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MARIA, CARNE DE DEUS: PESSOA
E MULHER IMACULADA.
Mary, Flesh of God: Person and Immaculate Woman.
Xabier Pikasa Ibarrondo *
RESUMO: Neste texto, busca-se apresentar Maria como “ pessoa” no sentido radical da palavra,
uma mulher que colaborou com Deus e com outros seres humanos, como uma pessoa crente,
que dialoga com Deus desde o mistério mais profundo de sua vida, em gesto de encarnação
radical, em liberdade, com autonomia pessoal. É assim que ele vai interpretar a virgindade e a
encarnação. O autor recoloca o tema, para descobrir de novo – em meio as diversas rupturas
contemporâneas - o lugar de Maria na Encarnação de Deus, desde um contexto de diálogo com
as religiões e de nova compreensão da existência humana.
A primeira parte da reflexão destaca o sentido da encarnação, que nos permite falar de Maria
como a Virgem da Carne de Deus, em sua realidade concreta de mulher crente. Na segunda
parte, apresenta uma reflexão sobre Maria Imaculada, destacando suas características humanas,
femininas e cristãs. Deus não realiza nela um gesto negativo, libertando-a de mancha original e
do pecado, mas antes realiza um gesto muito positivo, oferecendo-lhe sua graça, a serviço da
“nova criação”, quer dizer, do surgimento de uma humanidade nova.
PALAVRAS CHAVE: pessoa; carne de Deus; mulher; imaculada; encarnação; ruptura.
ABSTRACT: In this paper, we seek to present Mary as “person” in the radical sense of the word, a
woman who collaborated with God and with other human beings, as a believer, who dialogues
with God since the most profound mystery of life, in a gesture of radical incarnation, in freedom,
with personal autonomy. That’s how he interprets the virginity and the incarnation. The author
puts across the theme, to discover again – amidst the diverse contemporary ruptures - the
place of Mary in the incarnation of God, from a context of dialogue with the religions and new
understanding of human existence.
The first part of the reflection highlights the meaning of the incarnation, that allows us to speak
of Mary as the Virgin of the flesh of God, in its concrete reality of a woman believer. In the second
part, presents a reflection about Mary Immaculate, highlighting her human, feminine and
Christian features. God does not perform a negative gesture, freeing her from the original stain of
sin, but rather performs a very positive gesture by offering her His grace in the service of the “new
creation”, which means, the emergence of a new humanity.
KEY WORDS: person; flesh of God; woman; immaculate; incarnation; rupture.
* Espanhol de Vizcaya, Doutor em Filosofia, Teologia e Sagrada Escritura. Foi catedrático na
Universidade do Episcopado Espanhol e professor da Pontifícia Universidade de Salamanca.
Autor de artigos científicos e inúmeros livros entre eles: Apocalipsis (1999), Para celebrar la fiesta
del pan, fiesta del vino (2000), Diccionario de la Biblia (2007), Diccionario de las três religiones.
Judaísmo, cristianismo, islam ( (em colaboração com V. Haya – 2009), Diccionario de pensadores
cristianos (2010) Evangelio de Marcos. La buena noticia de Jesús (2012). Seu mais recente livro:
Historia de Jesus,(2013).
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A figura “sagrada” de Maria vem acompanhando de maneira poderosa os
cristãos ao longo de mais de dois mil anos. Ela aparece como elemento essencial
do mistério da encarnação.
Historicamente, Maria tem sido um elemento chave no desenvolvimento
do cristianismo helenista e romano, na conversão dos povos germânicos e
escravos, na reconquista cristã de Espanha e na evangelização da América, quer
dizer, no imaginário espiritual do ocidente católico. Porém a situação parece estar
mudando, pois chegou um tempo de crise, de visão distinta da mulher e da vida.
Por isso é necessário recolocar o tema, para descobrir de novo o lugar de
Maria na Encarnação de Deus, desde um contexto de diálogo com as religiões
e de nova compreensão da existência humana, partindo uma vez mais das
raízes da revelação bíblica.
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Na primeira parte desta reflexão quero por em destaque o sentido da
encarnação, que nos permite falar de Maria como a Virgem da Carne de Deus,
em sua realidade concreta de mulher crente que dialoga com o próprio
Deus, quer dizer, como pessoa. Ela não é carne de canhão para a morte, nem
corpo a serviço de um varão dominador, nem simples terra abonada para um
ideal desencarnado de sacralidade. Maria é carne-mulher, pessoa que dialoga
com Deus e com os homens, sujeito de sua própria história entendida como
encarnação de Deus. Ela pode aparecer assim, na liturgia e no compromisso da
Igreja como sinal e condensação de uma humanidade (mulher/varão) que
dialoga com Deus, como um arco-íris de promessa, frente ao risco de diluvio
que continua ameaçando nossa história (Gn 6-9).
Na segunda parte, quero apresentar uma reflexão sobre Maria Imaculada,
destacando suas características humanas, femininas e cristãs, retomando ,
retomando um capítulo de um dos meus livros sobre o Camino de Maria (¡Santa
Maria da Carne! Jn 1, 14), na Biblia e na Igreja.
i - Maria, Mulher. Carne De Deus: Pessoa1
1. Santa Maria da crise
Agora, no começo do terceiro milênio, as coisas começam a mudar
poderosamente, de maneira que está em jogo não só a figura da Mãe de Deus,
mas também tudo o mistério cristão. Neste contexto podemos evocar varias
rupturas e problemas.
1
Arquivado em meu blog em mujer, hombre, Amigos, a voz de los, María, 07.12.14
1.Ruptura sacral. Um cristianismo sem mulher divina? Muitos pensam
que a devoção a Maria significa uma espécie de volta ao paganismo.
Seu culto tem sido uma regressão, uma espécie de retorno aos poderes
sagrados da natureza, que o judaísmo tinha superado e a Jesus, que
seria presença e revelação de Deus pelo que tem feito: por seu anuncio
de reino e sua entrega em favor dos excluídos do sistema, por sua morte
e a ressurreição, como um homem concreto (este homem ). Maria, em
troca, seria sagrada por sua própria condição feminina e materna, quer
dizer, por sua natureza e não pelo que fez como pessoa. Por isso, alguns
afirmam que seria melhor permanecer somente com Jesus, sem Maria,
em linha protestante.
2. Ruptura familiar. Um cristianismo sem mãe? Muitos consideram Maria
como refugio psicológico, uma necessidade infantil do homem-criança
que quer voltar aos braços da mãe. Sua figura teria servido para
manter muitos homens e mulheres detidos num infantilismo. Nesse
sentido, a devoção mariana seria um sinal residual e quase folclórico
de infantilismo e de imposição psicológica, que o homem maduro e
criador de nosso tempo deveria superar. Pode haver algo certo nessa
visão, porém não podemos esquecer o fato de que o ser humano
continua conservando ao longo de sua vida uns traços de criança
(neotenia), que o levam a entender Deus como Pai (Abba), conforme
à experiência e palavra de Jesus. De todas formas, seria preciso colocar
melhor o sentido de Maria-Mãe.
3. Ruptura feminina: Santa Maria, a mulher. Muitos afirmam que a
devoção mariana tem sido uma reação compensatória normal frente ao
predomínio do masculino contra da mulher escravizada deste mundo
(e para justificar sua escravidão real), os homens teriam elevado assim
a figura de Maria como mãe celeste e mulher bela, carinhosa, próxima.
Assim, ela representaria uma espécie de carência feminina. Por isso, uma
vez que o problema feminino fosse basicamente resolvido, de maneira
que não existam diferenças entre varões e mulheres, a figura de Maria
seria desnecessária. Tampouco esta objeção parece conclusiva, porém
deve ter-se em conta.
4. Ruptura cultural: Folclore. A figura de Maria continua sendo importante
para muitíssimos cristãos, pois sua história está vinculada a tradições
veneráveis, próprias de imagens milagrosas e santuários famosos. Porém
muitos destes santuários desaparecem ou se convertem em centros de
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folclore. O patrimônio mariano da igreja pode converter-se em arte,
que milhões e milhões de pessoas visitam cada ano em romarias e
exposições da arte, vinculadas ao mar e à montanha (Montserrat,
Aránzazu), à fonte-rio e à rocha (Fuensanta, Pilar), à árvores e à covas
(Virgem do Olivo ou do Pino, Covadonga)...nesta linha se situam, de um
modo especial, as festas patronais de povos e lugares. Algo disso pode
existir, de maneira que para entender a função de Maria é preciso voltar
ao evangelho.
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5. Ruptura imaginaria: Aparições. O culto à virgem Maria está vinculado,
ao menos desde a Idade Media, a uma tradição, quase sempre idêntica
das aparições (especialmente dirigidas a crianças e pastores) e imagens
sagradas (escondidas faz tempo e depois encontradas, decidas do céu
etc.). A maior parte dos santuários marianos antigos tem uma ‘lenda’
fundacional, que fala de revelações sobrenaturais, que de algum modo
expandem e atualizam (e inclusive transformam) a revelação do novo
Testamento, desde o “ayate” celeste de Guadalupe (México, 1531), a
imagem “Aparecida” no rio Paraiba (Brasil, 1717), ou as “revelações” de
Lourdes (França, 1854) e Fátima (Portugal, 1917). É significativo o fato
de que o Magistério da Igreja católica, que reage em tantos outros
casos, se deixe levar por mensagens e ‘revelações’ particulares, e tenha
aceito nestes e noutros casos uma providencia especial de Maria, a
Mãe de Jesus, no desenvolvimento da vida cristã de suas comunidades.
Porém há muitos cristãos que pensam que este tipo de culto mariano
fundado em aparições pode ser por evangélico.
Estas e outras rupturas nos obrigam a repensar o lugar e função de Maria
dentro da igreja, no começo do terceiro milênio. São muitos os que pensam
que ela representa o passado, a devoção de um tempo antigo, marcado por
uma minoria de idade. Pois bem, o homem que alcança sua maturidade com a
Ilustração, e que se atreve a pensar (Kant) e a transformar a sociedade desde
suas próprias capacidades racionais (Marx) não teria a necessidade deste tipo
de mãe.
A mariologia seria um refugio infantil, próprio de reprimidos ou medrosos.
O homem moderno, criador de si mesmo, não sentirá a necessidade de mãe.
Ao contrário disso, quero dizer que a figura de Maria continua sendo muito
importante para entender o nascimento e vida de Jesus.
2. Santa Maria da Bíblia, uma mulher judia
O primeiro ponto de referencia da mariologia continua sendo a história
e teologia de Israel, que superou o plano da sacralidade cósmica, para situar-se
no nível de as mulheres-mães e amigas, criadoras de história num nível humano.
Nesse contexto devemos recordar que Maria foi e continua sendo uma judia.
Desde esse contexto podemos evocar quatro temas que nos ajudam a entender
a figura de Maria, com seu background histórico e simbólico para interpretá-la.
– Crítica à Mãe-Deusa (Asheras). A história de Israel foi em grande parte
definida pela luta contra os deuses. O judaísmo assume a figura do Deus semita
(El, Elohim), porém tirando seu caráter sexual, senhorio gerador, vinculado aos
cultos da natureza (Baal); desde esse fundo, lutou contra a figura divina feminina,
tanto da shera (esposa de Él), como de Isthar-Astherté-Anat (esposa de Baal).
Assim podemos resumir a história religiosa de Israel dizendo que o judaísmo
rechaçou o Deus-Touro gerador (El/Baal) e a sua consorte (Ashera/Astarté), para
situar seu lugar Deus, Jahvé.
Como tenho dito, alguns pensam que a veneração cristã à Maria, Mãe de
Jesus, suporia um retorno ao paganismo, uma inversão ou volta à mãe-deusa,
uma recaída no paganismo. Assim o mostraria o tema da triada divina (Deus
pai, Deusa mãe, Filho divino) que estaria no fundo da concepção virginal (Deus
Pai gera o Filho divino por seu Espírito, revelado por Maria). Pois bem, como
continuamos afirmando que Maria não pode ser interpretada dessa forma; ela é
uma mulher histórica, não um simples momento de uma triada divina2.
– Rechaço da Deusa Sabedoria ideal. Os judeus tinham “expulsado” a
deusa materna, porém muitos correram o risco de colocar em seu lugar e de
divinizar uma ‘hipóstase” ou personificação feminina de Deus. Nessa linha pode
falar-se da Shekina, tabernáculo ou casa onde habita (cf. Ap 11, 19–12, 1) ou
Maria no tabernáculo de Deus). Numa linha convergente avança a teologia da
Hochma ou Sophia (Sabedoria de Deus, vinculada no Egito com a Maat). Parece
que a especulação sapiencial judaica, desenvolvida sobretudo na Alexandria, sob
a influência egípcia e helenista (século III-I a.C.), tinha destacado esta conexão
sacral: o Deus-Pai (Poder transcendente), através de sua Esposa, a Mãe-Sabedoria
(Sophia), gerou Filho divino (que é o Logos, que pode ser Jesus) .
Neste contexto pode-se situar e se tem situado também simbolicamente a
figura de Maria. De um modo consequente, a liturgia católica recriou os textos da
Sabedoria, aplicando-os à Maria, ao longo de muitos séculos. Isso significa que se
2
Ver o tema na mulher na Bíblia Judia, Clie, Viladecavalls 2013
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viu uma conexão entre ela e a simbologia divina feminina. Porém esta conexão,
fechada em si mesma, se torna insuficiente para explicar o culto mariano da
Igreja, pois Maria é antes de tudo uma mulher histórica.
– as grandes mães, mulheres triunfadoras. No começo da história
israelita está a mulher originaria, que se chama Eva e que aparece como Mãe de
todos os viventes (cf. Gn 3, 20). Dela parece tratar o NT (evangelho de João), dela
tratam explicitamente os primeiros Padres da Igreja, a partir de Justino e Ireneu,
no século II d.C. Porém tal recordação é insuficiente, pois o próprio NT relaciona
Maria com outras grandes mães israelitas: Mt 2 evoca a figura de Raquel, mãe de
José e de Benjamin, que chora por seus filhos mortos, para mostrar, por contraste,
o gesto de Maria que consegue salvar seu filho Jesus, centro verdadeiro da nova
história israelita; por sua vez, Lc 2 36-38 compara Maria com Ana, viúva perpétua,
que chora no templo a morte de seus filhos .
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De maneira consequente, a liturgia cristã vinculou Maria com outras
mulheres libertadoras, com Judite, que corta a cabeça de Holofernes (como Maria
teria cortado a cabeça do Dragão perverso), e com as grandes “mães” cantoras
da história de Israel, cuja figura e canto reaparecem no Magníficat (Lc 1, 47-55).
As principais são Miriam, a profetisa do Exodo (cf. Ex 15), Débora, a vencedora (Jc
5) e Ana, a mãe de Samuel, cujo canto é anúncio da grande libertação israelita,
assumida também por Maria, a mãe de Jesus (cf. 1 Sam 1-2).
Assim, poder-se-ia também acrescentar outras figuras femininas da
Bíblia, começando pela Filha de Sião. (Filha-Sião3), figura evocadora e salvadora
da história israelita. Por outro lado, os grandes profetas da aliança (de Oseias
e Jeremias ao Segundo e Terceiro Isaias) apresentam Israel como povo querido
de Deus, com traços femininos. Finalmente, a liturgia católica aplicou à Maria os
símbolos do Cântico dos Cânticos, vindo a convertê-la numa espécie de noiva
universal, mulher amante, testemunho e sinal de todos os amantes da historia.
Desde esse fundo se poderia elaborar uma mariologia judeu-cristã,
interpretando a vida e função de Maria a partir dos grandes simbolismos e
3
Desenvolvi o tema em Filha de Sião, origem e desenvolvimento do símbolo in EphMar
44(1994) , pg. 9-43. Assim vista desde Israel, Maria aparece como sinal da mãe messiânica
(cf. Mt 1-2), quer dizer, como expressão do povo da aliança de Deus (na linha da mulher
de 4 Esdras), sendo ao mesmo tempo uma mulher e Mãe histórica, concreta. Nessa linha,
o evangelho de Lucas apresenta Maria como portadora do canto de libertação israelita,
apresentando-a assim como mãe-profetisa, inspiradora de liberdade universal. Nesse
sentido, ela assume a causa de todos os rechaçados da história humana, cantando em
nome de eles a chegada do tempo messiânico. Assim podemos afirmar que ela evoca a
unidade pendente dos cristãos com o judaísmo, como indiquei na parte seguinte de meu
livro.
esperanças do antigo Testamento, realizando assim um exercício de ecumenismo
israelita. Por isso, se num momento determinado os cristãos deixarem de se
vincular à mãe-irmã Israel, teriam que esquecer Maria, a Mãe de Jesus, construindo
uma religião puramente gnóstica, quer dizer, sem história.
3. Santa Maria de (com) Jesus. “Encarnação” mariana
A mariologia cristã está vinculada à encarnação de Deus, que não atua
desde fora, exigindo uma submissão total (como no Islã), mas também desde a
própria vida humana (pedindo colaboração). Nesse sentido, a virgindade não
será passividade e submissão, mas será também atividade e colaboração. Nessa
linha quero presentar Maria como “ pessoa” no sentido radical da palavra, uma
mulher que colaborou com Deus e com outros seres humanos.
Assim quero apresentar Maria como uma pessoa crente, que dialoga com
Deus desde o mistério mais profundo de sua vida, em gesto de encarnação
radical, em liberdade. Não viemos ao mundo já prontos, não somos pessoas por
nascer biologicamente de um “ventre”, mas também porque uma mulher-mãe
(pessoa) nos introduziu (com o Pai e com outros seres pessoais) no mundo da
vida pessoal, da palavra e do afeto.
Algo disto supôs a gnose antiga, ao afirmar que nós, os humanos, não
nascemos simplesmente da cadeia social de gerações, mas também de Deus,
por graça sua, em diálogo de fé, quer dizer, do acolhimento e responsabilidade;
porém a gnose antiga e moderna tem corrido o risco de ignorar a historia, com
suas conexões sociais. Falou da paternidade-maternidade de Deus, porém
tendeu esquecer-se da humana, no nível da pluralidade social, dentro do tempo.
Para por em destaque a transcendência de Deus (o mesmo que o Islã), a gnose
esqueceu o caráter positivo da ação dos homens e mulheres na história.
Tendo isso em conta queremos insistir na contribuição pessoal de
Maria, como mulher livre, com autonomia pessoal, interpretando nessa
linha a virgindade e a encarnação.
A virgindade não é submissão passiva (como pode supor o Corão),
mas também colaboração ativa com Deus. A encarnação não é um dado geral
e a conhecido, nem uma experiência abstrata, mas também o fato de que Deus
eterno se faz carne na história humana. Frente ao risco de um sistema fechado,
que se situa acima dos indivíduos (e os utiliza a seu serviço), contra um Deus que
“invade” o terreno da vida humana (negando aos homens sua liberdade), temos
que por em destaque a experiência da encarnação, que se expressa em forma
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de comunicação pessoal e de diálogo na liberdade. Maria não é “mãe de Deus”
porque o recebe passiva desde fora, mas também porque o gera livremente, em
amor comprometido:
– Encarnação, por cima de toda ideologia. Ideologia é um tipo de
pensamento que age desde o externo, distorcendo a realidade. Ao contrário disso,
a encarnação indica que Deus age e se expressa na própria carne dos homens,
através de sua liberdade. Pois bem, o Deus de Maria é aquele que se encarna em
Jesus, atuando por meio de (com a colaboração) dela, através de sua carne real de
pessoa e mulher. Se Deus para encarnar-se negasse ou submetesse (colonizasse
desde fora) a carne de Maria não seria o Deus de Jesus Cristo.
80
– Encarnação pessoal por cima de todo sistema religioso. Outros podem
ter posto em destaque o valor sacral do templo de Jerusalém ou Roma, umas leis
de Deus que regulam desde fora o conjunto da vida do povo, os sacrifícios ou
sinais sagrados que têm sido fixados pela própria Escritura. Pois bem, por cima
disso, para Maria a religião se expressa como acolhida e colaboração humana,
como mulher e pessoa. Certamente, Deus é Deus (como sabe o Corão), porém
não age “invadindo” o terreno de Maria, agindo desde fora dela, mas também
através de sua liberdade pessoal e de sua colaboração humana.
Nesse aspecto, dizemos que, por meio dela, Deus se faz carne concreta em
Jesus, e que a carne humana é manifestação da vida de Deus. Para ser mãe de
um Jesus de carne, ela há de ser uma mulher concreta, capaz de dar vida na carne.
Não pode ser o sinal geral da deusa, pois a deusa enquanto tal não existe, o que
existe são pessoas concretas de carne, que se dão a vida e a compartem. Desde
aí se entendem seus “mistérios”
– virgindade não significa ausência de carne, mas é também carne
transparente, capaz de expressar todo o poder do espírito de Deus; virgindade
não é ausência de sexo, mas é também amor forte e transparente no que se pode
expressar o dom de Deus de maneira imaculada. Por isso, ali onde, em algum
sentido, se opõe o Espírito de Deus e o sexo e se interpreta a virgindade como
pura ausência de relações biológicas, se está negando o valor concreto da obra
de Deus, sua revelação entre os pobres deste mundo.
– Assunção. Neste mesmo contexto deve-se entender a ressurreição de
Maria, entendida como culminação pessoal de sua vida e de “carne” concreta.
Uma salvação de Maria sem carne seria contraria aos princípios da encarnação,
significaria negar aquilo que Deus realizou ao encarnar-se na vida concreta dos
homens, desde a perspectiva dos mais pobres, daqueles que tem sua ‘carne’
ameaçada pela fome ou enfermidade, pela nudez ou pelo cárcere.
II. Imaculada, uma mulher: Caminho de humanidade4
Nós homens nascemos num mundo de pecado e não podemos
superá-lo só com nossas forças. Nessa linha, o pecado original é a existência
perturbada e destruída dos homens, em chave histórica e social. Corremos o
risco de destruir o futuro da vida, de matar-nos uns aos outros. Num plano
individual, o pecado se expressa como incapacidade de realizar-nos como
pessoas. Para sermos pessoas em plenitude, Deus nos criou; porém nós nos
deixamos ficar pelo caminho, perturbados em três aspectos primordiais da
própria vida: nascimento, realização e morte. No plano social, nascemos
num mundo manchado, num mundo que nos marca já desde o princípio,
introduzindo-nos em suas redes de poder, mentira e egoísmo. Nesse aspecto,
o pecado constitui uma experiência (e uma realidade) fundacional: nascemos
desde um fundo ou «seio» mundano de pecado.
1. Origem: Humanidade em pecado, Imaculada.
No fundo do dogma da Imaculada Conceição, que a Igreja católica definiu
no ano 1854 por intuição crente dos fiéis mais que por razões conceituais da
teologia, encontramos um dado primordial de todo pensamento antropológico
cristão: Maria é antes de tudo uma pessoa. Ela foi concebida e nasceu como
criatura de Deus, dentro do tempo da historia.
Maria não pertence ao desenvolvimento (positivo o negativo) de Deus,
não é tampouco uma aparência, uma sombra da terra que brilha num momento
e depois perde seu fulgor, diluída no grande mar do divino. Tampouco é um
momento passageiro do grande círculo de vida em que as almas sempre giram
no tempo até que um dia consigam liberar-se de suas amarras temporais. Maria
não é tampouco um momento do grande rio das coisas onde tudo corre sem
chegar nunca a sua meta. Ela surgem em Deus como pessoa finita e diferente,
mas dentro da historia.
Pois bem, nascendo a partir de Deus, Maria nasce ao mesmo tempo dentro
da história dos homens, imersa em um processo que conforme a doutrina da Igreja,
inspirada na Escritura (cf. Gn 3, Rom 5), se encontra perturbada, estropeada pela
força do pecado. Por isso dizemos que os homens nascem (surgem, desenvolvemse) como membros de uma humanidade que, mesmo recebendo o impulso da
graça de Deus, parece empenhada em destruir-se, como afirma o Vaticano II:
4
Arquivado em meu blog em mujer, hombre, Amigos, a voz de los, María, em 07.12.14
81
Criado por Deus na justiça, o homem, sem dúvida, por instigação do
demônio, no próprio exórdio da historia, abusou de sua liberdade, levantandose contra Deus e pretendendo alcançar seu próprio fim à margem de Deus.
Conheceram a Deus, porém não o glorificaram como Deus. Obscureceram seu
estúpido coração e preferiram servir à criatura, não ao criador (cf. Rom 1,21-25). O
que a revelação divina nos diz coincide com a experiência. O homem, com efeito,
quando examina seu coração, comprova sua inclinação para o mal e se sente
inundado por muitos males, que não podem ter origem em seu Santo Criador...
Toda a vida humana, a individual e a coletiva, apresenta-se como luta e por certo
dramática, entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas. Todavia, o homem se
percebe incapaz de dominar com eficácia por si só os ataques do mal, até o ponto
de sentir-se como algemado entre cadeias... (GS 13).
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Esta é a condição do homem. Desde o mesmo começo (ab exordio historiae)
vive internamente dividido. (a) é filho de Deus, está convidado à herança da vida;
(b) surge e se implanta num campo de pecado. Isto é o que o dogma da Igreja
definiu desde tempos antigos quando fala do pecado original: existe em nossa
vida uma tragédia muito particular que está fundada na mesma opção humana.
Não é tragédia ter nascido, não somos filhos de um pecado dos deuses (de uma
divisão intradivina). Nem é tragédia o viver; nem a matéria nem a vida são más.
Mau é um tipo de vida obscurecida pelos próprios homens.
– em perspectiva sincrónica, o pecado original pertence ao homem em
seu conjunto; é de «adam», da humanidade inteira. É totalmente secundário
dizer se no principio dessa humanidade havia só um ser humano (um casal) ou
existiam diversos casais. A Palavra da Bíblia afirma que o pecado pertence ao
conjunto da humanidade. Não é um homem isolado o que se perde, é a própria
humanidade, manchada e pervertida em seu caminho e em suas próprias
estruturas de vida compartida. A humanidade como tal está quebrada, torna-se
incapaz de alcançar o futuro que Deus lhe prometeu (o paraíso). Por isso, os que
nascem nessa humanidade, nascem em risco, em perigo de perder-se.
– a tradição cristã afirma que o pecado é transmitido por herança,
porém em sentido cultural, não biologista, como as vezes tem pensado certa
teologia que no fundo já interpreta a própria forma «vital» (sexual) da “concepção”
como se fosse em si pecado. Entender assim o problema do homem seria
contrario à herança judaica do evangelho e ao primitivo cristianismo, que nunca
condenou o sexo como tal, e situaria a origem da vida humana em um plano
biológico (animal). Os animais evoluem através das mutações transmitidas por
herança biológica. Os homens, em troca, propagam sua verdade e vida humana
através da cultura. O que eles transmitem humanamente, em chave de realização
antropológica, é mais que uma existência material; estendem e propagam formas
de entender e realizar a própria vida, possibilidades humanas de existência. Neste
plano deve situar-se o tema do pecado original .
Nesse sentido, nossa herança cultural humana está manchada. Quero
entender essa Palavra de maneira muito extensa: cultura é aquilo que ultrapassa
o nível da natureza interpretada em forma de necessidade vital ou material
(mecanicista). Nesse aspecto ela transcende nossas possibilidades físicobiológicas. Nesse plano de criatividade (onde também é possível a destruição
histórica) é que se situa o pecado. Aqui onde se expressa e se realiza de verdade
nossa existência.
Com sua possibilidade de criação nova e pecado, a cultura configura todos
os aspectos da vida do homem sobre o mundo. Cultura é a maneira de buscar
a Deus e rechaçá-lo; cultura são as formas de existência social, as estruturas
econômico-políticas, a experiência fundante da vida. Só nesse nível o homem
pode realizar-se verdadeiramente como humano, quer dizer, como pessoa: ser que
é livre, responsável em si mesmo, aberto em gratuidade para os outros, partindo
da graça original do mistério (de Deus). Pois bem, conforme o testemunho da
Igreja, essa cultura primordial, que deveria encontrar-se aberta para a vida e para
a realização das pessoas, se encontra “manchada”, por culpa da própria atuação
humana.
O pecado original não é uma pequena nota de caráter moralista, mas é a
nossa forma de vida sobre o mundo: a maneira em que acolhemos (transmitimos),
realizamos e terminamos nossa existência. Nesse sentido, o NT nos adverte que
estamos «sob o signo insuperável do pecado»: destruímos o caminho da vida e
por nós mesmos não podemos já encontrá-lo e realizá-lo. Deus nos criou para
sermos pessoas e nós nos tornamos seres de violência e morte. Isso é o pecado.
Pois bem, sobre este background do pecado original, a Bíblia afirma que
Jesus, filho de Deus, construiu sua vida sem pecado. Nasceu no mundo e recebeu
sua herança dura e conflitiva, porém surgiu e foi se educando (amadurecendo)
sempre em graça. Em graça respondeu ao assumir sua própria vida e realizar-se
a caminho de Reino. Por isso se diz que foi tentado em tudo «como nós, porém
não pecou» (cf. Hb 4,15). Assim, partindo do AT e fundando-se em sua própria
experiência da graça pascal, a Igreja percebe que na base da história do pecado
original (da que surge Jesus Cristo) existe também uma corrente poderosa de
graça e esperança. Deus ia atuando já no mesmo caminho da história israelita,
preparando a chegada de Jesus (cf. 2 Cor 5,21). Deus ia oferecendo o germe e
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princípio de vida nas mesmas entranhas da história, preparando assim a chegada
do messias. No campo dessa preparação encontramos a Maria.
Nesse sentido, situa-se o “dogma” da Imaculada Conceição (ano 1854). Esse
dogma faz parte da experiência pascal da Igreja católica, que descobre e concretiza
em Maria um elemento chave de sua experiência antropológica: Por dom de
Deus, os homens podem superar e superam o pecado, vivendo dessa forma em
comunhão de Vida com a vida fundante de Deus, tal como se expressa em Jesus
Cristo. O “dogma” da Imaculada pertence não só ao processo de realização pessoal
de Maria, que assim vai construindo seu caminho em santidade, até o processo
de maturação social de Israel e da humanidade. Em geral, a Igreja fixou-se só no
primeiro aspecto, porém deve-se também destacar o segundo.
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Por isso não é estranho que entre os santos Padres fosse comum chamar
à Mãe de Deus toda santa e imune de toda mancha de pecado e como que
plasmada pelo Espírito santo e feita uma nova criatura. Enriquecida desde o
primeiro instante de sua concepção com esplendores de santidade do todo
singular, a Virgem Nazarena é saudada pelo anjo por mandato de Deus como
cheia de graça (Lc 1,28) e ela responde ao enviado celestial: Eis aqui a escrava do
Senhor, faça-se em mim segundo a tua Palavra (Lc 1, 38) (LG 56).
Esta passagem entende a Imaculada em perspectiva positiva, como sinal
da graça e santidade pessoais de Maria. Deus não realiza nela um gesto negativo,
libertando-a de mancha original e do pecado, mas antes realiza um gesto muito
positivo, oferecendo-lhe sua graça, a serviço da “nova criação”, quer dizer, do
surgimento de uma humanidade nova, capaz de dialogar com Deus e de viver
em concórdia mutua. Maria não é Imaculada em sua concepção biológica, mas
sim em todo o processo de sua origem e empenho pessoal, em meio a uma
história dramática, marcada por seu passado judeu (galileu) e por seu próprio
desempenho pessoal, através de um diálogo difícil com Jesus seu Filho, dentro de
“fortes” condições familiares. Nesse sentido se pode afirmar que a Imaculada faz
parte da “segunda inocência” de Maria.
– Há uma primeira inocência que seria “não saber”, uma espécie de
infância continua, como se Maria tivesse passado pelo mundo sem “misturar-se”
com as dificuldades e violências da vida. Esta é a imagem que projetaram sobre
ela não só grande parte dos tratados teológicos, mas também (e sobretudo) as
imagens da arte, que lhe representam como uma mulher que não se envolveu
com as lutas da vida.
– O “dogma” da Imaculada deve ser entendido à luz da “segunda
inocência” de Maria, que não consiste em não saber, mas antes em saber e
sentir, em sofrer e refazer a vida de um modo mais alto, em fidelidade humana,
em vinculação dramática a Jesus. Dessa forma, só ao culminar seu caminho,
diante da Cruz de Jesus e na Igreja, com os irmãos de Jesus e o resto dos cristãos,
podemos afirmar que Maria foi e é Imaculada.
2. Como Maria, a Mãe de Jesus:
– Ser Imaculada não significa não equivocar-se, mas pode equivocarse de uma forma criadora, superando os erros, aprendendo dos equívocos,
mantendo sempre um caminho sincero de busca, em diálogo, em humanidade.
Ser Imaculada não significa não ser discutida, pois os testemunhos dos evangelhos,
de um modo ou outro, supõem e afirmam que Maria foi, sem discussão, um
caminho aberto ao diálogo mais profundo, à fraternidade mais intensa, superando
os enfrentamentos destrutivos.
– Ser Imaculada não significa manter-se distante dos problemas, mas
entrar neles com boa intenção, com capacidade de aprendizagem, num caminho
messiânico. Maria foi Imaculada tendo nascido em um contexto de suma
violência, em condições de fome e de guerra. Foi Imaculada podendo inclusive
ser “violada” (como se pode perceber ao estudar o evangelho de Marcos 6, 3: Não
é este o filho de Maria?). Foi Imaculada negando inclusive a mensagem de Jesus
(não crendo nele…!), porém mantendo sempre um caminho de fidelidade que
desembocou na Igreja.
3. Vida em liberdade. Desenvolvimento pessoal.
Maria nasceu para ir-se realizando em liberdade, como pessoa. Por isso,
nascimento e realização se vinculam, como destaquei no item anterior. Assim a
viu o Vaticano II:
Assim Maria, filha de Adão, aceitando a Palavra divina, tornouse a Mãe de Jesus e abraçando a vontade salvífica de Deus com
generoso coração e sem o impedimento de pecado algum se
consagrou totalmente a si mesma, qual escrava do Senhor, à
pessoa e à obra de seu Filho, servindo ao mistério da redenção
com ele e sob ele, pela graça de Deus onipotente. Com razão,
pois, os santos Padres entendem a Maria não como um mero
instrumento passivo mas como uma cooperadora da salvação
humana pela livre fé e obediência (LG 56).
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Esta passagem supõe que Maria aparece como pessoa independente,
como dona de sua própria vida, capaz de dialogar com o próprio Deus, de
escutá-lo e responder-lhe. Não é um «instrumento» que Deus possa manejar a
seu bel capricho, nem um traço interior da mesma santidade de Deus, como
um momento de sua vida e seu mistério. Ela é pessoa: dona de si própria, capaz
de receber uma Palavra de Deus e responder-lhe; é pessoa em sentido radical
como «sujeito diante de Deus», em chave de liberdade, responsável por si
mesma, de maneira que nem o próprio Deus pode forçá-la.
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– Autonomia. Maria é dona de si e por isso Deus vai tratá-la com respeito,
oferecer-lhe (não impor-lhe) sua palavra. Ela nasce assim, por este diálogo com
Deus, como um ser distinto, uma espécie de «deus finito» que, por dom de
graça, pode elevar-se diante do próprio «Deus que é infinito», dialogando com
ele. Segundo a Bíblia, o ser humano desenvolve sua existência pessoal pela
palavra, em chave de diálogo com Deus. Pois bem, chegando até o final no
caminho começado pelo AT, Maria é a primeira que dialoga dessa forma com
seu Deus. Assim se pode apresentá-la como a primeira pessoa da historia.
– Colaboração. Maria “concorre” assim com Deus. Como disse o Vaticano
II, colaboração significa liberdade pessoal e mútua dependência. Deus livre é
para criar e Maria é livre para responder. Porém ambos querem viver e realizar
a liberdade em companhia. Maria oferece a Deus o espaço para o surgimento
humano de seu Filho, sua vida de mulher, sua Palavra de pessoa humana.
Por sua vez, Deus oferece a Maria o mistério de sua própria vida intradivina.
Necessita dela para expressar-se em liberdade e plenitude dentro da história:
por isso pede e aguarda sua resposta de consentimento (Lc 1,26-38).
Neste nível de Palavra dialogal com Deus (que se abre aos demais seres
humanos), Maria vem realizar-se de maneira exemplar como pessoa. Mais que
«ventre e peitos», como sugeria a piedade popular israelita (cf. Lc 11, 27), ela é
«a crente» (cf. Lc 1,45): dialoga com Deus e nesse diálogo desenvolve e realiza
sua pessoa. Dessa forma «acolhe e guarda (cumpre) a palavra» (cf. Lc 11,28), de
maneira que a mesma Palavra de Deus pode se transformar em carne na nossa
história (cf. Jo 1,14). Em diálogo de colaboração com Deus Maria apresenta-se já
como pessoa que nasceu e vive em liberdade sobre a terra.
Nesta perspectiva adquire todo seu sentido e tudo o que tem dito sobre
ela como realidade que só amadurece e se compreende em âmbito de graça.
Todas as demais «relações » passam. Assim acabam os outros níveis da vida
(criatividade intelectual, domínio sobre o mundo...). Só em relação com Deus
o homem permanece para sempre (cf. Is 40-55). Pois bem, nesta relação Maria
desenvolveu seu sentido como ser que permanece, quer dizer, como pessoa.
O povo israelita conhecia esta relação e a expressava em termos de aliança.
Porém não a havia culminado de maneira que nela apareciam duas limitações
primordiais. (a) a verdadeira personalidade pertence ao conjunto nacional, não
aos indivíduos como tais. Por isso, a fidelidade pessoal aparecia de algum modo
como secundária, e estava ao serviço povo; (b) além do mais, o conteúdo e
verdade da pessoa não se encontrava fixado todavia; os homens se encontravam
em caminho e só no final desse caminho encontravam sua pessoa. Pois bem,
Maria vem apresentar-se já no evangelho como uma pessoa realizada, em
liberdade, em decisão, em relação, destacando sua peregrinação crente, a serviço
de Jesus, até culminar em Pentecostes (At 1-2). Em todo esse processo, ela foi se
expressando e realizando seu ser como pessoa, nos níveis já indicados:
– Maria é pessoa plena por ser livre, diante Deus e diante dos homens.
Por isso não pediu permissão ao sacerdote nem ao letrado, ao político nem ao
chefe militar no momento crucial da “anunciação”. Dialogou com Deus e diante
Deus se decidiu por si mesma (cf. Lc 1,26-38), pondo-se a serviço da libertação
messiânica. Nesse sentido, é pessoa porque sabe e quer decidir-se. Não se limitou
a viver sua liberdade num vazio, numa espécie de contemplação intelectual que
se desliga das lutas e tarefas da história, mas que desenvolveu sua liberdade em
meio de condições conflitivas e muito duras, como fez ressaltar sobretudo em Lc
2,24-25.
– Por fim, e concluindo, Maria é pessoa total em relação (e em relação
conflitiva) com outros seres pessoais, desde o Cristo. Ela assume o caminho
de Jesus e com Jesus a grande tarefa da culminação messiânica, numa linha
de personalização social. Por um lado, ela plenitude e cumprimento da antiga
aliança, de maneira que seu «fiat» condensa e ratifica a Palavra precedente dos
homens. Porém, ao mesmo tempo, ela aparece como sinal e principio duma
aliança nova, aberta a todos os homens, num caminho duro e conflitivo, que o
evangelho de Marcos começa criticando. Só através de muitas dificuldades ela
pode recorrer até o final o caminho messiânico aberto a todos os homens, como
ratificam Lucas e João.
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