do deslocalemento e da diáspora: traduzindo a map to the

Transcrição

do deslocalemento e da diáspora: traduzindo a map to the
DO DESLOCALEMENTO E DA DIÁSPORA: TRADUZINDO A MAP TO
THE DOOR OF NO RETURN
Jonathas Martins Nunes (UNEB/FAPESB)
[email protected]
RESUMO: Esta proposta de trabalho tem por finalidade tensionar o diálogo entre teoria e
prática tradutória, ressignificando a tarefa do tradutor como mediador entre culturas, operando
não apenas no registro linguístico, mas, também, no locus cultural e identitário. Deste modo,
tomaremos como objeto o processo tradutório de trechos de A map to the door of no return
(BRAND, 2001), texto não traduzido para a língua portuguesa da autora caribenho-canadense
Dionne Brand, o qual opera nos limites entre os gêneros: poesia, romance, literatura oral,
ensaio. Para pensar a tensão entre os estudos da tradução e a prática de tradução, tomaremos
como base os textos de Meschonnic (2009), Bassnett (2002) e as teorias de tradução póscolonial.
PALAVRAS-CHAVE: Tradução; Cultura; Identidade; Diáspora; Deslocamento.
ABSTRACT: This paper aims at tensioning the dialogue between translation theory and
practice, reconsidering the task of the translator as a mediator between cultures, operating not
just in and with the linguistic register but also in the locus of culture and identity. Hence, we
will consider the translation process of A map to the door of no return (BRAND, 2001), an
not yet translated text to Portuguese language, written by the Caribbean-Canadian author
Dionne Brand, which operates at the boundaries of diverse genres: poetry, novel, oral
literature, essay. In order to reflect upon the tension aforementioned, we will base our
arguments on Meschonnic (2009), Bassnett (2002) and on post-colonial translation
reasonings.
KEYWORDS: Translation; Culture; Identity; diaspora; Displacement.
1 TRADUÇÃO COMO LEITURA/INTERPRETAÇÃO: TRECHOS ESCOLHIDOS
DE A MAP TO THE DOOR OF NO RETURN, DE DIONNE BRAND.
Este trabalho pretende reformular a já posta questão referente à tarefa do tradutor
considerando a pragmática da língua/texto fonte, refratado a partir de uma escrita autoral que
põe em rotação e em colapso as fronteiras de gêneros literários diversos, como poesia,
prosa/romance, literatura oral, ensaio. Para tanto, salientaremos alguns pontos críticos de
trechos escolhidos1 do texto da autora caribenho-canadense, Dianne Brand, A map to the door
of no return, ainda sem tradução para a língua portuguesa.
Ao longo do labor tradutório tivemos por objetivo e escolha pensar o processo a
partir da proposta da poética da tradução, a qual, segundo Meschonnic (2009, p. 20), difere da
ciência da tradução – tradutologia. Poética da tradução, de acordo com Meschonnic,
fundamenta-se em três razões inter-relacionadas, as quais também discutiremos ao decorrer
deste trabalho: poética pensa o fazer criativo na /da língua, do texto, aproximando-se do
conceito de literatura; a tradução pensada como poieses/literatura implica o sujeito no labor
tradutório; e a tradução como poiesis também se pensa como crítica/reflexão/desdobramento
do processo tradutório. (MESCHONNIC, 2009, p. 20-22).
Antes de entrarmos a fundo na análise dos trechos traduzidos, vale destacar a
passagem que se encontra na capa do livro “Abra-o em qualquer lugar e comece a ler, esse
fará sentido ... seu verdadeiro lar não é a África, o Caribe ou Canadá, mas a poesia”2
(BRAND, 2001, 01). Esse trecho ressalta o modus de escrita e narrativa do livro A map to the
door of no return, pois esse pode ser lido tanto como romance quanto como um compendio de
estórias diversificadas. Assim como é assinalado, ao abrir este – o livro – em qualquer página
e começar a lê-lo, o leitor terá a sensação/percepção de que: mesmo separadas, as partes do
livro fazem sentido e estão inter-relacionadas pela grande narrativa proposta. Dito isso,
escolhemos partes aleatórias, porém relacionadas, do livro A map to the door of no return
como proposta de tradução.
Texto original
There are maps to the Door of No Return. The physical door. They are well worn, gone
over by cartographer after cartographer, refined from Ptolemy’s Geographia to orbital
photographs and magnetic field imaging satellites.
Proposta de tradução
Existem mapas que levam ao Portal do Nunca Mais. Ao portal concreto. Eles estão bem
usados, passados de cartógrafos para cartógrafos, laborados pela Geografia de Ptolomeu até
fotografias orbitais e satélites para imageamento por campo magnético.
O primeiro ponto a ser destacado neste trecho inicial, cuja primeira sentença também
compõe o título da obra, é a tradução do “Door of no return” como Portal do Nunca Mais.
Essa escolha parte da leitura interpretativa do tradutor e de sua percepção da diáspora como
tema estruturante da narrativa pós-colonial de Brand: a narrativa, circular e circulante,
1
Foram traduzidas: a dedicatória, o prefácio e o conteúdo das páginas 119-120 do texto A map to the door of no
return.
2
"Open it anywhere and start reading and it makes sense... her true home is not Africa, the Caribbean or Canada,
but poetry"
diásporica porque não linear, não concêntrica, circula esse lócus temporal e espacial que
enfatiza o limiar: a porta, do “no return”– para onde não há retorno, nem físico, nem temporal,
enfatizado pela tradução nunca mais. No entanto, em primeira instância, o door of no return
remete à porta física/concreta, cartografada nos mapas, capturada pelas imagens via satélite.
Existem duas referências para as portas concretas assinaladas: a primeira é a Porta do Não
Retorno em Ouidah, em Benin; a Porta sem retorno/Porta do Não Retorno em Gorée Senegal
localizada no museu Casa dos Escravos, a qual, nos tempos do tráfico negreiro, dava
passagem dos escravos para as embarcações negreiras.
Esse processo interpretativo com o auxílio das figurações imagéticas no ato
tradutório desponta para o que Bassnett (2002, p. 06) assinala sobre os trâmites de tal ato:
O ato de tradução sempre envolve muito mais do que a linguagem. As
traduções estão sempre integradas à sistemas culturais e políticos, e,
também, à história referenciada no texto. [...] as estratégias empregadas por
tradutores refletem o contexto em que os textos são produzidos.
(BASSNETT, 2002, p.06)3
Seguindo o apontamento feito por Bennett, podemos inferir que a prática tradutória
opera além dos procedimentos linguísticos e codificações da linguagem, pois o texto diz dos
sistemas culturais, políticos e históricos dos quais emerge4. De tal modo, ao traduzir “Door of
No Return” como Portal do Nunca Mais tentamos com-figurar, como a autora canadensecaribenha, este duplo: a porta como entre-lugar 5ou não-lugar – representado pelo Portal do
Nunca Mais – pois, assim como trazido na nota da capa, “seu verdadeiro lar não é a África, o
Caribe ou Canadá, mas a poesia” (BRAND, 2001). Essa escolha de sentidos e significantes
que, de certo modo, está relacionada à poiesis do traduzir desponta para as fundamentações
apontadas por Meschonic. A primeira razão apontada por Meschonnic é que a poética implica
a literatura, e assim impede esse vício maior das teorias linguísticas contemporâneas que é o
de trabalhar sobre a linguagem separando-a da literatura, isto é, “compartimentando-a, donde
empirismos descritivistas regionais e dogmáticos sem teoria de linguagem” (MESCHONNIC,
2009, p. 20). Ao contrário, a poética só evolui em procedimento de descoberta se ela articula a
teoria da literatura com a teoria da linguagem, neste caso, partimos de conhecimentos
3
“The act of translation always involves much more than language. Translations are always embedded in
cultural and political systems, and in history. […] Yet the strategies employed by translators reflect the context
in which texts are produced.” (BASSNETT, 2002, p.06)
4
: ver a ideia do “como se”, texto de Iser
5
In-between. Ver Bhabha “Introdução Locais da cultura” p. 19-42.
linguísticos e da abordagem pós-colonialista ao relacionar o entre-lugar com o modus
narrativo e de escrita no texto de Brand.
No trecho destacado abaixo, temos outro exemplo de modificações sintáticas do
texto:
Texto original
[…] It is also perhaps a psychic destination. Since leaving was never voluntary, return
was, and still may be, an intention, however deeply buried. There is as it says no way in;
no return.
Proposta de tradução
[...] Talvez, ele seja um destino imaginário também. Desde que a ida (sempre) foi
(in)voluntária, a volta foi, e ainda pode ser, uma intenção, mesmo que profundamente
enterrada. Como dizem, não há de forma alguma um caminho; de forma alguma um
retorno –nunca mais.
Na primeira sentença, traduzimos o “psychic destination” como, “destino
imaginário”, fazendo alusão ao sentimento da diáspora e as lembranças “imagem-nárias” das
personagens ao decorrer da(s) narrativa(s). Também modifiquei a sentença “leaving was
never voluntary” para “a ida (sempre) foi (in)voluntária”. Primeiramente, modificamos o
adverbio nerver (nunca) para seu antônimo always (sempre), dando continuidade semântica
na palavra involuntary (involuntária), acrescentando o prefixo (in) que remete a negatividade
do never (nunca). Optamos por essa escolha semântica, para tentarmos referenciar o processo
de continuidade no tráfico negreiro, o qual era sempre forçado involuntário. Fica evidente
neste trecho a preocupação ou relação da tradução com os sujeitos referenciados no texto – o
que desponta para a segunda fundamentação da tradução enquanto poiesis.
Segundo Meschonic (2009, p.21), a tradução é vista como poiesis/literatura porque
implica o sujeito no texto: o sujeito que que escreve, o que traduz, o que lê. Nesta perspectiva,
a tradução se sobressai como ato de leitura interpretativa.
Assim como apontado na terceira fundamentação de Meschonic (2009, p. 21) a
tradução exerce um papel crítico/ teoria crítica, tratando da teoria do signo seja em questões
filosóficas, linguísticas, histórica, do sujeito e a sociedade, assim, ponderando a tradução em
um papel maior.
2 PROPOSTA DE TRADUÇÃO
A map to the door of no return
Mapas para o portal do nunca mais
Dedicado
Para os outros habitantes do portal
Existem mapas que levam ao Portal do Nunca Mais. Ao portal concreto. Eles estão
bem usados, passados de cartógrafos para cartógrafos, laborados pela Geografia de Ptolomeu
até fotografias orbitais e satélites para imageamento por campo magnético. Contudo, não há
mapas para o Portal do Nunca Mais que é iluminado no consciente dos Negros e Negras na
Diáspora. Esse portal não é meramente material. Ele é um lugar espiritual. Talvez, ele seja um
destino imaginário também. Desde que a ida sempre foi involuntária, a volta foi, e ainda pode
ser, uma intenção, mesmo que profundamente enterrada. Como dizem, não há de forma
alguma um caminho; de forma alguma um retorno – Nunca Mais.
Mapas
Isabel de Castela encomendou um retábulo políptico em 1496. Juan de Flandes e
Michel Sittow foram reservados para trabalharem no retábulo miniatura. Em um painel
chamado “A multiplicação dos pães e peixes”, Isabel e Fernando estão inseridos no meio da
cena em frente à multidão próxima Jesus Cristo. Isabel ajoelhando-se e Fernando erguendose.
O que pode ser deduzido aqui, é que Isabela levava uma inacreditável vida fantasioreligiosa. Ver a si própria e Fernando nessa ocasião, comprova a fertilidade de sua
imaginação. Mas, talvez, fosse a tentativa de Juan de Flandes em congraçar-se com Isabel de
Castela; talvez ele dissera a ela um dia, “Querida rainha, essa cena não seria nada sem você.
Realmente, Você deveria estar nela.” Novamente a ideia de multiplicar pães e peixes, esse
milagre em particular, deve ter soado para Isabela como ela e o marido adquiriram mais e
mais riquezas.
Cobre
Meu tio costumava trabalhar o cobre. Ele era um negro alto. Seu rosto era belíssimo
e de traços bem delineados, assim como as cicatrizes cinzeladas na face acaju-reluzente da
folha de cobre. Seus dentes eram brancos e uniforme por todo seu esculpido maxilar; no qual
meu tio facilmente revelava um imenso sorriso. Do mesmo modo que facilmente ele os
velavam, tornando a face do meu tio severa, em admoestação à: alguns dos deslizes de seus
sobrinhos, como o roubo de uma manga; ou suas preguiças demasiadas aos domingos, quando
os sapatos não estavam lustrados. Mas meu tio costumava trabalhar o cobre. Com chave de
fenda, faca, talhadeira, e martelo, ele constumava esculpir e arrancar imagens da superfice
plana de uma folha de cobre. Ele não trabalhava a partir de fotos nem de desenhos, mas a
partir de um sentimento que carregavamos dentro de nós. Uma máscara emergiu naquele
momento, nós a chamamos de Africana, nenhuma outra palavra poderia nomeá-la -- olhos
serenos, nariz largo, lábios carnudos – um rosto irreconhecível, mas uma imagem, um
pressentimento de um rosto. Este rosto saiu do meu tio. Meu tio era professor. Ele usava
calças escuras e camisas brancas de manga comprida engomadas, para ir ao seu trabalho como
professor. Ele falava o Inglês padrão em nossa casa e em suas aulas, assim como martelava e
arrancava do cobre as mascaras Africano. Meu segundo tio usava estas mascaras de cobre.
Meu segundo tio usava estas mascaras no dia de carnaval -- ora com peitorais ou cocares, a
depender da qual Mas-caração ele estivesse interpretando. Meu primeiro tio nunca participou
do Mas6. Ele apenas arrancava faces da inexpressiva folha de cobre. Durante meses, ele
costumava talhar e marcar, bater e forçar para fora tudo aquilo que os espíritos impusessem
ali. Olhos, boca, bochechas, testas surgiriam.
[...]
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
À início, ansiávamos por tencionar a negociação de sentidos na tradução dos
fragmentos do texto A map to the door of no return, com um olhar mais cultural e social para
a língua de chegada – português brasileiro. Sendo assim, ao traduzirmos o texto de Dione
Brand, tomamos o processo tradutório não como equivalência lexical, mas sim, como
correspondência de sentidos. Assim como apontado por Meschonic (2009, p. 20-22), a
poieses a qual nos propomos e a correspondência de sentidos na tradução está intricadamente
relacionada com questões políticas, culturais, sociais, em consonância com as operações
morfossintáticas.
Assim como apontado por Bassnett (2002, p. 06), tradução não acontece em um
vácuo, mas em um continuum; não é um ato isolado, é parte de um processo contínuo de
transferência intercultural. Além disso, a tradução é uma atividade altamente manipulada que
envolve todos os tipos de estágios no processo de transferência, através das fronteiras
linguísticas e culturais (BASSNETT, 2002, p.06). A tradução não é, uma atividade
transparente inocente, mas é altamente carregada de significado em todas as fases.
REFERÊNCIAS
6
Masquerad ou Mas é uma festa popular, na atual ilha de Trinidad, a qual simboliza e comemora o fim da
escravidão e a retribuição dos escravos recém libertos com: música, dança e Mas (mas-caração)
BASSNETT, Susan. “Introduction: of colonies, cannibals and vernaculars”. In: Post-colonial
translation: theory & practice. New York: Routledge, 2002, p. 01-19.
BRAND, Dionne. A map to the door of no return. Canada: Vintage, 2001, p. 119-135.
BHABHA, Homi K. “Introdução Locais da cultura”. IN: O Local da cultura. Belo
Horizonte: UFMG, 1998, p. 19-42.
JAKOBSON, Roman. “On linguistic aspects of translation”. In: The translation studies
reader. London: Routledge, 2004, p. 113-118.
MESCHONNIC, Henri. “Poetica do traduzir, não tradutologia”. Tradução Eduardo
Domingues. Belo Horizonte: UFMG, 2009, p. 20-23.
TYMOCZKO, Maria. “Post-colonial writing and literary translation”. In: Post-colonial
translation: theory & practice. New York: Routledge, 2002, p. 19-32.