Book 5.indb - Cadernos Metrópole

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Book 5.indb - Cadernos Metrópole
cadernos
metrópole
n. 5
ISSN 1517-2422
PUC-SP
Reitor: Antonio Carlos Caruso Ronca
Vice-Reitora Acadêmica: Raquel Raichelis Degenszajn
EDUC - Editora da PUC-SP
Conselho Editorial: Ana Maria Rapassi,, Bernardete A. Garti, Dino Preti, José Roberto Pretel
Pereira Job, Maria do Carmo Guedes, Maria Eliza Mazzilli Pereira, Maura Pardini Bicudo Véras,
Onésimo de Oliveira Cardoso, Raquel Raichelis Degenszajn (Presidente), Scipione Di Pierro Netto
Ficha Catalográfica na Fonte - Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Cadernos Metrópole / Grupo de Pesquisa PRONEX. – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999
Semestral
ISSN 1517-2422
1. Áreas Metropolitanas - Periódicos. 2. Sociologia urbana - Periódicos. I. Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. II. Grupo Pronex “Metrópole: Desigualdades Socioespaciais e Governança
Urbana”
CDD 307.7605
EDUC – Editora da PUC-SP
Direção
Maria Eliza Mazzilli Pereira
Coordenação Editorial
Sonia Montone
Revisão
Sonia Rangel
Editoração Eletrônica
Waldir Antonio Alves
Capa
Sara Rosa
Execução: Waldir Antonio Alves
Rua Ministro Godói, 1213
05015-001 – São Paulo – SP
Tel. (11) 3873-3359 – Fax (11) 3673-6133
E-mail: [email protected]
Sumário
Apresentação
7
Favelas em São Paulo – censos, consensos
e contra-sensos
Suzana Pasternak Taschner
9
A divisão favela-bairro no espaço social do Rio de Janeiro
Luciana Corrêa do Lago
Luiz César de Queiroz Ribeiro
29
As favelas da Região Metropolitana de Belo Horizonte:
desafios e perspectivas
Berenice Martins Guimarães
47
Favelas, invasões e ocupações coletivas nas grandes cidades
brasileiras – (Re)Qualificando a questão para Salvador-BA
Angela Gordilho Souza
63
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
Márcia Pereira Leite
91
Apresentação
A publicação do número 5 dos Cadernos Metrópole representa mais uma
importante etapa para sua consolidação como veículo de divulgação da produção
acadêmica da rede de pesquisadores, construída em torno do projeto Pronex interinstitucional “Metrópole: desigualdades sócio-espaciais e governança urbana”.
Tal publicação estimula a ampliação dos trabalhos comparativos, enriquecendo o
escopo analítico dos projetos de pesquisas e incentivando seus desdobramentos
futuros.
Na raiz das discussões apresentadas pelo conjunto dos textos reunidos neste número, observa-se, para além do interesse de levantar questões e elencar temas, a preocupação de focalizar e debater problemas cruciais do ponto de vista da
habitação de baixa renda e, particularmente, das favelas nas principais metrópoles
brasileiras.
De modo geral, os textos procuram responder a questões estratégicas para
os estudos urbanos e a gestão habitacional nas cidades brasileiras, geradas pela
segmentação do mercado de trabalho, a fragmentação do espaço e a desigualdade
social crescentes. Os estudos aqui reunidos trazem elementos empíricos e analíticos que nos permitem refletir sobre aquelas questões e as suas possíveis conexões
com os efeitos socioespaciais da inserção das nossas grandes cidades na “mundialização”, em especial sobre a existência ou não de tendências de transformação
dos padrões de segregação urbana entre os grupos e classes sociais.
As favelas são, hoje, o recorte socioespacial que galvaniza esse debate na
sociedade brasileira, não apenas pelo seu crescimento, mas por parecerem traduzir na paisagem urbana a face mais visível do que seria a cidade fragmentada em
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ordens sociais distintas. Suas características, por mais evidentes que sejam empiricamente, não se exprimem ainda em estatísticas totalmente confiáveis, seja pelo
caráter de “ilegalidade” dessas habitações, seja por problemas de ordem metodológica. Conforme observa Berenice Martins Guimarães, “A análise das favelas sofre
constrangimentos em virtude da forma como os dados censitários existentes estão
disponibilizados para tratamento e análise”.
Para Suzana Pasternak, os dados dos últimos censos, por mais que sejam
úteis aos pesquisadores, deixam margem a muitos “contra-sensos”. Um desses
contra-sensos está na insistência, de acordo com os dados oficiais, no estatuto
jurídico da favela, ou seja, na posse definitiva do terreno ocupado: “Isso explicaria,
no Rio de Janeiro, a presença de mais de 86 mil famílias proprietárias do terreno
em aglomerados subnormais, ou seja, em favelas, onde teoricamente todas as unidades teriam condição de propriedade do terreno irregular”. Além disso, “todos os
outros critérios freqüentemente utilizados para distinguir as favelas dos outros tipos
de moradia se aplica, apenas parcialmente”. A inadequação de tais critérios, além
dos problemas de ordem metodológica, expostos no texto, redunda – também – na
subestimação da população favelada nas estatísticas oficiais.
De qualquer modo, os dados censitários nos ajudam a compreender a dinâmica familiar, social e econômica presente nas favelas. Luiz César Ribeiro e Luciana
Corrêa discutem as causas de crescimento das áreas faveladas: “Classicamente,
atribuiu-se à migração – particularmente à nordestina – a causa do crescimento
demográfico das favelas. Os dados censitários, no entanto, indicam que a migração
explica cada vez menos o acelerado processo de favelização em curso no Rio de
Janeiro e nas demais metrópoles”.
Complementando e embasando as análises nas regiões enfocadas, temos
no texto de Ângela Gordilho um histórico da questão habitacional no Brasil. Outra
importante contribuição, de Márcia Pereira Leite, trata das representações do bairro
do Grajaú por seus moradores, oferecendo-nos um bom exemplo de como se constrói a identidade social de uma comunidade relativamente “fechada”: Demonstra
como “essas versões articulam-se à percepção das fronteiras do bairro, que podem ser mais largas ou mais estreitas do que as definições oficiais, incorporando
ou excluindo as áreas proletarizadas e as favelas da região”. As favelas, mais que
“aglomerados subnormais”, são locais onde nascem e se desenvolvem identidades
sociais que estigmatizam ou personalizam seus moradores.
Lucia Bógus
Luiz César de Q. Ribeiro
Favelas em São Paulo –
censos, consensos e contra-sensos*
Suzana Pasternak Taschner
Introdução
A reconstituição histórica das diferentes formas de habitar tem sido objeto de
estudo entre pesquisadores brasileiros. Mas, no caso específico de São Paulo, uma
lacuna permanece, e diz respeito ao aparecimento e à difusão, pelo espaço da cidade, de
uma forma de morar presente em todo o país e cuja denominação passou a integrar até
mesmo o vocabulário acadêmico internacional: a favela.
Em São Paulo, julga-se que as primeiras favelas apareceram na década de 40. O
Diário de São Paulo (1/10/1950) relata uma pesquisa feita pela Divisão de Estatística
e Documentação da Prefeitura de São Paulo (hoje extinta) sobre a favela do Oratório,
na Mooca, zona leste de São Paulo. Ali moravam 245 pessoas em moradias de tábuas,
com apenas 6 vasos sanitários para uso de todos. Também no mesmo ano encontrou-se
referência à favela da Rua Guaicurus, na Lapa (zona central) com 230 domicílios e 926
pessoas. No Diário de São Paulo de 6/8/1950, um artigo sobre a favela do Ibirapuera (27 domicílios, 144 pessoas) já comentava que os moradores desse assentamento
eram pessoas pobres e não vadios e malfeitores, fortalecendo uma evidência empírica
retomada na década de 70. Datam também da década de 40 a favela Ordem e Progresso,
na Barra Funda, zona central do município (hoje erradicada), a favela do Vergueiro, na
zona sul (também erradicada) e a de Vila Prudente, na zona leste, ainda existente. “Em
1957 apurava-se na capital de São Paulo um total de 141 núcleos com 8.488 barracos e
cerca de 50.000 favelados” (Finep/GAP, 1985, p. 66, relatando convênio Casmu com a
Confederação das Famílias Cristãs para a solução das favelas).
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Cadernos Metrópole – n. 5
Embora presente desde há muito, o fenômeno favela, em São Paulo, só vai se
desenvolver em larga escala nos anos 70. A montagem de um Cadastro de Favelas, na
Secretária do Bem-Estar Social, em 1973, permitiu uma mensuração bastante exata do
número de favelas e domicílios. Nas moradias, aplicou-se um formulário abrangente,
numa amostra ampla, sobre caracterização domiciliar e populacional. Através do dado
“pessoas por unidade domiciliar” foi estimado o número da população favelada total. Em
1973/1974 a população favelada paulistana não alcançava 72 mil pessoas (71.840), cerca de 1,1 % da população municipal.
Em 1975 foi feita uma atualização do cadastro de 1973/1974, com nova contagem de favelas e domicílios favelados, possibilitada por vôo de helicóptero. Não se
fez nova pesquisa de campo amostral, considerando que o número de pessoas por
unidade domiciliar se mantinha. A população favelada crescera para 117.237 pessoas,
representando 1,6% da população do município.
Em 1980, registros da Eletropaulo (dezembro de 1985), com taxa de subenumeração estimada em 5%, segundo seus técnicos, e dados da pesquisa de campo IPTFupam (Taschner, 1982) mostraram que a população favelada do município já alcançara
439.721 pessoas, 5,2% da população total do município. Em 1980, pela primeira vez
para São Paulo, o Censo Demográfico (IBGE) contou a população favelada. O número
publicado na Sinopse Preliminar não confere com a estimativa Eletropaulo-IPT. Pelo Censo de 1980, a Região Metropolitana de São Paulo tinha 476.221 favelados, dos quais
335.344 no município. A diferença entre os dados censitários e aqueles utilizados pela
Prefeitura e pela academia já era considerável, de mais de 100 mil pessoas. Introduzindose uma correção para os dados censitários (ver item “Problemas relativos ao conceito
utilizado”) e lembrando que cerca de 22% da população favelada vivia em aglomerados
de menos de 51 unidades, a população favelada (IBGE, corrigida) alcançaria 409.120
pessoas, bastante próxima da estimativa de 439.721, da pesquisa de 1980 (diferença de
30.601, cerca de 7%).
Um novo Censo de Favelas, em 1987, realizado pela Prefeitura Municipal, usando
metodologia semelhante à do Cadastro de 1973/1974, encontrou o total de 812.764
moradores de favela no município (8,9% da população municipal) em mais de 150 mil
domicílios. Tanto os formulários utilizados na pesquisa de campo amostral como a metodologia e as definições utilizadas em 1987 foram compatíveis com as utilizadas em 1973,
1975 e 1980. Os resultados, dessa forma, são comparáveis.
Em 1991, dados do Censo Demográfico apontam 629 favelas, com 146.892 domicílios e 711.032 pessoas. De acordo com a Prefeitura Municipal, em 1992 a cidade teria
1.071 milhão de habitantes (11,3% da população municipal) em 1.085 assentamentos.
Entre 1987 e 1992 teriam se formado 236 novos aglomerados e 36 foram removidos.
Em 1993, nova pesquisa abrangente sobre as favelas do município foi feita pela
Fipe, encomendada pela Prefeitura Municipal. Como resultado, computaram-se 1,9 milhão
Favelas em São Paulo - censos, consensos e contra-censos
11
de favelados (19,8% da população municipal). A pesquisa Fipe utilizou metodologia
distinta das anteriores, embora seus formulários de pesquisa contenham questões
comparáveis com as dos Censos de 1973/1974 e 1987. Como ponto de partida, utilizou
o cadastro de pesquisa de 1987, e o conceito de favela foi utilizado desde 1973. Foi desenhada uma amostra em dois estágios, com as favelas estratificadas por tamanho e Administração Regional. Os resultados, posteriormente, foram agregados para obtenção do
total para a cidade de São Paulo. A pesquisa amostral foi efetuada em 3.704 domicílios,
distribuídos em 163 favelas, com 18.599 pessoas.
A pesquisa Fipe-Sehab, ao basear-se na relação de favelas de 1987, mediu
apenas o adensamento, deixando de lado as novas favelas. O erro total não deveria ser
grande, pois novas favelas costumam ser pequenas – estimou-se seu tamanho médio
em 15 domicílios, com 76 pessoas. Entretanto, é justamente nas novas favelas que se
encontram as situações de maior precariedade e maior risco ambiental.
Percebe-se que as informações das pesquisas da Prefeitura Municipal e as dos
Censos Demográficos não são coincidentes. Os bastidores das pesquisas municipais
foram, de certa forma, explicitados. Convém desvendar os meandros das pesquisas
censitárias, suas implicações técnicas, teóricas e metodológicas.
Censos de favela: conceitos, variáveis e problemas
Problemas relativos ao conceito utilizado
O censo, como fonte institucional de dados, responde a questões práticas e
analíticas relevantes e prioritárias para o Estado. Dentro desse quadro é que vou analisar
de forma mais detalhada as questões conceituais, a forma de coleta e o potencial dos
dados recolhidos para estudo do tema favela.
Em 1950, o IBGE decidiu, pela primeira vez, incluir a favela na contagem de população (Guimarães, 1953, apud Preteceille e Valladares, 2000). Na publicação pra São
Paulo, entretanto, dados específicos apareceram apenas em 1980. Segundo Guimarães,
“a conceituação oficial considerou como favelas os aglomerados que possuíssem, total
ou parcialmente, as seguintes características:
• Proporções mínimas – agrupamentos prediais ou residenciais formados com número
geralmente superior a cinqüenta;
• Tipo de habitação – predominância de casebres ou barracões de aspecto rústico, construídos principalmente com folha de flandres, chapas, zincadas ou materiais similares;
• Condição jurídica da ocupação – construções sem licenciamento e sem fiscalização,
em terrenos de terceiros ou propriedade desconhecida;
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Cadernos Metrópole – n. 5
• Melhoramentos públicos – ausência, no todo ou parte, de rede sanitária, luz, telefone
e água encanada;
• Urbanização – área não urbanizada, com falta de arruamento, numeração ou
emplacamento”.
Entre os critérios utilizados, quatro referem-se aos aspectos físicos: tipo de
habitação, tamanho do assentamento, melhoramentos públicos e urbanização. Um
aspecto – o critério em comum com as definições de outros trabalhos paulistanos –
refere-se ao estatuto jurídico: ocupação ilegal da terra. O IBGE, desde então, continua basicamente utilizando a mesma definição para o que denomina “aglomerado subnormal”, ou seja, a favela.
A habitação das camadas populares no Brasil pode ser categorizada em
algumas alternativas fundamentais, conforme o estatuto jurídico da terra (invadida ou
comercializada) e a densidade do habitat (individual ou coletivo).
Alternativas habitacionais
Habitat
Individual
Coletivo
Terreno
Invadido
Comercializado
Favela
Invasões coletivas
“periferia”
produção direta e/ou locação
Invasão de unidades acabadas
ou em construção
Cortiços
Conjuntos de interesse social
Apartamentos kitchenette
Sumarizando, há unidades do chamado “mercado ilegal” (invasões em terrenos
públicos e/ou particulares e em construção) e do “mercado legal”, tanto público
(conjuntos populares de casas ou apartamentos) como privado (unidades na chamada
periferia, ocupadas por donos ou por locatários) e habitações coletivas, nas suas diversas modalidades. Diversos autores acrescentaram a essas alternativas os pequenos
apartamentos congestionados, independentemente da condição de propriedade (Velho,
1975; Suttes, 1971). Hoje os sem-teto estão espalhados por todo o tecido urbano. Não
contam, entretanto, como alternativa habitacional, já que são o exemplo de sua falta.
Como afirmam Leeds e Leeds (1978, p.152), o “único critério uniforme que distingue as áreas invadidas dos outros tipos de moradia se aplicam apenas parcialmente.
Em São Paulo e no Rio de Janeiro, geralmente, as invasões se dão gradualmente, sem
traçado planejado. As invasões coletivas de terra existem, mas são a minoria. Em São Paulo, as invasões coletivas datam de 1982, sendo raras ate hoje. Lima, no Peru, entretanto,
é notável pelo numero de barriadas oriundas de movimentos coletivos de ocupação de
terras e com traçado físico regular. Em relação ao material de construção predominante,
Favelas em São Paulo - censos, consensos e contra-censos
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as moradias das favelas da cidade de São Paulo, antes barracos de madeira e zinco, são
hoje predominantemente de alvenaria: 51% em 1987; 75% delas em 1993. Grande parte
das favelas paulistanas apresenta alguns melhoramentos públicos, como luz (82,2% das
moradias), água potável (71% das moradias), coleta de lixo e mesmo esgoto.
Assim, a variável mais adequada à definição de favela é o estatuto jurídico da
terra. Tanto as definições das pesquisas da Prefeitura Municipal (1973, 1975, 1987 e
1993), como a de 1980 do IPT-Fupam consideram favela “todo o conjunto de unidades
domiciliares constituídas de madeira, zinco, lata, papelão ou alvenaria, em geral distribuídas
desorganizadamente em terrenos cuja propriedade individual do lote não é legalizada para aqueles que os ocupam”1. O IBGE também enfatiza os mesmos aspectos, apenas
agregando à variável “terreno invadido” o tamanho do aglomerado. Para o IBGE, desde
1950 – e isso foi enfatizado nos Censos de 1980 e 1991 e na Contagem de População
de 1996 –, favela é um setor especial do aglomerado urbano formada por pelo menos
50 domicílios, na sua maioria carentes de infra-estrutura e localizados em terrenos não
pertencentes aos moradores. Para as pesquisas de 1973, 1975, 1980, 1987 e 1993,
definiu-se como favela quando havia no mínimo 2 unidades habitacionais com as características acima mencionadas. Ficaram excluídos domicílios isolados e acampamentos.
O critério de computar apenas aglomerados com 50 unidades e mais explica, parcialmente, a subestimativa da população favelada pelos Censos. Em 1987, em
São Paulo, 21,93% da população favelada morava em assentamentos de menos de
51 unidades domiciliares. A pesquisa de 93 mostra que as favelas pequenas, de 2 a
50 domicílios, agrupavam 21,2% das casas. As grandes favelas, com mais de 1.000
unidades habitacionais, serviam de local para apenas 12,9% dos domicílios favelados. A
moda estatística em relação ao tamanho das favelas em São Paulo era representada por
assentamentos entre 51 e 400 casas (51,1% das casas faveladas).
O tamanho dos aglomerados depende diretamente da topografia da cidade e do
tipo de terreno disponível para invasão. Em São Paulo, as favelas geralmente ocupam
terras de uso comum de loteamentos, glebas pequenas, quando comparadas com as
do Rio de Janeiro, onde as favelas galgam os morros, ou Salvador, onde invadem o mar.
Dessa forma, a subestimação em São Paulo tende a ser maior do que no Rio, onde, já em
1969, 62,7% das favelas tinham mais de 100 domicílios, sendo que 6,4%, mais de 1.500
(Parisse, 1969).
A ultima estimativa da população favelada paulistana foi feita pela Fipe, em 1993, e
fornece um total de 1.901.894 pessoas. Essa estimativa, em princípio, deveria conter uma
subestimação, uma vez que a pesquisa Fipe baseou-se no Cadastro de Favelas de 1987,
não computando favelas novas. Para os estudiosos do assunto, entretanto, o número surpreendeu, já que não se imaginava 20% da população municipal em favelas. Acreditou-se,
numa primeira impressão, em um superdimensionamento do fenômeno. Um dos possíveis
fatores de superestimação foi contornado: como a pesquisa Fipe foi realizada por meio
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Cadernos Metrópole – n. 5
de recontagem de assentamentos sorteados na base 87, em amostragem estratificada
por tamanho o assentamento e Administração Regional, poder-se-ia, em princípio, em
favelas próximas, contar casas de uma das favelas como sendo aumento de outra, e, portanto, superestimar o incremento domiciliar. Isso foi verificado e expurgado. Tanto o poder
municipal como os meios acadêmicos têm aceitado a estimativa Fipe como verdadeira.
Retroprojetando essa estimativa para 1991, data do Censo, obtém-se uma
população favelada, para 1991, de 1.424.112 pessoas. A população favelada, para o
IBGE, em 1991, foi de 711.032 pessoas, em 146.891 domicílios. Supondo que 21,93%
da população favelada em assentamentos pequenos não tenha sido computada, a
população favelada (IBGE) seria de 866.961 pessoas em 1991, em São Paulo. A diferença entre a estimativa Fipe e a do IBGE chega a mais de 500 favelados, quase 40% em
relação à estimativa Fipe. Como pode ser visto, o diferencial entre os números do IBGE e
os da Prefeitura Municipal aumentou bastante: era de cerca de 7% e subiu para 40%.
Os dados censitários para as favelas têm sido objeto de controvérsia. No Censo
de 1980, os resultados foram fruto de tabulação especial da variável situação, que categorizava cidade ou vila, área urbana isolada, aglomerado rural e zona rural. A publicação
hoje disponível, com dados de favela de 1980, é a Sinopse Preliminar, com listagem das
favelas por nome, número de domicílios e número de pessoas, em cada município. Pelo
Censo de 1980 não é possível separar domicílios totalmente próprios daqueles com apenas a construção própria. No item “condição de ocupação” existem as categorias próprio,
pago e em aquisição, alugado, cedido (por empregador ou particular) e outro. Em relação
aos domicílios rústicos, o Censo de 1980, no boletim da amostra, caracteriza paredes,
piso e cobertura.
Já o Censo de 1991 e a Contagem de 1996 apresentam a variável localização
(variável 0202), com as categorias casa ou apartamento isolado ou em condomínio, em
conjunto popular e em aglomerado subnormal. Outra variável permite também identificar
a favela, a variável setor (variável 1061). Em princípio, deveria existir coincidência total
entre as duas apurações. Na contagem de 1996, a diferença entre as apurações por
essas 2 entradas foi mínima: apenas 491 domicílios, sendo que a variável 1061, setor,
fornecia 177.141 domicílios em favela e a variável 0202, localização, 176.650 casas em
aglomerado subnormal. As diferenças se davam em apenas 3 distritos – Bom Retiro,
Cachoeirinha e Jaçanã.
Para o município do Rio de Janeiro, entretanto, em 1991, entre 236.354 unidades habitacionais em aglomerados subnormais, verificaram-se 16.147 domicílios não
favela (6,83% do total de aglomerados subnormais e 1% do total de unidades domiciliares) (Preteceille e Valladares, 2000). Como variável-controle, a referente à condição
de ocupação poderia auxiliar, dado que, nas unidades faveladas, apenas a construção é
própria, nunca o terreno. Para a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, entretanto, tanto
nos setores favela como nos não favela surgiu a categoria “só construção própria”. Entre
Favelas em São Paulo - censos, consensos e contra-censos
15
as casas da favela, em que se espera que todas as unidades tivessem propriedade da
terra irregular, computaram-se 86 mil moradias com terreno próprio. E entre as unidades
não favela surgiram quase 150 mil que declararam apenas a construção própria (cerca de
9% do total de moradias) (Preteceille e Valladares, 2000, p. 389).
No município de São Paulo, em 1991, o numero de domicílios com apenas a
construção própria alcançava 176.774, o que representava 7,27% do total. Para o mesmo
ano, pela mesma fonte, o total de casas em aglomerados subnormais foi de 146.891.
Existem, de forma paradoxal, unidades domiciliares (29.883) em que só a construção
seria própria – definição de favela – e que não estão em favela. É claro que podem existir
unidades em terrenos cedidos e/ou alugados, mas parece improvável a existência de
quase 30 mil casas em tais terrenos, sabendo que o aluguel ou cessão de terras é pouco
comum para habitação na cidade.
Esse paradoxo – na favela pode haver casas próprias, alugadas ou cedidas,
mas sempre em terrenos ocupados irregularmente, e além disso seria difícil encontrar,
na cidade de São Paulo, quase 30 mil unidades habitacionais (não favela) em terrenos
alugados ou cedidos – indica o pouco que conhecemos do fenômeno. Preteceille e Valladares (2000, p. 390) comentam que os dados cariocas “podem também estar revelando
a tendência, já em curso há algum tempo, de regularização da ocupação em tais áreas”.
Isso explicaria, no Rio de Janeiro, a presença de mais de 86 mil famílias proprietárias
do terreno em aglomerados subnormais, ou seja, e favela, onde, teoricamente, todas as
unidades teriam condição de propriedade do terreno irregular. Seriam moradias em lotes
ocupados inicialmente por invasão e posteriormente legalizados.
Problemas relativos ao processo de coleta
Como já foi dito, o IBGE considera aglomerado subnormal “um setor censitário quando nele quando nele existem cinqüenta ou mais casas faveladas contíguas”
(Guimarães, 200, p. 353). Caso um aglomerado possua 20 casas num setor e 40 em outro setor, esses setores não são considerados favelas, o que vai subestimar a realidade.
Por outro lado, existindo 51 moradias faveladas, todo o setor será considerado como
aglomerado subnormal, mesmo que nele existam casas não faveladas.
Assim, o processo de coleta censitário pode levar a distorções da realidade. Percebe-se que tanto o conceito como o processo de coleta de dados incorporam problemas que tornam o resultado censitário sujeito a críticas.
Contudo, a pesquisa de 1987 foi realizada com amostragem pequena, confiança de 90% e erro de 0,08. O número total de moradias amostradas foi de 1.600,
estratificadas por Administração Regional. A contagem de assentamentos e domicilios
deve estar correta. Mas a pesquisa de 1993 foi montada numa base de dados com
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Cadernos Metrópole – n. 5
certa desatualização, e sua amostragem, embora envolvendo 18.599 pessoas e 3.704
domicilios, investigou apenas 163 favelas. O total estimado para São Paulo é mais de
1.500 aglomerados favelados. Pode estar havendo alguma distorsão.
Em Belo Horizonte, Guimarães (2000) coordenou um levantamento dos setores censitários favelados, cotejando-os com informações dos mapas da Companhia Urbanizadora
de Belo Horizonte (Urbel). A partir da identificação dos setores censitários ocupados por
favelas, foi feito um cálculo do percentual de ocupação da mancha de favelas no setor e
os dados foram sistematizados e corrigidos. Isso não foi feito para São Paulo.
Entretanto, mesmo sabendo do possível erro embutido na quantificação de favelas e favelados nos Censos Demográficos, sua utilização para caracterização de aspectos da moradia e da população é preciosa. E a análise comparativa entre alguns
resultados do Censo de 1991, da pesquisa Fipe e da contagem de 1996 mostram
que, apesar das conceituação e metodologia, falam da mesma coisa. A sensibilidade
dos técnicos envolvidos com o fenômeno indica que deve haver uma superestimação
nos dados da Fipe e uma subestimação nas informações do IBGE. A pesquisa sobre
as condições de vida da população metropolitana (PCV-1998, F. Seade) fornece um
percentual de 6,2% da população metropolitana em barracos isolados e em favela em
1994 e 9,1% em 1998.
Principais resultados censitários
Dimensão e especialização do fenômeno
Embora os dados censitários sejam considerados subestimados para o
dimensionamento das favelas em São Paulo, constituem importante parâmetro, tanto para
a mensuração das taxas de incremento da população favelada, como para análise das
características da moradia e da população favelada.
Em 1980, a publicação fornece apenas os nomes das favelas e seu total
populacional; já em 1991 e 1996 os resultados podem ser especializados e algumas
especificações populacionais mostradas. Neste paper, não farei comparações com
resultados da Fipe. A espacialização, para 1991 e 1996, acompanhará a divisão da cidade por anéis, tal como foi exposto no trabalho “A cidade dos anéis” (Taschner e Bógus, 2000).
Tabela 1 – Município de São Paulo: população favelada
Ano
População favelada
1980
1991
1996
335.344
711.032
747.322
Fonte: FIBGE, Censos Demográficos de 1980 e 1991 e Contagem Populacional 1996.
17
Favelas em São Paulo - censos, consensos e contra-censos
Tabela 2 – Município de São Paulo: taxas de crescimento anuais
para a população total e a população favelada, 1991-1996, por anel, em %
Anel
Central
Interior
Intermediário
Exterior
Periférico
Total
População total
-2,79
-2,43
-1,44
-0,51
2,48
0,40
População favelada
0
-12,24
-3,11
-1,32
3,06
1,00
Fonte: FUBGE, Censo Demográfico de 1991 e Contagem Populacional de 1996.
A taxa de crescimento da população favelada, entre 1980 e 1991, foi de 7,07%
anuais, bem maior que a taxa de crescimento da população municipal no mesmo período
(1,16% anuais). Embora os dados censitários forneçam números bem, inferiores aos
da Fipe/Sehab (quase 2 milhões de pessoas em favelas em 1993), mostram um
crescimento significativo dos favelados no período. Isso parece ser um consenso entre
os estudiosos do tema – foi nessa década que os favelados se espalharam no tecido
urbano e se adensaram.
Entre 1991 e 1996, a população favelada paulistana continuou a crescer mais
que a população como um todo: 1% ao ano, enquanto que a total aumentou a apenas
uma taxa de 0,4% anuais. E, assim como para o município, o crescimento da população
favelada foi estritamente periférico. Pela Tabela 3 percebe-se que a taxa de incremento
da população favelada é positiva e bastante alta apenas no anel periférico.
Assim como o crescimento dos domicílios do município como um todo é nitidamente
periférico, os domicílios das favelas também crescem mais abundantemente no anel periférico, conforme a Tabela 2. É interessante notar que, embora as taxas de crescimento
dos domicílios totais sejam positivas nos anéis central, interior e intermediário, as respectivas taxas de crescimento populacional são negativas (Tabela 3), apontando para a
hipótese de que o número de pessoas por moradia deve estar diminuindo muito na área
Tabela 3 – Município de São Paulo: taxas de crescimento anual
para os domicílios totais e favelados, 1991-1996, por anel, em %
Anel
Central
Interior
Intermediário
Exterior
Periférico
Total
Domicílios totais
0,72
0,92
1,06
1,72
4,78
2,67
Domicílios favelados
0,00
-10,44
-0,76
1,32
6,05
3,79
Fonte: FUBGE, Censo Demográfico de 1991 e Contagem Populacional de 1996.
18
Cadernos Metrópole – n. 5
Tabela 4 – Município de São Paulo: proporção de domicílios favelados,
por anel, 1991-1996
Anel
Central
Interior
Intermediário
Exterior
Periférico
Total
Proporção 1991
0,05
0,62
4,17
5,82
9,15
6,03
Proporção 1996
0,00
0,34
3,81
5,71
9,73
6,37
Fonte: FUBGE, Censo Demográfico de 1991 e Contagem Populacional de 1996.
central da cidade. Para o total do município, a densidade domiciliar passou de 3,9, em
1991, para 3,5, em 1996.
O numero de domicílios do município que era de 2.435.346, em 1991, aumentou
para 2.778.558, em 1996, um aumento portanto, de 343.212, pouco menos que o
dobro do incremento populacional nestes 5 anos, de 192.867 pessoas. O aumento da
população favelada foi de 36.290 pessoas, ligeiramente maior que o de casas faveladas
(30.013). Esse aumento de unidades domiciliares deu-se, sobretudo, no anel periférico,
com incremento de quase 28 mil moradias. No anel exterior, o aumento foi de 3.227
domicílios, enquanto nos 3 anéis centrais contatou-se uma perda de mais de 1.200 casas
em favelas.
Existem distritos paulistanos onde mais de 40% da população é favelada, como Vila Andrade, na zona sul – em 1991, tinha 42.735 da sua população morando em favelas,
percentual que aumentou, em 1996, para 45,69%. Tanto em 1991 como em 1996, Vila
Andrade, na zona sul, Jaguaré, na zona oeste e Pedreira, também na zona sul, eram os
que apresentavam maior percentual de população favelada. Muitos distritos da parte sul
do tecido urbano paulistano têm cerca de 20% da população morando em favelas, como
Cidade Dutra (20,04% em 1991 e 21,22% em 1996); Jardim São Luís (19,62% em 1991
e 21,01% em 1996); Capão Redondo (20,78% em 1991 e 18,65% em 1996); Grajaú
(18,95% em 1991 e 19,50% em 1996); Jardim Ângela (18,24% em 1991 e 15,75%
em 1996). Na zona norte, Brasilândia e Cachoeirinha têm muitos favelados (15,50% e
15,35% em 1991 e 16,60% e 16,57% em 1996). Na zona leste, Sapopemba (10,71%
em 1991 e 9,31% em 1996) lidera o ranking. Deve-se notar que, na zona leste, a maior
parte dos distritos dos anéis exterior e periférico apresenta população favelada, mas com
proporção menor que na zona sul. Os mapas anexos mostram setores censitários com
favelas em 1991 e a proporção de domicílios favelados por distrito de 1991 e 1996.
O que se percebe é que tanto a localização como o crescimento da população
favelada se dá, fundamentalmente, em zonas de preservação ambiental, tanto em zona de
mananciais como na região montanhosa ao norte de São Paulo, o que configurava sério
problema de saúde publica e do meio ambiente.
19
Favelas em São Paulo - censos, consensos e contra-censos
Perfil populacional
Tanto em 1991 como em 1996, a proporção de mulheres era ligeiramente
superior à de homens favelados (50,23% em 1991 e 50,33% em 1996). Essa é uma
característica populacional da cidade como um todo, mais marcada ainda que entre a população favelada. Em 1996, 52% da população municipal era de mulheres. Na população
total, a razão de masculinidade afasta-se mais de 50% quanto mais central for o anel estudado dentro do tecido urbano: assim, nos anéis central e inferior aproxima-se de 55%,
no anel intermediário era de 53% e nos exterior e periférico, de 51%. A essa variação por
sexo deve estar associada a variabilidade espacial em relação a renda, escolaridade e categoria socioocupacional (conforme definida pelos projetos Pronex, em Queiroz Ribeiro,
2000). Como a expectativa de vida é maior para o sexo feminino, e isso acentua-se nas
camadas mais ricas, em que estão as classes mais favorecidas, há presença maior de
mulheres em grupos etários mais altos.
É interessante notar que a diferenciação por anel não ocorre na população favelada, nem em 1991 nem em 1996. Como isso se repete para outras variáveis, a hipótese da invariabilidade da população favelada por anel deve ser verdadeira. Em relação
às categorias scioocupacionais, por exemplo, a análise fatorial, como os 2.103 setores
censitários favelados da área metropolitana de São Paulo (13,64% dos 15.422 setores censitários da Grande São Paulo em 1991), apontou homogeneidade da tipologia
socioocupacional: as categorias presentes em todos os setores favelados formam os
proletários secundário e terciário e o subproletariado, numa proporção semelhante.
Para o município como um todo, continuava nítida, em 1996, a proporção diferenciada de jovens e velhos por anel, com maior peso da população entre 0 e 15 anos no
anel periférico, onde chega a alcançar 30% em 1996, contra 15,06% no anel central. Inversamente, a proporção de pessoas com 60 anos e mais é pequena na periferia (4,99%),
subindo nos anéis interior (16,84%) e central (14,85%). Na população favelada, tanto em
1991 como em 1996, vai existir quantidade maior de jovens em relação à população como um todo, mas de forma indiferenciada por anel. A proporção de pessoas entre 0 e 15
anos nas favelas foi de 41% em 1991 e 37% em 1996.
Em relação à cor, para o município como um todo, a proporções de pretos e pardos, em 1991, era de 29,28%, sendo que a proporção de não brancos aumentava em
direção à periferia. Na população favelada, 53% se compõe de pretos e pardos, de forma
indiferenciada entre os anéis. A associação cor/pobreza é nítida em São Paulo, mostrando-se espacialmente na concentração de não brancos nas zonas menos favorecidas:
favelas e periferias.
Embora a Organização Mundial de Saúde estime em 10% o percentual de deficientes de uma população, os dados do Censo Demográfico de 1991 mensuraram
98,43% de pessoas sem nenhuma deficiência nas favelas paulistanas. Mesmo assim,
20
Cadernos Metrópole – n. 5
existem quase 12 mil seres humanos com alguma deficiência morando nas condições
precaríssimas da favela. Entre os deficientes, há uma maioria (2,382 ou 20,23%) de
deficientes mentais. O dado de deficiência física e/ou mental teve maioria de respostas
“deficiência ignorada” na favela (mais de 5.500 casos), o que prejudica sua análise. Entre
a subpopulação dos chefes, o percentual de deficientes era de 1,29%; para os chefes
favelados, 1,24%. Ou seja, não havia diferença entre a população total e favelada.
Entre os 711.032 favelados computados pelo Censo Demográfico de 1991, em
São Paulo, 349.467 (apenas 50%) são migrantes. Desses migrantes, 27% estão no município há menos de 5 anos. Apenas 81 mil favelados chegaram a São Paulo após setembro
de 1986 (11,38% do total). Em 1996, o fluxo migratório é ainda menos representativo nas
favelas municipais: 8,56% da população favelada não residia no município em setembro
de 1991. Observa-se que o percentual de migrantes é maior na população favelada do
que na população total, na qual, em 1996, atingia 5,08%. Mesmo assim, não se compõe
apenas de uma migração recente: 56,2% dos migrantes favelados em 1991 estavam no
município há mais de 10 anos. Entre os chefes, o tempo de permanência na capital é
maior: apenas 17,18% estavam em São Paulo há menos de 10 anos. Surpreende o fato
que entre a população favelada há menos de 10 anos no município em 1991 (153.022
pessoas, 21,52% da população favelada), 60.171 (quase 40%) seja oriunda de zona
rural.
A principal região de origem é o Nordeste, de onde vieram 71,66% dos favelados
não naturais do município. Em 1991 computaram-se alguns poucos favelados europeus
(da Itália e Portugal), da América Latina (Paraguai e Bolívia) e mesmo alguns sírios (em
Sapopemba) e japoneses. Entre estrangeiros e naturalizados, existiam 340 favelados.
O perfil da origem (naturalidade) reflete-se na procedência: 73,75% da população há
menos de 10 anos em São Paulo veio do Nordeste. Não se observou diferenciação na
procedência dos favelados por anel. Em 1996, a predominância nordestina entre os migrantes favelados se mantém: 69,36% são oriundos do Nordeste; para a população como um todo, esse percentual desce para 53,42%. O perfil de procedência é distinto entre os favelados e o os migrantes como um todo: o percentual de nordestinos é menor na
população total, mas o de procedentes do Sudeste e do Sul é maior: (25,64% e 3,94%
na população total contra 12,15% e 1,50% na população favelada, respectivamente). A
proporção de procedentes do Centro-Oeste é equivalente e a de estrangeiros, quase
zero nos favelados, é de 3% no total da população.
Pinceladas no perfil socioeconômico
A população favelada é nitidamente menos escolarizada que a do município de
São Paulo como um todo. Em 1991, 26% da população favelada acima de 5 anos não
Favelas em São Paulo - censos, consensos e contra-censos
21
sabia ler nem escrever, ou seja, sequer conseguia ler ou escrever um bilhete simples. Para a população municipal, essa porcentagem era bem menor, de 10,55%. Entre os favelados, o percentual de analfabetos era indistinto por anel; já no tecido municipal, o aumento
em direção ao anel periférico era nítido, com pouco mais de 5% de analfabetos nos anéis
centrais, 7% no intermediário, 10% no exterior e 13,5% no periférico.
Em1996, 29,94% dos maiores de 5 anos favelados não apresentavam nenhum
ano de escolaridade formal. Na outra ponta da meada, apenas 0,54% dos favelados
apresentavam 12 e mais anos de escolaridade. Se, no município, a escolaridade variava
por anel, sendo maior nos anéis central e interior, entre os favelados a distribuição por local
da trama urbana é indiferenciada. Entre os chefes favelados, 12,86% não apresentavam
nenhum ano de escolaridade, enquanto que para os chefes como um todo essa porcentagem atingia apenas 5,98%. Entre os chefes, 11,71% dos paulistanos tinham mais de 12
anos de escolaridade formal versus 0,30% dos chefes favelados. Percebe-se como forte
característica dos favelados, em qualquer local do tecido urbano, a baixa escolaridade e a
alta taxa de analfabetismo, quer absoluta, quer comparada com a paulistana.
Quando se caminha pelos meandros de uma favela, um elemento recorrente
costuma ser o templo, em geral evangélico. Entre a população local menos politizada e
com valores mais estremecidos pela vida metropolitana, aumentou bastante a conversão
às novas seitas protestantes, que enfatizam a necessidade de destruir o diabo em rituais
de exorcismo. “É o exorcismo, mais do que a adesão a uma ética de conversão, que
está em destaque em algumas dessas novas religiões. Por trás dele, a idéia de um mal
absoluto que explicaria explosão de criminalidade violenta é a crença mais forte dessa
população” (Zaluar, 1998, p. 224). Foi surpresa, assim, que 7,15% da população favelada tenha se declarado sem religião, em 1991, proporção maior do que a de evangélicos
pentecostais (6,67%). A maioria se declarou católica: 81,20%.
Outra especificidade da população favelada aparece na renda: entre os favelados
acima de 10 anos, 32,23% usufruíam de renda de até 2 salários mínimos mensais em
1991; para a população como um todo, essa percentagem era de 24,96%. Na população
como um todo, quase 7% das pessoas com 10 anos e mais ganhavam mais de 10
salários mínimos mensais; entre os favelados, apenas 0,26% (uns raros 1.314 indivíduos)
declararam ter essa renda. Mesmo o percentual dos sem rendimento era mais alto na
favela – 45%, e 38% no total do município. Não há diferenciação de rendimentos entre
os favelados dos diversos anéis: são todos igualmente pobres. Já na população total, a
renda concentra-se nos anéis interior e central, diminuindo à medida que se afasta do
centro geográfico: entre os extratos mais altos, com mais de 20 salários mínimos, os percentuais vão baixando do anel interior (7%) aos anéis intermediários (4%), exterior (1,3%)
e periférico (0,7%).
A Tabela 5 mostra que a renda media da população favelada que usufruía de algum
rendimento era inferior a 2 salários mínimos, sendo inferior no anel central e pouco maior
22
Cadernos Metrópole – n. 5
no anel interior. Isso pode estar sendo influenciado pelo pequeno número de pessoas
faveladas com rendimento nesses anéis (115 no anel central e 2.594 no anel interior).
Nos outros anéis, a renda média era semelhante. Já na população como um todo, é nítida
a distinção de renda entre os anéis, sendo a média maior nos anéis interior e central,
decrescendo em direção à periferia. A renda média da população favelada era mais de 2
vezes menor que a renda média da população em geral.
Em relação à renda dos chefes, a diferença entre favelados e totais é ainda maior,
de quase 4 vezes. Novamente, os rendimentos médios dos chefes paulistanos apresentam
certo gradiente, descendo do anel interior para o periférico. Entre os favelados nos anéis
mais centrais há uma pobreza extrema; no anel interior, a riqueza do meio é, de algum
modo, assimilada pelos chefes favelados; nos outros 3 anéis as médias estão próximas.
Nota-se, entretanto, a especificidade da pobreza monetária dos favelados. São os
mais pobres, em qualquer anel em geral. Os chefes favelados são menos pobres, do anel
interior, têm ainda menor renda média do que os chefes paulistanos do anel periférico.
Para a população como um todo, o fenômeno se repete: sempre a renda média na favela
é inferior à renda da população no local mais pobre, o anel periférico. Contrariamente ao
descrito sobre o Rio de Janeiro, onde “as características de renda e de educação não
distinguem as favelas dos demais bairros populares, muito embora as situações de maior
pobreza se encontrem majoritariamente fora da favela” (Preteceille e Valladares, 2000, p.
399), em São Paulo a favela se caracteriza como setor urbano em que se concentram os
mais pobres e os com menos escolaridade.
Se, no município, 51% da população com mais de 10 anos trabalhou, ha bitualmente, nos 12 meses que antecederam o Censo Demográfico de 1991, na favela
o quadro não se mostrou distinto, com 52% nessa situação. Para o município como um
todo, o percentual de indivíduos sem trabalho habitual crescia em direção à periferia. Na
favela, esse fenômeno se repetia com menor intensidade.
Tabela 5 – Município de São Paulo: renda média da população e dos chefes
da favela e do município, por anel, 1991, em salários mínimos
Anel
População
Chefes
Favelada
Total
Favelados
Total
Central
Interior
Intermediário
Exterior
Periférico
0,98
2,25
2,02
1,95
1,97
6,43
7,23
5,77
4,11
3,34
1,32
2,83
2,36
2,30
2,31
11,23
12,71
10,46
6,82
6,38
Total
1,97
4,49
2,32
8,41
Fonte: FIBGE, Censo Demográfico de 1991.
Favelas em São Paulo - censos, consensos e contra-censos
23
O desemprego aparece como um problema mais intenso na favela do que no
município como um todo: em 1991, havia 8% da população municipal acima de 10
anos sem ocupação remunerada procurando emprego: esse percentual subia para 12%
entre os favelados sem remuneração. Ou seja, em 242.854 pessoas faveladas sem
ocupação, havia quase 29 mil procurando emprego. Entre os sem ocupação não procurando emprego, o percentual favelado é também nitidamente maior: 9,63% versus 5,26%
da população total. Alias, a percentagem de aposentados é superior os desocupados
como um todo que entre os desocupados favelados: 12,14% contra 4%, assim como
a de pensionistas: 3,87% versus 1,32%. As porcentagens de estudantes e afazeres
domésticos são equivalentes. Entre os 243 mil favelados sem ocupação remunerada,
quase 38% , mais de 90 mil pessoas, dedicavam-se a afazeres domésticos.
Concluindo, na favela, o desempregado parece ser mais candente, tanto entre os
que estão procurando emprego como entre os simplesmente desocupados. Os 52 mil
favelados que estavam sem ocupação em 1991, procurando ou não emprego, mas que
não eram aposentados, nem pensionistas, nem estudantes, nem donas-de-casa, nem viviam de renda, representavam 21,5% do total dos desocupados na favela. Para o município, a proporção dos sem ocupação + os procurando emprego representava 13,3% dos
desocupados. Aposentados, pensionistas e pessoas que vivem de renda são mais raros
na favela: apenas 2,32% da população favelada total acima de 10 anos era aposentada em 1991, e 1,17% era pensionista. Na população como um todo esses percentuais
chegavam a 6,89% e 2,83% respectivamente.
O trabalhador favelado difere do não favelado também quanto à posição na
ocupação: apenas 6% da população acima de 10 anos do município como um todo era
empregada doméstica, enquanto que entre os favelados o percentagem sobe para 12%.
A grande massa populacional paulistana é de empregados do setor privado (62,25%). Na
favela, isso é ainda superior: 66,73%. Há pouquíssimos favelados empregadores (0,85%
contra 4,94% no município).
Contrariamente à expectativa, o percentual de trabalhadores por conta própria na
favela foi bastante próximo (16,15%) ao mesmo percentual no município (15,52%). Na
favela, não houve diferença espacial: para o município, o percentual de trabalhadores por
conta própria aumentava nitidamente em direção ao anel periférico.
A comparação das categorias socioocupacionais entre os chefes favelados
e os chefes totais mostrou, como era esperado, profunda diferença. A proporção de
subproletariado nas favelas supera a da população em geral. As elite dirigente e intelectual
são praticamente inexistentes na favela. A favela parace ser o locus do proletariado
secundário e terciário.
Se, na população como um todo, a espacialização das categorias era nítida, com
a elite dirigente e intelectual se concentrando no nível interior e o subproletariado no anel
periférico, entre os favelados torna-se mais difícil perceber a especificidade das favelas
24
Cadernos Metrópole – n. 5
Tabela 6 – Município de São Paulo: categorias socioocupacionais
dos chefes totais e favelados, 1991, em %
Categoria
Ocupações agrícolas
Elite dirigente
Pequena burguesia
Elite intelectual
Classe média
Proletariado terciário
Proletariado secundário
Subproletariado
Chefes totais
Chefes favelados
0,49
3,04
8,37
8,08
23,71
31,72
19,21
5,37
4,02
0,06
3,18
0,33
7,70
39,51
32,21
13,01
Fonte: FIBGE, Censo Demográfico de 1991, categorias socioocupacionais Pronex.
dentro da trama urbana. Como já foi dito, a análise fatorial das categorias pelos pelos
2.103 setores censitários favelados da metrópole não apontou nenhuma diferença notável.
A proporção de subproletários nos 5 anéis variou pouco. Foi maior no anel central, mas o
pequeno número de chefes analisado nesse anel – apenas 52 – pode estar influindo no
resultado. Uma das hipóteses da análise fatorial é que existiriam pelo menos 2 tipos de
favelas em relação à ocupação dos moradores: uma mais proletária, com maioria de operários da indústria de transformação, e uma outra mais ligada ao subproletariado e aos
serviços. Essa hipótese não se verificou. As favelas, pelo menos em relação às categorias
socioocupacionais, paracem ser espaços bastante homogêneos.
Em relação ao proletariado secundário, percebe-se maior proporção de chefes
ocupados em favelas localizadas no anel periférico (46,85% dos chefes desse anel) e
uma visível diminuição no anel interior (16,91% dos chefes do anel). No anel interior a
proporção de proletariado terciário era 47,21%, enquanto que no periférico alcançava
56,41%. Nessa categoria, a diferença entre os dois anéis não era grande.
Concluindo, os favelados trabalham em proporção semelhante aos não favelados, mas:
• entre os seus desocupados, há mais desempregados do que aposentados e pensionistas, quando se compara com a situação dos desocupados municipais;
• a proporção de domésticos é nitidamente superior do que na população total, dentro
da categoria subproletariado;
• não há diferença entre trabalhadores por conta própria na favela e na população total;
• tanto entre favelados como entre não favelados, o percentual dominante é de empregados do setor privado;
• a proporção de empregados favelados com carteira de trabalho é equivalente (63%)
à de não favelados (62%).
25
Favelas em São Paulo - censos, consensos e contra-censos
Considerações finais
1) A própria definição de favela do IBGE, que considera e computa apenas os
aglomerados com “no mínimo 51 domicílios, ocupando ou tendo ocupado até período recente terreno de propriedade alheia (pública ou particular), dispostos, em geral, de forma
desordenada e carentes, na sua maioria, de serviços públicos essenciais” (IBGE – Base
Operacional, Manual de delimitação de setores e zonas de trabalho GR-7.01) trouxe indeterminação à estimativa do fenômeno. Mas, mesmo quando se tenta corrigir um dos
prováveis erros, resulta inexplicável o diferencial em 1991, de quase 40% entre as estimativas IBGE corrigida e Sehab/Fipe, quando comparada à de 7% em 1980.
2) A variável que identifica o aglomerado “subnormal” no formulário do Censo 2000
não consta mais. Aliás, tanto no questionário da amostra como da não amostra, a parte
referente ao domicílio foi extremamente simplificada, com perda de dados importantes.
O desaparecimento de quaisquer referências a materiais de construção torna impossível
a quantificação dos domicílios rústicos, desconsiderando série histórica essencial para a
determinação de metas quantitativas da política habitacional. No conceito de déficit habitacional entram moradias rústicas, improvisadas e moradias com mais de uma família convivente. No Censo 2000 aparece a questão do improvisado e é possível saber a existência
de famílias conviventes. Mas, sem materiais, não dá para saber os rústicos – domicílios em
cuja construção há predominância de material improvisado (taipa não revestida, madeira
aproveitada, vasilhame, palha, sapé, adobe e similares). Assim, fica dificultado o dimensionamento do déficit de moradias. E os dados de favela que, mesmo de forma deficiente,
permitiam pelo menos verificar a evolução do fenômeno, foram também prejudicados.
3) Uma pergunta era recorrente: como estão e como ficariam as faveladas com
posse regularizada? A definição do IBGE incluía nessa categoria favelas regularizadas
em “período recente”. Dez anos? Pela definição, favelas em terras legalizadas deixam de
ser favelas, mesmo que fisicamente carreguem as marcas da irregularidade: ruas mais
estreitas, coeficientes de aproveitamento dos lotes mais altos, lotes menores, etc.
4) “Neste artigo, o que se buscou foi retratar uma realidade em números, o que
encontra sua justificativa no esforço de trazer a publico um conjunto de dados sobre o
universo das favelas. Muito se fala a respeito dessa realidade, na maioria das vezes a partir do senso comum, experiências de vida ou reportagens sobre o assunto, sendo menos
comuns os levantamentos estatísticos a ela referentes” (Guimarães, 2000, p. 372).
• Uma das primeiras coisas que os números indicam é a existência de um processo de
crescimento das favelas – a população favelada tem crescido, desde 1980, a taxas
maiores do que a população municipal. No período entre 1980 e 1996, a população
favelada cresceu a uma taxa anual de 5,14% e a população municipal a 0,92%.
26
Cadernos Metrópole – n. 5
• As favelas alocam-se, preferencialmente, na periferia, e sua taxa de crescimento é também maior na periferia. Entre 1991 e 1996, quando o incremento favelado era de 1%
anual, o do anel periférico foi de 3,06%; no aumento de 30 mil domicílios favelados no
período, 93% deram-se na periferia. A população de favelados na população municipal alcançou 6,37% em 1996, mas, no anel periférico, chegou a quase 10% (9,73%).
Em alguns distritos é elevada, como em Vila Andrade, onde ultrapassou 40%.
• A razão de masculinidade é maior na população favelada do que na total – ou seja,
a proporção de homens é maior em relação à população municipal –, e a população
favelada é mais jovem; uma especificidade da população favelada é sua proporção
de não brancos (53% de pretos + pardos; esse percentual, para o município de São
Paulo, não atingia 30%).
• Embora os favelados sejam não naturais, oriundos sobretudo do Nordeste, não são
migrantes recentes. Apenas 81 mil chegaram à capital após 1986 (11,38% do total
dos migrantes) e 8,56% dos favelados não residiam em São Paulo em setembro de
1991. A relação direta favela-migração não se sustenta.
• Como perfil socioeconômico, a população favelada paulistana apresenta certa
especificidade: sua taxa de analfabetos é maior – 26% da população favelada e 10%
da municipal – sua renda é muito mais baixa – renda média de 1,97% salários mínimos em 1991, quando a renda municipal era de 4,49. A estrutura, tanto dos desocupados como dos ocupados, é distinta: são raros aposentados, pensionistas ou
pessoas que vivem de rendas na favela. Os desocupados favelados, em geral, estão
desempregados. Entre os ocupados, o percentual de domésticos, empregados ou
por conta própria é superior ao da população como um todo. Os favelados são majoritariamente empregados do setor privado, com carteira de trabalho. A comparação
da estrutura de categorias socioocupacionais entre chefes favelados e chefes totais
mostrou dominância, entre os favelados, de proletários e subproletários.
• Parece não existir grande especificidade populacional entre as distintas áreas faveladas. As favelas diferem quanto ao grau de estruturação, ao melhoramentos, às condições sanitárias, etc. Mas há indicações de grande semelhança entre sua população
em relação às categorias socioocupacionais, renda, escolaridade, faixa etária e cor.
A população favelada é mais pobre, menos escolarizada, com maior proporção de
subproletários, não brancos e jovens do que a população como um todo.
27
Favelas em São Paulo - censos, consensos e contra-censos
Notas
*O título deste trabalho foi inspirado no livro da Abep (Associação Brasileira de Estudos Populacionais) “Censos, Consensos e contra-sensos“, oriundo do III Seminário Metodológico dos
Censos Demográficos, Ouro Preto, junho de 1984.
Este paper integra o conjunto de pesquisas “ Metrópole, desigualdades socioespaciais e governança urbana”, que analisa comparativamente as metrópoles Rio de Janeiro, São Paulo, Belo
Horizonte e Porto Alegre, sob a coordenação nacional de Luiz César de Queiroz Ribeiro.
1. Segundo definição da Secretaria Municipal da Habitação e Desenvolvimento Urbano
Referências bibliográficas
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de favela. Rio de Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas.
A divisão favela-bairro
no espaço social do Rio de Janeiro*
Luciana Corrêa do Lago
Luiz César de Queiroz Ribeiro
As “favelas” – criação genuinamente carioca, não observada em nenhuma outra cidade, mesmo no Brasil – não constituem puramente impiedoso crime contra a estética, elas são particularmente uma grave e
permanente ameaça à tranqüilidade e à salubridade pública. Erigidas contra todos os preceitos da higiene:
sem água, sem esgotos, sem a mínima parcela de limpeza, sem remoção de lixos; são como largas sentinas
cobertas de dejetos e dos demais resíduos da existência humana, amontoados de imundícies e podridões
repastando nuvens de moscas, infiltrando nos quarteirões da cidade toda a sorte de moléstia e de impurezas.
Desprovidas de qualquer espécie de policiamento, construídas livremente de latas e frangalhos em terrenos
do Patrimônio Nacional, libertadas de todos os impostos, alheias a toda ação fiscal: são excelente estímulo
à indolência, atraente chamariz de vagabundos, reduto de capoeiras, valhacoitos de larápios que levam a
insegurança e a intranqüilidade aos quatro cantos da cidade pela multiplicação dos assaltos e dos furtos.
(Trecho do discurso “Para a remodelação do Rio de Janeiro”, pronunciado pelo médico Mattos Pimenta, um dos inventores do “problema favela”, no Rotary Club, outubro de 1926).
A única solução que existe para se recuperar um território que está em poder do inimigo é iniciar uma ação
bélica. Trata-se de pôr em prática uma tática de guerra, com a ocupação, ostensiva e poderosa de todo o
território a ser conquistado. Ocupada militarmente a área reconquistada, os moradores devem ser ajudados a sair dali, pois o território reconquistado vai ser liberado da presença do crime. Vai ser reflorestado,
se for o caso. Ou vai servir para uma escola, para um posto de saúde ou para uma delegacia. Enfim, vai ter
uma destinação pública e social. Ao reassentar os moradores em suas novas residências, o poder público
deve cuidar para que eles possam ter, daí em diante, a mesma qualidade de vida de qualquer cidadão
carioca, livre de quadrilhas e de chefes de gangues.
(Trecho de artigo publicado por Sandra Cavalcanti no Jornal do Brasil de 4 de novembro de 1996,
intitulado “Por trás das balas”).
30
Cadernos Metrópole – n. 5
Essas duas citações ilustram a longevidade do chamado “problema da favela” no
Rio de Janeiro. Expressam, também, de maneira condensada, a trajetória da principal (di)
visão da sociedade carioca: favela-bairro. Desde o início do século, com efeito, as favelas
vêm sendo representadas como pertencendo a um outro mundo social e cultural, como
se fossem “uma cidade à parte” como já escrevia Olavo Bilac. A proximidade espacial
com os “bairros de classe média alta”, urbanisticamente organizados e providos de equipamentos e serviços urbanos, produziu forte contraste social, que serve de evidência
autodemonstrada da existência de duas cidades.
Durante a década de 70, no bojo da crítica à chamada”teoria da marginalidade
urbana”, buscou-se demonstrar o equívoco de discursos dualistas sobre as favelas,
mantidos pelas instituições, governos e por parte da academia. Como? Demonstrando
a existência de semelhanças entre as favelas e os espaços populares, em termos de
estrutura e práticas sociais e constatando que nas favelas não havia só imigrantes do
campo e que tampouco nelas se observava a sobrevivência da cultura folk. As favelas
passam a ser vista como “complexo coesivo, extremamente forte em todos os níveis:
família, associação voluntária e vizinhança” (Boschi, 1970). Outros demonstraram que a
vida nas favelas era marcada “pela amizade e espírito cooperativo e relativamente livre de
crime e violência” (Perlman, 1976, p. 136). Encontrou-se na favela uma estrutura social
diversificada, chegando-se mesmo a observar que existia nela um espaço social diversificado, inclusive com setores identificados como a “burguesia favelada”, e se fazia política
como nos outros espaços populares (Silva, 1967). Também se identificou a existência de
relações de sociabilidade entre “mundo da favela” e “mundo dos bairros”, em primeiro
lugar pela inserção dos moradores da favela no mercado de trabalho.
Nos dias de hoje, as representações dualistas das favelas retornam ao debate público sobre a sociedade urbana carioca. Em primeiro lugar, pelos efeitos, no campo acadêmico, da absorção dos conceitos e noções teóricas presentes no debate internacional sobre
os impactos sociais e espaciais das mudanças econômicas nas cidades. Tornou-se expressão de prestígio intelectual o uso de termos como gueto, exclusão social e nova marginalidade nas análises sobre o “problema contemporâneo da favela”. Assume-se como axioma
que as mudanças em curso no mundo do trabalho estariam desfazendo as relações de
integração da favela com a cidade. A inclusão do “narcotráfico” e da “violência urbana” na
agenda da academia reforça a legitimidade da concepção dualista (Zaluar e Alvito, 1998),
uma vez que a vida organizativa da favela estaria ameaçada de decomposição. Não raro,
encontramos menções que associam as favelas cariocas aos guetos negros americanos.
A utilização freqüente pela mídia de metáforas como “cidade partida”, “desordem urbana”, entre outras, por um lado, vem dotando a concepção dualista da favela
de legitimidade social. Por outro lado, emergem demandas, por parte de governos e
instituições, ligadas à gestão pública da pobreza, de novos discursos sobre a favela que
subsidiem a política de “integração da favela ao bairro”.
A divisão favela-bairro no espaço social do Rio de Janeiro
31
Em resumo, assistimos hoje à produção intensa de imagens, idéias e práticas
que reeditam o antigo mito da favela como um outro mundo social, à parte da cidade,
diferente, identificado pela carência e desorganização.
Propomo-nos neste trabalho a submeter essa (di)visão da cidade do Rio de
Janeiro e uma reflexão crítica, a partir da avaliação empírica das diferenças demográficas
e sociais entre o mundo social da favela e o da cidade. O texto está dividido da seguinte
maneira: na primeira parte examinamos a evolução da população moradora em favelas no
período 1940-1996; na segunda, analisamos os principais traços sociodemográficos da
população residente nas favelas e nos bairros da cidade; por fim, avaliamos a distância
social entre moradores em favela e em bairros, segundo a renda.
Questões conceituais e metodológicas
Os conceitos de espaço e de distância sociais são utilizados classicamente na
sociologia para desvendar os mecanismos que regulam os processos de interação
humana nas formas societárias de vida coletiva. Eles estão presentes nas obras de
autores como Simmel (1971), Sorokin (1973) e Park (1924), entre outros. Podemos,
no entanto, identificar duas concepções distintas desses conceitos: uma psíquico-social,
que entende a distância social como o resultado de atitudes de simpatia e antipatia de
certos grupos em relação a outros (Bogardus, 1959), e outra, propriamente sociológica
(Sorokin, 1973; Bourdieu, 1979), na qual a distância social entre os indivíduos resulta
das relações das posições sociais nas quais estão inseridos. Nessa segunda corrente,
a subjetividade dos indivíduos tem importância, mas como resultado da sua inserção no
mundo social, já que as “similitudes na posição social dos indivíduos ocasionam, geralmente, modos de pensar semelhantes, uma vez que implica hábitos, interesses, costumes, valores e tradições inculcadas nas pessoas por grupos sociais semelhantes, aos
quais estas pessoas pertencem” (Sorokin, 1973, p. 227).
É na sociologia de Bourdieu (1979, 1993), contudo, que o conceito de distância
social ganha importância analítica. Em sua visão espacial da sociedade, Bourdieu
compreende a sociedade como formada por relações de proximidade e separação que
são, antes de mais nada, relações hierárquicas. Por outro lado, os lugares no espaço
social são definidos pelas posições geradas pela distribuição desigual do volume e da
composição do capital (econômico, social e simbólico) que expressam as relações de
dominação na sociedade entre as classes sociais.
A idéia de diferença, de separação, está no fundamento da própria noção de
espaço, conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores umas às
outras, definidas umas em relação às outras por sua exterioridade mútua e
por relações de proximidade, de vizinhança ou de distanciamento e, também,
32
Cadernos Metrópole – n. 5
por relações de ordem, como acima, abaixo e entre. Várias características dos
membros da pequena-burguesia, por exemplo, podem ser deduzidas do fato
de que eles ocupam uma posição intermediária entre duas posições extremas,
sem serem objetivamente identificáveis e subjetivamente identificados com
uma ou com outra. (Bourdieu, 1993, p. 18).
Compreendendo a cidade como a “objetivação” do espaço social, a análise das
proximidades e distâncias sociais entre a favela e o restante da cidade implica avaliar
a sua posição na (di)visão do mundo social carioca. Essa análise, porém, não é trivial,
pois implica superar duas tendências presentes no “bom senso”, cuja conseqüência é
a substancialização da ordem socioespacial. Com efeito, elas produzem em nós a ilusão
de que as propriedades sociais de uma prática ou os atributos de um grupo podem ser
explicados por ele mesmo, sem levar em consideração que o real na sociedade é sempre
relacional e, como tal, socialmente construído.
A estrutura do espaço social se manifesta, em contextos mais diversos, sob a
forma de oposições espaciais, o espaço habitado (ou apropriado) funcionando
como uma espécie de simbolização espontânea do espaço social. Não há espaço em uma sociedade hierarquizada que não seja hierarquizado e que não
exprima as hierarquias e as distâncias sociais, sob uma forma (mais ou menos)
deformada e sobretudo mascarada pelo efeito de naturalização que implica a
inscrição durável das realidades sociais no mundo natural: as diferenças produzidas pela lógica histórica podem assim parecer surgidas da natureza das
coisas (é suficiente pensar na idéia de fronteira natural). (Idem, p. 160)
A avaliação crítica da separação entre favela e cidade deve, portanto, começar
pela crítica do “bom senso”, que sustenta essa distinção social, para, posteriormente,
re-construí-la cientificamente como objeto de conhecimento. Seguindo as pegadas de
Wacquant (2000), a nossa tarefa comportaria as seguintes etapas:
1) identificar as categorias do senso comum com as quais se produzem discursos
mais ou menos eruditos sobre as favelas e seus congêneres (mocambos, baixada, etc.);
2) re-construir a história dessas categorias, procurando identificar quais as suas
funções no “sistema de classificação da sociedade brasileira”, ou seja, nas formas hegemônicas pelas quais as divisões e desigualdades sociais são representadas, que podem
ser de isolamento, separação e reserva de força de trabalho;
3) analisar a hierarquia do espaço social, fazendo a necessária distinção entre a
condição social da favela, isto é, as suas características sociodemográficas, urbanísticas
e ambientais, e sua posição no espaço social da cidade, o que implica pensar a favela como um lugar na hierarquia socioespacial do Rio de Janeiro. A maioria das análises restringe-se a avaliar a condição social da favela, nas quais busca-se descrever as características e os atributos que explicariam a posição de isolamento ou separação e inferioridade;
4) analisar a demanda de discurso público sobre a marginalidade. Há uma investida
intelectual na formação do discurso sobre a marginalidade e a exclusão que não está
desconectada das necessidades da gestão social da pobreza via intervenção pública.
33
A divisão favela-bairro no espaço social do Rio de Janeiro
Muitas vezes, o surgimento de problema na manutenção da ordem social e simbólica
da cidade gera novas demandas, pelas instituições encarregadas pela gestão social da
pobreza, de discursos públicos sobre os pobres, suas formas de vida e de moradia.
A nossa análise não pretende percorrer todas essas etapas. Propomo-nos apenas
a identificar a situação social das favelas a partir da avaliação empírica das diferenças
sociodemográficas que as distanciam e aproximam da cidade. Para tanto, utilizaremos
fontes de informações diferentes, compreendendo períodos distintos: Censo de 1991 e
Contagem 1996. Ao final do texto esboçamos uma reflexão sobre a pertinência da separação da favela e da cidade na compreensão dos princípios de construção e reprodução
do espaço social da cidade do Rio de Janeiro.
Evolução da população residente em favela
Os dados censitários de 1950 a 1991 (Tabela 1) mostram que a taxa de crescimento anual da população residente em favelas do Rio de Janeiro começou a decrescer
na década de 60, sofrendo uma queda brusca na década de 70. Tal queda se deve a três
fatores. Em primeiro lugar, a diminuição do ritmo do crescimento populacional não foi relativa apenas aos residentes em favelas, mas a população carioca como um todo. No período de 1950-1960, a população cresceu cerca de 3% ao ano e os moradores em favela,
7% ao ano. Na década de 70, esses percentuais caíram para 1,8% e 2,5%, respectivamente. Nesse período, o movimento migratório em direção à metrópole do Rio de Janeiro
começava a perder o ímpeto verificado nos anos 40 e 50, e a capital, principal área de
atração desses fluxos, sofreu os impactos dessa mudança. Nota-se, entretanto, que a
proporção de moradores em favela, em relação ao total da população, continuou crescendo, até mesmo no período 1970-1980, quando a taxa de crescimento dos primeiros
alcançou seu menor valor (Tabela 1). Em outras palavras, o ritmo de crescimento da população moradora em favelas se manteve bem acima do dos demais moradores.
Tabela 1 – Crescimento da população total e residente em favela
no município do Rio de Janeiro, 1950/1991
Anos
Pop. RJ
Pop. favel.
Cresc. pop.
RJ a.a.
Cresc. pop.
fav. a.a.
Pop. fav./
Pop. RJ
1950
1960
1970
1980
1991
2.375.280
3.300.431
4.251.918
5.090.723
5.480.768
169.305
335.063
565.135
722.424
962.793
–
3,34%
2,57%
1,82%
0,67%
–
7,06%
5,37%
2,49%
2,65%
7,13%
10,15%
13,29%
14,19%
17,57%
Fonte: Censos Demográficos, FIBGE; Iplanrio, 1991.
34
Cadernos Metrópole – n. 5
O segundo fator relacionado à queda da taxa de crescimento da população moradora em favela, entre as décadas de 60 e 70, foi a “abertura” da periferia metropolitana aos trabalhadores pobres através da produção extensiva de lotes urbanos, iniciada
na década de 50 e expandida até os anos 70. Nesse período, o loteamento periférico,
com baixos investimentos em infra-estrutura e comercialização a longo prazo, tornou-se o
principal meio de acesso dos pobres à casa própria. Com efeito, houve o redirecionamento
dos fluxos migratórios inter e intra-regionais para essas novas áreas, especialmente os
oriundos do próprio município do Rio de Janeiro, o que gerou a diminuição do número de
migrantes na capital.
Por último, cabe mencionar os impactos da política de remoção de favelas nas
décadas de 60 e 70. Segundo Santos (1978), 175.800 pessoas haviam sido removidas até 1968, mas foi a partir desse ano, até 1973, que o programa foi mais sistemático e intenso. Vale mencionar o caráter seletivo de tal política, na medida em que 70%
dos domicílios removidos localizavam-se na Zona Sul, Tijuca e Méier. O resultado foi
a perda de representatividade das favelas da Zona Sul: se, em 1950, 25,4% da população favelada estava na Zona Sul, em 1970 apenas 9,6% ainda residiam na área
(Castro, 1979).
Esse conjunto de fatores alimentou a idéia difundida no final dos anos 70, de que
as favelas tenderiam a desaparecer do cenário urbano carioca. Entretanto, houve uma
retomada do crescimento das favelas na década de 80, tanto pela densificação das
antigas quanto pelo surgimento de novas.
Por que voltam a crescer as favelas na cidade do Rio de Janeiro, exatamente
no momento em que ocorreu forte queda do crescimento demográfico da cidade? Em
primeiro lugar, em razão da mudança da dinâmica do crescimento metropolitano do Rio
de Janeiro. Com efeito, o crescimento extensivo-periférico, que gerou oportunidades de
acesso à casa própria para amplos segmentos sociais entra em colapso, sobretudo pelo
encarecimento da terra e pela perda da capacidade de endividamento dos trabalhadores
em geral, atingindo aqueles com menor qualificação e sem proteção das leis trabalhistas.
Somem-se ainda as transformações na conjuntura política fluminense a partir de 1982,
data que marca o inicio da adoção, pelos poderes públicos locais (governo estadual e
municipal), de políticas de reconhecimento das favelas e dos loteamentos irregulares e
clandestinos como solução dos problemas de moradia das camadas populares. Essas
políticas, ao proporem a legalização da posse da terra e a urbanização das favelas, reduziram as incertezas quanto à manutenção dos moradores em suas ocupações e criaram
expectativas de melhorias das condições de vida, cujo resultado foi a redução das
barreiras para novas ocupações.
Nos anos 90, o ritmo de crescimento da população residente em favelas (1,6%
ao ano) mantém-se bem acima do ritmo referente ao da população não favelada (0% ao
ano). O resultado foi o aumento do peso dos que residem em favelas em relação ao total
35
A divisão favela-bairro no espaço social do Rio de Janeiro
Tabela 2 – População residente em favela e fora da favela
no município do Rio de Janeiro, 1991/1996
Cresc. absoluto
Grandes zonas
Centro/Zona Sul
Barra/Jacarepaguá
Zona Norte
Subúrbio
Zona Oeste
Total município RJ
favela
não
favela
16.110 -27.035
13.523 29.364
-2.636 -23.123
21.367 -57.672
22.725 79.308
71.089
842
Cresc. anual
favela
não
favela
2,4%
3,9%
-1,1%
0,8%
3,4%
1,6%
-0,8%
1,6%
-1,4%
-0,6%
1,3%
0,0%
% Pop. fav./ % Pop. fav./
pop.total 91 pop.total 96
14,9
15,0
12,6
20,6
9,6
16,1
17,0
16,6
12,7
21,8
10,5
17,2
Fonte: Censo Demográfico de 1991 e Contagem de 1996.
da população carioca, que passou, em cinco anos, de 16% para 17%. No entanto, essas
tendências variaram significativamente entre as diferentes regiões da cidade. As duas
zonas de expansão do município – o eixo elitizado da Barra/Jacarepaguá e o eixo popular
da Zona Oeste – apresentaram as maiores taxas de crescimento, tanto da população
moradora em favela (3,9% e 3,4% ao ano, respectivamente) quanto do morador do bairro
(1,6% e 1,3% ao ano). Nas três zonas consolidadas, todas com crescimento negativo da
população moradora no bairro, destaca-se a Zona Sul, com taxa de crescimento dos moradores em favelas de 2,4% ao ano, aumentando de 14,9% em 1991 para 17% em 1996
o peso desses residentes em relação à população total da região. A Zona Norte da cidade foi a única região que apresentou perda absoluta de população residindo em favela.
Como crescem em favela? Classicamente, atribuiu-se à migração, particularmente,
à do Nordeste, a causa do crescimento demográfico das favelas. Os dados censitários,
no entanto, indicam que a migração explica cada vez menos o acelerado processo de
favelização em curso na cidade. Na zona oeste, por exemplo, região que apresentou, entre 1991 e 1996, o maior incremento absoluto de população em favela (em torno de 22
mil pessoas), apenas 2 mil e 600 pessoas morando em favelas eram migrantes1 da década de 90. Podemos inferir que o surgimento e a expansão de novas favelas (localizadas
predominantemente na zona oeste) têm se dado através da mobilidade espacial no interior do próprio município, seja do bairro para a favela, seja de favelas consolidadas para
favelas recentes. A fuga do aluguel, tanto no mercado formal quanto informal, e a redução
da oferta de habitação ou lote popular explicam essa mobilidade em direção às favelas
periféricas. Vale lembrar que o valor do aluguel de um imóvel nas favelas das zonas Sul e
Norte pode equivaler, hoje, ao de um apartamento em Copacabana ou no Centro.
A mobilidade intramunicipal tem menor peso explicativo quando se observa o
incremento populacional nas favelas já consolidadas das zonas sul e suburbana. Na zona sul da cidade, cerca de 40% do incremento da população favelada, nos primeiros
36
Cadernos Metrópole – n. 5
cinco anos da década de 90, era composto por imigrantes de fora do município, em
sua maior parte do Nordeste. Nesse sentido, a possível “expulsão branca”, gerada pela
valorização imobiliária, de residentes mais pauperizados das favelas centrais deve ser
relativizada ante a possibilidade de “entrada” nesses espaços de uma população migrante
cujo perfil social era, em média, inferior ao dos já residentes. Na Tabela 3, observa-se o
perfil socioocupacional mais elevado do conjunto da população ocupada residente nas
favelas das zonas sul e norte, em comparação ao perfil dos migrantes nordestinos que
se dirigiram para essas áreas na década de 80. As redes familiares funcionam, para o
migrante recém-chegado, como importante mecanismo de acessibilidade à moradia e de
inserção na economia urbana. Por sua vez, a localização dessas favelas em áreas com
grande demanda por trabalho de baixa qualificação no setor de serviços e construção
civil se mantém como fator central para essa inserção do migrante.
Tabela 3 –Perfil socioocupacional da população ocupada
e do migrante nordestino ocupado, residentes nas favelas
da zona sul e da zona norte no município do Rio de Janeiro, 1991
Favelas das zonas
sul e norte
Pop. residente
Migrante NE
Categorias socioocupacionais
Elite
Pequena
burguesia
Classe
média
Operário
Prolet.
terc.
Subprolet.
1,3%
0,4%
3,4%
0,7%
17,0%
6,4%
20,9%
15,7%
37,3%
59,7%
19,8%
16,9%
Fonte: Censos Demográficos, FIBGE; Iplanrio, 1991.
Nota: elite: empregadores e profissionais dirigentes dos setores público e privado e profissionais
de nível superior; pequena burguesia: pequenos empregadores do serviço e comércio; classe
média: empregados em ocupações de rotina, supervisão, segurança, ensino básico e técnicos;
operários: trabalhadores da indústria e construção civil; proletários do terciário: prestadores de
serviço e comerciários; subproletários: domésticos, ambulantes e biscateiros.
A divisão favela-bairro no espaço
desigual da cidade
A população residente nas favelas do Rio de Janeiro é significativamente mais
jovem do que aquela morando nos bairros da cidade, confirmando um perfil etário que é,
de maneira geral, típico das áreas populares. Nesse sentido, é na Zona Oeste do município, área periférica popular, onde se encontra a menor diferença entre o perfil etário da
favela e do bairro: enquanto na favela cerca de 51% dos moradores tem até 24 anos, no
bairro esse percentual é de 45% (Tabela 4). Quanto mais nos aproximamos do centro,
maior a diferença de perfil e mais idosa é a população.
37
A divisão favela-bairro no espaço social do Rio de Janeiro
Tabela 4 – População por faixa etária segundo a localização do domicílio
na favela ou fora da favela, pelas grandes zonas do município do Rio de Janeiro, 1996
Grandes Zonas
Faixa etária - %
criança adoles.
jovem
adulto
maduro
velho
total
Centro/Z.Sul - favela
Centro/Z.Sul - não favela
21,0
9,8
7,1
4,5
19,6
14,5
34,0
31,5
13,8
24,1
4,5
15,6
100,0
100,0
Barra/Jacarepaguá - favela
Barra/Jacarepaguá - não favela
23,3
15,7
7,6
6,7
20,7
17,5
34,6
33,8
11,3
19,6
2,6
6,7
100,0
100,0
Z. Norte - favela
Z. Norte - não favela
22,6
11,0
8,3
5,4
19,5
14,6
30,8
30,4
13,5
23,5
5,2
15,2
100,0
100,0
Subúrbio - favela
Subúrbio - não favela
23,0
15,0
8,1
6,5
19,6
16,4
31,6
31,9
13,4
20,8
4,2
9,5
100,0
100,0
Z. Oeste - favela
Z. Oeste - não favela
23,7
19,1
8,7
7,6
19,5
18,4
31,1
32,0
13,1
16,9
3,9
6,0
100,0
100,0
Total RJ - favela
Total RJ - não favela
22,8
15,1
8,0
6,4
19,7
16,6
32,1
31,9
13,3
20,3
4,1
9,6
100,0
100,0
Fonte: Contagem, 1996, FIBGE.
O perfil etário dos residentes em favelas não apresenta grandes variações entre
as cinco zonas da cidade. O percentual da população na faixa de 0 a 24 anos varia de
47,6% nas favelas da Zona Sul, a 51,9% nas da Zonas Oeste. Vale observar, ainda, o peso relativamente menor na faixa acima de 45 anos nas favelas da Barra e de Jacarepaguá:
enquanto nessa zona o percentual é de 13,9%, nas demais variou entre 17% e 18,7%.
Esse perfil mais jovem das favelas da Barra e de Jacarepaguá acompanha o perfil dos
próprios bairros em que estão localizados, que também apresentam menor peso relativo
da faixa acima de 45 anos e maior peso das faixas entre 18 e 24 anos e entre 25 e 44
anos. Como área de expansão para os segmentos sociais médios, essa zona atrai uma
população em começo de carreira e na primeira fase do ciclo familiar (casal sem filhos ou
casal com filhos pequenos). Como a área de maior concentração da produção imobiliária,
atrai trabalhadores para a construção civil, cujo perfil etário é relativamente jovem e cuja
alternativa de uma moradia próxima se restringe às favelas da região.
Em relação à diferenciação por sexo, cabe destacar apenas uma proporção de
mulheres relativamente maior nos bairros em comparação com as favelas, particularmente
no Centro/Zona Sul e Barra/Jacarepaguá.
O indicador de cor evidencia a maior predominância de uma população branca
nos bairros da cidade – em torno de 64% – e de uma população não branca nas favelas
– em torno de 62% (Tabela 5). Esses percentuais sofrem significativa variação segundo
as diferentes áreas. Enquanto no Centro/Zona Sul e Barra/Jacarepaguá mais de 80%
dos moradores são brancos, na Zona Norte esse percentual é de apenas 48%. Entre os
38
Cadernos Metrópole – n. 5
Tabela 5 – População por sexo e cor, segundo a localização do domicílio
na favela ou fora da favela, pelas grandes zonas do município do Rio de Janeiro, 1996
Grandes Zonas
Cor - %
Sexo - %
homem
mulher
branco
não branco
Centro/Z.Sul - favela
Centro/Z.Sul - não favela
48,4
43,7
51,6
56,3
44,4
84,0
55,6
16,0
Barra/Jacarepaguá - favela
Barra/Jacarepaguá - não favela
48,2
44,2
51,8
55,8
34,6
87,1
65,4
12,9
Z. Norte - favela
Z. Norte - não favela
49,3
48,4
50,7
51,6
37,4
47,9
62,6
52,1
Subúrbio - favela
Subúrbio - não favela
49,4
47,4
50,6
52,6
36,4
65,8
63,6
34,2
Z. Oeste - favela
Z. Oeste - não favela
48,7
46,7
51,3
53,3
37,3
62,9
62,7
37,1
Total RJ - favela
Total RJ - não favela
48,8
46,6
51,2
53,4
38,0
64,3
62,0
35,7
Fonte: Censo Demográfico de 1991, FIBGE.
residentes nas favelas a variação segundo a localização geográfica é menor: as favelas
do Centro/Zona Sul são as que apresentam a menor proporção de não brancos (cerca
de 55%); nas demais esse percentual varia de 62% a 65%.
Os dados sobre o perfil de escolaridade da população economicamente ativa do Rio de Janeiro (Tabela 6) evidenciam uma profunda diferença de perfil entre os
residentes nas favelas e nos bairros, seja nas áreas centrais ou na periferia da cidade,
embora a diferença seja relativamente menor na periferia. A primeira constatação é o
elevado peso da população com até 4 anos de estudo nas favelas: acima de 70% em
todas as zonas! Entre os moradores dos bairros, o menor percentual dessa faixa foi de
19% na Zona Norte, e o mais elevado foi de 52%, na Zona Oeste. Em outras palavras,
o nível de instrução nas favelas é ainda inferior ao observado nos bairros populares da
periferia da cidade.
Uma segunda evidência refere-se à pequena diferenciação, entre as cinco zonas,
dos perfis de escolaridade dos moradores em favelas. As diferenças mais significativas
são os percentuais relativamente maiores (1) dos sem instrução nas favelas da Barra/
Jacarepaguá (36,6%) e da zona norte (35,6%) e (2) daqueles com segundo grau completo nas favelas do Centro/Zona Sul (1,3%). É interessante destacar que os residentes
das favelas mais recentes, localizadas na periferia, não apresentam um perfil de instrução
inferior àqueles das favelas centrais consolidadas. O menor peso dos migrantes, especialmente os de longa distância, nas favelas periféricas pode explicar em parte essa equivalência no nível de escolaridade.
39
A divisão favela-bairro no espaço social do Rio de Janeiro
Tabela 6 – População por faixas de anos de estudo, segundo a localização do domicílio
na favela ou fora da favela, pelas grandes zonas do município do Rio de Janeiro, 1996
Grandes Zonas
Anos de estudo - %
s/instrução
1a4
5a8
9 a 11
mais de 12
Centro/Z.Sul - favela
Centro/Z.Sul - não favela
33,7
7,2
40,1
14,4
16,9
11,4
8,0
28,0
1,3
38,9
Barra/Jacarepaguá - favela
Barra/Jacarepaguá - não favela
36,6
12,0
38,4
20,3
15,4
13,4
9,0
27,1
0,7
27,2
Z. Norte - favela
Z. Norte - não favela
35,6
5,3
39,9
13,7
16,2
11,1
7,6
30,4
0,7
39,5
Subúrbio - favela
Subúrbio - não favela
33,8
11,2
40,4
27,0
16,6
19,0
8,7
29,8
0,6
13,0
Z. Oeste - favela
Z. Oeste - não favela
31,6
18,0
41,8
34,0
16,6
20,9
9,3
21,8
0,7
5,2
Total RJ - favela
Total RJ - não favela
33,8
11,8
40,4
25,0
16,5
17,1
8,6
27,4
0,7
18,7
Fonte: Contagem, 1996, FIBGE.
Analisando o perfil socioocupacional da população ocupada nas favelas e nos
bairros, observa-se, assim como no perfil de instrução, uma profunda diferença entre os
dois universos de análise (Tabela 7). No entanto, essas diferenças variam significativamente entre as cinco zonas da cidade.
Uma primeira evidência é o corte favela-bairro no que se refere ao peso da elite, que se mostra bastante acentuado apenas nas zonas do Centro/Zona Sul, Barra/
Jacarepaguá e Zona Norte. A maior diferença, neste caso, está na Zona Norte, onde a
elite representa 28,5% dos moradores dos bairros e 0,9% daqueles residindo nas favelas. Na Zona Oeste, por outro lado, a elite representa baixíssima representatividade,
tanto nos bairros quanto nas favelas: 3,6% e 0,6%, respectivamente. Em relação à classe
média, o corte favela-bairro é menos acentuado: nas favelas do Centro/Zona Sul, 19,2%
dos moradores estão em ocupações médias, enquanto, nos bairros, esse percentual é de
32,6%. Mesmo nas favelas da Barra/Jacarepaguá, onde os moradores apresentam um
perfil socioocupacional relativamente mais proletário do que o encontrado nas demais
zonas, o percentual da classe média alcança 10,8%.
Uma segunda evidência é o peso, não muito diferenciado, dos subproletários nas
favelas e nos bairros do Centro/Zona Sul e Zona Oeste: cerca de 17% nas favelas de
ambas as zonas e 11% nos respectivos bairros. Não deixa de ser surpreendente que
cerca de 11% dos residentes nos bairros mais valorizados da cidade – Centro/Zona Sul
e Barra/Jacarepaguá – sejam subproletários, categoria composta predominantemente
40
Cadernos Metrópole – n. 5
Tabela 7 – População ocupada por categorias socioocupacionais,
segundo a localização do domicílio na favela ou fora da favela,
pelas grandes zonas do município do Rio de Janeiro, 1991
Grandes Zonas
Categorias socioocupacionais - %
elite
pna.burg.
cl.média
operário
prolet.terc.
subprolet.
Centro/Z.Sul - favela
Centro/Z.Sul - não favela
1,8
26,6
5,5
8,3
19,2
32,6
16,0
3,2
40,1
18,3
17,4
11,0
Barra/Jacarepaguá - favela
Barra/Jacarepaguá - não favela
0,7
16,8
5,1
8,5
10,8
29,5
27,0
12,1
36,6
22,8
19,8
10,4
Z. Norte - favela
Z. Norte - não favela
0,9
28,5
4,9
9,1
15,7
37,3
21,9
3,4
35,5
14,3
21,1
7,4
Subúrbio - favela
Subúrbio - não favela
0,6
8,8
5,5
8,2
15,0
39,2
30,6
12,9
31,8
23,7
16,4
7,1
Z. Oeste - favela
Z. Oeste - não favela
0,6
3,6
6,5
6,7
13,9
28,3
30,5
21,9
31,5
28,6
17,0
11,0
0,8
13,0
5,6
8,0
15,2
34,5
27,8
12,4
33,5
23,1
17,1
9,0
Total RJ - favela
Total RJ - não favela
Fonte: Censo Demográfico de 1991, FIBGE.
Nota: elite: empregadores e profissionais dirigentes do setor público e privado e profissionais
de nível superior; pequena burguesia: pequenos empregadores do serviço e comércio; classe
média: empregados em ocupações de rotina, supervisão, segurança, ensino básico e técnicos;
operários: trabalhadores da indústria e construção civil; proletários do terciário: prestadores
de serviço e comerciários; subproletários: trabalhadores domésticos, ambulantes e biscateiros.
por trabalhadores domésticos. Essa é uma evidencia de que nessas áreas ainda existem
mecanismos, via mercado, que garantem o acesso à moradia a esses trabalhadores.
Por fim, cabe destacar a significativa diferenciação entre as favelas dos seus perfis
socioocupacionais, segundo a área em que se encontram. As favelas do subúrbio e da
Zona Oeste apresentam um perfil mais operário – em torno de 30% dos ocupados – do
que o verificado nas favelas das demais zonas, onde a predominância dos trabalhadores
do terciário é relativamente maior.
Distância favela-bairro
Nesta parte do texto avaliamos a distância social entre a favela e bairro no que
concerne à renda monetária. A Tabela 8 apresenta a razão entre as médias da renda
total dos moradores das favelas e as dos bairros, segundo variáveis sociodemográficas
reconhecidas na literatura especializada como determinantes da renda: inserção na
estrutura ocupacional, escolaridade, idade, cor e sexo. As desigualdades oriundas
dessas diferenças podem expressar mecanismos de segregação e/ou discriminação de
41
A divisão favela-bairro no espaço social do Rio de Janeiro
certos segmentos sociais no mercado de trabalho quando usados como critério seletivo na distribuição das oportunidades ocupacionais ou diferenciador da remuneração.
Como são reconhecidos os diferenciais de renda entre os trabalhadores brancos e nãobrancos no mercado de trabalho urbano brasileiro, e como nas favelas os não-brancos
têm presença expressiva, tomamos essa dicotomia como referência para avaliar a distância entre favela e bairro.
Observamos a existência de homologia entre a hierarquia ocupacional e a distância
social entre moradores de favela e do bairro. Nas posições mais inferiores (empregadas
domésticas, ambulantes, biscateiros), encontramos muita proximidade entre os moradores
da favela e do bairro, já que os diferenciais de renda são bem pequenos. À medida que
subimos na hierarquia, as distâncias aumentam, chegando ao máximo entre as ocupações não-manuais de nível médio, uma vez que os moradores em favela têm 56% da
renda daqueles que moram no bairro. A mesma homologia encontramos no exame dos
diferenciais de renda entre brancos e não-brancos, embora a distância entre esses dois
segmentos seja menor do que a verificada entre a favela e o bairro. Já as distâncias entre
os moradores em favela são significativamente menores, o que sugere a existência de
forte homogeneidade social.
Tabela 8 – Razão entre a renda média dos moradores.
Favela, bairro e cidade, 1991
Ocupação
Subproletariado
Operariado
Trab. serv. com.
Não-manual nível médio
Bairro*
Favela
Nbran/Bran
Nbran/Bran
Fav/bairro
Nbran/Bran
0,86
0,73
0,63
0,63
0,91
0,93
0,87
0,85
0,93
0,84
0,68
0,56
0,87
0,74
0,64
0,63
0,90
0,75
0,76
0,72
0,67
0,81
0,92
0,99
0,89
0,84
0,85
0,77
0,75
0,61
0,44
0,88
0,74
0,75
0,71
0,67
0,77
0,47
0,44
0,41
0,87
0,82
0,90
0,87
0,78
0,46
0,37
0,30
0,74
0,47
0,44
0,40
0,43
0,45
0,77
0,93
0,35
0,66
0,42
0,44
Cidade
Anos de estudo
Sem instrução
De 1 a 4 anos
De 5 a 8 anos
De 9 a 11 anos
Mais de 12 anos
Idade
Jovem
Adulto
Maduro
Idoso
Gênero
Homem
Mulher
Fonte: Censo de 1991, FIBGE.
* Excluí os moradores das favelas
42
Cadernos Metrópole – n. 5
Constatamos situação similar na análise por nível de escolaridade, ou seja, à
maior escolaridade corresponde maior distância social entre moradores em favela e
moradores de bairro, o mesmo sucedendo com distância entre brancos e não-brancos.
Verificamos, contudo, alguma nuance. A posição de desvantagem relativa dos moradores
em favela e dos não-brancos da cidade parece ser a mesma até a faixa de escolaridade
equivalente ao primário (8 anos). Os diferenciais aumentam mais fortemente no corte
favela-bairro nas outras faixas, atingindo o patamar de 44% entre aqueles com mais de
12 anos de instrução. Em outras palavras, os moradores da favela têm maior dificuldade
em transformar seu capital escolar em renda do que o conjunto dos não-brancos, Entre os trabalhadores “sem instrução”, ou seja, entre aqueles que estão na posição mais
desfavorável no mercado de trabalho, que, como vimos, representam cerca de 70% dos
moradores em favela, constatamos uma surpreendente diferença de renda: os moradores
em favela recebem 85% dos que moram no bairro.
No exame dos diferenciais por idade e gênero, verificamos que a distância favela e
bairro é semelhante à existente entre branco e não-branco.
Será que as diferenças de renda resultam de mecanismos de discriminação no
mercado de trabalho dos moradores das favelas? Será que teríamos então a configuração do fenômeno da guetificação dos moradores da favela?
As favelas são guetos?
A análise da situação das favelas ante a dos bairros sugere a existência de importante divisão no espaço social da cidade do Rio de Janeiro. A divisão favela-bairro parece
ser a expressão espacial das notórias desigualdades que marcam a sociedade brasileira,
já que concentra os segmentos sociais que apresentam maiores desvantagens no acesso
às oportunidades: os mais jovens, os não-brancos e os de baixa escolaridade, Entretanto,
os resultados da nossa análise indicam ser a favela o lugar de moradia dos que suportam maior desvantagem entre os afortunados da cidade, uma vez que os diferenciais de
renda aumentam entre os grupos com maiores chances de se igualarem aos moradores
do bairro. Ao mesmo tempo, os diferenciais de renda não são desprezíveis entre os mais
desafortunados da cidade.
Tais constatações parecem fortalecer as concepções dualistas da favela. Gosta ríamos, porém, de terminar nosso trabalho com breves comentários, a nosso ver
necessários para escapar do reducionismo. Com efeito, como dissemos no início, esta
análise é insuficiente para identificar a posição das favelas no espaço social da cidade. É
imprescindível passar da análise da divisão favela-bairro para a interpretação da (di)visão
dessa dicotomia socioespacial, ou seja, avaliar se as diferenças observadas são representadas legitimamente na sociedade carioca como separação e/ou inferioridade.
A divisão favela-bairro no espaço social do Rio de Janeiro
43
A reflexão sobre a distância social em termos de renda oferece-nos a possibilidade de explorar alguns caminhos. As diferenças observadas sugerem duas explicações
a respeito da simbolização da divisão favela-bairro e sua inscrição nas práticas sociais
que regulam a relação entre trabalho e moradia. Na primeira, a favela seria considerada
como variável independente. Ela seria a conseqüência de práticas discriminatórias no
mercado de trabalho contra aqueles que moram nas favelas. Ou seja, o fato de morar em
favela seria um atributo negativo, do qual resulta a determinação da renda. A situação dos
moradores em favela seria idêntica à das mulheres no mercado de trabalho, já fartamente
descrita na literatura sociológica e econômica. A legitimidade social dessa discriminação
seria obtida pela transformação do lugar desclassificado dos moradores da favela em um
habitus (Bourdieu, 1979), pelo qual se produziria a naturalização da discriminação e a
conseqüente disposição dos moradores das favelas em aceitar menores salários. Esse
argumento aproxima a posição da favela no espaço social do Rio de Janeiro dos guetos negros americanos, segundo as análises de Wilson (1987) e Wacquant (2000), nas
quais a inferioridade social dos seus moradores se reproduz como um círculo perverso.
Na segunda hipótese, a favela seria uma variável dependente. Há duas variantes
explicativas nesse caso. Na primeira, a favela seria o resultado dos baixos e incertos rendimentos dos trabalhadores que ocupam posições inferiores às suas possibilidades, em
razão da segmentação do mercado de trabalho, cuja conseqüência é a obtenção de renda inferior. A ilustração dessa variante seria a forte presença, na favela, de trabalhadores
da construção civil, setor produtivo na qual a escolaridade tem pouca importância na
determinação de rendimento dos trabalhadores, dada a natureza manufatureira do processo de trabalho e a prevalência do trabalho autônomo. Os baixos e incertos rendimentos obtidos socialmente permitiriam acesso ao submercado habitacional da favela como
estratégia de diminuição dos custos da moradia e do transporte. Na segunda variante, a
favela resultaria da acessibilidade à fonte de renda propiciada pela localização residencial
de certos segmentos de trabalhadores que exercem ocupações temporárias, incertas e
dependentes do contato pessoal entre demanda e oferta. A ilustração dessa variante
seria a forte presença de prestadores de serviços pessoais nas favelas localizadas nas
áreas mais centrais da cidade. Essa hipótese estaria coerente com a constatação da relação entre o gradiente de renda média dos moradores das favelas pelas grandes áreas
e o mapa social da cidade, na qual nota-se que quanto mais próximo dos centros de concentração espacial das camadas superiores maior a renda relativa, conforme transparece
na leitura da Tabela 9.
Em resumo, nas duas variantes da segunda hipótese, a separação favela e não favela expressaria a segmentação da acessibilidade aos recursos localizados desigualmente
na cidade, sejam eles os relativos à moradia ou às oportunidades de trabalho e renda. Essa
nos parece a hipótese explicativa das diferenças de renda entre favela e bairro mais plausível. As possibilidades de renda e o seu montante explicam a seleção entre moradores
44
Cadernos Metrópole – n. 5
Tabela 9 – Razão entre a renda média dos moradores em favelas
por grandes áreas e a do conjunto dos moradores em favela, 1991
Grandes Áreas
Zona Sul/Centro
Barra/Jacarepaguá
Zona Norte
Zona Oeste
Subúrbio
Total
Razão
1,12
0,94
1,05
0,90
0,94
1,00
da favela e do bairro. Aqueles que conseguem vencer as barreiras existentes no mercado
de trabalho e aumentam a sua renda ou têm acesso a ocupações mais estáveis tendem
a abandonar a favela. É o que nos mostram estudos sobre mobilidade residencial (Lago,
2000) entre as favelas centrais da cidade do Rio de Janeiro e a periferia metropolitana.
O ultimo comentário diz respeito à necessidade de levar em consideração as diferenças entre as favelas quanto à sua posição no espaço social da cidade. A favela pode
representar tanto um momento da mobilidade ascendente de certos segmentos sociais
quanto o seu contrário, lugar do refúgio para aqueles que estão em processo de marginalização social. A entrada nas favelas localizadas na Zona Sul de migrantes de outros municípios do estado do Rio de Janeiro e da região nordestina do Brasil, todos com status
social e ocupacional inferior aos dos moradores, parece indicar a situação na qual o crescimento da favela pode estar associado à dinâmica de mobilidade social ascendente. Em
contraposição, o crescimento das favelas na Zona Oeste poderia estar expressando um
movimento de mobilidade social descendente, especialmente no caso dos moradores
das favelas da Zona Sul, que, por algum motivo, se vêem obrigados a abrir mão da maior
acessibilidade à fonte de renda e ocupação. Será que estas favelas estariam transitando
para uma situação de gueto, na medida em que o seu crescimento parece estar associado a um processo de isolamento social?
Não é possível responder a esta questão neste texto. Gostaríamos tão-somente
de lembrar que o trabalho não é a única dimensão explicativa da exclusão social produzida pela guetificação dos negros pobres americanos, segundo as análises de Wacquant e Wilson. O gueto é também produzido pela estigmatização dos territórios onde
se concentram os segmentos fragilizados economicamente, pela diminuição da densidade organizacional desses territórios e pela baixa presença do Estado. Sobretudo, a gue-
tificação se realiza quando ocorre a desapropriação simbólica dos moradores desses
territórios da capacidade de controle da sua representação social nas formas coletivas
de classificação das divisões da sociedade e, portanto, da sua identidade como grupo.
É essa despossessão que permite transformar os desiguais em proscritos sociais, e, co-
45
A divisão favela-bairro no espaço social do Rio de Janeiro
mo tais, vivendo na desordem ou em uma outra ordem social considerada legitimamente
como inaceitável.
Esse ponto nos devolve ao início do nosso trabalho, à reflexão sobre a importância
das concepções teóricas, das imagens e das práticas presentes no atual debate público
sobre a cidade partida. Que efeitos simbólicos negativos estariam sendo produzidos pelas associações, cada vez mais freqüentes, entre a favela e a violência e pela crescente
legitimidade do discurso público da desordem urbana como razão dos males da cidade?
Há algo fora da ordem? Serão os pobres favelados ou os discursos sobre eles?
Luciana Correa do Lago
Luiz César de Queiroz Ribeiro
Ippur/UFRJ
Notas
Este trabalho foi desenvolvido no âmbito do Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal – Ippur/UFRJ – Fase e contou com a colaboração dos pesquisadores Cynthia Campos
Rangel, Peterson Leal Pacheco, Carlos Eduardo Sartor, Giovanna Altomare Catão e Paulo
Renato Azevedo.
1. Entende-se como migrante todos aqueles que residam em outro município que não fosse o do
Rio de Janeiro até 1991.
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ZALUAR, A. e ALVITO, M. (1998). Um século de favela. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas.
As favelas da Região Metropolitana de
Belo Horizonte: desafios e perspectivas*
Berenice Martins Guimarães
Antes de entrar no objetivo de análise deste artigo, é importante prestar alguns
esclarecimentos sobre as circunstâncias em que se deu a sua produção. Ele é parte
de uma pesquisa mais ampla – Metrópole, desigualdades socioespaciais e governança
urbana: Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte – que vem sendo realizada dentro do
programa Pronex e da qual fazem parte estudos de algumas regiões metropolitanas do
país, em especial Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Porto Alegre.
O estudo sobre favelas na região metropolitana de Belo Horizonte – RMBH –
está sendo realizado segundo duas vertentes. A primeira trabalha essencialmente com
a questão enquanto Unidades Espaciais Homogêneas Faveladas – UEHFAV – definidas
a partir da identificação dos setores censitários apontados pelo Censo Demográfico
como favelas, áreas consideradas UEH especiais. O enfoque de análise centra-se,
especialmente, na caracterização e evolução socioespacial dessas unidades no período
1980/1991 e privilegia o estudo comparativo da situação das UEHFAV em relação às
demais UEH.
Se, de uma parte, essa abordagem é rica como possibilidade de análise comparativa do processo evolutivo da segregação urbana, de outra, no entanto, apresenta
limitações quando nos reportamos ao dimensionamento do fenômeno favela. Na medida
em que na composição da UEHFAV foram excluídas as favelas cujo número de moradias
era insignificante, bem como aquelas que não apresentaram heterogeneidade em relação
ao entorno imediato, perdem-se informações sobre o universo. Outra limitação é que a
caracterização da UEHFAV baseada exclusivamente em critérios censitários pode oferecer distorções, às vezes incluindo como favela moradias faveladas e não faveladas.1
48
Cadernos Metrópole – n. 5
A segunda vertente trata, especificamente, da favela como tal, ou seja, a análise
centra-se na evolução e nas características dessas áreas em relação à Região Metropolitana como um todo, não levando em conta a questão da desigualdade socioespacial em
relação às demais UEH, objeto específico de análise da primeira vertente.
A análise da situação das favelas sofre constrangimentos devido à forma como
os dados censitários existentes estão disponibilizados para tratamento e análise. A
necessidade de enfrentar essas limitações impõe a definição de uma metodologia
específica no tratamento dos dados, visando a sua utilização para identificar e caracterizar esse universo. Explicitar os critérios utilizados para identificar os setores da favela
na RMBH, na segunda vertente de análise, bem como os desafios encontrados para a
realização de tal empreendimento, é o objetivo deste trabalho, que está centrado em dois
eixos: o primeiro relacionado às questões metodológicas no uso dos dados censitários no
estudo de favelas, e o segundo aos resultados preliminares de uma análise comparativa
da situação das favelas na Região Metropolitana de Belo Horizonte nos anos 80 e 91 e
dessas em relação à relação à Região como um todo quanto às dimensões do universo,
principais características das moradias, acesso aos serviços de infra-estrutura urbana e o
perfil socioeconômico da população.
A identificação do universo de favelas na RMBH
Considerando, de um lado, a forma como o Censo Demográfico trata a questão
das favelas nos anos de 1980 e de 1991 e, de outro, a disponibilidade de mapas e de
informações nas prefeituras dos municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte,2
a identificação das áreas de favela foi feita de maneira diferenciada para esses anos.
De acordo com o Censo Demográfico, em 1980 havia favelas em apenas três municípios da Região Metropolitana: Belo Horizonte, Betim e Contagem. Em 1991 o Censo
identifica favelas em sete municípios, embora assinale a existência de “casas faveladas”3
de construção sem a propriedade do terreno e de domicílios improvisados em vários
municípios e, às vezes, em números significativos. São eles: Belo Horizonte, Betim, Contagem, Ribeirão das Neves, Sabará, Santa Luzia e Vespasiano.
Em 1991, a identificação dos setores censitários em que existem favelas nos municípios de Belo Horizonte, Betim e Contagem obedeceu à seguinte metodologia: a partir dos mapas temáticos de favelas existentes nas Prefeituras Municipais, nos quais se
tem a mancha de ocupação das áreas de favela, foi feita, por superposição com o mapa
de setores censitários, a identificação dos setores ocupados por favela, assim como o
cálculo do percentual de ocupação das casas faveladas em cada setor. Os resultados
foram comparados com os setores de favela identificados pelo Censo, visando a corrigir
possíveis erros.
As favelas da Região Metropolitana de Belo Horizonte: desafios e perspectivas
49
A fim de evitar contaminação de dados, em razão da existência de vizinhanças
diferentes, especialmente no caso de Belo Horizonte, onde parte significativa das favelas
encontra-se localizada em áreas de classe média e média alta (é o que ocorre principalmente nas regionais Centro Sul e Leste da cidade), adotou-se como critério para seleção
dos setores censitários de favela a serem analisados somente aqueles cuja ocupação
estivesse acima de 90% de domicílios favelados. Quanto às demais regionais4, o critério
adotado foi de 70%, no caso dos municípios de Betim e Contagem, também, o percentual
foi de 70%, uma vez que nesses municípios a maioria das favelas não se encontra em localização privilegiada na cidade, não se verificando a heterogeneidade de vizinhança.
Quanto aos demais municípios – Ribeirão das Neves, Sabará, Santa Luzia e Vespasiano –, em virtude da inexistência de mapas de localização das favelas, não foi possível
desenvolver qualquer metodologia; foram considerados para identificação e análise do
universo os setores censitários apontados pelo Censo Demográfico.
Ainda que se reconheça que a metodologia e os critérios adotados para a identificação e seleção de setores censitários para a análise das favelas possam conter imperfeições, acredita-se, no entanto, que sejam bem menores que as resultantes da utilização direta dos setores censitários favelados identificados no Censo Demográfico de
1991 do IBGE.
Para o ano de 1980, a situação é bem diferente. De um lado, o Censo diferencia setores favelados e não favelados nos Arquivos de Setores Censitários da pesquisa
amostral (embora tal distinção não apareça nos arquivos de microdados), o que cria limitações operacionais. De outro, a disponibilidade de informações é uma raridade nas
prefeituras municipais, sendo o município de Belo Horizonte o único que dispõe de mapa
de favelas para aquele ano. Nesse caso, a identificação dos setores censitários de favela
foi feita a partir dos mesmos critérios adotados para 1991.
Quanto aos demais municípios – Betim e Contagem –, a identificação e caracterização das favelas acompanham os critérios adotados pelo Censo Demográfico. No caso
de Betim, o conhecimento prévio da favela da Fiat possibilitou, através de análise da caderneta dos recenseadores, a identificação de setores favelados que não constavam no
Censo, permitindo maior aproximação da realidade então existente.
Disponibilidade e tratamento dos dados
Definido o universo dos setores censitários a ser pesquisado para análise das
favelas da Região Metropolitana de Belo Horizonte em 1980 e 1991, e considerando
que o Censo Demográfico de 1980, diferentemente do de 1991, não possui um código
de identificação de setores favelados, o Arquivo de Setores Censitários que originou as
informações aqui utilizadas foi o da pesquisa amostral.5
50
Cadernos Metrópole – n. 5
Os números amostrais dos Censos Demográficos de 1980 e 1991 podem ser vistos abaixo. Representam 25% do universo pesquisado em 1980 e 10% em 1991.
Variáveis
População total 1980
População de favela 1980
População total 1991
População de favela 1991
Domicílios total 1980
Domicílios de favela 1980
Domicílios total 1991
Domicílios de favela 1991
Números
amostrais
627.124
48.892
348.644
32.451
138.528
10.944
84.703
7.111
Universo
2.540.094
199.332
3.436.060
316.778
538.493
42.337
839.620
70.464
Fonte: Censos Demográficos de Minas Gerais de 1980 e 1991. Arquivos de Setores Censitários. Dados trabalhados pelo CEURB/UFMG
Tornar comparáveis os dados de 1980 e 1991 foi uma questão a ser enfrentada na elaboração deste trabalho. Considerando que ao longo da realização dos Censos
Demográficos são introduzidas mudanças não só quanto às informações existentes mas
também quanto à forma como elas se encontram disponibilizadas, ainda que reconhecendo que isso se traduz em melhoria e enriquecimento dos dados, impõe-se a necessidade
de ajustes para que se possa realizar uma análise comparativa da situação.
No estudo sobre favelas na Região Metropolitana de Belo Horizonte não foi possível realizar a análise comparativa da situação dos domicílios quanto à qualidade da
construção – se rústicos ou duráveis –, uma vez que o Censo de 1991 não dispõe dessa informação, o mesmo acontecendo com relação ao acesso aos serviços de energia
elétrica. O Censo de 1980 não traz informações sobre o destino do lixo, que somente
passam a ser incluídas em 1991.
No caso de algumas variáveis, há informações, mas a forma como estão disponíveis dificulta a comparação. Enquanto no Censo de 1980 a renda da população está
disponibilizada por classe total, em 1991 ela é domiciliar, o que levou a necessidade de
se trabalhar a variável renda a partir da População Economicamente Ativa – PEA. No caso da escolaridade da população em 1980, a informação é disponibilizada pelo grau da
última série concluída, enquanto que, em 1991, ela aparece como anos de estudos da
população. Daí a necessidade de desenvolver cálculos específicos e fazer adaptações, a
fim de tornar compatíveis os dados de 1980 com os de 1991.
Por último, é importante salientar que a análise aqui apresentada é preliminar e
abrange apenas algumas variáveis. Trata-se da primeira incursão em uma análise comparativa das favelas de uma Região Metropolitana com base em dados censitários ainda
pouco explorados.
51
As favelas da Região Metropolitana de Belo Horizonte: desafios e perspectivas
As favelas da Região Metropolitana
De acordo com o Censo em 1980, são 42.337 os domicílios de favela, com uma
população de 199.332 habitantes, o equivalente a, respectivamente, 7,8% e 7,9% do
total. Em 1991 são 70.464 domicílios, com 316.778 moradores, o equivalente a 8,4% do
total de domicílios permanentes e a 9,2% da população total, o que indica um aumento
proporcional da população e de domicílios favelados na Região (Tabelas 1 e 2).
No período 80/91 registra-se uma taxa de crescimento da população total de
2,78% ao ano, enquanto que a da população moradora de áreas de favela cresceu quase
o dobro, 4,30. Quanto às taxas de crescimento dos domicílios, são semelhantes nos dois
censos, seja para os domicílios em geral e para os de áreas de favela, 4,12 e 4,74, e superiores às taxas de crescimento da população, o que explica a diminuição da densidade
domiciliar na Região Metropolitana no período, como se verá adiante.
Tanto em 1980 quanto em 1991 a maioria das favelas está localizada em Belo
Horizonte, vindo, a seguir, os municípios de Contagem e Betim. No entanto, em 1991,
quando se analisa a proporção dos domicílios em áreas de favela em relação ao total,
ocorrem mudanças nessa ordem. Betim passa a ocupar o primeiro lugar, com aproximadamente 15% dos seus domicílios em área de favela, seguido de Contagem e Belo
Horizonte, ambos com 10,6% e, por último, os municípios de Sabará, 7,8%, Vespasiano,
6,1%, Ribeirão das Neves, 4,9% e Santa Luzia, 2,1% (Guimarães, 1987).
Tabela 1 – RMBH: população total e de favela – 1980 e 1991
População
Total
De favela
Ano
Pop. fav./Pop. total
1980
1991
1980
1991
2.540.094
199.332
3.436.060
316.778
7,8
9,2
Tx. cresc.
80/91
2,78
4,30
Fonte: Censos Demográficos de Minas Gerais de 1980 e 1991. Arquivos de Setores Censitários.
Dados trabalhados pelo CEURB/UFMG
Tabela 2 – RMBH: domicílios total e de favela – 1980 e 1991
Domicílios
Total
De favela
Ano
Dom. fav./Dom. total
1980
1991
1980
1991
538.493
42.337
839.620
70.464
7,9
8,4
Tx. cresc.
80/91
4,12
4,74
Fonte: Censos Demográficos de Minas Gerais de 1980 e 1991. Arquivos de Setores Censitários.
Dados trabalhados pelo CEURB/UFMG
52
Cadernos Metrópole – n. 5
Tabela 3 – Domicílios particulares permanentes total e de favela – 1980 e 1991
Características
Domicílios
Total 1980
Favela 1980
Total 1991
Favela 1991
Perm.
%
Improv.
%
Total
%
138.091
10.907
84.287
7.073
99,68
99,66
99,51
99,47
437
37
416
38
0,32
0,34
0,49
0,53
138.528
10.944
84.703
7.111
100,00
100,00
100,00
100,00
Fonte: Censos Demográficos de Minas Gerais de 1980 e 1991. Arquivos de Setores Censitários.
Dados trabalhados pelo CEURB/UFMG
Embora a maioria dos domicílios seja permanente, observa-se, no entanto, um ligeiro acréscimo dos domicílios improvisados no período 1980/91, seja no total de domicílios ou no de favelas, provável conseqüência da crise habitacional vivenciada no país a
partir dos anos 80, provocada, entre outros fatores, pela crise no Sistema Financeiro da
Habitação e que acabou por determinar a extinção do Banco Nacional de Habitação –
BNH , em 1986.
O que primeiro se observa é que, entre 1980 e 1991, há uma queda na densidade
domiciliar na Região Metropolitana, especialmente nos domicílios em geral, mas também
nas áreas de favela. Ainda que, em 1980, não se verifique diferença na densidade domiciliar entre o total de moradias e o de favela, em 1991, no entanto, essa diferença é significativa. Em 1991, enquanto o número médio de moradores por domicílio é de 4,0, essa
média eleva-se para 4,5 nas áreas de favela na Região Metropolitana.
Essa melhora é provocada, entre outros fatores, pelo aumento do número médio
de cômodos e de quartos por domicílio verificada no período 80/91, tanto em geral quanto nas áreas de favela.
Quanto à condição de ocupação no período 80/91, há um acréscimo do percentual de domicílios próprios em detrimento dos alugados, ao mesmo tempo que também
aumenta a proporção de domicílios cedidos. O fato de se encontrar um percentual significativo de domicílios próprios entre os de favela, e também de outra condição, revela a situação das favelas, onde os moradores se declaram proprietários da casa cuja
Tabela 4 – RMBH: densidade de ocupação em domicílios
particulares permanentes total e de favela – 1980 e 1991
Médias
Morador/domicílio
Cômodo/domicílio
Quarto/domicílio
1980
1991
total
favela
total
favela
4,72
5,26
1,99
4,71
3,47
1,63
4,09
5,99
2,01
4,50
4,51
1,82
Fonte: Censos Demográficos de Minas Gerais de 1980 e 1991. Arquivos de Setores
Censitários. Dados trabalhados pelo CEURB/UFMG
53
As favelas da Região Metropolitana de Belo Horizonte: desafios e perspectivas
Tabela 5 – RMBH: condição de ocupação em domicílios particulares
permanentes total e de favela – 1980 e 1991 em %
Condição de Ocupação
Domicílios
próprio
Total 1980
Favela 1980
Total 1991
Favela 1991
60,55
72,86
71,39
84,45
alugado
cedido
outro
29,17
17,38
18,59
8,2
8,93
5,30
9,49
6,07
1,35
4,45
0,53
1,32
Total
100,00
100,00
100,00
100,00
Fonte: Censos Demográficos de Minas Gerais de 1980 e 1991. Arquivos de Setores
Censitários. Dados trabalhados pelo CEURB/UFMG
propriedade do terreno ainda não tenham. Ao mesmo tempo é bastante significativa a
queda dos domicílios alugados em áreas de favela na Região Metropolitana, que passa
de 17% para 8% no período 80/91.
Se as diferenças até então verificadas entre o total de domicílios, entre os quais
acham-se os incluídos os de favela, não são tão notáveis, no que diz respeito às condições de infra-estrutura urbana elas se fazem sentir.
Analisando-se as condições de abastecimento de água nos anos 80 e 91, no total
de domicílios e em áreas de favela, verifica-se que houve uma melhora significativa no
atendimento, seja quanto ao total de domicílios e, especialmente, nas áreas de favela,
onde o atendimento passa de 70% para 90% no período.Essa situação é o resultado de
investimentos realizados pelas prefeituras municipais, especialmente as de Belo Horizonte, Betim e Contagem, municípios que abrigam o maior número de favelas.
Comparando-se os domicílios de favela com os demais, verifica-se que o atendimento, ainda que tenha melhorado, está longe de ser satisfatório, e que as diferenças são
significativas. Enquanto 88% do total de domicílios são atendidos por rede, nas favelas
esse índice cai para 78%, sendo também significativas as diferenças no que diz respeito
à existência ou não de canalização interna nas moradias. Enquanto 91% do total de domicílios dispõem de canalização interna, nas áreas de favelas menos de 80% das moradias
a possuem.
Tabela 6 – RMBH: condições de abastecimento de água em domicílios particulares –
permanentes total e de favela – 1980 e 1991 em %
Domicílios
Total
dom.
Total 1980
Favela 1980
Total 1991
Favela 1991
100,00
100,00
100,00
100,00
Condições de abastecimento de água
sem canalização interna
rede
poço
outra
com canalização interna
poço
outra
total
rede
63,18
29,41
88,45
78,05
5,82
2,18
2,73
0,44
0,98
0,69
0,53
1,22
69,99
32,28
91,72
79,72
11,3
31,86
4,98
14,41
13,33
19,05
1,81
1,71
5,38
16,81
1,49
4,17
total
30,01
67,72
8,28
20,28
Fonte: Censos Demográficos de Minas Gerais de 1980 e 1991. Arquivos de Setores Censitários.
Dados trabalhados pelo CEURB/UFMG
% de
atend.
74,48
61,27
93,43
92,46
54
Cadernos Metrópole – n. 5
Tabela 7 – RMBH: condições de esgotamento sanitário em domicílios particulares
permanentes total e de favela – 1980 e 1991 em %
Domicílios
Total
dom.
Total 1980
Favela 1980
Total 1991
Favela 1991
100,00
100,00
100,00
100,00
Condições de esgotamento e instalação sanitária
instalação sanitária só do domicílio
rede fos.sép fos.rud outra NR
total
45,89
13,68
68,24
48,14
1,24
1,88
1,60
1,63
30,19 3,48
38,34 7,42
16,73 5,04
19,34 13,00
0,05
0,00
0,04
0,00
80,84
61,32
91,66
82,16
instalação sanitária comum a mais de um
rede fos.sép fos.rud outra
NR
total
3,80
4,25
3,57
6,62
0,24
0,74
0,18
0,28
9,86
20,83
1,53
2,52
1,00
3,90
0,66
2,00
0,05
0,10
0,00
0,00
15,0
29,8
5,95
11,4
não
tem
% de
atend.
4,19
8,81
2,39
6,42
74,48
61,27
93,43
92,46
Fonte: Censos Demográficos de Minas Gerais de 1980 e 1991. Arquivos de Setores Censitários.
Dados trabalhados pelo CEURB/UFMG
Ao se analisarem as condições de esgotamento sanitário, as diferenças tornam-se
ainda maiores. Enquanto, em 1980, apenas 13% dos domicílios em área de favela tinham
acesso à rede de esgoto, em 1991 esse percentual se eleva para 48% – mas são 20%
a menos do que o total de domicílios. Aqui vale o comentário: embora tenha havido uma
melhora e significativa do atendimento, especialmente nas áreas de favela, o percentual
de domicílios que não têm acesso à rede de esgoto ainda é relevante. Em 1991, 30%
dos domicílios da Região Metropolitana utilizam outras formas de esgotamento que não
a rede (Tabela 7).
Os dados até aqui analisados permitem afirmar que no período 1980/91, a denominada “década perdida”, houve uma melhoria significativa, especialmente nas condições
de infra-estrutura urbana na Região Metropolitana, tanto nas áreas não faveladas quanto
nas de favela, havendo um salto qualitativo, ainda que diferenciado em áreas de favela e
não faveladas, das condições de moradia e de acesso aos serviços urbanos. Ao mesmo
tempo registra-se um aumento, embora pouco significativo, dos domicílios improvisados,
o que revela a dificuldade da população em ter acesso à moradia.
Perfil socioeconômico da população
O perfil socioeconômico da população é construído com base em três variáveis:
grau de escolaridade, nível de renda e categorias socioocupacionais definidas a partir da
variável ocupação e inserção no mercado de trabalho.
Começando pela escolaridade, medida pelo grau da última série concluída, o que
primeiro se observa é que não existem diferenças significativas entre o nível de escolaridade da população em geral e a moradora de favela, seja em 1980 ou em 1991. Em
1980, 40% da população da Região Metropolitana acima de 5 anos não havia concluído
qualquer grau de ensino: em torno de 30% tinha o grau elementar e menos de 10% havia
completado o 1º grau. Nas áreas de favela reproduz-se essa distribuição, com percentuais
diferenciados, ou seja, 47,5%, 36,9% e menos de 10%. A diferenciação se verifica quanto
55
As favelas da Região Metropolitana de Belo Horizonte: desafios e perspectivas
aos níveis de educação superiores: enquanto 4% da população em geral havia completado o 2º grau, apenas 1% dos moradores de favela o fizera e, quanto ao ensino de nível
superior, a diferença é ainda mais significativa: aproximadamente 4% da população tem o
3º grau enquanto que nas áreas de favela esse percentual é de menos de 1%.
Comparando-se a situação no período 80/91, observa-se uma melhora no grau
de escolaridade da população em geral e de favela: diminui o percentual daqueles que
não possuem qualquer instrução e aumenta substancialmente a população com 1º grau
completo, cujo percentual passa de menos de 10% para 21% da população e 29% entre
moradores de favela. Aumenta também o percentual dos que concluíram o 2º grau, de
4% para 9% no geral e de 1% para 3% entre os favelados. Quanto ao ensino de nível
superior, registra-se melhora apenas entre a população em geral, cujo percentual aumenta de 3% para 5%. Entre os moradores de favela esse acréscimo é pouco significativo.
Quanto à pós-graduação não se verifica mudança no índice entre os moradores de favela
e mesmo quanto à população em geral essa é muito pouco expressiva.
Para análise de renda e das categorias ocupacionais optou-se, como colocado no
início do trabalho, por trabalhar com a População Economicamente Ativa – PEA. Isso porque, enquanto em 1991 é possível obter informações sobre a renda familiar e individual,
em 1980 só existem dados sobre a renda individual.
O que primeiro chama a atenção na distribuição da PEA total e moradora de favela
pelas faixas de renda, definidas com base no salário mínimo, são os baixos níveis de rendimentos auferidos pela População Economicamente Ativa da Região Metropolitana de
Belo Horizonte, especialmente a moradora de favela.
Considerando-se que na PEA acham-se incluídos os desempregados, ainda assim
os dados revelam uma situação crítica, especialmente quando comparada à situação em
Tabela 8 – RMBH: grau última série concluída
população total e de favela (*) – 1980 e 1991
Grau última série
concluída
nenhum
alfabetizados
primário/elementar
ginasial médio
1º grau
2º grau
colegial médio
superior
mestrado/doutorado
total
1980
total
favela
47,50
41,30
0,28
0,19
36,92
32,32
3,28
6,07
9,99
8,65
1,09
4,11
0,52
3,56
0,39
3,65
0,02
0,13
100,00
100,00
1991
total
favela
37,18
44,85
0,19
0,17
19,79
19,92
3,81
1,82
21,60
29,09
9,32
3,46
2,45
0,25
5,45
0,42
0,20
0,02
100,00
100,00
Fonte: Censos Demográficos de Minas Gerais de 1980 e 1991. Arquivos de
Setores Censitários. Dados trabalhados pelo CEURB/UFMG.
(*) Dessas populações acham-se excluídos as crianças menores de 5 anos.
56
Cadernos Metrópole – n. 5
1980 e 1991. Se, em 1980, a distribuição da PEA pelas faixas já revela os baixos níveis
de renda auferidos, em 1991 eles se tornam ainda menores. Em 1980, aproximadamente
21% da população recebia até 1 salário mínimo, percentual que nas áreas de favela se
eleva para 30%. Quando se considera a faixa de 0 a 3 salários mínimos – definida pelo
poder público como o contingente da pobreza objeto da políticas e programas sociais –
têm-se que, em 1980, 68,8% da PEA enquadra-se neste perfil, percentual que se eleva
para 89,8% nas áreas de favela. Menos de 10% da PEA tem rendimentos acima de 5
salários mínimos, sendo que nas áreas de favela esse percentual é de 2%, o que revela a
dimensão e o nível de pobreza na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Em 1991 esse quadro se agrava. Aumenta o percentual dos que ganham até 1
salário mínimo para aproximadamente 39% na PEA total e 51% entre os moradores de
favela. Aumentam também para 74,4% e 92,2% os percentuais dos que recebem até 3
salários mínimos. Ao mesmo tempo observa-se uma queda dos percentuais nas faixas
salariais mais altas, seja na PEA total, seja na moradora de favela, o que revela a piora das
condições de vida da população e o aumento do desemprego no período.
Quando se considera que esses resultados são os obtidos na Região Metropolitana de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais, que faz parte da Região Sudeste
do Brasil, evidencia-se um fenômeno já bastante assinalado na literatura da metropolização da pobreza, ou seja, a constatação da existência, nas regiões metropolitanas
de estados considerados os mais ricos do país, de índices de pobreza e condições de
vida semelhantes aos até então característicos das áreas mais pobres, como é o caso
do Norte e Nordeste brasileiros.
Tabela 9 – Distribuição da PEA total e moradora de favela
da RMBH por faixa de renda – 1980 e 1991
Renda
até 1/4 SM
+ 1/4 a 1/2 SM
+ 1/2 a 3/4 SM
+ 3/4 a 1 SM
+ 1 a 2 SM
+ 2 a 3 SM
+ 3 a 5 SM
+ 5 a 10 SM
+ 10 a 15 SM
+ 15 a 20 SM
+ 20 SM
sem rendimento
sem declaração
total
1980
total
favela
2,22
1,58
6,96
4,54
7,54
5,30
13,74
9,37
45,08
32,2
14,28
15,83
6,90
14,07
2,22
9,50
0,30
3,17
0,14
1,43
0,23
2,38
0,30
0,40
0,11
0,23
100,00
100,00
1991
total
favela
1,20
2,00
15,72
24,86
8,70
14,34
13,10
18,12
24,58
25,65
11,10
7,33
11,10
4,47
7,82
1,52
2,44
0,22
1,15
0,13
1,64
0,07
0,25
0,20
1,20
1,11
100,00
100,00
Fonte: Censos Demográficos de Minas Gerais de 1980 e 1991. Arquivos de
Setores Censitários. Dados trabalhados pelo CEURB/UFMG.
57
As favelas da Região Metropolitana de Belo Horizonte: desafios e perspectivas
Com relação às Categorias Socioocupacionais – CAT, cabem aqui algumas observações, Quando se analisa a distribuição da população pelas categorias, vê-se que,
independentemente do período, enquanto a PEA total está concentrada nas ocupações
da categoria classe média, entre a moradora de favela predomina a categoria operários,
com variações percentuais ao longo do período analisado.
Fazendo um paralelo entre a distribuição percentual da PEA pelas categorias com
maior freqüência tem-se, em 1980, em primeiro lugar classe média, seguida de operários e subproletariado. Em 1991, altera-se um pouco essa ordem, vindo a classe média,
seguida da operários e do proletariado terciário. Verifica-se também mudanças nos percentuais: mantém-se o da classe média, diminui em 4% as ocupações na categoria operários e há um pequeno aumento percentual do proletariado terciário.
Quanto à PEA de favela, em 1980 predomina a categoria operários, vindo a seguir
a classe média e o subproletariado. Em 1991 mantém-se a mesma distribuição, que apresenta, no entanto, variações percentuais: há uma diminuição de 9% da categoria operários, cresce em 4% a classe média e em 2% o subproletariado.
Na leitura da distribuição das categorias ao longo do período, comparando-se a
situação da PEA total e de favela, verifica-se que há uma queda da elite dirigente e um aumento da pequena burguesia, embora esse aumento seja mais significativo na PEA total
(de 2,55%). As ocupações da categoria elite intelectual aumentam na PEA total e diminuem na favela. Há um aumento significativo das ocupações de classe média entre a PEA
de favela, enquanto que as de proletariado aumentam quase que em índices semelhantes
entre a PEA total e de favela. A categoria operários diminui, sendo mais significativa a
queda dessa categoria entre a PEA de favela. Quanto ao subproletariado, o percentual
dessa categoria diminui na PEA total e aumenta na de favela. Já as ocupações agrícolas
apresentam um acréscimo pouco significativo, seja na PEA total ou de favela.
Tabela 10 – RMBH: categorias socioocupacionais, população
economicamente ativa – PEA – total e de favela – 1980 e 1991
Categorias
elite dirigente
pequena burguesia
elite intelectual
classe média
proletário terciário
operários
subproletários
ocupações agrícolas
total
1980
total
favela
0,09
1,17
4,01
5,97
0,81
5,04
20,47
35,32
14,83
11,45
42,11
27,33
17,34
12,46
0,35
1,25
100,00
100,00
1991
total
favela
1,04
0,06
8,48
5,56
5,53
0,65
35,55
24,09
12,60
15,99
23,02
33,52
11,94
19,38
1,85
0,74
100,00
100,00
Fonte: Censos Demográficos de Minas Gerais de 1980 e 1991. Arquivos de
Setores Censitários. Dados trabalhados pelo CEURB/UFMG.
58
Cadernos Metrópole – n. 5
Os dados indicam mudanças na estrutura ocupacional no período, especialmente
nas áreas de favela, com o aumento percentual de categorias que não são características
dessa áreas, como é o caso da pequena burguesia, classe média e proletariado terciário,
mas registra, ao mesmo tempo, um aumento percentual do subproletariado
A partir desses resultados, é possível uma dupla interpretação, ainda mais quando
se consideram os níveis de renda. A presença das categorias pequena burguesia e classe média pode ser um indicador de empobrecimento e dificuldade de acesso à moradia.
Nessa perspectiva, as áreas de favela passam a ser objeto de procura por contingentes
da população que até então moravam em outras áreas, em geral periféricas, das cidades,
como solução alternativa de moradia.
Em uma outra ótica, a questão passa pela necessidade de fazer ajustes na metodologia de identificação das categorias, que poderia estar levando a distorções. Nesse
sentido, elaborou-se o cruzamento das variáveis renda e categorias ocupacionais da PEA
de favela, em 1991, visando a esclarecer a situação.
Como pode se observar na Tabela 11, há distorções na identificação dessas categorias, em especial a da pequena burguesia, a classe média e a elite intelectual, cujos
níveis de rendimento comprometem a própria definição das categorias, o que indica a
necessidade de ajustes futuros, quando da análise mais refinada dos dados.
Tabela 11 – RMBH: categorias ocupacionais versus nível de renda,
população economicamente ativa favela – 1991
Categorias de ocupação
Renda real total
agrícola
elite
dirigente
pequena
elite
burguesia intelectual
classe
média
proletário
terciário
operários
subproletário
Total
6
–
7
–
17
41
24
144
239
+ 1/4 a 1/2 SM
28
–
48
9
254
850
757
1.021
2.967
+ 1/2 a 3/4 SM
13
–
34
7
158
521
611
367
1.711
+ 3/4 a 1 SM
15
–
53
8
236
650
843
358
2.163
+ 1 a 2 SM
14
0
101
18
453
846
1.300
329
3.061
+ 2 a 3 SM
6
–
55
5
183
165
403
58
875
+ 3 a 5 SM
3
–
90
16
118
116
182
8
533
+ 5 a 10 SM
1
–
38
9
35
44
50
4
181
+ 10 a 15 SM
–
2
6
3
5
6
4
–
26
+ 15 a 20 SM
–
–
3
3
3
4
2
–
15
+ 20 SM
–
5
1
–
2
–
–
–
8
sem rendimento
1
–
–
–
1
18
4
–
24
até 1/4 SM
sem declaração
total
1
–
–
–
13
45
49
24
132
88
7
436
78
1.478
3.306
4.229
2.313
11.935
Fonte: Censos Demográficos de Minas Gerais de 1980 e 1991. Arquivos de Setores Censitários.
Dados trabalhados pelo CEURB/UFMG.
As favelas da Região Metropolitana de Belo Horizonte: desafios e perspectivas
59
Considerações finais
Um balanço da situação em áreas de favela, entre 1980 e 1991, revela diferenças
entre as condições de moradia dessa áreas e as demais e, ao mesmo tempo, que ao
longo do período ocorreram melhorias no acesso aos serviços de infra-estrutura urbana
e também quanto à qualidade das moradias, através do registro do aumento do número
médio de cômodos e quartos por domicílio.
Em contrapartida, há um acréscimo, ainda que pouco significativo, dos domicílios
improvisados, revelando a dificuldade da população em ter acesso à moradia.
Mudanças também se verificam no perfil econômico, com a melhora do grau de
escolaridade, alterações na estrutura ocupacional de seus moradores, embora tenha
ocorrido no período uma piora acentuada dos níveis de renda e do desemprego que, no
entanto, não é característica apenas das áreas de favela. Essa situação induz às seguintes questões: estaria ocorrendo mudança do perfil da população moradora de favela,
que apresenta maior grau de escolaridade, de qualificação para o mercado de trabalho,
o que explicaria o surgimento de novas ocupações entre a sua população trabalhadora?
Ou o que está acontecendo é a transferência para as áreas de favela de uma população
até então moradora de outras áreas – uma estratégia de acesso à moradia? Ou ambas
as situações estão ocorrendo? Nesse caso, as áreas de favela continuam a ser o lugar
de moradia da população mais pobre, mas também passaram a abrigar uma população
menos carente, mais educada e qualificada, com perfil socioocupacional diferenciado.
Como afirmado no início, os resultados aqui apresentados são preliminares e a
manipulação de dados, especialmente os de 1980, serviu como “balão de ensaio”, uma
vez que até então eram pouco trabalhados. As respostas a essas questões dependem de
aprofundamento, de “refinamento” no tratamento dos dados e subseqüente análise, que
deverá incluir, principalmente, o cruzamento de variáveis, uma vez vencidos os desafios,
como os que foram aqui enfrentados, para compatibilizá-los.
A análise da situação das favelas sofre constrangimentos em razão da forma como
os dados censitários existentes estão disponibilizados, impondo limitações à análise. A
necessidade de enfrentar essas limitações enseja uma colaboração entre pesquisadores
das quatro metrópoles quanto à definição de uma metodologia específica para esses casos, com explicação e acordo quanto aos critérios a serem adotados.
Berenice Martins Guimarães
Professora visitante da UENF e pesquisadora do Ceurb/UFMG.
60
Cadernos Metrópole – n. 5
Notas
* Gostaria de agradecer a Saulo Guimarães Vasconcelos de Souza, responsável pela elaboração
das tabelas, cuja dedicação e empenho tornaram possível a realização desta análise comparativa, e a João Gabriel Teixeira pela leitura cuidadosa e discussão do texto.
1. Como já comentado em outro trabalho, a metodologia adotada pelo Censo para definir setores
favelados – a existência de 50 casas ou mais contíguas em um setor – acaba por introduzir
distorções na análise, uma vez que abrange moradias faveladas e não faveladas. Maiores informações a respeito, ver Guimarães (2000, pp. 351-374).
2. Em 1980 a Região Metropolitana de Belo Horizonte era composta por 14 municípios – Belo
Horizonte, Betim, Caeté, Contagem, Ibirité, Lagoa Santa, Nova Lima, Pedro Leopoldo, Raposos, Ribeirão das Neves, Rio Acima, Sabará, Santa Luzia e Vespasiano. A partir da Constituição
Estadual de 1989 a eles se somam os municípios de Brumadinho, Esmeraldas e Mateus Leme.
Pela Lei Complementar Estadual 26/93, Juatuba e São José da Lapa, emancipados de Mateus
Leme e Vespasiano, respectivamente, são também institucionalizados como municípios metropolitanos. Em dezembro de 1995 a RMBH passa a ter 26 municípios, resultado de novas
emancipações ocorridas com a inclusão de mais quatro municípios: Sarzedo e Mario Campos,
até então distritos de Ibirité, São Joaquim de Bicas pertencente a Igarapé e Confins a Lagoa
Santa, ratificadas através da Lei Complementar Estadual n. 48/97 que incorporou ainda mais
dois municípios, Florestal e Rio Manso. Em 2000 esse número se eleva para 35, com a agregação de mais nove municípios, a saber: Baldim, Barão de Cocais, Capim Branco, Itabirito,
Jaboticatubas, Matozinhos, Nova União, Santa Bárbara e Taquaraçu de Minas.
3. Denominação retirada do Censo e que se refere a um tipo de domicílio que não atende aos
padrões adequados de moradia, mas que não se encontra localizado em áreas identificadas
como de favela.
4. A cidade de Belo Horizonte é dividida em nove regionais: Barreiro, Centro Sul, Leste, Nordeste, Noroeste, Norte, Oeste, Pampulha e Venda Nova.
5- A pesquisa do Censo Demográfico abrange o universo em que se contempla um conjunto
limitado de variáveis e por amostra que inclui um número maior de informações.
Bibliografia
GUIMARÃES, B. M. (1987). A situação habitacional na Região Metropolitana e em Belo Horizonte. Belo Horizonte, Ceurb/UFMG.
________ (2000). “As vilas-favelas de Belo Horizonte – o desafio dos números”. In: RIBEIRO, L. C.
Q. (org.). O futuro das metrópoles: desigualdades e governabilidade. Rio de Janeiro, Revan.
LAGO, L. C. e RIBEIRO, L. C. Q. (1996). “A casa própria em tempo de crise: os novos padrões
de provisão de moradia nas grandes cidades”. In: RIBEIRO, L. C. Q. e AZEVEDO, S. (orgs.).
A crise da moradia nas grandes cidades: da questão da habitação à reforma urbana. Rio de
Janeiro, Editora UFRJ.
As favelas da Região Metropolitana de Belo Horizonte: desafios e perspectivas
61
LIPIETZ, A. (1996). “Globalização, reestruturação produtiva e impacto infra-urbano”. SEMINÁRIO
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O MANEJO DO SOLO: EXPERIÊNCIAS E POSSIBILIDADES.
Polis, número especial, n. 27. Anais. São Paulo.
MARICATO, E. (1996). Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência. São Paulo, Hucitec.
RIBEIRO, L. C. Q. e PECHMAN, R. M. (1983). O que é questão da moradia. São Paulo, Brasiliense.
TASCHNER, S. P. (1992). Mudanças no padrão de urbanização: novas abordagens para a década
de 90. Espaço e Debates, São Paulo, n. 36, pp. 77-90.
Favelas, invasões e ocupações coletivas
nas grandes cidades brasileiras –
(Re)Qualificando a questão
para Salvador- BA*
Ângela Gordilho Souza
Na atualidade das grandes cidades brasileiras, é visível o processo de favelização,
com a exclusão de grandes áreas de habitação de padrões urbanísticos de habitabilidade
aceitáveis. Esses espaços, produzidos no mercado informal, são ocupados à revelia das
leis e das normas estabelecidas para edificação e uso do solo, situação que se agrava
pelos processos intensivos de verticalização e densificação. Ainda que não se disponha
de dados precisos sobre o conjunto das ocupações informais nas configurações urbanas, estima-se que nas grandes capitais essas áreas abrigam cerca de 50% das suas
populações.
Este trabalho toma a cidade de Salvador como estudo de caso. Terceira maior em
população entre as capitais, nos seus 450 anos de história, Salvador acumula diversas
situações no processo de urbanização, configurando padrões diferenciados de produção
e ocupação do espaço urbano. Alguns, remanescentes do passado, resultam dos arrendamentos; outros, de loteamentos e de conjuntos habitacionais. A esses somam-se as invasões ou ocupações coletivas e os loteamentos clandestinos, como alternativas de moradia da população pobre. Com base em aerofotos e em pesquisa de campo, qualifica-se
esse espaço na sua pluralidade de ocupação, enfatizando a relação entre formalidade e
informalidade na configuração urbana, de acordo com a legislação urbanística atual. Os
resultados obtidos, inéditos na sua aplicação, poderão subsidiar projetos de melhoria e
estudos comparativos com outras metrópoles brasileiras.
64
Cadernos Metrópole – n. 5
Essas questões, certamente, representam um desafio para intervenções físicas
que objetivem a melhoria e a inclusão dessas imensas áreas de pobreza, o que vai exigir,
nos campos da arquitetura, do urbanismo e do planejamento urbano, a revisão de parâmetros técnicos e conceituais que propiciem a construção de cidades ambientalmente
desejáveis e socialmente mais justas.
O surgimento das favelas e da ocupação
informal nas cidades brasileiras
No século XX de urbanização intensiva e de desenvolvimento industrial, muito se
discutiu sobre a questão urbana, relacionando-a, sobretudo, ao problema do déficit habitacional. Nos países de economia avançada, verifica-se que as demandas materiais básicas de habitação, compreendendo edificação apropriada e infra-estrutura urbana adequada, foram contempladas para a grande maioria da população. Realizou-se esse intento com a ampla privatização do solo e da unidade habitacional, atendendo-se a diferentes
padrões formais de produção e configuração espacial da cidade.
No Brasil, as raízes da questão habitacional encontram-se, também, em sua essência estrutural, relacionadas a esses processos. Entretanto, revelam-se distintas em suas
características socioeconômicas e culturais, com diferenças na forma de produção e de
apropriação do solo, resultando em configurações espaciais próprias, o que exige análises específicas de tempo e lugar, ao serem consideradas perspectivas de mudança.
Nas chamadas economias periféricas, ainda que vigorosas – como no caso do
Brasil, que se mantém entre as dez maiores economias do mundo nas últimas décadas
–, a “casa própria” também acabou prevalecendo ao sistema de aluguel. Contudo, foi
viabilizada para uma grande parte da população por processos informais, com graves
problemas de condições de habitabilidade, como se verificará neste estudo.
Observando-se os diversos processos de urbanização dos maiores centros urbanos do Brasil, verifica-se que, guardando essa mesma propriedade da informalidade na
ocupação habitacional, eles trazem diferenças em sua constituição, com resultados espaciais similares e, ao mesmo tempo, distintos em cada cidade. Os estudos existentes
permitem delinear um breve histórico, que ilustra essa questão.
No Brasil pós-monarquia, a crise da habitação esteve vinculada basicamente ao
surto manufatureiro-industrial, surgido, ainda no final do século XIX, com mais vigor na
Região Sudeste. Nesse momento, de declínio da produção agroexportadora de açúcar,
café e algodão, intensifica-se a demanda por moradia nas áreas urbanas, em decorrência da abolição da escravatura e dos fluxos migratórios de trabalhadores expulsos do
campo, seja pela decadência da economia rural, seja pela modernização tecnológica da
Favelas, invasões e ocupações coletivas nas grandes cidades brasileiras
65
produção agrícola. Esse fenômeno manifesta-se de forma aguda nas primeiras décadas
deste século, quando, nos centros urbanos, havia uma situação praticamente em equilíbrio, embora deficiente, com os espaços de moradia constituídos, basicamente, de áreas
nobres e proletárias, essas últimas localizadas nos limtes intra-urbanos. Predominavam,
no mercado imobiliário, as relações de aluguel de casa, arrendamentos e aforamentos de
terras, particularmente em relação aos estratos sociais de renda baixa e média, já que os
de alta renda, constituídos de proletários de terras, mantinham um incipiente mercado de
lotes urbanos.1
Em São Paulo, a industrialização ampliou-se com maior intensidade já a partir do
início do século XX, com os investimentos de recursos excedentes da economia do café.
Promoveu-se uma urbanização acelerada para a capital, se bem que a crise da moradia
já se manifestasse desde o final do século passado, diretamente vinculada ao encortiçamento de habitações (hotel-cortiço, case de cômodos, cortiço improvisado e cortiçopátio), cuja intensificação foi inicialmente associada às atividades urbanas do complexo
cafeeiro. Nesse momento, levantava-se a discussão sobre “o que fazer com os cortiços”.
A vila higiênica, padrão popular proposto na legislação, foi a solução inicialmente apontada, seguida pelas vilas operárias, que passaram a ser instaladas junto às indústrias, nas
primeiras décadas deste século. Essa formas de habitação tinham em comum o fato de
serem quase todas coletivas e de aluguel. Contudo, para abrigar os grandes contingentes
populacionais de imigrantes que passaram a chegar a essa cidade, a forma de moradia
que irá predominar será a casa individual, autoconstruída, produção que vai crescendo,
aos poucos, com a abertura de loteamentos populares nos subúrbios e a formação de
novos bairros.
No Rio de Janeiro, sede do governo central, as habitações coletivas populares
começaram a proliferar já na segunda metade do século XIX, com a intensificação dos
cortiços, das casas de cômodos, das estalagens e das “cabeças de porco” (quartos
individuais, com cozinha e banheiro comuns), que surgiam como “solução lucrativa” nas
áreas centrais, num momento de grande crescimento populacional. Localizam-se nos
antigos casarões deixados para trás pelas famílias abastadas, que passam a ocupar bairros mais nobres nos arredores. O confinamento da moradia na área central propicia o
alastramento das epidemias, que logo deixam de estar circunscritas às áreas pobres,
assolando toda a cidade. Nessas circunstâncias, irá ocorrer o combate intensivo aos
cortiços, com intervenções públicas para sua eliminação, culminando com a expulsão de
inquilinos. Esses antigos moradores, diante da estreita capacidade de renda, passam a
buscar, como alternativa habitacional, a favelização dos morros do centro da cidade, o
que, no entanto, só se torna visível por volta dos anos quarenta deste século. Essa nova
situação habitacional é complementada pela suburbanização da população de média e
baixa renda, através da implantação de loteamentos populares em áreas mais distantes
do centro.
66
Cadernos Metrópole – n. 5
No caso de Salvador, cidade enfocada neste estudo, como primeira capital do
Brasil e uma das áreas urbanas mais antigas da América Latina, o processo de crescimento urbano industrial mais recente superpõe-se a outras características habitacionais herdadas do passado. A cidade manteve, até meados do século XX, uma estrutura
fundiária, baseada em arrendamentos de glebas públicas e privadas. A subdivisão dos
antigos sobrados do centro histórico para aluguel, prática surgida no final do século passado, com a abertura de novas áreas habitacionais nos arredores imediatos para famílias
abastadas vai, gradativamente, dando lugar aos cortiços. Esses perduram, associados
aos “abecedários”, aos “becos” e às “casas de avenida”, que surgem como forma de
habitação popular na virada do século, expandindo-se até a década de 1940, quando
grandes levas de população passam a chegar da zona rural em busca de trabalho. Essa
situação de moradia logo dá sinais de esgotamento, com o aumento dos valores cobrados nos aluguéis. Surgem vários loteamentos populares no subúrbio ferroviário, os
quais, contudo, ficam vazios por um longo tempo, pela baixa capacidade de consumo
desses novos imigrantes. A situação, finalmente, será “resolvida” pelo desbloqueio das
áreas periféricas de arrendamento, através das ocupações coletivas do tipo “invasão”,
denominação que será amplamente utilizada para esse tipo de habitação, intensificada a
partir de então.
Nessas cidades, no primeiro momento de intensa demanda por novas habitações,
ocorreu, evidentemente, uma elevação abrupta de preços de aluguéis, ao tempo em que
se registravam grandes “cirurgias” urbanísticas nos velhos centros, o que contribuía para
expulsar as populações das habitações proletárias antigas para as periferias imediatas.
Essas ocupações populares, localizadas na proximidade dos centros urbanos e nas vizinhanças consolidadas, caracterizadas por altas densidades e condições sanitárias precárias, logo suscitaram intensas discussões de cunho “higienista”, de combate às áreas
insalubres e aos casebres, culminando com políticas de saúde pública, saneamento e
embelezamento. Combate-se, dessa forma, a “desordem” aparente. Predominava a idéia
de que a pobreza eliminada com o desenvolvimento, quando os trabalhadores, habitando
em casas próprias e bairros adequados, tal como já ocorria nos países industrializados,
seriam assimilados pela sociedade capitalista que emergia, desenvolvida e moderna.
De fato, verifica-se, nas cidades pioneiras da ampliação urbano-industrial brasileira, que as diferentes soluções encontradas para a crise habitacional também irão resultar
no rompimento do sistema de aluguel. Manifesta-se, em geral, uma crescente oferta de
loteamentos populares no mercado imobiliário, solução que logo será seguida pela produção estatal de moradia, em grandes conjuntos habitacionais. Ampliam-se, assim, as
possibilidades da “casa própria” no Brasil, verificando-se que, em 1940, apenas 26,4%
dos domicílios eram próprios; já em 1980 esse último número passa a 54,5%. Tal fenômeno parece ter ocorrido com mais intensidade entre as camadas sociais de menor
renda do que entre os estratos médios (Ribeiro, 1996).
Favelas, invasões e ocupações coletivas nas grandes cidades brasileiras
67
Contudo, diferentemente dos países centrais, a “privatização” da habitação, nessa
realidade, expandiu-se, prioritariamente, mediante ocupações informais. Observe-se que,
na condição de “casa própria”, encontram-se também aquelas situações produzidas à
revelia dos controles formais (Estado e mercado), tais como favelas, invasões e loteamentos clandestinos. Essas “soluções” foram oferecidas pelo mercado clandestino ou mesmo conquistadas pelas populações pobres, mantendo-se como alternativa habitacional
paralela aos circuitos do mercado formal, até o dias atuais.
Para melhor entender essa dinâmica habitacional que se inaugura com a apropriação privatizada da moradia, é necessário reportar-se à questão da posse da terra como
mercadoria, que, no Brasil, tem suas bases fincadas na Lei de Terras de 1850. Para
Raquel Rolnik, a promulgação da Lei de Terras marca um corte fundamental na forma
de apropriação da terra no Brasil, com grandes conseqüências para o desenvolvimento
das cidades. A partir desse momento, a única forma legal de posse da terra passou a ser
a compra devidamente registrada. Duas implicações imediatas dessa mudança são salientadas na sua análise: “a absolutização da propriedade, ou seja, o reconhecimento do
direito de acesso se desvincula da condição de efetiva ocupação, e sua monetarização, o
que significa que a terra passou a adquirir plenamente o estatuto de mercadoria” (Rolnik,
1997, p. 23).
Desde a aprovação dessa lei, modificou-se o processo de aquisição e transmissão
de terra, tendo sido incorporado também um vasto patrimônio de terras públicas devolutas ao setor privado, medidas que trarão forte impacto na estruturação do espaço urbano
e no acesso à habitação. Ermínia Maricato analisa essa questão, ressaltando o desdobramento que teve para o mercado fundiário e imobiliário, fundado em relações capitalistas e
em um novo aparato legal urbano (Maricato, 1996).
Assim, até as primeiras décadas do século XX, predominavam, nas áreas urbanas,
os antigos instrumentos para posse e uso da terra, baseados em concessões e arrendamentos, sendo grande parte dessas terras pertencentes ao poder público (Teixeira,
1978). Esses instrumentos foram paulatinamente substituídos pelo novo sistema de compra e venda de glebas e terrenos, dando origem aos futuros parcelamentos de chácaras e
loteamentos nos arrabaldes da área urbana.
O desbloqueio fundiário irá incrementar um novo segmento da economia urbana,
os empreendimentos imobiliários. O processo de produção habitacional, que, até então,
envolvia o proprietário fundiário, o construtor e o usuário, aciona o papel do incorporador, que dinamizará a produção capitalista de moradias, passando a produzir mercadorias
imobiliários eminentemente no mercado de vendas. O sistema rentista de produção da
habitação, que havia predominado sob a regência do detentor da posse da terra, gradativamente passa a ser substituído pelo capital imobiliário moderno (Ribeiro, 1996).
Entendendo-se que essa é uma das condições básicas para a estruturação da
cidade contemporânea e considerando o fato de que, no espaço construído, sobrevivem
68
Cadernos Metrópole – n. 5
usos e apropriações não regulados pela lei do valor, a questão fundiária será enfrentada
com maiores dificuldades pelo capital. Daí porque o Estado também intervém, através
de políticas urbanas, promovendo adaptações do espaço à lógica dominante, através de
desapropriações, já que nem sempre é possível garantir essa adaptação simplesmente
pelas próprias leis econômicas do mercado de oferta e procura.
Nesse início de século surgem também, como marco na ocupação e produção do
espaço construído, os primeiros planos urbanísticos modernos para as grandes cidades
brasileiras, com novas concepções espaciais e a definição de medidas das administrações públicas para um novo funcionamento da cidade, pautadas em regulamentos para
uso e ocupação do solo. A legislação urbanística no Brasil tem suas primeiras medidas
oficializadas ainda no final do século passado, através dos Códigos de Posturas Municipais de São Paulo (1886) e do Rio de Janeiro (1889), proibindo a construção de "edificações acanhadas" nas áreas mais centrais (Maricato, 1996, p. 38). Além das restrições
impostas às habitações coletivas insalubres, incentivava-se construção de habitações
“higiênicas” e a abertura de novos loteamentos, o que iria caracterizar novas formas de
atuação do Estado no espaço urbano.
Os primeiros códigos, estabelecidos no âmbito da política sanitarista, limitavam
a construção de vilas operárias em terrenos fora da aglomeração urbana, definiam um
número máximo de unidades a serem agrupadas e proibiam a subdivisão em habitações
coletivas. Para São Paulo, em 1894, criou-se o primeiro Código Sanitário Estadual, que
adotou um posicionamento rígido nesse sentido. Ainda nessa mesma época, foram estabelecidas as primeiras medidas normativas urbanísticas, que deram origem à exclusividade de determinados bairros para fins residenciais, criando normas diferenciadas e uma
maior permissividade de uso nas ocupações da periferia.
O estabelecimento da legislação, desde os seus primórdios, em nome da questão
higiênica, não necessariamente implicou a garantia de melhores condições de habitabilidade nas cidades. Por um lado, as normas seletivas para os tipos de habitação em determinadas áreas urbanas contribuíram para intensificar o processo de segregação espacial
da população pobre, empurrada para a periferia desde então. Por outro, ampliaram as
possibilidades de lucros imobiliários, ao fortalecer a segmentação da cidade por grupos
de renda e, consequentemente, diferenciar o espaço construído. Considere-se, ainda,
que há uma certa omissão do poder público em relação à forma de ocupação dos bairros pobres, deixando-os crescerem à revelia. Essas questões, certamente, comprometem
não só a eficácia do aparato urbanístico, como suas próprias definições.
Nesse sentido, o estudo histórico de Raquel Rolnik sobre a emergência de uma
“ordem urbanística” na cidade de São Paulo demonstra que esta esteve estreitamente
vinculada aos interesses do capital imobiliário moderno e das elites locais. Como salientado, isso ocorre desde a sua origem, no início deste século e, posteriormente, submetese à legitimação de ocupações irregulares, fazendo emergir, numa atitude permanente
Favelas, invasões e ocupações coletivas nas grandes cidades brasileiras
69
de tolerância, uma espécie de direito não-oficial. A referida autora leva a entender que
a desordem aparente é fruto não da “falta de plano”, mas da formulação de um “pacto
territorial” que preside o desenvolvimento da cidade, “impedindo-a de crescer com graça,
justiça e beleza” (Rolnik, 1997, p. 14)
A urbanização acelerada verificada nas primeiras décadas deste século logo suscitou a discussão do déficit habitacional, entendido como defasagem entre crescimento
populacional e ofertas de novas moradias. Segundo essa perspectiva, esse seria o principal motivo que teria levado ao surgimento de habitações precárias e à elevação dos
preços da moradia no mercado. Essa visão é contestada por Ribeiro e Pechman, com a
seguinte argumentação: “Se existe ‘déficit habitacional’ é porque grande parte da população urbana brasileira está excluída do mercado da produção de moradias”. Para esses
autores, são duas as razões: “de um lado, uma distribuição profundamente desigual da
renda gerada na economia e, de outro lado, as condições que regem a produção capitalista de moradias no Brasil, que impõem um elevado preço ao direito de habitar na cidade” (Ribeiro e Pechman, 1983, p. 9).
Isso se evidencia com a ampliação do fenômeno de favelas,2 como forma de eliminar os custos com aluguel, bem como com a grande quantidade de loteamentos irregulares e clandestinos, produzidos a custos mínimos, configurando um mercado paralelo ao
segmento formal. São situações que irão demarcar uma intensa segregação da pobreza
no espaço urbano.
Em relação ao capital imobiliário crescente, este implantou inúmeros loteamentos
nos arredores urbanos, com características e investimentos diferenciados. Não encontrando uma ampla demanda solvável, capaz de, ao mesmo tempo, pagar pelo lote e pela construção de habitação, esses empreendimentos restringem-se, para as populações
pobres, aos parcelamentos do tipo popular, sem infra-estrutura sanitária e viária, localizados em terras distantes, na periferia, em setores urbanos de menor valor na composição
imobiliária. Em razão dos baixos índices de absorção, no mercado formal, das pessoas
recém-chegadas à cidade, que se ocupavam, basicamente, de prestação de serviços e
biscates, portanto com ganhos insuficientes para aquisição de habitação pronta, restavalhes a opção da compra do lote. Esses novos proprietários, geralmente, mantinham o
aluguel anterior, até quando, quitado o lote, iniciavam aos poucos a autoconstrução da
casa. Isso ocorre mesmo no caso de São Paulo, onde o operariado industrial constituía
um segmento crescente (Bonduki, 1999).
Assim, mesmo havendo uma crescente demanda e uma significativa oferta de lotes, grande parte da população não tinha condições de acesso à habitação formal. Intensificam-se as favelas e os loteamentos clandestinos, o que acaba por pressionar o poder
público a tomar novas atitudes. O problema da habitação, portanto, não podendo ser resolvido plenamente pelas leis de mercado, logo encontrará, no Estado Novo, as iniciativas
necessárias para enfrentá-lo, através da produção da habitação social.
70
Cadernos Metrópole – n. 5
As primeiras iniciativas ocorreram através dos Institutos de Aposentadoria e Previdência – IAPs, criados nos anos 30, através das carteiras prediais para cada categoria
profissional (operariado e funcionários públicos). Porém não tinham como objetivo enfrentar a questão da moradia para a população em geral, atendendo apenas aos associados.
Essa atuação foi seguida, em 1946, pela instituição de um primeiro órgão, criado no
âmbito federal com a atribuição exclusiva de solucionar o problema habitacional, a Fundação da Casa Popular – FCP (Decreto Lei n. 9.218 de 1/5/46), que atuou até os anos
60, quando foi extinta, embora com produção pouco significativa (Azevedo e Andrade,
1982).3 As análises realizadas sobre esse período de produção da habitação social indicam que o fracasso da FCP atrasou em vinte anos a formulação de uma política habitacional consistente, levando a que as soluções acabassem transferidas para os próprios
trabalhadores, através do auto-empreendimento (Bonduki, 1999).
A produção de habitação no Brasil e sua relação com as políticas públicas sofreram grandes mudanças no período pós-Segunda Guerra. No bojo dessas mudanças
estava, evidentemente, a ampliação do modelo de desenvolvimento industrial moderno
para todo o país. Intensificam-se os fluxos migratórios inter-regionais e os processos de
urbanização acelerados nas demais cidades-capitais, tendo a população urbana passado
de 30%, nas décadas de 1930/40, para um índice atual de 75,5%, em relação à população do campo (IBGE, Censo 1991).
As grandes mudanças econômicas e políticas implicaram, também, uma nova ordem socioespacial e novas funções para o Estado, no setor urbano, que passa a interagir
com os segmentos capitalistas, industriais e imobiliários, e com um contingente de população maior, mais concentrado e diversificado. O conseqüente processo de reestruturação do espaço, que então se inicia, teve a habitação como a forma de ocupação mais
dinâmica nesse processo.
Esse é um momento em que vêm à tona as primeiras questões sobre erradicação
de favelas, associadas ao “atendimento” de déficits habitacionais, que serão enfrentadas por uma nova política habitacional, com a criação do Banco Nacional de Habitação – BNH (Lei n. 4.380/64). O BNH, utilizando os recursos do FGTS e da Poupança,
foi investido nas funções de órgão central dos Sistemas Financeiros da Habitação e do
Saneamento, com competência federal para orientar, disciplinar e controlar os referidos
sistemas, visando a promover a construção e a aquisição da casa própria, especialmente
para as classes de menor renda (Azevedo e Andrade, 1982).
Os interesses da indústria de construção e do setor financeiro desempenham papel fundamental na formação da política habitacional (Melo, 1988). A produção para as
classes de renda mais alta foi intermediada pelos bancos privados, que financiavam diretamente as empresas incorporadoras e, finda a construção, repassavam os financiamentos de longo prazo para os mutuários finais. Em relação às famílias de renda mais baixa,
o sistema funcionava através de empresas públicas, as COHABs locais, responsáveis,
Favelas, invasões e ocupações coletivas nas grandes cidades brasileiras
71
basicamente, pela produção de habitações para as faixas entre 3 SM até 5 SM, e os
INOCOOPs, para faixas até 12 SM, nesses casos, construindo-se através de empreiteiras. Estavam excluídas, portanto, as famílias que não dispunham de renda mínima ou
comprovação de renda. Assim, montada sobre um sistema que privilegiou os agentes financeiros, incorporadores e empreiteiros, essa política habitacional dinamizou amplamente o setor de construção civil, uma vez que os financiamentos foram dirigidos diretamente
ao produtor.
Por conseguinte, as cidades-capitais, impulsionadas por grandes investimentos
públicos a partir do final dos anos 60, registraram intensos processos de produção imobiliária e expansão urbana. Isso irá ocorrer paralelamente à implantação de pólos industriais
fora da Região Sudeste, instituindo-se também as regiões metropolitanas, áreas cruciais
para a expansão do modelo de desenvolvimento industrial que então se ampliou no território brasileiro. Embora esse seja um período de grandes investimentos e de crescimento
econômico, o percentual de recursos públicos efetivamente investido em habitação social e os baixos índices de salário mínimo impostos à maior parte da população brasileira
não permitiram reverter o quadro de favelização das grandes cidades.
As primeiras tentativas de intervenção por meio dessa nova política ocorreram no
Rio de Janeiro, transformando-se numa situação emblemática. Inúmeras favelas, localizadas na área central, foram removidas para conjuntos habitacionais na periferia, mas logo
se verificou o “retorno à favela”. Entre outras questões, ressalta-se a inadimplência do
mutuário, diante da impossibilidade de arcar com os custos de financiamento da nova
habitação (Valladares, 1978).
Até final dos anos 70, o sistema BNH/SFH deu ênfase à produção de novas unidades em conjuntos habitacionais de casas e apartamentos na periferia. Os limites da demanda solvável logo impuseram outros projetos, envolvendo a auto-construção, tais como
lotes urbanizados, unidades-embrião, além da tentativa de uso de tecnologias alternativas
para a construção, que evidentemente não lograram sucesso no seu intento, diante da
estreita possibilidade de retorno do investimento. Por outro lado, a persistência das favelas e de parcelamentos informais fez expandir o financiamento público para outros tipos
de atuação, que passaram a considerar a favela como solução. Nesse sentido, na década
de 1980 incrementaram-se os financiamentos do BNH/SFH para intervenções em áreas
ocupadas, tais como infra-estruturação, enfim, medidas para urbanização e melhoria de
áreas ocupadas informalmente. Ampliam-se as redes de infra-estrutura urbana básica de
água, energia e sistema viário nas grandes cidades (Melo, 1989).
No cômputo geral, a produção de habitação formal, intermediada por esse sistema
estatal, foi extremamente significativa, através de financiamentos de longa duração para
aquisição de casa própria. O sistema acabou promovendo subsídios ao mutuário, pelas
contingências dos altos índices de inflação, embora esse benefício tenha recaído prioritariamente sobre as classes de renda média, alvo da maior parte dos financiamentos.
72
Cadernos Metrópole – n. 5
Os altos subsídios impostos pela inflação e a inadimplência crescente foram alguns dos fatores que contribuíram para a extinção do BNH em 1986, seguida pelo retraimento do sistema de financiamento público. Durante o período de vigência do BNH
(1964/86), a produção correspondeu a um total de 4,5 milhões de unidades, o que representa em torno de 25% do parque imobiliário brasileiro produzido para o período. Desse
total, somente 1,5 milhão de unidades (33,3%) destinou-se às camadas populares da
população, tenso sido produzidas apenas 250 mil unidades em programas alternativos,
ou seja, para renda de 1-3 SM (Azevedo, 1988).
Ainda que se ressaltem os resultados quantitativos, muitas críticas foram feitas
em relação à qualidade e aos custos exacerbados desses investimentos. Por outro lado,
acreditava-se que o mercado e as políticas públicas, com o desenvolvimento industrial,
responderiam às demandas que se colocavam, o que, no entanto, não se configurou plenamente, devido principalmente ao fato de que o sistema foi montado para sobreviver
com níveis de renda compatíveis aos custos de produção, o que se tornou inviável com
os índices de acirramento da pobreza registrados no Brasil.
Dessa forma, na configuração urbana, esse tipo de produção habitacional teve um
papel marcante na expansão da área construída das grandes cidades. Traduziu-se, basicamente, em dois padrões: um, para as rendas mais altas, através da edificação de unidades habitacionais mais individualizadas, localizadas próximas à área central da cidade;
o outro, para as famílias de renda mais baixa, com limite máximo até 12 SM, através da
construção, em massa, de conjuntos de casas e blocos de apartamentos de padrão bastante homogêneo e precário, edificados em série, formando grandes aglomerados isolados nas periferias urbanas. Afasta-se, assim, a população de renda mais baixa para áreas
mais distantes, o que representa um dos processos indutores da segregação espacial
por classes de renda, com expressão física diferenciada em relação ao que se verificou
nos países centrais, onde as áreas de habitação das faixas de renda mais pobres estão
próximas do centro urbano.
Assim, no Brasil, a descentralização urbana através da habitação, na forma como
se verificou nessa segunda metade do século, foi marcada pela “periferização” das populações mais pobres, seja aquelas de baixíssima renda, confinadas nas favelas e loteamentos irregulares e clandestinos, seja aquelas de renda um pouco superior, que passaram a
morar nos conjuntos do BNH. As áreas centrais e os arredores imediatos, ocupados pelas camadas de renda mais altas, alvos dos sucessivos loteamentos formais implantados
a partir das primeiras décadas do século XX, são aqueles privilegiadamente beneficiados
pela infra-estrutura urbana, seletivamente mantidos em bons padrões de habitabilidade,
serviços e equipamentos urbanos.
Lícia Valladares, com base na literatura acadêmica nacional produzida sobre essa
questão e tomando como referência os estudos pioneiros de Nabil Bonduki (1999) e Raquel
Rolnik (1986) e de Carlos Nelson Santos (1981) para São Paulo e Rio de Janeiro, sintetiza:
Favelas, invasões e ocupações coletivas nas grandes cidades brasileiras
73
Acompanhando o processo de metropolização, assistiu-se ao que os cientistas
sociais brasileiros denominaram “periferização”: o crescimento rápido e desordenado das franjas metropolitanas a partir de processos de parcelamento do
solo levados a cabo por pequenos e médios agentes imobiliários que se especializaram em “driblar” a legislação urbanística, criando loteamentos irregulares,
muitas vezes clandestinos. Periferização refere-se também ao processo de segregação espacial da classe trabalhadora, empurrada cada vez mais para longe
da área central da cidade, confinada em espaços marcados pela escassez de
serviços urbanos e equipamentos de uso coletivo. O fenômeno é o resultado de
uma combinação de fatores: o empobrecimento crescente dos estratos baixos
e da classe trabalhadora em geral: a expulsão das áreas centrais através de
programas de remoção e renovação urbana; expulsão indireta viabilizada por alterações na legislação urbana, nos impostos e nas leis que regem o mercado do
aluguel; a crescente especulação imobiliária. (Valladares, 1991, pp. 102-103)
Nessas grandes metrópoles, no início dos anos 80, embora as favelas continuassem a crescer, já não cresciam tanto quanto os loteamentos populares implantados nas
periferias. No Rio de Janeiro, em 1980, havia 376 favelas e 427 loteamentos irregulares.
Desses, cerca de 60% surgiram na década de 1960/70, o que ocorre em paralelo à diminuição da taxa de crescimento da população favelada, que passou de 97,9%, em 1960, a
68,7%, em 1970, e a 27,8%, em 1980 (Cavallieri, 1986 apud Valladares, 1991, pp. 102103). Essas tendências levam os referidos autores a sustentar a hipótese da saturação
do “modelo favela” e ascensão do “modelo periferia” como forma de configuração urbana
e alternativa habitacional. Nessas circunstâncias, o trinômio loteamento periférico – casa
própria – autoconstrução foi a forma que viabilizou a moradia para uma grande parte da
população de baixa renda, padrão que deu origem a uma ampla gama de soluções habitacionais de baixo custo (Bonduki, 1999, p. 12). Na expansão periférica ocorrida nessas
cidades destaca-se a ação dos loteadores, que se caracteriza pelo modo arbitrário e
especulativo como definiram o parcelamento do espaço. No entanto, ela esteve estreitamente articulada com outros segmentos da iniciativa privada, como o transporte coletivo,
sob uma vigilância pouco eficaz do poder público (Sampaio, 1994).
As primeiras iniciativas para controle dessa questão surgem com medidas punitivas
anunciadas na famosa Lei 6.766/79. Atendendo a uma reivindicação popular, essa lei criminaliza o loteador “clandestino”, possibilitando, inclusive, a suspensão do pagamento, tendo
em vista a viabilização de obras de infra-estrutura não implantadas. Constituindo-se num
ganho político para os adquirentes dos lotes, essas medidas acabaram contribuindo para o
recuo de novos projetos do tipo “loteamento popular”, fazendo declinar a produção. Sobre
os impactos da referida lei na produção do espaço urbano, Ermínia Maricato comenta que,
em última instância, ela contribuiu também para o fortalecimento do mercado
capitalista formal e para segregação ambiental, ao evitar que a terra urbana,
bem cada vez mais escasso nas metrópoles, fosse parcelada irregularmente
(mercado informal) por causa de exigências urbanísticas e burocráticas. (1996,
pp. 47-48)
74
Cadernos Metrópole – n. 5
Portanto, na questão da provisão habitacional para as camadas de baixa renda,
o final dos anos 80 traz um panorama de recuo na produção formal, seja pela fase de
recesso que se estabelece no SFH, com a extinção do BNH – mesmo tendo a Caixa Econômica como responsável pelos contratos pendentes e novos –, seja pela baixa oferta de
loteamentos populares produzidos pela iniciativa privada.
Por outro lado, no panorama da economia mundial, o período de crise econômica,
que vem se intensificando desde o final dos anos 70 até os dias atuais, tem se refletido,
evidentemente, em todos os processos e instâncias da sociedade brasileira. Nesse sentido, apesar do significativo desenvolvimento industrial ocorrido no Brasil nas últimas décadas, o mercado de trabalho formal e modernizado não tem sido suficiente para absorver
o grande contingente populacional que hoje habita nas áreas urbanas. Essa situação tem
se agravado diante do rebaixamento do poder aquisitivo do salário mínimo, que se depreciou em torno de 75% em relação à década de 1950. Mais grave ainda, na distribuição
de renda, é a constatação de que, no início dos anos 90, 55,5% dos trabalhadores brasileiros (chefes de domicílio) ganhavam menos de 2 SM e apenas 2,2% mais de 20 SM
(IBGE, Resultados Preliminares do Censo 1991).
Esses fatores contribuíram para que, nas grandes cidades e regiões metropolitanas, ocorresse um recrudescimento do processo de favelização, com a intensificação de
ocupações coletivas, densificação e verticalização das velhas favelas, como alternativa
para as populações “sem-teto” e “sem-emprego”, observando-se também a intensificação de cortiços nas áreas centrais.4
Quase sempre, esses aglomerados habitacionais precários surgiram em situação
de conflito com relação à propriedade do solo, ao mercado imobiliário e à imagem urbana
capitalista. No entanto, parecem ter sido absorvidos, por representar o menor custo possível para o capital em geral, no seu processo de acumulação, no que tange à reprodução
da força de trabalho.
É possível afirmar que a expectativa do caráter “provisório” desse tipo de ocupação habitacional, fadado tendencialmente a desaparecer com o “desenvolvimento” da
lógica capitalista de produção do espaço, não se confirma na realidade brasileira. Ante
as intensas demandas ocorridas neste século, a “desordem” não foi resolvida, nem pelas
concepções de planos urbanísticos modernos, nem pela via do mercado, nem pelas políticas habitacionais de erradicação de favelas e construção de conjuntos nas periferias
urbanas.
Esse processo resultou, efetivamente, na consolidação de uma intensa segregação
espacial entre pobreza e riqueza, constituída por processos sucessivos de conquista da
“casa própria” através de diferentes modalidades de produção da moradia. Atualmente,
essas formas de ocupação configuram um ambiente construído extremamente precário,
segmentado, complexo, guetificado pela violência urbana, excluindo grande parte de seus
moradores dos direitos urbanos, enfim, do habitar dignamente.
Favelas, invasões e ocupações coletivas nas grandes cidades brasileiras
75
Os índices de favela se ampliam na década de 1980
Em relação aos índices de população nas áreas de favela nas grandes cidades
brasileiras, os estudos locais existentes são indicadores da gravidade da situação, apontando, no início da década de 1990, para estimativas próximas a 20% do total de população dos municípios-capitais, dados esses também imprecisos e até contraditórios, se
comparados às estimativas oficiais.
O Censo Demográfico de 1991 indicou, para o Brasil, um total de 1.144.344 domicílios implantados em 3.346 favelas, aproximadamente 70% desse montante nas áreas
metropolitanas (IBGE, 1991). Considerando-se a média brasileira, em torno de 4 hab./domicílio, à época, esse indicador apontaria para aproximadamente 4,5 milhões de habitantes
morando em favelas, o que representa 4% do total de 110 milhões de habitantes morando
em áreas urbanas, conforme o Censo de 1991. Portanto, essa estimativa mostra-se irrisória
diante da realidade visível e dos dados parciais encontrados para as cidades brasileiras.
Esse tipo de levantamento do IBGE, que considera “aglomerados subnormais”
aqueles com mais de 51 domicílios, iniciado no Censo de 1980, ainda que possivelmente subdimensionado, indica, comparando-se ao de 1991, um crescimento considerável
no número de unidades faveladas: “Se, em 1980, o IBGE computou 480.595 unidades
faveladas, 1,89% dos domicílios brasileiros, em 1991 o percentual subia para 3,28%”
(Taschner, 1997, p. 11).
Procedendo a uma análise comparativa de estudos existentes para algumas das
grandes cidades brasileiras, Suzana Taschner (1997) indica, para 1991, no município
de São Paulo, 11,3% da população morando em favelas; no Rio de Janeiro, registrava-se
17,5%; em Belo Horizonte, a população favelada representava cerca de 400 mil pessoas,
quase 20% da população total; para Salvador, em relação às ocupações coletivas do tipo
invasões, registrava-se um índice próximo a 30% do total de população municipal, cerca
de 590 mil pessoas; para Brasília, onde as cidades-satélites se constituíram nas áreas
absorvedoras da população pobre e das favelas que foram removidas do Plano Piloto, em
1991, esse fenômeno alcançava, no conjunto, cerca de 75% da população do Distrito
Federal, nas cidades-satélites.5
Quanto ao crescimento da população em favela registrado nessas grandes cidades, na última década foram observados os seguintes indicadores: em São Paulo, em
1987, a taxa de crescimento da população favelada era de 8% e, em 1993, passou para
19,4% (Sehab, 1987 e Fipe 1993, apud Maricato, 1996, p. 27); no Rio de Janeiro, o
crescimento de população em favela foi de 32%, enquanto que, na cidade como um todo,
o crescimento médio foi de apenas 17% (Sempla, 1992, apud Ribeiro e Azevedo, 1996,
p. 14). Também em Belo Horizonte, observa-se o mesmo fenômeno, registrando-se, entre
1981 e 1991, para a cidade, um crescimento de 13,25%, e para a população favelada,
76
Cadernos Metrópole – n. 5
58,9% (Guimarães, 1992, apud Ribeiro e Azevedo, 1996, p. 14). Para Salvador, tem-se
que, de 1981 a 1991, a área ocupada por invasões representou quase 40% (575,95 ha)
do total de ocupação até então registrada para esse tipo de moradia, desde a primeira
ocorrência em 1946, o que corresponde a 1.473,06 ha (Gordilho-Souza, 1993, p. 98).
Observe-se que as denominações favela e invasão se aproximam quanto ao sentido, mas não corresponde exatamente aos mesmos tipos de ocupação popular nas diferentes cidades. Uma área originada por invasão coletiva, geralmente, constitui uma favela,
mas não necessariamente uma favela origina-se por invasão coletiva, podendo ter havido
permissão de uso, como no caso das pioneiras, no Rio de Janeiro. Para Salvador, os índices revelados para as áreas de ocupação coletiva por invasão não dão conta da questão
da legalidade da ocupação habitacional, tampouco das condições precárias de habitação
na cidade. Como se demonstrará, esse percentual é muito maior, abrangendo outras formas de ocupação habitacional informais e uma complexidade de situações que também
poderiam ser consideradas favelas, entendidas como áreas habitacionais precárias de
ocupação ilegal.
Ainda conforme as análises comparativas de Suzana Taschner, ao considerar as
limitações de leitura para as condições de habitabilidade nas favelas de São Paulo e do
Rio de Janeiro, a autora salienta que “faltam informações sobre as características dessas
aglomerações e o perfil socioeconômico dos seus residentes”. Além disso, os critérios
das pesquisas são diferenciados, o que dificulta uma comparação mais precisa, seja numa mesma cidade ou entre cidades (Taschner, 1997, p. 11).
Esses quantitativos, para o Brasil, são, no mínimo, indicadores da amplitude e permanência de processos aleatórios na modificação e produção do ambiente construído,
que geraram cidades justapostas, construídas por muitas mãos, em tempos diferentes e a
partir de lógicas diversas, derivadas de processos de ocupação diferenciados. Foram lastreados, nas últimas décadas, pela intensiva especulação imobiliária, pelos altos índices
de imigração e pobreza e pela forte omissão do poder público ante os interesses e direitos coletivos, fatores que, no conjunto, interferem na qualidade do ambiente construído.
Legalidade urbanística, segregação
e exclusão em Salvador, 1991
Salvador representa uma referência urbana importante no Brasil, não só por sua
dimensão populacional, atualmente em torno de 2,5 milhões de habitantes, tendo sido
apontada, no Censo de 1991, como a terceira maior capital do país (2.072.058 hab.),
depois de São Paulo (9.626.894 hab.) e Rio de Janeiro (5.473.909 hab.), mas sobretudo,
pelo seus 450 anos de história. Constituindo uma das colonizações urbanas mais antigas
Favelas, invasões e ocupações coletivas nas grandes cidades brasileiras
77
da América Latina, salienta-se por sua densidade histórica e cultural, o que lhe confere uma forte identidade no processo urbano de transformação, na contemporaneidade.
Como primeira capital do país, desde os tempos coloniais atraiu grandes investimentos.
Essa posição conferiu-lhe um grande e significativo acervo arquitetônico colonial, particularmente localizado na sua área urbana central, constituindo um dos mais importantes
referenciais do patrimônio histórico no Brasil. Foi um dos primeiros centros industriais
brasileiros, ainda no século XIX, produzindo complementos para o setor agro-exportador.
Na década de 1950, passa a constituir a principal referência nordestina no movimento
de ampliação do processo de industrialização moderno, iniciado no Centro-Sul, com a
instalação da Chesf e da Petrobrás na Bahia. Esse papel se fortalece nas décadas de
1960/70, com a implantação do Centro Industrial de Aratu (CIA) e do Pólo Petroquímico
de Camaçari (Copec), consolidando a instituição da sua região metropolitana. Nos últimos anos, tem sido objeto de intensivos investimentos no setor de serviços voltado para
o turismo, ocupando o terceiro lugar, dentre as capitais, no fluxo nacional.6
Em relação às demais regiões metropolitanas do país, a de Salvador, no último
Censo, constituía a sexta maior em população, abrigando 2.496.521 habitantes, dos
quais 83% residentes na capital (IBGE, 1991). Isso se reflete na amplitude do espaço
construído contínuo, que pouco ultrapassa o limite do município-sede, o qual, por sua
vez, detém 313 km² do total da região, com 2.213 km². Nessa fase de metropolização,
o processo de conurbação apenas atinge alguns dos municípios vizinhos, sendo a maior
parte dessa ocupação constituída de áreas industriais.
Ao longo desse processo, Salvador tem sido objeto de um intenso processo de urbanização e de transformações sociais e espaciais, o que lhe confere uma superposição
de padrões diferenciados de ocupação e de produção do espaço construído. Alguns,
remanescentes do passado, resultam de posse imobiliária dividida – os arrendamentos
–, seguidos por aqueles produzidos pelo capital imobiliário. Outros foram originalmente
produzidos por processos não capitalistas, que tiveram, nas invasões, a alternativa habitacional para os grandes contingentes de população pobre imigrante do campo. Para
identifica-los nessa justaposição, consideram-se como principais indicadores os processos de produção e apropriação privatizada na fragmentação do solo e o atendimento às
normas urbanísticas relativas aos parcelamentos para habitação.
Para a composição dessas informações, foram verificadas enormes limitações na
coleta de dados em fontes oficiais. O censo restringe-se ao domicílio, com poucos informações sobre o lote em si. Em relação à irregularidade urbanística, as informações
dependem das prefeituras locais, que nem sempre têm esses dados sistematizados. Dessa forma, buscou-se montar uma metodologia própria, privilegiando-se como informação
básica a macrodistinção de uso e ocupação do solo e as características dos parcelamentos para habitação, distinguindo-se as subáreas homogêneas conforme indicadores
preestabelecidos. Para isso, foram considerados os dados oficiais para os loteamentos
78
Cadernos Metrópole – n. 5
aprovados pelo município e, diante da escassez de informações sobre as demais ocupações, procedeu-se à pesquisa direta em aerofotos e plantas cartográficas, empreendendo-se uma investigação de campo para checagem e informações complementares. Esse
dados foram espacialmente qualificados, possibilitando mapear um esboço-síntese das
condições de ocupação e de habitabilidade na cidade atual.
Na metodologia desta pesquisa, para Salvador, considerou-se como início do período contemporâneo 1925, ano do primeiro registro de loteamento na prefeitura, momento em que se inicia a privatização ampliada do solo mediante mercantilização de lotes
regulados por normas urbanísticas de acordo com o Código de Posturas. O período de
estudo encerra-se em 1991, ano do último censo, objetivando-se o cruzamento de dados
atualizados de população e de renda. A cidade antiga, para a qual vigoraram outros determinantes na ocupação urbana e habitacional, foi delimitada considerando-se o espaço
construído até a década de 1920, ignorando-se os vazios intersticiais entre as áreas edificadas, bem como a diferenciação de uso do solo até essa época, detalhamento que foge
aos propósitos deste estudo.
As formas de habitação do período contemporâneo foram classificadas segundo os
diferentes tipos de subdivisão e apropriação do solo, identificando-se uma tipologia básica,
composta de seis modalidades de parcelamento do solo, quais sejam, por ordem cronológica de surgimento: 1) vilas habitacionais; 2) loteamentos privados; 3) ocupação coletiva
por invasão; 4) conjuntos habitacionais; 5) loteamentos públicos; e 6) outros tipos de parcelamento informais, tais como arrendamentos, aforamentos e loteamentos clandestinos.
Além dessas áreas de predominância habitacional, estabeleceu-se a diferenciação
dos seguintes usos na área do município: áreas com grandes concentrações de equipamentos – serviços, comércio, indústria ou uso industrial; o macrossistema viário, identificando-se as avenidas de vale e principais vias de cumeada, rodovias e linha férrea; vazios
(parques, áreas verdes e livres) e elementos hídricos.
O resultado da justaposição das diferentes formas de ocupação, originadas de
processo formais e informais, além de possibilitar uma primeira estimativa quantitativa
desse tipo de informação, fornece também alguns indicadores espaciais importantes em
relação às características físicas dos parcelamentos e sua inserção urbana.
Assim, determinou-se a legalidade urbanística dessas ocupações habitacionais,
identificando-se os parcelamentos formais – vilas, loteamentos privados, conjuntos habitacionais e loteamentos públicos – e os informais, abrangendo as invasões e outros parcelamentos que não tiveram projetos urbanísticos previamente aprovados pelo município.
Os dados obtidos, conforme a Tabela 1, indicam que, para 1991, do total de ocupação predominantemente habitacional no município (11.370 hectares), 91,6% (10.409
hectares) correspondem à expansão ocorrida de 1925/91. Portanto, do total, retirandose 8,4% da população antiga e 3,6% das áreas para as quais não se obteve informação quanto à legalidade urbanística, encontram-se 32,4% para as ocupações informais
79
Favelas, invasões e ocupações coletivas nas grandes cidades brasileiras
Tabela 1 – Município de Salvador
Legalidade urbanística nas áreas de habitação, 1991
Classificação1
Áreas
(km2)
Áreas
(ha)
%
município
%
habitação
9,61
63,12
36,84
4,13
961
6.312
3.684
413
3,43
22,53
13,15
1,47
8,45
55,52
32,40
3,63
Área ocupada c/predominância de habitação
Grandes equipamentos
113,70
20,25
11.370
2.025
40,58
7,23
100,00
–
Área total ocupada
Área verde e/ou livre, elementos hídricos e vias
133,95
146,19
13.395
14.619
47,81
52,19
–
–
Área continental do município
280,14
28.014
100,00
–
32,86
3.286
–
–
313,00
31.300
–
–
Ocupação antiga (até década de 1920)2
Formal
Informal
Insuficiência de dados
Área insular do município
Área total do município3
Classificação estabelecida conforme metodologia da pesquisa.
A área de ocupação antiga não foi classificada quanto à legalidade urbanística. O primeiro loteamento registrado na Prefeitura, Vila Bonfim, data de 1925.
3
Dado oficial do IBGE-Censo, 1991. Bahia, Governo do Estado, CEI/Conder, 1994b, p. 185. Os
demais dados foram levantados e calculados para a pesquisa.
1
2
(invasões, 14,3%, e outros tipos de parcelamento informal, 18,0%) e, para as formais,
55,6% (vilas, 0,3%, loteamentos privados, 41,8%, conjuntos habitacionais, 10,8%, e loteamentos públicos, 2,5%). Apesar da predominância espacial da formalidade, com base
nos altos índices de densidade detectados, para os parcelamentos informais, mínimo em
torno de 300 hab./ha, verificou-se, em termos populacionais, que cerca de 60% do total
dos habitantes estariam morando nessas áreas, o que representa a maioria da população
de Salvador.
Observe-se que, no caso das ocupações formais, essa condição não significa necessariamente que sejam todas legais. O fato de ter sido solicitada a análise do projeto
ou terem sido empreendidas pelo próprio setor público permite inferir que, possivelmente, essas ocupações têm escrituras de propriedade fundiária, condição obrigatória para
registro e liberação de alvará para construção. Por outro lado, aquelas cujos projetos
foram aprovados, mas que, por não seguirem todas as normas de implantação, tornaramse irregulares, constituem casos de não obtenção de licença de habite-se.7 Em comum,
o que as liga na condição de formalidade é o fato de, ao darem entrada para tramitação
na PMS, terem seguido os códigos urbanísticos estabelecidos, e, portanto, apresentarem
um desenho tecnicamente predefinido, de acordo com esses parâmetros. Ainda que isso
não implique necessariamente conforto urbano, essa é a condição social (técnico-jurídica) que se apresenta no mundo contemporâneo para a garantia do bem-estar coletivo e
da preservação do ambiente urbano.
80
Cadernos Metrópole – n. 5
Nota-se, também, que, em alguns casos de ocupação formal, após a concessão
do habite-se, podem ocorrer modificações no projeto inicialmente aprovado, à margem
da fiscalização, incidindo-se em procedimentos irregulares perante as normas, a exemplo
da ocupação de áreas livres no próprio lote ou áreas públicas, ou mesmo inadequação de
usos, ampliação de edificações e, outros, intervenções que, se medidas mais detalhadamente, também ampliariam o índice de irregularidades nas ocupações. Por outro lado, como esta pesquisa trata da análise dos processos de parcelamento do solo, e não, necessariamente, da edificação em si, e considerando a diversidade de formas de ocupação
em Salvador, é possível que o projeto de edificação possa ter sido aprovado sem que o
parcelamento no qual está inserida tenha ocorrido segundo as normas urbanísticas, como
é o caso das áreas de arrendamento. Nessas áreas, o documento de escritura da gleba
pode servir como comprovante para efeito de aprovação do projeto de edificação no lote.
Assim, não necessariamente todos os lotes de ocupações informais são desprovidos de
escritura e, algumas vezes, a situação do lote não é a mesma da edificação quanto à legalidade. Por outro lado, ocupações que ocorrem à revelia das normas urbanísticas podem
ter imóveis registrados para efeito de cobrança do imposto predial e territorial, quer por
segurança de permanência, quer por imposição da fiscalização. Obtém-se, assim, cadastramento público, não significando, no entanto, legalidade plena da ocupação.8
Em relação à inserção no espaço, à primeira vista, percebe-se uma certa fragmentação na distribuição espacial dos dois tipos de ocupação, que se entrelaçam na
superfície ocupada no município. No entanto, uma análise mais cuidadosa, com base nos
dados da dinâmica urbana, demonstra que essa mesclagem tem especificidades a serem
consideradas. Há uma certa predominância de ocupações informais na área do miolo da
cidade, ao longo da BR-324 e na orla do Subúrbio Ferroviário, na borda da Baía de Todos os Santos. As áreas salteadas na Zona Sul, próxima ao Centro, e na zona da orla do
Oceano Atlântico, são, na maior parte, pequenas e segmentadas. Ao serem analisadas
em relação ao tempo de ocupação, conforme registros da pesquisa, verifica-se que são
também antigas, ocorridas nas décadas de 1930/40, portanto, consolidadas. As ocu-
pações formais localizam-se prioritariamente nessa área central, bem como ao longo da
Orla Oceânica e da Av. Paralela, na direção do Aeroporto e da Estrada do Coco, zona de
expansão turística.
Portanto, a exclusão social manifesta-se no próprio fenômeno da segregação espacial, uma vez que, separando as áreas de moradia na cidade por classes sociais distintas,
coloca “de fora” das melhores condições de habitabilidade as populações mais pobres, o
que resulta em acessos diferenciados às benfeitorias e ao conforto urbano.
A partir dessas considerações sobre os parcelamentos informais, verifica-se que
a situação investigada configura-se mais grave ainda ao ser analisada do ponto de vista
de limites de condições de habitabilidade. Mesmo nas situações em que os loteamentos foram previamente aprovados conforme as normas municipais, também se observam
81
Favelas, invasões e ocupações coletivas nas grandes cidades brasileiras
irregularidades no processo de ocupação, que contribuem para a precariedade habitacional do meio urbano.
Tomando-se como referência os requisitos urbanísticos em vigor, classificou-se
a ocupação contemporânea a partir das seguintes características: registro municipal e
legalidade fundiária; sistema viário adequado (acessibilidade, dimensionamento, pavimentação); infra-estrutura básica coletiva (redes de energia, água e saneamento); lote mínimo
estabelecido pela legislação; existência de áreas públicas abertas e de equipamentos
coletivos; conservação do ambiente construído e situações topográficas de risco. Enfim,
esses são os atributos necessários para as boas condições urbanísticas idealizadas.
Para essa qualificação, conforme se verifica na Tabela 2, que limita as condições
de habitabilidade, subtraindo-se a ocupação antiga, 8,4%, e as grandes áreas loteadas e
não-ocupadas, 4,8%, o índice de exclusão urbanística torna-se ainda maior. Para o padrão
considerado “bom” as áreas atendem ao conjunto dos principais requisitos normativos
perfazem 33,6% da ocupação urbana; como “deficiente” quanto aos referidos atributos
urbanísticos, identificou-se um total de 53,2%, composto pelo somatório das categorias
classificadas “regular”, 22,5%, “precário”, 18,9%, e “insuficiente”, 11,8%, de acordo com
os critérios estabelecidos. Associando-se esses dados à população moradora, habitantes
Tabela 2 – Município de Salvador
Limites das condições de habitabilidade nas áreas ocupadas, 1991
Classificação1
Áreas
(km2)
Áreas
(ha)
%
município
%
habitação
9,61
38,15
60,46
5,48
961
3.815
6.046
548
3,43
13,62
21,58
1,95
8,45
33,56
53,17
4,82
Área ocupada c/predominância de habitação
Grandes equipamentos
113,70
20,25
11.370
2.025
40,58
7,23
100,00
–
Área total ocupada
Área verde e/ou livre, elementos hídricos e vias
133,95
146,19
13.395
14.619
47,81
52,19
–
–
Área continental do município
280,14
28.014
100,00
–
32,86
3.286
–
–
313,00
31.300
–
–
Ocupação antiga (até década de 1920)2
Bom
Deficiente
Área comprometida s/ocupação3
Área insular do município
Área total do município4
1
Classificação estabelecida conforme metodologia da pesquisa. O padrão “deficiente” corresponde
ao somatório dos tipos: “regular”, “precário” e “insuficiente”.
2
Ainda que não tenha sido objeto de detalhamento desta pesquisa, observa-se que, em 1991, na ára
de ocupação antiga predominava padrão de habitabilidade “bom’.
3
Refere-se a grandes glebas vazias em áreas registradas como loteamentos privados, portanto, já
comprometidas com um determinado tipo de parcelamento, contudo não ocupadas por construções.
4
Dado oficial do IBGE – Censo, 1991. Bahia, Governo do Estado, CEI/Conder, 1994b, p. 185. Os
demais dados foram levantados e calculados para a pesquisa.
82
Cadernos Metrópole – n. 5
por subdistrito censitário para 1991, encontrou-se para o total de área considerada “deficiente”, o equivalente a 73,1%, ou seja, uma estimativa de 1.355.930 habitantes da
ocupação contemporânea.
Espacialmente, o processo de segregação anteriormente apontado fica mais evidente sob essa condição de análise. Identifica-se a Avenida Paralela como uma espécie
de divisor entre as manchas de ocupação em condições de habitabilidade “boa” daquela
“deficiente”. Em ambas evidenciam-se, apenas, algumas poucas inserções pontuais, tanto na abrangência da mancha “deficiente”, constituída por alguns loteamentos e conjuntos habitacionais, como em relação à mancha de habitabilidade “boa”, representada por
antigos bairros populares, como Cosme de Farias, Engenho Velho de Brotas e da Federação, Nordeste de Amaralina e Abaeté.
Considere-se que, mesmo somando-se o percentual encontrado para a classificação “boa” (33,56%) com a área de ocupação antiga (8,45%), na qual também predomina
habitabilidade “boa”,9 ainda assim o somatório dessas áreas está aquém do total encontrado para habitação “deficiente”, configurando um quadro agudo de segregação socioespacial e exclusão urbanística na ocupação habitacional contemporânea de Salvador.
Essas condições, associadas aos altos níveis de pobreza existentes na realidade
brasileira, acabam por intensificar os processos de segregação e exclusão na cidade,
que adquirem outras dimensões socialmente mais graves, envolvendo aumento da violência, afastamento dos padrões institucionais estabelecidos, privação na geração de
oportunidades, enfim, distanciamento da condição de cidadania, incluindo-se aí os direitos urbanísticos.
Demandas e perspectivas para o novo século
Esta pesquisa, ao identificar a diversidade de ocupação e, em particular, de questões relativas à regulação e à legalidade das áreas ocupadas por habitação em Salvador,
demonstra uma metodologia capaz de qualificar as configurações do ambiente construído na realidade complexa das grandes cidades brasileiras. Ainda que forneça dados realistas sobre a situação atual, demonstra também as limitações para apreender a complexidade que envolve essa questão no espaço do habitar contemporâneo. Como afirma
Raquel Rolnik, “a condição de irregularidade não se refere a uma configuração espacial,
mas a múltiplas” (1997, p. 182). Nesse sentido, essas situações, além das muitas possibilidades de irregularidade na própria ordem jurídico-urbanística podem ter, na prática,
diferentes significados para os atores sociais, dependendo das condições políticas e culturais de tempo e lugar.
O alto percentual de informalidade encontrado na ocupação urbana demonstra
que a idéia predominante, até a política do SFH/BNH, de que os assentamentos informais
Favelas, invasões e ocupações coletivas nas grandes cidades brasileiras
83
representavam condições urbanas provisórias, cai totalmente por terra. A “solução” habitacional encontrada pela maioria da população acabou sendo uma ampla informalidade
na produção de parcelamentos do solo, com graves deficiências nas condições de habitabilidade. Representa uma situação que vem se agravando pelos processos intensivos de verticalização e densificação das áreas construídas nas últimas décadas, também
efetivadas de forma improvisada, acumulando investimentos individuais significativos, o
que confere a essas áreas um sentido de permanência e de transformações urbanísticas
próprias.10 Todos esses anos de acumulação material e consolidação de localidades de
moradia na cidade propiciaram, também, a criação de marcas próprias no espaço urbano,
referências particulares e conteúdos culturais, enfim, a emergência de lugares na cidade
e o sentido de pertencimento a esses territórios.
A cidade cresceu, no século XX, para atingir um ambiente construído fisicamente
complexo, caótico, maltratado, de desrespeito aos recursos naturais e às possibilidades
dos recursos urbanísticos para beneficio da coletividade – uma cidade sem cidadania
–, cidade dividida, segmentada entre ricos e pobres e entre cidadãos e não-cidadãos.
Enfim, um quadro de difícil intervenção para sua melhoria, que desafia novas formas de
pensar e de atuar tecnicamente.
A questão eminente refere-se aos novos mecanismos possíveis para pensar caminhos de mudança. Primeiramente, em relação à estimativa de déficit habitacional quantitativo, que no passado recente também incorporava a substituição de habitações improvisadas por novos conjuntos habitacionais na periferia, há de se reconhecer que não
mais constitui uma perspectiva a ser enfrentada na atualidade. Ainda que se mantenha a
necessidade de produção de novas unidades para o percentual da população sem habitação, as demandas prioritárias apontadas localizam-se, sobretudo na qualificação das
áreas ocupadas informalmente nesses últimos cinqüenta anos.
Evidentemente, a atuação pública sobre tais condições de pobreza e precariedade
implica subsídios e recursos vultosos, que, na realidade atual, não pode prescindir de uma
política habitacional explícita e contínua, se, de fato, a sociedade se propõe a enfrentar
efetivamente a qualidade do meio urbano. Uma política de mudança desse quadro terá de
criar os meios para a promoção de melhorias, considerando esses espaços não apenas
como áreas de moradia, nos moldes da cidade industrial, circunscritas nas relações de
centro-periferia, mas identificando potencialidades de transformação de áreas-dormitório
em áreas do habitar na cidade, lugar onde se vive e se viverá no próximo milênio.
Em termos de desenho urbano, se, por um lado, depara-se com a ausência marcante dessa formalidade idealizada, por outro, a expressão “espontânea” da construção
da cidade, por mais precária que se configure, reserva surpresas em termos do seu
ordenamento espacial que, se observado cuidadosamente, pode ser potencializado em
espaços de vivências com uma urbanística nova e própria, exigindo revisões conceituais
e técnicas.
84
Cadernos Metrópole – n. 5
Salienta-se também que, no caso de áreas ocupadas, a obtenção de maior qualidade de resultados, com compromisso social, não pode dispensar a participação dos
moradores nas definições e no acompanhamento dos projetos de intervenção.
Quanto as questões relativas à legalização fundiária e imobiliária, essas se colocam prioritárias, diante do movimento ampliado da privatização e de homogeneização da
ocupação do solo como mercadoria plena que, nessa realidade, encontram grandes obstáculos nos significativos indicadores de informalidade. Suscita-se, por exemplo, como se
coloca a situação do alargamento de financiamentos para habitação pretendido pela Caixa Econômica Federal-CEF através de créditos diretos ao consumidor, se esses exigem
escritura do terreno e comprovação das condições formais de ocupação.
Em síntese, essas representam algumas das questões habitacionais a serem enfrentadas no momento atual das grandes cidades brasileiras, que se deparam com novas
condicionantes nas relações produtivas mais amplas.
Nesses tempos de globalização, as interações entre a sociedade e espaço adquirem novos conteúdos, a serem considerados na perspectiva de intervenção urbana.
Alain Lipietz, ao tratar de reestruturação produtiva e de impacto infra-urbano, afirma que,
numa estratégia de desenvolvimento local, o conteúdo é mais importante que a forma. Na
implementação de novas estratégias produtivas, além da capacitação local em termos
de formação profissional e meios de articulação entre empresas, é sobretudo importante
implementar, no conjunto da aglomeração, uma qualidade de vida ambiental atrativa.
O saneamento e urbanização de bairros populares, o desenvolvimento de espaços verdes ou implantação de parques e de atividades culturais, um bom
sistema de transporte coletivo: tudo isto não é um luxo social e ecologista,
mas sim uma condição de desenvolvimento econômico. (Lipietz, 1996, p. 16)
Seguindo esse pensamento, entende-se que as políticas de melhoria urbana, atualmente longe de representarem a “produção de bens de consumo coletivo” para melhores
condições de “reprodução da força de trabalho” ou respostas às “lutas urbanas” que se
configuraram nas décadas de 1970 e 1980, aparecem como exigência da própria possibilidade de inserção econômica dos lugares no mercado e em circuitos globalizados.
Nesse processo de reestruturação econômica atual, a gestão de cidades como
Salvador, que detêm um grande potencial sócio-cultural, terá de ir além das “cirurgias
plásticas” em pontos turísticos. Ao se constatar esse alto grau de diversidade e de nãoregulação no uso e ocupação do solo, com impactos no meio ambiente natural e construindo do habitar contemporâneo, fica evidente a necessidade de revisão das políticas
de atuação para que os conteúdos, de fato, modifiquem-se, adquirindo potencialidades
de mudanças sociais e ambientais.
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Favelas, invasões e ocupações coletivas nas grandes cidades brasileiras
Ângela Gordilho Souza
Arquiteta, professora da Fauf/BA e pesquisadora do LabHabitar/PPG-AU, Faculdade de
Arquitetura da Universidade Federal da Bahia.
Notas
Este trabalho é resultado de uma pesquisa universitária de longa duração, que culminou na tese
de doutorado da autora, Limites do habitar; segregação e exclusão na configuração urbana
contemporânea de Salvador e perspectivas no final do século XX, apresentada à FAU/USP, em
outubro de 1999, e publicada pela Eduf/BA, em 2000.
1. Vários autores trabalham a crise habitacional nas grandes cidades brasileiras e a emergência de
novas formas de produção da habitação. Tomou-se como referência para a questão levantada,
para o caso do Rio de Janeiro, os trabalhos de Ribeiro e Pechman (1983), Vaz (1994), Abreu
(1994) e Ribeiro (1997); para São Paulo, Maricato (1982), Taschner (1982), Blay (1985), Rolnik
(1986 e 1997) e Bonduki (1999); e, para Salvador, os estudos pioneiros de Santos (1959) e
Brandão (1978 e 1981).
2. Conforme indicado por Nabil Bonduki, ao contrário do Rio de Janeiro, onde as favelas surgiram
no início do século, em São Paulo surgem entre 1942 e 1945. No entanto, seu crescimento
permaneceu restrito até a década de 1970, ante a alternativa da enorme oferta de lotes periféricos oferecidos a baixo custo. Em 1973, apenas 1,3% dos paulistanos viviam em favelas
(Bonduki, 1999, pp. 261 e 264). Quanto à origem da favela no Rio de Janeiro, há indícios
de que em 1893/1894 começaram a ser construídos barracões no morro da Providência, autorizados pelo dono do terreno, que cobrava sobre o direito de construção de casebres. No
entanto, o fenômeno só se torna oficialmente reconhecido na década de 1940 (Vaz, 1994;
Abreu, 1994). Nessa cidade, em 1950, o percentual de população em favelas era 7,2% e, em
1973, já alcançava 13,2% (apud Taschner, 1997, p. 14).
3. O FCP produziu, no total, 143 conjuntos, com 18.132 unidades habitacionais. No mesmo
período, os institutos viabilizaram a edificação de 123.995 unidades habitacionais, além dos
milhares de apartamentos financiados para a classe média (Bonduki, 1998, p. 115).
4. Lícia Valladares e Rosa Ribeiro (1992) referem-se ao retorno das favelas na década de 1980 no
Rio de Janeiro, fenômeno que também se verifica em outras capitais brasileiras. Em relação à
intensificação dos cortiços na cidade de São Paulo, Suzana Taschner, verificando o diferencial
de taxas de crescimento e densidade nos diversos segmentos espaciais censitários da cidade,
indica que estaria se manifestando uma inflexão no padrão de crescimento periférico, para dar
lugar a um novo movimento, em que “a periferia ainda cresce, mas a ritmo menor e o centro
se adensa” (1990, p. 10). Esse fenômeno, segundo ela, estaria sendo provocado pelo encortiçamento de algumas áreas nos anéis central e inferior da cidade, ainda que as estimativas
de percentual da população moradora em cortiços, reveladas pelas diferentes fontes, tenham
se mostrado conflitantes, variando, para os anos 80, entre 17,7% a 28,45 (Sempla, 1985 e
Secretaria de Habitação – Prefeitura São Paulo, 1989, apud Taschner, 1990).
5. Os estudos consultados pela autora foram: para São Paulo, Veras e Taschner (1990) e Fipe/
Sehab (1994); para o Rio de Janeiro, Lago e Ribeiro (1991); para Belo Horizonte, Guimarães
(1992); para Salvador, Gordilho-Souza (1992); para Brasília, Paviani (1988), Resende (1991) e
Jaccoud (1991), todos apud Taschner (1997).
86
Cadernos Metrópole – n. 5
6. A perspectiva do turismo tem sido apontada como de vital importância para a trajetória econômica da Bahia, lugar especialmente vocacionado para um mercado crescente em nível
mundial. No início dos anos 90, o turismo representava 3% do PIB baiano, com possibilidades de ampliação pelos investimentos que já estavam em curso, prevendo-se que esse tipo
de atividade pode cumprir um papel importante em termos de emprego e renda do estado,
juntamente com outros serviços como comércio e transportes (Proserpio, 1994).
7. Na formalização do registro para parcelamentos e/ou edificações, depois da solicitação do
alvará de construção, submetendo-se o projeto para análise da Prefeitura, devidamente anexado à escritura do terreno ou gleba, segue-se o procedimento de avaliação da implantação
do projeto, concedendo-se, então, o habite-se, emitido pelo órgão competente municipal de
Salvador, Sucom, quando se obtém a escritura definitiva dos lotes e a averbação da edificação.
Só então é feito o lançamento na Secretaria da Fazenda, para efeito tributário.
8. Nem todos os imóveis cadastrados para efeito de Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU
necessariamente estão regularizados quanto às normas urbanísticas ou quanto à questão da
propriedade do imóvel, uma vez que muitos “lançamentos” são feitos ex-officio, portanto, sem
alvará ou habite-se emitidos pelo órgão responsável (ver nota anterior). Nesses casos, em que
não há registros na Sucom, a inscrição para efeito tributário é feita diretamente na Secretaria
da Fazenda, comprovando-se a propriedade com contrato de compra e venda e escritura do
proprietário anterior e, no caso de arrendamento, com declaração do escritório responsável
sobre a legalidade da ocupação, anexada à documentação de escritura da gleba. Observe-se
que essas situações levam a estimativas imprecisas em relação à questão da legalidade de
ocupação. Nesse sentido, para Salvador, foi noticiada recentemente a existência de pouco
mais de 400 mil imóveis cadastrados na Prefeitura para efeito de IPTU. Considerando-se que
a estimativa do IBGE para a população do município em 1997 seria de 2.245.522 habitantes,
para um total de 538.000 domicílios, isso significa que a grande maioria dos imóveis de Salvador seria legalizada, o que foge completamente à realidade da ocupação urbana (A Tarde,
29/3/98).
9. A ocupação antiga, delimitada até os anos 20, não foi objeto de detalhamento desta pesquisa.
No entanto, em geral, essa área da cidade apresenta, conforme os atributos salientados, boas
condições de habitabilidade, ainda que os parâmetros urbanísticos desse tipo de ocupação
sejam distintos daqueles considerados pelas normas estabelecidas no final da década de 20.
Observam-se alguns núcleos mais precários, como os cortiços remanescentes nos bairros de
Santana e Saúde, e algumas áreas da ocupação antiga na Península de Itapagipe.
10. Para o caso das ocupações coletivas por invasões, as mais carentes, predominantemente horizontais, com altos índices de densidade, foram encontrados índices que variam de 56 hab./ha
até 1.600 hab./ha, para uma área de lotes de 15,00m2 a 250,00m2, sendo a média de densidade
em torno de 400 hab./ha, ou seja, lotes médios de 60,00m2 e área construída de aproximadamente 30,00m2. Considerando-se os materiais usualmente encontrados – bloco cerâmico sem
revestimento, laje pré-moldada, telha de amianto e instalações para um sanitário – o valor
médio da construção, com mão-de-obra, seria de US$6.000,00, ou seja, US$200,00 por m2,
o que, acrescido do valor do lote, a depender da localização, representaria um valor total em
torno de US$8.000,00 a US$10.000,00 (Gordilho-Souza, 1990, pp. 230 a 283).
Favelas, invasões e ocupações coletivas nas grandes cidades brasileiras
87
Referências bibliográficas
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Grajaú, memória e história:
fronteiras fluidas e passagens*
Márcia Pereira Leite
O Grajaú, hoje
O Grajaú, bairro situado na Zona Norte do Rio de Janeiro, próximo à Tijuca, é
usualmente referido como um local muito aprazível, com casas ajardinadas, ruas largas e
arborizadas e clima agradável. Com uma área de 584,2 hectares e 37.609 habitantes,1 é
um bairro residencial, valorizado por seus moradores por conservar elementos da cidade
do interior em suas relações de vizinhança e na tranqüilidade de suas ruas.
Desfruta de um pequeno comércio (supermercados, açougues, quitandas, padarias, farmácias, armarinhos, lojas de ferragens, de animais, papelaria, etc.) e de alguns
serviços (bancos, escolas e creches, academias de ginástica, cabeleireiros, videolocadoras, postos de gasolina, casas de saúde e de repouso). Seus moradores dispõem,
para seu lazer, de dois clubes (Grajaú Tênis Clube e Grajaú Country Clube), duas praças
(Praça Edmundo Rego e Praça Nobel), de alguns largos e da Reserva Florestal do Grajaú, além de inúmeros bares e restaurantes. Aos domingos e feriados, a Praça Edmundo
Rego é o principal espaço de sociabilidade do bairro, sendo fechada ao trânsito e ocupada por uma feirinha de artesanato, enquanto seus arredores são tomados por bicicletas,
cavalos e charretes, carrinhos, pula-pulas e outros brinquedos. Possui ainda várias igrejas
em suas ruas: a matriz e uma capela católica, um templo da Igreja Universal do Reino de
Deus, uma igreja batista, uma presbiteriana, uma messiânica, um centro rosa-cruz, uma
sociedade budista e alguns centros espíritas.
92
Cadernos Metrópole – n. 5
O Grajaú, ontem
O Grajaú surgiu em um lugar conhecido como Vale dos Elefantes, ao sopé do
Maciço da Tijuca e, mais especificamente, da Serra do Andaraí, onde se encontra a Pedra Perdida do Andaraí, popularmente conhecida como Bico do Papagaio, que constitui
um dos símbolos do bairro. Sua origem, nas primeiras décadas deste século, foram dois
grandes loteamentos realizados no antigo arrabalde do Andaraí Grande2, que incorporaram terras de fazendas de café à malha urbana da cidade.3 O primeiro loteamento foi
realizado pela Companhia Brasileira de Imóveis e Construção e compreendia as terras
situadas entre a Serra dos Pretos Forros e um caminho posteriormente denominado Rua
Borda do Mato. O outro, chamado Vila América, foi promovido pela T. Sá e Companhia
Limitada e englobava os terrenos que iam desse ponto ao que hoje é a Rua Botucatu
(Cardoso, 1989).
A partir dos anos 20, o bairro foi se desenvolvendo com o desenho do primeiro
loteamento. Aos poucos, expandiu-se em direção às encostas, onde novas ruas foram
abertas. Nos anos 80, através do Decreto n. 3.157/81, nova extensão ampliou o Grajaú
até o lado direito da Rua Ferreira Pontes, incorporando toda a parte do Andaraí que correspondia ao loteamento Vila América. Entretanto, mesmo unificadas no plano urbanístico,
essas duas regiões constituem, como se verá adiante, duas áreas distintas do/no bairro.
Com a intensificação da especulação imobiliária e o boom da construção civil nos
anos 70, a Prefeitura estabeleceu, através do Decreto n. 322/76, um novo zoneamento
urbano para a cidade, regulamentando as edificações. No Grajaú, esse decreto permitiu
a construção de prédios de até doze pavimentos. Logo após, entretanto, o Decreto n.
1.269/77 instituiu o Plano Urbanístico Básico (PUB-Rio) com uma nova diretriz: estratégias de planejamento localizado através da elaboração dos Projetos de Estruturação
Urbana/PEUs dos bairros. O PEU do Grajaú, instituído através de Decreto n. 6.996/87,
estabeleceu novas condições de uso e ocupação do solo no Grajaú (Cardoso e Ribeiro,
1996), que permitiram restaurar suas características de bairro residencial, constituído
basicamente por casas, reservando os gabaritos mais baixos para a área do primeiro
loteamento e permitindo os mais altos nas “ruas de passagem” (Colchete Filho, 1995).
O formato atual do bairro definido por esse Projeto de Estruturação Urbana
envolve, além das ruas, as encostas.4 Estas são delimitadas através de pontos de cotas
(i.é, definidos por sua latitude e longitude) de difícil visualização sem os mapas apropriados, como se pode observar abaixo:
(...) Rua Adolfo Caminha (excluída até o seu final); daí subindo o espigão da
Serra dos Três Rios, passando pelos pontos de cota 328m, 532m e 536m, até
o ponto de cota 692m no Morro do Excelsior; deste ponto pela cumeada da
Serra dos Três Rios (excluindo as estradas do Excelsior e da Caveira), passando pelos pontos de cota 686m e 788m até o ponto mais alto do Pico da Tijuca;
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
93
deste ponto, em direção ao norte pelo divisor de águas, até o ponto de cota
728m no Morro do Elefante; daí descendo o espigão em direção norte passando pelos pontos de cota 622m, 354m e 346m, até o ponto de cota 338m
deste ponto, descendo o espigão da Serra dos Pretos Forros na direção leste
passando pelos pontos de cota 346m, 224m e 138m, até o início da Avenida
Menezes Cortes, ponto de partida. (Decreto n. 3157, de 23/7/1981)5
A demarcação das encostas por pontos cotados propicia o estabelecimento das
favelas ali situadas em uma certa “zona de sombra”:6 não são nomeadas e, assim, com
freqüência, não são percebidas como partes integrantes do bairro. Em decorrência, o
Grajaú é usualmente referido como constituído estritamente pelas ruas que têm seu traçado interno e externo claramente indicado nas zonas definidas em seu PEU: descem
das encostas do Maciço da Tijuca até as ruas mais exteriores (Visconde de Santa Isabel,
Barão do Bom Retiro, Meira de Vasconcelos e Ferreira Pontes), que constituem suas divisórias com os bairros do Engenho Novo, Lins de Vasconcelos, Vila Isabel e Andaraí.7
Ao contrário desses seus vizinhos, porém, é tido como um “bairro nobre”, uma
vez que em sue “miolo”, que corresponde ao primeiro loteamento e à sua configuração
territorial original, é um bairro estritamente residencial, com belas casas e alguns edifícios
luxuosos habitados por segmentos da alta classe média.
Já a parte do Grajaú que corresponde ao loteamento Vila América é constituída por
um conjunto de ruas que, terminando nas encostas, dão acesso a favelas e compreendem uma população de menor poder aquisitivo. Há ainda uma terceira área do bairro,
considerada mais periférica, que é formada pelas ruas externas que dão acesso direto
a outros bairros. Transformadas em “ruas de passagem”, seus imóveis têm menor valor
comercial e são habitados por segmentos de classe média.
Essa diversidade de regiões no bairro teria sido gerada, segundo Cardoso (1989),
pelos distintos modos de atuação das duas companhias responsáveis pelos loteamentos, que representavam segmentos diferenciados do capital imobiliário. Enquanto a T.
Sá restringia-se à promoção fundiária e à obtenção de lucro nas transações comerciai, a
perspectiva da Companhia Brasileira era a extração de lucro nas operações financeiras.
Para isso construía moradias e as vendia através de um sistema de financiamento próprio.
Buscando “atingir um mercado ainda bastante restrito na cidade: segmentos das camadas médias da população de maior poder aquisitivo (...) que antes pagavam aluguel”,
mas que podiam arcar com esse financiamento, realizou obras de arruamento, loteamento, instalação de infra-estrutura de água, calçamento de ruas e construção de diversas
moradias para venda. O projeto de um bairro de “fisionomia moderna” com residências
amplas, ruas largas e traçadas em simetria a partir de uma praça (a Edmundo Rego), com
“calçadas largas e ajardinadas, lotes também regulares e com testadas largas” visava a
atrair esses segmentos, criando “um bairro residencial de elite dentro de uma área da
zona norte ocupada primordialmente por velhas construções e diversas fábricas”8 (Cardoso, 1989, pp. 95-97).
94
Cadernos Metrópole – n. 5
A T. Sá, ao contrário, preocupada exclusivamente em obter o maior lucro possível
na venda de terrenos, projetou o Vila América com quadras irregulares, lotes de testada
menores e formatos irregulares, que se traduziam em terrenos de preços mais acessíveis,
e se limitou a efetuar obras de arruamento indispensáveis. Além disso, não se preocupou
em conferir ao bairro um caráter residencial, vendendo uma quadra inteira para a Fábrica
de Projéteis de Artilharia do Exército.
Assim, desde sua origem, o Grajaú comporta “espaços com usos e conteúdos
diferentes”, que ainda hoje se expressam na diversidade dos equipamentos urbanos disponíveis em cada um dos mesmos e nos diferentes valores de imóveis (Cardoso, 1989,
p. 99) e que se manifesta também nas diversas percepções a respeito do bairro, de suas
fronteiras e relações de pertencimento.
Fronteiras e limites
Para muitos dos moradores antigos9, residentes na área do primeiro loteamento,
o bairro legítimo corresponde à configuração original do Grajaú, sendo espúria (por
interesses eleitoreiros ou de especulação imobiliária) a sua ampliação em direção ao
Andaraí. Dessa fronteira simbólica ressente-se os moradores da parte nova, a área do
Vila América.
Aqui [na relação de ruas constante do PEU] você vê os limites do nosso bairro.
Todas essas ruas pertencem ao Grajaú... Se bem que eu considero o bairro do
Grajaú da Visconde de Santa Isabel até a Borda do Mato. Essa parte foi criada
depois, pegou uma parte do Andaraí velho... e, por incrível que pareça, um
pedaço da Rua Vianna Drumond, um pedaço da Teodoro da Silva, um pedaço
da Mendes Tavares. Eu não sei, mas pelo PEU é Grajaú. (Santos, morador na
área do 1º loteamento).
Eu acho o seguinte, esse pedaço daqui da Borda do Mato pra cá, pra Visconde de Santa Isabel... esse miolo aqui é o Grajaú. Fizeram o bairro do Grajaú
e aquelas ruas dali foram sendo incorporadas, acho que eram duas fazendas.
(...) essa daqui foi depois do meu nascimento, em 1924 ou 25. O Largo Verdun também não é Grajaú (...) (Odete, moradora na área do 1º loteamento).
Você já vê que é outro Grajaú... isso é na visão dos que estão no poder... que
só fazem pela Praça Edmundo Rego (Luís, morador na área do Vila América).
Quanto às favelas existentes no bairro, dos moradores que entrevistei, antigos ou
novos, residentes em suas diversas regiões, bem poucos as consideram incluídas no
Grajaú. É recorrente a sua localização por uma referência de externalidade em relação ao
bairro, isto é, como favelas do Grajaú; quase nunca no Grajaú. O limite é marcado com
medo e preconceito.
Grajaú é só asfalto. (Guilherme, morador na área tida como periférica do bairro)
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
95
O morro... aquilo ali é violência que traz para nosso bairro e enfeia aqui.
(Norma, moradora na área do Vila América)
[O PEU e, portanto, o bairro] não vai até o fim da rua. Então, por exemplo, Ferreira Pontes, Botucatu, Caçapava, Campinas... é tudo limite. É o que eles chamam agora de “comunidade do alto” para não dizer que é favelado. Eles têm
uns nomes bonitos (atual presidente da Associação de Moradores do Grajaú,
nascido no bairro, morador na área do 1º loteamento).
Traçar os limites do bairro excluindo as favelas não é, porém, uma operação de
autoria primária de meus entrevistados. Antes, como Burgos ressalta, desde o Código de
Obras de 1937, que definiu as favelas como “espaços urbanos deformados”, habitações
ilegais, antros de promiscuidade, vício e crime que deveriam ser extintas pela remoção
de seus moradores, sua inclusão nos mapas oficiais da cidade permaneceu interditada.
Só com a aprovação do Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, em 1992, que previu
a “urbanização e regularização fundiária de favelas e loteamentos de baixa renda” para
integrá-las aos bairros da cidade, foi estabelecida a inclusão das favelas nos mapas e
cadastros da cidade (Burgos, 1998, p. 48).10
Os relatos acima chamam a atenção para as diversas construções possíveis no
bairro. A fluidez de suas fronteiras pode se relacionar às mudanças de seus limites, promovida pela Prefeitura, como examinamos. Ou seja, a uma eventual imprecisão na definição dos mesmos.11 Pode se somar tambem à existência no bairro vários elementos que
tendem a ser percebidos como “estruturadores do espaço”: ruas de grande movimento
(como as ruas Barão de Mesquita e Barão de Bom Retiro) e “limites de ordem física” (como as serras do Andaraí e do Engenho Novo) (Colchete Filho, 1995).
De um outro ângulo, entretanto, podemos perceber uma construção do bairro através das representações que lhes são associadas, promovendo uma “estruturação” do
espaço social do Grajaú.
A construção social das imagens associadas
ao Grajaú – Um bairro de elite, o bairro-jardim
Apesar da diversidade de regiões apontada, entre os moradores prepondera a representação do Grajaú como bairro nobre, de elite, familiar (termos que se apresentam
fortemente associados nas entrevistas), mesmo entre os que habitam na área do antigo
Vila América ou na área considerada como periferia do bairro.12
O Grajaú nasceu para ser um bairro de descanso, de elite, no começo do Grajaú você só encontraria aqui almirantes, brigadeiros, deputados federais. Tancredo morou aqui na Barão de Bom Retiro. [Francisco] Dornelles estudou na
Duque de Caxias e morou aqui no Grajaú. Naquela época, a Câmara Federal
era aqui e o Grajaú estava nascendo como bairro e era tranqüilo porque eram
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Cadernos Metrópole – n. 5
duas fazendas. O Grajaú nasceu de duas famílias. (...) é um bairro conservador,
por exemplo, o vovô, o cidadão morou aqui e ficou a filha e agora estão morando os netos (Guilherme, morador na área tida como periferia do bairro).
E trazia também a família e tudo... o clube, o Grajaú Country Clube, é mais família conservadora, as mais nobres do Grajaú. É um clube tradicional de elite.
(...) Eu nunca fui burguesa, se tem que falar uma palavra correta é essa, nunca
fui a clube fazer ginástica, nem nadar, nem fazia parte desse negócio que é a
burguesia do Grajaú. Mas esse é o bairro [em] que a gente quer criar nossos
filhos, porque era realmente maravilhoso (Norma, moradora na área do Vila
América).
O Grajaú é uma província. O que eu mais gosto, digamos assim, no Grajaú (...)
gostar eu gosto de tudo, mas o que eu mais gosto é o ar que nós respiramos,
o ambiente de vivermos os moradores, embora hoje o Grajaú esteja um tanto assim misturado, infelizmente favelas, essa coisa e população carente (...)
(Santos, morador na área do 1º loteamento).
Aqui é muito provinciano, se você começar a viver o dia a dia (...) tem muitas
raízes históricas até pela hereditariedade da população, aqui... vai contar o
neto de não sei quem, o pai mora, o avô já morou. Se não morreu, ainda mora e
a Igreja é muito representativa. (...) Eu não vou mencionar o nome, mas tem um
cara que se queimou na comunidade e na pastoral e não arruma mais nada (...)
Comportamento familiar não condizente com a estrutura da província, queimou
(...) É uma comunidade mais selecionada... (Tavares, morador na área do 1º
loteamento).
Nesses e em outros relatos as categorias nobre e de elite encontram-se fortemente associadas às de familiar e conservador, denotando que a imagem do Grajaú como um bairro de elite, embora ainda que se fundamente no pertencimento de classe de
seus moradores, atualmente abre uma possibilidade de inclusão dos estratos médios que
moram em suas áreas menos valorizadas. É a associação do morador do bairro com a
família conservadora que requalifica a elite no plano moral, trazendo implícita uma desqualificação de quem a ela não pertence. A fala de Santos opera com uma representação
de favela como locus e expressão de uma população caracterizada por atributos morais
negativos, que há muito integra o imaginário da cidade (Santos, 1998; Leite, 2000a). Ao
fazê-lo, demarca uma outra oposição, qual seja, entre bairro nobre/de elite e bairro misturado, entre o morador do bairro e o favelado.13
Desse ângulo, a tranqüilidade e a sociabilidade do Grajaú, que também continuam sendo exaltadas, são formuladas como características que expressariam o “espírito do
bairro”, manifestando-se tanto no ambiente físico quanto no social. Essas duas dimensões
se entrecruzam na representação do Grajaú, como o bairro-jardim, a urca sem praia, uma
província. Representações que são recorrentes nos depoimentos de meus entrevistados,14
nas imagens popularizadas nos jornais de grande circulação e em publicações especificas
do bairro que se reforçam mutuamente na construção das imagens associadas a ele.
As reportagens antigas sobre o bairro recorrem claramente a essas representações, como nos exemplos a seguir:
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Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
A quietude e a tranqüilidade transformaram o bairro numa cidade à parte onde
todos se conhecem, nascem, crescem e morrem sob a proteção de N. S. do
Perpétuo Socorro (...) (“Grajaú: o Bairro do Amor”, O Globo, 12/5/1967).
Não se passeia mais ao redor das praças, mulheres para um lado, homens
para o outro, mas todos se conhecem, como antigamente, e dão conselhos e
se preocupam com o namoro da filha do Mário com o que foi noivo da Clarinha
(...) (“História do Grajaú: são 50 anos de Lirismo”, Christine Ajuz, Jornal do
Brasil, 11/11/1973).
Mais interessante é observar que várias dessas reportagens foram transcritas, nos
anos 90, nas publicações locais, especialmente no Almanaque do Grajaú. Textos e poemas com o mesmo teor também foram publicados com regularidade nos jornais locais15.
Trata-se, sem dúvida, de uma romantização do passado, mas que não se esgota em pura nostalgia. A republicação desses textos como reconstrução de uma memória coletiva
desenvolve-se segundo uma lógica, em que “o presente age como um filtro e seleciona
pedaços de lembranças recuperando-as do esquecimento” (Ortiz, 1994, p. 79). Assim,
presente e passado fundem-se na construção social da imagem do Grajaú como um bair-
ro nobre ou de elite.
Difundida entre seus moradores, essa representação não lhes é exclusiva, transcendendo o próprio bairro16, mas, sobretudo, constitui uma das referências centrais da
identidade coletiva de seus moradores, que se intitulam grajauenses.
Os grajauenses
Todos os meus entrevistados, moradores do Grajaú, tinham uma história de amor
pelo bairro para contar. Alguns lá nasceram e foram criados e enfatizam o sentido de permanência e pertencimento ao bairro. Outros optaram, há muitos anos, por nele morar.
Toda a família é grajauense. Nascemos no bairro... eu, meu pai, meus irmãos
sempre amamos o Grajaú, sempre prestigiamos o bairro. Estudamos nas escolas públicas daqui, fomos atletas dos clubes e até hoje participamos dos
eventos e colaboramos nas campanhas (Quito).
Eu morava na rua Canavieiras, aí meu pai vendeu a casa, mudamos da rua,
mas nós moramos toda a vida aqui (Odete).
Tenho vontade de fazer uma lei criando um cemitério no Grajaú, lá em cima, na
Borda do Mato (Santos, morador do bairro há 50 anos, desde seu casamento
com uma grajauense).
Vim ao Grajaú com o deputado federal Fernando Ferrari... era deputado federal pelo Rio Grande do Sul e candidato a Presidente da República... gostava
muito de mim e um dia ele me convidou: – “Vamos ao Grajaú, eu tenho que
visitar um amigo?”. Aí foi quando eu conheci a igreja, conheci a capelinha. Isso
em 1960, então gostei muito do Grajaú. (...) era diferente... só casas. Em 1963
eu conheci minha esposa, ela nasceu no Grajaú e minha sogra mora aqui há
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Cadernos Metrópole – n. 5
72 anos. Então eu freqüento o Grajaú desde 63. (...) Eu amo o bairro (...) minhas filhas, meus netos nasceram no bairro. Depois de minha cidade natal no
Ceará, minha segunda cidade é o Grajaú (professor).
Meus filhos vieram para cá um dependurado com quatro meses, o outro com
dois, hoje está com 26 (...) A primeira vez que eu vim no Grajaú me apaixonei
(...) morava na Tijuca (Norma).
É perceptível nos depoimentos dos últimos a preocupação em ressaltar as relações através das quais entraram no bairro e a estabilidade das mesmas, como um indicador da rede social que cultivam e de como a partir dela se situam e se qualificam no
bairro. Ao fazê-lo, estão construindo sua identidade como verdadeiros grajauenses, num
diálogo com os moradores mais antigos do bairro, para os quais, via de regra, é o tempo
de moradia no bairro, associado à área de residência como indicativo do grupo social a
que se pertence (a elite, a burguesia do bairro) que define o grajauense de raiz. Tal como
na comunidade de Wiston Parva, pesquisada por Elias e Scotson (2000), também no
Grajaú o princípio de antigüidade fundamenta o prestígio e o poder desse grupo, que
assim constitui uma espécie de establishment local. Os moradores antigos são também
os mais influentes, os principais formadores de opinião no bairro e/ou aqueles que legitimamente aspiram ou detêm os cargos de representação comunitária e política.
Os outros são os novos ou os estranhos, cuja identidade, em princípio, não se
constrói tendo por referência o bairro, suas tradições e seus interesses, mas o trabalho, o
partido, o sindicato ou outra rede social. Assim, é recorrente a remissão ao tempo de moradia como referência positiva ou negativa da pessoa de quem se fala. D. Odete, nascida
no Grajaú, espanta-se, por exemplo, com o que considera uma pretensão despropositada
de uma moradora nova em representar o bairro, candidatando-se à Amgra: “Mas ela é
nova no bairro, só tem uns 10, no máximo uns 18 anos no Grajaú”.
De um outro ângulo, podemos observar a força dessa construção identitária do
grajauense revelar-se em sua reafirmação mesmo por quem a ela se opõe, buscando
redefini-la pela política comunitária:
Nós fundamos o Acorda Grajaú [um movimento de oposição à Amgral] e começamos a conscientizar as pessoas (...) e conseguimos passar que nós éramos moradores do bairro (...) que nós estávamos interessados na melhoria. O
Fernando, por exemplo, nasceu no bairro. O [fulano] tem duzentos anos de
Grajaú; tinha um handicap ali da nata do Grajaú. [Beltrano] mora no Grajaú
também há centos anos (...) é sócio do Grajaú Country. Então, quer dizer, a
vida toda social do bairro (...) Aí [na disputa eleitoral] eu fiz esse discurso (...)
eu só tenho vinte anos de bairro (Luís).
No conjunto dos depoimentos estava presente essa relação entre tempo no bairro
e a respeitabilidade, a credibilidade e a ascendência que o morador antigo tem sobre os
demais. No ponto extremo dessa lógica, os moradores mais novos são pouco levados em
consideração. Há, contudo, uma possibilidade de relativização do tempo de moradia no
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
99
bairro, desde que o morador novo realize algo que demonstre sua fidelidade ao mesmo,
trabalhe para/por ele e cultive suas redes sociais do bairro, tornando-se conhecido e
respeitado.
O Santos tem uma política, o presidente [da Amgra] é quem manda, então tem
que ser a linha dele, aí eu disse assim: – “Você nunca vai me mudar, porque
eu sou do bairro há mais tempo, eu não sou tão velha como você, mas eu já
tava acostumada a trabalhar com o pessoal há mais tempo, eu dava aula, eu ia
visitar doentes... Eu já participava do Amgra mas como comunitária” (Norma).
Ando no bairro muito, sempre com meus filhos. Há mais de 15 anos levando
pela mão o tempo todo, levando na escola, freqüentando os bares, o comércio, o mercado. Só não vou à igreja. Só fui umas duas vezes. Em missa, não.
Isso tornou-me mais público. Eu achava interessante a gente participar [dos
eventos do bairro]. Não só pelo trabalho, mas até pra você continuar não em
evidência, mas conhecido (...) que você esta participando do movimento do
bairro, do interesse do bairro (...) Qual é a pessoa que discute política, futebol
na padaria de segunda a segunda que nem eu faço? Minha mulher reclama
muito: – “Você fica mais no partido, no bairro do que em casa” (Luís).
A atividade comunitária, a freqüentação de suas redes sociais e a demonstração
do amor pelo bairro são, portanto, algumas das estratégias de inclusão dos moradores
novos no bairro. Através delas podem, enfim, ser reconhecidos como grajauenses pelos
moradores antigos e, assim, compartilhar do bairro nobre do qual a princípio estariam
excluídos.
Um bairro pauperizado e violento,
cercado por um cinturão de favelas
Se a imagem do Grajaú é de um bairro nobre, a do Andaraí, do Engenho Novo e
do Lins de Vasconcelos, limítrofes ao Grajaú, é a de bairros proletarizados. O Andaraí,
que me interessa mais de perto, surgiu e se desenvolveu em meados do século passado,
concentrando fábricas e vilas operárias. Traduzia, assim, o tipo de desenvolvimento urbano pelo qual passava o Rio de Janeiro, que combinava a elitização de espaços urbanos centrais e a periferização das classes de baixa renda. Além disso, como se sabe,
uma das conseqüências desse modelo, coma remoção dos cortiços e, em seguida, das
moradias precárias nos morros da área central da cidade, foi a ocupação das áreas de
encostas, públicas e privadas, em regiões onde houvesse oferta de empregos industriais, no comércio e/ou domésticos (Abreu, 1987; Leite, 2000b). Assim foram surgindo
favelas nas encostas do bairro (Arrelia, 1891; Andaraí, 1930; Buraco Quente e Jamelão,
1941 e Morro do Cruz, 1950), como também entre Grajaú e Lins de Vasconcelos (Morro do Encontro, 1931).
100
Cadernos Metrópole – n. 5
O Grajaú, ao contrário, teve um processo de favelização mais recente. Embora o
Censo de Favelas de 1949 registrasse a existência da favela da Caixa d’ Água ou Vila
Rica na rua Borda do Mato, com 20 domicílios, a maior parte das favelas do bairro surgiu
a partir dos anos 70. Há registros, também, de remoção de 47 famílias de uma favela na
região que hoje compreende a Reserva Florestal para um conjunto da Cehab em Santa
Cruz, em 1976; Nova Divinéia formou-se em 1971; João Paulo II em 1979 e Juscelino
Kubitschek nos anos 80 (Leite, 2000b).17
O vale em que se situa o bairro é circundado por vários morros, atualmente ocupados por diversas favelas, dispostas em uma espécie de ferradura em torno do “asfalto”.
Além das quatro favelas citadas acima (Borda do Mato, Nova Divinéia, João Paulo II e
Juscelino Kubitschek ou Caçapava), vale mencionar duas outras, que se situam exatamente nos limites do bairro, no nível das encostas (uma das justificativas para serem
como veremos adiante, ora excluídas, ora incluídas no bairro): a do Jamelão, no Morro do
Andaraí e a do Encontro, na Serra do Engenho, cortada pela estrada Grajaú-Jacarepaguá.
Já as ruas mais exteriores ao bairro encontram-se voltadas, um lado para a favela Parque
Vila Isabel, situada em Vila Isabel; outro, para a favela de Arrelia, Andaraí e do Morro do
Cruz, situadas no Andaraí. Assim, forma-se o que um de meus entrevistados designou
como um cinturão de favelas ao redor do bairro, gerando um sentimento de insegurança
e medo em seus moradores.
Do Andaraí para cá, você tem quatro ou cinco favelas, é Jamelão, é JK, é João
Paulo, é Divinéia, é Andaraí. Tudo isso na encosta. E a gente ainda pega a rebarba do Encontro. Hoje a encosta [é] toda habitada, coisa que na época que
eu era moleque aqui não tinha. O Grajaú acabava, não tinha a Comendador
Martinelli, a Canavieira, a favela que tem hoje (Tavares).
Quando nós chegamos aqui, não existia morro, não existia favela no alto do
Grajaú. (Norma).
Quando vim pra cá não tinha nenhuma favela (...) mas depois elas proliferaram
(...) mais ou menos em 63-64. Começaram lá em cima na Borda do Mato e dali
foram se expandindo, foram até o Morro do Andaraí, e vieram João Paulo, a Divinéia, Caçapava e não satisfeitos com isso vieram para o lado de cá também,
que é o Morro de Encontro na subida da Grajaú-Jacarepaguá, ameaçando a
Reserva. É o problema que assola todo o Rio de Janeiro, segurança (...) nós
somos cercados por um cinturão de favelas (Santos).
Mas esses depoimentos também nos revelam uma percepção das favelas que é
bem posterior à sua origem no bairro. O que pode indicar que as primeiras construções
em suas encostas não fossem percebidas como favelas. Sugestivo a esse respeito é
o relato do Sr. Adail Meireles, que, em 1939, estabeleceu-se com mulher e três filhos
num barraco na encosta da atual Rua Comendador Martinelli (então uma pedreira), onde
criava animais (bois, porcos, cabras e cavalos) e produzia adubo e terra estrumada que
vendia pra jardim de madame:
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
101
Comecei a ganhar a minha vida aqui, alugando cavalos na Praça Edmundo
Rego. Naquela época eu tinha 17 anos, era forte, cheio de esperanças, e me
apaixonei por esse lugar, onde as pessoas se gostam de verdade. Agora, tenho tido alguns problemas com vizinhos, pois acham que não posso continuar
mantendo esta vida aqui. Eu não quero brigar com ninguém, mas também não
vou abandonar o meu mundo. (“História do Grajaú; são 50 anos de lirismo”, de
Christine Ajuz, Jornal do Brasil, 11/11/73).
Não pude recuperar a história desse personagem que, possivelmente, foi um dos
removidos para o conjunto habitacional em Santa Cruz. Mas, talvez, não seja casual que
seus problemas com vizinhos tenham ocorrido exatamente no período (1968-75), em que
a via “remocionista” dominava a política para as favelas nos estados da Guanabara e do
Rio de Janeiro, sob o comando da Coordenação de Habitação de Interesse Social da
Área Metropolitana do Grande Rio/Chisam. A erradicação como alternativa exclusiva para
as favelas decorria da definição de favelas com que operava a Chisam: espaços em que a
degradação urbana somava-se à degradação moral e cultural de seus moradores (Burgo,
1998).18 Essa formulação constitui em um dos pontos de apoio para a tematização das
favelas do ponto de vista moral, como apontei anteriormente.
Gostaria de destacar, no entanto, que, a partir de meados dos anos 80, quando
se desenvolveram novas modalidades de violência no Rio de Janeiro associadas a dinâmica do tráfico de drogas com sua ponta de distribuição entrincheiradas nos morros da
cidade, as favelas começaram a ser vistas como um problema de segurança pública (Zaluar, 1998; Leite, 2000a). Desde então o Grajaú, a exemplo de outros bairros da cidade,
passou a ser palco de inúmeros episódios violentos associados às redes de tráfico. Para
seus moradores, sua segurança seria especialmente vulnerável devido às “balas perdidas” no confronto entre quadrilhas rivais entrincheiradas em alguns dos morros de seu
cinturão de favelas.
Com a chegada do Brizola, talvez com a intenção de resolver o problema por
posse de terra (...) estimulou o crescimento das favelas. Miro Teixeira botou
água na [Nova] Divinéia e valorizou muito o Morro do Encontro, sempre ameaçando a Reserva. Então o Grajaú ficou cercado de favelas. Isso desvalorizou
muito as casas, muita gente saiu do bairro. Das famílias dos anos 50, 60%
foram embora (Quito).
Também na imprensa carioca, a imagem do bairro vem sendo ligada à violência,
como caso exemplar na cidade da difícil convivência entre favela e “asfalto”.19 Nos últimos anos, as representações bucólicas vêm convivendo com (e, em algumas circunstâncias, sendo substituídas por) a imagem de bairro violento e campeão de balas perdidas,
sistematicamente difundida nos jornais de grande circulação20 e, como pude verificar em
minhas entrevistas, crescentemente incorporada à percepção dos moradores. Num certo sentido, o Grajaú parece ter sofrido, na década passada, o mesmo movimento pelo
qual passou o Rio de Janeiro no período: transitou de bairro jardim a campeão de balas
102
Cadernos Metrópole – n. 5
perdidas, no mesmo processo e ritmo em que o Rio transitava de “cidade maravilhosa” a
“cidade partida”.21
Em decorrência, o Grajaú se refaz. Além de passar por sucessivos processos de
ampliação de seu território e de redefinição das relações de pertencimento de segmentos
de seus moradores proletarizados, o bairro também vem sendo reorganizado espacial
e simbolicamente, ao se defrontar com o tema das favelas. Ou, melhor, quando seus
moradores se deparam com o dilema (que, de resto, parece ser também de todos os
habitantes da cidade do Rio de Janeiro) de integrá-las ou não, definindo suas fronteiras e
passagens.
História e memória do/no Grajaú
Quando iniciei meu trabalho de campo no Grajaú, tinha em mente uma configuração territorial e social do bairro. Logo descobri que os bairros são construções sociais,
cujos limites oficiais nem sempre são claramente definidos e, quando o são, não necessariamente correspondem ao bairro na apreensão de seus moradores, pois tanto as fronteiras espaciais quanto as simbólicas são fluidas, envolvendo estratégias de exclusão e
de inclusão, barreiras e passagens. A linha de trabalho que desenvolvi, então, foi procurar
apreender a percepção do bairro de meus entrevistados, buscando em suas memórias a
história do Grajaú.
Em seu livro pioneiro no campo dos estudos da memória no Brasil, Ecléa Bosi sustenta que a memória do indivíduo não é a “subjetividade livre a que se referia Bergson”,
mas “depende de seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola,
com a Igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo” (1994, p. 54). Com isso, Bosi, de um lado, destaca “a
iniciativa que a vida atual do sujeito toma ao desencadear o curso da memória”. De outro,
enfatiza que aquilo que o indivíduo lembra, quando lembra e como lembra é uma construção coletiva, que se explicaria a partir dos quadros sociais da memória, nos termos
de Halbwachs: “os instrumentos de que a memória coletiva se serve para recompor uma
imagem do passado que se combina, a cada época, com os pensamentos dominantes
da sociedade” (apud Santos, 1998, p. 156). Também Ortiz nos lembra que a memória é
seletiva e “se atualiza sempre a partir de um ponto do presente”. Para o autor, “os relatos
da vida estão sempre contaminados pelas vivências posteriores ao fato relatado e vêm
carregados de um significado, de uma avaliação que se faz tendo como centro o momento da rememoração (...)” (Bosi, 1994, p. 79).
No caso de meus entrevistados percebi, em alguns depoimentos, que o tema da
história do Grajaú subsumia os demais. A vida individual fundia-se e confundia-se com a
história do bairro, os relatos buscavam colocar em relevo certas conexões entre trajetórias
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
103
particulares e processos sociais. O passado era contado a partir de alguns traços considerados expressivos na vida atual do bairro, numa reconstrução que valorizava elementos e
personagens que representavam ou que poderiam estabelecer uma relação com o presente. Recolhi, assim, várias versões sobre a história do Grajaú, diferentes reconstruções históricas sobre a origem, data e local de fundação, atores envolvidos e modo de expansão.
No curso de minha pesquisa, já havia examinado a evolução urbana da região, detendo-me nas análises sobre a integração do Grajaú à malha urbana da cidade a que me
referi anteriormente. Mas não se tratava de equacionar as contradições verificadas nos
depoimentos, recorrendo a essas fontes para restaurar a “veracidade dos fatos” (Ortiz,
1994; Novaes, 1996). Até porque, seguindo a perspectiva de que “são justamente as
narrativas construídas – em suas dimensões identitárias e simbólicas – que devem se
transformar em objeto de reflexão sociológica” (Novaes, 1996, p. 188), o que me interessava era examinar como aqueles fatos e processos foram percebidos e a história
do bairro foi reconstituída em narrativas que destacavam alguns eventos do passado,
por concebê-los articulados segundo lógicas que possivelmente então constituíam, cada
qual, apenas uma virtualidade entre outras, mas que parecem ter sido, à época, plenas de
sentido.22
Assim, considerei as diversas versões da história do Grajaú como narrativas que
dialogavam entre si enquanto buscavam refazer o passado, reconstruindo a memória coletiva. Ao fazê-lo também disputavam a versão oficial da história do Grajaú. Acompanhando esses movimentos, pude observar que, através deles, também se encontravam em
disputa a identidade dos grajauenses e a possibilidade de sua representação na política
comunitária e partidária.
As várias versões da história do Grajaú:
construindo a memória coletiva
Ao longo do trabalho de campo, conheci e entrevistei vários personagens, que se
apresentavam como portadores da memória do bairro, ora por serem moradores muito
antigos (grajauenses de raiz), ora por terem pesquisado sua história ou ainda por atuarem
como seus promotores/divulgadores. No plano do bairro, eram atores que disputavam
qual seria a “verdadeira” história do Grajaú.
Através de seus relatos, de diversas publicações locais e de outras fontes, pude
acompanhar dois depoimentos dessa disputa, Um primeiro, ocorrido no início dos anos
90, com acirrada polêmica entre duas versões sobre a data e o local de fundação do
bairro, bem como sobre seu modo de expansão. O segundo estava em curso no ano de
104
Cadernos Metrópole – n. 5
1999, quando realizei minhas entrevistas. Articulando vários grupos e atores já em torno
de três versões sobre a origem e o desenvolvimento do bairro, associava-se a dois processos eleitorais: para a associação de moradores local, ocorrido em setembro de 1999,
e para a Câmara de Vereadores, previsto para outubro de 2000.
O primeiro momento: Grajaú faz 80 anos?
Em 1993, um dos grupos do Grajaú resolveu comemorar o aniversário do bairro.
Constituiu uma comissão integrada pelos dirigentes da Associação Comercial e Industrial
do Grajaú e da Amgra, por diretores de escolas, presidentes de clubes e pessoas de
prestígio para definir a data de sua fundação. Na ocasião, o então presidente da Associação Comercial e Industrial do Grajaú solicitou a um professor de literatura, morador no
bairro há aproximadamente 30 anos, que pesquisasse a sua origem. É o professor que
nos conta:
O Grajaú não tinha data de fundação. Aí o presidente da Associação Comercial me pediu para pesquisar. Depois, em 1994, ele fez várias reuniões com as
lideranças do bairro, lá no clube da Light, para decidir que data fixar.23
O professor era também poeta e, declarando-se um apaixonado pelo Grajaú, cultivava a sua memória, reunindo e divulgando poesias, textos e reportagens sobre o bairro
em diversas publicações que organizou.24 O que parece ter motivado a atribuição da
tarefa ao professor foi ter ele publicado, em 1992, o livreto Capela de N. S. de Imaculada
Conceição, em que já enunciava os elementos básicos de sua versão sobre a história do
bairro, ao mesmo tempo em que era reconhecida a existência de uma polêmica sobre o
tema.25
Segundo o professor, o Grajaú nasceu com a inauguração da primeira casa da
esquina das atuais ruas Grajaú e Barão de Bom Retiro. A casa foi construída por um dos
arquitetos do loteamento da Companhia Brasileira de Imóveis e Construções, Francisco
Tricárico. Quatro anos depois, Tricárico construiu em seu quintal uma capela consagrada
a N. Sra. da Imaculada Conceição, onde se realizavam os serviços e festividades religiosas da região, até ser construída, em 1931, a Igreja Matriz de N. Sra. do Perpétuo
Socorro, na Praça Edmundo Rego. O nome do bairro seria uma generalização do que,
originalmente, era a denominação da rua da casa e da capela.
O nome Grajaú é indígena, quer dizer um cesto que os índios usavam para
carregar frutas, caça. O Grajaú tem o formato de um cesto, é um vale cercado
de montanhas. O rapaz que deu o nome ao Grajaú se lembrou disso. (...) foi
um engenheiro que veio trabalhar na Companhia com o Engenheiro Richard e
o Tricárico (...) tinha uma vereda muito antiga, mas pertencia a uma outra companhia, era outro loteamento (...) então esse engenheiro que (...) nasceu na
cidade de Grajaú no Maranhão (...) pegou um pedaço de tábua bem grande e
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
105
escreveu “Grajaú” e enfiou ali na entrada de uma passagem que tinha. O povo
começou a dizer “vamos passar pela vereda Grajaú”, depois transformou-se
em Rua Grajaú e a rua deu nome ao bairro.
A versão do professor é, portanto, de que o bairro nasceu na Rua Grajaú, a partir
da casa de Tricárico, sobretudo em torno da capela.
É a rua mais importante do bairro, nesse livrinho faço até um soneto, Soneto
da Rua Grajaú, posso ler? “A Rua Grajaú tem sua história/ contada com carinho e muito amor/ deu nome ao bairro conquistando glória/ tem os seus dias
de paz e de esplendor/ em torno da capela tão mimosa/ nasceu o Grajaú bairro-jardim/ casas e ruas largas bem formosas/ enfeitadas de flores e jasmins/
gosto de comtemplar-te sempre bela/ onde as aves felizes nos seus ninhos/
cantavam em festa/ meigas e singelas/ ó Rua Grajaú/ foste o embrião/ de um
bairro nobre/ e feito com carinho/ um recanto que alegra o coração”. Depois
eu fiz um soneto dedicado a capelinha porque o Tricárico era italiano, quando
veio para o Brasil fez uma promessa: se tivesse sucesso construiria uma capelinha e, em 1914, ele construiu a casa dele, na rua Grajaú nº 1 e, no quintal, 4
anos depois ele inaugurou a capelinha... O Grajaú foi inaugurado com a primeira casa, no dia 15 de agosto de 1914, e fez agora 85 anos.
A versão concorrente foi sustentada, nas reuniões da Comissão e também através
dos jornais locais, pelo presidente do Grajaú Tênis Clube/GTC e, à época, também presidente da Amgra. Ele nos conta, em entrevista, que o bairro surgiu a partir de um clube de
futebol (Grajaú Futebol Clube), que depois se transformou no GTC, de onde viria o nome
da rua onde estava situado e também o nome do bairro. E argui que a data de fundação
do bairro deveria ser a da fundação do clube, 5 de setembro de 1925.
Meu avô comprou um terreno na rua Borda do Mato, em 1924, e construiu a
casa da família. Desde então moramos no Grajaú. Meu pai gostava de futebol,
mas o esporte da época era tênis, coisa de almofadinha (...) Esporte de homem mesmo era futebol. Então eles fizeram um local de encontro no bairro – o
barracão de futebol, que em 1925 virou o Grajaú Tênis Clube. As plantas da
companhia que loteou o bairro e as escrituras públicas só falam em Andaraí
Grande e Andaraí pequeno. Grajaú era nome do clube.
Mesmo admitindo que o estabelecimento de um bairro é um processo dinâmico
e complexo, o professor propôs como marco simbólico a data da inauguração da casa
de Tricárico, suscitando um forte debate nas reuniões com as lideranças do bairro, mas
obtendo apoio da maioria delas.26
Tem um cidadão do Grajaú, que foi presidente do Grajaú Tênis Clube muitos
anos, e ele quer que o aniversário do bairro seja o aniversário do clube. Então
eu argumentei com ele: - “Como é que existia um clube, se não existia ninguém
morando por perto?”. Então vamos parar... (professor).
Quando chegaram os novos grajauenses, começaram a discutir a data de fundação. Queriam ter uma data cabalística para a fundação do bairro. O mesmo
grupo que já tinha violentado a história de Vila Isabel (...) Levei 7 argumentos
para a identidade entre o GTC e o bairro, que o GTC era o centro cultural e
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Cadernos Metrópole – n. 5
desportivo de tudo que acontecia no bairro. Eles só levaram a foto da casa
do Tricárico. Mas como eles tinham mais força política fizeram a festa dos 80
anos e ficou a casa do Tricárico como símbolo do Grajaú. Mas ela era periferia,
na rua Barão de Bom Retiro. Achavam que era guerra minha com o administrador regional. Chegaram a botar essa história na internet (presidente do GTC).
Nós encontramos uma data, eu e um professor do Pedro II fizemos um histórico, mandamos para a Prefeitura e a Prefeitura aceitou a data (professor).
A polêmica envolveu as lideranças locais, as entidades representativas do bairro,
a 9ª Região Administrativa, os jornais da área e muitos moradores. Por fim, a versão do
professor foi aceita e oficializada pela 9ª RA e pela Prefeitura; a primeira, através da divulgação da pesquisa dos dois professores e ambas, através da promoção de um programa
de comemorações dos 80 anos do Grajaú, no período de 11 a 15 de agosto de 1994.
Fixando imagens do passado, disputando o presente
Os episódios examinados (pesquisa, produção de versões, debates, concursos
de redação e poesias sobre o bairro, divulgação das versões em publicações, jornais da
região e em um site sobre o Grajaú e, por fim, uma semana de festividades) revelam o
interesse e o esforço em produzir uma versão consagrada da história do bairro, recriando
a memória coletiva, no sentido apontado por Bosi:
Quando um grupo trabalha intensamente em conjunto, há uma tendência de
criar esquemas coerentes de narração e de interpretação dos fatos, verdadeiros “universos de discurso”, “universos de significado”, que dão ao material de
base uma forma histórica própria, uma versão consagrada dos acontecimentos, o ponto de vista do grupo constrói e procura a sua imagem para a história.
(1994, pp. 66-67)
Ana Daou, em sua pesquisa sobre a sociedade amazonense na virada do século
XIX demonstra como a permanente referência à Manaus antiga por seus entrevistados
era “parte de um exercício de fixação de uma determinada construção social, atrelada ao
prestígio e ao status de um segmento social e aos interesses de consagração de uma
época” (1999, p. 74).Tratar-se-ia, nos termos de Pollak, de um “trabalho de solidificação
da memória” que, criando “elementos irredutíveis”, buscava dificultar a “ocorrência de
mudanças” (1992, p. 201).
De modo similar, podemos entender a definição da data de fundação do Grajaú
como um “ponto de referência” que estruturava a memória coletiva, permitindo recompor a história do bairro através de um processo intersubjetivo de construção de sua
memória. Assim, reconstruía-se no presente o Grajaú como um bairro nobre, de elite,
demarcando as distâncias sociais que o separariam de seu entorno operário. Mas, ao
fazê-lo, construía-se – por referência a este outro que era excluído de um passado e um
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
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presente comuns – também a identidade individual e coletiva de seus personagens como grajauenses. Considerando essa relação entre construção da memória comum e de
identidade coletivas, Pollak sublinha:
A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações
do passado que se quer salvaguardar, se integra (...) em tentativas mais ou
menos conscientes de definir e reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades (...) A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para
definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis. (...) Manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo
que um grupo tem em comum (...) eis as duas funções da memória comum.
(1989, p. 9)
Entretanto, é ainda Pollak que destaca que uma versão majoritária da memória coletiva não é necessariamente hegemônica ou, melhor, nem sempre está “suficientemente
constituída e instituída”, podendo conviver com versões “subterrâneas”, minoritárias, dominadas, mas capazes de serem ativadas em determinadas circunstâncias ou no interior
de grupos específicos. A memória pode, assim, “entrar em disputa” (1989, p. 4). Dessa
perspectiva, podemos compreender o processo de recriação da memória coletiva do/no
Grajaú como um “trabalho de fixação” de imagens do passado valorizadas como positivas, em que elas estão de fato em disputa por requalificarem o presente, como veremos
a seguir.
As versões concorrentes sobre a história do bairro destacam aspectos de seu
passado referidos, basicamente, ao que seria seu perfil de elite ou de classe média e seu
surgimento em torno de um clube ou de uma igreja. Ao fazê-lo, articulam-nos às biografias
de alguns dos principais atores do bairro (suas lideranças). Constroem, assim, entrelaçamentos diversos entre memória/história do bairro e trajetórias particulares, que se associam à postulação de quem pode legitimamente nele, para e por ele falar.27
A história agora oficial do bairro, ao representar o Grajaú como um bairro que nasceu em torno de uma capela,28 está construindo o mesmo como uma comunidade católica e, dessa forma, considerando esse pertencimento religioso como atributo fundamental
para sua representação. Reconhece outras redes sociais no bairro, mas sob a hegemonia
da rede católica.
O bairro começou a crescer e a ter vida sócio-religiosa, em torno da Capelinha, onde havia Missa aos domingos, batizados, novenas no mês de maio, na
festa de N. Sra. da Imaculada Conceição, Primeiras Comunhões. Ali se encontravam as pessoas residentes no bairro e na vizinhança (professor).
A capela foi a primeira referência cívico-religiosa da comunidade nascente
(...) a juventude que se criou na Rua Grajaú, se relacionando nas festividades
cívico-religiosas (...) [é] que vai dar início ao (...) Grajaú Tênis Clube. (Lemos e
Silva, 1994, p. 17)
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Cadernos Metrópole – n. 5
Já a versão do surgimento do bairro em torno do clube valoriza o grajauense de
raiz, isto é, nascido e criado no bairro, mais precisamente na área do 1º loteamento, que
seria recoberta pela rede social do GTC e das ruas adjacentes. A referência aos novos
grajauenses evoca o sentido original do bairro de elite e qualifica como seu possível representante o morador antigo, condição da qual exclui, no passado, Tricárico, já que sua
casa seria na periferia e, no presente, os moradores novos. Com isso, reforça o pertencimento social como condição para representação, operando com a representação do
morador antigo como aquele que ama o bairro, conhece seus problemas e é capaz de
propor soluções que contem o apoio e a adesão dos moradores. Já os novos operariam
através de uma espécie de “golpe”, demonstrado no caso por uma associação a um grupo externo para violentar a história.29
Nessa construção discursiva, o presidente do Clube enuncia a disputa pela representação no/do Grajaú, que se processava nos planos comunitário e político. Ao afirmar
a supremacia da rede social dos moradores antigos sobre a rede católica, está se qualificando como seu representante na Amgra, na Câmara de Vereadores e na Assembléia Legislativa, isto é, para falar para o bairro e pelo bairro, e diminuindo o efeito negativo de seu
afastamento da Igreja Católica.30 O que indica que identifica claramente seus opositores:
o administrador regional e o professor. O primeiro, morador de Vila Isabel, que estava entrando no bairro através da frequentação social das famílias grajauenses, da inserção na
rede católica e de uma articulação na política comunitária, elegeu-se vereador, em 1996,
com uma campanha em que, localmente, enfatizava sua condição de representante de
Vila Isabel e do Grajaú. O segundo seria o presidente da Amgra na gestão imediatamente
posterior (1995/97).
De outro ângulo e independentemente da intencionalidade de suas ações no momento da disputa, o professor, através delas, também se qualifica para falar no/para o
bairro. E o faz, de um lado, atacando a identidade do adversário com a elite do bairro,
ao afirmar que a rua Borda do Mato, onde reside, originalmente, era de outro loteamento, o Vila América. Por outro, neutraliza a tentativa de exclusão, credenciando-se como
portador da memória do bairro na condição de seu historiador e divulgador e superando
a exigência de ser de raiz através da permanente declaração de seu amor ao Grajaú em
crônicas e poemas. E, ainda, valoriza seu pertencimento religioso (é, inclusive, ministro da
eucaristia), ligando-o diretamente à tradição do bairro:
Toda segunda-feira, às quatro horas, a família com as velhinhas amigas rezam
o terço: uma vez por ano, no dia 8 de dezembro, é celebrada a missa de Nossa
Senhora da Conceição. Eu há 30 anos ajudo a missa nesse dia.
Gostaria de destacar aqui a estratégia de inclusão no bairro desenvolvida pelo
professor, tal como por outros moradores, e que se relaciona à reelaboração da categoria
bairro de elite examinada anteriormente. Ser grajauense passa a significar, então, compartilhar sua história, se não no passado, por sua reconstrução social e espacial em sua
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
109
elite, através de uma sociabilidade que valoriza a sua tradição e se assenta na família e na
comunidade católica.
O segundo momento: novos atores em cena
e as mediações com o Andaraí
A produção de uma versão consagrada sobre a história do Grajaú, não foi, no
entanto, capaz de suprimir totalmente a controvérsia sobre a mesma. Cinco anos depois,
em meu trabalho de campo, os moradores me ofereciam espontaneamente em seus depoimentos uma versão da história do bairro. Embora, com maior freqüência, reproduzissem a história oficial, havia espaço também para a reconstrução da memória coletiva pela
tematização da região pauperizada do bairro e das favelas.
Um jornalista, que à época da polêmica original divulgara ambas as versões, fomentando o debate, lançou uma nova interpretação da história do Grajaú, valorizando
suas conexões com o Andaraí.
Pelo jornal, numa pesquisa minha, eu lanço outra tese (...) é a partir do momento que você urbaniza um determinado espaço [que] começa a dar vida àquele
espaço (...) ele já começa a surgir ali. O [professor] (...) parte do surgimento da
igreja, mas antes já existia a rua Borda do Mato. Há muito mais tempo, há cem
anos atrás. Então, o bairro, a região pra mim, foi fundada aí, no período em que
foi fundada a rua Borda do Mato, que é muito mais antiga do que a rua Grajaú,
a igreja do Tricárico e o Grajaú Tênis Clube. Então, nenhum dos dois tem fundamento, não têm razão sobre o aniversário do bairro.
A neutralização do debate implica em uma nova postulação de falar pelo bairro, redefinindo seu território e reconstruindo a identidade coletiva de seus moradores. O jornalista é pré-candidato a vereador pelo Partido Socialista Brasileiro e avalia que, de dentro
do bairro, “virão muitos candidatos, não vai ser fácil”. Retomar o debate significa, de um
lado, um confronto com o vereador da região, ex-administrador regional e forte candidato
à reeleição, como pode ser interpretado a partir de seus comentários diante dos primeiros preparativos para a realização da festa de aniversário do bairro no ano seguinte:
Como agosto-setembro é véspera de eleição, acredito que seja iniciativa desse cidadão para evidenciar uma participação direta no bairro (...) e trazer a
mídia a seu favor, às vésperas da eleição.
De outro lado, envolve construir a própria candidatura. Sustentar que o bairro surge da Rua Borda do Mato (rua de “fronteira” entre os dois loteamentos), cem anos atrás,
é vincular o surgimento do Grajaú ao Andaraí. Se o vereador está identificado com a elite
social e católica do Grajaú, o jornalista fala como possível representante de um bairro
que não é mais o bairro nobre, mas que teria também um passado proletarizado, cuja
110
Cadernos Metrópole – n. 5
dignidade propõe resgatar. Trata-se, portanto, de contar a história do Grajaú a partir do
Andaraí, das fazendas dos jesuítas às suas fábricas e vilas operárias e, só então, seus
loteamentos.31
Ele está querendo realizar essa festa, só que, de repente, pode ser formado
um grupo que possa vir a fazer com mais fundamento, alguma festa mais adequada... assim, buscando raízes e mais razão. Muitas coisas vão acontecer,
porque esse ano é um ano crítico.
A tese do Grajaú como um desdobramento do Andaraí Grande não lhe é exclusiva,
ao contrário, vem sendo defendida com vigor pela Associação de Moradores e Amigos
do Andaraí/Amaraí e por grupos de moradores que procuram manter viva a tradição do
bairro, entre os quais se destacam alguns vinculados a partidos da esquerda que denunciam sua descaracterização histórica e a espoliação de sua memória.32 Apresentam a
identificação do Vila América como parte do Grajaú como produto de estratégias tanto
individuais como do capital imobiliário para valorizar a área como um bairro de status,
aumentar os valores dos imóveis e o prestígio de seus moradores, desvinculando-o das
origens operárias.33 Em 1999, esse grupo divulga o projeto “Andaraí quase 500 anos”,
que pretende mobilizar os moradores “para resgatar e divulgar a história do bairro e melhorar sua qualidade de vida”34 No caso do jornalista, seu entendimento parece ser que,
através do decidido apoio a essa tese, de seu trabalho de divulgação da região através
do jornal35 e de sua atividade comunitária (projetos culturais e desportivos naqueles dois
bairros) qualifica-se à representação postulada.
Essa versão da história do Grajaú, valorizando positivamente a herança operária,
reconstrói o passado redefinindo suas fronteiras espaciais e sociais. Ao fazê-lo, desvenda, no presente , a porosidade das fronteiras e abre “passagens” para a inclusão no bairro dos moradores mais pauperizados e de suas favelas. Ou melhor, torna possível uma
outra construção social do bairro. Vindas do Grajaú, outras vozes se somam a essas, em
uma nova recriação coletiva do bairro.
Mediações com favelas e reconstrução do bairro
Paulo, por, exemplo, contando como veio morar no bairro, resgata uma face proletária do Grajaú como constitutiva do bairro nobre, destacando a existência de um conjunto habitacional dentro dessa parte do bairro. Mas, em seu relato, não se prende ao
bairro como um espaço em si. Antes o entende, em sua lógica espacial e social, como um
produto de desigualdades sociais que relacionam presente e passado, bairro, cidade e
país. Assim, reconstrói, no presente, uma unidade bairro-favelas pelas relações de classe
na sociedade capitalista, criticando a exclusão das últimas do primeiro como apartação
social.
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
111
Quando eu me mudei para o Grajaú, fui morar num conjunto do IAPC [Instituto
de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários]. Nós éramos altamente discriminados pela burguesia do Grajaú, porque ali era um conjunto residencial.
“Isso aí não pode acontecer dentro do Grajaú, nós temos que afastar, isso, é
um absurdo.” Esse mesmo absurdo que eles falam das favelas. Esse mesmo
absurdo que eles fabricam. Favela é o produto mais autêntico do capitalismo.
Apesar de ter sido candidato a deputado estadual (em 1990), Paulo não postula
falar pelo bairro e sim pela esquerda, pelos trabalhadores. Reconstruindo a história e a
memória do bairro, não disputa uma representação política e sim uma visão de mundo. É
deste lugar que fala para o Grajaú.
O Grajaú sempre teve no seu bojo uma elite (...) um defeito nosso. Mas aqui
havia um pessoal esclarecido (...) nós tínhamos condições de formar uma opinião. (...) Eu saio de casa pra comprar um pão e volto duas horas depois, porque eu paro para responder às pessoas. “Paulo, o que você acha disso? Eu
acho isso e isso, minha posição é essa”. Eu tenho um respeito muito grande
por isso.
Sem qualquer compromisso com a tradição do bairro, Paulo fala do ponto de vista
de uma corrente política, esta sim configurando para ele uma tradição, para transformar
o bairro. Defendendo a inclusão das favelas e dos segmentos pauperizados no Grajaú,
pretende fazer avançar a cabeça das pessoas e, desse modo, também a política no Rio
de Janeiro.
Com a mesma perspectiva, ainda que através de partidos e estratégias diferentes,
Fernando e Zélia reconstroem a história do Grajaú. Zélia, moradora nova e residente na
periferia do bairro, associa a história do Grajaú à do Andaraí e de Vila Isabel, integrando
“asfalto” e favela. Com essa perspectiva inicia, na escola pública onde trabalha, um projeto com alunos e professores para recuperar a memória da região. Pensa em recolher
as histórias de seus moradores e recontar o processo de desmatamento e ocupação das
encostas como paralelo e integrado ao desenvolvimento do “asfalto”. Com isso, pretende estar reforçando a mediação que ela própria exerce na região a partir dessa escola e
de sua participação na Agenda Social Rio36. Mas, sobretudo, quer valorizar o papel da
escola, ora como espaço neutro, ora como lugar de integração de diferentes favelas e
“comandos”, de estudantes pauperizados e de classe média.
A escola considera por eles uma área neutra, então tem tanto a comunidade
do Macacos quanto a do Andaraí, que são inimigos, se dizem inimigos. Mas
eles sabem que, no momento que estão da porta pra dentro, eles pertencem a
uma outra comunidade, que é a comunidade da escola, não tem uma característica própria de favela ou asfalto.(...) Aconteceu uma parceria entre eu e eles
[os líderes comunitários], qualquer coisa eu aviso as comunidades e qualquer
coisa eles me avisam...
112
Cadernos Metrópole – n. 5
Já Fernando, morador antigo, nascido no bairro, recupera do passado as imagens
que permitem reconstruir o bairro do Grajaú como uma comunidade que inclua, no presente, “asfalto” e favelas.
No final da rua Comendador Martinelli – não existia ainda a Reserva Florestal –
era um morro, onde o Seu Adail tinha uma criação de cavalos. No pé da Pedra
existiam uma vinte, vinte e cinco famílias. Aqueles meninos eram os mesmos
que freqüentavam a [escola] Duque de Caxias comigo. Meu pai era médico,
chegava ao final da noite e as famílias desciam e esperavam no portão da
minha casa: atendimento, amostra grátis... As pessoas lá de cima ajudavam
aqui em baixo com jardinagem, zelador. (...) A relação entre o pobre e a classe
média era muito pacífica, tranqüila, sem qualquer problema. Hoje, esses mesmos meninos, parte [dessas] famílias foram para Paciência, em Santa Cruz, e
parte conseguiu ficar na própria Grajaú-Jacarepaguá [no Morro do Encontro].
Os que não foram continuam trabalhando no bairro. Não existia problema de
favelização com a conotação que tem hoje, a questão da segurança. Essa história que estou falando, provavelmente deve ter se repetido no final da [rua]
Borda do Mato [atualmente, acesso à favela Vila Rica ou Borda do Mato], na
escadaria da [rua] Bambuí [acesso à Nova Divinéia], lá onde Seu Manoel tinha
o Horto no final da Campinas [acesso à JK e à João Paulo II]. Essas histórias
se repetem em todos esses lugares e as comunidades que lá estavam eram
bem recebidas pelo bairro naturalmente como tem que ser: dentro do princípio
da normalidade de convivência.
Contra a imagem recorrente no Rio de Janeiro como uma “cidade partida”,
Fernando enfatiza as relações entre o pobre e a classe média: relações de trabalho
sobretudo, mas também as de ajuda mútua, de assistência desinteressada aos desvalidos, a convivência das crianças na escola e nas brincadeiras de rua. Em seu relato, o
Grajaú aparece como uma comunidade que integrava favela e “asfalto” por sobre as
diferenças de classe e a partir das relações que se desenvolviam no quotidiano do bairro. O entrincheiramento do tráfico de drogas nas favelas teria rompido essa vivência de
comunidade no Grajaú.
Com a entrada do narcotráfico de forma agressiva nesses morros e a ausência do Estado, o narcotráfico passa a assumir o comando desses morros e
essas pessoas ficam como reféns dessa situação. Daí começamos a discutir
não mais condições de emprego, saúde e educação e a discutir segurança
pública, baseado em que? “Estamos precisando de mais armamento, de mais
guarda!” Agora veja bem, o Grajaú não é bairro de passagem, pelo contrário, é
fim de ponto, então com essa história você há de convir que tem alguma coisa
errada aí. A gente não conseguir fazer com que essas comunidades possam
sair dessa posição de refém...
A solução para o bairro seria romper com o presente de violência, reconstruindo
seu passado “comunitário”. Descartando a hipótese de fazê-lo pela exclusão social, como
restauração do bairro nobre ou de elite, a alternativa que propõe é recriar a comunidade
pela política. Para Fernando, ao tentar reconstruir o Grajaú como um bairro nobre, muitos
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
113
de seus moradores idealizam o passado, tentando reviver o “bairro de antigamente”, por
vias transversas ou ineficazes.
(...) principalmente as [pessoas] na faixa de quarenta e poucos anos, que soltaram muita pipa, balão, pelada de rua, uma rua contra a outra... Essa foi a
infância que eu tive e que meu filho não tem. [Mas] o que as pessoas querem
no fundo é que o bairro volte a ter aquelas características que um dia teve...
Por isso, o “Acorda Grajaú” nasceu com força, porque chegamos à conclusão
de que para ter as mesmas características era preciso que as ruas tivessem
uma condição adequada, a escola pública funcionasse devidamente, a saúde
também, etc.
O caminho para “restabelecer a comunidade” é, para Fernando, o da política. Mas
Fernando defende uma política que se associe à religião para resgatar a sociabilidade
perdida através da ação comunitária. A força da idéia de comunidade, em sua fala, provém da hipótese de reatualização da comunidade católica, inspirada no modelo das comunidades eclesiais de base e de requalificação do tipo de solidariedade e participação
hoje desenvolvidas no âmbito das pastorais católicas.37 É do movimento social de base
da Igreja, com a voz da igreja dos pobres que Fernando fala para o bairro, propondo
(...) restabelecer aquilo que nós tínhamos, que é o que somos na realidade.
Nós não somos pobres e ricos, morro e asfalto, nós somos uma comunidade
só. O bairro tem todas as condições de resolver quase todos os seus problemas. Meninos de rua? O bairro tem condições de resolver! É complexo o problema, mas a certeza que a gente tem é que é possível a sociedade atropelar
esse processo com mobilização social, resgatando através desse passado, dizer: “Vamos juntos tentar resolver o problema”. Eu estou lá em cima na [Nova]
Divinéia juntando jovens de quinze, dezesseis e dezessete anos, porque, se eu
não fizer ou quem esteja lá em cima, esses jovens vão ser recrutados pelo tráfico, não é isso? Então o trabalho da Igreja é importante porque segura, você
sabe que segura.
Essa perspectiva anima sua idéia de reconstrução da comunidade do bairro como
uma comunidade católica e cidadã. Nesse sentido, compartilha o projeto de “integração
e pacificação” do Rio de Janeiro, que se desenvolveu ao longo da década de 90 na cidade, combinando a religiosidade difusa existente na cidade com as diversas igrejas, no
exercício da fraternidade e na promoção da cidadania38 e que, no caso da Igreja católica,
parece estar associado a uma reorganização e revitalização das pastorais, ainda que sob
novas bases.
Tematizando as favelas e interpelando o bairro
Esse projeto de “pacificação e integração” do Rio de Janeiro responde ao crescimento da violência e dos sentimentos de medo e insegurança, que se expressam na
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Cadernos Metrópole – n. 5
imagem de uma “cidade partida”, com a proposta de integração das favelas à cidade. Envolve associações de moradores de bairro e de favela, ONGs, instituições estatais, igrejas, escolas e entidades diversas, muitas vezes articuladas em fóruns, redes e conselhos
diversos, e desenvolve várias iniciativas de promoção da cidadania, da solidariedade e da
participação por parte da sociedade civil, que se combinam a alguns programas pontuais
do governo estadual, como, por exemplo, o Vida Nova, e ao Favela-Bairro, programa de
urbanização das favelas desenvolvido pelo governo municipal.39
Quero com isso destacar que a construção social do bairro do Grajaú não concerne exclusivamente a seus moradores, realizando-se no interior de um contexto mais
amplo de reconstrução da cidade do Rio de Janeiro, que se configura como um campo
de disputas de projetos sociais e políticos, que não me cabe aqui examinar. Gostaria
apenas de enfatizar que a recriação e disputa da memória e da identidade do bairro, que
analisamos, é informada, num plano mais geral, tanto pela perspectiva de integração das
favelas à cidade, quanto pela de sua exclusão. Há, porém, no Grajaú uma influência específica do “projeto de pacificação e integração”, particularmente através da interpelação
de suas lideranças de bairro e de favelas pelo fórum constituído pela Agenda Social Rio,
mas também no âmbito da Conselho Comunitário de Segurança da Grande Tijuca40, dos
conselhos Escola-Comunidade e do Conselho de Saúde da AP-22.
Instadas a promoverem a integração entre “asfalto” e favelas, as novas lideranças
do Grajaú, “ao falarem para o bairro e pelo bairro”, refazem seu território, redefinindo fronteiras e abrindo passagens:41
[Quando fizemos a chapa para a Amgra] tinha uma divisão alto Grajaú e baixo
Grajaú, mas não é nada disso, isso é fofocada da galera. Então pegamos gente daqui de cima, gente lá da Praça Nobel, do [Largo do] Verdun, o pessoal
mais embaixo da [rua] Mendes Tavares (presidente da Amgra).
Fui até lá e a mulher do presidente da [favela] Caçapava me disse “foi a primeira vez que o presidente do Amgra lá de baixo sobe aqui”. Mas não é assim que
tem que ser? [...] já criou esse constrangimento porque o PEU só vai até uma
determinada área (idem).
Interpeladas pelos mesmos fóruns e diante da fluidez das fronteiras entre bairro
e favelas nas diversas reconstruções do passado e do presente que examinamos, as
lideranças de favela também refazem o Grajaú. Embora não possa, no âmbito deste texto,
analisar como o fazem, gostaria, pelo menos, de indicar algumas de suas estratégias de
inclusão e de exclusão no bairro e as circunstâncias em que são acionadas, examinando
brevemente dois casos.
O primeiro é o da favela do Morro do Encontro, como vimos, situada na Serra dos
Pretos Forros, uma das “fronteiras” do Grajaú, e considerada pela Prefeitura integrado ao
bairro do Engenho Novo. O programa Favela-Bairro, porém, entre suas iniciativas de urbanização, abriu uma rua de acesso ao Encontro na rua Visconde de Santa Isabel, bairro
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
115
do Grajaú. Diante disso, o presidente da Associação de Moradores e Amigos do Encontro reivindica a inclusão da favela no bairro do Grajaú.
Nasci no Encontro e pedi muito pão aí pelo Grajaú afora, carreguei muita bacia, trouxa de roupa... fazia carreto na feira (...) me criei na comunidade. (...) pelos dados do IBGE, consta que nós somos do Engenho Novo. (...) nós somos
parte do Grajaú, mas como aí não consta, não é uma área formal, nós vivemos
como se fosse no Engenho Novo, mas isso não é justo (...) se o Grajaú não
aceita [o Encontro] como parte do território dele, a Reserva Florestal também
não pode ser do Grajaú (...) está no mesmo morro e o 6º batalhão [da PM, responsável pela área da Grande Tijuca] não vai poder policiar a nossa área.
Ao fazê-lo, não só opera com uma lógica mais instrumental (sua inclusão nos projetos de “integração e pacificação” em curso na Grande Tijuca), como também busca
restaurar uma vivência comum entre bairro e favela, marcada por relações de vizinhança e
pela solidariedade e, assim, descaracterizar o Morro do Encontro como principal foco de
violência e criminalidade no bairro.
A tentativa de romper com esse estigma, que hoje marca todas as favelas do bairro, parece ser uma preocupação comum de suas lideranças e orienta suas principais estratégias de inclusão no bairro, como veremos no segundo caso, o de uma das favelas do
Grajaú em sua relação com os moradores do bairro e a Amgra. Benedito, um dos dirigentes de uma associação de moradores em favela, conta-me que reorganizou o espaço de
sua comunidade, suprimindo o nome das velhas ruas e designando-as por uma combinação do nome da rua formal que dá acesso à favela e um número (rua X, nº 350, casas 1,
2, ...; rua X, nº 352, casas 1, 2,...). Enviou um ofício à Light, solicitando o reconhecimento
dessa reorganização espacial, que foi aprovada pelos moradores por não evidenciar sua
condição de favelados para as pessoas que têm preconceito. Assim, nomeando o acesso
ao morro como uma continuidade da via pública, transforma a fronteira em passagem.42
Contudo, o principal operador dessa transformação seria a política comunitária. Reconhecendo a importância da mediação efetuada tanto por lideranças do bairro,
quanto por lideranças das favelas para um projeto de integração capaz de romper com
o estigma e promover oportunidades de emprego e renda para os favelados, estes se
ressentem da falta do que nomeiam como um compromisso mais efetivo por parte das
lideranças do bairro.
A Amgra fez o [evento] Natal Sem Fome [mas o presidente] nunca mais veio
aqui em cima. Não sei o que está acontecendo. Ele é um presidente maior do
que a gente, porque ele representa o Grajaú, é nosso presidente, mas não convida a gente pra nenhuma reunião. Não convida pra fazer integração nenhuma.
Inclusive a gente tem a Associação Comercial e eu disse pro [presidente da
Amgra] (...) “a gente faz uma integração ‘comunidade de cima – comunidade
de baixo’ em termos de divulgação, negócio de comércio, ver emprego. Mas,
eu estou vendo que a Associação dos Moradores do Grajaú infelizmente não
está saindo do papel, não está funcionando” (Benedito).
116
Cadernos Metrópole – n. 5
Na qualidade de lideranças comunitárias, Benedito e Sebastião falam, sobretudo,
para e por suas favelas. Porém, nas circunstâncias em que se deparam com o preconceito e o estigma, falam também pelo bairro numa estratégia de dissolver fronteiras e
trabalhar pela “integração”, valorizando sua condição de mediadores. Assim, Sebastião
declina sua condição de partícipe da Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, enquanto Benedito evoca sua iniciativa de promover, junto com outras lideranças da região,
um evento para arrecadar alimentos para os pobres, o Natal sem Fome. Com isso, ambos
reconstroem a tensa equação favela-“asfalto”, como pobres-classe média/ricos do bairro,
qualificando-se como mediadores nessa relação.
Ultrapassando a mediação que lhes foi atribuída pelos poderes públicos, nos anos
60
43
(e que Benedito expressa como tomar conta da comunidade: “No momento que
você passa a tomar conta da associação, você tem que tomar conta da comunidade
também...”), nos anos 90, a tarefa dos mediadores seria integrar bairro e favelas. É essa
qualidade que falam também para o bairro, interpelando suas lideranças:
(...) associação do bairro é fazer a integração de cima e em baixo... Porque a
maioria das coisas que embaixo sofrem, vêm de cima. Até desentendimento de
porta de colégio... acho que a Amgra devia opinar sobre isso também. Fazer
reunião com liderança comunitária, convidar a população, fazer competições
entre equipes de baixo e equipes de cima, fazer uma misturada. Fazer uma
integração falando que o Grajaú é um bairro só. O sentido do Natal Sem Fome
era esse. Era unir a comunidade de cima com a comunidade de baixo para o
pessoal ver a gente também como Grajaú. Não excluir a gente. (...) A intenção
era eles [os moradores dos prédios no asfalto] descer e ver que no morro também tem gente boa. (...) Pra eles terem paz embaixo, a gente precisa ter paz
em cima, está entendendo o ponto de vista?
Os fios da memória tecendo
novos laços de identidade
Analisando diferentes versões da história do Grajaú como criações coletivas da
memória do bairro, examinei como resgatavam suas origens proletárias ou de classe média e valorizavam sua integração em uma área industrial ou seu caráter de bairro residencial isolado dos bairros operários em torno. Procurei demonstrar como essas versões
se articulavam à percepção das fronteiras do bairro, ora concebidas como mais largas
ora como mais estreitas do que as definições oficiais, ora incorporando ora excluindo as
áreas proletarizadas e as favelas da região.
Para concluir, gostaria apenas de enfatizar que a disputa pela memória e história
do Grajaú desvendou as fronteiras fluidas do bairro, abrindo a possibilidade de ampliá-las
para além dos limites formais definidos nas plantas urbanísticas da Prefeitura e/ou dos
117
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
desejados por alguns de seus principais personagens. Nesse sentido, abriu, internamente
ao Grajaú, espaço para um movimento pela incorporação das favelas e dos segmentos
proletarizados ao bairro. Movimento que foi efetuado tanto por moradores do “asfalto”,
quanto por favelados, especialmente por suas lideranças e por aqueles que operam com
a perspectiva de integração entre “asfalto” e favelas.
Desse campo surgem novas versões da história do bairro, que passa a ser também contada através do valorização de uma memória comum entre favelas e “asfalto”.
Essas versões resgatam situações e personagens, o trânsito costumeiro entre os dois
territórios, a identidade entre passado e presente. Com isso, trazem para o presente a
idéia dos dois espaços como uma única comunidade ou como comunidades em relação,
valorizando as relações de trabalho e de vizinhança que tradicionalmente as uniram. Assim, desvinculam as favelas do campo da marginalidade e do crime, ao qual vêm sendo
com freqüência referidas no Rio de Janeiro da última década, facilitando as passagens
entre o bairro e sua favelas.
A recuperação das imagens de comunidade e o estabelecimento de um certo con-
tinuum entre passado e presente nelas baseado permite que essas novas versões da
história do Grajaú vislumbrem também o bairro e suas favelas como partes de uma mesma realidade. Para o bem ou para o mal, para a guerra ou a paz, partilhariam um destino
comum. A construção da alternativa da paz parece-lhes depender da valorização do lugar
de mediação das lideranças de bairro e de favelas, aqueles que podem falar no bairro e
para o bairro pela reconstrução do Grajaú como uma comunidade.
Entrevistas realizadas
Para situar meus informantes, sem no entanto lhes desvendar a identidade, estou
registrando idade e tempo de moradia no bairro de forma aproximada, além de operar com
categorias amplas no que se refere à ocupação (por exemplo, “funcionário público” recobre qualquer atividade desenvolvida em órgão federal, estadual e municipal). Da mesma
forma, atuação comunitária envolve participação em associação de moradores (integrando
a diretoria, participando de suas atividades e/ou de articulações de oposição) e em outros
movimentos locais (Acorda Grajaú, Movipaz, movimentos ecológicos, articulação interfavelas, Comitê da Ação da Cidadania, etc.) Já atuação partidária refere-se à militância em
núcleos e/ou diretórios partidários e à participação em eleições municipais e estaduais
(da postulação de legendas partidárias a candidaturas propriamente ditas). A lista a seguir
também inclui os que se envolveram na polêmica pública sobre a data de fundação do
Grajaú e aqueles cujo relato foi analisado em função da representação exercida e que,
somente em relação a esses aspectos, foram identificados no corpo do texto como “professor”, “presidente de clube”, “jornalista” e “presidente de associação de moradores”.
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Cadernos Metrópole – n. 5
1. Benedito – 25 anos, solteiro, trabalhador comunitário, católico não praticante,
atuação comunitária, mora no bairro há 15 anos, residindo em favela;
2. Fernando – 45 anos, casado, com filhos, pequeno empresário, católico, atuação comunitária e partidária, nasceu no bairro, mora na área do 1º loteamento;
3. Guilherme – 70 anos, casado, com filhos, funcionário público, católico, atuação
comunitária, natural de outro estado, mora no bairro há 35 anos, residindo na área tida
como periferia;
4. João – 45 anos, separado, com filhos, gestor da água, adepto do candomblé,
atuação comunitária, nasceu no bairro, residindo em favela;
5. Luís – 45 anos, casado, com filhos, profissional liberal, sem religião, atuação
comunitária e partidária, mora no bairro há 20 anos, residindo na área do Vila América;
6. Norma – 55 anos, casada, com filhos, funcionária pública, católica, atuação
comunitária, natural de outro estado, mora no bairro há 25 anos, residindo na área do Vila
América;
7. Odete – 75 anos, casada, com filhos, funcionária pública, católica, nasceu no
bairro, mora na área do 1º loteamento;
8. Paulo – 60 anos, casado, com filhos, profissional liberal, sem religião, atuação
comunitária e partidária, mora no bairro há 50 anos, residindo na área do 1º loteamento;
9. Quito – 60 anos, casado, com filhos, funcionário público, católico, freqüenta
uma igreja evangélica, atuação comunitária e partidária, nasceu no bairro, mora na área
do 1º loteamento;
10. Santos – 75 anos, casado, com filhos, funcionário público, católico, atuação
comunitária, mora no bairro há 50 anos, residindo na área do 1º loteamento;
11. Sebastião – 55 anos, casado, com filhos, trabalhador autônomo, católico não
praticante/adepto do candomblé, atuação comunitária, natural de outro estado, mora no
bairro há 18 anos, residindo em favela;
12. Tavares – 60 anos, casado, com filhos, executivo, católico, atuação comunitária, nasceu no bairro, residindo na área do 1º loteamento;
13. Teixeira – 40 anos, casado, com filhos, pequeno empresário, católico não
praticante, atuação comunitária e partidária, nasceu no bairro, mora na área do 1º loteamento;
14. Zélia – 45 anos, casada, com filhos, funcionária pública, espírita, atuação comunitária e partidária, mora no bairro há 20 anos, residindo na área tida como periferia.
Márcia Pereira Leite
UERJ/UFRJ. E-mail: má[email protected]
119
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
Notas
* Este texto sintetiza alguns aspectos desenvolvidos em minha tese de doutorado em Sociologia
no PPGSA do IFCS/UFRJ (Para além da metáfora da guerra: percepções sobre cidadania, violência e paz no Grajaú, um bairro carioca), sob a orientação da profa. dra. Regina Novaes,
em conclusão.
1. Dados de 1997, extraídos do Anuário Estatístico da Cidade do Rio de Janeiro, pp. 95-97.
2. Este compreendia os atuais bairros do Andaraí, de Vila Isabel e do Grajaú, que integram hoje a
9° Região Administrativa (RA) do Rio de Janeiro, além da Aldeia Campista, que foi incorporada
por Andaraí e Tijuca.
3. A Fazenda Vila Rica, situada na encosta, fora desapropriada, em 1875, pela Fazenda Imperial
para reflorestamento da área. As duas fazendas da região, a Morumby, de propriedade de
John Rudge, e a da Viscondessa de Alcântara passaram a se dedicar ao plantio de capim, que
era fornecido a estábulos, desde a decadência do café do Rio de Janeiro ante a produção do
oeste paulista. Foram vendidas para empresas imobiliárias em, respectivamente, 1912 e 1920,
dando início à urbanização da região (Cardoso, 1989; Colchete Filho, 1995).
4. O PEU do Grajaú não estabelece os limites externos do bairro, apenas os reconhece tal como
fixados pelo Decreto n. 3157, de 23/7/1981, publicado no DOM, 24/7/81, uma vez que não
houve, no interregno, alteração do bairro. Entretanto, ao fixar as condições de uso e ocupação
do solo, delimita internamente as suas diversas zonas: residencial unifamiliar e multifamiliar,
comercial e zonas especiais formadas por áreas acima da cota 100, por áreas de interesse
social já consolidadas e constituídas de aglomeração de habitações (favelas), pela Reserva
Florestal do Grajaú e por área cedida pela Cedae ao estado. Assim, reconhece a existência
das favelas dentro dos limites do bairro; porém, exige sua delimitação por decreto específico.
Segundo as informações dos técnicos da gerência de Planos Urbanos da Secretaria Municipal
de Urbanismo, esta foi uma exigência formal jamais cumprida. O que colaborou para a construção de uma “zona de sombra” no que se refere às favelas.
5. Assim, o que é resultado na delimitação do Grajaú, realizada através do Decreto n. 3157/81,
é o traçado externo de suas ruas: “Do início da Avenida Meneses Cortes (excluída) no entroncamento com a Rua José do Patrocínio; por esta (excluída, excluindo a Praça Demócrito
Linhares) até a Rua Visconde de Santa Isabel; por esta (excluída); Rua Barão do Bom Retiro
(incluída) até a Praça Malvino Reis (incluída) e pela Rua Barão do Bom Retiro (incluída) até a
Rua Teodoro da Silva; por esta (excluída) até a Rua Mendes Tavares; por esta (incluída) até a
Rua Nossa Senhora de Lourdes; por esta (incluída); Rua Duquesa de Bragança (incluída) até
a Rua Barão de Mesquita; por esta (incluída) até a Rua Ferreira Pontes; por esta (excluída, excluindo a Travessa Ferreira Pontes); Rua Adolfo Caminha (excluída até o seu final); daí subindo
o espigão da Serra (...)” Notar que “rua excluída” significa a inclusão no bairro apenas do lado
limítrofe, excluindo a rua propriamente dita e o lado oposto dos terrenos e edificações: por
exemplo, pertence ao Grajaú o lado direito (de quem sobe) da Rua Ferreira Pontes.
6. A própria assessoria do prefeito, respondendo a um leitor que comentava as dúvidas sobre
onde se situava a Rua Araújo Leitão (Grajaú, Lins ou Engenho Novo?) e sugeria indicar sempre
as fronteiras entre os bairros, argumenta: “A exata fixação do local em que cada um começa
e termina... às vezes é difícil. Em alguns casos, a fronteira não é uma linha, mais um morro,
uma área acidentada, ou coberta de vegetação ou alagada, ou ainda um labirinto de pequenas
ruas em uma favela” (O Dia, “Coluna Pergunte ao Prefeito”, 18/1/2000).
7. Notar que é com base nas ruas citadas no PEU que a Associação de Moradores local define os
moradores do bairro, aptos a dela participar e inclusive a votar em suas eleições.
120
Cadernos Metrópole – n. 5
8. Veja-se, por exemplo, a reportagem “Milagre de tenacidade e previsão: Grajaú”, Rio Ilustrado,
dez. de 1943, que divulga o novo bairro, ainda em crescimento, informando que seu plano
urbanístico havia sido elogiado pelo próprio Agache e destacando: “o elemento social do
bairro do Grajaú é quase todo ele fixo, estabilizado pela casa própria, formando com isso uma
sociedade que já se integra, pela tradição, numa só família (...)”.
9. Uso o itálico para indicar expressões ou categorias de meus entrevistados.
10. O que só ocorre efetivamente em 1996, quando o Iplanrio inclui no mapa oficial da cidade
as seiscentas favelas cariocas. Cf. O Globo, 31/3/1996.
11. Para um exemplo pontual: “A primeira rua do bairro, a Borda do Mato, foi, no entanto, a última a ser calçada, pois ficava no limite entre as duas firmas [loteadoras] que calçaram todas as
outras ruas do bairro, a Borda do Mato foi, enfim, pavimentada pela Prefeitura (...)”, “Grajaú:
um bairro jovem”, O Globo, 16/12/1968.
12. Examinaremos adiante as estratégias de inclusão desses moradores na parte do bairro reputada como de elite, da qual em princípio estariam excluídos.
13. Para a associação no plano moral dos termos nobre, de elite, familiar e conservador em oposição aos termos misturado e favela, lembrar o duplo sentido de nobre, apontado por Elias e
Scotson: “o termo ‘nobre’ preserva o duplo sentido de categoria social elevada e de atitude
humana altamente valorizada, como na expressão ‘gesto nobre’; do mesmo modo ‘vilão’, derivado de um termo que era aplicado de um grupo social de condição inferior e, portanto, de
baixo valor humano, ainda conserva sua significação neste último sentido – como expressão
designativa de uma pessoa de moral baixa” (2000, p. 19).
14. Esse “espírito do bairro” é reconhecido mesmo por aqueles que negam sua pertinência e buscam combatê-lo através da atuação política comunitária e/ou partidária.
15. Refiro-me aos seguintes jornais: Questão – Informativo do Grajaú, Jornal (do) Grajaú, Atualidades, Grajaú em Prosa e Verso, Amgra [Associação de Moradores e Amigos do Grajaú] Informa. Para um exemplo dos poemas citados, vide o soneto “Grajaú é um jardim”, de Isaías Filho:
“Grajaú é um jardim n’outro jardim/ Ninho de amor plantado entre arvoredos/ Onde brincam
crianças, em folguedos,/ quais passarinhos num canto sem fim.../ Bairro familiar dos meus encantos,/ De beleza sem par, qual noiva linda,/ Adornada de luz, de graça infinita,/ Grajaú de
meus sonhos e acalantos.../ Tuas manhãs de sol e teu luar/ Enchem de paz e amor os corações,/
Deixam minh’alma estática a sonhar!/ Em ti, tudo é beleza e poesia,/ És um ninho de amor e de
emoções,/ Jardim de paz e de eterna magia!” (Almanaque do Grajaú, I, 1, p. 12).
16. Recentemente, por exemplo, essa imagem social do bairro foi acionada pelo jornal O Globo
para legitimar um projeto de realização de serenatas em uma de suas praças (“Serenatas no
Grajaú lembram o romantismo do início do século”, O Globo – Tijuca, 26/8/1999). Uma coluna social também a ela recorreu na representação de um lugar da cidade que expressasse um
“tempo antigo”: “(...) vá para o Grajaú... existem ruas cheias de árvores, com pequenas casas,
com pequenos quintais, onde se pode pensar que a felicidade ainda existe. (...) como deve
ser bom morar ali, longe dos computadores, das placas de modem e dos grampos telefônicos,
num bairro em que as mulheres não fazem dieta e nunca ouviram falar da etiqueta Prada”
(“Coluna da Danuza – um bom programa”, Jornal do Brasil, 21/11/1998).
17. Notar que o desenvolvimento das favelas se verifica à época em que o bairro se amplia na
direção do loteamento Vila América.
18. No caso, ainda se somam as pressões pela criação da Reserva Florestal do Grajaú, ocorrida
em 1978, segundo uma lógica de preservação ambiental, mas também de obtenção de um
novo espaço de lazer no bairro. Hoje, a Reserva é representada como o quintal da família
grajauense, lá se realizam caminhadas ecológicas, atividades de escoteiros e alpinistas, festas
de aniversários, peças de teatro, piqueniques, etc. Cf. http:/www.marlin.com.br/~grajau/
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
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19. Para um exemplo pontual, ver o quadro “Bairros de alto risco” com texto e imagens (mapas e
diagramas) que operam com a idéia de cerco das favelas, Jornal do Brasil, 17/3/97.
20. Em 1994/95, o Grajaú começou a aparecer sistematicamente na imprensa por problemas
de segurança pública. Num primeiro momento, as reportagens ainda oscilavam entre uma
dupla representação do bairro (bairro-jardim/bairro-violento): “Sossego do Grajaú é coisa do
passado”, Hilka Telles, O Globo, 4/6/1995; “Moradores reclamam mas não se mudam”, O
Globo, 16/7/1995; “Grajaú, de paraíso a área de risco”, Marcio Tavares, O Globo – Suplemento Bairros, 12/12/1996. Progressivamente, entretanto, destacavam o segundo pólo desta
relação: “Laranjeiras e Tijuca, reféns do medo”, Jornal do Brasil, 17/3/97; “Bala perdida mata
coronel no Grajaú”, Jornal do Brasil, 17/2/98; “Criança é maior vítima de bala perdida”, Jornal
do Brasil, 5/11/1998; “Insegurança: o drama de cada vítima”, O Globo, 23/4/98 e “Sucessão
de mortes em nove anos”, Jornal do Brasil, 5/11/98; “Estudante é atingida por bala perdida no
Grajaú”, O Globo, 21/8/00.
21. Para uma análise desse processo, na cidade do Rio de Janeiro, ver Leite (2000a).
22. “As narrativas sempre buscam dar uma lógica a posteriori a um conjunto de eventos que
em seu acontecer social não contém essa lógica em si, pois a cada momento deste acontecer
está em jogo uma disputa de um conjunto de forças cujo resultado não está dado a priori
(Thompson, 1987). Certamente na memória coletiva, silenciaram-se outras vozes e virtualidades daquele momento” (Novaes, 1996, p. 194).
23. A categoria liderança é empregada tanto no relato do professor, quanto em matéria sobre o
tema (“80 ou 69?”), publicada no Jornal Grajaú, nº 36, a pessoas de projeção no bairro, que
ocupam algum cargo eletivo ou de representação.
24. Vide Capela de Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Marco histórico e sócio-religioso
do Grajaú, Bairro-Jardim da cidade do Rio de Janeiro, RJ, 1992; Almanaque do Grajaú. BairroJardim da Cidade do Rio de Janeiro, Ano I, vol. 1, Rj, 1994; Uma lenda no Grajaú, RJ, 1998
e Grajaú em Prosa e Verso, nº 1 a 31, RJ, janeiro a agosto de 1998. Atualmente, o professor
organiza o segundo número do Almanaque.
25. Esta, aliás, é também referida em reportagens de 1973: “Hoje, são muitas as controvérsias
sobre o verdadeiro nascimento do Grajaú. Uns afirmam que a escritura de venda foi assinada
em 1911... Outros têm certeza de que até 1920 ainda existiam as duas fazendas...” (“História
do Grajaú: são 50 anos de lirismo”, Jornal do Brasil, 11/11/1973). Outros indícios dessa polêmica são as tentativas de demonstrar uma neutralidade diante da questão: as reuniões foram
realizadas na Associação Atlética Light e não em um dos clubes do bairro que já se vinculavam às versões concorrentes; a preocupação em oficializar uma concessão para definir a data
de fundação; a solicitação formal, ao professor, de realização de uma pesquisa; e o registro
das reuniões em ata.
26. A versão do professor foi apoiada pelos dirigentes da Associação Comercial e Industrial do
Grajaú, Sociedade dos Amigos da Reserva Florestal do Grajaú, jornal Vila em Foco, Associação Atlética Light, Confraria do Verdun e 9° RA, além de ser apoiada por outras lideranças
do bairro. O Jornal Grajaú questionou os dados como insuficientes para uma conclusão e a
Amgra, na pessoa de sue dirigente, posicionou-se contra as comemorações, defendendo a
segunda versão.
27. Por meio de minhas observações no campo e das entrevistas, defini as “lideranças do bairro”,
reconhecendo a representação que lhes era atribuída, mas discriminando seu alcance e efetividade, em três categorias: os que “falam no bairro”, os que “falam para o bairro” e os que
“falam pelo bairro”. Considerei como “falando no bairro” os moradores com uma participação
comunitária ou algum tipo de destaque eventual. Os que foram citados como tendo influências, os que achavam que a tinha, os que tinham participação regular nas organizações comunitárias e/ou aqueles que se destacaram como formadores de opinião, situei como “falando
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Cadernos Metrópole – n. 5
para o bairro”. Já os que exerciam alguma representação comunitária ou política, tendo sido
eleitos ou indicados por algum grupo para tanto e transcendendo a esfera escrita do Grajaú,
classifiquei como “falando pelo bairro”.
28. Aqui se disputam os “lugares de memória”, nos termos de Pollak: a capela ou o clube como
“lugares de comemoração” (1992, p. 202).
29. O presidente do Clube faz referência à diminuição da população de maior poder aquisitivo,
isto é, à evasão das famílias tradicionais que é mencionada em várias entrevistas como efeito
da violência e da insegurança. Os dados estatísticos indicam um crescimento negativo da população de 10,7%, no período entre1991 e 1996 (Iplanrio, 1998). Além disso, é provável que
a composição social do bairro tenha se alterado. Todos esses elementos afetariam as relações
entre novos e antigos moradores.
30. Este personagem, à época presidente da Amgra, já havia dirigido a Associação nas três gestões
anteriores e voltaria a se candidatar em 1999. Também foi quatro vezes candidato a vereador e
deputado estadual, por diferentes partidos, nas eleições de 1986, 1990, 1992 e 1994. Nas últimas
eleições, seu slogan era “vote no amigo de sua comunidade”. Mas havia abandonado a Igreja católica, quando censurado pela comunidade da paróquia por sua conduta em questões familiares.
31. Notar que a versão do professor, embora se refira ao loteamento Vila América (totalmente
ignorado na versão do presidente do Clube), só destaca e valoriza a sociabilidade que se desenvolve entre o clube e a capela; portanto, característica do 1º loteamento. A fusão dos dois
loteamentos aparece, assim, como uma incorporação talvez indevida de um corpo estranho.
32. Ver, por exemplo, “Andaraí comemora 425 anos”, “Andaraí hoje” e “D. Arminda lembra o
Andaraí de ontem”, todas no Jornal Grajaú, nº 12, novembro de 1990, e “Andaraí: terra de
ninguém”, Jornal Grajaú, nº36, maio de 1994.
33. Notar que a definição das fronteiras do bairro a partir da construção de sua forte identidade
de classe média como um bairro nobre por oposição às áreas pauperizadas em seu entorno,
contraditoriamente, contribuiu para diluir essas mesmas fronteiras: todos querem ser Grajaú.
34. A referência aos quase 500 anos entende a formação do bairro a partir da doação aos jesuítas
das terras em que se formou, a sesmaria de Iguaçu, em 1565. Para o projeto Andaraí quase
500 anos, ver Atualidades, nº 8 e 9, dezembro de 199 e janeiro de 2000.
35. A alteração do nome de seu jornal, sucessivamente, de Jornal do Grajaú para Jornal Grajaú e,
posteriormente, Atualidades, deveu-se a essa busca de uma representação mais ampla.
36. Trata-se de um fórum na Grande Tijuca (8ª e 9ª RAs), envolvendo associações e organizações
representantes de favelas e de bairros, instituições estatais, ONGs, universidades e entidades
da sociedade civil, com o objetivo de “reverter a integração subordinada das favelas à cidade”
através de um plano de desenvolvimento local integrado.
37. Para a elaboração da idéia de comunidade, em oposição ao “caráter excludente da divisão
social capitalista do trabalho”, e como meio de integração das redes de vizinhança em relações de solidariedade e ajuda mútua, entre outros temas, ver Doimo (1992).
38. Refiro-me aos diversos projetos sociais, ações filantrópicas e iniciativas solidárias que surgiram, na cidade, a partir de 1993 e das campanhas Ação da Cidadania contra a Miséria e pela
Vida Viva Rio, que examino em Leite (2000a).
39. Para uma visão histórica das políticas desenvolvidas em favelas no Rio de Janeiro, ver Burgos
(1998).
40. A Grande Tijuca é formada pela 8ª e 9ª RA da cidade; a primeira compreende os bairros da
Tijuca, Maracanã, Praça da Bandeira e Alto da Boa Vista.
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
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41. Notar que em gestões anteriores essa construção só era comum nas campanhas eleitorais para
a Associação e na interpelação aos poderes públicos, ratificando a representação do território
oficial do bairro.
42. Notar, porém, que nem sempre é essa a estratégia escolhida. Algumas vezes, as lideranças
preferem demarcar os limites por um cálculo de custos e benefícios: “Aqui é comunidade
carente, né?... O que vier de ajuda a gente está aqui com a porta aberta para dar o apoio”
(Sebastião).
43. Refiro-me às atribuições impostas pelo Serfha (Serviço Especial de Recuperação das Favelas e
Habitações Anti-higiênicas), às associações de moradores, que Burgos examina (1998, p. 30 ss)
e que permanecem orientando as relações dos poderes públicos, entidades privadas e ONGs
com (nas) favelas. Sobre o último ponto, ver o instigante de Miranda e Magalhães (2000).
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Outras fontes
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Arquivo Geral da Cidade do Rio de janeiro – Arquivo sobre o Grajaú com reportagens da grande
imprensa no período 1966/88;
Biblioteca Popular do Grajaú – arquivo sobre o bairro com reportagens da grande imprensa e dos
jornais locais, dados estatísticos e de instituições diversas (levantamento até 1991);
9ª Região Administrativa da cidade do Rio de janeiro – Arquivo com documentos e estatísticas
oficiais.
Dados estatísticos
Anuário Estatístico da Cidade do Rio de Janeiro, 1995-97, Rio de Janeiro, Iplanrio, 1998, CDRom.
Documentos
Ata da “Sessão para ser apresentada uma data para a comemoração do aniversário de fundação do
bairro Grajaú na região norte da cidade do Rio de Janeiro”, realizada na Associação Atlética
da Light, em 3 de fevereiro de 1994.
125
Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens
Documentos eletrônicos
http://www.marlin.com.br/~grajau/ (página sobre o bairro, sua história, geografia, atualidades,
serviços, etc. , elaborada por/ou com a colaboração de um pesquisador do bairro, possivelmente existe desde 1996).
http://www.grajau.com.br/ (página sobre o bairro, suas empresas e atividades, possivelmente existe desde 1997; desenvolveu uma parceria com a Amgra, na gestão 1997/99).
Textos e livretos locais
Almanaque do Grajaú (Bairro-Jardim da cidade do Rio de Janeiro), organizado por Francisco
Ferreira da Silva, Ano I, vol. 1, Rio de janeiro, 1994.
Capela de Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Marco histórico e sócio-religioso do Grajaú,
Bairro-Jardim da cidade do Rio de Janeiro, livreto organizado por Isaías Filho (pseudônimo
de F. Ferreira da Silva). Rio de Janeiro, 1992.
“História do Andaraí”. Texto de autoria de Juiara Miranda, publicado no Jornal Grajaú, nº 12,
novembro de 1990;
“Pequena síntese histórica do bairro do Grajaú”. Texto de autoria de Marcelo S. Lemos e Francisco
Ferreira da Silva, publicado sob o título “Grajaú: 80 anos”, em Almanaque do Grajaú, I, ‘,
1994, pp. 14-17.
Uma lenda no Grajaú. Literatura de Cordel, de autoria de Isaías Filho. Rio de Janeiro, 1998.
Jornais locais
Amgra Informa – Noticiário mensal da Associação de Moradores do Grajaú – nº 1 a 7, de julho
de 1998 a agosto de 1999;
Atualidades (ex-Jornal Grajaú) – nº 0, 1, 4, 6 e 8 a 11, de março de 1997 a março de 2000;
Grajaú em Prosa e Verso – nº 1 a 31, janeiro a agosto de 1998;
Jornal Grajaú – nº 0, 1, 5, 6, 8, 10, 12, 19, 22, 23, 28, 31, 34, 36, 37, 38, 42, 46 e 51, de outubro
de 1989 a dezembro de 1996;
Notícias do Bairro – jornal comunitário da Tijuca, Grajaú, Vila Isabel, Maracanã, Andaraí e Alto
da Boa Vista – nº 17, novembro de 1996;
Questão – informativo do Grajaú – nº 5, 1998;
Tijucão – nº 188 e 189, outubro e novembro de 1999;
Vila em Foco – nº 86, setembro de 1999 e nº 88, janeiro de 2000;
Grande imprensa
“Milagre de tenacidade e previsão: Grajaú”, Rio Ilustrado, dezembro de 1943.
Jornal do Brasil – reportagens sobre o Grajaú e a Grande Tijuca, de 1994/1999.
O Globo – reportagens sobre o Grajaú e a Grande Tijuca, de 1994/1999.

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