Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
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Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo
Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo Colecção MANRESA Autoconhecimento e Discernimento Cristão Domingos Terra, S.J. 2. Espiritualidade Inaciana – 1ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA.VV. 3. Deus e o Homem segundo Santo Inácio – 2ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA. VV. 4. Jesus Cristo na Espiritualidade Inaciana – 3ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA.VV. 5. A Trindade na Espiritualidade Inaciana – 4ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA.VV. 6. Exercícios Espirituais de Libertação Pessoal José Alves Martins, S.J. 7. Ordenar a Vida – Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loiola Dário Pedroso, S.J. 8. Manual do Peregrino – Caminhando com os Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola António Vaz Pinto, S.J. 9. São Francisco Xavier – 450 anos da sua morte (1552-2002) – 5ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA.VV. 10. Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo – 6ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA.VV. 1. VI Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo Editorial A. O. – Braga Capa: Paginação: Impressão e Acabamentos: Pode imprimir-se: Imprima-se: Depósito Legal nº ISBN Joaquim Cannas Editorial A. O. – Braga Fabigráfica – Pousa – Barcelos Nuno Gonçalves, S.J. Provincial † Jorge Ferreira da Costa Ortiga Arcebispo Primaz 228153/05 972-39-0631-7 Outubro de 2005 © SECRETARIADO NACIONAL DO APOSTOLADO DA ORAÇÃO L. das Teresinhas, 5 – 4714-504 BRAGA Tel.: 253 201 220 * Fax: 253 201 221 [email protected]; www.jesuitas.pt/AO/AO.html SESSÃO DE ABERTURA Sérgio Diz Nunes, S.J. Estamos aqui para começar mais uma Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana. É já a sexta. Alguns estarão aqui desde a primeira! Outros estarão aqui pela primeira vez. Creio ser útil que comecemos por nos interrogar sobre a razão de ser da nossa presença aqui. Esta atitude de exame, tão querida de Inácio, é fundamental para que a vida não nos passe ao lado mas para que a possamos sentir e viver ao modo de Deus. Tomamos como tema para esta Semana «Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo», duas realidades que nos tocam totalmente, duas realidades às quais não podemos fugir e que são chamadas a tornar-se caminho de encontro com Deus e com os outros. Tudo começa no olhar misericordioso com que a Trindade Santa contempla o mundo, o nosso mundo, não o mundo que gostaríamos de ter mas o mundo em que vivemos cada dia. É a este mundo que é enviado o Filho, não a outro de que porventura gostássemos mais, mas a este de todos os dias. Esta declaração de amor é o caminho que nos é revelado para que nós possamos aprender que para Deus sobe-se, descendo. O Filho aceita descer aos infernos para que o amor do Pai faça o contra-fogo que torna possível o caminho para a realização mais plena e integrada do ser humano. Um caminho não fácil, um percurso a que muitas vezes procuramos fugir mas que interiormente sabemos não poder evitar. A esperança colocada única e exclusivamente nas limitadas capacidades do ser humano leva a deixarmo-nos seduzir por outras propostas de realização, de felici- 6 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo dade, que não são mais que um círculo oco, que como buraco negro nos vai sugando e esvaziando. Temos medo do sofrimento, e da morte nem queremos ouvir falar. E quando aceitamos falar, é quase sempre para falar da dos outros. Mas o sofrimento e a morte estão aí, o mistério da Paixão e Morte do Senhor toca todas as realidades do nosso mundo, numa expressão de solidariedade que abraça toda a família humana. Não podemos fugir, mas podemos, sim, abrir-nos à compaixão, saber estar com quem sofre e morrer com quem morre. Não me custa a crer que esta realidade é assustadora e que buscamos a toda a força outras saídas, outros finais para a história. Mas aceitar o convite de Jesus a partilhar a sua sorte e a com Ele fazer caminho, implica aceitar descer aos infernos, para perceber aí que o amor é mais forte do que a morte, e que sem morrer ao nosso amor próprio não há vida verdadeira! Esta certeza inabalável, de que vale a pena dar a vida, não é proclamada à sombra da cruz, em Sexta-feira Santa, mas sim no raiar da manhã de Domingo de Páscoa. O Pai confirma o Filho no seu projecto de vida e entrega-nos o seu Espírito, para que nós possamos acolher e viver, em cada dia, o mesmo projecto de Jesus. Aquele Jesus que se pôs a caminhar com os desiludidos discípulos de Emaús, fechados em esperanças que mais longe não iam que o próprio umbigo – e por isso mesmo se constituem como a maior fonte de desânimo e a grande porta de entrada do mau espírito na nossa vida. Aceitar que Ele nos saia ao caminho e nos mostre, pela sua vida, que tudo tem sentido e que muitas vezes, talvez mais do que aquelas que gostaríamos, o amor não tem um rosto agradável mas é o ponto de passagem obrigatório para um nova esperança, a esperança cristã. Esperança que não é ficar passivamente à espera que as coisas aconteçam, mas é, antes de mais, colocar os meios para que em cada dia se vá realizando aquilo em que verdadeiramente acreditamos. Só assim perceberemos que a verdadeira esperança é profundamente transformadora e transfiguradora deste mundo em que vivemos. Sessão de Abertura 7 Se nos deixarmos tocar pela realidade e conduzir pelo Espírito de Deus, veremos que não faltam no nosso mundo construtores e construtoras de esperança1! Estão aí, ao nosso lado, a rasgar caminhos por onde o Espírito de Deus irá soprar, recriando tudo e todos. Uma nova era, um novo tempo, uma nova forma de estar que vem do Alto até nós para nos fazer subir cada vez mais, para nos fazer ascender à imagem e semelhança da Trindade que Se abaixa, esvaziando-Se, para que nós possamos ali ter lugar e sermos assim lugar de acção e de partilha do Espírito de Deus. A Eucaristia, como ponto de partida e ao mesmo tempo como ponto de chegada de uma vida oferecida, é o espaço privilegiado para que todos possam experimentar que a contemplação para alcançar amor não é uma consideração abstracta e piedosa da beleza da criação, mas é uma manifestação de amor por este mundo em que vivemos. Manifestação semelhante à declaração de amor da Trindade ao enviar o Filho ao nosso mundo, para que neste viver de cada dia percebamos o Mistério Pascal como nosso primeiro e principal compromisso com o mundo real em que vivemos e ao qual somos enviados. Tenho esperança de que no final destes três dias saiamos daqui mais seduzidos pelo caminho de Jesus. Que aceitemos o seu convite a tomar a nossa cruz e a segui-Lo, vindo assim a perceber que sem Mistério Pascal não viveremos verdadeiramente. Registamos aqui para memória agradecida os testemunhos de Margarida Teixeira, Rosário Farmhouse, Nuno Oliveira Dias e Ricardo Roncon que nos manifestaram o seu modo de ser construtoras e construtores de Esperança. 1 ASPIRAÇÕES DO MUNDO MODERNO E MISTÉRIO PASCAL Domingos Terra, S.J. Todo o ser humano quer realizar-se e ser feliz. Desejar, ambicionar, ter aspirações são uma marca estrutural da sua existência. Deus criador determinou que assim fosse. O ser humano é obrigado a gerir livremente o mundo das suas aspirações. Pode mantê-lo aberto ao horizonte que permite a sua plena realização, ou então desviá-lo para direcções erradas e desperdiçá-lo em objectivos curtos. Nesta perspectiva, seguir as exigências que decorrem do Mistério Pascal, não é uma necessidade da natureza humana, mas um acto de liberdade. Podem escolher-se outros caminhos. Porém, o que aconteceu em Jesus Cristo mostra que o cumprimento de tais exigências é o que permite ao ser humano alcançar a sua máxima realização. Temos, pois, de conhecer bem a gramática da existência humana que o dinamismo do Mistério Pascal nos propõe. Depois, poderemos pô-la em confronto com outras gramáticas que o nosso mundo, entretanto, tem vindo a adoptar. 1. A gramática da existência proposta pelo Mistério Pascal 1.1. Viver uma esperança apesar da apreensão Não podemos perder de vista uma verdade que sempre foi óbvia a nosso respeito: a vida, que temos no presente, terminará necessariamente um dia o seu curso. Meditemos nestas palavras do teólogo Karl Rahner: «Encontramo-nos todos encerrados no cárcere da Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo 10 nossa existência como condenados à morte; e esperamos que chegue a hora da execução. Entretanto, podemos jogar às cartas, gostar do rancho que nos dão diariamente e esquecer por algum tempo que a porta se abrirá prontamente e nos chamarão para darmos os últimos passos»1. Para termos uma ideia adequada do valor da vida, precisamos então de a ir pesando na balança da morte2. Não é por acaso que Santo Inácio sugere que nos imaginemos às portas da morte, no momento de fazer uma eleição importante para a condução da nossa vida3. Pode acontecer que nos tenhamos concentrado em coisas de pouca monta, sem atender a outras de maior alcance. A morte é um ponto final na rota da nossa existência, tal como a conhecemos actualmente. Por isso, antecipá-la mentalmente deve levar-nos a olhar a nossa existência como um todo. No entanto, o ser humano parece não se conformar com a possibilidade de tudo acabar no momento da morte. Dificilmente suporta a ideia duma existência em que tudo seria declarado provisório, relativo e, como tal, removível. Anseia por dar um cunho definitivo ao conjunto das suas intervenções na história. Aspira, consciente ou inconscientemente, a que nem tudo o que é e faz venha a desaparecer com a morte. Deste modo, a existência temporal do ser humano é portadora duma dialéctica estrutural: termina abruptamente com a morte, ao mesmo tempo que aspira a não desaparecer totalmente com ela. Há no ser humano um desejo profundo de continuar a ser. Habita-o uma esperança, porventura até calada, da própria ressurreição. Trata-se duma expectativa na qual ele se projecta como um todo. Nas situações concretas por que passa, parece ouvir-se a promessa de que a sua existência vale para sempre como um todo único4. Ora, esta Karl Rahner, «El escándalo de la muerte», Escritos de Teología, t. VII, Madrid, Taurus Ediciones, 1969, pp. 155-156. 2 Ibidem, p. 156. 3 Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, nº 186. 4 Karl Rahner, Curso fundamental sobre la fe. Introducción al concepto de cristianismo, trad. de Raúl Gabás Pallás, Barcelona, Editorial Herder, 1979, pp. 315-316. 1 Aspirações do mundo moderno e o mistério pascal 11 esperança da nossa própria ressurreição é a base que torna razoável acreditar na ressurreição de Jesus. Ela leva-nos a procurar algures na história a confirmação daquilo que todos esperamos. Sentimos necessidade de saber se é possível ter acesso à realidade histórica dum ressuscitado e, por conseguinte, experimentá-lo na fé. Vê-se, então, que a própria estrutura da existência humana torna legítimo abrir-se ao testemunho dos que vêm afirmando que Jesus está vivo5. 1.2. Perceber como a esperança sai confirmada O acontecimento da ressurreição de Jesus dá-nos a resposta ao problema da morte. Jesus ressuscitado é aquele que efectivamente morreu, pondo em evidência o que há de positivo na morte. Fez desta o acto da aceitação do incompreensível, o qual, não se podendo manipular, converte o sofrido em algo de positivo. Tendo Jesus morrido, deu-se nele aquilo que a morte absurda leva consigo de feliz mistério. O que nele teve lugar tornou-se, aliás, digno de crédito para nós. Ao olhar para a morte de Jesus, vemos que há qualquer coisa a acrescentar à brutalidade e ao mesmo tempo banalidade da morte. Deus comunicou-nos algo em Jesus: no conjunto formado pela sua existência terrena, morte e ressurreição. Disse-nos que «nesse zero absoluto da nossa vida e da nossa experiência [que a morte representa] é onde se começa a realizar a verdadeira vida»6. Ao olhar para o que aconteceu em Jesus, temos razões para crer que, com a morte, a vida não cai no abismo do absurdo. Cai, sim, no abismo de Deus. É razoável esperar a verdadeira vida, que virá a manifestar-se claramente para além do acontecimento da morte. Mas o facto de essa vida se situar no ‘abismo’ de Deus significa que não podemos prever os seus contornos. A experiência da verdadeira vida supõe um acto de entrega radical e absolutamente confiante de nós mesmos a Deus, à semelhança do que fez Jesus. Não pode haver, 5 6 Ibidem, pp. 316-317. Rahner, «El escándalo de la muerte», op. cit., p. 158. Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo 12 aqui, qualquer atitude de controlo da nossa parte. Com a morte, não nos é possível guardar a vida do presente, porque nos é subtraída. Por outro lado, a vida que é plena e eternamente válida está ainda «escondida naquele futuro silencioso a que nos dirigimos, a que chamamos ‘Deus’»7. Há, pois, um hiato entre a vida que deixamos e aquela que nos chega, o qual não nos permite outra atitude que não seja o abandono total nas mãos de Deus. A vida futura não é do mesmo género daquela que vivemos no presente. O para-além-da-morte não é o simples prolongamento da vida temporal, a qual se poderia sempre corrigir. Apesar disso, a vida futura constrói-se no seio desta vida temporal. É no próprio tempo, que se faz a eternidade. Digamos que no exercício da nossa responsabilidade pessoal há o espaço do provisório, revogável, e o espaço do último, irrevogável. Aquilo que, no decorrer desse exercício, atingiu o estado definitivo é precisamente o âmbito da eternidade. É assim que esta se insere no tempo da liberdade e da responsabilidade. Então, temos de ir trabalhando com a ideia de extrair do tempo a situação definitiva da nossa existência. Esta situação constrói-se por uma atitude de abertura fundamental à realidade e pela prática da liberdade. Precisamos de ir administrando o secundário e provisório, tendo na mira o que é essencial e definitivo8. Preparamos, assim, o momento da morte em que a eternidade é libertada do tempo e adquire a forma ‘destemporalizada’. Pela morte, surge a perfeita definitividade da nossa existência, que foi sendo livremente realizada no tempo9. Fica então claro que, ao entrar na implacável solidão da morte, só há uma coisa que ainda tem valor e se pode levar consigo: aquilo que cada um foi na profundidade última do seu coração10. Karl Rahner, «Victoria oculta», Escritos de Teología, t. VII, Madrid, Taurus Ediciones, 1969, p. 169. 8 Inácio de Loyola, op. cit., nº 23. 9 Karl Rahner, «La experiencia pascual», Escritos de Teología, t. VII, Madrid, Taurus Ediciones, 1969, pp. 176-177. 10 Rahner, «El escándalo de la muerte», op. cit., p. 156. 7 Aspirações do mundo moderno e o mistério pascal 13 1.3. Em síntese A nossa abordagem do Mistério Pascal permite enunciar os seus aspectos principais. Em primeiro lugar, apesar de a morte constituir o fim abrupto da existência presente, o ser humano traz consigo a esperança da sua ressurreição. Em segundo lugar, o que se passou com Jesus mostra-nos que há um hiato entre a vida temporal que acaba e a vida eterna que vem a manifestar-se plenamente. Mas mostra-nos também que a morte não é a queda no abismo do absurdo, mas sim no abismo de Deus. Em terceiro lugar, construímos a eternidade já na vida presente, pela forma como nos abrimos à realidade e usamos a liberdade. É isto que se torna definitivo no momento da morte. Vemos, então, que o dinamismo do Mistério Pascal nos fornece uma gramática de compreensão da existência e nos convida a exercer a nossa capacidade criadora duma determinada forma. A vida é algo por que temos de trabalhar. Mas Deus é quem tem ultimamente poder sobre ela. Assim, no quadro desenhado pelo Mistério Pascal, o ser humano é importante, mas não ocupa o espaço todo. 2. Projectos de felicidade puramente intra-mundana A história dos séculos mais recentes mostra-nos como o ser humano inventou caminhos de felicidade, sem contar com a intervenção soberana de Deus. Destacam-se fundamentalmente três, tendo surgido pela ordem seguinte: a aposta absolutamente confiante no poder da realização humana, o isolamento no espaço do interesse puramente individual e a busca dum transcendente à medida das necessidades terrenas. Estas tentativas de felicidade puramente intramundana coexistem actualmente nas nossas sociedades. É certo que a primeira cria as condições para o aparecimento da segunda e esta é o terreno donde provém a terceira. Mas uma mutação histórica pode não significar o total desaparecimento daquilo que existiu antes. Por vezes, preservam-se tendências geradas em épocas diferentes. Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo 14 2.1. O ser humano inteiramente confiante na sua força realizadora A aposta completa no poder da realização humana inaugurou-se com a Idade Moderna. Duas ideias-chave traduzem esta mutação histórica. A primeira é a liberdade. O ser humano deixa de ser um reprodutor de modelos preestabelecidos, para se tornar produtor de si mesmo. Antes, tínhamos uma sociedade que olhava para trás: o importante era a conformidade a um modelo a repetir continuamente. Depois, passámos a ter uma sociedade que olha para a frente, desenvolvendo-se em função dum ideal a atingir. A segunda ideia-chave desta mutação histórica é a razão. O ser humano já não se conforma à totalidade do real, tal como está estabelecido à sua volta. Destaca-se dele, a fim de exercer a sua acção sobre ele e o controlar. Quer descobrir as leis que explicam aquilo que existe, a fim de as utilizar para transformar o mundo em seu proveito. Ora, a conjugação da liberdade e da razão faz emergir um sujeito consciente da sua autonomia. É alguém que se constrói a si mesmo em plena responsabilidade. Empenha-se no avanço da história, movido pelo ideal do progresso11. Antes, a existência humana adquiria o seu sentido através da ligação ao divino. Agora, o que importa é habitar o mundo de cá. A sociedade fica liberta da dimensão vertical que a fundava e fixava. O sujeito pode então estabelecer as suas relações horizontais conforme entender. Já não admite que a existência seja configurada pelo mundo do alto. É ele que assume esse papel12. Ora, o sujeito, que se quer construtor do próprio destino, deve ser tido como uma conquista da história. Devemos-lhe muitos dos benefícios que temos hoje ao nosso alcance. No entanto, dois perigos espreitam o exercício da autonomia inteiramente confiante na sua capacidade realizadora. Jean-Marie Ploux, Le christianisme a-t-il fait son temps?, Paris, Les Éditions de l’Atelier/Les Éditions Ouvrières, 1999, pp. 112-116. 12 Ibidem, pp. 117-119. 11 Aspirações do mundo moderno e o mistério pascal 15 O primeiro está na falta de atenção aos limites da razão, inerentes à própria estrutura do ser humano. Este pode pecar por autoconfiança desmesurada, esquecendo as suas sombras e a sua finitude. De facto, estamos hoje alertados para a problemática do inconsciente, isto é, dos mecanismos que influenciam o agir humano, sem que se esteja na posse deles. Freud chamou a atenção para uma área do nosso psiquismo que é irredutível à consciência (inconsciente psíquico). Marx alertou para a possibilidade de o nosso modo de pensar ser condicionado por forças colectivas cujo controlo nos escapa (inconsciente social). Nietzsche defendeu que a realidade não se deixa absorver totalmente pelo nosso esforço de compreensão (inconsciente ontológico). Ficou, assim, declarada a incapacidade de o sujeito ser totalmente transparente a si mesmo13. A pretensão dum controlo total de si próprio e da realidade circundante, além de falsa, é perigosa. O excesso de autoconfiança da parte do sujeito empreendedor pode produzir opressão e destruição. O segundo perigo da autonomia empreendedora está na desvinculação da razão face ao próprio sujeito a quem deveria servir. Vemos que as sociedades modernas tendem a organizar-se segundo a lógica do interesse e do mercado. Voltadas para a produção e o consumo, criam um sistema burocrático ao qual o sujeito é obrigado a submeter-se. Até a sua vida privada se vê afectada pela lógica de funcionamento da sociedade. Deste modo, o sujeito é chamado a desempenhar uma função, em vez de exercer a plena posse de si mesmo. Estabelece-se um conflito latente entre ele e o sistema, dado que a sua autonomia e a sua realização são postas em causa. Ora, a possibilidade deste divórcio entre o mundo técnico-económico e o mundo da subjectividade alerta para a necessidade de voltar a introduzir a questão do sujeito no debate sobre as nossas sociedades. Não podemos esquecer que o avanço histórico para a modernidade se deu precisamente com a aliança entre a razão e o sujeito livre. É preciso Alain Renaut, A era do indivíduo. Contributo para uma história da subjectividade, trad. de Maria João Batalha Reis, Lisboa, Instituto Piaget, 2000, p. 17. 13 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo 16 mantê-la, para que nem o sujeito se feche na obsessão da sua individualidade, nem a razão se torne um instrumento de poder voltado contra ele14. Note-se que, ao fazermos a crítica do sujeito autónomo empreendedor, não pomos de parte as suas virtualidades. Ele tem sido o grande motor da história recente, concretamente no nosso espaço ocidental. Não se esqueçam as descobertas científicas e o progresso da técnica, o desenvolvimento das indústrias, a multiplicação dos bens e dos serviços, ou a democratização do acesso à educação e à cultura. Mas as glórias do sujeito empreendedor não escondem também as suas derrotas. Por exemplo, os seus meios de afirmação chegaram a produzir duas guerras mundiais e conduziram à beira dum confronto nuclear. A multiplicação de bens e serviços ainda não resolveu as carências básicas de vastas camadas de população. Os avanços da ciência e da técnica, se trouxeram soluções, também criaram novos problemas; é o caso das questões do ambiente ou dos perigos da manipulação da vida humana. As nossas sociedades, chamadas evoluídas, são, em boa parte, fonte de mal-estar: além de progresso e comodidade, também produzem injustiça e despersonalização. Enfim, o fenómeno da globalização aumenta os intercâmbios entre grupos humanos e continentes. Faz circular pessoas, bens e informação um pouco por toda a parte. Mas está a acentuar desequilíbrios económicos e a fragilizar certas sociedades e culturas. A visão da existência própria do sujeito autónomo empreendedor pode ser confrontada com aquela que está implicada no dinamismo do Mistério Pascal. Assim, este sujeito não parece ter presente a perspectiva da morte, como o fim abrupto da existência temporal. Dá a impressão de viver como se nunca viesse a morrer. Também não canaliza correctamente a esperança na própria ressurreição, que, de facto, o habita interiormente. A energia de realização, que decorre de tal esperança, é investida a pensar só na vida temporal. Glorian- 14 Alain Touraine, Critique de la modernité, Fayard, 1992, pp. 13-15. Aspirações do mundo moderno e o mistério pascal 17 do-se da autonomia alcançada e confiando inteiramente no poder da razão, o sujeito não vislumbra outra vida que não seja a temporal. Sabe teoricamente que um dia esta chegará ao fim, mas não tem o hábito de antecipar mentalmente o momento da morte. Isso seria mostrar fraqueza e demitir-se da obrigação de transformar o mundo e conduzir a história. A existência presente é a única que se conhece e, portanto, aquela que conta. Não interessa preocupar-se com o definitivo. Julga-se que as acções sobre o mundo e sobre si próprio não têm consequências transcendentes. Por isso, supõe-se que podem ser eternamente corrigidas. 2.2. O ser humano que se isola no seu espaço individual Certas análises, efectuadas na charneira dos anos setenta e oitenta, apontam a existência duma nova mutação histórica. Antes, o ser humano assumia, na vida e na sociedade, uma atitude que se poderia classificar de «disciplinar e militante, heróica e moralizante». Agora, adopta um procedimento «à la carte», mostrando uma preocupação «hedonista e psicológica, que faz da realização íntima o fim principal das existências»15. O ser humano abandona os grandes ideais e as grandes realizações, procura libertar-se dos elos sociais e volta-se para si próprio. Por um lado, está desiludido com os efeitos nefastos e até desastrosos do exercício da autonomia empreendedora, absolutamente confiante nos seus méritos. Por outro lado, não se limita a reagir contra os aspectos negativos do passado. Está inteiramente convencido das virtualidades da nova ampliação da sua liberdade, face à realidade que se lhe apresenta. Desinveste de projectos que o obriguem a sair de si e retira-se para o espaço do interesse estritamente individual. Assim, a subordinação do individual às regras colectivas é pulverizada. O sujeito autónomo empreendedor tinha-se libertado da Gilles Lipovetsky, L’ère du vide. Essais sur l’individualisme contemporain, Gallimard, 1993, pp. 315-316. 15 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo 18 ligação vertical ao divino, mas dispunha-se a respeitar as normas que a sociedade deste mundo lhe mandava cumprir. Agora, o indivíduo quer-se livre, mesmo destas obrigações horizontais. É a passagem da autonomia à independência16. Já não se é determinado a partir de fora; mas também deixa-se de o ser a partir de dentro17. Desaparecem as obrigações exteriores e apagam-se os princípios interiores. O indivíduo desvincula-se de toda a dimensão colectiva da existência que possa limitar a sua liberdade. Tem dificuldade em aceitar uma legitimidade que se apresente como anterior a ele mesmo. Também não se deixa mobilizar facilmente por grandes projectos de sociedade. Parece não acreditar nela e ter perdido a esperança de mudar o mundo. Por isso, mobiliza-se intensamente em torno do próprio ‘eu’18. O respeito da singularidade subjectiva torna-se o valor fundamental. É chegada a hora de celebrar o ‘eu’ e de obter a realização imediata dos seus desejos. Da lógica do dever passa-se ao princípio do prazer. O bem-estar e a felicidade individuais têm a primazia sobre o sacrifício, pois já não há nada exterior que lho possa exigir19. A busca da satisfação privada torna-se até indiferente ao juízo dos outros. O ego é mais importante do que o reconhecimento social. A vida quer-se sem imperativos. Vivemos na «sociedade da hiper-escolha»20. Aumenta o leque das opções facultadas a cada um. Oferecem-se mais bens e serviços. Propõem-se até crenças e modos de vida. Ora, a multiplicação daqueles pode ser considerada como consequência normal do desenvolviAlain Renaut, L’individu. Réflexions sur la philosophie du sujet, Paris, Hatier, 1995, pp. 46-47. 17 Gilles Lipovetsky, A era do vazio. Ensaio sobre o individualismo contemporâneo, trad. de Miguel Serras Pereira e Ana Luísa Faria, Lisboa, Relógio d’Água, 1989, p. 55. 18 Ibidem, p. 50. 19 Gilles Lipovetsky, L’individualisme dans les démocraties frivoles, col. «Les cahiers du S.C.E.J.I. de Montpellier», p. 23. 20 Lipovetsky, L’ère du vide, p. 323. 16 Aspirações do mundo moderno e o mistério pascal 19 mento científico e tecnológico. Já a diversificação das concepções da existência mostra até que ponto a actividade de escolha ultrapassa os limites convencionais. Antes, os códigos de vida eram respeitados enquanto socialmente instituídos. Hoje, mesmo estes são matéria da preferência de cada um21. Antes, aceitava-se que a ordem objectiva das coisas pusesse limites à liberdade individual. Hoje, esta quer-se isenta de qualquer tipo de constrangimentos. Aliás, a própria sociedade encarrega-se de propor cada vez mais, para que o indivíduo decida cada vez mais. Ele torna-se, assim, «um centro de decisão permanente»22. Esta atitude do indivíduo faz com que a realidade que se lhe apresenta perca peso diante dele. Exemplo disso é o que se passa com as tradições e os sistemas de pensamento. Em vez de realidades instituídas, sustentadoras duma coesão social, tornam-se objecto de livre escolha. Pode-se adoptar este ou aquele conjunto de ideias, interpretá-lo como convier e mudar para outro quando se quiser. Um segundo exemplo da perda de peso do real face ao indivíduo é o que se passa com a figura do ‘outro’. Na condução da própria vida, conta menos a outra pessoa, assim como Deus transcendente. As relações humanas e os elos sociais tornam-se instáveis. Não é por acaso que a coesão da família, o respeito pela autoridade ou o sentido da responsabilidade pelo bem comum estão em crise. Não admira também que se diversifique bastante o modo de conceber Deus, com o intuito de o adaptar aos desejos de cada um23. Ora, ao quebrar a consistência da realidade exterior, o indivíduo acaba por debilitar a coesão do próprio ‘eu’. Normalmente, o ser humano estrutura-se através do diálogo entre a sua interioridade e a referida realidade. Mas quando se perdem as referências ao mundo exterior, o centro de gravidade pessoal também se dilui. A consGilles Lipovetsky, O império do efémero. A moda e o seu destino nas sociedades modernas, trad. de Regina Louro, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, p. 237. 22 Ibidem, p. 236. 23 Lipovetsky, A era do vazio, pp. 70, 107. 21 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo 20 ciência desorganiza-se, por já não ser determinada a partir de dentro. Torna-se mesmo disseminada, devido ao excesso de informação que capta. A vontade é solicitada em múltiplas direcções, o que até a pode levar à indiferença. O indivíduo dá a impressão de estar pronto, tanto a tudo como a nada24. Com a perda de consistência da realidade exterior e a quebra de coesão do próprio ‘eu’, é o sentido da existência que se estilhaça. Já não há uma base sólida que o sustente, pois a verdade não tem mais o direito de se reclamar objectiva. A oposição clássica entre sentido e não-sentido torna-se mesmo questionável25. O indivíduo não admite que a sua emancipação seja posta em causa. Por isso, entrega-se à instabilidade dos compromissos temporários. O investimento superficial e provisório prevalece sobre a fidelidade que perdura. O que conta é a vida no presente: a relação ao passado e a obrigação perante o futuro perdem importância26. Deixa de haver uma linha de vida coerente, por falta de tradição e de escatologia. Há opções, tidas como equivalentes, sucedendo-se em cadeia. O novo é algo que tem valor em si mesmo. Daí que o indivíduo se lance na constante aventura dos começos27. À semelhança do que fizemos com a figura do sujeito autónomo empreendedor, também a do indivíduo isolado no seu espaço nuclear pode ser confrontada com a visão da existência que está implicada no Mistério Pascal. O indivíduo não está aberto à dimensão do transcendente. Para ele, também não existe outra vida que não seja a temporal. Mas a retracção do horizonte da existência é agora maior que no caso do sujeito autónomo empreendedor. Este abandonou o além para se fechar no aquém. Mas o indivíduo chega ao ponto de encolher o aquém numa das suas parcelas: o presente. Para o sujeito, havia ainda uma escatologia estritamente temporal; para o indivíIbidem, p. 54. Ibidem, p. 37. 26 Lipovetsky, O império do efémero, pp. 354-355. 27 Ibidem, p. 246. 24 25 Aspirações do mundo moderno e o mistério pascal 21 duo, não há sequer escatologia. Para o sujeito, a felicidade construía-se através de intervenções reflectidas e responsáveis no curso da história; para o indivíduo, a felicidade está na sucessão de experiências de auto-satisfação, mesmo que desconexas entre si. O dinamismo da esperança na própria ressurreição continua a fazer-se sentir, visto ser um dado da estrutura do ser humano. Mas a energia realizadora, que brota de tal dinamismo, nem sequer é aplicada na construção duma existência coerente, por falta de obrigações que transcendam o presente. Essa energia realizadora não parece obedecer a uma ordem da vontade, ajudada por um verdadeiro escrutínio da inteligência. Dispersa-se em múltiplas direcções, conforme as oportunidades que se vão oferecendo de gratificação individual. 2.3. O ser humano que busca um transcendente à sua medida Ao tirar peso às diversas variantes da realidade que se lhe apresenta, o indivíduo julga ter chegado a um grau de emancipação nunca antes visto na história. Faz a experiência exultante de quem está nos primeiros anos dum novo escalão de liberdade. Mas o tempo mostrar-lhe-á o preço a pagar. De facto, o dinamismo da independência individual começa a voltar-se contra o próprio indivíduo. É fácil libertar-se dos elos de sociedade. Mas é difícil prover-se sozinho de todo o necessário para viver. O indivíduo descobre agora que precisa que cuidem dele. Assim, da festa da emancipação, passa ao medo da exclusão. A vontade de isolar-se dá lugar ao pavor de ver-se abandonado. O indivíduo parece querer agora filiar-se em algum lugar, assegurar para si uma rede de solidariedades28. Este novo indivíduo quer, portanto, alargar o seu espaço ao nível horizontal. Busca um ‘nós’ onde consiga um enquadramento e seja tido em conta. Já aceita ser determinado em parte a partir de fora, a troco de protecção e de obtenção duma identidade. Mas ele tamJean-Claude Guillebaud, La refondation du monde, Éditions du Seuil, 1999, pp. 305-308. 28 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo 22 bém procura ampliar o seu espaço na direcção vertical. Não suporta mais a fragmentação do ‘eu’ e quer recuperar o sentido de unidade perdido. Por isso, além dum ‘nós’, busca um ‘além’. Só uma instância, que incida verticalmente na existência horizontal, terá a energia capaz de congregar e orientar de novo o ‘eu’ dissipado e desorbitado. Não basta, pois, uma qualquer conexão social. É preciso uma referência comunicadora de sentido: a existência precisa de sair do acaso insuportável, voltando a inserir-se numa série causal29. Deste modo, para o indivíduo só e perdido no seio da sociedade anónima, o ideal será encontrar algo que lhe ofereça uma dupla referência: um ‘nós’ que seja animado por um ‘além’, ou, se quisermos, um ‘além’ cuja vivência ganhe corpo num ‘nós’. Este ‘nós’ poderá ser de laços frouxos e orientação fluida, ou então compacto e apertadamente dirigido. Exemplo do primeiro caso será o fenómeno da New Age. Exemplo do segundo serão as seitas. Não se pense, contudo, que esta busca dum ‘além’ aliado a um ‘nós’ constitui um regresso à sociedade tradicional. O facto de o indivíduo sofrer pela falta daquilo que perdeu com a sua emancipação não significa que esteja disposto a voltar simplesmente ao estado de coisas do passado. Ele mantém a atitude instrumental face à realidade que se lhe apresenta. Qualquer cedência no jogo dos elos de sociedade ou na ligação a uma instância de alteridade visa garantir algo em benefício próprio. É o indivíduo que dita as regras das suas novas conexões. Mesmo a entrega, mais ou menos cega, às directivas duma seita não deixa de partir duma decisão motivada pelo interesse. Assim, conectar-se com o ‘além’ e integrar-se no ‘nós’, que lhe dá corpo, são preocupações de bem-estar30. De facto, o estabelecimento desta nova ligação ao ‘além’ não significa uma contenção da vontade de dominar, para dar lugar à abertura ao mistério. A atitude que preside a tal ligação não parece Paul Valadier, L’Église en procès. Catholicisme et société moderne, Flammarion, 1989, p. 81. 30 Ibidem. 29 Aspirações do mundo moderno e o mistério pascal 23 ser a compreensão da existência humana em função da realidade do mistério transcendente. O mistério é que é encarado em função do indivíduo, mesmo quando este dá a impressão de se conceber a si mesmo à luz daquele. Em vez do absolutamente incompreensível, o mistério é o ainda não conhecido e controlado. Ao conectar-se com o ‘além’, o indivíduo parece querer entrar onde os progressos científicos não chegam. Não admira que enverede, por exemplo, pelas chamadas ‘paraciências’. Estão hoje em voga domínios como a astrologia, a parapsicologia (estudo dos fenómenos psíquicos de aparência sobrenatural: telepatia, pré-cognição…) ou a radiestesia (processo de detecção de qualquer espécie de radiações ou vibrações)31. Não se deve confundir, portanto, estas novas manifestações de ligação ao ‘além’ com a expressão religiosa autêntica e muito menos com a fé cristã. Em primeiro lugar, na actual nebulosa de fenómenos de aparência religiosa, há a intenção utilitarista de pôr a vida sob a dependência ou a protecção dum sagrado. O apoio, neste encontrado, dá aconchego à vida e permite saber a que se agarrar, para o bem e para o mal32. Porém, no religioso autêntico, existe uma abertura ao absoluto, explicitamente reconhecido como tal. O ser humano não vive centrado em si mesmo, mas compromete a sua existência na relação com o absoluto. É uma relação que acarreta para ele exigências. Em segundo lugar, nos actuais fenómenos de aparência religiosa, o sagrado apresenta-se sob a forma de forças desconhecidas. Não é possível identificá-las e designá-las claramente, embora se procure perceber para onde tendem e tornar a sua força secreta dócil ao que se quer33. Mas, no religioso propriamente dito, há um processo em que o ‘além’ sem nome vai sendo designado. Este deve ser identificado a um desígnio que se possa representar de forma mais ou menos clara, a uma finalidade que ordene o andamento do cosmos e, eventualmente, da história. Ibidem, pp. 78-79. Ibidem, pp. 81-82. 33 Ibidem, p. 82. 31 32 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo 24 Em terceiro lugar, os actuais fenómenos de aparência religiosa não têm um território social claro. Desenvolvem-se sem controlo duma instância reguladora. Nem sempre é fácil identificar o ‘nós’ que dá corpo ao ‘além’ preconizado por estes fenómenos. Em contrapartida, o religioso autêntico ocupa um território de fronteiras mais nítidas no conjunto da sociedade. Requer a fidelidade a uma tradição, feita de experiências dum determinado tipo de relação ao absoluto. Apresenta a forma de património dum crer, a transmitir de geração em geração34. Ora, o ser humano, que busca um transcendente à sua medida, também é uma figura que pode ser confrontada com a visão da existência implicada no Mistério Pascal. É mais ambígua do que as outras duas, apresentadas anteriormente. Não nega o ‘além’, para se concentrar unicamente na vida temporal. Pode até usar algum vocabulário igual ou semelhante ao que é empregue na mundividência cristã. Refiram-se as ideias de divino e também de vida para além da morte. Isto pode provocar confusão em certas mentes pouco esclarecidas e bastante afectadas pelo espírito hedonista das nossas sociedades. Há o perigo de sobreporem a figura do indivíduo que busca um ‘além’ para benefício próprio à do cristão que interioriza a exigência do Mistério Pascal. Carácter distintivo da espiritualidade cristã é o princípio de que Deus absolutamente outro toma a iniciativa de intervir na história, revelando-se e comunicando o seu dinamismo de amor. A própria cruz de Jesus Cristo resultou do choque violento entre a manifestação de Deus plenamente realizada na sua pessoa e a recusa humana de lhe abrir espaço. Foi um acontecimento que não terminou com o aniquilamento puro e simples de Jesus. Deus resgatou-o do reino dos mortos para a vida eterna, respondendo assim afirmativamente à forma como ele sempre se abriu à realidade e exerceu a sua liberdade. Ora, este dinamismo do Mistério Pascal é incompatível com a Pierre Gisel, «Qu’est-ce que croire? Mise en situation théologique», Recherches de Science Religieuse, 77/1 (1989), pp. 67, 79. 34 Aspirações do mundo moderno e o mistério pascal 25 busca dum transcendente à medida da própria pessoa. No Mistério Pascal, a passagem da vida temporal à plena manifestação da vida eterna dá-se na sua crueza histórica pessoal. É-se confrontado com a decisão de se entregar ao abismo de Deus. Em contrapartida, na relação com um ‘além’ concebido à medida do próprio, a ligação da existência temporal com o terreno do divino dá-se de forma demasiado suave. Este oferece um espaço psicologicamente apaziguante, onde a responsabilidade se dilui e a crueza das contradições não tem lugar. Assim, o divino não é o absolutamente outro pessoal, mas um reino difuso que serve para prolongar as aspirações do ‘eu’ egocêntrico. A esperança da ressurreição, que, em qualquer caso, habita interiormente o ser humano, é deturpada. Não se deposita confiança na eventualidade de ser agarrado por Deus, após a entrega total no salto da morte. Apenas se trilha o caminho seguro da expansão do presente. O ser humano que busca um transcendente à sua medida surgiu devido ao fracasso das figuras que o precederam. Interessa agora estar atento também às suas possíveis falhas e procurar antever as novas possibilidades históricas que daí possam advir. No entanto, há razões para acreditar que teremos de conviver por muito tempo com este fenómeno da sedução do transcendente dócil ao imanente. A tendência a encarar a realidade em função dos próprios interesses parece ter vindo para durar. É um panorama social e cultural que não nos deve retirar a iniciativa. Como crentes, precisamos de interiorizar melhor o Mistério Pascal de Jesus Cristo. É assim que estaremos mais aptos a propô-lo vivencial e intelectualmente a outros, como o caminho sólido da felicidade. QUE SOFRIMENTO? QUE MORTE? Dra. Maria Teresa Ribeiro I – Como olhamos, hoje, para o sofrimento e para a morte? Pensar na resposta a estas duas perguntas “Que sofrimento? Que morte?” leva-nos muito longe. E, para confirmar o alcance destas perguntas bastou estar atenta à reacção de algumas pessoas que sabiam o tema que estava a preparar. As reacções mais habituais eram de rejeição: “Não arranjas nada mais agradável? Que horror, já bem basta quando nos vem bater à porta!”, ou de evitamento – “Nisso, quanto menos se pensar melhor!” ou de negação – “Dá a volta ao tema, fala antes de optimismo que é mais positivo” , ou de acção – “O que é se pode fazer para atenuar o sofrimento? E com a morte, torná-la cada vez mais longíqua e menos dolorosa?”. Também muitas pessoas reagiam com silêncio. E o silêncio é uma grande forma de comunicar, com a expressão do olhar a transmitir tudo... Outras reagiam, depois de reflectir um pouco, revelando conhecimento de causa, experiência vivida – “Quando se sofre, cresce-se” ou “Isso tem a ver com o sentido da vida. Com a nossa existência, é inevitável!”. Estas reacções tão diferentes dão muito que pensar. Como olhamos hoje para o sofrimento e para a morte? Como reagimos às diversas formas de sofrimento? Com que perspectiva encaramos a certeza da morte? Vivemos numa época em que a cultura favorece as primeiras reacções que descrevi. Os valores dominantes são os: do individua- 28 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo lismo e da independência; do hedonismo, da procura do bem-estar físico, psicológico, social... porque existe o “direito a ser feliz!!”, do consumo e do prazer, de recompensas imediatas; do evitamento e negação de todas as formas de sofrimento; do disfarce e negação do envelhecimento e da morte – “todos querem viver muitos anos mas ninguém quer ser velho”; da indiferença, da apatia e do distanciamento, da dificuldade em se comprometer...uma cultura do vazio. Tão vazio que, por vezes, não alcançando os seus objectivos, a pessoa acaba por desesperar e desejar a morte porque, para ela, passou a ser insuportável viver nestas circunstâncias de vazio existencial. Encontramos, também, muitas pessoas que se comportam como se viver fosse igual a ir a um “mercado de analgésicos”. Para cada frustração, ao mais pequeno sinal de sofrimento, há-de existir algum analgésico que ajude a atenuar a dor. Mas é impossível passar ao lado do sofrimento, das diversas formas de sofrimento. No sofrimento físico, desde as doenças passageiras às mais prolongadas e fatais, desde as doenças agudas às doenças crónicas e deficiências diversas. Todo o sofrimento provocado pela fome e pelas guerras. No sofrimento psicológico, cujas manifestações vemos pelo número crescente de perturbações do comportamento, de perturbações da personalidade, de dependências (álcool, drogas, ludopatia, internet) e daquela que chamam a doença do século – a depressão. As autoridades médicas mundiais referem que a depressão passará rapidamente a ser a segunda causa de sofrimento no mundo – as pessoas com menos de 30 anos já têm hoje quase o dobro das depressões das que tinham as pessoas da geração anterior. Há, também, de uma forma crescente, todo o sofrimento físico e psicológico proveniente das relações entre as pessoas, quase a tornar verdadeira a clássica afirmação de Sartre de que o inferno são os outros. As incompreensões, as intolerâncias e as indiferenças, os maus-tratos – tudo, faltas de amor – que se manifestam nos conflitos graves entre marido e mulher, entre pais e filhos, entre Que sofrimento? Que morte? 29 gerações, entre pares, entre comunidades e, à escala mundial, entre países. Mais ainda, a perda de afectos é uma das premissas básicas da explicação de situações de falta de assistência no sofrimento e na doença a um familiar, facto frequente, hoje em dia, com os idosos, os doentes crónicos, os deficientes. De facto, se não sentimos o amor dos outros por nós, sofremos. Se não sentimos amor por outro(s), sofremos mas, também, quando amamos sofremos. A dor, o sofrimento, assim como a morte fazem parte da vida, são naturais e inerentes à existência humana. II – A Dor, o sofrimento e o desenvolvimento de teorias psicológicas sobre o stress familiar A dor1 é uma experiência pessoal e subjectiva que só conhecemos através da comunicação daquele que sofre. Habitualmente é um sinal de alarme indicador de que algo não está a funcionar no organismo. Tem a função de proteger a integridade da pessoa. Uma vez resolvido o problema que causou a dor, espera-se que esta desapareça. Nem sempre assim acontece porque a causa pode ser desconhecida, a medicação ineficaz ou muito complexa a natureza dos factores envolvidos. A dor pode assim, e de acordo com a distribuição temporal, passar de aguda a crónica2. Na compreensão da dor é necessário ir além da dimensão neurofisiológica pois sabemos que um mesmo estímulo pode provocar reacções diferentes, dependendo da pessoa e do contexto, provocando ou não, dor em maior ou menor intensidade. Está em causa a inter“ Dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável, associada a um dano real ou potencial dos tecidos, ou descrita em termos de tais desilusões”, segundo a IASP – Associação Internacional para o Estudo da Dor. 2 Segundo o DSM-IV(Diagnostic and Statiscal Mental of Disorders, 1994) , para a dor ser considerada aguda, a sua duração deve ser inferior a seis meses e no caso de ser considerada crónica, o período é de seis meses ou mais. 1 30 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo relação entre qualidades sensoriais e componentes afectivos, cognitivos e comportamentais de cada pessoa, em cada contexto – família, comunidade. A interpretação da dor é individual e depende mais do significado do que da natureza ou intensidade do estímulo original. A expressão da dor, por sua vez, surge através de alterações orgânicas e de respostas emocionais que podem ser de negação, ansiedade, raiva, depressão, impotência, desamparo, dependência, necessidade de protecção e desesperança (Teixeira, 1998). Actualmente, defende-se que a experiência dolorosa é composta pela percepção da dor, associada a reacções emocionais, estados afectivos e manifestações psicofisiológicas secundárias. A ansiedade é o estado emocional mais associado à dor aguda, sendo que a depressão é mais frequente na dor crónica. Importa referir que diversos estudos (Alves, Carvalho & Baptista, 1999) concluem que a ansiedade está mais relacionada com emoções como o medo, sentimentos de preocupação, apreensão e tensão permanente, enquanto que a depressão se associa a emoções como a tristeza, sentimentos de pena e de desesperança. Foi proposto este ano pela Associação Internacional para o Estudo da Dor o primeiro Dia Mundial Contra a Dor, uma vez que, segundo a OMS, uma em cada cinco pessoas sofre de dor crónica moderada ou forte e a dor crónica seria um dos problemas mais subestimados pelos serviços de saúde no mundo actual. Os limites que separam a dor do sofrimento são ténues porque quase toda a dor tem um sofrimento que lhe é correlato e vice-versa. Segundo Ricoeur (1994) a dor puramente física seria um caso limite pois faz habitualmente surgir um sofrimento psíquico. Somente nos casos em que a dor é fulminante (e.g. enfarte de miocárdio) e a morte súbita, é que não existiria sofrimento psíquico, por não haver mais vida. Como referia Platão “A dor não surge apenas por estimulação periférica, mas também por uma experiência da alma, que reside no coração”. A dor pode ser evitada, reduzida mas o sofrimento não, por ser inerente à condição temporal do homem. Cada pessoa sofre por ter Que sofrimento? Que morte? 31 medo de ficar com sequelas, incapacidades, por ter medo de perdas materiais, afectivas, sociais e principalmente medo da morte. Estes sentimentos são evidentes em frases como “estou a morrer de dor” ou “este sofrimento é de morte”. O modo como a pessoa enfrenta o sofrimento, as perdas (de saúde e de vida) depende, em grande parte, de como foi vivenciando o sofrimento e outras perdas durante a vida. Isto conduz-nos ao stress ou síndrome geral de adaptação que foi definido, pela primeira vez em 1956, por Selye, como um fenómeno de natureza sistémica que se relaciona basicamente com a resposta expressa pelo organismo, sempre que confrontado com uma exigência de adaptação ambiental. Assim, neste conceito são considerados estados emocionais e afectivos, estando bem documentada a sua relação com condições afectivas negativas (Alves et al, 1999). O stress decorre directamente da nossa actividade diária, sendo vivenciado como algo insustentável sempre que atinge proporções excessivamente superiores aos nossos recursos. O ser humano existe sempre em relação com um outro e compreende as suas experiências, atribuindo-lhes significado, dando sentido à sua existência. Existe na sua condição de ser-no-mundo e tenta, a todo o instante, manter as suas características individuais e a sua dignidade existencial. Nascemos, crescemos, desenvolvemo-nos e passamos por várias crises evolutivas. Vivemos sentimentos ambíguos de amor e ódio, revolta, solidariedade. Ao longo da nossa vida vamo-nos sucessivamente adaptando às perdas e agressões que sofremos, quer modificando, sempre que possível, as próprias situações, quer alterando as percepções que temos delas. Habituamo-nos ao mundo no qual existimos. Um mundo estruturado que, de repente, fica sem sustentação ao esbarrarmos com situações inesperadas como um acidente, uma doença, uma morte, um desemprego, uma perda que surge abruptamente na vida da pessoa. São acontecimentos traumáticos que interrompem a nossa rotina. Rompemos com a previsibilidade e temos muitas vezes de suportar o insuportável. Temos que nos adaptar e o sucesso deste processo de adaptação varia 32 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo bastante não só porque exige tempo como depende daqueles que nos rodeiam. Do seu apoio e da qualidade das relações. Assim, o sofrimento num dos membros da família provocado, por exemplo, por uma alteração de saúde, é visto como uma ameaça às estabilidades económica, social, relacional e emotiva de todos. A primeira reacção é, regra geral, de ansiedade. Muitas vezes verifica-se, posteriormente e como mecanismo de defesa psicológica, uma projecção da agressividade, regressão e processo depressivo. Facilmente se instala uma crise na família. É importante perceber que, para além da satisfação das necessidades fisiológicas básicas, a pessoa que sofre necessita de segurança frente à ameaça, de relações afectivas com a família e os amigos, de consideração e estima (Sandrin et al, 1989). Na falta deste suporte relativamente ao medo, ansiedade, agressividade e depressão, a pessoa ainda sofre mais e a crise na família acentua-se. Diversos modelos teóricos têm sido desenvolvidos para explicar os mecanismos de adaptação das famílias relativamente a situações de stress, sofrimento e mesmo crise. Modelo ABCX Duplo do Stress Familiar (McCubbin e Patterson, 1983) Assim, por exemplo, o modelo ABCX duplo do stress familiar Que sofrimento? Que morte? 33 (McCubbin e Patterson, 1983) considera três factores em interacção no momento antes da crise. O factor de tensão a (stressor) é qualquer acontecimento com impacto no sistema familiar (e.g. morte, doença, desemprego, adolescência) que produz ou tem o potencial para produzir alterações no equilíbrio familiar. O factor b, intitulado recursos da família, consiste na capacidade da família para evitar que o factor de stress origine perturbações e crises; consiste nas forças da família. O factor c refere-se à percepção, ou seja, à definição subjectiva que a família faz quanto à gravidade do factor a experimentado, tendo em conta as exigências inerentes e os efeitos na família. Pode, então, surgir ou não o factor X, indicador de crise, o qual traduzirá a incapacidade da família para se adaptar, mudar e restaurar a estabilidade familiar. O conceito central deste modelo é o de adaptação, representado num continuum desde adaptação correcta a inadaptação, o qual pretende descrever o resultado dos esforços para alcançar um novo nível de equilíbrio depois da crise. O grau de adaptação estaria dependente de outros três factores: a acumulação de outros factores de stress; os recursos adaptativos (novos e existentes) da família, desde recursos pessoais (físicos, psicológicos, financeiros, educacionais, espirituais) a recursos familiares e apoio comunitário; e a percepção familiar que compreende os significados e as interpretações subjectivas que os membros da família fazem desta interacção de factores. Evidentemente nestes tempos pré-crise e pós-crise, são utilizadas formas diferentes de lidar com o stress e com o sofrimento, assim como são activadas estratégias diferentes (e.g. confrontação, distanciamento, autocontrole, procura de apoio social e instrumental, aceitação, fuga, planificação, humor, reinterpretação positiva, entre outras estratégias; Vaz Serra, 2002), para restaurar o equilíbrio, estratégias essas que podem ser muito úteis na prevenção de situações de crise familiar. Este modelo ajuda-nos a compreender porque é que algumas famílias sob stress e sofrimento se unem e cooperam tentando apoiar-se, enquanto outras entram em escalada de sofrimento e crise num ciclo que pode mesmo destruir a família. 34 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo Mais recentemente, Pauline Boss (2002) propôs o modelo contextual do stress familiar, que considera necessário distinguir dois contextos que, de forma díspar, influenciam o stress familiar: o contexto interno que inclui componentes que a família pode controlar e mudar (estrutural, psicológico e filosófico); o contexto externo (componentes face aos quais a família não tem controlo e que influenciam grandemente o modo como percebe os acontecimentos e os maneja – o chamado ecossistema, meio em que a família está inserida, tempo e espaço em que se encontra. Ambos os contextos se influenciam. Neste modelo ressaltam as noções de fronteiras, significados, crenças e valores e sua influência ao nível interno, bem como a expressão da cultura em que a família se insere. O efeito perturbador dos acontecimentos está muito relacionado com o significado que se lhes atribui, e este depende essencialmente do sistema de motivações e de valores das pessoas, dos seus projectos de vida e dos do sistema familiar. Modelo Contextual do Stress Familiar (Boss, 2002) De acordo com estes modelos, a vivência da família face ao sofrimento de um dos seus membros, ou diante de uma perda ou da possibilidade iminente desta perda (e.g. doente em fase terminal) gera reacções diversas, as quais indicam como as relações familiares foram estabelecidas anteriormente e também exigirão uma reorganização da família. Neste modelo, por exemplo, está contemplada a importância que as crenças religiosas podem ter na adaptação da família, constituindo um recurso essencial. Diversos estudos (e.g. Valle, 2001) demonstram que os pais manifestam sentimentos ambivalentes de esperança e conformismo, muitas vezes apoiados numa fé religiosa, face a doenças graves dos filhos como o cancro. A religião parece contribuir para que se resista à dor e se atribuam significados às experiências de sofrimento por se ter uma criança tão pequena com uma doença tão grave ou sem esperança de vida. (e.g. “Nós ficamos tristes, sofremos, mas temos que aceitar. Se eu pudesse, livrava-o dessa doença, mas como é impossível, Que sofrimento? Que morte? 35 temos que confiar em Deus e aceitar o filho que Deus nos deu e conformarmo-nos...”). Se o estado de saúde da criança se agrava e a morte é iminente, os pais vendo o seu filho em grande sofrimento, apoiam-se novamente na religião. Não existirá necessariamente rancor mas um sentimento de que não se espera mais nada da medicina. A família e os médicos estão a fazer tudo o que é humanamente possível para salvar a criança que está muito doente, que tem cancro, por exemplo. Resta o conforto em Deus como se vê pelo testemunho “Desde o dia em que vi o meu filho cheio de picadas, a sofrer sem melhorar, entreguei-o a Deus. Entreguei e não me arrependo, de corpo e alma. Eu tenho o meu filho na minha vida mas ele não é meu.” Ou, outro testemunho: “Até hoje, eu não tinha entregue o meu filho a Deus, mas hoje entreguei-o. Se o Senhor tiver que o levar, desta vez eu aceito porque chegou a hora, o Senhor preparou-me...Seja feita a sua vontade”. Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo 36 III – O medo da morte e o desejo da morte A dor e o sofrimento trazem habitualmente consigo o medo, o medo do próprio sofrimento e o medo da morte. Sentimentos de desespero e de depressão vão sendo manifestados quando se faz a “descodificação desta dor do ser que dói pela impossibilidade de continuar a existir no mundo” (Sasdeli & Miranda, 2001, p.99). A doença, por exemplo, é uma situação que coloca o ser humano diante de questões existenciais pouco consideradas no dia a dia, como a pessoa diante da vida, diante de si mesma, diante da perda e também da realidade. Confrontar-se com estas questões é entrar em sofrimento e, enfrentar este sofrimento, é construir uma organização interna mais madura e mais próxima da realidade da vida que é a morte. Quando nos sentimos doídos pelo nosso sofrimento e pela condição de dor e sofrimento do outro, trata-se da nossa dor que nos remete à nossa existência e naturalmente à nossa morte. Da mesma forma que não podemos sentir pelo outro a sua dor, também ninguém nos pode representar no momento da nossa morte. Cabe a cada um morrer a própria morte como sentir a própria dor e o próprio sofrimento. Podemos retardar a morte mas nunca conseguiremos deixar de morrer. É imprevisível e, também, inevitável. E este facto é contra a cultura dominante e apavorante, sobretudo para aqueles que têm a ilusão de poder controlar a sua própria existência. Mas, de nada serve o esforço das pessoas e da sociedade em geral para ocultar, negar ou esquecer a morte porque a vivência da finitude está sempre na consciência e na subconsciência de todos nós. A certeza da morte deve ser assumida com tranquilidade de modo a tornar-se um estímulo para viver a vida em plenitude, até ao fim3. A morte implica, para cada pessoa e para a família,no seu conjunto, um processo onde se podem distinguir as seguintes fases : choque Estamos a referir-nos à morte natural, embora existam outros particularidades como, por exemplo, a morte violenta, o homicídio, o holocausto, a morte por acidente, a morte precoce. 3 Que sofrimento? Que morte? 37 e negação; fúria; súplica e arrependimento; depressão e resignação (Kubler-Ross, cit. in Valle, 2001). Constituem tarefas importantes, por parte da família, partilhar a consciência da realidade da morte, partilhar a experiência do sofrimento e da tristeza, reorganizar a família e reinvestir noutras relações e objectivos de vida. Paradoxalmente há, também, quem neste mundo deseje a morte. Por razões diferentes e em tempos diferentes da vida. Refiro-me ao suicídio e à eutanásia. Mas a pulsão para a morte – quer pelo suicídio ou outros comportamentos destrutivos, quer pelo pedido de eutanásia – só afecta as pessoas quando elas deixaram de atribuir um sentido às suas vidas. 1. O que é o suicídio? Como podemos compreendê-lo e preveni-lo? Na formulação de Sto. Agostinho, o suicídio é o homicídio de si mesmo. É “qualquer acto de morte que resulte de um acto executado pela própria vítima e que ela sabia dever produzir esse resultado” (Durkheim, 1897) ou, ainda “auto-destruição por um acto deliberadamente realizado para conseguir esse fim” (Vaz Serra, 2001). Actualmente, consideram-se num grande conjunto, fenómenos como o suicídio propriamente dito, a tentativa de suicídio e os para-suicídios. Consideramos a definição da OMS (2000) segundo a qual as tentativas de suicídio são situações em que o indivíduo atenta contra a sua vida, mas não conseguiu o seu intento por razões alheias à sua vontade. Por sua vez, os comportamentos de risco ou para-suicídios são aqueles que colocam a vida em perigo e podem preceder tentativas de suicídio (e.g. alcoolismo, toxicodependência, excesso de velocidade, violência, desportos radicais). Os comportamentos suicidários constituem um dos maiores flagelos da nossa sociedade contemporânea. Conhecer, desmistificar, reconhecer os sinais, saber a quem recorrer, onde fazê-lo e como ajudar quem connosco se cruza mostrando sinais de dor, angústia, 38 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo solidão, desespero, saber lidar com a morte de alguém próximo são aspectos muito importantes (Saraiva, 1999). De um ponto de vista epidemiológico: • o nº de suicídios é dificilmente exacto por causa dos suicídios não declarados e do não reconhecimento de suicídio na origem da morte; • o suicídio é uma das dez causas mais frequentes de morte e, na Europa, é a segunda causa de morte entre os 10 e os 19 anos (OMS); • verificam-se entre 3-10 tentativas por cada suicídio consumado (OMS); • raro antes da puberdade (Sampaio, 2002). Convém, também, reflectir nos seguintes factores suicidários: enquanto o suicídio é mais frequente no meio rural, a tentativa de suicídio é mais frequente no meio citadino; o suicídio é mais frequente em situações de exclusão social, de desemprego ou ruptura profissional e/ou financeira, de velhice, solidão, viuvez e divórcio; enquanto os adolescentes fazem mais tentativas de suicídio, os idosos destacam-se no “suicídio conseguido”; enquanto as mulheres fazem mais tentativas de suicídio, os homens destacam-se nos suicídios conseguidos; os suicídios ocorrem com alguma frequência na sequência de um acontecimento ‘stressante’ recente e quando há acesso fácil a métodos de elevada letalidade; embora não exista perfil psicológico do suicida, toda a perturbação mental é potenciadora de risco em maior ou menor grau. Os seguintes dados estatísticos também nos ajudam a reflectir. Em Portugal, verificam-se 8 a 16 suicídios por cada 100 000 habitantes, uma proporção muito semelhante às que se encontram na Suécia, nos Estados Unidos da América e na Austrália. No Norte é onde encontramos taxas de suicídio mais reduzidas e no Sul as mais elevadas, sobretudo na população idosa, em particular no Alentejo, onde é 3 a 5 vezes superior à média nacional (constituem factores explicativos a ruralidade extrema, o isolamento, a fraca densidade Que sofrimento? Que morte? 39 populacional, o afastamento do convívio social, a emigração de filhos e jovens para grandes núcleos urbanos, o envelhecimento e a viuvez, a pobreza, as doenças dolorosas e incapacitantes). Verifica-se também que, até 1990, se verificou um aumento das taxas de suicídio e, a partir desta data, uma diminuição de suicídios mas aumento de tentativas e de comportamentos de risco. Num estudo recente realizado por Sampaio (2002): • 34% dos jovens já pensou, uma ou mais vezes, em suicídio; • 7% já tentou, pelo menos uma vez, o suicídio; • mais de metade da população inquirida (822 jovens) conhece alguém que já se matou ou tentou suicídio; • 80 jovens por ano (15-24 anos) suicidam-se. Porque é que uma pessoa se suicida? Shneidman (1996) considera que, no essencial, quase todos os casos de suicídio são causados por sofrimento, um certo tipo de sofrimento: o sofrimento psicológico a que chama dor psicológica. Ora a dor psicológica tende a ser desvalorizada e subtratada. Dá-se mais atenção às causas da dor do que à própria dor. E a pessoa tem de a suportar sozinha. Esta dor provém de necessidades psicológicas frustradas ou distorcidas (Sá da Bandeira, 2004). Assim, o suicídio é principalmente um drama na mente (excluindo, evidentemente, os suicídios por razões especiais, históricas e culturais, ou actos de guerra: hara-kiri, atentados terroristas...) Existem, evidentemente, factores de risco clínico: depressão, esquizofrenia; abuso de álcool e/ou drogas; história de tentativa de suicídio ou ideação suicida; sentimentos de desesperança; ataques de pânico; ansiedade grave; distúrbio pós-traumático; impulsividade e/ou agressividade. E, embora a natureza essencial do suicídio seja psicológica também engloba factores biológicos, bioquímicos (provocando distorções da percepção), interpessoais, intrapsíquicos, culturais e sociológicos. 40 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo Do latim sui (próprio) e cidium (morte) a palavra suicídio dá-nos a definição da intencionalidade de se matar a si próprio, mas omite o papel da dor. O suicídio não é algo que aconteça subitamente mas antes o fim de um processo que pode ter começado há muito tempo.A dor psicológica aumenta à medida que a crise, ou a percepção que a pessoa tem dela, se agrava. O suicídio ocorre quando a dor é sentida de tal forma insuportável que a morte é o único alívio, a única saída. De facto, o suicida pretende libertar-se de estados emocionais internos muito penosos (angústia, depressão, aborrecimento, culpabilidade) e de problemas externos que sente como inevitáveis, intermináveis e intoleráveis (Vaz Serra & Pocinho, 2001). O suicídio é um grito de dor quando a pessoa se sente derrotada, sente que não pode escapar das circunstâncias nem pode ser ajudada. Pôr termo à vida é considerado uma possibilidade de fuga. As crenças e os valores podem fazer a pessoa pensar que está louca e a sentir-se estigmatizada se desabafar com os outros. Surge a vergonha, a culpabilidade que levam ao isolamento ou ao silêncio. E, quando por vezes falam, os outros podem não se aperceber da gravidade da situação, ou desvalorizá-la totalmente. O sofrimento é tão grande que parece não haver possibilidade de aguentar ou de encontrar outra solução. No entanto, o suicídio é sempre uma solução de não retorno para um problema que é temporário. Um estudo recente realizado em Portugal (Vaz Serra & Pocinho, 2001) encontrou as seguintes características pessoais influentes: • Impulsividade (50% das pessoas que sobrevivem referem não ter planeado o suicídio, tendo pensado nisso cerca de 1h antes) • Pensamento dicotómico (lei do tudo ou nada que dramatiza as vivências) • Rigidez (menor flexibilidade, pouca versatilidade, maior extremismo) • Menor capacidade de resolução de problemas (menor auto-confiança, menor auto-controlo, espera passiva de resolução de problemas) Que sofrimento? Que morte? 41 • Pouca memória auto-biográfica (memórias vagas e genéricas) • Sentimento de desesperança (não admite a possibilidade de escapar a acontecimentos adversos, sentimento de derrota) • Baixa auto-estima A experiência acumulada permite identificar frases ouvidas em clínica e que nos alertam para a ideação suicida: “até tenho medo de mim...”; “passam-me coisas malucas pela cabeça...”; “qualquer dia ainda faço alguma asneira”; “a vida é um fardo muito pesado”; “tenho medo de ir à janela”; “quero desaparecer”; “gostaria de adormecer e nunca mais acordar”; “se eu tivesse um desastre de carro e se acabasse tudo...”; “não andarei cá muito tempo”; “brevemente, não terão que se preocupar mais comigo”; “tenho-me lembrado da minha tia...primo...somos parecidos...” (referindo alguém que se suicidou). Mas a ambivalência está, muitas vezes, presente e muitas pessoas dão sinais, na esperança de serem ajudadas. As pessoas com forte ideação suicida estão incapazes de cuidar de si próprias e os que estão próximos muitas vezes não se apercebem. Precisam perceber várias coisas: que o seu sofrimento pode ser ajudado; que o seu problema é levado a sério; que têm alterações bioquímicas e que precisam de medicação; que perderam o controlo da situação e precisam de ajuda (Sá da Bandeira, 2004). 2. A eutanásia Do mesmo modo, o pedido de eutanásia é a declaração da pessoa de que a sua vida não tem sentido, é inútil, é um vazio existencial e, portanto, deve ser eliminada. Se aceito eliminar essa vida estou a afirmar que, de facto, a vida dessa pessoa é inútil. A busca do sentido da vida é a resposta que a pessoa pode e deve dar à pulsão de morte ao pedir eutanásia. 42 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo “Pedi à minha irmã para desligar a máquina. Era uma obsessão que me atormentou durante quase um ano...Sentia-me ultrajado por esta vida inanimada, por este corpo sem utilidade que não obedecia às ordens do meu cérebro. Queria acabar com isto.” – o italiano Ambrogio Fogar (desportista) quando, há 6 anos e na sequência de um acidente de automóvel, pedia eutanásia. Assim, pedia insistentemente às suas irmãs que o levassem para a Holanda para poder morrer. “Era difícil, inacreditavelmente difícil, e eu não queria que isto continuasse. Então subitamente, uma noite compreendi que agora, para mim, viver era um dever (...) Agora sei que a vida vale a pena. Porque as emoções estão dentro de nós, mesmo se somos prisioneiros de um corpo inútil. Tu estás no mar, num novo mundo, com outras leis. E, por isso, embora os dias se sucedam sem mudanças aparentes, já não estou aborrecido”. (Corriere della Sera, 10 de Setembro de 1998). Há testemunhos de muitas pessoas que, depois de terem perdido o sentido das suas próprias vidas e começarem a desejar a morte, o re-descobrem, de certa forma em conjunto com o sentido da vida humana em geral. Estes testemunhos tornam bem claro que os pedidos de eutanásia como, em muitos casos, as tentativas de suicídio são o resultado deste vazio de sentido da existência que pode dominar algumas pessoas em certas situações. Vitor Frankl (1978) foi um psiquiatra que dedicou grande parte da sua vida e do seu trabalho clínico e de investigação a reflectir sobre o sentido da vida e a ajudar os que tinham perdido este sentido a voltar a encontrá-lo – inventou um método psicoterapêutico designado por “logoterapia e análise existencial”. Foi determinante o que experimentou enquanto médico nos campos de concentração de Auschwitz e Dachau no que se refere a humilhação, exploração e extermínio dos seres humanos. Percebeu que a chave para sobreviver, não apenas fisicamente mas psicológica e espiritualmente, se baseava na capacidade de encontrar um sentido para a própria vida. “Sempre que havia uma oportunidade para isso, tínhamos de dar-lhes uma razão, um objectivo para as suas vidas, para lhes darmos forças para aguentarem o terrível estado das suas existências. Aquele que Que sofrimento? Que morte? 43 com angústia não via na sua vida nenhum sentido, nenhum objectivo nem propósito e portanto nenhum ponto para continuar, a breve trecho estava perdido...” refere Frankl (1978, p.76). Mas não são só os que estão em situação desesperada que perdem o sentido da vida. As circunstâncias de maior facilidade e conforto de algumas sociedades, são um meio propício ao desenvolvimento deste fenómeno. As pessoas que têm que lutar pela vida todos os dias, raramente perdem o interesse pela vida – também não há anorexias nos países em que há fome, só nos países de abundância é que encontramos essa perturbação. Frankl (1978) refere-se a esta perda do sentido da vida causadora de profundo sofrimento como um “vazio existencial”. Vazio existencial que pode ser mais ou menos profundo e de duração curta ou prolongada. Habitualmente este vazio está associado a um tipo de neurose que provém de problemas de consciência, de choque de valores, de uma frustração existencial. IV – O sentido da existência da vida como questão nodal para compreender e viver com o sofrimento e com a morte 1. A unidade do Ser que é, ao mesmo tempo e no espaço único de cada pessoa, corpo e espírito Cada ser humano é uma unidade dinâmica “corpo-mente-contexto” ou, por outras palavras, devemos sempre considerar no ser humano a sua globalidade bio-psico-socio-cultural, o que significa que há uma permanente modificação das proporções entre os factores biológicos, psicológicos e sociais que compõem o quadro actual de cada pessoa. Todos nós, seres humanos, tentamos, ao longo da vida, realizar determinados objectivos pessoais, e fazemos isso de forma consciente ou não. Assim, é possível descrever vários estádios ou fases de um ciclo de vida, ao longo dos quais se dá a preparação, expansão, apogeu e declínio da actividade dirigida para atingir esses objectivos. Na última fase, na velhice, faz-se o balanço da vida passada, e expe- 44 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo rimentam-se sentimentos de realização ou de fracasso, consoante a percepção de sucesso. No clássico modelo de ciclo de vida de Erikson (1968) são descritos oito estádios, cada um dos quais envolvendo tensão entre tendências opostas. A resolução desses conflitos consegue-se por adaptação activa e faz surgir como síntese dessa antítese determinados valores que podem considerar-se aquilo que cada um alcançou em cada período da vida. O jovem adulto oscila entre intimidade e isolamento, na idade em que as interacões sociais e sexuais estão em pleno e o valor emergente será o amor. Na meia idade, a tensão estabelece-se entre generatividade e estagnação face a tarefas profissionais e a tarefas de educação da nova geração; dessa dialéctica surgirão o desvelo e a dedicação. Por último, na fase da velhice, cada um de nós terá de escolher entre a integridade do Eu e o desespero; é o tempo do balanço, da atribuição de um significado à vida passada, da aceitação de si mesmo e do fim último que se avizinha. No fundo, envelhece-se como se viveu. Como escreveu muito lucidamente o Prof. João César das Neves numa das suas crónicas “a razão do medo da velhice advém da perda de sentido da vida...A velhice não representa a apoteose, a consumação, o coroar de uma vida, porque não se viveu a vida como um projecto; a velhice é vista, sim, como a privação dos prazeres, porque se viveu a vida toda para as sensações” (Neves, J.C., 1999, p.215). A maior ou menor satisfação com que cada um de nós encara a vida tem a ver com a representação que faz da vida passada, presente e futura, sobretudo em função dos objectivos que tinha estabelecido. Trata-se de uma representação cognitiva que vai conferindo mais ou menos sentido à vida. Não é algo fixo e definitivo, um produto acabado. De facto podemos afirmar que o “significado da vida” é uma percepção muito influenciada pelo estado afectivo – tristeza ou alegria – e, portanto, algo de mutável e reversível, embora surja como uma conclusão lógica e definitiva. Portanto, quando alguém se queixa da falta de uma razão para viver, que a vida deixou de ter sentido, muito Que sofrimento? Que morte? 45 provavelmente está a atravessar um momento de depressão e precisa de ser ajudada. Por exemplo, uma pessoa que se sente rejeitada por aqueles que ama tende a ter uma quebra da sua auto-estima, uma noção muito negativa de si própria, e pode afirmar convictamente que a sua vida perdeu todo o sentido para si. Para Frankl (1978, pp.25-26) “...questionar o sentido da vida é especificamente humano (...) a possibilidade de procurar este sentido pertence exclusivamente ao ser do homem. Os jovens, em particular, têm o privilégio de provocar o seu crescimento e maturação ao porem a questão do sentido da vida e fazendo um amplo e valioso uso deste privilégio. Segundo Einstein, aquele que considera a sua vida como destituída de todo o sentido não só é infeliz como é incapaz de viver”. Estamos perante o que Frankl designa por “fenómeno antropológico fundamental” – “o facto de que ser homem significa ir para algo que está para além de mim, algo que não sou eu, uma coisa ou alguém: é um sentido a preencher ou outro ser humano para encontrar e amar. O homem realiza-se lidando com coisas ou amando pessoas. Quanto mais ele cumprir esta tarefa, quanto mais der de si próprio ao outro, quanto mais se tornar homem – mais se torna ele próprio”. É evidente nos nossos dias a perda do sentido em muitas vidas à nossa volta. E o sentido da vida representa uma profunda necessidade da pessoa. A consciência ajuda muito nesta procura. Frankl define-a como “a capacidade intuitiva para descobrir o sentido singular e único, escondido em cada situação”. À partida, poderíamos ser tentados a pensar que a necessidade de encontrar respostas para questões existenciais era exclusiva das poucas pessoas que sabem como elevar-se acima da sua vida diária. Sobretudo os crentes poderiam permitir-se o luxo de serem capazes de encontrar um sentido para a vida especialmente em certas situações de sofrimento sem finalidade... Frankl, depois de trabalhar com muitas pessoas que designaríamos como ‘casos desesperados’ concluiu que “a possibilidade de encontrar um sentido para a vida é independente do sexo, do quociente intelectual, do nível cultural, da presença ou ausência de religiosidade, ou, no caso de um indivíduo religioso, independente da confissão 46 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo religiosa particular à qual pertença” (1978, p.31). Evidentemente que a descoberta do sentido da vida é facilitada por uma visão religiosa e transcendente da vida, sendo que, quanto mais clara e firme for a fé da pessoa, tanto maiores serão as possibilidades de manter a lucidez desta consciênca do sentido da vida. A capacidade de criar um sentido para a vida, mesmo nas situações mais adversas como paralisias totais ou doenças incuráveis, é a capacidade que permite aceitar a morte e lidar com o processo de morrer sem uma angústia intolerável. 2. ‘O sofrimento do outro é também o meu sofrimento – dói-me porque lhe dói...’ De facto, o sofrimento de uma pessoa gera no outro sentimentos diversos, principalmente nos familiares e amigos mais próximos. A busca do sentido da vida é difícil para a pessoa isolada. Daí a importância de desenvolver formas de apoio, acolhimento e ajuda por parte de pessoas singulares e de instituições às pessoas que sofrem, que se aproximam da morte, que desejam a morte. Ser terapeuta (terapéuo = servir) é assistir, estar próximo, tratar. Aqui o diálogo é um factor essencial para o conforto, esperança, terapêutica e cura da situação de sofrimento. A ajuda profissional (médica e psicológica), a terapia, pode ter várias vertentes: ajudar a pessoa a elaborar as perdas que a atingiram, aproveitar o que ainda possui de positivo, descobrir novos aspectos gratificantes, reformular objectivos de vida, reinterpretar o passado, desenvolver competências socio-afectivas... Intervir sobre a temporalidade é outra das vertentes – ajudar a pessoa a reorganizar-se perante a crise, através de dados do passado, da sua história e da vivência actual, projectando o futuro. A dor pode ser, assim, um importante factor de maturação psicológica, a nível familiar e individual. Mas a ajuda que está ao alcance de cada um de nós, e certamente a mais eficaz, é bem simples. Consiste em fazer compreender à pessoa que sofre, que entendemos o que se passa com ela, e que comparti- Que sofrimento? Que morte? 47 lhamos, de alguma maneira, a sua dor. Fazer-lhe sentir, também, que a apreciamos, que gostamos dela e que ela tem lugar nas nossas vidas. Quando tudo parece cair como um castelo de cartas e a existência parece um deserto ou um inferno, quando se perde o gosto de viver e se começa a ansiar pela morte, é uma presença amiga que conforta e permite, apesar de tudo, descobrir que a vida ainda tem sentido. 3. Viver com sofrimento ou viver com o sofrimento? De facto, a vida não foi dada ao ser humano para sofrer. O sofrimento, qualquer que seja a sua origem, surge-nos, em primeiro lugar, como um mal, como um obstáculo ao desenvolvimento da vida. Impossível de se lhe conhecer o porquê, impossível de contornar, permanece um mistério intangível (Silveira Rodrigues, 1990). E aqui temos uma grande escolha. Podemos viver com sofrimento ou viver com o sofrimento. Se vivemos com sofrimento esse é o nosso pano de fundo e até o sofrimento vivemos de forma sofrida. Se, pelo contrário, vivemos com o sofrimento, sofrimento esse que sabemos ser incontornável, podemos fazê-lo de várias formas: com resignação, com esperança, com revolta, com coragem, com medo, dando-lhe ou não um sentido. Oferecendo ou não esse sofrimento. Viver com o sofrimento, isso é compaixão, conviver (viver com) o sofrimento. Quando cuidamos de quem sofre com uma equilibrada proporção de razão e coração, pode, então, falar-se de compaixão. E é a inteligência que nos mostra que há uma significativa distância entre viver com o sofrimento e viver com sofrimento... Quem não sentiu já em si, ou naqueles que o rodeiam, o efeito “formativo” do sofrimento? As doenças, os desgostos, as deficiências, as desilusões, as incompreensões, enfim tudo o que causa sofrimento pode ser ocasião de aprendizagam para a pessoa, podendo ajudá-la a descobrir valores novos que a fazem progredir. A busca de um sentido para o que está a viver e o apelo à transcendência tornam-se mais agudos quando a pessoa passa por uma situação de crise que provoca sofrimento. 48 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo Se a pessoa orienta a sua vida por valores espirituais e, sobretudo, religiosos, então tudo adquire um sentido, uma razão. O efeito do sofrimento muda desde que se reconhece que não é uma realidade sem nome, mas uma presença de Deus operando, em nós e no mundo, “grandes coisas”. Nas palavras de João Paulo II “o sofrimento é daqueles pontos em que o homem está, em certo sentido, destinado a superar-se a si mesmo e chamado, de modo misterioso, a fazê-lo” (Salvifici Doloris). O sofrimento pode ser vivido com resignação ou, então, atribuindo-lhe um sentido, um valor. A experiência confirma que, muitas vezes, o sofrimento pode, para além do mais, constituir um factor de relativização das coisas, de humanização e de solidariedade. Na valorização do sofrimento encontra-se o único caminho para fugir da sua força demolidora. A compaixão permite mais saúde, mais crescimento interior, quer para quem sofre quer para quem está mais próximo, habitualmente a família. É assim que podemos afirmar, talvez para espanto de alguns, que a existência do sofrimento não só é compatível com relações humanas saudáveis, designadamente na família, como pode ser a causa da saúde das relações!! (Malta, 2003). Como refere Grandi (1994) no seu livro “Più cuore nelle mani”, “Devemos ver e tratar de Cristo no irmão doente. Só em Cristo e por Cristo (através de Cristo), a dor humana adquire um significado, tornando-se um bem..., na medida em que é útil, seja para quem sofre em união com Cristo, seja pelos Outros (pela salvação do Mundo)”. Nas sábias palavras de Frankl (1978, p.32) “Nenhuma situação da vida é, de facto, desprovida de sentido. Isto quer dizer que os mesmos elementos que parecem carregados com qualidades negativas, como é o caso da trágica tríade da existência humana – sofrimento, culpa e morte – pode ser sempre transfomada numa vitória, num autêntico serviço, logo que sejam objecto de uma atitude e de uma formulação correctas”. É, pois, fundamental, a liberdade interior de cada pessoa que torna a vida cheia de sentido e de finalidade e que permite, designadamente, transformar a dor em serviço. Lukas (1982, p.134), também psicoterapeuta, afirma: “Nenhuma dor pode aniquilar o homem que Que sofrimento? Que morte? 49 está disposto a buscar o sentido dessa dor... Esta é a resposta que devemos dar ao doente que se nos confia” . Para Frankl (1978), o pedido da eutanásia é um pedido de anulação voluntária da própria vida, do próprio eu. Dizer que a vida não tem mais sentido é dizer que a própria pessoa não tem mais sentido. Assim, a mensagem deverá ser: “Não é verdade que a tua vida não tenha mais sentido; não estás capaz de o encontrar e eu compreendo-te. Mas a tua vida, mesmo nestas condições, tem um sentido. Porque tu tens um valor que não depende do teu estado: tens valor porque és tu próprio. Continuarei a estar junto de ti e a ajudar-te; e continuarei a tentar ajudar-te para que possas encontrar o teu sentido e o teu valor até ao último momento. Simplesmente porque gosto de ti.” O sentido da vida encontra aqui, no amor, a sua última inspiração. Na experiência de amar ou de ser amado por a(A)lguém. Como escreve João Paulo II na Redemptor Hominis, n.10: “O homem não pode viver sem amor. Ficaria incompreensível para si próprio. A sua vida ficará sem sentido se o amor não lhe for revelado, se não encontrar amor, se o não experimentar e se o não fizer por si próprio, se não tiver uma vivida participação nele.” Na nossa perspectiva cristã, a vida não acaba, apenas se transforma. A morte é, assim, um elo necessário, uma porta de entrada na Vida. Bibliografia Alves, G., Carvalho, M. & Baptista, A. (1999) – Estudo das características psicométricas de uma escala de depressão, ansiedade e stress em jovens adultos. Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. American Psychiatric Association (1996). DSM-IV-Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, Lisboa: Climepsi. Angerami-Camon, V. (org.) (2001). Psicossomática e Psicologia da Dor. São Paulo: Pioneira, Thomson Learning. Associação dos Médicos Católicos (1988). Da vida à morte. Gráfica de Coimbra. Beautrais, A.L. (2003). Suicide and serious suicide attempts in youth: A multiple-group comparison study. American Journal of Psychiatry, 160 (6), 1093-1099. 50 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo Boss, P. (2002). Family stress management: A contextual approach, (2nd Ed). U.S.: Sage Publications. Erikson, E. (1968). Identity, youth, and crisis. New York: WW Norton Frankl, V. (1978). 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São Paulo: Pioneira, Thomson Learning. www.spsuicidologia.pt Maria Teresa Meireles Lima da Silveira Rodrigues Ribeiro Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa Instituto de Ciências da Família da Universidade Católica Portuguesa 30 de Outubro de 2004 A DESCIDA AOS INFERNOS DA HUMANIDADE Isabel Carmelo Rosa Renaud Ninguém gosta de ser «o mau – ou a má – da fita; decididamente, não é agradável falar do mal, das coisas feias e dos comportamentos desviantes. Se não se tratasse de uma muito séria Semana Inaciana, iria propor que passássemos imediatamente para a conferência seguinte, a do Padre Vasco, que de certeza trará aportes positivos e mais elucidativos sobre a vivência da nossa condição cristã. Mas é preciso resistir à tentação, diz Santo Inácio após tantos outros; portanto, irei, pelo menos com um olhar teórico, acompanhar a descida aos infernos do mundo contemporâneo. Uma outra tentação inicial para escapar ao nosso tema consistiria em projectar um olhar estetizante e distante sobre o mal, como se este não nos afectasse. Por exemplo, na leitura da Divina Comédia, a descrição da descida aos Infernos pode não ter muita piada, pelo menos quando se trata de descrever as misérias que assolam o nosso mundo, mas o encanto literário faz-nos esquecer que são homens e mulheres que sofrem. Do mesmo modo, nos tímpanos dos Pórticos das Catedrais medievais os tormentos do Inferno tinham mais graça que as procissões celestes, pelo menos do ponto de vista iconográfico, como se o movimento desordenado e caótico da queda no inferno suscitasse mais a nossa curiosidade sorridente que o desfile calmo e majestoso dos eleitos para o céu. É preciso portanto não ceder à tentação da arte ou da literatura quando se trata da descida aos infernos. Isso não nos impede todavia de destacar a força do simbolismo dos infernos. Espontaneamente colocamos o inferno debaixo dos nossos 54 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo pés; São Miguel domina o diabo imobilizando-o no chão com a sua lança e São Jorge vence o dragão deitado por terra. O mal é mais que uma descida, ele é uma verdadeira queda, que nos faz cair nas profundezas tenebrosas do universo. O nosso propósito consiste em tentar compreender os nós malignos que tornam homens e mulheres do mundo contemporâneo reféns de si próprios. A figura sob os auspícios da qual podemos colocar esta apresentação será o preso do Fédon de Platão, o homem que se põe a si próprio as correntes, ou o homem de Gerasa... do Evangelho de São Marcos. As figuras simbólicas dos infernos, da queda, da imobilização no chão, das correntes ou da prisão apontam para uma realidade exactamente inversa à da criação: o ser humano que se torna presa do mal perde a capacidade de se endireitar, de manter a sua força vital, de exercer a autonomia da sua liberdade. O conceito para o qual todas as imagens simbólicas reenviam é o de alienação. A alienação é uma vicissitude ou um processo pelo qual o ser humano se torna outro (alienus), perde a «sua» própria identidade, torna-se «alheio» a si próprio, como se se tornasse estrangeiro. A alienação implica assim uma dependência de tipo patológico. Existem com efeito dependências saudáveis, necessárias, que promovem a autonomia. Mas a alienação é uma não-independência, là onde se estaria à espera do contrário; é por isso que entra no campo daquilo que gera uma passividade indevida, assim como uma forma do sofrer que, em muitos casos, é sofrimento real. A nossa descrição das alienações seguirá uma progressão, partindo das alienações ainda subtis e não necessariamente dramáticas, para descer como que em espiral para os níveis mais trágicos das dependências mortíferas. Distinguimos assim quatro modos de dependências. 1. Primeiro nível. O espaço e o tempo Vivemos no espaço e no tempo; não se pode dizer exactamente que dependemos deles, porque esta dependência é tão constitutiva A descida aos infernos da humanidade 55 que faz parte da nossa identidade. As dependências que procuramos circunscrever provêm de iniciativas do agir humano e não das condições de possibilidade da sua vida biológica, mental ou espiritual. Como é que então o tempo se pode tornar lugar de alienação? Conhecemos pessoas que nunca vivem no momento presente; ou estão no passado ou no futuro, ou nostálgicos dos tempos já vividos, ou sempre à espera daquilo que ainda não está presente. E mesmo se estivesse presente o que desejam ver surgir, não estariam satisfeitas e iriam ainda projectar-se para o futuro. Na verdade, esta maneira de viver no futuro consiste numa permanente fuga do presente, fora do presente, uma incapacidade de viver este mistério do instante actual que vale por si; o presente existe evidentemente em relação com o passado, no qual se dissolve permanentemente, e com o futuro que anuncia – a fenomenologia lembra-no-lo de todos os modos possíveis, mas a nossa existência decorre fundamentalmente no presente e não no futuro. A droga de que falaremos mais abaixo é, à sua maneira, uma fuga do presente pelo refúgio numa alucinação que desrealiza o presente. O espaço pode também ser «lugar» de alienação, embora em formas menos frequentes. Há pessoas que não estão bem em sítio nenhum, o que gera a desvalorização do lugar onde se habita e suscita uma permanente mobilidade. É uma espécie de hipercinetismo psicológico e moral. Deste ponto de vista os conventos contemplativos perceberam um dado importante: a clausura significa hoje, já não a protecção contra as pessoas ou os invasores de fora, mas a fé na possibilidade de viver o essencial da vida sem necessidade de viajar, de sair permanentemente do convento, sem necessidade de fazer projectos para um futuro espacio-temporalmente diferente do presente. O sentido da vida contemplativa não pode ser encontrado fora desta valorização do momento presente, do hic et nunc no qual se pode realizar o encontro com Deus. A vida contemplativa deve ser, deste modo, um acto de fé na vivência do momento presente no lugar sempre actual. 56 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo 2. Segundo nível. As patologias do desejo e as alienações subjectivas Os traços mais fundamentais do ser humano são os que podem dar origem às maiores distorções. 2.1. Quanto mais constitutivos forem os desejos no homem, mais patológicos serão os seus desvios, quanto mais nobres as tendências da realização humana, mais degradantes se tornam as suas perversões. É por isso que as formas mais comuns do desejo humano tomam muitas vezes contornos aberrantes; paralelamente à realização saudável dos desejos ou no seu lugar introduzem-se perversões que constituem autênticas alienações. Os bens materiais são necessários à nossa vida e é o dinheiro que lhes dá acesso. Mas o dinheiro, que não é nem bom nem mau em si, que não se pode portanto considerar em si como maldito, pode pelo mau uso que fazemos dele tornar-se fonte de alienação. Se se perguntasse a grandes empresários o que é que move o mundo, talvez respondessem que é o dinheiro. Aparentemente poderiam ter razão, dum ponto de vista superficial, mas será que o dinheiro traz a felicidade? Pode contribuir para ela; a ligação do dinheiro com a felicidade é mais perceptível quando ele faz falta; mas a sua presença, por si própria, está longe de tornar as pessoas felizes. É preciso contudo uma vida eticamente muito saudável para não pôr a sua felicidade no dinheiro, na acumulação de bens materiais, casas, carros ou mesmo nos bens materiais ligados aos cuidados de saúde tais como tratamentos especiais etc. Onde está a nossa felicidade, onde é que ponho a minha felicidade? Esta questão coloca-se em todas as idades, e não é apenas na juventude ou no princípio da terceira idade que a questão tem a sua pertinência. Ora, existem tantas pessoas à nossa volta que correm quase exclusivamente pelo dinheiro, pelo bem estar material. É verdade que o bem estar material é agradável, que permite o acesso a bens culturais, a viagens, etc. Mas existe uma linha quase invisível, no nosso coração, que marca a fronteira entre um saudável desejo A descida aos infernos da humanidade 57 de dispor de bens materiais e a crispação alienante sobre o dinheiro, crispação que se transforma muitas vezes em obsessão. Esta alienação não precisa de muitos comentários, mas sabemos que se comunica do plano individual para o terreno empresarial. As formas de alienação correspondentes modificam então a relação entre a vida profissional e a vida privada: por exemplo, os jovens que trabalham em bancos, em empresas transnacionais têm tanto trabalho que já não têm tempo para a vida de família. Novas formas de alienação tão subtis como graves nascem desta transformação das condições do trabalho. São o resultado longínquo do predomínio do ter sobre o ser. Ouve-se muitas vezes dizer que quem não tem nem dinheiro, nem poder, nem notoriedade social ou intelectual não é capaz de influenciar fortemente o curso da história. Noutros termos, o poder que a maior parte dos homens cobiça vem dessas formas do desejo, desejo de ter, de dominar, de ser reconhecido. Será que o que uma pessoa vale depende do poder que lhe vem da sua posição económica, social ou política? Para nós a resposta negativa é evidente; o valor da pessoa não lhe advém do poder que se mede pela quantidade de indivíduos que dependem dela. Mas nem todos pensam a mesma coisa e, na perspectiva do poder, o «peso» de uma pessoa depende da sua capacidade de influenciar ou orientar o curso das instituições e das actividades humanas. Aí reside uma nova forma de alienação: a mulher ou o homem que se deixa cativar pelo poder exercido sobre os outros acaba por tornar-se dependente dele. O poder aliena quem se nutre dele ou tira dele a substância íntima da sua existência. Por ser muitas vezes inconsciente, esta atitude não deixa de ser alienante. Outras formas de dependências são mais frequentes ainda. O desejo de ser conhecido e reconhecido é um corolário da tese filosófica da intersubjectividade. Não vivemos isolados e precisamos de sermos valorizados pelos outros. Valorizar os outros é um dom que eticamente podemos e deveríamos reservar-lhes. Mas a patologia deste desejo, que Kant denunciou também na sua Antropologia (1798), provoca – principalmente nos Mass Media assim como no mundo universitário ou no mundo da cultura – tropelias geradores de 58 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo conflitos, invejas e recalcamentos profundos. Uma ânsia pelo êxito social corresponde, a este nível, à ganância na gestão do dinheiro tal como ao frenesim pela conquista do poder. O que nos impressiona neste espécie de dependência fanática e quase mórbida é o divórcio entre a aparência do rosto exterior com o qual a pessoa se apresenta assim e a pobreza narcísica da sua interioridade. A beleza do rosto, eventualmente jovem, deixa de ser, como compreendia Levinas em relação a todo o rosto, o sinal do reenvio para uma riqueza interior e invisível, o sinal do Infinito. A única riqueza humana é então – do ponto de vista da ética concreta – a superficialidade das aparências. Vivemos num mundo de imagens e de estereótipos, por exemplo os da televisão, de tal maneira que as imagens externas da felicidade se substituem à própria felicidade. Esta alienação é deste modo sinónima da dependência da imagem externa, na qual se julga, erradamente, que reside todo o êxito da existência. Tantas vedetas do mundo do espectáculo ou do entretenimento caem na depressão, no álcool ou no suicídio, quando, por contraste ao seu êxito social, se lhes torna perceptível o vazio da sua existência mundana. Onde se encontra, pois, a força do espírito? As grandes configurações do desejo, desejo de ter, de dominar e de ser reconhecido, são os lugares por assim dizer privilegiados das grandes alienações humanas, por quanto se possa falar aqui de privilégio, no sentido negativo do termo. 2.2. Existem contudo ainda formas diferentes de dependência que se deixam abordar numa outra perspectiva. Podemos denominá-las dependências dos sentidos, dos órgãos sensoriais. Múltiplas são as formas de alienação que elas delineiam, estando a seguinte enumeração longe de ser exaustiva. *As patologias e dependências do olhar acabaram de ser referidas a propósito do desejo de êxito social. As variantes destas dependências são contudo centrífugas. O culto do corpo belo, sempre jovem, que necessita não só de talassoterapia, mas de cuidados permanentes desde a juventude, manifesta também o triunfo da exterioridade A descida aos infernos da humanidade 59 sobre a interioridade. O corpo torna-se assim um autêntico objecto de culto, como se uma viragem cultural, verdadeiramente dialéctica, nos tivesse feito passar do antigo recalcamento das inclinações e desejos do corpo para uma adulação de tudo aquilo que outrora – isto é, há décadas ou séculos – convinha reprimir. Esta insistência social quase obsessiva sobre o culto do corpo, não será ela uma forma de alienação? O aparecer que se celebra já não é somente o do rosto, mas de todo o corpo, embora, nesta celebração, o corpo ainda permaneça largamente desconhecido na sua função mediadora. Pois, o corpo é mediador da nossa expressão, do nosso ser profundo e espiritual. É de recear contudo que ao tornar-se objecto de atenção exclusiva chegue rapidamente a perder esta função de reenvio, de mediação; acaba então por não significar nada senão a superficialidade da sua pele e a objectivação de um rosto inexpressivo. Situada num grau de alienação mais profundo do olhar encontra-se a pornografia. Esta gera uma dependência, subtil ou acentuada, na qual a força erótica provindo dos corpos é brutalmente objectivada. O risco maior da pornografia reside na separação que se instaura progressivamente entre o corpo objecto de prazer e o corpo expressivo de uma interioridade envolvida no mistério da pessoa. A pornografia na Internet, em determinadas revistas ou filmes contribui para bloquear o olhar no corpo-objecto, vedando às vezes dramaticamente a possibilidade do encontro com o outro enquanto pessoa. Nos casos extremos opera à maneira de uma droga em virtude da dependência que instala no olhar. * Outras são as alienações do ouvido. Podemos perguntar se a atracção que o ruído, a omnipresença das músicas da rádio, os ritmos atordoadores e ensurdecedores das discotecas exerce sobre os nossos contemporâneos não significa uma incapacidade de aguentar o silêncio e a solidão. Nesta era da globalização a fuga para dentro dos decibéis é tão característica de uma determinada cultura nivelada por baixo que o fenómeno não parece meramente inofensivo. Revela talvez que o ser humano de hoje não aceita facilmente acompanhar o silêncio das lentas germinações, a solidão na qual se pode ouvir o 60 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo eco de uma palavra mais profunda, a lentidão que educa a paciência e deixa o tempo realizar a sua obra. Confundimos tantas vezes o movimento externo com a vida. É verdade que a vida é movimento, em todos os sentidos da palavra, o que inclui evidentemente o movimento físico, tal como se pode verificar na turbulência das crianças pequenas ou admirar na dança. Mas o movimento não é só exterior. Ora, é no atordoamento sonoro que tantas pessoas procuram encontrar a vida, como se o ritmo externo sentido à flor da pele fosse a única maneira de ouvir as vozes mais profundas do silêncio. Malraux evocava «as vozes do silêncio», metáfora essa que nos permite compreender que é só das profundezas de um certo silêncio que podemos ouvir ressoar determinadas palavras. Pensemos nas palavras ricas que são sinais de vida, que solidificam a confiança, que abrem ou reabrem o futuro, será que é no barulho que se fazem ouvir? Mas se tal não é o caso, o refúgio no barulho assemelha-se a uma conduta de fuga que não tarda a ser uma nova alienação, dependência subtil e talvez espiritualmente mortífera. * Existirão alienações do toque? Pensemos no gesto de uma enfermeira, de uma médica que tem a arte de tocar o doente, de ter com ele um contacto cheio não só de saúde física, mas de delicadeza. Face a este toque, percebemos que não é fácil tocar com respeito e sensibilidade. O toque exige uma arte, quase comparável à arte de «tocar» piano, violino, como se fosse o instrumento que revelasse a sensibilidade do próprio artista. Mas o toque pode denotar o «tocar» que se quer apropriar do objecto; para determinadas maneiras de tocar, não há senão «objectos» tocados, no sentido em que este tocar objectiva tudo aquilo com o qual entra em contacto. Conhece-se o livro de Veldman sobre a haptonomia, esta ciência que mostra as riquezas e maravilhas que o toque pode operar. O autor deu como subtítulo à sua obra «ciência da afectividade». O toque como mediação da afectividade, não será precisamente uma verdade que nos faz compreender de modo reactivo todas as alienações que o toque irrespeitoso pode suscitar? Somos mais uma vez reenviados para a compreensão do corpo como expressão de uma interioridade indizível. A descida aos infernos da humanidade 61 * Não é necessário erguer exaustivamente o paralelismo entre os órgãos dos sentidos e as alienações mais frequentes. O gosto é também um dos cinco órgãos dos sentidos, com as dependências que já suspeitamos. Aqui não há dúvida que reinam também fugas e dependências múltiplas. Ao lado de pessoas que passam necessidades de fome, quantas outras não existem que se tornaram incapazes de uma certa austeridade em relação ao estilo gastronómico da vida? Se a obesidade excessiva está a tornar-se num mal endémico nos Estados Unidos, mal que está a invadir pouco a pouco os nossos países, a razão não se encontra somente no excessos vitaminados com os quais os produtores americanos enriquecem todos os alimentos! Na verdade não se trata somente de fazer uma auto-crítica doentia; quem não gosta, com efeito, de um bom almoço ou jantar num restaurante atraente? O mal não está aí; a questão portanto é mais profunda e subtil: como é que conseguirei ser dono de mim próprio se nunca sou capaz de «dizer não» em face de mesas perfeitamente recheadas? Como é que poderei viver a solidariedade se não faço passar o outro diante de mim, se não «gosto» dele de modo quase prioritário? O «gostar» português, contrariamente às outras línguas, tem precisamente esta particularidade de se referir ao gosto que saboreia assim como ao gosto enquanto forma de amor que implica amizade ou afectividade. Poderia ser no pano de fundo do «gosto» pelas pessoas que o «gosto» gastronómico deveria inscrever-se. Aliás, é o que acontece espontaneamente nas famílias saudáveis. Mas esta saúde não se faz sem exigir uma certa disciplina na atenção ao outro. 3. Terceiro nível. As patologias sociais e as alienações objectivas O terceiro plano das alienações coloca-se na interferência entre a sociedade e a existência de cada um de nós. Ao falarmos desta vez de alienações objectivas, não queremos dizer que tais alienações não nos atingem também directamente, mas que a sua origem se situa primordialmente no campo das relações sociais, isto é, da repercussão de 62 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo múltiplos condicionamentos sociais sobre os nossos desejos. De certo modo, essas patologias são suscitadas em nós por um desejo de mimetismo relativamente às solicitações de que não temos a plena iniciativa. Estas formas enxertam-se nos desejos fundamentais que já considerámos como desejo de ter, de dominar e de ser reconhecido. Mas sob o impacto do apelo da sociedade surgem novas formas de alienação. A mais evidente é o consumismo. Este está na linha directa do «desejo de ter». Mais uma vez é oportuno lembrar que não podemos cair num maquiavelismo simplista; é bom ter uma máquina de lavar, um televisor, um gravador, etc. Quando começa o consumismo? Por um lado quando o interesse pelos objectos que a sociedade oferece se torna insensivelmente prioritário sobre o interesse pelas pessoas. O mimetismo social contém um risco de alienação: se todos os jovens têm jeans de corte baixo – deixando arejar o umbigo – o jovem que não os possui sente-se frustrado. Se muitos adultos têm um telefone da segunda geração, ou daqui a pouco tempo, da terceira, cresce a necessidade de ter também um portátil semelhante. O problema não se situa primordialmente nos objectos, mas nas dependências sociais que o seu aparecimento faz surgir. Se a economia vive do consumismo, a nossa liberdade interior não se mede pela dependência que este gera. Os prazeres ligados à sexualidade podem ser também fonte de alienação. Esta observação é evidente e toda a gente o sabe, mas é estranho que este saber não contribua a melhorar a situação. É quase o contrário que acontece. Não devemos contudo confundir a força da atracção sexual, particularmente ardente na juventude – entre parênteses, quando olhamos à nossa volta poder-se-ia perguntar até que idade dura a juventude! – com a forma de alienação sexual que nos ameaça pela insistência dos recados publicitários que nos são transmitidos ou pelos modelos de comportamentos veiculados pelas telenovelas e outros meios culturais. «O Código da Vinci» parece inscrever-se na linha destes pseudo-modelos comportamentais. Do ponto de vista do equilíbrio sexual, não parece exagerado afirmar que somos todos frágeis. Esta fragilidade é então explorada como meio para fins lucrativos, de tal modo que tudo o que implica a sexuali- A descida aos infernos da humanidade 63 dade «se vende bem». O preço pago não é infelizmente meramente financeiro. Existe uma certa hipocrisia da nossa sociedade que parece continuar a celebrar a beleza sentimental do casamento e ao mesmo tempo não só aceita, mas considera normal e quase recomendável o uso da sexualidade desarticulada de todo o projecto de vida. Quem assiste a determinados programas televisivos dedicados à sexualidade obriga-se a ouvir afirmações que são aberrações e enormidades do ponto de vista educativo, ainda que provenham, não raras vezes, de psicólogos profissionais aparentemente bem instalados na nossa praça. Não se trata contudo de cair na facilidade que consiste em denunciar, do alto da nossa idade eventualmente já adulta, as perversões sexuais da sociedade. Mas é preciso ter a coragem de reconhecer que o equilíbrio na vivência de uma sexualidade saudável não é nem frequente nem atingível sem esforço. Pensar o contrário é talvez a via mais segura de preparar uma nova dependência alienante. Nas últimas décadas desenvolveu-se um novo tipo de alienação, a carreira. O que é que não se sacrifica pela carreira? Com estas palavras não contemplamos aqui o duro e louvável esforço de tantos jovens à procura de emprego, após a conclusão dos seus estudos. Não falamos dos sacrifícios que se deve aceitar muitas vezes ao encontrar um trabalho num lugar distante da residência. Evocamos mais exactamente o caso das pessoas que foram levadas a negligenciar a sua vida de família por causa da ambição profissional. Ora, elas nem sequer têm toda a responsabilidade por esta situação, pois foi a própria lógica da empresa que as empurrou nessa direcção. Na era de globalização e numa época em que recua a estabilidade de emprego, são obrigadas a trabalharem quase dia e noite para manterem o seu lugar profissional. Coloca-se então a difícil escolha entre vida privada e vida profissional, entre a vida de família com a atenção aos mais próximos e a corrida para a promoção na carreira. Cada jovem licenciado encontra hoje, de modo mais crucial que antes, o desafio de conciliar a vida familiar com a vida profissional. Onde encontrarão a força de não ceder a uma dependência unilateral, a qual se transformaria rapidamente numa alienação unilateral? O que 64 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo está no horizonte de uma dependência profissional excessiva é o esvaziamento da pessoa, a sua incapacidade de se reencontrar consigo própria quando acaba o trabalho. O benefício que se traduz em vencimentos bastante aliciantes reverte-se em malefício, no malefício de uma pobreza cultural e espiritual. As solicitações da vida social são responsáveis por outras formas de pobreza. Quando se mede o vazio de largos sectores da televisão, o embrutecimento ao qual levam tantos programas de entretenimento, compreende-se que, paralelamente a uma técnica capaz de realizar maravilhas, a nossa cultura ilustra a «era do vazio», já várias vezes denunciada. Se a perda de tempo fosse somente pontual, ainda poderíamos satisfazer-nos com a ideia de podermos recuperar o tempo perdido. Mas a perda de tempo é perda de espírito. Assim como a falta de ginástica nos enferruja, do mesmo modo a ausência de treino para as actividades susceptíveis de conferir um conteúdo rico à nossa existência instala-nos numa mediocridade que, em termos objectivos, não deve afastar-nos muito da espiritualidade do homem de Neandertal – se pusermos entre parênteses a diferença devida ao bem estar material que caracteriza a nossa civilização. A nossa cultura arrisca-se então a perder pouco a pouco a sua alma, pela superficialidade na qual se instala. Com certeza as aparências estão sempre salvas; mas é precisamente o mundo das aparências que esconde o vazio, isto é, que se torna o único conteúdo quando as aparências não remetem para a interioridade esperada. Talvez esta avaliação seja excessivamente dramática; acrescentaremos portanto que o ser humano sempre conseguiu enfrentar os desafios que se ergueram no caminho da sua realização. Oxalá que seja verdade, embora o preço a pagar por causa do vazio pareça cada vez mais alto. 4. Quarto nível. As patologias globais e as alienações mortíferas No seu livro Testemunhas da esperança, o arcebispo vietnamita Nguyen van Thuan faz um retrato dos progressos e das misérias A descida aos infernos da humanidade 65 do nosso planeta. Comentando o tema «esta terra dolorosa», ele enumera as pragas contemporâneas. «No meu trabalho quotidiano – afirma –, verifico que inúmeros povos sofrem por serem marginalizados e descriminados e não ser respeitada a sua dignidade humana. Há muitos “Lázaros” à mesa dos ricos, angustiados pela pobreza e insegurança sanitária e cultural». Segue então a lista das estatísticas de 2000 relativas à pobreza segundo o Banco Mundial. Continua então: «E a pobreza gera outras chagas: a prostituição que abrange 500.000 mulheres, apenas na Europa ocidental; o tráfico da droga entre crianças; a violência e o crime. A falta de trabalho está na origem de muitos suicídios de jovens desesperados». Após uma referência à dívida externa dos países da África sub-sariana, evoca a insegurança cultural. «Uma imagem especial da pobreza é a insegurança cultural. Em 1977 mais de 850 milhões de adultos eram analfabetos e mais de 260 milhões de crianças eram excluídas das ecolas primária e secundária. E mais ainda: o comércio ilícito de droga e armas e a circulação de dinheiro sujo são também causa de guerras. Entre 1989 e 1998 houve 81 conflitos armados: 3 entre Estados diferentes e 78 civis. Milhares de rapazes com 14 anos apenas foram mobilizados à força e enviados para a guerra como soldados. Muitos morreram, outros ficaram deficientes, outros ainda habituaram-se ao ódio, à violência, aos massacres.... Vem-nos à lembrança o Monte das Oliveiras, em frente da cidade de Jerusalém. Nesse lugar «Dominus flevit» (o Senhor chorou) em presença da sua cidade». Esta descrição, como tantas outras, constrói um retrato bastante objectivo da situação do mundo, retrato provavelmente ainda insuficiente no seu elenco das vertentes negativas das sociedades actuais. O peso destas desgraças é tal que poderia levar-nos a um profundo pessimismo, fazendo-nos perder a alegria de viver. Mesmo sem chegarmos a este ponto, a tentação consiste em refugiarmo-nos nas pequenas alegrias diárias, fazendo talvez a política da avestruz como autodefesa contra o peso das culpas e dos sofrimentos dos seres humanos nossos irmãos. Mas antes de terminar convém também lançar um olhar lúcido nas alienações mortíferas que nos circundam de mais perto. O papa 66 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo João Paulo II falou de uma cultura da morte. Referia-se ao aborto, à eutanásia em particular. É verdade que nem todos os sinais da nossa cultura se orientam para a morte, mas muitas das nossas alegrias recebem a sua coloração mais do futuro que do passado: pensemos na alegria que se manifesta em geral no princípio de cada novo ano civil e que, em geral, para não se esbater, deve esquecer o balanço do ano anterior. Teremos que repetir com o Qohelet «Vanitas Vanitatum, vaidade das vaidades [isto é, suprema vaidade], tudo é vaidade»? E a nossa interrogação volta à carga: porque esta atracção pelo vazio, pela superficialidade, pela ausência de sentido, pelo isolamento de si próprio do ser humano, pela atracção para o nada, pela resignação fácil? Não será que recebemos uma mensagem de paz, de alegria e de dinamismo, uma palavra libertadora, palavra que nos permitiria, se tivéssemos fé como um grão de mostarda, deslocar montanhas? No nosso mundo permanente à beira do abismo – e não iremos comentar as outras alienações mortíferas tais como o álcool, a droga, a pedofilia, a poluição da natureza – somos contudo levados por uma esperança, talvez mais forte que a morte. A esperança de ver nascer uma aurora nova para o nosso mundo, um novo princípio, uma reviravolta susceptível de evitar as catástrofes de que os profetas de infelicidade nos garantem a chegada inevitável. De onde nos pode vir esta viragem súbita, onde enraizarmos esta esperança que ainda não morreu no nosso coração? Um filósofo como Heidegger, no fim do seu estudo sobre a Essência da Técnica, via esta abertura na arte, citando o poeta: «là onde está o perigo, là também cresce aquilo que salva», «o homem habita em poeta esta terra». Mas este refúgio na poesia não nos satisfaz fundamentalmente. Precisaríamos de uma nova iniciativa, parecida com uma recriação do mundo, precisaríamos de uma terra tal como saiu genuína das mãos de Criador. Poder-se-ia dizer então que o nascimento de uma criança é o símbolo de uma nova criação do mundo, como se cada criança fosse portadora de toda a esperança do universo. Não é por acaso que Hannah Arendt tanto sublinhou a importância do sentido filosófico do nascimento. Ela tinha e tem razão, ainda que, para esse efeito, A descida aos infernos da humanidade 67 tenhamos que esquecer as crianças que nascem sem futuro. Oscilamos assim entre a esperança viva e a resignação do desânimo. Será que o amor se mostrará tão forte como a morte? Será que haverá um perdão para todo o mal do mundo? Por um lado podemos responder afirmativamente. Porque é que um acto de generosidade ou de amor desinteressado não teria mais força que o egoísmo terrestre? Se o amor verdadeiro existe, ele deve estender as suas ramificações sobre todo aquilo que a terra produziu de mais medonho. E existem à nossa volta provas deste desinteresse, desta fé na existência. Não podemos então apenas limitar-nos à ladainha das alienações subjectivas, objectivas ou mortíferas. Quem é contudo que nos poderá garantir que este amor, de que sabemos que existe à nossa volta, terá esta força de vencer sozinho a maldade e a morte, e não será por sua vez vencido em último lugar? A questão não é só retórica, porque existem pessoas boas, bem intencionadas, que conseguiram mesmo levar uma vida recta e que, à beira da morte, se tornam quase a presa do mais negro desespero quanto ao sentido final da existência. É como se, nesse instante último, não conseguissem triunfar do seu inesperado Jardim de Gethsemane. No fim de contas, o combate entre Eros e Thanatos, entre Vida e Morte, que ocupa um lugar de destaque nas últimas obras de Freud e que este referia como uma verdade quase incompreensível, este combate é aquele que cada morte ilustra, tal como cada nascimento encarnava toda a esperança do mundo. Entregue a ele próprio, o ser humano não consegue perder a sua esperança face a todas as alienações e considera que estas, de direito, não são necessárias, ainda que, de facto, não consiga escapar-lhes. Oscilando assim entre a esperança e o vazio, entre a alegria efémera e a tristeza previsível, o ser humano deseja virar-se para alguém que o ajude a compreender melhor o seu destino, a fazer deste destino a recapitulação de uma trajectória sensata; ele pensa no sonho impossível que se manifeste o sentido pleno da existência, ainda que se não saiba como. Homem ou mulher, ele não perde a sua esperança, mas também não se pode sozinho entregar totalmente a ela. Será que 68 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo lhe advirá uma resposta ao seu sonho, resposta que não poderia ser outra senão a de um dom não merecido e sempre esperado? Se assim for tratar-se-á da graça de um novo itinerário, o itinerário da graça. Mas na sua solidão com os outros o ser humano fica mudo nessa expectativa. A SAÍDA: O AMOR QUE DÁ A VIDA Vasco Pinto de Magalhães, S.J. “A Saída”, é este o tema que me deram. Na problemática geral deste dia, “A descida aos Infernos da Humanidade”, procurámos saídas. Saídas de que prisões; de que morte; de que sofrimento; de que conflito? Como nos dizia a Profª. Isabel Renaud vamos encontrando saídas, às vezes por linhas tortas, encontrando às apalpadelas como quase tudo na vida, pelo menos inicialmente. Há uma Saída, “A” saída? Parece uma pergunta retórica. Se estamos aqui, é porque acreditamos, certamente, numa saída. E, na realidade cada um vai encontrando a saída que a sua própria experiência lhe oferece. – Saída de quê e para quê? Donde e para onde, que saída é essa? Penso que todos queremos e cremos numa “saída”. E eu creio numa saída “teológico-espiritual”. Aliás, as saídas antropológicas, culturais, sociais, e mesmo as saídas com carácter “teleológico” – as que nos lançam para a frente –, só se completam se encontrarem uma abertura à transcendência! Transcender-se é “sair de si”... antes de mais nada. – Mas poderá a pessoa transcender-se sozinha? Fundamentalmente, e já aqui hoje foi dito, não há uma saída completamente autónoma, ninguém sai do pecado e do mal sozinho. Nem apenas basta a convicção de que saímos uns através dos outros, de uma saída heterónoma, ajudados por alguém, por alguma ideologia. A Saída há-de ser, (esta é a minha primeira afirmação), também e necessariamente “teónoma” – por Deus e em Deus. Vou tentar explicar-me. 70 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo 0. “Composição vendo o lugar”: pano de fundo bíblico Comecemos recordando a cena evangélica da reanimação de Lázaro. Se imaginarmos o quadro, esse ícone de Jesus emocionado diante do túmulo de Lázaro, que já cheira mal, diziam, ouviremos o seu grito, a sua ordem, o seu chamamento: Lázaro, sai para fora! É grito, é ordem, é chamamento: “Lázaro, sai! Vem para fora. E vós, desatai-o e deixai-o ir” (Jo 11,43). Há aqui um apelo, uma ordem, e uma Graça de Cristo. Tem de haver uma vontade humana, a de Lázaro, pondo em jogo a sua liberdade. E tem de haver também um serviço da comunidade, o desatar as cadeias. São, pois, três, os intervenientes de toda a saída. Ninguém sai sozinho! E além disso este chamamento à Vida Nova, como uma saída, “chamamento de saída”, não é apenas um acto final, mas está já presente na Criação. Na Criação vista já como Salvação, ordenada ao encontro pessoal com Deus, pois assim se deve entender. Este chamamento perpassa todo o relato bíblico, vai-se esclarecendo e acaba por se plenificar no Novo Testamento com “a saída de Cristo” e a saída que é Cristo. A sua própria Saída (a Ressurreição) arrasta consigo o Universo. É a sua Morte-e-Ressurreição, que nos interpela e nos arrasta, porque “fazemos corpo” com Ele... e tudo se dá na medida em que fazemos corpo com Ele. Se morrermos com Ele, diz S. Paulo, com Ele sairemos à luz. E se apurarmos o ouvido podemos ouvir (em nós) a voz de Deus e dizer a Abraão: “Sai! Deixa a tua terra e vai para a terra que Eu te indicar” (Gen 12,1). E de novo a Moisés: “Sai! Tu farás sair do Egipto o meu povo” (Ex 3,10; 6,26). – “Eu sou o Eterno que fez sair do Egipto o seu povo” (Ex 20,2; Lev 22,33; Deut 5,6). Esta expressão “fez sair” aparece umas 35 vezes no Pentateuco. A ideia e a força central é esta: – a saída... do mal. Afinal é sempre e só disto que se trata. A saída: o Amor que dá a vida 71 Moisés e o povo (já à maneira de Abraão) entram, então, em estado de Êxodo, isto é, em dinâmica de saída, deixando tudo põem-se a caminho. A Saída não é um acontecimento; é muito mais que um acontecimento e mesmo mais que um acontecimento continuado. É a dinâmica da vida: é todo um paradigma de uma Aliança que não é só um contrato. É promessa a concretizar; promessa em realização progressiva. É uma aliança oferecida e conquistada: oferecida por Deus, conquistada por nós, conquistada pela comunidade. É, além disso e de forma característica, uma Aliança perdida e recuperada. Uma longa saída; uma profunda peregrinação para a comunhão. Sair é peregrinar em direcção à comunhão. Sair é deixar tudo por uma comunhão maior. E é este “Êxodo”, a palavra-chave que poderíamos, a partir daqui, tomar como síntese do nosso dia. Êxodo da terra da escravidão para a terra onde corre leite e mel; saída dos “infernos”, saída da situação da escravatura para a terra da liberdade. Êxodo é saída, é passagem, é caminho... e é regresso! É vocação e travessia do deserto. É chamada de Deus e é resposta pessoal, bem como caminho de formação da comunidade. E tudo isto, “sempre balançado”, entre a velha tentação das “cebolas do Egipto”, de ficar no passado, e a conversão ao “maná” que é primícia de futuro. E é assim que, balançando na tentação entre estas duas situações, somos postos a caminhar, numa saída que não há, mas que vai havendo. Finalmente e, ainda de um modo bíblico, podemos e devemos colocar-nos diante da grande imagem – forte ícone de síntese – da família humana toda, figurada na Sagrada Família, que de novo sai do Egipto... e é chamada a regressar à Sua Terra. Levada à terra da escravidão e da exclusão, descida aos infernos por imposição do mal e perseguição dos infernos da inveja e da idolatria do poder, figurados em Herodes, daí é chamada, de novo, ao deserto: “do Egipto 72 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo chamei o meu Filho”, assim diz Mateus (2,15) falando do regresso da Sagrada Família, e fazendo eco à voz de Oseias (11,1): “chamei o meu Filho a sair do Egipto”. E repare-se na pequenina diferença: primeiro, chamei o “meu povo”; e agora, chamei o “meu filho”. Já é uma grande saída, passar de povo a filho. 1. Êxodo, pessoal e comunitário: 3 níveis de um processo complexo O Êxodo, mesmo só na perspectiva mais pessoal, que não podemos isolar de toda essa tríplice participação (Deus que tem a iniciativa, cada um e a comunidade) é um processo complexo do qual não se pode falar de forma linear (como as intervenções anteriores bem demonstraram). Assim, importa considerar três níveis. Há uma primeira saída – um primeiro nível de libertação – que é aquela que deslinda, que desata e discerne a complexidade da vida interior egocentrada. Sair dos próprios fantasmas, sair de si, sair dos conflitos mais/menos patológicos – onde a psicologia tem especial intervenção: a urgente quebra das cadeias e angústias internas de que temos grande necessidade. Há um segundo grau ou segundo nível de prisão-e-saída que é o processo de superação ou de conversão do pecado ancestral, que podíamos chamar, explicando depois o termo, “pecado original”. A saída da condição humana fechada e/ou em conflito, – que é quase o mesmo, mas tem alguma diferença: estar fechado em si ou em conflito. Em conflito, sobretudo na relação, que começa logo por ser “conflito consigo próprio” e exige “sair do desamor”. Usando uma expressão do Santo Inácio, trata-se de “sair do próprio amor, querer e interesse”. Isto é: sair para o outro. Porque há um sair de si e um sair para o outro. Num terceiro nível, por fim, encaramos a saída escatológica, a que nos apontam os teólogos: uma saída global e globalizante. Uma A saída: o Amor que dá a vida 73 saída para todo o povo que agora é filho. Uma saída – que é Salvação – para a Criação, da qual não nos podemos desligar. – Tem a Criação saída? Se nós temos saída, a Criação também. A saída para Deus do que vem de Deus. Dizendo de outro modo: Um primeiro nível, mais “psicológico-espiritual”; um segundo, que é processo de saída antropológica que eu diria “ética”, e um terceiro nível, o de uma saída ou de um regresso “escatológico” do Egipto, um regresso ao Pai. Não é preciso forçar muito para ver que a primeira saída se faz pelo Espírito e pelo discernimento: pelo deixar-se conduzir pelo Espírito de amor e de verdade. Uma segunda saída, tem o seu segredo na comunhão no Filho, na relação saudável com o outro, que nos leva ao Pai. E esta ida para o Pai leva-nos à terceira saída que apela à transfiguração de tudo e todos. Para todos ou ninguém, na globalidade; na globalidade do espaço e do tempo e das pessoas. Do Espírito Santo, no Filho ao Pai: um processo de transfiguração, amorização, da realidade. E são estes três níveis que vão, como veremos, desmascarar as falsas saídas, que tão subtilmente entram por debaixo da pele. Entram na nossa cultura com uma força enorme, mas enganadora, de aparente realização, de aparente desenvolvimento, ou de aparente personalização. Explicando melhor o que pretendo dizer, vou tentar particularizar e explorar esses três ciclos de cadeias, que deviam gerar três ciclos de saídas ou três êxodos, que se englobam uns aos outros e que se completam. Saída psico-espiritual Perante as prisões e infernos humanos de angústia e de mal, consideremos primeiro o ciclo da pessoa fechada sobre si mesma, em si mesma, nos seus complexos, nos seus desequilíbrios, nas suas interrogações nunca satisfeitas, na sua angústia, no seu stress, no seu 74 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo medo – estas coisas de que não há quem não tenha alguma experiência – e, por outro lado o apelo fortíssimo do Evangelho à humildade, podíamos dizer, à aceitação... que, cristãmente, não é resignação. Entretanto convém introduzir aqui um pequeno inciso, porque, creio bem, muita coisa se confunde por não termos adaptado suficientemente a nossa linguagem. Nem àquilo que é prisão nem àquilo que é saída. Estão ou não estão as pessoas desejosas de imortalidade e de ressurreição? Ou já se esqueceram disso? Acontece muitas vezes que quando ouvem de nós, cristãos, a palavra ressurreição, ela não produz eco nenhum, nem faz faísca com aquilo que, no fundo, desejam. Porque se calhar lhes pregámos uma ressurreição não de regresso ao Pai mas de “regresso” aqui à terra, ao espaço-tempo... e que, portanto, não é a transfiguração da ânsia de fundo da humanidade, mas lhes parece mais um apetecível e morno recuperar o perdido. E se assim fosse, seria mais uma ocasião de voltar aos conflitos renovados do que uma porta aberta à verdadeira novidade. Há um deficit da nossa teologia por não ter sabido encarnar, também na linguagem, como em toda a necessidade humana. Até tinha as respostas e as saídas, mas nem sempre as soube comunicar! De facto é real a dificuldade que temos de expor, apelativamente, aos outros a nossa saída, mesmo quando dizemos que já a experimentamos. Voltando ao primeiro nível, ao ciclo da saída para nós próprios, do desentranhar e discernir o conflito interno de cada um de nós, é certo que podemos recorrer a muitos meios: à psicologia, ao psiquiatra, podemos ir ao padre espiritual, podemos ler um bom livro e fazer tantas coisas como por exemplo os Exercícios espirituais!... E Santo Inácio oferece um instrumento muito curioso, um conjunto de Regras, sábias e práticas, para a tal saída como processo de discernimento, de desenrolamento dos enganos sobre si próprio. O discernimento é uma grande porta de saída. Porque, personalizadamente, clarifica as situações e abre caminho. Faz entrar no deserto em ordem à “terra prometida”. E é uma primeira prática desta saída, que não é um momento nem uma magia. Conta ele, St.º Inácio, nas Regras para a 1.ª semana dos Exercícios, três peque- A saída: o Amor que dá a vida 75 nas parábolas, que mostram bem como a pessoa se enrola sobre si própria na costumada “sequência diabólica” do medo, vergonha, confusão. Temos aqui três pólos, três momentos do ciclo da angústia-prisão. O Medo é sempre o lado dramático da dor e do sofrimento. É no medo que está a questão porque torna a dor pensada e sem saída no pensamento, fazendo a pessoa não estar na dor mas no pensamento sobre a dor e no medo crescente que a ela se associa. O medo suscita a Vergonha de mim próprio e das situações, por as tornar fantásticas e fazer desacreditar da sua superação e, assim, de não saber sair e não poder fazê-lo abre a porta à Confusão no crescente fechamento sobre mim próprio pela fuga à relação que se torna ameaçadora. “Ai se soubessem o que eu penso e o que eu sinto! O que fiz! Como é que eu posso dizer isto a alguém? Quem me vai entender? A vergonha, o “fechamento” aliado ao medo gera a confusão. E a confusão tira a visão. Confunde a objectividade sobre si próprio e sobre os outros... A primeira grande prisão nasce e cresce pela falta de objectividade connosco próprios. Então, não sabemos dizer quem somos. Não temos, muitas vezes, capacidade de nos olhar distanciando-nos para nos ver e, depois, admitir que somos mesmo assim! Mas também não “somos assim”, acabadamente, como se devêssemos reduzir-nos a uma definição! A verdade é que estamos sempre em estado de mudança: para ser mais quem somos, isto é, capazes de ser mais. A realidade da pessoa é “estar em aberto”, sem por outro lado se negar que se é... A pessoa é mais do que é! E, portanto, nunca me devo ver limitado, confinado numa experiência estática, que só por isso mataria a possibilidade de sair de mim para ser eu, para ser quem sou. St.º Inácio vai-nos explicando como entrar nessa estratégia interior, num discernimento que devia ser acompanhado pelo afecto, como uma forma de oração no Espírito, como um deixar-se conduzir na via espiritual de tal modo que ao enfocar aquilo que é confuso, possa, cada um, enfrentar os meus medos. Mas só se lá chega através do risco de passar pela humilhação da vergonha. 76 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo É muito bonito este processo de discernimento, que não é auto-suficiente e que põe a “máquina do enrolamento” a funcionar ao contrário. Realmente somos muitas vezes como o caracol: só desenrolando sai da casca. Mas, enrolados sobre nós próprios (e quanto mais pensamos mais nos enrolamos!) vamos do stress à angústia, da angústia que é aperto à cegueira, e desta ao desespero. – Como é que se põe esta “máquina” a rolar ao contrário? Não há solução mágica, nem padre espiritual que saiba tudo e me passe a receita. Rezar com simplicidade e confiança ajuda muito a desenrolar o próprio eu. Mas o que me lança no caminho interior da saída dos apertos e das angústias, começa no enfrentar a realidade como ela é: ver e descobrir por onde é que entra o “gato” na minha vida para, depois, frontalmente, lhe pôr um nome e meter tudo isso nos canais da minha relação corajosa com os outros, e saudável comigo próprio. Faz muita falta conversar com os nossos próprios botões. O que nos “mata” é a relação pouco saudável connosco mesmos. Cai-se na relação mitificada, relação enganadora, feita de alienações, onde eu quero passar por aquilo que não sou, tentando iludir a minha própria confusão. É por isso que os psiquiatras nos ajudam tanto a objectivar, a pôr o preto no branco, a pôr palavras e nomes naquilo que experimentamos. Por vezes caímos na tentação de usar outra palavra para aquilo que – no fundo – sabemos que tem outro nome. Enganos que levam a prisões douradas. No processo interior da verdade, há que detectar e enfrentar “a falha na muralha do nosso castelo”, para redimensionar os fantasmas do desconhecido e assim lhes perder o medo. Ora, isso só acontece plenamente quando saio de mim, arriscando-me a falar, a abrir-me com outro. Temos, então, a sequência: objectivar, admitir, relacionar, integrar. É um processo psico-espiritual, que me leva, do “admitir”, isto é, manter as coisas no consciente sem ter que lhes fugir ou recalcar, à “relacionação” com outras experiências, que me ajudará a “relativizar” e “integrar”. As coisas, as dores e os sentimentos, não desapa- A saída: o Amor que dá a vida 77 recem, mas aprende-se a viver com eles. Viver sofrendo, ou com o sofrimento? Esta é a dijuntiva. É preciso aprender a conviver com o sofrimento. Queremos livrar-nos de todo o sofrimento, mas esse é um novo engano. Não se trata de me livrar de tudo; não se trata de deixar de ser eu; eliminar todas as marcas e traumas como se de repente me pudesse tornar extraordinariamente saudável, quimicamente puro. Trata-se de aprender a viver bem com as minhas patologias. Não é o viver patológico, é viver com as patologias, gerindo-as o melhor possível. E é isto que o St.º Inácio ensina nos Exercícios. A ideia de que devíamos ser logo santos ou que o bom era sermos todos saudáveis à partida é uma das coisas mais insanas do mundo, porque é uma mentira. Saudável é a pessoa que sabe viver com a sua patologia, tendo consciência dela e tomando os remédios necessários. Então, não falemos de saídas pela porta mágica! Falemos de processos de êxodo, de travessia do deserto com avanços e recuos, com tentações, com mistura de desejos de tornar a esconder tudo e andar para trás, e de-vez-em-quando me lançar e arriscar, me encantar com “uma cenoura” lá à frente, com algum “maná” não isento de enganos... E o primeiro passo está na coragem de me pôr em processo, de me pôr em caminho, pobre, humilde, cansado, peregrino com as suas bolhas. A grande fantasia é esperar que a saída caia do céu ou de alguém – como que por milagre. Mas o milagre não é esse. O grande milagre que Deus faz é pôr-me a caminhar; é que eu queira sair; é que eu acredite que a comunidade tem meios e sacramentos de saída. O mundo hoje propõe, (sabemos bem), muitas alternativas, muitas saídas. A “new age”, a cultura “gnóstica” dos nossos dias, propõe caminhos de espiritismo; juntamente com experiências de apaziguamento, ou recorrendo ao “Yoga”, a um “Zen”, por exemplo, propondo-me também que me torne sábio na captação das energias telúricas! Fazem pensar que talvez aí se descubra, finalmente, mágicamente, a harmonia de si próprio. Como que dada de barato; apenas com uns meros exercícios, por fora, que não me obriguem 78 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo a converter! É certo que se pode obter por aí uma boa ajuda, mas não toca no âmago da questão, no “eu” que está doente por falta de Deus; doente por falta de Verdade. Devíamos estar mais alerta para com estas práticas ditas “espirituais”, de moda. Aparecem-nos “bem embrulhadas” em papel de ajuda que conforta e podem até criar condições de oração e de vida interior, mas, depois, não encontrando o sujeito lá dentro, se viram contra nós, mais ou menos a curto prazo. Entregando-me a essas práticas, frequentemente individualistas e apregoando a “paz” do bem-estar por não ter de dar contas a ninguém nem a nenhum valor, posso ir resolvendo alguns problemas de ansiedade, de stress, rendendo-me às energias, (“só vou a casas com energias positivas!”). É capaz de haver alguma verdade nisso; mas a absolutização deste pandemónio, ou destas forças suspeitas, gera um engano profundo na auto-consciência de mim próprio, na verdade comigo próprio, trocando a humildade por uma técnica e um “saber” bem oleado. Saída ético-antropológica Deixemos por agora este nível psico-espiritual e avancemos para um 2.º nível de prisões – libertação, um pouco mais exigente de tratar e que também tem paralelos na experiência inaciana dos Exercícios. Este segundo ciclo tem a ver com o nosso “mal de fundo”, o pecado de fundo, o pecado da natureza humana prisioneira, a que (nem sempre adequadamente) chamamos “pecado original”. Como sair daí? É possível? Ou é também um processo de deserto a percorrer? A questão de fundo está no desejo, no desejo que temos e somos. Ou, pelo menos, passa por aí a revelação da questão. Somos “seres de desejo”, para bem e para mal. Aceitemos por agora esta antropologia de que aquilo que nos define, como dinamismo pessoal e relacional, é sermos “seres de desejo”. E que o problema do desejo está em ser bem ou mal encaminhado. Nada de mal no “ser de desejo”, mas é perigoso! Aliás, o A saída: o Amor que dá a vida 79 mais interessante desta compreensão de nós próprios é que, ainda mais que meros seres de desejo, somos “seres de desejo mimético”, isto é, comparativo. O que direi, a partir de agora, inspira-se nas teses de René Girard, no seu livro “Eu Via Satã Cair Como um Raio”, livro magnífico sobre o problema do mal que, creio bem, pode servir como guia de uma mais profunda reflexão sobre a Condição Humana, num olhar bíblico, reinterpretativo de todas as questões sobre o mal. Realmente no mais fundo de nós há o desejo e é através do desejo mimético que crescemos. A criança cresce vendo e copiando, mimetizando a mãe, o pai, os irmãos. Mas o desejo mimético pode cegar, impedir-me de ser eu próprio e pode fazer-me tropeçar: pode encontrar escândalo. Lembremos o que Jesus diz dos escândalos no Evangelho: os tropeços de violência e de confusão para os mais pequeninos... Então o desejo pode adoecer e tornar-se “mimético-conflitual”, e aí se revelaria o nosso “pecado” mais fundo, que é não podermos sair sozinhos do conflito que nos constitui. O mal não está em que este conflito exista: o “pecado”, aqui, mal não-moral, é não poder sair dele sozinho. Falo de “pecado” no sentido existencial, no sentido situacional, – aqui não é do pecado como acto imoral que se trata, mas da situação humana “que peca”, que é carente – estruturalmente – de amor, que carece à partida de ajuda e de graça. Não é que esteja mal feita; é que não é auto-suficiente. E isto significa que ninguém sai do seu desejo mimético conflitivo sem o amor, sem amar e ser amado! E, por isso, dizia acima, que não há saída autónoma. Sendo esta a condição humana, que não é mal (em si), mas revela, pela ausência, o Deus que lá não está, mas para o qual somos “boca aberta” e apetência. R. Girard faz uma reflexão muito curiosa sobre o 10.º Mandamento: “Não desejar os bens do outro”. Depois de “não mates”, “não roubes”, “não mintas”..., surge “não desejes”! É um grande salto, mas é o que faz a síntese para se ir à raiz de todos aqueles interditos, daquelas interdições. 80 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo E é muito curioso, porque aí é que está realmente o problema! Por vezes, até sem dar conta, estou a desejar, – e fortemente! –, a cobiçar o bem do outro e o bem que é o outro. Como se visse ali a felicidade e, irresistívelmente, a quero: desejo aquilo que ele tem e até o que imagino que ele é. Acontece que chego a desejar os bens ou a coisa que outro tem, estou a cobiçar a felicidade que vejo em quem tem a coisa! Já não estou a competir com quem tem; começo a querer ter o outro e ser o outro. E este desejo mimético doente, despersonaliza-me. Faz-me querer ser o outro (que eu não sou) porque encontro nele, de alguma maneira, a felicidade sonhada, desejada. Enfim, é realmente a coisa mais terrível que nos pode acontecer e a fonte, depois, de todo o conflito e de toda a angústia de onde sabemos que é difícil sair. Sempre os santos e os espirituais nos disseram que as comparações eram más. Nem com os Santos nos temos que comparar: eles são para admirar e não para imitar. É por isso que o desejo comparativo é perigoso; porque transferimos a santidade para eles em vez de buscarmos a nossa. Estamos pois perante uma tentação enorme, a chamada “idolatria do próximo”, que acaba por ser uma idolatria de si próprio. O “Outro” aparece-me realmente como a imagem daquilo que eu poderia ser e que, se assim fosse, era feliz.... No fundo um culto de mim, adorando um “outro eu” que vejo no outro. Resumindo: se por um lado a estrutura de desejo mimético da pessoa humana é aquilo que lhe permite crescer, é também por ele, adoecido, que entram os grandes males. Assim, quando o desejo mimético adoece, cega-se, e não só introduzimos a idolatria do outro, como aparece, em consequência imediata, a violência. E compreende-se, porque na cegueira despersonalizante a Violência surge como a forma de passar por cima do outro, de eliminar o outro para que eu seja eu. Nessa situação, o outro de objecto de desejo passou a ser frontão, que não me deixa passar. Passou a ser bloqueio e fonte de conflito; isto é, escândalo. A saída: o Amor que dá a vida 81 O relato bíblico da morte de Abel por Caim que continua a repetir-se nas nossas histórias, demonstra bem o que se acaba de dizer. Se o primeiro ciclo de prisões-saídas de que falei podia ter alguma coisa a ver com Adão e Eva, enredados dentro de si mesmos, este agora tem que ver com Caim e Abel, com os nós nas relações pessoais. Que cura, que saída para esta idolatria do próximo? É certo que o não aguentar não ser e não estar bem, leva-me a agir com violência, a ter que suplantar o outro, a ter eventualmente que o eliminar e leva à rotura das relações, sendo essa, muitas vezes, a solução que o nosso mundo apresenta. Se analisarmos o que é que acontece nas violências domésticas, ou na escola, no Iraque, ou no desânimo consigo próprio, vemos o rápido recurso à violência. Apesar de tanto aviso – até do bom senso – de que é contraditório vencer a violência pela violência. Mas “quem mas faz, paga-as”... Quando o Outro surge como fonte de mal estar e me violenta, como superar? Ao longo de todo o Antigo Testamento, apesar de ser História de salvação, ressalta continuamente, não só a tentação da violência, mas até a Lei de pagar o mal com o mal, que vai sendo reflectida até chegar a essa norma extraordinária de S. Paulo, de “pagar o mal com o bem!”. Não é uma invenção; é o testemunho de radicalidade de Jesus que é, aliás, a “chave de saída”. Esta realidade da violência não é acidental; é mais do que isso, é estrutural, porque é o modo como funciona naturalmente o desejo mimético conflitual: ele é conflitivo! Claro que há antropologias que tentaram negar isto. Konrad Lorenz, por exemplo, afirma que tudo vem do instinto da agressividade, feito agressão. Mas engana-se, creio eu. Porque a agressividade é uma coisa boa; é a capacidade de responder aos estímulos. E só a desproporção entre o estímulo e a resposta é agressão e violência. Girard, o teólogo-antropólogo que citei mostra que ela vem, não da agressividade, mas do não ser capaz de condividir os bens, e de me cegar diante do bem do outro. 82 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo O nosso mundo foi tentando resolver isto de várias formas, uma delas, típica, consiste em aceitar a lei do poder do mais forte sobre o mais fraco. É esta “lei” que se exorciza, depois, com a invenção do “bode expiatório” e que tem atrás de si uma boa tradição bíblica. Actualmente, aparece em formas muito renovadas. O mais frequente é assumir a violência explicando-a e pensando ultrapassá-la, criando bodes expiatórios, ainda que disfarçados. Na recente questão do Iraque: onde estava a violência instalada: no próprio Iraque? no seu petróleo? nas suas armas? nos E.U.A.? nos interesses europeus, nos franceses ou na Palestina? De acusação em acusação lá foi cada um encontrando seu bode expiatório. E desfocando os problemas se encontra um Maligno, que precisa de ser exorcizado e enviado para o deserto. Há quem pense que assim se resolve o problema da conflituosidade mimética. Assim pensou o A.T. criando o Yom Kipour, celebração (do perdão) que transfere os males do povo para o bode expiatório e o manda morrer longe no deserto. Mas há quem proponha outras saídas. Esta que alguns modernos acham psico-ética, dizendo: afinal é tudo uma falsa questão, cada um tem é que pensar em si próprio! Se o grande problema é e está na relação com os outros, não te relaciones! Pensa em ti próprio! Esta pseudo-saída por um individualismo exacerbado que hoje se vive e apregoa tem a sua raiz numa fuga (para a frente), intelectual e cultural, muito elaborada: acima de tudo o indivíduo (não a pessoa) que se realiza pelo consumo (sem limites), direito que pode justificar tudo. “Se não me serves, nem sequer me confronto contigo, deixo de pensar em ti!” É uma saída por desvinculação! E na nossa cultura aparece expressamente a proposta de erigir uma “nova ética” cujo primeiro princípio é “a realização individual”. Nessa ética não se fala de responsabilidade; os outros são os outros, passem bem…. Há poucos dias num debate sobre “Ética da experimentação animal” um professor, doutor (de que não quero dizer o nome) afirmava peremptoriamente: “É óbvio que não se podem usar as A saída: o Amor que dá a vida 83 éticas antigas, que eram éticas de imposição. Hoje eu vivo e toda a gente devia viver a ética da escolha. Esta ética tem três princípios: Realização individual, Honestidade e Tolerância.” Fim de citação. Não se imagina o subjectivismo oportunista que daqui se segue e pode seguir: tenho direito a que não me incomodes; digo e sigo o que acho; e tu podes pensar o que te apetecer... Há o perigo de procurar uma saída por uma “ética” inglória e desvinculante, transferindo a competição para áreas mais secretas: cada um é que sabe o que lhe convém; para me sentir bem e realizado qualquer meio é válido. Assim se acabaria, airosamente, com o conflito. Mas é a isto tudo que o Evangelho chama o escândalo. Este tropeço na relação com a própria consciência e com os outros instala-se no nosso coração e gera continuamente violência, nas suas formas mais variadas, das mais expressas às mais subtis. E em nome destes princípios a que St.º Inácio chamaria falsas “bandeiras” do inimigo, propostas com “aparência de bem”, se instala dentro de nós a justificação da violência, da mentira, do abuso. Onde pode estar, então, a saída, o êxodo destes “infernos” de 2º nível? – Está no Sacrifício, no verdadeiro sacrifício. Não está no eliminar de um culpado, seja o bode expiatório que for, nem na oferta a Deus de umas quantas pagas e bens, mas na entrega de si próprio, no Sacrificar-se. “Sacri-ficio” quer dizer “tornar sagrado”; e está no olhar para si mesmo como algo sagrado em estado de oferta: fazer de si próprio um sagrado ofertório – que é o verdadeiro sentido do sacrifício. Só supera a doença mimética quem, com humildade, se aceita e entrega a Deus por amor. Portanto a saída do “satânico”, ou seja, do “desejo adversário” do humano está no sacrifício, na Cruz, no Amor adulto. Dizendo de outro modo: “está na comunhão com Cristo pobre e humilde”. Ou, como Jesus nos ensinou, cumprindo-o: está em substituir o bode expiatório, pelo Cordeiro de Deus. Esta é a saída. E esta é a passagem. 84 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo Saída escatológico-teológica Passemos então ao 3º nível, começando por resumir os dois ciclos anteriores encarando-os, agora, sob a perspectiva da culpabilidade ou da culpa mal resolvida. Os enganos-prisões de primeiro nível levam a pessoa a ficar enredada em sentimentos de culpabilidade, carga angustiante, paralizante, introvertida por não reconhecer um Deus de amor que permite que nos aceitemos e, até, das verdadeiras culpas tiremos partido. Já num 2º nível parece (mas é engano!) necessário encontrar um culpado que me livre de quem me faz sombra ou obstáculo. Nestas situações estamos capazes de dar razão a Hobbes que dizia que, no fundo, “somos todos uns lobos uns para os outros”. E começamos logo por nos morder a nós próprios... Aponta-se então a saída da angústia e da comparatividade substituindo os míticos Bodes expiatórios (o eu, o outro ou o diabo) pelo Cordeiro de Deus, pela oferta pessoal, pelo verdadeiro Sacrifício (de Amor); isto é, pela capacidade de nos esvaziarmos à maneira de Jesus Cristo. A dificuldade desta saída está em que, mais do que para perceber, é para experimentar. Só no risco de amor há reencontro consigo próprio que permite a relação e a partilha. Fora disto, em cada outro (e em mim!) não há um “próximo”, mas um inimigo eventual. Então, mesmo os que me são simpáticos são suspeitos e a violência mantém-se à espreita: quem é o próximo que tenho de mandar para o deserto? Na nossa não entrega de amor chegamos ao 3º nível. O 3.º ciclo é o da prisão global, que exige uma saída global. Neste nível a reflexão e a libertação já não é só psico-espiritual, nem ético-cristã, é teológica. Faz-nos entrar na via trinitária que é a de Cristo. E cada um de nós é chamado a seguir a Via do espírito, pelo lado bom do desejo mimético que se encontra no seguimento de Jesus Cristo, paradigma e Caminho (de regresso!) para a Casa do Pai. Depois de Santo Inácio e de R. Girard vou servir-me de Gonzales Faus, na sua obra “A Humanidade Nova”. Este livro pode levar-nos A saída: o Amor que dá a vida 85 a ver em traços largos e profundos, o processo dinâmico do Universo como Criação e Salvação em Cristo. Pensamos e falamos da Criação, tantas vezes, como uma realidade feita, acabada, um cosmos. Mas a Criação está “a fazer-se” e mais que um cosmos é uma “cosmogénese”. E, por isso, não estamos perante um Deus que nos vem salvar da “criação tão má!”, mas de um Deus que faz corpo com esta criação, para que ela se transforme em Corpo e Reino de Cristo que é o seu Fim. Pensar assim pode parecer uma revolução “copérnica” da Teologia. Mas é apenas voltar à teologia, à Cristologia dos Santos Padres, os teólogos dos primeiros séculos. Mais tarde, depois de S. Tomás, fomos levados por uma Soteriologia (tratado da Salvação) que desligou Criação e Incarnação de Salvação. Ou melhor, apresentou a Incarnação ao serviço da Salvação e esta visão trazia consigo um dualismo perigoso, por vezes maniqueista: somos salvos de um mundo mau, de uma matéria má... numa saída quase mágica: Deus aterra e tira-nos daqui pelo caminho da Cruz. Esta forma de ver pode tornar-se mítica. Ora, o que a fé nos diz é que nada do criado é para perder e a salvação não é sair do Universo mas transfigurar o Universo, não é sair do mundo, mas do mundano, do pecado. E Cristo, reafirma S. Paulo, é o primogénito de toda a Criação. A criação faz-se à luz da Incarnação; e Ele, Cristo, não vem só como redentor do mal, vem como Cabeça do Universo. Vem encabeçar o êxodo! Essa é a sua forma de redimir. Numa Incarnação Salvadora assume este Corpo e põe-o em caminho de transfiguração pela sua (e, então, nossa) morte e ressurreição... que leva o Universo ao seu acabamento. Que imagem de Salvação ou de Saída, ou de ir para o Céu, nos ocorre? Ser tirado como por um “anzol” para fora do mundo? A alma a levantar voo deixando o cárcere do corpo? Ou Lázaro a ser chamado (e a receber a graça) para sair do túmulo e “entrar no mundo sem ser do mundo”. Chamados a fazer corpo com Cristo, e com Ele transfigurar o mundo! 86 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo A transcendência é um “mais além”, mas está já presente na nova forma do mundo, no Reino! E porque o Reino começa já no mundo transformado pelo amor, a Saída desejada é processo pascal de transformação do mundo pelo amor. É mais que partir para um outro mundo; é este mundo (feito) outro: Baptizado, cristificado. Recuperar esta teologia da “incarnação salvadora”, tão claramente expressa em S. Ireneu, Justino e outros “padres” da Igreja que deram continuidade às teologias de Paulo e de João corrige a tentação de uma salvação demasiado verticalista, para nos enviar a sair de nós fazendo corpo de salvação na comunhão com os mais pobres, os mais necessitados. Aí está a Porta de saída que Jesus aponta. E a Revelação vem dizer-nos que não só nós, mas toda a criação encontra em Cristo a realização de seu desejo mimético. Este desejo descobre que estamos feitos para Cristo, mais do que para o copiar, para o seguir até à comunhão fecunda. Creio ser disto que nos falam as parábolas do Banquete e a teologia quando diz que Ele vem desposar a Igreja, a Humanidade, fazendo dela o seu corpo fecundo... A cosmogénese torna-se cristogénese, dizia o Pe. Teilhard de Chardin. E Gonzales Faus resume esta Cristologia da Recapitulação, assim lhe podemos chamar agora, em três teses sintéticas. Vejamos. 1ª) Para que haja saída, para que o mundo ande em “estado de êxodo” é preciso considerar toda a realidade como absoluto. Parece uma heresia, mas não é! É que faz parte do Real a relação com Deus! E como já dizia K. Rahner, no mundo está presente um “existencial-sobrenatural”: isso significa que, até pela negativa, o mundo nos mostra que Deus está presente: até pela sua ausência se mostra a Sua presença. E o mesmo em Bonhoeffer: “A ausência de Deus no mundo é o sinal e a forma da Sua presença”. Ou ainda a expressão do P. Domingos Terra: vemos a sua pegada... A realidade é um absoluto porque tem a marca de Deus. Não é o anti-Deus, pois mesmo quando alguém se põe contra Deus está a A saída: o Amor que dá a vida 87 “chamar” por Ele. E o “diabólico” é “não-coisa”, a realidade feita o que não é. O que se afirma é que não há relação com a realidade que não seja relação com Deus em Cristo, ainda que muitas vezes tenha a forma “kenótica”, isto é, num jogo de “vazio”: Deus como que se esvazia para estar connosco, abaixo de nós, a suportar-nos. E a pessoa não o encontra, na sua liberdade, se não se esvaziar do seu ego. 2ª) a segunda tese parece contrariar a primeira, mas segue-se ao parágrafo anterior: A Realidade como maldição. Isto é: só em Cristo se chega à dor do Mundo, à dor de Deus no mundo... É que, realmente, é este mundo concreto que, sem a participação de Jesus Cristo, é a fonte de todos os conflitos. É preciso meter os pés na lama! Na terra! E numa lama amaldiçoada – quando sem amor – que faz parte de nós e grita por transformação. Só é autêntica a relação com Cristo quando adquire a forma de participação concreta em Jesus, nos seus trabalhos e serviços à dor do Mundo que é dor de Deus. E a Incarnação é ir até à dor de Deus no Mundo, pois, de facto, sem descermos aos Infernos – que é o que Cristo faz –, sem agarrar e “fazer corpo com o Mal”, não podemos entrar no processo de Bem. Foi preciso passar na escravatura do Egipto. Foi preciso a Sagrada Família ter lá ido “comungar” do mal e fazê-lo seu, “tomá-lo sobre si” para atravessar depois o deserto. E nós nem as mãos queremos sujar! 3ª) Última tese: Entender a Realidade como Promessa. Isto é, como história; como História de Aliança; como dinamismo; como transformação. A realidade só se entende na medida em que a vemos e apercebemos em transformação, e nós em atitude transformante. Daí que a participação no ser – para Jesus no serviço à dor do mundo, só possa acontecer sob a forma de aposta e de compromisso. Compromisso pela transformação absoluta da realidade, agarrada por baixo, a partir da “lama”, onde Deus fala pela “ausência” em ordem à “mani- 88 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo festação dos filhos de Deus”. Assim ficou expresso – tão bem! – na Carta aos Romanos, cap. 8, 19: chamados à “participação nas dores de parto” deste Universo que está a nascer. A saída é, pois, um “nascer de novo” (Jo 3). E este “de novo” nada tem a ver com “outra vez”. Mas significa “com novidade”. Para uma realidade Nova, de uma nova forma. 2 . Concluindo: Estas três saídas (os três níveis) integram-se e exigem-se umas às outras. E são o grande desmascaramento duma cultura pós-moderna, actual, que pretende iludir a Realidade receitando-nos umas mezinhas, mais ou menos baratas, que nos podem enganar sob a aparência de bem. O Êxodo (saída e regresso...), afinal, é Quaresma da vida – caminho Pascal! – o fim do Carnaval. Logo o 1º nível de saída de si pela Espiritualidade desmascara a pseudo-solução do “espiritismo” e da gestão das “energias” que o supermercado New Age oferece, barato, como “paz”. A curto prazo se percebe a alienação e a fuga. As energias cósmicas e os exercícios respiratórios podem ser complementos, mas não alternativas. Não substituem o amor participativo na dor do mundo; e a tranquilidade desvinculante do outro e da guerra, não é Paz. Nem muito menos os supostos contactos com os “espíritos” podem substituir o discernimento responsável, segundo o Espírito Santo. Há que distinguir conceitos e experiências. Não se nega a importância do bem-estar e do prazer. A tentação (não-saída) é ficar por aí. Mas há que partir em busca da paz e da felicidade. Porque a felicidade é uma luta, compromisso, de morte! O 2º nível de saída, tira a máscara ao Individualismo de consumo e consumista que a cultura New Age promove. Oferece uma “libertação” higiénica apresentada como uma “ética” de não pensar senão no seu umbigo, de auto-promoção pelos valores que “eu acho” e me convêm, para que cada um “tenha espaço” para fazer como quiser, A saída: o Amor que dá a vida 89 usando o método pensado da “violência cirúrgica”... que não se pode dizer que é mentira porque cada um tem a sua verdade. A pessoa de Jesus Cristo desmascara completamente este caminho. A Ética da responsabilidade e do respeito não se contenta com o “política e estatisticamente correcto”. Essa, sim, oferece uma saída humanizante. Mas, o caminho de Jesus inclui o Sacrifício no seu verdadeiro sentido que nos humaniza e torna o nosso modo de ver e de viver Eucarístico. Isto é, somos convidados a deixar a competição doente que leva à violência e, para sair daí, tornar-nos “cordeiros” oferecidos. O terceiro nível, o que aponta a saída global para toda a realidade, convida-nos a deixar o sonho mítico e paralizante de um Cosmos acabado para entrar nele incarnando num processo de cosmogénese, que vai redundar em cristogénese. E é essa Incarnação não desligada da Criação e que se torna plena pela Ressurreição, que pode desmascarar as falsas esperanças que pretendem saciar o desejo de eternidade com a crença emocional nas Reencarnações. Estas fazem que saem, mas não saem; não trazem o “Novo”, mas o “Outra vez”! É perigoso perder o sentido da História, como se fizesse sentido acreditar num rio que corre, mas não desagua. O ciclo mítico e vicioso do eterno retorno traz uma ilusão de saída. A angústia perante o compromisso e o risco é apaziguada pelo adiamento indefinido. A crença na Reencarnação em moldes modernos faz parte do pacote da cultura “Nova Era” que oferece essa fantasia, mais descansativa que libertadora, e que evita o doloroso do compromisso, da solidariedade e do juízo ou exame de consciência. Não quer passar pela morte de amor. A teoria das reencarnações assenta numa “redenção” – ou saída – mecânica, mais ou menos “Kármica”, ao fim de tantas voltas sem ter que escolher e decidir. Pode parecer fácil: felicidade predestinada sem vínculos nem educação da liberdade. Mas a dorida História de salvação não vai por aí. Percebe a presença de Deus pelos gritos da Sua ausência e ouve um apelo ao compromisso Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo 90 de amor para, em conjunto, irmos “saindo do próprio, amor, querer e interesse” pelo Amor (entrega até ao fim) de Cristo, com Ele e Nele. Parece poder-se ouvir dentro de nós: SAIAM! Sai, da tua terra, da tua escravidão, do teu túmulo. O mesmo grito de Deus, na voz do Espírito, na consciência e nos acontecimentos: Lázaro, sai! Abraão, sai! Moisés, sai! De quê? Donde? Para onde? Podemos ainda perguntar, resistindo. O caminho do humano é o divino. Só o sacrifício é glorificante: só o despojamento mostra mesmo quem somos; de Deus e para Deus. Sair é entrar, entrar em Deus, que é Amor. E é a entrada de Deus no Mundo, a Eucaristia, que nos põe em estado de saída. Concluindo mesmo: o segredo do amor – disse o P. Teilhard de Chardin, numa homilia de casamento – tem três tempos: “centrar-se, descentrar-se, sobrecentrar-se”. Ora estes tempos correspondem aos três momentos de libertação sobre os quais reflectimos. (1º) Centrar-se em si mesmo: Encontrar a paz na verdade consigo próprio, – quando fugimos, tantas vezes de ser quem somos e de desatar os nossos nós interiores: ser eu próprio. (2º) Em seguida: Centrar-se num igual a si próprio – morrer de amor! –, pôr o seu centro de gravidade no outro. (3º) Para depois, a dois, se poderem sobrecentrar num, maior do que eles! Amar é transcender-se, sair de si para o outro. A entrega de cada um arrasta os outros. A comunidade que surge torna-se Igreja que se transcende a ela própria deixando-se guiar por Cristo e assim se transfigura em Corpo Místico de Deus. Centrar-se, descentrar-se e sobrecentrar-se. Bibliografia Inácio de Loiola, Exercícios Espirituais, AO, 1999, Braga. René Girard, Je vois satan tomber comme l’éclair, Ed. Grasset, 1999. González Faus, La humanidad nueva, Sal Terrae, 1984, Santander. EU SOU A RESSURREIÇÃO E A VIDA Luís Rocha e Melo, S.J. Introdução Descemos aos infernos no dia de ontem, para podermos subir aos céus no dia de hoje. Não podia ser de outra maneira. Também Jesus desceu aos infernos do sofrimento e da morte antes de ser elevado aos céus na sua ressurreição. A tenebrosa descida é consequência do pecado do mundo. Jesus é vítima dele, mas ao amar os seus até ao extremo (Jo 13, 1), libertou-os desse mesmo pecado. Não foi o sofrimento nem a morte de Jesus quem trouxe a salvação aos homens, mas o amor de Deus que, levado até ao fim, não podia salvar de outra maneira. Jesus enfrentou a iniquidade, personificada nas autoridades religiosas do seu tempo, e pagou bem cara a ousadia divina. É o amor de Deus assim manifestado quem liberta do pecado. O dia de ontem foi tão oportuno quanto alguma corrente da cultura contemporânea pretende desmistificar o pecado e lançar poeiras sobre a distinção entre o bem e o mal. No seu compêndio de Teologia Espiritual, Saturnino Gamarra lamenta que muitos autores de espiritualidade contemporânea omitam o tema do pecado nos seus tratados. Estou de acordo com ele. Talvez o façam para não «chocar» a sensibilidade dos contemporâneos que não gostam dessa palavra. Mas o pecado é nome religioso do mal. Deus fica sentido quando algum dos seus filhos faz mal a si mesmo ou aos seus irmãos. Haverá pai ou mãe deste mundo que não sofra quando os filhos se maltratam uns aos outros? Se assim é, quanto mais o Pai do céu não fica tocado e ferido no amor que tem por todos, quando os seus filhos se 92 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo odeiam e se matam, ou se autodestroem. Quando se perde o sentido de Deus também se perde, naturalmente, o sentido do pecado. Mas o mal está aí. O dia de ontem foi extremamente elucidativo sobre a sua existência. A raiz do mal está em todos nós. Para subir aos céus, é preciso que o homem, identificado com o amor de Cristo que o leva a descer aos infernos, deixe que morra o egoísmo (o contrário do amor – o pecado). Purificado no sangue do Cordeiro, pode então com Ele, subir aos céus. Porque Ele está sentado à direita do Pai, vivo e presente no meio de nós. Gostaria de começar pelo princípio. Muita gente conhece bem um trocadilho de palavras que vem do tempo de Santo Ireneu, do século segundo, e que a Igreja conserva no depósito da sua fé. A afirmação é escandalosa à primeira vista: «Deus fez-se homem para que o homem se faça Deus». Um trocadilho de palavras próprio de um estilo literário. Para além dele, a afirmação de Santo Ireneu, devidamente interpretada, exprime um ponto central e essencial da fé cristã. A sua interpretação é evidente, apesar da aparente blasfémia de que o homem se faz Deus. Muito perto das origens, a pouca distância no tempo da morte do último apóstolo, o que este grande teólogo da Igreja primitiva queria dizer é verdade tão simples quanto misteriosa: Deus fez-se homem para que o homem seja divinizado, participante da natureza divina, na sequência e como ponto final de um projecto de Aliança: Deus «teve a bondade de nos dar também os mais preciosos e sublimes bens prometidos, diz S. Pedro na segunda carta, a fim de que – por meio deles – vos torneis participantes da natureza divina» (2Pe 1, 4). Deus é amor e deseja comunicar aos homens a sua própria vida e ser um só com eles. É próprio do amor fazer-se igual a quem ama – por isso Deus se faz homem – e fazer com que a pessoa amada seja igual a si. Jamais seremos iguais a Deus, mas seremos semelhantes, como diz o livro do Génesis (Gn 1, 26) e repete o Novo Testamento, particularmente em S. João: «agora já somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. O que sabemos é que, Eu sou a ressurreição e a vida 93 quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é» (1Jo 3, 2). Seremos deificados ou divinizados por acção do próprio Deus. É processo que começa no baptismo, se desenvolve e cresce na vida Igreja pela comunicação da graça, e atingirá a plenitude quando a Deus aprouver. Aquilo a que chamamos graça não é verniz acrescentado por Deus à natureza humana: é a vida de Deus em nós que transfigura ou diviniza toda a existência («somos transfigurados na sua própria imagem» – 1Cor 3, 18)). É o que fica em nós da presença, da união e da acção comunicadora de Deus. S. Paulo e S. João chamam filhos de Deus e seus herdeiros aos que acolheram o Verbo feito carne e acreditaram nele. No coração desses foi derramado o Espírito Santo criador, o amor e a vida de Deus, que geram a nova criatura (Gl 4, 6); somos predestinados para ser imagem idêntica à do Filho, Jesus Cristo (Rm 8, 29). Desde o tempo dos Apóstolos se bateu a Igreja pela verdade fundamental da sua fé, contra variadas tendências teológicas que iam surgindo: que Jesus Cristo é Deus verdadeiro e homem verdadeiro, numa única pessoa, a do Verbo encarnado no seio da Virgem Maria. A humanidade de Jesus, igual a nós em tudo excepto no pecado, está divinizada pela presença do Verbo. Perante o mistério que não pretendemos desvendar, conclui-se que a divinização do homem é possível pelo poder de Deus, e que esse é o objectivo de Deus na criação. Jesus Cristo aparece como figura ou imagem do homem como Deus o pensa: membro da família trinitária, intimamente unido a si e a seu Filho e participante da sua vida a que S. João chama «eterna». O Espírito Santo derramado vem tornar possível e real a configuração de cada um a Jesus Cristo. O fim último da existência da pessoa – podíamos dizê-lo no Princípio e Fundamento dos Exercícios – é o de que o homem reproduza a imagem do Filho, Jesus Cristo, Deus verdadeiro e homem verdadeiro, na força criadora do Espírito Santo que diviniza tudo o que é humano. É assim que o homem louva, reverencia e serve a seu Criador e Senhor, e é assim que salva a sua alma, ao entrar responsavelmente na Aliança que Deus 94 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo estabelece com a casa de Israel, e em todo o seu projecto salvífico. Ao comungar o corpo e o sangue de Cristo, dado em sua memória, somos introduzidos na nova e eterna Aliança que terá consumação definitiva na comunhão com o Cristo ressuscitado, sentado agora à direita do Pai. «Vou revelar-vos um mistério, diz S. Paulo: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados; num instante, num abrir e fechar de olhos… os mortos ressuscitarão incorruptíveis e nós seremos transformados» (1 Cor 15, 51). Podemos situar na afirmação de Santo Ireneu o essencial da fé cristã que responde à questão fundamental que todo o ser humano, consciente ou inconscientemente, se põe: que sentido tem a vida que vivemos? Para onde caminhamos? Qual é o nosso destino? Que significado encontramos nas decisões do presente, no meio de tantas coisas belas e no meio de todos os absurdos que a vida oferece? Para que serve a vida? 1. Diálogo com o mundo Estou profundamente convencido de que, no depósito da sua fé, a Igreja tem resposta a estas questões também na cultura contemporânea, embora toda a resposta nos introduza no mundo do mistério. Como parêntesis, acrescento que o mistério, em linguagem cristã, é um projecto de amor, «escondido ao longo das gerações e que agora Deus manifestou aos seus santos. Deus quis dar-lhes a conhecer a imensa riqueza da glória deste mistério entre os gentios: Cristo entre vós, a esperança da glória» (Cl 1, 25-27). O mistério de Deus revela-se progressivamente ao longo da história, e vai-se compreendendo pouco a pouco e tanto quanto o Espírito Santo no-lo dá a entender. Santo Agostinho diria tratar-se de uma realidade que se entende mas nunca acaba de ser entendida, por ser inesgotável. A que já é conhecida compara-se à gota de água no meio do oceano. Gota de água que pode crescer; quanto mais Eu sou a ressurreição e a vida 95 cresce, maior é a imensidão do oceano que se intui no coração, mas nunca se abarca. A própria vida humana pertence ao mistério. A pessoa, a relação de amor ou de amizade entendem-se, mas o seu entendimento também é inesgotável. Há mistério onde houver uma relação de amor. Jesus Cristo vem precisamente revelar (tirar o véu) o mistério de Deus e, ao fazê-lo, desvenda simultaneamente o mistério do homem. Um dos pontos misteriosos é o do sentido da vida. Estou convencido, repito-me, de que a Igreja tem resposta para ele, não uma resposta clara e evidente como se se tratasse de questão científica – porque o mistério pertence a outra ordem – mas também me parece que ainda a não soube transmitir ao mundo contemporâneo. Não basta repetir fórmulas, por mais verdadeiras que sejam, nem mesmo a de Santo Ireneu, para anunciar a Boa-Nova, mas de repensar todo um modo de ser e de estar na vida que seja transparência de sentido, compreensível na cultura contemporânea. Num mundo em transformação contínua, onde critérios e valores mudaram radicalmente, onde as instituições que os sustentavam são consideradas entrave ao progresso da humanidade e são, por isso, postas a ridículo e rejeitadas, como é que transparece na Igreja questão tão importante como a do sentido e a do significado da existência humana? Será Deus um rival da liberdade e do progresso, ou será o maior dos seus promotores? Não tenho de forma alguma a pretensão de trazer no bolso uma varinha mágica com respostas para tudo. Mas também não me resigno a dizer simplesmente «não sei»; a Igreja não pode resignar-se a dizer «não sabemos», mas também não pode apresentar-se diante do mundo como detentora da verdade absoluta e rejeitar à partida toda a novidade de pensamento e de propostas da cultura actual. Temos de separar as águas, evidentemente, sob pena de entrarmos em confusão que não é boa para ninguém, mas também temos de entrar em diálogo com a cultura para a entendermos por dentro, e a partir dela, tentar anunciar a Boa-Nova de Jesus Cristo. Entendendo como vivem os nossos contemporâneos e os porquês de uma rejeição 96 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo sistemática das instituições e dos valores tradicionais, precisamos de encontrar formas de viver e linguagens em que se torne compreensível o mistério de Cristo, portador de sentido. A Igreja não pode entrincheirar-se atrás das suas muralhas, nem sair delas com espírito de cruzada. Assim faz o documento, já comentado nestes dias, do Conselho Pontifício da Cultura, Jesus Cristo, Portador de Água Viva, uma reflexão cristã sobre a Nova Era. Também vale aqui a máxima de Santo Inácio: «entrar com a deles para sair com a nossa» ou o que aconselha no pressuposto do Exercícios: «Todo o bom cristão deve estar mais pronto a salvar a proposição do próximo do que a condená-la» (EE 21). Para isso, precisamos de conhecer qual é a deles ou qual é a proposição do próximo. Estamos aqui, em Fátima, não para levar respostas acabadas para casa, mas para tentarmos humildemente, dar um passo em frente. Diálogo com o mundo não significa pactuar com os seus critérios. Jesus Cristro foi sinal de contradição e pedra de escândalo, ao desmascarar a mentira e a injustiça dos homens do seu tempo, e ao anunciar um modo de ser e de estar na vida que se opunha aos costumes dos seus contemporâneos. Por causa disso é que foi rejeitado e crucificado. Não nos admiremos se a Igreja também o for. Dialogar não significa baixar a fasquia do Egangelho para evitar o conflito. Não atraiçoemos a história dos mártires que fala, por si, desse permanente conflito entre a linguagem de Deus e a do mundo. 2. A Ressurreição de Cristo e a nossa Qualquer que seja a resposta cristã aos desafios do mundo contemporâneo, ela terá de ser fundamentada na ressurreição de Cristo. Se a afirmação de Santo Ireneu pertence à essencia da mensagem cristã, a ressurreição do homem Jesus está na raiz de todo o mistério. Seria desnecessário citar um texto de S. Paulo conhecido de toda a gente: «Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé e somos os mais desgraçados dos homens» (1 Cor 15, 17-19)). Teríamos investido toda a nossa esperança no vazio da morte. A Igreja estaria fundamentada Eu sou a ressurreição e a vida 97 em mentira, insustentável ao longo dos séculos. O Espírito Santo seria um fantasma, e o dinamismo da nova criação uma simples energia que a vida contém. «Mas se Cristo ressuscitou, como dizem por aí que não há ressurreição dos mortos?» ( 1 Cor 15, 12), pergunta ainda S. Paulo. O essencial do essencial da fé cristã não é o mais fácil de entender nem de viver. Tenho verificado, na experiência pastoral que o Senhor me vai dando, que não é difícil para os que acreditam em Deus, como ser pessoal e distinto do universo, reconhecê-lo como autor da criação. Ela está aí diante dos nossos olhos, pertencemos a ela. A ciência, apesar dos passos gigantescos que deu nas últimas décadas, não responde até ao fim sobre as origens do mundo e menos ainda sobre o significado da vida. É relativamente fácil para o crente afirmar que os homens e o mundo são criados por Deus. Na mesma experiência pastoral, verifico maior dificuldade também nalguns crentes, mesmo cristãos e católicos, em entender a ressurreição de Cristo e a nossa. A razão do problema é óbvia: a criação está diante dos nossos olhos, a ressurreição não. Nunca vimos o Cristo ressuscitado nem a ressurreição de nenhum morto. Não temos conceitos para entender o que está fora do espaço e do tempo; a imaginação e o pensamento discursivo só nos atrapalham quando tentamos desvendar o «além». Muita gente quer saber por força o que vai acontecer no futuro e, mais ainda, depois da morte. Não falta quem se aproxime de adivinhos, cartomantes, bruxos e astrólogos, para resolver a inquietação do amanhã. Respeitemos a inquietação dos homens, mas é bom citar Jesus Cristo, no sermão da montanha: «Não vos inquieteis com o que haveis de comer… o vosso Pai celeste bem sabe que tendes necessidade de tudo isso… Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã já terá as suas preocupações. Basta a cada dia o seu problema» (Mt 6, 25-34). Vivei o presente, que o futuro a Deus pertence. 98 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo Permitam-me dizer, apenas como abordagem cautelosa e humilde do mistério, que a ressurreição dos mortos, a de Jesus Cristo e a nossa, é uma segunda criação; é uma nova criação. O poder de Deus que faz do nada todas as coisas, também pode transformar o nada da morte num ser vivo completo. Quanto a Deus e ao seu poder, que é poder de amor criador, é pouca a diferença entre a criação e a ressurreição. Quanto a nós, sim, há diferenças muito grandes: a primeira é que, se nem Deus nem os nossos pais nos perguntaram se queríamos vir ao mundo – a nossa liberdade não foi tida nem achada na criação – Deus pergunta-nos agora se queremos ser nova criação e se queremos compartilhar com Ele a sua vida – somos inteiramente responsáveis pela resposta que damos. O elemento liberdade, que Deus respeita infinitamente, é essencial na nova criação ou na ressurreição. É desejo apaixonado de Deus dá-la gratuitamente a todos os homens e mulheres do mundo, mas depende da liberdade humana acolhê-la, aceitá-la e acatá-la e, para isso, entrar deliberadamente na sua lógica de amor, a que a Escritura chama Aliança. 3. Uma transfiguração da existência E como é que os mortos ressuscitam? Pergunta S. Paulo. A sua resposta deixa-nos mais ou menos na mesma, porque nem S. Paulo tem palavras humanas que expliquem o que está para além do tempo: «semeado corruptível, o corpo é ressuscitado incorruptível; semeado na desonra, é ressuscitado na glória; semeado na fraqueza, é ressuscitado cheio de força; semeado corpo terreno, é ressuscitado corpo espiritual. Se há um corpo terreno, também há um corpo espiritual. Semeia-se na corrupção e ressuscita-se na incorrupção» (1 Cor 15, 42-45). Desta «explicação» de S. Paulo, podemos apenas concluir que a ressurreição é uma transfiguração da existência para outro modo de ser, o de Deus. Não apenas no fim dos tempos. Ela já começou no dia do baptismo, continuou, continua e há-de continuar em cada dia na vida de quem aderiu a Jesus Cristo, até à transfiguração radical da corrupção para a incorrupção. A morte é Eu sou a ressurreição e a vida 99 passagem. A Páscoa de Jesus é-nos comunicada na Eucaristia, sempre que a celebramos, e será vivida em plenitude no dia em que o Senhor voltar. O dinamismo da vida na primeira criação também é de transfiguração: a pessoa adulta não é a criança de outrora que aumentou em peso e volume; houve transfiguração no seu ser originada por energia a que chamamos simplesmente vida. O idoso de 90 anos é a mesma pessoa que, 90 anos atrás, era criança recém-nascida, mas está irreconhecível. Não é outra pessoa; é a mesma. Não parece, porque foi transfigurada pela energia da vida. Animais e plantas também vivem, nascem, crescem e morrem; «o grão de mostarda é a mais pequena das sementes; mas depois de crescer, torna-se a maior planta do horto e transforma-se numa árvore, a ponto de virem as aves do céu abrigar-se nos seus ramos» (Mt 13, 32). A natureza humana ou cósmica é obra do mesmo Deus que envia seu Filho para que todos tenham vida e a tenham em abundância (Jo 10, 10). A diferença está em que a natureza transfigurada pelo seu próprio dinamismo está diferente, mas continua natureza. O homem transfigurado pela acção criadora do Espírito Santo é divinizado, e assemelha-se, por isso, ao Cristo, Deus e homem verdadeiro. Configurado com Jesus Cristo, não deixa de ser homem, mas é agora mais homem por estar divinizado. A divinização do homem operada pela graça arrasta-o também para uma humanização cada vez mais perfeita. Tendo em conta o poder do amor criador de Deus, será difícil entender que a morte seja a transfiguração final que leva o homem à plenitude? «Todos nós, diz S. Paulo, que com o rosto descoberto, reflectimos a glória do Senhor, somos transfigurados na sua própria imagem, de glória em glória, pelo Senhor que é Espírito» (2 Cor 3, 18). Pessoa cristã e piedosa perguntava-me um dia se o Cristo ressuscitado continuava a ser homem. Não dei um grito nem um salto, por respeito para com a pessoa, e respondi-lhe com serenidade, da maneira mais amável que me foi possível: Claro que sim; na ressurreição é que Jesus Cristo atinge a plenitude do seu ser de homem, porque totalmente divinizado, como Deus o pensa. A ressurreição, a de Cristo e a nossa, não é volatilização da pessoa nem a sua transfor- 100 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo mação em anjo. É divinização do homem que o torna imagem e semelhança de Deus. Não esqueçamos que há um homem, por dom e por graça, no seio da Santíssima Trindade: chama-se Jesus de Nazaré que, no mundo, pouco antes de partir, formulou ao Pai esta oração, repassada de ternura que só Deus pode ter: «Pai, quero que onde Eu estiver estejam também comigo aqueles que Tu me confiaste, para que contemplem a minha glória, a glória que me deste, por me teres amado antes da criação do mundo» (Jo 17, 24). Deus é amor e o seu amor é eterno. «Ele (que) nos escolheu antes da fundação do mundo para sermos santos e irrepreensíveis na sua presença… e nos predestinou para sermos adoptados como seus filhos por meio de Jesus Cristo, de acordo com o beneplácito da sua vontade» (Ef 1, 4-5), amar-nos-á apenas durante cem anos que uma pessoa viva? Se Deus ama com amor eterno – não tem outro – a ressurreição pertence à lógica do seu amor criador. Se o homem voltasse ao nada na morte, o amor eterno de Deus entraria em profunda contradição. Deus não ama o nada e não deixa de amar o que existe; ao amar cria. Se o homem morre, Deus o cria de novo, o mesmo, mas noutro modo de existência, o Seu, divino: essa é a ressurreição. Muitas pesoas se interrogam sobre o «além» e querem respostas, naturalmente, com linguagem humana inteligível. Pretensão inútil. Não temos conceitos para expressar o que não passa pelos sentidos; não podemos dizer mais do que S. Paulo sobre o «como» da ressurreição: «semeia-se na corrupção e ressuscita-se na incorrupção». Querer imaginar e definir em termos claros e distintos o «como» da ressurreição é tentação contra a fé. Quem a não vive ou a vive de modo rudimentar, pouco esclarecido, é natural que se aflija demasiado com o dia de amanhã e, mais ainda, com o chamado «além». Permitam-me que continue, com linguagem talvez chocante para alguns ouvidos: não existe nenhum «além». O que existe é a criação inteira que «se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus… Bem sabemos como toda a criação geme Eu sou a ressurreição e a vida 101 e sofre as dores da maternidade até ao presente. Não só ela. Também nós, que possuímos as primícias do Espírito, nós próprios gememos no nosso íntimo, aguardando a adopção filial, a libertação do nosso corpo. De facto, foi na esperança que fomos salvos. Ora uma esperança naquilo que se vê não é esperança. Quem é que vai esperar aquilo que já está a ver? Mas, se é o que não vemos que esperamos, então é com paciência que o temos de aguardar».(Rm 8, 19-26). O «além» é aquilo que não se vê, mas não é outro mundo. É mundo «outro», transfigurado. Já estamos ressuscitados, mas ainda o não sabemos. Já estamos no céu, mas ainda o não vemos. Segundo Jacques Guillet e Jean-Marie Fenasse, que escrevem no Vocabulário de Teologia Bíblica, a palavra «céu» significa simplesmente a morada de Deus. Quando Jesus fala do céu, não fala dele como de uma realidade maravilhosa e longínqua, mas como de um mundo que é o seu e que é para ele a realidade mais profunda e mais séria da vida que nos pertence. É Ele quem possui os segredos do Reino dos Céus1. Onde será essa morada de Deus? Temos resposta em S. João: «Se alguém me tem amor, há-de guardar a minha palavra; e o meu Pai o amará, e Nós viremos a ele e nele faremos morada» (Jo 14, 23). Fundamentada nestas afirmações, Isabel da Santíssima Trindade gostava de dizer: «É no céu da minha alma que gosto de o contemplar». Onde será então o céu, senão no íntimo do mais íntimo da nossa alma? «Por agora, diz S. Paulo, vemo-lo como num espelho,de maneira confusa; depois, veremos face a face» (1 Cor 13, 12). Já estamos no céu que ainda não vemos; havia a convicção em Israel de que não se podia ver a Deus sem morrer. Os profetas tinham razão: não se pode ver a Deus sem uma transfiguração radical da existência, que há-de ser semelhante ao seu próprio modo de ser. Já estamos divinizados, mas ainda não totalmente. A tentação de querer saber tudo sobre o além provém de uma falta de confiança em Deus que pertence à essência da fé. A inquietação 1 VTB, 2ª ed., Ciel, Cerf, Paris, 1970, p. 166-167 102 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo pelo «além», ou mesmo pelo futuro, tem origem na necessidade de segurança no presente; é preciso controlar os acontecimentos para se sentir seguro e feliz. O que não se vê nem se conhece não se controla. Tentação compreensível: todos desejam controlar a própria vida, no presente e no futuro; a do presente controla-se, mas pouco; se a do futuro não for controlável, o presente fica ainda mais inseguro. Quem não acredita em Deus ou tem dele uma imagem deteriorada sente nesessidade de conhecer o amanhã para sua segurança. Daí a importância que hoje se dá à magia, ao espiritismo, ao ocultismo, à parapsicologia e aos médiuns. Entre os crentes também aparece uma subtil tentação: a de controlar a Deus e a sua relação com Ele. «Nas vossas orações, não sejais como os gentios, que usam de vãs repetições, porque pensam que, por muito falarem, serão atendidos» (Mt 6, 7). Pensam poder controlar a Deus e trazê-lo à sua vontade. Ainda não entenderam o sermão da montanha: para viver a fé cristã e encontrar o pleno sentido da existência, é preciso deixar de fundamentar a felicidade nas seguranças do mundo, e colocá-la em Deus somente. Não é preciso deitá-las fora. É preciso não as tomar como fundamento de felicidade, a não ser de forma parcial e precária. Quem não sabe ou não acredita que «nem um cabelo da cabeça lhe cairá sem a permissão do Pai celeste» (Lc 12, 7), inquieta-se com o presente e mais ainda com o futuro; é normal a tentação de querer saber agora o que vai acontecer amanhã; frequentam-se os adivinhos, na doce ilusão de que eles o sabem. Acredita-se neles, porque a insegurança torna-se insuportável. Não, ninguém sabe nem pode saber o que depende da liberdade, nas decisões do amanhã, nem a nível pessoal, nem a nível da comunidade humana. Podem-se prever fenómenos da natureza, a partir das suas leis, pode-se suspeitar o que vai acontecer amanhã se o rumo do presente não se modificar, mas ninguém pode adivinhar uma decisão livre. «Não vos inquieteis com o dia de amanhã, porque o Pai do céu cuida de vós» (Mt 6, 25-34). É com paciência que devemos aguardar a libertação. Homem pobre, humilde e confiante prevê e provê o que pode acontecer amanhã, mas não se inquieta por Eu sou a ressurreição e a vida 103 aquilo que não sabe. Sabe apenas uma coisa: que se Deus alimenta as aves do céu que não semeiam nem ceifam, e veste tão bem os lírios do campo que não trabalham nem fiam, como não fará muito mais por vós, homens de pouca fé? (Mt 6, 25-30). 4. Purificação do amor ou reincarnação Somos chamados a amar como Deus ama. A transformação progressiva, operada pelo Espírito Santo com a colaboração livre do homem, há-de ser passagem contínua do amor-próprio ao amor a Deus e ao próximo. Nascemos egocêntricos. Perante a alternativa de pactuar com o egocentrismo e viver em direcção contrária ao amor, temos um desafio que Jesus Cristo e os profetas anteriores vieram lançar: renunciar à cumplicidade com o egoísmo e deixar que o amor verdadeiro nasça e cresça por acção do Espírito Santo, e pela adesão determinada ao caminho apontado por Jesus. Nesse percurso, que ocupa a vida inteira, tem de haver uma purificação do amor. Segundo os mestres da espiritualidade, há uma purificação activa que põe à prova a capacidade de eleger o amor por decisão deliberada da vontade humana, e uma purificação passiva operada por Deus na alma dos que lhe são fiéis. É possível ao homem rejeitar o mal e escolher o bem; é possível optar pelo bem maior e mais universal e renunciar, para isso, a muita coisa de menos valor. Mas está para além das forças humanas a eliminação completa da raiz egocêntrica com que se nasce. A partir de certa altura do percurso, o homem espiritual sente na pele a incapacidade radical para amar como Deus ama. Mas a Deus nada é impossível, diz o Evangelho, quando o objectivo é o amor. Jesus Cristo pode destruir em nós a raiz do mal, se lhe dermos autorização para isso. Destruiu o pecado com a sua morte na cruz, diz a nossa fé. O pecado e a sua raiz estão dentro do ser humano: aí tem de ser destruído até ao último vestígio. «Agora, alegro-me nos sofrimentos que suporto por vós e completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo, que é a Igreja» (Cl 1, 24). A paixão de Cristo vivida dia a dia é agente 104 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo de purificação pessoal e colectiva. O desafio de Jesus é que o homem persevere sem desfalecer, e lhe dê o direito de entrar e de realizar a obra que o Pai lhe confiou, até que o homem novo esteja completo. A purificação terá de ser completa também, porque ninguém entra em Deus, na plenitude da ressurreição, se não isento de toda a impureza. Só os puros de coração verão a Deus. Se ao chegar o momento final da vida presente ainda existir egoísmo no coração humano, Deus terá maneira de o purificar. Também não sabemos como. A tradição chamou purgatório a esse complemento de purificação que ainda falta. Tudo o que dissermos sobre ele serão puras conjecturas, a não ser que já é estado de salvação irreversível e complemento de purificação. Posso adiantar, quando muito, uma hipótese de trabalho e de reflexão: a imagem do fogo aparece na Bíblia tanto como metáfora do amor de Deus que consome e abrasa, como de punição intrínseca ao pecado. Baste-nos recordar as línguas de fogo que descem sobre os Apóstolos e Nossa Senhora no dia de Pentecostes, a sarça de Moisés que ardia e não se consumia (Ex 3, 2), a coluna de fogo que indicava a Israel o caminho a percorrer durante a noite (Ex 14, 24; 40, 38; 24, 17), ou ainda S. Paulo que diz na carta aos Hebreus: «o nosso Deus é um fogo abrasador» (Heb 12, 29). Também é imagem de perdição e de purificação. Do fogo do purgatório não se fala, mas fala-se de purificação pelo fogo. Como hipótese para desvendar o que é ignorância para nós, não será o próprio amor de Deus que purifica quem chega à sua presença ainda não purificado? Pessoa que leva consigo restos, muitos ou poucos, de egoísmo, não pode ainda ver a Deus como Ele é. Não será esse primeiro encontro fogo do amor abrasador que purifica? Como pessoa em quarto escuro que visse de repente um holofote em cima dos olhos? São apenas conjecturas daquilo que não sabemos. Só não podemos negar a necessidade absoluta de purificação para se entrar em Deus, amor total, isento da mais pequena sombra de egoísmo. Também sabemos que ela começa aqui, a partir do momento em que o baptizado toma consciência da sua necessidade. Como é que ela termina, antes do face a face com Deus, Deus o saberá. Eu sou a ressurreição e a vida 105 A afirmação de que este ser humano e limitado não é capaz dessa purificação numa só vida, por longa que seja, é inteiramente verdadeira. Verdadeira sobretudo, se ela é conseguida apenas pelo esforço da vontade, sem qualquer interferência de Deus. O que não é verdade, na revelação cristã, é que Deus não interfira para purificar tudo o que é impuro. Escritura e Tradição falam-nos com frequência do lado passivo da purificação, que consiste em acolher, simplesmente, o que Deus faz. Também aqui se aplica a afirmação de Jesus: «aos homens é impossível; mas a Deus nada é impossível» (Mc 19, 26). Pode purificar até em vida curta, como aconteceu a santos que morreram em tenra idade, já que a purificação é o lado oculto mas indispensável do amor. A purificação do pecado levada até ao fim para se «entrar no gozo do Senhor» (Mt 25, 21) é verdade de fé revelada. Chame-se-lhe purgatório ou via purgativa, ou passagem pelo deserto, que começa neste mundo e é levada até ao fim, a sua necessidade é indiscutível porque ainda não somos amor puro: somos mistura de pureza e de impureza. Mas não se entra na plenitude da ressurreição senão em amor total como o de Deus. Na vida e espiritualidade budistas, parte-se do princípio de que não há qualquer interferência de Deus na vida dos homens. Buda não era ateu, mas era-lhe era indiferente a questão de Deus. O importante para ele era que o homem se liberte do sofrimento presente. Para isso, precisa de controlar e dominar os sentimentos, emoções, paixões, prazeres e tudo o mais que seja fonte de inquietação e sofrimento. Impõe-se uma ascese implacável. A meditação transcendental que identifica o homem com o todo ou o Uno ajuda à quietude interior. Progressivamente, o budista vai adquirindo maior perfeição e o seu objectivo é o de chegar ao nível do nirvana, estado de total quietude onde o homem, absorto no Uno do universo, é inteiramente feliz. Limitado, no entanto, às suas forças naturais, é provável que não consiga chegar a esse estado no presente, mesmo que tenha vida longa. Se assim for, precisa de reincarnar e viver segunda, terceira vida, ou quantas forem precisas, até chegar à plenitude no 106 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo nirvana. Nesta perspectiva, a reincarnação faz sentido, embora as questões que se levantem contra ela sejam pertinentes. Não os censuremos por não saberem explicar tudo o que vivem porque a nós, cristãos, acontece o mesmo. Os budistas crêem e entregam-se aos mestres que conduzem os discípulos pelos ensinamentos de Buda, repensado e actualizado nos tempos de hoje. O budismo a sério é praticado hoje quase apenas no Tibete. O budismo tem coerência, tem um caminho, tem aspectos maravilhosos, alguns parecidos com os cristãos. Admiramos e veneramos os monges tibetanos que renunciam a todos os prazeres do mundo, e entregam a vida inteira na procura da felicidade. O que observamos com inquietação é que se misture, cá pelo ocidente, cristianismo e reincarnação. Dalai Lama compreendeu perfeitamente a impossibilidade dessa mistura quando aconselhou os cristãos, há pouco tempo, numa entrevista, a que sejam cristãos, e deixem o budismo para os monges tibetanos. Por duas razões, em meu entender, embora Dalai Lama não tenha pensado na primeira: a revelação cristã contém uma promessa feita por Deus, como cláusula da Aliança: a terra prometida onde corre o leite e o mel é figura da ressurreição como ponto de chegada. Conduzido por Moisés, Israel foi libertado do Egipto pelo poder de Deus e purificado na longa travessia do deserto, antes de entrar na Terra Prometida. Não precisou de segunda viagem. A cláusula da Nova Aliança no sangue de Cristo também não é uma segunda vida neste mundo: «Eu sou a Ressurreição e a Vida. Quem crê em mim, mesmo que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim não morrerá para sempre»; «a vontade daquele que me enviou é esta: que Eu não perca nenhum daqueles que Ele me deu, mas o ressuscite no último dia. Esta é, pois, a vontade do meu Pai: que todo aquele que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no último dia». (Jo 6, 39; 11, 25). É no mistério da colaboração entre a graça e a liberdade, entre a acção de Deus e a resposta do homem que se desenrola o percurso da vida, à imagem daquele que é a ressurreição e a vida. Se somos predestinados para reproduzir a imagem de Cristo por acção Eu sou a ressurreição e a vida 107 do Espírito Santo, também somos predestinados para participar na sua ressurreição e na vida eterna, que é a vida de Deus. Não consta que Jesus Cristo tenha reincarnado. Esta é a primeira razão em que Dalai Lama certamente não pensou. A segunda parece-me ser outra em que ele certamente pensou, embora a não tenha dito desta maneira: não se brinca ao budismo, como também não se brinca ao cristianismo. O budismo tomado a sério tem coerência, e supõe uma filosofia e uma ascese que não se compadecem com a confusão entre liberdade e a libertinagem, a realização da pessoa na procura da felicidade e a satisfação sistemática de tudo o que é agradável. Insatifeitas com as instituições tradicionais que representam a era dos peixes, muitas pessoas procuram o sentido para a vida por outros caminhos, e deixaram-se fascinar pelas espiritualidades do oriente. Não é novidade na Europa nem nos Estados Unidos. O ocidente pode e deve aprender muita coisa no diálogo com outras culturas. Mas não se iluda ao pretender misturar a água e o azeite. O ecletismo, ou o aproveitamento de tudo o que é bom das variadas religiões ou culturas, pode ter uma consequência nefasta: cair-se no vago, na indefinição, em nebulosa onde tudo é bom menos o sofrimento; acabará por negar a objectividade das coisas e viver-se em subjectivismo ou individualismo, incapaz de construir humanidade melhor, mais justa e mais fraterna. Ao entrar-se na era do aquário, perdeu-se o sentido de Deus como Transcendente e caiu-se na ilusão de O identificar com o cosmos. A libertação do homem consiste em descobrir a centelha divina que há dentro de si e sentir-se identificado com o Todo. Uma indevida autodeificação pode confundir-se com a divinização de que falava Santo Ireneu. Termino como comecei: o homem é divinizado por acção de Deus, o totalmente Outro, transcendente e imanente a todas as criaturas, em especial ao homem que transforma em templo (S. Paulo) ou em morada (S. João) para habitação Sua. O homem é divinizado mas não endeusado. Com raiz etimológica comum, as duas palavras 108 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo significam realidades opostas e inconciliáveis: o homem é divinizado por acção de Deus; mas é endeusado por si próprio. A cultura da nova era é de tipo panteísta, que proclama a unidade do universo, onde Deus se identifica com o todo, ou com o uno, leva a formas gnósticas e pelagianas de pensamento. A salvação de cada um, a superação do sofrimento e a libertação dos condicionamentos humanos vem da descoberta progressiva do lado divino que existe na natureza, e da identificação da pessoa com o uno cósmico e universal. Não há graça nem interferência de Deus; há esforço humano ajudado pela meditação transcendental, pela astrologia, pela ciência, em particular pelas ciências humanas como a psicanálise e a psicoterapia, mas também pela ecologia, a fisioterapia e por tudo o que conduza à harmonia do homem consigo mesmo e com o universo. Recordo-me de uma imagem de revista americana, onde aparecia a Shirly Mc’Laine de braços abertos e levantados, em frente da imensidão do mar que exclamava com ar extasiado: «I am God». Tinha-se libertado de todos os tabus, de todas as tradições ou instituições que travam o crescimento, e acabava de descobrir que era Deus. Uma rica aparência de bem, dado que Santo Ireneu também diz que o homem se faz Deus. Proposta sedutora e aliciante que favorece a liberdade e oferece a felicidade a toda a gente. Há, no entanto, uma serpente escondida com o rabo de fora: posso ser divinizado pelo Deus transcendente que se fez homem. Mas não posso ser Deus com o meu esforço e com as minhas técnicas. O panteísmo que se esconde por trás desta corrente é uma forma benigna e disfarçada de ateísmo. Deus que não se distinga do homem nem do universo não é Deus nenhum. O todo e o uno são somatório de partes. Por mais voltas que se dêem às palavras e por mais sedutora que seja a proposta de felicidade, a cultura New Age tem aparências de bem. Não queria contradizer-me: é importante o diálogo com os nossos contemporâneos e não devemos sair das nossas muralhas com espírito de cruzada. Mas separemos as águas e saibamos discernir o «anjo mau que se transforma por vezes em anjo de luz». Eu sou a ressurreição e a vida 109 Bibliografia Conseil pontifical de la culture, Conseil pontifical pour le dialogue interreligieux, Jésus-christ le porteur d’eau vive, Une réflexion chrétienne sur le “Nouvel Âge”. THOMAS, Pascal, Reencarnação, sim ou não, A.O., Braga, 1997. VARILLON, François, Joie de Croire, joie de vivre, Le Centurion, Paris, 1981 DALMAIS, Irénné-Henri, Pâques, em DSAM, T. XII, col. 171-181. DHAR, Sachit, Budismo, em Eciclopédia Verbo, T. X, col 447-453. FENASSE, Jean Marie e GUILLET, Jacques, Ciel, em VTB. NÓS ESPERÁVAMOS QUE... Lc 24, 21 Dra. Maria Engrácia Leandro A esperança (...) seria a maior das forças humanas se o desespero não existisse. Balzac Esperança e desilusão Seguindo a terminologia do dicionário Grand Robert (2001), “a esperança é um sentimento que faz antever como provável a realização do que se deseja”. Daí que implique segurança, confiança, convicção, crença e expectativa. Quando tal não acontece, normalmente, aparece a desilusão, a dúvida, o desânimo e o desespero, assim como se verifica nesta passagem do Evangelho de Lucas, pondo em acção a cena do reencontro dos discípulos de Emaús com Jesus Cristo ressuscitado. Quanto aos primeiros, trata-se de duas pessoas em busca de entendimento para um fenómeno que escapa à sua compreensão mais imediata. À partida, parece que tudo aquilo em que acreditavam e lhes garantia segurança se desmorona a seus pés. E isto por duas razões fundamentais. Uma tem a ver com a condenação e crucificação de Jesus pelas autoridades judaicas e a sua morte, o que lhes faz questionar os ensinamentos que d’Ele tinham recebido. Confrontados com esta realidade, estão confusos perante o desenrolar daquilo que, humana e socialmente, observam e vivem. Falta-lhes algo que continue a justificar os seus projectos e aventura. A outra, está associada ao facto de terem sido passados três dias, após a condenação 112 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo de Jesus na cruz, e Deus parece não ter vindo intervir em favor do seu profeta. “Verdade é que algumas mulheres do nosso grupo, nos deixaram perturbados, porque foram ao sepulcro, de madrugada, e não Lhe achando o corpo, vieram dizer que lhes apareceram uns anjos que afirmavam que Ele vivia “ (Lc, 24,22). Mesmo assim, as dúvidas, uma admiração algo desiludida, a contradição entre o que esperavam e a verdade dos factos que constatavam continuavam a predominar nas suas atitudes e comportamentos. Está-se já, aqui, perante uma consequência expressiva da mudança de rumo dos acontecimentos em que tinham posto toda a sua esperança. É, então, que Jesus, vindo ao seu encontro, falando com eles e interrogando-os acerca das suas angústias, mas fazendo-se passar por um ignorante sobre um fenómeno conhecido de toda a gente, parece aumentar ainda o seu desespero e estupefacção, ao que eles responderam dizendo “Tu és o único forasteiro em Jerusalém a ignorar o que lá se passou nestes dias!” (Lc 24, 18). Contudo, o estrangeiro peregrino, vendo que continuam tristes, acabrunhados e caminhantes sem esperança, dialoga com eles fazendo apelo ao ensino das Escrituras que antes lhes havia transmitido. Simultaneamente, incita-os a apreenderem de outro modo os acontecimentos que eram para eles sinal de grande preocupação, o que lhes propicia uma maior abertura mental e afectiva, parecendo, no entanto, continuar, ainda, ofuscados perante o dilema em que se encontram mergulhados. Apesar da sensação que as palavras do caminhante desconhecido lhes ia causando, é apenas na partilha da refeição e na “Fracção do pão”, que se faz luz na sua mente e no seu coração, ou seja, é na confrontação com a própria realidade palpável e que lhes é sobejamente conhecida, que Jesus ressuscitado se lhes dá a reconhecer na sua natureza divina e humana. Deste modo, dá azo a que deixem de ser pessoas desiludidas, mas antes com esperança redobrada. Compreende-se, então, que para chegarem a esta situação tivessem de ser confrontados com uma realidade que lhes era familiar, quando afinal, antes disso, eram pessoas cheias de dúvidas. Começam aqui as dificuldades. Para estes homens, não basta conhecerem Nós esperávamos que... 113 teoricamente as escrituras para acreditarem e terem esperança. Foi necessária a intervenção do factual, a reactualização do que tinham vivido na última Ceia, para que os seus olhos se abrissem, compreendessem o que se lhes deparava e pudessem voltar a reconhecer Jesus e a recobrar ânimo e esperança, agora legitimada em certezas e seguranças. Antes, ofereceram muita resistência em acreditar na mensagem transmitida pelas mulheres do seu grupo. Só, agora, se tornaram mensageiros de esperança junto dos outros discípulos. Por outro lado, apesar de conhecerem a mensagem das Escrituras, com que se haviam familiarizado, o que faria supor a existência de mais segurança e confiança no transcendente e no que tinham aprendido anteriormente, o certo é que a sua esperança parecia ainda orientada para a materialidade dos factos. Por um lado, afigurava-se-lhes ser necessário tornar a ver Jesus, tal como o tinham conhecido, quando afinal a ressureição faz d’Ele um outro que lhes escapa e, por outro, a sua esperança integrava também elementos de ordem material, política e social que não viram acontecer, como, por exemplo, o triunfalismo de Jesus e a libertação de Israel do jugo romano. Tratava-se aqui de uma falsa esperança, para a qual Jesus nunca lhes tinha dado qualquer fundamento. Porém, os seus sentimentos humanos parecem ter, também, dificuldade em se libertar totalmente das vanglórias do mundo terreno. No mesmo sentido, actua a tendência, particularmente vincada nos nossos dias, para, à semelhança de algumas singularidades desta cena dos discípulos de Emaús, se privilegiar desmesuradamente o material, o imediato, o pragmático, o triunfalismo humano, pessoal, político e social e com notórias consequências, logo que se trata da esperança. Cada um espera sempre ser o melhor e superior ao outro, visando, assim, alcançar um lugar de destaque que lhe venha a granjear glória, sucesso material, económico e reconhecimento social. Ao invés, investe-se muito menos na Esperança, enquanto virtude teologal, que conduz as pessoas a projectarem-se no transcendente e, quiçá, a orientarem o sentido da vida terrestre em função da vida do além. 114 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo A este propósito, vale a pena referir, aqui, a expressão e os propósitos duma jovem interrogada por um jornalista em Fátima no dia 21-11-2004, após a “Missa da Esperança”, acerca dos fundamentos e objectivos da sua esperança. Confrontada com estas questões, responde tão só que esperava que Nossa Senhora de Fátima a ajudasse a ter boas notas para poder ingressar na Universidade. Trata-se de uma aspiração justa e comum a muitos jovens da sua idade e das suas famílias que vêem na entrada na Universidade a realização de um sonho que vão acalentando durante a adolescência e, para muitos, uma etapa fundamental em favor da mobilidade social. Desta maneira, do percurso que aí fizerem e dos resultados do curso escolhido ou atribuído depende, em grande parte, a orientação da sua vida futura, sob vários pontos de vista. A ilustração destes aspectos, em termos pragmáticos, não apresenta qualquer dificuldade de compreensão. Confia-se, espera-se e pede-se a Nossa Senhora, a Deus ou aos santos o auxílio necessário para se alcançar os principais objectivos que orientam o sentido do esforço que se faz para conseguir algo na vida. Porém, uma dimensão de carácter mais transcendental da esperança afigura-se ausente. No entanto, não se pode afirmar, como muitas vezes se ouve, que vivemos, hoje, num mundo sem esperança. De resto, o ditado popular diz que “a esperança é a última coisa a morrer”. O que acontece é que a esperança que anima uma grande parte das pessoas e, pelo menos o mundo ocidental, em geral, à medida que a prática religiosa e o compromisso cristão decrescem1, é mais de cariz material e pragmático e menos orientada por razões transcendentais, mesmo se se Insistir-se-á que apesar das práticas religiosas diminuírem em Portugal, as crenças religiosas, em termos de identificação social, permaneçam elevadas como nos diz, M. Villaverde Cabral e a sua equipa: em 2000, 89,3% dos portugueses afirmavam-se católicos contra 95% em 1991 (INE, Dados do recenseamento). Trata-se, nuns casos, de praticantes assíduos, noutros de praticantes temporários ou pontuais e noutros de crentes, que não praticando, nem por isso deixam de recorrer ao sagrado logo que as situações a isso os impelem. 1 Nós esperávamos que... 115 recorre ao sagrado, visando os objectivos que se procuram, independentemente das suas características. O que se pode, então, dizer é que o sentido e o orientação que as pessoas atribuem à esperança, em muitas condições, vem mudando, investindo-se, frequentemente, no material, nas tarefas do mundo, quer a nível das preocupações que, por vezes, assolam a vida das pessoas, quer quando se buscam objectivos que têm a ver com a vida quotidiana ou com projectos mais alargados. Só que ela fundamenta-se e orienta-se mais pelo lado material do que pelo espiritual e/ou transcendental, sendo assim imbuída de novas significações, em relação a um passado ainda não muito recuado. Ao longo dos últimos decénios, em que a modernidade é movimento pelo movimento e as próprias pessoas, em todos os quadrantes da vida humana e social, se tornam presa fácil deste ritmo vertiginoso, em termos de esperança, as vertentes relacionadas com o secular e o espírito do tempo, assumem, nos nossos dias, maior significado. Investe-se no “hic et nunc”, como se a vida se orientasse apenas pelo instantâneo e pelo efémero e fosse muito menos alicerçada numa esperança que projecte para o além e para lá do gozo e realizações imediatos. Em contrapartida, também constatamos que em situações algo desesperadas, sejam elas de que índole forem, a esperança afigura-se como a principal tábua de salvação que leva as pessoas a irem em frente e a procurarem novas formas de resolverem as situações, sobretudo quando são complicadas ou parecem não encontrar na ciência, na técnica, no desenvolvimento económico e social o remédio que procuram, como acontece, frequentemente, em casos de doenças algo desesperadas ou outros situações similares. Interessa deixar claro a este respeito, que, ao procurarmos compreender a panóplia de significações que são atribuídas à esperança nas sociedades hodiernas, tenhamos de ter em conta as transformações socio-económicas, culturais, religiosas e familiares, sobretudo desde a segunda metade do século XX, bem como as novas influências culturais na ordem do dia e o sentido para a existência. 116 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo As novas dinâmicas sociais É um facto sobejamente conhecido que as mudanças sociais e culturais que se têm produzido nas sociedades da modernidade, de há dois séculos a esta parte, abrangem todos os domínios da vida económica e social. Sob o ponto de vista económico, durante este período, fixemos, apenas, a nossa atenção no que podemos designar de “terceira revolução industrial” (D. Mercure, 2001), que tem lugar na segunda metade do século passado. Esta nova revolução reveste um carácter científico e tecnológico inédito, como testemunham, por exemplo, as forças até então desconhecidas da energia atómica, o desenvolvimento da automatização, os avanços espectaculares da indústria química, as progressivas inovações no domínio do tratamento e da difusão da informação, as novas descobertas médicas permitindo fazer maravilhas em termos do combate à doença e recuperação da saúde, assim como a expansão, sem precedentes, do sector dos serviços e das grandes burocracias. Após a segunda guerra mundial, na maioria dos países ocidentais, começa uma época de enorme crescimento económico, até ao primeiro choque petrolífero de 1973-1974, designado por J. Forrastié (1979) “os trinta gloriosos”. Na mesma lógica, esse período é caracterizado por quatro realidades que nos são familiares: o consumo de massas, a extensão do assalariado e uma elevada sindicalização, ou seja, uma relação salarial fundamentada em contratos de trabalho de longo prazo com garantias de emprego, o ingresso duradoiro das mulheres no mercado de emprego e a progressão dos salários ao ritmo dos ganhos da produtividade. Enfim, regista-se o crescimento do nível de vida das populações e o impulso do Estado-providência. Em suma, estamos perante um regime de acumulação de riqueza, caracterizado pelo poder de compra dos assalariados e desenvolvimento de mecanismos de distribuição de riqueza. Com estas novas realidades podem, finalmente, realizar-se as ideologias prometaicas que reinavam desde o século XVIII e para onde as pessoas pareciam, Nós esperávamos que... 117 então, orientar as suas esperanças: mais progresso, mais bem-estar humano, material e social. O caso português, devido ao sistema político e económico vigente, nem no tempo nem na qualidade, não se enquadra exactamente nas mesmas prerrogativas. Por isso, apesar da importante implementação e desenvolvimento industrial alcançados nos anos sessenta, praticamente, nunca veio a atingir tal situação, mesmo com as substanciais melhorias socio-económicas verificadas nos anos noventa do mesmo século. Todavia, em termos ideais e de objectivos, sobretudo, após a revolução de 1974, no seio da sociedade portuguesa, com diferenças de calendário, vão-se afirmando, também, os mesmos princípios. Em termos gerais, mais atentos à complexidade, sempre algo contraditória, que esta problemática encerra nas sociedades dos nossos dias e às preocupações que os novos rumos sociais têm conduzido em termos de esperança, é sabido que esta época de grande desenvolvimento material e maior bem-estar social, se modificou, a partir do terceiro quartel do século XX, com a recessão económica associada às crises petrolíferas de 1973 e 1978. Esta situação, marcada por menores ganhos de produtividade, traduz-se por uma crise das finanças públicas e um menor impacto das regalias do Estado-providência, tal como se vem, também, constatando entre nós. Simultaneamente, aumenta o desemprego de longa duração ou, até, de maneira mais ou menos definitiva para aqueles que vêem caducar os seus contratos de trabalho a partir de certas idades da vida. Ora, numa sociedade salarial, em que a sobrevivência humana, quer individual quer familiar, depende essencialmente do emprego, não admira que, com o desemprego, aumente a pobreza e todos os problemas sociais daí decorrentes: ruptura dos laços sociais, exclusão, marginalização, desespero, desilusão, delinquência, violência, insegurança, revolta em vez da esperança que dá ânimo e abre novas perspectivas à vida das pessoas. Será, então, que em situações desta natureza as pessoas podem continuar a manter aquela esperança que dá ânimo, alegria e 118 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo orientação à vida ou são mais tentadas a caírem no desespero e na desilusão? Um olhar atento sobre a realidade permite-nos constatar que umas continuam a alimentar a esperança de que melhores dias virão, invocando até a protecção divina, de Nossa Senhora e dos Santos, perspectivando, assim, novas oportunidades de emprego. Porém, outras parecem enveredar pelo caminho contrário, caindo no desânimo e no desespero, como o evidenciam o aumento dos suicídios, dos sem abrigo, o refúgio na droga ou noutros paliativos e subterfúgios, procurando, deste modo, colmatar a falta de esperança que os anima. Esta é uma questão crucial que nos conduz a reflectir, quando sabemos que na sociedade portuguesa dois milhões de pessoas vivem no limiar da pobreza e 300.000 sem o estritamente indispensável à sua sobrevivência, o que as impede de viverem uma vida individual e familiar com o mínimo de dignidade. Muitas vezes, estamos perante pessoas e famílias destroçadas, onde, em vez da esperança em melhores dias, abunda o desânimo e a falta de confiança em tudo e todos, o que afecta outras dimensões da esperança, mais relacionadas com o espiritual e o além, ainda mais, quando vivemos em sociedades, em que se denota uma muito menor tendência para sublimar os reveses que as condições de vida e a própria organização social e política proporcionam. Ora, de uma tal observação, acontece precisamente que este aumento da pobreza em Portugal e noutras sociedades ocidentais, vai de par com o aumento da riqueza no mundo, na era da globalização. Por exemplo, entre nós, os carros de alta gama, as casas grandes dotadas de todo o conforto e artefactos modernos e a generalidade dos artigos de luxo são os que mais depressa se vendem. Sendo assim, as desigualdades sociais tendem ainda a acentuar-se, ou seja, quer os países, quer os grupos sociais ricos são cada vez mais ricos e os pobres são cada vez mais pobres. Neste contexto, a esperança, seja qual for o sentido que lhe atribuamos, assume uma valorização distinta de uns grupos sociais para os outros. Normalmente, há os ricos, os abastados e os bem colocados na vida, dotados de esperança elevada Nós esperávamos que... 119 na realização das suas aspirações e projectos mais imediatos e, inversamente, os outros que, embora alimentem a esperança de poderem vir a modificar a sua situação, nem sempre vêem realizadas as suas expectativas. Uma questão permanece em aberto. Que sentido atribuir a estas formas de pobreza que mais não são do que o resultado de uma organização social que forja e aprofunda as desigualdades sociais? Como transmitir uma mensagem de esperança, que não se inscreva apenas na materialidade, a pessoas que, sendo vítimas da discriminação social e privadas de bens essenciais para a sua sobrevivência humana e social, sentem mais razões e propensão para o desânimo e o desespero, ainda que possam dizer ter esperança em Deus e que um dia a sua situação poderá mudar? Outras, ao invés, vivem apenas resignadas com a sua sorte, que mais não é do que o resultado duma pobreza que não procuraram mas onde nasceram e parecem destinados a aí permanecer. Pessoalmente, somos contra toda a espécie de fatalismos, pois entendemos que com ocasiões socio-económicas e culturais propícias poderá ser dada às pessoas a oportunidade de modificarem o rumo da sua vida. Só que essas tais condições são, muitas vezes, desprezadas por uns e negadas a outros, o que não deixa de questionar, por um lado, as formas de organização social, as atitudes e os comportamentos e, por outro, as razões da esperança que transmitimos no mundo em que vivemos. É em oposição a estas situações que se coloca o Sermão da Montanha (Mt. 5-3), ao fazer o elogio da “pobreza de espírito”, mas não aquela que não permite a todo o ser humano viver com a dignidade a que tem direito. Todavia, além de muitas outras consequências, frequentemente, nem por isso se encontra menos nestes grupos a esperança que imprime outro sentido à vida que não se esgota no material mais imediato. Em certas circunstâncias, conformados com a “sorte” que lhes parece reservada, a esperança aparece como o principal e último reduto a que podem agarrar-se. O pior é quando aqueles que podem contribuir para que algo mude na vida destas pessoas se limitam nos seus discursos a deixar transparecer a ideia 120 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo de que lhes vão proporcionar os meios necessários para melhorarem a sua situação, sem que na realidade alterem nada. Assim, será que em condições humanas e materiais desta natureza há espaço para alimentar uma esperança que se eleve acima do material mais imediato? E, inversamente, para outros bem instalados na vida ou mesmo bem remediados, será que na abundância do bem estar material que desfrutam há lugar para outras concepções de esperança que pode imprimir outra dinâmica à sociedade e torná-la mais justa, mais humana, mais solidária e mais aberta ao transcendente? É que a esperança não é apenas algo com que se espera e acredita alcançar determinados objectivos de maneira individualizada, mas é também algo que se partilha e que procura contagiar os nossos semelhantes na procura de outras significações. As influências culturais na ordem do dia A partir deste ponto, é possível falar, ainda, da influência, ao nível da esperança, das transformações culturais que têm tido lugar desde os anos sessenta do século XX e que se vêm a acentuar ao longo dos últimos decénios, ou seja, na designada era da globalização dos tempos hodiernos, bastante diferente de outras formas de “mundialização” produzidas ao longo da história humana. A este propósito, deve aliás observar-se que, dum modo geral, na maioria dos países ocidentais, desde os anos sessenta, se assiste a uma profunda transformação dos sistemas de valores tradicionais. Isto não significa, de modo algum, que as sociedades da modernidade inacabada (J. Pavageau et al., 1996), aboliram todos esses valores. Ao contrário, eles são hoje objecto de outras significações, como o refere o inquérito relativo aos valores mundiais (Inglehart, Basanez, Moreno, 1998), aplicado em 40 sociedades, representando 70% da população mundial. Os dados recolhidos dizem-nos uma coisa muito importante: os jovens revolucionários dos anos sessenta, na verdade subscrevem valores idênticos aos dos pais: democracia, liberdade, autonomia individual, menor importância da religião e da autoridade. Recen- Nós esperávamos que... 121 temente, um trabalho prosseguido no distrito de Braga, em 2003, junto de 99 famílias, sobre a problemática da transmissão de valores intrafamiliares e inter-geracionais, permitiu chegar a resultados idênticos (A. S. Leandro e M. E. Leandro, 2004). Todavia, menos respeito pela autoridade não significa que ela é totalmente desvalorizada, mas antes que para ser aceite necessita de ser intelegível e legitimada. Pensemos tão só nos grupos de “gangs” ou sectários para nos darmos conta como são aceites e seguidas as orientações e a autoridade do chefe, esperando, assim, alcançar os objectivos pretendidos. Em temos weberianos, doravante a autoridade “racional” é mais facilmente aceite que a autoridade “carismática” ou “tradicional”. Esta mudança traduz a afirmação de um valor: o da dignidade do indivíduo. Em suma, em certos aspectos, o sentido dos valores que alimentam a esperança subsiste, só que imbuídos de novas significações. Denota-se, desta maneira, que há um consenso sobre os julgamentos de valores, embora haja novos conteúdos: o da preocupação do respeito pela pessoa e, de maneira geral, um menor impacto da autoridade constrangedora sobre o indivíduo, que se traduz por diversas formas políticas, religiosas, ideológicas, entre outras. Hoje, dá-se menos crédito às verdades feitas e definidas uma vez por todas, mas continua a acreditar-se nas verdades e nas pessoas que são coerentes e autênticas, sendo, normalmente, as mais dignas de respeito e as de quem se espera maior contributo para o bem pessoal e das sociedades. Passa-se, de maneira geral, o inverso em relação às outras, pois tendem a ser objecto de maior desconfiança e, por isso, menos capazes de captar a esperança dos outros, logo que se trata de implicações sociais, visando o bem das sociedades e a melhoria da vida das pessoas. Frise-se que, sem qualquer desprimor pela classe política, um contexto desta natureza tem vindo a mostrar que a política congrega cada vez menos a esperança, o interesse e o empenhamento dos cidadãos. São cada vez mais aqueles que se dizem desiludidos perante as faltas de coerência com que aqui e ali vão sendo confrontados. Neste 122 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo sentido, pode dizer-se que muitas destas pessoas se sentem defraudadas, face às esperanças que depositaram naqueles que conduzem os destinos da sociedade. De resto, é um dado adquirido, pelo menos à escala nacional e europeia, que em todas as idades da vida, há uma falta de interesse pelo voto político-partidário, logo que os cidadãos são convocados para eleições, o que traduz bem a falta de confiança na realização dos projectos apresentados. Ao invés, recentemente, todos os estudos feitos, à escala nacional, internacional e até mundial, revelam um facto importante, no que se refere à religião. Apesar do decréscimo da prática religiosa e duma menor influência da Igreja na sociedade (D. Hervieu-Léger, 2003), em muitas situações, concede-se maior credibilidade à religião que à política. Mais ainda, quando as pessoas estão realmente desesperadas, por vezes até os não crentes, tendem a recorrer muito mais ao divino e ao sagrado em geral do que a qualquer outra instância política ou ideológica. Em termos práticos, procurando dar novas razões de esperança e influenciar as formas de viver, muitas das mensagens do Papa podem não ter o eco esperado, mas, globalmente, são das mais tidas em conta, mesmo por aqueles que são estranhos à vida da Igreja Católica. Basta pensar nos encontros com os jovens, nos apelos feitos à paz, à defesa do ambiente, à não violência no mundo, ao diálogo com outras religiões ou outros aspectos similares. A pertença e a prática religiosas diminuem, mas reforça-se o sentimento e a esperança de que a Igreja tem resposta para as necessidades espirituais (P. Bréchon, org., 2000) e continua a verificar-se uma valorização das cerimónias religiosas e mesmo de certos ritos de iniciação, como o baptismo, a 1ª comunhão, o casamento e o funeral. Uma primeira indicação que daqui se pode retirar é que se trata menos de uma relação com um Deus pessoal, fruto de uma escolha personalizada, do que com Deus “força vital”, inscrito numa tradição ritualizada e socializadora. Parafraseando G. Le Bras (1955), podemos dizer que estamos perante o fenómeno dos “cristãos das quatro estações”, uma vez que, maioritariamente, se ignora a importância da religião sobre outros aspectos Nós esperávamos que... 123 da vida (T. Fernandes, 2003). Daí que a esperança, na perspectiva que lhes é conferida pela religião, no caso que estudamos, a católica, não tenha, actualmente, o impacto de outrora, em termos da sua manifestação exterior. Porém, apercebemo-nos que, duma maneira discreta, a esperança, mesmo de carácter sacral, continua a ter algum impacto, designadamente em certos momentos da vida. No âmbito destas considerações, vale a pena lembrar, por exemplo, que, em matéria de formação da família, o casamento religioso, embora em decréscimo, continua a ser o mais elevado, não só em Portugal como na maioria dos países ocidentais. Entre nós, os estudos realizados (S. Leite, 2002; S. Aboim, 2004), revelam que muitos daqueles que começam a vida familiar pela união de facto, vêm, mais tarde, a contrair casamento e alguns destes optam pelo casamento religioso. À primeira vista, estas atitudes permitem-nos dizer que muitos jovens, ainda que não praticantes, continuando a casar religiosamente, conferem a este acto um alto valor simbólico e prático: perante os fantasmas do divórcio, o casamento religioso, sendo indissolúvel, permite alimentar a esperança de que se tratará de uma relação duradoira e sem rupturas, apesar de tão frequentes na actualidade. Mesmo assim, invocando os vários trabalhos que têm sido feitos à escala nacional, europeia e mundial (A . Nunes de Almeida, 2003; P. Bréchon, org., 2000; Inglehart, Basanez, Moreno, 1998), ao longo das últimas duas décadas, a família vem sendo objecto de grande revalorização e vista, em 1999, por 82% dos portugueses e 87% dos europeus, como um valor muito importante. Ela aparece, deste modo, e ainda mais quando a religião deixa de ter o impacto de outrora, como o principal alfobre de esperança contra as agruras que a vida do dia a dia pode proporcionar. Aludindo, depois disto, aos valores morais, acredita-se que, por vezes, é difícil distinguir o bem do mal, mas aceita-se que há uma distinção entre eles. É-se mais tolerante em relação aos desvios morais porque a tolerância se tornou num valor central das sociedades dos nossos dias, na medida em que cada um, podendo escolher livre- 124 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo mente os seus valores, a verdade na matéria não é concebida como dada uma vez por todas. Nos jovens, observa-se um maior espírito crítico, em vez do cepticismo que pode conduzir ao desespero e à desilusão. A religião, em termos de ética e de moral, é concebida como uma componente entre as demais. Então, os jovens acreditam menos nos dogmas e mais na ciência, nas descobertas e benefícios da técnica, nas mensagens transmitidas pelos colegas e pelos media e no triunfalismo da razão . Talvez por isso a sua Esperança seja orientada para coisas mais pragmáticas: realização e prazeres corporais, o culto do corpo e da beleza, acesso ao carro, afirmação social, sucesso nos estudos, no desporto, nas aventuras amorosas e de lazer, num trabalho interessante e bem pago, nas boas condições habitacionais, na realização pessoal e na busca de felicidade, como valor central da modernidade inacabada. Só que, frequentemente, muitas destas vivências são efémeras e, em tais condições, podem vir a produzir desilusões fortes. Daí que se possa falar em falsas esperanças, porque se trata daquelas que, além de não conferirem confiança e apontarem para certezas, mesmo que estas contenham sempre algo de aleatório, são desprovidas de sentido mais elevado que possa oferecer segurança na continuidade. No mesmo sentido, esta tendência actua também junto das pessoas em geral, independentemente das idades da vida, pois que, duma maneira ou da outra, todos alimentam a esperança de virem a ser felizes, o que é legítimo e preconizado pelas próprias religiões. Só que, nestes casos, a felicidade pode vir a ser diferida e tornar-se em objecto transcendental, o que parece suscitar menos adesão nos tempos que correm, em que o geral das pessoas procura o pragmatismo, o gozoso, aqui e agora. Por outro lado, à medida que as mentalidades se transformam e se tornam mais permissivas e mais influenciadas pela materialidade das coisas do dia a dia, as descobertas científicas e tecnológicas avançam, os ganhos de produtividade crescem, as possibilidades de exploração dos mais fracos prevalecem em favor dos mais abastados, a ambição do ter em vez do ser expande-se e assim por diante. Não admira, pois, que em contextos Nós esperávamos que... 125 desta natureza, a esperança tenda também ela a associar-se a valores materiais e hedonistas ou outros semelhantes que parecem estar mais ao alcance directo das pessoas. O tempo da secularização e da esperança Realisticamente, vivemos hoje num tempo que é mais marcado pela influência da secularização do que pelo impacto da religião e das virtudes que a ela estão associadas, como a esperança. Observando o que se passa à nossa volta, damo-nos conta de que se encontram pessoas que, em situações algo difíceis, e que não têm apenas a ver com a pobreza material, esperando modificar as condições em que se encontram, apesar dos efeitos da secularização, por força da tradição, continuam à procura de outro rumo, através do recurso às forças transcendentais. O caso é notório, a nível das promessas dirigidas a esta ou àquela entidade sagrada, com a esperança na resposta para o problema que as preocupa. Mas, será que, em situações normais da vida quotidiana, a chama da esperança mantém a mesma intensidade? Em nossa opinião, é aqui que permanece uma das questões que interrogam hoje a simbologia da esperança e os seus efeitos. O debate sobre esta problemática continua. Já nos referimos à relação entre situação socio-económica e cultural e às singularidades da esperança entre diversos grupos sociais e as orientações e sentidos que lhe podem ser outorgados. Não temos, de modo algum, a pretensão de esgotar o assunto nesta matéria. Todavia, vale a pena evocar o caso, que assume cada vez maiores proporções nos dias de hoje, das pessoas que põem a sua esperança na eficácia dos efeitos mágicos advindos da vidente, da cartomante, da bruxa, do pai santo, do astrólogo e tantos outros agentes do maravilhoso, às vezes até em forma de “seita”, que parecem oferecer uma solução imediata e adaptada às circunstâncias do momento. Ademais, o recurso a estes meios fundamenta-se, muitas vezes, na busca do “remédio”, da “cura” do “sucesso” rápido para pessoas e casos em que a espera, mais ou menos prolongada, se traduz em desespero. Deste modo, se 126 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo podem alimentar falsas esperanças, mas que, no concreto, em vários casos, parecem produzir efeitos práticos e sem grandes compassos de espera. Ora, em contrapartida, no que se refere ao sagrado transcendental, perfilhado pela Igreja Católica, muitas vezes, Deus afigura-se lento em responder como nos mostra, por exemplo, o caso de Job do Antigo Testamento (33) e até Cristo parecia adormecido na barca quando se levanta a tempestade e os apóstolos estarrecem de medo e vacilam na sua fé e esperança (Mc 4, 37-41). O grande problema é que numa sociedade marcada pela laicização, pelos automatismos e a rapidez, as pessoas mostram-se menos capazes de manter uma esperança e confiança inabaláveis, logo que as coisas tardam em ajustar-se às suas aspirações mais imediatas. Uma outra demarcação tende a manifestar-se em situações desesperadas, em que parecem esgotadas todas as capacidades humanas, científicas e tecnológicas, como é, por exemplo, o caso de certas doenças julgadas incuráveis, ou outros que parecem insolúveis. Neste contexto, não raramente, deparamos com pessoas que parecendo indiferentes, de repente se afirmam extremamente crentes e dotadas de uma esperança inabalável, como podemos constatar nos dias que correm. Não sem tensões e hesitações, o que se pode, então, dizer é que num mundo cada vez mais descristianizado (D. Hervieu-Léger, 2003), não serão muitos aqueles que têm sempre presente as palavras de S. Paulo aos Efésios (1, 18-22), segundo o qual nos céus está Cristo nossa esperança. Porém, o desespero pode desencadear num lenitivo que imprime outro rumo à sua vida. Do que essencialmente se trata aqui é de constatar que, em sociedades complexas como aquelas em que vivemos, se verifica que há um certo sincretismo em termos de esperança. É algo deveras complexo, quando tentamos interpretar a panóplia de casos que se apresentam. E que dizer da esperança das crianças e dos jovens, garantia de futuro, vivendo em situações tão díspares e, por vezes, sem esperança em melhores dias, como acontece, frequentemente, com situações de pobreza gritante, violência, discriminação, doença, disfuncio- Nós esperávamos que... 127 namentos familiares, insucesso escolar, toxicodependência e outras formas de delinquência e desvio? Decerto que se vivessem noutras condições poderiam ver alargado o leque das suas aspirações, nutrir outras razões de esperança, à semelhança dos seus coetâneos que, vivendo em boas condições materiais, humanas e sociais podem realizar diferentemente as suas aspirações e conferir, deste modo, outro sentido à esperança que os anima. De qualquer modo, uns e outros tenderão a ser portadores da esperança que os adultos sejam capazes de lhes veicular. Tenha-se em conta que as crianças e os jovens, pelo que são e pela promessa de futuro que auguram, têm direito a que a sociedade olhe para eles como esperança de amanhã, no pleno sentido da palavra e não apenas no sentido reprodutivo, isto é, como quem herda apenas um legado material e de cultura secular. Daí que tudo o que a família, as outras instâncias de socialização, inclusive a Igreja e a sociedade em geral possam proporcionar-lhes, no sentido de fazer deles mulheres e homens de esperança, o que não se encerra, apenas, nas fronteira do material e do consumo mais imediatos, nunca seja demais. Mas não. Em muitas circunstâncias, tanto jovens como crianças, numa sociedade consumista e hedonista, são, por vezes, mais percepcionados por muitos adultos como “utilidade marginal a consumir”, do que pessoas que têm direito a desenvolver-se harmoniosamente e a crescer com sabedoria e esperança, sobre os variados aspectos que integram a vida pessoal, familiar e social. Num mundo devastado por guerras, terrorismos, medos, fobias, pessimismos e fantasmas de toda a ordem, mas que investe muito no sucesso pelo sucesso, seja ele de que ordem for, tenha-se em conta que há também muitos oásis de grandes virtudes que urge fazer frutificar, de modo a que todos, crianças, jovens, adultos e idosos, possam advir sujeitos-actores na construção de um mundo melhor e com mais esperança. A insistência nesta ideia de que o sentido atribuído à esperança se tem modificado ao longo dos últimos tempos, com maior insistência para o material, o secular e o imediato, não nos impede de nos 128 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo determos um pouco mais na condição da juventude. Esta não é tão só uma realidade biológica ou natural, nem algo que se define por meros critérios etários, mas uma “condição social” que se constrói histórica e socialmente (M. E. Leandro, 2001). Significa isto que cada época e cada sociedade condiciona e diferencia, socialmente, as juventudes e os jovens que têm. Naquelas em que vivemos, a par de situações de marginalização, delinquência juvenil, droga e demais males sociais, queremos fazer relevar a generosidade e testemunho de esperança de tantos jovens que se manifestam, por exemplo, através do seu empenhamento em acções de voluntariado em favor dos mais necessitados, no modo como são capazes de se entregar a causas em prol da justiça social e ainda daqueles que, sentido o apelo de Deus, são capazes de se entregar totalmente ao serviço dos outros, através do sacerdócio ou da vida religiosa, ou ainda em formas de entrega de trabalho missionário temporário. Interessa deixar claro, a este respeito, que se trata de autênticos testemunhos de esperança que se elevam acima do trivial e do que é mais corrente nas sociedades hodiernas. À semellhança de Maria, tanto na Anunciação do Anjo: “...faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc, 1,38), como nas bodas de Caná: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2, 1-11), ou ainda junto à cruz, sinais plenos da esperança que a animou ao longo de toda a vida, também há muitos jovens, hoje, que estão dispostos a fazer o que “Ele” lhes disser para que a fé, a esperança e o amor possam ter outro impacto num mundo mais orientado pelos valores materiais. As derivas da esperança no contexto da modernidade Insistir-se-á depois disto na associação existente entre as formas de conceber a esperança e a modernidade actual. Esta última é caracterizada pela rapidez do movimento, o novo, o inédito, a procura incessante de novas experiências, a aventura, o que a faz dificilmente situável e identificável. Ela impõe a exploração de novos possíveis e recusa a fixação, o duradoiro ou eternamente definido. Como diria R. Barthes (1957) ser moderno é saber o que não é mais possível. Nós esperávamos que... 129 Uma primeira indicação que se pode tirar daqui é que a modernidade é manifestação e expressão das rupturas subjacentes às continuidades, o que faz com que se alterem as referências que ficam cada vez mais ao sabor deste ritmo de mudanças vertiginosas. E tanto mais necessariamente que a multiplicação e impacto dos “mass media” provoca uma ampliação das narrativas, das notícias e dos spots publicitários, tentando restituir incessantemente os acontecimentos, sempre na procura frenética da novidade e até do insólito. Mais ainda, actualmente, a modernidade multiplica os meios para se produzirem os artefactos, as aparências e as dissimulações. Seguindo de perto este fio de raciocínio, poder-se-á dizer que a formação e o significado da esperança nos nossos dias participa também deste movimento que, em certas circunstâncias, faz com que se alimente dos imponderáveis que este processo contém. Daí que possamos falar de esperança como algo que permite às pessoas projectarem-se em vários possíveis, muitos dos quais efémeros e com mais tendência para se inscreverem na ordem do material do que na ordem do ser. Mais ainda, em muitas circunstâncias, o ser parece estar hoje sujeito ao império do ter e do parecer, personificado na competividade em todos os domínios da vida – desportivo, escolar, económico, profissional, político, social, entre outros aspectos. Ainda que só possa haver alguns eleitos, todos sonham e querem ser o primeiro, o melhor, ultrapassar o outro e ir em frente contra ventos e marés. É assim com a marca do automóvel, o desporto, a indumentária e respectivos adornos que a integram, a grandeza da casa, o local onde se habita, a escola, a universidade ou o curso que se frequenta, a nota que se alcançou, o emprego que se exerce, os locais que se frequentam, a qualidade do lazer, os programas de férias, as formas de consumo e aí por adiante. Muitas vezes, o que importa é o triunfo sobre tudo e todos, ainda que não se olhem aos meios para atingir os fins. Compreende-se que num quadro problemático como este, em que se verifica que a esperança é menos objecto de orientação para valores mais seguros, quiçá de ordem transcendental, ao invés, se 130 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo invista muito mais nas aparências e no pragmatismo. Em termos identitários, até a um passado ainda recente, num encontro entre desconhecidos, perguntava-se à pessoa “quem és”. Hoje pergunta-se-lhe antes “o que fazes”, o que se torna num indicador do que tens. Lá diz o ditado que, aliás, não sendo novo, continua a ter uma retumbante actualidade: “quanto tens quanto vales, nada tens nada vales” “ou quanto parecemos quanto valemos”. Ora, um tal imaginário social não pode deixar de produzir efeitos, logo que se trata de se interrogar sobre as razões que legitimam a esperança nos nossos dias. Por outro lado, denota-se que quando a esperança é canalizada para o imediatismo, para a procura exclusiva da felicidade nas coisas materiais enquanto tais, quando estas deixam de corresponder às expectativas, arrisca-se a queda na desilusão e no vazio, como o refere G. Lipovetsky (1991). Corre-se o risco de enveredar pela lógica consumista do pronto a comprar, a vestir, a habitar, a cozinhar, a ler, a explorar, a utilizar e a deitar fora, quando se desvaneceram as razões ou desapareceram os suportes que sustentavam estas (i)lógicas. A esperança dessacralizada e dessacralizante Se associarmos este conjunto de fenómenos aos da laicização e da secularização das sociedades, implementadas com a modernidade, é fácil apercebermo-nos de que as razões que fundamentam a esperança de muitas pessoas tendem a deslocar-se da significação conferida pela religião e o sagrado em geral, para o material mais imediato e para a racionalidade, que não tem deixado de se intensificar com o desenvolvimento científico e tecnológico. Aliás, a racionalidade, associada à modernidade, retira muitas das esperanças anteriores e cria outras formas de esperança, mas também muitas ilusões. Por outro lado, a ciência, não anulando a esperança, mas podendo pôr o dogma em dificuldade, não anula a ética e a moral, mas é ela própria objecto de ética e de esperança para muitos problemas que prevalecem no mundo. Mas nem sempre tem resposta para muitas das questões que se levantam nos nossos dias que, apesar de muitos males que o Nós esperávamos que... 131 assolam, se apresenta atravessado por uma sede de esperança que permita melhorar a sua condição. Sob o ponto de vista doutrinal, a esperança é uma das três virtudes teologais que leva o cristão a pensar que será salvo e que obterá a graça divina, isto é, a esperança – que, aliás, parece mais ausente e, por isso, menos influente nos tempos que correm – conduz as pessoas a projectarem-se no além, no transcendente, quer a vida lhes pareça promissora, quer lhes apresente dificuldades. Neste último caso, parafraseando M. Weber (1971), estamos frequentemente perante uma “economia da salvação” que consiste em fazer acreditar e ter esperança em que o sofrimento deste mundo se transforma num capital de salvação na vida do além. Todavia, com o decréscimo do impacto público da religião que se tem verificado, mesmo entre nós, designadamente desde meados do século XX, estas atitudes tendem a mudar substancialmente. Por exemplo, segundo os resultados do inquérito aos valores europeus realizado em 1991 (L. França, 1993), para 66% dos portugueses Deus é um valor “muito importante”, contra 50 % dos europeus. Em contrapartida, interrogados sobre se acreditam na vida após a morte, apenas 31% e 43%, respectivamente, dizem que sim. Posteriormente, o inquérito de 1999, sobre a mesma problemática, veio revelar que na Europa, ao mesmo tempo que aumenta o ateísmo, aumenta a crença num Deus “força vital”, mas diminui a importância da religião e a Esperança que lhe está associada. Acredita-se, outrossim, noutras formas de vida para além da morte e nas crenças paralelas: reincarnação, Deus como “espécie de espírito ou de força vital”, consulta do horoscópio, telepatia e amuletos. Assim se criam outros redutos de esperança que não têm a ver com o mundo transcendental sagrado, mas imanente, maravilhoso e até mágico. Entre nós, registe-se que o recurso a estes elementos, sob diversas formas, tem crescido vertiginosamente. Em muitos casos, acredita-se e temse mais esperança no que diz a vidente, a cartomante, a feiticeira do que diz o médico, o padre, a religião em geral, a própria ciência, entre outros aspectos. Ao contrário do que dizia M. Weber em 1918, 132 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo parece que estamos a voltar de novo a um mundo “reencantado”, onde o sentido da esperança adquire outra orientação. Quanto à influência da religião católica, no que se refere às crenças no Céu e no Inferno, acredita-se e valoriza-se de longe o primeiro, porque está associado à ideia de felicidade, valor fundamental da actualidade, ao passo que o segundo está ligado a sentimentos negativos. Haverá ainda lugar para dizer que é no espaço do sagrado que a esperança encontra o seu sentido mais profundo, o seu enraizamento natural. Todavia, com a modernidade ela é submetida a profundas mutações e tem hoje uma dimensão profana que, de resto, não é nova. Os ditados populares “a esperança é a última a morrer” ou ainda “enquanto há vida há esperança” atestam esta asserção. Assim sendo, desde há muito que a esperança reenvia também para um sentido material e é tida não só como uma virtude teologal, mas o que há de mais importante na vida das pessoas. Em causas complexas ou mesmo desesperadas, a esperança aparece como o último baluarte a que se faz apelo e permite acreditar e reagir. Ao invés, na Divina Comédia de Dante (III, V. 9), no último verso patente sobre a porta do Inferno aparece a seguinte indicação: “Vós que entrais abandonai toda a esperança”, o que, necessariamente, reenvia ao desespero mais profundo e eterno. Hoje, investe-se muito em esperanças exaltantes em torno de mitos oportunistas, como o mito do presente, dos benefícios da técnica, da igualdade, do sucesso individual associado às performances individuais, legitimadas pelos recursos e capacidades de cada um, dos méritos individuais, do consumo pelo consumo, do ter muitas coisas, da beleza, das imagens que proliferam à volta do corpo, da capacidade produtiva, das máquinas que produzem coisas fantásticas, entre outros. Muitos destes mitos são enganadores e precários e servem, frequentemente, para elaborações frágeis, de modo a sustentarem um espaço mitológico movediço. Este tende a oferecer ao indivíduo amarras provisórias das referências a seleccionar, em função das situações. Usualmente, nos nossos dias, tudo se apresenta como matéria a consumir, desde as várias componentes Nós esperávamos que... 133 dos programas dos media entranhadas de publicidade, as máquinas inteligentes animadas por novas tecnologias, as manifestações espectaculares introduzidas na vida quotidiana, os comércios de lazer ou os vendedores de bem-estar e prazer, até às demonstrações, forjando a apresentação do ego, a gestão do corpo e a aparência pessoal, até à grande variedade de profissionais da psicologia ou ciências afins, propondo novos estados de alma. Mas outras pontas do problema podem ser para aqui trazidas, como as que, por exemplo, dizem respeito aos mitos que envolvem os jogos associados ao dinheiro ou a prémios similares, cuja variedade é imensa, inclusive aqueles cujos promotores lhes atribuem objectivos sublimes, como, seja por exemplo os da solidariedade para com o próximo. Tal é o caso das lotarias, dos vários tipos de totoloto e outros. No entanto, parece que acima desses objectivos se coloca o sonho, a esperança de vir a ganhar o máximo ou até grandes fortunas. Cada um aí investe na esperança de encontrar o seu eldorado. Há aqui uma componente sacralizante, relacionada com os objectivos que lhes presidem e na maneira como mobilizam as pessoas e dessacralizante, na medida em que os apostadores investem muito mais na expectativa de vir a ganhar grandes somas de dinheiro e assim poderem dar outro rumo às suas vidas, mais consentâneo com alguns valores dominantes, como o bem-estar material e social. Podemos olhar, ainda, para esta função (de)sacralisante da esperança, no que se refere a qualquer tipo de jogo. Cada um ou cada equipa espera vir a ser o melhor, o campeão. Pensemos, a título de exemplo, nos jogos desportivos de alta competição, em que se vêem os jogadores a implorar a protecção divina, sob a forma do sinal da cruz, de promessas aos santos ou a Nossa Senhora de Fátima, tal como aconteceu com o guarda-redes Ricardo, aquando do Euro de 2004, na esperança de vir a ganhar o campeonato. Porém, se, neste mundo do espectáculo, a vedeta é a figura do ganhador, do melhor, o objecto de esperança dos adeptos, em virtude dos artifícios da sedução de que é alvo, nem por isso fica menos sujeito às vulnerabilidades da sua condição, logo que venha a defraudar a esperança 134 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo dos seus fãs. Em tais condições, há uma tendência para se instalar a desilusão ou virem ao de cima as falsas esperanças. Aludindo, ainda, ao recurso às forças transcendentais, mais concretamente à fé e à esperança contidas nas promessas a Nossa Senhora e aos santos, há mesmo situações em que as razões nem sempre parecem das mais nobres, como quando se pretendem alcançar objectivos ao arrepio da moral humana e cristã. Apontemos apenas dois casos em que essas condições se tornam claras. Um tem a ver com um roubo e o outro com uma infidelidade conjugal. Quanto ao primeiro, planeado o roubo de um carro em França, para trazer para Portugal por uma mulher, dando, assim, azo a menores desconfianças, é depois a mesma senhora que, após o sucesso deste empreendimento, se desloca a Fátima a pé para cumprir a promessa anteriormente feita. No segundo caso, foi encontrado, pelo pároco, numa das igrejas de Lisboa, junto à estátua de Santo António, um pedido anónimo em suporte escrito, implorando a protecção do santo para que o marido nunca viesse a descobrir as infidelidades conjugais da esposa. Sendo assim, perante estas duas situações, que podem parecer extremas, compreende-se, por um lado, que a fé e a esperança das pessoas não são letra morta, mesmo quando trilham caminhos que vão contra os princípios da conduta moral cristã e social e, por outro, que o recurso à intercessão das entidades sagradas julgadas protectoras, podendo ser deveras adulterado, nem por isso é menos destituído de esperança na realização dos objectivos pretendidos. O que se tem que admitir, hoje, é que apesar de as Igrejas se esvaziarem, as vocações de vida consagrada diminuirem e Deus parecer perder terreno, é que, ao invés, o sagrado está em crescendo. Nunca a necessidade do divino se manifestou tanto como no nosso tempo, ainda que seja caracterizado pela secularização e a laicização. Frequentemente, para escapar aos constrangimentos da excelência do científico, ao imperativo do ultra racional, à ditadura do mercado dos bens de consumo, em suma para encontrar sentido num mundo que, proporcionando muitas coisas boas e muito bem estar, pelo Nós esperávamos que... 135 menos para uns quantos privilegiados, cria também desigualdades e muitas angústias, envereda-se por uma certa negociação ou forja-se uma espécie de “bricolagem” em torno de um menu de espiritualidades onde cada um encontra a que mais lhe convém. O que se pode, então, dizer é que em muitas circunstâncias, se vive uma forma de religiosidade que se caracteriza por uma fé, uma esperança e uma “religião sem dogma” (F. Ferraroti, 1984), mas que nem por isso tem menos que ver com o reavivar da esperança e o apelo às forças transcendentais em determinadas ocasiões da vida julgadas de maior risco familiar, social, económico ou outros do género. Seja como for, a esperança e as virtudes que lhe estão subjacentes são hoje vividas de maneira mais difusa, pluralizam-se e estão sujeitas à lei da concorrência. É frequente vermos as tradições religiosas transformarem-se em bens de consumo e alguns objectos que lhe são peculiares funcionarem como amuletos, sendo envolvidos por muita esperança, por parte daqueles que os usam. Do mesmo modo que o sagrado se difunde no espaço profano, este difunde-se naquele. Os locais de produção e de gestão de sentido dispersam-se, diversificam-se e multiplicam-se as ofertas de sentido e de esperança. Sob o ponto de vista religioso, assistimos hoje a uma proliferação de rituais e tribalização da sociedade e da cultura, na esperança de aí encontrar uma realização do EU o que contribui para a formação de uma sociedade narcísica. Assim sendo, nas sociedades contemporâneas, os meios de produzir muitos redutos, aparências e simulações de esperança amplificam-se. Seguindo outras dimensões da vida, tem-se também esperança numa maior longevidade e com melhor saúde. Sob este aspecto, por vezes ainda que inconscientemente, interioriza-se a ideia do iluminismo, segundo a qual a humanidade poderia vir a vencer as doenças, ainda que não vença a morte. Mesmo assim, simbolicamente, alimentam-se, nos nossos dias, sonhos de imortalidade que se desejariam agora prolongados numa vida terrena que, por um lado, permita a reprodução inter-geracional e, por outro, que não tenha 136 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo ocaso. A esperança na salvação, de carácter transcendental, afigurando-se longínqua e incerta e resultando dos méritos adquiridos neste mundo, parece governar menos o percurso das vidas individuais do que o império da satisfação imediata. Conclusão À primeira vista, quando se procura definir a esperança nos tempos que correm, a resposta não é fácil nem uniforme, na medida em que vivemos hoje num mundo plural e plurifacetado, em período de globalização dos tempos hodiernos que, entre outros efeitos, faz com que as sociedades, por vezes até as mais protegidas das influências deste fenómeno, sejam muito mais abertas às influências internas e externas. Duma maneira ou da outra, sobretudo nas sociedades ocidentais, abundam, hoje, as solicitações, os aliciantes e as promessas do sucesso pelo sucesso, da performance e do pleno bem estar de toda a ordem. O senso comum afirma que nada é como antes, sem saber muito bem onde situar o momento desse passado. Há falta de referências e descobrem-se, sobretudo, razões de incerteza. A vida quotidiana funciona sobre o regime da surpresa, da incerteza e do inseguro e embora uns se encontrem mais protegidos e seguros do que outros, a todo o momento o inesperado pode surpreender cada um. Basta, por exemplo, estar atento aos programas televisivos e aos “mass media” em geral, à imagem dos grupos de pressão, por vezes até numa atitude desesperada, como acontece com os próprios desempregados, para nos darmos conta desta situação. Para falarmos em termos económicos, digamos que a oferta e a procura sendo, nos nossos dias, muito abrangentes, nem por isso se mostram capazes de oferecer a todos, os redutos de esperança que lhes permitam sonhar com uma vida melhor, tanto sob o ponto de vista material como social. Muitas das esperanças da nossa sociedade, sendo, frequentemente, mais da ordem do ter do que do ser, exprimem-se também nas telenovelas ou nos filmes, criando, particularmente nos jovens, a Nós esperávamos que... 137 esperança de vir a ser como tal ou tal vedeta. Vivemos, numa sociedade em que, sob vários aspectos, e muito particularmente para os jovens se investe no imediato, no efémero, no transitório, nas experiências fragmentadas que fazem com que o tempo seja apreendido no instantâneo e no inacabado, no novo pelo novo, na moda, na incitação ao prazer e ao gozo imediatos, no consumo, em que o próprio homem aparece como presa fácil para consumir. Contudo, importa realçar que a par deste movimento, também se verifica, por parte dos jovens e de outros grupos etários, um fenómeno de extrema importância, em termos de esperança que tem a ver com o voluntariado, da maneira como se empenham em causas de solidariedade e de luta contra as injustiças sociais. Por outro lado, tendo consciência que vivemos num mundo menos portador de esperança que se eleve acima do material mais imediato, e entre nós numa sociedade em que a Esperança, no sentido teologal e tradicional do termo, tem hoje um menor impacto, apesar de, teoricamente, se clamar cada vez mais por ela, denota-se que decorre mais da ordem do imanente do que do transcendente, ao contrário de outros tempos em que o religioso e a religião tinham muito maior impacto e legitimação social. No entanto, uma menor confiança e fé num Deus transcendente, pessoal e criador, nem por isso implica o abandono de toda a forma de religiosidade. O que se observa é que esta se caracteriza por uma fé que tem muito menos em conta o dogma que anteriormente fundamentava a religião e as razões sociais que lhes estavam associadas. Daí que possamos dizer que não vivemos num mundo sem esperança, mas antes que, em muitas circunstâncias, ela é de outra ordem na era da modernidade inacabada. Não perdendo de vista estas novas mudanças e atribuições de sentido, interessa anotarmos, antes de terminarmos, o pensamento de dois autores que nos deixaram um legado importante acerca desta problemática. Umas das componentes deste processo encontramo-la em Rimbaud ao afirmar que no termo de todos os esforços, visando 138 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo o melhor, o que se encontra é a esperança: esperança numa verdade mais elevada que a da vida quotidiana pacientemente servida, esperança numa realidade que exige escolhas e até o sentido da sublimação, esperança numa fraternidade que exige que o próximo seja amado, apesar dos seus defeitos e através dos seus defeitos. Não pode existir homem sem esperança. Na continuidade destas asserções, observar-se-á que nenhum rigor, nenhuma exactidão, nenhum método científico, nenhuma tecnologia nenhum pragmatismo, nenhuma competividade, nenhum consumismo, nenhum prazer imediato, nenhuma riqueza material, por maior e mais sólidos que sejam, podem eliminar o que André Malraux diz a propósito destas questões: “um mundo sem esperança é irrespirável”. A este respeito, podemos ainda dizer que quanto mais densa ela for mais se intensificam as palavras do salmista, segundo o qual “Aquele que cultiva a esperança vai abrindo novos caminhos para a paz... “(Sl 84). Bibliografia ABOIM, Sofia (2004), Conjugalidades em mudança. Percursos, orientações e dinâmicas da vida a dois, Tese de Doutoramento, Lisboa, ISCTE. ACTAS Da 4ª SEMANA DA ESPIRITUALIDADE INACIANA ( 2001), A Trindade na Espiritualidade Inaciana, Braga, Editorial A. O. BALANDIER, Georges (1995), Le detour. Pouvoir et modernité, Paris, Fayard. BALANDIER, Georges (1994), Le dédal. 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De entre as várias características que sobressaem, quer por via da análise reflexiva dos fundamentos do pensar quer por via do contacto directo com pessoas e situações do quotidiano, encontra-se o sentimento da desilusão, o desencanto, a incapacidade ou a ausência de fundamentação credível para esperar confiadamente vir a ter alegria, consolação, gozo. Em suma, sente-se um pessimismo ora difuso – “Vamos andando menos-mal!” – ora explícito: “Isto vai de mal a pior!”. Na verdade, existem circunstâncias conjunturais e históricas que contribuem objectivamente para retirar a sensação de segurança e sentido que noutros momentos nos parecia ter: a dependência económica global, repercutindo sobre todos as flutuações nos mercados e na política; a existência duma alta taxa de desemprego e grande número pessoas em situação de pobreza; a actuação de redes de terrorismo à escala mundial com verdadeira intenção e poder destruidor; a mobilidade frenética que impede permanecer num local ou numa actividade o tempo necessário para criar raízes e estabele- 142 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo cer relações não-funcionais; uma sociedade tecnicista e tecnicizante que tende a desvalorizar aqueles cuja vida e produção não pode ser quantificada e avaliada pelo critério da performance (eficácia de realização); a dificuldade de encontrar relações humanas calorosas e gratuitas; o disparar de patologias várias, umas ainda sem cura (sida, ébola, pneumonia atípica, variadas formas de cancro, etc.), outras cujos agentes causadores se tornaram resistentes aos tratamentos tradicionais ou sofreram mutações genéticas, sem esquecermos as doenças do foro psíquico, entre as quais se destaca a depressão, por alguns já apelidada como o “cancro do século XXI”. No entender dos especialistas, a depressão – e este elemento tem o seu interesse para o tema em apreço – para além das causas que a despoletam e lhe estão na origem, é caracterizada por um “sentimento de insatisfação profunda, ‘histórica’, a nostalgia de uma perda.” 1 No entanto, interiormente a estes factores objectivos, o pessimismo característico do nosso tempo tem a sua origem no modo como o homem moderno se compreendeu a si mesmo enquanto ser-no-mundo, na imagem que criou de si. Tem uma origem subjectiva, isto é, radica na concepção que o sujeito do pensar tem de si, das relações com o mundo e os outros, do horizonte de sentido em que joga o seu presente aberto ao futuro. A concepção moderna de sujeito, autoconfiante no poder da razão, indiferente à transcendência e autodeterminado pela vontade e pelo dever em construir um futuro orientado pela noção de progresso, é em grande medida responsável pelo desencanto cultural que respiramos. A história não trouxe o mundo escorreito e justo que, em tempos, pareceu estar ao alcance da vontade e da razão. Vive-se agora, difusamente, um radical sentido de frustração ideológica. Esta é, aliás, a característica que qualifica o nosso contexto cultural como pós-modernidade: “uma negatividade algo velada em relação às capacidade do sujeito moderno, um estado de ânimo sem con1 123. António Coimbra de Matos, A Depressão, Climepsi Editores, Lisboa, 2001, A esperança que transforma e transfigura 143 tornos precisos que invade quase tudo, […] baseado na resignação histórica e no individualismo indolor, […] um certo sentimento não concretizado de frustração, causado pelo ruir de algumas ideias configuradoras da modernidade.”2 No fundo, uma absolutização do presente onde a sensibilidade tem agora a primazia que outrora fora concedida à razão. Falta a confiança de saber o presente, nos seus ritmos e silêncios, aberto e grávido da alegria que o futuro fará experimentar em plenitude. Falta esperança. Paradoxalmente – ou talvez não, já que, em parte, todos somos filhos da nossa época – esta negatividade e/ ou pessimismo verificam-se e experimentam-se também entre os cristãos. O défice de esperança no contexto europeu é reconhecido na exortação apostólica Ecclesia in Europa, de 28 de Junho de 2003, a ponto de tomar como centro da mensagem a urgência dum retorno à vivência daquela dimensão humana: “Esta palavra é dirigida hoje também às Igrejas na Europa, frequentemente provadas por um ofuscamento da esperança. De facto, os nossos dias, com todos os desafios que nos lançam, apresentam-se como um tempo de crise. Muitos homens e mulheres parecem desorientados, incertos, sem esperança; e não poucos cristãos partilham estes estados de alma.”3 O mundo contemporâneo tem sede, não tanto de mais palavras e de noções, por mais importantes que estas sejam na comunicação das realidades. Aspira sobretudo a experimentar uma esperança que não desiluda, que não tenha “prazo de validade” mas oriente e sustente a liberdade porque o ser humano não pode realizar-se sem ela.4 Cf. Juan António PAREDES, Onde está nosso Deus? Diálogo do crente com a cultura de hoje, Paulus, S. Paulo, 1999, 121s. 3 Ecclesia in Europa, 7. 4 “Todavia, como sublinharam os padres sinodais, «o homem não pode viver sem esperança: a sua vida perderia o sentido, tornando-se insuportável».” (Ecclesia in Europa, 10). 2 144 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo Sem esperança o homem – e por conseguinte o mundo criado – vive carente de sentido, podendo mesmo chegar a conceber-se, como fez M. Heidegger, um “ser-para-a-morte”.5 1. O homem, ser de esperança Comecemos por averiguar as raízes antropológicas do tema, estabelecendo que tipo de relação existe entre a condição humana e a esperança. Tentemos averiguar se a necessidade de esperança é marginal à condição humana ou se, pelo contrário, é algo que está profundamente enraizado na sua experiência existencial e histórica6. 1.1 O homem, ser aberto ao futuro A compreensão que hoje se tem do homem é a de um ser em dinamismo de realização, de devir, em abertura ao futuro. É espírito encarnado e, por isso mesmo, presença a si próprio e projecção para além da sua ipseidade, abertura ao infinito. É um ser em tensão para uma realização ilimitada de si, que ao mesmo tempo se experimenta física, geográfica e temporalmente situado. Tem consciência da sua finitude. Há, por isso mesmo, uma tensão interior à condição humana. Por um lado é espírito a projectar-se no tempo, radical abertura ao futuro, para se realizar sempre mais, a partir da sua capacidade de ser e devir outro, dinamismo de superação e transcendência de si próprio.7 Por outro lado, esta aspiração é vivida na consciência da Cf. Martin HEIDGGER, Ser e Tempo, vol II, Editora Vozes, Petrópolis, 20029, 34-51. 6 Cf. G. PIANA, “Espérance”, in: Dictionnaire de Vie Spirituelle, Paris, Cerf, 1987, 327. 7 Emmanuel Levinas apresenta como abertura metafísica a uma alteridade transcendente esta tensão entre desejo ilimitado e consciência dos limites: “ ‘A verdadeira vida está ausente.’ Mas nós estamos no mundo. A metafísica surge e mantém-se neste álibi. Está voltada para o ‘outro lado’, para o ‘doutro 5 A esperança que transforma e transfigura 145 limitação que restringe a sua abertura aos outros e ao mundo. Usando a expressão de G. Pianna, a natureza humana “desvela-se como ‘fechada-no-provisório’ e ‘aberta-ao-infinito’.”8 Ínsita à existência da humanidade verifica-se uma certa dramaticidade. Pela sua radical abertura a realizar-se sempre mais, o homem não pode saciar-se definitivamente no horizonte do presente. Há sempre uma parte de si que não se identifica com a sua existência concreta. Aspira a mais. A morte surge no seu horizonte de vida como o mais claro e objectivo de todos os limites, um destino inevitável colidindo com o desejo interior de ser cada vez mais ele próprio. A morte põe em causa o futuro mas não destrói o desejo de existir. É esta a estrutura da esperança humana: o desejo de realizar-se sempre mais para além dos limites conscientes, da morte e do tempo. 1.2 Esperança como elemento estruturante do ser homem Visto deste modo o apelo à esperança – a aspiração a superar-se no ser – pertence à estrutura do homem como espírito encarnado. Ele está, pela consciência que tem de possuir uma identidade em devir, no tempo mas também acima e para além do tempo. Está movido ao desejo duma plenitude de ser que só o futuro dá possibilidade de concretizar. Por outro lado, o mundo é o espaço do seu agir. É através da concretude, do horizonte finito que se cumpre o caminho do ser-sempre-mais, do desejo, da busca, sabendo que não há identidade modo’. Sob a forma mais geral, que revestiu na história do pensamento, ela aparece, de facto, como um movimento que parte de um mundo que nos é familiar – sejam quais forem as terras ainda desconhecidas que o marginem ou que ele esconda – de uma ‘nossa casa’ que habitamos, para um fora-de-si-estrangeiro, para um além. O termo desse movimento – o outro lado ou o outro – é denominado outro num sentido eminente.” (Emmanuel LEVINAS, Totalidade e Infinito, Edições 70, Lisboa 2000, 21.) 8 G. PIANA, “Espérance”, in: Dictionnaire de Vie Spirituelle, Paris, Cerf, 1987, 328. 146 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo entre a finalidade a que aspira e a consciência de si. Homo viator, como o chamou Gabriel Marcel. O mundo é oportunidade para a realização da esperança e também a sua provação. Cada um dos resultados do agir intramundano é, em virtude da aspiração de superação de si, vivido como realização incompleta. Tal incompletude é também prova, ou crise. “A esperança situa-se no quadro da prova, à qual não somente corresponde mas constitui uma verdadeira resposta do ser.”9 A esperança humana tem a crise como elemento propulsor do ser.10 Contudo, o ser humano não tem apenas uma dimensão individual ou solitária. É estruturalmente relacional e social. O seu desejo de ser sempre mais tem no outro o seu horizonte de realização. No limite, a experiência da realização humana decorre na abertura e no acolhimento do outro, dentro duma relação de comunhão interpessoal, vivido na história. A esperança, enquanto dinamismo de ser levado à realização no tempo e na história (mas sempre aspirando para além dela) é não apenas uma necessidade estrutural do indivíduo isoladamente considerado. Tem uma componente social e comunional. A esperança é realização do desejo de ser que se repercute na situação da humanidade. Tem uma abrangência universal. A esperança humana implica-nos a todos na solidariedade duma mesma condição. 9 Gabriel MARCEL, “Esquisse d’une phénoménologie et d’une métaphysique de l’espérance”, in: HOMO VIATOR. Prolégomènes à une métaphysique de l’espérance, Aubier - Éditions Montaigne, 1963, 38. 10 “A crise de sentido nasce, com efeito, duma tensão imanente ao ser humano. Mais profundamente que os nosso estados interiores em conflito, há uma tensão primordial entre a significação e o sentido, entre a essência e a existência. Esta tensão não irá ser resolvida. Enquanto o sentido está em crise, poder-se-á paradoxalmente dizer, conserva a sua transcendência. Situado no termo do desejo, abre espaço às nossas vontades. Querer, a todo o custo, reduzir o sentido final a determinações bem determinadas para não sofrer mais nenhuma crise seria dar mostras que a nossa vontade é suicida, decidindo-se a restringir o seu horizonte a formas tranquilas e minerais da significação imanente. Seria extinguir a esperança. Assim, a crise do sentido testemunha que no homem há mais do que o homem.” (Paul GILBERT; “A crise de sentido”, in: Brotéria, 137 [1993], 450.) A esperança que transforma e transfigura 147 1.3. Fundamento da esperança: utopia e escatologia Acabámos de traçar uma noção de esperança caracterizada como o desejo de ser-sempre-mais que leva o homem a agir transcendendo-se na história, manifestado nela algo de si que o futuro torna possível existir de modo mais pleno. Ligada à noção de esperança está a ideia de progresso, de sucesso, de cumprimento pleno do ser humano. Conforme for a concepção de homem, assim variarão as categorias que expressam o fundamento da esperança humana. Para quem não concebe a existência humana aberta interiormente à metafísica, sustentada por uma alteridade divina, o fundamento da esperança humana é a utopia. Ou seja, o desejo de ser-sempre-mais apoia-se na imagem ideal que ainda não existe na história (imagem utópica) mas que o agir humano espera fazer chegar, confiado apenas nas suas próprias forças. Apoiar a esperança humana apenas em si mesmo é o caminho escolhido. Mas este caminho não resolve o drama da condição mortal do homem. A esperança de ser esbarra na objectividade inultrapassável da morte. É uma esperança a prazo: tem a validade dos anos que dura uma existência humana. Só um sentimento colectivo alivia e permite dar algum sentido ao esforço de pôr em acto as razões duma tal esperança. De modo diverso, quando a visão do homem assenta numa concepção do ser humano aberto à metafísica (a Deus), há a possibilidade de entender o dinamismo da esperança humana como expressão de abertura à transcendência. É esta a visão cristã do homem que a revelação bíblica nos oferece: o homem é imagem e semelhança de Deus e, por isso mesmo, o seu desejo de ser é também imagem e semelhança do próprio desejo de Deus. O fundamento da esperança humana não está, neste caso, colocado no próprio homem. Está antes radicado no seu Criador, no totalmente Outro que sustenta e possibilita o exercício da esperança como condição criatural. O fundamento da esperança humana tal como surge na Revelação não está no agir humano mas no agir de Deus para com o homem. 148 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo Usando a linguagem inaciana inspirada no Princípio e Fundamento11 podemos dizer que o homem é criado para a esperança que não desilude pois é Deus quem, desde Si próprio, sustenta a esperança humana, levando-a à plenitude. A esperança bíblica apoia-se no dinamismo da promessa e na espera messiânica. É uma esperança que não exclui ou repudia a liberdade e o desejo de ser-sempre-mais na história mas que antes solicita a sua colaboração, garantindo-lhe a condição de sucesso e realização definitiva. A esperança é escatológica, isto é, apoia-se numa acção de Deus irrompendo na história, capaz de renovar e recriar o desejo humano de ser, ao ponto de o introduzir numa realização definitiva – escatológica. É uma certeza de plenitude que implica o tempo da história mas se projecta na eternidade de Deus e é vivida sob o signo da aliança, ou seja, da comunhão interpessoal. Esta é a nossa esperança. Esta é a esperança que Jesus veio levar à plenitude e para a qual “por mim se fez homem”12, para que O possa amar e seguir, no espaço e no tempo onde posso comprometer com Ele o meu (nosso) presente e futuro, a minha (nossa) liberdade e esperança. É para realizar a esperança da vida em plenitude que o Verbo se faz Homem, se despoja da Sua condição divina, não reivindicando o direito de ser equiparado a Deus mas esvaziando-se a Si mesmo, tomando a condição de Servo, tornando-Se semelhante aos homens, humilhando-se a si mesmo fazendo-se obediente até à morte e morte de cruz (cf. Fil 2, 6-8); para que o homem “seja-sempre-mais”, seja introduzido numa relação recriadora que o constitui filho de Deus. O centro da entrega e da revelação de Deus e da revelação do homem é o Mistério Pascal de Cristo. Esse é o lugar onde se muda e transforma o ser humano em contacto com o amor de Deus. 11 12 Cf. Exercícios Espirituais de Santo Inácio, 23. Cf. Exercícios Espirituais de Santo Inácio, 104. A esperança que transforma e transfigura 149 2. Mistério Pascal de Jesus, realização definitiva da esperança Como vimos, a raiz antropológica da esperança humana é o desejo de ser-sempre-mais: ser na história e na relação de abertura ao outro. A realização da esperança passa necessariamente pelo amor. As limitações da esperança humana, são também os limites da sua capacidade de amar. A este nível, precisamos de introduzir uma categoria propriamente teológica para clarificar o específico da visão cristã, a noção de pecado. Pecado como carência de ser, como incapacidade de abrir-se à relação com os outros e o Outro, como recusa da liberdade em realizar-se, doando-se para fora de si mesmo. É desta incapacidade de se deixar amar que Deus nos cura e nos transforma através da Paixão e Ressurreição de Seu Filho, descendo, Ele próprio até à nossa incapacidade, para a transformar desde dentro: “aquele que não conheceu o pecado, Deus O fez pecado por nós, para que nos tornássemos n’Ele justiça de Deus.” (2 Cor 4, 21) 2.1. O desejo de Deus pelo homem levado às últimas consequências A paixão e a ressurreição de Jesus são uma entrega na absoluta liberdade infinita e incondicionada de Deus. Incondicionada ao ponto de se esvaziar para livremente assumir a nossa existência condicionada e sujeita ao mistério da iniquidade. No centro do mistério pascal de Cristo está a comunhão com a nossa condição de pecadores, de sujeitos aos limites do tempo e da morte. É este abismo de descida sem fundo o modo do agir compadecido de Deus por nós e connosco. Deus, em Cristo, não nos ama de fora ou de cima. Ama-nos do íntimo e de baixo. É um amante que se abaixa, mais baixo do que nós, para que possamos fazer-lhe o dom da aceitação. 150 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo 2.2 A ressurreição começa nos infernos O amor, escreveu Inácio, “consiste na comunicação recíproca, a saber, em dar e comunicar a pessoa que ama à pessoa amada o que tem ou pode; e, vice-versa, a pessoa que é amada à pessoa que ama;2 de maneira que, se um tem ciência, a dê ao que a não tem, e do mesmo modo quanto a honras ou riquezas; e assim em tudo reciprocamente, um ao outro.”13 É esta comunicação recíproca que acontece na face dolorosa e obscura da Sexta-feira e do Sábado Santos. O sofrimento de Jesus é comunhão da nossa dolorosa situação de fechamento e de morte. A esperança que nos salva inicia-se na descida à incapacidade de ser, de se deixar ser e amar. Inicia-se na ida aos nossos limites mais objectivos: a morte e o desespero. O Símbolo dos Apóstolos, apresenta como conteúdo da fé revelada a afirmação: “Jesus desceu aos infernos”. A ida de Jesus ao interior da situação de morte é uma esperança actuante e actuada que está absolutamente fora de tudo o que a criatura humana pode, por si, supor ou esperar. É o absoluto deslumbramento de amor a que Deus quer, pode e vai por si. Hans Urs von Balthasar centra na descida aos infernos, realizada no Sábado Santo, o princípio de toda a vitória da ressurreição. Por isso esta descida é tão gloriosa. Porque é, simultaneamente, entrada na nossa (in)capacidade de esperança, é entrada no nosso desespero. É uma descida do Verbo “feito pecado”, não porque Ele seja pecador, mas, ao invés porque Ele é o Santo. E só o Santo é capaz de ser-connosco no pecado. Só Ele é suficientemente poderoso para poder não poder em comunhão connosco. Esta descida é universalmente abrangente. Não se exerce apenas em relação a um só indivíduo mas atinge a condição humana. É comunhão com todas as pessoas de todos os tempos e lugares. Transcende, na sua radicalidade, o espaço e o tempo, atravessando-os e irrompendo num acto recriador do homem. 13 Exercícios Espirituais de Santo Inácio, 231. A esperança que transforma e transfigura 151 Cristo é, no Sábado Santo, solitário com os solitários, fraco com os fracos. Afirma Hans Urs von Balthasar: “A sua fraqueza pode e deve ser identificada com […] a segunda morte, que em si mesma é idêntica ao pecado como tal, pecado que não é mais inerente a cada homem em particular, não se encarna em existências vivas, mas abstrai desta individuação e é contemplado como pecado na realidade nua e crua (pois o pecado é uma realidade!).”14 Este é um acontecimento e uma acção trinitária. É o Pai que envia o Filho, introduzindo-o como encarnado, na situação do mais radical limite humano, no inferno como última consequência possível da liberdade criada.15 Indo, estando e amando infinitamente, Cristo “transforma em caminho aquilo que era prisão”16, transforma em acto de amor aquilo que era acto de perdição. 2.3. Do desespero à esperança A ressurreição de Cristo começa no inferno. É desse lugar, ou melhor, desse estado espiritual, que Cristo vai ser ressuscitado.17 A esperança que nos transfigura encontra-nos no abismo do maior dos desesperos possíveis: a incapacidade de sair de si para ser com o Outro e os outros. É o Verbo que entra nesta incapacidade. E, por isso, a ressurreição começa por ser agónica. Como afirma Adolphe Gesché “Não é portanto, apenas a Cruz que representa o combate e a libertação do mal. Também a ressurreição (saída vitoriosa de um combate nos infernos, vitória contra o último poder do mal – o arrancar das vítimas à morte – é um combate e uma libertação. A Ressurreição é também agónica (um combate). A obra da salvação não foi só agónica na Paixão e na Cruz, mas 14 Hans Urs von BALTHASAR, Mysterium Paschale, in: Mysterium Salutis, III/ 6, Editora Vozes, Petrópolis, 1974, 117s. 15 Cf. Ibidem, 119. 16 Ibidem, 120. 17 Cf. Adolphe GESCHÉ, “A agonia da Ressurreição ou a descida aos Infernos” in: A salvação em Jesus Cristo, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 1993, 159. 152 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo também na Ressurreição. […] A Ressurreição não foi tarefa fácil. Pode perguntar-se se para o próprio Cristo esta saída dos Infernos não teria sido concretizada com “grande fadiga”, o que seria expresso pelo tema da Direita (poder e força) do Pai, indispensável para o libertar, e pelo tema do poder do Espírito, que impulsiona Cristo para a Ressurreição.”18 A transformação da esperança humana começa por ser um combate contra as forças do mal, vencido pelo poder de amor infinito que a Trindade exerce em Jesus Cristo. A ressurreição começa no consentimento dado a Cristo para que Ele assuma e comungue o nosso próprio ser. Ainda que prisioneiro, morto, desesperado. Nada substitui este consentimento. Ele é o início da realização da esperança pascal, “onde a noite da dor se abre à luz da ressurreição” (Missal Romano). Se olharmos para a vida de variados santos vemos que, a determinado ponto, foram convidados por Cristo a arriscarem-se a uma entrega incondicional, a seguir Cristo até estes abismo de abandono confiante à acção do Pai e de comunhão com a fraqueza humana. Muitos sentiram-se introduzidos numa experiência de ausência total de Deus, uma inexplicável distância análoga à do próprio Filho de Deus. “Permanece no inferno e não desesperes” – dirá o Senhor ao Staretz Silouane.19 A esperança cristã – que no seu nível mais profundo é uma teologia da Cruz – não tem medo do negativo. “É uma esperança crucificada que se abre ao dom da ressurreição. É mediada não pela possibilidade duma desilusão, mas por uma desilusão efectiva: a Cruz Ibidem, 164. O P. Jean Lafrance relata no seu livro A oração do coração, um episódio relativo a um jovem noviço, de nome Silouane, dum mosteiro ortodoxo: “Um dia em que está acabrunhado por sofrimentos e tentações de toda a espécie, pede ao Senhor que lhe diga o que há-de fazer para que o seu coração se torne humilde. E o Senhor respondeu-lhe: ‘Em pensamento, conserva-te no inferno e não desesperes.’ Tal como Jesus, desce aos infernos e ao experimentar o seu pró18 19 A esperança que transforma e transfigura 153 de Cristo. É pois uma “esperança contra toda a esperança (Rom 8, 24-24; Hb 11, 1)”.20 3. A comunhão trinitária que transforma e transfigura A ressurreição é acontecimento trinitário. Por essa razão a esperança cristã enraíza-se no agir da Trindade nos dinamismos da sua criatura. A acção vitoriosa sobre Cristo morto e identificado com a condição humana é obra do amor e da fidelidade do Pai em resposta ao abandono obediente do Filho, mediada pela entrega do Espírito Santo sem medida e recriando o próprio Cristo. A humanidade do Cristo ressuscitado é nova; “Ele é o primogénito de entre os mortos” (Col 1, 18). É uma obra da esperança. Se é verdade que a ressurreição começa numa agonia, atinge porém a sua plenitude na experiência da comunhão interpessoal da condição humana com as Três pessoas divinas. A natureza humana é transformada pelo influxo deste agir. A comunhão é recriadora. O Cristo ressuscitado é um fruto da comunhão da Trindade com a condição humana que, na profundeza dos seus limites, realiza um consentimento de amor. O Ressuscitado é a experiência plena da comunhão de duas natureza numa só carne humana. O Cristo Ressuscitado que as aparições testemunham como o Vivente não é apenas aquele que foi crucificado. É o Senhor glorificado, em quem a capacidade e o desejo humano de se realizar continuamente recebe e oferece a própria vitalidade de Deus. O Cristo pascal, por outro lado, não é só o Ressuscitado. Ele une em si os dois momentos instituindo uma nova qualidade do ser: Ele é prio pecado comunga com a angústia, o sofrimento e a solidão dos seus irmãos afastados de Deus. Então, pode clamar para o Pai, suplicar-lhe que tenha piedade e que o arranque, bem como a todos aqueles de quem é solidário, do abismo do pecado.” (in: A oração do coração, Edição Cidade do Imaculado Coração de Maria, Fátima, 1990, 108.) 20 G. PIANA, “Esperance”, in: Dictionnaire de Vie Spirituelle, Paris, Cerf, 1987, 331. 154 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo o Ressuscitado que traz em si as marcas da Paixão e, por isso, é o ressuscitador no meio das dores. Ou, usando a linguagem de Inácio, é o Consolador, capaz de, doravante, derramar a consolação espiritual, comunicando o Espírito Santo no abismo mais profundo do sofrimento. Uma consolação que, de tão espiritual se torna também corporal, capaz de mudar a forma e a figura duma humanidade prisioneira dos seus limites. N’Ele a esperança humana é fecundada na sua possibilidade de ser-sempre-mais e de desejar realizar-se no tempo e na relação com o Outro. Porque no Ressuscitado está em acção o dinamismo da comunhão interpessoal vivido na Trindade. Esta esperança, assim entendida não como um sentimento mas como um dinamismo inesgotável de ser, não acabará. É uma esperança que abre continuamente à surpresa do amor. A Trindade é um abismo inesgotável, fonte e realização da esperança humana. Só o Ressuscitado é capaz de introduzir numa esperança que é experiência do êxtase do amor. 3.1. Só o amor transforma Jesus Ressuscitado é a confirmação de que a esperança humana encontra no abandono, porventura desolado, ao amor do Pai, do Filho e do Espírito a garantia de uma realização segura e definitiva. Ele tem em si mesmo o senhorio desta vivificação que transforma. A esperança humana tem n’Ele o seu ponto de apoio definitivo. O fundamento da sua realização já não está nem na natureza humana nem na história onde se desenrola o seu agir. Está no próprio agir de Deus aceite no mais íntimo da nossa capacidade de desejar, ser e fazer. E sendo a Ressurreição a expressão da comunhão definitiva, ela abre a uma esperança activa. Uma esperança que não é espera. É desejo entregue vivido na fé. É certeza duma acção, que pelo excesso da sua entrega e poder, desce a profundidades maiores do que aquelas que os sentidos humanos podem registar. Mas é uma esperança A esperança que transforma e transfigura 155 actuante. O amor é sempre transformante. A comunhão na entrega e acolhimento recíprocos transforma os que se entregam na novidade do “nós”. Os encontros com o Ressuscitado trazem em si o sinal da transformação. O que Deus toca, se lhe consentirmos, transforma. 3.2 A ressurreição, princípio duma vida nova A experiência de encontro com o Cristo Ressuscita inaugura o princípio de uma vida nova, de uma condição humana radical e absolutamente nova. E não só nova condição da humanidade mas também do mundo e da história. Introduz na experiência do tempo e do espaço um novo dinamismo de comunhão com a eternidade. É entrada no tempo absoluto de Deus e inabitação do tempo de Deus no nosso. A Ressurreição de Cristo é início duma vida nova, antes de mais para o próprio Jesus. O Filho não retorna ao que era dantes: nem ao que era antes da Paixão, como Verbo feito homem, nem ao que era dantes quando era no seio do Pai. Este é um ser novo, gerado a partir do encontro amoroso das duas naturezas divina e humana, unidas numa total entrega. É algo totalmente novo e por isso, no encontro com o Ressuscitado cada um de nós confronta-se com a imagem daquilo que é chamado a ser e a deixar ser. O futuro é antecipado na presença do Cristo Pascal. Através do Espírito que comunica sem cessar, constitui-se a razão da nossa esperança e fundamento para que posamos aceitar como nosso o Seu destino de glória. A Ressurreição é o fundamento da fé especificamente cristã. “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé!” (1 Cor 15, 17) É o acontecimento que está na origem do anúncio da salvação e a comprovação de que a Páscoa de Jesus é, afinal, mistério não de morte mas de vida. É o selo que atesta o sentido totalmente outro que, se não fora Deus dar-no-lo conhecer, nos estaria vedado e, agora, é oferecido como horizonte de vida a partilhar. Oferecido mas não “impingido”. No entanto, a presença entre nós do Vencedor da Morte não elimina a tensão entre o que somos e o caminho de transfiguração 156 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo que devemos percorrer sob o signo da entrega total que o amor verdadeiro requer. A Ressurreição antecipa, em gérmen, os frutos que estamos chamados a dar. Se é verdade que vitória de Jesus é para nós e connosco, a todos alcançando em potência, na misteriosa solidariedade comum ao género humano (abordada no primeiro ponto), também é verdade que essa vitória não nos retira de continuarmos a viver, na história, numa dialéctica interna de cumprimento e de promessa, até que se cumpra plenamente em nós o Mistério Pascal do Filho. Por isso, a Ressurreição não é um simples acontecimento já realizado. É obra a ir sendo realizada desde o interior do tempo histórico em que ainda vivemos. É um sinal de esperança que atesta, por antecipação, aquilo que está por vir e acontecer ao Cristo total, ao Corpo Místico. É esperança que transforma os nossos critérios e prioridades porque é certeza de uma vitória que virá mas exige uma actuação concreta sob a forma dum acto de amor afectivo e efectivo. É esperança porque é actividade de Deus em nós! Ele dá resposta e realiza o desejo de ser-sempre-mais-nós-mesmos na relação de comunhão com o Outro e os outros. É esperança, ainda, porque o caminho a percorrer não será feito só de luzes e consolações, mas também de perplexidades e noites. Lembrando Lavoisier, podemos afirmar: oferecidos à comunhão com Cristo, morto e vivente, nada se perde, tudo se transforma. É uma esperança diferente da espera, embora exija paciência: os ritmos de Deus não são os nossos. Vive-se no dinamismo do desejo e da liberdade: é uma vida a gerar-se no acto de entregar-se sem reservas à vontade do Pai que muitas vezes, não conhecemos nem percebemos em cada curva do percurso. Mas sabemos que é fecundo. 4. “Estar de Esperanças” – “Mulher, porque choras?” – é a pergunta que S. João coloca na boca de Jesus Ressuscitado, durante o diálogo com Maria Madalena. A esperança que transforma e transfigura 157 Esta pergunta dirige-se-nos também a cada um. Sobretudo nos momentos em que, do interior do nosso caminho pascal, nos fixamos mais no que perdemos do que no dom recebido; mais no sofrimento do que na vida a ser dada e comungada; mais nas nossas próprias e frágeis certezas do que confiamos abandonadamente à força do Deus que já assumiu em si o que somos. Também hoje o Senhor pergunta aos que O amam e a esta nossa geração, do interior das suas experiências de perda, desilusão, apatia, suicídio: “Porque choras?” Como se a resposta estivesse subentendida pela Sua própria presença: “Eu estou aqui!” Aqui, neste tempo e lugar, nesta experiência que vives, nesta solidão que atravessas, nesta dor que te foi oferecida como também nas alegrias que experimentas, no silêncio que te habita e no imenso bem que contigo quero fazer, no que és e podes vir a ser e não suspeitas. A Ressurreição de Cristo é a certeza da fecundidade da Cruz e do Sábado Santo, como de todos os momentos de partilha e vida oculta que os pressupõem e preparam. A Esperança nascida deste encontro, depositada como semente no interior da nossa liberdade, introduz-nos no mistério da Igreja, gestante do Cristo Pascal. É a esperança duma maternidade crística e eclesial já a desenrolar-se e aguardar o tempo do seu pleno cumprimento. Usando uma expressão da nossa língua portuguesa, direi que a comunhão com a compaixão do Ressuscitado, permite-nos não só ser e ter esperança mas “estar de esperanças”, isto é, saborear as primícias duma vida nova cuja existência passa também pela nossa resposta. Como a vida dum filho a ser gerado passa pela resposta que mutuamente se deram os pais. S. Paulo expressou-o nestes termos: “Filhinhos meus, por quem sofro de novo as dores de parto até que Cristo seja formado em vós” (Gal 4, 19). Esta afirmação, tanto mais interpeladora quanto proferida por um homem, testemunha a qualidade desta Vida que se derrama do Ressuscitado inserindo cada um dos que se lhe entregam sem reservas, num estado de graça que é estado de esperança. Como se vive esta esperança? Com gratidão e com a resposta na totalidade de si. 158 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo O caminho da esperança é, pois, o da entrega, o do oferecimento de si: na interioridade da relação com o Senhor, concretizado no compromisso para com o mundo. Agir segundo a Esperança que nos habita O Cristo ressuscitado convoca-nos à missão. A esperança é transformante na devida proporção em que se torna força para a missão e para o serviço. Se Cristo nos transforma em Si (tendo-nos assumido até ao abismo dos infernos) é para O servirmos já neste mundo e nesta história. O serviço é componente da esperança. Querer viver a esperança na espera seria enganarmo-nos a nós mesmos, esquecendo que a Páscoa ainda não atingiu a sua plenitude. A tensão entre o gérmen (princípio) da ressurreição e a sua realização plena resolve-se no dinamismo do oferecimento que salva os outros e o mundo. A força do amor que nos impulsiona para o absoluto de Deus não pode ser um motivo para desistir do compromisso nas estruturas deste mundo ou recusar entrar nas dores de cada geração, para oferecer a Deus a possibilidade de encarnar de novo e consumar a transformação de morte em vida. A Eucaristia que o Pai celebra no Filho é razão para celebrar na vida, com a mesma ardente –“Tenho desejado ardentemente comer esta Páscoa convosco” (Lc 22, 15) – paixão com que Ele celebra na última ceia pois cabe-nos também a nós tornar Cristo presente em gestos que mudam a face da terra. Ou que mudam o coração do outro. A verdadeira esperança que transfigura tem de ser – só pode ser – aquela que se dirige apressadamente para os locais onde o nosso sofrimento habita, a fim de permitir à compaixão de Cristo assumir essa dor e dar-lhe um sentido que a transforma. O sinal mais claro de que a Esperança na plenitude futura nos habita é o compromisso com as carências de sentido do mundo, no presente que vivemos. No sofrimento da carência Deus também habita e quer ser encontrado. E habita com poder redentor. A esperança que transforma e transfigura 159 Nada de demissões, pois. Nada de ansiedade activista, porém. A esperança do Cristo Vivente é uma moção do Espírito do Pai e do Filho em nós. Há um caminho e um meio para cada um a realizar e saborear, a viver e testemunhar. O Reino de Deus já pode ser experimentado nesta nossa condição de peregrinos. Porém, a plenitude do agir de Deus em nós não será alcançada senão quando tivermos passado, configurados com Cristo, pelo mistério da morte. Cristo ressuscitado não nos promete a plenitude da consolação para este nosso tempo histórico. Prometenos antes que, andando com Ele no serviço que o Pai lhe confiou, haveremos de O conhecer como o Filho O conhece, quando o tempo da história chegar ao seu fim. 5. Desejo aberto ao infinito: em Cristo, esperar por todos Quem é encontrado pelo Ressuscitado faz a experiência da mais radical surpresa. Uma surpresa que atesta da pequenez dos nossos projectos e desejos, da metas que vamos traçando para nós próprios. Ser encontrado por Aquele que escolheu morrer de amor por nós e connosco é experimentar o abismo do desejo de Deus de que o nosso próprio desejo é imagem e sinal. A esperança da Ressurreição tem de ser vivida dentro duma atitude orante e contemplativa. A oração, como atitude de disponibilidade e abandono à surpresa do que Deus pode querer de mim, é, juntamente com compromisso activo, o modo de viver a esperança. A partir da consciência do que o Senhor já fez e está fazendo em nós, dada pelo percurso orante onde cada um vai sendo conduzido pelo querer de Deus, é possível, com Cristo, experimentar a dilatação do desejo que sustenta a esperança cristã. Desejo já não só da comunhão com a Trindade mas, por causa dessa comunhão, desejo por cada homem e mulher concretos. A plenitude da Esperança, vivida na condição de peregrinos, é a compaixão. A entrega de si pelo desejo de amar os outros, movida pelo mesmo desejo ardente de Deus. Inácio diria, na sua linguagem: 160 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo desejo de “fazer bem às almas”, pondo-as em rota de encontro e comunhão com Aquele que as pode realizar plenamente. A esperança é tanto mais intensa quanto mais universal. Não nos contentemos com pouco! Cristo ofereceu-se ao Pai para ser a nossa esperança, a pessoa feita dom que abre caminho relacional, aí – nos infernos das nossas prisões – onde não havia caminho. N’Ele e com Ele a esperança a que somos chamados deve abrir-se a que nossa vida possa ser caminho relacional para Deus. A esperança, na medida em que é desejo a realizar-se, deve abrir-se para um descentramento de si: esperar os outros em Deus e oferecer-se para que todos O encontrem. Esperar, de forma activa, pela comunhão misteriosa naquilo que o outro é e vive na sua maior profundidade, como pela partilha das condições materiais. Ofereçamo-nos para ser n’Ele, a esperança uns dos outros. Esperemos por todos, no mistério da morte e Ressurreição de Cristo. N’Ele não há impossíveis! Querem fazer a experiência? Ofereçam-se para a salvação do mundo! A NOVA ERA DO ESPÍRITO Manuel Morujão, S.J. Prólogo de um crente, por vezes ateu praticante Comunicaram-me o tema desta semana de estudos, pedindo-me para falar sobre «A nova era do Espírito». Achei que devia dizer sim, até porque tenho alguma experiência de encontrar pessoalmente esse «Senhor que dá a vida e procede do Pai e do Filho», e sempre me maravilha a sua eficácia espantosamente discreta. Como não gosto de deixar as preparações para a última da hora, pois as pessoas merecem essa prova de respeito, logo me pus em campo. Pensei onde havia de arranjar bibliografia conveniente. Procurei quem me desse pistas para estas considerações. Busquei uns apontamentos onde tinha alinhavado umas ideias. Parei a imaginar qual poderia ser o esquema. Reflecti sobre algumas possíveis linhas mestras. Comecei a rabiscar umas notas que servissem de base. Tudo parecia estar bem encaminhado. Não faltaria assunto de conversa. Sentia-me confortavelmente instalado nas minhas seguranças. Um remorso positivo me começou a assomar à consciência. Ia falar do Espírito, quase que dispensando a sua presença. Parecia-me que a clarividência das minhas ideias levava a melhor sobre a iluminação do Espírito Santo... Depois de experimentar a presunção da auto-suficiência, foi ocasião de arrependimento e conversão. Haverá melhor fonte de inspiração que o Espírito Santo?! Que poderemos nós dizer de melhor sobre o Espírito de Deus senão aquilo que Ele próprio nos disser de Si mesmo?! 162 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo Então, convido-vos a rezar comigo, silenciosamente, a seguinte oração, em ritmo lento e meditativo, para que também este tempo de encontro seja mais nosso, porque do Espírito que aqui nos convoca, acompanha e anima: Ó Espírito Santo que, desde sempre sem princípio, unes o Pai e o Filho, põe-nos em comunicação com as Pessoas Divinas, e assim faremos parte da tua Família. Espírito de Deus, que és o Amor em Pessoa, vem amorizar os nossos desamores e as nossas meias medidas de amar e servir. Espírito Santo que, no Pentecostes, desceste em línguas de fogo, o mesmo fogo que Cristo veio lançar à terra, torna-nos incendiários de dinamismo e criatividade, a fim de fazermos novas todas as coisas e sobretudo a nós mesmos. Que dizes de Ti mesmo, Espírito Santo? Que é que queres que digamos de Ti? Ajuda-nos para acertar com a tua resposta, a fim de sermos mais divinos como tu és humano, e de uma eficácia absolutamente discreta. Que não sejamos nós a falar, a sugerir e a fazer, mas tu, Espírito divino, a agir em nós e por nós. Amen! 1. Apresentação do Espírito Santo 1.1. À procura de Deus por caminhos alternativos O mundo em que vivemos, de modo algum, é um mundo alheio à dimensão espiritual da pessoa humana. A história dos últimos decénios prova bem que «o homem é um animal incuravelmente religioso»1. As sucessivas ondas de ateísmo, secularização, desmisti1 Atilano Alaiz Prieto, As seitas e os cristãos, Edições São Paulo, Lisboa, 1994, 55. A nova era do Espírito 163 ficação e indiferentismo parece que têm feito ressurgir a dimensão religiosa, espiritual da pessoa humana. A diminuição da prática religiosa, a perda da fé simples e predisposta a acreditar sem restrições nem fronteiras, teve como reacção uma procura desenfreada de um espiritualismo, inventado à medida humana, segundo a ementa dos próprios gostos e conveniências. Uma reinvenção de Deus está em curso. O livro do Génesis assim nos relata a criação: «Deus criou a pessoa humana à sua imagem, criou-a à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» (Gn 1, 27). Hoje assistimos ao fenómeno inverso: Os homens criaram deus à sua imagem. Criaram um deus para todos os gostos… Assim Deus fica ao alcance da mão, um «tamagochi» sobrenatural, um infinito domesticado, que nos sirva eficazmente, como e quando nós melhor acharmos… O fenómeno de afastamento e descrença em Deus, que alguém apelidou de «crepúsculo de Deus», ou a «morte de Deus», teve como resposta o ressurgir do movimento oposto que já classificaram como a «vingança de Deus»2: quem se nega a acreditar no verdadeiro Deus, fica condenado a acreditar em qualquer tipo de deuses ou ídolos. Abundam actualmente os caminhos alternativos ao cristianismo e às outras grandes religiões monoteístas, com que os homens e mulheres de hoje procuram aprofundar a sua dimensão espiritual, encontrar soluções para o sentido da vida e sentir-se seguros. São forças concorrenciais ao genuíno Espírito de Deus: novos movimentos religiosos (talvez o mais difundido e abrangente seja a «nova era» ou «new age»), seitas, espiritismo, exoterismo, adivinhação, bruxaria, cartomancia, astrologia… tudo isto alimentado por filosofias, regimes e sistemas de vida… A oferta é tão grande e diversificada, que dá a impressão de um supermercado de espiritualismos, onde tudo se vende e se compra, se experimenta e também se deita fora. Este clima de relativismo ético e religioso em que tudo vale, tudo tem o seu lugar e cada um que escolha como bem entender, apesar 2 Gilles Keppel, La revancha de Dios, Anaya-Mario Muchnik, Madrid, 1991. 164 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo de tudo tem seu quê de profético3. São gritos de espiritualidade que não acertaram no tom e no compasso certo. Como que clamam: «Não podemos escapar a Deus»4, usando uma expressão de um pensador que foi Ministro da Cultura em França, André Malraux. Até o próprio acto de negar a Deus é já, de algum modo, afirmá-lo. Ninguém perde tempo e energias a negar o nada. André Frossard, que persistiu em viver longe de Deus, durante largos anos, como se não existisse, faz a seguinte pergunta que é já uma resposta: «Quem é Deus senão aquele que nos faz pôr a questão?»5. Para que acertemos, sempre mais e melhor, em dar lugar ao Espírito de Deus na nossa vida, fiz estas advertências iniciais. É que há Deus e deus, Espírito e espíritos. É um discernimento que importa ter sempre em conta. 1.2. «Curriculum vitae» do Espírito Santo Poderá ser chocante usar esta imagem. Não queria ofender a discrição e simplicidade da terceira Pessoa da Santíssima Trindade. É que se fala pouco do Espírito e menos ainda se cultiva uma relação pessoal com Ele. O Espírito é o «Deus desconhecido»6. Faz parte essencial do «curriculum vitae» a sua infinita discrição, o que não significa, de modo algum, falta de eficácia. Não se sabe a data nem o lugar do seu nascimento. Sempre existiu, para além da criação do tempo e de todo e qualquer lugar. A Os novos movimentos religiosos podem ser comparados às manifestações religiosas primitivas, que «estão misteriosamente atravessadas de bosquejos e esboços proféticos». Cf. L. Bouyer, Il Consolatore. Lo Spirito Santo e vita di grazia, Paoline, Roma, 1983, 18. 4 André Malraux, François, la fraternité au bord du fleuve, Cerf, 1971, 19. 5 André Frossard, Il y a un autre monde, Fayard, Paris, 1976, 77. 6 Podemos aplicar ao Espírito Santo esta expressão «Deus desconhecido» (cf. Paulo discursando no Areópago de Atenas: Act 17, 23), tanta é a ignorância a propósito da terceira Pessoa da Trindade (cf. Victor Dillard, Au Dieu inconnu, Paris, Beauchesne, 1938). 3 A nova era do Espírito 165 sua origem é o Pai e o Filho, de quem procede, mas isto exclui precedências temporais ou subjugações de importância. Na Trindade realiza-se em infinito o ideal da convivência humana: Todos iguais, todos diferentes. Todos por um, um por todos. A omnipresença faz parte da sua essência. O Espírito Santo não tem um nome solene e pomposo. Em hebraico diz-se ruah; a tradução em grego é pneuma; e, em latim, spiritus. Significa sopro, vento. Dá a impressão de ser pouco consistente e poderoso. Mas é a vida por dentro, interioridade infinita, despojada de toda a ostentação e aparência exteriores. O Espírito, diferentemente do Pai e do Filho, não tem representação humana. Baste considerar a iconografia trinitária: à frente do Pai eterno, cheio de vigor, está Cristo Salvador, em tudo igual a nós menos no egoísmo, ostentando a cruz da redenção do mundo; por cima, quase que já fora do quadro, uma pomba e línguas de fogo, parecendo mais um elemento de decoração do que o coração do retrato. O Espírito Santo não tem rosto. «Ele não é para nós um face a face, não é um Tu, mas permanece um Ele. Tal como a terceira pessoa dos quadros da nossa gramática (…), Ele é aquele de quem se fala, não é um parceiro a quem nos dirigimos»7. Perdoem-me a pequenez da comparação: o Espírito está presente em plenitude na realidade de Deus como o fotógrafo que se oferece para ficar fora da fotografia para que os outros fiquem nela. Falando agora do emprego ou ocupações do Espírito Santo, e forçando a impropriedade dos humanos termos até ao extremo, podemos dizer que é especialista em construir pontes de unidade e em traduzir a diversidade de línguas. Sem Espírito Santo, não existia Deus. O Pai e o Filho seriam dois quase-deuses, duas forças concorrenciais, o que, a nível infinito, seria uma infinita tragédia. Ora o Espírito Santo é o amor absoluto que circula entre o Pai e o Filho e vice-versa, fazendo a ponte da unidade Bernard Sesboüé, Pensar e viver a Fé no terceiro milénio, Gráfica de Coimbra, Coimbra, 2001, 462. 7 166 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo indissolúvel. Esse amor infinito, substancial e unitivo é a Pessoa do Espírito. Cito o Papa João Paulo II na Encíclica sobre o Espírito Santo: «Na sua vida íntima, Deus é Amor, amor essencial, comum às três Pessoas divinas. Mas amor pessoal é o Espírito Santo... É a Pessoa Amor»8. Ou como afirma o P. Charles Bernard, o Espírito Santo «é o amor em pessoa». O seu doutoramento ou especialização é «Amoris Causa», em grau infinito. Dadas as distâncias abissais entre Deus e nós, entre a Santidade e os pecadores, entre o Absoluto e a nossa pequenez frágil e contingente, como será possível o encontro? O Espírito de Deus possibilita este encontro na mais profunda das intimidades, passando nós a sermos de facto, graciosamente, filhos de Deus: «Todos aqueles que são movidos pelo Espírito de Deus, são filhos de Deus. Vós não recebestes um espírito de escravidão, para cair de novo no temor; recebestes, pelo contrário, um espírito de adopção, pelo qual clamamos: “Abba, Pai”. O próprio Espírito atesta, em união com o nosso espírito, que somos filhos de Deus; filhos e igualmente herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo» (Rom 8, 14-17). Recordo-me que o P. Júlio Fragata costumava sublinhar que a filiação adoptiva não é uma filiação simulada, fictícia, virtual; somos realmente filhos de Deus, embora tal não seja por direito, mas por graça oferecida. S. Paulo, para comprovar a nossa filiação divina, recorda que seremos também herdeiros da mesma herança de Cristo. Indiquei como outra ocupação do Espírito Santo a tradução de línguas. Em primeiro lugar na nossa relação com Deus. Como é que o nosso balbuciar orante é entendido por Deus? Como é que as nossas palavras desajeitadas e impróprias conseguem fazer-se explicar a Deus altíssimo? S. Paulo lembra-nos que «o Espírito vem em ajuda da nossa fraqueza, pois não sabemos o que devemos pedir em nossas orações, mas é o próprio Espírito que intercede por nós com gemidos inefáveis» (Rom 8, 26). Tradução de línguas entre nós, faciJoão Paulo II, O Espírito Santo na vida da Igreja e do mundo – Carta Encíclica «Dominum et vivificantem», Editorial AO, Braga, 5.ª edição, 1997, nº 10. 8 A nova era do Espírito 167 litando a comunicação fraterna, no estilo do Pentecostes: «Atónitos e maravilhados diziam: “Mas quê! Essa gente que está a falar não é da Galileia? Que se passa então que cada um de nós os oiça falar na sua língua materna?”» (Act 2, 7-8). Não é verdade que, se nos deixássemos conduzir mais pelo Espírito, conseguiríamos fazer-nos entender às pessoas mais diversas, porventura muito diferentes de nós? O homem ou mulher espiritual é alguém que consegue fazer pontes de unidade entre a múltipla diversidade de pessoas e de comunicar com todos na própria língua de cada um. Claro está que havia a dizer imensamente mais do «curriculum vitae» do Espírito de Deus: dom entre as pessoas de Deus e dom de Deus à humanidade; nosso advogado de defesa (paráclito) junto do Pai; inspiração e criatividade inesgotáveis; fonte de dons pessoais e de carismas para a edificação da Igreja… Julgo, no entanto, que o Espírito Santo agradecerá que seja discreto acerca da sua pessoa. Ele é como as raízes: sendo absolutamente essenciais às árvores, a sua vocação é fazer com que elas cresçam, se embelezem de ramos e flores e dêem fruto abundante, ficando elas no anonimato e esquecimento. O que o Espírito Santo deseja é que nós vivamos em plenitude. 2. Inácio de Loiola, peregrino dos caminhos do Espírito 2.1. A vida cristã é a vida no Espírito Santo Costuma dividir-se a história de Deus connosco, em três eras: – a era do Pai, referindo-nos à criação do mundo e à revelação ao povo eleito; – a era do Filho, durante a sua encarnação: vida de Jesus salvador, sua morte e ressurreição; – a era do Espírito Santo: o tempo da Igreja, em que se actualiza o mistério da salvação de Cristo, enviado pelo Pai. Estamos na era do Espírito Santo. É Ele que nos introduz na vida cristã e nos conduz com a sua graça, até aos cumes da santidade e da vida mística, na medida em que a nossa liberdade se abrir à sua acção. Ninguém pode acreditar em Jesus Cristo sem ser pelo Espíri- 168 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo to (cf. 1 Cor 12, 13; 2 Cor 1, 21). É o Espírito Santo que nos torna «participantes da natureza divina» (1 Pd 1, 4). O Espírito é a porta de entrada e o caminho ascendente para chegar, por Cristo, ao Pai. Não há outra alternativa cristã. Só o Espírito Santo nos pode cristianizar. Deveríamos pedi-lo ao Pai, com insistência corajosa, como nos recomenda Cristo: «Se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que lho pedem!» (Lc 11, 13). O tema merecia ser aprofundado, mas, por falta de tempo, fica apenas o aceno. Julgo que agrade ao Espírito esta brevidade. Na vida de Cristo, relatada pelos quatro evangelistas, nunca encontramos o Espírito a falar. Nada diz, mas age com a discrição dos eficazes. 2.2. Inácio de Loiola, guiado pelo Espírito de Deus A conversão de Inácio, sonhador com alcançar glórias do mundo, deu-se, como sabemos, na convalescença dos graves ferimentos sofridos na batalha contra os franceses, defendendo a cidade de Pamplona, em 1521. Recuperando a saúde, na sua Casa-Torre de Loiola, durante largos meses sem poder fazer nada, foi lendo a vida de Cristo e dos santos, porque não havia outra literatura mais a seu gosto. Foi esta a ocasião providencial para ir examinando e ponderando a alternância de estados de espírito, de consolação e desolação, de deleite e entusiasmo passageiros ou de paz e alegria duradoiras (Autobiografia, 7-8). Nesta e noutras experiências têm a sua raiz existencial as «Regras para o discernimento de espíritos» que Santo Inácio nos apresenta nos seus Exercícios Espirituais (313-336) e que são um instrumento precioso para a avaliação interior dos nossos estados de espírito, ultrapassando aparências e simulações. O seu uso assemelha-se à aplicação dos programas anti-vírus na informática (no aspecto negativo) e aos motores de busca nas consultas pela internet (na vertente positiva). A nova era do Espírito 169 Na sua Autobiografia, que o P. Luís Gonçalves da Câmara teve a arte de alcançar de Inácio, repetidamente se refere a si próprio em terceira pessoa, como sendo «o peregrino». É verdade que geograficamente foi um grande peregrino, andando milhares de quilómetros, a maior parte das vezes a pé, sendo coxo. Mais verdade é ainda que foi peregrino incansável das manifestações do Espírito, da procura da vontade de Deus, da sua maior glória e do maior serviço do próximo. No Diário Espiritual, encontramos Inácio como que a acertar, dia a dia, a agulha da bússola da sua vida e planos pelo Norte da vontade de Deus, concretamente quanto ao regime de pobreza das casas da Companhia. No que diz respeito ao Espírito Santo, usa as imagens que a Escritura nos apresenta, como a da luz: «No meio da oração costumada, sem eleições, oferecendo e pedindo a Deus que a oblação passada fosse aceite pela divina Majestade, com assaz devoção e lágrimas: e depois, um pouco adiante, em colóquio com o Espírito Santo para dizer a sua missa, com a mesma devoção ou lágrimas, me parecia vê-lo e senti-lo em claridade espessa ou em cor de chama ígnea, de modo insólito: com tudo isto, considerava a eleição feita» (Diário Espiritual, 14). É também este o caso em que fica claro ser o Espírito de Deus a agir em nós, pois a consolação nos aparece sem causa precedente (cf. Exercícios Espirituais, 330). O Diário Espiritual revela-nos Inácio em procura ardente, metódica, quase escrupulosa, do que Deus quer. E nós como procedemos nas nossas dúvidas e perplexidades? Estamos num tempo em que abundam as consultas, as sondagens, os inquéritos, as reuniões… E que lugar damos ao Espírito Santo? Reunimo-nos com Ele, consultamo-lo? Examinando a minha consciência, por vezes, dá-me a impressão que tendo a ligar mais ao computador e sua ligação à internet do que ao Espírito Santo, que tem um terminal no meu coração, ou à Eucaristia, em que Cristo me aparece cada dia, para Se me dar a comungar e, mais ainda, para me comungar a mim. Nos Exercícios Espirituais, que Inácio de Loiola fez, escreveu e orientou como leigo, até que foi ordenado sacerdote em Veneza em 170 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo 1537, o Espírito Santo parece ser posto de lado9. Só nas passagens evangélicas em que o texto o inclui é que aparece, e pouco mais. Só vem posto em relevo na 13.ª regra para sentir com a Igreja: «Creio que entre Cristo, nosso Senhor, e a Igreja, sua esposa, não há senão um mesmo Espírito que nos governa e dirige para a salvação das almas. Porque é pelo mesmo Espírito e Senhor nosso, que nos deu os dez mandamentos, que é dirigida e governada a nossa Santa Mãe Igreja» (Exercícios Espirituais, 365). Estranhamos facilmente que, nos Exercícios, S. Inácio não tenha posto uma meditação sobre o Pentecostes. Outros opinam que a contemplação para alcançar amor é o Pentecostes dos Exercícios10. É claro que temos que ser compreensivos para com S. Inácio, pois a ausência de sublinhar o papel do Espírito Santo na vida cristã deve-se ao seu cuidado para não ser confundido com os alumbrados. Os alumbrados ou iluminados constituíam uma corrente de espiritualidade em que era dado um papel de tal modo preponderante ao Espírito na vida de cada cristão, que a Igreja e tudo o que era lei ficava secundarizado, enaltecendo o subjectivismo espiritual e recusando a religião das obras exteriores11. Recordemos que o jovem Inácio de Loiola teve problemas com a inquisição em Alcalá e Salamanca, quando ainda não tinha estudado e já orientava pessoas e dava práticas espirituais. Por isso, escrevendo, em 1545, a D. João III, rei de Portugal, explicita claramente a propósito dos alumbrados: «nunca conversei com eles nem os conheci»12. A polémica com forças radicais que combatiam possíveis heterodoxias, durante os primeiros Sobre a dimensão pneumatológica dos Exercícios Espirituais, ver Rogelio García Mateo, Ignacio de Loyola – Su espiritualidad y su mundo cultural, Ediciones Mensajero, Bilbao, 2000, 353-371. 10 J. M. Lera, La contemplación para alcanzar amor, el Pentecostés de los Ejercicios, em Manresa 63 (1991), 166. 11 Cf. Dizionario Enciclopedico di Spiritualità, Città Nuova Editrice. Roma, 1990, 100-103. 12 Cf. Cândido de Dalmases, em Diccionario Histórico de la Compañía de Jesús - I, Universidad Comillas, Madrid, 2001, 86. 9 A nova era do Espírito 171 30 anos da Companhia (1540-1570), esteve centrada nos Exercícios Espirituais. O próprio nome já era pouco recomendável, pois sugeria uma ligação directa ao Espírito; a insistência na indiferença (23) era relacionada com o «não fazer nada», com o quietismo dos alumbrados; a prática da oração mental e seus métodos, assim como as regras do discernimento de espíritos eram vistas com suspeição; o conselho inaciano para que se fomente o encontro imediato entre a criatura e o Criador (15), sem intromissões do orientador dos Exercícios, criava sérias desconfianças. Inácio, também nesta questão, dá-nos um grande exemplo de liberdade interior, unida a sábia prudência. Nem foi um submissionista passivo, um yesman obediencialista, mas também evitou ser um libertário iluminado, fazendo da sua subjectividade a norma dogmática do comportamento. Este equilíbrio dinâmico entre os extremos do situacionismo conformista e o revolucionarismo contestatário, exprime-se na fidelidade criativa, inspirada pelo Espírito de Deus, que faz novas todas as coisas, com criatividade inesgotável. Aplico a Inácio estas expressões de S. Paulo: «Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não torneis a sujeitar-vos ao jugo da escravidão… Pelo contrário, fazei-vos servos uns dos outros pela caridade… Os frutos do Espírito são: caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, temperança» (Gl 5, 1.13.22.23). Os que são verdadeiramente corajosos conseguem um equilíbrio, que não é demissão, mas antes é síntese entre opostos, inclusão conciliadora de tudo o que há de bom, independentemente da sua procedência. Assim, S. Inácio, que foi iniciador de uma original pedagogia de busca da vontade de Deus, pela escola dos Exercícios Espirituais, e fundou uma ordem religiosa em moldes profundamente inovadores (sem coro, sem hábito, sem mosteiros, mas em disponibilidade universal), foi também o homem do sentir com a Igreja, esposa de Cristo. Quem é fiel ao Espírito de Deus é uma pessoa verdadeiramente livre. Como recorda Paulo, «O Senhor é espírito e, onde está o Espírito do Senhor, há liberdade» (2 Cor 3, 17). 172 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo Concluindo esta parte, apresento um retrato espiritual de Inácio de Loiola, que tem a assinatura do Padre Nadal, que entre nós, em Portugal, esteve promulgando as Constituições e falando sobre o carisma de S. Inácio e o espírito dos Exercícios e da Companhia de Jesus: «Inácio seguia o Espírito, não se Lhe adiantava. Deste modo, era conduzido com suavidade para onde não sabia. Pouco a pouco, o caminho ia-se abrindo e o ia reconhecendo, sabiamente ignorante, pondo simplesmente o seu coração em Cristo»13. 3. Sinais do Espírito no mundo contemporâneo. Pentecostes a promover As regras de discernimento de espíritos, que S. Inácio nos apresenta nos Exercícios podem servir de base para fazermos uma leitura espiritual da realidade. Não digo uma leitura espiritualista, mas sim espiritual, ou seja, iluminada pelo Espírito de Deus. Não uma mera reflexão introspectiva, mas uma avaliação do que vemos tendo fundamentalmente em conta a iluminação do Espírito de Deus. Estamos habituados a fazer leituras da realidade todos os dias, a propósito dos nossos afazeres e planos de vida, acerca do que ouvimos e vemos na comunicação social, a propósito de política, justiça, economia ou desporto… Mas não é verdade que damos poucos ouvidos ao que o Espírito de Deus segreda em nossos corações? Quantificando a qualidade, pergunto: qual é a percentagem dos critérios de Deus que entram nas nossas opiniões, avaliações e decisões? Certamente que ainda teremos muito que caminhar até alcançarmos a medida cheia de S. Paulo: Já não sou eu que vivo, julgo, avalio, discirno, dou opiniões e faço escolhas. Quem se encarrega de tudo isso em mim é o Espírito que Cristo ressuscitado me oferece (cf. Gl 2, 20). Na despedida que Cristo fez na última ceia, fica bem claro que, com a sua partida para o Pai, não ficamos sós, uns órfãos desamparados, mas que isso vai ter vantagens para nós: «Eu pedirei ao Pai e Ele 13 Jesrónimo Nadal, Diálogos, nº 17. FN II, 252. A nova era do Espírito 173 vos dará outro Consolador, para estar sempre convosco, o Espírito da Verdade… Não vos deixarei órfãos» (Jo 14, 16-18). Esta ideia de presença próxima de Cristo, pelo Espírito, que dá coragem, confiança e alegria, vem reiteradamente acentuada. Surgem naturalmente perguntas: – Como se está a cumprir, nos nossos dias, a promessa que Cristo fez de estar sempre connosco até ao fim dos tempos? (cf. Mt 28, 20). – Como podemos detectar hoje a presença do Espírito de Deus, que Cristo nos prometeu enviar? – Há sinais de Pentecostes no mundo actual, ou (perdoem o antropomorfismo) o Pentecostes já perdeu a força original, está gasto e ultrapassado o seu prazo de validade? Vou procurar responder sinteticamente, partindo de alguns documentos actuais da Igreja e da Companhia de Jesus. 3.1. Promover a cultura da vida e da solidariedade «Respeita, defende, ama e serve a vida, cada vida humana!»14 é o desafio que nos continua a lançar Cristo, que se definiu como «a Vida» (Jo 14, 6). O documento preparatório do 48.º Congresso Eucarístico Internacional, que há duas semanas se realizou no México, em Guadalajara, recorda que «a comunidade dos cristãos e a sociedade civil propuseram, e continuam a propor, muitas iniciativas em favor dos mais indefesos… Surgem centros de ajuda à vida… Nota-se uma aversão mais forte à pena de morte e à guerra como solução dos conflitos»15. O individualismo não passa de um campo de concentração com arame farpado de ouro. Só a solidariedade nos identifica e realiza como seres humanos. Por isso, os nossos Bispos nos exortam: João Paulo II, O Evangelho da Vida – Carta Encíclica «Evangelium Vitae», Editorial A.O., Braga, 1995, nº 5. 15 48.º Congresso Eucarístico Internacional, A Eucaristia, luz e vida do novo milénio – Documento preparatório, Editorial A.O., Braga, 2003, nº 24. 14 174 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo «Precisamos de acentuar uma cultura da solidariedade, em que os direitos dos indivíduos cedam perante as exigências do bem comunitário… Para os cristãos, o dever do amor fraterno é a base da solidariedade»16. 3.2. Favorecer a paz pelo diálogo Somos bombardeados por notícias de guerras, como amargo pão de cada dia. Ao fechar os nossos aparelhos de televisão, parece ser necessário pedir a alguém que limpe tanto sangue que escorreu das imagens dos noticiários. A guerra globalizou-se, ultrapassando as fronteiras de alguns países formalmente em guerra. Fala-se menos dos que arriscam a vida pela paz, nos corredores da diplomacia nos quatro cantos do mundo, nas missões militares de pacificação, nos múltiplos serviços de assistência às vítimas das injustiças e das guerras. A Igreja, a todos os níveis começando pelo Papa, tem aceite o desafio, nada fácil mas fundamental, do diálogo ecuménico e inter-religioso. É condição básica para a paz, que não acontece pelo aperfeiçoamento da tecnologia bélica. Assim recorda João Paulo II na carta programática À entrada do novo milénio: «O diálogo deve continuar. No contexto de um pluralismo cultural e religioso mais acentuado, como se prevê na sociedade do novo milénio, esse diálogo é importante, até para criar condições seguras de paz e afastar o espectro funesto das guerras de religião que já cobriram de sangue muitos períodos na história da humanidade. O nome do único Deus deve tornar-se cada vez mais aquilo que é: um nome de paz, um imperativo de paz17. Conferência Episcopal Portuguesa, Crise de sociedade, crise de civilização – Nota pastoral, Lisboa, 2001, nº 8. 17 João Paulo II, À entrada do novo milénio – Carta Apostólica «Novo millennio ineunte», Editorial A.O., Braga, 2001, nº 55. 16 A nova era do Espírito 175 3.3. Recuperar o papel dos leigos na Igreja Nem sempre por culpa dos clérigos, o que é certo é que a Igreja tem sofrido de clericalização. A nossa última Congregação Geral, realizada no ano de 1995, ressaltou que uma leitura dos sinais dos tempos a partir do Concílio Vaticano II mostra, sem lugar para dúvidas, que a Igreja do próximo milénio será chamada a “Igreja dos leigos”. A Companhia reconhece, como uma graça dos nossos tempos e uma esperança para o futuro, que os leigos “tomem parte activa, consciente e responsável, na missão da Igreja neste momento decisivo da história”18. É interessante que este decreto 13 «Colaboração com os leigos na missão», sendo dos mais arrojados, foi dos poucos que alcançou o voto unânime dos 229 participantes, representando os 5 continentes. Não se trata de uma mera solução técnica, de uma concessão ocasional, dada a escassez de vocações à Companhia, para o Sacerdócio e para outras Ordens e Congregações religiosas. Trata-se de responsabilizar os leigos pela sua vocação baptismal, membros da Igreja com pleno estatuto, nos seus direitos e deveres. Julgo que o caminho está aberto, mas ainda falta andar muito para que esta relação de colaboração seja mutuamente aceite, por ambas as partes, com inventiva e criatividade apostólicas. 3.4. Fazer renascer a cultura da esperança Todo o medo, amargura e pessimismo não têm o selo do Espírito de Deus, mas antes são manifestações de ateísmo prático. Ser cristão é, como recorda S. Pedro, «estar sempre dispostos a responder… com doçura e respeito, a todo aquele que vos perguntar a razão da vossa esperança» (1 Pd 3, 15). Poderemos experimentar limitações de todo o género, mas sempre poderemos oferecer esperança. É que Congregação Geral XXXIV – Selecção de textos, Cúria Provincial, Lisboa, 1996, 93. 18 176 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo não se trata de um produto fabricado em qualquer laboratório de vida fácil. A esperança é fundamentalmente um dom, é fruto do Espírito de Deus: «A esperança não nos deixa confundidos, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações, pelo Espírito Santo, que nos foi concedido» (Rom 5, 5). Os nossos Bispos, num documento breve mas incisivo, no ano 2001, assim afirmam: «Há na nossa sociedade valores positivos, de competência, de generosidade, de abertura aos outros e mesmo de fé, suficientemente fortes para inspirarem um projecto; há cidadãos competentes, generosos, rectos, que dedicam as suas vidas ao bem comum. É preciso que nos convençamos de que o futuro de Portugal depende de todos nós e não apenas dos Governos (…). Apelamos, de modo particular, aos jovens, aos educadores, aos agentes culturais e fazedores de opinião, a que dêem conteúdo a esta esperança, acreditando que um mundo novo é possível, tendo a coragem, se necessário, de ser diferente»19. 3.5. Viver em fidelidade criativa O P. Teilhard de Chardin rezava pedindo a graça de ser «campo de experimentação do Espírito Santo». Ora aí está o que nos falta. Contamos pouco com Ele e por isso não somos suficientemente criativos. Facilitemos a missão do Espírito Santo de «renovar a face da terra», de «fazer novas todas as coisas» (Ap 21, 5). Se deixássemos que o Espírito de Deus experimentasse mais as suas soluções em nós, como seríamos mais criativos! Porque não contar mais com a inteligência, fortaleza e conselho, dons do Espírito Santo, do que com as nossas capacidades? Como observava o P. Pedro Arrupe, não se podem dar soluções do passado para problemas do presente. Para problemas novos, soluções novas. Como recorda Cristo: «vinho novo em odres novos» (Mc 2, 21). Conferência Episcopal Portuguesa, Crise de sociedade, crise de civilização – Nota pastoral, Lisboa, 2001, nº 9. 19 A nova era do Espírito 177 O Padre Geral Peter-Hans Kolvenbach publicou um documento intitulado «A formação permanente como fidelidade criativa»20. Cito somente a primeira frase: «A formação permanente e o discernimento apostólico constituem a coluna da renovação espiritual e apostólica da Companhia». Como estamos numa acção de formação permanente, faço votos para que saiamos daqui com propósitos de fidelidade criativa, até porque outro tipo de fidelidade, estereotipada e rotineira, é infiel. Toda a fidelidade precisa de ser criativa. Toda a criatividade deve ser fiel. O que seria de nós sem o Espírito Santo?! Letra sem espírito; corpo sem alma, desanimado de todo; rotina sem criatividade; luta sem esperança... Não resisto a citar este texto inspirado do Patriarca Atenágoras: «Sem o Espírito Santo, Deus fica longe; Cristo permanece no passado; o Evangelho é letra morta; a Igreja não passa de uma simples organização; a autoridade, um domínio; a missão, propaganda; o culto, uma evocação do passado; e o agir humano, uma moral de escravos. Mas com o Espírito, Cristo torna-se presente; o Evangelho é a missão trinitária; a autoridade, um serviço libertador; a missão, um pentecostes; a liturgia, memorial e antecipação; o agir humano é divinizado». Usando expressões consagradas do vocabulário inglês e pedindo perdão ao «Senhor que dá a vida» por não me conseguir exprimir com mais profundidade, o Espírito Santo é um infinito «Meeting-point» (ponto de encontro), de tal modo que as Pessoas de Deus encontram n’Ele a sua unidade; e é também o Espírito que une a nossa desgarrada multiplicidade, conseguindo-nos fazer um. O Espírito de Deus é também um omnipotente «Power-point», que renova a face da terra do nosso coração, a fim de amarmos com a qualidade original de Deus Amor. Peter-Hans Kolvenbach, A formação permanente como fidelidade criativa, Roma, 2002. 20 178 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo 3.6. Fazer exercícios de espírito-terapia Está na moda a fisioterapia e a psicoterapia, os exercícios físicos e as ginásticas, os regimes de vida, de raiz mais ocidental ou asiática, com mais ou menos filosofias ou sistemas de vida subjacentes. Vive-se a redescoberta da nossa dimensão física e psíquica. Os sinos da publicidade tocam a rebate: – Todos precisam de uma cura! Quem não se trata bem, maltrata-se! Trate de si, porque senão as suas maleitas, físicas e psíquicas, encarregar-se-ão disso! Mas a dimensão mais profunda da pessoa humana fica muitas vezes esquecida. Por isso, S. Inácio organizou uma clínica aberta destinada a fazer exercícios de espírito-terapia, que aconselho vivamente. O nome oficial é: «Exercícios Espirituais para se vencer a si mesmo e ordenar a sua vida, sem se determinar por afeição alguma que seja desordenada» (21). Eis alguns exercícios que estão incluídos neste programa de desintoxicação de todo o tipo de drogas, com vista a uma boa forma atlética, que nos prepare todas as olimpíadas da vida quotidiana: – «buscar e achar a vontade divina na disposição de sua vida para a salvação da alma» (1); – «sentir e gostar as coisas internamente» (2); – oferecer a Deus «todo o seu querer e liberdade», «com grande ânimo e liberalidade» (5); – exercícios de «indiferença» activa, perante todas as coisas criadas (27); – examinar a própria consciência, iluminados pela consciência amorosa de Deus a nosso respeito (43); – exercícios de colóquios, «como um amigo fala a outro amigo», com Cristo crucificado, interrogando-me a mim mesmo: «o que tenho feito por Cristo, o que faço por Cristo, o que devo fazer por Cristo» (53); – exercícios de «oblações de maior estima e valor» (97); – exercícios de «conhecimento interno de Cristo, que por mim se fez homem, para que mais O ame e O siga» (104); A nova era do Espírito 179 – exercícios de libertação do campo de concentração do «próprio amor, querer e interesse» (189); – exercícios de oração, em encontros imediatos com as pessoas de Deus, segundo vários métodos (238-260); – exercícios de «discernimento de espíritos», para «sentir e conhecer as várias moções que se causam na alma: as boas para as aceitar e as más para as rejeitar» (313-336); – exercícios para «sentir com a Igreja» (352-370); – etc., etc....; – em suma, exercícios para «alcançar amor», a fim de «em tudo amar e servir», para procurar e encontrar a Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus (230-237)... Assim exercitados, com a devida frequência, de certeza que viveremos em óptima forma e a nossa qualidade de vida se elevará a patamares de beleza tão humana quanto divina. Outros sinais da presença activa do Espírito Santo no meio de nós, hoje, poderíamos apresentar, como por exemplo: – o movimento ecuménico de aproximação entre os cristãos separados (que também somos nós); – iniciativas de voluntariado, de serviço gratuito ao próximo, por vezes em contextos de alto risco; – novos movimentos e obras na Igreja que têm surgido com grande vigor; – o diálogo inter-religioso, etc. Em tudo isto vemos como que as impressões digitais ou a assinatura do Espírito de Deus, que a tudo dá vida nova. Conclusão – Prognósticos infalíveis antes do «jogo» Na gíria futebolística, estamos habituados a ouvir esta expressão, quando alguém é interrogado sobre o resultado de um jogo que se aproxima. É frequente esta resposta sapiencial: «Prognósticos, só no fim do jogo». Quero afirmar diametralmente o contrário. Iluminados pelo Espírito de Deus, podemos prever o imprevisível, adivinhar o que é mais ignorado, ter certezas imbatíveis a partir de mil dúvidas... 180 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo Usando palavras de S. Paulo na carta aos Romanos, no capítulo 8º, e agarrando-nos à sua fé esperançada, com ele exclamamos: «Se Deus é por nós, quem poderá estar contra nós?... Quem poderá separar-nos do amor de Cristo?... Em tudo isto somos mais do que vencedores, graças Àquele que nos amou… Ora nós sabemos que Deus concorre em tudo para o bem dos que O amam… Os sofrimentos do tempo presente nada são em comparação com a glória que se há-de revelar em nós» (Rom 8, 31.35.37.28.18). Inácio de Loiola dá-nos um testemunho maravilhoso desta «esperança que não nos deixa confundidos» (Rom 5, 5), que não é miragem nem engano. Por exemplo, nesta página do seu diário: «Enquanto preparava o altar, dizia sentidamente e a viva voz: ”Onde me quereis levar, Senhor?” Repeti isto (parecia-me que era guiado) e me aumentava muito a devoção que me levava a chorar (…). Seguindo-vos, meu Senhor, eu não me poderei perder»21. Como viram, não vos comuniquei as últimas notícias sobre o Espírito Santo. Se tal procurasse fazer, o que apresentaria não passavam das penúltimas notícias de Deus. É que as últimas são o eco que o Espírito de Deus provocou agora em vós, em actualização permanente, num contínuo «upgrade». O que disse e o que omiti, o que soube expressar e o que não consegui transmitir… encomendo-o ao Espírito Santo, fazendo minhas as palavras de Jesus na última ceia: «o Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas» (Jo 14, 26). Cumpre-nos, segundo o lema de vida atribuído a S. Inácio, «trabalhar como se tudo dependesse de nós e confiar como se tudo dependesse de Deus». Assim, cada dia, iremos escrevendo o 5.º evangelho da vida cristã, sob a inspiração do Espírito de Deus, em permanente fidelidade criativa. La intimidad del Peregrino – Diario espiritual de San Ignacio de Loyola, Mensajero / Sal Terae, Bilbao, 1990, nn. 113-114. 21 ITE, MISSA EST Mário Garcia, S.J. A mais poderosa inclinação, e o maior apetite do homem, é desejar ser. P. António Vieira (Sermão de Todos os Santos, cap. II) Nas perguntas que, nos Evangelhos, se colocam a Cristo, por exemplo: “Quem é o meu próximo?” (Lc 10, 29); “Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?” (Mc 10, 17); “Que é a verdade?” (Jo 18, 38), em todas elas existe uma questão prévia. É a questão que Nossa Senhora formula, dirigindo-se ao enviado de Deus: “Como se fará isso, pois eu não conheço homem?” (Lc 1,34). Eis a questão justa que a nossa fé pode colocar a Deus, a pergunta pelo “como” numa situação de discernimento teórico-prático. Significa, antes de mais, comunicar a docilidade da inteligência, colaborar com a vontade e comungar com o coração na compreensão do “impossível” que só a Deus é possível (“a Deus nada é impossível”, Lc 1, 36). Só Deus pode decifrar o mistério, e toda a sua actuação é mistério, abrindo-nos, pela analogia da fé, para a aceitação dos factos da nossa vida situada no mundo em correlação e companhia. O Arcanjo Gabriel revela a Maria a gravidez de alguém que ela bem conhece, Isabel, mulher velha e estéril. Ao mesmo tempo, Maria é convidada a comparar analogicamente este “caso” com o seu próprio. Aquilo que se passa com Isabel é misterioso, tanto ou mais, como aquilo 182 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo que se passará com ela. Maria, ao declarar o seu “fiat”, mostra que compreende na fé o facto singular da sua maternidade, e ao visitar a prima mostra que também o tinha compreendido na universalidade da caridade. A união indissolúvel da palavra com a acção é a prova completa da sua aceitação da vontade de Deus. Se a nossa fé, declarada numa palavra, não nos levar à visitação de Isabel, não realizaremos a verdade; se o nosso “amén” no momento da comunhão eucarística não nos conduzir ao lava-pés, a nossa fé está morta. Só a caridade é fonte de vida, “só o amor permite conhecer plenamente o Mistério”1. Ao colocarmos agora, conclusão includente, a questão do envio – “Ite, Missa est” –, estamos a perspectivar, nos seus contornos imediatos, concretos, em “sinais” que se tornam “aplicação de sentidos”, a compreensão da palavra que aqui testemunhámos. A VI Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana, sem esta prova real, não realizará o que pretende significar, permanecerá puramente estética, numa espécie de visibilidade irresoluta. Como se passa do dizer ao fazer? Como se passa do sentir ao trabalhar? S. Inácio, no final da primeira meditação proposta nos Exercícios, reúne, numa só experiência espiritual, as intenções, acções e operações do exercitante: “Imaginando a Cristo nosso Senhor diante de mim e pregado na cruz, fazer um colóquio: como de Criador veio a fazer-se homem, e de vida eterna a morte temporal, e assim a morrer por meus pecados. E, assim, interrogar-me a mim mesmo: o que tenho feito por Cristo, o que faço por Cristo, o que devo fazer por Cristo; e vendo-o a Ele em tal estado e assim pendente na cruz, discorrer pelo que se me oferecer” (EE, 53). Note-se que este exercício se realiza diante de Cristo crucificado, “mistério da fé”, numa síntese admirável de contemplação e acção, em que o “fazer”, insistentemente repetido e conjugado em todos os tempos e modos, nunca é dissociado da visão exterior (imaginando) e interior (discorrendo). Se a meditação em Instrução da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, Partir de Cristo, Braga, Editorial A. O., 2002, nº 23. 1 Ite, Missa est 183 causa, como toda a oração inaciana, começa sempre “para serviço e louvor de sua divina majestade”, com a rectificação ordenada da minha consciência, que inclui “todas as minhas intenções, acções e operações” (EE, 46), isto é, os desígnios, os impulsos e os actos concretos (“opera”, operaciones), desce progressivamente do alto, “assim pendente na cruz” que pende sobre o mundo. Conclui-se “pelo que se me oferecer”, por aquilo que entra e quer entrar a partir do mundo, para que eu possa mais encarnar a Cristo nas situações concretas onde sou chamado a viver. Adaptemos, neste contexto, os tópicos que S. Inácio nos propõe no primeiro ponto da meditação dos pecados pessoais: “o lugar e a casa onde habitei”, “a convivência que tive com outros”, “o ofício em que vivi” (EE, 56). Ite, missa est: projecto de missão, resolução prática da mesma e única celebração: a da Eucaristia, banquete, presença, sacrifício, e a da Igreja, povo, corpo, sacramento universal de salvação. 1. “O lugar e a casa onde habitei” De todas as imagens da intimidade de Deus, a mais fascinante é, porventura, a do seio materno, de longa tradição na Bíblia, desde o planar do Espírito acalentando o universo incipiente, até ao recolher debaixo das asas como a galinha faz aos pintainhos (cf. Lc 13, 34; Mt 23, 37). Jesus humaniza a águia imperial, ao sabor da sua própria experiência da intimidade doméstica, como se pode ler, por exemplo, nos colóquios com os discípulos durante a celebração da Ceia, no Evangelho de S. João: “A mulher, quando dá à luz, está em sofrimento, porque chegou a sua hora, mas, depois que deu à luz a criança, já não se lembra da sua aflição, pela alegria que sente de ter nascido um homem para o mundo” (Jo 16, 21). Esta alegria que prorrompe da própria carne, é um estímulo muito eficaz para podermos observar o lugar que damos à “vida oculta de Jesus” no interior do nosso ambiente quotidiano, o mistério da Casa de Nazaré que levamos dentro de nós pelos caminhos do mundo, “onde o pulsar trinitário da caridade dilata a comunhão numa renovada 184 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo missão”2. Utilizei o verbo “observar” (“observar o lugar”) que traduz o espanhol mirar no texto da contemplação do Nascimento de Jesus nos Exercícios Espirituais. S. Inácio escreve: observar, contemplar e servir (mirándolos, contemplándolos y sirviéndolos), quando se trata de “ver as pessoas” (EE, 114); observar, advertir e contemplar (mirar, advertir y contemplar), quando se trata das palavras que as pessoas falam (EE, 115); e observar e considerar (mirar y considerar) quando se trata do que fazem (EE, 116). Estas sequências de verbos caminham num crescendo de compreensão, não são redundantes, mas dinâmicas, aproximam-nos do que estamos a ver. Assim, “observar” (mirar), no caso das pessoas, significa, em última análise, servir; no caso das palavras, contemplar e, no caso das acções, considerar. De facto, é este mesmo verbo, “considerar” (etimologicamente, observar os astros, sidera, para neles encontrar os auspícios), que é utilizado, no terceiro ponto da Contemplação para alcançar amor: “considerar como Deus trabalha e labora por mim” (EE, 236). S. Inácio é muito preciso ao distinguir os vários modos de observar a realidade, reservando para as palavras o verbo “contemplar”, para as pessoas o verbo “servir” e para as acções (operaciones) o verbo “considerar”. Esta atitude eminentemente contemplativa diante da palavra é plena de sentido espiritual. Veja-se, por exemplo, o enunciado do Segundo modo de orar: “contemplar a significação de cada palavra da oração” (EE, 249). Contemplar o mistério da significação da palavra, não só na lectio da Sagrada Escritura, mas no saber ouvir a Bíblia viva, a palavra do outro como sua expressão existencial concreta, procurando, como o “Pressuposto” dos Exercícios nos ensina, “salvar a (sua) proposição” (EE, 22), “como se presente me achasse, com todo o acatamento e reverência possível” (EE, 114). E que maior consideração para que este serviço se efective, senão a da “suma pobreza” (EE, 116) do Senhor, o seu “caminhar e trabalhar ... para morrer numa cruz; e tudo isto por mim” (EE, 116). Na oração de contemplação do Natal de Jesus, “o lugar ou gruta do nascimento” 2 Partir de Cristo, nº 4. Ite, Missa est 185 é preparado pela observação do “caminho desde Nazaré a Belém” e prolongado na consideração do “caminho” da cruz. O “caminho” de Nazaré a Belém é prolepse simbólica deste “caminhar e trabalhar” por mim. A “composição vendo o lugar” da minha participação activa na Eucaristia, como resumo e sinal significante da minha fé, do meu Baptismo, da minha intimidade e progressiva identificação com Cristo, leva-me a um serviço concreto que observa, contempla e considera a pessoa do próprio Cristo na pessoa do outro, servindo-o “em suas necessidades”, de modo particular, na palavra e na acção. Não se pode celebrar a Eucaristia, sem contemplar o mundo como um texto sagrado, considerando o que devo fazer por Cristo. O considerar da contemplação não é, por conseguinte, uma mera atitude intelectual, mas uma reflexão prática, afectiva, sobre a palavra, divina e humana, como liturgia. A vivência da Eucaristia passa pelo caminho de “Belém”, o lugar do nosso Baptismo, para o mundo, estimulados pela palavra que incessantemente os nossos ouvidos contemplam no seio da Santíssima Trindade: “Façamos a redenção do género humano” (EE, 107). Neste “lugar” teológico que é o mundo, damos a vida por amor, à imitação de Jesus, “em suma pobreza”. A mais substantiva forma de viver a Eucaristia é, assim, unificar, num único serviço, a palavra e a acção, na coerência de uma vida em crescimento, progressivamente consolidada em Cristo. Lembro aqui, na conclusão desta primeira abordagem do sentido da missão da Missa, um verso de Daniel Faria: “Cresço na clareira de um homem que é uma palavra”3. 2. “A convivência que tive com outros” O “banquete nupcial”, a ceia eucarística, o povo reunido para celebrar o casamento do seu Rei e Senhor. As “bodas de Caná” é o 3 Daniel Faria, Homens que são como lugares mal situados, 1ª ed., Porto, Fundação Manuel Leão, 1998, p. 77. Sobre a poesia de Daniel Faria, consultar Vítor Moura, “O giroscópio”, Relâmpago, revista de poesia, nº 12, 4/2003, p.53. 186 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo Segundo Mistério Luminoso e, justamente, nele podemos englobar os outros dois que se lhe seguem: o anúncio do Reino e a Transfiguração. Quando estamos juntos num mesmo lugar, criamos espaço. E quando realizamos juntos uma acção, esse espaço irradia. A proclamação do “mistério da fé” torna transfiguradores, não só quem proclama mas também o espaço onde o mistério é proclamado. A Igreja é o lugar da Eucaristia e a Eucaristia é a coroa nupcial da Igreja. Todos, cada um dos homens e mulheres, somos chamados à convivência com o Esposo nestas bodas de Caná realizadas na Igreja, no espaço sagrado do mundo. A Eucaristia, “lava-pés” não só a quem precisa, mas também manifestação da amizade, expressão da pura gratuidade que ama para amar e por amor. Quando celebramos a Eucaristia, tocamos e deixamo-nos tocar por aqueles a quem amamos, “aplicação de sentidos” numa sempre maior e mais íntima convivência. “Concentram-se na Eucaristia todas as formas de oração”4 e todas as formas de “aspirar e saborear, com o olfacto e com o gosto, a infinita suavidade e doçura da divindade, da alma e das suas virtudes e de tudo” (EE, 124). Concentração suprema, numa só vida a dois, a Eucaristia é a carne do nosso Deus e o sangue do mundo em nós. É Ela que nos faz exclamar, como S. Paulo: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gál 2, 20); “para mim viver é Cristo” (Fil 1, 21). S. Inácio, na primeira contemplação da Terceira Semana dos Exercícios, “como Cristo nosso Senhor foi desde Betânia a Jerusalém até à última ceia inclusive” (EE, 190), propõe, na composição de lugar, “considerar o caminho desde Betânia a Jerusalém” e “o lugar da ceia” (EE, 192). Se “o lugar ou gruta do nascimento” (EE, 112), era proposto para ser observado (mirar), aqui, “o lugar da ceia” é proposto para ser considerado (considerar). Não é fortuita esta diferença. Com efeito, na celebração da Ceia realiza-se uma acção que implica uma correlativa “compaixão”, uma verdadeira comoção (si la materia o la devoción le conmueve, EE, 199), isto é, uma energia 4 Partir de Cristo, nº 26. Ite, Missa est 187 espiritual que nos leva a percorrer o mesmo “caminho” do Calvário, “porque por meus pecados vai o Senhor à paixão” (EE, 193). A celebração da Ceia torna-se, assim, a concentração de todo o mistério pascal, via da consideração permanente do “sacratíssimo Sacrifício da Eucaristia, como grandíssimo sinal do seu amor” (EE, 289), e, ao mesmo tempo, com-paixão pelo “que Cristo padece na sua humanidade ou quer padecer” (EE, 195) e co-moção activa pelo que todos os homens e mulheres hoje padecem. A convivência no êxito da fraternidade não implica somente um “fazer”, mas um “saber estar ao lado das pessoas, assumindo os seus problemas para responder, com uma forte atenção, aos sinais dos tempos e às suas exigências”5, um descobrir “o valor divino e humano do estar juntos gratuitamente, como discípulos e discípulas ao redor do Cristo Mestre, em amizade, partilhando até os momentos de divertimento e de lazer”6. A sabedoria do “estar ao lado das pessoas” e a descoberta do “estar juntos gratuitamente” requerem um processo de conversão contínua ao outro, ao seu modo de sentir e de pensar. A missão da Missa pode formular-se com a máxima que S. Inácio inscreve no itinerário dos Exercícios: “pense cada um que tanto aproveitará em todas as coisas espirituais, quanto sair de seu próprio amor, querer e interesse” (EE, 189). “Sair de si”, do eu que nos desgasta a utopia e mata inexoravelmente a esperança. Os Exercícios Espirituais são, de facto, uma Missa, que nos projecta no futuro, por amor, querer e interesse do outro. O que tenho feito, o que faço, o que devo fazer por Cristo (EE, 53), marca o princípio e o fundamento prático, presente ao longo de toda a vida, a exigência de uma sempre maior consideração pelo que tenho feito, faço e devo fazer pelos outros. Como entender que o envio não comova e o silêncio da contemplação se esterilize em perpétuas recusas? O Papa João Paulo II propôs fazer da Igreja a casa e a escola da comunhão, “o grande 5 6 Partir de Cristo, nº 36. Partir de Cristo, nº 29. 188 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo desafio que nos espera no milénio que começa”, e explicou na Carta Apostólica À entrada do novo milénio, as várias formas de o promover. Sublinha a necessidade de “saber ‘criar espaço’ para o irmão, levando os fardos uns dos outros e rejeitando as tentações egoístas que sempre nos ameaçam e geram competição, arrivismo, suspeitas, ciúmes”7. Dilatação da espiritualidade da comunhão que gera a plena convivência nas sociedades multiculturais. O dinamismo da presença eucarística concentra, convoca e envia ao encontro de todos e de tudo, convergindo para Aquele que atrai a si todos os homens. É neste contexto de atracção transfiguradora para o alto (“Quando Eu for levantado da terra, atrairei todos a mim”, Jo 12, 32), que o anúncio do Reino de Cristo transmite, através de nós, um regresso ao mundo para mais o amar e servir. Gostaria de concluir esta segunda abordagem à missão da Missa, ainda com o poeta Daniel Faria: “Deixai-me começar a claridade / de quem vive para despenhar-se no mundo / Dai-me a chama, o inextinguível, dai-me / para que me aqueça a boca – o pão” 8. 3. “O ofício em que vivi” Servir, como nos recorda a Oração Eucarística II do Missal Romano – “vos damos graças, porque nos admitistes à vossa presença para vos servir nestes santos mistérios” –, representa, na tradição bíblica, desempenhar o maior dos ofícios, exercer, na presença do Senhor, a maior das funções. Quando S. Inácio nos diz, no quinto ponto da contemplação da aparição de Cristo ressuscitado a Nossa Senhora: “observar (mirar) o ofício de consolar que Cristo nosso Senhor traz” (EE, 224), retoma, por assim dizer, o carácter sacerdotal da celebração da Ceia, agora presente “nos verdadeiros e santíssimos 7 João Paulo II, À entrada do novo milénio, Braga, Editorial A. O., 2001, nº 8 Daniel Faria, Dos Líquidos, 1ª ed., Porto, Fundação Manuel Leão, 2000, p. 43. 125. Ite, Missa est 189 efeitos” da divindade que “tão miraculosamente” aparece e se mostra “na santíssima Ressurreição” (EE, 223). Cristo ressuscitado, de facto, traz, como novidade do seu sacerdócio, “o ofício de consolar”. Exerce-o, em primeiro lugar, a favor de Nossa Senhora, Maria, a “mulher” que a todos nos representa, tipo da Igreja e imagem da nova humanidade. Como nas bodas de Caná, consolar é dar o vinho novo da nova e eterna aliança, à maneira do Senhor que sobe ao céu abençoando os seus discípulos (Lc 24, 50-51), exercendo sobre eles um ofício sacerdotal. Quando falamos da Eucaristia, como “ofício” do cristão no mundo, acentuamos esta nota específica do sacerdócio baptismal, sem a qual a missão evangélica ficaria desfocada. Sublinhamos uma “missa sobre o mundo” de sabor theillardiano. O Papa João Paulo II, na Carta encíclica A Eucaristia, vida da Igreja (Ecclesia de Eucharistia), ao recordar a sua emoção de celebrante nos mais variados cenários da terra, conclui deste modo: “mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja de aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo”9. É deste ofício de celebrante que se trata, ao instituirmos a Eucaristia como projecto de eficácia realista da nossa missão no mundo. “Que hei-de fazer por Cristo?” A resposta que os Exercícios dão a esta pergunta encontra-se, assim, totalmente esclarecida na contemplação do Senhor Ressuscitado: “Observar o ofício de consolar que Cristo nosso Senhor traz e comparando como os amigos se costumam consolar uns aos outros” (EE, 224). Comparando, o método da analogia da fé que o Arcanjo Gabriel ensina a Maria, quando a convida a comparar a consolação que ela recebe de Deus com “o ofício de consolar” que ela é chamada a exercer em relação à sua prima Isabel. A resposta da Santíssima Trindade, “a redenção do género humano”, que nos foi transmitida no dia do Baptismo. A resposta do Filho, a Eucaristia, que nos impele, no Espírito Santo, à imitação do seu modo de “consolar”, a “dar a vida pelos amigos” (Jo 15, 13). 9 João Paulo II, A Eucaristia, vida da Igreja, Braga, Editorial A. O., 2003, nº 8. 190 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo O mundo é o lugar teológico da aparição de Jesus ressuscitado. A Igreja, como sacramento universal de salvação, consola-nos, no seu próprio seio e no seio do mundo, à imagem e semelhança de Cristo e de Maria, e envia-nos, nessa consolação, a consolar, a “visitar” as pessoas “em suas necessidades”, como Maria levando, a toda a gente, Jesus, o Consolador, “luz para iluminar as nações” (Lc 2, 32). O Senhor está presente no mundo consolando, como no sacrário, como na praia do Mar de Tiberíades a preparar, para todos os homens e mulheres, a refeição (Jo 21, 9). Depende de nós, de facto, que todos dela possam alimentar-se. O Ite, Missa est deve desembocar no convívio fraterno onde ninguém interroga ninguém, porque o Espírito responde no coração, no silêncio e no olhar, de todos e de cada um: “nenhum dos discípulos ousava perguntar-lhe ‘quem és tu?’, porque sabiam que era o Senhor” (Jo 21, 12). Servir, como síntese do contemplar e do considerar, representa, na terminologia inaciana, a missão. Estamos, com efeito, situados no resultado prático do colóquio da oração, “como um amigo fala a outro, ou um servo a seu senhor” (EE, 54), enviados, “novamente” (EE, 109), para o mundo. A rectificação de “todas as minhas intenções, acções e operações” que peço a Deus na oração preparatória de cada exercício de oração (EE, 46), comprova-se, no interior do mundo, “em tudo amar e servir”. Não só à divina majestade, como se pede na Contemplação para alcançar amor (EE, 233), ou a Deus nosso Senhor, como se diz na undécima regra para sentir na igreja (EE, 363), mas também, indissolúvel e eucaristicamente, amando e servindo a todos “em suas necessidades, como se presente me achasse” (EE, 114). A Instrução Partir de Cristo, sobre o renovado compromisso da vida consagrada no terceiro milénio, descreve-nos a verdadeira espiritualidade como fruto do Espírito Santo, síntese de vocação e de comunhão, exprimindo-se ou dilatando-se na missão evangélica10. Também os Exercícios Espirituais, ao sublinharem, como culminância do envio, “o 10 Partir de Cristo, cf. nº 20. Ite, Missa est 191 ofício de consolar que Cristo nosso Senhor traz”, dilatam o coração à dimensão do mundo, em serviço permanente, incondicional, de louvor e acção de graças. Também agora o poeta Daniel Faria nos remete para a Cruz e para Aquele que nela está pendente: “Árvore / que bebe do homem. Árvore / em silêncio onde escutamos a palavra / em carne viva. Verbo / tão inteiro que se fez espelho”11. Conclusão A espiritualidade é a devoção à vivência da fé. A espiritualidade inaciana concentra essa devoção num acto de liberdade, que S. Inácio chama “eleição”; dinamiza-a em terceira maneira de humildade, “perfeitíssima” (EE, 167) expande-a na experiência gloriosa da Cruz, “contemplação para alcançar amor” que não tem fim. A Eucaristia pode ser compreendida como essa “contemplação para alcançar amor”. Contemplação que desemboca na consideração e no serviço. É esta a missão da Eucaristia, o ite, missa est dela decorrente. É este “o ofício de consolar” que Nosso Senhor Jesus Cristo nos propõe. Pilatos apresentou Jesus ao povo com as palavras bem conhecidas: “Ecce Homo! Eis o Homem” (Jo, 19, 5). Já O conhecemos e sabemos que só n’Ele descansa o nosso coração. Ficámos mais disponíveis para O dar a conhecer? Para contemplar a palavra – “Queríamos ver Jesus” (Jo 12, 21) – de tantos “gregos” que vieram, connosco, adorar a Deus durante a festa? Como servimos, considerando o que devemos fazer por eles? Por analogia, nesta circunstância que antecede a celebração da Missa, gostaria de concluir com um poema de Daniel Faria e uma passagem do Sermão de Vieira, que também já citei na epígrafe. Daniel Faria, grande poeta português contemporâneo, faleceu sendo noviço beneditino, aos 28 anos de idade, em 1999. Do seu livro póstumo, Dos Líquidos: Daniel Faria, Homens que são como lugares mal situados, 1ª ed., Porto, Fundação Manuel Leão, 1998, p. 79. 11 192 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo Vimos a pedra vazia no interior da terra A manhã. Nós não tocámos a luz Inesperada. Pensámos Que já o sono sendo eterno te afastara E que farol que foste Agora onda após onda, brasa extinta, naufragava Nunca mais, pensámos, dormirias na proa E quase desaprendêramos a guiar o barco Em nossas viagens não amainaria mais, pensámos, e chegar a casa Seria ver multiplicar-se A nossa fome como o peixe e como o pão Chegámos a terra porém e esperavas-nos Os pés furados como conchas sobre a areia E sentámo-nos em redor para comer12. E agora a citação extraída do capítulo X do Sermão de Todos os Santos que o Padre António Vieira pregou em Lisboa, no Convento de Odivelas, em 1643: Olhai como Deus quis facilitar o Céu, e o ser santos, que pôs a bemaventurança e a santidade em uma cousa, que ninguém há que não tenha, e a mais livre e mais nossa, que é o coração. Assim como o coração é a fonte da vida, assim é também a fonte da santidade; e assim como basta o coração para viver, ainda que faltem outros membros e sentidos, assim, e muito mais, basta a pureza de coração para ser santo, ainda que tudo o mais falte. Se o ser santo dependera dos olhos, não fora santo Tobias, que era cego: se dependera dos pés, não fora santo Jacob, que era manco: se dependera de algum outro membro do corpo, não fora santo Daniel Faria, Dos Líquidos, p. 69. A poesia de Daniel Faria encontra-se hoje praticamente toda no volume Poesia, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2003. 12 Ite, Missa est 193 Job, que estava tolhido de todos, e só lhe ficou a língua e ainda que não tivera língua, também fora santo, porque Santa Cristina, sendo-lhe a língua cortada, louvava a Deus com o coração; e com o coração sem língua, eram tais as suas vozes, que as ouviam, não só os anjos no Céu, senão também os circunstantes na Terra. De sorte que para um homem ser santo, não é necessário cousa alguma fora do homem nem ainda é necessário todo o homem: basta-lhe uma só parte, e essa a primeira que vive, e a última que morre, para que lhe não possa faltar em toda a vida, que é o coração13. 13 P. António Vieira, Sermões, vol. III, Porto, Lello, 1993, p. 951. ÍNDICE Sessão de Abertura (Sérgio Diz Nunes, S.J.) ...................................... 5 ASPIRAÇÕES DO MUNDO MODERNO E MISTÉRIO PASCAL (Domingos Terra, S.J.) 1. A gramática da existência proposta pelo Mistério Pascal ............. 1.1. Viver uma esperança apesar da apreensão ............................... 1.2. Perceber como a esperança sai confirmada .............................. 1.3. Em síntese ............................................................................ 9 9 11 13 2. Projectos de felicidade puramente intra-mundanos .................... 2.1. O ser humano inteiramente confiante na sua força realizadora 2.2. O ser humano que se isola no seu espaço individual ................. 2.3. O ser humano que busca um transcendente à sua medida ........ 13 14 17 21 QUE SOFRIMENTO? QUE MORTE? (Dra. Maria Teresa Ribeiro) I– II – Como olhamos, hoje, para o sofrimento e para a morte? ....... A Dor, o sofrimento e o desenvolvimento de teorias psicológicas sobre o stress familiar ....................................................... III – O medo da morte e o desejo da morte ................................... 1. O que é o suicídio? Como podemos compreendê-lo e preveni-lo? 2. A eutanásia ........................................................................ 27 29 36 37 41 IV – O sentido da existência da vida como questão nodal para compreender e viver com o sofrimento e com a morte ................. 43 1. A unidade do Ser que é, ao mesmo tempo, e no espaço único de 196 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo cada pessoa, corpo e espírito ..................................................... 2. ‘O sofrimento do outro é também o meu sofrimento – dói-me porque lhe dói...’ ................................................................... 3. Viver com sofrimento ou viver com o sofrimento? ................. 43 Bibliografia ...................................................................................... 49 46 47 A DESCIDA AOS INFERNOS DA HUMANIDADE (Isabel Carmelo Rosa Renaud) 1. Primeiro nível. O espaço e o tempo ............................................. 2. Segundo nível. As patologias do desejo e as alienações subjectivas 3. Terceiro nível. As patologias sociais e as alienações objectivas ...... 4. Quarto nível. As patologias globais e as alienações mortíferas ...... 54 56 61 64 A SAÍDA: O AMOR QUE DÁ A VIDA (Vasco Pinto de Magalhães, S.J.) 0. “Composição vendo o lugar”: pano de fundo bíblico ................. 1. Êxodo, pessoal e comunitário: 3 níveis de um processo complexo Saída psico-espiritual ................................................................... Saída ético-antropológica ............................................................. Saída escatológico-teológica ........................................................... 70 72 73 78 84 2. Concluindo ................................................................................. 88 Bibliografia ...................................................................................... 90 EU SOU A RESSURREIÇÃO E A VIDA (Luís Rocha e Melo, S.J.) Introdução ....................................................................................... 91 1. Diálogo com o mundo ................................................................ 94 2. A Ressurreição de Cristo e a nossa ............................................... 96 3. Uma transfiguração da existência ................................................. 98 4. Purificação do amor ou reincarnação ........................................... 103 Bibliografia ...................................................................................... 109 Índice 197 NÓS ESPERÁVAMOS QUE... Lc 24, 21 (Dra. Maria Engrácia Leandro) Esperança e desilusão ....................................................................... As novas dinâmicas sociais ............................................................... As influências culturais na ordem do dia .......................................... O tempo da secularização e da esperança ......................................... As derivas da esperança no contexto da modernidade ...................... A esperança dessacralizada e dessacralizante ..................................... 111 116 120 125 128 130 Conclusão ......................................................................................... 136 Bibliografia ...................................................................................... 138 A ESPERANÇA QUE TRANSFORMA E TRANSFIGURA (Dra. Teresa Messias) Introdução: Esperança, precisa-se! ................................................... 141 1. O homem, ser de esperança ........................................................ 1.1. O homem, ser aberto ao futuro .............................................. 1.2. Esperança como elemento estruturante do ser homem .............. 1.3. Fundamento da esperança: utopia e escatologia ....................... 144 144 145 147 2. Mistério Pascal de Jesus, realização definitiva da esperança ......... 2.1. O desejo de Deus pelo homem levado às últimas consequências . 2.2. A ressurreição começa nos infernos ......................................... 2.3. Do desespero à esperança ....................................................... 149 149 150 151 3. A comunhão trinitária que transforma e transfigura ................... 153 3.1. Só o amor transforma ........................................................... 154 3.2. A ressurreição, princípio duma vida nova ............................... 155 4. “Estar de Esperanças” ................................................................. 156 Agir segundo a Esperança que nos habita ...................................... 158 5. Desejo aberto ao infinito: em Cristo, esperar por todos .............. 159 198 Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo A NOVA ERA DO ESPÍRITO (Manuel Morujão, S.J.) Prólogo de um crente, por vezes ateu praticante ................................... 161 1. Apresentação do Espírito Santo .................................................. 162 1.1. À procura de Deus por caminhos alternativos ......................... 162 1.2. «Curriculum vitae» do Espírito Santo .................................... 164 2. Inácio de Loiola, peregrino dos caminhos do Espírito ................ 167 2.1. A vida cristã é a vida no Espírito Santo .................................. 167 2.2. Inácio de Loiola, guiado pelo Espírito de Deus ........................ 168 3. Sinais do Espírito no mundo contemporâneo. Pentecostes a promover ......................................................................................... 3.1. Promover a cultura da vida e da solidariedade ....................... 3.2. Favorecer a paz pelo diálogo .................................................. 3.3. Recuperar o papel dos leigos na Igreja ..................................... 3.4. Fazer renascer a cultura da esperança .................................... 3.5. Viver em fidelidade criativa .................................................. 172 173 174 175 175 176 Conclusão – Prognósticos infalíveis antes do «jogo» .............................. 179 ITE, MISSA EST (Mário Garcia, S.J.) 1. “O lugar e a casa onde habitei” ................................................... 183 2. “A convivência que tive com outros” .......................................... 185 3. “O ofício em que vivi” ............................................................... 188 Conclusão ......................................................................................... 191