num prédio de três andares. Agora não era uma baleia, a dona e
sim um italiano muito gente boa, simpático, educado, compreensivo e meio
fominha por dinheiro e às vezes meio gagá ou esquecido, sei lá. Ele não
morava no prédio, morava em um sobrado ao lado de seu comércio, uma
pequena mercearia e açogue, então pensei: “Oba! É como eu gosto”. Me
mudei bem cedinho, porque teria que trabalhar às nove. Só tinha vaga num
quarto para três pessoas. Fiquei, porque gostei do ambiente. Peguei a chave do
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prédio e do quarto. Dei um puta azar. O número do quarto era treze. O que
será que isso significava?, pensei. 13. Entrei no quarto e acendi a luz. Havia
dois baguais em suas camas dormido. Pelas caras, deviam ter dormido
bêbados. Não eram feios, como o caranguejo da outra pensão. O que dormia
na cama bem próxima da minha, era um baita alemão, de uns quarenta anos,
mais ou menos, mas bem simpático. O outro pinta, era mais moreno e bem
mais novo. Também não era feio. Coloquei meus bagulhos no armário e fui
dar uma olhada no banheiro. Pela primeira vez na vida, eu gostava de um
banheiro de pensão. Quando voltei ao quarto, o alemão já estava sentado na
cama. Me apresentei e ele me disse: “Seja bem vindo, companheiro”, com
grande sorriso. Conversamos um pouco; ele tinha um bom papo. Gostei do seu
jeito. E me mandei para o trabalho. Aquele foi um dos dias mais agitados que
eu tive, depois que vim para São Paulo. Muita confusão. Assalto ao banco.
Cliente desmaiado, guarda baleado. Correria de funcionários. Um verdadeiro
alvoroço. Até eu, que não tinha nada a ver com a história, fiquei morrendo de
medo de levar um balaço nos cornos. Nesse dia voltei direto para meu mais
novo ninho. Encontrei os dois caras do meu quarto brigando. Eles eram
amigos, de pensão, já morei em mais de vinte pensões e nunca arrumei um
amigo de verdade, mas viviam brigando. O outro cara, colega do alemão era
muito encrenqueiro. Os dois bebuns, mais que isso, eram alcoólatras
assumidos e muito mentirosos. Fariamos um ótimo trio.
Só que o mais bebum, o amigo do alemão, mentia por nós dois juntos. Até que
um belo dia, o alemão e eu, resolvemos fazer um complô contra o nosso amigo
alambique. Nós o expulsamos do quarto e jogamos suas bojigangas, farrapos,
pelo corredor. Ele foi direto reclamar para o unha-de-vaca italiano. Dois
minutos depois, voltaram os dois, bufando como um touro espanhol nas ruas
de Pamplona. Dissemos que ele andava mexendo em nossas coisas e que não
queríamos um ladrão no quarto. Nunca mais vimos a cara do sujeito.
Decidimos pagar o quarto sozinhos e morar só nós dois. O nome do alemão
era Sylvio Dentzel. Mas eu só o chamava de Russo, por ele ser loiro. Ele
ficava puto da vida, quando eu o chamava desse nome; acho que ele não
gostava de comunista, para ficar bravo daquele jeito. O safado inventou um
nome para mim. Não sei onde e como ele arrumou esse nome. Só me
chamava de Bob. Mas dizia de uma maneira tão engraçada, Boby ou Bobby,
que eu achava charmoso. Mas não tinha nada a ver comigo.
- Russo, onde você arranjou esse nome? - Perguntava eu - Meu nome é
Raul. Pô!
- Sei lá. Me esqueço do seu nome toda hora. Acho que Bob fica melhor com o
seu jeito.
Esse russo, ou Sylvio, foi o cara mais louco que já conheci em toda a minha
vida. O cara era completamente pinel. Só vou contar algumas das presepadas
que esse camarada me aprontou. Ele era garçon, - o outro bebun também - já
disse que em pensão só mora garçon e é verdade, mas o veado mentia para
mim e para todo mundo. Dizia que era Maitre d’hotel - Se um dia eu tiver
que ser um garçon, e tive, acho que nunca vou esconder - mas o sacana só
vivia bêbado e aprontando. Nunca parava mais do que uma semana em cada
serviço. Fazia mais serviços extras, em Buffets, do que trabalho fixo. Ele
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nunca parava de me mostrar umas fotos velhas de uma tal indústria, que dizia
ter sido dono, lá em Porto Alegre, sua terra natal. Mas o que eu mais gostava
nesse cara maluco, era o seu comportamento. Ele não saía das boates de
prostitutas finas. Achei até que devia conhecer a Lanny. Por milagre não
conhecia. E o veado era fino também e só andava na estica. De terno e tudo
mais. Ele entrava numa boate e dizia que era um industrial. Arrastava uma
prostituta, tomava um táxi, ele sempre falava que seu carro estava quebrado acho que nunca teve um carro na vida - e se mandava para nosso quarto. Ele
sempre andava duro. Nunca tinha dinheiro para hotel, ou coisa do tipo.
Quando chegava no quarto a puta perguntava:
- Que merda de industrial é você que não tem carro e mora numa espelunca
dessa?
- Calma, meu bem. Esse é só um quebra-galho. É minha garçoniere. Eu tenho
uma mansão no Morumbi, - dizia o filho da puta, com a maior cara de pau do
mundo e empurrando a trouxa da vagabunda. Já que estava ali, não tinha outra
saída a não ser trepar. Terminava o serviço, mandava a coitada embora, sem
pagar e nem nada. Cansei de pedir para ele parar de fazer isso. Mas o veado
nunca parava. Não agüentei o dia em que ele me apareceu bêbado como uma
anta, com duas mulheres, uma para ele outra para mim e me acordou bem no
meio da madrugada. Essa foi boa! Já não bastavam as minhas. Agora arrumei
um secretário para assuntos de mulheres. Mas fui bonzinho. Deixei a morena
dormir comigo. Até que não me arrependi. Bem de manhã, todo mundo deu no
pé e me deixaram dormindo. Esse louco era isso aí e muito mais. Mas a gente
se dava bem. E eu torcia para o sonho dele se realizar um dia. A única
esperança que ele tinha, era conhecer uma coroa bem rica e se amarrar com
ela. Acho que conseguiu.
CAPÍTULO SEIS
Janice, ou Jane. Que mulher! Começou a pegar no meu pé. Ela era mais velha
do que eu uns quatro anos. Divorciada, mãe de um garoto de dez anos e morava
sozinha com o filho. Descobriu logo minha transa com a Dora. A morena da
recepção era linda. Parecia uma deusa da mitologia grega. Dora. Parecia
Pandora, a deusa que enlouqueceu todos os deuses e semideuses do Olimpo.
Eu disse que não era nada sério. Não sei o que as mulheres entendem por algo
sério. Quando se trata de um envolvimentozinho amoroso. Mesmo assim queria
assumir um compromisso. E o pior. Queria exclusividade. Não acreditei. Nunca
me casei, para não me sentir exclusivo de uma mulher só. Pelo menos não era o
que estava pensando agora. Mas prometi que terminaria tudo com a moça dos
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verdes olhos. Pelo menos prometi. A gente saía sempre. Conheci seu filho, um
garotão muito bonito e inteligentíssimo. Ganhei muitos presentes, no meu
aniversário e fora dele. Fui aos melhores lugares de diversão com ela. Sempre
me apresentava para seus amigos e amigas, todos finos, como seu namorado.
Tentava me convencer a me mudar para um bom apartamento. Não me deixava
em paz, desde o dia em que a levei para conhecer meu quarto. Ela ficou
horrorizada.
Um dia a bomba explodiu. Não perdi por esperar. Quando a esmola é demais, o
santo desconfia. Como já disse, naquela droga de banco só se falava de projetos
faraônicos, grandes promessas, bilhões de lucro e tudo mais. Tudo grande.
Quando houvesse um erro, seria pra valer. Eu já previa o rombo pegar todo
mundo de calças curtas. Eu estava pagando para ver. Não sou o diabo mas
adoro um escândalo, ou coisa do tipo. Justamente na hora em que eu estava em
reunião com algum gerente e uns cobrões que apareceram por lá. Uma burra de
uma caixa paga um cheque roubado, num valor altíssimo, só porque tinha
fundo e um babaca de um gerente de atendimento autorizou o pagamento. A
ferrada foi tão grande que causou na demissão da moça e do gerente burro.
Como o Banco não joga para perder, obrigou todo mundo que trabalhava no
atendimento a pagar o desfalque. Inclusive eu. Não. Isso jamais. Nunca. Eu
nunca pagaria por um troço, uma burrada que não fiz. Berrei. Xinguei o gerente
culpado de todos os nomes feios que eu podia me lembrar. Gritei. berrei, mijei,
caguei, mas disse que não pagava. Preferia ser demitido. E foi o que fizeram.
No dia seguinte eu estava bêbado e desempregado. Meus Planos tinham ido
para o espaço. E eu estava fodido. Quando a Jane soube da história, não
acreditou. Tentou até falar com a diretoria. Disse que pagaria a minha parte.
Tudo em vão. Quando o banco faz, está feito. Ainda bem que não confiei
nesses veados. Ela foi correndo me procurar. Deu sorte. Eu estava cagando de
bêbado. Jane me levou para sua casa. Dormi lá. Ela me disse que arranjaria
outro emprego, em outro banco, com algum amigo seu, que era diretor. Nem
dei bola. Afinal, não era agora que eu ia ficar implorando droga nenhuma pra
ninguém. Especialmente, alguém com quem eu trepava. No dia seguinte ela
foi trabalhar e eu fui para minha alcova.
Quase peguei minha mudança, - toda mudança de pensionista cabe numa
mala. Essa é a vantagem de se morar em pensão - para me mandar de volta
para o Rio. Mas não fui. Sou teimoso. Já vim com o saco cheio daquela merda.
Por que é que iria voltar agora?
Passei o dia perambulando. Não telefonei para Jane, nem nada, como havia
prometido. Estou sempre prometendo as coisas e nunca cumpro. Decidi não
mais trabalhar nesse lixão. Faria qualquer coisa. Menos trabalhar em banco. Eu
estava debilmente horrorizado com o nome de banco. Parecia uma alergia
contagiosa que eu temia. Se fosse preciso, nunca mais eu entraria numa droga
de banco. Nem mesmo para abrir uma conta. Não estava arrependido de ter
vindo para São Paulo, essa esquina do mundo. Mas também, nem muito feliz.
Onde eu pensava que ia ser meu eldordo, paraíso. Parecia que seria minha
ruína, ou coisa do tipo.
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À noite, voltei para casa. - Casa! Veja só quanta audácia! - Dessa vez sem
beber muito. Meu amigo estava se arrumando para sair e aprontar mais uma.
Pensei porque eu não era como ele, ou se era muito diferente.
- Russo! Quero te pedir um favor. E sei que você pode fazer.
- O que é ? Mas vê se pára de me chamar dessa droga de nome.
- Está bem, Sylvio, eu paro. Quero que você me arranje um serviço de garçon.
Num desses BUFFETS, em que você trabalha. - Falei com a voz meio rouca.
- O quê?! - Ele fez uma careta - você trabalhar de garçon? E o seu emprego
no banco?
- Já era. Dancei. Fui demitido daquela porcaria.
- Mesmo assim. Você pode fazer outra coisa, menos trabalhar de garçon.
- Está bem. E por que é que não posso ser garçon? Acha que não posso agüentar
com uma bandeja de copos?
- Recuso-me a discutir isso com você agora - E foi saindo. Não entendi.
Realmente acho que ele estava certo. Jamais me passou pela cabeça, eu usar um
uniforme branco com gravata borboleta preta e ficar de pé o dia inteiro, ou noite
sei lá, servindo uísque para uns ricos, filhos da puta e sacanas. Acho que as
drogas das pensões de São Paulo são contagiantes. Eu estava me vendo um
garçon idiota, ou coisa do tipo. O veado do Russo acabou de sair e a Jane
apareceu. Me levou quase arrastado com ela. Porque eu não queria sair. Tinha a
intenção de curtir minha fossa sozinho. Não quis ir para a casa dela nesse dia.
Fomos a um restaurante chinês jantar. Me disse que tinha falado com seu amigo
e conseguira o serviço para mim.
- Tarde demais, - eu disse.
- Como assim? Não estou entendendo.
- Sinto muito, paixão, - Estou sempre chamando alguém de paixão desapontá-la com seu amiguinho, mas mudei de idéia. Não quero trabalhar
mais em nenhuma droga de banco. Se você tiver outra coisa melhor, eu aceito.
- Meu bem, você enlouqueceu? Só por uma coisinha de nada, você quer desistir
de tudo.
- Coisinha de nada é? Não adianta. Já decidi. - Foi aí que percebi uma tristeza
imensa aparecer no seu rosto. Ela começou a chorar e me abraçou. As mulheres
estão sempre chorando por nada, e começou a resmungar:
- Logo agora que estou me preocupando com você. Será que não pode ceder
só um pouquinho. Pelo o amor de Deus, Raul, faça alguma coisa por mim.
Tudo o que você fizer por mim, estará fazendo por nós dois. Será que eu não
mereço? Estou disposta a fazer qualquer coisa por você, só pra gente ficar
numa boa juntos.
Ouvi tudo aquilo e confesso que, pela primeira vez, algo me tocava. Mas não é
porque sou teimoso, nem nada, estou sempre me estrepando, porque nunca abro
mão do que quero. Minha vida inteira era assim, sempre me ferrando. Mas fazer
o quê? A gente não pode mudar o mundo. Nada é como a gente quer, ou coisa
do tipo. Vocês devem estar pensando que fui muito canastrão por não ter
aceitado o emprego que a Jane me arranjou e até mesmo me casado com ela.
Não é mesmo? Já disse. Nunca faço nada que não tenho vontade. Sempre fico
muito puto quando sou obrigado a fazer algo contra minha vontade. E ainda por
cima conseguiu a droga do trabalho para mim. Ela realmente se ligou em mim e
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queria de qualquer maneira que eu fosse morar com ela. Porra! Nunca fui o
tipo de sujeito que gosta de ficar sugando o sangue de uma indefesa mulher.
Eu sabia que se fosse morar com a Jane, a gente poderia até tentar ser feliz, mas
nada iria mudar. Eu me conheço muito bem. Não era a primeira vez que isso
acontecia. Odeio pensar que um dia, alguém pudesse me tachar de aproveitador.
Nunca quis um centavo de ninguém, especialmente de uma mulher. Acho
mesmo que eu deveria ter nascido gigolô. Como muita gente que conheço. O
Russo talvez.
CAPÍTULO SETE
Comprei um jornal para procurar emprego, sem muita esperança. Essas drogas
de jornais, um calhamaço dos diabos, jornal de Domingo, só anunciam os
piores empregos do mundo. Folhei a porcaria de capa a capa e não me
interessei por nada, a não ser por um anúncio de uma escola de cursos
profissionais em hotelaria. Só me interessei porque era de graça. Recortei a
droga do anúncio e fui obter mais informações detalhadas. A escola não era na
cidade. Ficava numa estância a duzentos quilômetros da capital. Funcionava
como hotel-escola e era mantido pelo governo federal. Havia três cursos:
cozinheiro, garçon e recepcionista de hotel. Optei por um. Mas tinha dúvida de
qual era melhor.
Procurei me informar sobre qual era o melhor. A moça que me atendeu,
perguntou qual era minha escolaridade. Disse que tinha o segundo grau
completo, - não menti, tinha que comprovar - então ela me aconselhou a
fazer o curso de recepcionista de hotel. Porque era mais leve e mais
sofisticado. Pensei em fazê-lo, mas acabei me inscrevendo no curso de garçon
mesmo. Garçon deve ganhar mais, pensei. Todo garçon no mundo inteiro é
ladrão. Fui contaminado pelas pensões fedorentas que só têm garçons como
inquilinos. Quando o Sylvio, o Russo, souber dessa ele nem vai acreditar. Fiz
todos os testes e passei. Até cego passaria. O curso durava seis meses em
regime de internato. Mas não terminei. Fui expulso faltando um mês para pegar
a droga do diploma. Gostei tanto do lugar, que até hoje sinto saudades. Sempre
que posso, dou uma passadinha por lá . Diga-se de passagem, todo o tempo que
fiquei naquele lugar mais gostoso e tranqüilo do mundo, não estudei droga
nenhuma. Ficava passeando pela cidade, nadando numa gostosa represa que
havia na cidade, onde era proibido nadar, paquerando e saindo com as garotas
deliciosas da cidade, - cansei de nadar nu com muitas delas, jogando futebol
todos os dias, na seleção da escola, onde eu era titular absoluto do time.
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Descobriram que eu já havia sido jogador profissional, - depois falo como isso
aconteceu e porque desisti - e por sorte o técnico ia com minha cara.
Estudar mesmo que era bom, nem pensar. Acho que foi por isso que me
deram cartão vermelho. Nem liguei. Afinal, eu já tinha curtido minhas
melhores férias do mundo. Cinco meses de paz, amor, tranqüilidade, sombra e
água fresca. Um tesão!
Peguei minha mochila com todos os meus pertences, dei adeus para meus
colegas. Sempre que alguém era chutado, os que ficavam, diziam: “Mais um.
Lá se vai mais um ex-futuro da nação, sem dar lucro para o governo” - Acho
que os governos do mundo inteiro, só fazem algo por um sujeito, visando
obter lucro com ele. No duro. - Eu disse adeus para todo mundo, inclusive
para o técnico de futebol, que era um cara legal pra burro.
Desci para a cidade, para esperar o ônibus ou alguma eventual carona. No
ponto, ainda vi alguma garota, das quais havíamos curtido juntos. Me
perguntaram por que eu estava indo embora. Disse que por nada. Apenas,
porque estava com vontade. Claro que não era isso. Os caras da escola, até que
não eram maus sujeitos. Por mais vagabundo que o aluno fosse, eles não o
jogavam na rua, sem um motivo muito grave. E foi o que aconteceu comigo.
Além de vagabundo eu era o maior desrespeitador de ordens e regulamentos da
escola. Era proibido beber e eu bebia, meio escondido, mas bebia. As portas do
pátio do alojamento sempre fechavam a uma hora da manhã. E eu sempre
chegava da cidade depois das duas e pulava o muro. Não discutir ou arranjar
encrencas com nenhum cidadão da cidade e comunidade.
Esse foi meu problema máximo. Briguei com seis caras sozinho e bêbado.
Apanhei feito cachorro sem dono, mas arranquei a orelha de um filha da puta.
E fui expulso.
Peguei o ônibus e desci na rodoviária de São Paulo. Aqui estava eu de novo.
Sem saber para onde ir. Ainda tinha todo o dinheiro da minha indenização no
banco, numa poupança. Pelo menos, por um bocado de tempo, não morreria de
fome, se eu me cuidasse. Liguei para minha amiga Lanny. Pela maior sorte do
mundo, ela estava. Contei toda minha história. Durante cinco meses não dei
notícias. Ela me convidou para ir para seu apartamento, como sempre. Pensei:
“O dia em que não tiver mais para onde ir, acabo me casando com a Lanny , se
ela quiser”.
Almoçamos juntos naquele dia. E durmimos bem agarradinhos, a tarde toda,
depois de uma gostosa trepada. Graças a Buda, Joel, seu irmãozinho veado,
não morava mais com ela. Estava estudando na França. Resolvi ficar morando
com a Lanny até conseguir um serviço. Agora podia trabalhar como garçon em
boate. Sorveteria, restaurante, hotel, servir cafezinho numa empresa qualquer
ou qualquer droga parecida. Lanny me mandou procurar um cara que ela
conhecia, dono de uma boate. Acho que as prostitutas conhecem todos os
donos de boates do mundo. Falei com o cara. Mas o imbecil tinha jeito de ser
o maior safado do planeta. Parecia um verdadeiro bandido. Não sei se não era.
Trabalhei uma noite e bastou. Tive mais de dez empregos em apenas um mês.
Bati todos os recordes da classe. Ganhei do Russo. O que parei mais tempo,
foi uma semana. Num restaurante de merda, que quase morri de trabalhar.
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Ficava nos jardins. Na avenida mais movimentada de São Paulo. A Nove de
Julho. Eu entrava naquela droga, às dez da manhã e saía às dez horas da noite.
Sem parar um segundo para cagar. A dona do troço, era uma velha prostituta
francesa, que tinha enriquecido dando o rabo em navios do mundo inteiro. O
nome do restaurante era o mesmo da puta. Qualquer coisa parecido com
LaBelle, não sei o que lá. Acho que a vadia gostava tanto de mulher, que só
tinha eu de garçon. O resto, umas dez, eram garçonetes. Todas putas e burras.
Não entendi, por que só um garçon? Creio que para fazer o serviço pesado e
para pôr ordem na casa. Sofri feito um cavalo manco. Era por isso que
ninguém parava lá. Mesmo assim, agüentei uma semana. Mas o que me
deixou mais fodido foi um cliente da casa. Todo cliente de restaurante é
chato. Não sei porque, mas nunca sacaneei nenhum garçon, em toda minha
vida de bêbado. O Sujeito que me deixava puto, era um cafajeste que ficava o
dia inteiro na parte externa do restaurante, tomando sol. O filha da puta
encostava seu mercedes branco conversível, novinho, último tipo, na frente da
droga do restaurante, que era cheio de mesas com toldos espalhados, pegava
sempre a mesa do canto, sentava em uma cadeira e botava os pés em outra.
Pedia um chocolate pequeno e ficava o dia inteiro folheando revistas de
mulheres peladas e fumando. Porra! Pelo tipo do animal, dava para saber,
com certeza, que era um cara muito rico. Eu só queria ter o carro que o veado
tinha. Então por que o safado não ia tomar sol na puta que o pariu? No começo
pensei que fosse o dono daquela joça, ou coisa do tipo. Mas depois me falaram
que era cliente.
Fiquei pensando: “Por que é que um imbecil, como aquele, tinha tanto dinheiro,
sem precisar, e eu ali me fodendo de tanto trabalhar, feito um condenado?”
Realmente não entendia. E o pior é que não podia fazer nada para mudar as
coisas. Deixei tudo como era e saí da droga do restaurante.
CAPÍTULO OITO
Continuei na batalha, a grande batalha da sobrevivência. Nunca dava sorte.
Cada lugar um intruso qualquer para me atazanar a droga da vida. Um dia era
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freguês chato. Outro, um garçon filho da puta, que vivia sempre de olho na
gente, qualquer cagada, corria para cagüetar, para os donos safados. Outras
vezes, eram os próprios patrões, que adoravam despedir a gente, só para
causar-lhes satisfação e massagear-lhes o ego. Um dia um maitre safado me
xingou no salão cheio de fregueses. Não deixei batido. Joguei uma bandeja
cheia de travessas com comida de um cliente, bem na cabeça dele e dei-lhe
umas porradas na frente de todo mundo. Nunca mais ele xingou ninguém.
Acredito.
Jornalista é amigo de jornalista, advogado de advogado. Médico é amigo de
médico. E garçon é amigo de garçon. Eu não tinha nenhum amigo, a não ser o
Russo, meu ex-companheiro de quarto e às vezes, de copo. Então, eu não era
um verdadeiro artista da bandeja, como eles diziam, na gíria. Nem por isso eu
estava preocupado. Jamais vi o Russo trabalhar. Gostaria de saber como ele se
portava. Dei uma passadinha na pensão, onde morei com ele, mas o veado já
tinha se mudado. Essa raça, a dos garçons, vive se mudando. Sempre de uma
pensão para outra Me disseram que ele havia acertado a sorte grande. Isto é,
realizou seu sonho e encontrou a coroa rica que tanto procurava. Fiquei feliz.
“Ele merece”. Pensei.
Continuei morando com a Lanny. Queria ajudar nas despesas, mas ela nunca
deixava. Não gostava da idéia. Achei que era melhor eu arranjar outro lugar
para ficar. Mas não queria voltar mais para pensão. Já estava satisfeito com a
transformação. Pois foi morando em uma pensão que me transformei num
verdadeiro idiota. Virei garçon. Quem diria? De tesoureiro de Banco na
Avenida Paulista a garçon.
Dei uma sorte dos diabos e consegui um trabalho numa das melhores boates
privês do Brasil. A coisa lá era tão sofisticada que os garçons trabalhavam
todos de smoking. Entre todos os empregos que tive como garçon, aquele foi o
melhor e o de que mais gostei. O único que gostei. Só ali pude ver e participar,
de camarote, quanta sacanagem existe entre os ricos e em toda a alta sociedade.
Cansei de sair de lá, quando fechava a casa, e ir de carrão, fazer bacanal com
gostosas madames. As gorjetas que eu ganhava, em uma única noite, dava para
pagar qualquer aluguel de um bom apartamento. E foi o que fiz. Torcendo para
nunca mais perder aquela boquinha, é claro. Achei até que ia ficar rico. Não
abusei da situação. Aluguei um apartamento pequeno, quarto e sala. Todo
mobiliado. Uma graça. Por um preço bem razoável. Mesmo que perdesse minha
boquinha milionária, daria para mantê-lo. A Lanny me ajudou a botá-lo em
ordem. Fiz uma decoração ao meu estilo. Bem louca. Para dar boa impressão,
comprei um aparelho de som, portátil, mas bem resistente, para eu ficar
curtindo minha música clássica. Adoro qualquer tipo de música clássica. Não
sei, mas eu adoraria ser músico de orquestra. Televisão eu não comprei. Não
tenho saco para TV. A única coisa que gosto de assistir é corrida de cavalos e
alguma partida de futebol. Agora as bolas estavam trocadas. Ao invés de eu
dormir no apartamento da Lanny, ela é que dormia no meu. Sempre durante o
dia. Fiquei com medo de que a moda pegasse. Se um dia eu resolvesse levar
alguém até lá, o que acabaria acontecendo mais cedo ou mais tarde, não queria
cruzar com ela lá no meu apartamento. Mas não falei nada. Em todas minhas
desgraças, apuros e desesperos ela era a única pessoa no mundo com quem eu
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podia contar com seu apoio. E não era agora que eu ia estragar isso. Que se
fodesse o resto do mundo.
Um dia fomos jantar fora. A gente estava sempre saindo para comer fora nos
meus dias de folga. Eu quase nunca fazia minha comida. Sou o pior cozinheiro
que existe na face da terra. Marquei bobeira na hora de escolher o curso de
hotelaria. Me arrependi de não ter escolhido o curso de cozinheiro. Se não
houvesse comida semi-preparada, acho que morreria de fome. Escolhemos um
restaurante bonzinho, desses com varanda e que normalmente está lotado à
noite, por gente de todo tipo. Desde intelectual até político disfarçado.
Sentamos na única mesa vazia, bem ao centro. Logo veio meu colega de
profissão, para nos atender. Ele jamais saberia que eu era um deles. Primeiro,
porque eu estava numa puta estica. Minha companheira Lanny, era lindíssima e
gostosa, e estava sempre elegante. Uma mulher não precisa ser muito bonita,
basta estar bem elegante, que chama a atenção de todo mundo. Segundo,
porque eu jamais tive cara de garçon. Sou alto, um metro e oitenta e cinco.
Tenho uma barba cerradissíma e muito bonita. Estou sempre caprichando
quando me barbeio. Cabelos encaracolados, castanhos-claros. Depois que vim
para São Paulo mudei o corte de cabelo, que aliás, mudei não só o cabelo, mas
todo meu visual.
Só uso um corte transado. Meio reco-chique, sei lá.
Sou moreno bronzeado, uma cor quase rara, um moreno quase dourado. Olhos
castanhos e grandes. Tenho uns dentes grandes e bonitos. Quando dou um
sorriso, um sorriso cheio de charme, costumo demonstrar a satisfação pelos
lindos dentes. Sou muito sacana, sempre faço isso quando vou sorrir. Sinto a
vontade da pessoa com quem estou, me dizer qualquer coisa. Um elogio, uma
piadinha, ou qualquer coisa parecida. É que meus dentes são os mais
engraçados e charmosos do mundo. Juro. Parecem mais dentes de cavalo do
que de gente. Só que são muito bem tratados e muito bonitos também. Outro
lance que gosto em mim é minha altura. Um metro e oitenta e cinco de altura.
Além de alto sou peludo. Herdei meus pelos do meu pai. Ele parece um urso de
tão peludo que é. Mas meus pêlos no corpo todo também já enlouqueceram
muitas donzelas. Sou um bocado peludo. Minhas costas, meu peito, pescoço,
braços e tudo mais, são cheios de pêlos. Depois que fiquei sabendo, sempre
soube, que a maioria das mulheres gostam de homens peludos, passei a andar
com a camisa sempre aberta os três primeiros botões. Portanto, eu estava mais
para galã de cinema do que para garçon.
Mesmo assim, ainda era um. Pedimos uma caipirinha de vodka, cerveja escura
e strogonoff de filé com xixi de galinha. Nem bem começamos a comer,
percebi que havia quatro caras, numa mesa um pouco afastada, nos olhando.
Todos tinham ótimos aspectos. Cada um com um visual melhor que o outro. No
começo pensei que estivessem paquerando minha amiga Lanny. Depois mudei
de idéia, quando disse para ela. Ela deu uma olhada bem descarada para os
idiotas e me disse que eram todos pederastas e que estavam paquerando era eu e
não ela. Sem querer, concordei. Não tenho nada contra homossexualismo, nem
masculino, nem feminino, mas odeio quando estou bem acompanhado e uns
porras-loucas ficam me comendo com os olhos. Mas não liguei. Deixei que os
veados, se quisessem, que me paquerassem à vontade. Não nos olhamos mais
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por um bocado de tempo. Pelo menos eu. Mas veja o que aconteceu. A gente já
estava preparando para pagar a conta. Quando de repente, um dos sujeitos que
estavam nos olhando, chegou em nossa mesa e pediu licença .
- Olá! Com licença... Desculpe se estiver perturbando; - disse o imbecil,
puxando uma cadeira - eu e meus amigos estávamos analisando o seu rosto e
seu cabelo e chegamos à conclusão unanimemente de que é de um rosto como o
seu que estamos precisando.
Dei uma olhada para Lanny. E me virei assustado para o cara. Mas antes que
eu abrisse a boca. O Sujeito tirou um cartão do bolso do blazer e disse, com um
meio sorriso:
- Meu nome é Lucas Daniel. Sou diretor de publicidade. Estamos precisando de
uma pessoa para umas fotos. Todos nós achamos que você é a pessoa certa.
Espero que pense no assunto e me dê uma resposta breve. Você não irá se
arrepender. Muito obrigado pela atenção e desculpe se os incomodei. Ah!, e
você também é muito bonita. - Disse ele, apontando para a Lanny. Voltou para
sua mesa e se juntou a seus prováveis assessores.
Dei um beijo na Lanny e levantei o copo para o ar e disse:
- Saúde! Um brinde ao sucesso!... - lógico que ela sabia que eu estava
satirizando. Ironizando. Mesmo assim, insistiu na idéia de que eu deveria ir em
frente .
- Raul, vai fundo, cara. Não é sempre que aparece uma oportunidade dessa.
Você por acaso sabe quantos caçadores profissionais de talento andam por aí, à
procura de rostinhos lindos como o seu? Sabe quantas pessoas já se deram bem
por um simples lance de sorte? Vamos lá, cara, liga só para ver no que é que vai
dar. Oportunidades na vida da gente são pouquíssimas. - disse ela. Só me
faltava essa agora. De garçon a modelo fotográfico. Aparecer nu, só de tanga
em todas as revistas, jornais, passarelas, televisão; viajar para desfilar em hotéis
de luxo. Conhecer o mundo inteiro, transar com as maiores manequins do
mundo. Fazer comerciais de TV, novelas, cinema, dar entrevistas, morar em
apartamento de luxo, ter carrões e super motocas, ganhar o maior cachê do
mercado, receber em dólares, ser famoso. Bela Ilusão. Não. Preferia ser tietado
como garçon, pelas lindas madames das boates, que me garantiam uma gorjeta
razoável. Mas pelo menos era seguro. E não me deixa frustrado. Poderia ter
tudo, tudo, menos fama, se quisesse. A boate estava cheia de lindas mulheres
cheias da nota, que viviam pegando no meu pé, para deixar de trabalhar e
tornar-me seus amante. Nem por isso, que era seguro, eu me aventurava.
CAPÍTULO NOVE
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Fomos para casa, Lanny e eu. Não ia trabalhar nesse dia. Era uma Segundafeira. Normalmente as casas privês fecham na Segunda, para dar folga a seus
funcionários. No dia seguinte era o dia do aniversário da Lanny. Sei lá
quantos anos. Eu não sei a idade de ninguém. Mas não era nenhum brotinho de
dezoito anos. Prometi que compraria um bolo para ela. Ela daria uma festinha
para meia dúzia de pessoas, suas amigas talvez, em seu apartamento. Comprei
uma linda gargantilha de ouro e uma dúzia de rosas brancas; adoro dar rosas
brancas para as mulheres, para aquelas que realmente merecem. Mas me
esqueci do bolo. Ela ficou tão feliz com o presente que nem se lembrou da
droga que prometi. Passamos a tarde inteira juntos. Fomos passear no Shopping
Center e aproveitamos para comprar alguma coisa. A pilantra tinha bom gosto
para escolher roupa para mim. Tomamos sorvete com cerveja e comemos
pipoca. Parecíamos um casal de namorados bem apaixonados. Eu achava
aquilo muito bonito, divertido e legal, mas não sentia nada. Acho que nunca
senti nada por ninguém. É!, acho que não mesmo! Se existe alguém no mundo
que tem o coração de pedra, então esse alguém sou eu. Pelo menos era o que eu
pensava. Mas ainda chego lá. Voltamos para seu apartamento. Jantamos juntos,
outra vez. Ela fez uma sopa de grão-de-bico. Adoro esse tipo de ervilha. Acho
que sou o único brasileiro que não gosta de feijão. Não pude ficar para a festa,
porque tinha que trabalhar. Eu entrava às nove da noite e saía às cinco da
manhã, mas cantei parabéns sozinho e bati palmas.
O natal já estava chegando. Mais um natal que eu ficaria longe da família. O
que será que minha mãe estaria fazendo agora? Seis anos sem notícias. Nem eu
tinha notícias deles, nem eles tinham de mim. Cinco natais fora de casa. Será
que eles me esperavam para esse? Será que eu já estava morto para eles? Não.
Claro que não. Apesar de eu ser a ovelha negra da família, eles ainda me
amavam. Minha mãe, nem mesmo meu pai, nunca me jogava na cara que eu era
o escândalo, ou a mancha no nome da família. Éramos em quatro irmãos. Todos
homens. Ricardo. O orgulho de todos. Ele era o mais velho e mais comportado.
Era casado, tinha duas lindas filhas. Tatiana e Diane. Era formado em
Engenharia Mineral e trabalhava numa empresa estatal, em Belo Horizonte.
Ganhava milhões de dinheiro. Renato. O nosso querido doutor Renato.
Também era um bom sujeito. Mas já tinha se casado duas vezes. Ele era
médico. Tinha um consultório particular. Tratava de crianças. Roberto. O
caçula. Nosso Betinho. Não sei o que é ainda. Talvez influenciado por mim,
também vire vagabundo. Começou bem a carreira de jogador de futebol,
chegou até a jogar no time principal do maior clube do Rio. Mas como eu,
acabou quebrando a cara e desistindo. Deve ser mal de família. E eu. Incrível!
Meu pai caprichou no nome de todo mundo. Ele deve ser desses caras tarados
pela letra “R”. E eu. Raul. O que será que minha mãe gostaria que eu fosse?
Engenheiro, médico como meus dois irmãos mais velhos? Dentista, professor,
sociólogo, general, artista, cantor, jogador de futebol, como o Betinho, um
comerciante milionário como meu pai, ou garçon? Não. Acho que isso nunca
passara pela cabeça de minha mãe. Meu pai é descendente de italiano com
grego. E não deixou por menos. Era comerciante. Durante a vida inteira mexeu
com jóias. Foi dono de joalheiria, relojoaria e todos os tipos de rias do mundo.
Agora, já um bocado velho, era dono de uma loja de pedras preciosas. Seu
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trabalho era como um colecionador. O sonho dele era que o Betinho se
formasse em administração, para poder cuidar de tudo para ele. Talvez um dia
ainda faço isso para o velho. Sei lá. Às vezes, fico pensando se minha mãe, amo
minha mãe, pra falar a verdade, não sei como passei tanto tempo sem ir vê-la,
tivesse uma filha. Eu ia adora ter uma irmã. O que será que ela seria? Uma boa
dona de casa ou uma prostituta?
Comecei minha vida bem. Aos cinco anos de idade já tinha aula de piano.
Estudei grego e italiano aos dez. Aos dezesseis já havia completado o colegial.
Não tentei nenhuma faculdade porque estava começando minha carreira de
atleta e porque não tinha vocação pra coisa. Tive um começo de carreira como
atleta, toda tumultuada e um final pior ainda. Comecei nos juvenis de um time
pequeno. Abandonei depois de um ano. Por motivo de jogo violento. Sou
zagueiro, até hoje jogo nessa posição, e sempre joguei violento. Sempre fui
comparado a um cavalo por outros jogadores. Quando o camarada passava por
mim, a bola ficava, mas se a bola passasse, o sujeito ficava no chão. Se não
ficava por bem, ficava na porrada. Um dia um jogador adversário levou uma
porrada e ficou caído no chão. Ele se levantou e arrancou um chumaço de
grama e jogou na minha cara e disse: “toma, cavalo”. Era difícil um jogo em
que eu não saía expulso de campo. Só jogava pelada na praia, ou tirava algum
racha com os amigos. Sempre tinha um imbecil querendo me levar para jogar
no seu time. Meu time da praia já estava invicto há mais de um ano, sem perder.
Se a gente não ganhava na bola, ganhava no grito. Cansei de chegar em casa
todo arrebentado de tanta porrada na cara. Mas o adversário ia direto para o
pronto socorro. Até que um dia, um sujeito me viu jogando e veio falar comigo.
Ele era não sei o que lá, de um clube, o mesmo que o Bentinho começou a
jogar. Fui lá e falei com os caras. No dia seguinte eu já estava treinando.
Fiquei três anos no clube. Um como amador e dois como profissional. Mas
como eu era muito indisciplinado, fui emprestado para um time pequeno de
Minas Gerais. Foi lá que terminei minha carreira.
Os caras queriam que a gente treinasse vinte e quatro horas por dia e ainda
ficasse metidos em concentrações, duas vezes por semana, incomunicáveis.
Não agüentei mais do que um ano. Por fim, para piorar, achavam que eu estava
muito mascarado e me meteram de castigo na reserva. Essa não agüentei.
Prometi que o dia que voltasse ao time, eu arrebentaria a perna de um filha da
puta, para mostrar que eu não era um mascarado. E foi o que fiz. Era um jogo
importante pra burro, para meu time. Já estávamos no fim da droga do
campeonato e meu time era o penúltimo colocado na tabela. Se não ganhasse
aquele jogo, rodaria para a segunda divisão. E por azar, meu titular estava
machucado e não podia jogar. O veado do técnico me chamou e me ameaçou:
-
Você vai entrar e jogar. Mas se não jogar direito e o time perder, pode
pegar sua trouxa e desaparecer.
Fomos para o campo. Primeiro tempo: um a zero para minha equipe. Gol meu.
Além de ter jogado bem, ainda fiz o gol, que salvaria meu time e minha cabeça
da forca. No intervalo o técnico deu uns berros com todo mundo, menos
comigo. Voltamos para o segundo tempo. Parecia que o estádio ia pegar fogo.
Estava lotado. E eu morrendo de ódio. Nosso time cobrou um escanteio, aos
21
vinte e cinco minutos, o time adversário tirou a bola da área, de cabeça, deram
mais um chutão e a bola sobrou para mim, no meio do campo. Driblei um
atacante deles, mais um, e um zagueiro. Meti uma bomba de fora da área, que
o goleiro não viu nem a cor da droga da bola. Corri para meu lugar e o veado
do técnico correu para me abraçar. Virei as costas.
A torcida quase enlouqueceu. O time adversário veio pra cima. Era pontapé
para todo canto. E dá-lhe porrada. Faltavam cinco minutos para acabar o jogo.
Eu estava encharcado de suor, quando de repente, um animal de um atacante
me acertou por trás. Levantei rápido, para o juiz não ver, gemendo, com uma
puta dor. Esperei o filho da puta do atacante dominar a bola e ali, na frente do
juiz, dei uma tesoura voadora, que acertei a perna do sujeito, bem no meio.
Juro por Deus. Ouvi até o barulho do osso quando fez “CRECK” e quebrou. O
imbecil caiu na hora e não parava de berrar e gemer de dor. Saiu carregado de
maca, direto para um hospital de fraturas. Nunca mais ouvi falar do cara. Nem
sei se ele jogou mais futebol. Fui expulso de campo na hora. Mas honrei a
camisa que vesti e a promessa que fizera. A merda do time estava salvo.
Vencemos a droga do jogo com dois golaços meus e o lixo do time não foi
rebaixado para a segunda divisão. Quando eu estava saindo do campo expulso,
veio um batalhão de repórteres me fazendo todos os tipos de perguntas
estúpidas e idiotas, que possa existir:
“Ei Machão!, Por que você arrebentou o cara?”, “Você sabia que a perna dele
pode ser amputada?”, “Qual era a sua intenção?”, “Você sabe que acabou com a
carreira dele ?”, “E se o cara morrer, o que pretende fazer, você pode indenizar
a família dele?”, e mais um monte de besteiras que me deixaram louco da
vida. A única resposta que dei, foi mandar todo mundo tomar no cu. Alguns
engraçadinhos, torcedores do time do cara que saiu quebrado, começaram a me
vaiar e jogar objetos, gritando: “carniceiro, assassino, pipoqueiro, sangue ruim,
animal, filho da puta, carrasco. Nós vamos te comer vivo...”. Enquanto que
minha torcida me aplaudia de pé, batendo palmas. Acenei para eles, mandando
beijinhos. Final da história. O safado do juiz fez um baita relatório, me
condenando e me colocando abaixo de cu de cachorro. Fui suspenso por um
ano e nove meses, pela Confederação Brasileira de Futebol. Não iria esperar
esse tempão. Abandonei a carreira. Sem ao menos, nunca ter sido campeão.
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CAPÍTULO DEZ
Voltei para casa e não quis nem ouvir falar mais em futebol. Ficava o dia
inteiro vadiando e ensinando sacanagem para meu irmão Betinho, que ainda era
bem garoto. Ele tinha dezessete anos. A gente ia para a praia e ficava
aprontando. Tínhamos a nossa famosa patota. Minha namorada Rita, aliás eu
tinha várias namoradas e sempre vivia metido em rolo com mulher, Betinho e
suas gatas, mais uns amigos de praia e uma porção de gatinhas. Era praia, sol,
mulher, muita cerveja e encrencas todo dia. Quando a turma não achava nada
para fazer. A gente tomava prancha de surfe dos carinhas que vinham do
subúrbio; dava porrada de montão e mandava os babacas chisparem. Ou então,
íamos de carro para uma fazenda bem longe, roubar manga e goiaba e andar a
cavalo. Eu era louco para roubar um lindo cavalo manga-larga. Só não roubava
porque a turma não deixava e porque não tinha onde colocá-lo. Fiquei nessa
vida de vagabundo quase três anos. Quando alguém me perguntava onde
trabalhava, eu sempre dizia, com o maior despudoramento que era na VASPVagabundos Anônimos Sustentados pelo Pais. Até que um belo dia a casa caiu.
Meu pai se encheu de viver me engordando e me dando mesada de graça e saiu
com os cachorros em cima de mim. Me disse que se quisesse dinheiro eu teria
que pelo menos estudar ou trabalhar com ele na joalheria. Foi a gota d’água.
Minha mãe vivia me enchendo o saco para eu fazer uma droga de faculdade.
Por que é que eu não fazia educação física, já que eu gostava de esportes?
Perguntava. E meu velho queria que eu fizesse administração de empresas, ou
coisa do tipo. Meu sonho era estudar música em Viena. Mas nunca disse nada.
Meus dois irmãos mais velhos, já todos formados, viviam me enchendo o
saco, para fazer uma porra de um tal teste vocacional. Eu lá precisava de
vocação por alguma droga qualquer? Eu tinha uma última chance. Poderia
lecionar grego, ou italiano. Mas nem isso eu queria. Num belo Domingo à
tarde, me tranquei no meu quarto e fiquei pensando o que era que eu ia fazer.
Quase aceitei a idéia de trabalhar com meu pai. Iria ganhar muita gatinha, que
fosse com a mãe fazer compra, quando dissesse que eu era o dono. Mas desisti
logo. Poderia me casar com a Rita, o pai dela era multimilionário, e a gente não
precisaria trabalhar.
Mas minha família ficaria louca da vida, se isso acontecesse. Pensei em tudo
que pudesse imaginar. Nenhuma saída. A que era melhor e que me agradou
mais, foi pegar minha mochila e sair por aí, sem destino. Numa de “On The
Road”. E foi o que aconteceu. Peguei umas três calças jeans, umas cinco
camisetas, dois pares de tênis, cuecas, dois ou três livros, escova de dente e
meti tudo numa mochila do Betinho, roubei alguma grana da minha mãe, não
muita, e ganhei a estrada. Deixei um bilhete na cama do Beto que dizia o
seguinte: “Mano, peguei sua mochila emprestada. Vou dar uma volta por aí.
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Vou dar um giro pelo planeta azul. Não sei quando retorno. Nem sei se volto.
Dá um beijo na mamãe por mim. Te gosto pra caralho. Adeus! Mano Raul.” E
nunca mais tornei a vê-lo e ninguém mais da família até que eu voltasse noivo
depois de muitos anos.
Telefonei para Rita, para me despedir dela. Não disse para onde ia. Fui para a
rodoviária - nunca tinha ido lá antes. Até então só tinha viajado de carro ou
avião - disposto a pegar o primeiro ônibus que me desse vontade. Fui para
Curitiba. Tinha curiosidade em conhecer essa cidade. Mas não tinha nenhum
amigo ou parente lá. Queria ficar o mais longe possível de parentes.
Cheguei em Curitiba de manhã. Estava um pouquinho frio. Mas não me
importei. Comecei a andar por ali, admirando os prédios, as pessoas. Pareciam
todas mais educadas que as pessoas do Rio. A maioria das mulheres eram loiras
e muito bonitas. Pensei que estivesse na Alemanha ou coisa parecida. Sentei
num banco do calçadão, a famosa rua das flores, e fiquei observando a multidão
passar em volta de mim. Era uma segunda-feira e o movimento era grande.
Fiquei pensando o que eu faria numa cidade desconhecida e sozinho. Estava
olhando para o chão e vi uma foto de um gorila gigante. Deveria ser o king
kong. Fiquei com vontade de ir ao Jardim Zoológico. Eu nunca me lembrava de
ter ido alguma vez ao zoológico do Rio. Perguntei para um guarda onde ficava
o zoológico e fui pra lá. Andei pelo parque inteiro e brincava com todos os
animais ali presos. Pensei por que os bichos não são livres como nós? Mas não
encontrei uma resposta convincente. Vi uma linda garota loira, sentada sozinha
em um banco próximo ao lago. Ela estava lendo um livro. Me deu vontade de
falar com alguém. Eu estava me sentindo muito solitário. Resolvi ir falar com a
garota. Sentei-me bem ao seu lado e ela me olhou. Eu disse “oi” e ela me
respondeu com um lindo sorriso.
- Oi!
- Qual é seu nome? - Perguntei, demonstrando cara de garoto inocente e
bonzinho.
- Karol. E o seu?
- Raul.
- Você não é daqui, né? Aposto como é do Rio de Janeiro.
- Sou sim. Como sabe?
- Pelo sotaque. Todo carioca tem um sotaque muito bonito e gostoso. - Disse
ela sorrindo. Fiquei louco para beijar aquela boca lindíssima. Conversamos
bastante e fomos para uma lanchonete. Contei minha história. E ela disse que já
tinha visto uma foto minha numa revista de esporte.
Adorei conversar com a garota loira. Ela era linda e mais educada ainda. Depois
que Karol e eu conversamos muito e já parecíamos velhos e bons amigos
resolvi pedir para ela me ajudar a arrumar um lugar para ficar. Ela me
convidou para ir para sua casa falar com seu pai. Ele era gerente de um grande
banco. Talvez pudesse me ajudar. Mas fiquei com medo. Disse para ela que
ficaria num hotel barato do centro. Ela insistiu para que eu fosse para sua casa,
que não teria problema algum. Falou que seu pai era um cara legal à beça. Mas
nem assim tive coragem. Ela foi comigo até o hotel e me pediu para lhe
telefonar à noite, para a gente sair. Fiquei no hotel o resto da tarde tentando
24
dormir. Quando de repente, já quase noite, bateram na porta. Levei um baita
susto e pulei da cama.
- Senhor Raul? Senhor Raul? - Gritou uma voz de homem bem grossa. Era o
porteiro do hotel. Abri a porta e ele me disse que tinha uma moça me
procurando. Fiquei com medo de que fosse a Rita ou alguém que minha mãe
tivesse mandado atrás de mim. Mas não podia ser. Não sabiam para onde eu
tinha ido. Desci e lá estava ela.
Karol. É claro. E com sua mãe e tudo. Não acreditei.
Nem mesmo iria ligar para ela naquela noite. Me disseram que tinham falado
com o velho e que ele gostaria de falar comigo. Entrei num carrão. Com a mãe
de Karol ao volante e nos dirigimos para uma grande mansão num bairro super
chique e de classe média alta. O quintal era cheio de árvores. Eu estava nervoso
pra burro e tinha me arrependido de ter levado aquela putinha da Karol, para
ver o hotel onde eu ia ficar. Não andamos nem dez minutos e já chegamos.
Cruzamos um portão de ferro alto pra burro, e estacionamos na garagem, onde
havia mais dois carros e uma caminhonete. Acho que um de Karol e os outros
do pai dela.
Entramos na sala de visitas e lá estava um senhor bem jovem ainda, muito bem
apessoado, e com ar de ser gente boa, chupando um troço meio esquisito. Um
pó grosso, cheio de pauzinho, meio esverdeado e amarelado, numa cuia de
cabaça, com um canudo grosso de alumínio, cheio de água fervendo. Quando vi
aquilo me assustei. Karol entrou na frente e puxou seu pai pelo braço, dizendo:
- Papai, esse aqui é o Raul. O rapaz do Rio, de que te falei.
O Pai dela me apertou a mão e segurando a cuia na outra, me disse:
- Olá! Como vai? Seja bem vindo. Quem a minha filha traz aqui, é sempre
bem vindo.
- Muito obrigado. É muita bondade do senhor e da Karol também. Eu não
queria causar aborrecimentos.
- Aborrecimentos? Ora essa! Você só vai causar aborrecimentos se recusar
nossa ajuda. Fique à vontade. A casa é sua. Karol já nos contou tudo a seu
respeito. Você pode contar com meu apoio. Também tenho um filho na sua
idade, que está estudando em Londres, ele também já esteve em situações
parecidas com a sua. Ele nos pediu que se algum dia a gente encontrasse
alguém em apuros, que fôssemos solidários o máximo possível. - Disse o pai
da Karol, com muita satisfação. Fiquei pensando se aquilo não era um sonho.
Nunca acreditei que houvesse pessoas de bom coração no mundo. A única
pessoa que eu achava que era boa, era minha mãe. Karol entrou correndo com
uma revista velha e falou, apontando para uma foto:
- Tá vendo, tá vendo. Eu não disse que conhecia o Raul? É uma reportagem de
quando ele foi emprestado. - E mostrou a revista para seu pai e sua mãe. Eu
nem sabia dessa droga de revista. Nunca li uma entrevista minha em nenhuma
droga de jornal ou revista.
O nome da mãe da Karol era Helen ou Helens, não me lembro direito, e seu pai
era Sr. Ralf. Ralf Smith. Neto de alemão. Ele era gerente de um banco e tinha
uma grande fazenda de gado leiteiro. Que dava para abastecer a cidade de
Curitiba quase inteira. Karol tinha dezenove anos e estava cursando o primeiro
ano de medicina-veterinária na Universidade Federal do Paraná. Ela era uma
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graça de garota e muito inteligente. Não conhecia o Rio de Janeiro e tinha
paixão para passar um carnaval lá. Prometi que um dia a levaria para realizar
esse sonho. Mas até hoje ainda não pude. Fui convidado para jantar com eles.
Disse o que pretendia. Contei que não tinha a mínima intenção de voltar para
casa tão cedo. O senhor e a senhora Smith me entenderam e disseram que iam
me ajudar. Karol estava torcendo para que eu nunca mais fosse embora. Dava
para sentir isso em seu olhar. Ficou decidido que eu iria morar com eles até que
as coisas se contornassem. Fiquei morrendo de medo de que eles telefonassem
para minha família. Graças a Deus não fizeram isso comigo. Me deram o quarto
que era do irmão da Karol, que estava em Londres. Tomei um banho muito
gostoso e fiquei vendo televisão no meu quarto, que ficava ao lado de uma
saleta, bem próximo ao quarto da Karol. Pensei se agüentaria ficar sem ir lá
beijar aquela gracinha e agradecer o que ela havia feito por mim. A minha
vontade era muito grande mesmo. Juro. Juro que era mesmo. Mas tinha uma
coisa que falava mais alto. O medo. Eu não podia estragar uma coisa tão boa,
como a confiança que eles tinham depositado em mim. E além do mais, eu
tinha o futuro inteiro pela frente. Adormeci. E sonhei com a Rita. Mas acordei
com alguém alisando o meu rosto com uma mão muito levinha e suave. Levei
um grande susto e me sentei na cama. Meu coração até disparou. Pensei que
fosse um pesadelo. Mas alguém pediu para que eu ficasse calado. Nem
acreditei no que estava vendo. Karol. Ela parecia um anjo que tinha descido do
céu para me salvar. Bem ali na minha frente. De corpo e alma. Ela colocou o
dedo da mão direita verticalmente nos lábios e fez um sinal de silêncio. Olhei
para o relógio, já marcava duas horas da madrugada. Ela tinha fechado a porta
com a chave. Fiquei morrendo de medo de que seu pai ou sua mãe ainda
estivessem acordados. Ela sentou-se na minha cama e inclinou-se para me
beijar. Nos abraçamos e ficamos muito tempo nos beijando. Perguntei, cochichando em seu ouvido, quase enfiando a língua dentro, se o casal já
estava dormindo. Ela respondeu que sim. Falei para ela que não podia ficar lá.
Mas continuei a abraçá-la e beijá-la. Eu estava muito feliz e louco por ela. Vi
seus peitinhos rosados e duros, não eram muito pequenos, roçarem meu peito
cabeludo. Queria beijá-los, mas tinha medo. Ela percebeu e se deitou em cima
de mim. Nunca tinha visto uma garota tão carinhosa antes, como Karol.
Ficamos um bocado de tempo deitados juntos nos acariciando. Ela lindamente
maravilhosa. Eu estava louco para fazer amor com ela. Quando estou com uma
garota estou sempre louco para fazer amor. Acho mesmo que sou um tarado
sexual. Isso mesmo. Sou um maníaco sexual. Sou viciado em mulher. Faço
questão de dizer isso. Sou um aficionado sexual assumido - mas meus olhos e
pensamentos não saiam da porta. Dava para perceber que ela também estava
com muita vontade de fazer amor. Principalmente depois que beijei seus lindos
seios.
- Paixão, pelo amor do Big God, não me deixe mais louco do que já estou.
Não existe nada no mundo que quero, a não ser você. Mas e se seu pai ou
sua mãe nos pegarem assim? Volte para seu quarto e amanhã a gente
conversa. Por favor me entenda - disse eu, afagando seus lindos cabelos
dourados.
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Realmente ela era uma graça de garota. Mas como eu, também era meio tarada
por sexo. Continuou a me beijar e a me dar mordidinhas. Depois me falou que
tinha uma surpresa para me falar. Mas que só falaria isso no dia seguinte. Nos
levantamos e ela ainda se pendurou no meu pescoço para um último abraço e
me beijou novamente. Com mais tesão dessa vez.
Voltei a me deitar depois que ela se fora. Ela me pedira para dormir com os
anjos e sonhar com ela. Fiquei um bocado de tempo pensando em Karol, no que
tinha acontecido, no dia seguinte, em mim, nos pais dela se descobrissem, em
Rita, no meu futuro. Pensei naquilo tudo que estava acontecendo. Não sabia e
nem queria saber se era realidade ou um sonho. Como uma garota tão bonita e
inteligente, como a Karol, havia mexido tanto comigo. E por que ela tinha se
envolvido comigo? E seus namorados, onde estavam? Toda garota linda sempre
tem um namorado ou mais de um. Por que comigo? Por que logo comigo, que
sou um tremendo de um maluco, tinha que acontecer isso? Acho que eu
mereço, pensei. Tentei raciocinar e achar uma saída. Pensei em fugir pela
janela, mas fiquei com medo de haver um cachorrão policial lá fora. E além do
mais, eu não teria coragem de fazer uma cagada dessa com a Karol, que tinha
gostado tanto de mim. Pensei em falar com ela no dia seguinte e pedir para eu
me mudar para algum lugar, uma república ou casa de estudante (ainda não
sabia que existia pensão ou coisa do tipo), e continuar saindo com ela. Pensei
nos pais dela, se aceitariam eu morando lá e tendo um caso com sua filha. O
que diriam se descobrissem? Pensei que queria sair de lá mas não queria
perdê-la. Pensei em tudo, e acabei dormindo, nervoso e feliz ao mesmo tempo.
Acordei às nove horas, no dia seguinte. O senhor Ralf já tinha saído e Karol e
sua mãe estavam terminando de tomar café. Tomei um banho, me vesti e dei
uma olhada no espelho. Não estava com mal aspecto. Ouvi a mãe de Karol
dizer para ela me chamar, para tomar café com elas. Ela correu e entrou em
meu quarto.
- Bom dia, garanhão. - Disse ela, com um sorriso e já me abraçando. Dei um
beijo rápido em sua boca e me afastei.
- Preciso ter uma conversinha séria com você. Sua pilantrinha. - Falei sorrindo.
- Bom dia, Dona Helens.
- Bom dia, Raul. Como passou de Ontem? Dormiu bem?
- Passei muito bem. - E como tinha - Dormi como uma pedra. E o senhor
Ralf. Já foi trabalhar?
- ... O Papai deixou um recado para você. - Falou Karol, cortando nossa
conversa. - Ele pediu para você ir comigo até a fazenda e para não se
preocupar com trabalho. Porque ele vai arranjar alguma coisa lá no banco, se
você quiser, é claro. Mas é para ir comigo até a fazenda. Preciso fazer um
serviço lá muito importante.
- Tudo bem, para mim. O que você me pedir, será uma ordem. Mas com quem a
gente vai? Com a senhora dona Helens?
- Deixa de ser bobinho. Só nós dois. - Respondeu Karol. Pensei que isso já
era demais. Provocação. Armação. Só podia ser coisa daquela maluquinha. Sair
por aí, de carro, sozinhos e ainda por cima, para uma fazenda. Acho que ela
queria acabar comigo. Ou estaria me preparando uma cilada? Seja lá o que
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fosse, dessa vez não me importaria. Além de ser maluco, não tenho nada a
perder mesmo. Pensei.
Ela pegou uma porção de bugigangas, chapéu de cawboy, dois, um para ela e
outro para mim, uma máquina fotográfica, dessas importadas do Japão, com
uma tremenda teleobjetiva, com canudo e tudo. Fiquei louco para roubar a
câmera e dar no pinote. Ela me jogou um par de botas texanas, e um montão
de outras coisas. Ela estava vestindo uma calça Lee bem justa, era alta pra
burro, quase da minha altura, um metro e oitenta, por aí, e uma camisa xadrez
azul e branca, estava muito bonita e gostosa. Entramos em seu carro, uma
Silverado do ano, que parecia um avião.
- Vão com cuidado, meninos - disse a mãe de Karol, quando a gente estava
saindo. Gostei do “Meninos”. É uma maneira de alguém tratar as pessoas com
carinho. Com proteção. Eu já podia me sentir da casa. Afinal, fora muito bem
recebido e tratado melhor ainda, por todos da casa. Acho que foram com minha
cara. Ou então, talvez eu sempre tive cara de bom garoto. Vai ver é isso. Karol
foi dirigindo, porque eu não sabia o caminho. Adoro andar de carro com uma
mulher ao volante.
Sempre que saía com a Rita, minha namorada do Rio, ela ia sempre me pegar
de carro em minha casa. Andamos uns cem metros e Karol me beliscou a perna
e disse :
- Então, meu gatão, tá a fim de curtir uma fazenda, um pouquinho? Aposto
como você gosta de andar a cavalo. Ou não? - Parecia que ela adivinhava
meus pensamentos.
- Adoro cavalos. Adoro fazenda. Mas não estou entendendo porque você está
fazendo isso comigo.
- Porque você precisa relaxar. Você está muito tenso e abatido, por ter fugido
de casa...
- ... Eu não fugi. Saí por que me deu vontade.
- Deu vontade, mas você não quer voltar, né? Deixe de ser tolinho. Será que
você é cego e burro para não perceber que gostei demais de você.
- Eu também gostei muito de você. Adorei ter te conhecido, não porque você
me levou para sua casa. Não há nada nesse mundo que eu queira a não ser
você, repito. Eu juro. Mas estou com medo de que sua família descubra tudo.
- Eles já sabem de tudo. - Gelei quando ela falou isso.
- O quê? Você está brincando?
- É verdade. Contei tudo que aconteceu ontem a meu pai e a minha mãe. Eles
me adoram e são bem liberais comigo. Me deixam fazer o que quero. Desde
que seja para o meu próprio bem. Minha mãe é muito feliz por mim e fica
contente quando estou feliz também. Minha família é muito unida e feliz. Não
fazemos nada para magoar ninguém. Eles sabem que gostei muito de você. Se
não fosse isso, você jamais estaria em casa. - Karol disse tudo isso com uma
cara apaixonada e alegre.
- Obrigado, Karol. Não sei como te agradecer. - Falei, passando a mão em seu
rosto.
- Não precisa agradecer. Apenas quero que fique feliz e divirta-se bastante. Isso
é tudo que quero.
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Andamos uma hora e meia pela rodovia de asfalto e pegamos uma estrada de
chão, mais vinte minutos e já estávamos na sede da fazenda. Onde era a casa de
campo da família Smith. Karol entrou e jogou as coisas no sofá e correu para o
telefone. Ligou para sua mãe e disse que a gente já tinha chegado e que tudo
tinha ocorrido bem. Mandou sua mãe falar para o senhor Ralf que iríamos ficar
uma semana na fazenda, já que eram suas férias. E que se eles quisessem
passar o final de semana lá, que viessem se juntar a nós. Ela desligou a droga
do telefone, - não sei por que até em fazenda tem que existir um maldito
telefone - e pulou em cima de mim, que estava sentado numa poltrona de
couro descansando. Começamos a nos beijar e ficamos bem à vontade. Porque
agora eu não estava mais com medo de nada. Karol era uma garota muito
esperta e estava sempre me fazendo ficar cada vez mais maluco por ela.
- E os cavalos? Estou doido para andar a cavalo. Você me leva?
- Claro, meu gatão fujão. Vou te levar a um lugar que você vai adorar.
Aposto como você jamais viu algo igual. Quero fazer você mergulhar numa
cascata cheia de sensação e prazer. E curtir a verdadeira natureza. O lugar é
melhor do que a ilha da fantasia. Quero ver você fugir de mim.
Selamos dois gigantes manga-largas. O meu era um lindo baio e o dela era um
potro branco com patas negras. Eu saí numa galopada gritando e me lembrei do
meu tempo de vadiagem do Rio. Karol vinha atrás. Até que uma hora ela me
ultrapassou e quebrou por uma estradinha rumo à cascata. Andamos uns mil
metros e ouvi o barulho da queda d’água, no meio da mata. Deixamos os
cavalos amarrados num chalé que existia bem perto da cachoeira e fomos nos
deliciar na água que caía, fazendo um barulho gostoso. Karol tirou a roupa e
ficou nuazinha sobre as pedras para pular na água. Fiquei admirando seu corpo
que reluzia ao sol. Que maravilha! Eu estava em transe. Em estado de devaneio.
Zen. Ela começou a berrar para eu andar logo. Tirei a roupa e pulei nuzão para
apanhá-la. Ela fugia nadando como um peixe dizendo: “Não vou te deixar me
pegar, seu gostosão. Você é um tesão, mas não vai conseguir me pôr a mão”.
Isso era o que ela pensava. Eu sabia que ela estava, tanto quanto eu, doida para
ser acariciada.
Subi numa pedra e fiquei fingindo que estava olhando para o céu, em direção
ao fio de água que caía, ela estava nadando na minha frente, quando dei um
baita pulo e aguarei-a pela cintura.
-
Como é que é? Não vai me pegar...? Te peguei, te peguei, gostosona. Você
não disse que eu não ia conseguir? - sussurrei.
E comecei a beijá-la, puxando-a para junto das pedras. A sacana me abraçou
e me puxou para baixo, quase me afogando. A água era cristalina. Parecia uma
lagoa azul encantada. Nunca tinha visto nada parecido. Era realmente linda.
Saí da água e deitei-me sobre a laje e ela começou a me fazer carinho e pedir
desculpas, mesmo sabendo que era puro charme o que eu estava fazendo.
Ficamos ali naquele paraíso, nos amando um bocado de tempo. Só voltamos
para casa depois que conheci toda a cascata com suas enormes cachoeiras
lindas. Eu já não agüentava mais de fome. Sou um comilão. Um verdadeiro
bicho papão, quando fico faminto. Karol preparou um lanche rápido para nós,
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até que ela fizesse o almoço. Almoçamos quase na hora do jantar. Eu nunca
tinha me sentido tão feliz em toda a minha droga de vida. O acaso tinha me
levado para aquele lugar. O acaso me levou para os braços de Karol. Se eu não
tivesse fugido de casa, nada daquilo teria acontecido comigo. Karol, a
pilantrinha, fazia tudo para me deixar eternamente feliz. Sinceramente, não sei
o que essa garota linda e maravilhosa tinha visto em mim. Para falar a
verdade, acho que ela era mais maluca do que eu. Passamos a semana inteira
como um casal de pombinhos apaixonados, curtindo toda a gostosura da
fazenda. Na Sexta-feira a mãe de Karol telefonou para dizer que eles não
iriam para a fazenda e perguntou como eu estava. Karol respondeu que eu
estava ótimo, melhor estragaria. E acrescentou que estava cuidando direitinho
de mim. “Não se preocupem. Ele é todinho meu. Não vou deixa-lo sofrer”.
Disse ela passando a mão no meu rosto.
Voltamos para a cidade no Domingo à tarde, deixando o paraíso para trás.
Zarpamos, com a certeza de que logo estaríamos de volta. Retornei com a
família toda, uns quinze dias depois. Mesmo sabendo do liberalismo que existia
na família Smith, fiquei meio cabreiro a enfrentar os pais da Karol. Chegamos
e eles estavam jogando cartas com um casal de amigos. Amigos da familia.
Karol me apresentou como seu namorado para o casal. O Pai de Karol nos
convidou para fazermos uma dupla e entrar na roda. Minha gatinha e eu já
havíamos jogado buraco pra burro na fazenda. Ela sabia que eu jogava pra
chuchu e resolveu formar uma dupla imbatível comigo. Jogamos até umas sete
horas da noite. Ganhamos duas, os pais dela duas, e o casal uma partida. Os
caras, um sujeito meio marotão, não parava de xingar sua mulher de burra, que
aliás, era burra mesmo, viviam fodendo meu jogo e o da Karol também. Foram
embora. Fim de jogo de baralho, hora do jantar. Enquanto comíamos, o pai da
Karol me perguntou o que eu tinha achado da fazenda. Respondi que nunca
tinha me sentido tão bem em toda minha vida. Que a fazenda era linda. Que
eles estavam de parabéns pela linda propriedade que tinham. Falei que um dia
eu ainda compraria uma fazenda para mim.
- Você pode ainda ser dono da nossa. Quem sabe? - Entendi perfeitamente
o que ele estava querendo dizer. Se um dia eu me casasse com a Karol, a
fazenda também seria minha.
- Eu não duvido muito. - Respondi.
- Ah, Raul. Amanhã, se você quiser, pode ir comigo ao banco. Já consegui
para você trabalhar lá conosco . Não é cargo importante. Mas já dá para
quebrar um galho. Se você der sorte pode crescer.
- Que bom. Muito obrigado senhor Ralf. Estou louco mesmo para trabalhar
e arranjar um lugar para ficar. Já dei muito estrago por aqui.
- Não. Você pode continuar aqui mesmo. Não vai sair coisíssima nenhuma.
E se você fizer isso, o que não vou deixar, alguém aqui vai ficar uma fera.
Além de você fazer companhia para nós, está também deixando-nos muito
felizes. E se você falar mais uma vez que está causando estrago ou incômodo,
quem vai ficar bravo sou eu. - disse o senhor Ralf.
Epa! Nesse caso muda de figura. Em casa que galo canta, frango tem que calar
o bico. Além do mais, eu não estava disposto a perder minha franga de graça.
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Terminamos o jantar e atracamos no baralho para jogar buraco. Karol e eu,
contra seus pais. Nós jogávamos muitíssimo bem, mas acabávamos apanhando
ainda mais. Nunca ganhamos. Eu ficava muito puto da vida. E o senhor Ralf
ria, ria e ria muito. Mas eu não podia falar nada, porque ele era um cara legal.
No dia seguinte fui à droga do banco conhecer o pessoal e dar início na
documentação, que era uma burocracia dos diabos. Mais uma semana depois eu
já estava trabalhando como caixa, naquele que seria a minha desgraça e
atormentação de emprego. Fiquei nessa vida de escravo do público, por um
bocado de tempo. Quatro meses em Curitiba e depois a transferência para o
Rio. Onde fiquei seis anos até me encherem o saco, encerrando a carreira
gloriosamente, como vocês viram. O que causou minha desgraça não foi a
minha maneira de pensar. Foi a maneira de pensar dos outros. Tive que lembrar
do Sade, não resisti.
Logo no meu primeiro dia de caixa, depois de muitos olhares invejosos de
funcionários safados, só porque eu era protegido do gerente, começou minha
novela com os malditos e reclamões clientes. Meu cartão de visita foi uma
senhora gorda e brava pra burro, que quase me bateu, me xingando de ladrão,
mal educado e irresponsável. Só porque eu disse que teria que cobrar uma
multa de um carnê atrasado.
- Você é um sujeitinho muito ladrão. Você, esse governo de merda e o dono
desse maldito banco, são todos ladrões. E você é um moleque pior ainda, por
que é muito safado... - berrava a idiota da velha. Deixei a imbecil maluca de
lado, falando sozinha e chamei o próximo cliente da fila. Eu lá ia ficar aturando
desaforo de alguém. Principalmente de uma velha caduca e nojenta.
No fim do dia, os imbecis, aqueles xeretas e invejosos, se deliciaram e se
cagaram de rir da minha cara, indo embora mais cedo, enquanto eu tinha que
fazer meu caixa bater. Fiquei quase um mês saindo atrasado, até que peguei
prática. Mas por vingança, eu me deliciava quando saía do banco acompanhado
pela Karol e pelo pai dela. Mas essa festa não ia durar para sempre.
O tempo foi passando e a monotonia começou a tentar tomar conta do coração
selvagem. Do meu coraçãozinho selvagem. E além do mais, eu já estava
ficando de saco cheio. Nada de novo. Banco todo dia, jogo de buraco à noite,
isso quando eu não estava morto de cansado e puto da vida com os clientes e
funcionários da merda do banco, fazenda nos fins de semana. Censurado para
sair com outra garota. Não agüentei mais e botei a boca no trombone. Falei
tudo o que estava acontecendo no banco para o pai de Karol e para ela. Pedi
minha transferência para o Rio. Consolei a linda Karol. Disse que iria visitá-la
todo mês. Não voltei mais do que três vezes lá. Primeiro mês tudo bem,
porque até eu estava doido de saudades. Na Segunda vez, demorei dois meses.
Depois só voltei para dizer que não daria para continuar namorando via telefone
e cartas. Naquele tempo ainda não havia Internet. Mesmo que existisse não ia
mudar em nada. Esse papo de namoro à distância é furado. O negócio para dar
certo tem que ser pessoalmente e ao vivo. Mesmo morando na mesma cidade,
às vezes é difícil um namoro dar certo, imagina então o cara morar quase mil
quilômetros de distância. Não. Nunca iria dar certo. Preferi sofrer um pouco e
terminar tudo. Mesmo contra nossa vontade. Karol chorou pra chuchu, mas
acabou se conformando. Quando disse que tinha valido a pena. E que nenhuma
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outra mulher tinha me feito tão feliz como ela. Prometi ser seu amigo e
escrever sempre. “Ainda não foi dessa vez que fisgaram meu coração
desprotegido”, pensei.
Voltei para a cidade maravilhosa. A cidade dos sonhos. Para o Rio Babilônia. O
mundo inteiro conhece um Rio de fantasia, de ilusão, de sonhos, de beleza e
orgia. Mas ninguém sabe que ele é uma Babilônia. Uma mistura de muitos
mundos. Mistura de lixo e luxo. Um sub-mundo. Uma torre de babel. Rio de
todos os graus. Quarenta graus na temperatura em pleno verão sulamericano. O
melhor do mundo. E quarenta graus de limite do estopim que explode a
violência por todos os cantos e morros. “Rio quarenta graus. Cidade maravilha,
pulgatório da beleza e do caos...”, cantou uma vez, uma voz, para encantar a
galera que a ouvia e aplaudia, uma carioca da gema e cheia de muita ginga.
Ginga da Fernanda. Linda e cabeça, por sinal, da cabeça aos pés. A gente se
fala por aí. Falô, mana...?
Com o dinheiro que guardei; na casa da Karol, não me deixaram gastar um
centavo durante todo o tempo que estive lá; aluguei um pequeno apartamento
na rua Toneleiros, bem próximo da agência que eu iria trabalhar; que ficava na
Avenida Nossa Senhora de Copacabana. O mais inacreditável, é que fiquei
mais de cinco anos no Rio, sem que ninguém, mas nenhum puto da minha
família ficasse sabendo que eu estava lá. Nunca telefonei para casa. Nem
mesmo a Rita nunca mais a vi. Pelo menos eu nunca mais vi ninguém. Quanto a
eles, não tenho certeza se ninguém nunca mais me viu. Pode ser que tenham me
visto e não quiseram falar comigo. Mas acho que não. Acho que ninguém faria
isso comigo. Minha familha gosta muito de mim. Se ninguém ficou sabendo
que eu ainda estava vivo, quando eu estava lá no Rio, aqui em Sampa foi pior
ainda.
CAPÍTULO ONZE
Deixei Lanny sozinha em seu apartamento e fui trabalhar. A casa lotou esse
dia. Teve uma festa de: “A noite das Bruxas”. Todo mundo fantasiado à moda
que cada um desejava. Tinha de tudo. Piratas, vikings, bruxas, fadas, vampiros,
cornos, chifrudos... alguém me beijou na boca, pensando que eu era seu
namorado fantasiado de garçon, ou sei lá se fizeram propositadamente. Nem vi
o rosto de quem era, mas tenho certeza de que era de mulher, pelo menos. O
dia seguinte era natal. Lanny iria para o Rio. Uma cliente da boate, que me
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conhecia, havia me convidado para passar o natal no Guarujá com seus pais. Já
fazia um bocado de tempo que eu não ia à praia, nem me lembrava mais como
era. Pra falar a verdade, nunca fui a uma praia de São Paulo. A droga do mar
daqui, mais perto, fica a uns oitenta quilômetros. Eu lá ia perder tempo com
isso. Ela era uma gatinha muito gostosa, mesmo assim recusei o convite. Eu
podia ver algum palhaço, qualquer droga de parente ou amigo, me perguntar:
“Você estuda onde e faz o quê?”. “Doutorado”. Seria minha resposta, na certa.
Comprei um peru, já pronto, um champanhe, um presente para mim mesmo e
fiz a festa sozinho. Bebi até me cagar todo. À meia noite, quando já não estava
parando mais em pé, de tão bêbado que estava, levantei a taça cheia e disse
sozinho: “Feliz solidão Raul, seu idiota, babaca”. Nunca disse feliz natal em
toda a minha vida. Sempre achei natal ou outra data comemorativa, uma
palhaçada dos diabos. Para mim, todos os dias são iguais. O que adianta um
dia você comer peru com vinho e tudo mais e outro você estar passando fome.
Não gosto de natal. Hoje em dia o natal virou puro comércio. Usam a data que
comemora o nascimento de um cara muito legal para fazer puro comércio. Não
sou católico e nem nada. Acredito na natureza, num deus criador da natureza.
Acredito na felicidade de algumas pessoas. Mas sou incrédulo a muita coisa que
existe por aí. Tenho meu próprio pensamento e opinião sobre qual tipo de
religião ou filosofia que devo seguir. Procuro seguir sempre meu coração. E ele
não é mau. O pensamento de Cristo é totalmente diferente do que imaginam por
aí. Como sujeito, até que me amarro e acho Cristo um cara simpático. Aliás,
acho a sua filosofia, “o bem para combater o mal”, muito interessante.
Inclusive, comparo muito minha vida a de cristo. O mundo caminhava, há
milhões de anos, numa única linha. Evolução, descrição. O sujeito só se
beneficiava com alguma porcaria se ele matasse seu adversário e apoderasse de
sua propriedade. Era uma verdadeira lei do “quem pode mais, chora menos” e
“salve-se quem poder”. A maldade era a grande rainha e dona da festa. - Será
que eu ia me dar bem lá nessa época? - De repente pinta um carinha com
idéias malucas. Combater o mal com o bem. Que história é essa? Fazer o bem
para quem lhe fizer o mal? Você tá ficando louco? Acho que foi por isso que
crucificaram o cara rapidinho.
Minha vida era quase a mesma droga. Enquanto minha família era uma
cambada de conservadores e esperava uma vida certinha, bonitinha, para mim.
Tipo: papai-mamãe, vovô-vovozinha, dei um chutão em tudo e me tornei um
vagabundo irreverente, que não estava nem aí com nada. Queria me lixar para
o que as pessoas pensassem a meu respeito. Lembrei de Sade de novo. Foda-se
todo mundo. Só espero que nunca me façam o que fizeram com Jesus Cristo.
“Saúde, Raul!”, eu disse para mim mesmo, me babando todo e adormeci.
No dia seguinte, acordei meio dia, com uma cara de japonês, de tanta ressaca.
Tomei uma ducha gelada de uma hora. O Peru estava como eu tinha deixado,
em cima da mesa, cheio de moscas zanzando sobre ele. Havia até duas drogas
de mosquitos fodendo, metendo, bem ali em meu delicioso prato da ceia do
melhor natal que passei em toda minha merda de vida. Eu não tinha nada para
fazer. Não tinha, nem queria, nenhum amigo cuzão, para visitar. Lanny estava
no Rio. Não me sobrou nada para fazer. Jamais eu ficaria ali curtindo aquele
apartamento deprimente. Até eu estava deprimido pra burro. Então resolvi dar
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uma saída. Me arrumei sem muita pretensão de encontrar minha estrela, minha
rebeca, e saí sem rumo, como uma andorinha à procura de um verão que não
existia. Andei por ali, “viajando” entre as ruas desertas, curtindo os seus
arranha-céus. Cheguei à Avenida Paulista e a única coisa que existia aberto lá,
eram cinemas. Só cinema. Um em cima do outro. Visitei um por um, para ver
que filme estava passando. Nunca vou ao cinema, mas quando resolvo ir, gosto
de ver uma droga qualquer que preste. Só me deu vontade de entrar no último
que cheguei. Assisti a um puta filme. Não me arrependi. Tirando um lance que
me aconteceu. Entrei num intervalo de sessão. Não tinha muita gente. Apenas
alguns casais que não tinham dinheiro para ir a um hotel ou carro para passear,
e algum solitário como eu. Me sentei numa fileira que não havia ninguém. Um
cara passou umas quinhentas vezes na minha frente, no corredor para ver se eu
olhava para ele. Não olhei. As luzes se apagaram, mais algumas pessoas
entraram e o filme começou. Eu estava bem atento prestando atenção na tela,
quando de repente um sujeito sentou-se justamente ao meu lado. Porra! Cheio
de cadeiras vazias por todo canto e o filho da puta escolheu o melhor lugar para
sentar. Ao meu lado. Dei um puta berro, que fez um eco e assustou todo
mundo. “Paiêêê!!... tem um veado aqui pegando no meu pau”, eu disse. O
Cinema inteiro deu uma gargalhada só. O babaca ficou com tanta vergonha
que até se mandou, para outro cinema, talvez. Esqueci o episódio e assisti ao
filme. Sem dúvida alguma, foi o melhor filme que já vi em toda minha vida. O
título era, “A garota do Adeus”. Era a história de um cara muito louco, que só
andava bêbado e tinha ido tentar a vida como ator de teatro numa cidade
desconhecida. Nada dava certo para o infeliz. Até o apartamento que ele tinha
alugado de um amigo, estava ocupado por uma garota e sua filha de dez anos.
A vagabunda teve que dividir o mesmo apartamento com o cara, se não
quisesse ir para a rua. O cara só vivia se fodendo todo. Encenava uma droga
qualquer e a merda da peça não ficava mais do que um dia em cartaz. A garota
estava sempre enchendo o saco dele. Até que uma hora os dois estavam
apaixonados um pelo outro. E o cara conseguiu um bom papel num filme, que
seria rodado no Canadá. Ele partiu para trabalhar e a garota ficou no Adeus. Me
apaixonei pelo personagem do cara, porque me senti como se fosse ele. Gostei
tanto do filme que assisti duas vezes.
Saí do cinema umas oito horas. Não tinha pensado em nada para fazer. Pensei
em ir jantar em algum restaurante Chinês, que estivesse aberto por ali. E foi o
que fiz. Eu estava caminhando para achar o restaurante, quando me dei conta,
estava parado bem em frente a uma igreja, olhando para dentro. Me imaginei lá
ajoelhado na frente do bispo e ele colocando um pedaço de pão na minha
boca. Na certa eu iria preferir virar o cálice e beber todo o vinho, que só o
sacana toma, e fica falando um monte de abobrinha: “Irmão, arrependa-te de
teus pecados, se quiseres entrar para o reino do Pai”. “Se fizeres tudo que eu
mandar – eles estão sempre mandando a gente fazer qualquer droga, mas nunca
fazem nada de bom - terás tua alma salva do fogo ardente do inferno”. Ainda
existe gente que acredita em céu e inferno. Os Babacas se esquecem que a
gente tem que curtir e aproveitar a vida enquanto estamos aqui. Porra. A vida é
uma só. E não vivemos mais do que oitenta anos. Salvo os cagados de sorte
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que conseguem ultrapassar essa idade. Pau na bunda da reencarnação. Se eu
conseguir um dia me reencarnar, sorte minha.
Dei uma olhada lá no fundão e vi a fila de fiéis, maridos super infiéis ou
esposas muitas vezes mais infiéis ainda. E os pilantras, na hora da droga da
missa estão sempre dizendo: “Meus caríssimos irmãos...”, e saem de lá direto
para orgias em boates, os que são veados, ou para casa de suas mulheres.
Conheci um padre que era veado, tinha caso e tudo mais. Um dia perguntei
para ele :
- Porra meu. Vocês não vivem dizendo lá na igreja, que “não vos pequeis, se
queres entrar no céu”. Que droga de história é essa?
- Nós já rezamos bastante. Por isso podemos pecar. E além do mais, tudo que
fazemos com vontade, não é pecado. - Respondeu o perobão, com a maior cara
de safado.
- Ah! É mesmo? Então eu posso sair por aí pintando o sete, fazendo e
acontecendo, se me der vontade? Nada será pecado?
Então pra que rezar? Por que essa palhaçada de ir à igreja rezar?
Ele não me respondeu nada. Sabia que eu era um verdadeiro incrédulo e ateu.
Um autêntico fariseu. Um escriba. Deixei os babacas lá, rezando para se
salvarem, e fui jantar. Aproveitar e curtir a vida, porque ela é uma só e o tempo
passa voando sem esperar por ninguém. Pedi um frango xadrez e uma black
beer, cerveja preta deliciosa. O restaurante estava fervendo de gente.
Normalmente, casais e muitas pessoas com caras de intelectuais, metidas,
modernas e com visuais transados. Bem na minha frente havia duas lindas
garotas. A que estava de frente para mim, começou a me olhar e sorrir. Ela era
muito gostosa e um bocado simpática. Só que usava um desses aparelhos
corretor nos dentes. Odeio gente, especialmente mulher, que usa essa droga. Me
dá a impressão de que se eu for beijar uma garota e ela estiver usando esse
troço, eu vou ter vômitos. Odeio vomitar. Quando faço isso quase morro. Eu já
estava ficando puto da vida com aquela magricela dente-de-aço, se
arreganhando na minha frente. Me levantei e fui até lá.
- Sabe que você parece revistinha do tio patinhas? É cheia de gracinha.
- Ô, foi mal, aí. Desculpe-me. Juro por Deus, bom não adianta jurar por Deus,
aposto como você não acredita nele...
- Como é que você sabe?
- Pelo seu jeito. Você tem cara de maluco. Normalmente os loucos não
acreditam em nada. - Depois que ela disse isso fiquei calmo e dei um sorriso.
- Vocês não querem juntar as mesas? Podemos ficar juntos. Já que você não
estava rindo da minha cara. Pagando da minha cara.
- Não. Claro que não, né. Senta aqui com a gente. - Falou a moça do dente de
aço, pegando em minha mão. Mudei de mesa e ficamos bebendo até umas dez
horas, quando fui para o apartamento delas, ali pertinho. A amiga da garota do
aparelho era um puta tesão. Ainda por cima, estava com um peito gostoso,
quase saindo para fora. Fiquei tarado por ela. Pensei, “enquanto não mergulhar
de boca nessas lindas tetas, não vou embora”. Fiquei o tempo todo falando com
elas e olhando para os peitos da Majeca, era assim que ela se chamava. Deveria
ser alguma coisa parecida com; Maria Angélica. Chegamos ao apartamento
delas e começamos a beber e jogar baralho. Para onde eu ia sempre tinha que
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ter um baralho. É por isso que sou viciado nessa droga . Eu já estava muito
louco, quase chapado de bebida e com a Majeca me encostando aquele peito.
Inventei de falar para jogar valendo alguma coisa. Qualquer droga, menos
dinheiro. Elas aceitaram na hora. Começamos valendo um beijo. Depois quem
ganhasse de mim, dormiria comigo. Porra e agora! Fiquei morrendo de medo
de perder primeiro para a amiga da majeca. Dente de aço. Trepar sem beijar vai
ser meio foda, pensei. Tiramos no par ou ímpar para ver quem começaria a
jogar comigo. Graças a Buda, a Majeca ganhou. Se ela ganhasse de mim teria
que dormir comigo. Começamos o jogo e eu só dando minhas cartas boas para
ela e fingindo que queria ganhar. Mas meu desinteresse de fazer trinca era tão
descarado que até ela sabia que eu não queria que ela perdesse. Não demorou
dois minutos ela bateu. Gritando bem alto; “Bati”; dando uma gargalhada e
apontando para a cara da amiga, que estava meio triste. E eu com uma cara de
maior canastrão do mundo, falei: “Não se preocupe, amanhã você ganha”. E
fui para o quarto abraçado com a Majeca e seus lindos e saborosos peitos que já
estavam me convidando há muito tempo. O pau parecia um osso. Nem bem
entramos no quarto e já comecei a meter a língua naqueles peitos gostosos, que
me deixavam com o maior tesão do mundo. Sou um tarado, um maníaco por
peitos de mulher. Deitamos, eu por cima da Majeca e ela começou a tirar
minha roupa. Quando viu meu corpo todo peludo, ela enlouqueceu, endoidou,
e começou a me arranhar todo, como uma gata no cio. Fizemos amor como
dois selvagens. Eu meio bêbado e ela totalmente tarada e sedenta por sexo. Eu
estava tão excitado e ela me deixava mais ainda, que parecia um bagual
reprodutor. Para falar a verdade, nem dormimos direito. No dia seguinte me
levantei todo quebrado, parecia que tinha levado uma surra de pauladas.
Ela me fez uma super vitamina, com tudo que possa imaginar: Ovo de
codorna, amendoim, guaraná em pó, aveia, mel, caracu, beterraba. Ela ficou só
olhando e imaginando de onde tinha surgido uma figura tão estranha e rara,
com eu. Deve ter pensado que apareci em alguma nave espacial ou num tufão
trazido pela natureza de outros planetas.
Nesse momento a amiga da Majeca se levantou e veio para a cozinha só de
shortinho e uma blusinha de algodão toda aberta, mostrando seus peitinhos.
Juro que era para fazer ciúmes. Ou então para mostrar que ela também tinha, e
que queria dormir comigo ou coisa do tipo. Senti me um verdadeiro prostituto.
Porém, gostando da situação. É verdade que eu estava tarado pela majeca, estou
sempre tarado por alguma mulher, nunca vi um cara pensar em sexo vinte e
quatro horas por dia, como eu. Até mesmo com a amiga da Marjeca eu
fiquei super a fim de dar uma trepadinha. Mas nesse dia me senti como se
fosse um objeto sexual. Um garoto do prazer e do amor. Mas tudo bem, nem
liguei para isso. E além do mais, eu gosto de me deliciar e compartilhar num
momento de prazer sexual. Todos gostam. Até quem possa estar me censurando
agora. Não fui sozinho culpado, pensei. Deixei meu endereço e falei que
apareceria por lá em breve. Não passou nem uma semana, eu estava dormindo
durante o dia, porque trabalhava na boate à noite, quando de repente, acordo
com a campainha berrando. Fui até a porta e perguntei, sem abrir.
- Quem é ?
- Vera. Você não se lembra de mim?
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- Vera ? Que Vera ? ...
- A amiga da Majeca. Lembrou agora?
- Ah, sim. Claro que me lembro. - E abri a porta para ela entrar. Dente de aço.
- Que bons ventos a traz por aqui? - perguntei, pegando na mão dela e
puxando-a para dentro. Mesmo sendo de dia e uma Segunda-feira brava, ela
estava um troço. Uma coisinha linda. Usava minissaia, tênis vermelho sem
meias e com uma blusa branca, sem sutiã .
- Ah! Que emoção! - Falei sorrindo e apertando sua bochecha, com a mão.
- E a Majeca, por onde anda? Ela sabe que você veio aqui?
- Não. Ela está trabalhando. Conseguiu um emprego. Secretária bilíngüe.
- Se ela for boa de língua para falar idiomas, como é para beijar e mais outras
coisas, então ela está feita. - Falei, já abraçando Vera.
- Fique por aí, vou tomar um banho. - Continuei. Tirei toda minha roupa no
quarto e comecei a andar nuzão, pelo apartamento.
- Puxa, como você é peludo. Parece um urso, - disse Vera, com um sorriso
de desejo. Carinha ainda de ninfeta tarada e safada. Depois começou novamente
a me abraçar e a me beijar. Levei ela para meu quarto e começamos a fazer o
que ela mais queria, há muito tempo. Depois tomamos um banho juntos. Já era
mais de meio dia e eu estava com uma fome do cão. Fiz um omelete de farinha
de peixe e comemos. Terminamos de comer e ela me convidou para sair. Eu só
iria trabalhar no dia seguinte à noite, porque era uma Segunda-feira e nas
segundas é minha folga.
Ela me levou para um sítio de um amigo seu, perto de uma cidade chamada
Bragança Paulista. Em uma hora chegamos lá. Nunca vi coisa igual. O sítio
era um verdadeiro jardim suspenso da Babilônia. Animais trepando, gente de
todo tipo, idem. O sujeito dono da joça era homossexual. Tinha de tudo.
Lésbicas se lambendo uma a outra, garotões bonitos e veados, kama sutra, atos
libidinosos, zoofilia praticado por caras com animais e mulheres e muitas
outras piras. Sibaritas.
- Você chama de lance do outro mundo? - Perguntei pra Vera, com a cara
emputecida. Fiquei andando por ali, depois que fui apresentado ao Don
Marciano. Dei um jeito de cair fora de lá o mais rápido que pude. Deixei tudo
para trás e caí fora. Saí meio despistado. Larguei a tal de Vera para trás e fui
dando jeito de desaparecer meio misteriosamente só para ver o que a galera ia
pensar e fazer depois. Entrei no meio de plantas e arbustos e deixei tudo para
trás e fui metendo a cara só para ver o que dava. Até que atravessei uma
cerca de arame farpado, ainda rasquei minha calça e xinguei a imbecil da
Vera de todos os nomes feios que eu sabia e penetrei numa mata do sítio
vizinho. Andei pra burro, beirando outra cerca, com a certeza de que estava
perdido, mas que precisava achar o caminho de casa. Finalmente cheguei
numa estrada de terra. Encontrei um morador do lugar, com sua esposa, numa
carroça puxada a cavalo. Perguntei como fazia para chegar à estrada de
asfalto, que vai para São Paulo. Ele me disse, num sotaque caipira, que era só
subir direto, que eu chegaria na pista, depois de andar uns cinco quilômetros a
pé. “Filha da puta, quero que essa bandida da Vera apareça um dia lá em casa,
para me acordar. Quero fazer ela sair escafedendo de lá”. Pensei. Cheguei na
Rodovia, com a língua um metro para fora. E agora? Não vou ficar aqui
37
esperando ônibus. Sei lá se pára algum aqui. Resolvi atacar de carona, um
sonho que eu tinha, andar pelo mundo inteiro de carona, estava começando a
se realizar. Dei a mão para mais de duzentos carros e nenhum filho da puta
parava. Pensei que teria de ir a pé até a cidade, que nem sabia mais para que
lado ficava. Até que encostou um caminhão Ford azul, carregado de cimento.
- Oi companheiro, está indo para onde?
- São Paulo.
- Me dá uma carona?
- Entra aí.
Entrei e zarpamos. O motorista era um puta de um louco.
Parecia que queria voar. Ele parecia mais hippye do que caminhoneiro. Era
cabeludo, barbudo, e andava todo sujo e fedorento. Achei ele engraçado pra
chuchu. Só vivia batendo com a mão no volante e cantando uma musiquinha,
que provavelmente era de sua autoria.
“Eu e meu Ford F seiscentos.
Carregado de cimento.
Viajando pra São Bento.
Com um garrafão de vinho atrás do acento.
E minha família dentro
Ai, meu sacramento!
Lá vem os sargentos.
Me livra desses lazarentos”.
Eu ria adoidado com o cara. Ele me deixou perto do metrô e de lá fui sozinho.
Prometendo cruzá-lo, qualquer dia por aí. Voltei para meu apartamento e fui
dormir novamente. Nem bem peguei no sono e a merda da campainha tocou.
“Se for a vagabunda da Vera, juro que boto ela daqui a pontapé”, pensei.
Graças a Buda era a Lanny.
- Puta merda, que alívio!
Por quê? O que houve? - Perguntou Lanny. Contei toda a história e ela riu
que chegou até ficar vermelha.
Perguntei por que ela havia demorado tanto no Rio. Ela me disse que tinha ido
para Búzios, para a casa de uma amiga. Eu já tinha estragado o dia mesmo.
Desisti de dormir e saímos para jantar fora. Fomos comer rabada com polenta,
num restaurante da Rua Augusta. De lá fui para seu apartamento, ouvir música.
Para música ela tinha bom gosto. Tinha todos os clássicos que eu adoro. Acabei
dormindo lá, no colo dela.
No dia seguinte acordei cedo. Eu estava pretendendo comprar um carro. Eu ia
sair de férias no mês seguinte e estava com vontade de dar as caras em casa
para visitar a família. Estava até pensando em levar a Lanny comigo e dizer que
ela era minha mulher. Minha gorjeta da boate, era tão alta que em menos de um
ano, eu já tinha guardado grana para comprar um bom carro zero e ainda
sobrava muito picho. Levei Lanny comigo, porque eu queria que ela me
ajudasse a dar um palpite. Andamos o dia inteiro e nenhuma droga de carro me
agradou. Voltamos para casa sem nada e xingando todos os caras. A gente
estava entrando no meu prédio, quando de repente, vi um Golf preto, com teto
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solar, estacionado e com uma plaquinha “Vende-se ”, anotei o telefone e liguei
para o cara. O filho da puta morava no mesmo prédio que eu, e eu nem tinha me
tocado. Também eu nunca tinha nem falado com ninguém daquela droga de
prédio. Subi direto para o apartamento dele, depois de examinar o carro.
Acabei comprando a droga do carro por um preço bem abaixo do que ele
estava pedindo. Não me arrependi. O carro era um tesão. Super equipado. Teto
solar, aparelho de som com CD, rodas esportivas, pneus largos, bancos altos de
couro, tudo novo. Tinha ar condicionado. Um verdadeiro luxo, para um cara
duro, um verdadeiro pobre. Mas e daí, eu estava pagando com meu suor. Suor
caro. Deixei o carro na garagem e fui trabalhar de ônibus.
Uma hora depois estava de volta. Mais uma vez desempregado. Minhas férias
tinham ido para a casa do chapéu. Quase não estava com azar. Dois dias
seguidos de pura zica. Quando um urubu está azarado, o de baixo caga no de
cima. Dois dias - ou a vida inteira? - que eu só fazia uma cagada atrás da
outra. Eu fazia, não. Que me aconteciam ou faziam para mim. Passeio no meio
do mato com uma maluca dente de aço, e essa agora. Desempregado de novo.
Por essa eu não esperava. Perder minha boquinha milionária. Só me restava
essa agora. E dessa vez, sem brigar com cliente, bater em chefe, responder para
o patrão, sem aprontar nenhuma droga qualquer. Pura e simplesmente falta de
sorte. Enquanto eu estava de folga e curtindo minhas cagadas, a droga da boate
não pega fogo e queima tudo. Sem sobrar nada para ficar na história. Porra.
Juro que eu gostaria de saber quem foi o filho da puta que botou fogo naquela
merda e tirou a minha boquinha. O pior é que ninguém sabe o que aconteceu.
Uns falam que foi curto-circuito. Outros falam que foi um louco que incendiou.
“Só espero que não venham com gracinha para o meu lado, quando forem me
interrogar. Se fizerem isso, eu falo que fui eu que botou fogo. Que sou Nero.”,
pensei.
Gostaria de ver a cara dos clientes chegando lá, com seus carrões, para se
divertirem e encontrassem só os escombros da boate privê mais famosa do
Brasil. “E os rapazes que trabalhavam, o Raul, para onde foi o Raul”? Queria
ver alguma madame com suas filhas putanas, perguntando isso. O Raul, o seu
Raulzinho gostoso, sua idiota, tá aqui, mais uma vez, desempregado, no meio
da rua. Logo passando fome, se não conseguir outra droga de serviço. Seria o
que eu responderia com muito nojo. A gente só tem valor quando somos úteis
para alguma coisa., fora isso, se alguém te encontrar na rua, sem fazer a barba,
finge que nunca te viu antes. Aqui ó..., pra vocês! No cu. Ah, adorável Sade!
Liguei pra Lanny e contei tudo. Ela me chamou para ir para lá. Mais uma vez
ela seria meu pronto-socorro de consolo, minha salvadora da pátria. Zarpei pra
casa dela a pé. No caminho, ainda passei em frente à mesma droga da igreja, de
uma semana anterior, me lembrei do bispo colocando a hóstia na boca dos fiéis
idiotas. Fiquei com uma puta vontade de entrar lá e dar uma bela cagada em
cima do altar. Será que todo o meu azar teria sido praga do bispo, para pagar
meus pecados? Foda-se. Pau na bunda das igrejas.
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CAPÍTULO DOZE
Porra. Onde é que eu vou achar um serviço decente agora? Pensei. Resolvi dar
uma passada no melhor e mais luxuoso hotel de São Paulo, que os caras lá,
diziam que era o melhor da América do Sul. Nem liguei para isso. Preenchi
uma ficha e fui entrevistado. A moça me disse que tinha só vaga no momento,
para um Bell Boy. E que como eu falava grego, italiano e um pouco de inglês,
era melhor eu aceitar, que depois eu poderia ser aproveitado na recepção. Me
arrependi de não ter feito o curso de recepcionista quando aquela gostosa do
curso de hotelaria me aconselhou. Aceitei. Fiz os testes, os exames médicos e
fui para casa aguardar o resultado. Eu iria trabalhar à noite. Não me importei,
já que eu tinha virado corujão. Só faltava eu ser reprovado agora, pensei. O
resultado ia sair dois dias depois. No dia seguinte resolvi fazer um teste, numa
companhia aérea, a maior do país, para comissário de bordo. Cheguei bem
cedinho no departamento de pessoal e já havia uma enorme fila. Me deu
vontade de voltar. Só tinha cara bonitão e fiquei aguardando a chamada. A sala,
grande pra burro, estava um verdadeiro reboliço. Todo mundo fazendo
amizade, comentando seus sonhos de voar, de ser comissário ou aeromoça. A
maioria nunca tinha trabalhado em nada. Seus babacas, até parece que isso é
uma profissão importante? Será que vocês não vêem que comissário é uma
droga de garçon, como outro qualquer? Só com um nome diferente. Por que
vocês nunca foram a uma boate chique, como a que eu trabalhava, para ver um
garçon impecavelmente trajado?, pensei. Eu estava sentado ao lado de um cara
e de uma garota bonita e burra mais ainda. Ela estava toda impaciente. Se virou
para mim e disse:
- Você também vai fazer teste para comissário de bordo?
- Não. Para comandante. - Respondi com uma cara de gozador.
- E você, quer ser garçonete?
- Garçonete! Eu? Deus me livre!
- Você sabe o que uma aeromoça faz?
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- Sei sim. Por quê?
- E não é tudo a mesma coisa?
- Claro que não. Aeromoça trabalha dentro do avião, atendendo os
passageiros...
- ... E a garçonete os passantes de um restaurante.
- Tá bom. Só porque você quer.
“Não sua burra, não é só porque eu quero não, é a realidade”, pensei. Nesse
instante, a atendente chamou o nome da boboca e ela se levantou correndo.
Aproveitei para tirar uma casquinha.
- Boa sorte, futura garçonete. - Quando falei, todo mundo se virou para mim.
Mais uns dez minutos foi a minha vez. Entrei numa sala onde estavam três
pessoas. Juro por Deus, eram dois veados e uma vagabunda, se é que ela não
era lésbica disfarçada. Um cara era japonês, primeiro pederasta oriental que já
vi. O outro, também veado, era bem mulato. E a vagabunda, com uma cara de
prostituta de boca de lixo. Me mandaram dar uma volta, escrever meu nome
num quadro negro pendurado na parede e me fizeram algumas perguntas.
Pensei que iam me mandar tirar a roupa e ficar pelado. Tudo para ver se eu era
bicha. Quase todo comissário de bordo é veado. E as aeromoças, putas, a
maioria. Vocês não imaginam um hotel, onde fica hospedado um avião inteiro.
Passageiros, comandante, comissários, e aeromoças. É um tal de trepa-trepa dos
diabos. Terminou a entrevista e eles me mandaram sair.
- Pegue a resposta na sala ao lado, Senhor Raul. - disse o veado negro.
Mais alguns minutos, na sala seguinte, outra chamada. Dessa vez veio um cara
de uns trinta e cinco anos, mais ou menos, me chamando em sua salinha.
- Senhor Raul. Estou encarregado de dar a resposta do seu pedido do emprego.
E em nome da empresa, lamentamos muito que o senhor não tenha sido
aproveitado. Eu particularmente, ficaria profundamente satisfeito se a resposta
fosse positiva. - “Ah, é, seu filho da puta, você está preocupadíssimo com
emprego? Mas com o seu”, pensei.
- É mesmo? Percebo o quanto o senhor está abatido, por eu não ter conseguido
a vaga. E qual foi o motivo da minha reprovação?
- Infelizmente não posso informar. - Eu tinha certeza de que ele sabia.
Arranquei a ficha da mão dele e corri para a sala dos caras que haviam me
entrevistado. Entrei direto, sem ao menos pedir licença. Os imbecis até se
assustaram.
- Escuta aqui, seus dois veados safados e você sua prostituta, gostaria de saber
por que fui reprovado? Falo cinco idiomas, tenho boa apresentação. Por que
diabo, vocês me reprovaram?
- Por favor queira entender nossa posição. - Eu sabia o que eles queriam dizer
com aquilo. É que eu tinha aspecto e espírito de cara muito louco. Na certa
ficaram com medo de que eu fosse cantar todas as passageiras e comissárias.
Outro lance, esses pilantras não aceitam gente que fala como eu. Minha maneira
de falar sempre foi assim. Todo mundo gosta de dizer que os cariocas gostam
de falar muita gíria. Por que não botam a culpa nos portugueses, que foram
quem começou. Rasguei a merda da ficha em mil pedacinhos e falei:
- Enfiam essa droga de emprego no rabo, não preciso dessa merda. - joguei
os pedaços da ficha na cara deles e saí escafedendo de lá e ainda dei um chute
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na porta para abrir. Na sala, onde o pessoal aguardava para serem atendidos, dei
um berro:
- Aí, galera!, desista de ser garçon de bordo. Esses safados só pegam caras que
são veados.
Ninguém falou nada e continuaram lá, esperando sua vez. Acho que todos
eram homossexuais também. Entrei em meu caro e me mandei. Fiquei tão puto
da vida que prometi nunca mais viajar por aquela companhia. Eu estava
passando pela Avenida Paulista e resolvi visitar o pessoal do banco, onde
trabalhei.
- Olá! Como vai? Resolveu sair do ninho? Pensei que já estivesse morrido. Falou a sacana da Dora, a minha Pandora, com um lindo sorriso.
- Faz tempo que estou morto para muita gente.
- Não fale assim. Eu estava só brincando. Mas e aí, já casou? Ou continua solto,
para as gatas?
- Estou mais casado do que papai e mamãe. Casei contra mim mesmo. Contra o
desafio de viver. Que já não é mais um desafio. Viver nos dias de hoje é uma
verdadeira aventura. Não se casa mais “com”; agora é assim: “ele se casou
contra ela”. Mas e você, continua gostosa como sempre? Muito serviço?
- E você safado. Nem te conto. Essa droga de trabalho e a faculdade estão me
levando à loucura. E você o que tem feito na vida? Está morando aqui ou no
Rio?
- Por enquanto aqui. Amanhã não sei, poderá ser aqui, no Japão, França,
Hawai, Cuba ou na casa do caralho, sei lá.
- Nossa! que exagero!
Nisso, apareceu alguém me farejando, como uma cadela fareja seu cão no cio e
vadio.
- Olá! Que milagre. Como vai meu garanhão fujão? Não perde tempo mesmo.
Vive cantando as meninas.
- Nada disso. Eu é que sou cantado por elas sempre.
- Eu não cantei ninguém. Por enquanto, - acudiu a morena que eu estava
quase cantando.
- Não disse por maldade, meu chuchuzinho, - Respondi passando a mão no
rosto dela . Depois acompanhei Jane até sua sala.
- O que é que andou aprontando por aí? Onde se meteu e por que só agora
voltou?
- Saudades. Estava com muita saudade de você. Por quê? Andou me
procurando?
- Você tem coragem de perguntar, seu cachorrão? Fui lá no lixo da pensão
onde morou, umas dez vezes e nada de te encontrar. Seu amigo me disse
que você tinha desaparecido. Tentei todas as maneiras possíveis te achar,
mas foi impossível.
- Não vai me dizer que você foi até o Rio me procurar?
- Claro que fui. Liguei para a agência de lá, de onde você veio e pedi seu
endereço. No dia seguinte eu estava no Rio. Tudo inútil. A dona do
apartamento que você morou, se é que se pode chamar uma espelunca daquela
de apartamento, disse que não sabia para onde você tinha ido. Não tive outra
42
saída a não ser desistir. Minhas esperanças de te encontrar desapareceram. Mas
como sei que você é um grande canastrão safado, tinha quase certeza de que um
dia você voltaria para me ver. E não errei.
- Acertou em cheio. Estou aqui ao vivo e a cores. Todinho seu. De corpo e
alma. Aproveite, porque não sei o que vou fazer amanhã. Nem sei se serei eu
mesmo. Posso enlouquecer até lá. Sei lá.
- Mas é safado mesmo. Se soubesse como fiquei preocupada com você, não
ficaria com essa cara de cafajeste.
- Calma paixão. Prometo que quando sumir novamente eu mando o endereço
novo, sem falta. Para você ver como estou arrependido, quero sair para a gente
jantar hoje.
- Então passa lá em casa às oito horas. Quero me arrumar primeiro.
- Você não mudou de endereço, né ?
- Claro que não seu cachorro safado. E se atrasar um minuto nunca mais saio
contigo.
- Jura que você tem coragem de fazer isso comigo? - Dei meu novo endereço
para ela e saí vendendo azeite. Ainda passei na sala da Dora Pandora e disse:
- Tchau paixão. Qualquer dia desses te ligo pra gente ir tomar um chopinho.
- Vou ficar esperando sentada, porque de pé eu morro cansada. - Acho que
ela deve estar esperando até hoje. Fui para meu apartamento inventar alguma
coisa para fazer. Cheguei em casa e achei uma carta. Estava sem remetente.
Nunca recebi uma carta depois que cheguei em São Paulo. Nem a Vâni e a
minha filha Pérola tinham meu endereço. Sempre que escrevo para elas,
mando um cartão postal sem endereço de remetente. Abri a droga da carta e
logo vi que era da filha da puta da Vera, a amiga da Majeca.
“Querido Raulzinho, desculpe-me pelo que aconteceu. Juro pela minha alma
que não tive a intenção de te sacanear. Pensei que você fosse gostar de
conhecer novas pessoas diferentes, com outra cabeça. Acredite-me. Todos nós,
o Cacá, eu, todo mundo saímos à sua procura. Ficamos super preocupados e
com medo de você ter se perdido no mato. Espero que você não fique zangado e
com ódio de mim e apareça lá em casa”. Fiquei foi com vontade de ir lá, mas
para dar umas porradas nela. Amassei a carta na mão e atirei bem longe pela
janela do meu quarto. Não sei como existe mulher com tanta cara-de-pau.
Além da vadia ter me metido numa encrenca, ainda tinha coragem de
escrever uma carta me pedindo desculpas. Vai ser cara-de-pau assim no
inferno.
Preparei um pseudo-almoço e comi. Depois de tanta confusão com os caras
da companhia aérea, eu não tinha mais saco para procurar outro trabalho.
Decidi aguardar o resultado dos exames e testes do hotel, que saía no dia
seguinte. Aproveitei a tarde, enquanto aguardava ansioso o encontro com a
Jane, para ir ao banco e ver como ia a minha conta. Na saída da agência,
quando eu estava voltando para casa, para me preparar e ir à casa da Jane, um
velho me parou para eu comprar um bilhete da loteria federal. Comprei tudo
que tinha na mão dele. Acho que era o bilhete do cavalo. Esqueci tudo no
bolso da camisa e só uma semana depois é que fui conferir. Adivinha o que
deu? Nada. Mas nem final. Prometi que nunca mais compraria essa porcaria.
Depois de um dia de cão, a única coisa que me restava era jantar com a Jane.
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Vamos ver se isso pelo menos prestaria. Cheguei à casa dela dez minutos para
as oito horas. Ela já estava embonecada me esperando.
- Uáu! Aonde a gatinha vai?, - perguntei, tirando um sarro.
- Sair com o maior canastrão do mundo.
- Aposto como ficou com medo de que eu não aparecesse.
- De um pilantra como você, pode-se esperar tudo.
- Não fale assim com o seu solitário e desprotegido pinguìm. Sou moleque
mesmo, né? Para onde a belezoca quer ir?
- Para um lugar onde eu possa curtir o malandrão e fujão. Um bar ou uma
boate.
- Que tal o Beco? - a boate que eu trabalhava e virou cinzas.
- Engraçadinho!... Você não sabe que essa droga de boate não existe mais?
Faz quase uma semana que ela pegou fogo. Agora ela é só cinzas.
- Que Pena! Sempre fui louco para ir lá. Então deixa comigo. Vou te levar
para jantar num lugar jóia. Espero que você goste.
Entramos no meu carro e zarpamos. Estacionei bem no lugar onde o cara, o
bobalhão da mercedes conversível, aquele das revistas de mulheres peladas,
estacionava seu mercedes.Estacionei meu Golf preto no mesmo lugar. Até que
progredi rápido. Entramos e sentamos a uma mesa bem no centro. Dei uma
olhada rápida, para ver se tinha alguém me reconhecendo. Logo vi o gerente,
um “bolo-fofo bobalhão”, me olhando e piscando seus olhos de gato morto,
com uma sobrancelha que parecia uma floresta. Logo veio uma garçonete
correndo, - quando eu trabalhava lá, a vagabunda me odiava. Agora só porque
eu sou cliente e estou bem acompanhado e pensa que eu vou dar uma gorjeta
alta, vem se arreganhando toda - para me atender. “Boa noite! Em que posso
ajudá-los?”, perguntou a feiosa.
- Se a senhora desaparecer da nossa frente, por um bom tempo, estará ajudando
bastante, - respondi, olhando para sua cara. Coitada. Fiquei com pena da
vadia. Ela saiu chorando para a cozinha, dizendo que não trabalhava mais
naquela merda.
- Raulzinho! Não seja tão maldoso com a pobre coitada, - falou Jane, me
alisando o rosto, - Ela não te fez nada.
- É verdade. Estou profundamente arrependido. Juro por Deus do céu, não
vou nem dormir essa noite, de tão preocupado que estou. Por favor, chame a
moça, quero pedir mil desculpas. Até você agora tá dando uma de boa
samaritana?
- Está bem paixão. Não vamos estragar nossa noite. O que vamos comer?
- Espero que você dê um palpite e me ajude escolher.
- Que tal pintado assado com vinho branco?
- Ótimo. E sorvete quente de sobremesa.
- Maravilha!
Jantamos muito gostosinho e saímos, sem dar gorjeta e nem nada, para a
garçonete que voltou depois, com cara de burrinho. Demoramos mais de uma
hora para jantar e não falei nenhuma palavra com ela. Tudo que a gente queria
a Jane era quem pedia. Aposto que a garçonete jogou todas as pragas em mim,
depois que saímos. A Jane queria dar gorjeta e eu não deixei. Só de sacanagem.
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Ainda era muito cedo para voltar para casa. Apesar da Jane morar num puta
apartamento, só com a empregada e o filho de dez anos que a essas horas já
deveria estar dormindo em seu quarto. Preferi ir para um motel com ela.
- Mas não vamos ficar lá até de manhã, porque tenho que levar meu filho para
casa de minha mãe, bem cedo. Eles vão viajar para o litoral.
- Então por que não dormimos lá e levantamos cedinho, para você ir apanhálos?
- É que não avisei a empregada.
- Liga do motel para ela, pô?
E foi o que Jane fez. Rodemos pra chuchu, até encontrarmos um motel
desocupado. Fomos aos tantos “in’s” da vida, que existem aos montes em São
Paulo. O dia que eu tiver grana vou montar um motel. É a única coisa no
mundo que não dá prejuízo. Até que finalmente encontramos um que estava
desocupado. Ficamos dançando em ritmo de música lenta, ao som do Led
Zeppelin. Stairway to heaven. Depois pedimos uma garrafa de champanhe.
Bebemos e curtimos a noite deliciosa. Jane disse que queria aproveitar
bastante, porque não sabia quando retornaria a me encontrar. Prometi para ela
que não me esqueceria nunca dessa noite e que não iria desaparecer por muito
tempo. E além do mais, ela sabia onde me encontrar. Fizemos amor a noite
inteira. No dia seguinte ela me acordou bem cedo e puxamos o carro. Fui até
seu apartamento acompanhá-la e agradecer pela noite maravilhosa.
CAPÍTULO TREZE
Fui para casa, tomei um banho, fiz a barba e fiquei matando o tempo, por ali
até dar a hora de ir até o hotel saber da droga do resultado. Cheguei ao
departamento de seleção alguns minutos depois que abriu. Meu coração
estava em disparada; batia mais do que coração de presidente em dia de
posse; com medo de que o resultado fosse negativo. O que era difícil. Graças
a Buda, consegui! Fui aprovado.
- Senhor Raul Bonfim..., o Senhor conseguiu preencher todos os requisitos
necessários e exigidos pela empresa. A partir de hoje o Senhor faz parte do
nosso seleto e competente quadro de profissionais. Considere-se já nosso
funcionário. Agora o senhor vai
passar por um sério período de
treinamentos. Vai conhecer a companhia, seus objetivos, sua filosofia de
trabalho, suas principais metas. - E principalmente suas piras.
- Sim Senhora. - Respondi com a maior cara de sarcasmo. Até parece que
eu não sei qual é a filosofia de uma merda de uma empresa grande. “Foda-se
os trouxas dos empregados, porque a Suíça nos espera para gastar o
dinheiro”. Essa é a filosofia de todo patrão que tem por meta se enriquecer
cada vez mais. Incrível que muita gente burra não vê isso e adora puxar o saco
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do patrão. Rá! Rá! Se esperam isso de mim. Todo mundo vai se foder
gostosinho. A imbecil me levou para uma sala, onde já havia uns babacas,
todos felizes, por terem conseguido a droga do trabalho. Eu só aceitei para não
morrer de fome desempregado. Pois não estava nem um pouco feliz, como os
idiotas. Todos doidos para começarem a palhaçada do treinamento e
integração. O que eu não suporto nesses caras, é que quando a gente chega,
eles fazem uma tremenda propaganda da porcaria, dizendo que, agora você
vai trabalhar na melhor empresa do mundo; e que ela vai ser sua segunda mãe.
Vai te dar tudo que você precisa e ainda por cima vai te pagar um ótimo - o
menor salário do mundo, para eles é ótimo - salário, com benefícios e tudo
mais. Você não trabalha nem uma semana e já está descendo o cacete na droga
da empresa, para a família. Sempre é a mesma merda em qualquer lugar que
você vai. Até a comida no primeiro dia é sempre boa.
- Oba ! Que rango gostoso, siô! - No mínimo você não comia há semanas. É
por isso que eu acho que não existe comida boa com fome ruim ou comida
ruim com fome boa. Essa por exemplo, desse hotel, achei uma bosta. Desde
o primeiro dia. Mesmo assim, houve camarada que repetia duas vezes.
Passado a fase do inútil - pelo menos para mim - treinamento, comecei a
fazer, o que eles chamam de adaptação ao trabalho. Que na verdade é tudo a
mesma porcaria. Começar a trabalhar e ponto final. As duas primeiras semanas
tive que aprender o serviço durante o dia. Porque nesse horário havia muitos
Bell Boys veteranos e eles podiam me ensinar a droga do serviço, que não me
ensinaram picas. Para quem não sabe, Bell Boy é a maneira mais babaca de
hotel de luxo chamar seus mensageiros. O sujeito fica ali parado, estático, feito
uma múmia egípcia, com um pinico na cabeça. Enquanto o imbecil do
recepcionista precisa de alguém, para acompanhar os “preciosos” senhores
hóspedes, ou coisa do tipo, ele bate numa campainha (bell) e em seguida a
múmia ambulante corre lá e diz:
- Yes sir!
Juro por Deus, eu gostaria que vocês vissem a minha cara de sacana, correndo
para pegar a bagagem de um sujeito qualquer, que na maioria das vezes eram
todos estrangeiros. Viram só onde vim parar? De um caixa de Banco a um Bell
Boy malandro. Gostaram dessa? O que não dava para aguentar mesmo, era o
dia em que a gente tinha que ficar passeando pelo lobby, o grande saguão
superlotado de gente, inclusive muitas gatinhas acompanhadas pelas mães,
com uma ridícula placa de aviso: “sr. fulano de tal, please, call reception”,
ainda por cima fazendo um barrulhão dos diabos, com um sininho de botar no
pescoço de vaca. O mensageiro que fosse sorteado a dar o “passeio”, seria o
grande premiado do dia ou da noite. Não sou católico nem nada, mas juro que
vivia rezando para nunca ter que pegar aquela maldita placa. Sempre que eu
dava azar e era premiado, eu tentava vender minha vez, para qualquer um.
Mas ninguém aceitava. Podia ser a maior recompensa, que os filhos das putas
dos mensageiros veteranos recusavam. Daí eu tinha que ir dar meu
passeiozinho ridículo. Com ou sem vontade era obrigado a dar meu passeio.
Para não me tornar muito ridículo, eu passava de mesa em mesa do restaurante nessas horas, juro que preferia continuar a ser garçon - e poltronas do lobby,
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chacoalhava o sino na cara do sujeito e perguntava se ele era o “sr. qualquer
coisa”. Até que alguém via seu nome na placa e vinha correndo.
- Yes!? Hello! It’s me. It’s my name. Thank you, dizia o imbecil do gringo e
tirando uma nota do bolso.
Normalmente eu pensava, “Ah, então é você, seu babaca? É por sua causa que
eu estou aqui carregando essa merda de placa, seu grandissíssimo filho de uma
égua.” Se o animal fosse um “gringo”, (estrangeiro) eu, gentilmente lhe dava
um sorriso - como mandava o hotel - e dizia:
- Follow-me, please! - e levava o palhaço até a recepção, me corroendo de
cólicas de tanta vontade de dar gargalhadas.
Eu não pude me conter de gargalhada, o dia em que um mensageiro veterano,
meio gordo e folgado, estava dando seu passeio com a “adorável” placa, meio
despercebido, e um sujeito - sei lá se era hóspede ou não - que estava
sentado numa poltrona, provavelmente deveria ser o cara mais sacana do
mundo, passou o pé na frente e o pobre e infeliz Bell Boy, se esborrachou no
chão, jogando a placa longe e fazendo um barulhão dos diabos. Assustou todo
mundo que estava por ali. Até eu pensei que o coitado tivesse feito de
propósito. Nunca se deve confiar num mensageiro de hotel, porque eles são
todos uns verdadeiros malandros e estão sempre aprontando. O que eu vi de
sacanagem de mensageiro ali, não está escrito. O lance foi tão chocante, que eu
não agüentava a me conter de riso. Tive que correr para o banheiro. O pior veio
depois. Inventei de chamar o babaca de “ESCORREGÃO”, na frente dos outros
colegas. A partir daí, só chamavam o miserável por esse apelido.
- Êi! Escorregão! Como é mesmo a história do cara que caiu no lobby com a
placa?
- Vai tomar no cu. Vai se foder todo mundo. - respondia ele.
- Ôh! Escorregãozinho, não fique bravo
- Escorregão é a puta que o pariu. É a boceta da sua mãe.
- Êpa!, Escorregão. Assim não vale
- O culpado é você, seo grego filha da puta, que foi inventar essa droga de
apelido, - dizia ele, apontando para mim.
-Ué! Quem mandou você beijar o chão e jogar a placa no colo do hóspede?,
perguntava eu com um sorriso de sujeito bonzinho.
Enquanto mais o cara ficava bravo, mais a galera o chamava de Escorregão.
Terminou minha adaptação - acharam que me adaptei muito bem ao serviço e eu tive que enfrentar a noite novamente. Por tempo indeterminado. Poderia
passar para outro período no dia seguinte, como poderia levar anos. Nunca
cheguei a sair do período noturno. Fui da noite direto para a rua. À noite
trabalhávamos em três. Um sujeito que dormia o tempo todo. Um outro doido
que não dormia nem em casa. Porque tinha dois empregos e ainda estudava
durante o dia. Uma vez ele teve que ser internado, por esgotamento físico.
Desmaiou no meio do salão. Peguei o fedorento - ele fedia pra chuchu pelos braços e fui arrastando-o até o elevador, para levá-lo à enfermaria do
hotel, onde tinha uma burra de uma enfermeira que eu odiava. Essa vagabunda
só vivia dormindo. Toda vez que eu ia lá pegar algum tipo de medicamento
para algum hóspede ela estava pregada no sono. Só de sacanagem eu ligava pra
lá toda hora, quando ela acordava eu desligava, sem falar nada. Cheguei à
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enfermaria arrastando o desmaiado e a porta estava trancada. Dei umas porradas
com toda força e a dorminhoca acordou e veio atender.
- Porra. Nunca tem ninguém nessa merda acordado? Não está vendo que um
miserável está morrendo aqui? - perguntei. A safada pegou sua caixa de
pronto-socorro para atender o cara, que já estava quase bom outra vez. Levaram
o cara para um hospital e o internaram. Ele ficou lá mais de uma semana.
Gostei. Não que eu seja um perverso e fico desejando que todo mundo sai por
aí morrendo. Mas para o imbecil tomar um bom susto e aprender a não sair
querendo agarrar o mundo com as duas mãos. Tudo bem. Entendo
perfeitamente que se a gente não se esforçar, no caso dele, trabalhar e estudar,
nunca conseguiremos nada. Mas ter dois empregos e nunca dormir já é demais.
É ter muita pretensão e fazer sacrifício de graça.
Sempre que faltava alguém à noite, vinha um Bell boy do dia para substituir o
que estava faltando. Nessa semana que o meu companheiro de turno ficou
doente, trabalhei com o mensageiro mais sacana do hotel. Ele era muito pra
cabeça. Só vivia aprontando pilantragens com os colegas de serviço. Ele era
tão maluco que eu o apelidei de Dalua, porque se a gente falava que tinha
feito ou ia fazer qualquer troço, ele logo dizia: “Veio da lua, você agora, para
conseguir isso?”.
Meus primeiros dias de trabalho foram marcados por uma série de
acontecimentos. Dentro do hotel, só fatos engraçados, que me faziam rir muito
e me animava mais com o serviço. Cada história muito louca. Sempre uma mais
divertida que a outra. Fora do trabalho minha vida se mantinha estável, sem
nenhuma perspectiva de nada. Nunca fazia planos para o futuro. Eu estava
sempre me lixando para o futuro ou coisa do tipo. Continuava tomando minha
cerveja sagrada todos os dias, levando alguns rabos-de-saia gostosos e
quentes, ao meu apartamento para dar minhas trepadas costumeiras. Lendo
bons livros e estudando inglês. A cerveja diária e os rabos de saia eram
sagrados.
Um dia acordei com um calor sufocante, por volta das cinco horas da tarde. Eu
sempre ia dormir às dez da manhã. Saía do hotel às sete e ia direto para o bar
beber e comer contra- filé com cebola. Então só às dez caía na cama, como uma
pedra. Encontrei uma carta debaixo da porta. Na hora pensei que era da vadia
da Vera. Não era. Senti-me aliviado. Abri a carta e li.
“Paixão da minha vida! (se é que eu posso o chamar assim) Eu não quero te ver
assim, correndo como um louco perdido no espaço e no tempo. Um bagual livre
correndo na relva. Um garanhão correndo livremente pelo excitante mundo.
Não gosto e não posso te deixar assim. Não posso te ver só pensando em você.
Acho que nem em você mesmo. E não se preocupar com o futuro. Não gosto de
e não posso te ver assim sem ao menos pensar no presente, que está tão perto da
gente, onde poderíamos viver grandes momentos, como aquele do motel e do
jantar. O que você procura? O que você pensa que eu procuro? Eu quero é um
olhar, uma presença; eu quero teus olhos fitando os meus. Um calor humano, eu
quero o fogo-fátuo verdadeiro do seu corpo queimando o meu. Quero o afago
de suas mãos me tocando o rosto; mãos macias, mãos carinhosas.Mãos de
homem carinhoso. Eu preciso de alguém que não sinta medo de me tocar toda
hora, de me sentir e me amar. Amar loucamente como eu o amo. Eu não quero
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você fugindo dos meus sentimentos. Eu estou na sua frente, o tempo todo, e
você está dentro do meu pensamento, vinte e quatro horas por dia, trinta dias
por mês ... Te vejo sorrindo para mim o tempo todo. Olhamos um para o outro,
pensando, sei lá em que e depois sorrimos. O tempo passa, tudo, até o amor se
acaba - não quero que o meu se acabe - tudo se acaba e fica apenas o nome
gravado na mente e as lembranças do que aconteceu. E se tudo fosse eterno?
Tudo é possível! Até a existência do amor eterno. Mas e daí como ficamos? Eu
estou na sua frente e se eu fugir? Será para sempre? Vou continuar buscando e
acreditando, só que por outros caminhos, por exemplo, enquanto estou tentando
o cominho certo para te encontrar. Tentando o caminho mais curto. Mas se eu
quebrar a cara e chegar no endereço errado, não sei o que farei. Tente me
encontrar no mesmo endereço, que vou continuar fazendo o mesmo. Assim, o
tempo não passará tão rápido e nossa solidão será menos castigadora.
Mas terá que ser uma paixão verdadeira. Um amor puro, assim, tipo o amor de
Romeu e sua amada. Pense bem. Não quero te ver por aí, sem saber que eu
existo, que eu te amo”.
Janice Brandão.
Acabei de ler a droga da carta e fiquei pensando na Jane. O que é que tinha
dado nela, para me escrever um troço desses. Fui até a geladeira, com a carta na
mão, peguei uma lata de cerveja e me joguei numa poltrona, pensativo. Na
verdade, fiquei até meio triste e deprimido. Não conseguia compreender, para
que diabo eu servia. Não prestava para, ao menos, fazer alguém feliz. Porra! O
que há de errado comigo? Acho que não presto mesmo. Não consegui amar
ninguém até hoje. Não amei a Rita, a Dany, a Lanny, Vâni, Dora, não amei
nem mesmo a Karol, que fez de tudo para mim. Agora me acontece um lance
desse. Gosto da Jane. Juro que gosto dela pra burro, mas não chega a ser uma
paixão, pô - pensei. Teria que achar uma saída. Achar o caminho mais curto,
como ela disse. Até que tive uma idéia. Primeiro, eu ia tentar falar com a Jane,
diplomaticamente e tentar resolver o caso pacificamente. Eu iria propor a ela
que esquecesse tudo o que havia acontecido entre a gente. Que era melhor ela
não alimentar falsas esperanças comigo, porque eu era um louco desmiolado.
Jamais eu teria pique para acompanhá-la ( “... e quem foi que disse que você
precisa ter pique para me acompanhar? ”, - disse ela) e depois, porque não
tinha certeza se ficaria em São Paulo. ( “E por que não fica?”) Se ela não
aceitasse, como não aceitou, minha proposta, eu simplesmente iria dizer que
infelizmente não podia fazer nada. Não iria acordar de repente, amando alguém.
-
-
Paixão, amar não é como fazer sexo. Dizer eu vou fazer isso, e a gente faz.
Amar! Amar, a gente aprende. Você é um cara que precisa aprender a
amar.
O Amor só existe quando ele flui naturalmente de dentro do coração.
Ninguém consegue comandar o amor, porque ele é um sentimento
natural.
Tudo que é natural é verdadeiro. - Disse Jane. Quase concordei com ela,
mas...
49
- Pois é, estou esperando que essa coisa, esse tal de sentimento me atinja. Não
consigo dizer para alguém que eu a amo só porque ela me fascina e porque a
acho bonita e gostosa.
- Não amor. Não é isso que estou dizendo. Se você não amou ninguém até
agora, é porque ainda não chegou sua vez. O dia que isso acontecer, ela pode
ser bonita, feia, gostosa, velha, gatinha, pode ser do jeito que for, que você vai
amá-la de qualquer maneira.
- Está bem. Vou continuar tentando encontrar alguém que eu possa amar de
verdade. - Disse eu com uma carinha de bebê. Ela fazia tudo para que eu a
amasse como ela me amava. Não tenho muita certeza se era realmente amor o
que ela sentia por mim. Poderia ser apenas tesão e vontade de ficar comigo.
Fiquei algum tempo me enganando e enganando ela. Nunca dizia que a amava,
é claro, mas não descartava a possibilidade de vir a fazer isso. A gente saía
quase todos os dias, ficávamos mais tempo na cama, do que em outro lugar
qualquer. E ela sempre me dizendo que me amava mais do que tudo no
mundo. Amor de pica fica. E que sabia que eu também um dia a amaria de
verdade. Vivia dizendo que no momento em que tivesse certeza de que eu a
amasse de verdade, iria se casar comigo e teríamos um filho. Nesse dia, me
lembrei da Vâni. Que disse a mesma coisa e acabou engravidando de propósito.
É verdade que amo minha filha Pérola e ela também me ama. Mas o que
adiantou? Não pude viver com ela. Não iria repetir a mesma burrice.
CAPÍTULO CATORZE
Continuei saindo com a Jane. Eu gostava de ficar com ela. Além de ser uma
ótima pessoa, ela me dava segurança. Por mais que eu não quisesse pensar no
futuro, ela fazia eu pensar nele. Me dava esperanças de ter uma vida melhor.
Até morar e ter um lar, uma família ou coisa do tipo. Se eu quisesse ter me
casado e me aproveitar dela, teria feito isso com a pobre coitada. Ela não
chegava a ser uma milionária. Ela tinha um bom emprego no banco, tinha uma
pensão altíssima, que recebia do ex-marido, tinha um baita apartamento e
algum dinheiro de sobra. E um rabo muito gostoso. Eu podia ir morar com ela e
ficar parasitando e gozando do bom e do melhor. Um dia tinha arranjado um
emprego, como tesoureiro-chefe, num grande Banco, com um amigo seu, para
mim. Nem acreditei na piada e dei uma gargalhada bem escandalosa . Ela
me disse que tinha feito isso apenas para me ajudar. E que se eu me firmasse
no banco e conseguisse uma posição melhor, a gente poderia ficar morando
juntos.
50
- Mas, bah, tchê!,... Banco de novo? Ah! Então é isso que você quer? Que eu
tenha uma posição e um cargo privilegiado, para você não se sentir
envergonhada, quando alguém te perguntar o que seu marido faz? “Meu marido
é Bell Boy de um grande hotel” Não é isso? - Perguntei.
- Ôh, paixãozinha, juro por Deus que não é bem assim. Jamais pensei numa
coisa dessa. Só quero o melhor para nós dois.
- Muito obrigado. Prefiro ser um humilde mensageiro de hotel, mas ser feliz. E
não estou te pedindo nada. Quer saber de uma coisa? Só estou com você
porque te quero muito bem, nunca pedi para que ficasse um minuto sequer,
comigo.
Saí e fui para casa. Mulheres. Aparências. Conheço muito cara legal que foi
parar de baixo da ponte por causa de mulheres... Bukowski estava certo. Percebi
então que eu estava fazendo papel de palhaço. Tentei o que pude para fazê-la
feliz, e tudo que fiz foi em vão. Foi em vão mesmo. Dei graças aos céus por não
ter me apaixonado por ela. Resolvi de uma vez que tudo estava acabado. Que
nascer sentimento que nada. Um cacete! Quase quebrei a cara bancando um
babaca. E fiquei puto da vida. Agora que eu não iria entrar num outro barco
furado tão cedo, pensei. Mas não foi bem isso o que aconteceu.
Meu companheiro de turno, o cara que tinha quase batido as botas, voltou ao
trabalho. Fiz amizade com ele e passamos a trocar idéias todas as noites. Ele era
inteligentíssimo. Fazia filosofia numa faculdade e dava aulas de inglês numa
escola particular. Teve que diminuir as aulas, depois que sofreu o desmaio. O
médico havia recomendado um mínimo de esforço possível. Depois que fiquei
amigo dele, nunca tive nenhum amigo por onde passei. Nunca quis ter nenhum
amigo. Não que eu seja um cara chato e ninguém gosta de mim. É que não faço
questão de sair por aí mendigando amizade. Para mim, a mesma importância
que tem um auxiliar de faxina, tem um presidente da Republica. Nunca achei
que ninguém fosse mais que os outros. Todo mundo é igual. Quando um rico e
um mendigo morrem, os dois fedem iguais. É por isso que estou pouco me
lixando, me importando, com as coisas. Mas quando fiquei amigo do Georges
Malavrakowski, esse era o nome do cara, até nem sei se não é judeu polaco, só
sei que era gente muito boa, passamos a nos entender melhor. Ele dizia sempre
que gostaria de ser como eu. Despreocupado com tudo. Alegre com todos. E
que talvez eu era quem estava certo.
- Não sei se vale a pena ficar se preocupando com tudo, com o mundo, com
filosofia; com informações, com política. Com essa parafernália que é nossa
vida, vida falseada por simulacros, - falava ele congecturando sobre nossas
vidas. Sobre o mundo caótico.
- É isso mesmo, meu camarada. Se eu me preocupar ou não com alguma droga
qualquer, vou continuar vivo. Então por que vou ficar me cansando à toa!? Sou
praticante da linha do stress zero, Zen mesmo. - Eu comentava, com ar de
despreocupado.
- É exatamente isso que às vezes, me dá vontade de fazer.
- Bicho, do jeito que a humanidade caminha hoje, acho que não vale a pena
fazer nada por ela. Já chegamos ao ponto, onde o ser humano está se
autodestruindo. Não acredito, não tenho esperança e duvido muito que isso
51
melhore. Para falar a verdade, acredito que o planetinha azul não terá mais
quinhentos anos de existência. Não vai precisar de nenhum louco para explodir
uma bombinha. Basta o lixo atômico que está sendo acumulado, para uma hora
acabar com o oxigênio da terra. Se a galera do futuro não se conscientizar e
fazer alguma coisa de bom e melhorar e mudar muita coisa, a espécie humana
corre risco de autofagia, autodestruição. - Falei, filosofando.
Daí ele balançou a cabeça e disse que eu tinha razão. Mas o que ia se fazer.
Trabalhar à noite era bom, porque eu podia presenciar cada lance que às vezes
nem eu acreditava. Como por exemplo a história de um hóspede americano que
ficou um mês morando no hotel, gastando pra burro e no fim, deu cano no
caixa. Gostei. Gostei mesmo. Essa foi de foder. O prejuízo do hotel foi um
rombo, um grande arrombo!. Esse americano safado chegava toda noite
cagando de bêbado e gritando, em inglês, que queria uma mulher para dormir
com ele. Não podia ver uma mulher, que ia em cima dela para cantá-la. Todas
as funcionárias do hotel viviam fugindo dele. As garçonetes, camareiras, e até
as faxineiras viviam fugindo, depois que o safado tentou levar uma delas, à
força, para seu quarto. Eu ri pra burro, no dia em que esse cara passou a mão na
bunda de um Bell Boy e veio para o meu lado. “Vou meter um chute no cu
desse idiota, se ele vier com gracinha para o meu lado”, pensei. Ainda bem
que ele não veio. Todo mundo teve prejuízo com o malandro. Menos eu.
Comigo ele caiu do cavalo. Eu nem sabia que ele ia dar o cano no hotel e
procurei garantir a minha parte. Uma noite o safado me pediu para chamar uma
mulher para o sacana dar uma trepadinha e eu disse, “tudo bem”. Era proibido
fazer esse tipo de coisa. Quem chamasse mulheres para os hóspedes, seria
chutado para o cu da rua sem nenhum direito. Mas eu sempre dava um jeitinho.
Adivinha o que eu aprontei para o puto.
- Ok, sir. But it’s just, only, fifty dollars.
- Fifty dollars?! No. No, it’s very expensive!
- Very expensive!? Why don’t you kiss your ass and bye? Então vai tomar no
cu. Se quiser, tem que ser cinqüenta pratas, adiantado. Falei em inglês e fui
saindo do quarto.
- Ok Ok! It’s here.
Agarrei uma nota de cinqüenta dólares verdinha da mão do veado e zarpei
com a barriga doendo de tanto rir. Pois eu sabia que o famoso tarado, que
estava babando de bêbado jamais iria ver a boceta de que tanto queria. No
máximo ele ia sonhar com uma puta qualquer e se agüentasse, bateria uma
punheta. Mas acho que nem isso conseguiu fazer.
Outra cena que valeu a pena, foi a de um mensageiro pilantra, que se fez passar
por louco. O malandro já trabalhava no hotel há um bocado de tempo e queria
ser chutado pra rua, só para levantar uma nota. Ele aproveitou o dia que o lobby
do hotel estava fervendo de hóspedes e fregueses do restaurante principal.
Subiu até o último andar, tirou toda a roupa, pegou uma bíblia de capa preta, e
desceu pelos elevadores sociais, que eram todos com vistas panorâmicas e tudo.
Quando vi o sujeito nuzão desfilando com a bíblia na mão e fazendo um
discurso para os convidados da corte: “Todos os homens são pecadores. São
filhos do diabo. Jesus virá em breve me buscar. Muito em breve sentarei ao
lado do meu pai, que está no céu, e todos vocês estarão no inferno, sendo
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comidos pelo satanás..” Não agüentei e saí correndo para ir rir no banheiro.
Sempre que acontecia um lance diferente eu era o primeiro a cagar de rir. Não
dá nem para descrever a cena direito. Porque o que apareceu de gente não
está no gibi. Era galera se levantando e correndo ao encontro do cara para
fotografar. Outros admirando tanto e olhando para a coisa mais curiosa que eles
já tinham visto. Um verdadeiro show, espetáculo, circo, uma performance
nonsense, pós-moderna, em plena américa do sul, dentro de um palco gigante,
que era o próprio hotel. Muita gente, hóspedes ou clientes do restaurante,
pensou que era uma performance teatral de surpresa que o hotel apresentava
para deixar todo mundo curioso. Outros admirando o seu pintão. - E que pau!
Pelo menos de pau o cara estava bem servido - Apareceu até uma senhora que
se abaixou para pegar no piruzão do cara e gritava em inglês, “hey boy, Fuck
me, please”. Só depois que todos se deliciaram com o show à la Adão e Eva,
que o sacana deu, foi que apareceu o primeiro segurança do hotel, com uma
toalha de mesa para cobrir nosso herói. O Pilantra do mensageiro, - jamais
confie nesses caras. São todos mais malandros do que a gente pensa. - não só
foi despedido, com uma puta grana preta de indenização, como também
conseguiu até mais do que pretendia. Foi aposentado por insanidade mental.
Dá para agüentar essa gente?
E assim eu ia tocando o barco. Não passava uma noite que algo de anormal não
acontecia. Um dia foi a vez de um cara me chamar em seu quarto, para
comprar um troço na farmácia. Ele disse com a maior cara-de-pau, que estava
com coceira no rabo. Num hotel de luxo aparece os mais variados tipos de
hóspedes. Desde veado, até tarado. Achei o máximo, o dia em que um cara
queria que eu desse uma de médico e curasse suas hemorróidas com meu pau
cabeludo. Ficou querendo. Só não dei porradas no cara, porque seria despedido.
Mas dei uma olhada feia para o puto.
E se não bastasse, outro sacana, dessa vez um holandês, alto e forte pra burro,
acho que era tarado, ou maníaco por garotos, tentou me agarrar. Eu nunca
fechava a porta quando entrava nos quartos dos ilustres hóspedes. Essa foi
minha salvação. Saí escafedendo numa disparada e fui avisar o gerente de
serviço.
- Juro por todos os deuses que o pilantra queria comer minha bunda.
- Não fale assim dos hóspedes. Eles jamais fariam isso.
- Ah é! Então vá lá você e dê o rabo pro cara.
Acho que ele foi. Porque saiu sem dizer nada. Outro dia foi a vez de uma
senhora, sei lá se era casada, só sei que era bonita e gostosa pra burro. Passou
na portaria, onde os mensageiros noturnos ficavam, deu uma olhada pecadora,
um sorriso e ainda por cima, me deu uma piscada. Gostei, mas claro que
respondi como mandava o regulamento do hotel. Dei um simpático “boa noite”,
só que com uma voz meio sacana. Cinco minutos depois o telefone tocou. Meu
amigo Georges atendeu.
- Bell-Captain boa noite. Em que posso servir?, - perguntou, cheio de si.
Trocaram algumas palavras e depois ele me passou o aparelho. Atendi.
- Sim. - Uma voz de mulher começou a me perguntar se eu era o rapaz alto e
bonito que poucos minutos atrás lhe dera um sorriso e um gostoso boa noite e
53
se eu me lembrava dela. - Acho que sim. Mas em que posso ajudar? A senhora
está com algum problema? - Perguntei disfarçadamente.
- Sim, preciso de ajuda, mas terá que ser somente sua. Estou com um problema
sério. Há um bicho, acho que deve ser uma aranha, em meu quarto. Preciso
que você venha matá-lá. Por favor, venha logo. - E desligou o telefone. Corri
até lá, já imaginando que a festa seria boa. Adivinha como matei a aranha
peluda da moça? Toquei a campainha e ela apareceu correndo para abrir a
porta. Reconheci a gostosa. Era a mesma pessoa que havia me dado a piscada
e agora estava ali na minha frente só de camisola de seda e me convidando
para entrar. Quando a vi daquele jeito pensei “é hoje que me chutam pra rua”.
Eu ia ter que fazer um esforço sobrenatural para não perder o controle. Mas
acabei perdendo.
- Com licença. Onde está a aranha...sei lá, o bicho?, - perguntei, olhando bem
pertinho dos seus olhos, com a maior cara de safado.
Ela trancou a porta e deu duas voltas na chave. Depois me deu um sorriso.
- Acho que ela entrou debaixo da cama. Venha, vamos procurá-la.
Porra! Eu não precisava ser nem um pouquinho inteligente para perceber que
ela estava com boas intenções comigo. E que a única aranha que estava ali, era
a sua. Daí a bela se ajoelhou próximo da cama e ficou de quatro. Nesse
momento eu endoidei. Enlouqueci. Aí a fera se ajoelhou de lado. Quando vi
aquilo, até fechei os olhos. Ela insistiu para eu olhar debaixo da cama. Olhei.
Afinal, eu teria que fazer meu trabalho para satisfazer os ilustres hóspedes.
Abaixei-me e fiquei perto dela fingindo que estava procurando alguma coisa.
Olhei bem dentro de seus olhos e disse sem piscar.
- Não encontrei nada!
Ela ficou me encarando. De repente, quando eu estava quase encostando minha
boca na sua , ela passou a mão no meu rosto e disse suspirando.
- Sabe que você é muito bonito?
- Não! Nunca me disseram isso, - respondi com cara de neném.
Eu já sabia e podia apostar qual seria sua jogada, então, tasquei-lhe um beijo
demorado. Ela gostou tanto e desejava por aquilo, que quase arrancou minha
boca, de tanta satisfação ou tesão. Tentei me levantar para sair, mas ela me
segurou pelo braço.
- Não. Pelo amor de Deus, não vá embora. - Correu e pegou a bolsa, - pensei
que fosse pegar uma arma, - pegou a carteira, arrancou uma pacoteira de notas
graúdas e colocou no bolso do meu uniforme. - Tome. Isso é apenas uma
gorjeta para você; para seu trabalho de ter vindo até aqui matar a aranha que
sumiu, mas por favor fique só mais um pouquinho. Ninguém vai ficar sabendo.
Não vai demorar. Se perguntarem, diga que estava me ajudando a matar o
bicho. Diga que era uma aranha muito peluda. - E que aranha! Um araquinídio,
- pensei.
- Sinto muito, dona. A senhora vai me desculpar, mas não posso fazer isso disse eu já de pau duro não agüentando de tesão. Nem estava pensando na
gorjeta alta. O que eu queria era dar uma boa trepada com a gostosa, mesmo
assim, dei uma de difícil. - Será que a senhora não está vendo que sou um
garoto de recado e não de aluguel? Além do mais, se descobrem um troço
desse, estou no meio da rua, - falei.
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- Mas ninguém vai ficar sabendo. A menos que você vai sair por aí gritando que
acabou de transar com uma hóspede. Você não quer fazer isso, quer?, - disse
ela, já tirando minha roupa.
- Não, dona. Não posso fazer o que a senhora está querendo e me pedindo. É
contra o regulamento da empresa e da sociedade em geral, transar com
hóspedes, - disse eu, com uma ponta de vingança. Nunca dei uma trepada tão
gostosa como aquela. Rápida e proibida. Terminei o serviço e desci saciado de
prazer e ainda por cima com os bolsos cheios de pacoteiras. O que é o mundo?
A ocasião faz o ladrão. Fui alugado por uns minutos para dar prazer às queridas
hóspedes. Não era isso que os caras do hotel queriam de seus funcionários?
Carinho e dedicação aos ilustres hóspedes? Apenas fiz a minha parte. O que
eles pediam. Fui gentil com uma pobre moça assanhada.
Essa foi boa. Pensei. Jogador de futebol fracassado, caixa e tesoureiro de banco,
quase chegando a gerente, garçon de boate de luxo que virou pó, uma proposta
para ser manequim e modelo fotográfico e agora mensageiro do prazer. Garoto
de aluguel. Um autêntico prostituto. Cobrando para fazer uma coisa que adoro e
que me dá prazer. Essa agora foi de doer. Consegui chegar ao apogeu, máximo
que um homem pode atingir. Só me faltava virar cafetão. Não. Mas isso,
jamais. Graça a Buda, felizmente não precisei me rebaixar tanto ao ponto de ter
que virar cafetão. Pelo menos até hoje não foi preciso.
CAPÍTULO QUINZE
Depois da cena que acabei de contar, a da moça que pediu para eu matar o
bicho dela. Comecei a tomar mais cuidado. Fiquei cabreiro com toda mulher
que se hospedava sozinha e às vezes, pedia algum serviço de mensageiro.
Mesmo assim, não escapei de outras emboscadas. Não passou nem quinze dias
do primeiro caso e me acontece outro. Dessa vez foi um pouco mais
dramático. Duas estrelas se hospedaram em quartos separados. Ambas eram
famosíssimas tanto no cinema como na televisão, mas nunca me senti simpático
a nenhuma delas. Quando cheguei, às vinte e três horas, para trabalhar, os
mensageiros babacas estavam todos super-agitados. Sempre que uma figura
mais importante se hospedava lá, isso era pouco para todo imbecil que
trabalhava naquele lixo de hotel, ficar excitado. Os veteranos do período que
estava se encerrando correram para me contar a boa notícia.
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- Raul, adivinha quem está hospedado aqui hoje?
- O papa. Aposto que o Joãozinho está aqui. - respondi com ironia.
Disseram-me que eram as duas atrizes. Nem dei bola. Pensei que fosse coisa
melhor. Dei uma gargalhada famosa, que era conhecida em todos os corredores
do hotel e perguntei se não tinham nada melhor para me contar. Comecei a
trabalhar e os bundas-moles se mandaram. Muitos deles, provavelmente, com
um autógrafo das vagabundas. Durante todo o tempo que fiquei naquela droga,
nunca me aproximei de uma estrelinha de merda para ficar tietando. Sempre
que carregava a bagagem de uma, teria que ficar esperando na porta, com a mão
estendida, senão, nem gorjeta. Só porque pensam que nós os reconhecemos e
isso é tudo. Acham que por serem famosos não precisam dar nada. Pensam que
se dão um pouco de atenção estão fazendo um grande favor. Mas comigo
todos se fodiam. Sempre me fingia não saber de quem se tratava. Um dia, um
cara me perguntou se eu gostava de uma atriz chamada Sanya Braga, que na
época, era mulher do sujeito, que também era ator ou diretor, sei lá. Respondi
com a maior frieza do mundo, que não sabia quem era a tal atrizinha. Que não
gostava de televisão e nem tinha TV em casa.
- Mas como não conhece? Minha mulher é mais conhecida do que o presidente
do Brasil. - Falou o cara, quase berrando.
- Pois é, amigo. Não sei quem é o presidente do Brasil, muito menos sua
estrelinha. O senhor sabe quem sou? E se eu for um grande artista disfarsado de
carregador de mala? Um escritor?
- Minha estrelinha não. Minha esposa... - Deixei o babaca falando sozinho e
dei no pé. No mínimo, ele deve ter ficado pensando que eu era o cara mais
burro do mundo. Não me importei nem um pouquinho.
Meia noite as famosas atrizes desceram do quarto, parecendo duas princesas
que teriam um encontro com o papa, para irem a uma festa. Sei lá onde era. Só
sei que ambas entraram num carrão de luxo. - Como sempre, tudo num
grande hotel, leva a palavra LUXO. - Três da manhã voltou uma sozinha. A
mais baixa, e que era casada com um babaca barbudo, dono das maiores e
melhores boates do Brasil. Ela entrou caindo de bêbada. Quando pisou no
tapete mágico que abria a porta automática, deu um tropeção e foi de boca
para o chão. Todos, nós mensageiros, era norma, ficávamos ali perto da porta,
para atender os hóspedes que entravam com problemas. Dei uma de superherói e mais veloz que o superman, evitei que a atriz beijasse o chão, como
um pugilista nocauteado beija a lona. Peguei a vadia pela cintura e a levei
lobby adentro. Pedi a chave na recepção e disse que iria acompanhar a hóspede
até seu quarto e que se ela quisesse eu chamaria a enfermeira. Minha
convidada estava com um perfume tão gostoso que fiquei três dias sem tomar
banho, só para não tirar o cheiro que ela me passou. Quando entramos no
elevador, só nós dois, ela me abraçou e me apertou contra seus peitos, que
estavam aparecendo quase todos. “É hoje que terei que trepar pela primeira vez
com uma atriz e bêbada por cima”, - pensei. Chegamos no andar dela e fui
conduzindo a vagabunda para seu quarto. Abri a porta e a tarada me agarrou
mais ainda e nada de me largar. Como sou um bocado forte, levantei-a nos
braços e a deitei em sua cama. Pior. Ela me puxou pelo pescoço e eu caí em
cima da gostosa.
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- Epa! É verdade que cu de bêbado, ou de Bêbada, não tem dono, mas não
estou no barato de arranjar encrencas. Já me meti em muitas. - Disse eu.
- O que foi que você disse benzinho?
- Perguntei se você não quer que eu vá buscar um sonrisal ou coisa do tipo ou
que eu chame a enfermeira?
- Não. Não quero nada, a não ser você. Deite um pouquinho aqui comigo,
deite, amorzão.
Virei-me para ir embora e ela me segurou pelo braço. Parei.
- Se você não se deitar comigo, então vou odiá-lo e vou gritar.
- Ah! Então é assim que os artistas fazem? Todo mundo dorme com todo
mundo?
Corri e tranquei a porta. Tirei a roupa correndo e pulei em cima da gostosa,
quase quebrando a cama. Nem tirei a roupa dela. Epa! Comecei a beijar o
pescoço, depois os peitos, que peitos! E fui descendo. O que ela fazia era só
gemer de tesão e gozar. Outra trepada relâmpago, que entraria para a minha
história. Vesti-me rápido e saí escafedendo. Deixei ela lá, com a boceta cheia de
porra. Desci e comecei a me preparar para a manchete que sairia na coluna dos
fofoqueiros de alguma revista: “ATRIZ É VIOLENTADA EM QUARTO DE
HOTEL”. Fiquei torcendo para que isso acontecesse. Para em um tribunal
qualquer, eu dizer na frente do júri: “Meritíssimo, fui seduzido e violentado
brutalmente, por essa leviana, com ameaça de morte e tudo”. Certamente o
babaca do juiz acreditaria na minha inocência e puniria a maníaca sexual,
mesmo com os protestos dos seus fãs. Daí, todos os jornais do país noticiariam:
“TARADO SE FAZ PASSAR POR INOCENTE E DIZ QUE FOI
SEDUZIDO”. Seria o maior escândalo da alta soçaite e eu venderia os direitos
autorais para um cineasta qualquer. Pena que ela não se lembrou de nada
depois. Por isso, o dia que você sair por aí e beber um pouquinho mais que o
normal, tome cuidado, porque a cidade está cheia de tarados inocentes.
Tarado ou tarada, era o que não faltava naquela droga de hotel. Um dia estou
subindo as escadarias da ala de serviço de um andar para o andar de cima,
quando de repente ouço um gemido. Corri para ver o que era. Entrei num
depósito da rouparia das arrumadeiras e... adivinha. Bidu! Acertou. Encontrei
um verdadeiro festival de trepação. Só de sacanagem acendi a luz e dei um
grito.
- Aí, heim!? Mandando brasa? Mandando ver mesmo? Que trepada gostosa né?
Os dois se assustaram e a garota, uma camareira muito boasuda, escondeu-se
entre os armários de roupa. O cara, um garçon do room-service, ficou mais
vermelho que um pimentão. Com as calças na mão, começou a fazer
clemência. Implorou para que eu não os denunciasse na gerência.
- Qual é, fica frio irmãozinho. Não vou abrir o bico. Para falar a verdade, não vi
nada de anormal por aqui.
- Jura que não vai contar a ninguém?
- Claro que não, seu babaca. Se eu estivesse no barato de sacanear vocês, nem
teria entrado aqui para atrapalhar a foda gostosinha. Teria ido direto chamar a
segurança. Além do que, não estou livre de ser flagrado dando uma trepada das
minhas, por aí, também.
57
O Sujeito, um baita cavalão, se ajoelhou e me agradeceu, quase beijando minha
mão. Essa foi de doer. Prometeu que se eu não entregasse eles e nada
acontecesse, nunca mais tornariam a cometer um absurdo daquele.
- Isso, porque você é burro. E burro tem que cagar redondo e ainda fazer
força. Se fosse eu, continuaria minha trepada, agora mesmo, numa boa. - Falei
e fui saindo, deixando os animalóides lá. Duvido que tenham continuado o
festivalzinho do prazer.
Entrei no quarto do hóspede que procurava. Cansei de bater em porta de
apartamento errado, que às vezes estava vazio ou o hóspede não havia pedido
nada. “I’m sorry” ou “desculpe”, era a palavra que eu vivia usando, quando
errava o quarto. Quando ia distribuir as mensagens recebidas pela recepção. Se
os hóspedes imbecis estivessem dormido ou fora do hotel eu colocava a
correspondência por baixo da porta, sem prestar atenção no número do quarto,
só para ver a cara de algum idiota xereta devolver para a recepção, no dia
seguinte e dizer:
- Êi amigo, olhe, essa mensagem não é para mim. Meu nome não é esse. Acho
que erraram de hóspede.
- Desculpe senhor. Esses Bell Boys só aprontam. Muito obrigado senhor.
Vamos tomar uma providência. Isso não se repetirá mais.
Não se o mensageiro Raul não estivesse por perto. O babaca do hóspede nem
bem virava as costas e o recepcionista amassava a mensagem e a jogava numa
lixeira, sem fazer pontaria. Ele ia lá perder tempo para descobrir quem fora o
mensageiro malandro que fizera a cagada. Sabendo que todos eram pilantras.
Principalmente um tal de Raul Bonfim.
Entrei no quarto do hóspede que procurava, depois de ter estragado o gostoso
programinha do garçon e da camareira. Para falar a verdade, me escondendo,
num dos meus passeios rotineiros de entrega de recados.
Na realidade, não era um e sim uma hóspede. E para variar - e acho que para
minha sorte também - estava sozinha. Era uma bela jovem espanhola. Era a
bela e a fera. Ela e eu. Cara a cara. Em beleza, não devia nada para nenhuma
gatinha tropical. Ela era apenas um pouquinho mais baixa do que eu. Lembreime na hora, o que os outros mensageiros disseram antes: Que espanholas,
italianas, francesas, dinamarquesas e todas as mulheres européias são taradas
por garotões brasileiros. Especialmente se forem bonitos e comunicativos. Bem,
bonito, sou meio suspeito para dizer, mas acho que sou bonito sim. Mas
comunicativo, isso tenho certeza absoluta de que sou. Principalmente se for
com mulher. Ela abriu a porta e começou a enrolar a língua. Tentou falar
português, mas o máximo que conseguiu foi soltar um grunhído. Uma mistura
de portinhol com espanholês.
- Estás bién. Yo puedo entender su lingua. Habblo un poquito español, - falei,
sorrindo para a espanholita.
- Óh! Gracias!
- Falo também, francês, holandês, alemão, japonês, chinês, turco, javanês,
russo... Disse eu em espanhol. Claro que era pura lorota. Só falei tudo isso porque sabia
que ela jamais me perguntaria alguma coisa, numa dessas línguas. E o pior. A
burrona acreditou. Pelo menos foi a impressão que deu.
58
Entreguei seu pedido. Toda sorridente, ela não parava de mostrar os dentes
amarelos pela nicotina de cigarro. Encostei-me quase em cima dos seus peitos.
No mínimo, ela deve ter pensado que eu a estupraria à força e foi se afastando.
Começou a revirar a bolsa, para procurar uma nota. Pensei que me daria uma
moeda de um franco espanhol. Finalmente conseguiu. Estendeu a mão, bem de
longe e entregou-me uma nota de cinco dólares. Peguei e segurei a nota, com
uma mão em cada ponta da nota. Fiquei olhando para a espanholinha. E ela
ficou toda sem jeito, talvez pensando que eu estava achando pouco a gorjeta.
Daí ela disse:
- Desculpe-me. Não tenho mais trocados. - E continuou sorrindo.
- Tudo bem. Dispenso os cinco dólares. Prefiro que USTED me pague um
almoço fora do hotel, depois do meu trabalho. - Disse eu dando uma
piscadinha.
- OK! Ficarei muito grata se você puder ser meu guia-turístico. Estou muito
curiosa para conhecer São Paulo, mas estou sozinha e morro de medo de sair
por aí, sem conhecer nada.
- Meu serviço termina às sete. Posso te esperar no outro quarteirão desta mesma
alameda às oito horas em ponto.
E foi o que fiz. A espanholita concordou e eu não ia perder uma chance dessa.
De manhã, por volta das oito horas, peguei meu carro e fiquei esperando pela
minha convidada de honra. Depois que saí do serviço, troquei o meu ridículo
uniforme por uma cheirosíssima camisa pólo azul-roial e por um lindo jeans
bem justo. Joguei o pinico no fundo do armário. Tomei meu café reforçado,
com um bocado de guloseimas roubadas da cozinha de hóspedes. Além de
inúmeras geléias e torradas que eu sempre roubava das bandejas do café da
manhã, dos hóspedes esfomeados. Eu era um verdadeiro ladrão. Vivia sempre
roubando dos andares e cozinhas, ou coisa do tipo.
Desliguei o carro e liguei o som e fiquei esperando pela basca. Tínhamos
combinado de nos encontrarmos às oito, e já eram oito e dez. Dei uma
olhadinha pelo retrovisor interno e a vi chegando. Ela já sabia qual era meu
carro, pela descrição que dei. E logo me reconheceu.
- Buenos dias!
- Está dez minutos atrasada. - Foi a saudação Raulziana que dei.
- Ah, como estás belo! Usted és muy lindo sem la farda
- É mesmo? Você acha? Muito obrigado. Mas você também é muito bonita.
Sempre fui tarado para conhecer uma espanhola linda, tipo a Carmem do filme
do Saura.
- Você sempre foi o quê? - Perguntou ela, assustada.
- É. Tarado. Louco, doido para conhecer uma espanhola. E você, nunca quis ter
um brasileiro como amante? Se quiser, é só falar. Atravesso o Atlântico hoje
mesmo.
- Mas não sou casada...
- Melhor ainda. Arruma um amante e continua solteira.
- Vou pensar na sua proposta. - Disse ela em espanhol, sorrindo feito uma
hiena .
- Está bem . Como quiser. Agora, onde quer que eu te levo?
59
A gente já estava quase chegando no meu apartamento. Acho que ela entraria lá
e não saberia onde estávamos.
- Não sei. Você é que é meu guia. Ou não se lembra mais? Quero conhecer a
cidade. Pode ser?
- Então tá. Só que primeiro teremos que dar uma passadinha rápida no meu
apartamento, para eu pegar um mapa da cidade.
- Com quem você mora?
- Com Deus e os grilos. Por quê?
- Por nada não. Apenas curiosidade.
- Tem medo de entrar em casa de um rapaz solteiro?
- Não.
- Você tem namorado?
- Também não.
- Quantos anos você tem?
- Vinte e dois.
- Ainda é virgem?
- Por que quer saber? Tenho cara de virgem?
- Tem.
- Mas não sou não senhor. Já saí uma vez com meu ex-noivo. Hei, você não
acha que é um pouquinho xereta?
- Não. Mas quer saber mesmo por que perguntei?
- Ah, quero sim. Isso eu quero. Por quê?
- É porque sou virgem também. Não acredita, né? Mas é isso mesmo. Ainda sou
donzelo.
- Pensa que sou idiota?
- Desculpa paixãozinha. Não quis te sacanear. Só estava brincando. Não precisa
ficar nervosa. Afinal, precisamos de um pouco de descontração. Você não
acha?
Dei um sorriso e passei a mão em seus cabelos e tudo voltou ao normal. Parei o
carro na porta do meu prédio. Desliguei e tirei a chave do contato. E
acrescentei:
- É aqui que passo a maior parte da minha vida de solitário, curtindo minha
solidão. Espere só um pouquinho. Volto já.
Dei um tchauzinho com a mão e ela ficou lá sorrindo, sem entender por que eu
não a convidei para subir comigo. Acenei outra vez com a mão e gritei, já
entrando no prédio:
- Solamiente um momentito
Cinco minutos depois, estava eu de volta com um guia-mapa da cidade que eu
havia roubado do hotel. Mostrei no guia os principais pontos, que diziam ser
pontos turísticos. Ela ficou doida para ir ao centro. Fomos até à Praça da
República, guardei o carro num estacionamento e saímos a pé. Mostrei o velho
e querido Teatro Municipal. Atravessamos o vale do Anhagabaú sobre o
viaduto do chá. Visitamos a famosa catedral da Sé. Não sou católico e nem
nada, mas dessa igreja, juro que gostei. Apesar de nunca ter entrado nela antes.
Depois que fizemos uma demorada visita à biblioteca Mário de Andrade,
subimos no topo do edifício mais alto de São Paulo. Acho que era o mais alto.
Pelo menos era o que diziam. Sei que fomos a mil lugares. Mas de repente uma
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coisa me encucou. Fiquei pensando, onde será que ficavam os pontos turísticos
de São Paulo. Será que realmente eles existiam? Nunca parei para pensar se
essa cidade era turística ou não. E não era mesmo. Não andamos de bondinho
até o pão-de-açúcar. Não subimos até a pedra da Gávea. Não tiramos fotos do
Cristo de braços abertos. Não fomos a um bar no sovaco do Cristo. Sabe onde
fica o bar que tem festa todo dia no sovaco do Cristo?... Porque aqui não tem
nada disso, como lá no Rio.
Estava um calor de foder. Gente atropelando outras pessoas, por todas as ruas
do centro. Eu era obrigado a cuidar de mim e da minha companheira. Teria que
ir arrastando a espanhola pelo braço, para ela não se perder no meio da
multidão. Tomamos um suco de goiaba e comemos um pão de queijo, cada.
Peguei meu carro e caímos fora, rumo aos Jardins, perguntei:
- Como é, gostou?
- Óh! Si si, mucho .
Eu já estava ficando de saco cheio desse, “Óh! Si si”, dela. A burrona só sabia
falar isso.
- Agora vou te levar para conhecer alguns dos tantos Shoppings Centers, a
grande sensação dos paulistanos. Porque o resto você já acabou de conhecer.
- Você não está cansado e com sono? Não trabalhou a noite inteira?
- Estou sim. Estou morrendo de cansaço, apesar de ter dormido a noite inteira
no depósito de bagagem. Mas tudo bem. Vou te levar para conhecer mais algum
lugar. Não foi isso que pediu? Afinal, ainda sou seu guia. Ou não?
- Tá legal. Se não for te prejudicar. Por mim, tudo bem. O que eu mais quero é
conhecer essa megalópoles.
- Espere! Acabo de ter uma brilhante idéia. Vamos fazer um negócio. A
gente passa em minha casa, faço um café hiper forte, para tirar meu sono e
saímos novamente. O que acha?
- Você é quem manda.
E foi o que fizemos. Zarpamos para meu apartamento. Enquanto fazia o café, a
espanhola ficou xereteando nas minhas coisas. Fiquei doido de vontade de dar
um grito e mandar largar tudo no lugar. Mas temi que ela se assustasse e
jogasse algum objeto quebrável no chão. Terminei de fazer a droga do café vejam só! Que coisa, heim! Era para eu estar tomando minha cerveja sagrada e
não um café amargoso, a essas horas - e servi duas xícaras. Uma para cada
um. Ela bebeu um gole e fez um careta. Pensei que ia vomitar em cima de mim.
- Estás muy fuerte!
Terminei o meu e ela não estava nem na metade. Tomou mais um trago e
desistiu. Fiquei encarando ela e olhando para seus peitos. A sacana percebeu
minha paquera e disfarçada ela fingiu que não estava vendo nada. Levantei-me,
peguei em suas mãos e perguntei se gostaria de ver meu quarto. Ela disse que
sim, já me acompanhando. Acendi a luz e a vi se deslumbrar com minha cama
redonda. Com os tantos quadros e cartazes de cavalos, carros de corrida, uma
bailarina, um gorila pilantra e vários tipos de estrumentos musicais, espalhados
pela parede. Uma verdadeira parafernália de cartazes.
- Minha santa mãe de Deus! Como é lindo seu quarto!
Ficou parada admirando, meio assustada, ou sei lá o quê, depois sentou-se na
cama. Fiquei de pé só observando. Daí ela começou a alisar o lençol e pegou o
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travesseiro, botou no colo e começou a examiná-lo. Coloquei a minha mão em
seu ombro e depois sentei-me na cama ao seu lado. Fiquei admirando seus
lindos olhos verdes, quase beijando-os.
- Vive sozinho aqui? - Perguntou ela com voz macia.
- Sim.
- Não tem medo?
- Muito.
- Está com medo agora? - E aproximou-se para me beijar. Como beijava
gostoso aquela espanhola. Tinha um beijo doce. Parecia que tinha mel na boca.
- Só um pouquinho. - Disse eu, já beijando-a. Ficamos ali um bocado de
tempo nos beijando e nos acariciando. De repente, ela pegou minha mão e
colocou em seus peitos gostosos, fartos, duros e lindos de espanhola. Eu já
estava tarado para fazer amor com ela, com isso não agüentei mais. Percebi que
era isso o que ela queria também. Comecei a desabotoar sua blusa e ela me
abraçou com mais força ainda. Tirei sua roupa e comecei a beijar todo o seu
lindo corpo. Antes que eu pedisse, ela começou a me despir também. Ficamos
rolando nus e brincando na cama, como dois gatos. Ela levantou-se e foi para o
banheiro e perguntou se podia tomar um banho frio. Corri ao armário e peguei
uma toalha limpa branca e joguei para ela sem responder. Ela entrou no box do
chuveiro e me chamou para tomar banho junto com ela. Não respondi nada e já
fui entrando no banheiro. Tomamos um gostoso e providencial banho frio, que
espantou o calor e nos deixou fresquinhos para uma manhã de amor e aventura.
Depois fizemos amor gostosinho. Ela até chorou. Não sei se era de prazer ou de
dor. Porque ainda era meio virgem. Juro que adorei aquela graça de espanhola,
que me deixou fascinado e completamente maluco por ela. Levantei-me e fui à
cozinha, andando nuzão pela casa. Dois minutos depois voltei ao quarto com
duas xícaras na mão.
- Aceita um chá de hortelã?
Tomamos o chá e começamos a trepar novamente. Como trepava gostoso a
espanhola. Descobri logo porque o Hemingway era tarado pelas espanholas.
Depois que demos umas três trepadas gostosas, nos vestimos e saímos
novamente. Já era quase meio-dia e eu estava morrendo de fome.
- Vamos almoçar? O que você gostaria de comer? - Perguntei.
- Churrasco.
- Então vamos à melhor churrascaria da cidade. - Sei lá qual era a melhor
churrascaria. Entrei em qualquer uma. A primeira que encontrei na esquina. Já
que eu estava com fome e o churrasco seria o mesmo.
- Gosta de churrasco?
- Si si , mucho.
- Eu não gosto muito. A carne brasileira é a pior do mundo. É muito dura. Aqui
só tem gado zebu, uma espécie típica de clima tropical. É conhecido
mundialmente como gado pé-duro.
- No hay problema.
- Você é quem manda. Ainda sou seu guia. Lembra-se?
- O melhor guia que já tive.
- Já teve muitos guias?
- Nenhum especial como você.
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- Você acha que passei no teste?
- De zero a dez. Te dou nota máxima.
- O que achou do serviço?
- O melhor do mundo. Estou com vontade de contratar você para sempre. - E
deu uma risadinha, mordendo minha mão.
- Até quando vai ficar no Brasil?
- Mais uma semana, talvez.
- Tenho uma idéia genial. - Para esse tipo de coisa, sou sempre um gênio.
Quando estou com uma garota bonita e gostosa, estou sempre tendo espírito de
gênio. - Quer ficar no meu apartamento esses dias? Assim você evita de gastar
um bocado de dólares na hospedagem. O hotel em que você se hospedou é o
mais caro do Brasil. Dizem que é o melhor da América Latina.
- Não vou incomodar você?
- Mas, bah!, é claro que não, pô! Será um prazer para mim. - Que prazer!,
pensei. - Podemos sair mais e você ficará bem mais à vontade. O que acha,
meu tesão?
- Estás bien para mi. Muchas gracias, mi corazon.
- Você sabe pilotar um carro?
- Oh! Sim. Muito bem.
- Ótimo. Então pode ficar com meu carro quando eu estiver trabalhando.
- Quando você estiver trabalhando quero estar dormindo.
Ela era realmente uma gracinha de garota. Parecia uma boneca ingênua, mas
não era nada disso. Era esperta pra chuchu. Sair sozinha de Madri, onde
morava, para conhecer o Brasil, é porque era muito esperta.
Comemos um churrasco na brasa. Tomamos cerveja malzibier e voltamos para
casa, para trepar. Ensinei o caminho do hotel até meu apartamento para ela e dei
a chave do carro para ir buscar sua bagagem.
- Não fale para ninguém, para onde está indo. Se perguntarem por que está
saindo antes do fim da reserva, diga que vai para a casa de um parente que
encontrou. Meta a bagagem no carro e não mencione o meu nome. Aliás, acho
melhor você pegar um táxi. Ir com meu carro lá, pode ser muita bandeira. Vou
te deixar onde nos encontramos hoje de manhã e de lá, você vai sozinha, OK?
- Deixe comigo. Não vou fazer você perder seu emprego só por minha culpa.
Mas se isso acontecer, arrumo outro para você, no melhor hotel de Madri.
- Não. Muito obrigado. Prefiro ficar por aqui mais algum tempo. Para ser um
duro na Europa ou aqui, ainda prefiro o Brasilzão. Esse país brincalhão, que
está vendo. Aliás, nós dois nos parecemos muito. Nenhum dos dois é sério,
portanto, não valem nada.
- Não vai acontecer nada. Eu prometo.
- Ah! Quando voltar, abra a porta bem devagar, para não me acordar se eu
estiver dormindo.
- Está bem meu tesão, - disse ela passando a mão no meu rosto e me beijando
na boca.
E foi o que ela fez.
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CAPÍTULO DEZESSEIS
Acordei com um puta calor e meu rosto sendo acariciado por alguém.
- Ah, já voltou! - Perguntei olhando para minha espanhola, que estava uma
gatinha. Só de shortinho e uma camiseta sem mangas, mostrando todos os
- peitos, que pareciam duas maçãs. - Que horas são?
- Siete.
- Sete horas?! Porra ! Quantas horas dormi? Onde você estava todo esse
Tempo? Por que não me acordou?
- Fazendo a mudança. Abastecendo o carro. Passando no supermercado para
fazer compras. Tomando banho. Limpando seu apartamento. E coisas do
tipo.
-
Pô, Paixão, não precisava fazer compras. Não precisava fazer nada. Ou
então, por que você não me chamou para te ajudar? Minha casa está
ótima! Foi você sozinha que fez isso? Não acredito. Tudo aqui era uma
zona só. Você é um amor! Um anjo que apareceu de repente em minha
vida. Não vou te deixar mais ir embora daqui.
-
Venha ver o que eu comprei para você. - Puxou-me e me levou até a
cozinha para mostrar tudo o que ela havia comprado.
-
Você é louca, pô?! Quem te mandou comprar tudo isso? Nunca faço
comida.
Esqueceu que vou ficar aqui uma semana ou mais, e dando trabalho?
O que é isso princesinha!? Será um grande prazer ter você aqui comigo.
-
Tomei um super banho gostoso e pulamos na cama novamente. Mais beijos,
mais abraços e mais trepadas. Trepar é que era o grande barato. Só trepar
- Gostei muito de você. Fiquei com medo de que fosse puritana. Mas você
não é. Você é um amor de guria. É exatamente como eu imaginava as
espanholas.
- Eu também gostei muito de você. Se não tivesse gostado, eu não estaria
aqui contigo.
- Por que não fica morando aqui comigo, para sempre?
- Gostaria muito mas infelizmente não posso. Faço medicina na
Universidade de Madri e não quero interromper meu curso, agora que está
no final.
- Transfira seu curso para cá. Conheço um francês que fez isso.
- Não é fácil. Também não posso deixar meu pai tão distante. Minha mãe
morreu há apenas dois anos. Sou filha única e meu pai gosta muito de
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mim. Se não fosse graças a ele, eu jamais teria conhecido o Brasil e
você.
- Pai. Que pai o cacete. Tenho pai milionário e nem por isso moro com ele.
Nem sei se está vivo. Temos que aproveitarmos a vida enquanto podemos.
Só existe uma. E não é toda hora que estamos de bem com ela.
- Eu sei. Juro por Deus que eu faria tudo para ficar morando com você. Mas
agora não dá mesmo. Quem sabe um dia, depois que eu me formar. Falta
pouco. Apenas um ano. Volto e vamos morar juntos.
- Por que um dia? Por que não agora, hoje? Até lá pode acontecer um monte
de coisas e ser tarde demais. O presente é mais seguro do que o futuro.
- Então já que nada te atrapalha aqui, por que não vai comigo para a
Europa? - Perguntou ela de surpresa. Fiquei corado e sem uma resposta.
- Sei lá. Nunca saí do Brasil. Tenho medo de que lá fora seja diferente. Que
seu pai não me aceite do jeito que sou. - Ela apertou minha bochecha
com a mão, Depois me beijou.
- Então vamos curtir tudo que temos direito. Enquanto estamos juntos e
vivos, porque a vida é bela e curta e não sabemos o que nos espera, por
aí.
Parece mentira, mas já estávamos o dia inteiro juntos e ela nem sequer
perguntou meu nome. Ela não perguntou, nem eu falei. Só fiquei sabendo qual
era o seu, porque procurei na listagem do computador e chequei pelo número
do apartamento. Além de ser um mensageiro xereta, eu era também um espião.
Deitamos e rolamos na cama como dois adolescentes que fazem amor pela
primeira vez. De repente ela fez uma cara de espanto e deu uma risada. Depois
perguntou de surpresa.
-
Ei, qual é o seu nome?
Raul.
Óh, não! Não acredito. Meu pai também se chama Raul. Agora tenho dois.
Um Raul e um Raulzito. É ter muita sorte.
- E quem é o raulzito?
- Você, é claro.
- De qual gosta mais?
- Dos dois. Mas por você sinto uma coisa especial.
- Tesão?
- É!
Fizemos amor mais uma vez. Outra trepada gostosa que só ela sabia dar. Depois
que fizemos amor, cada um contou um pouco das suas vidas. Mas uma das
coisas de que ela gostou foi quando falei sobre o meu nome. O que significa
Raul na gíria da galera mais esperta. E por que eu gostava de ser chamado de
Raulzito. “Então você gosta de ouvir o Raul de vez em quando?”, perguntou
ela. Respondi que gostava muito do meu xará. Gostava e gosto muito até hoje.
Gosto de ouvi-lo todos os dias quando estou vendo o pôr-do-sol. É lindo. É uma
sensação ótima. Dá para dar uma viajada legal. Vale a pena ver o espetáculo.
Experimente um dia. Mas gosto muito de blues e jazz também. Além de
música clássica. Verdi.
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Acabamos de trepar e saímos para um passeio na Paulicéia Desvairada. Ainda
eram quase oito, teríamos até as onze horas da noite para ficarmos juntos.
Fomos para uma boate ou coisa do tipo.
Gostei do seu nome. Eu já sabia, pois tinha espionado na listagem do
computador pelo número do apartamento, mas fingi que não sabia de nada.
Kelma. Isso mesmo. Acho que era uma mistura de nome alemão com espanhol.
Deveria ser Selma ou Telma, Nelma, sei lá, e meteram um “K” na frente e deu
nisso. Kelma não sei o que lá. Sou meio perseguido por garotas que o nome
começa com a letra “K”. Já tive uma Kátia, uma Karol, uma Karina e agora
uma Kelma. Só faltava eu acabar me casando com uma que também começasse
com “K”, - pensei. E foi o que acabou acontecendo.
Tentamos ir a uma danceteria ou coisa do tipo, mas acabamos desistindo.
Decidimos ir passear em um shopping center. Onde andamos de mãos dadas.
Tiramos fotografias juntos, numa máquina automática. Depois fomos para uma
lanchonete tomar cerveja de latinha. Ficamos namorando até às dez da noite. Às
onze horas eu entrava no trabalho. Ela foi para casa dormir. Claro que não
fiquei com nenhum medo de deixá-la sozinha em meu apartamento. Primeiro,
porque não existia nada de valor que ela pudesse roubar. Sempre fui o tipo de
cara que acha que a ocasião faz o ladrão. Mesmo assim, sabia que minha
espanhola jamais teria coragem de trair a confiança que dei a ela. E o mais
importante, ela não tinha cara de desonesta, muito menos de ladra.
No dia seguinte de manhã, tomei meu banho rotineiro. Subi para meu famoso
café, que vocês já conhecem. Peguei meu carro e zarpei. Ao chegar em casa,
abri a porta bem devagar, para não fazer barulho e acordar a espanholita. Entrei
no quarto pisando macio feito gato. Ela estava dormindo como uma criança.
Parecia um anjo. Tirei minha roupa e entrei nuzão , debaixo do lençol, ao seu
lado. Não demorou, eu adormeci. O sol já estava alto e o calor estava de foder.
Acordei suando. Deveria ser umas dez horas ainda. Minha bocetinha continuava
dormindo. Levantei, abri a janela e liguei o ventilador do quarto. Depois voltei
para a cama. Dei um beijo na testa da minha basca e preparei-me para dormir.
Dessa vez pra valer. Acordei meio dia, ou quase uma hora da tarde, sei lá. Dei
uma olhada e não vi mais ninguém na cama. Meu pau estava duro. Havia um
vaso sobre a mesa do quarto, cheio de flores amarelas. Acho que eram
margaridas, se fosse flor de ipê eu ia gostar mais ainda, e um bilhete no meio
delas que dizia: “Meu Raulzito querido, te gusto mucho”. Ouvi um barulho na
cozinha e um cheiro de comida. Dei um berro. Mais que isso. Dei um urro.
- Amorzão, da minha vida. Já acordei. Você quer se casar comigo?
- Si. Quiero. - Depois entrou no quarto.
- Buenos dias!
- Bom dia por quê? Nós dormimos juntos. Quase fodi com você dormindo. Só
não fiz isso porque estava morto de cansaço. Mas agora venha cá...
- É mesmo, seu taradinho safado? Não vi você chegar e não falou comigo.
- Está bem. Então venha cá e me dá um beijo. Seu maridinho está carente.
Estou morrendo de saudades do seu beijo doce e cheio de tesão.
Daí minha bocetinha espanhola me abraçou e começou a me beijar gostoso. Dei
uma mordida no nariz e outra no pescoço dela. E trepamos com todo tesão do
mundo. Antes do almoço. Como foi bom!
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Agora vamos almoçar. Acabei de fazer sua comidinha. Não sou boa
cozinheira mas quebro o galho.
Experimentei sua comida. Humm! Que delícia! Ela tinha passado no teste.
Gostei do arroz à la grega, ou à la espanhola, que ela fez, com um tempero
especial. Terminei de almoçar e falei, limpando a boca.
- Humm! Bão! Muito bom. Acho que não vou deixar mais você voltar para a
Espanha. Vou te contratar para ser minha cozinheira definitivamente.
Terminou a primeira semana que ela iria ficar e ninguém falou nada. Ninguém
se manifestou. Ela não queria ir embora. Eu não queria que ela me deixasse.
Com muito esforço, acabei convencendo ela a ficar mais vinte dias. Acho que
ela só ficou porque tinha gostado muito de mim. E, uma coisa é certa. Amor de
pica fica! Caso contrario, teria zarpado no primeiro dia. Ou nem teria aceito
meu pedido para morar comigo uma semana.
Ela telefonou para seu pai pedindo permissão para ficar mais vinte dias. Disse
que tinha conhecido uma pessoa muito legal, aqui. Ficou toda feliz quando o
velho, o tal de Raul, meu camarada e xará, deu a desejada permissão. E se
fosse para o seu bem e para ficar com alguém que realmente valesse a pena, ela
poderia ficar. Eu só queria ver a cara desse sujeito, quando soubesse quem era
a fera que estava cuidando da sua filha.
- Olá, senhor Raul, muito prazer em conhecê-lo. Eu também me chamo Raul.
Portanto, somos xarás.
- Olá! Como vai? Tudo bem? Minha filha tem falado muito bem de você.
Disse que é um jovem muito talentoso. E um gentleman também.
Provavelmente ficaríamos amigos mas sempre desconfiando um do outro. Seria
minha ironia fina contra o respeito de alguém que fazia jus a isso.
Foram quatro semanas ao todo, de muita aula de curtição. Muito carinho e
muito amor. E muita trepação, principalmente. Sou meio pilantra, mas com
essa gatinha, tudo indicava que minhas intenções não eram de um mau-caráter.
Nunca gostei de ser canastrão com alguém que me trate bem. Temos que tratar
mal somente os fakes. As pessoas fakes, como muitas que conheço, merecem
todo o despreso. Foi por isso que fiquei torcendo para que os próximos vinte
dias não terminassem nunca mais. Para que vinte dias demorassem vinte anos
para passar. Minha bocetinha me tratava como se eu fosse seu marido de
verdade. Vivia dizendo que seu filho nasceria na Espanha e teria um pai
Brasileiro. Sei lá se esse filho nasceu algum dia. Pelo menos não tive notícias.
Como brincamos gostoso, eu e minha castellana. Fizemos de tudo. Tudo que
nos deu na cabeça. Trepávamos direto. Não perdemos um só minuto do tempo
que ficamos juntos. Fazíamos amor a todo instante, toda hora, todo dia. A gente
realmente sentia prazer em ficar juntos. Trepar não era só por tesão. Era prazer
puro. A gente trepava na cama ou em qualquer lugar. Prometemos curtir o
máximo possível, enquanto estivéssemos juntos. Porque não sabíamos se
tornaríamos a nos ver algum dia. Tudo indicava que não. E foi o que
aconteceu.
67
-
Vou me lembrar sempre de você, Raul. - Era o que ela vivia dizendo. Sei
lá se me esqueceu depois que voltou para a Espanha. Só sei de duas coisas:
que não me esqueci dela e que nunca mais tivemos notícias um do outro.
Pois é. Nem acredito que você vai partir. Vai me deixar sozinho. Vou
sentir muito sua falta. Você sabe que nunca morou ninguém aqui. Por isso, não
vai ser nada como antes, por aqui. Vou ficar triste.
Nunca gostei de despedidas. Ninguém gosta. Quando faltava um dia para a
Kelma voltar para sua casa, fiquei relembrando minha despedida com minha
pequena Karol, lá em Curitiba, a cidade mais fria e cocô do Brasil. Tão cocô
que ganha de Gramado, nas serras gaúchas. Cocô somente as pessoas, nem
todas, é claro, mas é também a cidade mais bonita do Brasil. Cidade bonita e
cocô. Porra, sou um cara cagão mesmo. Mais que isso. Sou um grande filho da
puta. Minha querida Karol, ali, com o coraçãozinho cheio de amor por mim e
eu saindo de fininho. É. Acho que meu coração é de pedra mesmo. Sou
obrigado a admitir isso. Se é que eu ainda tenho algum. Sabia que como foi
dolorosa a despedida com a Karol, seria com a Kelma.
Mais uma paixão que pintou em minha vida e não deu certo. Não por minha
culpa. Juro que eu já estava gostando da Kelma pra carvalho. E ela idem.
Parecia até castigo. Sei lá, acho que sou cagado mesmo. Porra, toda mulher
interessante que começo a gostar, sempre aparece um demônio para estragar
tudo. Nunca dei sorte para ficar com uma gatinha que eu gostasse dela.
Começou com a Rita, apesar de não ser muito a fim dela. Antes eu havia tido
um caso com a Kátia. Depois, com a babaquinha da Vâni. Chegou a vez da
Karina, minha namorada dos bons tempos de praia e futebol com a rapaziada.
Mas entre todas, a que mais marcou minha vida foi sem dúvida a Karol e por
fim, a Kelma, que saiu lá do fim do mundo, para vir fazer minha cabeça, aqui,
do outro lado do Atlântico. Sem falar da Jane, ou Janice, como queira, que
deixou meu coração na mão. Quase levando-me à loucura. Sempre fui doido
para ter uma bocetinha mais velha do que eu. Quando finalmente encontrei,
finalmente quase caí do cavalo. Por pouco não quebro a cara. Aliás, estou
sempre quebrando a cara. Sempre. Acho que foi a única coisa que aprendi
desde que me conheço por gente. Fui escolhido por Deus, se é que ele existe,
para vir ao mundo e pagar pelos pecados de alguém. E assim fui quebrando a
cara de uma em uma. Sem falar nas Lannys da vida que agitaram meu
coraçãozinho de pedra e ingênuo. Porra, quando é que esse maldito cupido vai
acertar a droga da sua flecha no meu coração?, - pensei. Ainda bem que ele não
demorou.
Não perdi por esperar. Eu estava sempre saindo de uma transa e entrando
noutra e sempre quebrando a cara e caindo do cavalo. Já estava ficando de saco
cheio. Resolvi dar um tempo. Queria ficar um bom tempo sozinho. Queria!
Prometi e jurei de pés juntos que depois da Kelma, que a essas alturas já devia
estar trepando com um espanhol de pau bem grande, eu não me envolveria
com nenhuma outra mulher, tão cedo. Por mais gostosa que ela fosse. Só
pensaria em outra garota, se fosse um caso sério. Não vou embarcar em outra
canoa furada. Chega. Já baguncei e sofri demais. Se continuar assim, meus
sentimentos vão para as cucúias. Que sentimentos? E eu tenho isso? E eu,
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onde vou parar?, - pensei. Coisa que eu duvidava muito, e estava apostando
para ver. Apesar da minha persistência e teimosia, eu duvidava muito de mim
mesmo, de que conseguisse mudar. Porra, caralho, está certo que sou maluco,
que não ligo pra nada, não estou nem aí com o mundo e suas coisas malucas e
fakes, e sua sociedade fake pra caralho, não espero nada da vida. Está certo que
não tenho esperança alguma em mudança, em nada, aliás, acredito que a coisa
vai feder cada vez mais, muito menos pretensão de ficar rico, algum dia.
Talvez, tomara que não, mas do jeito que a coisa vai, se eu perder meu
emprego, é mais fácil eu virar mendigo do que ficar rico. Não quero pensar nem
confiar no futuro, muito menos fazer planos para o futuro. O futuro não existe.
Quando ouço um sujeito ou seja lá quem for, fazer planos para o futuro, dou
grandes e boas gargalhadas. Futuro? Todo mundo confia no futuro. Faz planos
para o futuro. Todo mundo, menos eu. Nunca acreditei no futuro. Não gosto de
pensar no futuro. Os planos que qualquer pessoa faz para desfrutar no futuro
não passa de dessejos. Fazer planos para o futuro é trazer, antecipar a realização
de seus desejos pessoais. Desde que fugi, que saí, de casa, nunca parei para
pensar em mim. Na realidade, nem eu mesmo sei até onde vai meu espírito de
aventureiro. Se é que posso chamá-lo de aventureiro. É por isso que resolvi dar
um basta em tudo e parar por aqui. Não quero cogitar nada. Não quero cogitar
nada. Casamento então? Nem pensar. Isso só acontecerá em hipótese muito
remota. Sempre duvidei de que existisse garota no mundo capaz de me aceitar
do jeito que sou. Louco, irreverente, rebelde, revolucionário, aventureiro,
andarilho, on the road, duro, retirante errante, sem profissão, sem religião, sem
previsão de melhora para o futuro, sem destino, sem passaporte e até sem
endereço fixo. E o mais importante, sem saber se daria amor de verdade a
alguém. Se amaria alguém de verdade. Acho que isso me faz ser um grande
covarde. Um covarde honesto, inocente e ingênuo à procura de si mesmo.
Tentando descobrir quem realmente é e para que serve. Se conseguirá encontrar
alguém, algum dia, que aceitará seu coração como prêmio. E se conseguirá
conquistar o coração de alguém que possa lhe fazer feliz. Não faz mal, o
mundo também é dos covardes, pensei. Nunca parei para pensar se eu seria
capaz de amar e deixar ser amado. Será que haveria alguém no mundo que seria
amada, de verdade, por mim? Haveria sim. Acho que deve existir alguém capaz
de me amar de verdade sem se preocupar com nada, como eu gostaria que
existisse e me amasse, pensei.
A Kelma foi embora e os dias foram passando, sem se importarem comigo. Eu
sentia sua falta. Sentia pra valer. Feliz ou infelizmente não cheguei a amá-la,
assim como não havia amado nenhuma outra até agora. Mas também não me
amou. Apenas gostou. Por falta de tempo, ou coragem, sei lá, acredito.
Dez meses se passaram, desde que entrei naquela merda de hotel. Tudo que
alguém possa imaginar, poderia acontecer. Mas, num só lugar. No hotel onde
eu trabalhava. E foi lá que aconteceu. Desde hóspede ir morar comigo, durante
um mês e voltar para a Espanha, depois de ter me deixado quase apaixonado,
até louco. Ou se fingindo de louco, como fez o mensageiro que deu uma de
porta voz de Jesus Cristo. Primeiro o filha da puta que ficou peladão passeando
pelo lobby, fazendo o discurso e tudo mais. Depois outro. Desta vez, um
hóspede, ou cliente do restaurante, sei lá o que era. Só sei que o sujeito, o cara
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dizia que era um pintor famoso. Nunca tinha ouvido falar no nome do veado.
Aproveitou a tumultuada recepção da primeira dama do país, que estava
chegando ao hotel para uma estadia cheia de mordomia de uma semana,
acompanhada por uma cambada de puxa-sacos, sem falar do batalhão de
agentes de segurança. O imbecil começou a gritar e caminhar na direção da
esposa do presidente da Republiqueta do Brasil, com um embrulho na mão.
- Êi dona fulana de tal - o sujeito disse um nome parecido com Dulcemara
ou Dulcenéia, não me lembro direito. Só sei que o presidente do Brasil, na
época, era um imbecil militar que gostava de cavalos e foi o último pilantra
militar que governou ou desgovernou essa republiqueta de bananas, - Diga
para o cornudo do seu marido, que serei o próximo presidente do Brasil. Sou
amigo do dr. Paulo Maluco... - blasfemou o nome de um babaca, que na
época, era Governador do Estado de São Paulo, e que gozava e promovia as
mais gordas mordomias em festas dignas de sibarita nenhum botar defeito, em
hotéis de luxo, e um admirável fã-clube, principalmente a oposição, o
considerava o maior ladrão da história do país. Acho que esse amiguinho do
pintor não ia gostar nada de saber o que o outro acabou de dizer. Porque quem
era cego de pretensões para ser presidente da nossa Republiqueta, era ele, o
governador corrupto e ladrão, o tal de Paulo Maluco. E o discurso barato
promocional do artista quando jovem e louco continuou.
- ÊI, DONA..., tenho um presente para a senhora. Sei que seu hobby é
colecionar quadros de homens pelados. Pintei um com todo carinho,
especialmente para a senhora. Faço questão de entregá-lo pessoalmente. –
Adorei a zona que o babaca aprontou. Aliás, adoro ver o circo pegar fogo.
Foi um banzé dos diabos. Os homens do presidente, isto é, da esposa do
presidente, arrastaram o sujeito indeterminado para um canto e dá-lhe objeto
direto na cabeça do sujeito, dá-lhe PORRADA. Foi quadro voando para os
ares e pombos sem asas nos cornos do futuro Nero brasileiro. Mas o que foi o
maior barato e o que curti mais, eu só não, todo mundo. A sortuda e
oportunista imprensa, especialmente a televisionada, estava no local e filmou
lance por lance. Não perdeu nada. Filmou tudo. Malandro! Com tanta porrada
que deram no cara, acho que nunca mais ele ia dar presente para uma primeira
dama. Principalmente de um tirano.
Deram um chá de sumiço no cara, pelo menos por algumas horas. O hotel
tentou tirar o cu da reta. Pediu para a imprensa não publicar nada. Se fodeu.
Não só noticiaram na íntegra, como também denunciaram tentativa de suborno
da imprensa. Na noite seguinte , só de sacanagem, colei a primeira página do
maior jornal da cidade, que trazia a seguinte manchete: “HUMILDE PINTOR
TENTA PRESENTEAR PRIMEIRA DAMA E É ESPANCADO PELOS
SEGURANÇAS
PESSOAIS, E DIRETORIA DO HOTEL TENTA
SUBORNAR A IMPRENSA’’, bem na entrada do corredor do refeitório de
funcionários, afixado na parede. Claro que numa hora que não havia ninguém
por perto. Quando viram o troço lá, foi o maior rebu. Queriam porque queriam
saber quem fora o engraçadinho que fizera a cagada. Adivinha quem era o
maior safado do hotel e que teria coragem de fazer isso? Mas ninguém tinha cu
e ousava me acusar, bem que suspeitavam.
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Pois é. Acontecia de tudo naquela merda. Menos uma coisa: me passarem,
transferirem, para o período diurno. Só faltavam dois meses para eu sair de
férias. Não fiquei entusiasmado. Dessa vez não iria contar com o ovo no cu da
galinha, como fiz da outra vez. A filha da puta poderia morrer e eu tomaria no
cu em seu lugar. Não fiz planos para rever meus pais. Deixei para resolver na
hora. Consegui manter a palavra. Não me envolvi com ninguém. Quase um ano
sem envolvimento com mulheres. Envolvimento sério. Milagre! A danada da
Lanny desaparecera. Foi morar com um industrial australiano. Acho que
cansou de ser puta e sabia que não tinha futuro comigo. A Jane deve ter
encontrado um belo executivo como ela. O seu Isaac que ela tanto desejava. A
Kelma telefonou algumas vezes e já devia estar se formando. A Karol, minha
adorável Karol, nunca mais tive notícias dela, provavelmente estava casada ou
curtindo a fazenda da família. Vani, a essas alturas do campeonato, já desistira
de me esperar e já teria arranjado outro pai substituto para minha pequena
Pérola. E eu, acabei sobrando. Não me restou ninguém. Quem escolhe, sempre
acaba escolhido. As garotas que continuei levando ao meu apartamento, não
passavam de trepadas rápidas e ponto final. Quando eu queria dispensá-las,
dizia: “Boa noite, até logo, passe mais tarde” e daí por diante. Só que isso não
iria durar a eternidade. Não mesmo. Vejam em que acabei me metendo. Dessa
vez pra valer. Ainda bem.
De repente algo de extraordinário chama minha atenção e me pega de surpresa.
E lá se vai mais uma vez Don Raulzito se meter em confusão. Confusão com
mulher. Se meter em outro romance aventureiro. Só que dessa vez pra valer,
felizmente. Ufa! Até que enfim, senhor Raul Bonfim.
CAPÍTULO DEZESSETE
Era um Domingo cinzento, muito esquisito. E eu estava de folga nesse dia. Um
verdadeiro milagre. Porque os filhos da puta nunca nos davam folga nos
domingos ou feriados. Depois de muito tempo, dei sorte. Peguei dois dias, de
uma só vez. Graças a Jesus Cristo, eu estaria dois dias longe daquele lixo de
hotel. Dormi até às duas horas da tarde. Tomei um gostoso banho, fiz a barba.
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Comi um resto de comida e saí por aí. Sem destino, é claro. Sem destino as
coisas acontecem com mais tesão. Com mais sabor de aventura. Mais emoção.
Não sei porque cargas d’água, eu estava de boa cara e bem humorado. Olheime no espelho quando ia saindo e disse feliz: “Arriba Don Juan!”. Já que se
tratava de um passeio aventureiro, resolvi deixar o carro na garagem e sair a pé,
por aí. A pé as idéias fluem melhor. Não havia ninguém na rua quando saí da
minha alcova. Até parecia que todo mundo tinha sumido. Fiquei mais feliz,
mais feliz, por ser o único sobrevivente. Parecia que era um dia morto. Não é
que era mesmo. Realmente era um dia morto, ou melhor, dia dos mortos. Era
dia de finados e eu nem sabia disso. Eu lá estava querendo me preocupar com
dia de finado. Não me preocupava nem comigo.
Quem não fora ao cemitério levar flores e chorar pelos seus parentes mortos,
deveria estar viajando. Porque não havia uma única alma sequer na rua, a
menos que fosse invisível. Já que era o dia delas. Mas não era de se estranhar.
São Paulo sempre foi conhecida como cidade deserta nos fins de semana e
feriados longos. Nem bem chega a Sexta-feira e todo mundo zarpa fora direto
do trabalho, do barulho, rumo ao sossego. Ao paraíso. Normalmente, para
sítios, chácaras, litoral, - eu, nunca mais fui à praia. - Fora a cambada de zépovinho, que superlota as poucas piscinas comunitárias públicas, ou parques da
cidade.
Eu estava todo de branco. Quase todo. Vestia uma calça branca, bem justa e
transada. Camisa pólo branca. Tênis branco sem meias. E um jaleco de nylon
vermelho, sem mangas, para nenhum xereta imbecil me confundir com
médico, dentista ou coisa do tipo. Só minha cueca não era branca, porque
nunca uso esses troços. Acho que se eu morresse naquele dia - um bom dia
para se morrer. Dia de finados. - até minha alma, que é beat pra caralho,
teria sido levada para o céu, por um anjo com cara de mulher, é claro. E lá
em cima o velhinho certamente perguntaria:
- Quais foram suas boas obras na terra, meu filho? - E eu, com a maior carade-pau e todo cinismo possível, responderia:
- Sem comentários.
Desci a primeira rua da esquina do meu prédio. Já que minha caminhada seria
sem destino, preferi descer a primeira rua que me aparecesse. Na descida todo
santo ajuda. Mesmo a gente não tendo fé em nenhum. Quando cheguei numa
avenida grande pra burro. Aquela que corta a cidade e sobe para a zona sul,
passando por um túnel longo e perigoso pra diabo. Até hoje ninguém
conseguiu atravessar essa droga de avenida , em uma única avançada com o
farol fechado para os carros. A avenida tem duas pistas e um canteiro no meio
dividindo as mesmas. Fiquei ilhado, como todo mundo. A gente é obrigado a
esperar a droga do sinal abrir duas vezes, se não quiser ser atropelado, como
quase fui uma vez. A merda fica verde, os carros disparam. Fica vermelho,
você consegue chegar até a ilha, no meio da pista, depois de xingar os
motoristas apressados. Espera mais meia hora, aguarda o farol fechar e mais os
outros carros apressadinhos que continuam passando mesmo com o farol
fechado para eles, se eles te deixarem, você consegue chegar ao outro lado da
Avenida. Minha meia hora de espera na ilha já estava terminando, quando de
repente, um mercedes esporte conversível, vermelho, último tipo, parecendo um
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avião terrestre. Igualzinho àquele do cara grandalhão, o filho da puta que
ficava no restaurante onde eu trabalhei, tomando sol e folheando revista de
mulher pelada. O carro parou no farol fechado. Eu estava lá, plantado, com as
mãos no bolso. Quando de repente alguém me deu uma olhada gostosa e
sedutora. Não perdi tempo. Retribui com outro olhar idem. Só que com muito
charme. Dei sorte. Meu olhar foi bem recepcionado. Pensei rápido. Agi mais
rápido ainda. Oba! o mar está para peixe. Eu que não sou bobo e nem nada, ao
invés de seguir em frente, continuei parado e arrisquei mais uma olhadela.
Mais uma vez fui correspondido. Hoje, se me perguntarem como começou
meu casamento, posso garantir que foi por causa de uma olhadela arriscada, e
um pouquinho de sorte. É, acho que foi isso sim. Foi sim.
- Por favor, você saberia me dizer como faço para ir até a Avenida Paulista?
- Estou indo pra lá. Se quiser me dar uma carona, posso te ensinar o caminho.
- Tudo bem. Entra aqui.
Nem bem entrei e ela arrancou velozmente. Deixando os outros carros
buzinando atrás de nós. Houve até um babaca que gritou fazendo gracinha,
quando me viu entrando no avião da mulher que também era outro avião.
Aposto como ele gostaria de estar no meu lugar.
- Aí, heim bonitão, foi apanhado, né, Don Juan?
Nem liguei. Só me lembrei de que quando saía de casa, do meu apartamento,
dei uma olhada no espelho e disse: “arriba, Don Juan!”. Aí lembrei-me de que
eu era sempre uma presa fácil nas mãos das mulheres. E que eu gostava muito
disso. Sempre dei muita sorte com as mulheres. Acho que sou meio atraído por
elas. Elas me perseguem por toda parte. Sempre sou tentado a me meter em
confusão por causas delas. Acho que sou um dos escolhidos da lista dos caras
que foram parar embaixo da ponte por causa de mulheres. Mas... fazer o quê? O
jeito era encarar todas as encrencas de frente, afinal, aventura pouca é bobagem.
Principalmente para Raul Bonfim.
Não faz mal. Sempre soube que meu destino era ser parte da festa. Da festa
chamada vida. E que todo mundo gosta de curtir adoidadamente. Imagina um
sibarita de primeira como eu, então? Faço parte da festa. Gosto da festa. Gosto
do sibaritismo. Acho que já passei por várias encarnações sempre apavorando
muito. Então vamos lá, Don Raulzito, vamos encarar mais uma aventura das
boas? Vamos nessa então. Então vamos!
Claro que ela sabia o caminho e estava fingindo de desentendida. Eu não
precisava ser nem um pouco inteligente para perceber o que ela queria. Se eu
entrasse no carro, tudo estaria resolvido. Foi o que fiz. Para quem estava
andando de gaiato, ganhar uma carona, de mercedes, e ainda por cima, de uma
baita gata, uma princesa, até que não era de se pensar duas vezes.
Principalmente num Domingo feio, cinzento e dia de finados, para variar. A
sorte existe, mas para poucos. E ela estava me procurando. Ainda bem! Amém!
- O que você vai fazer na Avenida Paulista, a essa hora?
- Comprar cigarros. - Respondeu ela, com um sorriso cheio de charme e
gracejo, para mostrar que gostava de ser bonita e sexy e despertar desejo em
alguém.
- Cigarros?! Essa é demais! Essa foi boa! Com tanto bar por aqui?
- É que o cigarro que fumo, só tem lá.
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- E que cigarro é?
- Maconha.
- Maconha? Você fuma isso?
- Não. Mas estou com vontade de experimentar. E você, já fumou?
- Só uma vez.
- Gostou?
- Ah, sei lá. Não tinha gosto de nada.
- Quer experimentar novamente comigo?, - disse ela, passando a mão no meu
rosto.
- Hoje?
- Agora.
- Ah não! Deixa pra lá. Talvez outro dia. Vamos falar de coisas melhores.
Ela estava toda de branco, como eu, pra variar. Acho que dia de finados e ano
novo, todo mundo se veste de branco. Só que eu gosto todos os dias. E adoro
mulheres que se vestem de branco. Principalmente se for um modelo largo e
comprido. Claro que não dispenso uma gatinha de minissaia e pernas grossas,
mas prefiro vestido branco e bem rodado. Ela era uma morena bronzeada de
sol. Realmente ela era um morenaço para fazer inveja a qualquer estrela de
televisão. Botava todas as tais de Sanyas Braga e Marcias Porto da vida no
bolso brincando. Além de ser bonita pra chuchu, ela tinha umas pintinhas no
peito e nas costas. Um sorriso charmoso com os dentes lindos e brilhantes,
parecendo o meu sorriso charmoso e conquistador. Usava uma fita de pano
enrolada nos cabelos, que além de deixá-los mais bonitos, era o maior barato.
Seu corte devia ser um tipo de fio reto repicado, sei lá, nunca entendi de corte
de cabelo de mulheres. Atrás era comprido e encaracolados. Uma graça. Sua
cor era perto do ruivo-escuro ou acaju, sei lá. Só sei que parecia com cor de
sangue escuro. Adorei. Um metro e oitenta, alta pra burro. Sorte minha. Adoro
mulher alta. Parecia que ela tinha tudo que eu gostava. E tinha mesmo. Era alta,
bonita, parecia ser inteligente, parecia não, era inteligente mesmo. Dava para
sacar isso na horra. Muito charme, e classe mais ainda. Sem falar no carrão e
muito dinheiro, que eu nem tinha pensado nisso. Achei a mulher dos meus
sonhos. Pensei. E não errei. É ela! A minha Rebeca. Eu sou o seu tão sonhado
Isaac. Dessa vez, finalmente, parece que deu certo. Tomara. Oxalá!!
Em todos os meus trinta anos de brincadeira com a vida, nunca havia sido pego
de surpresa. Porra, eu estava tenso. Começamos a conversar e ao invés de eu
levar a coisa para o lado da ironia e brincadeira, comecei a ficar desconfiado e
com medo. Cabreiro. Muito cabreiro. O que será que está acontecendo? Nunca
tive isso antes. Nunca senti uma sensação dessa. Fiquei nervoso pra burro, mas
não queria deixar que ela percebesse. Sou péssimo ator. Ela percebeu tudo. A
má impressão sempre joga areia na jogada. Mas era verdade. Eu estava cego, ou
sei lá o quê. Até parecia que eu estava sendo possuído por uma coisa estranha.
Um feitiço ou mágica. Dizem que o cupido tem vários sintomas quando chega.
Comecei a suar frio. Parecia até que quanto mais a bela me seduzia com seu
olhar de quem sabia o que estava fazendo e o que estava acontecendo, mais
eu caía no seu laço. Feito um gaiato. Aposto que o que ela queria, conseguiu,
pensei. Só que não parava por aí. Era certo que ela tinha me fisgado. Fiquei
com medo de que ela estivesse querendo brincar de viver. Viver uma aventura.
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Cara para isso, parecia que ela tinha de sobra. Porra, havia jurado para mim
mesmo, que não me embarcaria mais numa canoa furada. E de repente,
encontro alguém, por puro acaso, de graça, que acaba me descontrolando
emocionalmente.
Essa pantera mexeu com meus instintos e abalou meu senso emocional. E o
pior. A safada sabia disso. Continuei agitado e nervoso, mas tentando disfarçar
um pouco. Não seria agora que eu pagaria pelos meus trinta anos de pecados.
Não mesmo. Andamos alguns minutos calados. Fiquei na minha. Mas não
durou muito tempo nosso silêncio.
- Qual é o seu nome?, - ela perguntou, com cara de curiosa e muito charme.
- Por que quer saber?
- Sei lá. Não posso?
- Não vejo motivo. Já que provavelmente nunca mais nos veremos.
- Por que acha que não tornaremos a nos encontrar? Você não gostaria?
- Depende.
- Depende de quê?
- De você. - Respondi com uma carinha de inocente.
- De mim? - Aí ela me deu um sorriso gostoso. Meu coração bateu forte. Dei
um suspiro de alívio e me enchi de esperanças. E ela continuou. - E por que
de mim?
- Será que você gostaria de me encontrar? De sair comigo?
- Aqui está meu cartão. Vou pensar. Depois te dou a resposta. Ah, meu
guiazinho, já estamos na Avenida Paulista. Ponto final para você. Muito
obrigada pelo favor. Até a próxima vez, - Se é que vai haver próxima vez,
pensei, - e telefone para mim, se não tiver nada melhor para fazer.
Não. Não podia acreditar no que acabava de acontecer. Ela encostou a droga do
carro na calçada, debaixo de um puta prédio, que dava a impressão de que ia
cair na cabeça da gente, acho que era o museu de arte, sei lá. Desci da porcaria
do carro, a filha da puta, mais tarde disse isso a ela, me jogou um beijo e
zarpou, olhando pelo retrovisor interno. Ela quase morreu de gargalhadas,
quando me viu andando de costas e atropelar uma senhora grávida. Por pouco
não caio no chão e mato a mulher de susto. Pedi desculpas, acho que pedi, não
me lembro direito. Continuei caminhando de costas, sem direção. Depois entrei
no espaço vazio do museu. Ainda a vi dando seta para contornar na primeira
esquina e retornar para a zona sul. Fiquei ali, de costas para a rua, estático, com
o cartão na mão e a placa do seu carro gravada na memória. RB - 0102. Porra,
enlouqueci. Duas coisas ao mesmo tempo. Isso era de enlouquecer qualquer
um. RB - 0102. Sabe o que isso significa? RB, são as minhas iniciais. Raul
Bonfim, e 01.02. é o dia do meu aniversário. Acho que ainda não falei. Mas é
isso aí. Nasci no dia 01 de fevereiro. Até parecia uma afronta para mim, pô. Ou
então eu estava sendo perseguido. Nunca guardei nenhum cartão de ninguém.
Rasgo todos, como fiz com aquele do tal de Daniel, que me convidou para
fazer umas fotografias como modelo, mas esse, eu fazia questão de segurar com
as duas mãos e guardá-lo a sete chaves.
No canto superior direito, estava o nome da empresa. Mais abaixo, no centro,
estava seu nome em letras de forma: KAREN MELLÃO. Um pouco mais abaixo
do nome, sua função, em letras pequenas: Diretora Presidente, e finalmente o
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endereço, ao lado esquerdo abaixo. Havia uma porrada de endereços de
escritórios pelo Brasil inteiro. Ela era Diretora-Presidente e herdeira da maior
corporação imobiliária do País. A única empresa de planejamento, construção,
administração e vendas, num só grupo, que continha mais de dez empresas ,
quinze mil funcionários e sem nenhum concorrente direto para ameaçar a
disputa de mercado. Seu pai, único acionista do grupo, morreu e deixou a
direção para ela, que era filha única, além de sortuda.
Continuei ali parado, feito uma múmia. Aliás, nisso eu era bom e tinha muita
prática. Eu era Bell Boy. E ficava estacado como uma múmia no horário de
trabalho. Fiquei com o cartão na mão, olhando para ele. Não acreditando no que
estava acontecendo comigo. Acho que sou um bocado fraco. Eu só não. Todo
mundo. Hoje quando ouço alguém contar papo e dizer que é machão, saio de
perto. Logo eu que sempre achei que tinha o coração de perda, que era durão,
que não tinha sentimento emocional e tal e coisa. Caí feito um patinho. Chegou
um cara perto de mim e começou a contar uma história da carochinha. Nem
esperei o imbecil terminar, meti a mão na carteira, tirei uma nota qualquer e dei
para o moribundo, que arregalou um baita olhão e ficou olhando para a nota.
Pela maneira que ficou, provavelmente deveria ser a maior que já tinha
recebido em sua vida de mendigo, ou sei lá o quê. Acho que era hippye ou coisa
do tipo, porque o safado estava todo sujo, cabeludo, barbudo e fedorento. Ele
saiu e alguém chegou por trás e me vendou os olhos.
- Está viajando garoto? Você ainda nem fumou e já está viajando?
Adivinha quem era? Mais nem! Virei-me e vi a pilantra. Meu coração quase
parou. Dei um suspiro de alívio. A filha da puta retornou na primeira esquina e
ficou me vigiando, sem que eu percebesse. Quando olhei dentro dos seus olhos
grandes e verdes, fingi que estava passando mal e joguei-me em seus braços.
Fui conduzido, pendurado em seu pescoço, até o carro. Não falei nada. Ela
ligou a droga do carro e zarpamos, sei lá para onde. Joguei a cabeça para trás,
encostando no banco alto e continuei fingindo que estava doente. Mas ela não
era burra e nem nada, estava entendendo tudo e gostando, é claro. Dez minutos
depois entramos direto na garagem de um baita edifício, numa alameda cheia de
árvores, sei lá em que bairro era, mas sabia que era nos Jardins. Logo na
entrada, no frontíspicio, a faxada do prédio, havia a marca registrada da família.
Estava escrito
em enormes letras metálicas douradas: EDIFÍCIO
COMENDADOR A. MELLÃO. Na garagem ela desceu, deu a volta, abriu a
porta do carro e me abraçou. Pensei e queria, que ela fosse me retirar do carro
sozinha e nos braços.
- Pronto meu gatão já chegamos.
Fingi que não estava ouvindo nada e continuava de olhos fechados. Ela chamou
de novo e me abraçou. Desci meio cambaleando e com sua ajuda, fomos
abraçados até o elevador social. Eu continuava de cabeça caída, só que agora,
para baixo. Entramos acompanhados de um casal que ficou nos observando.
Deveria ser amigo, ou pelo menos a conhecia, acho eu. Apesar de ser amigo,
ou pelo menos conhecê-la e apesar de ser meio xereta, o estranho se procedeu
de maneira simpática. Agiu com urbanidade. Apertou o botão do seu andar e
ameaçou perguntar para qual iríamos. Mas a minha Rebeca, que se chamava
Karen, foi mais rápida e apertou o botão do último andar. Depois agradeceu ao
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casal com um sorriso. Saímos da droga do elevador e entramos numa sala
grande pra burro. Quando ela abriu a porta e pus-me naquele monumento, juro
que fiquei boquiaberto e assustado. A sala vip do hotel em que eu trabalhava
era um bocado sofisticada e cheia de paparicações, mas igual àquela sala em
que eu entrei, em que eu estava, eu duvido muito que exista outra, pelo menos
parecida. Grande pra chuchu, cheia de samambaias e todo tipo de plantas
penduradas pelas paredes e tetos. Estantes cheias de livros e até um estúdio de
som com discos, CD,s e Discos laser espalhados por toda parte, parecendo uma
discoteca com pista de dança e tudo mais. Uma parafernália de objetos raros. A
maioria importada de outros países. Estatuetas egípcias, conchas do Pólo
Norte. Cavalo de bronze, elefantes de marfim da china, pequenas aves e outros
bichinho - que eu nunca havia visto - embalsamados. Pedras e cristais das
mais variadas cores e tamanhos. Vários quadros famosos de pintores como
Picasso, Di Cavalcante, Salvador Dali, Tarcila do Amaral, Tarso Pancera,
Marina Villela e mais uma cambada que não conheço. Até o Toulouse
Lautrec. Todos em molduras de alumínio, vidro, madeira e outros tipos. Tinha
quadro até sem moldura. Uma decoração à la século vinte e um, com tapeçaria e
cortinas em ângulos geométricos tipo guerra nas estrelas. Aquilo é que eu
chamo de bom gosto pela arte. Poltronas de couro cru curtido espalhadas pelos
cantos e outra no centro da sala. Um barzinho na lateral cheio de garrafas e
copos pendurados de todo tamanho, que me deu vontade de ficar por perto dele,
e logo foi para lá que me dirigi, sem pedir licença. Mas fui contido de beber e
levado para outro lugar. Mais para a direita começava outra sala, que deveria
ser a sala de jantar, que fazia um ângulo de noventa graus com a cozinha,
dividida por uma saleta menor, a copa. Na sala de jantar havia uma mesabalcão grande pra burro, em forma de ferradura com cadeiras de balcão. Ao
lado, outro bar. Mas o que chamou minha atenção foi a adega. Perdão. Mas
acho que nem Bukowski, o maior beberrão de vinho do mundo, já tivera tanto
vinho como havia naquela adega. Marcas de vinho do mundo inteiro. Sou
bebum profissional, mas eu teria que beber e tomar banho de vinho uns três
anos para botar fim em tudo aquilo.
A pilantra morava sozinha, com quatro empregados, no maior e mais luxuoso
duplex de São Paulo. Tinha de tudo. Piscina e sauna na cobertura e tudo.
Solarium privativo, onde se podia tomar sol totalmente pelado. E mais uma
porrada de coisas que ricos podem ter. Fiquei meio assustado quando ela me
levou direto para seu quarto, ao invés de me oferecer um drinque na sala.
Botou-me na cama redonda e grande, cheia de espelhos coloridos e
transparentes, e sentou-se ao meu lado. Fiquei
deitado respirando
vagarosamente de olhos fechados. Ela apertou um botão no telefone do quarto,
existia aparelhos por todo canto, nos quartos, na sala, cozinha e até nos
banheiros.
- Maria, faça-me um favor. Traga um chá de rum bem quente, rápido.
Desligou o fone e dois minutos depois a criada bateu na porta. Ela colocou
um travesseiro em baixo da minha cabeça e depois saiu correndo para pegar o
chá. E eu continuei ali, sempre me fingindo de neném que tinha levado umas
palmadas no bumbum. Karen voltou com o chá de rum cheiroso.
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- Pronto, meu gatinho. Beba que o neném ficará bom, logo. Chá de rum é
muito bom; faz até o coraçãozinho bater normal.
Peguei a xícara e fiquei olhando para ela, antes de levá-la à boca.
- Pode beber sem medo que não é veneno. Não quero que você morra. Acho
que ainda vou precisar de você.
Levei a droga da xícara de chá à boca e tomei em apenas dois goles. Hum!
Gostei. Até que não era ruim o chá de Rum. Coloquei a xícara sobre a mesa de
cabeceira e fiquei olhando para ela.
- Sente-se melhor agora? - Perguntou Karen.
- Por que você fez isso comigo?
- Isso o quê?
- Você sabe.
- Oras! Não fiz nada demais. Só estou ajudando você.
- Ajudar em quê? Ajudar eu ficar mais louco por você, do que já estou?
- Isso passa.
- Espero. Mas será que passa mesmo?
- Não seja tolinho. Relaxe...
- Relaxar? Essa é boa.
- Você deve estar bravo comigo. Ainda nem me disse seu nome. Quem é você?
- Sou um marciano. Acabo de chegar de marte, para ser atropelado e ter o
coração esmagado por uma droga de uma terraquiana muito bonita e que sabe
conquistar e possuir sua presa com a maior naturalidade do mundo.
- Viva! Como você fala difícil e bonito. Será que pelo menos eu poderia saber o
nome desse marciano bonitinho que se encontra perdido aqui na terra? E ajudálo em alguma coisa?
- O seu marciano não vai ficar muito tempo, sei lá até quando, aqui na terra.
Mas tem a honra de se curvar diante de sua ama e se apresentar: RB - 0102.
- É assim que te chamam lá em Marte? Que puta coincidência. A placa do meu
carro é a mesma sigla e número. E o que isso significa na minha língua?
- Raul Bonfim. Nascido no dia primeiro de fevereiro.
- Que ótimo! Você é do signo de aquário. Eu também sou. Nasci no dia
quatorze. Mas você guardou a placa do meu carro na memória. Por que fez
isso?
- Para quando voltar para Marte, lembrar sempre de uma terraquiana.
- Por que você não fica mais um pouquinho aqui na terra comigo? Por favor,
fique mais um pouco fazendo companhia para mim, meu marcianinho. Ah,
vai, faça isso por mim. Sou tão solitária.
Terminou de falar e começou a apertar minhas mãos e me fazer carinho, como
se eu fosse um carneirinho ou um marcianinho de verdade. Percebi que a
coisa estava começando a ficar boa, graças à minha tática. Inteligência foi feito
para ser usada, pensei. Além do mais, existem cinco armas para um sujeito
conquistar uma mulher. A mulher mais linda e interessante do mundo. Qualquer
mulher. E a mulher para conquistar o homem que ela quiser. Em primeiro lugar
dinheiro. E eu era um duro. Fama. Sem cogitação. Beleza. Aí, deixo para elas
decidirem. Inteligência. O que vocês acham? E finalmente sorte. Parece que
com essa estou me dando bem. Apesar de saber que ela também tinha gostado
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de mim, caso contrário nem teria me dado carona. Mas para me precaver, teria
que continuar representando.
- Infelizmente não posso. Nós, os ET’s - Extra-Terrestres, somos ultra
sensíveis e alérgicos a sentimentos. Jamais poderemos nos envolvermos com
seres de outras galáxias. Especialmente seres humanos e ainda por cima, com
mulheres muito bonitas e importantes, como você.
- Ah! Que nada! Esqueça essa droga do seu planeta com suas leis e
regulamentos ridículos e babacas. Fique sossegado e calminho. Prometo tomar
conta e cuidar de você. Me responsabilizando por qualquer coisa. Dou minha
palavra de honra.
Quase perguntei para ela quanto valia sua palavra, mas depois desisti. Preferi
pensar nela, se já tinha alguém cuidando dela. Não. Toda mulher bonita tem
sempre alguém. Namorado, noivo, marido ou amante. Não deve ter, tomara que
não, pensei. Não perguntei nada. Além de charme, fiquei com dó, porque ela
falava com uma expressão de apaixonada. Eu não ia estragar isso. E sem que
eu percebesse, ela curvou-se para me beijar. Ficamos ali um bocado de tempo
abraçados e nos beijando e ela me fazendo todo o carinho do mundo. Depois de
algum tempo, quando já tinha alisado e admirado todas as partes do meu corpo,
arriscou uma pergunta.
- Todos os marcianos são peludos como você? Aqui na terra existem poucos
homens com tanto pêlo assim.
Nesse momento ela se levantou e me pegou pelo braço, sentou no chão. Deitei
no carpet felpudo e macio, com a cabeça no seu colo. Ela ficou fazendo
cafuné gostosinho e passando a mão por todo o meu rosto. Contou-me toda a
sua história. Disse que era uma mulher muito feliz, apesar da grande
responsabilidade que tinha. O que ainda lhe faltava era um grande amor.
Considerei-me candidato na hora. O homem da sua vida. O seu isaac. Ela me
pegou. Eu era o seu Isaac. Eu sabia disso. E ela também sabia que eu era quem
ela tanto procurou.
Ela me contou todas as suas alegrias e frustrações. Disse porque ainda não
tinha se casado, apesar dos seus trinta anos de idade, não estava arrependida
disso. Acreditava que ainda encontraria seu outro pedaço da moeda que
estava com alguém e completaria o seu elo do amor.
- Sinto, espero, torço e quero, que a qualquer momento alguém vai chegar
para mim e me dizer: “Tenho comigo um pedaço de uma moeda que significa
para você, algo de grande importância. Este talismã aqui. Quer possuí-lo?
Troco por uma coisinha de nada’’. E eu responderei: “E o que é que você quer
em troca?” - “Pouca coisa. Apenas uma frase. Uma frase verdadeira. Tão
verdadeira, que saia do fundo do coração.” - responderá, o meu Isaac.
- E que frase é essa?, - quis saber ela.
- Não posso dizê-la assim, sem mais nem menos. Só podemos dizer essa
frase quando realmente temos certeza de que é verdadeiro o que
sentimos.
- Porra, e como é que vou saber se não está blefando?
- Para dizer essa frase não há como blefar. Porque alguém só a diz quando
tem sentimento. Um sentimento muito forte. - Respondeu la.
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-
E que tipo de sentimento muito forte é esse?. E que tipo de sentimento é
esse? Por acaso posso saber? - perguntei, segurando sua mão e olhando
dentro dos seus olhos verdes da cor do mar.
- Amor. - Respondeu a linda morena que tinha enfeitiçado meu coração.
E se esse cara te enganar? E ao invés de te dar um pedaço verdadeiro,
der justamente o pedaço que falta na sua moeda e ele for falso? Você não tem
medo? O mundo está cheio de trapaceadores. De fakes.
- Não. Já tentaram me dar a outra parte, mas todas falsas. E não foi uma
só vez. Acontece que sou uma exímia conhecedora de pedaços de moedas.
Tanto falsas como verdadeiras. Por isso, jamais me trapacearão. Tenho certeza.
É por isso que não tenho medo dos trapaceiros, malandros e aventureiros.
- Juro que eu gostaria de encontrar essa droga desse pedaço, desse caco da
moeda que falta para completar o que está faltando na sua. Então é por isso que
você usa essa gargantilha de ouro com esse pingente em forma de meia lua? É a
sua metade da moeda, talismã, do amor?
- Mas você pode encontrá-lo. Talvez em bem menos tempo que você pensa. E
nem precisa correr para procurar. Quando tiver e se tiver que encontrá-lo, ele
chegará sem que ninguém force a barra. Olha aqui. veja se não é uma gracinha
de moeda. A moeda do amor. A meia lua que representa o amor. O dia que você
encontrar a sua cara metade, o amor da sua vida, aí, você andará com a sua
metade, a metade que completa a outra parte de alguém que o ame de verdade.
Sou louca para encontrar por aí, a minha outra metade. Meu elo do amor. Acho
que estou à procura. É por isso que uso este pingente de ouro. Uso, apesar de
não ter encontrado a outra metade que completa a minha parte, porque sei que
um dia encontrarei a minha outra cara-metade. Mas não tenho pressa. O que
tiver que ser da gente, a gente acaba encontrando. Pode apostar nisso.
- Só que não vou ficar esperando de braços cruzados, vou sair hoje mesmo por
aí, à procura desse maldito caco de moeda, que você julga ser a coisa mais
sagrada do mundo. - Eu disse, olhando para ela com uma cara de inocente.
- Está bom. Vou torcer para que você o encontre com facilidade.
- Obrigado. Acho que vou precisar mesmo de muita sorte. E um pouquinho de
torcida não vai atrapalhar. Desconfio que vou encontrá-lo logo.
Mais uma vez eu acertei na mosca. Karen contou-me tudo a seu respeito e de
seus romances frustrados, tumultuados e fracassados. Até parecia alguém que
eu conhecia. Eu mesmo. Disse que já estava cansada de ser paparicada por
todos os homens do meio e no ambiente de trabalho. Clubes fechados ao
melhor estilo de privê da sacanagem de ricos. Salas VIPs de reuniões com
empresários, banqueiros, diretores de grupos de aplicações e investimentos,
ministros e funcionários de alto escalão do governo. Na maioria das vezes,
eram todos xeretas, machistas e chantagistas, como aconteceu uma vez, um
ministro da fazenda que disse que só daria uma concessão, se ela fosse para
cama com ele.
- Todos os caras, mesmo os mais educados, se fazem passar por gentis para
tirarem algum proveito. Sempre com espírito e mania de grandeza. Só porque
são ricos, donos de iates, ilhas, castelos, parques industriais, aviões, jatos e
dinheiro que nem todos os ladrões do mundo acabam, pensam que podem
cortejar e fazer da gente gatos e sapatos. Mas comigo eles sempre caem do
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cavalo. Que vão fazer de idiotas as mulheres burras, que não podem ver o
cheiro de gasolina, e nem olham se o camarada é japonês, judeu, negro,
árabe ou coisa do tipo. Menos comigo.
- Foi por isso que você nunca quis se casar? Medo de ser transformada em
Amélia?
- Mais que isso. Não nasci para ser dominada e ser uma esposinha.
- Então para dominar? Fazer do marido um pimpolho.
- Não. Apenas para ser amada e respeitada como todo ser humano tem direito a
uma grande paixão.
- Exclusividade? Um marido só para você.
- Pode ser. Uma vida romântica e um marido de verdade. Um um verdadeiro
esposo, como Isaac foi para Rebeca, que se casaram quando ele tinha quarenta
anos de idade, para serem felizes para o resto da vida.
- Um príncipe?
- Nada de príncipe encantado.
- O que então?
- Liberdade. Liberdade com responsabilidade. Ser uma pessoa livre para tudo
na vida, como sempre fui e sou. Livre para pensar, amar, trabalhar, curtir a vida
e viver como ela é. Sabe por que nunca me casei? E você acha que moro
sozinha neste monstro de apartamento por quê? Porque quero preservar minha
liberdade e paz total. Minha mãe mora sozinha numa puta mansão no
Morumbi. Eu poderia morar com ela, mas não quero justamente para curtir
minha liberdade. Mesmo antes de meu pai morrer eu já morava aqui.
- Você não se sente solitária ?
- Claro que em relação a uma boa companhia ou até a um grande amor, sinto
solidão. Mas em relação à vida e a pessoas comuns, principalmente a homens
metidos a garanhão, sinto-me a mulher mais livre do mundo. Posso garantir que
não sinto falta de ninguém.
- E convites para casamento, já apareceram muitos? Algum irrecusável?
Muitos. Principalmente irrecusáveis, para outras mulheres. Convites de
casamento multi-milionários foi o que não faltaram. Não faltaram e não faltam.
Aparece toda hora. É só dar um grito, chove de gaviões prepotentes. Só que
não sou nenhuma debilmental para vender minha liberdade para qualquer
cafajeste, que pensa que é o dono do mundo e acha que pode comprar o que
bem entender e der vontade. Até mesmo um ser humano. Primeiro, que
dinheiro não é o meu problema maior. Se quisesse, eu poderia comprar quantos
maridos eu desejasse, como muitos homens fazem com as esposinhas que têm.
E como muitas mulheres fazem e fizeram. Mary Stwart que o diga. Já pensou
se eu resolvesse montar um “harém’’ de maridos? Poderia colecionar maridos
para o uso próprio e para emprestar para as amigas. Desde as mais variedades
de espécies e tipos, como: baixinho, cabeçudo, japonês, negro, loiro, careca,
cabeludo, gordão comilão para eu fazer carregar pedra na cabeça, depois jogar
na piscina para ouvir o barulho e as bolhas de água. Só que não é isso que eu
quero. Meu dinheiro, apesar de ser bastante, não serve para nada disso. Pelo
menos para comprar marido não serve. O amor que quero é invendável. Não
existe à venda em nenhum lugar. Conheço tanta gente pobre que é amada. O
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amor existe para todo mundo. Minha cozinheira sai todo Sábado com seu
namorado e vive me dizendo que são felizes porque se amam. Isso não é lindo?
- Então se você quisesse compraria um marido?
- Você disse a palavra certa “Se” quisesse. Eu já disse, se eu quisesse
compraria um quartel de homens. Aí é que está a grande jogada. Só que
isso não faz meu tipo. Nunca vou usar esse tipo de jogo. Jogar na base do
jogo sujo, na base da chantagem. Como fazem muitos homens com as
mulheres ingênuas e burras. Objetos sexuais. Robôs condicionados a
fazerem sexo. Apenas trepar sem sentir nada, além de gozar como macaco
ou bode. “Vem Zé, venha, vamos dar uma trepada. Estou com vontade”. Já
pensou se fosse fácil assim? Pô, o que quero é ser amada loucamente, de
verdade. Quero amor com sabor de paixão. Com preocupação, ciúmes,
muito carinho. E na cama, quero fazer AMOR e não sexo brutal. Não
quero alguém que fique o dia inteiro buzinando no meu ouvido e falando
só em bilhões de dólares, em negócios de faturar fábulas de lucros. Como
a maioria dos namorados que já tive o desprazer de ter.
- Viva! Estou adorando. Parece que você é bem mais sensível do que eu. Estou
adorando a sua maneira de falar e pensar. Acho que é bem por aí que a gente
tem que encarar a vida e tratar as pessoa honestas. Com muita dignidade.
Gostaria de ter certeza de que tudo isso nunca mudaria na sua cabecinha.
Gostaria muito que você nunca mudasse de idéia e continuasse pensando
sempre assim. Porque se continuar pensando assim, tenho certeza de que
encontrará seu outro pedaço da sua moeda, muito antes do que espera. Estou
muito feliz por ter te conhecido. Sorte. Puro lance de sorte minha ter saído a pé
para dar um passeio despretensioso. Juro que a partir de hoje vou começar a
encarar a vida de outra maneira. Porque, finalmente conheci alguém que
realmente me fez entender o sentido da vida. Não quero fazer média e nem
nada, mas você tem um coração muito melhor do que muita gente por aí, que
se diz ser pacifista e assistente disso e daquilo. Obrigado, Karen, por ensinarme coisas muito bonitas. Você está de parabéns. Conseguiu me sensibilizar.
- Tudo no mundo é bonito, basta que haja amor e carinho. O amor existe, só que
as pessoas não sabem amar. A humanidade é muito hipócrita.
Ficamos alguns segundos nos olhando e calados. Até que ela tomou iniciativa
e se abaixou para me beijar. Foi um beijo demorado com sabor de medo e
aventura. Para mim, paixão à primeira vista, emoção, preocupação. Era tudo
ou nada. E tudo passou por dentro da minha cabeça naquele momento. Mas
foi acima de tudo, o começo de um grande e verdadeiro romance, que pela
primeira vez, tinha tudo para dar certo. E deu. Afinal, eu mereço. Até que
enfim, senhor Bonfim.
- Venha, quero te mostrar meu apartamento. Tudo que há aqui foi conseguido
com muito carinho e esforço. Está vendo esse cara aí na parede? Era meu pai.
Eu o adorava e foi graças a ele que fui parar na presidência da companhia.
- Porra, seu apartamento é puro luxo. Uma luxúria só. Uma verdadeira loucura.
Como consegue morar sozinha aqui? Não tem medo de vizinho tarado?
- Tudo aqui é louco. Começando pela dona. Mas não fico com medo de vizinho
xereta e tampouco tarado. Minha segurança é fortíssima e eficiente. Tudo que
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eu encontro por aí e gosto, eu compro e trago para cá, para decorar e enfeitar
meu apartamento.
- Gostou também de mim?
- Ah!, é, seu safadinho! Adorei ter te conhecido e acho que vou adorar ainda
mais, mas jamais poderei te comprar com dinheiro, - disse ela, se pendurando
no meu pescoço para me beijar mais uma vez. Só que dessa vez foi mais
demorado e sem preocupação. Esperei terminar o beijo e dei um sorrizinho
meio sacana e emendei:
- Mesmo se eu encontrar a outra metade da sua moeda, que forma o elo do
amor, mesmo se eu conseguir encontrá-la, qual será minha recompensa?
- Overdose de amor. Será pago e muito bem pago em grande dose de amor.
Será que isso não basta? Mas lembre-se sempre. O amor não tem preço que o
pague. Amor só pode ser pago com amor. Amor com amor se paga.
- É. Pensando bem, acho que sim. Basta, basta sim. E eu também não sou muito
exigente.
Respondi com um beijo e com uma piscadinha de olho esquerdo à la James
Bond. O resto, era questão de diplomacia. Era deixar rolar para ver de que lado
o sol nasce, porque o amor já começava a nascer e a onça estava com muita
sede.
CAPÍTULO DEZOITO
Karen e eu passamos o resto do dia juntos. Nesse mesmo Domingo, não fazia
mais do que cinco horas que tínhamos nos conhecido, e saímos para um
passeio. Aproveitamos a oportunidade e jantamos fora. Nada de sugestões
hoje. Deixei que ela mesma escolhesse o restaurante. Com certeza ela
conhecia muitos, os melhores, talvez. Não opinei contra, é claro, Não, até
quando ela não inventou de jantar no restaurante francês do hotel onde eu
trabalhava, de Bell Boy, ainda por cima.
- Não paixão, - é mesmo hein, estou sempre chamando todo mundo de
paixão; até as verdadeiras - lá não. Não estou muito a fim de comida francesa.
Que tal a gente experimentar comida típica do Paraná? Afinal, estamos no
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Brasil, vamos dar uma colher de chá para nossos compatriotas e hermanos.
Barreado acho que é uma boa.
- Ah, não benzinho. Você não concordou que eu escolheria o restaurante? Trato
é trato. Palavra de príncipe não volta atrás. Meu gatão!
- Pois é, eu sei. Acontece que não gosto nem um pouco desse hotel. Odeio tudo
que está ligado a ele. Será que dá para você me entender?
- Ué, não vejo por quê não gostar de um hotel, ainda por cima um hotel de
luxo. Ou você tem algo contra luxo e mordomia? A anfitriã aqui sou eu.
- É isso mesmo, ademais, é uma história muito grande e complicada. Outro dia
eu te conto com mais calma e detalhes.
- Ok, está bem. Você me convenceu. Onde é que vamos então, que não seja
comida caipira e restaurante que você odeie?
- Sei lá. Sempre fui doido para jantar no restaurante que fica no topo do edifício
mais alto da cidade, com vista panorâmica e tudo mais.
- Eu conheço. Você quer ir lá? É um lugar ótimo. Você vai adorar.
- Acho que sim. Por mim tudo bem. Além do mais, o que eu quero não é só
comida boa, e sim curtir você, como manda o regulamento dos direitos
humanos. Não foi você mesma que disse que o importante é a gente estar de
bem com a vida e curti-la do jeito que ela é, e coisa do tipo?
- É. Pode ser. Mas é exatamente isso que tem que ser. Ser feliz, inclui curtir
todos os bons momentos e delícias que a vida nos proporciona. Eu costumo
desejar felicidade até a eternidade e pra lá dela. Quero para os outros o mesmo
que quero para mim.. Hoje por exemplo, quero comemorar nosso encontro e
brindar o futuro, - respondeu ela, finalmente com um beijo e um tapinha na
minha nuca.
Não entrei em detalhes, mas aposto que ela ficou sem entender o porquê de eu
não querer ir ao restaurante do hotel, que ela sugeriu primeiro. Mas a bela não
perdeu por esperar. Acabou descobrindo sozinha. Sem querer, mas descobriu.
Ainda bem que foi na hora certa. Na hora em que a gente já estávamos
apaixonados um pelo outro, ou mais que isso.
Estávamos juntos em meu apartamento, ela sabia onde eu morava e estava indo
sempre lá. Mas não era xereta e não estava nem um pouco preocupada com o
que eu fazia ou deixava de fazer. Como me disse antes, não devia satisfação
para ninguém. Mesmo assim, não sabia onde e em que eu trabalhava. Quando
ela perguntou eu apenas disse que trabalhava por aí. Que ganhava meu pão
honestamente.
Um dia Karen estava no meu apartamento. Já fazia algum tempo que estávamos
namorando. A cada dia eu me encantava mais com ela. E acho que ela também
estava muito feliz e encantada por ter me conhecido. Dava para perceber isso
em seu olhar de mulher sincera e meiga. O amor já tinha brotado para nós. Só
faltava regá-lo e fazer crescê-lo. Ela gostava de ir lá me visitar. Eram dez horas
da noite. Comecei a preparar-me para ir ao meu trabalho. Quando de repente,
ela percebeu e começou a ficar desconfiada. Demonstrou até sinais de ciúmes.
Acho que pensou que eu fosse sair com outra garota.
- Amor, aonde você pensa que vai? Não me lembro de ter combinado de ir a
lugar nenhum. Você sempre fala antecipado onde quer ir.
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- É mesmo? Então aguarde só um minuto e você verá. Ah, amor, você por acaso
se lembra daquele hotel que eu não quis ir jantar lá, no dia em que nos
conhecemos? Sabe qual é ?
- Por acaso conheço. Por que, o que o hotel tem a ver com isso? Posso saber?
- Vamos dar um pulinho lá agora? Sempre tive curiosidade para conhecê-lo. Só
que vou te pedir um favor. Você vai no seu carro e eu vou no meu. Quando
chegar lá, espere-me numa daquelas poltronas espalhadas pelo lobby. Tudo
bem? Você é capaz de fazer isso para seu amorzinho? Jura que faz?
- Claro que faço. Mas não estou entendendo nada. Quanto mistério!
- Não é para entender mesmo, agora. Depois te explico tudo com detalhes.
Agora vamos, senão vou chegar atrasado. Não vá embora antes de eu chegar.
Prometo que não vou fazer você esperar muito tempo.
- E depois para onde iremos?
- Sei lá, para onde for melhor, é claro.
Com uma figura maravilhosa como a Karen, não era justo eu fazer um troço
desse. Cheguei até a ficar com um pouco de sentimento de culpa, mas tinha
certeza de que ela me entenderia. Não errei. Karen se preocupava demais
comigo. E eu tinha uma grande revelação para lhe fazer. Algo extremamente
forte me encorajava a fazer o que eu planejava. Não sei o que era. Apenas
uma única coisa me dava coragem para fazer o que eu tinha em mente.
E foi o que acabei fazendo.
Karen vivia indiretamente tentando arrancar de mim, o que eu fazia para viver.
Sabia que mau caráter eu não era. Se não morava com os pais, não recebia
mesada deles, tinha carro, apartamento, andava na moda como um filho de
burguês, dividia a conta do restaurante, não parecia ser um cara preocupado
com grana. Então que porra eu fazia para viver? Eu não dizia nada e
permanecia sempre místico. E para minha sorte, minha posição era bem
privilegiada. Eu trabalhava durante a noite e sempre sobrava tempo para tudo.
Porque eu dormia pouco. Sempre achei que dormir era perda de tempo. Quando
dormimos não vivemos. Cansei de esperar Karen em seu trabalho, que ficava
num grande prédio na Avenida Paulista. Tinha que ser na Paulista, afinal, ela
é a mais importante Avenida da América, perdendo apenas para a Wall street.
Karen trabalhava no prédio que era a sede própria de sua empresa, o “ GRUPO
MELLÃO”, nele funcionava toda a parte administrativa e comercial da
companhia.
O engraçado é que eu sabia onde ela trabalhava e ela nem sabia o que eu fazia
na vida. Acho que não falei nem se trabalhava ou não. E nem era preciso. Para
uma mulher inteligente como ela, eu não precisava dizer nada. Ela deduzia
tudo. Será? Vamos ver.
Estacionei meu carro perto da entrada de funcionário. Corri para o vestiário,
me fantasiei de múmia com o pinico na cabeça e tudo e subi correndo para o
lobby. Passei bem pertinho da Karen, claro que ela jamais me reconheceria
com aquele uniforme ridículo. Fui direto cumprimentar a cambada dos meus
companheiros, que trabalhavam no período da tarde e que já estavam todos
alvoroçados, feito baguais, para irem embora. Para correrem direto para o
primeiro bar da esquina.
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- Êi, Grego, seu filha da puta, como é que é, já conquistou o coração de
alguma paulistana?, - perguntou o Escorregão, me provocando.
- Não sei. Talvez. Ah, êi, Escorregão e vocês aí, cambada de hienas, estão
vendo aquela moça ali sentada de roupa lilás?
- Sim estamos. O que fez com ela? Já deram uma trepadinha relâmpago?
Perguntaram os imbecis em coro e rindo do meu jeito.
- Mais respeito, cambada de cornos. Ela é minha namorada. Cuidado com o que
falam. Posso até cortar a língua de um mensageiro xereta com um canivete.
Vão duvidando só para ver o que acontece.
Todos deram uma boa gargalhada da minha cara e ficaram dizendo um bocado
de besteiras. Claro que não me importei. Sabia o que tinha preparado para eles
e para todo mundo. Quem ri por último, ri melhor!
- Grego, você continua o mesmo Raul de sempre. Nunca fica mal humorado.
Bom humor não é sinônimo de estar acordado. Acorda cara. Você ainda não
aprendeu que viver é melhor do que sonhar?
- É mesmo? Então preste atenção com quantos sonhos se constróem uma
realidade.
Corri para a recepção - aposto que o Georges, com quem eu estava
conversando, pensou que eu ia dar uma de louco também. Ele não errou por
muito. - Peguei a placa de aviso, aquela que todos os mensageiros “adoravam”
dar o passeio sorteado. Escrevi uma frase com letras bem grandes e saí
correndo e batendo o sininho pelo lobby hiper-lotado de gente. Juro que essa
foi a única vez que fiz questão de dar um passeio gostoso com a maldita
placa. Só que dessa vez não era para chamar nenhum hóspede safado e
nojento e sim para fazer uma declaração. Pela primeira vez na vida alguém no
mundo tinha feito meu coração pedir socorro. Já que era a primeira vez, teria
que ser bem feita, com estilo, com grande estilo, muito estilo; teria que ser feita
de coração e em público. Não importava onde eu estava. Se pudesse, teria
trazido uma faixa bem grande de casa. Como isso não foi possível, vai na placa
mesmo. “KAREN, TE AMO!”. Parei bem na frente dela e fiquei batendo o
sininho. Ela se assustou. Não sabia se acreditava que eu era um mensageiro,
ou na surpresa que eu tinha preparado, com a frase escrita na placa. Ela fez
uma carinha de apaixonada e deixou rolar uma lágrima dos seus lindos
olhos verdes. Balançou a cabeça e pulou no meu pescoço, soluçando de
felicidade. E com a maior naturalidade do mundo, sem se importar com as
pessoas que estavam admirando a cena, disse:
- Meu cachorrão safado, paixão da minha vida, você quase me mata de
felicidade. Sempre te achei o cara mais louco do mundo, mas nunca imaginei
que poderia chegar a esse ponto. E é um louco varrido como você que venho
procurando e quero há muito tempo. Eu te amo também, seu tolinho. Não
precisava fazer nada disso, de qualquer maneira eu ia acreditar em você. Nada
ia mudar. Todo trabalho, quando é aceito com amor, é digno de respeito.
- Entendeu agora por que não quis vir aqui aquele dia?
- Oh, gatinho, não precisa se justificar. Eu te amo e te amaria em qualquer
circunstância. Sabe que você é bonito de qualquer jeito. É bonito até com
essa armadura. Você é um cara digno de muita sorte. Foi o único no mundo a
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me fazer feliz. Porque te amo. Te adoro. Você é a coisa mais importante que
já me aconteceu, nos últimos anos. Te amo seu cachorrão.
Karen ficou toda emocionada. Acho que fiquei mais ainda quando ouvi ela
dizer que também me amava. Eu sabia que ela gostava muito de mim, mas
temia perdê-la. Porra, sabe o que é você amar uma mulher e de repente ela
sentir o mesmo por você? Fiquei em estado de transe. Fiquei eufórico. Ela
começou a me beijar e tirou o pinico da minha cabeça. Coloquei a maldita
placa apoiada com a parte da tábua no chão e fiquei segurando o cabo com a
mão direita. Com a esquerda abracei Karen e fiquei beijando-a demoradamente.
Todo mundo parou para nos olhar. Os mensageiros, os demais funcionários,
todos os hóspedes que jantavam no restaurante do lobby e mais alguns xeretas
que passavam por ali, todos começaram a bater palmas, quando nos viram nos
beijando. Aproveitei o momento histórico para fazer uma confidenciazinha.
- Gostou baby? Encontrei a outra parte da sua moeda, bem antes que a
gente esperava. Pode dizer-me se ela é falsa ou legítima?
- Mais do que isso. É legitérrima. Só que eu sabia que você seria o único no
mundo que a encontraria, desde o dia em que te conheci. Parabéns campeão!
Você merece. Eu tinha certeza de que você seria o premiado. Nunca parei de
torcer por você e nunca vou parar, porque eu te amo muito. Só estava
esperando a hora certa para te dizer e ela chegou. Chegou junto com sua
declaração de amor. Você é pirado. Louco. Crazy. Empate no amor, sorte na
vida.
- Só que eu também sabia disso. Só me faltava coragem para te dizer. Agora
está tudo bem. Você foi a única mulher no mundo que conseguiu arrancar essa
frase de mim. Ainda bem que não errei o alvo. Agora me faça um favor. Pode
voltar para casa, porque preciso trabalhar. Fico aqui até amanhã de manhã, se
eles não me chutarem para a rua. Ligo para você amanhã e passo no seu
trabalho para a gente sair.
Dei mais um beijo na minha princesa Karen e fui guardar a placa, sem apagar a
frase nem nada. Karen atravessou o lobby sozinha, olhou para os outros
mensageiros, deu um sorriso para eles e pisou no tapete mágico que abriu a
porta automática. Do lado de fora, enquanto aguardava seu carro virou para
mim e acenou com a mão, mandando-me beijos. O manobrista trouxe seu
carro, ela entrou nele e saiu escafedendo. Quando meus companheiros, os
mensageiros safados e mais o Georges viram o mercedes conversível e o
charme com que Karen entrou nele, olharam para mim e disseram em coro:
“UÁÁUUU!!! Cara. Você pirou de vez.
- Êi Escorregão, pare de olhar para minha mulher, cara. Não sabe que sou um
bocado ciumento?
- Você é louco, isso sim. Sabe o que os caras vão fazer amanhã? Vão te meter
no cu da rua. Gostaria de estar por perto na hora que os sacanas forem falar
contigo. A Enrabada vai ser tão grande que vai sair sangue.
- E daí? Não nasci aqui nessa merda de hotel. Foda-se. Pouco estou me
importando. Tudo que sempre fiz, fiz sempre com muito tesão. Porque sem
tesão não há solução. Não vou cagar de medo agora.
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Todos os meus companheiros de trabalho, mensageiros, recepcionistas,
e até os garçons do restaurante vizinho me aplaudiram de pé, na minha atitude.
O mesmo não aconteceu com a diretoria do hotel. Eu já esperava.
Entrei na sala do diretor. O cara era um sujeitinho baixo. Tinha uma barba
ridícula. Usava uns óculos de armação redonda, dessas à la intelectual. Era
todo metido a intelectual e coisas do tipo, só que de intelectual não tinha nada.
Porque nem educação o veado tinha. Quando falava, mais parecia um cavalo
bravo do que gente, só faltava ter rabo. Coice era sua especialidade. Entrei na
sala do animal, como estava ficou. De cabeça abaixada. Nem me convidou para
me sentar. Fiquei de pé, até que ele se tocou, depois de muito tempo.
Na noite anterior, depois do meu romance com a Karen, o gerente de serviço,
um tal de Lael Gonzalez, o imbecil tinha nome de espanhol mas era francês. Ele
era o maior safado que eu já tinha conhecido em toda a minha vida. Esse tal de
Gonzalez era famoso no hotel inteiro, não por ser gerente, mas pelo apelido:
“cuidado, lá vem o bigode de chupar boceta menstruada”. Era a reação de todo
mundo, depois que descobriram que o filho da puta adorava dar uma de
vampiro de absorventes usados. Ele andava doido para descobrir quem fora o
bom samaritano que espalhara a notícia. Adivinha quem era o cara que ele
mais desconfiava e era mais visado? Lógico que só podia ser eu, pela minha
fama de gozador. Ele nunca pode fazer nada, porque simplesmente não tinha
prova. E também porque tinha um pouco de medo de mim, acho. O safado
que me odiava, e que agora estava doido para que eu tomasse no cu com a
diretoria, pela cagada que havia feito, pediu para eu ir falar com os caras
antes de ir embora de manhã. Sabe o que eu fiz? Aqui ó. No cu. Um cacete que
eu ficaria com sono esperando os safados que iriam aparecer no hotel só lá
pelas dez horas e depois ouvir conversa mole. Fui direto para minha casa
dormir gostosinho até a hora que me desse vontade. Acordei às duas da tarde
com um puta calor de molhar o rego do cu com suor. Telefonei para saber se
os imbecis ainda queriam falar comigo e se poderiam me atender. Uma
vagabunda de uma secretária atendeu o telefone:
- Alô, diretoria do hotel..., boa tarde.
- Por favor, com quem estou falando?
- Com quem o senhor gostaria de falar?
- Quero saber com quem estou falando. - Falei quase gritando.
- Com a secretária do doutor Sallys.
- Porra! Até aí eu sei que estou falando com a secretária mais gostosa e chata,
burrona e puritana do hotel mais fedorento do Brasil. Você não tem nome, sua
vagabunda?
- Está bem... Meu nome é Raquel. Agora, por favor, o senhor poderia dizer
com quem quer falar?
- Na verdade não estou com vontade e interessado em falar com ninguém. Mas
acho que seu chefinho gostaria muito de bater um papinho comigo. Just a little
chat.
Essa vadia era daquelas tantas pistoleiras que nos fins de semana estavam
nos motéis da cidade trepando com seus maravilhosos e bonzinhos chefes. Por
puro interesse ou para manter o emprego que tinham sem merecimento algum.
88
Aposto como essa tal de Raquel ficou se mordendo de ódio de mim, quando
desliguei o telefone.
- Boa tarde senhor Raul. Não nos conhecemos ainda? - Perguntou o sacana
do diretorzinho.
- Pois é, acho que não. É verdade. É para o senhor ver, né. Já trabalho neste
hotel há mais de um ano e o senhor não me conhece. Tudo isso é prova de que
a diretoria se preocupa demais com seus funcionários subalternos, não é
mesmo, doutor Sallys di Honoreé?
- O senhor sabe por que está aqui?
- Ah!, juro por Maomé, por Buda, que preferia duzentas mil vezes estar na
minha cama dormindo gostosinho ou trepando com minha bocetinha, do que
estar aqui ouvindo conversa fiada. O senhor sabe que trabalho à noite toda, não
sabe? Portanto, acho que para me dar uma enrabada ou coisa do tipo, sem que
eu perca meu tempo e o seu também, o senhor não precisa vir com nenhuma
história e nem charminho.
Foi nessa hora que lembrei-me do regulamento que os sacanas faziam,
quando cheguei lá para trabalhar:
“...Parabéns, você já é nosso funcionário. A partir de hoje, desde o instante em
que você passou a integrar a nossa equipe, que é composta por pessoas
selecionadas, honestas e responsáveis como você, que estão dispostas a
cooperar e
participar com seu trabalho do desenvolvimento de nossa
empresa, - os filhos da puta jamais pensam em outra coisa, a não ser em algo
que os enriqueçam cada vez mais - receba, antes de tudo, nossos sinceros
votos de BOAS VINDAS!! - Até parece que essas “BOAS VINDAS” são
verdadeiras. - Não passa de pura tapeação das mais cabeludas. E o discurso
de ludibriação continuava, no regulamento:
“... Esteja certo, você encontrará aqui, um ambiente agradável e boas
condições de trabalho, onde reinam a confiança e o respeito mútuo, e onde
todos procuram dar o melhor de si para o bem comum. Portanto, contamos
com você e com sua cooperação. Quanto a nós, faremos o possível para
facilitar sua participação nesta comunidade de trabalho”.
Participação! Ora essa! Logo descobri qual era essa participação, com poucos
dias de trabalho. Aliás, eu já estava careca de saber qual era a lei que reinava e
que reina em qualquer parte do mundo, na relação patrão-empregado: “Você é
meu escravo oito, dez horas, o quanto for necessário, por dia, faça tudo o que eu
mandar, sem direito à reclamação e ponto final”. Essa era a participação que
todo bom e honesto funcionário tem direito onde trabalha.
- Senhor Raul, não sou muito mais velho do que o senhor, apesar de parecer que
o senhor é bem mais novo. Esse lado rebelde, irreverente e indisciplinado o
faz mais jovem. Mas o senhor sabe há quanto tempo trabalho em hotelaria?
- No mínimo uns oitenta anos. Pelo jeito de falar. Mas pode ficar tranqüilo,
que se o senhor me contar, não falo pra ninguém.
- Em toda a minha vida de hoteleiro, que já faz um bom tempo, nunca
conheci alguém mais rebelde e irresponsável do que o senhor...
- Êpa! Irresponsável não. Se disser que sou irreverente, louco ou qualquer
outro troço do tipo, tudo bem, mas irresponsável não. Essa não. Aí já é demais
para minha cabecinha.
89
- Por acaso, o senhor se lembra do que aconteceu ontem à noite, em pleno
lobby do hotel super lotado de hóspedes?
- Por acaso, me lembro perfeitamente.
- O que o senhor tem a me dizer a respeito?
- Que foi uma coisa muito natural. Natural e boa!
- Natural?!
- Muito natural. Tanto que fui aplaudido de pé. O senhor precisava ver que
maravilha que foi. Me senti um ator no palco sendo ovacionado de pé pela
platéia, depois de interpretar o mouro Othelo, de William Shakespeare. Foi
como colocar as mãos no céu.
- O senhor sabe o que significa para nós, o melhor hotel da América Latina,
um “mensageiro, um Bell Boy” beijando uma moça fina e fazendo declaração
de amor, com a placa do hotel e tudo?
- Acho ótimo. Aliás, acho até que o hotel deveria me pagar um alto cachê,
pela minha audácia e heroísmo. Com isso, a fama do hotel vai crescer e a
lotação vai permanecer sempre ocupada cem por cento. O senhor vai ver
como o hotel estará lotado de moças e mulheres solitárias que sonham ser
beijadas e dar uma trepada em pleno quarto de hotel de luxo, por um humilde
carregador de malas.
- O senhor já pensou nas providências que vamos tomar?
- Já. Aposto como vão me promover. Vão aumentar meu “soldo”.
- Ah! Promoção!? Então o senhor quer uma promoção?
- De jeito nenhum. De maneira alguma. - Fiz uma carinha de menino
bonzinho, com a maior ironia do mundo - Quando quero uma promoção, seja
ela de cargo ou salário, sei onde fica o departamento de recursos humanos,
que não tem nada de humano porra nenhuma, e falo português muito bem.
- O senhor acredita mesmo que vamos promovê-lo, depois do que aconteceu
ontem?
- Escuta aqui, seu babaca, - levantei da cadeira e falei com a voz bem alta,
encarando os olhos do sujeito - você já falou muita coisa no meu ouvido e
nada concluiu. Que fica terminado nosso papo de uma vez por toda. Se quiser
me chutar pra rua, que chute. Não estou pedindo e muito menos implorando
pelo amor de Deus, que me poupe, como fazem todos os funcionários quando
cometem um errinho de nada, para que me salve a pele. Esse é o meu jeito de
ser. Ser livre para fazer o que bem entender e me der na cabeça. E nada no
mundo vai me fazer mudar. Nunca, meu chapa. Está entendendo? I’m not slave,
do you understand, my crony, meu chapa. Quando eu achar que devo mudar, se
é que um dia tiver que fazer isso, farei por opção, por espontânea vontade.
Não é porque você, “seo’’ tirano, é dono dessa porcaria, pensa que é dono da
verdade e pode roubar a liberdade de qualquer um. Principalmente a minha.
Mas isso nunca. Jamais. Aqui ó! Vá budar com quem tem tempo. Vá peidar um
prego bem grande na casa do caralho. Faça o que quiser. Bote-me no cu da rua.
Existem milhares de pessoas lá fora mendigando um trabalho, para não
morrerem de fome. Hoje mesmo o hotel terá quantos mensageiros precisar,
para me substituir. Minha ausência será um alívio para sua reputação e de seu
hotel também. Vamos, estou esperando seu cartão vermelho.
90
- Senhor Raul, pode voltar para seu trabalho, quando for seu horário. Vou ver
o que posso fazer com seu caso. Parece um pouco, um tanto meio delicado,
mas acho que não é dos piores. Vou reconsiderar e analisar seu pedido de
promoção.
- Meu não. Como se atreves a dizer um troço desses?
- Está bem. Muito obrigado. O senhor está dispensado por hoje.
Saí escafedendo da sala do tal diretorzinho, com uma palavra me martelando o
cérebro: “... dispensado por hoje ...”. Pensei, como esse sujeito vai me tratar e
aturar, depois de ter ouvido tudo que eu lhe disse, teria cu para me deixar
trabalhar em seu hotel. Ou ele me achou muito decidido ou estava tramando
alguma cilada para me pegar numa emboscada. Pela cara que fez, dava para se
notar a fúria de vingança. Só que antes que ele me preparasse qualquer
trama, eu que não durmo de toca e nem dou rasteira em cobra, tratei de
sair de fininho. E a primeira pessoa que pagaria o pato e que eu pegaria para
cristo, seria quem primeiro aparecesse na minha frente. Adivinha quem foi?
Claro que foi a tal de Raquel. Aquela secretária puritana disfarçada.
- Sabe quem é Raul Bonfim?
- Vocêê!, - disse ela com uma cara de tesão, escárnio, nojo e cu sem lavar. E
ainda torceu a boquinha, os lábios, de lado.
- Não quer dar um passeio logo mais à noitinha, para a gente dar uma
trepadinha? Sou um vampiro da noite! Um vampiro muito bonzinho.
Coitada. A menininha ficou mais vermelha do que um pimentão. Aposto como
essa vagabunda só trepava com seu chefe de barbinha. Antes de entrar no
elevador, ainda disse uma última frase:
- Êi gostosa, juro que não saio dessa droga antes de dar uma boa trepada com
você, princesinha! Quero botar minha piroca grossa no teu rabo, - e desci
escafedendo e bufando!
Peguei meu carro e fui direto para o escritório da minha pequena Karen. Logo
na recepção outra encrenca. Parece que confusão e encrenca me perseguem por
toda parte, ou será eu um cara azarado? Logo na portaria do edifício da
Empresa Mellão e cia, um sujeito uniformizado começou a estragar o meu dia,
o meu humor. Quer dizer, a continuar a estragar, depois do arranca rabo que
tive com o tal de Sallys de Honorée. Nunca dá para ser stress zero numa
metrópole. O cara era muito xereta.
- Boa tarde. Por favor, eu gostaria de falar com a senhorita Karen Mellão?
- Seria sobre o quê?, - perguntou o sujeito safado sem se mexer na cadeira.
Quase o mandei ir se foder. Engraçado, não existe nenhum lugar no mundo,
onde quer que você esteja e quando você diz que quer falar com alguém,
sempre tem um xereta para perguntar, com a maior cara lambida: “é sobre o
que mesmo?’’. Parecendo que resolveria o caso por mais difícil que fosse.
- É sobre uma coisinha de nada. Só que USTED não pode fazer por mim.
Quero só dar um beijo nela.
- Olha, não sei se a senhorita Karen pode atender o senhor. Mas se quiser
aguardar um pouco posso tentar.
- Ah, aposto como ela vai poder me atender sim!
91
Enquanto o imbecilóide do porteiro ficou fazendo cera e nada de ligar para
Karen, vi um telefone numa mesa próxima e corri para ele e disquei o número
dela, sem ao menos pedir permissão para o cara-de-cu.
- Alô Alô, paixão!??
- Oi, Amorzão! Tudo bem? Onde você está?
- Bem pertinho de você. Quase dentro do seu coração.
- Puxa paixão! Se você soubesse como estou feliz. Ainda bem que você
ligou. Não via a hora do telefone tocar, para falar contigo. Não sei por que
você não gosta de telefone celular. Queria te dizer que sou a mulher mais feliz
do mundo. Porque te amo. Te amo, te amo pra valer. Muito mais do que você
possa imaginar. Gostou dessa?
- Ok, baby! Eu também te amo pra valer. Agora desça, porque estou com um
pequeno probleminha na portaria. O seu porteiro competente e xereta não me
deixou subir.
- Oh, paixão, não crie caso com o rapaz. Ele está apenas trabalhando. Pensei
que você estivesse em casa. Me espere só um minuto que eu já estou descendo.
Um beijão. Te amo.
Parabéns Raul. Você conseguiu. Era a primeira vez que eu realmente sentia
que tinha encontrado alguém que verdadeiramente me dizia um “te amo” do
fundo do coração. Como era bom ouvir isso de alguém que pela primeira vez
na vida eu tinha certeza de que tinha conquistado meu coração. Eu te amo.
Alelúia! Don Raulzito está amando. Viva! O amor é lindo!
Eu estava todo de branco. Minha cor preferida. Calça justa. Camiseta de
marinheiro estampada com listras azuis. Um camisão longo pra chuchu e tênis
vermelho sem meias. Ainda não havia tirado o óculos escuro, fiquei ali parado
ao lado do elevador, aguardando minha musa, que não demorou muito para
descer.
O elevador social abriu e dele veio ao meu encontro, quem eu mais queria.
Karen. Karen, a mulher dos meus sonhos, ali na minha frente, na frente do
porteiro xereta, foi me beijando sem pedir licença para ninguém. Ela podia
fazer isso. Ela era uma mulher livre. Dona do seu nariz. Dona daquela porcaria
ali toda. Dona até do porteiro safado. Uma mulher que tinha o direito de amar
quem ela quisesse, como qualquer outra. Que tinha o direito de ser feliz como
todo mundo. E o mais importante, fazer alguém feliz.
Dei uma encarada no sujeito que havia me barrado e com um sorriso meio
sacana, eu disse, saindo abraçado com a Karen:
- Não te falei que ela me atenderia?
Pobre coitado. Mal sabia ele, que teria de me agüentar por muito tempo.
Depois acabei ficando bonzinho com ele.
92
CAPÍTULO DEZENOVE
Entrei abraçado com Karen em sua sala, onde havia uma placa dourada na
porta: “PRESIDÊNCIA”. O andar inteiro era da diretoria e gerência
administrativa. Secretárias bonitas e gostosas espalhadas por toda parte. Nem
bem acabamos de sentar e minha querida Karen me perguntou o que eu queria
tomar. Eu disse que menos no cu. De resto, qualquer coisa.
- Acho que vou aceitar um chá. De preferência, de hortelã ou erva-doce, se
tiver, para tirar um pouco da tensão. Já que se pode escolher.
- Só a tensão. O tesão não, né, gatão?
Ela discou um número qualquer e pediu.
- Débora, por favor, providencie dois chás de hortelã.
Cinco minutos depois entrou na sala um garçon com o pedido. Fiquei olhando
para ele e relembrando meus tempos de gravatinha borboleta preta. Só que esse
usava uniforme padrão da empresa. Calça vinho, túnica branca com um galão
amarelo nos ombros, parecendo farda do exército chinês. Ele era um garoto
boa pinta. Tinha um ar de inteligente. Cabelo bonito, cortado à escovinha.
Pele bronzeada, olhos grandes e castanhos. Deveria ter uns vinte anos, não
mais que isso. Fiquei pensando por que será que ainda era garçon? Será que
não sabia fazer outra coisa?
- Quantos anos faz que você é garçon?, - perguntei, olhando para o cara.
- Três anos e meio.
- Já pensou em mudar de profissão?
- Estou terminando de cursar o colégial. Assim que o fizer, pretendo me
candidatar a um cargo melhor.
O garoto era bem apresentável mas não parecia ser homossexual. Normalmente
copeiros de empresas ou são garçons pilantras, que cansaram de trapacear em
restaurantes e boates, ou são grandes bichonas loucas. Quando o rapaz me
entregou a xícara e respondeu minha pergunta, fiquei pensando por que a
Karen não o promovia.
- Paixão, por que você não promove esse garoto a auxiliar administrativo?
Parece que ele sabe fazer outra coisa que não seja carregar bandeja. Aposto
como sabe. Ou então é só ensinar.
- É mesmo. Não tinha pensado nisso. Também ele nunca pediu. O Zico já está
conosco há mais de três anos e nunca pediu nada. Vou providenciar isso, hoje
mesmo. Zico, passe na sala da Débora e diga para te enviar ao departamento
de recursos Humanos.
O rapaz saiu com um sorriso nas orelhas e foi direto falar com a tal Débora, a
secretária da Karen. Débora, Débora! Que bocetinha! Sempre fui tarado por
essa garota. Enquanto não saí com ela para dar uma trepadinha relâmpago e
proibida, escondido da Karen, é claro, não sosseguei. Essa gatinha era uma
coisinha ! Não chegava a ser uma máquina como a Karen, devia ter um metro
93
e sessenta e cinco de altura, no máximo, mas o peitinho que tinha, valia por
qualquer coisa. Tinha um rostinho de menina chorosa, mas muito engraçado.
Parecia até um rosto de pintura de grandes artistas, como Jean-AugusteDominique Ingres, o maior pintor francês do século XIX. Uma bonequinha que
dava água na boca de qualquer um para beijá-la. Usava um batom vermelhocheguei. No começo, pensei que não agüentaria me conter se não tivesse um
caso com essa tal de Débora. E não agüentei mesmo. Convidei ela para ser
minha amante. Adivinha o que aconteceu? Mas é claro que ela topou. Mesmo
sabendo que eu era marido da dona da empresa. Mulheres! Afinal, se todo
patrão podia ter uma amante, por que diabo eu não poderia ter uma também?
Mas chega
a hora em que a gente pára, e descobre que está
desenfreadamente apaixonado somente pela esposa. Somente pela mulher que
foi a única no mundo capaz de arrancar de dentro do coração um “Eu te amo”.
Eu já tinha certeza de que amava somente uma única pessoa. Karen. E se eu
amava somente ela, por que é que eu tinha que ficar trepando com outra
mulher? Principalmente com uma amante. Só porque ela tinha um peitinho
durinho e delicioso? Foi aí que resolvi dar um basta em tudo. Aposentadoria
total por outras bocetas, por tempo indeterminado. Adeus bocetas. Só a minha
amada. A bocetinha da Karen. Acho que sou louco mesmo, - pensei.
Alguns dias depois, encontrei o rapaz, agora trabalhando numa seção melhor.
Sem uniforme e nem nada. Ele me agradeceu pessoalmente e disse que devia
sua promoção a mim. Prometeu que jamais me decepcionaria. Já estava até
estudando para prestar uma droga de um vestibular. Eu disse baixinho em seu
ouvido que só tinha sugerido sua promoção, porque eu também já havia sido
garçon. Claro que ele não acreditou. Ou pelo menos, fingiu.
Terminei meu chá e fiquei olhando para Karen. E ela olhando para mim. Até
que criei coragem e tomei a iniciativa. Não tinha mais nada a fazer.
- Adivinha o que vim fazer aqui, além de te ver, é claro?
Foi despedido. Quer um emprego. Espero e torço para que isso realmente tenha
acontecido. Tenho certeza de que você pode fazer coisa melhor. Pode ou não
pode, meu guruzinho? Acertei?
- Não. Não fui despedido ainda. Ainda não fui chutado dessa vez., mas não
estou no barato de continuar mais lá naquele lixo. Tive um arranca rabo com o
diretor e só para me sacanear, ele desistiu de me chutar. Espero coisa pior.
Vingança. Cheiro de vingança no ar. Acho que é para ficar na minha marcação
ou me enlouquecer ou coisa do tipo. Já decidi. Vou começar a procurar outro
emprego. Qualquer coisa serve.
- Viva! Gostei de ver. Está empregado. O que você sabe fazer além de carregar
mala e ser louco?
- Nem isso eu seu fazer direito. Aprendi outra coisa mais importante, que
nunca havia feito na vida. Muito importante mesmo.
- E o que é?
- Te amar loucamente.
- Uauu! Então aprendemos juntos.
Karen e eu fomos jantar juntos nesse dia. Contei-lhe toda a minha história.
Falei da minha família. Da minha filha, minha querida Pérola, que já fazia anos
94
que não a via. Das minhas andanças pelo planeta. Falei da Kelma, da Karol, a
única gatinha por quem eu tinha quase me apaixonado. Falei da Janice, da
Lanny e de todas as minhas ex transas. Karen, ela, somente ela, era quem eu
queria. E como consegui isso. Ela ficou sensibilizada pra burro. Sentiu-se a
mulher mais feliz do mundo, porque me amava muito. Por ser a única a me
arrancar uma declaração de amor, com toda a sinceridade. Se já me amava,
passou a me amar ainda mais.
- Então posso passar amanhã no departamento pessoal me candidatando à
vaga de contínuo, ou de copeiro, no lugar do garoto que foi promovido?, perguntei sorrindo e ironizando.
- Só se for para fazer serviços exclusivos para a presidente. Respondeu ela com
um beijo demorado.
Uma semana depois, estava eu impecavelmente trajando um terno azulpetróleo, ultra moderno, com gravata de seda vermelho-sangue e um ar e
espírito de um autêntico executivo. Cabelos penteados para trás, com pasta
gumex, gel, para não perder o brilho. Postura séria e comportamento de um
senhor responsável. No meio de outros sujeitos igualmente sérios, numa
reunião de apresentação.
- Senhores, boa tarde. Eu quero, com muito prazer, lhes apresentar nosso mais
novo amigo, companheiro e colega de trabalho, - Para eles só amigo, para ela
amigo e namorado - que fará parte da gerência do grupo MELLÃO. – Disse
Karen, num tom de segurança e maior autoridade, para seus assessores. Dei
um “Olá! Muito prazer” e todos acenaram com a cabeça. E a reunião
prosseguiu.
- Como é do conhecimento de todos, ou de quase todos, a nossa empresa passa
por um processo de reformulação do quadro de funcionários atualmente. Isso
significa que muita coisa poderá mudar daqui para a frente. E foi justamente
por isso que o Raul Bonfim foi selecionado para ocupar o cargo de gerente
operacional administrativo. Essa vaga encontrava-se em aberto, inclusive para
possíveis promoções interna, mas ninguém se manifestou interessado. Depois
não digam que não damos oportunidades para nossos funcionários.
- Eu não sabia disso. Ninguém me falou que essa vaga estava em aberto., respondeu um assessorzinho xereta. Pela cara do animal, ele deveria andar só
dormindo. Ou coisa do tipo.
- Pois é, só o senhor não sabia, né Mr. Agameron? E o comunicado interno que
foi distribuído por todas as seções? Eu mesma cansei de ver esses
comunicados dando sopa por aí. Acontece que o interesse é tanto que muitos
aqui, infelizmente, nem se preocupam em saber dos cargos que existem em
disposição. - Todo mundo se entreolhou. Gostei do esporro que a Karen deu.
Parecia que minha reunião de apresentação estava começando bem. - A
escolha pelo companheiro Raul, foi decidida por vários motivos. Por se tratar
de um cargo de confiança, fiz questão de selecionar uma pessoa que reuna
todas as qualidades. As informações que tenho, além de conhecer pessoalmente
seu caráter, e pelo seu curriculum profissional, e pela experiência de vida, me
dá toda a tranqüilidade de que preciso. Essa pessoa é o senhor Raul. Não só
deposito toda a confiança em sua capacidade, como confio na sua grande
competência. - Finalizou a presidente do Grupo Mellão.
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É agora, senhor Raulzito, que eu quero ver com quantos paus se faz uma canoa.
Chegou a hora da onça beber água, pensei. Voltei ao passado e recordei tudo
que já tinha feito. Lembrei dos dois irmãos bem sucedidos. Lembrei que era e
podia ser tão inteligente quando eles. Não era agora que eu ia decepcionar
alguém. A Karen que me metera nisso, com seu excesso de confiança. Será
que ela estava certa? Sei lá. Vamos ver.
- Olá pessoal. Boa tarde. Acho que para a maioria aqui sou um estranho.
Gostaria de me apresentar e agradecer a confiança que minha amiga Karen
está depositando em mim. Quero dizer para todos que estou disposto e aberto
para qualquer tipo de conversa. Vou pedir gentilmente a colaboração de
vocês. Aliás, de toda a empresa. Desde o mais humilde auxiliar de limpeza
até a presidente. Quanto a mim, posso apenas dizer uma coisa: contem comigo.
O que estiver ao meu alcance, garanto que resolverei. O que não estiver, a
gente vê o que pode fazer. Eu sei que minha tarefa não será fácil. Porque sei
que ninguém consegue implantar um novo programa de trabalho ou fazer
inovações, com novas técnicas e novas experiências, de uma hora para outra.
Principalmente sem que haja união, compreensão e colaboração de todos. Deu
até uma rimadinha. Vamos trabalhar juntos com muita aplicação e harmonia.
Precisamos crescer. Uma empresa só cresce quando há maior produtividade.
Todos aqui presente sabem que o carro chefe de uma empresa é sua boa
administração. E boa administração é sinônimo de crescimento. E qual é o
caminho para se chegar à mina do ouro? Primeiro devemos começar com
uma drástica reestruturação da máquina administrativa. Vamos promover uma
verdadeira revolução nas técnicas e desenvolvimento da empresa. Até a
filosofia da empresa pode mudar, se for necessário. Vamos sair na frente em
todas as áreas, para atingir uma competição assustadora frente aos nossos
maiores concorrentes...
- Com licença. Como o senhor pretende fazer isso? Qual será o marco zero
dessa reformulação? Por acaso isso é possível? - Perguntou um dos gerentes.
- Claro. Sua pergunta foi ótima. É disso que preciso. Façam perguntas. Dêem
sugestões. Afinal, estamos no mesmo barco. Vamos trabalhar juntos.
Respondendo a sua pergunta: Nossa meta é uma verdadeira audácia. Mas ela
é possível e vamos atingi-la. Essa nossa meta é atingir a perfeição em tudo
que fizermos. Ou pelo menos nos aproximarmos dela. Para isso, estou com
carta branca da presidente da empresa para criar uma comissão, vou fazer mais
que isso; criaremos um conselho administrativo para aprovar somente projetos
que apresentarem resultados positivos. Outro fator, talvez o mais importante:
e que poderá até chocar alguns de vocês. Pedi um check up da corporação,
com uma grande empresa de auditoria, para a senhorita Karen. Juntos
encontremos indícios de corrupção. - Todo mundo se entreolhou. Alguns
ficaram corados pelo susto. Talvez pensando que eu já sabia de nomes
envolvidos. Citei o nome da Karen e disse que ela havia me dado carta
branca, só para eu ter mais autoridade. Na realidade nem ela mesma podia
imaginar que eu mergulharia tão fundo. - No momento não vamos falar sobre
isso. As provas trarão as evidências. Ok pessoal? Vamos nos solidarizar uns
com os outros. Juntos encontraremos o caminho certo para nossas metas.
Qualquer sugestão será analisada e comentada. Estão todos convidados a
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darem sugestões. Ah! Só mais uma coisa. Jamais quero passar a impressão de
que sou um cara durão ou tirano. Serei amigo de todos. Desde o fulano a
beltrano. E espero o mesmo de vocês. Temos os mesmos princípios. Estamos
na mesma luta e juntos venceremos essa batalha. Em caso de dúvidas, todos
sabem onde fica minha sala. A reunião está terminada. Muito obrigado.
Terminada a reunião, cada um foi para seu canto. Eu para minha sala, a Karen
para a sua. Nem bem sentei o telefone tocou.
- Cara, você é um doido. Louco. Paixão, como você é doido. Onde é que eu
estava com a cabeça que não tinha percebido que você é o cara indicado para
dirigir minha empresa? Parabéns! Você foi maravilhoso. Formidável! Estou
perplexa de surpresa. Adorei sua performance. Quero saber onde foi que você
aprendeu tanto segredo de administrador, seu cachorrão malandro.
- Na escola da vida. Me fodendo e quebrando a cara. Meu pai me ensinou. Ele é
empresário no ramo de jóias. Você não sabia?
- Não. Não tenho mais dúvidas. Você será meu braço direito. Tenho certeza de
que você vai me fazer a mulher mais feliz do mundo. Muito mais do que já
sou.
- Ah! Isso eu vou sim. Juro.
- Além de louco você é um habilidoso “businessman”. A partir de hoje você
está autorizado a fazer o que bem entender e colocar todos seus projetos em
ação. Inclusive esse de combate a qualquer vestígio de corrupção. Paixão, te
adoro. Te amo tanto, que nem precisava me dar um presente desse. Eu aposto
tudo em você. E isso me faz te amar cada vez mais. Agora diga-me, com todo
esse talento, por que você não levou os negócios de seu pai a sério?
- Porque achei que não devia. Gosto de liberdade. Só estou trabalhando aqui
porque terei liberdade para fazer coisas que acho que podem ser feitas. Quero
liberdade para ser feliz. O dia em que minha liberdade acabar, o que acredito e
espero que nunca aconteça, aí então, não saberia o que iria fazer. Mendigo,
talvez.
- Não fala besteira, amor. E qual foi o motivo que te fez dar essa reviravolta
brusca?
- Que reviravolta?
- Você sabe muito bem do que estou falando. De carregador de mala a um
competente Gerente Administrativo. Resolveu virar homem sério?
- Por dois motivos. Aliás, não pode me chamar de competente. Primeiro,
porque você ainda não conhece meu trabalho. Depois, não sabe se vou te
decepcionar. Mas resolvi mudar por duas coisas lindas. Amor e confiança.
Primeiro, porque te amo. Segundo, porque você foi a única pessoa no mundo
que me deu confiança de verdade. Depositou confiança e apostou tudo em mim,
sem se preocupar se eu me tornaria um bom vivaldão da vida. Um grande
parasita, ou coisa do tipo. Além do que, por mais maluco e louco que eu seja,
só faço alguma coisa quando tenho vontade de mudar, mudar de estilo de vida
e de trabalho. Só isso. Continuarei sendo o mesmo cara. Com toda minha
personalidade. Espero que isso te ajude a conservar a opinião que tem a meu
respeito. Porque hoje nos amamos loucamente, espero que nosso amor jamais
peça socorro. Mas de repente, algum demônio possa querer meter seu
bedelho onde não for convidado e a desgraça estará abanando o rabo e batendo
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palmas. Quem é que não sabe que o ódio é o irmão gêmeo do amor? Minha
posição de homem certinho não vai fazer com que eu mude de idéia e deixe de
te amar cada vez mais.
- Você é um herói. Meu herói! Meu tesão! Você é o único e maior amor que já
tive em toda a minha vida. Será sempre o único. Jamais amarei outro. Nunca
deixarei você fugir de mim. Nunca mesmo. Se for preciso irei atrás de você em
qualquer lugar. Até mesmo numa ilha deserta. Agora você faz parte da minha
vida. Eu te amo. Estou cada vez mais louca e mais apaixonada por você.
- Tudo bem. Eu também sou louco por você. Depois a gente fala sobre isso
com mais detalhes na cama. Agora deixe-me trabalhar um pouco. Senão, acabo
sendo despedido por incompetência e vadiagem. Preciso mostrar serviço. Vou
acompanhar de perto toda auditoria e projetos em andamento. Ah! Paixão!
Quero te perguntar só uma coisinha. Por acaso, você não deixou transparecer
para ninguém que somos namorados, deixou?
- Como você é preocupado. Meu Deus! Claro que não. E se tivesse deixado,
que importância teria? Já esqueceu que sou dona dessa porcaria aqui?
- Por favor, paixão, entenda. Não vamos criar um clima de tensão. Já pensou se
esses caras aí, algum pinta, com quem vou trabalhar diretamente, descobrem
um troço desses? O que eles não poderão pensar. Ficariam pensando que sou
um gerentinho de meia tigela, só porque tenho costa quente e sou protegido
da proprietária. Sei muito bem como essa gente é. Precisamos dar respeito para
sermos respeitados. Não é assim que manda a lei da sociedade? Então, nada de
namorinho e beijinhos pelos corredores. Só por telefone e em casa. Afinal,
temos a noite inteira para fazer isso. Algum dia, quando der muito tesão, aí,
poderemos ir ao banheiro da sua sala. Deixe-me aprender o serviço, que
prometo ser seu braço direito. Seu assessor, consultor de todos os problemas. O
seu homem. O homem da sua vida. Gostou dessa?
- Pode deixar que vou te ajudar no que for preciso. Inteligente você já provou
que é. Confio em você. Afinal, te quero todinho só para mim.
- Prometo que serei só seu.
E foi o que fiz desde aquele dia até hoje. Tratei logo de mostrar que não
estava para brincadeira. Na reunião seguinte comecei com uma lição de como
se deve fazer uma empresa crescer. Mais que isso. Fui logo botando as cartas
na mesa.
- Senhores, chegou a hora de arregaçar as mangas e mostrar serviço. O nosso
dever é achar soluções para qualquer que seja o problema. Para isso, quero que
anotem e gravem alguns pontos que acho hiper importantes para nosso
desenvolvimento.
Número 01- NOSSA ADMINISTRAÇÃO DEVE SE ANTECIPAR AOS
FATOS. AGIR RÁPIDO PARA TOMAR DECISÕES EM BUSCA DE
SOLUÇÕES DECISIVAS.
02- NOSSA ADMINISTRAÇÃO DEVE TER OBRIGATORIAMENTE UMA
ATUAÇÃO ÁGIL, DINÂMICA, VOLTADA AO ATENDIMENTO DAS
NECESSIDADES E À EXPANSÃO DE MERCADO.
03- NOSSA ADMINISTRAÇÃO NÃO DEVE E NUNCA SE LIMITARÁ A
ATENDER MERAMENTE SOLICITAÇÕES E PRESTAR SERVIÇOS:
98
DEVE SER
AGRESSIVA NA CRIATIVIDADE
E NA BUSCA
CONSTANTE DE ALTERNATIVAS E SOLUÇÕES.
04- NOSSA FILOSOFIA SERÁ: FAZER HOJE E DESFRUTAR AMANHÃ.
05- A CONVIVÊNCIA PERMANENTE COM AS BASES DEVE SER
OBRIGATÓRIA E É IMPRESCINDÍVEL EM NOSSA ADMINISTRAÇÃO,
PARA O CONHECIMENTO DAS RECÍPROCAS NECESSIDADES COM
PERFEITA E ÁGIL SOLUÇÃO.
06- ADMINISTRAÇÃO É DECIDIR. NÃO EXISTIRÁ MAIS FUNÇÃO
EXECUTIVA NA NOSSA ADMINISTRAÇÃO, SEM PODER EFETIVO DE
DECISÃO. QUERO QUE TODOS DECIDAM, ASSUMAM OS RISCOS DE
SUAS DECISÕES.
07- O COMPROMISSO DE TODOS É COM AS SOLUÇÕES IMEDIATAS.
08- TUDO QUE TIVER QUE SER FEITO, FAÇA HOJE. NUNCA TENHA
ATITUDES PASSIVAS DIANTE DE PROBLEMAS COMUNS.
09- EM NOSSA ADMINISTRAÇÃO O MEIO AMBIENTE SERÁ
RESPEITADO.
- Estes são apenas alguns pontos que quero que os senhores lembrem sempre.
Terminei de falar e fiquei esperando as perguntas de sempre. Todos estavam
atentos para não perderem nenhuma palavra. Acredito que deviam estar
pensando, o que seria de cada um se não cumprisse à risca, toda minha
pretensiosa administração. Dava até para adivinhar os pensamentos de todos.
“Parece que esse tal de Raul não é de brincadeiras. O Homem leva jeito pra
coisa. Quem duvidar, que se atrevas a vacilar para ver o que acontece”. E aos
poucos fui colocando as coisas nos seus devidos lugares. Até que não
demorou para que o resultado viesse à tona. Dois meses de empresa. Depois
de aprovado pelo controle de qualidade pessoal da presidente. Com muito
esforço e dedicação, sem nenhuma palhaçada, no período de experiência, ou
que chamam por aí de adaptação ao serviço. O resultado positivo estava em
evidência. A empresa teve um nítido e acelerado crescimento. Os elementos
que estavam fazendo corpo mole e comprometendo o novo sistema, foram
botados para escanteio. Karen estava satisfeita e feliz com meu trabalho.
Cada dia eu a surpreendia mais com minhas criatividades e estilo de trabalho.
Resumindo: Ela
havia encontrado o outro pedaço do seu elo do amor
definitivamente. Agora Karen tinha tudo. Braço direito, homem de confiança e
o amor que tanto procurou.
Meu ânimo, moral, estava em alta. Minha paixão crescia cada dia mais. Meu
amor pela única mulher no mundo que me fez a cabeça, aumentava
arrojadamente. O natal estava chegando. O sexto ou sétimo, sei lá, desde que
dei no pé de casa. Minha pequena Karen continuava cada vez mais apaixonada
por mim. Eu achava isso ótimo. Por incrível que pareça, a gente não brigava
por nada. Depois que decidi parar de garanhar outras mulheres, inclusive abrir
mão da gostosinha da Débora, apesar da Karen jamais ter desconfiado, parecia
que a gente tinha acertado na mosca. Não dava nem para desconfiar da esmola.
Pois, dessa vez eu tinha pego o santo pela croaca.
De repente num belo e ensolarado dia, fui surpreendido pela cinderelazinha.
- Paixão, tenho uma surpresa para você. Adivinha o que tenho para você hoje?
99
- Sei lá. Cada dia você tem algo para mim.
- Não. Hoje é sério. É uma coisa que você nunca ganhou ou deu para
ninguém.
- Juro que não faço a menor idéia.
- Adivinha, que eu te dou um beijo.
- Quantos beijos você está me devendo?
- Uns dez milhões.
- Então paga primeiro os que já me deve, depois negociamos outros.
- Vamos logo, seu cachorrão gostoso. Estou esperando.
- Quantas chances você me dá?
- Uma.
- Uma é muito pouco. É feito de quê?
- Começa com a letra “A”.
- Animal.
- Animal é você. Que animal caberia numa caixinha deste tamanho?
- Uma pulga, ué! Tá legal. Só mais uma chance.
- É feito de metal .
- Um anel.
- Não. Errou. Abra!
- O que é, então?
- Abra!
Abri a droga da caixinha misteriosa. A surpresa foi de dar um frio na coluna
vertebral. O coração disparou na hora. Fiquei esbabacado olhando para Karen e
com uma cara de apaixonado. O que era dessa vez? Começa com a letra “A”.
Não é anel. É de metal. Pensou em quê? Aposto como pensou em alianças. Isso
mesmo. Era um par de alianças. Minha querida Karen estava me cantando.
Ela estava me pedindo em casamento. Foi aí que não tive mais nenhuma
dúvida de que ela realmente me amava pra valer. Essa era a maior prova
que eu podia ter, para dizer que ela era a mulher que tanto sonhei encontrar.
Karen foi esperta. Corajosa. Rápida. Maravilhosa. Fantástica. Ela foi bem mais
rápida do que eu. Acho que ainda levaria um bocado de tempo para eu falar em
casamento com ela. Que coisa, heim! Dessa vez foi a Rebeca que conquistou,
que foi atrás do seu Isaac. Mas ela foi decidida e não marcou bobeira. Acho
que fez tudo isso por um bom motivo. Assim como tive um motivo para me
regenerar profissionalmente, ela achou o seu, o seu motivo principal para
pensar em casamento. Karen, trinta anos de idade. Solteira. Livre e
desimpedida. Madura. Bonita. Feliz. Humana. Inteligente. Apaixonada.
Acabava de uma vez por todas, fisgar meu coração. Óh céus! Mesmo sendo
meio incrédulo e cético, acho que os deuses do Olimpo, mais os Budas, Jeovás,
Maomés, Alahs, Cristos e todos os outros deuses do universo, deuses do bem,
devem ter dado uma mão.
Mas isso faz parte da vida do ser humano. A vida tem dessas coisas. A gente
pode fugir de tudo. Menos de uma coisa. Do amor. Duvido que alguém consiga
fugir do amor. Todo mundo ama. Uns, em maior, outros, em menor
intensidade. As perdas são sempre maiores. Quando acertamos ou ganhamos
alguma coisa, ficamos um pouco assustados. Desconfiamos de tudo. Estamos
mais acostumados às perdas do que aos ganhos. O amor e a tristeza são dois
100
companheiros que se revezam em nossos corações. O amor, a tristeza e o ódio,
formam uma tríade que não se topam. Nunca se encontram. Quando a gente
está amando, a tristeza e o ódio estão longe. Ninguém consegue fazer as três
coisas ao mesmo tempo. Quando foi que uma pessoa disse para a outra: “eu te
amo porque te odeio”. Eu nunca vi.
- Você é louca. O que significa isso?
- Sei lá. Tente adivinhar.
-Pô, paixão! Você tem trinta anos e ainda não se casou. Por que resolveu fazer
isso agora? Justamente com um cara como eu que não tenho onde cair morto.
- Não diga besteira. Você sabe que estou fazendo isso por amor. Depois, você
é muito mais importante para mim, do que qualquer cara mais rico do
mundo. E quem foi que disse que você não tem nada? E a vice diretoria do
Grupo MELLÃO S/A? E os cinco por cento das ações do Grupo, que você já
comprou? Não te quero por nada. Apenas pelo que você é. Porque te amo.
Esqueceu do que me disse? De que “você sempre foi você mesmo e nunca
explicou ao mundo porque prefere viver suas emoções e escutar seus próprios
desejos”? Estou apenas seguindo o que você me ensinou. Você foi o único
homem do mundo que conseguiu conquistar meu coração. Você encontrou o
outro pedaço do meu elo. A minha outra cara-metade. Quero me casar com
você o mais rápido possível.
- Ok, minha princesa, aceito. Mas antes terá que pedir minha mão para minha
mãe, - respondi sorrindo e beijando minha futura esposa.
E foi o que ela fez. Metemos as alianças no dedo de cada um ali mesmo e na
ausência de bolo e pessoas xeretas gritando, “VIVAM OS NOIVOS!!”.
Pegamos um champanhe e fomos comemorar na cama.
Reencontro com a família. Para sair foi fácil. Para voltar, mesmo seis ou sete
anos depois, e na companhia da noiva, a emoção era um bocado forte. O natal
estava chegando. Faltava apenas uma semana. Como já sabem, eu sempre me
lixei para natal, ou por qualquer outra data comemorativa. Mas meus velhos
não pensavam como eu. Principalmente minha mãe que chegava até a ser
meio catolicona. Achei que o momento era o ideal para a ovelha negra e muito
rebelde se juntar ao resto do rebanho. A ovelha desgarrada já estava saciada e
com saudades do peito da mãe.
Karen e eu preparamos tudo. Compramos presentes para todos. Demos uma
semana de férias coletivas para todos os funcionários da empresa e para os
criados. O natal era numa Sexta-feira. Ainda estávamos no começo da semana.
Pegamos a estrada no dia seguinte. Saímos de São Paulo na Terça- feira bem
cedo. À tarde, a gente já estava no Rio.
A primeira pessoa que nos recebeu foi minha mãe. Karen tocou a campainha.
Enquanto isso, fiquei no carro estacionado na frente da casa. Pedi para Karen
preparar o terreno. Ela entrou, pediu uma informação. Perguntou se era ali que
morava a família de Raul Bonfim. Disse que era a noiva dele. Fizeram as
trocas de muito prazer e Karen disse logo que eu estava bem, e ali no carro, ao
vivo e a cores. Minha mãe ligou para a joalheiria do meu pai. Disse que havia
uma pessoa em casa que queria muito falar com ele e que ele também ia
gostar muito de ver essa pessoa. Meu pai matou a charada no ato.
101
- Eu sabia que esse moleque safado, mais cedo ou mais tarde, se lembraria da
gente. Diga-lhe que já estou indo para casa, para dar umas boas palmadas nas
nádegas dele. Ele não perde por esperar, - resmungou todo emocionado o pai,
morrendo de saudades do filho fujão.
Não demorou nem vinte minutos e meu pai chegou. Dei-lhe um baita de um
beijo e um abraço. E pedi mil perdões, por ficar tanto tempo sem dar notícias.
Estavam eufóricos. Eufóricos de felicidades. Até que enfim a ovelha desgarrada
estava finalmente no seio da família. Disse a eles que para compensar o
pecado cometido e mostrar minha regeneração, eu daria um presente à família.
Daria uma nora. À noite, foi a vez do Betinho chegar. Puxa, como ele estava
mudado! Quase não o reconheci. Estava do meu tamanho. Era um homem
formado. Muito bonito. Parecia tradição de família. E o mais importante, tinha
se tornado o braço direito do meu pai. Era o gerente da loja. Já havia se
formado em administração de empresa. Era noivo de uma garota chamada Ana
Paula, que tinha conhecido na faculdade. Cheguei a pensar que ele seguiu o
conselho do meu pai, para não seguir o meu caminho. Até que não foi tão ruim
assim. Além de que, meu lugar foi muito bem substituído. Fiquei hiper feliz,
porque eu adorava o Betinho.
- E aí, seo cachorrão safado, cadê a minha mochila? Pensou que eu ia
esquecer da minha mochila?, - brincou meu irmão caçula, louco de
felicidade por me reencontrar, com uma lágrima nos olhos de grego.
- Está bem guardada. Guardada num armário lá em casa e na minha
memória. Vou devolver da próxima vez que vier aqui. Eu prometo. Foi sua
linda e gostosa mochila que me deu muita sorte na vida. Nunca me
esquecerei disso. - Disse eu abraçado com meu querido irmão. Ele ficou
mais feliz e orgulhoso.
O Jantar foi uma verdadeira festa. Todo mundo contando suas histórias e
tomando vinho e champanhe importada. Minha mãe e meu pai não paravam de
me perguntar por onde eu tinha me metido todo esse tempo. Por que diabo
eu não mandava notícia? O que eu tinha feito todo esse tempão? Por que não
continuei minha carreira de jogador de futebol? E mais um montão de
perguntas.
Fui tratado como um rei. Pensei numa passagem da bíblia. A volta do filho
pródigo. Só que não voltei fodido como o personagem bíblico. Ao invés de
anti-herói, fui tratado como herói. Karen estava toda feliz da vida por ter
conhecido minha família. Era eu o rei, e ela, a rainha. Minha mãe gostou tanto
dela, que parecia que já se conheciam há séculos. Minha mãe não parava de me
xingar de moleque irresponsável. Dizia que eu quase deixara ela e meu pai
doentes de tanta saudades. Mas também não parava de me abraçar e beijar.
Parecia até que eu tinha acabado de nascer de novo. E eu sempre respondia
com uma cara de menininho inocente:
- Pode deixar, prometo que a partir de hoje, telefono todos os dias para a
senhora. E uma vez por mês, passamos o fim de semana juntos com vocês.
- Eu sei. Te conheço muito bem. Não duvido nada que quando voltar para
sua casa, só tornará a dar as caras de novo, daqui a uns dez anos. Mas faça
isso para ver o que acontece.
102
- Não. De jeito nenhum. Agora ele virá todo mês sim. Porque se ele esquecer
ou não quiser vir, eu o trago arrastado. - Falou Karen, me abraçando.
Todo mundo ficou feliz. Receberam Karen de braços abertos. Desde o
momento em que chegamos, ela passou a fazer parte da família. Ela prometeu
para minha mãe que cuidaria de mim para o resto da minha vida. Minha mãe,
que me conhecia muito bem, em uma determinada hora me puxou pela
orelha a um canto e me disse que se eu não andasse direito e tratasse bem minha
noiva, eu teria que acertar as contas com ela. Pelo jeito, minha mãe tinha
gostado muito da Karen e não queria que eu a fizesse sofrer. Com toda essa
proteção, Karen se sentia como se estivesse em sua casa. E ela estava mesmo.
No dia seguinte Ricardo e Renato chegaram com suas esposas e filhos.
Finalmente, depois de muito tempo, a família voltava a se reunir com todos
seus integrantes. Pai, mãe, os quatro filhos, noras, netos, parecendo um clã
unido. Que lindo! O sonho da senhora Rebeca, minha mãe, que se chamava
Rebeca e tinha encontrado o seu esposo-Isaac, que era o meu pai, o sonho dela
estava realizado. Os quatro irmãos bem casados, e noivos, bem sucedidos.
Com o futuro garantido. O susto do desaparecimento de um dos filhos já tinha
passado. O filho rebelde, irreverente, irresponsável, aventureiro e desmiolado
tinha voltado. A Ovelha Negra da família retornava ao lar. Como na bíblia, a
festa para receber o filho pródigo foi das melhores. Agora estava tudo às mil
maravilhas. Agora ela podia dormir despreocupada. Seu colesterol poderia até
baixar. Acho até que ela ia conseguir fazer o pau do meu pai levantar essa
noite, para uma trepada, que talvez não davam há muito tempo.
Almoçamos num clima de festa. De comemoração. Aproveitei para convervar
bastante com meus três irmãos. Eles estavam bastante felizes por me
reencontrarem numa boa. Ricardo e Renato acharam que finalmente eu tinha
criado juízo. Entrado na linha. Foram até mais longe. Disseram que eu tinha
criado vergonha na cara, que mais cedo ou mais tarde eu teria que honrar o
nome da família. E mais um monte de lição de moral tipo meio pequeno
burguês decadente. Mas eu sabia que no fundo ninguém sabia o que era certo e
o que era errado. Todo mundo era a mesma coisa. Para falar a verdade, eu já
estava até gostando daquela história toda. Meu ego se sentia bem à vontade.
Como é gostoso ser paparicado, - eu pensava. Isso é típico do ser humano.
Ser o centro das atenções só massagea o ego.
A festa ainda nem tinha começado direito. Ainda era véspera do dia mais
comemorado do mundo. O natal. Se Jesus existe mesmo e se seu espírito
continua solto por aí, ele deve ter o ego mais massageado do mundo. Pois é, a
festa estava boa, mas eu estava esquecendo, ou melhor pensando numa
pessoa. Na minha pequena Pérola. Onde estaria ela agora? Jamais eu iria ao
Rio e deixaria de visitá-la. E foi o que eu fiz. Convidei a Karen para ir comigo.
Ela gostou da idéia, pois queria porque queria conhecer minha filha. Mas só
saímos para ir encontrá-la, depois que contamos toda a história para minha
mãe, que ficou feliz e chateada ao mesmo tempo.
Fomos direto para a casa do pai da Vâni, a mãe da minha filha. Ela não
estava. Há muito tempo já tinha se casado com outro cara. Não agüentou
mais me esperar e a vontade de dar a boceta fez com que ela não resistisse.
Adorei. Pelo menos dessa eu estava livre. Dei graça a Buda por encontrar
103
Pérola em casa. Ela sempre foi criada pela avó e passava mais tempo lá, do
que na casa da Vâni. Como minha pequena Pérola tinha crescido! Ela já estava
grande pra chuchu. Quase não a reconheci. Claro que ela não se lembrava mais
de mim. Quando sua avó disse que eu era seu pai, ela deu um salto e veio
correndo para meus braços. Dei um longo beijo e um abraço nela, que pensei
até que não agüentaria sem derramar umas lágrimas. E não agüentei mesmo.
Nem ela. Nem Karen, que adorou minha filha e pensou em duas coisas na
hora. Levar Pérola para morar com a gente e ter um filho comigo. E foi o que
acabou acontecendo depois.
Saímos juntos para passearmos. Karen, Pérola e eu. A mãe da Vâni nunca seria
minha sogra, mas que gostava de mim, mesmo eu tendo abandonado sua filha
e neta, permitiu que eu levasse a menina para passear, mas com a condição
de levá-la de volta no mesmo dia. Condição. Droga. A coisa nunca muda em
lugar nenhum. No cu, que eu respeitaria a merda da condição. Eu queria era
passear com minha fofura. Com as duas mulheres da minha vida. Filha e
mulher. Duas paixões que não abriria mão por nada no mundo. Parecia que
eu era um cara de sorte mesmo. Karen não teve problemas com Pérola, que
gostou da idéia de ter uma Segunda mãe. Isso porque ela não gostava muito
do sujeito com quem Vâni tinha se casado. Fomos direto para a casa da
minha mãe. Pérola não conhecia sua segunda avó. Como ela era uma criança
e ninguém ainda tinha falado nada para ela a meu respeito, a não ser que eu
tinha desaparecido, ela pensava que todo mundo era tia, avó, avô e por aí a
fora. Como todo mundo já conhece minha mãe , nem precisa dizer que ela
ficou sendo a vovó mais coruja do mundo. A festa continuou e Pérola dividia
as atenções comigo. Quer dizer, Pai e filha eram os atores principais da peça,
ficando o papel coadjuvante para Karen.
Liguei para a avó da minha filha para dizer que só poderia levar a menina de
volta no dia seguinte. Disse que eu estava com muita saudade e que gostaria
de ficar mais tempo com minha filha e que a menina também estava
adorando ficar comigo. Não foi difícil convencer a mulher que realmente
cuidava da minha filha, mas que jamais seria minha sogra.
A festa foi um sucesso. Muitos presentes. Muita bebida. Muita comida e
muita boceta. Meu querido mano Betinho não largava sua noiva um só minuto
sozinha. Cada um dos filhos do casal Bonfim estava acompanhado por suas
respectivas mulheres. Dois já casados e dois noivos e próximos do cartório
civil. A alegria e felicidade do casal era grande. Eles até pensaram em uma lua
de mel pela Europa. E foi o que eles fizeram no começo do ano seguinte.
Fim da festa. Fim das comemorações. Hora de voltar ao trabalho. Ou já
esqueceram que eu sou um homem sério agora? Ou quase isso. Hora de voltar
para casa para vestir a camisa de seda, botar uma gravada social e vestir a
máscara para representar meu papel. O papel de um personagem que faz
gênero de cidadão certinho. De um executivo como outro qualquer que come
em bons restaurantes. Que comia na rua no meio da multidão. Que caga, mija,
peida, trepa, principalmente trepa. Um personagem que todo mundo gostaria
de representar. Hora de esquecer que o mundo está cheio de gente sacana e de
grandes bons filhos da puta, grandes fakes, como aquele tal de Sallys, diretor
do hotel onde trabalhei com aquele pinico na cabeça, feito uma múmia
104
paralítica. Mas e daí? A vida era preciso continuar. O planeta ia continuar
girando. O pregão na bolsa de valores não ia cair só porque eu nasci
irreverente, Só porque eu não gostava disso ou daquilo. Além do mais, minha
presença ou existência no planeta era tão insignificante que não fazia a
mínima diferença. Então, por que eu ia ficar brigando contra a natureza e o
rumo da história do ser humano? Descobri, ainda bem que descobri, cedo que
tudo não passa de uma bobajada só. Tudo perda de tempo. Era o mesmo que
procurar pêlo em ovo. Ou coisa do tipo.
Duas semanas depois que voltamos da casa dos meus pais, num clima de muita
tranqüilidade, Karen e eu, assinávamos um livro grosso e preto na presença de
um juiz e mais algumas testemunhas, e só.
- Senhorita Karen Mellão, aceita o senhor Raul Bonfim, como seu legítimo
esposo?, - perguntou o sujeito que usava um óculos pequeno na ponta do
nariz e uma peruca ridícula.
Karen disse logo que aceitava. Eu repeti a mesma resposta. Sem muita
papagaiada a gente estava casado. Sem a presença de nenhum parente xereta.
Se não convidamos nenhum parente, muito menos amigos. Não foi um
casamento misterioso, apenas não queríamos que ninguém ficasse se
intrometendo em nossa vida, como costuma fazer muita gente. Assinamos o
livrão da verdade. - “Juras ser fiel, amar um ao outro, até que a morte os
separe?” - Fiel? Tive que pensar duas vezes antes de responder. Não seria
nada fácil jurar e conseguir ser fiel o resto da minha vida. Seja o que Buda
quiser. Tenho que jurar de qualquer maneira mesmo. “Juro!”. Jurei, estava
jurado. Só não me pergunte o que rolou daí para frente. Se eu ia ser fiel ou
não, isso era uma outra história que prefiro não contar agora. Deixo para vocês
deduzirem.
Depois do livrão fomos direto para o apartamento da Karen. Da minha querida
esposa. Que a partir daquele momento, passava a ser nosso. Onde
pretendíamos passar o resto de nossas vidas, como recomendou o bom
meritíssimo senhor juiz de direito e paz. E sem trepar com a vizinha, é claro.
Karen tinha uma fazenda próxima a uma cidade chamada Campina Branca. A
menos de uma hora de carro, do centro de São Paulo. Depois que passamos a
usar aliança na mão esquerda, íamos quase todos os fins de semana para a
fazenda. Lá tinha cavalos. No começo, uns poucos cavalos de sela e mais uns
pangarés. Como sempre fui aficionado e um especialista em garanhões e
agora tinha onde criar. Tratei logo de me especializar em garanhões de raça.
Comprei todas as revistas especializadas na área, principalmente uma tal de
Hippus. Passei a visitar as feiras de exposições de cavalos Puro-sangue,
Manga-Larga, Quarto de milha e outras raças. Contratei uma veterinária, que
era uma das maiores criadoras de cavalos de raça do Brasil. Minha
pretensão era montar um grande Haras. E não demorei muito tempo para
montá-lo. Karen adorava me ver mexendo com meus cavalos. Volta e meia
eu era surpreendido com um presente típico. Um dia era uma sela canadense,
outro, uma bota italiana. Minha mulher exagerava algumas vezes. Um belo
dia chegou uma caminhonete com uma entrega. Não pude acreditar. Um
pônei. Isso mesmo. Ela disse que era para a Pérola, para quando ela viesse
passar as férias com a gente. Realmente minha mulher era bárbara. Tive que
105
agradecer com um beijo. Não existia outra forma melhor. E ela gostou. Não
era por menos que eu a amava pra valer. O Pônei era um graça. Até eu
gostei. Tive que admitir isso.
Dois meses se passaram depois que assinamos o livrão preto. Meu novo hobby
me empolgava cada vez mais. Nunca tinha passado pela minha cabeça que um
dia eu realizaria o sonho da minha época de adolescente. A de ter um
cavalo só meu para eu poder cavalgar livremente pelos campos. Como no
tempo em que eu, o Betinho e nossos amigos da praia, íamos para aquela
chácara roubar mangas e outras frutas e eu montava naquele lindo cavalo,
que existia lá. Ou então, como os cavalos lindíssimos do pai da Karol.
Aquela garota de Curitiba que quase me apaixonei por ela. Tudo estava
muito emocionante. Mais do que eu podia um dia esperar. O Resultado do meu
trabalho estava em evidência. Estava cada vez mais dando certo. Os lucros e
projetos de novos empreendimentos aumentavam cada dia mais. Karen
estava feliz por isso. Mesmo com todo esse mar de rosas, existia no ar uma
espécie de algo mais, que faltava. E só uma pessoa podia descobrir esse algo
de menos. Karen. Só ela tinha faro para as coisas. Num belo dia a surpresa.
Mais uma.
Cheguei cedo em casa, como sempre. Tirei o paletó, a gravata, joguei tudo no
sofá e fui direto para o bar preparar minha bebida. Mesmo depois de casado,
ainda dava meus tapas. Pouco, mas dava. Até porque minha mulher às vezes
me acompanhava. Eu gostava de mandar ver mais no vinho. Agora eu só
tomava vinho. Mas não dispensava meu aperitivo. Nesse dia ela estava no
quarto ou cozinha, sei lá. Enchi meu copo de gelo, e meu Whisky? Onde foi
parar a droga do meu precioso líquido? Os criados não podiam ser. Eles
nunca iriam tirar toda a bebida do bar, especialmente meu whisky. Mas nem
me virei direito para sair rumo à cozinha e minha princesa Karen apareceu.
- Já sei. Não precisa perguntar. Seu bar mudou de lugar. Ou melhor, as garrafas
foram levadas para a outra sala. Mas antes que fique bravo, vou preparar uma
dose do jeito que você gosta. Sabe por que fiz isso? Porque tenho uma
surpresa muito boa para você. Não. Para nós dois. Um presente para nós dois.
Tem alguma idéia do que é? Essa eu aposto que você jamais acertará.
Nem se eu tivesse poder de adivinhação acertaria. Karen correu para o quarto,
voltou em seguida. Com as mãos escondidas atrás do próprio corpo, falou:
- Feche os olhos, paixão.
Já que eu saberia o que era em segundos, apenas fingi estar com os olhos
fechados. Ela colocou um envelope em minhas mãos e disse para eu abri-lo.
Cheguei a pensar na hipótese de minha mulher estar brincando comigo. Mas
para nossa sorte, ela não estava. Abri a droga do envelope misterioso.
- Mas o que é isso?
- Você esqueceu de que não fizemos lua-de-mel? Finalmente chegou a hora.
Três dias depois estávamos a bordo de um cruzeiro Transatlântico italiano da
linea “C”, rumo às Ilhas Grega.
Grécia. Finalmente minha Grécia. A terra mãe da cultura milenar do
Ocidente. Da mitologia dos deuses do Olimpo. A minha Grécia. A Grécia de
Pandora, a deusa que enlouqueceu todos os deuses e semideuses do Olimpo.
Das olimpíadas e dos heróis românticos. Como Ulisses. Grécia antiga, Grécia
106
de Eros e Vênus, Grécia mãe da filosofia, de Sócrates, Platão, Aristóteles, dos
sábios. Grécia de Talles de Mileto. Grécia da democracia, dos espartanos, dos
atenienses, tebanos, Magna Grécia, Grécia de hoje, de sempre. Grécia minha.
Grécia dos dramaturgos. Dos poetas. De Safo. Atenas. Quem bebe da sua água,
jamais te esquece. Ficamos dois dias em Atenas, até conseguirmos um barco
alugado para uma das ilhas costeira.
Uma semana numa só ilha. Achamos um chalé numa encosta, entre o mar e a
montanha. A ilha era deserta, mas volta e meia aparecia um barco de turistas
como nós. No chalé vivia um criador de cabras. O cara era uma dessas figuras
totalmente desiludidas com a vida urbana e com tudo que a rodeia. Era um
amante da natureza e de sua vida. Um pinta praticante do stress zero. Ele era
um ex-jornalista mexicano que tinha jogado a profissão para o espaço e
escolheu um paraíso para viver sossegado. Adoramos o criador de cabras, que
gentilmente concordou em alugar seu chalé para nós. O que mais chamava a
atenção em nosso companheiro, eram suas atitudes. Vivia tocando uma flauta
ou coisa do tipo, e conversando com suas cabras, que pareciam entender sua
língua. Não ficamos sabendo o nome do mexicano, mas ele dizia para as suas
cabras e inseparáveis companheiras, algo parecido como: “vienga, vienga mi
bibitas. Su Kalibanus chama”. Não parecia ser maluco. Apenas encontrou
uma maneira diferente e eficiente de fugir do mundo cão que existe nas
megalópoles e que rouba a liberdade de cada um. Cheguei a pensar, por que
não descobri isso antes? Kalibanus era jovem ainda. Trinta e oito anos, no
máximo. Tinha uma linda barba negra. Parecia descendente de imigrantes
italianos, ou franceses. Pela maneira como agia, dava para notar que por trás
daquela desilusão e solidão, existia um grande intelectual. E o mais
interessante, ele portava-se e demonstrava ser um homem feliz. E realmente o
era. Tocar sua flauta e conversar com seus animais, era tudo no mundo. Isso é
que eu chamo encontrar paz de espírito. Viver à la Grécia antiga. Viver no
arcadismo.
Uma semana de sossego. Só o mar azul, as gaivotas, as montanhas, a lua, o sol,
as cabras e Kalibanus para nos fazer companhia. Mergulhei para pegar
lagostas. Andei nu de barco na costa da ilha. Karen e eu ficamos bronzeados.
Curtimos nossa lua-de-mel, como exatamente imaginávamos. Fizemos amor
gostosinho na areia molhada a qualquer hora do dia ou ao luar. Brincamos de
Adão e Eva. De deus e deusa mitológicos. Eu fui escolhido seu deus do amor.
Ela ficou sendo minha Vênus. Só a chamava de minha vênus. Mas de vez em
quando eu dizia minha Pandora. Fizemos tudo que a gente pudesse imaginar
e inventar, até quando não existia mais nada para fazer. A não ser fazer amor.
Trepar em qualquer lugar, com toda intensidade e tesão.
- Está vendo aquelas pedras ali, amor? Foi ali naquele precipício que a deusa
vênus fez amor com seus deuses e semideuses. Já pensou como deveria ser isso
aqui uns dois ou três mil anos atrás?, - falei para Karen, me imaginando, eu
próprio na companhia de todas as deusas da mitologia grega. Na companhia de
Pandora, principalmente.
Hora de voltar. Hora de deixar para trás a Grécia e sua mitologia. Hora de
deixar Kalibanus sozinho, com seu mistério e suas cabras. Hora de voltar a ter
contato com o mundo. De ligar as antenas. De entrar na corrente sangüínea da
107
vida cotidiana. De voltar para a vida estressante da megalópoles. Não é sempre
que se pode ser grego. Nem na antiguidade, nem no presente. Adeus Kalibanus.
Até a próxima, se é que haverá uma próxima vez. Mas se um dia voltar,
prometo que trarei comigo uma flauta como a sua. Duvidei muito de que eu
voltasse. Afinal, existe uma vida para cada tipo de pessoa. A minha eu conhecia
muito bem. E gostava dela, pra variar. E para minha sorte, tinha uma pessoa
que não ia gostar nada, se um dia eu voltasse sozinho, para fazer companhia ao
dono das cabras. Karen. A hora de voltar chegou, e foi o que fizemos. Só que
dessa vez de avião, via Paris.
A Grécia ficou para trás. As cabras ficaram. Kalibanus e sua flauta ficaram. A
única coisa que trouxemos conosco, foi a lembrança de tudo. Jamais
esqueceremos nossa Lua-de-mel. A ilha grega, onde ficamos, era um sossego.
O que já não acontece no resto do mundo. Paris é uma festa. O resto do planeta
é uma festa. A vida é uma festa. Isso mesmo. A vida é uma festa. Viva a vida!
Pra cima com a viga moçada, que a vida é bela. Que a vida é curta. Que o
amor existe. Porque eu amo alguém. Amo minha mulher. Karen é para mim, a
coisa mais suprema deste planeta. E ela sabe disso. Ainda bem.
Seis meses de casado. Seis meses de pura paixão. De puro amor puro sem
pular o muro. O tesão do amor florescia como um botão de uma rosa rosada. Eu
estava no meu escritório trabalhando, quando de repente, Karen entra correndo
feito uma louca. Lançou-me uma olhada de felicidade e já foi gritando:
- Amorzão. Tesão da minha vida. Tenho uma coisa para você. Uma coisa linda.
A coisa mais linda do mundo. - Ela pulou no meu pescoço e não parava mais
de me beijar. Como eu já conhecia bem minha mulher, nem dei muita bola.
Seria apenas mais uma de suas invenções. Só que dessa vez a notícia era das
boas. E Karen completou.
- Amor, dê uma olhada nisso. Estou grávida. Passe a mão na minha barriga e
sinta nosso filho. Me beije paixão, estou tão feliz. Vou ter o filho que tanto
desejei.
- Mas como você tem certeza disso?
- Está aqui o resultado do exame. Acabei de passar no meu médico. Ele disse
que é pra valer. Ah, amor, você não imagina como estou feliz! Vamos
comemorar. Vou telefonar para sua mãe hoje mesmo. A minha já sabe. Ela teve
quase um troço quando soube que ia ser avó. Está muito feliz.
- Espere mais um pouco. Vamos com calma. Você pode ficar muito excitada.
Precisa descansar. Volte para casa. Assim que eu puder, irei correndo para a
gente comemorar juntos. Afinal, a saúde do nosso herdeiro precisa de cuidados.
Você não acha?
- Claro. Eu te amo.
Meu coração parecia que ia sair pelo meu peito, de tanta felicidade. Dei um
longo beijo na minha mulher e ficamos ali abraçados pensando no futuro. Não
agüentei e tive que resmungar alguma coisa.
- Quem diria! Como pode um troço desse? Não me resta nada a não ser torcer
por nós três.
- É verdade.
- Você, eu e ele. - E passei a mão na barriga dela. Fiquei ali abraçado e
acariciando a barriga da pessoa, da única pessoa no mundo que soube me
108
compreender e conquistar meu coração. Continuei passando a mão na barriga
que guardava meu filho e pensando que logo teria um herdeiro para me
substituir. Torcendo para que fosse um garotão. Teria que ser, tal pai, tal filho.
Não teria nenhum problema, se fosse tão safado como o pai. Olhei para a
parede do meu escritório e vi uma fotografia minha, que Karen tinha colocado
no quadro e pensei: “Que vienga el grande Raulzito Jr.!” E murmurei algo, sem
que Karen soubesse o que eu estava pensando.
- UÁÁUUU!!!
- O que você disse ?
- Que te amo muito.
CAPÍTULO VINTE
A felicidade realmente existe? E o amor? Existe amor puro, amor eterno?
Talvez. Será? Sei lá.
Uma semana se passou. Duas semanas se passaram. Um mês se passou e a
empolgação tomava conta cada vez mais da minha pequena Karen. De repente.
Alguma coisa começou a me pertubar...
Saí do meu escritório vinte cinco minutos mais tarde. Karen já havia ido
para casa por volta das dezesseis horas. Parei num farol e enquanto aguardava
o sinal ficar verde, distraí meu pensamento por alguns segundos numa banca
de jornal da calçada que expunha suas revistas de diversas variedades. Fixei a
atenção numa revista que trazia a foto de um lindo cavalo. Sei lá o nome da
revista. Devia ser algo parecido com HIPPUS. Pensei em descer e comprá-la,
mas desisti imediatamente ao ser assustado pelas buzinas que zumbiam em
meus ouvidos. Os motorista pareciam que disputavam uma prova de fanfarra.
Se céu existisse certamente os anjos respondiam com suas trombetas
celestiais à fúria dos fiéis barulhentos e mortais. Meu pensamento sobre bosta
de cavalo virou esterco e se desfez no ar.
Acordei assustado do pesadelo. O coração disparado. Eu estava suando.
Olhei no relógio, faltavam dez minutos para as seis da manhã. Tentei lembrar o
que eu acabara de sonhar. Mas mil pensamentos invadiram e bombardearam
meu cérebro em segundos. Porra, que diabo. Fui surpreendido por uma
toneladas de coisas reais que tinham acontecido e que agora se transformava
em ficção, em forma de sonho ou em sonho em forma de ficção. Ou era o
reflexo do dia anterior ou algo de anormal estava para me acontecer.
Engraçado. No meu sonho vi várias figuras aparecerem nitidamente. Como o
cara barbudo da flauta, o tal de Kalibanus que conheci nas Ilhas Gregas. O
109
moribundo que me abordou no dia em que conheci minha esposa debaixo
daquele museu da Avenida Paulista, no dia em que fiquei louco pela minha
linda Karen. Essa foi boa. Vi o desgraçado apenas por uma fração de segundos,
para falar a verdade, eu jamais me lembraria do pobre sujeito se voltasse a
encontrá-lo. Até porque nem me importei em dar importância para ele no dia
em que me pediu esmola. Se eu ficar dando importância ou até mesmo dando
esmola a todos os mendigos que me abordam, estou perdido. A vida é um
mistério. As pessoas são misteriosas. E eu não tenho nada a ver com isso.
Quando nasci o egoísmo já estava aí fazendo suas vítimas há milhões de anos.
E além do mais, eu não pedi para nascer. Por isso, não me sinto responsável por
ninguém. Nem mesmo por mim.
Minha doce Karen dormia como uma criança inocente. Como um anjo.
Será que anjo dorme? Nem me preocupei em acordá-la. Como já eram quase
seis horas desisti de dormir novamente. Fui até o banheiro. Dei uma bela
cagada. Tomei um banho. Fui até a sala de visitas, peguei um livro e tentei ler.
Preferi ler a ficar imaginando coisas ruins. Pensamentos negativos sempre vêm
acompanhados de demônios. Não que eu tivesse fugindo de algo que me
pertubava. Nada disso. Porra, nunca tive sentimento de culpa por nada. Não era
agora que eu ia ficar filosofando barato sobre a crise existencialista. A menos
que minha regeneração começava a fazer cócegas na sola do meu pé. Será que
vou ter uma recaída, pensei. Fiquei cabreiro. Fiquei triste. Mas isso não era
motivo para preocupação. Não era nenhum caos. Pelo menos não parecia. Por
enquanto. E a leitura do livro estava mais interessante. Ainda bem. Charles
Bukowski, que era meu único guru na literatura mundial. Com suas “Cartas na
Rua”, me dava muita descontração e me fazia esquecer as coisas sem
importância. Mergulhei minha atenção e interesse no livro que acabei
esquecendo da hora. Fui surpreendido pela Karen que me deu um susto
colocando as mãos sobre meus ombros.
- Bom dia! Resolveu virar intelectual?
- Bom dia! A irreverência do Bukowski é meu melhor café da manhã.
- Tá legal. Conheço muito bem vocês dois. Você mais ainda.
Eu sabia perfeitamente o que a Karen queria dizer com aquilo. Não dei muita
atenção. Dei-lhe um beijo demorado e a conduzi para a sala do café da manhã.
Fizemos nosso desjejum e fui para meu trabalho. Ela ficou em casa por mais
algum tempo.
Meu dia parecia que ia ser bom. Pelo menos parecia. Saí do meu prédio e fui
contornando todas as alamedas cheias de árvores que traçam o bairro do Jardim
Paulista até chegar à Avenida Paulista.
Meu Sonho, ou pesadelo, sei lá o que era, parecia que era duas coisas. Ou era
ficção que virava realidade. Ou era realidade que coincidia, ou confundia, sei lá
o quê, com a vida. Ou então algum demônio andava doido para cruzar o meu
caminho. Parei meu carro no farol mais movimentado da Avenida Paulista. Em
frente ao Top Cine. E foi justamente o cartaz que me chamou a atenção, o
cartaz do filme que estava em exibição: “A tempestade”. O que isso tinha a
ver comigo? O título até que não tinha nada a ver, mas as fotos e a história
tinha tudo. Só à noite, depois que saí do meu escritório é que fui conferir minha
dúvida e fui salvo, ou condenado, vejamos, pela curiosidade. Lembra-se da
110
coincidência da vida que falei? Pois, tudo que curti nas Ilhas Gregas, na minha
lua-de-mel, tudo, ou quase tudo, estava naquele filme que jamais me
esquecerei. A história era de um famoso e bem sucedido arquiteto de Nova
Iorque que abandonou a carreira e foi passar as férias de verão com a família
numa Ilha da Grécia e lá sua vida mudou radicalmente. Ele recebeu poderes
divinos dos deuses do Olimpo e até Kalibanus entrou na história. No duro. Até
o nome era o mesmo. Kalibanus com K e com sua flauta e sua cabritada.
Coincidência ou convite? Convite para quê? Seja lá que diabo fosse eu
começava a ficar inquieto. E quando fico inquieto, cuidado, fico puto. E
quando emputeço, minha irreverência arrota toda a rebeldia do mundo que
hoje fica escondida e disfarçada num cara que demonstra ser certinho, senhor
responsável sem ser. Ou a natureza do ser humano é uma caixa de surpresa?
Ou todo ser humano é hipócrita? Ou será que a rebeldia e irreverência é nada
mais do que um charme bem cabeludo de quem não quer fazer o jogo da
sociedade hipócrita? Porra, pau na bunda de todos os conceitos da vida. Tenho
lar que me custou muito caro. Amo a única mulher que me fez a cabeça no
mundo. Sou um cara certinho, é verdade, mas e daí, não sou um hipócrita. Ué,
mas por que toda essa preocupação? Medo? Tá com medo, nego? Pode ser.
Também sou imortal. Mais que isso. Sou humano.
CAPÍTULO VINTE E UM
É. Então é isso. Sou humano. E como tal tenho que respeitar minha
sensibilidade. Meus desejos. Afinal, para você ser, para se sentir verdadeiro,
autêntico, você deve ser você mesmo. Você tem que pensar que você sempre
foi você mesmo e nunca explicou ao mundo porque prefere viver suas emoções
e escutar seus próprios desejos. E disso eu tinha certeza de que nunca abriria
mão. Nunca deixaria de ser eu mesmo. Custasse o preço que custasse.
Karen tinha ido para casa mais cedo nesse dia. Era uma Sexta-feira de calor. O
sol ardia no lombo de quem tinha que trabalhar na rua. Tínhamos programado
sair nesse dia à noite. Como ela não gostava de correrias e de trânsito
engarrafado, preferiu ir para casa antes do rush. Foi para casa antes das
dezesseis horas. Ela iria escolher o programa. Restaurante. Cinema. Teatro.
Boate. Eu deixava tudo por conta dela que sempre tinha bom gosto para as
melhores coisas. Combinamos que eu chegaria em casa às dezoito e sairíamos
às dezenove. Mas havia algo no ar que me dizia que a noite prometia surpresas.
Fiquei com a cabeça martelando e preparado para o que viesse. Não sei se tudo
não passava de fruto da minha mente. Da minha imaginação. Afinal, nosso
cérebro é dividido em duas partes. O lado do bem e o lado do mal. Às vezes
somos surpreendidos por pensamentos do lado do mal. Algumas vezes os
pensamentos do lado do mal do nosso cérebro, tentam dominar os pensamentos
111
do lado do bem. E isso não é nada bom. Ainda bem que a maior parte do tempo
estamos em sintonia com pensamentos do lado bom do cérebro, do lado do
bem. Nunca gosto e dou asas aos pensamentos ruins. Quando por ventura eles
aparecem eu imediatamente os expulso. Mas nesse dia, o cansaço, o stress, a
imaginação, os pensamentos do lado do mal, pareciam que queriam tomar conta
de mim. Queriam me dominar. Queriam se prevalecerem sobre minha mente,
sobre meu lado do bem. E não é só nossa mente que tem dois lados, o do bem e
o do mal. Tudo no mundo funciona assim. Uns agem, são movidos pelas
atitudes do bem. Já outros preferem praticar ações, estarem do lado contrário.
Não fosse isso, o mundo não seria o que sempre foi e sempre será. A vida é
sempre o que você faz. Se você é mau, sempre estará do lado dele. Se é bom,
estará do lado do bem. Quanto à mente, aí, nesse caso, seus pensamentos não
dependem só dos seus desejos. Eles aparecem sozinhos. Mesmo contra a sua
vontade.
Liguei para Karen e ela estava toda feliz e contente. Disse que já havia
escolhido nosso programa da noite e para eu não me atrasar. Prometi que não
me atrasaria, se dependesse de mim. Mas que se algo anormal acontecesse,
algum imprevisto, que ela não se preocupasse, pois morávamos numa cidade
onde tudo pode ocorrer. Ela disse o que iríamos fazer e até falou o nome da
boate em que terminaríamos a noite. Qualquer coisa parecido com Gallery.
Sexta-feira. Mas não era 13. Imagina então se fosse? Que dia! esse dia ficaria
marcado para sempre em minha vida. Às vezes, mesmo não querendo ou
tentando evitar algo, não temos controle de nossos impulsos. Não conseguimos
controlar nossa própria mente. E muito menos os impulsos que ela provoca.
Podemos afirmar, com certa segurança, que nunca fazemos tudo que temos
vontade e que não temos como evitar certas coisas que somos obrigados a fazer.
Às dezoito horas em ponto olhei pela janela da minha sala e vi algo que chamou
minha atenção. Meu escritório ficava no décimo quarto andar do prédio que era
a sede da minha empresa, num dos pontos mais altos da cidade: a Avenida
Paulista. De lá dava para ver toda a vastidão de uma selva de pedra. Uma
pomba branca pousou na soleira da janela da minha sala e ficou ali parada me
fitando com doce e desconfiados olhos à procura de carinho. Dei boas vindas a
ela e senti-me aliviado pela repentina e agradável visita. Ainda bem que é uma
pomba, pensei. Um aviso? Um alerta? Que sinal ou enigma ela representaria?
Os sinos da longínqua e triste Catedral da Sé badalavam em descompassada
sinfonia. Pobre e loucos responsos. O clima de final de semana tomava conta
dos corações selvagens agonizantes no meio da poluição. Todos sabiam que
cada fim de semana não tinha gosto de nada, era apenas um costumeiro e
solitário descanso semanal. Minha visitante olhou para mim, e com ar de
desconfiança e tristeza, querendo dizer algo, querendo fazer um alerta, alçou
vôo e foi para outras paragens. Fiquei meio triste e pensativo no que aquilo
poderia ser. Antes mesmo de sua repentina visita eu já estava inquieto. E isso
apenas serviu para aguçar mais ainda minha mente que martelava minha
cabeça. A linda pomba acabou de ir embora e minha secretária entrou na sala.
- Senhor Raul, posso ir embora? Se não precisar mais de mim hoje, estou
indo para casa.
112
-
Tudo bem, Débora. Pode ir. Tenha um bom final de semana. Mas cuidado.
A cidade está cheia de surpresas e perigos.
- Pode deixar que sei me cuidar direito. E você, vai continuar trabalhando?
- Acho que ainda vou ler e assinar uns papéis que estão em minha mesa.
Ainda é meio cedo para eu ir para casa. Na Segunda-feira temos reunião da
diretoria e tenho algumas sugestões e mudanças a fazer. A Karen está me
esperando para saírmos. Vamos nos divertir muito hoje. E amanhã vamos
para a fazenda. Por isso, quero deixar as coisas tudo em ordem.
- Então bom divertimento e até Segunda-feira.
- Até Segunda, Débora.
Ela saiu e ainda deu uma rápida olhadela para trás. Eu sabia o que aquilo
significava. Pois já tivéramos um caso antes. Nada de arrependimentos. Apenas
segredos nosso. Nada mais que isso. E ela era competente e discreta mais ainda.
Se dependesse dela a Karen nunca ficaria sabendo, como de fato nunca soube.
Mas passado era passado. Agora ela já era até noiva e eu torcia para que fosse
feliz com seu futuro marido. Seu noivo era engenheiro civil e trabalhava em
nossa empresa. A minha secretária acabou de sair e o telefone tocou. Atendi.
- Alô.
- Oi, amor. Ainda está trabalhando? Só liguei para lembrar do nosso
programa. Pensei que você fosse esquecer e ficar trabalhando até mais
tarde, como costuma fazer em vésperas de reuniões.
- Ô, amorzão! Não precisa se preocupar. Só vou terminar de ler e assinar uns
papéis aqui e antes das sete ou no máximo oito horas eu estarei em casa.
Estou muito cansado mas acredito que logo termino. Mande preparar meu
banho. Estou morrendo de fome também. Já sabe em qual restaurante
vamos jantar?
- Tenho uma lista tríplice para decidirmos juntos. Mas e o cinema? Vamos
antes ou depois do jantar?
- Sei lá. Que tal a sessão das dez?
- Por mim, tudo bem. Estou meio a fim de ver um filme chamado a
Tempestade. O que você acha?
- A Tempestade? Mas por que esse filme? Que tal a gente ir ver Black
Beauty? O jornal diz que é um filme lindo e encantador. É sobre cavalos.
- Está bem. Você venceu. Vamos ver cavalos hoje e outro dia vamos ver
água. Mas não demore.
- Pode deixar. Beijos. Te amo muito, meu chuchuzinho. Ah, amor. O
Bongiovanni está na lista trípice? Espero que sim, né?
- Claro que está, né, amor.
- Fetuccine Vincisgracci, então.
Desliguei e voltei ao meu trabalho. Comecei a ler e a assinar os papéis mas
meus pensamentos voavam longe dali. De repente fui surpreendido por
pensamentos estranhos. Eles surgiam sem que eu os chamasse. Por mais que
tentasse eu não conseguia evitá-los. A Tempestade. Que tremenda
coincidência. O mesmo filme que eu vira dias antes. Por que será que a Karen
queria ver o mesmo filme que mexera comigo e agora começava a ser meu
pesadelo?
113
Tentei livrar-me dos maus pensamentos mas quanto mais pensava, mais eles
iam incomodando e corroendo minha mente já quase insana. Parecia que eu
estava sendo possuído por um sentimento de culpa ou sei lá do quê. A única
coisa de que eu tinha realmente certeza era de que algo de errado estava
acontecendo ou iria acontecer comigo. Mas eu não sabia e nem queria saber o
que era. O máximo que eu podia fazer era deixar acontecer para ver o que era
e encarar a situação de frente. E foi o que fiz. A noite prometia muita neurose
e outras alucinações.
Terminei meu trabalho, apaguei as luzes e saí. Antes de sair dei uma olhada
geral em tudo que estava na minha sala e tive um arrepio. Tive medo.
Sentimento de medo não é bom sinal, pensei. Pensei em ligar para minha
esposa para dizer que já estava saindo mas desisti. Achei que era bobagem,
que em poucos minutos estaria em casa, pois a distância que separava meu
escritório da minha residência não era longe. Dava até para ir a pé em menos
de meia hora. Tranquei tudo e desci direto para a garagem no sub-solo. Na
garagem havia poucos carros. Somente o meu e outros pertencentes à empresa.
Dei uma olhada estranha em todos os cantos da garagem com uma
desconfiança de que eu estava sendo seguido. Mas sabia que não passava de
neurose provocada pela mente poluída típica de cidade grande. Abri o carro e
joguei a pasta no banco de trás. Dei partida e saí devagar como sempre fazia.
Quando avançava pela calçada para pegar a rua, vi o porteiro da empresa
acenar para mim e dizer: “Até Segunda, seo Raul. Bom final de semana.” E
ficou com a mão estendida num gesto de adeus. Virei à direita e segui em
frente. A Avenida Paulista, a mais famosa avenida de São Paulo e do Brasil,
estava com tráfego normal e sem muito congestionamento, mesmo sendo uma
Sexta-feira. Mas a calçada estava fervilhando de pedestres. As pessoas
preferem andar a pé nesse horário. Todo mundo marca encontro em algum
lugar na Paulista, por ela ser considerada a avenida mais bonita da cidade.
Eu seguia meu caminho habitual. Dois quarteirões à frente eu quebraria à
direta para descer na alameda que cruzava minha rua a poucos metros do meu
prédio. Mas no primeiro sinaleiro que estava vermelho para mim, fui
surpreendido por um grande susto. O dia nem tinha terminado direito e minha
noite não começava nada agradável. Um sujeito alto e forte apareceu de
repente ao meu lado e apontou uma arma para minha cabeça.
- Desça do carro e vai andando quietinho, seo cara-de-playboy, - disse o pinta
já abrindo a porta do carro. “Ah, meu Deus!”, - pensei e tratei logo de
obedecer sem ao menos fazer gesto de apanhar minha pasta no banco de trás.
O cara entrou no carro e saiu cantando pneu com o farol ainda amarelo. Fiquei
ali na calçada parado vendo meu carro desaparecer no meio de outros carros.
Nem sequer falei para outras pessoas o que tinha acontecido. Acho até mesmo
que ninguém percebeu nada. Já que estava na calçada, tive a idéia de andar um
pouco para refrescar a cabeça e depois pensar em alguma atitude a tomar. Não
cogitei nenhuma idéia. Sabia que não valeria a pena e nem resolveria nada
chamar a polícia ou pedir ajuda de quem quer que fosse. A única alternativa
que me restava era pegar um táxi ou ir a pé para casa. Mas refutei até mesmo
essa idéia. Comecei a andar normalmente pela calçada. Atravessei a avenida e
segui em frente pelo outro lado na calçada. Mas nem sei por que fiz isso, pois
114
eu estava do lado direito da avenida e a poucos metros da alameda que
chegaria ao meu prédio. Fui andando sem destino e sem noção do que estava
fazendo. Duas quadras depois eu já estava passando na frente de um prédio
com grandes escadarias onde funciona uma faculdade de jornalismo e um
cursinho pré-vestibular famoso. O prédio pertence a uma fundação de ensino
superior e é famoso por erguer a torre de TV mais famosa da cidade. No
prédio existem várias salas de cinema e um teatro. Todos os dias acontecem
vários programas culturais ao vivo ou gravações no canal da TV que funciona
no mesmo prédio. Minha atenção foi tomada de súbito por uma cena que de
uma hora para outra me fez esquecer do episódio anterior, do assalto ao meu
carro. De repente comecei a passar pelo meio de uma multidão de pessoas
vestidas tipicamente de cowboys em plena Avenida Paulista e muitos até
puxavam e montavam lindos cavalos selados. Achei a cena engraçada e
curiosa e até passei a me interessar por ela. Comecei a observar tudo que
acontecia no local contaminado pela curiosidade que tomava conta de todos
que passavam pela calçada. Havia todo tipo de cowboy. Homens, mulheres e
até crianças com trajes típicos do velho oeste. Com coldres, revólveres e tudo.
Percebi alguns policiais verdadeiros de cavalaria puxando seus animais pelas
rédeas. As pessoas paravam para observar e se encantarem com a cena
inusitada. Minha admiração por lindos cavalos aguçou minha curiosidade e me
fez lembrar que eu também tinha vários cavalos. Mas não pensei em nada
mais. Nem mesmo na minha esposa. Parecia que algo me cegava ou roubava
meus pensamentos tornando-me acéfalo. Eu estava tão obcecado por alguma
coisa, por alguma piração, que sentia-me anestesiado, com ausência total de
pensamentos. Um ser vegetativo e amnéstico.
De repente ouvi gritos de uma senhora distinta, de meia idade, bem vestida e
com aparência de pessoa de classe alta e muito abastada e um sujeito passou
correndo por mim com uma bolsa de mulher nas mãos.
- SOCORRO. PEGA LADRÃO. - Berrava desesperadamente a mulher.
Olhei para todos os lados e pude observar o espanto e inércia das pessoas que
não faziam nada para ajudar a pobre vítima desesperada. Até os dois policiais
que puxavam seus cavalos não fizeram nada. Um senso de solidariedade
invadiu minha mente e lembrei-me repentinamente do que acabara de acontecer
comigo minutos antes. Vi o ladrão fugindo na lateral da rua entre carros
parados e a calçada. Pensei que se corresse ainda poderia alcançá-lo e
surpreendê-lo. A calçada e ponto mais famosos da Avenida Paulista, a minha
eterna Paulista por onde tanto andei à procura de alguma confusão, tempos
atrás, estava tomada de gente. Cowboys e seus cavalos selados por todos os
lados. Minha vista fez um giro de 180 graus, parecendo uma cena de um filme
de suspense, olhei para o ladrão fugindo vagarosamente e voltei o olhar para a
vítima desesperada e segui o olhar para os cavalos selados e com um laço na
garupa. O senso de solariedade e sede de vingança trazidos pelo sangue quente
contaminado pela adrenalina do bem, que irriga um lado do nosso cérebro, e do
mal, que provoca flashes de neurônios que estão no lado mal do pensamento, e
decidido a agir, tomei uma decisão. A primeira que pintou na minha mente.
Como não carregava nada nas mãos, dei uma corrida e tomei a rédea do cavalo
com o laço na garupa das mãos do seu dono e num segundo eu já estava em
115
cima dele desamarrando o laço. Larguei em disparada no meio das pessoas e
dos carros. O sujeito com a bolsa roubada não conseguia correr. Mais por susto
do que medo. Eu que era, que sou, muito bom no laço e já tinha laçado cavalo e
vaca correndo na minha fazenda e nos tempos de criança, alcei o laço e atirei-o
certeiramente contra o corpo do fugitivo. Pimba! Arremecei e acertei em cheio.
O ladrão, que nunca esperava passar por uma cena cinematográfica dessa, o
velho oeste em plena Paulista e ele seria o índio capiturado, ficou imóvel no
chão pedindo clemência e sem saber o que fazer. O trânsito e todas as pessoas
pararam para assistirem à cena. Todo mundo pensava que eram filmagens de
algum filme. Ninguém sabia o que realmente estava acontecendo.
Principalmente depois que desci do cavalo e me dirigi para o sujeito deitado de
bruço no meio do asfalto cercado por carros e uma multidão perdida que não se
lembrava mais para onde ia. O dono do cavalo talvez fosse o mais preocupado.
Botava as duas mãos na cabeça e gritava desesperadamente pedindo seu cavalo
de volta. A vítima do ladrão observava a cena impaciente e chorosa.
Aproximei-me do sujeito laçado e meti-lhe um bicudo no rabo. O cara gemeu.
Meti-lhe outro e gritei com fúria: “Toma mais essa, seu espertinho”. Agarrei o
fulano pelo cabelo e perguntei-lhe: “então, meu chapa, cumé qui é? Roubando
uma pobre senhora indefesa? Não quer me roubar também, como fez seu
camarada agora há pouco que levou meu lindo carro novinho em folha? Uma
maravilha de carro para os padrões do espírito consumista e capitalista em que
vivemos.” O cara nem respirava direito de tanto medo. Com tanto vingador,
justiceiro e coisas do tipo por aí, o cara com certeza pensou que sua hora tinha
chegado. Pensou que eu era um dos tantos justiceiros que existem por todo
lado, querendo fazer justiça com suas próprias mãos. Lei que nem eles mesmos
sabem qual é. É a lei da vergonha, hipocrisia. A lei dos bad spirits. Só
conseguia pedir pelo amor de Deus que não o matasse.
- Então, ladrãozinho, está armado? Deixe-me ver?, - pisei em suas costas e
levantei a camisa e o casaco. - Mas, bah tchêê!!, olha só isso aqui. Uma
pistola automática de verdade. Não. Claro que não. Aposto que não é de
verdade. Vamos ver se ela fuciona. - Peguei a pistola e a destravei.
Quando o sujeito ouviu o clic da trava ele deu um grito de horror.
- NÃO. Pelo amor de Deus, não me mate. A droga da pistola é verdadeira
sim.
- Verdadeira? Então vamos experimentar para ver se ela funciona. Apontei a arma para sua cabeça e puxei o gatilho mirando ao lado de sua
orelha direita. BUUUNNNNN!.. O estouro zuniu na cabeça do sujeito. Ele
ficou imóvel achando que era o seu fim. Travei a arma e a coloquei na
minha cintura debaixo do paletó e gravata. Um herói! A volta do herói
Ulisses. Não. Não era a volta do herói Ulisses pelas ruas soturnas e insanas
de uma cidade mais louca ainda, era apenas o começo de uma noite que
estava apenas começando.
Afroxei o laço e gritei para o fulano que acabava de renascer, pelo menos em
seus pensamentos.
- Vai andando aí, irmãozinho, e não olhe para trás, se não quiser levar uma
coisinha na nuca. E sua arma, que nem deve ser sua, aposto como a roubou de
alguém, foi confiscada perante a lei da selva de pedra. Sou um caçador no
116
meio dessa selva de desafios pela sobrevivência. Estamos em lados opostos.
Sou do bem. Sou do lado do bem. Nunca estive do lado do mal, mas sou
obrigado, em nome da sobrevivência e da legítima defesa de minha dignidade,
minha honra e da minha vida e de outras pessoas em perigo, a agir, a fazer
alguma coisa. Mesmo alguma coisa contra minha vontade e principíos. Não
olhe para trás e trate de fazer alguma coisa boa para compensar essa burrada,
senão pode se dar mal por aí. Nunca o vi, e você nunca me viu,(e não tinha
visto mesmo. Pois o sujeito ficou de costas o tempo todo.), portanto, não
somos nem amigos e nem inimigos.
Terminei meu discurso moralista, porém, pertinente e voltei com o cavalo
numa mão e a bolsa da madame em outra. Devolvi o cavalo a seu dono e
agradeci. Dirigi-me para a dona da bolsa que estava calma e quase sorridente de
felicidade. Fiz um gesto de entregar-lhe a bolsa mas recolhi o braço. Abri a
bolsa e olhei para dentro. Parei e pensei um pouco. Olhei para a mulher e
perguntei:
- Madame, a senhora tem muita grana aí dentro? - Nem esperei ela
responder e já fui abrindo sua carteira. - Olha só... Que maravilha! Mas
Bah, tia, desse jeito a senhora estava pedindo para ser assaltada.
DÓLARES! Que maravilha! Pacoteira de dóó-la-res? Para que tanta
grana? A senhora sabe que arrisquei minha vida naquele cavalo para salvar
sua bolsa, madame? E agora? E se sua bolsa estivesse longe agora? O que
a senhora ia fazer? Quem anda com tanta grana assim na carteira é porque
está pedindo para ser assaltada. E se o trombadinha tivesse abrido a bolsa,
o que poderia ter acontecido comigo? E o que eu levo nessa história toda?
O que eu ganho por ter arriscado minha vida para salvar a fortuna da
senhora, madame? - Entreguei a bolsa da mulher e ela abriu a carteira e
tirou duas notas de cinquenta dólares e estendeu para mim.
- Tome isso. E muito obrigada pelo que fez. Seu gesto foi muito bonito e
mais corajoso ainda.
- Tome isso? Que história é essa? Olhe para mim, acaso tenho aparência de
alguém que precisa de duas notas de cinquenta dólares, madame? - a
burguesia fede. Alguém já disse isso antes. Olhei para o rosto da fulana
com a mão estendida, rodeada por uma multidão de curiosos e torcida, fiz
um olhar de ironia e balancei a cabeça negativamente num gesto de
desprezo pelo dinheiro e peguei sua carteira na mão esquerda. - Olha aqui
tia, olha só quanto dinheiro a senhora tem. Cinco mil. Dez mil. Mais...
Muito mais, tia. No mínimo dez mil pratas é o que tem aqui e a madame
vem com duas notas na mão achando que eu preciso dessa esmola. Aqui,
ó...,(fiz um belo gesto de vai se foder, tia), aqui ó, tiazinha, a metade
certinha. Como a senhora ia ficar sem nada, a metade está mais do que
bom. Para quem não tinha nada, ia ficar sem toda a grana, a metade está de
bom tamanho. - Peguei a metade das pacoteiras de notas de cem dólares
verdinhas e devolvi a carteira.
- Já que dei uma de herói bonzinho, de John Wayne, vou continuar com a
empreitada na noite e dar uma de Robim Wood. Vou dar essa grana para os
pobres. Para os mendigos, os representantes do lumpesinato, porque de outras
classes já estou começando a ficar farto. Adeus, madame. Mas cuidado para não
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sair mais na rua com tanta grana dentro de uma bolsa dando sopa por aí. A rua
está cheia de ladrões, tia. Pode ser que o seu anjo, ou herói, da guarda não esteja
por perto. - Dei as costas e fui andando sem olhar para trás. A multidão ficou
lá parada de boca aberta tentando entender o que estava acontecendo. Nem os
policias que já tinham se perdido no meio do mar de gente se lebraram de pedir
a arma. Nem eles se lebraram de pedir, nem eu me preocupei em entregá-la.
Fui saindo tranquilamente e a pobre senhora rica ficou lá estacada e boquiaberta
provavelmente tentando pensar e acreditar se aquilo tudo era realidade ou
sonho. Cada uma que acontece com a gente quando saímos à rua! Não, não
podia ser realidade o que acabara de acontecer. Era muito tenebroso e mais
parecia ficção do que realidade. De repente ela saía à rua, sabe-se lá por que
motivo, com a carteira cheia de dólares, aparece um ladrão e rouba todo seu
dinheiro, e instantaneamente um providencial anjo da guarda mais do que
maluco surge das nuvens de poeira e poluição para lhe salvar e recuperar sua
bolsa. E depois de recuperada, seu anjo mais do que maluco ironiza da sua
cara, paga da sua cara, e leva, meio que contra sua vontade, a metade do seu
dinheiro, mais de dez mil dólares, sem necessidade aparente, para doar aos
pobres. Isso só pode ser ficção ou sonho. Só podia ser isso mesmo. Ela ficou ali
parada no meio da multidão, mumificada, me vendo afastar sem dizer uma só
palavra. Nem agradecer ao menos conseguia. “Adeus meu anjo da guarda
maluco. Apareça de vez em quando. Apareça sempre. Estarei te esperando nas
esquinas do mundo. Desse cruel world”, - deve ter sido o que ela
provavelmente tenha pensado.
Como tinha surgido misteriosamente no meio da confusão, mais
misteriosamente fui me afastando para outras aventuras. Segui em frente sem
pensar em nada. Depois do que tinha acabado de acontecer, dos dois episódios,
o assalto ao meu carro e toda a história do roubo da bolsa que culminou no set
de filmagens de um filme faroeste, mas sem câmera, ou com câmeras invisíveis,
qualquer coisa que me acontecesse naquele começo de noite de Sexta-feira, que
não era 13, seria café pequeno. Seria bobagem. Então vamos encarar a noite e
suas ruas tenebrosas só para ver o que a adrenalina pode provocar.
O que será que a senhora dos dólares, a multidão de curiosos, incluíndo os dois
policiais de montaria e principalmente os cowboys de araque do asfalto que
estavam no local para participarem de um programa de TV no auditório daquele
canal de TV que funcionava naquele prédio das escadarias, teriam pensado de
mim? No mínimo, que existem cada louco, cada tipo de louco, por aí, soltos
pela cidade. Coisas que eles jamais imaginavam ver. O que é uma cidade
grande, heim? Deixei todos para trás com seus pensamentos e tratei de
mergulhar nos meus próprios pensamentos e nas profundezas da noite e seus
calafrios. Go way, boy! Vá em frente, garoto. E era isso que eu já estava
fazendo. Sentia-me livre para pensar, para encarar qualquer parada ou desafio
sem medo e sem me importar com nada. Sem destino. Um mergulho na noite
tenebrosa. Lembrei-me dos meus bons tempos de “bicho livre e solto”,
andarilho aventureiro que curtia as ruas em longas caminhadas à procura de
aventuras, que eram só minhas, quando eu morava sozinho em pensões e
quitinetes baratas e tinha sub-empregos como garçon, mensageiro de hotel e até
mesmo bancário. Para dizer a verdade, nem passava pela minha cabeça nesse
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momento que eu era um rapaz sério, bem casado, com responsabilidades, um
executivo de respeito, um cara pra lá de feliz e que também fazia alguém muito
feliz. Parecia até que eu sentia de um mal chamado recaída. Um mal que ataca
todo mundo. Daqueles que o sujeito é viciado em alguma coisa, faz um
tratamento e depois, num vacilo, num descuido repentino, cai de novo em
desgraça. Será? Será mesmo que algo de muito estranho estava acontecendo
comigo?
Caminhei tranquilamente pela Paulista sem pensar em nada. Sem nada de
extraordinário chamar minha atenção. Segui o mesmo rumo, a mesma direção,
para onde o ladrão desarmado tinha fugido. Mas não me lembrei mais dele. Não
lembrava e fazia questão de não lembrar de mais nada do que tinha acontecido
minutos atrás. Seguia livre e solto, sem destino, sem me preocupar com nada.
Queria apenas andar e ver coisas para descarregar qualquer energia negativa e
para despoluir os meus pensamentos. Eu era um misto de Kafka com
Bukowsiki. Sabia que meu destino naquela noite era uma incógnita. Sabia que
aquele passeio era emocionante porque me fazia bem. Sabia que tudo que
vivemos com intensidade faz bem à nossa alma. Que somos movidos por
instintos e flashes de loucuras e emoções. A racionalidade não conta muito.
Apenas em momentos raros. E muitas vezes agimos racionalmente apenas para
fazer coisas erradas. Eu sabia naquele momento que a razão andava longe de
mim. Nem me importei muito com isso. Pois, nunca dei muita bola,
importância, à razão. Tinha certa intuição de que nada de mal aconteceria a
mim e que no final tudo acabaria bem. De modo que não pensava em nada e
não queria lembrar de nada. Nem mesmo das melhores coisas que faziam parte
da minha vida. Já que meu roteiro e programa da noite tinha mudado de rota,
procurei viver e curtir o que aparecesse no meu caminho sem nenhuma culpa ou
censura para meus instintos.
Depois de andar tranquilamente livre e solto de qualquer pensamento que
pudesse me aborrecer, parei numa banca de jornais grande e sofisticada, muito
linda por sinal, na Paulista esquina com a Avenida Brigadeiro Luiz Antônio. O
dono da revistaria, que mais parecia uma livraria, tabacaria, e coisas do tipo, era
um cara muito bacana, de uns quarenta e cinco anos ou perto dos cinquenta, foi
logo puxando conversa. Perguntou em quem eu ia votar para prefeito. Como eu
estava solto e desprendido de qualquer juízo a respeito de qualquer coisa e o
momento não era propício para discussão a respeito de conjecturas ideológicas
e partidárias, tratei logo de despitar e não dar rédeas ao assunto. Mesmo assim
tive que responder.
- Sempre voto no melhor. Votarei na candidata da minha mulher. E
concordo com ela. A sexóloga é a única que merece respeito e confiança. É
uma mulher muito inteligente, digna, honrada e muito humanitária.
Sempre lutou por grandes causas a favor das minorias. Das classes
dominadas e exploradas e discriminadas. Aprendi muitas coisas boas com
ela. Minha esposa é grande admiradora da sexóloga e passou isso para
mim. Quando fazemos nossas refeições em casa, minha mulher sempre faz
uma prece que aprendeu indiretamente com os princípios defendidos pela
sexóloga que diz: “Senhor, dai pão a quem tem fome e fome de justiça a
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quem tem pão”. E o senhor, em quem vai votar? Se não quiser responder
não precisa se incomodar.
Imagina! Claro que faço questão de responder. Não só faço questão, como
sempre peço votos das pessoas que ainda estão indecisas. Eu também vou
votar na melhor. Na sua candidata. Na sexóloga. Ela é mulher e humana
com todas as pessoas. Principalmente com as pessoas humildes. Ela sabe
ler e entender a alma das pessoas. Não é porque ela vem de classe abastada
que vai dar as costas para a periferia. Ela e seu marido, que é senador da
República, são realmente pessoas que dedicaram suas vidas a grandes
causas. São pessoas como foram Rousseau, Lenin, Ghandi, Guevara e
tantos outros que se abdicaram de suas posses para voltarem seus olhos às
classes operárias e desvalidos. Desvalidos e desgovernados, como é o caso
de nossa cidade. Olha só o que aconteceu com a querida e linda cidade. O
outro candidato, o maior corrupto do país, não merece e não tem a
confiança de ninguém, a não ser das pessoas que pensam como ele ou dos
ignorantes que são manipulados por ele.
Acho que o senhor tem razão. Razão? É. Acho que o senhor está certo.
O que você disse? Perguntou qualquer coisa a respeito de razão?
Nada não. É que dei um vacilo. Entende? Mas eu concordo com o senhor.
Minha mulher também tem senso de justiça. E eu gosto dos raciocínios
dela. Ela vive me dizendo que precisamos fazer doações aqui e ali. Sempre
ajudamos muitas instituições de caridades como Apaes, Apadas, Acds,
escolas e tantas outras. Sempre dedicamos partes dos lucros a doações e
prêmios a funcionários no final do ano.
Outro motivo que me faz votar na candidata sexóloga é por causa de seu
partido. Ela e seu marido têm a mesma ideologia. Eu gosto do seu partido.
Um partido de intelectuais voltado às grandes causas da massa que sempre
foi manipulada pelas elites que sempre estiveram no poder, representada
pelo candidato corrupto e ladrão.
Pelo jeito estou vendo no senhor um grande intelectual sério e honesto,
partidário das causas justas. O que o senhor pensa da loucura? perguntei, mudando de assunto.
Ah, a loucura? Todos nós somos loucos. Se habitamos esse planeta maluco
e uma cidade tão louca como a nossa é porque somos todos malucos
também. Cada um à sua moda, maneira, bem entendido. Você não
concorda?
Acho que sim. Digamos que estamos sujeitos às adversidades que nos
rodeiam. Que tudo, que a vida não passa de uma brincadeira de bom gosto
para uns e de mal gosto para outros. Mas que dá para curti-la com o
máximo de intensidade. O senhor não acha?
Claro. Mas temos que fazer nossa parte, dar nossa contribuição para
melhorar as condições de vida de nosso planeta e de nossa cidade e até do
nosso país. Se não fizermos nossa parte, que legado deixaremos para
nossos descendentes? O mundo para ser bom precisa de pessoas sérias e
honestas e comprometidas com grandes causas e não apenas com o
individualismo gritante que corrói a maior parte da humanidade.
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A conversa estava boa e agradável e eu concordava e torcia por tudo o que o
jornaleiro falava, mas não iria ficar ali devaneando e conjecturando a noite toda
sobre o destino da humanidade, pois já tinha minha opinião formada sobre ela e
não adiantava nada mostrar seus abusos e hipocrisia. Ouvi mais um pouco o
simpático e honesto comerciante, que acabou por mudar de assunto diante da
minha falta de interesse sobre o destino da humanidade, que para mim já estava
sacramentada e condenada há muito tempo, e passou a falar sobre suas
habilidades de cartunista. Confesso que quando ele falou do seu lado artístico
fiquei um tanto quanto interessado e até emocionado. Seu nome artístico era
qualquer coisa parecida com Zero. Pedro ou João Zero, não me recordo direito.
Ele era comerciante por tradição. Herdara a banca de jornais e revistas do avô e
a transformara num gostoso e aconchegante ponto de encontro de todo tipo e
espécie de fregueses. Sua loja, agora toda sofisticada, com muito conforto e até
ar condicionado, era uma referência para as pessoas que moravam, trabalhavam
e passavam pelo quadrilátero mais famoso da Avenida Paulista com a
Brigadeiro Luiz Antônio. Mas o que ele mais gostava e curtia fazer, há muito
tempo, era criar seus cartuns. Ele era até um pouco famoso no seu meio.
Primeiro, como cartunista do maior e melhor Jornal da cidade, a Folha, depois
no seu próprio site que era invadido por internautas do mundo inteiro. Gostei
um bocado de um personagem seu. Era um coelho preto muito lindo chamado
Bob. Ele disse que tivera muitos coelhos em sua casa e que eles o inspirava.
Mas o seu preferido e queridinho era o Bob.
- No começo, o Bob era pretinho e até delicado. Comprei-o numa dessas
lojas de animais, Pet Shop, apenas porque gostara muito dele. Era
pequenino e tinha uma orelha caída para trás. Com o passar dos dias e
meses ele cresceu muito e se tornou meu preferido. Sua namorada era uma
coelha branca e linda, mas meio bobona. Quando ela começou a criar
muito eu a doei. Ficou apenas o Bob na minha casa. Seu nome era Bob,
mas meus amigos, que sempre iam me visitar e até minha atual esposa o
chamavam de Bob Marley, por ele ser um coelho preto. Todos diziam: “e
aí, Bob Marley, cadê a sua namorada, a Rose Pichula?”. Foi por isso que o
transformei em meu personagem. Olha uma foto do Bob aqui. olha só que
beleza! O que você achou dele? Não é lindo? Eu adoro o Bob. Ele é como
um filho ou afilhado para mim.
- Claro, claro que é lindo. Pode deixar que vou visitar sua HP. Vou “viajar”
nas piras do Bob e do senhor também. Até mais, amigo. Quando eu estiver
aqui por perto, prometo que darei uma passadinha aqui para comprar um
jornal, revista e ter notícias do Bob. Até mais. Até qualquer hora, - e fui
andando deixando o bom e simpático comerciante-artista para trás.
Cada um com sua pira. Cada um com sua loucura. Eu com as minhas e o
resto da humanidade com as suas. Uns gostam de coelhos. Outros de viverem
suas alucinações da melhor forma possível.
Já que estava sem destino, algo meio parecido com o planeta terra e seus
habitantes, e encontrava-me numa encruzilhada, e não tinha encontro marcado
com ninguém, meu rumo de casa já tinha sido desviado há muito tempo por
motivos alheios à minha vontade, e eu, e quem eu mais amava, e me amava
também, sabíamos que estávamos sujeitos a todo e qualquer tipo de
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adversidades, então não parei para pensar e decidir qual rumo tomar. Se seguia
em frente, virava à direita, rumo aos Jardins e Parque do Ibirapuera, se
quebraria à esquerda rumo ao centro da cidade ou se retornaria e curtiria a
Paulista toda e o que de melhor e pior pudesse acontecer em seu seio cheio de
beleza e apavoro. Como andava sem nenhuma preocupação mas disposto a
enfrentar qualquer barra, quebrei à esquerda e peguei a Brigadeiro que descia
para o centro da cidade só para ver o que acontecia. Afinal, numa noite
alucinada de Sexta-feira, qualquer lugar, fora meu canto ao lado da minha
esposa, era ameaça e sinônimo de aventura e risco de perigo. Vamos nessa,
camarada Raul, só para ver se o diabo existe mesmo e se tem rabo. Ele
normalmente marca encontro com a gente numa encruzilhada, mas dessa vez
resolveu variar um pouco e antecipar para o meio da Paulista quando fui
tomado de súbito por um ladrãozinho barato de carro.
Comecei a descer a movimentadíssima Avenida Brigadeiro Luiz Antônio com
seus inumeráveis ônibus de dois andares e tráfego infernal.
Eu caminhava calma e tranquilamente sem me deixar levar por qualquer
pensamento que fosse. Sem destino e sem pensamentos. Um ser apenas
caminhando na calçada de uma cidade grande no meio de pessoas
insignificantes que não se preocupavam comigo e nem eu com elas. Um ser
invisível. Um ser despido de qualquer sentimento naquele momento. Um ser
amnéstico. Se não pensava e não me preocupava com nada e com ninguém, o
mesmo esperava de outrem. Mas será que realmente era isso que estava
acontecendo lá para as bandas dos Jardins, mais precisamente no apartamento
de uma moça que se sentia a pessoa mais feliz do mundo? A senhora Karen
Mellão Bonfim? Aposto que não. A essa altura da noite a pobre e inocente
Karen já devia ter ligado umas mil vezes para meu trabalho e perguntado para o
porteiro o que tinha acontecido com seu marido. Duas coisas poderiam ter
acontecido. Ou ela estava desesperada e triste ou estava tranquila e procuraria
fazer alguma coisa boa para passar o tempo e esperar meu retorno com alguma
justificativa sobre o que acontecera. Portanto, eu não precisava me preocupar
com minha adorável e compreensiva esposa. Para falar a verdade eu não
precisava me preocupar com nada. Nada mesmo. Nem mesmo comigo. Apenas
cair de cara, mergulhar, na noite sombria que se desenhava à minha frente.
Andei uns dois quarteirões e parei numa loja que só vendia chocolates. Entrei.
A loja era famosa pelos seus chocolates deliciosos. Eu já tinha comido muitos
chocolates dessa loja antes. Conhecia muitas variedades. Mas o meu preferido
era um chocolate em forma de merengue que vinha numa caixinha quadrada e
se chamava “Nhá Benta”. Pedi duas caixas, que vinha gelado ou natural.
Preferi gelado. A balconista, muito bonita e simpática, por sinal, colocou os
chocolates numa pequena sacola marrom estampada com a logomarca da
empresa que fabricava os melhores chocolates do país, Koppenhagen, e me
entregou tudo. Para quem iria jantar num bom e caríssimo restaurante, comer
chocolates finos até que não era nada mal. Saí da loja e fui andando e comendo
meu delicioso jantar suíço. Eu ainda estava na primeira mordida do primeiro
Nhá Benta, quando fui abordado por um mendigo. Ele me pediu um pedaço de
chocolate. Olhei para ele de cima em baixo e apesar de seu aspecto de miséria e
degradação humana, simpatizei-me com ele. Meti a mão na sacolinha plástica e
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peguei a outra caixa de Nhá Benta e entreguei-lhe. Ele ficou todo feliz e
sorridente. Abriu a caixinha de chocolate e deu uma mordida cheia de prazer.
Depois olhou para o meu e perguntou:
- Uummhh. Que delícia! O seu também é gostoso como este?
- É. É sim. Gostou do chocolate? Quer que eu compre mais um?
- Quero. Quero sim.
- Então me espere aqui. - Voltei à loja e pedi mais quatro caixas. Duas para
mim, e duas para meu convidado. Meu novo amigo. Voltei para a rua e ele
estava me esperando com um sorriso faceiro.
- Toma. Comprei quatro caixas. Duas para cada um. O que achou dessa?
- Ótimo. Sempre fui a fim de comer chocolate dessa loja, mas eles nunca me
dão nada. Acho que hoje é meu dia de sorte. - Disse ele andando ao meu
lado como se fôssemos velhos amigos. Perguntei seu nome e o que ele
mais gostava de fazer.
- Não sei. Não me lembro do meu nome. Acho que não tenho nome.
Ninguém nunca perguntou meu nome. Como não preciso de documento
para nada, e nem tenho documento, acabei esquecendo meu nome. E o seu,
qual é?
- As pessoas me chamam de Raul. Nos meus documentos também está
escrito Raul. Mas pode me chamar como quiser. Nomes não são
importantes. Nada é importante. Você não acha? Olha só para nós dois. Eu
estou bem vestido, com terno e gravata e tudo. Você é um lumpem. Um
mendigo. Aí eu te pergunto: qual a diferença que existe entre nós?
Nenhuma! É, meu caro..., como é seu nome mesmo? Ah, lembrei. Semnome. É, meu caro Sem-nome, não há diferença nenhuma entre nós. Você,
em seu mundinho, ou sei lá que mundo é, em suas piras, alucinações, ou
seja lá o que você quiser chamar, pode achar que há diferenças entre nós.
Mas te garanto que somos todos iguais. O que qualquer um pode achar,
você talvez não, da diferença, são apenas nossas aparências. As roupas. Só
isso. Eu posso muito bem estar vestido à la burguesia e pensar e agir como
um mendigo, como agora. Você não gostaria de ser meu amigo? Da gente
ser grandes e bons amigos? E só fico amigo de quem eu realmente gosto. E
só gosto dos autênticos. De pessoas verdadeiras. Você conhece os fakes?
Eu conheço uma pessoa fake só de olhar para ela. Dos fakes eu não gosto.
Você não é um fake. É verdadeiro. É legítimo, verdadeiro e bom. É uma
alma pura. Somente as almas puras não são fakes. Você não é fake porque
é autêntico. Se não fosse autêntico não seria mendigo. Para mim, os seres
mais autênticos são os mendigos. São tão autênticos que são mendigos.
São inocentes. Esquece os motivos que levam um sujeito a tornar-se um
mendigo. Por isso, por você não ser fake, acho que podemos ser amigos. A
menos que você não queira. O que você acha?
- Ok.
- Quer ser meu amigo, então?
- Por mim, tudo bem.
- Então toca aqui. Vamos nessa, camarada. Para comemorar nossa amizade,
amizade nova e verdadeira amizade, vamos curtir a noite toda juntos. Você
topa essa parada?
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Topo.
Topa mesmo?
Pode apostar.
Escuta essa. Vamos cair na noite feito dois velhos amigos que resolveram
tirar uma noite de suas vidas, suas medícres e rídiculas vidas certinhas e
dentro de padrões movidos por simulacros, cada um na sua vidinha, cada
um com seu tipo de vidinha besta, eu sou dublê de executivo de araque,
casei com uma linda e adorável mulher que é uma alma pura e os deuses
do universo, os deuses que me criaram, apiedaram-se de mim e me
transformaram em executivo rico de araque, e você não teve, digamos, a
mesma sorte que tive e escolheu um tipo de vidinha que te faz feliz. Que
não te cobra nada. Que não te faz passar vergonha. Que te deixa livre para
pensar e fazer o que bem quer, o que te der vontade de fazer. Se você
morrer no meio da rua, você será apenas uma estatística, um número, um
Sem-nome, como você mesmo falou. Um indigente foi morto, não se sabe
como, no meio da rua. Só isso. Ninguém dirá que o fulano de tal morreu. E
se seu nome for Roberto. Quem vai dizer que o mendigo Roberto
Schalemberg morreu na Avenida Paulista? Mas se for alguém que vive
movido à razão, esse sujeito será lembrado e venerado por muita gente.
Muita gente ficará sabendo que morreu de infarto, andando na Avenida
Paulista o prêmio Nobel de física, Roberto Schalemberg. Como temos
aparências exóticas. Somos dois mendigos com aparências exóticas,
precisamos entrar num acordo antes, para podermos cutir a noite com
muita intencidade e emoção. Uma grande noite. Uma noite digna de ser
comemorada. Afinal, estamos comemorando o nascimento de uma grande
amizade. Poderemos ser amigos para sempre. Quer ser meu amigo para
sempre, Roberto Schalemberg? Posso te chamar de Roberto Schalemberg?
Tudo bem, amigão. A partir de agora sou seu amigo, camarada, Roberto
Schalemberg, muito prazer.
É isso aí, camarada. Camarada Schalemberg. Vamos curtir tudo que temos
direito. Não se preocupe com nada. Com ninguém. Eu resolvo tudo. Não
sou herói e muito menos anjo da guarda de porra nenhuma, mas pode
deixar que resolvo tudo. Hoje realmente é sua noite de sorte. Mendigos
vivem dos restos de lixo, da comiseração das almas puras. Já vi muita
gente ajudando mendigos. Eu sempre ajudei os mendigos. Hoje foi o seu
dia de sorte. Um mendigo que teve sorte numa noite de Sexta-feira muito
louca. Nem vou te contar o que vem me acontecendo o dia todo. Não conto
porque não tem importância nenhuma e porque você não iria acreditar
mesmo. Como somos dois mendigos exóticos hoje e com nossa
exoticidade não conseguiremos entrar em nenhum lugar, apenas eu
consigo entrar, pelas minhas vestes serem a roupa padrão do sistema, desse
planeta, dessa sociedade hipócrita, sugiro que para entrarmos em qualquer
lugar e curtirmos nossa noite pra valer, você terá que usar roupas como as
minhas. O que você me diz, Schalemberg?
Tudo bem. Por mim, eu topo.
Tá legal. Eu tenho uma nota preta aqui comigo. Vamos poder curtir a noite
da paulicéia desvairada, feito dois perdidos numa noite suja. Numa noite
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alucinante. Onde tiver apavoro, onde tiver blues e pirações, estaremos lá.
Você gosta de blues? Se não gosta vai passar a adorar blues. O blues é a
música mais autêntica que existe. O soul vem da alma. O blues vem do
sofrimento. Da dor. Da angústia. Gosta ou não gosta de blues, meu
camarada Schalemberg?
O que você acha, meu brother Raul? Sou mendigo, mas não sou burro.
Antes de ser mendigo eu era estudante de música numa universidade. O
que você acha disso?
Acho que fala minha linguagem. Que já somos amigos de verdade. Vamos
à luta então. Roberto Schalemberg. Branco. Estatura média. Estudante
universitário de música. Terno moderno e escuros. Preto de linho. Gravata
de seda. Sapatos de couro italiano. Corte de cabelo raspado. Intelectual
careca. Vamos nessa, caro Schalemberg. Amanhã por volta do meio dia
você tentará descobrir quem você é e o que aconteceu. Se você é um inseto
se metamorfoseando em humano ou se é humano se metamorfoseando em
um inseto kafkaniano. Acordará num quarto de hotel de luxo, um terno
chique estendido pelo chão ou pendurado em algum cabide, uma loiraça
gostosa ao seu lado dormindo pelada, um bilhete meu te desejando boa
sorte e um monte de dólares no bolso do seu paletó. Vamos nessa ou não
vamos, camarada Roberto. Estudante universitário de música. O mesmo
que fazia antes. Lembra-se qual era e onde ficava?
Vamos nessa, cara. Ou então vou começar a pensar que tudo isso não passa
de um sonho acordado. Uma visagem.
Mas é um sonho. Amanhã, quando acordar, terá certeza de que tudo não
passou de um sonho. A única coisa que posso garantir que será um sonho
muito bom. Poderá comprovar depois. Agora vamos à luta. Primeiro
vamos passar num salão de barbearia. Raspar sua cabeça. A roupa vamos
comprar num shopping center. Com a cabeça raspada e a barba feita e
jogar fora esse cobertor e esse agasalho fedorento, fica mais fácil entrar
num hotel de luxo sem chamar muito a atenção. Jogue tudo que você tem
fora.
Mas como? E depois como vou me virar nas ruas quando você for
embora?
Jogue tudo fora. Bota tudo ali naquele latão de lixo. Depois conversamos
sobre isso.
Tudo bem. Você é quem manda.
Espere só um minuto aqui que vou comprar uma camiseta ali naquela loja
e um parte de tênis novos. Jogue os seus fora. Com camiseta nova e tênis
novo e de barba e cabelos feitos, a gente hospeda-se num hotel de luxo.
Depois vamos ao shopping comprar suas roupas já tomado banho e usando
perfume. O que me diz dessa?
Boa. Muito boa. Você já leu Henry Miller?, - perguntou repentinamente
meu novo e verdadeiro amigo. Respondi que sim. Que era um dos meus
preferidos, ao lado de Bukowski. Que eram autênticos. Verdadeiros e
realistas, porém, injustiçados e incompreendidos. Mas que eram grandes.
Ele ficou feliz. Disse que já tinha lido tudo que Henry Miller escrevera.
Por isso que era mendigo. Fiquei mais feliz ainda. Vi brilho nos olhos de
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Roberto Schalemberg. Ele entendeu meu recado e disfarçou sua emoção e
sentimento. Entramos num salão, onde não havia ninguém, apenas o
barbeiro e perguntei quanto ele cobrava cabelo e barba. O sujeito, meio
velho e barrigudo, olhou para mim e para meu amigo Roberto e perguntou:
Para qual dos dois?
Que porra é essa? Que diferença faz?
Para um, é um preço e para o outro, é outro preço.
Qual o preço para qualquer um, seu barrigudo duma merda?, - falei
engrossando a voz.
Eu cobro o preço que quiser. E atendo quem eu quiser. Se não quiser
cobrar nada, também não cobro. Está entendendo?
Estou sim. Mas quero saber quanto cobra para cortar meu cabelo e minha
barba? Está entendendo também?
Dez pratas.
Roberto Schalemberg, sente-se naquela cadeira ali. O senhor sabe quem é
Roberto Schalemberg? Já ouviu falar do músico e compositor clássico,
Roberto Schalemberg? Olha ele aqui em pessoa. Por ser um intelectual
desprendido de bens materiais ele se descuidou um pouco da aparência e
pirou numa composição, uma ária, sabe o que é uma ária?, e esqueceu-se
até de tomar banho e de cuidados pessoais de higiene. Portanto, peço
educadamente que o senhor cuide de sua aparência visual do seu membro
superior dotado de grande QI intelectual, sua cabeça, porque aqui nesse
planeta temos que tomar certos cuidados de higiene e aparência pessoal.
Está vendo a diferença de cultura? De onde ele veio, do meio em que
estava, a aparência não tem nenhuma importância. Pergunte para ele, que é
um intectual de alto nível, onde ele era mais feliz, lá onde estava ou aqui
na nossa civilização. Na nossa, na sua, cultura? Não é mesmo, meu
camarada Schalemberg?
Deixa pra lá. Se o bom trabalhador artesanal recusa-se receber um bom
soldo por seu ofício prestado, não há nada de mal nisso. Continuo com a
aparência que estou. Ela não me incomoda. Incomoda a você, caro e
honrado amigo Raul?
A mim, não. Qual a diferença que há em roupas? Nenhuma. Em algum
lugar, em certos costumes e culturas, como a Índia, por exemplo, roupas
não têm a menor importância. Já imaginou como era a aparência de JC?
Cristo parecia um mendigo em suas peregrinações. Mas para as pessoas
que vão nos receber e nos dar a honra de suas companhias, sim. Afinal,
não estamos na Índia. Então vamos procurar outro barbeiro, caro Roberto
Schalemberg.
Esperem. Mudei de idéia. Pode sentar-se ali. Eu faço o trabalho. Nem
precisam pagar. Eu não sabia que o seu amigo era tão importante assim.
Desculpem-me pelo trato.
Ah, que bom. Schalemberg, sente-se ali e prepare-se para a mudança. Só
não sei se acostumará a ela novamente. Sua aparência é muito melhor do
que a minha. Às vezes, fico tentado e com vontade de usar seus modelitos
de roupas. Vamos trocar?
126
-
Não. Prefiro as minhas. Elas são mais chiques e confortáveis. Não tenho
certeza se vou gostar das suas. Depois do cabelo vamos comprar roupas da
sua cultura e civilização.
A transformação foi instantânea. O barbeiro passou a máquina número zero na
cabeça e na barba do meu amigo Roberto e de repente nem eu mesmo reconheci
o meu mais novo amigo. Depois da máquina o barbeiro passou a navalha e
deixou o mendigo parecendo um ator de filme de arte.
- Pronto. Está novinho em folha. Já faz parte da nossa cultura, - respondeu
o barbeiro surpreso com a transformação.
- Toma, Schalemberg. Veste esta camiseta e coloque estes tênis. Ninguém
olhará para suas calça sujas. Pensarão que você é um junky on the road, ou
algum piloto de motocross. - Roberto vestiu a camiseta e calçou os tênis.
Sua aparência era completamente outra. Ninguém diria que era um
mendigo. Parecia um jovem acadêmico francês com cara de intelectual.
Coloquei uma nota de dez dólares na mão do barbeiro e perguntei:
- Então, o que achou da nova aparência do meu amigo e grande compositor,
Roberto Schalemberg?
- Ótima. Ele ficou com ótima aparência, para os padrões da nossa cultura.
- É. Acho também que ele ficou melhor assim. Pelo menos para entrar nos
lugares onde vamos hoje. Muito obrigado por nos atender. E não esqueça
de dizer para seus amigos, parentes e fregueses que o senhor teve a honra
de dar um belo trato no músico Schalemberg. Roberto Schalemberg.
Adeus. Até a próxima.
- Muito obrigado, amigo. Até eu gostei do trabalho. Vou tentar não me
descuidar mais. São os ossos do ofício. Quem não se preocupa com a
aparência dos outros, acaba não cuidando da própria aparência. Adeus.
Quem sabe voltarei outras vezes para o senhor dar outros toques na minha
aparência tão cobrada e exigida pela sociedade. A aparência da farsa. Uma
sociedade que vive só de aparências, é uma sociedade falsa. É uma
sociedade que dá valor somente a bens materias. Pose pura. E eu dão vivo
de poses. Vivo da realidade nua e crua das ruas. Que os deuses tenham
piedade do mundo. Adeus.
Saímos da barbearia e continuamos nosso intinerário sem roteiro pré
estabelecido. Logo mais abaixo, na mesma avenida, a Brigadeiro Luiz Antônio,
havia um grande hotel. Acho que era Vesúvio ou Danúbio, sei lá. Só sei que
logo chegaríamos nele. Parei numa cabine de telefone público e pedi o número
do hotel para a telefonista. Em seguida liguei fazendo uma reserva em nome do
compositor Roberto Schalemberg. Disse que era o secretário dele. Dois
apartamentos. Um de casal para o músico, que já estava chegando naquela
noite, e outro de solteiro, para seu secretário, mas que não era certeza se iria
hospedar.
- Pronto, caro Schalemberg. Duas etapas já estão resolvidas. Entramos
direto para o quarto e você toma um super banho e veste a mesma roupa e
coloca meus óculos escuros e saímos para o shopping mais perto para
comprar sua roupa. Antes da meia noite já estaremos num restaurante fino
jantando e apavorando as mulheres. O que tem a dizer?
127
-
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-
Uma só palavra. Louco. Que você é simplesmente louco. Louco e
magnífico. Para ser bem sincero, acho que tudo isso não passa de uma
visagem ou sonho, como você já alertou. Mas, tudo bem, já que é um
sonho, deixe-me sonhar. Sonhar não paga nada. Mas eu ainda continuo
desconfiando de que você não passa de um anjo disfarçado. Você é um
anjo, mesmo que não queira. Sabe quantas pessoas já perguntaram meu
nome, em toda minha vida de lumpem? Nenhuma. De repente eu peço um
pedaço de chocolate para um cara e ele me dá uma caixa inteira. Depois
compra mais dois chocolates Nhá Benta caríssimos e pergunta se quero ser
seu amigo? Se fosse você que estivesse no meu lugar o que pensaria?
Que existem pessoas boas no planeta. Que as pessoas autênticas acabam se
encontrando nesse mundo desumano e ridículo. Que no meio da podridão
pode existir alguém de coração. Que somos todos iguais. Que ninguém
vale mais do que ninguém. Sabe, meu caro Schalemberg, a vida é uma só e
não sabemos qual é nosso destino. Eu sou um cara feliz. O cara mais feliz
do mundo. E se sou feliz e posso, tenho condições de ajudar alguém, se eu
não fizesse isso eu não seria e poderia ser feliz como sou. Hoje está sendo
um dia muito especial na minha vida por poder ajudar alguém. Amanhã
será outro dia e não quero pensar nele. Portanto, vamos curtir a vida
juntos, mas como ela merece ser vivida. Afinal, a vida só vale a pena ser
vivida se for para ser feliz. Mas muito feliz mesmo. Assim, como eu sou.
Esquece o resto. Esquece esse papo de anjo da guarda. Hoje sou apenas
seu amigo. O que não garanto é se amanhã ou depois tornaremos a nos ver
novamente.
E o que será de mim, depois?
Cada um traça o seu destino. Procure traçar o seu. Eu te garanto que eu
estou no rumo certo. Que tracei meu próprio destino. Se bem que não
gosto dessa palavra. Prefiro outra. Digamos que prefiro a palavra “acaso”.
O acaso não é tão autoritário como o destino. Se você escolher ser um
lumpem, é porque você sempre desejou isso. Eu sou um cara muito bem
sucedido na vida, acho que é porque inconscientemente desejei isso. Cada
um é o que deseja para si. Amanhã você acordará numa outra realidade.
Talvez a mais dolorida. A realidade dói pra caralho. Você não disse que
leu a obra completa de Henry Miller. Ele escreveu sobre a realidade nua,
crua e dolorida das ruas. Ele era um escritor foda pra caralho e vivia nas
ruas como um mendigo como você. É por isso que ele era autêntico. Não
era fake como muito bunda mole por aí que adora viajar de avião,
hospedar-se em hotéis de luxo cinco estrelas, andar em carro com ar
condicionado no meio do deserto e dizer que peregrinou vários dias
sozinho em busca de paz e espiritualidade. Corta essa.
Você tem toda razão, caro e nobre amigo, Raul. Eu também conheço esse
tipo de gente. São os falsos profetas do apocalípse. Os fakes, como você
diz. Existe um no Brasil que vende um monte de livros. Sabe quem é, né?
Claro que sei. É o maior fake do Brasil. FAKE mesmo. Entendeu agora
por que quis ser seu amigo? Não tenho condições e nem quero consertar o
mundo, mas acho que se cada um ajudasse um pouquinho, muita coisa
seria diferente. Hoje foi meu dia de sorte também. Desde que recebi uma
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mensagem, via internet, de uma amiga, uma mensagem sobre o jardim de
infância, tudo que aprendemos e precisamos aprender na idade adulta, já
aprendemos no jardim de infância, resolvi dar uma guinada. Além disso,
muita coisa está acontecendo comigo hoje. Nem vou te falar nada. Só
posso te dizer que está sendo muito bom e até divertido, poder ajudar
alguém como você. Se não o encontrasse na rua, com certeza eu faria outra
coisa para ajudar alguém. Talvez daria um banquete para todos os
mendigos do Viaduto Minhocão. Já passei por lá tempos atrás e pude
constatar in loco o que é uma legião de miseráveis. Uma ceia de profetas,
de apóstolos, condenados pela hipocrisia da humanidade. Leia Cemitério
de Elefantes, quando tiver oportunidade, e poderá analisar o que a
degeneração humana é capaz de fazer. Atenção. Chegamos ao hotel. Os
caras não querem saber de documentos. Vou pagar sua diária adiantada e
em dólares. Se pedirem documentos, meta a mão no bolso e diga que ficou
tudo na sua valise, no teatro em que estava ensaiando um concerto para a
apresentação que fará em São Paulo. Que logo sua bagagem chegará ao
hotel. Entendeu? Outra coisa: Schalemberg é com “sch”. Não vai dar
vacilo, está entendendo?
- Claro que estou. Scha-lem-berg. Deixa comigo, meu secretário e anjo
vingador.
Entramos no hotel. Roberto vestia meu paletó sobre sua camiseta nova e usava
meus óculos. O recepcionista foi educado.
- Boa noite. Em que posso ajudá-los?
- Temos uma reserva. Acho que foi feita hoje pela assessoria de
comunicação do Teatro Alpha.
- Foi feita no nome de quem?
- Schalemberg. Do compositor e músico clássico, Roberto Schalemberg.
Olha ele aqui em pessoa. O senhor o conhece? Claro. Com certeza deve
conhecê-lo. É o maior compositor e músico brasileiro conhecido no mundo
inteiro. Ele fará um único concerto amanhã aqui em São Paulo.
- Claro. Conheço sim. Quem é que não conhece o grande compositor
Roberto Schalemberg. - Respondeu o safado do recepcionista consultando
o computador e com uma ficha na mão e de olho nas notas de dólares que
eu tinha em minhas mãos. Mentiroso e interesseiro vendido duma figa. O
que a hipocrisia humana não é capaz de fazer por puro interesse. Se eu
entrasse com meu amigo Roberto antes, com sua aparência anterior, os
sacanas do hotel nem deixaríamos entrar.
- Senhor Schalemberg, por favor assine aqui. Esperamos que tenha uma
grande estadia e muito obrigado por ter escolhido nosso hotel. - Lembreime dos meus bons tempos de Bell Boy no Hotel em que trabalhei. Filho da
puta. Desgraçado. Vá peidar um prego bem grande na casa do caralho,
pensei. O mendigo assinou seu novo nome, qual seria seu nome
verdadeiro?, nunca fiquei sabendo, na ficha e eu disse que só o
acompanharia ao quarto e que sairíamos logo para jantar. Paguei a diária
em dólares e subimos para o aposento do mendigo-músico de araque. Para
a visagem do andarilho solitário noturno e diurno. Mais que isso. Para a
129
aventura que meu amigo mendigo estava vivendo. Nem ele acreditaria no
que estava acontecendo.
Peguamos o elevador e subimos felizes por tudo ter dado certo. Deixei meu
convidado tomando um super banho e desci para ver se achava uma loja de
roupas esportivas masculinas na redondeza aberta. Dei sorte. Meia hora depois
voltei com uma sacola e subi direto para o quarto.
- Então, meu caro Roberto. Já terminou de tirar a craca? Como se sente? A
transformação até que não foi das piores. Olha aí, vista tudo. Cuecas
novas, mais duas camisas e uma calça jeans. Vista e corte suas unhas.
Vamos ao shopping que fica bem perto daqui. Duas quadras apenas.
Quero te ver vestido como eu estou. Como a sociedade gosta e nos cobra.
Depois caímos no apavoro da noite para curtirmos o que todo mundo gosta
e curte: a loucura total.
- Acho que já estou gostando de tudo que está acontecendo. Não sei se
acostumarei a viver nas ruas depois de hoje. Não sei o que será de mim,
depois que acordar desse sonho. Mas terei uma bela história para contar.
- Isso fica para depois. Amanhã você resolve isso. Esqueça o passado e o
futuro. Procure não pensar no futuro. Quem sabe hoje à noite você não
conhece uma linda mulher que queira te adotar. Tudo é possível. Mas
pense apenas no que vamos curtir hoje. Apenas isso. Carpe dien. Aproveite
a vida. Isso é o que importa.
Roberto era inteligente e muito sensível. Não tinha medo de nada. No fundo,
era como eu. Pensava exatamente como eu. E isso me alegrava mais ainda. Eu
sabia que estava fazendo a coisa certa e não apenas brincando com os
sentimentos alheios. Tudo que eu fazia vinha do fundo do coração. E eu fazia
com muito prazer. Muito tesão e sem nenhuma intensão de vingança. Portanto,
eu não era um anjo vingador com sua trombeta celestial. E o mais importante e
interessante de tudo isso é que ele estava radiante e feliz. O que seria dele
depois eu não saberia prever. Mas sabia que ele estava feliz e gostando da
brincadeira de criança que ambos estávamos fazendo. Ele vestiu uma camisa
pólo vermelha. Vestiu a calça jeans nova, com cueca nova e um cinto novo.
Colocou meias esportivas brancas de algodão, os tênis novos que já tinha usado
antes do banho e ficou parecendo o que deveria parecer mesmo: outra pessoa.
Ficou parecendo o próprio cara chamado Roberto Schalemberg, que tínhamos
inventado para ele representar. A vida é um livro aberto, um grande e
permanente palco, em que fazemos, interpretamos vários personagens vinte e
quatro horas por dia. Um personagem fictício. Ou uma sombra do personagem.
Estávamos prontos para o começo da piração. Ele colocou um pouco de
desodorante que comprei e se olhou no espelho e perguntou:
- Cara, quem é esse sujeito aí no espelho que me olha com ar de satisfação e
felicidade?
- Um personagem, meu caro Roberto. Esse aí no espelho não é você. É um
personagem representado por você. Você, eu não sei quem é e nem me
interessa saber. Mas esse aí no espelho é o personagem Roberto
Schalemberg. Se você quiser poderá adotá-lo e representá-lo para o resto
de sua vida. Pode transformá-lo no seu melhor amigo. Tudo dependerá de
você. Para mim, ele será sempre meu amigo noturno, das ruas
130
ensandecidas e tenebrosas de Sampa, Roberto Schalemberg. Está pronto
para conviver com ele e representá-lo?
- Não sei. Vou fazer o que puder. Pelo menos hoje acho que tentarei vivê-lo
com dignidade. Vamos pra vida.
- É isso aí, garoto. É assim que se fala. Estou orgulhoso de você. Próxima
parada: passeio e compras num shopping center, o ópio da classe média
decadente. O lugar onde todos, ou quase todos, são iguais. Um lugar
democrático. Onde todos vivem sem medo de pesadelos e de invasão da
escória humana. Mas de vez em quando algum maluco filho da classe
média alta dá uma de Rambo e entra num cinema e sai cuspindo fogo com
uma metralhadora automática e apavora meio mundo.
Descemos e fomos a pé, pulando, brincando e zombando do mundo. Sem
planos pré estabelecidos para a noite. Primeiro, as compras, depois, o jantar.
Daí para frente, o que rolasse seria pura aventura e adrenalina. Nada de andar
de carro. Nada de táxi. Dois personagens soltos e perdidos numa noite não se
preocupam em andar de táxi. É a pé que podemos ver e curtirmos as maiores
loucuras. Chegamos ao shopping e entramos sem nenhum incômodo. Gente
civilizada pode entrar em qualquer lugar sem maiores problemas. Andamos
pelos corredores, olhamos lojas, congratulamos com a felicidade de todos.
Agimos com urbanidade e dentro dos padrões recomendados pelos bons
costumes e pela razão. Mas não pensamos em razão. Se pensássemos, nem
entraríamos ali. Depois de muita admiração e conjecturações, resolvemos entrar
numa loja de roupas masculinas. Uma venderora nova e bonita nos atendeu.
- Boa noite. Posso ajudá-los?
- Gostaria de dar uma olhada numa roupa. O que a senhorita pode sugerir?
Preciso de um terno. Mas tem que ser um corte moderno e que caia bem
em mim, - foi logo dizendo meu amigo Roberto e portando-se como o
personagem que ele representava.
- Tenho vários tipos de ternos. Dê uma olhada nesses aqui, - disse a
simpática e solícita vendedora com o nome de Renate no crachá.
- Vou provar este aqui. O que você acha, Raul?
- Acho que ficará bem em você. O paletó combina com qualquer calça.
Você pode usar jeans e gravata que combinará com o blazer.
- Você tem razão. Gostei desse terno aqui. Mas prefiro usá-lo sem gravata.
- Você é quem manda, caro Schalemberg. Vá em frente.
Ele provou a roupa e ficou muito bem de terno sem gravata. E não quis sapato
de couro. Preferiu ficar de tênis e sem gravata. Paguei tudo com os dólares
herdados da minha boa ação na Paulista e voltamos para o hotel. Roberto voltou
com uma sacola nas mãos e caminhando faceiramente ao meu lado. Ele subiu
para se trocar e eu fiquei no saguão. Em poucos minutos ele estava de volta
com seu novo visual. Parecia um artista plástico em roupas modernas e bem
caídas. Qualquer mulher que olhasse para ele pensaria se tratar de um artista. E
ele era mesmo. Era um ótimo ator que represntava muito bem seu papel de
músico e compositor clássico. Um autor de ilusões. Uma sombra para agradar
os deleites da sociedade hipócrita e moralista. É isso aí, Roberto. Vamos cair na
noite sombria e assustadora.
131
-
Agora sim, você está do jeito que a sociedade deste planeta gosta. Vamos a
um restaurante, cantina, tratoria chique ou coisas do tipo. Vamos alimentar
o corpo. Pois a mente já alimentamos.
- Com certeza. O que é a vida, heim? Há menos de duas horas eu era um ser
despresível. Uma escória do mundo. E num passe de mágica olha só no
que fui transformado. Olha só o que você fez comigo. Como se chama
isso? Mágica?
- Isso se chama ficção, meu caro Roberto. Já vi o oposto também acontecer.
Conheci um americano rico que veio para o Brasil e foi assaltado e acabou
virando mendigo e passou a morar e perambular pelas ruas e praças
soturnas de São Paulo, como você era agora há pouco. Não se preocupe
com isso. Apenas entre na corrente sanguínea da vida. Pense apenas no seu
papel. Pense que você está representondo-o muito bem. Finja e imagine
que você é a própria encarnação do seu personagem. Combinado,
parceiro?
- Combinado.
Caminhamos felizes pela avenida sombria e misteriosa. Os perigos da noite
rondavam e espreitavam todas as esquinas e qualquer vacilo seríamos presas
fáceis para os demônios da noite. Coloquei a mão atrás e apalpei a pistola
Magnun 45 confiscada, debaixo do paletó. Nunca tinha usado uma arma. Nunca
precisei de nenhuma arma. E esperava não precisar usar hoje. Mas de qualquer
maneira era bom me sentir seguro e protegido. Ela poderia ser útil para
defender meu território. E defender meu amigo mendigo disfarsado de
personagem. Seguimos em frente. Sempre em frente. Olhos atentos. Quanto
mais a noite avançava, mais os perigos aumentavam. Não estamos mais dentro
de um shopping center com segurança e tranquilidade para todos. Estamos na
rua. Somos dois personagens da rua. Estamos em território desconhecido e
perigoso até para os personagens de ficção. Do outro lado da avenida havia um
restaurante fino e bem movimentado. Muitos carros chiques na porta. Um
porteiro alto e negro fazia a recepção na porta. O restaurante era grande e estava
cheio de famílias e casais ricos. É aqui, pensei. “Vamos jantar aqui, camarada
Roberto”, falei baixo e já entrando no restaurante.
- Boa noite. Há mesas desocupadas?, - perguntei ao porteiro.
Ele nos olhou com ar de quem sabe analisar todos os tipos de fregueses e disse
que sim. Entramos. Fomos conduzidos a uma mesa na lateral do salão próximo
à parede. Os garçons puxaram nossas cadeiras para nos sentarmos. Olhei para
meu convidado e dei um sorriso. Ele retribuiu com outro com um pouco mais
de ironia. Entendi o recado. O maitre chegou e foi logo nos cumprimentando e
pergundando se já conhecíamos a casa. Dissemos que não. Ele perguntou se
tínhamos alguma preferência de escolha. Havia um gigantesco aquário cheio de
enormes lagostas vivas no meio do salão, onde as pessoas escolhiam seus pratos
ainda vivos. Cada cliente poderia fisgar sua própria presa. Era divertido e até
patético ver a aventura dos clientes endinheirados pagar por seus divertimentos.
O maitre fez várias sugestões e acabamos por escolher lagostas mesmo. Já que
todo mundo dinha o direito de se divertir, pensei, por que o meu convidado não
poderia se divertir também. Afinal, a noite era dele. Fizemos nossos pedidos e
nos dirigimos para o aquário gigante. Roberto pegou um puçar e mergulhou na
132
água. Ele capiturou seu lagostim e entregou ao ajudante do cozinheiro. Depois
foi minha vez. Demorei mais tempo que ele até escolher uma lagosta gigante e
com olhos assustados de quem estava adivinhando qual seria seu fim. Voltamos
para a mesa e nosso vinho branco já nos aguardava num vaso de gelo ao lado da
mesa. O garçon abriu a garrafa e pedi para o mendigo degustar. Ele degustou a
bebida com classe e elegância. Gostei da cena. Fiquei orgulhoso dele. O garçon
serviu as duas taças e se foi. Minutos depois ele estava de volta com as
entradas. Vivaldi comia solto no som ambiente. Gostei da música, mesmo
sabendo que ninguém prestava atenção e sabia quem estava sendo executado.
Nem mesmo meu convidado de honra, que era da área. Que era compositor
clássico.
- O que está achando, Roberto? Está gostando do passeio e do jantar? Uma
vez trabalhei de garçon num restaurante e um sujeito malandro convidou
um pivete de rua para almoçar com ele. Depois que comeram pra valer o
cara acenou para alguém que passava na rua e pediu para que o pivete o
esperasse no restaurante. O malandro saiu à rua e deu no pé, deixando para
trás o garoto de rua e a conta sem pagar.
- Mas você não está pensando em fazer isso comigo, né?
- Claro que não, seu bobo. Se fosse fazer isso nem estaria te contando e não
teria comprado suas roupas e pago à vista. Olha só aquelas duas belezocas
ali nos observando há tempos. O que acha delas? Parece que são boas
pintas. Pode escolher a que quiser. Pode escolher as duas. Eu estou
sossegado. Não estou interessado em bocetas por hoje.
- Por que não? Não gosta de mulheres?
- Só de uma. Faz muito tempo que só sei olhar para uma mulher. Ela merece
todo o respeito do mundo.
- Está apaixonado?
- É isso aí. Mas a noite será sua. Farei tudo para que você tenha uma noite
de verdade.
- Já estou tendo. Tudo que já aconteceu até aqui já valeu a pena.
- Você ainda não viu nada. Aguarde e verá.
O garçon trouxe nosso jantar. A lagosta estava deliciosa. Meu convidado não
tinha muita habilidade com os talheres. Ensinei-lhe como se deveria destrinchar
o crustáceo. Comemos com grande apetite e pensei na minha mulher. O que ela
teria comido naquela noite? Prometi a mim mesmo que a traria aqui nesse
restaurante qualquer dia. Uma das mulheres que estavam nos observando olhou
para mim e deu um sorriso. Retribuí com um malicioso aceno de cabeça. A
partida estava dada. Terminamos nossa primeira garrafa de bourbon e pedimos
outra. As belezocas estavam à procura de aventuras na noite misteriosa. Uma
delas se levantou e dirigiu-se à nossa mesa.
- Olá. Posso ser um pouco xereta?, - perguntou a sirigaita que tinha me
dado um sorriso minutos antes e estava de frente para mim.
- Vai em frente, - respondi com cara de inocente e rodando a aliança no
dedo esquerdo com a mão direita.
- Acho que conheço você, mas não me lembro de onde.
- Você é garota de programa?, - perguntei na lata.
- Por quê? Tenho cara de puta?
133
-
Não sei diferenciar a cara das putas das outras mulheres. Mas as garotas de
programa conhecem todo mundo.
- Mas não sou puta. Sou escritora.
- Oh, que maravilha! Uma escritora!? Uffaa! Até que enfim, alguém na
night usando neurônios! Aposto que vai escrever sobre mim. Aproveite e
escreva sobre meu amigo também. Você terá uma ótima história se
escrever sobre ele. Não é mesmo, meu caro Roberto? E ele, você não o
conhece de algum lugar? Aposto que conhece.
- Não. Não estou lembrada.
- Como não? Nunca ouviu falar do grande compositor e músico clássico,
Roberto Schalemberg? Está vendo Roberto, ela disse que nunca te viu.
Que não te conhece.
- Que pena. Ela teria uma grande história para escrever. Mas deixa pra lá.
Henry Miller ela conhece, ou não?
- Também não. Quem é Henry Miller?
- Pô, se não conhece Roberto Schalemberg e Henry Miller, quem é que você
conhece? Sobre o que você escreve? - Perguntei com cara de “Dirty man”.
Ela percebeu minha ironia e sabia que estávamos pagando da cara dela.
- Sobre muita coisa. Desculpe o engano. Com licença, preciso voltar para
minha mesa.
- Não quer mesmo conhecer a história do meu amigo?
- Não. Obrigada.
- Que pena. Perdeu uma ótima história para seus livros.
A imbecil amarrou seu cavalo no poste errado. Ela, se é que era escritora
mesmo, escritora fake, todo mundo acha que é e quer ser escritor ou escritora,
nem podia imaginar o que uma Sexta-feira paulistana misteriosa pode oferecer.
Terminamos nosso delicioso e histórico jantar tranquilamente. Paguei a conta e
caímos fora. Quando passava perto da mesa da “escritora” não resisti e dei um
recado.
- Adeus es-cri-to-ra. Quer um conselho valiso? Leia Miller e Bukowski.
Eles são grandes mestres e ajudarão qualquer um que sonha ser dublê de
escritor ou escritora.
- Pode deixar que vou pensar no assunto.
Caímos fora. A noite só estava começado. E prometia muito. Saímos dali e
continuamos em frente. Dali ao centro da cidade não era longe.
- E aí, camarada Schalemberg, o que vai ser agora? Para onde quer ir? Você
é quem manda. Sou apenas seu cicerone.
- Sei lá. Como mendigo, não tenho muitas opções. Nem sei o que é bom.
Apenas o que é ruim.
- Então, deixa comigo. O que aparecer pela frente a gente encara. Vamos
fazer uma via sacra pelas profundezas da goddess city. Da barefoot
goddess. A noite é nossa. Sabe que grana não é problema. Já te falei que
fui bem recompensado por uma boa ação que fiz hoje no começo da noite.
Mas vamos com cuidado. Já ouviu falar de um poeta medieval italiano
chamado Dante Alighieri? A Divina Comédia? A partir de agora vamos
entrar em território perigoso. As ruas noturnas de Sampa, especialmente
aqui na região central, e em todas regiões, parecem, não perdem muito
134
para o purgatório e inferno de Dante. E ainda estamos longe de
adentrarmos na zona de maior perigo. A Boca do lixo e do Luxo. Portanto,
caro Roberto, vamos com os olhos arregalados e todo cuidado é pouco. A
vantagem de ser mendigo é que eles não entram em nenhum lugar, mas
também não correm tanto perigo. Não, porque não têm nada para tirar. A
não ser a própria vida. Hoje você é um mendigo de mentira e pode entrar
em boas enrascadas. Não mexa com ninguém. Não olhe para ninguém na
rua. Olhos atentos aos inimigos que tentarem se aproximar. Estamos num
território sem dono. Sem lei. A lei mais forte nas ruas soturnas da cidade
grande, que é uma deusa descalça, é a lei dos mais espertos. E espertos
são os caras inteligentes que não se envolvem com nada. Quem procura
chifre em cabeça de cavalo, encrenca das grandes, acaba sempre
encontrando. Olha lá. Olha lá do outro lado da rua um mendigo velhinho
sendo chutado e espancado por bad spirits. Espíritos malígnos das ruas.
Quem são aqueles espíritos do mal que saem por aí apavorando com tudo e
com todo mundo? Por que eles usam aquelas roupas iguais e têm as
cabeças raspadas? São três caras. Laranja mecânica perto deles é fichinha.
Sabe o que a polícia faz com esses caras? Nada. Se a polícia não faz nada,
quem é que pode fazer? Vamos dar o fora daqui logo, antes que sobra
encrenca para nós.
- Pobre velhinho. Também já passei pelo inferno de Dante. Já levei muitas
porradas dormindo pelas gélidas e desumanas ruas dessa Torre de Babel.
- Quero aprender muita coisa nas ruas dessa cidade pirante hoje. Já que
mergulhei de cabeça, quero ver até onde aguento ir.
A cidade cheirava perigo em cada esquina. Olhava para todos os cantos e
movimentos sempre muito atento. Eu tinha que cuidar da minha própria pele,
pois tinha decidido enfrentar TUDO numa noite, pois sabia que isso ficaria
marcado em minha mente para sempre, e ainda por cima, tinha que cuidar do
meu convidado de honra, agora inspirando mais cuidados do que antes, quando
era mendigo de verdade. Já que eu o inventei, o transformei num personagem
para me fazer companhia, eu tinha obrigação de cuidar bem dele. E foi o que
fiz.
Já estávamos no final da Avenida Brigadeiro Luiz Antônio bem num grande
entroncamento que dividia a cidade. Se seguíssemos reto sairíamos no bairro
japonês, área comercial e no forum da cidade. À esquerda, num ângulo de
quarenta e cinco graus, pegaríamos uma avenida larga e tranquila,
aparentemente, porém, não menos perigosa, que passa em frente ao prédio do
legislativo municipal corrupto da cidade. O único cara que conseguiu limpar a
corrupção nesse prédio foi o marido da candidata Sexóloga, agora Senador,
quando ele passou por lá. Depois que ele foi eleito Senador, aí a coisa bagunçou
geral. Se seguíssemos em frente, só um pouco mais à esquerda, passaríamos
pelo centro comercial financeiro. A melhor opção era a rua do legislativo
corrupto. Passando por ali, chegaríamos mais rápido à boca do luxo, a região
das boates e suas prostitutas finas. Mas antes de chegarmos lá, alguns
imprevistos, aliás, aconteceram muitas coisas que já imaginava que ia e poderia
acontecer, em nosso caminho.
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Quando viramos à esquerda, na avenida aparentemente calma, passamos na
frente de uma casa noturna. Acho que era um karaokê japonês. A calçada estava
fervendo de gente de toda espécie. Nem paramos para observar o apavoro e
uma garota toda sorridente meio gordinha e com uma cara de bolacha, não era
muito feia, e nem tinha cara de puta, correu ao meu encontro, como se eu fosse
o seu príncipe encantado, que ela estava esperando e pegou na minha mão.
- OLÁ! Como vai? Aonde o bonitão está indo?
- Dar uma voltinha para respirar um pouco de ar poluído.
- Ah, então vamos entrar um pouquinho. Convida o seu amigo. Aqui é uma
casa muito aconchegante e tem muita diversão.
- Não, muito obrigado. Nós só resolvemos sair do hotel para dar uma
caminhada despretensiosa. Deixa para outro dia, - respondi e fui saindo
de fininho.
- Não. Não vá ainda. Entra só um pouquinho. Eu pago um drinque. Venha.
Se você não gostar, depois que terminar seu drinque, você pode ir embora.
- Obrigado. Hoje não dá mesmo. Estou com um amigo e ele é evangélico.
Músico evangélico. Cantor e compositor góspel. Você gosta de música
góspel? É contra sua religião os pecados da noite. Ele é muito fiel. Deixa
para outro dia mesmo.
- Evangélico com aquela cara? Deixa de onda. Conheço caras como vocês.
Deixa de frescura e vamos dar só uma olhadinha.
- Por mim, tudo bem Raul. Já que a moçoila insiste, vamos nessa.
- Acho que ainda é meio cedo, Roberto. Já que você faz questão, então
vamos nessa. Mas só um drinque e caímos fora. Combinado assim,
princesa?
- Mas vocês vão gostar e ficar até de manhã. Pode apostar.
Contra minha vontade, entramos. Algo me cutucava e dizia que energias
negativas, estranhas, estavam contaminando o ambiente.
Lá dentro a coisa não cheirava confiança. O ambiente era nebuloso e sombrio.
Havia perigo em todos os cantos. Havia algo de podre no ar. Garotas de
programas. Muitos homens de meia idade. Orientais, mulatos, nordestinos,
mulheres balzacquianas à procura de um príncipe barrigudo e alcoólatra. A
boate ficava num prédio de apenas um andar. A primeira coisa que examinei e
procurei foi a saída de emergência e os corredores da cozinha. Sentamos juntos
a uma mesa pequena bem do lado da porta de saída de emergência. Minha
namorada cara-de-bolacha ficou caidinha por mim. Não largou mais da minha
mão. Eu sabia que apesar de não ser puta, acho que não era, mas vai saber, o
que ela estava interessada era na minha grana. Ainda estávamos no primeiro
drinque quando o apavoro começou. Primeiro, dois japoneses com duas garotas
da casa e mais um negrão com pinta de gangster perigoso, começaram a mandar
ver nas carreirinhas estendidas sobre a mesa com canudinhos feitos de notas de
um dólar. Fiquei só observando. Sabia que o clima estava esquentando e o
ambiente não era dos mais confiáveis. Principalmente para quem prefere ficar
longe de encrencas. Fui ao banheiro e dei um mix. Aproveitei para dar uma
olhada pela janela de ventilação que dava para a rua. Na volta entrei por um
corredor e fui direto para a cozinha que ficava numa área contígua e tinha saída
para a rua. Dei uma de perdido e voltei para meu lugar. Quando voltei já havia
136
uma loira desbotada sentada no colo do meu amigo. Sentei ao seu lado. Pensei
em dar no pé, mas o clima estava ficando tenso. De repente três sujeitos e uma
mulher entraram usando coletes pretos sobre a roupa com letras brancas
grandes nas costas. Todo mundo temiam aquelas letras. POLÍCIA CIVIL.
Entraram olhando tudo e para todos. A música continuou mas os olhares de
todos se cruzaram com desconfiança. Se os policiais corruptos inventassem de
revistar todo mundo, eu estava fodido com uma arma, uma pistola automática
carregada, e roubada, debaixo do paletó. Como eu estava de costas para a
parede e de frente para o perigo, só me restavam duas alternativas. Dispensar a
arma disfarçadamente jogando-a no chão e empurrando-a com os pés, ou deitar
no chão e abrir fogo contra os caras. Eles passaram longe de mim e foram direto
para o caixa que ficava num canto dos fundos. Quando passavam perto da mesa
do negro e seus amigos que cafungavam o pó branco maldito, deram uma
coronhada na nuca do negrão que caiu estendido debaixo da mesa. A gritaria foi
geral e a correria começou. Pegaram o dono da espelunca pelo cangote e saíram
arrastando o sujeito para os fundos. Aproveitei a confusão e arrastei meu amigo
pelo braço, quase deitado no chão. Nem vi mais a cara da garota que tinha me
levado para aquele covil. A porta ficou pequena para a fuga de todo mundo.
Olhei para a porta de emergência que ficava ao meu lado. Destravei o pino de
segurança e dei um empurrão com o ombro. Ela se abriu facilmente. Dei uma
olhada na rua e não vi nenhum policial ou viatura lá. Os sacanas deixaram a
viatura longe e chegaram a pé. Puxei meu amigo pelo braço e saímos correndo.
Andamos uns dez metros e ouvimos os pipocos lá dentro. O tiroteio começou e
parece que não tinha hora para acabar. Escapamos ilesos. Ufa! Por pouco.
Andamos mais um pouco e já tínhamos esquecido o episódio anterior, quando
vimos dois pintas mais do que suspeitos vindo em nossa direção. Um branco e
outro meio índio. Assalto na certa. Atravessamos a avenida larga antes de
cruzarmos com os pintas. Atrás de nós vinha um casal, provavelmente fugitivos
da mesma boate que escapamos. Os pintas nos viram atravessar a avenida e
apressaram o passo em nossa direção. O branco e mais bem vestido gritou:
- Ei, camarada, você tem fogo?, - e veio para meu lado com um cigarro na
mão, andando feito malandro folgado.
- Tenho. - Meti a mão nas costas e peguei minha pistola automática. Toma, seu malandro bunda mole. Toma. Só que vou acender seu cigarro
daqui, com um balaço. Quer experimentar?
- Calma, gente boa. Sou de paz...
- Ah, é? Então bota a mão na cabeça e peça para seu amigo e sócio fazer o
mesmo. Roberto, reviste os dois. E nenhum vovimento. Com esta arma,
que tem mira a laser, acerto a cabeça dos dois em menos de um segundo.
Quer experimentar?
- Fica frio, amigo. Não queremos encrenca com ninguém. Somos gente boa.
- É mesmo. E essa faca e o revólver, que meu amigo acabou de pegar, para
que serve? Para se protegerem dos mosquitos? Vai andando, seus
assaltantes de merda. Pensam que não sei que iriam nos assaltar. Tirem a
roupa toda já. E os sapatos também. Tirem tudo. Até as cuecas, se não
quiserem levar um pombo sem asa no meio dos cornos. Roberto, recolha
tudo.
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- Deixa comigo.
Os pintas tiraram suas roupas em menos de um minuto e saíram andando rumo
à boate do nosso primeiro apavoro. Nem olharam para trás. Peguei as armas dos
bandidos e joguei dentro de um bueiro fedorento. Elas nunca mais seriam
encontradas e usadas. Pedi para meu amigo entregar a roupa para um mendigo
que comia um pão seco logo adiante. Um mendigo fazendo doações a outro
mendigo. Que coisa, heim?
Pela primeira vez em minha vida eu usava uma arma, que nem era minha, para
me proteger e proteger alguém. Mas não gostava de fazer isso. Nem em minha
casa e nem na minha fazenda eu tinha armas de fogo. Nunca comprei uma
arma. E não tinha intenção de continuar usando essa. Fiquei com vontade de
dispensá-la, de jogá-la fora, mas preferi conservá-la comigo por mais algumas
horas. Pelo menos nessa noite. De manhã, quando voltasse para casa eu
resolveria o que fazer com ela. Guardei a arma na cintura e seguimos em frente.
Ainda era uma e meia da manhã. A noite prometia muito. E estávamos nos seus
braços. Éramos seus anjos perdidos e alegres.
Como é bom mergular numa noite assustadora e cheia de perigos. Quando se
tem uma Magnun 45 automática na cintura e muita disposição para encarar tudo
que vier, tudo fica mais emocionante e divertido. Passamos bem na frente do
prédio do legislativo corrupto.
- Está vendo esse prédio aí, Roberto? Sabe qual é a lei que funciona aí
dentro?
- Claro que sei. A lei do malandros, dos corruptos.
- Exatamente. É por isso que a cidade está cheia de milhares de mendigos
como você. Os corruptos, com exceção dos poucos edis do partido da
sexóloga, que aliás, são quem denunciam as maracutaias e mutretas da
maioria de corruptos, só pensam em seus bolsos. Cada dia tramam uma
maneira de roubar mais a população que só come arroz feijão com pão.
- Isso, quando tem arroz feijão com pão. Porque existe um exército, uma
legião de miseráveis que nem isso tem para comer. A minha legião. A
legião dos mendigos. A classe do lumpesinato. Você sabe quantos
mendigos existem aqui em Sampa?
- Você tem toda razão. Mas acredito e espero que isso mude um dia. O dia
que a humanidade adquirir consciência política e aprender a lutar por seus
direitos, lutar pela sua dignidade, aí, talvez, a coisa mude um pouco.
- O que eu acho muito difícil.
- Difícil aqui no Brasil. Vai em outros países desenvolvidos para você ver
como a coisa funciona bem diferente.
Andamos mais um pouco observando e comentando tudo. Passamos por vários
mendigos pelas ruas. Muitos nos pediram grana. Eu sempre dava uma nota para
meu amigo mendigo disfarçado para entregar o dinheiro aos seus colegas de
rua. Quando já estávamos no centro da cidade, num entroncamento de umas
sete ruas, bem em frente a um jornal popular pertencente a um político pra lá de
corrupto e que já havia sido governador do Estado, paramos num bar que vivia
lotado vinte e quatro horas por dia. Entramos e eu comprei uma garrafa de
vinho branco gelado. Pedi para o balconista abrir e saímos bebendo pela rua.
Uma madame da noite, de uns trinta anos mais ou menos, balzacquiana, sei lá,
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meio simpática e com cara de desiludida da vida e frustrada com aventuras e
relacionamentos noturnos, olhou para mim e deu um sorriso. Fui gentil.
Retribui o mesmo gesto sem esperar nada em troca. Quando estava saindo para
a rua ela perguntou:
- Curtindo a noite um pouco?
- É, mais ou menos.
- Cuidado com a noite. Ela costuma ser meio violenta e oferece muitos
perigos.
- Sou um vampiro e ninguém sabe disso. A noite é minha melhor amiga. É
na noite que todas as coisas acontecem.
- Coisas boas e ruins também...
- Pode deixar que vou andar atento aos perigos. Emoção e aventura de vez
em quando vai bem. Adeus, madame. Vamos continuar nosso giro pelas
entranhas da noite perigosa. Tchau!
- Tchau. Você tem telefone?
- Não. Infelizmente vampiro não tem dinheiro para pagar conta de telefone.
- Que pena. Quer o meu?
- Obrigado. A gente se encontra por aí. O mundo é pequeno e a noite
agradável. Adeus. - E fui tratando de cair fora. A belezoca solitária era
mais uma das tais desiludidas que sonham ainda encontrar seu príncipe
encantado numa noite sobria e perigosa nas esquinas do mundo.
Atravessamos o grande entroncamento perigoso e andamos em direção à Rua
Augusta que subia para o espigão da Avenida Paulista. Andamos uns dois
quarteirões e a garrafa de bourbon branco gelado já estava secando. Dez
metros à frente havia uma banca de jornais, um hotel cinco estrelas e um bar
de junks e vagabundos em frente ao hotel. Não pareço junk, nem junky. Mas
junk pode ter qualquer cara. Talvez eu tivesse cara de junk nesse dia. Entrei no
bar de junks e pedi duas keep coolers e saí, abrindo a minha garrafa e
entregando a outra para meu amigo músico. Eu nunca tirava meus óculos
escuros. Eles eram meu álibi. Meu fetiche. Minha máscara. Sem eles, eu não
seria quem eu estava sendo naquele momento. Desde que saí do meu
escritório, às dezenove horas da Sexta-feira, não tirei mais meus óculos
escuros. Don’t forget your sun glasses... Numa noite escura e perigosa nunca
devemos esqucer dos óculos escuros. Belo e sugestivo nome para uma casa
noturna. Uma boate pós-moderna com o nome em neon piscando. “Don’t
forget your sun glasses”. Horário de funcionamento: três horas da manhã ao
meio dia. O sujeito esperava umas duas horas na fila para entrar e entrava lá às
três e saía ao meio dia muito doidão com um jato de luz solar atingindo sua
cara inchada de bebum e junk. Sem óculos escuros, o sujeito não conseguiria
andar. Continuamos nossa via sacra pelo purgatório de Dante.
Quando passávamos na porta do hotel cinco estrelas paramos e demos uma
olhada para dentro e perguntei para meu amigo:
- Ei, Roberto, será que você não gostaria de se mudar de hotel e ficar nesse
aqui?
- Não. Aquele lá está bom. Eu gostei dele.
- Tudo bem.
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O doorman ficou só observando e ouvindo tudo. Do outro lado da rua parou
um táxi e dele desceu uma linda mulher muito bem vestida e com cara de
mulher séria. Um sujeito mais do que junk, que estava de pé e encostado na
porta do bar onde a dondoca desembarcou, viu a princesa sozinha àquela hora,
quase duas da manhã, e não perdeu tempo. Todo cheio de si e de satisfação,
fazendo tipo de junk inteligente e galante, cascou-lhe na lata, para a dama da
noite:
- Hi, prostitute!
- Hi, substitute!
- Why don’t you kiss your ass and bye?
- Because it’s not mine.
- But it’s fine.
- I know.
- But you can give it.
- I’m not from you line. - respondeu a belezoca sem olhar para o sujeito e
sem se abalar e perder a pose por causa de um junkzinho sem classe e mais
dirty-man ainda.
Eu e meu amigo e o porteiro do hotel de luxo ficamos só observando e
assistindo à cena de camarote. Ela respondia a todas provocações do dirty boy
com elegância e sequer olhou para o sujeito. Ela era hóspede do hotel. Passou
por nós e disse boa noite com muita classe e pose. O cara ficou do outro lado
da rua, na porta do seu bar, com uma cara de cu. Se fodeu de verde e amarelo.
Levou uma lição de inteligência e ainda foi chamado de puto. E muito puto,
foi o que ele ficou sentindo e esbravejando.
Pegamos uma ruazinha e subimos rumo ao Ferro’s Bar. Esse bar eu já o
conhecia dos meus bons tempos de andaças pelas noites paulistana. Tempos
idos. Tempos alucinados de quando eu ainda era apenas um vulto, um número
ou um sujeito suspeito nas ruas por onde passava. O Ferro’s Bar era um bar
que eu gostava de frequentar com um velho amigo poeta. O bar já existia há
mais de meio século e é o espaço mais democrático que conheço, em termos
de restaurante. Era um espaço que ficava aberto vinte e quatro horas por dia e
era frequentado por toda espécie de gente. Com um nome desse, “Ferro’s”,
qual era o público frequentador preferido do bar? Claro que o maior número,
sem dúvida, só podia ser de quem preferia um “ferro, pau, um caralhão”, ou
tinha um bem grande para oferecer. Só podia ser então as sapatonas, bichas,
putas e malandros, além de muitos artistas que gostavam de frequentar as
rodas de malandragens e seus segredos. Eu ia lá de vez em quando com meu
amigo poeta, que não era bicha e nem puto, mas que adorava descrever seus
frequentadores. Aprendi muita coisa com ele lá no tal de Ferro’s Bar. Lembrei
de um poema que ele escreveu lá sobre o bar e seus frequentadores.
Entramos e o balcão e todas as mesas estavam apinhados de gente. Não havia
nem espaço para ir ao mictório dar um mix. Quando você entra nesse bar,
prepare-se, você está sendo comido e observado por todos os olhos. Seja você
hétero ou homossexual ou outras preferências. Todo mundo o olha para tentar
adivinhar qual é a sua. Todo mundo vive movido pelo fetiche. Pela
curiosidade e segredo. Lá, você corre o risco de ser cantado e convidado a
participar dos mais loucos e imagináveis programas que envolvem sexo e
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curtição. Mas nunca embarquei em nenhuma canoa furada. Não sou adepto do
pansexualismo. Sempre fui hétero e nunca tive outras curiosidades e fetiches.
O máximo que já me aconteceu foi transar com duas mulheres ao mesmo
tempo. Mesmo assim, quando entrava no bar das lésbicas e sapatonas, sentia
que era comido com os olhos e desejos de muitas mulheres, lésbicas, nãolésbicas e companhia. Falei para meu amigo mendigo qual era a do lugar e
disse que a passagem no local era apenas para ele conhecer o bar e incluí-lo no
seu rol de lugares exóticos. Mas que não ficaríamos ali. As boates nos
aguardavam a metros dali. Deixamos o Ferro’s Bar para trás com suas
histórias e seus segredos e cruzamos a rua mais famosa cantada em músicas. A
Rua Augusta.
Bem no começo dessa rua há uma praça muito esquisita. Em baixo da praça
passa uma pista rápida que dá origem ao famoso elevado Minhocão. Em cima
da praça, que tem dois pavimentos, havia um supermercado e muito espaço de
lazer. À noite, a praça se transforma num campo de batalha entre travestis,
veados, micheteiros e trombadinhas e outros tipos de criaturas da noite. Durante
o dia, nos finais de semana e feriados, a praça transforma-se num gigantesco
solarium onde as bichas e prostitutas finas que moram na região, costumam ir
queimar e mostrar o rabo para quem quiser ver e admirar. Mas não entramos na
praça, que tem nome de presidente americano. Seríamos recebidos com olhares
estranhos e medrosos. Poderíamos ser confundidos com mangos corruptos e
desumanos e até correríamos risco de sermos recebidos a bala. Ou assaltados. A
ocasião faz o ladrão. Quanto mais evitarmos o perigo, mais longe estaremos
dele. Boates.
- É agora, meu caro Roberto. Você tem alguma objeção ou algum dogma
que vai contra os desejos da carne que possa te impedir a luxúria? Já ouviu
falar em sibaritismo, caro Roberto?
- Siba... o quê?
- Sibaritismo, camarada?
- Não. Não sei o que é. Por quê?
- Então aguarde e prepare-se. Quando entrarmos numa dessas boates aí que
estão com suas luzes de neon piscando e convidando todos nós, então você
saberá o que é. Vamos nessa. Mas cuidado para não pirar muito. Você se
lembra do hotel onde está hospedado?
- Claro que me lembro. Hotel Danúbio Azul. Como vou esquecer o nome do
hotel se é o nome de uma ópera famosa?
- Beleza. Então vamos nessa.
A rua do Teatro Cultura Artística é a rua que mais tem boates de putaria na
redondeza. É o fim ou começo da boca do luxo. Tudo muito chique mesmo. Era
ali que a minha ex-amiga Remy Lanny frequentava, antes de conhecer um
magnata gringo e se mandar com o cara para seu país e ser feliz para o resto de
sua vida. As mulheres, inteligentes, sempre aprontando as suas. Eu já tinha
entrado em muitas boates aqui antes. Principalmente na companhia da Lanny.
Mas depois que me casei deixei de frequentar qualquer lugar a não ser
acompanhado por minha mulher.
Quando estávamos na porta da primeira boate que iríamos entrar, ouvimos uma
gritaria e correria dos diabos que vinha da praça do supermercado 24 horas.
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Ouvimos tiros e gritaria. As pessoas na porta da boate, incluíndo muitos turistas
à procura de prazer para a carne e lindas prostitutas que saiam para respirar um
pouco de ar da madrugada, além de vendedores ambulantes e pivetes à espreita
de algum “otário” bêbado e descuidado que desse bobeira para eles afanarem as
carteiras, todas as pessoas ficaram curiosas para saberem o que estava
acontecendo na praça. O apavoro foi tão assustador que em menos de dois
minutos já havia duas viaturas da polícia militar com as sirenes ligadas e
soldados correndo por toda parte. As pessoas ficavam só observando e
morrendo de curiosidade para saberem o que tinha acontecido. Não dei bola
para nada. Eu estava nas ruas perigoas de uma cidade grande e seus perigos.
Não estava interessado em saber de nada. Só queria levar meu convidado para
os prazeres que a carne deseja e o dinheiro oferece. Dinheiro ganho
honestamente e por uma causa justa e solidária. O dinheiro, os dólares da
senhora burguesa da Avenida Paulista. Mas não pensei nela. Pensei apenas no
meu amigo Roberto Schalemberg, que renascia das profundezas da miséria para
viver uma noite de rei numa cidade desumana e sem lei.
Esqueci o apavoro da praça, mesmo tendo ouvido alguém dizer que um
micheteiro e um veado tinham sido assassinados no solarium da praça. Quando
estávamos entrando na boate, vi uma bailarina linda sentada no chão do lado de
fora da boate encostada na parede e lendo um livro. Vi de relance o título, “A
Elaboração”, romance de um escritor paranaense. Olhei para a bailarina linda e
percebi sua fascinação e interesse pelo livro e seu ar de felicidade. Ela desviou
o olhar do livro e olhou para mim. Dei um sorriso e balancei a cabeça num
gesto de aprovação e emendei:
- Você fala o que pensa. Você pensa o que lê.
- Acertou em cheio.
- Está gostando do livro?
- Adorando! Conhece este livro e autor? Se não conhece precisa conhecer
urgente. O cara é muito FODA. O cara que escreveu este livro é muito
FODA mesmo e é o melhor escritor do Brasil.
- Conheço sim. É dos bons mesmo.
- Não perco tempo nem aqui no meu trabalho, pois tenho tanto tesão para ler
esse escritor que leio em qualquer lugar.
- Pelo jeito é apaixonada por leituras.
- Só por bons livros. Como este aqui. E você, Bonitão, gosta do quê? Gosta
de livros também?
- Muito. Mas gosto de outras coisas também.
- O que, por exemplo?
- Você vai ficar muito tempo aqui fora lendo o seu livro? Lá dentro a gente
pode continuar esse papo. Preciso entrar e mostrar o que a casa tem de
bom para oferecer, para meu amigo. Ele não conhece essas atrações com
intimidade. Sou seu cicerone.
- Então deixe que eu lhes mostro e acompanhe vocês.
- Não precisa. Pode continuar seu merecido descanso e leitura do seu guru.
Depois que você entrar a gente conversa. Meu amigo está delirando de
curiosidade para entrar.
142
-
Tudo bem. A gente se vê lá dentro. Mas não vá se esquecer de mim. Sou a
garota do livro foda pra caralho. “A Elaboração”.
- Pode ficar sossegada. A gente se vê depois. Até mais. - Entramos.
Lá dentro a coisa paracia que ia enlouquecer qualquer um. Luxo puro. Diversão
pura. Puro prazer para a carne e para os corações inocentes e selvagens, como o
coração do meu convidado. Antes de acharmos uma mesa passei no balcão e
pedi um champanhe francês e uma mesa. As recepcionistas, em seus trajes
típicos, shortinhos curtos vermelhos e tops brancos mostrando tudo que elas
tinham de melhor: os belos peitos e bocas carnudas e derramando desejo
tropical por onde passavam, apareceram e nos conduziram à nossa mesa. Meu
convidado Roberto ficava observando tudo e não perdia um só detalhe. Eu via
seus olhos brilharem sob a luz fosca e misteriosa. Ele delirava. Não acreditava
no que estava acontecendo. Era um sonho. Tantas mulheres ali em busca de
prazer eterno. Umas, por dinheiro, outras, pelo simples prazer da carne, do
tesão, porém todas com o mesmo objetivo: A busca da realização do tesão. Ali
naquele lugar todos esquecem quem são e o que fazem. Esquecem de famílias e
de qualquer coisa. Uns esquecem até mesmo que não são de verdade, como
meu convidado, por exemplo, que nem sabia quem era ou se era alguém. A
única coisa que sabia naquele momento, é que não era um mendigo de rua. Um
sem teto. Um sem-nome. Um nada. Um ser inexistente. Um cavaleiro
inexistente. Uma máscara. Nem ele sabia nada disso, porque a loucura do lugar
fazia qualquer um esquecer de tudo. Principalmente depois das duas primeiras
garrafas da bebida preferida dos franceses.
Roberto se encantava com tudo. Nunca tinha visto tantas mulheres lindas tão
próximas dele e praticamente ao seu alcance. O sinal verde havia sido dado. Ele
tinha permissão e felicidade de poder curtir aquela noite com a mulher que lhe
agradasse e quisesse ficar com ele. Por dinheiro muitas mulheres fazem o que
lhes derem vontade e pedirem. Elas aprenderam há muito tempo que possuem
uma arma. Seus corpos. Com seus lindos e desejados corpos elas podem
dominar qualquer um. Por dinheiro, é claro. Muitas vivem muito bem,
exclusivamente por méritos de seu poder de sedução. E essa noite quem seria o
beneficiado, sortudo, seria meu camarada Roberto Schalemberg. A loucura era
tanta, que meu amigo nem acreditava em nada do que estava acontecendo. Ele
pensava, e com certa dose de verdade, que aquilo tudo era um sonho. Só que
um sonho que ele estava sonhando acordado. E se era um sonho, não poderia
acreditar em nada, apenas continuar curtindo o sonho da melhor maneira. Pois,
os sonhos são sempre melhores que a realidade. A palavra realidade não era
bem vinda nesse momento. Ela não existia e nem poderia existir enquanto o
sonho não acabasse. Sonhar é melhor do que viver. Então vamos continuar
sonhando. Ele queria e torcia para que aquele sonho nunca mais terminasse. Ele
não queria acordar daquele sonho tão cedo.
Quando nos sentamos em duas poltroninhas vermelhas em torno da nossa mesa,
três mulheres correram e pediram se poderiam nos fazer companhia.
Companhia agradável, pensei, olhando para meu amigo. Você é quem manda.
O convidado de honra é você. Esperei a resposta dele para as três convidadas
intrusas.
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-
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-
Claro. Sentem-se e fiquem à vontade. - Respondeu o grande compositor
clássico.
De onde vocês são? São turistas ou são da cidade?
Eu sou da cidade. Moro no Jardim Paulista. Meu amigo é turista. Chegou à
cidade hoje e está hospedado no Danúbio Azul.
Muito prazer. Eu sou a Tatiane, ela é a Rebeca e essa é a Taís.
O prazer é todo nosso. Vocês são muito simpáticas...
Simpáticas e bonitas, - acudiu meu amigo e se abrindo todo para nossas
convidadas que nem precisamos chamar. Caçadoras de talento.
Recompensa ou tesouro, fica melhor. As beldades, que não tinham idade
mais do que universitárias ou colegiais, eram lindas. Cada uma mais linda
do que a outra. Eram bonitas, finas, educadas, gostosas e tesudas. Muito
tesão mesmo. Além de muito espertas. Duas eram morenas e uma loira
muito linda e gostosa mais ainda. Meu amigo Roberto ficou com água na
boca. Quase babava no blazer de linho que usava parecendo um artista
plástico europeu.
Então, Rebeca. Já encontrou seu Isaac?, - perguntei, com cara de
despreocupado.
Não. Infelizmente ainda não encontrei meu Isaac. Mas estou procurando.
Espero encontrá-lo meio logo.
Nenhuma de nós ainda encontramos nosso príncipe encantado.
O Roberto é um partidão. Não é mesmo Roberto?
E muito simpático, - respondeu a tal de Taís, a loira.
Só é um pouquinho tímido. Mas isso é por causa de sua profissão.
E qual é sua profissão Roberto?, - perguntaram todas ao mesmo tempo
em uníssono sussurro.
Músico. - Respondeu ele sem nem ficar vermelho.
Ah, não. Não vão dizer que nenhuma de vocês nunca ouviram falar do
compositor e músico clássico brasileiro, radicado na Europa, Roberto
Schalemberg? Schalemberg com “Sch”.
Não estou muito lembrada. A imprensa brasileira não noticia os trabalhos
de artistas brasileiros que moram fora. De qualquer modo, seja bem vindo.
É uma honra para nós conhecermos pessoalmente um artista erudito, de
grande importância. Muito prazer, Roberto!, - disse a morena que parecia
ser a mais culta de todas, a Rebeca que procurava seu Isaac tão desejado.
Você é judeu? Tem sobrenome judeu. Isso é sinal de inteligência e
genealidade. - Quis saber a loira, a tal de Taís, quase sentando no colo do
grande músico semita.
Só tenho sobrenome e origem judáica, mas sou, quer dizer, minha família
é católica. Existem muitas pessoas que têm sobrenome judeu mas nem
sabem disso. O judaísmo é apenas uma religião.
Eu também tenho sobrenome judeu, Mossman, Taís Mossman, nem por
isso sou judia. - atalhou a loira, interessadísima no assunto.
E você? Só falou do seu amigo. Não falou nem seu nome. Nem nome e
muito menos profissão. Pé-de-chinelo é o que não parece ser. Qual é seu
nome e o que faz, se não se importa em dizer. Será que é músico também,
ou não?, - perguntou Rebeca, a morena bonita de olhos grandes e
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castanhos, pensando que eu me candidataria a ser seu Isaac prometido por
Abraão.
- O que você acha?
- Acho o quê? Nome ou profissão?
- Os dois. Sou muito misterioso.
- Misterioso? Só misterioso? Aposto como você é muito mais do que isso.
Bom, pelo menos uma coisa eu já sei sobre você. Além de misterioso, é
casado e parece ser gente boa. É muito interessante e franco.
- Como pode dizer que sou franco sem nem me conhecer e sem saber qual é
meu nome e minha profissão?
- Instinto feminino. Alma feminina.
- Posso falar apenas o nome? O resto não importa.
- Manda ver. O resto eu descubro.
- Raul. Raul Bonfim.
- É o que todos nós esperamos.
- Esperamos o quê?
- Um bom fim, oras bolas. Todo mundo não espera poder ser feliz e ter uma
vida digna e um happy end ao lado de alguém que te ama e que você a
ame?, - perguntou Rebeca, a morena de dar água na boca de qualquer um.
- É. Acho que você tem razão, Rebeca. Eu também espero poder curtir
minha vida sempre numa boa até meu happy end ser lembrado.
- O meu amigo Raul é um bom-vivã. É o cara mais feliz do mundo. Ele não
se preocupa com nada e só quer aproveitar a vida. Viver a vida como ela
realmente merece ser vivida. Na boa e tranquilamente. Todos nós temos
esse direito. Pena que nem todos podem aproveitar a mesma coisa. Respondeu Roberto, ligado no papo.
A conversa estava começando a ficar boa. Todo mundo muito feliz. Os
shows da boate continuavam a todo vapor. Música de salão bem antiga para os
casais animados e apaixonados. Jazz, blues, bolero e outros ritmos ecoavam
pelo recinto. O número de mulheres era muito superior ao de homens, como
sempre. Em boates finas, o prato principal é mulher para o prazer e deleite dos
homens. Entendi agora porque a minha querida Lanny frequentava esses
ambientes. Diversão e prazer juntos e unidos a uma conta bancária gorda. Todo
mundo sempre busca a mesma coisa. Eu já estava gostando de conhecer e fazer
companhia para as três princesas encantadas quando de repente alguém chegou
por trás e colocou as mãos em meus olhos.
- Ganha um beijo na boca se adivinhar quem é. - Nem precisei fazer esforço
para saber quem era.
- Então pode pagar primeiro. Mas se for bailarina e tiver um livro muito
“FODA”, daquele escritor paranaense mais Foda ainda, como é mesmo o
nome dele?, na mão, aí quem paga sou eu. Aliás, já ganhou uma taça do
nosso champanhe.
- Promessa é promessa. Ganhou um beijo. Quer agora ou em outro lugar? perguntou a bailarina linda e rebelde mais ainda. Mas quem não deve ter
gostado nada foi a morenaça de olhos cor de amendoas que tentava a todo
custo me transformar no seu Isaac. Fiquei meio embaraçado.
- Acho melhor em outro lugar e num outro dia.
145
-
Onde e quando, bonitão?, - quis saber a bailarina que não era burra e nem
nada. Quem lê muitos livros dá nisso.
- Eu passo aqui outro dia qualquer. Não faltará oportunidade. Agora já sei o
caminho.
- Mas vê lá se não vai demorar. Gosto sempre de pagar minhas dívidas.
- Pode deixar que não vou esquecer.
O terceiro champanhe acabou e pedimos outro. A bailarina juntou-se a nós.
Agora estava empatado. Duas garotas para cada um. Isso nos cálculos delas e
do meu amigo. O que eu querria mesmo era somente diversão. Nem cogitei a
hipótese de tirar minha aliança da mão esquerda. Elas não estavam se
importando com isso. A banda começou a tocar um swing e fomos todos para a
pista e mandamos ver. Dançamos pra valer. Todo mundo caiu no balanço e a
animação foi grande. Uma hora olhei para o mendigo disfarçado de burguês e
ele e a loira já estavam na maior agarração. Vai fundo, Schalembrg, que a vida
é uma só mesmo, pensei. Acho que provavelmente ele nunca tinha agarrado
uma loiraça tão gostosa como aquela. Nem mesmo antes de ser mendigo. O
resto vocês já imaginam. Nem mendiga passou por perto do cara. O que será
que passava pela cabeça do cidadão nesse momento?
Dançamos até não aguentarmos mais. Voltamos para nossa mesa. A bailarina
voltou para os camarins ou sei lá onde, só sei que ela saiu para se preparar para
seu próximo número. Não demorou nem cinco minutos e ela já estava num
palco redondo no meio do salão fazendo sua performance. Volta e meia ela
olhava para mim e me mandava sorrisos. Acenei para ela fazendo sinal de
palminhas. O namoro do músico clássico com a loira que tinha sobrenome
judeu esquentava cada vez mais. Fiquei feliz e comecei a dar gargalhadas.
Ninguém na mesa entendia minhas gargalhadas. A morena estava linda e
enamorada do seu novo herói, eu. Eu mesmo. Dava para ver que elas, as três
amigas, sabiam sempre demarcar seus territórios. Cada uma sabia o momento
certo de atacar e agarrar seu homem. Eu já tinha sido fisgado por uma, pela
Rebeca, isso na imaginação e planos delas. Elas sabiam que nós, todos os
homens, que vão a uma boate cheia de mulheres, só procuram uma coisa:
aventuras.
- Então, Roberto? Como está se saindo? O Brasil não é uma maravilha
mesmo? Não é um verdadeiro e admirável mundo novo?
- Você tem razão, meu caro Raul. Te devo essa. Depois a gente se fala.
- Depois? Por que depois?
- O que você acha? Não está vendo que estou ocupado agora?
- Pega leve, amigo. Ainda temos muito tempo para curtir. E as outras boates
e bares, você não quer ir conhecer?
- Sei lá. Meu cicerone é você. Esqueceu disso?
- Não. Claro que não. Vou pagar a conta e vamos dar o fora. Pergunte para
sua loira se ela quer ir junto. Aposto que ela não é da casa e é freguesa
como nós.
- Acertou em cheio. Não somos nenhuma puta. Somos universitárias que
gostam de curtir a vida muito alucinadamente. E hoje a noite estava muito
convidativa. Por isso, viemos aqui. Mas não somos putas. Não precisamos,
ainda, usar o corpo para ganhar dinheiro. - Respondeu Rebeca, a morena
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mais linda e gostosa, e inteligente mais ainda. Paguei a conta e saímos.
Roberto e sua loiraça saíram abraçados e se beijando. Rebeca chamou sua
amiga Tatiane, que já se sentia meio escanteada e ficaram conversando a
sós enquanto eu aguardava o meu troco. O garçon voltou e me entregou o
dinheiro. Dei uma gorjeta gorda em dólares para ele que saiu cheio de
satisfação. Quando dirigia-me para a porta de saída olhei para a bailarina e
dei um adeus com um aceno de mão. Ela sorriu para mim e fez sinal
dizendo para eu não ir ainda. Fiz um sinal de que estava com sono e ia
nanar. Mas ela foi esperta e percebeu que a sua rival, a morena Rebeca,
saía também me acompanhando. Um dia é da caça e o outro é do caçador.
Saímos todos. Na rua uma ligeira reunião para decidirmos para onde
iríamos. As três belezocas disseram que moravam numa casa bem ali
perto, numa travessa da Rua Augusta e nos convidaram para ir para lá.
Meu amigo ficou pálido, amarelo e verde ao mesmo tempo diante do
convite. Ele deve ter ficado morrendo de medo de eu dizer não. Mas, no
fundo, ele era inteligente e sabia que eu não faria isso. Fomos para a casa
das princesas. Roberto com sua loira e eu abraçado com duas beldades
morenas. Elas disseram que não precisava pegar táxi porque não valia a
pena e queriam caminhar pela madrugada cheia de mistérios e sem
nenhuma estrela na noite paulistana. Subimos a Rua Augusta e passamos
bem na frente do Bar Spazio Pirandello.
- O que vocês acham da gente dar uma passadinha antes no Pirandello?
Sabiam que a casa onde é o Pirandello foi a última moradia do grande
escritor e boêmio, Oswald de Andrade?, - perguntei aos meus convidados
de honra.
- Eu topo. - Respondeu Rebeca, com a mão entrelaçada na minha.
- Eu também. - Emendou Tatiane, para mostrar para a amiga que estava
topando qualquer parada. Até mesmo uma homenagem a três.
- Já que vocês querem conhecer a casa do poeta, nós também queremos, respondeu Roberto, quase apaixonado pela sua amada.
- Então vamos nessa, galera, que a madrugada é nossa melhor companheira,falei.
Atravessamos a rua e entramos no bar de intelectuais mais chique da cidade.
Pensei até que poderia encontrar alguém conhecido lá. O bar ainda estava cheio.
Só gente bonita e transada. Reduto de artistas e intelectuais. Muitos atores,
músicos e alguns escritores famosos fazendo ponto lá. Entrei acompanhado
pelas duas morenas e meu amigo agarrado com sua loiraça. Fomos recebidos
como estrelas de cinema por flashes de olhares disparados por todos os lados.
Quem será o bonitão com as duas beldades? Tem jeito de ser alguém
importante. Cineasta italiano? Escritor da riviera francesa? Tem mais jeito de
ator. Será que não é escritor húngaro? Olha lá, o pinta fala português. Será que
é brasileiro? Quem será que é? Eu sentia que era bem-vindo ao ambiente. Que a
curiosidade embriaga todo mundo. O fetiche de ser comido com olhares de
todos os lados me fazia bem. Mas eu não agia com malícia. Era natural com
tudo e fingia que não era visto por ninguém. Procuramos e encontramos uma
mesa num dos labirintos que os vários ambientes ofereciam.
- Vamos tomar o quê?, - perguntei, dando uma de anfitrião educado.
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-
Eu quero uma vodka Smirnoff, - respondeu Rebeca.
Eu vou de Dry Martini, - pediu Tatiane com um sorriso que sugeria
pensamento numa orgia e muita malícia. A libido estava aflorando. Sinais
da noite. De satisfação. Tesão.
- A essa hora, acho que ainda aguento uns dois Saint Remmy, filosofou a
loira que já devia estar no caminho ao encontro do seu ponto “G”, nos
braços do seu herói.
- E você, Roberto? O que vai ser? Ou já está embriagado de amor e
satisfação?
- O que você acha de um bom bourbon? Se você pedir, eu te acompanho.
- Tudo bem. White wine para nós.
Não demorou muito e nossos pedidos chegaram. E com ele veio um bilhete
trazido pelo garçon. O bilhete era para mim. Abri e li sem levantar a cabeça
para ver se estava sendo observado pela ou pelo remetente. “Oi, desculpe a
indiscrição e chatiação. Não sei se estou enganada ou não, mas acho que já o
conheço de algum lugar. Estamos na mesa atrás de vocês. O que acha da gente
se conhecer melhor? Vire a cabeça para cá e saberá quem sou”. Só me faltava
essa agora. Nem tive o trabalho de levantar a cabeça e olhar para lugar algum.
Eu já estava acompanhado por duas beldades e ainda assim recebia convite para
conhecer alguém. Mesmo sem saber quem era. Poderia ser mulher, bicha, veado
ou algum tarado. Se eu estivesse sozinho e procurando companhia, aposto que
não encontraria ninguém. Amassei o bilhete e o coloquei no meio do arranjo de
pequenas flores que decorava nossa mesa. A noite seguia seu destino como um
rio segue seu curso. Todo mundo se embriagava em alguma coisa. Eu já estava
satisfeito com tudo que tinha acontecido até aqui mas não tinha planos.
Nenhum plano. Continuava deixando que a noite me embalasse calmamente.
- Pessoal, vamos fazer uma brincadeira interessante?, - perguntou Rebeca,
depois do primeiro gole em seu drinque.
- Que tipo de brincadeira? Troca de casais ou prática de sibaritismo?, indaguei com um pouco de sinismo.
- Não. Nada disso. Essa parte pode ficar para mais tarde ou outro dia, menos
essa última palavra que eu não sei o que é. A brincadeira é outra. É bem
simples. É divertido. É uma coisa que todo mundo gosta de fazer. Vamos
todos dar as mãos uns aos outros, fechar os olhos e fazer um pedido. O que
acham, não é legal?
- Boa idéia.
- Também acho.
- Eu também topo.
- Eu também!
- Já que todos topam, então peguem as mãos de cada um e fechem os olhos
e façam seu pedido e fiquem “viajando” nele por algum tempo. Depois que
eu disser “pronto”, aí todo mundo pode abrir os olhos e dizer o que pediu.
Combinado?, - perguntou a organizadora da façanha. Antes de darmos as
mãos, cada um tomou mais um gole de sua bebida e demos as mãos.
- Vamos lá. Só abram os olhos quando eu disser “pronto”. - Todo mundo
fechou os olhos e ficamos em absoluto silêncio por um bocado de tempo.
Eu já estava gostando da brincadira e devaneando numa pira muito boa
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quando ouvi o alerta do despertador humano dizer com muita ênfase:
“PRONTO”. Ouvi todo mundo respirando com certo alívio, mas eu
continuei de olhos fechados e usando meus óculos escuros com a cabeça
jogada para trás do tronco do pescoço. Meu pedido era para que aquela
“viagem” que eu estava tendo não acabasse mais. Parecia que eu estava em
alfa e muito sossegado e queria continuar naquela posição meio viajandão.
Mas fui imterrompido em meu devaneio pela Rebeca que tentava me
acordar do sonho em que eu estava mergulhado.
Raul. Ei, Raul. Abra os olhos cara, onde você está? Conte para nós qual foi
sua pira. O que você pediu? Qual foi seu pedido? Conte para nós, estamos
todos curiosos para saber.
Ãh...?, o que foi? Onde eu estou? Ah, sim. Ah..., o meu sonho, isto é, meu
pedido foi para aparecer na minha frente, na minha mente, uma paisagem
linda, um pôr-do-sol lindíssimo. Foi muito lindo. Eu estava num lugar
lindo. Era uma cidade pequena do interior do Brasil. Uma cidade linda e
nova no sul do Brasil. Tolerow. A cidade tinha um lindo lago. E tinha o
Pôr-do-sol mais lindo que eu já vi até hoje. Hoje eu fui ver o meu lindo e
inseparável pôr-do-sol. Foi divino. Lindo. Maravilhoso. Grande. Hoje é
uma Sexta-feira de primavera. A primavera é a estação do ano mais linda.
E é a de que mais gosto também. Gosto de todas as outras. Mas minha
preferida é a primavera. A que menos gosto é o inverno. Ele é gostoso e
lindo mas é muito chato. Depois da primavera a outra estação mais gostosa
é o verão. Eu adoro o verão. Como é gostoso e bom passar o verão inteiro
na praia. Vocês não acham? Então, gostaram do meu pedido? Ele se
materializou e eu pude ver um lindo pôr-do-sol hoje. Mas tinha muita
coisa no meu magnifico pôr-do-sol.
O que mais tinha no seu lindo e grande pôr-do-sol?
Muita coisa. Tinha muita coisa boa. Só coisas boas o dia todo. Vão querer
que eu conte mesmo?
Sim. Claro que queremos, Raul, manda ver, - respondeu todos juntos.
Está bom, então eu conto. Mas depois quero ouvir o pedido de todos
vocês, combinado?
Nós já contamos, você não prestou atenção? Agora já era.
Contem de novo. Quero ouvir todo mundo senão eu não conto o resto.
Tá legal, a gente conta. Combinado, pessoal?
É.
Assim está melhor. Agora eu conto. E eu gostaria de estar lá, agora.
Gostaria de estar lá no mesmo lugar onde a pira aconteceu. Até amor rolou
na história. Na pira. Na parada. Mas eu vou deixar vocês contarem o
pedido, a “viagem” de vocês primeiro. O Roberto conta o dele primeiro.
Estou muito curioso para saber o que aconteceu com o Roberto. Então,
Roberto, conta ou não conta?
Conto. Tá legal, eu conto qual foi o meu pedido e o que rolou na pira. Foi
muito engraçado. Eu fiz um pedido para trocar de personalidade com
alguém. Eu queria ser um mendigo.
Um mendigo?, - perguntou a loira, surpresa.
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É. E a piração começou e terminou muito legal. Na minha piração eu não
era quem sou agora. Um músico e compositor clássico, erudito. Eu era um
gerente de um supermercado muito grande na Avenida Brigadeiro Luiz
Antônio, bem próximo da Paulista. De repente chegou um sujeito cabeludo
e muito maluco, assim parecido com o Raul, só que era cabeludo e muito
boa pinta, lá com uma câmera filmadora portátil e começou a me
entrevistar e pediu um saco grande cheio de pães e vários cubos grandes de
queijo e presunto de doação para os mendigos e pediu para eu ajudá-lo
com a distribuição perto dali. Eu achei uma boa causa e aceitei o convite
para fazer uma boa ação e fui do jeito que estava. De gravata, crachá no
peito e celular na cintura. Quando chegamos lá onde estava uma legião de
miseráveis, de mendigos de todos os cantos da cidade, eu fiquei encantado
com tudo que vi e quis ficar ali junto com eles o dia todo. Mas como eu
não podia, como tinha meu trabalho para fazer, disse ao malucão que me
levou lá, para ele ir trabalhar no meu lugar, com minha roupa e meu
crachá. Ele disse que não podia. Que era escritor e repórter e tinha que
entrevistar muita gente. Que precisava saber das pessoas o que elas
achavam da fama. O que era a fama para muita gente. Principalmente para
as pessoas já famosas. E se as não famosas gostariam de ficarem famosas e
por quê. Aí ele teve uma brilhante idéia que eu gostei e aceitei na hora. Ele
andou no meio dos mendigos examinando todos de cima em baixo e
agarrou um cara pelo pescoço e veio empurrando o sujeito até mim. “Tire
sua roupa rápido. Você também, senhor... Schalemberg, gerente de loja.
Troquem de roupa agora e depressa. Vou levar esse mendigo aqui e ele vai
trabalhar no seu lugar hoje e doar comida, pão, leite, suco, pizza, frutas,
queijo, para vocês, quando todos forem lá no hipermercado. Vai ser uma
maravilha. E eu vou poder filmar tudo e perguntar para todo mundo o que
a fama representa para cada um”. Gostei da brincadeira. Sem falar que
estava podendo ajudar muitas pessoas, mesmo que indiretamente. Que a
doação era por conta do hipermercado que era podre de rico. E foi o que
aconteceu. No final, tudo acabou com happy end.
Mas você continuou como mendigo ou voltou para seu trabalho como
gerente?, - perguntou a loira super emocionada.
Antes de chegar a essa parte eu abri os olhos quando a Rebeca disse
“pronto”. Não me lembro mesmo. Mas qualquer que fosse o lugar que eu
ficasse, gerente ou mendigo, não ia fazer diferença para mim. O que
acharam da minha piração? Gostaram? Agora é com você, Raul. Termine
de contar o seu passeio ao pôr-do-sol.
Mas bah, tchê! Que pira, em Roberto! Já pensou você de mendigão
andando pelas ruas de Sampa? Olá Schalemberg, como vai? E a
mendicância, como está indo? Bem. Muito bem. Dá para ir caminhando
aqui e ali. Sempre sobra um pedaço de pão. O frio da madrugada é que às
vezes, estraga, dói um pouco. No mais, a gente vai vivendo. Ou vai
morrendo aos pouco, em doses homeopáticas, para não desaparecer de
uma vez. Ia ser meio divertido encontrar você na rua como mendigo com
um crachá da rede Extra no peito: ROBERTO SCHALEMBERG - Gerente
de Loja, pedindo esmola. O que vocês acham, garotas?
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Muito triste.
Eu também acho.
Ainda bem que nossas mentes podem pirar, “viajar”, devanear sozinhas
sem nossa interferência e tudo não passa de devaneio, - falou Taís, a loira
gostosa do meu amigo que já tinha virado mendigo, gerente de
hipermercado, mas que ainda continuava firme como compositor erudito.
- É verdade. Mas a vida é traiçoeira e pode nos pregar alguma peça. Por
isso, não podemos marcar muito. Se fosse para ser mendigo algum dia eu
ia preferir ser mendigo numa cidade como Porto Alegre ou Porto Seguro.
Uma é alegre e a outra é segura. - falei me levantando para ir ao pipiroom
dar um gostoso mix. A bexiga já estava estourando.
- O Raul tem toda razão. Está certíssimo. A vida realmente pode nos pregar
alguma peça. Eu mesmo já pensei em ser mendigo só para ver qual é que é.
Como as pssoas me tratariam. Eu tenho certeza de que seria ignorado por
toda a população da minha cidade e pelo meu meio intelectual. Sabem por
quê? Porque as pessoas, a maioria, são todas egoístas. Individualistas.
Interesseiras. O Que mais conta, o que mais se valoriza nas pessoas são
suas aparências. Nada mais interessa. O mundo é totalmente desumano. A
humanidade está a caminho de sua própria destruição. O que vocês
acham?, - filosofou o mendigo disfarçado e muito autêntico.
- Que você está coberto de razão. Que é isso mesmo que disse. A
humanidade, a sociedade é muito mesquinha e contraditória. Que precisa
mudadar muita coisa para melhorar o nosso mundo. - completou Rebeca.
Voltei para a minha mesa. Os olhares variavam muito de ambiente para
ambiente do bar. Mas todos tinham um endereço certo: eu. Antes de chegar à
minha mesa fui abordado.
- Com licença. Recebeu meu bilhete?
- Recebi um bilhete, mas era anônimo.
- Era meu. Está lembrado de mim? Faz muito tempo que a gente não se fala.
Ainda se lembra de mim?
- Qual é seu nome?
- Karol.
- Karol? Mas não é do Paraná?
- Claro que sou. Lembrou agora?
- Mas é lógico. Claro que me lembro. Como não lembraria? Querida Karol.
Minha Karol. Como você está mudada. Que mudança, heim! O que
aconteceu? Já casou?
- E você, já casou, ou ainda está me esperando até hoje? Eu ainda continuo
solteiríssima e livre até hoje. LSD. Livre, solteira e desimpedida. Ainda
estou à procura do meu príncipe montado num cavalo branco. Ainda sabe
andar a cavalo?
- Sei mais ainda. Agora eu tenho muitos cavalos e uma fazenda.
- Quem diria, heim? Cumpriu a promessa de que teria uma fazenda um dia.
Lembra-se de quando fez a promessa lá na minha casa em Curitiba?
- Lembro sim. Lembro tanto que eu a cumpri. E você o que faz da vida?
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Continuo morando lá na mesma casa com os meus pais. Agora sou
veterinária, tenho uma clínica particular e cuido dos animais da família.
Estou a passeio aqui na terra da garoa. E você, o que tem feito na vida?
Fazendeiro. Virei fazendeiro. Crio cavalos e um pouco de gado e algumas
ovelhas. Café eu não planto. Gostaria de plantar erva mate. Mas não sei se
o clima é proprício. Vou pesquisar mais um pouco. Mas estou feliz. Muito
feliz como fazendeiro e por reencontrá-la bem, depois de muito tempo.
Que beleza. Estou com umas amigas e um grande amigo aqui. Gostaria de
se juntar a nós?
Obrigada. Não posso. Estou com meus pais e amigos da família. Nós
vamos embora no Domingo à tarde. Se quiser conversar amanhã, hoje, de
dia, pois já é Sábado, poderemos marcar um encontro. O que acha?
Que pena, amanhã não posso. Hoje não posso. Tenho que ir para a fazenda
bem cedo. Já estou até pensando em ir embora dormir. Vou para a fazenda
todo fim de semana. Quando eu for a Curitiba eu a procuro. O telefone
ainda é o mesmo?
Sim. Mas pode ligar antes, se quiser. Até a próxima então. Foi muito bom
reencontrá-lo. Tchau. - Ela saiu com os olhos faiscando de felicidade.
Quase chorando. Voltei para minha mesa pensativo e feliz por ter tido a
idéia de ter passado no Pirandello naquela noite. O mundo é pequeno
mesmo.
Gente, vocês nem imaginam o que me aconteceu agora mesmo.
O que foi? Viu uma assombração?
Quase. Ou mais que isso.
O que foi então?
Acabei de encontrar uma pessoa que eu não via há anos. E o pior é que eu
nem a reconcheci e ela me reconheceu e tinha me mandado este bilhete
aqui. É uma ex-namorada minha do Paraná. De Curitiba. E o pior é que o
tempo passou e só fez bem a ela. De broto adolescente ela tornou-se uma
mulher muito linda. Essa foi demais!
Tá legal. Não estamos interessados em suas ex-namoradas. Queremos
saber o resto da sua piração. Do seu passeio ao pôr-do-sol. Está lembrado
que ainda não terminou de contar? Será que dá para contar agora?, perguntou Rebeca inquisidora.
Conto. Agora eu conto. Já fui dar meu mix e estou totalmente zen. Vamos
lá então. Lembram-se de que eu fui ver o pôr-do-sol numa cidade pequena
no sul do Brasil. Era uma Sexta-feira, como hoje, e eu tinha tido um lindo
e gostoso dia. Estava muito feliz e peguei uma bicicleta, uma bike, de
alumínio, levíssima e excelente para dar um passeio. Uma longa pedalada
no meio da natureza. Peguei uma estradinha asfaltada, plana, estreita e
pouco movimentada, apenas carros dos colonos trafegavam por ela, ao
encontro do sol, do pôr-do-sol. Eu pedalava de frente para o astro que
descia para me proporcionar um lindo espetáculo. O seu desaparecimento
no horizonte. Pedalei cerca de uns cinco quilômetros até chegar nun
descampado, uma plantação de trigo que estava sendo colhido, que
oferecia a posição mais privilegiada. O sol se pondo de um lado e a lua se
levantando toda majestosa e linda do outro lado. Quando eu saía da cidade
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rumo ao interior, bem em frente a um seminário de padres diocesanos,
passei por uma fila de carros que estavam parados com as pessoas dentro
dos carros e outras fora conversando e com grandes rojões nas mãos. Parei
e perguntei o que estava havendo. Se haveria uma festa. Eles disseram que
estavam preparando uma festa-surpresa de aniversário para o sogro de um
deles. O sujeito morava numa chácara mais à frente e estava completando
cinquenta e três anos. Morava com a família numa propriedade rural.
Fiquei contente com a notícia e fui em frente. O sol caía lindamente
deixando seu crepúsculo para trás. Quando cheguei até a grande plantação
de trigo, entrei numa estradinha de terra. Uma trilha no meio do trigal.
Andei uns quinhentos metros e encostei a bicicleta numa árvore e senteime em posição de yôga de frente para o lindo e vermelho sol que caía
graciosamente enchendo meus olhos de felicidade. O horizonte era todo
meu. Sua vastidão era linda. Só natureza para admirar. Aves passavam
cortando o céu azul e calmo. Um casal de papagaios silvestres roçou minha
cabeça. A estradinha de asfalto descia e depois subia a colina à minha
frente. Os carros da festa-surpresa chegaram ao seu destino à beira do
asfalto, a uns oitocentos metros distante de mim. Ouviu e vi os rojões
sendo pipocados. Muito barulho. Buzinas e sanfonas davam o tom da festa.
A algazarra foi geral. Eu fiquei mais feliz ainda. Pôr-do-sol lindo com
festa e folguedos ao fundo. A felicidade estava solta. Todo mundo muito
feliz. Eu curtia tudo com muita satisfação e agradecia a Deus e a todos os
deuses do universo por aquele espetáculo indescritível. Uma grande lebre
passou correndo longe de mim. Pude vê-la e curti-la por alguns minutos.
Fiquei com vontade de correr atrás dela e brincar com ela. Mas deixei-a ir
tranquilamente. O sol se pôs lindamente deixando para trás seu rastro de
vermelhidão. O crepúsculo se encarregou de terminar o espetáculo que a
natureza me proporcionava. Peguei minha bike e voltei cantarolando uma
nota de um blues. “Walking. Talking”. Voltei para a cidade e continuei
meu passeio pedalando em volta do grande e lindo lago da cidade. Foi lá
que ela apareceu.
Ela quem?, - quis saber Rebeca, já meio com ciúmes.
Iassanã. Uma linda princesa. Fiquei encantado só de conhecê-la. Foi como
as sereias que encantaram o herói Ulisses, quando ele retornava para casa.
Mas o herói não caiu na armadilha das sereias. E você caiu?
Não sei ainda. Não parei para pensar.
Como ela era?, - quis saber Roberto, que ouvia atentamente e gostaria de
estar vivendo a mesma situação.
Lindinha. Muito interessante. Fiquei totalmente encantado por ela. Era
alta, magra, bonita, cabelos longos, parecia meio “bicho grilo” do tipo
Janis Joplin, alegre, simpática e atenciosa.
E não era uma visagem como as sereias? E o que aconteceu depois?,
perguntou Rebeca.
Daí para frente não sei o que aconteceu. No momento em que a gente
estava conversando, você me acordou da “viagem”. Então, gostaram da
minha pira? Sair daqui, uma madrugada agitada para um pôr-do-sol lindo
não é realmente fascinante?
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E como é! É o sonho de qualquer um. Nem precisa ser no meio de um
trigal como o seu, numa praia ou em qualquer lugar já bastaria. Só aqui em
Sampa é que não há como ver um lindo pôr-do-sol por causa da poluição
cáustica e delirante. - Interviu Roberto, com uma taça de bourbon na mão.
O blues muito maneiro de Robert Johnson comia solto nas caixas de som
stereos do Pirandello. Coisa rara. Coisa muito chique e de bom gosto. Todos
apreciavam a música e não deixavam de pensar no cara que estava cantando
um blues puro, cru, e tocando sua guitarra acústica num quarto de hotel, onde
gravou seus discos. O clima do ambiente era de pura doçura e curtição da
madrugada boêmia. Espaço intelectual, bar de intelectual é muito agradável e
tranquilo. Eu gosto muito de espaços desse tipo. O vinho já estava no final da
garrafa. O morena, as duas morenas, estavam agarradas em mim. O pedido de
socorro, salvem-me, ecoava em seus pensamentos. Elas queriam um guardião
como eu, queriam meu socorro, davam sinais de que queriam continuar a
festinha lá na casa delas. Paguei a conta e zarpamos.
Elas moravam numa casa confortável e grande a uma quadra dali. Bem perto
de uma delegacia, distrito policial. Fomos todos abraçados. Eu no meio das
duas morenas e meu amigo no meio da sua loira e uma morena minha. Rebeca
levava uma garrafa de champanhe francesa aberta. A festa contiuou no meio
da madrugada misteriosa e cheia de perigos. Entramos. Dei uma olhada em
volta de tudo e continuei calado. Fui olhando todas as peças da casa, mas não
perguntava nada e nada comentava, só observava tudo calado. Misterioso.
Cabreiro. Desconfiado. Astuto. Inteligente. Esperto. Malandro. E muito
corajoso para encarar o que viesse pela frente. A noite era de Sexta-feira cheia
de tantos mistérios e apavoros. Não tinha esquecido disso. Eu era um
personagem de um filme. Um filme que eu mesmo construía na minha cabeça
e ia acontecendo paulatinamente. Que eu ia vivenciando pessoalmente. Um
personagem real que sai pela noite misteriosa e perigosa vivendo na pele o que
ele viveria na tela. Olhei tudo com muito cuidado e mistério. As morenas, a
loira e seu namorado, todos me observavam com certo ar de admirados e
encantados, observavam-me atentamente. Esperavam que eu fizesse perguntas,
mas eu apenas olhava e analisava tudo. Alguém se lembrou da bebida e
perguntou se eu queria. Peguei a garrafa de champanhe e tomei um longo e
delicioso trago. Depois levantei as duas mãos para o alto e disse para todos:
“viva a vida! Viva a felicidades de todos!”. Eles bateram palmas. Eu dei um
abraço em todo mundo. Quando abracei Rebeca ela me pegou de surpresa e
me deu um beijo de boca, na boca. Não aceitei e nem repeli o beijo surpreso,
inesperado, mas oportuno. Finalmente consegui me livrar do abraço e beijo da
morena de olhos grandes e castanhos, que estava muito interessada em ser a
sereia do meu lindo pôr-do-sol. Elas, as três bruxas da madrugada sobria e
perigosa, ligaram o som. Acenderam velas coloridas. Incenso. Acordaram
gnomos. Bruxinhas, e colocaram tiaras indianas. Fiquei só observando tudo.
Sabia que alguma coisa poderia sobrar para mim. Tratei de ficar o máximo
atento. Genius. Soul e Jazz. Anos quarenta. Ray Charles no começo da
carreira. O som rolava solto. De repente fiquei num quarto com uma cama
redonda de casal. Acho que toda cama redonda é de casal. Mas o cara pode
morar sozinho e ter uma cama redonda. Bem pensado. As duas morenas dóceis
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da noite, dos dois bares, as estudantes de psicologia e arqueologia egípicia,
que era o que elas estudavam na universidade do Estado, de repente
começaram a me agarrar e querer tirar minhas roupas. A tara era tanta que elas
pareciam estéricas e possuídas por algum espírito de ninfo-maníacas e deusas
sedentas de prazer, de sexo. Tentei me livrar delas com malícia e certa dose de
inocência, mas elas eram lobas sedentas e no cio e não demonstravam que
parariam o trabalho enquanto elas não saciassem suas libidos. Seu tesão. Dei
um jeito de ficar de bruço fingindo que tinha cocégas e forcei as duas mãos na
cama e dei um salto para trás. Elas levaram um tremendo susto e ficaram meio
sem jeito e até meio tímidas. Tentei minha salvação da garra de duas panteras
taradas. Perguntei por que fizeram aquilo sem minha permissão. Elas foram
muito espertas e responderam em coro.
- Perdemos a cabeça. Desculpe. Prometemos que não faremos isso
novamente, sem sua permissão, é claro.
- Tudo bem. Afinal, não sou mais nenhum gurizinho. Já passei a barreira
dos trinta. Acho que díalogo ainda é a melhor arma que uma mulher ou um
homem pode usar para conquistar outra pessoa. Até mesmo para levá-la
para a cama. Acho que ataques desvairados e tresloucados não funcionam
direito. Assusta mais do que conquista. Desculpem se sou meio antiquado,
mas acho que não é bem por aí.
- Pô, Raul, desculpe. Desculpe mesmo. A gente pirou demais. Muita bebida
e muita piração. E você, quer saber a verdade mesmo?, você é um pão.
Parece um grego. Às vezes não dá para resistir...
- É mesmo? Que maravilha! Mas eu sou grego. Sou de família de origem
grega. Já fui muito chamado de grego por aí.
- Ah, que bom. Estamos numa boa de novo, - falou Rebeca pegando em
minha mão e me levando para uma sala grande cheia de almofadas pelos
cantos e pelo chão. O meu amigo estava traçando a sua loira numa
poltrona de couro preto numa outra sala. Será que ele já tinha transado
com uma guapa daquela antes? Duvido. Que noite! Mesmo que
continuasse a ser mendigo para o resto da vida, essa noite ele nunca mais
esqueceria. A casa mais parecia um ateliê de pintura de artísta plástico
doido, do que uma casa de moradia. Tudo cheirava a mistério. O perigo
aguardava na esquina. O lobo preto da madrugada uivava voraz. Inocentes
são sempre anjos. E eu era um anjo. Sempre fui um anjo. Do bem. Um
anjo disfarçado de homem. E os anjos adivinham, sabem quando o perigo
está por perto. O lobo preto de longos caninos afiados e olhos vermelhos
uivava próximo da colina invisível da madrugada ali bem perto. Flashes
de pensamentos do mal, os pensamentos que dominam a metade do nosso
cérebro, disparam e tentaram vencer os pensamentos do lado do bem, a
metade do cérebro do bem. As duas metades do cérebro, a do lado do bem
e a do lado do mal, estão sempre em conflito, guerra, constante batalha.
Mas, para nossa sorte, e para os que têm muita força de pensamento
positivo, os pensamentos do lado do bem sempre prevalecem. Raramente
os pensamentos do mal agem em nossa mente. Mas quando eles acordam e
tentam nos vencer, nos enlouquecer, aí é muito triste e assustador.
Qualquer um pira, enlouquece.
155
-
Então vamos comemorar. Vamos tomar uma bebida. Deixe que eu sirvo
uma bebida diferente. É surpresa. Olha aqui a garrafa. Olha só que linda
que é a cor. - ofereceu-se Rebeca, já trazendo uma garrafa grande de
cristal com uma bebida dentro de cor azul. - Está aqui. Vamos todos nós
cinco beber essa garrafa que guardei para uma ocasião especial como essa
de hoje. Venha galera, vamos nos sentar aqui nessas poltronas e berber a
noite inteira, - convidou a morena que ainda tinha esperanças e sonhos de
me reconquistar. Fiquei curioso. Cabreiro. E muito atento.
- Que bebida é essa, Rebeca? Vê lá o que você vai nos dar, heim?
- O que é isso, querido, não precisa se preocupar. Nós também vamos
beber. Está com medo de ser envenenado. O veneno aqui somos nós.
Esqueceu do que acabou de acontecer?
- Ainda não. Mas é sempre bom não “viajar” muito.
- Tome. Você vai gostar. Essa bebida veio de longe. Veio do outro lado do
Atlântico. Beba e me diga se não é uma delícia.
- Humm! Realmente é boa mesmo. Um pouco amarga. Mas quando a coisa
é boa, aí é que está o perigo. Essa bebida é muito perigosa. Ela enlouquece
qualquer um. Já experimentei antes na minha casa. Mas não tive coragem
de beber mais. Nem socialmente. Mas hoje está convidativa.
- Parabéns, bonitão. Você é muito foda. É foda mesmo. É por isso que
gostamos de você. Não é mesmo Tatiane? Tati para quem quiser.
- E não somos assustadoras como você está pensando que somos. Com
diálogo a gente chega lá, não é mesmo Raul?
- Não estou entendendo esse papo. Será que já é o efeito do Absinto. Eu só
tomei um cole até agora. Ainda bem que estamos todos sentados em
poltronas confortáveis. Vamos ver quem vai desmaiar primeiro. Espero
que não seja eu.
- Se você desmaiar primeiro do que eu, eu cuido de você. Quem ficar
consciente cuida do outro, combinado?, - sentenciou Rebeca, já caíndo de
braços moles para cima de mim e me abraçando. Chamo isso de jogo do
vale tudo. Vale até fingir de desmaiada. Entrei no jogo e pretendia fazer o
mesmo. Meu amigo estava seguro com sua loira e longe da garrafa da
bebida azul. Bebida feita de planta herbácea amargosa. Absinto. Veneno.
Remédio para muitas mulheres pegarem homens inocentes na armadilha.
Não existe pira melhor no mundo do que misturar vários tipos de bebidas numa
noite. A cabeça “viaja” a mil por hora. Você acha porque acha que vai morrer e
que esse será o último dia que você bebe na vida. Faz até promessa para um
monte de santos que nem acredita neles. Ainda por cima fechar a madrugada
com chave de ouro, com Absinto. Isso é o que qualquer mortal gostaria de
curtir. Curtir uma única vez na vida para nunca mais querer lembrar disso. E era
para esse caminho que eu estava indo nessa noite alucinante de Sexta-feira.
Tudo indicava que não havia mais saída e que o melhor era encarar de frente o
que de pior pudesse acontecer. O maior perigo vinha de dentro de nós mesmos.
Dentro de nossa cabeça. A piração. A loucura. Alucinação. Delírio.
Tomei mais um gole da minha bebida e foi como se eu tivesse subido ao céu e
descido ao inferno. O inferno de Dante estava começando. Minha cabeça
começou a girar e eu me perdi de mim mesmo. Estava conscinte mas não sabia
156
mais quem eu era. Virei um fantasma. Vi minha alma sair do meu corpo e ficar
sentada no meio da sala olhando para mim. Fiquei amarelo e senti calafrio.
- Rebeca, acorde. Olha lá no meio da sala o que está sentado lá.
- Que foi querido? Quer fazer amor comigo no meio da sala? A Tati também
vai querer...
- Que fazer amor o quê? Acorde sua desgraçada. Olha ali, porra. Estou
sozinho. Minha alma foi embora. Está querendo me abandonar. Eu vou
morrer se ela não voltar. É só eu dormir e morrer. Você precisa me ajudar.
Chame um padre, ligue para o bispo, rabino, pastor, qualquer porcaria, mas
me salve, pelo amor de Deus.
- Calma, baby. Já já sua alma volta. Ela só foi dar um passeio sozinha.
Agora deite-se aqui ao meu lado e me faça carinho que tudo passa.
Desgraçada. Mulheres más. Vampiras. Lobas sedentas de sexo. Desgraçada de
mulher tarada. Só pensa no próprio prazer. Sereias amaldiçoadas. Caí no seu
encanto. Mas ainda me safo dessa. O delírio continuava cada vez pior. Uma de
um lado e outra do outro lado. Uma abraçada de um lado e a outra caída em
cima de mim. Vítima. Vítima da minha própria rebeldia e irreverência. Minha
marca registrada. Mas eu era forte e aguentaria firme. Espero.
As lobas sedentas e posuídas pelo veneno da bebida do delírio enlouqueciam
cada vez mais. Como escaparei daqui, meu Deus? Não, eu juro que não
sucumbirei a esse terremoto. Consegui me levantar. Pelo menos minha roupa
elas não conseguiriam tirar. Levantei-me e comecei a andar em círculo para ver
se melhorava um pouco. Fiquei pior. Elas se levantaram e correram para me
agarrar. Começaram a tirar a roupa e começaram a gritar. Eu não prestava
atenção no que elas diziam. Estava mais preocupado com minha insanidade,
loucura. Achava que tinha sido possuído por algum espirito do mal. Mas eram
meus pensamentos do mal que estavam dominando minha mente. Fiz vários
exercícios para tentar me reanimar. Nada. Ficava cada vez pior. Andava. Corria.
Fazia mil e uma performance para mim mesmo. Elas achavam que era
espontâneo e para elas. Eu estava enlouquecido pelo absinto. Nunca mais,
prometi a mim mesmo. Nunca mais tomo essa porcaria. Merda, acho que vou
morrer hoje. “Claro que vai morrer. Você já era Raul. Dê adeus para o mundo.
De hoje você não passa. Nós viemos te buscar. Você vai morrer. Vai sim, não
há outra saída. Pode fazer o que quiser que você vai morrer. E vai ser de enfarto
fulminante. Conte seus minutos de vida restante, Raul. Aproveite seus últimos
intantes de vida. Good bye, cruel world”. E mais cem bilhões de pensamentos
horriveis invadiam minha mente. Os pensamentos do lado do mal de nossa, de
minha mente tinham dominado os pensamentos do bem. Eu estava numa pior.
Achava, não havia outra saída, que ia morrer mesmo. Minha vez tinha chegado
mesmo. Que coisa, heim. Lembrei de tudo que tinha acontecido o dia inteiro. Vi
a pombinha que tinha me visitado no meu escritório voando em direção ao céu.
Era um sinal de aviso. Era o aviso da própria morte. Revi todas as cenas que
tinha presenciado o dia todo. Não aceitava o fim, mas sabia que ele era
inevitável. Que tudo e todos tinham um fim. Pensei que tudo não passava de
uma premunição. Que eu tinha previsto e adivinhado minha própria morte.
Tudo indicava esse caminho. Mas eu não queria morrer. Comecei a pedir a
ajuda de todos os deuses do bem. Apelei para todo tipo de reza, promessas, fé, e
157
forças do bem para me salvarem. Mas continuava desesperado só aguardando a
dona morte chegar e me pegar pela mão e dizer: “vamos, garoto”. Senti
calafrios. Fiquei verde. Amarelei. Suava frio. E o pior: as lobas sedentas de
sexo pensavam que eu estava só curtindo e embalado pela bebida e querendo
festa. Mais e mais festa. Elas não acreditavam que eu estava passando mal e que
ia morrer. Corriam atrás de mim e davam altas gargalhadas. Pareciam bruxas
com gargalhadas escandalosas e cheias de prazer. Tirei meus óculos escuros
para ver se melhorava um pouco e lavei o rosto num dos banheiros do ateliê ou
casa, sei lá, mas nada. Encostei-me numa parede e fiquei lá tentando melhorar
com um pouco de concentração e tentando pensar em alguma coisa. Alguma
coisa do bem. Mas nada. Era meu fim mesmo. Meu amigo Roberto tinha
desaparecido com sua loira para um dos quartos misteriosos. Mas ele estava em
melhores condições do que eu. Não tinha tomado da bebida azul. Aquela bebida
do diabo. Das bruxas. Lindas e gostosas bruxas. Elas corriam nuas e tentavam
me agarrar. Mas cambaleavam e caíam. Já tinham tirado toda a roupa. Já tinham
me enlouquecido com a bebida azul, o absinto, e agora tinham se transformado
em miragem. Estavam todas lindamente nuas e sedentas de sexo. Armadilhas
para mim. Queriam me enfeitiçar como as sereias enfeitiçaram o herói Ulisses,
quando ele voltava para casa. Elas queriam me transformar em Ulisses. E eu
também estava fora de casa. A caminho. Faltavam poucas horas. Ainda eram
três horas da madrugada e eu lutava contra a morte para tentar voltar ileso para
casa. Voltar para minha Penélope que me aguardava inocentemente em minha
casa. Mas agora seria tarde demais. Eu iria morrer. Não reencontraria minha
querida e fiel esposa. Estava no fim. Morreria sem ver mais nada. Todos os
pensamentos do mal tinha dominado minha mente. Eu só sabia de duas coisas
bem nítidas em minha mente: que eu ia morrer e que não queria morrer agora,
hoje. Comecei a fazer planos para meu velório. Eu já podia ver como seria tudo.
Comecei a pensar em tudo. Morrer numa Sexta-feira. Seria enterrado num
Domingo de manhã no Rio, isso se conseguissem me achar numa gaveta de
geladeira num IML. Pobrezinha da Karem. Viúva e grávida de alguns meses.
Eu não conheceria meu filho. Meu herdeiro. O que será que meus queridos e
adoráveis irmãos pensariam? Pobre papai. Perderia a vontade de viver. Todo
mundo. Até os funcionários da minha empresa ficariam consternados. E as
lobas sedentas, as bruxas que me mataram, o que será que elas falariam para a
polícia? Que não fizeram nada. Apenas uma festinha particular. Um escândalo
estava para acontecer. Um morto numa Sexta-feira perigosa e alucinante faria
parte dos números e estatísticas da polícia e da imprensa. Dessa vez não foi um
mendigo, Roberto Schalemberg, e sim um executivo bem sucedido que tinha
morrido na farra. Raul, meu pobre e louco Raul, por que você fez isso comigo?
Por que não voltou para casa como tínhamos combinado? Por quê você fez isso
comigo, Raul? Como vou viver sem você agora, seu desgraçado? Tudo estava
caminhando para o fim. Meu coração ia parar a qualquer momento. E as
gargalhadas das bruxas continuavam. Elas queriam me matar e antes queriam
copular comigo. Como fui deixar que isso acontecesse comigo? Onde estavam
minhas forças? Sempre fui meu próprio herói, e como agora estava entregando
os pontos, jogando a toalha? Não, não era eu. Eram meus pensamentos do mal
158
que tinham me dominado. Eu não tinha mais forças para reagir. Ia morrer
mesmo. Não queria, mas ia morrer. Adeus mundo cruel.
Fechei os olhos e deixei a morte chegar. Entrei em transe. Fui rapitado por
espíritos do mal que vieram me buscar. Entrei numa nave espacial, num foguete
e os seres do outro mundo me levaram. Eu não queria ir mas eles me levavam à
força. Fiquei na nave por alguns segundos, fora do meu corpo. Minha alma
ainda estava sentada no meio da sala assintindo a tudo tristemente e aguardando
a hora de ir embora. A hora da desencarnação. Os seres do mal, da nave
espacial, queriam e estavam me levando da terra. Abri os olhos e dei um grito
estrondoso. Até as bruxas se assustaram.
- Não. Eu não quero morrer. Eu não posso morrer agora. Ainda sou muito
novo. Vocês não vão me matar. Deus, afaste de mim os pensamentos do
mal. Nam-myoho-rengue-kyo. Nam-myoho-rengue-kyo. Nam-myohorengue-kyo. Eu não vou morrer. Nam-myoho-rengue-kyo. Eu vou vencer
essa batalha. Tenho fé de que Deus não me abandonará nesse momento.
Vocês colocaram veneno na minha bebida. Eu vi. Vocês são bruxas e
querem me matar só porque não quis fazer amor com vocês. Chame uma
ambulância, pelo amor de Deus. Eu estou muito mal. Não me deixem
morrer sem chegar a um hospital antes.
- Calma, Raul. Você está delirando. Calma que isso passa logo. Já vimos
muitas pessoas ficarem assim. Não somos bruxas nada. Queremos apenas
curtir a vida e fazer amor com você sim. Mas se você está mal e não
consegue, tudo bem. Quem sabe outro dia. Deite-se um pouco na cama que
você melhora.
- Que melhora o quê. Olha ali no meio da sala a minha alma sentada. Vocês
não estão vendo? Olha ali eu sentado e meu corpo aqui andando e
conversando. Vocês acham que isso é normal? Eu vou morrer e vocês são
as culpadas. Cadê o meu amigo? ROBERTO, venha aqui rápido.
- O que foi, Raul? Pirou, cara? Calma, meu chapa. Você está amarelo e
respirando sufocado. Respire com mais calma que você melhora. Você não
disse que queria curtir uma grande noite? Estamos curtindo tudo que você
pretendia. Vamos com calma. A noite ainda não acabou.
- Sinto muito, Roberto. Eu vou morrer. Vou morrer numa grande noite. Não
me arrependo de nada do que fizemos. Tudo que fiz essa noite foi para
você. Para comemorar nossa amizade. Quando eu morrer e você andar por
aí, pelas ruas, lembre-se sempre de que você teve, conheceu um grande
amigo. Que Raul Bonfim foi seu melhor amigo e que curtimos uma grande
noite de Sexta-feira juntos. Que você curtiu apenas uma noite mais do que
sua vida inteira. Não esqueça disso, cara. Que morri muito feliz. Apesar de
não querer morrer, mas que morri feliz por ter conhecido um cara muito
legal, um grande músico erudito e que fomos muito felizes juntos por uma
única noite. Que valeu a pena.
- Deixa isso pra lá, cara. Você só está delirando e nada de mal vai te
acontecer.
- Não, cara. A coisa é séria. Eu vou morrer mesmo. Estou muito mal. Meus
pensamentos do lado do mal dominaram minha mente e expulsaram os
meus pensamentos do bem. Eles me lembram, martelam minha mente a
159
todo momento dizendo que eu vou morrer. Adeus, Roberto. Carpe dien,
cara. Até nunca mais. Fique aqui com sua loira, a Taís, e amanhã compre
um jornal e dê uma olhada. Depois vocês resolvem o que vão fazer.
Convide ela para ir dormir com você no Danúbio Azul. Depois resolvam o
que vão fazer. Eu vou tentar sair agora e pegar um táxi. Quero morrer num
hospital. Adeus, amigo. - Dei um abraço forte e dolorido no meu amigo
de uma noite e fui saindo. Eles ficaram todos parados no meio da sala
olhando para mim e tentando imaginar se era verdade o que eu dizia.
Minha pobre alma também ficou no meio da sala sentada só olhando para
mim, com um olhar muito triste. Até ela não queria que eu morresse. Não
sabiam se era real ou se era devaneio. Meu e deles, pois estavam todos
enlouquecidos como eu. Abri a porta e fui saindo. Olhei para trás e vi
minha alma sentada no meio da sala. Perguntei se ela ia ficar lá. Se ia me
abandonar. Ela olhou tristemente para mim e balançou a cabeça fazendo
sinal de que ia ficar.
Saí à rua e estava frio. Madrugada fria, triste e louca. Tentei caminhar
calmamente mas meus passos se apressavam. Comecei a correr. Tropecei num
buraco e caí. Um sujeito meio mulato e gordo veio em minha direção. Havia
árvores floridas, acho que eram ipês amarelos, na calçada. O sujeito chegava
cada vez mais perto. Ele trazia um pedaço de pedra ou paralelepípedo na mão.
Ia acertar minha cabeça e roubar todo meu dinheiro. Muito dinheiro. Muitos
dólares. Os dólares que eu pretendia dar para meu amigo de uma ínica noite.
Meu amigo mendigo e fiel. Tentei me levantar e correr, mas meus pensamentos
do mal diziam que eu tinha me fodido. Que era agora que eu ia ao encontro da
dona morte. Ah, meu Deus, vou morrer agora no meio da rua numa madrugada
fria e louca. Me arrastei um pouco. Não sentia dor alguma. Não estava
machucado. Mas não conseguia andar. Um táxi passou devagar e o motorista
olhando. Gritei bem alto. “SOCORRO!, TÁXI”. O carro parou e deu marcha à
ré. Mas o ladrão gordo, feio e assassino já se aproximava a uns dez metros. Ele
viu o táxi parar e continuou sua investida decidido a fazer sua vítima da noite.
Lembrei-me da Magnun 44. Levei a mão nas costas e peguei a arma com uma
mão e destravei e e engatilhei com a outra. Apontei para o sujeito e ele parou.
Mirei no pé de ipê amarelo ao seu lado e disparei. Ele pensou que eu tinha
acertado nele. Passou a mão esquerda no corpo para ver se eu tinha acertado.
Minha posição de franco atirador era boa. O primeiro tiro foi apenas um alerta.
Ele percebeu que eu estava em vantagem e que fizera apenas um alerta.
- Só mais um passo e te acerto os miolos, seu gordo duma merda. Quer
experimentar?
O pinta saiu correndo. Desceu umas escadarias que davam numa grande
avenida logo abaixo e sumiu agradecido de não ter levado um balaço no rabo ou
nos cornos. O taxista viu e ouviu tudo de camarote. Desceu do carro e me
ajudou a me levantar e entrar no carro.
- O que aconteceu, amigo? Está passando mal. Foi baleado?, - perguntou o
sujeito de bigode que dirigia seu táxi pelas ruas misteriosas e perigosas da
madrugada fria.
- Que noite, camarada! alguém já morreu dentro do seu carro alguma vez?
Se não morreu, sempre há a primeira vez. Eu vou morrer dentro do seu
160
táxi, se não chegar rápido a um hospital. Onde fica o hospital mais
próximo daqui?
- Aqui pertinho tem um. Mas o que houve, está ferido?
- Leve-me rápido, se não quiser um morto no seu carro. Minha alma já ficou
para trás. Daqui a pouco será minha vez. Estou muito mal, cara. Chegou
meu dia de me despedir do mundo cruel. Pisa fundo nessa merda. Não pare
em nenhum sinaleiro vermelho. Acho que estou tendo um enfarto. Estou
em coma alcoólica. Olha ali, isso não é um hospital?
- Não. Ainda não chegamos. Isso aí é uma agência de automóveis novos.
Mas calma que você vai ficar bom. Não vai morrer. Só a bebida não mata.
A não ser que mandou ver em mais alguma coisa. Andou mandando ver na
maldita, o pozinho branco perigoso?
- Veneno. Só veneno.
- Veneno? Você tomou veneno e não quer mais morrer?
- Já ouviu falar em absinto? Tome umas duas boas doses de absinto e depois
me diga. Já tomou absinto alguma vez?
- Não. Nem sei o que é isso. Pronto. Chegamos. Vou entrar direto no pronto
socorro.
- Toma, amigo. Pode ficar com o troco.
- Mas... aqui tem cinquenta dólares. A corrida não chegou a cinco dólares.
- Fique com o troco. Compre o jornal amanhã e diga para seus amigos que
eu quase morri dentro do seu carro. Não esqueça de contar a cena que você
viu quando me safei de ser assassinado com uma pedra por um ladrão
gordo e nojento. Agora são três e vinte da madrugada. Passe aqui no
hospital lá pelas oito horas da manhã, para saber o que aconteceu com o
meu corpo. Adeus amigo taxista da madrugada..
- Você vai ficar bom. Vou te levar para casa às oito, pode esperar.
- Só se for morto.
Fui tirado do carro e levado numa maca para uma sala. Duas enfermeiras
vieram correndo. Perguntaram para o motorista o que tinha acontecido.
“Delírio. Piração”, respondeu o cara, que já devia ter muita experiência nas
noites tenebrosas da cidade alucinante. Os hospitais são mais agitados e
movimentados à noite, principalmente nas madrugadas, do que durante o dia.
um médico japonês novo me atendeu.
- O que está acontecendo, rapaz?
- Estou morrendo, doutor. Estou dando adeus ao mundo. Bebi um
pouquinho a mais. Minha cabeça está delirando. Não sei quem eu sou. Só
sei que vou morrer hoje. Tive uma pira muito grande. Alucinação total.
- Só bebeu? Bebeu o quê?
- Tudo, doutor. Até absinto.
- O quê, você bebeu absinto? Enfermeira, soro e glicose urgente. Dose
aumentada. E drogas? Ingeriu alguma droga? Cheirou ou tomou algum
alucinógeno?
- Muita. O álcool não é uma droga, doutor? Não é a pior droga de todas,
doutor?
- É. Mas existem outras perigosas. Toumou outras? Cheirou cocaína?
161
-
Não. Nunca experimentei essa merda. Nunca experimentarei essa porcaria.
Sou inteligente. Não preciso de drogas. O álcool já basta para me levar
para debaixo de sete palmos de terra. Nunca mais. Se sair, escapar dessa,
nunca mais. Never more, doutor. Mas acho que de hoje não escapo.
- Você vai ficar bom. Vai tomar soro e glicose. Daqui a algumas horas,
quando terminar de tomar o soro, vai ficar bom e poderá ir para casa. Mas
não abuse mais. E nunca mais tome absinto. É mortal como acqua tofana.
Ouvi aquelas palavras confortantes do médico e comecei a fazer mil
promessas se escapasse da morte dessa vez. Comecei a sonhar com a vida
novamente. Lembrei da minha alma que tinha ficado para trás. Quando saísse
do hospital de manhã, iria lá buscar minha alma. Fui levado para um quarto e
deitado numa cama e fiquei sozinho no quarto tomando soro e glicose. Mas não
queria domir. As enfermeiras dissesram que era para eu ficar calmo e tentar
dormir. Mas eu me recusava veementemente dormir. Sabia que se dormisse não
acordaria mais. Que era meu fim. Os pensamentos do mal ainda dominavam os
pensamentos do bem. Eles diziam que eu nunca mais acordadia. O medo de
morrer me deixava desperto e assustado. Achava que o remédio não estava
fazendo efeito. Comecei a gritar e chamar o médico.
- Enfermeiras. Chamem o médico. Quero o médico ao meu lado.
- Calma, rapaz. O médico está atendendo outros pacientes agora. Ele já o
medicou. Agora deite-se e durma que você vai ficar bom quando se
acalmar.
- O caralho, que eu vou dormir. Não posso dormir. Vocês não sabem de
nada. Eu estou morrendo e isso para vocês é super normal, porque aqui
morrem gente toda hora e vocês já estão acostumdas. Quero o japonês aqui
agora. Quero saber qual é meu estado clínico. Se estou melhorando ou
piorando. Eu posso estar sofrendo um enfarto sem vocês saberem.
QUERO O MÉDICO AGORA, suas cadelas. Chamem o médico.
- Se você não ficar calmo, não conseguirá ficar bom. Agora durma. Deite-se
e durma. Temos muitos pacientes para cuidar. Vou apagar a luz para você
dormir.
- NÃO. A luz não. Não apague as luzes, pelo amor de Deus. Não quero ficar
no escuro. Não quero dormir.
Elas apagaram as luzes e saíram. Setei-me na cama e acendi as luzes. Fiquei
olhando para o tubo de soro com glicose que pingava pausadamente. Levanteime e saí andando pelo corredor carregando o suporte de ferro que sustentava o
tubo. No corredor encontrei uma enfermeira. Ela perguntou o que eu estava
fazendo. Disse que estava à procura do médico e com muito medo de morrer. O
caninho de plástico por onde passava o soro estava cheio de sangue. Ela olhou e
me deu uma bronca tremenda. Me reconduziu ao quarto e disse que se eu não
ficasse quieto para o soro descer direito aí é que eu ia morrer mesmo. Que eu
estava em pré-coma alcoólico. Me obrigou a deitar na cama e ficar quieto.
Percebi que restava um fio de esperança e que poderia até sobreviver se
seguisse os conselhos dela. Deitei-me e tentei ficar mais calmo. Os
pensamentos do bem já tinham voltado e expulsados alguns pensamentos do
mal. Comecei a me reanimar e a sonhar com a vida novamente. O efeito do
remédio começou a dar resultados. Mesmo assim eu me recusava a dormir.
162
Sabia que se dormisse não acordaria mais. Fiquei alguns minutos deitado.
Sozinho no quarto. Não queria pensar em nada. Só queria uma coisa: Viver. E
foi o que fiz.
Antes das quatro horas e meia o soro já tinha acabado. Eu continuava acordado.
Chamei a enfermeira e perguntei se poderia tomar mais soro. Ela disse que não.
Que agora eu dormiria e logo o efeito da droga do álcool passaria e eu poderia
ir para casa. E por que eu ainda não tinha dormido. Que só melhoraria quando
eu dormisse.
- Deite-se e fique quietinho. Daqui a umas duas horas o médico que o atendeu
virá examiná-lo. - Disse a enfermeira que saiu do quarto e apagou a luz.
Fiquei lá de olhos bem abertos. Não sei se consegui dormir de olhos abertos. Só
sei que não demorou muito e o médico chegou para me examinar. Ele estava
medindo minha pressão quando percebi sua presença. Abri os olhos e me sentia
outra pessoa. O efeito da loucura já tinha passado. Respirei aliviado por ainda
estar vivo. Parecia que eu acordava de um pesadelo. Perguntei assustado o que
estava acontecendo. O médico disse que eu estava num hospital e que já estava
bom e poderia ir para casa de manhã.
- Que horas são, doutor? O que aconteceu comigo? Como vim parar aqui?
cadê meu amigo Schalemberg? Quem me trouxe aqui?
- A noite. As almas e criaturas da noite o trouxeram aqui. Você exagerou um
pouquinho na bebida. Mas já está tudo bem. Cuidado da próxima vez.
Sabe qual é o efeito do absinto?
- Absinto? Eu tomei absinto, doutor? Que merda é essa?
- Foi o que você disse quando chegou aqui delirando e pálido como um
defunto. Mas agora já passou. Tome umas vitaminas, uns energéticos, um
bom banho e vá para casa dormir. Você tem casa? O perigo já passou. Está
novo em folha.
- Obrigado, doutor. Nasci de novo. Não sou gato mas tenho sete vidas.
Adeus, camarada.
Fui ao baneiro dei uma olhada no espelho e lavei o rosto com água fria. Ainda
eram seis horas da manhã. A noite ainda não tinha acabado. Passei na recepção
e paguei a conta com cartão de crédito. Nem me lembrei dos dólares frutos da
noite. Saí do hospital e fui caminhando de cabeça e espírito erguidos. Arrumei a
gravata e dei uma passada de mãos na roupa. Senti a arma na cintura às costas.
Ainda não tinha amanhecido totalmente. As ruas começavam a ganhar vida.
Peguei a Magnun automática que tinha me salvado a vida em duas ocasiões e
tirei o pente. Joguei o pente numa boca de lobo. Enfiei o cano da pistola numa
fresta da boca de lobo até ela ficar de pé, pisei no cabo com força, com os dois
pés, e entortei com os pés até a pistola virar um artefato retorcido e sem prestar
para mais nada. Peguei o pedaço de ferro amassado e joguei num latão de lixo.
Livre. Livrei-me da maldita arma que me acompanhou a noite toda e foi parar
num hospital comigo sem que ninguém ficasse sabendo. A não ser o motorista
do táxi, que estaria lá no hospital às oito horas me esperando. Pensando que eu
já tinha batido as botas há muito tempo.
Graças a todos os deuses e pensamentos bons do universo, eu estava vivo.
Muito vivo. Vivo e de bem com a vida e com o mundo. Enfiei a mão no bolso
interno do meu palitó e peguei o maço de notas verdinhas. Não fiz cálculos de
163
quanto gastei a noite inteira. Nem queria contar quanto tinha comigo. Pela
quantidade de notas de cem e cinquenta, ainda restavam no mínimo uns cinco
mil. Cinco mil pratas verdinhas ainda bem guardadas, bem seguras no meu
bolso. Andei a noite toda pelas ruas perigosas de Sampa com uma grana preta
no bolso do blazer e consegui me safar ileso dos perigos que a noite oferece.
Uma noite alucinadíssima. Uma pistola automática destruída, para ninguém
fazer uso dela para o mal. A cabeça viajando a mil por hora tentando alinhar os
pensamentos. Pensamentos do bem, agora. Os pensamentos do mal já tinham
desaparecidos todos. Ainda bem. Os pensamentos do lado do bem tinham
vencido a batalha. O que restava agora antes de voltar ileso para casa? E as
lobas sedentas de sexo, as bruxas que me enlouqueceram, as sereias que me
encantaram com seus encantos que tentaram cegar o herói, o que teriam
acontecido com elas? O que estariam fazendo? E o mendigo que tinha se
tornado meu melhor amigo de uma noite, minha melhor companhia, onde ele
estava? E eu, onde estava e que caminho, que rumo, estava tomando? Para onde
eu iria a essa hora? Em que rua estava? Parei numa esquina e conferi o nome da
rua numa placa. Rua Frei Caneca, esquina com Antônio Carlos do Pinhal. Duas
quadras da Avenida Paulista. Eu estava pertinho da minha Avenida Paulista.
Muito perto de onde eu tinha saído às 19 horas. Seis da manhã. Onze horas de
apavoro pelas ruas eletrizantes da minha Paulicéia Desvairada. Mais uma hora e
eu estaria completando doze horas mergulhado nas ruas sombrias e insanas da
minha cidade que era uma deusa descalça. Um palco de ilusões perdido.
Fui caminhando até chegar a uma quadra da Paulista. Linda Avenida Paulista.
Para a direita eu teria a famosa Rua Augusta. Virei à direita. Caminhei feliz e
tranquilamente. Fome. Estava com uma fome de leão. O meu restaurante
preferido ficava aberto vinte e quatro horas por dia e estava ali naquela mesma
rua esquina com a Rua Augusta. Long Champ. Entrei e ainda estava cheio de
boêmios da noite. Da madrugada fria. Sentei nas cadeiras do balcão. Pedi uma
lasanha verde. Meu prato predileto. Uma moça meio gordinha, simpática e
bonita sentou-se ao meu lado. Tinha cara de Cássia e uma risada escandalosa e
alegre. Ela já estava no restaurante quando entrei. Mas tinha ido ao toalete. Seu
pedido chegou primeiro que o meu. Fiquei na minha. Eu estava muito feliz por
renascer de um grande pesadelo. De um inferno. O inferno de Dante. Queria
aproveitar minha felicidade ao máximo. Mas a noite ainda não tinha terminado.
Ainda faltava alguma coisa para eu terminar “minha” noite. O que eu ia tomar?
Mais álcool? Vinho, o nectar dos deuses? Champanhe para comemorar meu
renascimento? Não sei. Água mineral com gás. Felicidade. Alívio. Que bom
que era estar vivo de novo. Eu, ainda meio grogue, via o mundo totalmente
diferente de antes. Via tudo novo. Queria curtir aquela felicidade a todo vapor.
Com muita curiosidade. Olhei para todos os lados e analisei pessoa por pessoa e
comecei a imaginar se todas elas eram felizes como eu. Se estavam realmente
felizes como eu estava. Analisava personagem por personagem. Cada pessoa ali
no restaurante-bar Long Champ, o bar e restaurante mais famoso de São Paulo,
o meu eterno Long Champ de todas as horas. O grande campeão. Agora eu sou
o grande campeão. Campeão por estar vivo e por aprender a curtir a vida com
mais intensidade e sem medo algum. Agora eu sou um campeão de verdade,
porque me sinto muito feliz e agradecido a alguma força divina que me
164
concedeu a benção de estar vivo de novo. Que maravilha. Que felicidade que é
estar vivo. Vivo de novo. Acordei de um tremendo pesadelo. Mais que um
pesadelo. Uma loucura, piração, alucinação, endoidei, na realidade e sem
dormir e nem nada. Se a piração acontecesse em sonho, aí a historia seria
diferente. Mas tudo aconteceu na real, sob o efeito muito intenso da droga
chamada ÁLCOOL. Isso já é o próprio inferno de Dante. Nunca mais. Outra
pira como essa, nunca mais.
Meu pedido chegou. Lasanha verde acompanhada de greme de espinafre. Uma
delícia. O balcão em forma de ferradura. O campeão. Todas as pessoas se viam
de frente. Havia mesas, mas todos preferiam o balcão. O campeão agora come
lasanha verde com creme de espinafre para comemorar a vitória. A grande
vitória da vida. Do renascimento. Parabéns, campeão.
Comi minha deliciosa lasanha e caí fora. Deixei a gorda para trás, contando sua
noitada para um sujeito de barba que sentou-se ao seu lado e puxou conversa.
Subi a Rua Augusta até a minha Avenida Paulista e respirei aliviado. O relógio
eletrônico dos painéis luminosos do canteiro da avenida marcava 6:45. Virei à
esquerda na Paulista e fui direto para meu escritório. Em menos de quinze
minutos eu chegaria lá. A chave do meu escritório estava comigo. Fui
caminhando pela calçada larga. Em cada esquina eu parava para admirar a
cidade e a avenida mais famosa da cidade. Cidade das mil e uma caras. Esquina
do mundo. Todo mundo vai para essa esquina do mundo. Cada um à procura de
alguma coisa. Todos os dias as ruas estão cheias de pessoas. Cada uma à
procura de alguma coisa. Cada uma indo ou vindo de algum lugar. Trabalho,
passeio, curtição, tudo, todo mundo à procura de ver a cidade de um jeito ou de
outro. A cidade parece um formigueiro, dependendo do local e dia. O centro da
cidade é um verdadeiro caldeirão efervescente. Mas a minha Paulista, amiga de
todas as horas, era minha eterna companheira. Todos os domingos eu ia passear
na Paulista. Eu a admirava qualquer hora do dia ou da noite. Agora ela estava
ali inteirinha para mim, de braços abertos para mim. Eu me sentia feliz.
Cumprimentava cada pessoa que encontrava. Dava bom dia a todo mundo.
Distribuía sorrisos para todo mundo. Eu demonstrava minha felicidade
caminhando e fazendo mil e um planos. O escritório estava a poucos metros.
Passei em frente de duas torres da Caixa Econômica Federal, um Banco do
governo federal, e olhei para cima. Havia uma exposição super maluca entre os
dois arranha-céus. A exposição era de uma artista plástica de rua. Ela usava os
espaços públicos para mostrar sua arte. Não sei se chegou a ficar famosa. Mas
sua arte era interessante. Muito pós-moderna. Arte pop pós-moderna. Arte do
século vinte e um. Dei uma olhada de longe e segui em frente. Andei mais uns
dois quarteirões e cheguei no Masp, aquele mesmo museu que há um enorme
espaço oco no térreo e fica totalmente suspenso no ar. O projeto arquitetônico
foi feito por uma italiana que veio morar no Brasil e seu marido, Pietro Bardi,
foi diretor do museu por mais de cinquenta anos. Foi nesse mesmo espaço que
fui fisgado pela minha esposa. Meu único verdadeiro amor. Vi um mendigo
catando latas de cerveja nos latões de lixo. Lembrei imediatamente do meu
convidado e fiel companheiro de noitada. Atravessei a avenida e caminhei mais
meio quarteirão e entrei no meu prédio. O dia estava amanhecendo
timidamente. O porteiro ainda era o mesmo de quando saí. Ele entrava às sete
165
da noite e saía às sete da manhã. Dei bom dia e subi. Ele apenas disse que
minha mulher tinha ligado duas vezes no começo da noite. E que ela tinha
ficado tranquila. Eu já imaginava isso. O porteiro trabalhou a noite inteira e
nem imaginava o que eu tinha feito no mesmo período de doze horas em que
ele ficou trabalhando. Doze horas inesquecíveis!
Subi direto para meu escritório. Abri a porta da minha sala e entrei. Minha alma
estava sentada em cima da minha mesa me esperando. Fiquei feliz e dei um
gostoso sorriso de felicidade e alívio. Olhei para ela e disse: “Oi!”. Sentei em
minha cadeira e fiquei olhando pela janela e pensando na vida. Nem fechei os
olhos. Pensei na pombinha. Pensei no ex-jornalista mexicano da ilha deserta da
Grécia e em suas cabritas. Pensei no filme “A Tempestade”. Pensei em muita
coisa. Em minha amada. No meu filho que estava a caminho. Peguei uma lista
telefônica na sala da minha secretária e procurei um número. Disquei e alguém
atendeu.
- Bom dia. Vocês têm um hóspede chamado Roberto Schalemberg que
entrou ontem à noite e saiu comigo para jantar. Eu gostaria de saber se ele
já voltou e se está no quarto.
- Um minuto por favor. Sim, ele já voltou. A chave não está aqui.
- Obrigado.
Desliguei e disquei outro número. Dessa vez para uma pessoa muito
importante. A mais importante do mundo para mim.
- Alô. Oi amor, bom dia.
- Alô, amor!? É você? Onde você está? O que aconteceu, amor? Você está
bem?
- Sim amor, sou eu mesmo. Nada. Não aconteceu nada. Estou super bem.
Depois te conto em detalhes porque ainda não voltei para casa. É uma
história muito complicada. Mas estou ótimo. Será que você poderia vir
aqui no escritório me buscar. Estou sem carro.
- E o seu carro, o que aconteceu com ele.
- Fui assaltado ontem quando saí daqui. Estou te esperando. Você pode vir
agora? Se não puder eu vou a pé ou de táxi.
- Claro, amor. Claro que posso. Estou louca para te ver e saber o que
aconteceu. Você nunca deixou de voltar para casa. Graças a Deus que você
está bem. Eu sabia que nada de mais tinha acontecido. Eu tinha certeza
disso. Sei que você não é nenhum poltrão. Que sabe sair de qualquer
enrascada. Eu te amo muito. Te amo do fundo do meu coração.
- Eu também te amo. Você sabe disso.
- E como sei. Se não soubesse você não seria o homem da minha vida. Não
seria a minha vida. Espere só uns vinte minutinhos que já chego aí. Beijos.
- Vou ficar aqui na minha sala. Quando chegar peça para o porteiro ligar
para mim.
Ela desligou e eu liguei o computador da minha mesa. Dei um clic no ícone da
internet para verificar se tinha alguma mensagem para mim. Havia várias. Mas
uma especial me chamou a atenção. Li e reli-a atentamente e depois comecei a
fazer um balanço da noite e o seu resultado de aprendizagem. Comecei a
filosofar sobre a minha própria vida. Eu não sabia na real o que a vida
significava. E por que eu era um cara com tanta sorte? Por que eu era um cara
166
abençoado mais do que muita gente no mundo? Por que será que tudo isso
acontecia comigo? Como eu via o mundo em relação a outras pessoas? Quem
eu realmente era? O que eu devia fazer? A mensagem na net, que uma amiga
minha dos States me enviou, me confortou muito. Passei a acreditar mais em
certas coisas. Aí passei a agradecer mais por tudo que sempre me aconteceu.
Talvez seja até o meu norte. Passei a me orientar melhor. A me encontrar. A,
pelo mesnos, me conhecer melhor. Os pensamentos se perdiam quando o
telefone tocou. Já sabia que alguém muito especial para mim, tinha acabado de
chegar para me confortar. Fiquei mais feliz ainda. Atendi e disse que já estava
descendo. Desliguei a luz mas não desliguei o computador, que ficou com a
linda mensagem balançando na tela:
Se você acordou esta manhã
com mais saúde do que doença...
você é mais abençoado do que o milhão
que não sobreviverá esta semana.
Se você nunca passou pelo perigo de uma batalha,
a solidão de uma prisão, a agonia de uma tortura,
ou as aflições da fome, você está à frente de
quinhentos
milhões de pessoas no mundo.
Se você pode frequentar uma sessão de igreja
sem o medo de molestamento, prisão, tortura, ou
morte...
você é mais abençoado do que três
bilhões de pessoas no mundo.
Se você tem comida no refrigerador,
roupas no corpo, um telhado sobre a cabeça
e um lugar para dormir,
você é mais rico do que setenta
e cinco por cento desse mundo.
Se você tem dinheiro no banco, na carteira,
e trocados em algum lugar...
você esta entre os oito por cento
no topo desse rico mundo.
Se você mantém sua cabeça erguida com um sorriso no
rosto
e é realmente agradecido...você é abençoado
porque a maioria pode, mas não o faz.
Se você Segura a mão de alguém,
o abraça ou mesmo o toca no ombro...
você é abençoado porque está a oferecer
o toque de cura de Deus.
Se você pode ler esta mensagem,
você recebeu o dobro de bençãos daquele
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que pensou em você, e mais, você é mais abençoado
do que dois bilhões no mundo
que absolutamente não podem ler.
Tenha um bom dia, conte suas bençãos,
e passe adiante para lembrar a
todos quão abençoados nós somos.
( autor desconhecido )
Entrei no carro, uma BMW azul metálico conversível e zarpamos Paulista
adentro. Ela estava linda. Muito linda. Fiquei feliz de vê-la e poder dar um beijo
nela. Ela merecia esse beijo mais do que nunca. Eu estava doido de saudade.
Penélope de Ulisses. Ulisses voltava para casa são e salvo.
Pedi para ela descer a avenida do hotel do meu amigo. Karen perguntou por quê
e eu disse que era para fazer um favor a um grande amigo. Pedi para minha
esposa me acompanhar até o quarto do sujeito para ela conhecê-lo
pessoalmente. Disse que tinha um presente para o cara. Batemos na porta do
quarto três vezes e chamei por Roberto umas cinco vezes até que o mendigo se
levantou e veio nos atender. Ele abriu a porta e ficou surpreso em me ver.
- Raul?! É você, cara? Que bom te ver novamente. Você está bem? Fiquei
preocupado com você. Que bom que você apareceu. Entre um pouco.
- Que bom te ver de novo, amigo. Fiquei muito feliz em saber que você
estava no hotel quando liguei. Vim me despedir de você. Não sei se nos
veremos outra vez. Você vai voltar para a Europa mesmo, para sua
universidade na Alemanha logo. Por isso vim me despedir e te dar um
abraço. Pena que não tem nenhuma máquina fotográfica aqui para tirarmos
uma foto de todos nós juntos. A sua namorada está dormindo, mas a gente
a acordaria. Esta é a minha esposa Karen. Amor, esse é um grande amigo
que conheci ontem à noite. Fui levá-lo para conhecer a cidade a noite
inteira. Por isso não pude voltar para casa ainda. Fiquei muito feliz em
conhecer o Roberto. Ele é estudante de música clássica na Alemanha.
Depois te conto tudo como aconteceu. Fique só um minuto aqui com ele
que eu vou ao banheiro. Estou louco para dar um mix. Já volto.
- Muito prazer em conhecê-lo. Então, gostou de conhecer a cidade? Meu
marido às vezes exagera um pouco na bebida. Mas parece que hoje ele se
comportou direito.
- Muito prazer em conhecer você. Fico muito feliz por vocês fazerem um
casal perfeito. O Raul é um grande cara. Parabéns para vocês. Que sejam
felizes para sempre e juntos. Vocês merecem.
- Ah, muito obrigada! Eu também acho o Raul um grande cara. Se não fosse
um grande cara eu não estaria com ele. É por isso que eu o amo. E a noite,
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como foi? Eu só fiquei um pouco preocupada no começo, mas depois
fiquei sossegada porque sei, conheço o homem que tenho.
- Foi boa. Muito boa mesmo. Eu adorei. Curtimos mil e uma noites em
apenas uma. Foi lindo tudo que vimos e curtimos.
- Que bom. Pelo menos vocês aproveitaram bem. Mas é sempre bom
conhecer novas pessoas, fazer novos amigos. E se o Raul gostou de você e
curtiram a noite toda juntos é porque você merece. Se não merecesse, com
certeza ele não teria ficado seu amigo. E você tem jeito mesmo de ser
gente boa. É sensível. Demonstra sensibilidade. E poucas são as pessoas
sensíveis. As pessoas sensíveis são verdadeiras. E são poucas as pessoas
verdadeiras, puras de coração, no mundo. Jack Kerouac era puro. Todos os
escritores do meu marido, que eu li, são puros. De almas puras.
Verdadeiros. J.D. Salinger também é. Leia o livro dele e depois me fale.
Você tem cara de alma pura. É sensível.
Enquanto os dois conversavam na ante-sala do quarto eu fui ao banheiro.
Entrei e fechei a porta à chave. O banheiro era grande e com mesa da pia com
tampo de mármore e espelho grande em toda a parede acima da pia. Peguei um
bloco de anotações e uma caneta na mesa de um armário e escrevi um bilhete.
“Querido e grande amigo, Roberto Schalemberg, a partir de hoje, seja você
mesmo. Não seja fake. Não vá para o lado dos fakes. Adote o nome e
sobrenome que eu te dei, cara. Seja Roberto Schalemberg e foda-se o resto.
Faça o mesmo que fez quando você decidiu ser mendigo, por um motivo que
nem eu fiquei sabendo e nem fiz questão de saber. Você será sempre meu
camarada Roberto Schalemberg. Pegue esse presente que estou te dando e se
mande para a Europa. Lá você saberá aprender com você mesmo, a guardar um
segredo para sempre. Somente três pessoas no mundo saberão que um dia você
esteve mendigo. Você, eu e a minha Karen. Você não era mendigo. Você estava
mendigo temporariamente. De repente um anjo apareceu e te encaminhou para
você ser alguém. Daqui para frente você será quem você quiser ser. Hoje você é
Roberto Schalemberg. Nunca esqueça o passado. Pois nele você passou e
presenciou muitos fatos e contecimentos. Todos eles foram aprendizados para
você. Seja quem você quiser ser, mas seja alguém com dignidade. Seja você
mesmo sem medo. Que você tenha muita felicidade e luzes. Eu continuarei
sendo eu mesmo. O que sempre fui. Você já imagina como sou. Nem precisa
dizer nada. Adeus. Paz! Lembre-se sempre de mim. Seu amigo de uma noite.
Adeus! Seu amigo, Raul”. Coloquei o presente dele, os quase ou mais, cinco
mil dólares enrolados no bilhete e deixei em cima da mesa da pia. Dei uma
desgarga e lavei as mãos. Saí do banheiro e dei um longo abraço no meu mais
esquisito amigo, amizade esquisita, de apenas uma noite, e disse adeus. Saí de
costas e fiz um sinal com a mão apontando em riste para ele, querendo dizer:
“para você!”. Pegamos o elevador e descemos. Fui até a recepção e disse para o
funcionário para renovar a diária do apartamento do senhor Schalemberg.
Atravessamos o saguão abraçados pomposamente. Pegamos o carro e rumamos
para casa. Dentro do carro a primeira pergunta que fiz foi:
- Amor, você conhece pardal vermelho? Já viu algum pardal vermelho?
- Pardal vermelho, amor? Que papo é esse? Nunca ouvi falar se existe pardal
vermelho. Será que existe?
169
-
Não sei. Não tenho certeza. Mas gostaria de saber se existe ou não. Você
não gostaria de saber?
- Acho que sim, não sei. Mas por que você perguntou isso agora?
- Sei lá. Me deu vontade agora de saber se pardal vermelho existe. Nunca vi
um.
Ela olhou para mim e me deu um sorriso de apaixonada e balançou a cabeça
sorrindo e se sentindo a mulher mais feliz do mundo.
Passamos o final de semana na fazenda. Voltei à natureza perfeita. Senti-me
mais feliz ainda. Andei livre e descalço pelo quintal e riachos. Sentia a alma
solta. Mais solta do que nunca. Eu me sentia em meu habitat. Parecia um índio
no meio da sua floresta. Foi um fim de semana maravilhoso. Amei e fui muito
amado. Foi um dos finais de semana mais gostosos que já tivemos. Segundafeira. A volta.
Capítulo Final
Sou humano e acho que sou inocente, ou covarde, sei lá. E por ser covarde,
por ser humano, posso errar, posso cometer uma grande cagada. Saí do cinema,
passei numa loja de livros e comprei a obra completa de Charles Bukowski.
Aproveitei a oportunidade e comprei uma revista especializada em música
clássica, outra sobre Jazz e duas sobre Blues. Gostei mais das de Blues.
Aproveitei e comprei um método para aprender tocar saxofone. Não ia ser
difícil aprender. Pois eu conhecia todas as notas musicais. Já tinha estudado
música clássica antes e dava minhas arranhadas ou assopradas numa harmônica
em lá. Mas onde eu gostava de mandar ver mesmo era num piano. De
preferência se fosse dos bem antigos e pequenos em estilo alemão. Aqueles que
aparecem muito em filme de faroeste americano. Tive aulas de piano dos cinco
aos dez anos de idade. E música clássica sempre foi meu forte.
Minha querida Karen andava muito ocupada ultimamente, mas mesmo assim,
estranhou minha atitude de chegar mais tarde em casa, nesse dia.O primeiro dia
de trabalho após a famosa Sexta-feira de doze horas de piração. Eu nunca
desviava meu caminho. Chegava sempre para o jantar. Mas nesse dia, além de
chegar atrasado, eu estava com uma carinha de cachorro que peidou na igreja.
Karen ficou só observando minha cara triste e quieta, enquanto eu jantava. Não
fez perguntas. Sabia que eu não era de segredos. Sempre tivemos papos
abertos. Ela ficou esperando que eu lhe contasse tudo que estava
170
acontecendo comigo. Mas não contei nada sobre o filme. Disse apenas que
parei numa livraria e aproveitei para comprar alguns livros.
- Só isso? Tem certeza de que não há nada de errado com você?
- Acho que não. Por quê?
- Porque estou te achando muito estranho hoje.
- Cansaço. Talvez seja isso.
É, talvez seja isso mesmo. Será que é mesmo?
A vendedora era muito simpática. Com toda atenção ela me disse que era o
melhor saxofone que tinha. Era importado da Holanda. Examinei, como se
fosse um expert no assunto. Um Paulo Moura da vida. Depois disse:
- Vou levar esse mesmo.
Paguei no caixa. Retirei o instrumento com a moça que me atendeu e disse que
a convidaria para meu show de estréia. Ela jamais me veria tocar em algum
lugar. A menos que...
Entrei na primeira loja de material esportivo que encontrei. Fui direto para o
setor de Campping. Não pretendia escolher marcas, cores ou tamanho. Não tive
problemas para escolher uma barraca que me agradasse.
No dia seguinte bem cedo tomei um banho demorado, mas não fiz a barba. Ao
invés de um terno preto, vesti uma calça jeans e uma camiseta regata. Não
penteei o cabelo. Botei óculos escuro. E no lugar dos sapatos de cromo alemão
calcei um par de tênis roxo sem meias. Senti-me com um espírito de
aventureiro. Até que não fiquei mal. Coloquei a barraca no meu carro. Ajeitei
o saxofone no banco da frente com carinho. Estava tudo pronto. Respirei bem
fundo e criei coragem.
Karen ainda estava dormindo quando entrei no quarto. Ela estava linda. Entrei
no banheiro do quarto e peguei o batom dela e escrevi o nome de um lugar
no espelho. Ilha do Mel. Quando voltei ao quarto ela acordou e deu uma
espreguiçada e perguntou:
- Amor, aonde você vai tão cedo?
- Dar uma volta. - Dei um beijo nela e saí de mansinho feito um gato
misterioso. Acho que ela voltou a dormir sem saber do que estava
acontecendo.
A empregada preparou meu café com um olhar desconfiado por eu estar
vestido diferente em pleno dia de trabalho, mas não perguntou nada. Comi
melão com presunto e queijo minas com mel, (quando passei o mel na torrada
lembrei-me do que tinha escrito no espelho), torradas e ovos mexidos. Bastante
suco de laranja com cenoura misturado. O guardanapo caiu no chão. Fiquei
com vontade de dar um chute mas segurei o pé a tempo. Ainda estava na
minha casa. Tinha que manter a postura. Afinal, um senhor sério não comete
uma gafe na frente de seus criados. Deixei para dar um peido quando entrei no
elevador. Longe dos olhares curiosos e censuradores de quem quer que fosse.
Entrei no meu carro e ganhei a estrada. BR 116. Dirigi seis horas sem parar. Li
numa placa de sinalização: “Curitiba a 1 km”. Eu estava com um guia na mão
e procurei logo a estrada que quebrava para o litoral paranaense. Cheguei no
trevo que ia para o centro de Curitiba mas passei direto. Eu apostava que a
Karol ficaria feliz em me ver, mas não fiquei com vontade de visitá-la. Passado
é passado. Não gosto de reviver o passado. Além do mais, eu estava com
171
pressa (pressa??!) e muito ocupado. (Ocupado?) Não demorei muito e já estava
rodando pela rodovia BR 277. Viajei mais uma hora e meia e estacionei numa
churrascaria para almoçar. Eu já estava terminando minha sobremesa, quando
vi, a uns vinte metros de mim, uma garota loira, meio bicho-grilo, que entrou
no restaurante e se dirigiu para o caixa. Falou com o cara e ficou balançando
a cabeça num gesto negativo. Então a garota tirou a mochila que tinha nas
costa e colocou no balcão e subiu em cima da mesa e começou a gritar que não
tinha nenhum filha da puta para dar um pedaço de pão. E começou a xingar o
Brasil e o governo. Chamou o Presidente da República e o papa de veados e
parou. Todo mundo só ficou observando. Daí a garota pegou sua mochila e foi
saindo. Quando passava por mim ela deu uma olhada e parou. Olhei para ela e
continuei calado.
- Oi. Tudo bem? - Ela perguntou.
- Quase.
- Será que daria para você me pagar um sanduíche?
- Não. Um lanche não. Mas um almoço sim.
- Porra cara, como você é legal. Pensei que eu fosse morrer de fome. Já faz três
dias que eu só tomo água de torneira e de rio.
Pedi para o garçon servir a pobre faminta e fiquei só observando ela devorar a
comida. Ela tirou a barriga da miséria, porque o restaurante era bom e o
sistema era de rodízio e a carne era boa. Minha convidada parecia uma leoa.
Não só parecia na fome, como no aspecto. Seus peitos pequenos e rosados
eram quase todos vistos naturalmente. Os pêlos das axilas pareciam que
nunca tinham sido raspados . Ela usava um jeans bem justo desbotado e cheio
de adesivos de bandas de rock do mundo inteiro.
Enquanto ela devorava o churrasco, eu ia observando por trás dos meus óculos
escuros. Olhei para seus peitinhos quase perfeitos e meu pau ficou duro mas
não pensei em sexo. Ela acabou de comer, passou a mão na barriga, deu um
arroto e disse:
- Porra bicho, comi que nem padre.
Chamei o garçon, paguei a conta e fui saindo calado. Ela veio atrás. Fui até
meu carro e a garota continuou me seguindo. Ela ficou meio sem jeito com o
meu silêncio, mesmo assim arriscou uma pergunta:
- Êi, o que você faz?
- Nada. - Respondi sem muito interesse.
- Nada?
- Pois é. - Nem me atrevi a perguntar o que ela fazia. Nem era preciso. Dava
para sacar que era uma vadia que vivia perambulando por aí. Uma adepta e
praticante do “on the road”. Resumindo. Não fazia nada também.
- Para onde você está indo? - Perguntou ela demonstrando interesse.
- Por aí. - Respondi, já entrando no carro e demonstrando que queria me livrar
dela. Mas ela nem bem esperou eu terminar e já foi falando.
- Porra, então me leve com você. Também não tenho destino.
- Tá legal. Mas em Paranaguá ou Pontal do Sul você cai fora. Para onde vou
quero ficar em paz. Sossego. Meditação. Solidão. Kalibanus. Está entendendo?
A única companhia que vou querer será a das gaivotas. Sacou?
172
- Tudo Bem. Muito obrigada. Você parece ser um cara muito legal e meio
estranho.
- Só pareço. Você não sabe como as aparências enganam?
- Mas você não me engana. Por trás desse rostinho de inocente deve haver um
grande cara misterioso. Sou uma especialista em homens. Sou psicóloga e
andarilha.
- É mesmo? E por que fica por aí perambulando como uma cadela vadia?
Suzana conto-me toda a sua história. Disse que já conhecia o mundo inteiro.
Andava de carona por pura aventura. Era casada e separada do marido. Sua
família era de São Paulo. E ela era do mundo. Do mundo da estrada. Nascida e
criada em berço de ouro. Sua mãe herdara uma fortuna de seu avô, que era um
dos maiores banqueiros paulista do século XX. Mas a esperteza de seu pai,
um cara de Minas Gerais bonitão e malandro, colocou sua família em ruína.
Deu um belo golpe do baú e caiu fora com outra mulher mais bonita que sua
mãe. Hoje ela era uma burguesa decadente. Como não estava acostumada a
trabalhar preferiu virar uma andarilha. Um dia entrou num bar chamado Ritz,
em São Paulo, e um cara olhou para ela, deu-lhe um beijo, meia hora depois
foram trepar. No dia seguinte o cara falou que queria se casar com ela. Ela disse
sim. Dois dias depois casaram-se. Dois meses depois estavam separados para
sempre. Como seu ex-marido, um tal de Agenor, era um semita nômade
desgarrado de seu rebanho, uma ovelha negra, e não tinha para onde ir, o
sujeito voltou a ser um mendigo barbudo, cabeludo e vivia perambulando
trôpego e pedindo esmola pelas ruas da Paulicéia desvairada. Pensei se o tal
de Agenor não era meu amiguinho contador de histórias que me abordou
debaixo do museu que virou personagem no meu pesadelo, no dia em que
conheci a minha linda esposa Karen. Acho que deveria ser ele mesmo, mas
não tenho certeza. Mas não disse nada para sua ex-esposinha maluca.
Suzana era bonita. Seria muito difícil um homem conversar com ela e não
ficar com tesão ou vontade de levá-la para uma cama ou para o meio do mato.
Enquanto contava sua vida, vez ou outra ela passava a mão na minha perna.
Mas isso não chegava a me excitar. Eu permanecia calado e com o pensamento
longe, em outra pessoa. Finalmente chegamos em Pontal. Entrei num
estacionamento particular. Desci e fui até o balcão. Conversei com o
recepcionista. Dois minutos depois voltei.
- Chegamos meu bem. Fim da linha. - Eu disse e fui saindo. Ela pegou sua
mochila e correu para tentar me alcançar.
Perguntei para o primeiro timoneiro que encontrei quanto tempo ele demorava
para me levar até a Ilha do Mel. Ele disse que em uma hora se tudo corresse
bem. Como ainda era cedo, acho que não passava das quinze horas, aproveitei
para conhecer o lugar e deixei para partir no dia seguinte de manhã bem cedo.
Existia uma travessia com muitos barcos de passageiros para os dois povoados
da ilha. Mas eu não queria ficar em nenhum dos dois. Queria ficar numa praia
deserta, bem afastada das pessoas. Ele me indicou um hotel ali perto e
combinamos o horário para nossa saída. Voltei para o carro e peguei meu
saxofone. Paguei o estacionamento e segui para o hotel. Quando entrei na
recepção e o mensageiro tentou pegar o estojo da minha mão, mas eu não
173
entreguei, fiquei com ele pendurado no ombro, a doida que pegou carona
comigo deu um grito e me chamou. Fiquei parado esperando ela se aproximar.
- O que foi?
- Porra, Gatão, você vai dormir gostosinho nesse hotel de luxo e me deixar
dormindo no sereno da praça ou da praia?
Dei meu documento para o porteiro e disse que queria dois apartamentos para
solteiro.
No dia seguinte levantei bem cedo. Deixei a garota maluca dormindo em seu
quarto. Peguei meu inseparável companheiro metálico e desci. Passei na
recepção, paguei a conta e disse que a garota ia ficar dormindo até mais tarde.
O meu amigo timoneiro já estava me esperando. Fomos até o carro e pegamos
minha bagagem e pusemos a navegar. Porque navegar é preciso..., o resto, o
destino ou acaso, que se encarregue de sua parte.
Não foi difícil chegar até a ilha mais linda e desértica da costa sul do Brasil,
que seria meu refúgio por tempo indeterminado. Só o futuro incerto saberia
prever meu destino. Montei minha tenda com a ajuda do meu guia. Pedi para
ele me visitar uma vez por semana a fim de saber se eu precisava de alguma
coisa. Ele se foi e eu fui para a praia caminhando lentamente com meu
companheiro de solidão pendurado no meu pescoço. Ensaiei as primeiras notas
musicais. Não fui muito mal. Parecia que nós dois íamos nos entender bem.
O sol já estava alto e começava a queimar. Eu andava pelado pela areia
molhada da praia. Ora dava um mergulho. Ora brincava com as gaivotas, as
únicas criaturas vivas que me faziam companhia. Acho que elas gostaram do
mais novo visitante da ilha. Um visitante misterioso. Solitário. Triste ou
alegre? Perdido ou fugitivo? Careta ou louco? Poderia ser tudo isso e muito
mais. Era um visitante meio deslocado. Meio desiludido. Talvez em busca
de si mesmo. Alguém que tinha uma difícil tarefa de ser ele mesmo.
Andei pela praia de ponta a ponta. Conheci a ilha quase toda. Descobri uma
linda nascente de água doce cristalina, que corria suavemente entre as pedras.
Um enorme
cacho de bananas amarelinhas pendia no tronco de uma
bananeira encostado nas pedras. Tirei algumas e comi. Joguei as cascas num
formigueiro e fui tocar meu saxofone. O sol queimava minha pele que já
estava toda vermelha. Não me importei. Eu gostava de sol. Seus raios
penetraram em minha pele e eu gostava disso.
A noite chegou. O céu estava estrelado. A lua brilhava. Não havia nenhuma
nuvem. A temperatura era propícia para eu andar peladão pela praia, sem
pensar em nada.
Não pensei em nada. Não pensei no tempo. A lua já tinha desaparecido. O dia
despertava seus primeiros raios solares. A aurora me convidava para me
levantar. Obedeci a mãe natureza. Dei um mergulho e comecei uma corrida
pela areia molhada. Corri uns cinco quilômetros como nunca. As gaivotas
gostavam da música que eu tocava. A tarde caía. Minha barba crescia e coçava.
Ouvi um barulho muito longe. Não dei atenção. Continuei com meu concerto
solitário. Minha distração era tão grande que fui surpreendido pelo silêncio
mas não me assustei quando uma mão fina e macia tampou meus olhos...
De quem podariam ser aquelas mãos? De alguma aventureira perdida na ilha?
Da doida que dei carona? Da Karol que morava em Curitiba, não muito longe
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dali? Não. Claro que não. Só podia ser de uma única pessoa. Isso mesmo. Ela.
Só ela me acharia numa ilha deserta. Somente uma pessoa no mundo seria
capaz de me achar em qualquer lugar que eu fosse. Uma pessoa muito
inteligente e decidida. Ela me abraçou por trás. Sentiu meu corpo bronzeado.
Passou a mão no meu rosto. Tocou minha barba depois me beijou longamente.
Somente ela poderia me encontrar naquele lugar que tinha a minha cara e minha
piração. Quem era ela?
Karen sentou-se na areia, de pernas cruzadas em posição de yôga, deixou os
cabelos soltos esvoaçarem naturalmente e com um sorriso ficou me admirando.
Provavelmente pensando: “Ele é louco mesmo”.
Terminei minha sinfonia solo para dois, ou melhor para duas pessoas, e
fiquei olhando para Karen que não parava de sorrir. Eu terminei meu concerto,
que foi assistido apenas pelas gaivotas que voavam alegremente sobre nós e
pela única pessoa no mundo que eu queria e sabia que apareceria ali. Lembrei
de Kalibanus e suas cabras. Coloquei o instrumento no chão e fiquei olhando
para minha esposa. Ela sorria toda feliz e apaixonada para mim.
Ela descruzou as pernas. Levantou-se. Passou a mão no meu rosto. Me deu um
beijo, pegou minha mão e me puxou para andarmos pela praia linda e deserta e
disse:
- Você sabe que os loucos é que estão certos?
Não respondi nada. Eu já sabia.
PS: A gente se encontra por aí!!!. Oxalá!!!
MAGGIAR VILLAR DE CASANOVA
Brasil, primavera/2000
[email protected]
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