Uma decisao que ameaca a democracia

Transcrição

Uma decisao que ameaca a democracia
Uma Decisão que Ameaça a Democracia.©
Ronald Dworkin
∗
I
Nenhum decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos da América gerou, nas últimas
décadas, tantas hostilidades abertas entre os três poderes do nosso governo como a decisão
por 5 a 4 no caso Citizens United v. FEC, em janeiro de 2010. Os cinco juízes conservadores,
por sua própria iniciativa, sem qualquer pedido das partes no processo, declararam que as
corporações e os sindicatos têm o direito constitucional de gastar tanto quanto eles desejarem
em comerciais de televisão especificamente eleitoral ou visando apoiar determinados
candidatos. O Presidente Obama denunciou imediatamente a decisão como uma catástrofe
para a democracia estadunidense e, em seguida, em um ato incomum, repetiu a denúncia em
seu discurso habitual para a nação [State of Union address], com seis dos juízes sentados
diante dele.
“Com todo o respeito devido à separação de poderes”, disse ele, “na semana passada, a
Suprema Corte reverteu um século de direito que eu acredito que irá abrir as comportas para
que interesses especiais – incluindo os de empresas estrangeiras – possam gastar sem limites
nas nossas eleições.” Tão logo ele discursou, um dos juízes conservadores, Samuel Alito,
numa evidente violação do decoro, rejeitou essa afirmação e, pouco tempo depois, o
Presidente da Suprema Corte, John Roberts, repreendeu publicamente o Presidente por
expressar essa opinião naquela ocasião. O secretário de imprensa da Casa Branca, Robert
Gibbs, explicou, em seguida, as observações de Obama: “O Presidente tem se comprometido
com a redução da influência indevida de interesses especiais e dos seus lobistas no governo.
Foi por essa razão que ele discursou condenando a decisão e está trabalhando com o
Congresso para uma resposta legislativa.” Os democratas no Congresso têm, de fato,
sustentado a necessidade de uma emenda constitucional para repelir a decisão e vários deles,
mais realisticamente, têm propostas para atenuar os seus danos.
©
Tradução publicada em TEIXEIRA, Anderson V.; FREITAS, Juarez (coord.). Direito à democracia: ensaios
transdisciplinares. Florianópolis: Conceito Editorial, 2011, pp. 41-56. Originalmente publicado como “The
Decision that Threatens Democracy”, in The New York Review of Books, Vol. 57 (2010) n.8. Todos os direitos
reservados ao The New York Review of Books. Traduzido para o português por André Pedreira Ibañez.
Frank Henry Sommer Professor of Law (New York University). Fellow da British Academy e membro da
American Academy of Arts and Sciences. Professor of Jurisprudence (University College London). Entre suas
principais publicações destacam-se: Is Democracy Possible Here? (2006), Justice in Robes, Sovereign Virtue:
The Theory and Practice of Equality, e Freedom’s Law. Em 2007 ele ganhou o Ludvig Holberg International
Memorial Prize pelo seu “seu trabalho acadêmico pioneiro” de “impacto internacional”.
∗
A história da decisão da Corte é tão extraordinária quanto a sua recepção. Pelo menos
desde 1907, quando o Congresso aprovou o Tillman Act, a pedido do Presidente Theodore
Roosevelt, tinha sido aceito pela nação e pela Corte que as corporações, as quais são apenas
pessoas fictícias criadas por lei, não têm os mesmos direitos assegurados na Primeira Emenda
à atividade política como os têm as pessoas reais. Em 1990, no caso Austin v. Michigan
Chamber of Commerce,1 a Corte manteve firmemente esse princípio. Em 2002, o Congresso
aprovou o Bipartisan Campaign Reform Act (BCRA), patrocinado pelos Senadores John
McCain e Russell Feingold, que proibia as empresas de participar do processo eleitoral de
televisão por um período de trinta dias antes da primária para o pleito federal e sessenta dias
antes de uma eleição. Em 2003, no caso McConnell v. Federal Election Commission (FEC), a
Corte confirmou a constitucionalidade da proibição.2
Na seção presidencial primária de 2008 uma pequena corporação, Citizens United,
financiada em uma pequena parte por contribuições de empresas, tentou transmitir um filme
depreciativo sobre Hillary Clinton. A Federal Election Commission (FEC) declarou a
transmissão ilegal no âmbito do BCRA. A Citizens United pediu, então, à Suprema Corte que
a declarasse excetuada dessa lei no âmbito em questão, entre outros, já que se propunha a
transmitir o seu filme apenas em um canal pay-per-view. Este pedido não questionava a
constitucionalidade do ato. Porém, os cinco juízes conservadores – o Presidente Roberts e os
juízes Samuel Alito, Anthony Kennedy, Antonin Scalia e Clarence Thomas – decidiram por
sua própria iniciativa, depois de uma apreciação que eles mesmos pediram, que queriam
declarar inconstitucional o ato de qualquer maneira.
Eles disseram que o BCRA violou a Primeira Emenda, que declara que o Congresso
não fará nenhuma lei que viole a liberdade de expressão. Eles concordaram que a decisão era
contrária aos precedentes Austin e McConnell; eles, por conseguinte, declararam anuladas
aquelas decisões, bem como revogaram um século de história americana e de tradição. Sua
decisão ameaça fazer surgir uma avalanche de publicidade política negativa financiada pela
riqueza das grandes empresas, começando já nas eleições legislativas deste ano. Em geral,
esses anúncios podem ser esperados para beneficiar os candidatos republicanos e ferir os
candidatos cujos registros desagradem poderosas indústrias. A decisão deu aos lobistas das
empresas, já muito influentes no nosso sistema político, uma arma altamente poderosa. É
importante estudar em detalhe uma decisão tão prejudicial para a democracia.
1
2
494 U.S. 652.
540 U.S. 93.
II
A Primeira Emenda, como muitas das disposições mais importantes da Constituição,
está redigida em linguagem abstrata de moralidade política: garante um “direito” à liberdade
de expressão, mas não especifica as dimensões desse direito – se inclui o direito de os
fabricantes de cigarros a fazer propaganda de seus produtos na televisão, por exemplo, ou o
direito de um grupo Ku Klux Klan a insultar publicamente e difamar negros ou judeus, ou o
direito de governos estrangeiros a transmitir propagandas políticas nas eleições
estadunidenses. As decisões sobre essas e uma centena de outras questões exigem
interpretação e se qualquer interpretação da justiça não deve ser arbitrária ou puramente
partidária, deve ser guiada por princípios – por alguma teoria sobre os motivos pelos quais os
discursos merecem isenção da regulação estatal em princípio. Caso contrário, a linguagem da
Constituição torna-se apenas um mantra sem sentido para ser entoado sempre que um juiz
quiser, por qualquer razão, para proteger alguma forma de comunicação. O precedente –
como a Primeira Emenda foi interpretada e aplicada pela Suprema Corte no passado –
também deve ser respeitado. Mas desde que o sentido das decisões do passado seja uma
questão de interpretação, esta que também deve ser guiada por uma consideração de princípio
pela Primeira Emenda.
A teoria da Primeira Emenda é, portanto, indispensável para a responsável adjudicação
das questões envolvendo liberdade de expressão. Muitas teorias têm sido oferecidas por
juízes, advogados, estudiosos do direito constitucional e filósofos, e a maioria deles atribui
particular importância à proteção do discurso político – discurso sobre os candidatos a cargos
públicos e sobre questões que são ou podem ser temas de debate político-partidário. Mas
nenhuma dessas teorias – absolutamente nenhuma delas – justifica o dano que os cinco juízes
conservadores recém infligiram a nossa política.
A mais popular destas teorias apela para a necessidade de um eleitorado informado. A
liberdade de expressão política é uma condição essencial de uma democracia efetiva, pois
assegura que os eleitores tenham acesso a mais ampla e diversificada gama possível de
informações e opiniões políticas. Oliver Wendell Holmes Jr., Learned Hand e outros grandes
juízes e estudiosos argumentaram que os cidadãos estão mais propensos a tomar decisões
boas se as idéias, mesmo as radicais, não forem censuradas. Mas mesmo se isso não for assim,
a justificativa básica da democracia majoritária – que esta dá poder às opiniões informadas e
estabelecidas do maior número de pessoas – exige, contudo, aquilo que Holmes chama de
“mercado livre de idéias”.
Kennedy, que foi quem escreveu o voto da Corte no caso Citizens United em nome
dos cinco juízes conservadores, apelou para a teoria do “eleitorado informado”. Mas ele não
ofereceu nenhuma razão para supor que permitir que as ricas corporações sobrecarreguem as
eleições com dinheiro produzirá, de fato, um eleitorado melhor informado – e existem muitas
razões para pensar que a decisão irá produzir um eleitorado mal-informado. As corporações
não têm ideias próprias. Seus anúncios promoverão as opiniões dos seus gestores, os quais
poderiam publicar ou transmitir suas opiniões por si mesmos ou por meio de comitês de ação
política (CAPs) ou outras organizações financiadas por contribuições individuais voluntárias.
Assim, embora lhes permitir usar o dinheiro dos acionistas, ao invés de seu próprio,
aumentará o volume de publicidade, isto não irá colaborar para a diversidade de ideias
oferecidas aos eleitores.
As empresas de publicidade vão enganar o público, mais ainda, porque o seu volume
irá sugerir um maior apoio público do que realmente existe para as opiniões que os anúncios
expressam. Muitos dos acionistas que irão realmente pagar pelos seus anúncios, que em
muitos casos, são membros de fundos de pensão, odiarão as opiniões que pagam para
anunciar. Obama levantou uma grande quantidade de dinheiro na Internet, a maioria dos
contribuintes de pequeno porte, para financiar sua campanha presidencial, e podemos esperar
que os partidos políticos, candidatos e PACs explorem essa fonte de forma muito mais eficaz
no futuro. Mas essas contribuições são feitas voluntariamente pelos colaboradores, não por
administradores usando o dinheiro de pessoas que podem muito bem ser contrárias às suas
opiniões. A publicidade corporativa é enganosa de outra maneira também. Ela pretende
oferecer opiniões sobre o interesse público, mas, de fato, os gerentes são legalmente
obrigados a gastar fundos corporativos somente para promover os próprios interesses
financeiros da sua corporação, os quais podem muito bem ser diferentes.3
Há, no entanto, uma falha muito mais importante no argumento daqueles juízes
conservadores. Se as corporações exercerem o poder que pela Corte agora foi dado a elas, e
comprarem uma parte muito grande do tempo de televisão disponível para propaganda
política, a sua campanha eleitoral irá prejudicar, ao invés de melhorar, a educação política dos
cidadãos. Kennedy declarou que o discurso não pode ser restrito apenas para fazer os
candidatos mais iguais nos seus recursos financeiros. Mas ele não compreende corretamente
3
Ver Thomas W. Joo, “The Modern Corporation and Campaign Finance: Incorporating Corporate Governance
Analysis into First Amendment Jurisprudence”, Washington University Law Quarterly, Vol. 79 (Abril 2001).
Alguns administradores de empresas proporcionam contribuições corporativas para museus e companhias de
ópera, mas eles estão permitidos a fazer isso quando julgam que tal ato irá aumentar a reputação da coorporação
e sua boa-vontade.
porque outras nações limitam os gastos de campanha. Não é o caso de ser justo apenas com
todos os candidatos, como se exigisse uma única linha de partida para os corredores em uma
corrida, mas é o caso de criar as melhores condições para o público tomar uma decisão
informada quando for votar – a finalidade principal da Primeira Emenda, de acordo com a
teoria do mercado. A Suprema Corte do Canadá compreende a diferença entre esses diferentes
objetivos. Criar “condições equitativas para aqueles que desejam participar no discurso
eleitoral”, disse, “... permite que os eleitores sejam mais bem informados; nenhuma voz é
dominada pela outra.”4
Monopólios e situações de quase monopólio são tão destrutivos para o mercado de
ideias como são para qualquer outro mercado. Um debate público sobre as alterações
climáticas, por exemplo, não iria fazer muito para melhorar a compreensão do seu público se
os tempos de fala fossem leiloados de modo que as empresas de energia pudessem ser capazes
de comprar muito mais tempo do que os cientistas acadêmicos. A grande massa de eleitores já
está muito mais consciente acerca dos pontos constantemente repetidos de propaganda
eleitoral, como anúncios de cerveja em seriados populares ou transmissões televisivas dos
principais eventos de esportes do que acerca de opiniões relatadas, sobretudo, em programas
de notícias de radiodifusão. A propaganda corporativa ilimitada tornará essa distorção muito
maior.
A diferença entre os dois objetivos que eu distingo – visam a igualdade eleitoral em si
e a redução das desigualdades a fim de proteger a integridade do debate político – é real e
importante. Se uma nação estabelecer um teto admissível muito baixo para as despesas
eleitorais, poderia alcançar a maior igualdade financeira possível. Mas isso iria prejudicar a
qualidade do debate político, não permitindo a discussão necessária e evitando que os
defensores de opiniões novas ou diferentes gastem fundos suficientes para atrair qualquer
atenção do público.5 Um juízo delicado é necessário para determinar o quanto a desigualdade
deve ser permitida para garantir um debate robusto e uma população informada. Porém,
permitir que as corporações gastem os seus tesouros corporativos em anúncios de televisão é
algo que visivelmente não passa naquele teste. Julgada a partir da perspectiva posta pelo
4
Harper v. Canada (Attorney General), [2004] 1 S.C.R. 827, 2004 SCC 33.
O Reino Unido uma vez limitou gastos privados em campanhas eleitorais a £5 (cinco pounds), o que privou um
militante anti-aborto de qualquer manifestação pública dos seus pontos de vista. A Corte Europeia de Direitos
Humanos declarou que essa limitação se constituía em uma violação da liberdade de expressão e a Grã-Bretanha
respondeu aumentando o limite – para £500 (quinhentos pounds). Ver Bowman v. United Kingdom (1998), Eur.
Ct. H.R. Para a história deste caso e para um amplo estudo comparativo do direito constitucional aplicável, ver
Samuel Issacharoff, “The Constitutional Logic of Campaign Finance Regulation”, in Pepperdine Law Review,
Vol. 36 (2008).
5
propósito da teoria da Primeira Emenda – que visa uma população melhor educada –, a
decisão dos conservadores representa uma perda total e nenhum ganho.
Uma segunda teoria popular enfoca a importância da liberdade de expressão não para
educar o público em geral, mas para proteger o status, a dignidade e o desenvolvimento moral
dos cidadãos como parceiros iguais no processo político. O juiz John Paul Stevens resumiu
essa teoria no âmbito do seu muito longo, mas irresistivelmente poderoso, voto dissidente no
caso Citizens United. Falando por si mesmo e pelos juízes Stephen Breyer, Ruth Ginsburg e
Sonia Sotomayor, ele disse que “uma preocupação fundamental da Primeira Emenda é
proteger o interesse do indivíduo à auto-expressão.” Kennedy tentou apelar para essa
compreensão da Primeira Emenda para justificar a liberdade de expressão das corporações.
“Tomando-se o direito de falar de alguns e dando a outros”, afirmou, “o Governo retira da
pessoa ou classe desfavorecida o direito de usar o discurso para se esforçar em estabelecer
valor, prestígio e respeito pela voz do locutor.” Mas isso é bizarro. Os interesses que a
Primeira Emenda protege, nesta segunda teoria, seriam apenas os interesses morais de
indivíduos que sofrem de frustração e indignação se fossem censurados. Apenas seres
humanos reais podem ter essas emoções ou sofrer os insultos. Empresas, as quais são apenas
invenções jurídicas artificiais, não podem. O direito ao voto é, seguramente, pelo menos tão
importante como insígnia da igual cidadania quanto o direito de expressão, mas nem mesmo
os juízes conservadores sugeriram que cada empresa deva ter um voto.
Um terceiro objetivo da Primeira Emenda amplamente aceito é o que reside na sua
contribuição para a honestidade e transparência no governo. Se o governo tivesse a liberdade
de censurar seus críticos, ou de reduzir o direito à liberdade de imprensa garantida em uma
frase separada da Primeira Emenda, então seria mais difícil para o público descobrir a
corrupção oficial. A decisão da Corte no caso Citizens United não faz nada para servir a esse
propósito maior. As empresas não precisam publicar anúncios de televisão em vésperas de
uma eleição clamando por votos contra determinados candidatos como forma de relatar as
descobertas que podem fazer sobre a desonestidade oficial, ou para se defender frente a
qualquer acusação de improbidade formulada contra eles. E, claro, todos eles têm acesso aos
repórteres de televisão e de mídia impressa.
Embora a decisão da Corte não vá fazer nada para deter a corrupção dessa forma, ela
vai fazer muito para incentivar uma forma particularmente perigosa dela. Irá aumentar
drasticamente a possibilidade de as empresas seduzirem ou intimidarem os parlamentares que
enfrentam campanhas de reeleição. Obama e Nancy Pelosi tiveram grande dificuldade em
convencer alguns membros da Câmara dos Deputados [House of Representatives] a votar o
projeto de reforma da saúde [healthcare], que finalmente foi aprovado com uma maioria
perigosamente magra, porque os membros temiam estar arriscando suas cadeiras nas
próximas eleições. Eles sabiam que, após a decisão da Corte, poderiam enfrentar não apenas
um partido e outro candidato, mas uma onda de anúncios negativos financiados por empresas
de seguro de saúde com enormes somas de dinheiro de seus acionistas para gastar.
Kennedy escreveu que não há risco considerável de influência corruptora, desde que
as empresas não “coordenem” as campanhas eleitorais de qualquer candidato. Isso parece
particularmente ingênuo. Poucos parlamentares teriam condições de ignorar ou ficar
indiferentes à possibilidade de uma campanha de publicidade fortemente financiada clamando
aos eleitores para votar neles, se eles trabalharam pelos interesses de uma empresa, ou para
votar contra eles, se eles não trabalharam por tais interesses. Nenhuma coordenação –
nenhuma participação de qualquer candidato ou de seus agentes na concepção dos anúncios –
seria necessária.
A ingenuidade de Kennedy parece ainda mais estranha quando percebemos um
registro muito substancial de influência indevida corporativa estabelecida junto ao Congresso
quando este aprovou o BCRA. Antes deste, as empresas e outras organizações tinham
liberdade para transmitir anúncios “causa” [“issue” ads] que não explicitamente endossassem
ou se opusessem a qualquer dos candidatos. O juiz da corte distrital que enfrentou pela
primeira vez o caso Citizens United constatou que, de acordo com o depoimento de lobistas e
consultores políticos, pelo menos alguns “membros do Congresso são particularmente gratos
quando anúncios negativos são executados por essas organizações (...) que (...) usam a defesa
de causas [issues advocacy] como um meio para influenciar vários membros do Congresso.”
Essa influência pode vir a ser ainda maior agora que a Corte permitiu apoio político explícito
ou de oposição também. O otimismo de Kennedy foi mais longe: ele negou que os grandes
gastos das empresas levariam o público a suspeitar de que se trata de uma forma de corrupção.
Mas o juiz da corte distrital havia reportado o fato que:
80 por cento dos americanos inquiridos são da opinião de que as empresas e
outras organizações que se dedicam às propagandas eleitorais, as quais
beneficiam determinados candidatos eleitos, recebem atenção especial
daqueles candidatos quando surgem problemas que afetam estas empresas e
organizações.
III
Portanto, a decisão radical dos cinco juízes conservadores não somente não é
suportada por qualquer teoria plausível acerca da Primeira Emenda, mas é condenada por
todas elas. Era a decisão deles, todavia, necessária para a melhor leitura das decisões passadas
da Suprema Corte? Isso parece improvável, pois, inicialmente, como eu disse, a decisão
anulou as duas decisões mais claramente pertinentes: Austin e McConnell. Nada tinha
acontecido para o país, ou através de nova legislação, que lançasse dúvidas sobre essas
decisões. A mudança que fez a diferença foi apenas a renúncia da juíza Sandra Day
O’Connor, em 2006, e a nomeação pelo presidente George W. Bush de Alito para substituí-la.
Anular estas decisões é por si só notável, especialmente para Roberts e Alito, que
prometeram respeitar o precedente em suas sabatinas no Senado. Uma das razões que
Kennedy ofereceu para justificar a sua decisão é alarmante. Ele disse que desde que os juízes
conservadores que discordavam nesses casos passados e que permaneciam na Corte haviam
continuado a se queixar acerca deles, as decisões eram apenas precedentes fracos. “O simples
fato de que uma das nossas decisões permanece controversa”, anunciou ele, “é, naturalmente,
insuficiente para justificar que se anule isso. Mas isso prejudica a habilidade do precedente no
sentido de contribuir para o estável e ordenado desenvolvimento do direito.” Em outras
palavras, se os quatro juízes mais liberais que discordaram neste caso continuarem a
manifestar a sua insatisfação com isso, eles estariam livres para anulá-lo se o equilíbrio da
Corte mudasse de novo. Essa nova visão significaria o fim efetivo da doutrina do precedente
na Suprema Corte.
No entanto, o principal argumento de Kennedy para a sua partida radical foi diferente
e mais complexo. Declarou que as decisões Austin e McConnell foram incompatíveis com a
doutrina passada, de modo que a Corte foi confrontada, no caso Citizens United, “com linhas
conflitantes de precedentes: a linha de pré-Austin, que proíbe restrições ao discurso político
baseado na identidade corporativa do falante e uma linha pós-Austin que os permite.” De fato,
no entanto, nenhuma decisão antes de Austin tinha decidido que o Congresso não tinha poder
para proibir as empresas de usar fundos corporativos gerais para influenciar as eleições.
Kennedy baseou a sua pretensão de precedente “conflituoso” em duas decisões cujas
lógicas subjacentes, diz ele, tinham aquela implicação. O primeiro é a decisão de 1976 da
Suprema Corte no caso Buckley v. Valeo,6 que considerou que embora o Congresso possa
limitar o montante das contribuições privadas às campanhas políticas, a fim de evitar a
corrupção ou a “aparência” de corrupção, não se pode limitar o que indivíduos ou
6
424 U.S. 1.
organizações privadas podem gastar em publicidades “independentes” que não sejam
“coordenadas” com a própria organização de cada candidato. O segundo é a decisão de 1978
da Suprema Corte no caso First National Bank of Boston v. Bellotti,7 que considerou
inconstitucional uma lei de Massachusetts que impedia a Câmara de Comércio de fazer
campanha contra um referendo para instituir um imposto de renda progressivo estadual.
Nenhuma destas duas decisões tratou expressamente sobre o poder do governo para
restringir a propaganda eleitoral corporativa. No caso Buckley os juízes nem sequer
mencionam o assunto. No caso Bellotti a maioria disse explicitamente que as eleições
levantavam várias questões a partir de referendos e que, portanto, isto não determinava que as
empresas não pudessem ser impedidas de propaganda nas eleições. O argumento de Kennedy
deve, portanto, supor que, apesar de sua omissão em um caso e uma denúncia explícita em
outro, qualquer justificação de princípio de uma das duas decisões deve rumar para o caso de
propaganda eleitoral das empresas. Essa é a proposição que devemos agora examinar.
A posição da Corte no caso Buckley foi algo complicado e deslocado que tem sido
amplamente criticado.8 Após os escândalos de Watergate, em 1971, o Congresso aprovou
normas que limitam tanto as contribuições financeiras a qualquer campanha política para
cargos nacionais quanto as despesas feitas por qualquer candidato a um cargo nacional. A
Corte declarou constitucional o limite de contribuições diretas, mas derrubou os limites para o
que os candidatos ou os próprios indivíduos poderiam gastar em propaganda política. A
distinção entre as duas decisões atingiu a maioria dos analistas como mais um compromisso
político do que como uma distinção de princípio: cada decisão tem sido denunciada pelos
adversários como incompatível com a outra. A decisão continua a ser um marco dominante no
direito em termos de financiamento de campanhas, mas é perigoso tentar tirar qualquer
justificação de princípio a partir dela.
De qualquer forma, porém, mesmo que se restrinja a atenção para a decisão do caso
Buckley no sentido de que o Congresso não pode limitar a publicidade independente dos
indivíduos e das associações, a confiança de Kennedy sobre o caso simplesmente levanta a
questão central do Citizens United, a qual é saber se as empresas têm direito a proteção da
Primeira Emenda que indivíduos e grupos de indivíduos têm. Já expomos uma variedade de
argumentos que eles não o fazem. Pouquíssimas pessoas têm algo parecido com a acumulação
7
435 U.S. 765.
Embora a decisão da maioria não tenha sido assinada, acredita-se amplamente que foi escrita pelo juiz William
Brennan. Alguns anos depois, em Oxford, Brennan foi perguntado pelos estudantes para que citasse o seu pior
erro. “Buckley”, ele imediatamente respondeu. Eu descrevo as minhas próprias objeções à decisão em “Free
Speech and the Dimensions of Democracy”, in Joshua Rosenkranz (org.), If Buckley Fell: A First Amendment
Blueprint for Regulating Money in Politics, Nova Iorque, Century Foundation Press, 1999.
8
de capital de qualquer uma das corporações arroladas na Fortune 500; a menor delas teve
receita de US$ 5 bilhões (no topo da lista – Exxon Mobil – tinha 443 bilhões dólares) em
2008. As pessoas falam e gastam por si mesmas, em conjunto ou em associação com outros
indivíduos, enquanto as empresas falam pelos seus interesses comerciais e gastam o dinheiro
de outras pessoas, e não os seus próprios. Os indivíduos têm direitos, dos quais dependem sua
dignidade e condição, a ser parte no governo da nação; as corporações, não. Ninguém pensa
que as corporações deveriam votar, e o seu direito de falar como instituições tem sido
limitado por mais de um século. A suposição confiante de Kennedy de que o que fora dito no
caso Buckley sobre as pessoas deva, logicamente, se aplicar às empresas é também totalmente
injustificada.
Nem pode Kennedy sensatamente confiar na racionalidade da decisão do caso Bellotti.
O juiz Lewis Powell, falando pela maioria naquele caso, explicou porque a sua decisão sobre
referendos não se estendeu às eleições. Existem duas “justificações principais para a proibição
do discurso empresarial”, disse.
A primeira é o interesse do Estado em sustentar o papel ativo do cidadão no processo
eleitoral e, para tanto, impedir a diminuição da confiança do cidadão no governo. A segunda é
o interesse em proteger os direitos dos acionistas cujos pontos de vista são diferentes daqueles
expressos por quem administra em nome da corporação. No entanto, por mais pesados que
esses interesses possam ser no âmbito das eleições partidárias para candidatos, eles não estão
implicados neste caso.
Powell destacou a distinção, novamente, referindo-se ao risco de influência indevida
nas eleições para candidatos. “O caso em apreço apresenta um problema sem semelhantes”,
disse ele,
e nossa consideração quanto ao direito de uma corporação falar sobre
questões gerais de interesse público não implica em qualquer direito
comparável no contexto completamente diferente de participação em uma
campanha política para a eleição a cargos públicos. O Congresso pode
muito bem ser capaz de demonstrar a existência de um perigo de corrupção
real ou aparente nos gastos independentes feitos pelas empresas para
influenciar as eleições dos candidatos.
É exatamente isso que o Congresso demonstrou em audiências que produziram o
BCRA. Kennedy poderia muito bem pensar que a opinião de Powell exagerou a diferença
entre as competições ocorridas em uma proposta de referendo e em uma eleição de candidato.
Mas, obviamente, ele poderia não se basear naquela decisão para sustentar essa tese e ele não
ofereceu nenhum outro argumento para isso.
Assim, a Corte não enfrentou nenhuma linha de precedentes concorrentes, o que seria
necessário para anular Austin e McConnell como inconsistentes com a tradição passada. A
alegação de inconsistência feita por Kennedy é uma invenção. Ele ofereceu um argumento
adicional e muito diferente. Ele disse que se a Primeira Emenda for interpretada de modo a
permitir que o Congresso proíba as empresas de fazer propaganda eleitoral, isto também
permitiria ao Congresso proibir menções em jornais ou em outros periódicos pertencentes a
corporações. Mas a linguagem que a Primeira Emenda adota explicitamente distingue entre
liberdade de imprensa e liberdade de expressão em geral, de modo que a Suprema Corte
sempre admitiu que uma imprensa livre (o “quarto poder” do governo em uma frase popular)
é imprescindível para um bom governo. Algumas grandes empresas de comunicação possuem
amplo poder e influência. Mas o público procura a imprensa, e não outras organizações
comerciais, por informação e opinião. Mesmo poderosos conglomerados de notícias devem
ser isolados do controle do governo, não porque cada empresa tem os direitos da Primeira
Emenda como cidadãos comuns, mas porque a democracia precisa de sua independência.
IV
Dois democratas, o Senador Charles Schumer, de Nova York e Chris Van Hollen
representante de Maryland, anunciaram as propostas de lei para proteger o país depois da
decisão da Corte. Esta pode ainda rejeitar algumas dessas propostas – que proíbe a
publicidade de empresas pelos beneficiários TARP que não tenham pago de volta
empréstimos do governo, por exemplo – como tentativas inconstitucionais de banir a fala de
acordo com a identidade do falante. Kennedy deixou em aberto a possibilidade, no entanto,
que o Congresso poderia constitucionalmente aceitar outras das suas propostas: proibição de
propaganda eleitoral por parte de empresas controladas por estrangeiros.9
Ele também reconheceu expressamente a constitucionalidade de outra proposta dos
democratas: disse que o Congresso pode exigir a divulgação pública das despesas das
corporações feitas em campanhas eleitorais (Thomas discordou dessa parte da decisão de
9
Para uma discussão acerca das questões constitucionais suscitadas por essa proposta, bem com as
recomendações e discussão de uma variedade de outras propostas, ver Laurence Tribe, “Citizens United v.
Federal Election Commission: How Congress Should Respond”, depoimento preparado para o Comitê da
Câmara de Deputados sobre o Judiciário (House of Representatives Committee on the Judiciary), Audiência
sobre a Primeira Emenda e a Reforma do Financiamento de Campanhas depois do caso Citizens United.
Kennedy). O Congresso deveria exigir a divulgação rápida na Internet para que as
informações possam ser postas mais rapidamente à disposição dos eleitores. Seria ainda mais
importante para o Congresso assegurar uma ampla divulgação na publicidade televisiva em si.
A divulgação deve nomear não apenas as organizações que aparecem em primeiro plano,
como a Citizens United, mas também, pelo menos, os principais contribuintes daquela
corporação. O Congresso também deveria exigir que qualquer empresa que pretenda se
envolver em campanha eleitoral venha a obter, pelo menos, o consentimento anual de seus
acionistas para aquela atividade e a previsão de um orçamento proposto para tal atividade, e
que ocorra a divulgação obrigatória de um relatório com as percentagens de acionistas que se
recusam a dar o seu consentimento.10 Finalmente, o Congresso deve exigir que o presidente
da empresa com maior investimento naquele anúncio apareça em cada um para afirmar que
ele ou ela acredita que a radiodifusão do anúncio em questão está de acordo com interesses
financeiros da corporação.
Os juízes conservadores poderiam objetar que tais requisitos da divulgação gerariam
encargos excessivamente pesados ao discurso corporativo e de modo inadmissível estariam
estabelecendo um alvo para restrições especiais. Eles podem dizer, para usar uma das
expressões favoritas de Kennedy, que essas exigências poderiam “esfriar” [chill] o discurso
corporativo. Mas é preciso distinguir as medidas destinadas a impedir um discurso daquelas
destinadas a proteger o público contra fraudes. A divulgação de anúncios que eu descrevo não
precisa ter tempo de transmissão significativamente mais do que o Stand By My Ad, regra que
agora exige que um candidato declare no anúncio de sua campanha que ele aprova isto. Se
várias empresas financiam um anúncio conjuntamente, grande parte da informação requerida
– a quantidade de acionistas dissidentes, por exemplo – poderia ser divulgada como um valor
agregado. Se estes requisitos desencorajam um discurso corporativo, não é por causa dos
custos, mas por motivos diferentes que os gestores não estão dispostos a relatar aos acionistas
opositores ou a reconhecer o seu dever fiduciário para agir apenas no interesse financeiro de
sua empresa, então o seu medo só mostra a pertinência da próprio alegação de Kennedy, no
sentido que a “democracia de acionistas” é o remédio certo para proteger os acionistas que se
opõem à política de uma corporação.
Exigir tal sorte de divulgação seria uma parte importante de qualquer resposta do
Congresso ao Citizens United. Mas há uma outra, completamente diferente, a iniciativa do
10
Schumer e Van Hollen decidiram, aparentemente, contra recomendando o requisito de um consenso dos
acionistas. Ver Eric Lichtblau, “Democrats Push to Require Campaign Disclosure”, in The New York Times, 12
de abril de 2010.
Congresso de que a decisão deverá estimular: uma desesperada necessidade de expansão do
financiamento público das eleições estadunidenses. Um grupo bipartidário de parlamentares
apresentou um projeto, denominado Fair Elections Now, que estabeleceria um fundo
substancial para o financiamento de candidatos ao Senado e à Câmara, o qual teria recebido
um determinado número de pequenas contribuições – limitado a US$ 100 – dos outros. O
projeto de lei prevê agora que os fundos necessários seriam recolhidos, no caso de eleições
para o Senado, mediante uma pequena taxa sobre fornecedores do governo e, no caso da
Câmara, de dez por cento das receitas provenientes da venda dos direitos de transmissão não
utilizada.11 Tal financiamento público já está disponível para as primárias presidenciais e para
as campanhas. Obama recusou o financiamento, a fim de ser livre para levantar e gastar mais
do que as condições o permitiam, e alguns candidatos ao Congresso também podem se recusar
a evitar os limites de captação de recursos imposto pelo regime de Fair Elections Now. Mas
poucos candidatos estariam em condições de fazer isso.
Não pode haver nenhuma objeção constitucional às disposições do projeto de lei para
proteger a democracia estadunidense das distorções brutas causadas pelo dinheiro que a tem
estragado por décadas e ameaçam esmagá-la agora. Seria uma vergonha se os encarregados
no Congresso falhassem ao apoiar este projeto de lei – ou outros meios de aumentar
substancialmente o financiamento público nas nossas eleições – apenas para se proteger de
adversários que teriam, então, o financiamento público suficiente para compensar a vantagem
dos usualmente encarregados na angariação de fundos.
V
A falange conservadora da Suprema Corte demonstrou mais uma vez sua força e
vontade para reverter o desejo da América por uma maior igualdade e por uma democracia
mais verdadeira. Ela ameaça dar um passo atrás rumo a idade da pedra constitucional regida
pela ideologia de extrema-direita. Mais uma vez, oferece justificações que são insustentáveis,
tanto em teoria constitucional quanto em termos de precedentes judiciais. O dissenso notável
de Stevens, neste caso, mostra o quanto vamos perder quando ele se aposentar em breve.
Devemos esperar que Obama nomeie uma substituição progressista que não seja apenas
jovem o suficiente para suportar os dias ruins pela frente, mas que tenha bastante poder de
11
O Fair Elections Now Act (S. 752 and H.R. 1826) foi introduzido no Senado pelos Senadores Richard Durbin
(D-Ill.) e Arlen Specter (D-Pa.), enquanto que na Câmara dos Deputados (House of Representatives) o foi por
John Larson (D-Conn.) e Walter Jones Jr. (R-N.C.). Para uma descrição das suas provisões, ver
www.publicampaign.org
fogo intelectual para ajudar a construir uma visão rival e mais atraente do que a nossa
Constituição realmente significa.
15 de abril de 2010.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DWORKIN, Ronald. “Free Speech and the Dimensions of Democracy”, in ROSENKRANZ
Joshua (org.) If Buckley Fell: A First Amendment Blueprint for Regulating Money in
Politics. Nova Iorque: Century Foundation Press, 1999.
ISSACHAROFF, Samuel. “The Constitutional Logic of Campaign Finance Regulation”, in
Pepperdine Law Review, Vol. 36 (2008).
JOO, Thomas W. “The Modern Corporation and Campaign Finance: Incorporating Corporate
Governance Analysis into First Amendment Jurisprudence”, Washington University
Law Quarterly, Vol. 79 (Abril 2001).
LICHTBLAU, Eric. “Democrats Push to Require Campaign Disclosure”, in The New York
Times, 12 de abril de 2010.