Revista Científica Inter-universitária Economia, Política e

Transcrição

Revista Científica Inter-universitária Economia, Política e
Economia, Política e Desenvolvimento
VOLUME1•NÚMERO 3•SETEMBRO 2010
CAP - CENTRO DE ANÁLISE DE POLÍTICAS DA FLCS / UEM
Revista Científica Inter-Universitária
Economia, Política
e Desenvolvimento
VOLUME1
NÚMERO 3
SETEMBRO 2010
Economia, Política
e Desenvolvimento
Revista Científica Inter-Universitária
ECONOMIA, POLÍTICA E DESENVOLVIMENTO
ECONOMIA, POLÍTICA E DESENVOLVIMENTO
FICHA TÉCNICA DA REVISTA
ÍNDICE
Director: Eduardo J. Sitoe ([email protected])
Editor: Gerhard Liesegang ([email protected])
Sub-editor: Gil Lauriciano ([email protected])
Revisor Linguístico: Gilberto Matusse ([email protected])
Conselho Científico
Presidente: José Paulino Castiano ([email protected])
Adriano Niquice ([email protected])
João Mosca (joã[email protected])
Vitória de Jesus Langa ([email protected])
Boris Tanana
José da Silva ([email protected])
Carlos Shenga ([email protected])
Hilário Langa ([email protected])
Thomas Kring ([email protected])
Alice Madeira ([email protected])
Silvério Ronguane ([email protected])
- U.Pedagógica (UP)
- U.Pedagógica (UP)
- A Politécnica
- A Politécnica
- ISCTEM
- ISCTEM
- ISAP
- ISAP
- PNUD
- PNUD
- ISRI
Secretariado Técnico
Nobre de Jesus Canhanga ([email protected])
Francisco da Conceição ([email protected] )
Sáula Pinto ([email protected])
- UEM-CAP
- UEM-CAP
- UEM-CAP
Produção:
Centro de Análise de Políticas (CAP), Faculdade de Letras e Ciências Sociais, Universidade
Eduardo Mondlane (FLCS/UEM)
Apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)
N.º de Registo:
046/GABINFO-DEC/2009
Tiragem
1000 exemplares
Impressão:
Académica, Lda.
Nota Introdutória
1
Prefácio do III Número da Revista Científica Inter-Universitária
3
Pobreza Urbana em Moçambique
Com destaque para Maputo
UTE AMMERING E ANNE MERKLEIN
9
Morar nos bairros suburbanos de Maputo
Livelihoods e a implentação do planeamento local
UTE AMMERING
25
Governação Urbana e Estratégias de Redução da Pobreza em Maputo
Exemplos do desenvolvimento actual
ANNE MERKLEIN
51
Angoche: Por uma compreensão da derrota eleitoral da Renamo
nas eleições autárquicas de 2008
DOMINGOS MANUEL DO ROSÁRIO
79
Reforma, Contestação Eleitoral e Consolidação da Democracia
em Moçambique
JOSÉ JAIME MACUANE
113
Biografia, Memórias e Afirmação da Moçambicanidade
ELÍSIO JOSSIAS
133
VOLUME1
NÚMERO 3
SETEMBRO 2010
Economia, Política
e Desenvolvimento
Revista Científica Inter-Universitária
Economia, Política e Desenvolvimento
Revista Científica Inter-Universitária
Economia, Política e Desenvolvimento
ÍNDICE
Nota Introdutória
1
Prefácio do III Número da Revista Científica Inter-Universitária
3
Pobreza Urbana em Moçambique
Com destaque para Maputo
UTE AMMERING E ANNE MERKLEIN
9
Morar nos bairros suburbanos de Maputo
Livelihoods e a implentação do planeamento local
UTE AMMERING
25
Governação Urbana e Estratégias de Redução da Pobreza em Maputo
Exemplos do desenvolvimento actual
ANNE MERKLEIN
51
Angoche: Por uma compreensão da derrota eleitoral da Renamo
nas eleições autárquicas de 2008
DOMINGOS MANUEL DO ROSÁRIO
79
Reforma, Contestação Eleitoral e Consolidação da Democracia
em Moçambique
JOSÉ JAIME MACUANE
113
Biografia, Memórias e Afirmação da Moçambicanidade
ELÍSIO JOSSIAS
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Revista Científica Inter-Universitária
Economia, Política e Desenvolvimento
Revista Científica Inter-Universitária
Economia, Política e Desenvolvimento
NOTA INTRODUTÓRIA
Os três primeiros textos apresentados neste número da Revista Científica inter-universitária, foram escritos por duas investigadoras da Universidade de Innsbruck, Áustria: Ute
Ammering e Anne Merklein. Elas estão a preparar as suas teses de doutoramento sobre
a matéria e estavam a frente de um projecto de investigação em Maputo e baseiam-se
em trabalhos apresentados num Seminário conjunto de investigadores moçambicanos e
austríacos que teve lugar em 16 de Abril de 2009 em Maputo1. As duas autoras apresentaram os textos elaborados em Português em Fevereiro de 2010, quando foram aceites
para publicação na Revista Científica Inter-universitária.
Os três textos seguintes, dos Professores José Macuane, Domingos do Rosário e Elísio
Jossias que em Julho de 2009 (antes das eleições presidenciais e parlamentares de 2009)
tinham sido aprovados para publicação, nesta revista, encontraram agora o melhor ambiente para a publicação, leitura e debate.
Os textos aprofundam o conhecimento da realidade social e administrativa de Moçambique. Algumas das percepções apresentadas podem provocar em nós, durante a leitura,
interferências mais ou menos fortes no processo cognitivo, derivados de conflitos territoriais entre sistemas de valores nacionais e internacionais, e levar desta feita, a fortes
reacções emotivas, porque o nosso território e sua existência estão interligados. Mas
ultrapassando a emoção detectamos que cada estudo de caso constrói modelos apropriados que alargam os horizontes de análise e reflexão. Partilhamos a concepção, na linha
de Aquino de Bragança (1924-1986) e outros, de que seria geralmente útil se cientistas
sociais conhecessem as realidades, devido ao conteúdo factual e implicações metodológicas.
Aquando do lançamento do primeiro Número o Director da Revista, o Professor
Eduardo Sitoe, solicitou aos presentes que submetessem os resultados dos seus trabalhos
de pesquisa para serem apreciados, avaliados e publicados nesta revista científica interuniversitária. Em cada versão, esforçamo-nos para melhorar a qualidade editorial corrigindo os erros que detectámos e que nos forem apontados e comunicamos cada vez
mais com os articulistas.
Temos já outros estudos para o número 4, baseados em parte em capítulos de teses
de doutoramento e encorajamos outros cientistas sociais e políticos a produzirem mais
análises da nossa realidade, especialmente em áreas onde o conhecimento é útil para o
desenho de políticas baseadas em factos empíricos.
Agradecemos uma vez mais o financiador e os colaboradores da revista.
Gerhard Liesegang, Editor da Revista
1- O Seminário era intitulado “Pobreza Urbana: Intercâmbio entre a ciência e a prática, uma conferência no âmbito do
projecto UPISA-Pobreza Urbana na África Austral”, organizado pelo Departamento de Geografia da FLCS- UEM e da
Universidade de Innsbruck em 16 de Abril de 2009, tendo tido 11 contribuições.
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Economia, Política e Desenvolvimento
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Economia, Política e Desenvolvimento
PREFÁCIO DO III NÚMERO DA REVISTA CIENTÍFICA
INTER-UNIVERSITÁRIA
Este número da nossa Revista Científica Inter-Universitária Economia, Política e Desenvolvimento começa com três textos que abordam situações/problemáticas relacionadas
com a “pobreza urbana”, tendo como palco a Cidade de Maputo. Os textos resultam da
lavra de Ute Ammering e Anne Merklein. No primeiro, escrito a duas mãos, é apresentado um panorama da pobreza em Moçambique – e na Cidade de Maputo, em particular –, destacando o(s) discurso(s), os actores envolvidos, os programas estratégicos em
acção, as avaliações empreendidas e outros apontamentos circunscritos ao tema. Tratase, fundamentalmente, de um texto que actua, funcionalmente, como uma introdução
situacional/conceitual para os dois textos, que se seguem, escritos individualmente pelas
autoras.
O primeiro dos textos individuais, da autoria de Ute Ammering, trata, essencialmente, do
drama vivido por várias famílias que moram nos bairros suburbanos da Cidade de Maputo, aqui exemplificados pelos bairros de Minkadjuine, Luís Cabral e Hulene B. A “pobreza” e insustentabilidade das famílias nestes bairros são quase graficamente representadas pelo convívio ignóbil/grotesco de casas habitacionais com campas do cemitério,
com montanhas de lixo nauseabundo e com negócios informais que desafiam quaisquer
limites de higiene, salubridade e decência. O texto de Ammering tem outras matizes, que
se insinuam aqui e ali, sobre aspectos que podem ser retomados e desenvolvidos por
outros estudiosos interessados, como exemplos (a) a natureza da ligação das pessoas que
vivem na cidade com as famílias que se encontram no campo; (b) a diferenciação entre o
capital social e o capital humano, ou mesmo o capital económico e o capital simbólico;
(c) a desestruturação dos valores tradicionais no contacto com o ambiente “turbilhoso”
da cidade; (d) a dimensão formal/legal versus real/prática das relações de género na cidade; dentre outros temas aflorados no texto.
O texto que se segue, da autoria de Anne Merklein, ataca o assunto da pobreza urbana
com uma batuta de cariz político. Dissertando sobre as dimensões de governação e governo, o texto faz uma radiografia da multiplicidade de actores que, em diversos contextos, se engajam na geografia da governação, focalizando a sua atenção no Município
de Maputo. Perscrutando mais atentamente a mecânica da governação no Município de
Maputo, Anne Merklein remata: “Em geral, as novas formas de governação não garantem
uma participação real. Nos casos exemplificados, o papel da sociedade civil ou de cada
cidadão, reduz-se à audição de suas expectativas e suas preocupações”. O referencial
empírico de Anne Merklein inclui uma abordagem exaustiva do Programa de Desenvolvimento Municipal de Maputo (PROMAPUTO) com uma investigação pormenorizada
sobre duas das suas componentes, designadamente (a) o Orçamento Participativo (OP);
e (b) o Plano de Estrutura Urbana do Município de Maputo (PEUMM).
Em jeito de anotações finais, Anne Merklein faz uma anotação retórica sobre a participação da sociedade civil nos processos decisórios em Maputo – e em Moçambique também,
por extensão – nos termos seguintes: “Quem, da sociedade civil, realmente participa nos
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Economia, Política e Desenvolvimento
processos decisórios?” E, com a possibilidade de fazer recordar a alguns leitores desta
Revista o ritual de diagnóstico dos artífices da medicina tradicional, que sempre “descortinam” a presença de algum parente do paciente dentre as causas da sua enfermidade,
remata: “As estruturas administrativas e de participação em Maputo (como também em
muitas outras partes do país) são influenciadas fortemente pela Frelimo”. De resto, a
Frelimo surge em diversos ângulos do texto de Anne Merklein, incluindo nas referências
às constatações/análises/posições cirúrgicas de Hanlon & De Renzio (2007).
Os outros três textos também constantes deste número da Revista são da autoria de docentes universitários, todos eles provenientes da Faculdade de Letras e Ciências Sociais
da Universidade Eduardo Mondlane, nomeadamente Domingos Manuel do Rosário e
José Jaime Macuane, do Departamento de Ciência Política e Administração Pública, e
Elísio Jossias, do Departamento de Antropologia.
O texto de Domingos do Rosário procura elucidar – alicerçado numa teorização específica do domínio da Ciência Política concernente às determinantes do voto em eleições
democráticas – as possíveis razões/causas (a) da tendência do voto dos munícipes de
Angoche a favor da Renamo no pleito autárquico de 2003; e (b) da tendência inversa do
voto dos mesmos munícipes, a favor da Frelimo, nas eleições autárquicas de 2008.
Focalizando a sua atenção nas “trajectórias sociopolíticas, económicas, religiosas e étnicas em Angoche”, Do Rosário investiga a “perseguição da religião e a exclusão das
elites locais”, incluindo a “tentativa de afirmação do materialismo”, “a revolta e o descontentamento acumulado dos líderes religiosos locais e seu adeptos”, “a questão étnica e a marginalização da velha elite islamo-crioula”, bem como a “tese da exclusão
económica, do desemprego e da pobreza provocada pelo Estado-Frelimo” para, no fim,
inferir que terão sido estes factores que jogaram um papel determinante no voto a favor
da Renamo em Angoche, nas eleições autárquicas de 2003.
Estes factores, contudo, não entram na equação de Do Rosário quando procura entender/
explicar a segunda categoria de razões/causas que evoca no seu estudo. Para simplificar
um argumento que no texto surge com alguma complexidade/sinuosidade, Domingos do
Rosário afirma o seguinte: os munícipes de Angoche votaram pela Frelimo nas eleições
autárquicas de 2008 porque não ficaram satisfeitos com a governação autárquica da Renamo no mandato de 2003-8. Esta insatisfação é sugerida, no texto, por quatro categorias
de argumentos: (1) o facto de a Renamo não ter logrado vencer as eleições presidenciais
e legislativas de 2004, o que reduziu a elegibilidade deste partido à escala nacional; (2)
a “asfixia metódica” exercida pelo governo central pela via do mecanismo da “supertutela” administrativa e financeira, como corolário da vitória da Frelimo à escala nacional o que deixou o governo autárquico da Renamo em Angoche a mercê do desígnio
hegemónico do vencedor; (3) a reprodução pelo governo autárquico da Renamo em
Angoche de práticas institucionais do Estado neopatrimonial – neste caso, um neopatrimonialismo pobre e, por isso mesmo, um modelo perdedor; (4) alguma metamorfose
política/táctica da Frelimo, que consistiu na indicação de nativos para concorrer a cargos públicos a nível local. É interessante, do ponto de vista de estudantes de Política,
verificar como factores de índole histórica possam dissipar-se do imaginário político dos
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Economia, Política e Desenvolvimento
eleitores – num espaço de 5 (cinco) anos - por força da mobilização doutros factores de
feição racional estratégico/instrumental.
Entretanto, Domingos do Rosário faz alusão no seu estudo – sem necessariamente submeter à prova dos factos os argumentos que indica – a uma outra categoria de razões/causas para a tendência do voto dos munícipes de Angoche a favor da Frelimo nas eleições
autárquicas de 2008 nos termos seguintes:
“Contudo, reduzir a vitória eleitoral do Estado-Frelimo no município de Angoche
a simples manobras políticas e eleitorais seria ignorar todo um trabalho de mobilização e de reorganização operado por Armando Guebuza desde a sua chegada à
direcção do partido Frelimo. Com Guebuza, uma atenção especial foi concedida
às células de base e aos administradores de distrito, que constituem historicamente
um elo fundamental de controlo do território e da população”.
Depois deste aceno “magnânimo” ao labor da Frelimo e do seu líder, Do Rosário vira-se,
com alguma crispação, para o lado da Renamo com termos nada módicos:
“Inversamente, a Renamo, por um lado, mal organizada e mergulhada em conflitos
opondo facções internas no acesso e distribuição dos recursos do município, e, por
outro lado, com uma estrutura sempre militarizada, ainda ‘não civilizada’, e com
um claro corte entre a direcção central e as suas bases, tinha grandes dificuldades
em apresentar uma alternativa credível, capaz de fazer face a um Estado-Frelimo
no que diz respeito à gestão municipal”.
De qualquer modo, seja pelas razões/causas documentadas no texto, seja por estas últimas que apenas são aludidas – ainda que não mutuamente excludentes – pode-se legitimamente concluir que, tão-somente, os munícipes de Angoche votaram pela Frelimo nas
eleições autárquicas de 2008 porque não ficaram satisfeitas com a governação autárquica
da Renamo no mandato de 2003-8.
O texto que se segue, da autoria de José Jaime Macuane, visa investigar/documentar,
tal como o autor indica, “o que estará por detrás da necessidade de mudança das leis
eleitorais de forma sistemática, de que forma isso se enquadra no processo de democratização e que implicações a sistemática contestação eleitoral tem na jovem democracia moçambicana”. Mais adiante, Macuane recoloca estas mesmas problemáticas em
torno de duas questões de/para reflexão: (1) qual tem sido o sentido e o objectivo da
revisão sistemática das leis eleitorais sob o ponto de vista do funcionamento do sistema
democrático moçambicano? e (2) que efeito tem a forma e o conteúdo dessas mudanças
na consolidação da democracia moçambicana?
Recorrendo a uma contextualização cronológica, metódica e bastante pormenorizada
acerca de datas, actores, episódios, eventos e detalhes do universo eleitoral moçambicano
e auxiliando-se, também, de categorias teórico/analíticas do domínio da Ciência Política
– sobretudo no concernente aos processos de transição e consolidação da democracia
– José Macuane, argumenta, em termos gerais, que o processo político moçambicano
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Economia, Política e Desenvolvimento
(eleitoral/democrático) foi (e continua sendo!) sobretudo influenciado pela combinação
do arranque da democratização do sistema com a lógica da pacificação da sociedade num
cenário em que prevaleciam (e continuam a prevalecer!) as demandas de acomodação
e partilha de poder dos dois principais intervenientes políticos “no jogo da democratização/pacificação”, designadamente a Frelimo “representante do antigo regime” e a
Renamo, “o movimento que se opôs militarmente ao governo por 16 anos”.
Apesar de Macuane referir no seu estudo várias instâncias de reforma eleitoral que ocorreram em Moçambique no período em análise, a sua conclusão é de que as revisões da
legislação eleitoral que tiveram lugar até aqui não consubstanciam um exercício real/
profundo/substantivo, “porquanto não se mudaram os aspectos estruturais” e, amiúde,
mesmo depois de uma revisão eleitoral, continuam a persistir (na lei, ES) os problemas
que provocaram irregularidades nos pleitos eleitorais anteriores. Aqui José Macuane,
com alguma justiça sentencia: “A resposta …é que a persistência do problema, de uma
forma ou de outra, revela a falta de interesse estratégico na sua solução por parte dos
actores relevantes …”. Até pode ser: seria óptimo que tais actores (e outros leitores atentos) trouxessem mais lume para esta fogueira para que a lareira pudesse iluminar mais
o debate acerca da democracia (e das eleições) que o país está a construir no presente
momento.
Um apontamento breve (para benefício sobretudo dos estudantes!), que pode ser feito
em relação a uma passagem do texto de José Macuane, diz respeito à necessidade de ter
cuidado com a indicação das datas de publicação de obras académicas, quando aparecem numa tradução muito tempo depois da publicação do original. Afirma Macuane: “A
discussão sobre transição democrática teve um grande destaque após o livro seminal de
Huntington (1994) sobre a terceira onda de democratização”. Com efeito, a “discussão
sobre a transição democrática teve grande destaque após o livro seminal de Huntington”
publicado em 1991 e não em 1994 e, fundamentalmente, esta discussão ficou sobretudo
marcada pela profusão de obras que justamente apareceram entre 1991 e 1994, como o
são os casos de Colomer (1991), Karl & Schmitter (1991), Przeworski (1991), Diamond
(1992), Rueschmeyer, Stephens & Stephens (1992), Putnam (1993), Lipset, Seong &
Torres (1993), Lipset (1994) e Colomer & Pascual (1994) e muitas outras obras que surgiram neste período do fervilhar da literatura da tal “transitologia” da Ciência Política
moderna.
O texto que encerra este número da Revista Economia, Política e Desenvolvimento é da
autoria de Elísio Jossias. Neste estudo, Jossias auxilia-se de uma perspectiva teórica/
analítica que, nos meios académicos, costuma andar associada ao que se designa de
“Estudos sobre/do Discurso e das Ideologias” ou, na sua acepção Inglesa, “Ideology
& Discourse Analysis”. Trata-se de um território académico multidisciplinar que costuma combinar ferramentas epistemológicas e metodológicas do domínio da Filosofia,
da História e da Ciência Política. Outros empréstimos teóricos/analíticos são igualmente
encontrados, mas os retro-citados são os mais recorrentes.
A interrogação de Elísio Jossias é atinente ao sentido da identidade nacional em Moçambique (ou moçambicanidade), tendo como referência uma categoria societal específica
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Economia, Política e Desenvolvimento
(os Deficientes – Moçambicanos, ES - das Forças Armadas Portuguesas DFA) que, por
razões racional/estratégicas e instrumentais, foram obrigados a assumir a nacionalidade
portuguesa. Se, como afirma Jossias, “…continua a ser o partido Frelimo que legitima
os critérios da moçambicanidade e das restantes identidades sociais e culturais”, é perceptível (e compreensível!) o dilema/drama vivido por estes DFA: não havendo acordo
entre Portugal e Moçambique, não podem receber pensões enquanto moçambicanos,
mas aceitando ser portugueses reforçam o tratamento de “traidores/colaboracionistas”,
com que foram cognominados no passado pelas autoridades da Frelimo, e sentem-se assim forçados a “uma aproximação ao partido Frelimo” na tentativa de afirmação da sua
“moçambicanidade”.
Ainda que alguém simpatize com o drama dos moçambicanos que ficaram deficientes ao
serviço do exército colonial português, e que constate que a Frelimo continua no poder
até hoje desde a conquista da independência, em Junho de 1975, e que, portanto, o seu
discurso político/ideológico tem uma presença marcante na articulação da identidade
nacional no país, pode, contudo, argumentar que os critérios da “moçambicanidade”
estão objectivamente estampados e legitimados na lei mãe deste país: a Constituição da
República, principalmente a partir da inauguração da constituição política/pluralista de
Novembro de 1990. Viva o debate académico!
Eduardo J. Sitoe, Director da Revista.
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Economia, Política e Desenvolvimento
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Economia, Política e Desenvolvimento
Pobreza Urbana em Moçambique
– com destaque para Maputo
Ute Ammering2 e Anne Merklein3
Resumo
Com referência ao debate sobre o panorama da pobreza em
Moçambique – e com enfoque na Cidade de Maputo, – o
artigo analisa o(s) discurso(s), os actores envolvidos, os
programas estratégicos em acção, as avaliações empreendidas e outros apontamentos circunscritos ao tema. Tratase, fundamentalmente, de um texto que actua, funcionalmente, como uma introdução situacional/conceitual para
os dois textos, que se seguem, escritos individualmente pelas autoras. Palavras-Chave: pobreza, desenvolvimento e
urbanização.
2- Geógrafa, estudante e pesquisadora da Universidade Leopold-Franzens- em Innsbruck, Áustria – Instituto de Geografia.
3- Geógrafa, estudante e pesquisadora da Universidade Leopold-Franzens- em Innsbruck, Áustria – Instituto de Geografia.
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Economia, Política e Desenvolvimento
Introdução
Moçambique é um dos países que recebe maior apoio financeiro dos doadores internacionais4 e é uma referência para outros países. São condicionantes deste facto o crescimento considerável do PIB (Produto Interno Bruto) - situado entre 6,8 % e 13,1 % nos
anos 2001-2008 (World Bank 2007) - e a elaboração do PARPA (Programa de Acção
para a Redução da Pobreza Absoluta), já na segunda edição (República de Moçambique
2001, 2006), o qual se afigura pertinente à reestruturação institucional. Como resultado
deste facto, Moçambique foi um dos primeiros países a ser considerado pela iniciativa
dos PPAE (Países Pobres Altamente Endividados) do FMI (Fundo Monetário Internacional) e pelas subsequentes iniciativas de liquidação de dívidas (UNDP 2006). Estes dados
positivos são o resultado de alguns mega projectos em vigor no país, como a fundição
de alumínio na Mozal (na Matola), o oleoduto Sasol (da província de Inhambane para a
África do Sul), e das iniciativas mais recentes no âmbito da mineração (nas províncias
Gaza e Tete). Eles reflectem o interesse do governo pela abertura em relação aos grandes
projectos internacionais, os quais têm sido, ao mesmo tempo, criticados pelos doadores
internacionais. O crescimento económico anda “a duas velocidades”. De facto, enquanto
os mega projectos permitem que o PIB cresça, mas com influência mínima no mercado
de trabalho local, o resto da economia sofre de problemas estruturais, sem que se verifique o anunciado “crescimento-pró-pobre” (Hanlon 2007). Esta tendência negativa de
alguns indicadores socioeconómicos, incluindo o lugar que Moçambique ocupa no escalonamento do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) (172 de 182) fundamentam
esta crítica5.
Os dois Inquéritos aos Agregados Familiares, o de 1997/98 e o de 2002/03, mostram que
a taxa de pobreza baseada no consumo, com cabaz flexível, diminuiu de 69,4 % para
54,1 % (Ministério de Plano e Finanças 2004). Embora o PIB real per capita de Maputo
seja três vezes superior à média nacional de 320 US$ (UN-Habitat 2008) nas áreas urbanas, a taxa de pobreza reduziu menos do que nas áreas rurais. Na província Maputo
Cidade, a proporção de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza aumentou de 47 %
para 54 % (ver figura 1).
Pobreza em Moçambique
Diagnóstico da pobreza e indicadores: uma comparação cidade-campo
O índice da pobreza diminuiu, o crescimento económico tornou-se alto, o PIB per capita
aumentou e os indicadores para o desenvolvimento humano mostram uma tendência
positiva. O estudo realizado pelo Banco Mundial em 2007, denominado Beating the
odds, tenta responder se o sucesso do crescimento da renda nacional dos últimos anos
beneficiou as pessoas pobres. Juntando dados de natureza diversificada, o estudo contribuiu para uma visão crítica (World Bank 2007). O aumento da desigualdade entre os
4 - No escalonamento dos países que recebem o apoio financeiro bi e multilateral (ODA – official development assistance), Moçambique encontra-se em décimo lugar e, entre os países africanos membros do CAD (Comité de Ajuda ao
Desenvolvimento), em sexto lugar (DAC 2007).
5-Veja também a situação de nutrição das crianças ou a desigualdade entre ricos e pobres (Hanlon 2007) e o Human
Development Report 2007/08 (UNDP 2007).
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Economia, Política e Desenvolvimento
grupos sociais ricos e pobres nota-se, por um lado, no crescimento dos coeficientes de
desigualdade de Theil e Gini (ver Hanlon 2007; World Bank 2007, Tabela 3.5) e, por
outro, na distribuição do aumento da renda dos agregados familiares entre 2002 e 2005
(World Bank 2007, Figure 4.2). Este facto põe em dúvida o desenvolvimento positivo do
PIB total em relação à redução da pobreza.
Este mesmo estudo mostra os diagnósticos em relação à mobilidade social dos agregados familiares rurais, onde se vê que o aumento da renda não resulta necessariamente
numa ascensão social, pois, num cenário em que muitos agregados familiares sobem
acima da linha da pobreza, um número quase igual cai para baixo da mesma linha (Hanlon 2007).
Figura 1: Moçambique – Taxa de pobreza a nível das províncias
Fonte: Taxa de pobreza a nível dos agregados familiares com cabaz flexível
diferenciado por regiões; IAF 1996/97 e 2002/03 (Ministério de Plano e Finanças 2004).
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Economia, Política e Desenvolvimento
Moçam- Região Região Moçam- Região
Região rural
bique
urbana rural bique
urbana
1997
2003
Proporção da população abaixo
da linha de pobreza
69,4
62,0
71,3
54,1
51,5
55,3
Taxa de analfabetismo (>15 anos)
60,0
29,0
68,0
53,6
30,3
65,7
Taxa de analfabetismo masculino
(> 15 anos)
40,7
14,9
47,7
36,7
18,1
47,2
Taxa de analfabetismo feminino
(> 15 anos)
76,4
42,4
84,3
68,0
41,7
80,8
Mortalidade infantil (< 5 anos
entre 1000)
219
150
237
178
143
Agregados familiares com água
potável em %
24,0
51,0
13,0
37,0
64,0
Agregados
familiares
saneamento* em %
35,0
57,0
26,0
45
72
com
192
2,0
33
Tabela 1: Dados socioeconómicos seleccionados com base numa comparação cidade-campo
* Com latrinas, latrinas melhoradas ou instalações sanitárias melhoradas.
Fontes: IAF 1996/97 e 2002/03 (citados em INE 2004; Ministério de Plano e Finanças 1998; World Bank 2007)
Embora a definição de região rural e urbana tenha mudado entre os dois estudos, a diferença é de importância diminuta.
Inquérito Demográfico e de Saúde (IDS), 1997 e 2003 (citado em INE 2005)
Apesar dos problemas diagnosticados, principalmente no sector da educação (qualificação dos professores, aumento da taxa aluno/professor, falta de educação secundária e
terciária), no sector de saúde (prevalência alta e crescente de HIV/SIDA6 , abastecimento
incompleto de água e falta de saneamento) e das cheias que ocorrem numa periodicidade
quase anual em várias partes do país, as estatísticas oficiais demonstram uma grande
variação entre as províncias e, principalmente, também entre as regiões urbanas e rurais.
Por outro lado, embora o acesso aos principais serviços e às infraestruturas mais importantes tenha sido melhorado nas regiões urbanas depois do Acordo de Paz de 1992, o alto
custo de vida e as inseguranças na geração da renda diária tornaram-se factores graves
para a pobreza urbana. Na estrutura das despesas orçamentais dos agregados familiares
há uma grande diferença entre o meio urbano e o rural, tanto a nível absoluto (nas ci6- Os dados da prevalência de HIV/SIDA divergem nas diversas fontes. O mais recente relatório do ONUSIDA sobre
Moçambique indica, para o ano de 2007, uma taxa de prevalência de 12,5 % das pessoas entre os 14 e os 49 anos de idade
(margem de variação entre 10,9 e 14,7 %) (UNAIDS/WHO 2008), enquanto o Relatório de Desenvolvimento Humano
indica uma média de 16.1 % para o ano de 2005 (UNDP 2007).
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Economia, Política e Desenvolvimento
dades corresponde quase ao dobro comparativamente às regiões rurais) quanto ao nível
da utilização. A maior diferença é entre os gastos com alimentação (64,3 %, no campo, e
32,7 %, nas cidades) e os gastos com habitação e combustível (14,7 %, no campo, e 29,7
%, nas cidades) (INE 2004).
Num futuro urbanismo e ordenamento do território, estas duas áreas devem ser consideradas, já que elas afectam directamente, tanto a possibilidade de acção dos cidadãos,
quanto as questões do uso sustentável da terra e de um sistema de transporte adequado
(Ministério de Plano e Finanças 2004). Dado o facto de as características da pobreza na
cidade serem diferentes em relação a uma região rural, a ciência e a política enfrentam
desafios diferentes e têm que procurar soluções específicas. Numa conferência do Woodrow Wilson Center for Scholars, realizada em Maputo, em 2005, os peritos da administração e da ciência chegaram à conclusão de que novos conceitos de investimento local
podem fortalecer o desenvolvimento económico. Para isso, eles exigiram um reforço
dos processos da governação urbana, investimento no capital humano, uma sociedade
civil a nível local dedicada e mais transparência nas finanças públicas (Woodrow Wilson
International Center for Scholars 2005).
Pobreza e combate a pobreza a nível nacional
“Impossibilidade por incapacidade, ou por falta de oportunidade de indivíduos, famílias
e comunidades de terem acesso a condições mínimas, segundo as normas básicas da sociedade.” (República de Moçambique 2006). Retirada do PARPA II (Programa de Acção
para a Redução da Pobreza Absoluta), o documento moçambicano equivalente ao Poverty Reduction Strategy Paper (PRSP), esta pode ser vista como a definição de pobreza
mais determinante em Moçambique. Foi sob a influência forte de actores da sociedade
civil que, relativamente ao PARPA I, hoje em dia, se considera que as causas da pobreza
têm explicitamente a ver com a falta de acesso aos recursos. Isto resulta em que os indivíduos e grupos não possam viver num nível de vida típico para a sociedade local7.
A decisão de participar no processo do PRSP e nos Objectivos de Desenvolvimento do
Milénio, ambos mecanismos manifestados nos PARPA I e II e nas mudanças institucionais iniciadas, tem como consequência o facto de que todas as áreas da política nacional
se encontram sob pressão para atingir a meta geral de redução da pobreza e de que “o
combate contra a pobreza” se repete, na maior parte das vezes, nos meios de comunicação. A instituição mais importante na redução da pobreza é o Ministério da Planificação
e Desenvolvimento, que é responsável pelo desenho estratégico e formulação dos documentos directivos. No âmbito do processo bem-sucedido do PRSP, o qual foi iniciado e é
monitorizado pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional, um ponto importante nas mudanças institucionais foi a participação da sociedade civil. O fórum mais
importante para o diálogo entre os actores governamentais e actores não-governamentais
7- Em comparação, a definição da pobreza do PARPA I era: “Incapacidade dos indivíduos de assegurar para si e os
seus dependentes um conjunto de condições mínimas para a sua subsistência e bem-estar, segundo as normas da sociedade” (República de Moçambique 2006: 8) “incapacidade dos indivíduos de assegurar para si e os seus dependentes um
conjunto de condições mínimas para a sua subsistência e bem-estar, segundo as normas da sociedade” (República de
Moçambique 2006: 8)
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Economia, Política e Desenvolvimento
é o Observatório da Pobreza, que agora se chama Observatório do Desenvolvimento.
A tarefa deste observatório é a de avaliar a implementação do PARPA e fazer uma monitoria independente da pobreza, seja a nível nacional, seja a nível provincial. Ao lado do
governo e dos doadores internacionais, a sociedade civil, nos moldes do G208, também
participa no Observatório do Desenvolvimento. Num estudo sobre o observatório, Francisco & Matter (2007) chegam à conclusão de que, a introdução do observatório foi um
passo importante, mas que o observatório não faz parte de um mecanismo sustentável de
participação, uma vez que a função do observatório é de consulta, e a possibilidade de
realmente influenciar as decisões políticas é pequena. As áreas temáticas nas quais a sociedade civil conseguiu, com efeito, articular-se no processo do PARPA foram a corrupção e a governação. Tal como demonstram os estudos do Centro de Integridade Pública,
a corrupção é um assunto omnipresente e domina todas as áreas da vida diária, como, por
exemplo, a educação, a saúde e a justiça (Mosse 2006, Mosse & Cortez 2006a, 2006b).
No ano de 2004, foi aprovada uma lei contra a corrupção, principalmente para controlar
a corrupção no sector público. Mesmo que o governo pretenda combater a corrupção
com a ajuda de outras medidas, até agora não se nota grande sucesso nesse processo9.
Com o processo da descentralização, ocorreram também outras mudanças institucionais.
Um momento crucial neste processo foi a criação de 33 autarquias em 1997, nas quais
de cinco em cinco anos é eleito o Presidente e o órgão legislativo, no caso de Maputo, a
Assembleia Municipal. No ano de 2008, o número das autarquias aumentou para 4310.
As autarquias têm uma autonomia política e financeira considerável, conforme o Pacote
Autárquico de 1997. As autarquias são responsáveis pelo uso da terra, licenciamento de
construção e habitação, serviços básicos de água e saneamento, estradas urbanas, gestão
dos resíduos sólidos, ambiente e segurança municipal. A sobreposição ou a ausência de
delimitação clara entre as funções do município e as do governo provincial resulta num
problema, que, no caso de Maputo, é mais complicado, pois o território do município e
da província é o mesmo. Num estudo do UN-Habitat (2008), visando uma implementação prática, foi analisado o papel das cidades nas áreas de governação, slums, género,
HIV/SIDA e meio ambiente, e foram apresentados projectos específicos. Em 2009, o
Banco Mundial publicou um estudo sobre o estado actual, as oportunidades, os desafios
e as implicações para o desenvolvimento das autarquias, o qual deve funcionar como
base para a tomada de decisões sobre a gestão das autarquias (Banco Mundial 2009).
As já mencionadas diferenças regionais entre as zonas urbanas e rurais também são
reconhecidas no PARPA II. No programa para a redução da pobreza, refere-se que a pobreza nas áreas urbanas diminui menos do que nas áreas rurais, e que nas duas províncias, Maputo e Maputo Cidade, ela até aumentou (República de Moçambique, 2006).
8- O nome G20 surgiu no primeiro Observatório da Pobreza, no qual participou um grupo de 20 organizações da sociedade civil. Entretanto, há mais de 100 organizações de diversas áreas representadas pelo G20 (Silva & Matter 2007, 36
seg).
9- O índice de percepção de corrupção no sector público (2,6) da organização contra corrupção Amnesty Internacional do
ano 2008 piorou em comparação com os últimos anos (em que era 2,8). A pontuação de 10 significa uma percepção de
nenhuma corrupção e 0 é o nível mais alto de percepção de corrupção (Transparency International 2008, 51).
10- Em 2008, a FRELIMO conseguiu a maioria dos votos em todas as autarquias nas eleições legislativas. Para presidente, a FRELIMO também venceu em todas a autarquias, excepto na Beira, onde o candidato independente Davis
Simango venceu as eleições.
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Economia, Política e Desenvolvimento
O programa dá especial destaque a alguns objectivos para as cidades, nomeadamente as
áreas da habitação, do abastecimento de água e saneamento, da gestão de riscos naturais
e do desenvolvimento económico. São também sublinhadas as relações entre as áreas
rurais e urbanas (República de Moçambique 2006). A combinação do emprego na área
urbana, seja formal ou informal, com a economia de subsistência rural garante a sobrevivência de muitos agregados familiares nas cidades e no campo. No entanto, não há,
por parte do governo, nenhuma estratégia nacional que vise reduzir a pobreza urbana. O
enfoque contínuo é nas áreas rurais e nas estratégias de aumento da produção agrícola.
Como exemplos, podem ser mencionados o programa do Orçamento de Investimento
de Iniciativa Local (vulgarmente conhecido como “7 milhões”), que visa a geração de
emprego e de alimentos, a estratégia agrícola revolução verde, bem como certas intervenções no sector da educação. Somente em 2010, a pobreza urbana foi politicamente
reconhecida como substancial, passando a ser alvo do Presidente Guebuza no seu segundo mandato (CIP & AWEPA 2010).
A informação sobre pobreza baseada na pesquisa é reconhecida como importante para as
estratégias de redução da pobreza em Moçambique. Os principais dados para a monitoria
e avaliação da pobreza provêm dos dois Inquéritos Nacionais aos Agregados Familiares
(IAF) nos anos 1996/97 e 2002/03, os quais são semelhantes nas suas partes principais (Ministério de Plano e Finanças de 1998, 2004). O primeiro dos dois estudos foi o
início duma medição nacional periódica (com periodicidade de cinco anos) da pobreza
e prosperidade dos agregados familiares com amostras representativas nas províncias.
Além do levantamento sobre as receitas e despesas, são recolhidos muitos indicadores
socioeconómicos, que permitem uma análise detalhada das condições de vida. A linha
da pobreza e a taxa da pobreza identificadas na base do consumo privado são calculadas
através de consumo per capita de cada província (ver figura 1).
A análise de muitos estudos secundários (Brück & van der Broeck 2006; Hanlon 2007,
Ibraimo 2006, World Bank 2007) demonstra que o cálculo do consumo per capita seleccionado resulta em grandes diferenças nos resultados e em interpretações conflituosas.
Especialmente importante foi um relatório encomendado pelo Banco Mundial, o qual teve
como objectivo investigar se o desenvolvimento económico registado após o inquérito
de 2002/03 teve efeitos positivos na redução da pobreza e na melhoria das condições
de vida (World Bank 2007). Resumidamente, a análise é relativamente positiva. Mas
na opinião do observador de longa data e perito do desenvolvimento de Moçambique,
Joseph Hanlon, o Banco Mundial foi pouco crítico em relação aos métodos estatísticos
do IAF, e a abordagem do desenvolvimento negativo nas áreas da saúde e da nutrição é
insuficiente (Hanlon 2007).
Além desses dados quantitativos, também existem os relatórios alternativos de pobreza
elaborados pelo G20, os quais são também um indicador importante para a avaliação da
pobreza e para a identificação das principais áreas de intervenção.
Os dois RAP (Relatório Anual da Pobreza) publicados são uma contraproposta para os
estudos quantitativos feitos “de cima para baixo” do governo (G20 2004, 2005). O objectivo é trazer as visões e as opiniões da sociedade civil para a discussão de causas e
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Economia, Política e Desenvolvimento
manifestações da pobreza, bem como para a sua medição. No primeiro passo, foram inquiridas pessoas individuais e actores da sociedade civil para definir as manifestações da
pobreza em quatro dimensões: humana, social, económica e política. Foram recolhidas
também 28 propostas de como a sociedade civil poderia apoiar o processo da redução
da pobreza (G20 2004). No relatório seguinte foram consultados actores da sociedade
civil a nível distrital para que, com base nas experiências do primeiro RAP, fizessem
propostas amplas nos cinco pilares do PARPA II: macroeconomia, pobreza, governação,
desenvolvimento económico e questões transversais (G20 2005).
Maputo – Pólo de crescimento e centro da pobreza urbana
Passam 35 anos depois que Moçambique conquistou a sua independência do colonialismo português (1975). O Acordo de Paz entre a FRELIMO (Frente de Libertação de
Moçambique) e a RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique) faz 18 anos. A
FRELIMO tinha assumido o comando do governo central ainda frágil após a luta pela
independência. Depois disso, lutou contra a RENAMO, uma organização rebelde que
reivindicava um sistema orientado pelos valores “ocidentais”. Só em 2009, com a fundação do partido MDM (Movimento Democrático de Moçambique), é que surgiu um terceiro partido importante a nível nacional. Maputo é o centro na periferia de um país com
uma costa de 2700 km e com 20 milhões de habitantes. Entre 1940 e 1980, a população de Maputo aumentou mais de dez vezes. De 1980 até ao último censo, em 2007, a
população aumentou novamente para cerca de 1,1 milhões de habitantes (Kuder 1975,
INE 1999, INE 2008). Todas as relações políticas e económicas, incluindo as decisões a
nível nacional e internacional, ocorrem na capital, respectivamente nos centros de poder
localizados na capital, numa área de residência muito despercebida. A despeito dum
crescimento económico global alto em Moçambique, gerido principalmente em Maputo,
mais de metade dos citadinos vive abaixo da linha da pobreza numa tendência crescente
entre 1996/97 e 2002/03 (Ministério de Plano e Finanças 2004).
História da Cidade
A progressão de Lourenço Marques para capital e centro de decisões está directamente
relacionada com a exploração de recursos minerais nas minas da África do Sul. Em
1897, a cidade tornou-se capital, com o porto mais importante do país. O progresso industrial e todas as relações económicas com a África do Sul concentraram-se na capital.
Na década de 1960, isto resultou numa fase de crescimento da cidade muito elevado,
pois a demanda de força de trabalho na cidade e nas minas sul-africanas era muito alta.
Apesar disso, também houve migração para a capital devido à luta pela independência e,
principalmente, mais tarde, à guerra civil nas décadas de 1970 e 1980, dado que a cidade
era vista como segura e como um local onde, naquela época, havia muita construção.
Para atender à crescente demanda de alimentos, surgiu simultaneamente uma cintura
verde para agricultura, chamada de “zonas verdes”, que até hoje é muito importante
(Pinsky 1981).
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Economia, Política e Desenvolvimento
Figura 2: Área de Maputo Cidade
Esboço: Ute Ammering (2009)
Os portugueses, “fundadores” de Lourenço Marques, são responsáveis pela cidade dual
que até hoje recebe designações de tipo “cidade de cimento” e “cidade de caniço”. Esta
delimitação colonial, que expressa os materiais usados na construção, tem a ver com a
segregação de cidadãos portugueses ou asiáticos, ou também os “cidadãos” africanos
“assimilados”11, em relação a uma população definida como selvagem e não civilizada,
os chamados “indígenas”12. Até hoje, diferentes zonas da cidade variam nas formas de
construção, no sistema viário, nas actividades económicas dos moradores, bem como
nos factores socioeconómicos dos agregados familiares. A segregação da cidade em “cidade de cimento” e “cidade de caniço”, definições que atribuem juízos de valor, hoje em
dia, já não se afigura válida, nem no que diz respeito à fisionomia das diferentes zonas,
11- O estatuto do assimilado expressa a lógica da colonização portuguesa com a meta geral de igualar toda a população
da colónia com a de Portugal. As pessoas que correspondiam a certos critérios de educação e estilo de vida podiam conquistar um estado igual a de um cidadão português (para mais informações veja Fry 2000; Newitt 1994, 441 seg).
12- Classificação do sistema colonial português para a maioria africana.
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Economia, Política e Desenvolvimento
nem às condições de vida da população. Por isso, Araújo (1999) sugere desagregar a
cidade em zona urbana, zona suburbana e zona periurbana (veja figura 2) e reforça os
seus argumentos com características infraestruturais e socioeconómicas. A zona urbana
é igual à zona de cimento e segue as regras coloniais de urbanização, com uma planta
ortogonal nítida e edifícios de diversos pisos. A zona suburbana, directamente ao norte
e oeste da zona urbana, é onde aconteceu principalmente a imigração da população nos
últimos 60 anos. Mesmo depois de 30 anos da independência e da abolição da exclusão
étnica da população negra, ainda há uma ruptura no que diz respeito às infraestruturas e
factores socioeconómicos. A canalização, a rede viária pouco pavimentada e a colecção
de resíduos sólidos organizada de forma descentralizada acabam fora da zona urbana, e
só nos últimos anos iniciou-se a ligação ao sistema de água. A zona periurbana é caracterizada, segundo Araújo (1999), principalmente por uma densidade de ocupação residencial ainda baixa e presença da actividade agrícola.
Tabela 2: Cidade de Maputo – Variação de dados socioeconómicos seleccionados
População
1997
966.837
2007
1.094.315
Taxa global de fecundidade (filhos/mulher)
Esperança de vida, total (em anos)
Esperança de vida, homens (em anos)
Esperança de vida, mulheres (em anos)
Taxa de mortalidade infantil (<1 ano por
mil)
4,3
58
54,6
61,7
60
2,9
55
52,1
57,9
72,3
Taxa de analfabetismo, total (> 15 anos)
Taxa de analfabetismo, homens (>15 anos)
Taxa de analfabetismo, mulheres (>15 anos)
15 %
7,1 %
22,6 %
9,8 %
4,4 %
14,8 %
Número médio de pessoas por agregado
familiar
Habitações com água canalizada
Habitações com electricidade
5,3
4,9
49 %
38,1 %
55,2 %
63 %
Fonte: Censo 1997 e 2007 (INE 1997, 2009)
Conceitos actuais da pesquisa sobre pobreza em Maputo
Os processos actuais de gestão e desenvolvimento da cidade chamam muita atenção.
Contudo, há um défice em relação à pobreza rural, no que diz respeito à investigação
sobre a pobreza urbana e dos programas para a sua redução e soluções práticas. Nem
a classificação de população ‘pobre’ e, consequentemente também de população ‘rica’,
do estudo do consumo a nível provincial (Ministério de Plano e Finanças 2004), nem o
relatório anual de pobreza a nível nacional (G20 2004, 2005) especificam os fenómenos
e os problemas da pobreza urbana em Maputo. Por conseguinte, muitos estudos têm
tentado iluminar os significados da pobreza para chegar a uma avaliação adaptada ao
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Economia, Política e Desenvolvimento
contexto local, histórico e socioeconómico de Maputo. Araújo analisou a cidade numa
geografia urbana baseada em aspectos físico-estruturais e através da questão de áreas
urbanas e rurais dentro da cidade (Araújo 1999, 2002, 2003, 2005).
Uma contribuição importante dos factores relevantes para a pobreza, dependendo das
condições políticas e sociais, foi feita num projecto de pesquisa da Universidade de Lisboa (Oppenheimer e Raposo 2002). O impacto das mudanças sociais nos estilos de vida
específicos e as estratégias de sobrevivência na região sub e periurbana de Maputo foi
analisado num estudo quantitativo muito detalhado por Knauder (2000), enquanto Costa
(2005, 2006) tentou analisar o mesmo problema através duma abordagem mais qualitativa e etnográfica. No trabalho de Lundin (2007), juntam-se análises complexas, que dão
uma ideia sobre os “livelihoods” urbanos e a mudança que ocorreu no curso da história
recente e com as convulsões políticas de Moçambique. Metodologicamente e também
com um conteúdo muito amplo, Paulo et all. (2007) tentaram identificar, pela primeira
vez, os aspectos importantes da pobreza urbana e fazer um levantamento da diversidade
e complexidade das estratégias de vida e da sua importância para as pessoas afectadas.
Para questões específicas da pobreza urbana há contribuições importantes de cientistas
nacionais e internacionais.
As diferentes formas de informalidade são importantes áreas de investigação no âmbito
da cidade. Na sequência da independência, em 1975, ocorreram mudanças extremas
com um impacto enorme nas estruturas internas da cidade, na situação de emprego e
nas condições de vida em geral. A partir das mudanças no final da década de 1970,
começou a desenvolver-se um sector informal urbano, o qual foi, no início, combatido
rigidamente pelo estado. Com as tendências gerais de liberalização (adesão ao FMI e
ao Banco Mundial, programas de reestruturação, liberalização dos preços de alimentos
e consequentemente o aumento de preços), a partir de meados da década de 1980, o
sector informal ganhou rapidamente uma importância e foi tolerado na cidade (Silva &
Andrade 2000, 21). Para além da economia de sobrevivência dos “pobres” (Arnaldo
1996; de Vletter 1996; Francisco & Paulo 2006; Pranger 2005), o comércio informal
também tem um papel importante no sentido de uma informalidade de actores e processos fora da regulamentação do governo. No domínio do direito ao uso e acesso à terra
(Cruzeiro do Sul 2004; Jenkins 2001a, 2001b, 2006), ou de processos de governação a
nível da cidade, a dimensão da informalidade é marcante (Lindell 2008). As fronteiras
entre o formal, informal e até o ilegal não são claras e estão entre as jurisdições sobrepostas e conflituosas, ou então entre os regulamentos institucionais a diferentes níveis
ou com legitimidade diferente (pode dar-se o exemplo da lei estatal e do direito consuetudinário, das autoridades nacionais e tradicionais, instituições nacionais e municípios
auto-administrados).
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Economia, Política e Desenvolvimento
Conclusão
Este artigo tem relação com os dois seguintes onde são pesquisadas questões de qualidade de instituições a diferentes níveis de Maputo. As instituições têm um impacto directo na percepção da (in) segurança dos moradores, já que eles actuam num espaço
estreito delimitado entre formalidade e informalidade. Estes elementos devem entrar nas
reflexões sobre a redução da pobreza. O artigo de Anne Merklein trata principalmente
dos programas e das directrizes formais no âmbito da redução da pobreza e também
da aplicação do conceito da governação urbana com a complexidade e diversidade das
relações dos actores, das estruturas e dos processos que definem a cidade. Merklein
concentra-se mais nos actores com poder e no seu interesse na redução da pobreza.
Ute Ammering, por outro lado, ilumina – através da realidade quotidiana das pessoas
que vivem nos bairros com infraestruturas pobres – a habitação e os processos e instituições relevantes daí decorrentes. As diferentes estratégias e as restrições do “livelihood”
dos agregados familiares são estudadas na sua relação com as questões de planeamento
para a habitação e moradia. Os dois artigos, com as diferentes abordagens, demonstram
os aspectos específicos e os diferentes níveis que influenciam o fenómeno da pobreza.
Nesse âmbito, não devem ser elaboradas novas categorias e classificações, mas sim explorados os significados subjacentes e as relações dentro do fenómeno multidimensional
da pobreza.
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Economia, Política e Desenvolvimento
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Economia, Política e Desenvolvimento
Morar nos bairros suburbanos de Maputo
Livelihoods e a implementação do planeamento local
Ute Ammering13
Resumo
A cidade de Maputo é um bom exemplo para mostrar as
realidades e as questões diversas e entrelaçadas que os
moradores das cidades no sul defrontam. Os diferentes
actores do planeamento urbano e da política necessitam
de colaborar para encontrar soluções adaptadas. Precisase duma abordagem multi-dimensional, que tome em consideração as funções e os significados diversos do espaço
residencial. Este texto mostra como condições históricas,
económicas, físicas, sociais e simbólicas podem influenciar o significado do espaço residencial e as transformações dentro da cidade. Uma questão analisada no texto é se
o espaço residencial pode ser visto como um capital com
função simbólica. Estratégias consequentes são esboçadas para processos de migração interna na cidade. Além
disso, serão apresentados exemplos da prática actual do
planeamento urbano a respeito do espaço residencial e as
tendências de formalização da situação actual. Palavraschave: pobreza, desenvolvimento, livelihoods, moradia,
sustentabilidade e capital social.
13- Geógrafa, estudante e pesquisadora da Universidade Leopold-Franzens- em Innsbruck, Áustria – Instituto de Geografia.
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Introdução
O quotidiano das pessoas nos bairros de formação espontânea na zona suburbana da
cidade de Maputo é caracterizado por altos níveis de insegurança. A área de habitação
é reduzida nas suas diversas funções, facto que contribui para a (in)segurança do livelihood dos moradores. A localização e o equipamento da habitação reflectem, não só os
recursos materiais dos agregados familiares, mas também o acesso ao capital humano e
às redes sociais. A habitação dos agregados familiares faz parte dos recursos produtivos,
reprodutivos e transformativos dos livelihoods urbanos. Moser (1998) identifica a habitação explicitamente como o recurso produtivo mais importante dos agregados familiares urbanos. A sua importância para a sobrevivência é similar à da área de agricultura
dos povoamentos rurais.
A cidade de Maputo é caracterizada por uma dicotomia entre a zona urbana construída
pelos colonizadores portugueses, com uma planta ortogonal nítida e edifícios plurifamiliares e a zona peri e sub-urbana, com bairros de formação espontânea e economia informal (ver figura 2, Ammering & Merklein 2010). Os bairros da zona suburbana ao norte
e oeste cresceram e densificaram-se principalmente na época de imigração para a cidade
durante a década 1960 e, mais tarde, durante a guerra civil (1976-1992). Durante a época
colonial, houve principalmente investimento público nas infraestruturas ao longo das
ruas principais, como se pode ver no plano de urbanização de 1952 (Saevfors 1986). Os
investimentos em termos de infraestrutura e da administração da cidade só foram financiados depois do Acordo de Paz e dependiam dos créditos dos doadores internacionais
(principalmente do Banco Mundial, no caso de Maputo). A maioria dos povoamentos no
interior dos bairros suburbanos chamam atenção até hoje pelos caminhos não planeados
e estreitos, pela falta de infraestruturas e pela construção horizontal, misturando materiais tradicionais e modernos.
Logo após a independência, em 1976, foi planeado um primeiro projecto, muito amplo, de requalificação no bairro Maxaquene. A expansão deste projecto a outros bairros não ocorreu por causa de desestabilização da guerra civil. Desde então, não houve
outra iniciativa similar (DINAPOT 2006; Saevfors 1986). Actualmente, há planos pilotos de requalificação e formalização das áreas não planeadas. Muitos estudos sobre as
condições de vida na zona sub e peri-urbana de Maputo demonstram que o acesso e a segurança da habitação, bem como do seu equipamento são os factores mais determinantes
da desigualdade e desvantagem (DINAPOT 2006; Jenkins 2001b; Knauder 2000; Oppenheimer & Raposo 2002). No estudo de Paulo et all. (2007), a questão da desigualdade
social é feita através de um conceito qualitativo, e o enfoque centra-se na auto definição
dos entrevistados e de critérios próprios para «pobre» e «rico». Deste modo, foi possível
evitar a visão de peritos externos, que normalmente utilizam indicadores muito técnicos
para identificar pobreza urbana. O resultado é que a habitação e o seu equipamento têm
um papel importante no estudo das desigualdades sociais (Paulo et all. 2007).
Neste artigo, a autora concentra-se nas questões de acesso à habitação e de selecção da
localização da habitação. Para isto, a autora vai exibir alguns exemplos de habitações na
área suburbana e examinar as condições para o acesso e o uso duma habitação urbana.
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Em análise estão as condições de vida e as opiniões dos moradores de três pequenos povoamentos na zona suburbana de Maputo. Além disso, deve ser questionado para que é
e como é que a habitação pode ser vista como recurso, e qual é a atribuição que está por
detrás das preferências e das prioridades na escolha do sítio da habitação. A importância
da habitação e do local exacto onde ela está situada nota-se principalmente na escolha
de um novo local e/ou quando se altera algo na situação actual. A migração interna (dentro da cidade) pode demonstrar as prioridades das pessoas. Ficam evidentes os factores
que desencadeiam e influenciam a mobilidade, as dificuldades estruturais com que os
indivíduos e os agregados familiares são confrontados para encontrar uma habitação
adequada e os mecanismos escolhidos para superar estas dificuldades.
As semelhanças entre os significados e as preferências que existem em relação à habitação não podem ser explicados individualmente, independentemente de outros valores
e atitudes. As preferências são calibradas socialmente e depois incorporadas por cada
indivíduo. No conceito de habitus, Bourdieu descreve esta “interiorização da exterioridade” (Bourdieu 1987 tradução da autora) ou então o social internalizado por cada
um (Rothfuß 2006), que por sua vez gera constantemente novos modelos de percepção,
valorização e acção em cada grupo social (Bourdieu 1987). Desta forma, o habitus, por
um lado, exemplifica as relações de capital e de poder numa sociedade e, por outro, também gera estas relações.
A mobilidade intraurbana tem um papel importante para os agregados familiares, seja
como estratégia de sobrevivência (como, por exemplo, depois de desastres pessoais,
como a morte ou a separação do parceiro), seja como estratégia para estabilizar o seu
livelhood (como, por exemplo, para aumentar a percepção de formalidade da habitação
própria). Tanto a mudança livremente escolhida, como também a mudança forçada estão
relacionadas a atribuições e acções do habitus, ligadas à habitação e aos outros recursos. A mobilidade tem uma forte influência na dinâmica da estrutura do povoamento da
cidade. Assim, o significado da habitação torna-se particularmente importante para o
planeamento. Por isso, este artigo mostra também exemplos da gestão pública actual das
dinâmicas dos bairros suburbanos.
Habitação e ambiente residencial como recurso dos agregados familiares urbanos
A ‘boa’habitação
Tratando-se de questões de pobreza urbana no mundo inteiro, o acesso à habitação segura e ‘adequada’ desempenha um papel central no planeamento e na política. Os principais programas reconhecem as diversas funções da habitação e a sua importância para a
redução da vulnerabilidade. No início do novo milénio, iniciativas como Cities wihtout
Slums e o sub-objectivo onze dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio das Nações Unidas mostram a importância do empenho na questão da qualidade e segurança
da habitação (The Cities Alliance 2005). No Global Report on Human Settlements 2007,
o aumento de tenure security é descrito como uma das três componentes para alcançar
mais segurança para a população urbana (UN-Habitat 2007). Na medida destas iniciativas, a UN-Habitat (2003) fez uma estimativa global da população vivendo em slums.
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Segundo esta fonte, 33,3% da população moçambicana vivia na cidade, e desta percentagem, 94,1% vivia em slums em 2001. A UN-Habitat define slums da seguinte maneira:
“a wide range of low-income settlements and/or poor human living conditions” (UNHabitat 2003). Esta abordagem é de facto bastante ampla, mas só identifica indicadores
absolutos e físicos para a habitação. Os moradores de povoamentos que não têm acesso a
pelo menos uma das cinco componentes fixadas, são definidos como vivendo em slums.
As cinco componentes definidas são o acesso a água potável, acesso ao saneamento
melhorado, espaço de habitação suficiente, habitação permanente (de qualidade) e segurança jurídica de habitação (UN-Habitat 2003). Nesta definição, não são consideradas
características relativas e relacionais, como é o caso de uma localização adaptada para a
situação de vida das pessoas, como, por exemplo, o fácil acesso ao transporte público em
situações em que as redes sociais e as actividades económicas estão garantidas. Fazendo
uma avaliação de slums na base de indicadores absolutos, esquece-se do facto de que o
slum é um termo relativo e que o seu significado também depende das preferências e dos
padrões locais.
Os indicadores absolutos reduzem a avaliação do slum, por exemplo, com base em características físicas e no aspecto legal duma habitação, mas permitem a sua definição
em termos de se ela é ‘adequada’ ou ‘segura’. As diversas preferências que existem nas
diversas sociedades e até dentro de cada sociedade são generalizadas, embora o equipamento físico e a qualidade por si não sejam suficientes para avaliar a habitação. O que
cada um prefere e deseja depende de questões da etapa da vida (Clark & Onaka 1983), da
situação familiar, da composição do agregado familiar, do local de trabalho e da forma
de trabalho. Além disso, a preferência individual também depende das preferências do
grupo específico ao qual o indivíduo pertence. A habitação pode, portanto, adquirir uma
função de capital simbólico, no sentido de Bourdieu, e tornar visíveis os factores de
poder entre os grupos sociais, como também atribuir poder (Barlösius 2006; Vogt 2005).
A habitação reflecte prioridades socialmente construídas e símbolos do estatuto social e,
portanto, a posição de poder. Uma análise deve estudar esta qualidade relativa da habitação. Os diversos interesses dos actores e a sua situação de vida devem ser tidos em
conta num estudo mais amplo. Além da conotação e da valorização altamente negativa
do termo slum, Gilbert (2007) critica a sua falta de diferenciação, uma vez que desta
maneira permanece a impressão de que todos os povoamentos assim chamados e todos
os grupos de pessoas que vivem num slum têm as mesmas condições e os mesmos problemas, sem reconhecer a diversidade dos interesses dos actores.
A escolha da habitação e a consequência para o desenvolvimento residencial é um
fenómeno complexo, com ligações a muitos outros sectores da vida e da política. A
mobilidade intra-urbana, seja ela necessária ou desejada pelos indivíduos ou agregados familiares é um factor de incerteza e stress similar a qualquer migração. Também
para a política urbana e para o planeamento, o fenómeno da mobilidade urbana é um
tema central, pois ele influencia o mercado da habitação, a expansão dos assentamentos, bem como a estrutura interna da habitação urbana. Em cidades caracterizadas por
uma incerteza política e uma fraca gestão da administração, estes processos de migração
da população de baixa renda muitas vezes levam às ocupações informais, medidas de
reassentamento forçadas e processos de exclusão. Indevidamente, o planeamento e a
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construção de habitações são feitos a partir do conhecimento de arquitectos e urbanistas
(muitas vezes masculinos) com uma visão técnica dos processos e das intervenções no
âmbito do desenvolvimento dos assentamentos urbanos (Gilbert 2002).
A habitação como capital
A habitação é mais do que um tecto sobre a cabeça que ofereça protecção e privacidade.
Ela é também um capital versátil com funções produtivas e reprodutivas para a população
urbana. Nas investigações tradicionais sobre livelihoods, com enfoque nas áreas rurais,
a casa e o terreno são identificados como os factores de produção mais importantes. No
meio urbano, portanto, a habitação própria, mesmo que seja somente um espaço muito
pequeno, é ao mesmo tempo o espaço para produção, reprodução, armazenamento, comércio e serviço. A questão da posse geralmente é central para avaliar a estabilidade e
vulnerabilidade dos livelihoods. Há vários caminhos para garantir a posse. Enquanto a
propriedade privada ainda é considerada como o estado legal mais seguro (UN-Habitat
2007), reconhece-se cada vez mais que não é desejável ter um mercado imobiliário em
assentamentos informais, que vise a propriedade privada. Em vez disso, tendo em conta
que a legalidade habitacional nos assentamentos informais é muito complexa, deve-se
procurar formas diversas e flexíveis para garantir a segurança jurídica (Payne 2001).
O capital é entendido como um recurso que as pessoas usam para atingir os seus objectivos. Isso pode incluir recursos tanto materiais como imateriais, que podem trazer
benefícios individuais e/ou colectivos. Um exemplo para o capital social são as relações
sociais; para o capital humano são as competências, a saúde e a educação; e para o capital económico são bens materiais. Para Bourdieu, o capital significa poder, respectivamente um poder inerente aos objectos, porque o capital viabiliza que os actores tenham
diversas possibilidades de actuar e alcançar os seus objectivos (Vogt 2005). O termo
“capital”, utilizado no Sustainable Livelihoods Approach, pode ser visto como ponto de
referência. Na definição do Sustainable Livelihoods Approach, o termo importante “capabilities” enfoca, não só as capacidades de cada individuo, mas também reconhece que
cada pessoa tem oportunidades diferentes, dependendo dos capitais e do poder que ela
tem (DFID14 1999). Bourdieu distingue três formas principais de capital. Elas ganham-se
através de diversas formas de trabalho e podem ser acumuladas no decorrer do tempo
(por exemplo, trabalho remunerado – capital económico -; relações sociais – capital
social -; educação – capital cultural). Os diferentes tipos de capital também podem ser
transformados entre si (Bourdieu, 1997). Capital, no entanto, também pode reproduzir
e acumular-se a si próprio, pois “o capital tem uma força de sobrevivência; ele pode
produzir lucro, pode reproduzir-se ou também crescer. O capital é uma força dentro da
objectividade das coisas, que faz com que tudo não seja igualmente possível ou impossível” (Bourdieu 1997, tradução da autora).
Considerando estas afirmações sobre o capital, as habitações urbanas também se qualificam como um tipo de capital. A sua função produtiva, reprodutiva e de protecção traz
benefícios directos. Através da transformação em outros tipos de capital e a acumulação
14- Department For International Development
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destes outros tipos de capital (por exemplo, a habitação pode ser usada para a educação,
a saúde e a geração de renda), a preservação da própria habitação é garantida. A possibilidade de transformação mútua entre as diferentes formas de capital significa que elas
são interdependentes. Assim, a qualidade da habitação tem um impacto directo na saúde
e nas oportunidades de educação, ambos aspectos do capital humano.
A diferenciação das diferentes formas de capital no Sustainable Livelihoods15 Approach
sempre é discutida, embora possa ser ajustada pragmaticamente em função do contexto.
Especialmente no contexto da habitação urbana, parece importante pensar junto a categoria do capital simbólico, que é importante no pensamento de Bourdieu. O capital simbólico não é uma forma de capital específica, mas representa aquele capital que é o mais
reconhecido num determinado contexto social e por isso é particularmente promissor.
Muitas vezes, o capital simbólico é capturado pelos conceitos de reputação ou prestígio,
por isso é igual a símbolos de estatuto social (Vogt 2005). Considerando o capital simbólico e mais amplamente o conceito de capital de Bourdieu como parte da sua “Teoria
da Prática”, é importante mencionar os conceitos do habitus e do espaço social. No
capital simbólico reflectem-se as posições socialmente reconhecidas, manifestadas em
posições e hierarquias no espaço social. Ele faz parte da história que produz os modelos
de percepção e de avaliação, que, por sua vez, geram e produzem uma forma de habitus
específica (Barlösius 2006). O habitus indica todas as disposições a partir das quais os
indivíduos agem, seguindo a sua posição num espaço social específico, que é estruturado
por objectos e instituições (incluindo as normas de conduta vigentes e os instrumentos
de poder eficazes). O habitus descreve os sistemas sociais do nosso código de comportamento e, portanto, das nossas expectativas e dos investimentos em certas formas de
capital.
Anotações metodológicas
As preferências habitacionais dependem de factores legais, históricos, espaciais, de género e de outros factores institucionais da dimensão pública e privada. Como pesquisadora, eu observo e interpreto “de fora” e corro o risco de, por um lado, generalizar
as condições de vida que eu observo, e, por outro, de construir um sistema de valores
inapropriado. Para evitar uma visão somente externa, vou introduzir também as perspectivas dos próprios moradores. A base deste artigo são pesquisas qualitativas usando
diferentes tipos de entrevista e observações durante várias visitas de campo em Maputo
nos anos 2007 e 2008. No centro do interesse, estão os livelihoods de moradores de
assentamentos informais, com enfoque na diversidade e na diferença das situações de
vida das pessoas e das suas perspectivas. A minha abordagem empírica foi inspirada
nas ideias da Grounded Theory de Strauss e Corbin, as quais me encorajaram a utilizar
uma abordagem muito aberta (Strauss & Corbin 1996). As questões centrais foram-se
diferenciando no decurso do meu trabalho acerca dos assuntos que me pareciam significativos em Maputo.
15- Carney et al. (1999) comparam os diversos conceitos de livelihood. Moser (1998) adaptou as diversas formas de
capital para a zona urbana.
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A selecção das áreas de estudo foi feita em função das desigualdades visíveis no espaço e nas instalações físicas. No domínio do espaço físico, é possível reconhecer várias
mudanças socioeconómicas e políticas ocorridas ao longo da história. As três áreas de
estudo foram seleccionadas para representar as condições gerais de vida caracterizadas
pelo stress e incertezas. Elas são, obviamente, as áreas onde as habitações são precárias,
quer pelo seu aspecto físico visível, quer do ponto de vista dos peritos na matéria. No
artigo Ammering & Merklein (2010), a figura 2 mostra a localização das três principais
áreas de investigação na zona suburbana da cidade. Cada área de investigação é uma área
pequena e distinta, geralmente do tamanho de um quarteirão, dentro do qual as relações
de vizinhança são frequentes. Estes assentamentos são exemplos representativos da diversidade das condições de vida existentes em assentamentos densos, que não são tomadas em consideração nas avaliações efectuadas a partir de indicadores socioeconómicos.
A selecção aleatória dos agregados familiares ou então dos membros de agregados familiares deve reflectir estas diferentes condições, sendo que o critério decisivo é a vontade de participação de cada pessoa. Na situação de entrevista, tentei sempre separar as
perguntas sobre o agregado familiar das perguntas sobre a própria pessoa entrevistada.
No entanto, uma atribuição inequívoca, em alguns casos, nem sempre foi possível. Este
facto é uma dificuldade metodológica que deve ser tomada em consideração neste tipo
de abordagem. Informações muito úteis foram recolhidas nos casos em que foi possível
obter opiniões de vários membros da mesma família.
Condições de habitação na zona suburbana de Maputo: situação oficial de posse e
uso da terra no meio urbano
A situação actual de posse e uso de terra em Moçambique, e principalmente nas áreas urbanas, é o resultado de uma convivência e sobreposição do direito oficial legal e de regras
tradicionais. Estes dois elementos mudaram no decurso da história, devido a turbulências
externas, por um lado, e às mudanças graduais, por outro lado. Durante a colonização
portuguesa, foi estabelecido um direito de posse de terra baseado em valores europeus,
facto que condicionava a desigualdade social, uma vez que se baseava em atribuições de
carácter racista. A posse de terra privada era reservada aos cidadãos portugueses e às pessoas de diferentes origens mas com um estatuto idêntico (os chamados assimilados16). A
população indígena era totalmente excluída. O objectivo da primeira Lei de Terras, de 3
de Julho de 1979 (Lei nº 6/79), pouco depois da independência, consistia na eliminação
das injustiças históricas e a devolução da terra ao povo moçambicano. Com o final da
era colonial, todos os imóveis utilizados lucrativamente (por exemplo, para a produção,
aluguer) foram nacionalizados e colocados sob gestão estatal. Foi criada uma entidade
competente, chamada APIE (Administração do Parque Imobiliário do Estado), para administrar e alugar os edifícios com base numa renda nominal. Em paralelo com a primeira tendência de liberalização e a abertura da economia ao mercado livre, o Decreto nº
16/87 de 15 de Julho, expressou, a respeito da terra, uma tendência no sentido da redução
do poder estatal. Como consequência, tornou-se possível, a partir de 1993, a transição
de imóveis previamente nacionalizados para mãos privadas, embora o Estado continue
16- O estatuto do assimilado expressa a lógica da colonização portuguesa com a meta geral de igualar toda a população
da colónia com a de Portugal. As pessoas que correspondiam a certos critérios de educação e estilo de vida podiam conquistar um estado igual a de um cidadão português (para mais informações veja Fry 2000; Newitt 1994).
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Economia, Política e Desenvolvimento
a manter o monopólio da posse de terra. Hoje, apenas um quarto do parque imobiliário
originalmente nacionalizado permaneceu na administração da APIE. A Lei de Terras de
1997 expressa uma certa abertura e elimina as injustiças anteriormente estabelecidas,
especialmente em termos de justiça de género. No entanto, as autarquias17 são expressamente excluídas desta lei (Frey 2006). De acordo com alguns autores, este vazio legal
para as áreas urbanas aumenta os conflitos e os processos informais de posse de terra
(Chiziane 1999; Jenkins 2001a; Jenkins 2006). Só no final de 2006 é que o Conselho de
Ministros aprovou o Regulamento do Solo Urbano (RSU), o qual define o acesso ao solo
urbano através do decreto 60/2006, de 26 de Dezembro de 2006. Neste decreto, as responsabilidades são transferidas explicitamente para as autarquias (CMM 2009). Desde
então, as autarquias são obrigadas a fazer um cadastro que regula a concessão do direito
ao uso e aproveitamento da terra (DUAT). Oficialmente, só é possível obter um DUAT
para terrenos parcelados. Os terrenos também podem ser parcelados a posteriori. Com
efeito, a concessão do DUAT já não se afigura relevante, nos casos em que, o imóvel
tenha sido ocupado informalmente durante dez anos, (UN-Habitat 2008).
A situação actual do acesso à habitação
A ausência de um mercado formal de terra significa que o acesso à terra acontece principalmente através de mecanismos informais (Jenkins, 2001a). Num estudo, Jenkins
tentou comparar as diferentes formas de acesso ao solo urbano em Maputo e Matola
em épocas diferentes (Jenkins 2001b). Um aspecto interessante resultante do referido
estudo é que, a partir de 1987, comparativamente aos anos anteriores a 1975, a atribuição
formal por parte das autoridades da cidade diminuiu significativamente. Por outro lado,
todas as formas informais de atribuição e compra aumentaram ligeiramente. Jenkins
(2001) e Paulo et all. (2007) chegaram à conclusão de que a forma de acesso à terra
mais frequente é através da herança, troca ou ocupação de actores que estão ou estavam
ligados ao governo local. Quer durante a administração colonial, quer durante a vigência
do sistema socialista, estas autoridades locais desempenhavam um papel importante na
aplicação das regras, constituindo-se, deste modo, como uma interface entre o sistema
tradicional e o sistema oficial jurídico e administrativo.
Dependendo da região de origem dos moradores, hoje em dia, o acesso e uso da terra nas
zonas sub e peri-urbanas das cidades são fortemente influenciados pelas reinterpretações
das instituições e pelos regulamentos locais. Alguns bairros foram ocupados homogeneamente, como resultado da alocação de terra de forma tradicional, através de autoridades locais, a pessoas da mesma etnia ou do mesmo clã (veja estudo de caso do Bairro
Luís Cabral). Os novos imigrantes eram remetidos a pessoas da mesma origem e tinham
a esperança de receber uma atribuição de terra conforme as regras conhecidas.
Na cidade, as instituições tradicionais, como o casamento ou a família, sofreram mudanças radicais por causa da alta dependência do dinheiro e das poucas oportunidades
que uma economia de sobrevivência oferece. Devido a uma pressão económica forte na
17- Em virtude da descentralização, foram criadas 43 autarquias, incluindo o Município de Maputo. Mais informações
sobre as autarquias encontram-se no artigo de Anne Merklein (2010).
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cidade, torna-se difícil manter a prática do lobolo, isto é, a compensação pela perda da
filha que se torna noiva. Da mesma forma, poucas pessoas na cidade têm a possibilidade
de festejar uma cerimónia de casamento tradicional. O resultado disso é que em zonas da
cidade com população de baixa renda, quase não se encontram casais cujo relacionamento seja legalizado, quer seja oficialmente, quer seja tradicionalmente. Ao mesmo tempo,
a poligamia permanece, mas sem o regulamento tradicional, o que implica obrigações
financeiras do homem em relação à mulher (Paulo et all. 2007). Em caso da morte ou da
separação do homem, a mulher fica sem qualquer direito aos bens. Em caso duma separação, mesmo tratando-se de mulheres casadas, elas não têm a garantia de continuar a ter
acesso aos recursos do marido (da Silva & Andrade 2000), embora o rendimento da terra
dos próprios pais ou da família do marido seja, muitas vezes, o único ou o meio adicional
de sobrevivência18. Em caso de falecimento dos pais, as mulheres não têm garantia de
herdar a sua parte da propriedade dos pais, pois os imóveis passam normalmente para os
descendentes do sexo masculino. No entanto, a flexibilização das formas tradicionais de
relacionamento que ocorrem nas cidades pode ter efeitos positivos para as mulheres. Assim, por exemplo, elas têm maiores liberdades para decidir sobre a sua vida e de como financiar a sua sobrevivência. Ao mesmo tempo, torna-se mais fácil para elas desenvolver
estratégias alternativas, apesar da divisão de trabalho por género.
No Sul de Moçambique, as mulheres não têm desvantagens no direito oficial ou tradicional à terra. Ao mesmo tempo, o direito de herança oficial é formulado de forma equivalente para homens e mulheres e reconhece casamentos tradicionais. A discriminação
surge, no entanto, por causa da lei da herança tradicional do sistema patrilinear (este
sistema prevalece em Maputo). De acordo com esta lei, a esposa não tem o direito de
assumir os bens do seu falecido marido, os quais são delegados ao primogénito (da Silva
& Andrade 2000). A mulher é obrigada a ficar com a família do falecido marido, onde
ela tem acesso apenas aos recursos que lhe foram concedidos. Estas desigualdades de
género não se reflectem apenas ao nível das condições de uso da terra, mas também no
baixo nível de educação das mulheres, no alto índice de mulheres no comércio informal,
ou no fenómeno das altas taxas de fertilidade e de maternidade muito jovem (da Silva &
Andrade 2000; INE 2006; UNDP 2007).
Situação legal da habitação e significado de habitação – três estudos de caso
Na zona suburbana de Maputo, encontram-se diferentes condições legais de habitação
e várias formas de acesso à habitação. As formas de convivência que parecem muito
persistentes tornam-se muito dinâmicas a nível micro (dentro do agregado familiar) e
também a nível macro (formas específicas das condições legais). Os exemplos das áreas
de estudo dentro dos bairros Minkadjuine, Luís Cabral e Hulene B dão uma visão actual
destes diferentes níveis. Nos três casos, encontramos intervenções de fora ou então já
realizadas ou na fase de planeamento que influenciam o desenvolvimento residencial.
18- Actualmente, as mulheres têm direitos iguais aos dos homens em termos de acesso à terra. Contudo, muitas vezes,
os antigos regulamentos formais ou os regulamentos do direito tradicional ainda prevalecem.
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Bairro Minkadjuine – Persistência e dinâmicas novas
O estudo de caso mais próximo do centro de Maputo é o dentro do bairro de Minkadjuine. A área de interesse é o quarteirão 21, composto por seis casas “individuais” com
quintal próprio e vinte e uma casas construídas juntas em condições precárias e de um
só andar. Todas elas estão em torno de um pátio conjunto e situadas um pouco afastadas da rua principal (ver figura 1). Esta construção muito apertada, remanescente do
período colonial, é chamada pelos próprios moradores como “casa comum”. Antes da
independência, os indígenas viviam na “casa comum”. Os patrões portugueses moravam
nos prédios situados na vizinhança. Na época colonial, esta área do bairro Minkadjuine
foi uma das primeiras habitações oficiais dos indígenas19. Em 1919, os assentamentos indígenas no território de Minkadjuine foram mencionados pela primeira vez (DINAPOT
2006) e já tinham uma densidade populacional alta (Mendes 1979). Após a independência, as casas foram nacionalizadas e ficaram sob o controlo da entidade administrativa
do parque imobiliário (APIE).
Figura 1: Área de estudo em Minkadjuine, quarteirão 21. Esboço esquemático
Esboço: Ute Ammering 2008
Até hoje, a maioria dos edifícios está em condições precárias. As paredes que separam
as residências dentro da “casa comum” são porosas e oferecem muito pouca privacidade.
As instalações sanitárias usadas em conjunto se encontram em mau estado e apenas
existe um acesso privado a água dentro da “casa comum” e mais um num quarteirão
vizinho. Apesar da má qualidade da habitação, a localização central do quarteirão 21,
19- Indígena era a denominação dada pelos colonos portugueses à população africana.
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Economia, Política e Desenvolvimento
perto de um dos maiores mercados da cidade é um factor positivo.Os acontecimentos
mais influentes na fisionomia da área foram os incêndios. No ano 2004, arderam nove
casas; em 2005, mais três, e em 2008, mais uma. Para evitar a reconstrução do espaço,
o município deu um terreno às famílias afectadas num novo assentamento na zona periurbana do grande Maputo. Além do terreno, as famílias também receberam materiais
de construção para uma nova casa. As pessoas que actualmente moram no quarteirão
21 pagam, ou uma renda baixa à entidade estatal, APIE, ou compraram os edifícios e
receberam o título de propriedade. Uma vez que, na área urbana, a concessão do direito
de uso e aproveitamento da terra (DUAT) é, em última instância, da responsabilidade do
município, há uma sobreposição jurídica do regulamento nacional e urbano. Embora a
APIE desrespeite as responsabilidades municipais, na prática, o município aceita os títulos de propriedade. De uma forma geral, o município quer evitar o título de propriedade
em áreas não planeadas e sem infraestruturas melhoradas na zona suburbana de Maputo.
No entanto, os arrendamentos e a venda de terrenos do APIE são contraproducentes.
Caso ninguém da família queira viver nos edifícios, tenta-se alugá-los a um preço do
mercado para obter benefícios financeiros e para continuar a ter acesso ao edifício. Antes que a zona seja parcelada, é impossível adquirir títulos oficiais de propriedade do
Conselho Municipal. A concessão de títulos é uma medida que faz parte do planeamento
actual do município, mas que até agora verificou-se apenas em áreas-piloto, não havendo
previsões sobre quando é que será expandida às outras áreas. Geralmente, as autoridades
tradicionais do bairro têm um contacto saudável com o governo local e apoiam a autoridade deste. Assim esperam tirar proveitos pessoais, bem como a preservar as relações
de poder actuais.
Os actuais moradores do quarteirão 21 têm alguma relação familiar com os antigos
moradores que viviam nesta zona depois da independência. A própria composição da
maioria dos agregados familiares mudou desde lá. Dos 16 agregados familiares entrevistados, oito tiveram a sua primeira moradia urbana no quarteirão 21 antes de 1980.
Outros sete agregados familiares, que só se formaram depois, são parentes de pessoas
que moravam naquela época nestas mesmas casas. Normalmente, as mesmas famílias
continuam a viver nas casas, sendo que a composição dos membros altera-se muito ao
longo do tempo. Para as pessoas que vivem no meio rural, as habitações urbanas são
usadas como residências temporárias, antes de uma imigração permanente para a cidade,
ou como residência sazonal, para visitas de até vários meses. Uma outra dinâmica típica
que também se encontra no quarteirão 21 é a reemigração ou migração dos imigrantes
de primeira geração. Ao envelhecer, estes, ou retornam à terra de origem, ou seguem a
tendência da periurbanização nos arredores da cidade, onde há novos terrenos para a
construção.
A decisão de viver permanente ou temporariamente na cidade ou de retornar à terra de
origem depende fortemente das preferências específicas em cada etapa da vida (Clark
& Onaka 1983; de Haan 2000). À vida urbana, associa-se a uma vida profissional, a
independência e a juventude. Viver na zona rural significa dependência da assistência
material dos membros que vivem na cidade, agricultura para a subsistência ou produção
de carvão. Essa situação de dependência e sem possibilidades de consumo só são vistas
como adequadas para idosos ou crianças.
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Economia, Política e Desenvolvimento
Na descrição de Pedro20, isto fica claro:
“No campo não há nada, absolutamente nada. O que há lá é trabalho de agricultura
e de cortar árvores para fazer carvão. Mas isso não é nada para alguém da nossa
idade, isto, no máximo, é para as mães e pais de mais de 40 anos, mas não para
um jovem. E eu penso que mesmo árvores não há mais lá. Só há fome e falta de
trabalho; e para sobreviver tem só a agricultura” (Pedro, 19.06.2008).
A reemigração ou migração para o campo, no entanto, implica a existência de recursos
económicos. Para a reemigração, não é necessário ter recursos financeiros altos, mas
possuir, pelo menos, uma casa na terra de origem, mesmo depois de estar longos anos
ausente. Tal como descrito anteriormente, legalmente, as mulheres não têm desvantagens. No entanto, muitas instituições tradicionais continuam a desfavorecer as mulheres
nos casos em que há separação do parceiro ou morte deste. Os agregados familiares do
quarteirão 21, que têm chefes de família masculinos com um emprego regular (embora
possa também ser informal) actualmente, têm planos de emigrar para a zona suburbana.
Aqueles que estão prestes a mudar-se, pensam que todos fariam o mesmo, se tivessem
o dinheiro suficiente e terreno para fazê-lo. Um aspecto que chama à atenção é que, dos
oito agregados familiares que já moravam no quarteirão 21 antes de 1980, sete deles têm
mulheres como chefes do agregado familiar. Se olharmos para a migração intra urbana
como indicação de mobilidade social, coloca-se a questão da igualdade de género no
acesso aos recursos materiais e financeiros. Destas sete mulheres, cinco ganham a sua
renda principal com o retalho informal, e as outras duas com serviços de varejo (como
tecer tranças, etc.), actividades exercidas perto das suas moradias (ver figura 1). Em geral, neste estudo de caso, há pessoas de dez agregados familiares a trabalhar no comércio
de retalho na Rua da Zambézia, em geral todas do sexo feminino, excepto um indivíduo.
O lucro não é alto. Porém, é uma fonte de rendimento regular, que permite às mulheres
combinar actividades produtivas e reprodutivas num só lugar. As redes sociais, em parte
ligadas à vizinhança e ao comércio, permitem uma gestão do serviço doméstico eficiente
e são uma garantia contra crises quotidianas.
Bairro Luís Cabral – Conflito de utilização numa área antiga de expansão da cidade
A segunda área de estudo está localizada no Bairro Luís Cabral, ao lado do maior cemitério municipal. Trata-se da área residencial mais antiga do bairro, que registou um aumento da imigração durante a década de 1950. O nome antigo do bairro é Chinhambanine,
o qual surgiu com os primeiros proprietários tradicionais, que vinham da Província de
Inhambane. Isto já indica que houve uma história de imigração etnicamente homogénea.
Como resultado das actividades económicas, antes da independência, o crescimento da
cidade ocorreu principalmente nos bairros do oeste da cidade, inclusive em Chinhambanine (Mendes 1979). O cemitério expandiu igualmente em direcção oeste. Para aumentar
o espaço do cemitério, já tinham sido reassentadas famílias para outras partes do bairro,
muito antes da independência. Hoje a cidade está novamente a enfrentar o mesmo conflito de utilização de espaço. Sem qualquer muro, os túmulos ficam ao lado de moradias
familiares.
20- Os nomes foram alterados pela autora.
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Economia, Política e Desenvolvimento
Os moradores têm construído uma barreira para se protegerem do lixo criam uma fronteira com o cemitério.
Os primeiros moradores eram da Província de Inhambane, do grupo étnico Chope. Eles
decidiam sobre questões relativas à atribuição de terras aos novos moradores que também vinham de Inhambane. Por esta via, eles tornaram-se actores-chave para o desenvolvimento do assentamento até hoje relativamente homogéneo. Até ao presente momento,
a migração do campo para a cidade funciona através de parentes que oferecem uma
primeira acomodação aos recém-chegados. A relação dos familiares antes da chegada à
cidade é a instância de informação e de acesso mais importante para os recém-chegados.
Ela permite um posicionamento social, apesar da falta de acesso a recursos materiais e de
capital humano localmente especificado21. Até hoje, a identidade das pessoas do antigo
Chinhambanine é formada através da origem e da linguagem (Cruz e Silva 2000).
Devido à atribuição tradicional da terra sob o direito consuetudinário local e ao facto
de os edifícios não serem utilizados comercialmente, os edifícios em Luís Cabral nunca
foram nacionalizados. Assim, a posse de terra permaneceu nas famílias, afirmando as hierarquias já existentes. Apesar desta estabilidade, semelhante ao caso de Minkadjuine, a
dinâmica dentro das parcelas é considerável. Com o decorrer do tempo, foram construídos mais edifícios ou então expandidas as habitações existentes para oferecer espaço
aos membros da família. Isto resultou, como na maioria dos bairros suburbanos, num
ordenamento territorial caótico e caminhos cada vez mais estreitos e sinuosos. Cada
parcela tem, quase sempre, vários edifícios com materiais de construção diferentes. Na
maioria dos casos, há um espaço aberto no centro, que é usado pelos diversos membros
da família alargada. Os edifícios não utilizados, temporária ou definitivamente, são alugados a pessoas de fora da família, na maior parte dos casos a pessoas solteiras ou a
famílias pequenas.
Figura 2: Área do estudo de caso no Bairro Luís Cabral. Esquerda: delimitação com o cemitério; direita: caminhos
estreitos
Fotos: Ute Ammering 2008
21- Este fenómeno de “migração corrente” é igual à migração circular, onde as pessoas oscilam entre a cidade e o campo,
conhecido também em outras cidades da África subsahariana (ver também Kothari 2002; Lohnert 2002; McDowell & de
Haan 1997)
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Economia, Política e Desenvolvimento
À semelhança de Minkadjuine, há também aqui agregados familiares que se preparam
para, a curto ou médio prazo, mudar para longe desta área de infraestruturas precárias.
A pretensão é de ir para assentamentos na periferia da cidade, onde se espera melhores
condições de vida. Devido à falta de espaço no cemitério e dada a necessidade da sua
expansão, o município pretende reassentar alguns agregados familiares. Em vários casos, os agregados familiares terão que deixar o espaço do futuro cemitério e receberão
um terreno parcelado e uma compensação monetária única que depende da qualidade
do edifício actual e do seu equipamento. A ideia básica é que os agregados familiares
possam construir uma casa de qualidade igual ao edifício actual com a soma atribuída
pelo município. Desde 2007, os moradores ouvem falar de tal reassentamento por meio
de fontes não oficiais, sem, contudo, terem informações completas sobre os prazos e o
decurso do reassentamento. Durante esses anos, era severamente proibida a construção
de novos edifícios ou a realização de alterações na área actual. Como estímulo, àqueles
que dispõem de recursos próprios, foi dada a possibilidade de procura e fixação informal
duma habitação alternativa. Quem não tenha optado por essa forma, foi forçado a uma
posição de espera, caracterizada por esperanças não confirmadas e inseguranças.
Bairro Hulene B – Habitação própria ao lado da lixeira
A terceira área de estudo está situada no bairro Hulene B e é a mais distante do centro da
cidade, localizando-se ao lado da única lixeira oficial de Maputo. O território do actual
bairro Hulene B pode ser considerado como um assentamento relativamente estável.
Em especial na década de 60, houve um aumento da densidade populacional, como
consequência do aumento da migração do campo para a cidade (Mendes 1979). A área
de estudo (quarteirão 68) foi povoada a partir dos meados dos anos 90. Trata-se de uma
área onde, antigamente, havia lagoas, sem qualquer habitação. A área era utilizada para a
actividade agrícola e pecuária. É nesta zona onde hoje em dia se situa a principal lixeira
da Cidade de Maputo. Devido à crescente demanda pelo espaço residencial, actualmente
existe apenas uma área (maior) para agricultura e uma zona de pouca procura, cheia de
fumo, odor e mosquitos e sem higiene, em volta da lixeira. Esta tornou-se uma área com
terrenos não planeados e dispersos. O acesso a estes terrenos ocorreu através dos seus
ex-proprietários, os quais venderam as suas terras a preços relativamente baixos, apesar
de, oficialmente, a terra não ser vendida.
Além do primeiro assentamento nos anos 90, a dinâmica interna incrementou com as
cheias de 2000 (veja figura 3). Depois de chuvas fortes na área, houve uma acumulação da água, pelo facto de esta região estar localizada numa bacia. Os agregados familiares cujos imóveis foram danificados pelas cheias, podiam solicitar um novo terreno no
município vizinho de Marracuene, ao norte da cidade. Contudo, esta possibilidade não
levou a que esta área não planeada ao lado da lixeira ficasse vaga. Alguns agregados familiares não se registaram para a concessão de um novo espaço por causa da insegurança
em termos das condições habitacionais num novo lugar. Devido à falta de um processamento oficial, os edifícios que ficaram vazios devido à deslocação permaneceram com
os antigos proprietários. Depois que a água foi retirada, ou eles próprios, ou os membros
da família voltaram para as casas. Caso ninguém da família precisasse do espaço, a casa
era vendida ou alugada para efeitos de angariação de dinheiro. A maioria dos agregados
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Economia, Política e Desenvolvimento
familiares que vivem actualmente no terreno são os primeiros moradores ou parentes
destes. Até hoje, a maioria dos edifícios não é registada como propriedade. Dos 36 agregados familiares entrevistados, só quatro vivem como inquilinos, os restantes 32 vivem
numa propriedade informal.
Figura 3: Esboço da área de estudo em Hulene B, quarteirão 68 e a área adjacente
Dado o facto de o assentamento ser bastante recente, é fácil compreender os motivos
que levam a que os agregados familiares se estabeleçam nesta área e que obrigam o
abandono da antiga residência. A grande maioria dos moradores do quarteirão 68 já
morava antes na cidade. Só seis agregados familiares migraram do campo para a cidade
na esperança de encontrar trabalho. Para os restantes, a principal razão para mudar-se
dentro da cidade era a necessidade de ter um espaço próprio onde não pudessem ter
conflitos com os familiares ou com os proprietários das antigas casas. O factor decisivo
para a escolha do novo local foi o preço baixo do terreno ou do edifício. Por outro lado,
as organizações humanitárias têm um papel importante no mercado imobiliário. Um
padre cristão aproveitou os preços acessíveis para construir uma habitação própria para
algumas famílias, embora não tenha sido registada. O trabalho na lixeira, com qual centenas de pessoas ganham a vida22, e o assentamento bastante evidente ao lado dela são
22- Segundo um parecer para um projecto de emprego no sector de resíduos sólidos, estimou-se que 700 a 1000 pessoas
trabalham informalmente na lixeira (Schenk & Murano 2004).
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Economia, Política e Desenvolvimento
ignorados pela administração municipal, sendo a responsabilidade social deixada para as
organizações religiosas de caridade. Elas contribuem para a satisfação das necessidades
básicas da população, através de várias creches, escolas e um hospital, uma vez que,
segundo as descrições dos entrevistados, é difícil ter acesso às instituições públicas, que
muitas vezes são conotadas com a corrupção.
Além da questão dos preços baixos, este espaço residencial também é economicamente
interessante, pois é um ponto de partida para o comércio e o serviço informal. O maior
mercado de Maputo, chamado Xiquelene, fica a uma distância acessível a pé ou de transportes semicolectivos. A Feira de Hulene, um outro centro de comércio importante, fica
muito mais perto. Mas, o que à partida é muito evidente é o factor económico da própria
lixeira. Embora apenas uma parte dos catadores e dos demais actores do negócio de
resíduos sólidos viva ao lado da lixeira, as actividades em torno do lixo, como a recolha
e separação do lixo são bastante intensas (veja figura 3). Para muitos agregados familiares a recolha, a separação, o armazenamento, a revenda dos materiais mais valiosos
por meio de intermediários, de confiança ou não, é a principal ou única fonte de renda.
Ao mesmo tempo, alguns catadores conseguem obter um benefício adicional através da
criação de porcos que são alimentados com os restos de comida encontrados na lixeira.
As autoridades municipais planificam a retirada da lixeira daquele local, facto que terá
várias implicações nas condições de vida das pessoas. Embora, os aspectos de carácter
técnico deste projecto tenham sido esclarecidos e as actividades de construção tenham
iniciado, a questão relativa ao impacto desta medida sobre os catadores não é abordada
nos planos das autoridades responsáveis. Pelo contrário, no novo aterro sanitário, não
será possível que os catadores tenham acesso ao espaço para realizar as suas actividades,
uma vez que foram tomadas todas as medidas tendentes a erradicar a recolha, sem que
se tenha pensado em alternativas. Há um pequeno projecto bem-sucedido que visa a formalização e protecção de catadores, que pode ser tomado como exemplo. Actualmente,
tal projecto transformou-se numa empresa independente para a limpeza e triagem de
plásticos. No entanto, para o novo aterro sanitário, não foram planeadas actividades deste
tipo. A cooperação de organizações governamentais internacionais e organizações nãogovernamentais tem sido bem-sucedida neste caso. Ao mesmo tempo, fica a impressão
de que certos sectores difíceis, tal como o tratamento dos catadores que trabalham por
conta própria e sem previdência, são deixados para organizações não-governamentais
(neste caso religiosas). No planeamento municipal, incluindo outros parceiros governamentais, eles não são considerados.
Morar no quotidiano e as expectativas das pessoas
O significado da moradia
Os três estudos de caso anteriormente apresentados exemplificam aspectos importantes
da situação de vida nos bairros suburbanos de Maputo, os quais estão relacionados com
a noção de habitação como capital. Para a população cuja fonte de rendimento é parcial
ou totalmente o trabalho por conta própria, a habitação tem um significado produtivo.
Ela pode ser uma loja de produtos de primeira necessidade, armazém para produtos co40
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Economia, Política e Desenvolvimento
merciais e pode também oferecer espaço para agricultura de pequena escala. De modo
específico, a dinâmica do número de pessoas que vivem juntas numa casa, ao longo do
tempo, possibilita a utilização económica a curto prazo da habitação através do aluguer.
Nas três áreas de estudo, encontram-se explicações formuladas localmente porque os
sujeitos envolvidos vivem justamente naquele lugar. O espaço ganha um significado especial através das actividades e das instituições que surgem a partir das relações sociais
entre as pessoas que vivem e trabalham no local. Em particular, este facto é notável nos
exemplos de Minkadjuine, quarteirão 21, e Hulene B, quarteirão 68, onde a habitação é
uma combinação entre a moradia e o local de trabalho, facto que é muito vantajoso para
custear as despesas. Apesar das condições para as actividades serem inseguras e insalubres (comércio informal sob condições anti-higiénicas e inseguras, recolha de lixo), elas
são uma contribuição importante para a sobrevivência dos agregados familiares com
poucos recursos. De modo específico, as mulheres aproveitam-se da possibilidade de
combinar actividades produtivas e reprodutivas num único local. Isto permite uma certa
independência, embora o trabalho reprodutivo “tipicamente” feminino não seja remunerado. No entanto, esta situação patriarcal diminui o potencial de desenvolvimento do
trabalho e da educação das mulheres em geral.
A habitação, como um importante local de encontro com outras pessoas, ou, pelo menos,
como ponto de partida para o estabelecimento de redes sociais, significa muito mais do
que somente o factor económico. Sem contacto com as outras pessoas não é possível
ter acesso à habitação na área urbana. Apenas a troca de informações dentro da família
alargada, bem como as ligações com os proprietários tradicionais e as autoridades locais
garantem um sucesso. As redes sociais, principalmente na vizinhança, são importantes
para garantir a sobrevivência diária e a troca de informações. Por outro lado, ligadas à
área residencial, as redes sociais entre pessoas que trabalham no mesmo sector são importantes. Este facto é perceptível, por exemplo, nos casos das vendedeiras do mercado,
em Minkadjuine, e das catadoras de lixo, em Hulene B, as quais necessitam das redes sociais para minimizar situações de stress. No entanto, pode observar-se que as pessoas investem mais no relacionamento com membros da família (alargada) que vive espalhada
na cidade ou no meio rural. As residências urbanas servem de moradias transitórias em
ocasiões especiais ou como primeira estadia ao instalar-se na cidade. Em contrapartida,
as residências no campo oferecem uma moradia transitória com melhores condições para
os membros da família urbana em certos casos (por exemplo, para o nascimento duma
criança ou depois duma separação). Em comparação com a cidade, há uma independência económica relativamente alta, devido à actividade da agricultura de subsistência. As
pessoas que vivem na cidade têm interesse em manter contacto com os parentes rurais
para trocar bens e para deixar os filhos com eles em determinadas fases.
A qualidade e o formato da habitação podem ter um efeito positivo para a função
económica e para os recursos sociais. A localização e as instalações na habitação influenciam directamente o espaço de tempo necessário para o trabalho produtivo e reprodutivo. Isto afecta a possibilidade de combinação de actividades reprodutivas com
actividades de geração de renda, facto que é de grande importância principalmente para
mulheres chefe de famílias.
Revista Científica Inter-Universitária
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Economia, Política e Desenvolvimento
A habitação como capital, incluindo as suas funções e os seus significados, é principalmente relacional. Ela possibilita transformar outras formas de capital entre si ou fortalecer outros tipos de capital. Tanto a selecção dos aspectos que deverão ser fortalecidos,
quanto os meios e as estratégias usadas estão sujeitos a atribuições, normas e regras
internalizadas individualmente no habitus e que se revelam no quotidiano. A migração
e a oscilação entre o campo e a cidade, bem como a migração intraurbana dependem
da avaliação socialmente aceite das oportunidades existentes. O estabelecimento numa
residência e a forma como as habitações são alternadas entre os membros da família alargada seguem padrões eficazes que também são sustentados por instituições. No contexto
da migração, cada indivíduo socorre-se das relações sociais e das atribuições feitas sobre
as diferentes zonas na cidade e no campo. Assim, as atribuições conferidas às diferentes
zonas são reproduzidas e o reconhecimento (poder simbólico) é consolidado. Ao invés
de investir tempo na educação, muitas mulheres (independentemente da localização da
sua moradia) ficam em casa e participam no trabalho produtivo e reprodutivo. Além
disto, muitas vezes, o crime no local residencial é mencionado como um argumento para
que meninas e mulheres não continuem na escola. Mas para as pessoas que não estão no
grupo etário (alunos que foram matriculados tarde ou que reingressaram na escola) há
um curso nocturno, um horário que, pelas convenções sociais, as mulheres não devem
estar expostas no espaço público – um facto que agrava a situação educacional feminina.
Desta maneira, o desequilíbrio de poder entre os géneros não é só devido à divergência
educacional, mas também devido a padrões de uso do espaço, sendo que ambos se reforçam mutuamente.
5.2 Mobilidade residencial como estratégia de gestão de adversidades ou como
ascensão social
Em todas as três áreas estudadas, há agregados familiares em processos de migração
intraurbana. Nos dois assentamentos estabelecidos, Minkadjuine, quarteirão 21, e Luís
Cabral, quarteirão 40, as pessoas que migram para os arredores da cidade esperam encontrar melhores condições de vida e mais espaço. Em Hulene B, quarteirão 68, vivem
principalmente pessoas que se mudaram para lá durante os últimos 15 anos e que antes
moravam na cidade ou até no mesmo bairro. Nas duas áreas pesquisadas, houve desastres
naturais, e os agregados familiares receberam compensações para os edifícios danificados em forma de terrenos em Marracuene (ao norte de Maputo) e de material de construção. Na outra área de estudo, há planos de um reassentamento num futuro próximo.
Para os próprios moradores, a avaliação da moradia depende de certos factores como o
material de construção, o tipo do assentamento, a situação jurídica, os custos (aluguer
ou propriedade), as instalações e o acesso às infraestruturas e à prestação de serviços
(saúde e educação), a localização ou a conexão ao transporte colectivo. Quanto à localização, a proximidade do lugar de emprego parece ser o factor decisivo para as pessoas
com poucos recursos financeiros. O acesso a uma habitação ‘melhor’ actualmente só é
possível para as pessoas com melhores recursos económicos e que não dependem de um
emprego perto do local de trabalho reprodutivo e que aceitam uma longa viagem até ao
local de trabalho.
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Economia, Política e Desenvolvimento
Figura 4: Factores da mobilidade residencial nas zonas suburbanas de Maputo e as expectativas duma habitação
‘boa’
Migração Intraurbana
voluntária
Factores Determinantes:
• Insatisfação com a qualidade da habitação
actual
• Falta de espaço
• Insegurança no direito à propriedade
• Preferência devido à etapa da vida
• Alteração na relação familiar
Espectativas:
Objectivos:
Expansão da base
individual de recursos
e das possibilidades
de acção
forçada
Capital simbólico
• Reconhecimento social devido a
localização “boa” da habitação
Capital humano
• Mais higiene
• Saúde
• Reassentamento pelo Conselho Municipal
• Perda da habitação devido a morte ou
separação do parceiro
• Dificuldades financeiras
• Necessidades próprias do proprietário
Capital social
• Redução de conflitos
• Proximidade com familiares
Coping strategy como
reacção à situações
de stress
Capital financeiro
• Econimização de
aluguer
• Redeção de
custos fixos
Capital humano
• Caminhos melhores
• Acesso à água
• Mais espaço, jardim
• Segurança devido
propriedade
• Construção com
blocos
• Electrecidade
Esboço: Ute Ammering 2008
Os factores da habitação e da mobilidade residencial mencionados nos estudos de caso
estão descritos na figura 4. Na experiência da autora, é possível dividir os factores que
dão origem à mobilidade residencial em dois grupos. O primeiro corresponde aos agregados familiares que se mudam voluntariamente, porque descobrem uma oportunidade
para melhorar os recursos e as possibilidades de acção. É o caso já descrito de agregados familiares cujos recursos financeiros lhes permitem investir numa nova habitação,
mesmo que, normalmente, a mudança leve anos devido a circunstâncias não previstas
ou a má avaliação de custos. As expectativas das pessoas são diversas. Elas abrangem o
alargamento do acesso às diversas formas de capital, para em seguida melhorar as possibilidades de acção (ver figura 4, lado direito). O segundo diz respeito aos agregados
familiares cuja mudança foi forçada em consequência dum factor de crise. Para estes
agregados familiares, a mudança é uma estratégia de emergência para garantir um “tecto
sobre a cabeça” e a própria sustentação. A mobilidade é uma estratégia de gestão de
adversidades para superar situações de crise, como a separação, a morte dum parente,
dificuldades financeiras ou a perda da habitação. A estratégia de gestão de adversidades
normalmente é para superar problemas a curto prazo, mas no caso da habitação também
tem um efeito a longo prazo (por exemplo, a redução do preço da renda ou a garantia de
possuir uma residência própria). No meio dos dois grupos estão aqueles casos em que os
agregados familiares são reassentados pelas autoridades municipais. Embora seja uma
migração forçada, os agregados familiares muitas vezes têm grandes expectativas de
melhorar a sua situação, devido às compensações prometidas (terreno num local atractivo e material novo para construção, ou um edifício já construído).
As expectativas e imaginações sobre a maneira de viver têm um papel importante, quer
na mobilidade voluntária, quer na forçada. Esperam-se capitais materiais e imateriais de
melhor qualidade e direitos da propriedade. As preferências habitacionais são aparentemente individuais. Na verdade, estão relacionadas com o poder simbólico da atribuição
social duma ‘boa’ moradia. Não é possível explicar racionalmente ou individualmente
as razões da preferência por uma casa “típica” de blocos, com terreno próprio e o facto
Revista Científica Inter-Universitária
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Economia, Política e Desenvolvimento
de os moradores aceitarem longas distâncias para o centro da cidade. Esta visão generalizada sobre uma ’boa’ moradia significa que dentro do seu próprio grupo social o reconhecimento e a pertença aumentam quando um indivíduo consegue obter uma moradia
destas. Estas visões e estratégias de acção influenciam a dinâmica de mobilidade e os
desafios a serem enfrentados pelo planeamento urbano.
Em geral, pode-se dizer que a migração intraurbana tem efeitos positivos e negativos
para os agregados familiares e para o desenvolvimento urbano como um todo. Embora muitos agregados familiares esperem melhorar a sua base de recursos mudando-se,
também há vários riscos. O sucesso ou fracasso depende dos recursos dos agregados
familiares, das instituições sociais e das estruturas formadas pela história e política. Isto
fica claro principalmente no sector jurídico, mas também na alteração da percepção de
certos conceitos, como “família” e “género”. Na apresentação dos três estudos de caso,
foi feita uma tentativa de demonstrar alguns destes factores externos (direito, mercado
imobiliário, contexto histórico) e de fazer uma ligação com as possibilidades de acção
dos moradores.
Perspectiva
Os problemas na provisão de espaço residencial e as inconsistências no mercado imobiliário informal e de terrenos são conhecidos e já foram descritos repetidamente por
vários autores (DINAPOT 2006; Jenkins 2001 a, b; Jenkins 2006; Oppenheimer & Raposo 2002). No entanto, só há poucas informações sobre as soluções tomadas por parte
dos políticos e da administração urbana. Um exemplo positivo sobre como lidar com
uma zona com carências é o do projecto abrangente de requalificação em Maxaquene. O
mesmo iniciou-se em 1976, logo após a independência e antes da guerra civil, mas nunca
foi alargado para outros bairros (DINAPOT 2006; Saevfors 1986).
As medidas tomadas na área da habitação nos últimos anos foram, ou reacções aos problemas actuais de planeamento, nomeadamente a necessidade de espaço para a construção de estradas, ou aos problemas relativos às outras infraestruturas públicas (ver figura 2, Bairro Luís Cabral), ou ainda às iniciativas de formalizar os títulos de uso da terra
e o melhoramento simultâneo das infraestruturas nos bairros suburbanos23. No primeiro
caso, alguns agregados familiares foram reassentados em terrenos parcelados em bairros
periféricos da cidade. No segundo caso, tenta-se ordenar as parcelas e ampliar os caminhos para os tornar novamente transitáveis, sem intervir nas relações de propriedade e
uso dos terrenos. Para resolver problemas de planeamento, essas duas abordagens são
combinadas. Os fundamentos jurídicos criados em relação à segurança de propriedade
foram apreciados pelo UN-Habitat (UN-Habitat 2008). No entanto, a implementação de
projectos de requalificação causa medo, receios e possivelmente desvantagens à população abrangida. Como a autora observou, entre outros, no caso do planeado reassentamento da população a ser retirada da proximidade do cemitério em Luís Cabral, uma
razão para estas inseguranças tem a ver com a política de informação do município.
23- Em 2007/08, teve início um projecto-piloto com este tipo de trabalho no Bairro da Mafalala, tendo-se expandido em
2008 para o Bairro de Chamanculo C.
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A população não tinha sido informada directamente sobre o destino, a data e o valor
da compensação. Como resultado, os abrangidos tinham expectativas, mas também receios, o que diminuiu a confiança na administração e agravou a situação de mobilidade
residencial informal, impedindo, desta forma, um planeamento do desenvolvimento da
cidade. A dinâmica local existente na construção e melhoramento de habitações não é reconhecida pelos planificadores e políticos. Assim, não se buscam soluções comuns e não
se tira proveito da vontade de alteração por parte da população. O que se observa aqui é
semelhante à análise de Gilbert (2002), segundo a qual a falta de conhecimento não é o
obstáculo para a resolução dos problemas habitacionais nas cidades do hemisfério sul:
“At root, therefore, the Third World housing problem is about politics and economics”
(Gilbert 2002, 261).
No âmbito do Plano de Estrutura, um projecto integrado no PROMAPUTO24, que foi
ratificado em Janeiro de 2009 (CMM 2009), há iniciativas sérias para resolver a questão
de zonas não planeadas e ocupadas informalmente. O Plano de Estrutura deve, em geral,
criar a base de planeamento para a futura densificação da área habitacional da cidade.
Um dos temas centrais é o dos assentamentos informais, para os quais até hoje não havia
um plano. No Plano de Estrutura está formulado, explicitamente, que a requalificação
dos bairros informais deve integrar todas as outras actividades do Plano de Estrutura.
A requalificação deve ser feita continuamente e cobrir todos os assentamentos informais. Um possível reassentamento pode só acontecer voluntariamente e em troca duma
compensação (CMM 2009). Mas apesar da afirmação do governo, segundo a qual se
preocupa com o assunto da habitação, ainda falta a sensibilidade e métodos adequados
na implementação. Não foram tiradas as conclusões certas das experiências negativas de
uma implementação de cima para baixo.
Só nos próximos anos poderá ser observado até que ponto estas novas abordagens do
Plano de Estrutura vão solucionar os problemas das comunidades desfavorecidas. Para
atender às diferentes situações a nível local e reduzir as inseguranças dos moradores, é
necessário reagir com base em abordagens multidimensionais, que integrem requisitos
técnicos de planeamento e levem a sério as diversas condições de vida dos moradores.
Conclusão
Face à redução da insegurança dos moradores, é necessário que os actores do planeamento urbano reduzam a disparidade de poder no acesso e uso da terra. Para isso, é
necessário reconhecer, de forma similar, os significados e as funções das habitações no
quotidiano das pessoas e também que a própria população pode comunicar e envolverse no desenvolvimento territorial da cidade. Por outro lado, a tomada de decisões do
município tem que se tornar mais transparente. A implementação requer uma abordagem baseada mais nas ciências sociais, que só é possível com a formação e o aumento
do número dos funcionários. A população abrangida não é envolvida desde o início no
planeamento, devido principalmente à falta da vontade política de transferir para a popu24- O programa Promaputo, incluindo o Plano de Estrutura, estão descritos detalhadamente no artigo de Anne Merklein.
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Economia, Política e Desenvolvimento
lação a responsabilidade e o domínio da realização dos projectos. Isso fica evidente na
falta de informação, tanto para a população como para os técnicos.
As decisões são tomadas à porta fechada e, no melhor dos cenários, tornadas públicas
somente no último momento.
Enquanto continuar a haver actores que influenciam o planeamento urbano para interesses de curto prazo e falta de informação para a população e para os actores envolvidos
na implementação dessas decisões, a criação duma administração eficiente e de soluções
adequadas ao sector da habitação será prejudicada.
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Economia, Política e Desenvolvimento
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Governação Urbana e Estratégias de Redução da Pobreza em
Maputo – exemplos do desenvolvimento actual
Anne Merklein25
Resumo
Com referência à abordagem da governação urbana, o
presente artigo analisa processos de decisões políticas e
o seu impacto na redução da pobreza em Maputo. Com
exemplos particulares, como a introdução do orçamento
participativo e o desenho do plano de estrutura, este artigo
mostra inovações nas estratégias do desenvolvimento urbano. Também serão apresentados os actores envolvidos e
o seu papel nos processos de tomada de decisão e tendências actuais decorrentes da governação urbana de Maputo.
Palavras-Chave: governação, participação, pobreza e cidadania.
25- Geógrafa, estudante e pesquisadora da Universidade Leopold-Franzens- em Innsbruck, Áustria – Instituto de Geografia.
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Introdução
Para a população pobre, a maneira como as cidades são regidas é crucial. As decisões de
carácter político podem, ou melhorar a situação da população, através, por exemplo, da
facilitação do acesso às infraestruturas, ou piorá-la, ao tomar medidas pouco adequadas
e repressivas. Ao longo dos anos, muitos países estabeleceram estruturas democráticas,
com particular destaque nas cidades. Nesse processo, os membros de todos os grupos
sociais receberam influências políticas. Os sistemas multipartidários, as eleições gerais
e locais e as revisões das constituições proporcionam novos direitos políticos. Contudo,
isto não significa, tal como é referido por alguns círculos, que a pobreza reduza necessariamente (Devas 2004, 32; Herrle et all. 2006).
A abertura política para a democracia, em muitos lugares, coincidiu com o início de uma
era capitalista. O poder governamental tornou-se limitado, a favor do mercado livre, quer
através da privatização, desregulamentação, parcerias público-privadas, quer através da
terceirização (Peck & Tickell 2002).
Tanto nas cidades africanas quanto noutras cidades da Ásia e da América Latina, o
número de actores envolvidos nos processos de tomada de decisão tem multiplicado. O
crescimento das necessidades urbanas tem deixado lacunas que hoje se tornam desafios
enfrentados maioritariamente por actores não eleitos, como são os casos das organizações não-governamentais (ONG, organizações da base comunitária ou empresas privadas (Herrle et all. 2006; Tostensen et al. 2001). Neste contexto, há cada vez mais referência ao conceito de governação, o qual integra a complexidade de decisões tomadas
e as estruturas diversificadas de fornecimento. A governação parece ser um assunto que
entrou na moda e que também se tornou popular na geografia (Gebhardt 2008). No que
diz respeito ao “desenvolvimento” e à redução da pobreza, há cada vez mais pessoas que
reclamam uma boa governação e a participação das organizações da sociedade civil. No
caso de Moçambique, este facto é perceptível nos documentos estratégicos importantes
do governo nacional e local, em especial de Maputo (República de Moçambique 2006;
Município de Maputo 2006). No entanto, a existência e a participação da sociedade civil
na tomada de decisões não significa necessariamente que os resultados se traduzam,
realmente, do ponto de vista da redução da pobreza (Rakodi 2004).
O presente texto está estruturado da maneira que a seguir se expõe. De início, será abordado, de forma detalhada, o conceito de análise da governação urbana. Será feita uma
recapitulação histórica dos diversos actores que participaram na governação urbana de
Maputo, incluindo as suas possibilidades em termos da capacidade de influenciar as
decisões políticas, para depois descrever as estratégias decorrentes de redução de pobreza em Moçambique e, em especial, em Maputo. O foco centrar-se-á nos processos de
desenvolvimento urbano de Maputo em curso. O Orçamento Participativo e o Plano de
Estrutura, ambos iniciados em 2008, são exemplos de como o Conselho Municipal procura novas formas participativas de governação, que serão analisadas tendo em vista o
seu impacto no domínio da redução da pobreza. Na conclusão, será feita uma avaliação
dos exemplos abordados.
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Economia, Política e Desenvolvimento
Governação urbana
A nível mundial, os factores políticos, económicos e históricos transformaram a constelação dos actores e os mecanismos de controlo das estruturas administrativas de muitas
cidades, incluindo Maputo. A análise das estruturas do governo (no sentido de government) já não é suficiente para examinar a diversidade dos actores e a sua interacção. Por
isso, para incluir o grande número dos actores estatais e não-estatais, bem como todos
os processos formais e informais através dos quais são discutidos e negociados os interesses e as interacções, recorre-se cada vez mais à análise da governação. Os dois conceitos (governo e governação) distinguem-se do seguinte modo: “Governance is clearly
distinguishable from government, which denotes the exercise of direction, authority and
control by the state. Governance pertains to the relations between the state and other
institutional spheres – between the government and governed” (Pieterse 2000 13).
No entanto, não há uma definição única do conceito de governação26, mesmo que haja
um consenso de que o termo engloba formas complexas e diversas de administração a
níveis diferentes (internacional, nacional, regional e urbano) (Gebhardt 2008; Pütz 2007;
Devas 2004). Mais especificamente para a área urbana, Coetzee (2003) descreve a “urban governance […] as the mechanism through which macro, urban, local and livelihood
systems converge and interact”.
No conceito da governação urbana, as relações informais são pelo menos tão importantes
quanto as formais. Segundo Devas (2004), as decisões e os processos nas cidades são
definidos principalmente por procedimentos informais, embora não sejam tomadas por
adversários iguais. Os actores diferem quanto à sua riqueza, à sua renda e ao seu poder
económico. Isto por sua vez influencia o poder político dos actores já influentes, de tal
modo que as hierarquias e as dependências já existentes se mantêm ou até se reforçam.
Na área da implementação política, a governação é muitas vezes usada duma forma normativa, no sentido de boa governação. Isto também se passa no âmbito da Global Campaign for Urban Governance da UN-Habitat (UN-Habitat 2002), onde o conceito apresenta uma gama de directrizes normativas, tais como sustentabilidade, subsidiariedade,
transparência e responsabilidade, engajamento cívico e cidadania, incluindo segurança.
A reivindicação pela boa governação tornou-se popular também no discurso político de
desenvolvimento, por exemplo, quando a distribuição de fundos dos doadores internacionais está condicionada ao desempenho de critérios da boa governação (Ziai 2003).
26- Uma possível definição, à qual se recorre muitas vezes na literatura alemã, é a definição da Fundação de Desenvolvimento e Paz (Stiftung Entwicklung und Frieden). Neste tipo de governação, define se como “o geral de todas as maneiras
de como os indivíduos e as instituições públicas e privadas regulam os seus assuntos comuns. [...] Este termo engloba,
tanto as instituições formais com o seu poder de implementação, quanto também as regulações informais entre pessoas e
instituições ou de interesse próprio” (Gettkant & Ellerbrock 1995, 4 – nota: tradução da autora).
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Figura 1: Actores da governação urbana de Maputo
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Fonte: Modificado a partir de Devas (2004, 25)
A governação e a pobreza são duas áreas que têm um papel importante nas agendas das
organizações internacionais de desenvolvimento, como também nos governos dos países
da América Latina, Ásia e África. Um grupo de cientistas britânicos (Devas 2004) conduziu uma investigação sobre as conexões entre a governação urbana e a pobreza urbana
na Ásia, América Latina e África. Um dos pontos de partida da referida investigação era
verificar como é que a situação dos indivíduos e dos agregados familiares pobres podia
mudar e quais os actores que têm influência nesse processo. A figura 1 representa um
diagrama esquemático dos grupos de actores relevantes num ambiente urbano. Trata-se
de uma adaptação de um esboço de Devas (2004), tendo sido aplicada para a constelação
de actores de Maputo e usado de forma diferenciada para este estudo de caso.
Os indivíduos e agregados familiares que vivem na pobreza estão organizados em grupos da sociedade civil, como ONG, organizações informais da base, partidos políticos,
grupos religiosos, sindicatos ou associações. Os indivíduos e agregados familiares pobres sobrevivem trabalhando no sector informal, quer seja por conta própria, quer seja
numa empresa “informal”. É difícil fazer uma delimitação clara das empresas, sejam
elas internacionais ou nacionais, formais com as empresas informais dado o carácter da
“formalidade” muito permeável. Em Maputo, os actores da sociedade civil e do sector
privado diversificaram-se nos últimos anos e ganharam mais importância na concepção
da governação urbana. Por parte do governo central, as delegações a nível nacional e
provincial influenciam parcialmente a governação urbana. Com a descentralização, o
governo autárquico tornou-se um actor importante, embora as responsabilidades da autarquia e do governo provincial não estejam definidas por completo e, por outro lado,
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Economia, Política e Desenvolvimento
seja difícil uma coabitação de ambos. Outros actores relevantes, que não podem ser
agregados directamente ao governo, mas que muitas vezes têm uma posição mediadora
entre o governo e a população, são as autoridades tradicionais, que, no caso de Maputo,
encontramos principalmente a nível dos bairros.
Na minha opinião, no caso de Maputo, a constelação do grupo de actores deve ser completada por outros actores. Os doadores internacionais têm em Moçambique, e em especial também em Maputo, um papel cada vez mais importante. Eles aparecem como
organizações de desenvolvimento governamentais ou como ONGs (inter) nacionais.
Consultores (inter)nacionais têm uma função consultiva e influente, já que eles elaboram
cada vez mais propostas de soluções para questões específicas.
Anotações sobre a metodologia
Em duas pesquisas de campo, foram realizadas entrevistas e conversas informais com
diversos actores dentre eles políticos e executivos do Conselho Municipal de Maputo,
do governo, cientistas e actores da sociedade civil, das ONGs e dos doadores internacionais através dos quais a autora obteve as primeiras impressões e os dados. As questões
centrais eram a pobreza, o combate à pobreza, as medidas políticas para a redução da
pobreza e os actores envolvidos neste processo. Foram efectuadas entrevistas semi-estruturadas abertas, que deviam oferecer a oportunidade de conhecer aspectos novos, não
descritos na literatura.
Este aspecto afigurou-se de extrema importância, sobretudo a nível do município. Muitas medidas que foram consideradas ou até já implementadas (como, por exemplo, o
Orçamento Participativo) até agora quase não foram descritas na literatura. Através do
acompanhamento e da observação dos novos processos e de participação (como no âmbito do Orçamento Participativo ou do desenho do Plano de Estrutura), a autora ganhou
conhecimentos valiosos.
Governação urbana em Maputo – uma recapitulação histórica
Olhando para os actores que estão envolvidos na tomada de decisões e nos processos
de planeamento, nota-se que eles se têm diversificado muito ao longo dos últimos anos.
Com a independência de Moçambique, em 1975, a maioria dos portugueses regressou
para a sua pátria. Para Maputo, isso significou uma perda de muitas pessoas qualificadas,
as quais eram necessárias para o funcionamento da cidade, e, como consequência, houve
uma crise de abastecimento (Grest 1995). Na sequência da introdução do governo de
transição, o partido Frelimo, que se tinha comprometido com o socialismo, fundou os
chamados grupos dinamizadores a nível dos bairros. Estes deviam ajudar a solucionar
os problemas crescentes na cidade, como a migração, o desemprego, a ocupação descontrolada de terra e os problemas de abastecimento. Os grupos dinamizadores mobilizavam os moradores urbanos para o trabalho voluntário, impediam a criação de mercados paralelos, através de brigadas de inspecção, e desempenharam um papel importante
nos meados dos anos 1980, na altura da muito controversa “operação produção”27. Ao
mesmo tempo, insistiu-se em que grande parte da população moçambicana participasse
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Economia, Política e Desenvolvimento
numa organização de massas, como a Organização da Mulher Moçambicana ou a Organização dos Trabalhadores de Moçambique (Grest 1995).
Em termos globais, a persistência da estrutura colonial foi marcante a nível de Maputo.
A direcção administrativa era apontada pelo governo e o governo central controlava o
governo local. A lógica do sistema colonial foi assumida e consolidada. O acesso aos
bairros privilegiados já não se limitava aos cidadãos europeus, mas iniciou-se uma nova
forma de segregação, que se definia através da proximidade às figuras importantes do
partido Frelimo (Grest 1995).
Na década de 1980, a população de Moçambique ficou vítima duma crescente crise nacional, que resultou da escalada da guerra civil, das calamidades naturais, como secas
e inundações, da queda da produção agrícola e da falta de recursos financeiros (Grest
1995). Nos meados de 1980, teve início uma reforma económica neoliberal, ligada aos
chamados programas de ajustamento estrutural, sob a orientação das instituições financeiras internacionais (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional). A economia
urbana foi reestruturada para a exportação e para atrair investimentos estrangeiros. Isto
resultou no facto de só um pequeno número de pessoas ser necessário para servir de
mão-de-obra da economia formal e uma grande proporção da população tentar sobreviver no sector informal. Segundo as estatísticas oficiais, o sector informal urbano cresce
anualmente entre 7 e 8%. Em 2003, uma proporção de 76% da população economicamente activa trabalhava no sector informal (ILO et al. 2006; Jenkins 2006).
As reformas jurídicas do início da década de 1990 e o Acordo de Paz de 1992 permitiram
o pluralismo político e a liberdade de reunião, tendo sido abolido o monopartidarismo
do Partido-Estado liderado pela Frelimo. A maioria das organizações de massas rompeu
a sua aliança com a Frelimo, e surgiram sindicatos independentes. Diferentes comunidades religiosas tornaram-se actores cada vez mais importantes na área de prestação
de serviços (Monteiro 1999, appud Lindell 2007). Também surgiram várias ONG nacionais e internacionais. Estas, muitas vezes, foram fortemente criticadas, pois a sua
legitimidade não é baseada nos membros, não têm presidentes eleitos, são organizadas
de “cima para baixo” e seguem principalmente programas estrangeiros (Negrão 2003).
Estas ONG são actores influentes, pois muitas vezes são financiadas pelo exterior e estão
numa situação económica melhor do que o próprio governo local (Monteiro 1999, apud
Lindell 2007).
Depois da privatização, da desregulamentação económica e das reformas jurídicas,
seguiram-se medidas de descentralização a partir do início da década de 1990. Representantes eleitos democraticamente a vários níveis devem trazer desenvolvimento
económico e social e incentivar a participação da população (Faria & Chichava 1999). A
criação das 33 autarquias em 1997, ampliada em 2008 para 43, desempenhou um papel
importante neste processo. Até às eleições provinciais, em 2009, as autarquias eram o
único nível administrativo abaixo do nacional em que a população podia eleger o seu
27- Na chamada “operação produção”, cerca de 50.000 moradores da cidade que eram considerados como “não-produtivos“ foram enviados para a Província de Niassa, onde deviam trabalhar na agricultura (Jenkins 2006, 116s).
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Economia, Política e Desenvolvimento
governo. Maputo é a maior autarquia e também é uma província. No pacote autárquico,
está definido que em cada cinco anos deve haver eleições municipais. Nelas são eleitos o
órgão legislativo, (a Assembleia Municipal), e o Presidente do Conselho Municipal, que
por sua vez aponta os vereadores. Em Maputo, até ao presente momento, ganhou sempre
um candidato da Frelimo com maioria absoluta28, o partido que também a nível nacional
sempre venceu com maioria relativa.
Estratégias nacionais de redução da pobreza
A estratégia nacional de redução da pobreza, PARPA, é um dos documentos centrais do
governo. A preparação, o planeamento e a avaliação do PARPA, bem como de outras
políticas nacionais cabem ao Ministério da Planificação e Desenvolvimento. Moçambique aderiu cedo à Estratégia de Redução da Pobreza (Poverty Reduction Strategy) e já
elaborou o segundo Plano de Acção de Redução da Pobreza (República de Moçambique
2006). O objectivo global deste plano é o de reduzir o número da população absolutamente pobre de 54% (2003) para 45% (2009). Se este objectivo foi realmente atingido,
saber-se-á nos resultados do Inquérito ao Orçamento das Famílias, antes chamado Inquérito ao Agregado Familiar, cujos resultados não foram publicados até ao presente
momento. Para alcançar o objectivo geral, bem como numerosos objectivos específicos,
o PARPA II está divido em três pilares, nomeadamente governação, capital humano e desenvolvimento económico. Por outro lado, foram definidas oito áreas transversais como
o género, HIV/SIDA, ambiente, segurança alimentar e nutrição, ciência e tecnologia,
desenvolvimento rural, calamidades, desminagem. Estes assuntos transversais devem
ser considerados em todos os sectores políticos. O PARPA II tem basicamente as mesmas prioridades comparativamente ao PARPA I, embora esteja centralizado na reforma
do sector de desenvolvimento rural. Os investimentos do orçamento global são feitos
em grande parte no sector de ensino geral e profissional, incluindo saúde e HIV/SIDA,
ambos com 18-19% do orçamento; seguindo-se estradas (nacionais), com 12-13% do
orçamento. Em comparação com o PARPA I, os gastos em estradas e abastecimento de
água aumentaram (Japan Bank for International Cooperation 2007).
As estratégias nacionais, como é o caso do PARPA, visam também o alcance dos objectivos estabelecidos internacionalmente. Os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio
(ODM) são os mais importantes e, no caso particular do PARPA, há uma ligação explícita entre os pilares e os ODM (República de Moçambique 2006). Nos seus esforços de
desenvolvimento, o governo moçambicano recebe apoios de doadores internacionais, os
quais se consubstanciam na liquidação de dívidas e no apoio orçamental. No total, mais
de metade do Orçamento do Estado é financiado pelo exterior. Uma parte dos doadores
juntou-se e formou o denominado Parceiros de Apoio Programático (Programme Aid
Partnership). Este grupo junta 19 países e organizações multilaterais, sendo a Áustria,
país que aderiu ao grupo em 2007, o membro mais jovem. Com base num procedimento
anual bastante complexo, é feita uma avaliação dos progressos e da implementação dos
objectivos de ambos os lados – do governo moçambicano e dos PAP.
28- Com uma afluência de 46,6% nas últimas eleições municipais (2008), o candidato da Frelimo ganhou com 85,5% dos
votos. Para a eleição da Assembleia Municipal participaram 47,6% da população, dos quais 83,3% votaram na Frelimo.
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Economia, Política e Desenvolvimento
Em coordenação com o governo moçambicano, a sociedade civil e os PAP, é realizado,
anualmente, um Observatório de Desenvolvimento (Ammering & Merklein 2010). Nesta ocasião, são avaliados o progresso dos objectivos preconizados no PARPA, no Plano
Económico e Social (que é o plano anual de implementação do PARPA) e em outros documentos estratégicos dos diversos sectores e províncias. Desde 2005 (em Maputo desde
2007), tem lugar um Observatório de Desenvolvimento Provincial similar ao nacional.
O problema, neste contexto, é a falta da institucionalização deste processo. As organizações da sociedade civil recebem informação sobre a data do observatório tardiamente e
não têm tempo suficiente para a elaboração de declarações sólidas e críticas. Além disso,
a qualidade da execução do observatório depende extremamente dos próprios líderes dos
governos provinciais (Gonçalves & Adalima 2009). Em especial, nos observatórios da
Província da Cidade de Maputo, foram levantadas certas questões, tendo a situação da
qualidade da educação sido central. No entanto, na base dos protocolos, as críticas da
sociedade civil não são muito profundas. O novo Guião de Orientação dos Observatórios
de Desenvolvimento (Ministério de Planificação e Desenvolvimento, s.d.) estabelece as
directrizes que devem garantir a uniformidade e a protecção de qualidade, tanto a nível
nacional, como a nível provincial.
Todos os ministérios são responsáveis pela implementação das estratégias definidas.
Contudo, existe um ministério que se destaca por ser responsável na ajuda aos mais vulneráveis. Trata-se do Ministério da Mulher e da Acção Social, o qual implementa vários
programas de apoio aos grupos mais vulneráveis, nomeadamente crianças, mulheres,
pessoas com deficiência, idosos, toxicodependentes, doentes crónicos, presos, refugiados e repatriados. A execução dos programas é altamente descentralizada e cerca de 80%
do orçamento é gerido a nível provincial. No entanto, os meios disponíveis para cada
província variam muito (entre 12 e 40 meticais per capita; para a Cidade de Maputo,
16 meticais para o ano 2009). No cálculo da transferência do dinheiro não há uma correlação entre o número da população e os indicadores de desenvolvimento (FDC29 &
UNICEF30 2008). No ano 2009, um total de 0,9% do Orçamento do Estado destinava-se
ao sector social. Em particular, no caso de Maputo, um estudo em torno de dois programas implementados pelo INAS (Instituto Nacional de Acção Social) diagnosticou que
os programas só atingem um pequeno número de pessoas. Por exemplo, o Projecto de
Geração de Rendimento registou 688 beneficiários entre 2005 e 2008, enquanto o Programa Benefício Social pelo Emprego teve 325 beneficiários no ano 2008. Para (Saide
2008), estes projectos não visam a satisfação das necessidades dos mais vulneráveis. Ao
mesmo tempo, também o Conselho Municipal de Maputo tem um pelouro que lida com
tarefas sociais e de saúde. Em algumas áreas, há uma colaboração (principalmente em
estudos, recolha de dados, celebrações), mas não há uma cooperação explícita entre as
instituições governamentais e municipais.
29- Fundação para Desenvolvimento da Comunidade.
30- United Nations Children’s Fund
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Revista Científica Inter-Universitária
Economia, Política e Desenvolvimento
O fenómeno específico da pobreza urbana quase não é mencionado, nem no PARPA,
nem noutros documentos estratégicos, dado o facto de que “as próprias políticas nacionais de combate à pobreza não são pensadas, muitas vezes, para o urbano, mas para o
rural” (entrevista com um colaborador do GDEI (Gabinete de Desenvolvimento Estratégico e Institucional). Os pontos onde as cidades são enfatizadas no PARPA referem-se
às medidas nos domínios de infra-estruturas, principalmente estradas e transportes, e à
requalificação de assentamentos informais (República de Moçambique 2006). Nos programas do Conselho Municipal, especialmente no PROMAPUTO (Programa de Desenvolvimento Municipal de Maputo), as estratégias nacionais desempenham um papel de
pouca relevância. No PROMAPUTO, não é feita uma referência às estratégias nacionais
e à cooperação com o governo central/provincial. Há apenas uma alusão às receitas
fiscais (Município de Maputo 2006). No entanto, as estratégias próprias dos diferentes
sectores (educação, saúde, infraestrutura, etc.) incluem obviamente as áreas urbanas. À
luz da legislação, as autarquias têm um conjunto de responsabilidades que devem ser
cumpridas. Neste conjunto de tarefas, inclui-se o planeamento urbano (República de
Moçambique 2007). O município encarrega-se do desenvolvimento urbano e da solução
de questões urbanas específicas. A seguir, apresenta-se uma visão pormenorizada deste
assunto.
Estratégias de desenvolvimento urbano em Maputo
O processo de descentralização e da criação das autarquias condicionou a transferência
de responsabilidades a este novo nível administrativo. De acordo com o pacote autárquico de 1997 e com a Lei dos Órgãos Locais do Estado (LOLE) de 2005, as responsabilidades formais das autarquias compreendem o uso da terra, licenciamento de construção
e habitação, serviços básicos de água e saneamento, estradas urbanas, gestão de resíduos sólidos, ambiente e segurança municipal (República de Moçambique 1997a). Até
aos anos 2010/11, a responsabilidade do município também deve abranger as escolas
primárias e cuidados de saúde primária (Alberta & Mahiquene 2007). Desde 1998, há
eleições municipais nas quais se elege o Presidente do Conselho Municipal, que, por sua
vez, nomeia os vereadores para os diversos pelouros. Tais pelouros, como se pode ver
no organigrama da figura 2, são ou regionais ou sectoriais, com directores responsáveis
por cada área. Para além disso, também há departamentos específicos, subordinados
directamente ao Presidente do Conselho Municipal, como, por exemplo, os da Polícia
Municipal, Jurídico, Desenvolvimento Estratégico e Institucional e também Relações
Públicas.
Revista Científica Inter-Universitária
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Economia, Política e Desenvolvimento
Figura 2: Organigrama do Conselho Municipal
Fonte: Município de Maputo 2008b, 9; Notícias 09.02.2009 (Modificado e actualizado)
A planificação estratégica de Maputo tem metas e objectivos a curto, médio e longo prazos (ver figura 3). Na legislatura de 2003-2008, Eneas Comiche elaborou pela primeira
vez um programa de desenvolvimento urbano (Programa de Desenvolvimento Municipal de Maputo). Trata-se de um programa amplo, de dez anos, que abrange todos os
sectores e visa um melhoramento da gestão da estrutura interna e dos serviços oferecidos
pelo Município. É a estratégia básica sobre a qual se baseiam quase todas as actividades
políticas e de planeamento ao nível do Município. Além do PROMAPUTO, há planos
directores de longo prazo, normalmente de dez anos, para áreas específicas, como, por
exemplo, o Plano da Estrutura Urbana e o Plano Director de Gestão de Resíduos Sólidos
Urbanos. O manifesto eleitoral é actualizado em plano quinquenal, o qual determina as
metas a serem alcançadas a médio prazo. A base financeira para a execução deste plano
assenta no Cenário Fiscal de Médio Prazo.
A curto prazo, há planos de actividades anuais e orçamentos anuais, os quais servem para
operacionalizar os objectivos de médio e longo prazos. Neles, são fixados os prazos e
definidas, detalhadamente, responsabilidades e custos.
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Revista Científica Inter-Universitária
Economia, Política e Desenvolvimento
Figura 3: Planeamento estratégico de Maputo
Fonte: Esboço de Anne Merklein (2010)
As receitas próprias do orçamento do Município são recolhidas através das taxas de
prestação de serviços e dos impostos sobre a propriedade. Os impostos, no entanto, são
insuficientes, pois apenas 10% das propriedades em Maputo paga imposto predial autárquico. Em Moçambique, até ao presente momento, nenhuma autarquia consegue recolher mais de 40% do seu próprio orçamento (UN-Habitat 2008).
A maior parte do orçamento autárquico provém do governo central31. Através do Fundo
de Compensação Autárquica, as autarquias recebem recursos financeiros para custear as
despesas correntes. Por outro lado, o Fundo de Investimento serve, como o nome diz,
para cobrir despesas relativas a investimentos (Hodges e Tibana 2004). Apesar de o orçamento nacional ter aumentado nos últimos cinco anos, o valor das transferências para as
autarquias não evoluiu na mesma proporção, embora as responsabilidades dos municípios tenham crescido nesse período (Canhanga 2009). Como consequência, as despesas
públicas nos municípios são muito pequenas. Em Maputo, a despesa pública per capita
é de 5 US$ por ano, um terço menos que a média subsahariana e só um quinzeavo da
média latino-americana e asiática (World Bank 2006).
Programa de Desenvolvimento Municipal de Maputo (PROMAPUTO)
O desenvolvimento político e de planeamento actual de Maputo está integrado no Programa de Desenvolvimento Municipal de Maputo designado PROMAPUTO. Trata-se
de um programa estratégico de dez anos e que define as metas do Conselho Municipal.
O objectivo geral é o reforço da capacidade institucional e financeira, de modo a aumentar a cobertura dos serviços municipais à população de Maputo (Município de Maputo
2006). Facto surpreendente é que no documento integral do PROMAPUTO não há referência alguma à palavra “pobreza”, embora, no discurso político geral, a luta contra a
pobreza seja omnipresente. A única vez que o referido documento faz referência à população pobre é ao definir as medidas para melhoria das infraestruturas, principalmente nos
bairros mais pobres (Município de Maputo 2006). Um objectivo a ser alcançado e que
é mencionado muitas vezes no PROMAPUTO está relacionado com os avanços na área
da governação. O termo não é definido, mas a partir do contexto fica claro que se refere
ao melhoramento dos processos institucionais e financeiros, incluindo o envolvimento
dos diversos actores.
31- Em 2007/08, teve início um projecto-piloto com este tipo de trabalho no Bairro da Mafalala, tendo-se expandido em
2008 para o Bairro de Chamanculo C.
Revista Científica Inter-Universitária
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Economia, Política e Desenvolvimento
Origem do PROMAPUTO
A base para a definição dos objectivos do PROMAPUTO tem origem no manifesto
eleitoral do último Presidente do Conselho Municipal, Eneas Comiche. Nele, são definidos onze objectivos, dentre os quais se destacam a criação de um Conselho Municipal reestruturado, descentralizado e responsável, baseado em participação pública; um
planeamento espacial adaptado, com melhoramento da infraestrutura e com habitação
digna; a luta contra a pobreza, a delinquência e a mendicidade, sendo um elemento central reiterado a luta contra a corrupção (Comiche 2003). Para especificar os objectivos
do PROMAPUTO, foram realizados alguns estudos, sendo o mais importante o Report
Card. Com a introdução do Report Card, em 2005, iniciou-se um inquérito anual sobre
a satisfação dos cidadãos a respeito da prestação de serviços e da infraestrutura urbana,
incluindo as prioridades para o seu melhoramento. Em 2007, destacou-se, em primeiro
lugar, a recolha dos resíduos sólidos, seguindo-se as estradas, o abastecimento de água
potável, a segurança no bairro e a iluminação pública (Métier 2008). Outros estudos
realizados visavam verificar a distribuição da pobreza na cidade, o capital humano da
administração municipal, o quadro financeiro e dos bens do município.
Na elaboração do PROMAPUTO, tomou-se em consideração a necessidade de o programa ser amplo e coerente, com a participação dos diferentes actores. Assim, foram
incorporados representantes de vários Ministérios (Ministério da Administração Estatal,
Ministério das Obras Públicas e Habitação), do governo provincial, de empresas estatais (incluindo a Electricidade de Moçambique, Caminhos de Ferro de Moçambique),
empresas privadas (incluindo Coca Cola, Moçambique Celular, Banco Internacional de
Moçambique), associações (Confederação das Associações Económicas de Moçambique, Associação Nacional dos Municípios de Moçambique, Associação dos Transportadores de Maputo), ONGs nacionais (incluindo União Geral das Cooperativas, Caritas
Moçambique, Cruz Vermelha, Fundação para Desenvolvimento da Comunidade), como
também doadores internacionais [incluindo GTZ (Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit), DANIDA (Danish International Development Agency), DFID (Department
for International Development)]. Estes actores deviam contribuir com sugestões para
melhorar a situação da cidade. Além disto, foram incluídos especialistas em matérias
específicas.
Para o financiamento das principais actividades foi possível negociar com grande esforço
um crédito do Banco Mundial . No entanto, isso exigia que o programa fosse subdividido
em duas fases. A primeira fase compreende o período de 2007-2010 e tem um orçamento
de 42 milhões US$. Deste valor, 30 milhões são disponibilizados pelo Banco Mundial.
O governo central previa um financiamento adicional, e as organizações internacionais
disponibilizaram apoio técnico e financeiro em áreas específicas (como, por exemplo,
a GTZ, na a área da gestão dos resíduos sólidos). Outros doadores estão envolvidos, e,
como consequência dos primeiros sucessos, há uma tendência para aumentar o apoio.
Após uma avaliação positiva da primeira fase, foi negociado o financiamento da segunda
fase num valor correspondente a 70 milhões US$. O Banco Mundial comprometeu-se
a assumir a maior parte (50 milhões US$), enquanto o governo municipal financiará,
através de receitas fiscais, 15 milhões US$, cabendo ao governo central os restantes
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Revista Científica Inter-Universitária
Economia, Política e Desenvolvimento
5 milhões US$.
O papel-chave na organização e execução do PROMAPUTO no Conselho Municipal é
desempenhado pelo GDEI (Gabinete de Desenvolvimento Estratégico e Institucional).
Nele, é feito o planeamento, a monitoria, a coordenação e a implementação das medidas.
Desta maneira, evitou-se, conscientemente, a criação de uma unidade exclusiva de execução de projectos típica para projectos do Banco Mundial, com o intuito de não criar
estruturas paralelas e de perder o pessoal competente após a cooperação como o Banco
Mundial, assegurando, deste modo, uma continuação sustentável do programa.
Estrutura do PROMAPUTO
Nos estudos feitos para a elaboração do PROMAPUTO, os quais visavam investigar as
causas subjacentes à fraca implementação dos planos políticos anteriores, foram sublinhados os seguintes pontos (Município de Maputo 2006):
•
•
•
Baixa preparação dos recursos humanos no Conselho Municipal para assumirem as responsabilidades inerentes às funções no Conselho: em 2005, só
1,5% dos 2500 funcionários do Conselho Municipal tinha um diploma universitário, e somente 7% tinha uma formação especializada (World Bank 2006).
Baixa qualidade dos sistemas de informação na organização.
Condições de base financeira extremamente desfavoráveis ao cumprimento
das tarefas de funcionamento e da necessidade de novos investimentos.
A figura 4 mostra os pilares do programa PROMAPUTO. Na primeira fase (2007-2010),
devem ser principalmente priorizadas as componentes A) e B). Com um melhoramento
da capacidade financeira e institucional, o Conselho Municipal deve assegurar a prestação de serviços a longo prazo. Ao mesmo tempo, foram determinados investimentos
prioritários no domínio das infraestruturas. Foram seleccionados para esta finalidade aspectos como a melhoria da gestão dos resíduos sólidos, do estado das vias prioritárias, a
semaforização, a iluminação pública, o saneamento e o controle da erosão nas áreas mais
vulneráveis (Município de Maputo 2006). Na segunda fase do PROMAPUTO (20102016) deverá ser aprofundado o desenvolvimento institucional e a gestão financeira,
havendo no entanto um crescimento de investimentos na infraestrutura e na prestação de
serviços. As pré-condições para a segunda fase são funcionários capacitados para este
fim e condições institucionais e financeiras que permitam a absorção de avultados investimentos sem riscos de sustentabilidade (Município de Maputo 2006).
Figura 4: As componentes do PROMAPUTO. Esboço: Anne Merklein (2010)
Revista Científica Inter-Universitária
63
Economia, Política e Desenvolvimento
Dois exemplos concretos de medidas tomadas no âmbito do PROMAPUTO estão descritos mais adiante. O enfoque concentra-se na participação de actores dentro de estruturas de governação e nos mecanismos de participação. O primeiro exemplo trata do
Orçamento Participativo, que deve incluir explicitamente os desejos da população e servir como base para a tomada de decisões sobre os investimentos municipais. O segundo
exemplo é o Plano de Estrutura, já há muito esperado.
Orçamento Participativo
O Orçamento Participativo (OP) é um instrumento de participação desenvolvido no Brasil. Este mecanismo é, hoje em dia, reconhecido e imitado mundialmente. O Orçamento
Participativo inclui a população na decisão do orçamento, para satisfazer melhor as necessidades e as expectativas dos moradores duma cidade.
No ano 2008, foi introduzido em Maputo o Orçamento Participativo, e é considerado
pelo governo municipal como uma estratégia de governação importante na contribuição
para a redução da pobreza33 Até agora, o Orçamento Participativo foi realizado somente
uma vez, não havendo uma rotina ou passos institucionalizados para o efeito. Foi a
primeira tentativa, realizada com algumas dificuldades, conforme se ilustra abaixo, e que
potencialmente no futuro será objecto de algumas alterações.
Origem do Orçamento Participativo
As experiências de outros municípios ou de outras organizações em Moçambique e no
Brasil (entre outros, Porto Alegre e Estado de São Paulo) que já tinham realizado um
Orçamento Participativo serviram como modelo. Em 2004, já houve uma tentativa de
realizar um OP em Maputo, que não teve muito sucesso e foi abandonado. No entanto,
podia-se recorrer a experiências úteis para o desenho do novo Orçamento Participativo,
o de 2008. Para a execução do Orçamento Participativo, o Conselho Municipal elaborou
documentos descrevendo a metodologia e a implementação. Estes documentos determinam os passos e as responsabilidades e devem facilitar o trabalho dos colaboradores
do Conselho Municipal (Município de Maputo 2008a, 2008b). Dentro da administração
municipal, houve um departamento ligado ao pelouro das finanças, responsável pela
implementação do Orçamento Participativo. Para um futuro Orçamento Participativo,
a organização do processo foi transferida para o Gabinete de Desenvolvimento Estratégico e Institucional, que tem a vantagem de ter muita experiência na coordenação dos
diversos pelouros.
O Orçamento Participativo
O processo de participação no Orçamento Participativo de 2008 servirá como exemplo
para descrever como este funciona no Município da Cidade de Maputo. Com a participação dos cidadãos, é tomada a decisão sobre os investimentos anuais do município.
33- Num seminário organizado pelo projecto UPISA, em Abril de 2009, o chefe de departamento do GDEI apresentou o
OP como sendo um dos métodos de governação mais importante na redução da pobreza.
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Revista Científica Inter-Universitária
Economia, Política e Desenvolvimento
Com base numa democracia directa, os cidadãos são capacitados a decidir sobre um
valor máximo de 15% do orçamento municipal (excluído o capital estrangeiro investido
no contexto do PROMAPUTO). Para o exercício do ano 2009, isso significava quase
43 milhões de Meticais para o OP. Este valor é distribuído aos sete distritos urbanos de
acordo com uma fórmula. Os critérios para esta fórmula tomam em conta o número da
população, a extensão da área do distrito, o grau de infraestrutura básica e, finalmente, o
factor do desempenho fiscal do distrito em relação ao ano anterior (Município de Maputo
2008a). Esta fórmula deve garantir que as zonas mais desfavorecidas recebam uma atenção especial e possam decidir sobre a maior parte dos fundos de investimento. Assim,
por exemplo, o Distrito 1 (centro) recebe menos que os outros todos, cerca de 3 milhões
de Meticais, enquanto para o Distrito 5 é disponibilizado o correspondente ao triplo
deste valor (quase 9,3 milhões de Meticais). O processo do Orçamento Participativo é
composto por várias etapas e tomadas de decisões a vários níveis do município. Sob a
orientação de um ou dois funcionários do departamento de execução do OP, o processo
de decisão inicia-se no nível mais “baixo”, nos bairros. Através de uma democracia directa, os moradores elegem dois delegados, os quais, juntamente como o secretário do
bairro, devem representar a lista de prioridades de investimento (três pontos) do bairro
a nível do distrito. Em 2008, participaram, no total, mais de 7.000 cidadãos neste nível,
tendo o número de participantes variado significantemente entre os bairros (somente 9
participantes do bairro Central B, no Distrito I, e 326 participantes no bairro Nkasssane,
na Catembe). O que chama atenção é que, nos bairros da chamada cidade de cimento
(ver artigo Ammering & Merklein 2010) e na ilha da Inhaca, participaram em média
menos pessoas. No total, 46,5% dos participantes eram mulheres, num cenário em que
as mulheres representam 51,3% da população de Maputo (INE 2009).
As propostas de investimento mais eleitas foram a renovação das estradas (eleita em 32
bairros), a expansão da iluminação pública, sendo que em alguns bairros esta prioridade
foi eleita juntamente com a introdução do sistema pré-pago de fornecimento de energia
(o chamado Credelec), e o abastecimento de água (25 bairros, quase metade elegeu a
abertura de poços).
No próximo passo, a nível dos distritos, são apresentadas as listas de prioridades de cada
bairro. Os delegados dos bairros elegem, juntamente com os secretários dos bairros, três
medidas que devem ser implementadas no distrito. Os funcionários do Conselho Municipal acompanham e coordenam o processo. Também esclarecem quais são os projectos
já planificados e garantidos pelo Conselho Municipal. Na escolha das três medidas, são
consideradas, principalmente, aquelas que trazem benefícios para vários bairros e que
não excedam os valores máximos calculados através da fórmula anteriormente descrita.
Para fazer o acompanhamento das prioridades do bairro ao nível da cidade, são eleitos
representantes. Os delegados elegem dois representantes das suas fileiras e os secretários
dos bairros elegem um representante.
Igual ao nível dos bairros, em todos os distritos, à excepção da ilha da Inhaca, foi eleita
como prioridade a construção de estradas. As outras questões mais citadas foram a energia (iluminação pública e o sistema de energia pré-pago - Credelec) e o abastecimento de
água. Provavelmente, a selecção destes pontos é intrínseca à metodologia, uma vez que
Revista Científica Inter-Universitária
65
Economia, Política e Desenvolvimento
são os aspectos que beneficiam facilmente um maior número de bairros.
O passo seguinte consiste na inspecção dos possíveis espaços de implementação das
medidas pelos representantes eleitos a nível distrital, pelos técnicos contratados pelo
distrito, bem como pelos técnicos do Conselho Municipal. Estes últimos fazem estudos
de viabilidade técnica e económica das medidas desejadas. Em seguida, prepara-se uma
matriz de custos, onde são integrados os aspectos socioeconómicos, como, por exemplo,
o número de beneficiários. A etapa seguinte é uma sessão plenária com o Presidente do
Conselho Municipal, os delegados distritais e os secretários de bairro, os dois últimos
eleitos como representantes dos distritos, os vereadores e os técnicos dos diferentes departamentos do Conselho Municipal que aprovam o OP (Município de Maputo, 2008a).
O último passo consiste na aprovação, pela Assembleia Municipal, do orçamento anual,
o qual inclui o OP, que constitui a base jurídica para a implementação das prioridades
do ano seguinte. O OP de 2008, com um total de 14 projectos (de entre os quais seis de
melhoria do sistema de abastecimento de água, dois de reabilitação de estradas), foi incluído no orçamento anual para 2009 e aprovado pela Assembleia Municipal.
Avaliação
Nas reuniões visitadas pela autora a nível dos bairros e dos distritos, foi possível observar que as medidas de investimento propostas foram pouco discutidas. As questões
relativas às medidas que trarão benefícios e à definição das pessoas que realmente são as
mais desfavorecidas foram colocadas apenas pelos funcionários do departamento de implementação do OP. O problema é que as propostas de investimento eleitas ao nível dos
distritos (principalmente por causa da construção de estradas) excederam massivamente
o quadro financeiro. A ideia inicial de construir um pequeno troço de estrada em cada
distrito foi posta de lado. Ao invés disso, decidiu-se estabelecer um valor monetário para
a construção de estradas e para financiar duas prioridades. Assim, o Distrito 2 recebeu
mais de metade do dinheiro destinado ao OP, para a reabilitação de dois troços de estrada. Todos os outros distritos (excepto o Distrito 1 e a Inhaca) tiveram menos recursos
disponíveis. A decisão de favorecer um determinado distrito deixou de ser compatível
com a ideia de criação de uma compensação para as zonas desfavorecidas e de melhoria do acesso aos recursos dos habitantes destas zonas. Tal decisão foi, possivelmente,
facilitada pelo fim do mandato do Presidente Eneas Comiche e também pelo facto de as
decisões terem sido tomadas às pressas. O passo da sessão plenária, no qual os delegados
e os secretários dos bairros deviam participar, foi ignorado, e o OP foi aprovado directamente pelo Conselho Municipal. Pelo que foi descrito à autora, a decisão foi polémica
e posta em questão principalmente pelos membros do departamento de execução do
OP. Por parte dos vereadores, no entanto, não houve engajamento: “Esse projecto [OP],
para lhe ser franco, é mais do presidente do que do próprio Conselho Municipal. Alguns
vereadores […] não se apropriaram do assunto” (entrevista com um membro do grupo
de execução do Orçamento Participativo).
Ao contrário da ideia original dum OP anual, o próximo OP tem previsão de início apenas em 2010. A razão disso é que, em primeiro lugar, os resultados da implementação
das primeiras medidas adoptadas devem tornar-se visíveis de modo a que o OP não perca
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Economia, Política e Desenvolvimento
a credibilidade. No entanto, parece questionável a razão por que este facto não foi considerado desde o início. Os técnicos que avaliam a viabilidade e os custos das medidas
propostas são incluídos numa fase tardia do processo decisório. Como resultado, não há
uma base sólida para a tomada de decisões, tal como foi observado na reunião distrital na Catembe. A falta de mecanismos fixos de controlo, por parte da sociedade civil,
(como uma sessão plenária obrigatória) faz com que as decisões pareçam ter um carácter
político e não resultado de um processo participativo por parte dos cidadãos.
O Plano de Estrutura
Um dos objectivos principais do PROMAPUTO é melhorar o uso da terra dentro da
cidade. Com a aprovação do Plano de Estrutura Urbana do Município de Maputo
(PEUMM) para dez anos pela Assembleia Municipal, criou-se a base de planeamento
para o efeito. Foi elaborado um plano normativo e directivo que define as orientações
necessárias para a reserva de terrenos para o desenvolvimento da cidade, para assegurar
a qualidade ambiental e para corrigir as desigualdades sociais no uso da terra actual
(Município de Maputo 2008c).
O actual plano director, de 1969, já não servia como base de planeamento para todas
as mudanças estruturais de uso da terra, principalmente no que se refere ao acesso às
terras e aos edifícios nacionalizados. A revisão do plano não havia acontecido porque,
após a fuga dos portugueses, não havia funcionários qualificados para estas funções de
planeamento urbano.
Durante o planeamento central, foi elaborado um Plano de Desenvolvimento Espacial
em 1985, que, no entanto, nunca foi aprovado. Com a criação das autarquias, houve um
novo impulso, e foi elaborado, em 1999, o Plano Director da Área Metropolitana de Maputo. Neste plano, foi considerada a região metropolitana como aquela que compreende
a área de Maputo, da Matola e dos distritos vizinhos de Marracuene, Boane e Matutuine.
Por se considerarem todas estas áreas vizinhas, tornou-se impossível a aprovação do
Plano Director de 1999 pela Assembleia Municipal de Maputo.
Actores e o processo de decisão
Ao contrário das previsões do Banco Mundial, a coordenação da elaboração do PEUMM
ficou nas mãos do Conselho Municipal. Por parte do Conselho Municipal, havia receios
quanto à abertura de um concurso público para a elaboração do PEUMM. Receava-se
que o concurso fosse ganho por urbanistas internacionais, altamente qualificados, mas
sem conhecimento da realidade moçambicana, que dificilmente poderiam realizar os
passos participativos fixados na lei. Em vez disso, fez-se um acordo com a Universidade
Eduardo Mondlane. A elaboração do plano foi conduzida pela Faculdade de Arquitectura
e Planeamento Físico, em especial pelo arquitecto José Forjaz, que também já estava
envolvido nos planos anteriores de ordenamento. Num gabinete técnico de elaboração,
cooperaram diversos especialistas de diferentes disciplinas, como geografia, sociologia, geologia, biologia, economia, arquitectura, planeamento urbano e desenvolvimento
urbano. Como primeiro passo, fez-se uma apreciação da situação actual para desenhar
Revista Científica Inter-Universitária
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Economia, Política e Desenvolvimento
cenários alternativos para os seguintes tópicos:
• Mobilidade e acessibilidade.
• Habitação e assentamentos informais.
• Centralidades urbanas.
• Água, drenagem e saneamento do meio.
• Economia local.
• Equipamento de utilidade pública.
• Verde urbano.
Ao mesmo tempo, foram criadas duas comissões no Conselho Municipal: uma executiva
e uma consultiva. A comissão executiva constituiu-se quase exclusivamente por membros do Conselho Municipal, nomeadamente vereadores, directores de departamentos
de diversos sectores, bem como um representante do gabinete técnico de elaboração do
PEUMM proveniente da Universidade Eduardo Mondlane. Através de reuniões semanais, o processo foi acompanhado e influenciado directamente.
Na comissão consultiva participaram todos os vereadores e representantes de diferentes
ministérios, nomeadamente Educação e Cultura, Agricultura e Meio Ambiente, incluindo representantes do governo provincial. Para além destas instituições, participaram
também peritos e personalidades importantes, tais como representantes de algumas
instituições, como Aeroportos de Moçambique, Caminhos de Ferro de Moçambique,
Electricidade de Moçambique e Águas de Moçambique, bem como representantes das
áreas vizinhas (Matola, Matutuine, Boane e Marracuene). Com este grande número de
actores envolvidos no processo, tencionava-se garantir um plano integral, sustentável e
implementável.
De acordo com a lei, organizou-se, logo no início do processo, uma audiência pública,
para a qual foram convidados todos os cidadãos e onde foram fornecidas informações
sobre os planos e os passos a seguir. Mais tarde, foram organizadas reuniões em todos
os distritos urbanos, com o objectivo de apresentar a situação actual identificada pelo
gabinete técnico de elaboração e para receber um feedback e correcções da população.
Um total de 750 pessoas participou nessas reuniões nos distritos. No final, houve mais
uma audiência pública a nível da cidade, onde os munícipes podiam expressar as suas
opiniões. Por parte do Conselho Municipal, as relações públicas foram importantes, tendo sido realizados, por exemplo, vários debates na televisão.
Os objectivos principais do Plano de Estrutura Urbana do Município de Maputo
A meta declarada do PEUMM é fornecer directrizes para o ordenamento do solo urbano
e corrigir os desvios e injustiças históricas que se reflectem na presente estrutura espacial (Município de Maputo 2008c). Para atingir este objectivo, foram identificados nove
pontos centrais, que devem ser seguidos no planeamento do solo urbano (Município de
Maputo 2008c):
1. Requalificação dos bairros informais.
Para melhorar a qualidade dos assentamentos em que vive cerca 3/4 da população e atin68
Revista Científica Inter-Universitária
Economia, Política e Desenvolvimento
gir os padrões estabelecidos internacionalmente, é necessário priorizar nas atribuições
orçamentais. Todas as acções devem ser integradas neste objectivo. Numa campanha
permanente e constante, as condições de vida dos moradores devem ser melhoradas.
Cada cidadão deve ter o direito de permanecer no seu bairro. Apenas em casos excepcionais e numa base voluntária, com compensação garantida é que os moradores podem
ser reassentados.
2. Melhoria da acessibilidade a todas as áreas e ao centro da cidade e das suas ligações
com a região e com os países vizinhos.
A qualidade e a capacidade dos diversos sistemas de movimento devem ser melhorados a fim de eliminar desigualdades.
3. Garantia do equilíbrio ecológico e da qualidade ambiental.
Entre outras coisas deverão ser estabelecidas áreas protegidas.
4. Criação de novos centros de actividades económicas e sociais, culturais, recreativas e
administrativas.
Com estes novos centros, a hegemonia da “Baixa” deve ser corrigida, no sentido
de uma descentralização e simplificação de acesso aos serviços essenciais.
5. Densificação da ocupação do espaço urbano de Maputo.
Assegurando os espaços verdes e as zonas utilizadas para agricultura, o restante
solo deve ser densificado e devem ser construídos edifícios residenciais plurifamiliares, devido ao espaço limitado. Assim, pode ser criado espaço residencial
para fazer face ao aumento da população, tornando os custos de infraestruturas
reduzidos.
6. Desenvolvimento das infraestruturas dos serviços urbanos.
O enfoque principal deve ser nas zonas até agora desfavorecidas.
7. Abertura de novas áreas urbanas estruturadas.
Devem ser abertas novas áreas que absorvam o aumento populacional, incluindo
as áreas reservadas à habitação social. Os custos dos novos talhões devem cobrir,
no mínimo, os custos de infraestruturas das áreas a reservar para a habitação social.
8. Promoção da construção da habitação social.
Na disponibilização de terrenos, deve-se garantir uma repartição percentual igual
entre as classes de rendimento médio das famílias, devendo ser posta à disposição
da população menos favorecida e marginalizada uma porção de aproximadamente
70% da área, a qual, dessa maneira, deve ser protegida da especulação.
9. Garantia da preservação das qualidades monumentais e do património cultural e
histórico que enriquecem e corporizam a memória colectiva da cidade.
Revista Científica Inter-Universitária
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Economia, Política e Desenvolvimento
Avaliação
Através dos objectivos do PEUMM (Plano de Estrutura Urbana do Município de Maputo), fica assegurado que o ordenamento do solo deve melhorar as condições de vida e
de habitação para os grupos sociais desfavorecidos. Isto foi feito de forma a que a população abrangida, pelo menos teoricamente, pudesse “participar”, embora tal participação
fosse limitada, numa auscultação. As questões ligadas às preferências habitacionais, os
possíveis significados da habitação e a habitação como capital (ver também Ammering
2010) foram excluídos do planeamento urbano. A participação dos cidadãos na elaboração do plano sempre foi enfatizada por parte do Conselho Municipal, mas as contribuições dos moradores “não eram muito significativas em termos de corrigir o plano,
mas era mais de saudação ao munícipe e também de apresentação de algumas preocupações” (entrevista a um colaborador do pelouro de Planeamento Urbano e Ambiente).
Neste contexto, a divulgação de informações para conquistar a aceitação da população
foi de grande importância. Este objectivo foi atingido, pelo menos no sentido de que os
media informaram sobre o processo. Na implementação de medidas de planeamento, a
falta de informação afigura-se fonte de confusão, tal como é o caso dos moradores do
Bairro Luís Cabral, ao lado do cemitério (ver Ammering 2010). As futuras decisões de
planeamento urbano, como os planos de pormenor, segundo a lei, devem acontecer após
uma auscultação da população (República de Moçambique 2007).
Deve-se ressaltar que o PEUMM tem um papel normativo. Os planos de pormenores,
que são vinculativos, que contêm decisões objectivas e que são mais conflituosos, estão
previstos para um futuro próximo. Aí, por exemplo, deve identificar-se a real densidade
populacional das áreas urbanizadas ou das zonas verdes, reservadas para a agricultura, e
que actualmente são habitadas informalmente. Para poder realizar as medidas onerosas
definidas no PEUMM, coopera-se cada vez mais com parceiros privados. Um exemplo
duma parceria público-privada é com o banco “Millenium-Bim”. O banco pretende financiar a construção de apartamentos no bairro de Zimpeto (onde deverá estar situada
uma nova “centralidade”), providenciando habitações para famílias de renda média e,
simultaneamente, oferecendo um produto financeiro denominado crédito de habitação
(Notícias 19.12.2008). A execução de acções similares, com o apoio de investidores
privados, para a população pobre parece questionável. A alternativa da construção de
habitação social dentro da actual estrutura do Fundo de Fomento de Habitação é pouco
provável, já que o Fundo é uma iniciativa pequena com pouco impacto, principalmente
por falta de recursos financeiros (Senda 19.06.2009)
Conclusão
Como foi possível observar, houve uma diversificação dos actores na governação de Maputo. Ao mesmo tempo, foram introduzidas novas estruturas de governação, as quais facilitam o acesso dos novos actores aos processos de tomada de decisão. Há várias razões
para isso. Devido à descentralização, houve uma transferência do poder político do nível
central para as autarquias. A situação jurídica, à luz da Constituição de 1990, permitiu a
emergência de actores da sociedade civil, que se envolveram cada vez mais nos proces70
Revista Científica Inter-Universitária
Economia, Política e Desenvolvimento
sos políticos. Tanto a nível nacional, como a nível urbano, a sociedade civil é mencionada nos documentos estratégicos de redução de pobreza (PARPA) ou de desenvolvimento
urbano (PROMAPUTO) como actor relevante para o alcance dos objectivos definidos.
Em casos específicos, a participação da sociedade civil é politicamente motivada (no
caso do OP) ou definida por lei (no caso do PEUMM). Especialmente na participação
que é motivada politicamente, há um perigo de ocorrência de uma certa arbitrariedade, já
que a concepção e a implementação dependem altamente da decisão de certas personalidades, como por exemplo do Presidente do Conselho Municipal. Em geral, as novas
formas de governação não garantem uma participação real. Nos casos exemplificados, o
papel da sociedade civil ou de cada cidadão, reduz-se à audição de suas expectativas e
suas preocupações. Um estudo iniciado por CIVICUS chega a um resultado semelhante.
Neste estudo, foi examinada, pela primeira vez, a situação actual das organizações da sociedade civil a nível nacional. A conclusão a que se chega é a de que “os moçambicanos
são frequentemente chamados a participar no exercício do seu direito de cidadania, mas,
na prática, o seu poder de influenciar políticas, decisões relevantes ou mesmo de poder
económico e político acaba por ser limitado” (CIVICUS& FDC2008).
Ao mesmo tempo ainda, coloca-se a seguinte a questão: Quem, da sociedade civil, realmente participa nos processos decisórios? As estruturas administrativas e de participação
em Maputo (como também em muitas outras partes do país) são influenciadas fortemente
pela Frelimo. Os participantes da oposição e representantes independentes dificilmente
têm acesso às estruturas rígidas. As estruturas de controlo por parte da sociedade civil,
por exemplo no OP, são pensadas dentro das estruturas da Frelimo. Assim, considera-se,
como uma possível alternativa, que futuramente os conselhos consultivos a nível dos
bairros possam iniciar e controlar o processo do OP. A escassez de recursos financeiros
na cidade exige uma diversificação do financiamento. As transferências do governo central são insuficientes para garantir os investimentos necessários. Por isso, o município
recorre, por um lado, ao apoio de actores internacionais (como o Banco Mundial) e, por
outro, a uma cooperação cada vez mais estreita com o sector privado. A parceria públicoprivada é o lema que tem cada vez mais importância para um planeamento urbano eficaz.
Também não se pode subestimar o papel informal que os actores privados têm ao serem
convidados para as etapas decisivas do planeamento urbano (como, por exemplo, na
elaboração do PROMAPUTO ou do PEUMM). Assim, por exemplo, presume-se que o
ex-Presidente do Conselho Municipal, Eneas Comiche não tenha sido o candidato nomeado pela Frelimo para as eleições de 2009 pelo facto de não satisfazer os interesses
privados e políticos de certos grupos.
Nos documentos estratégicos, a importância da governação é geralmente formulada normativamente, no sentido de “boa governação”, e visa satisfazer as normas e os valores
que permitam o cumprimento das condições usadas para a angariação de apoio financeiro da comunidade internacional (Ziai 2003). Segundo (Hanlon & de Renzio 2007),
o governo moçambicano cumpre as condições, uma vez que isto proporciona um enriquecimento pessoal dos líderes políticos através dos fluxos financeiros internacionais.
Os doadores “aceitam” isto e enfatizam a evolução positiva em curso no país. Moçambique continua a desempenhar o papel de modelo, que é muito necessário para a legitimação da cooperação dentro dos países doadores. Essa dependência mútua é intitulada
Revista Científica Inter-Universitária
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Economia, Política e Desenvolvimento
por Hanlon e de Renzio como “equilíbrio patológico” (Hanlon & de Renzio 2007). Em
outras palavras, Francisco & Matter (2007) argumentam que somente entre os doadores
internacionais e o governo moçambicano existe uma verdadeira parceria, e que os actores da sociedade civil só estão envolvidos marginalmente. Utilizando um sentido mais
neutro do termo governação, no sentido de forma de governação, Ziai argumenta que o
conceito tem que ser questionado fortemente (2003). O conceito de governação pode ser
visto como uma abordagem estratégica para alcançar uma “pacificação de lutas sociais,
despolitização de conflitos sociais, legitimação e preservação dum sistema liberal de
governação” (Ziai, 2003; tradução da autora). Tal se deve principalmente ao facto de as
vozes críticas em Moçambique, que poderiam questionar o trabalho do governo, serem
frágeis, o que pode significar que, através de conceitos da governação, como, por exemplo, a promoção da participação da sociedade civil, há uma legitimação e consolidação
das relações desiguais de poder.
No âmbito das estratégias nacionais e municipais de redução da pobreza, analisa-se a
pobreza e as condições de vida de forma altamente quantitativa. A implementação das
estratégias é principalmente nas áreas de infraestruturas e da prestação de serviços. A
pobreza é vista como um problema que deve ser superado. Nisto vê-se ”the poor as
the problem, positioned in abstraction from the rich, as though the causes, dynamics
and consequences of their poverty take place outside of structural inequalities“ (Kothari
2007). Algumas ideias possíveis e questões emergentes no caso de Moçambique foram
apresentadas em 2009, numa conferência do Instituto de Estudos Sociais e Económicos,
um instituto de pesquisa no qual participam cientistas moçambicanos de grande reputação. O tema desta conferência foi “Dinâmicas da pobreza e padrões de acumulação
económica em Moçambique”. Durante as palestras (ver entre outros Brito & Brouwer
2009, Forquilha 2009), foram questionadas as desigualdades estruturais que dividem a
sociedade moçambicana em ricos e pobres.
Resumidamente, quer a nível nacional, quer a nível municipal, o governo esforça-se em
introduzir novas estruturas de participação para um número maior de actores. Os mecanismos de participação devem apoiar o objectivo de redução da pobreza do governo. No
entanto, ficou claro, nos exemplos ilustrados, que a ampliação do número de actores não
é necessariamente suficiente para a redução da pobreza. As razões são diversas, como,
por exemplo, a selecção dos actores, os direitos de participação efectivos dos actores,
os interesses pessoais dos actores, etc. Os objectivos da participação e de diferentes
estratégias são muito bem desenhadas e visam resultados positivos para a população
pobre. Mas, para atingir estes resultados, é decisivos que todos actores interessados e,
principalmente, os actores do governo colaborem e trabalhem coerentemente e sinceramente no assunto. É de especial importância que uma participação seja mais do que uma
mera auscultação e que surjam mecanismos institucionalizados que incluam também o
controlo das actividades governamentais.
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Economia, Política e Desenvolvimento
Angoche: Por uma compreensão da derrota eleitoral da Renamo
nas eleições autárquicas de 2008
Domingos Manuel do Rosário34
Resumo
O dia 19 de Novembro de 2008, data da realização das
terceiras eleições municipais, marca o regresso do “status quo” na governação local em Moçambique. Esta data
constitui um revés político para a Renamo que, em 2003,
tinha marcado a história política do país ao infligir uma
primeira derrota eleitoral à Frelimo, nos municípios da
Beira, em Sofala, no centro do país35, e de Angoche, Ilha
de Moçambique e Nacala Porto36, municípios situados na
região costeira de Nampula, “habitat” de duas velhas elites
islâmico-crioulas e portuguesas. É nesta zona onde um
sentimento identitário diferente do das elites sulistas da
Frelimo, inteiramente modeladas segundo características
do colonialismo português urbano do século XX, nasceu.
Palavras-Chave: democratização, trajectórias políticas,
determinantes do voto, hegemonia, descentralização e
poder autárquico.
34- Doutor em Ciência Política e Professor Auxiliar e Chefe do Departamento de Ciência Política e Administração Pública da Universidade Eduardo Mondlane – Moçambique.
35- Em Marromeu, as eleições locais de 2003 produziram uma coabitação: a Renamo elegeu o Presidente do Conselho
Municipal, João Germano, com 50, 01 % dos votos e a Frelimo ganhou uma maioria relativa na Assembleia Municipal,
com 50,22% dos votos.
36- Para um estudo aprofundado da vitória da Renamo nos municípios da região costeira da Província de Nampula, vide:
D. M. do ROSÁRIO, Les mairies des “autres”: Une analyse politique, sócio-historique et culturelle des trajectoires locales. Les cas d’Angoche, de l’Île de Moçambique et de Nacala Porto, tese de Doutoramento em Ciência Política, Instituto
de Estudos Políticos de Bordeaux, Bordeaux, Abril 2009.
Revista Científica Inter-Universitária
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Economia, Política e Desenvolvimento
Introdução
Quando em Setembro de 1964, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) começava as suas operações militares em Chai (Cabo Delgado), dando início (oficial) à luta
anti-colonial para a libertação de “Moçambique”, em Angoche (ex-António Enes), um
partido político não reconhecido, constituído pelos “filhos da terra” pedia a independência do seu território (Sultanato de Angoche) da dominação colonial portuguesa37.
Este sentimento não cessou de se manifestar. Se um dos primeiros objectivos fixados
pela Frelimo após o início da luta anti-colonial era de penetrar em Angoche (berço do
Islão), ganhar a colaboração dos líderes muçulmanos locais e, assim, conquistar toda
a zona sul do distrito de Nampula38, esse objectivo só foi conseguido em Setembro de
1974 (dez anos depois), com a chegada do primeiro contingente militar de soldados da
Frelimo a António Enes39. Dirigido por Eduardo Nihia, o contingente foi enviado para
terminar com as manifestações violentas que afectavam a região costeira de Nampula
depois da assinatura dos acordos de Lusaka em Setembro de 1974.
Em resposta a estas manifestações “anti-revolucionárias”, no dia 19 de Dezembro de
1974, Armando Guebuza, então Ministro da Administração Interna, desloca-se às circunscrições de António Enes (Angoche), da Ilha de Moçambique, de Moma e de Murrupula. Nas reuniões que organiza em Angoche, acusa os líderes religiosos e a população
locais de serem “reaccionários”, de terem trabalhado e colaborado estreitamente com o
colonialismo português40.
Alguns meses depois, Samora Machel, no seu périplo pelo país (viagem triunfal), do
Rovuma ao Maputo, escala Angoche no dia 2 de Junho de 1975. Nas reuniões que organiza, as palavras de ordem eram o combate contra a religião, o racismo, o tribalismo, o
regionalismo, a superstição, a prostituição, a poligamia, a exploração, a mentalidade esclavagista e decadente herdada da dominação colonial. O Presidente insiste na necessidade de se ir trabalhar no campo, para cultivar a terra e produzir os alimentos, porque
no novo Moçambique não havia lugar para os preguiçosos, separatistas e confusionistas.
Lembremos que as sociedades costeiras do norte de Moçambique são constituídas por
marinheiros, pescadores e comerciantes.
Em 1978, aquando do ciclone “Angele”, que tinha devastado toda a zona costeira de
Nampula, Samora Machel volta a Angoche e produz um discurso anti-religioso e ataca o
Islão, que, segundo ele, propagava a ideia segundo a qual os danos materiais provocados
pelo ciclone tinham sido causados pela perseguição de que a religião era vítima.
37- SCCIM, Informação confidencial n° 32, ao Exmo Senhor Governador do distrito de Nampula, 8 de Agosto de 1964,
in Arquivo do Arquivo do Governo de Nampula (AGN).
38- SCCIM, Oficio n° 285/A/40 de 7 de Dezembro de 1966 do Governo do distrito de Moçambique, Nampula, 13 de
Dezembro 1967, in IANTT/SCCIM, n°413, Pasta 2, Caixa 413.
39- “A Voz da Revolução em António Enes: quando a política não serve os interesses dos povos, a arma antes de mais
nada está para destruir”, Tempo (Lourenço Marques), n° 214, 3 de Novembro de 1974: 6-7.
40- “Guebuza visita província de Nampula: no trabalho do campo está a riqueza da nação”, Notícias da Beira, n° 9046,
21 de Dezembro de 1974: 1 e 7.
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Economia, Política e Desenvolvimento
«Os supersticiosos diriam que é um castigo de Deus. Mas o que fizemos a
Deus para merecer este castigo? Talvez nosso pecado tenha sido conquistar
a liberdade, proclamar a independência e construir o Estado Moçambicano
[…]. Vocês acreditam que seja um castigo de Deus? Se ele nos castiga desta
forma aqui na terra, então qual será nosso castigo no céu? Destruir nossos cajueiros, nossos coqueiros que plantamos, […] que problema têm os
cajueiros e coqueiros contra Deus? Os cajueiros produzem a castanha de
caju que alimenta as fábricas […] e as fábricas dão emprego. Que fizemos
para merecer a destruição de nosso trabalho? Das matérias-primas de nossas fábricas? […]. Que devemos construir em primeiro lugar: as mesquitas
no lugar das fábricas? As mesquitas no lugar das escolas? […]. A primeira
coisa que devemos destruir, é a fome. E para conseguir, devemos produzir
o milho. […] Criar galinhas, criar patos, criar o p…, […] aliás, aqui me
parece que…o Porco é Deus, não é? Mas quando estão bêbados comem
o porco, […] vocês todos já comeram porco. Já comeram o porco… morreram? Ficaram doentes? Pelo contrário ficaram gordos e mais fortes […].
Podem dormir durante seis meses, um ano na mesquita, não haverá nenhum
milagre que vai resolver o problema da fome. Em uma semana vamos vos
encontrar fracos na mesquita, e vamos perguntar: o que se passa? […] É a
fome. […]. Nossa arma agora é a enxada. […] Primeiro a fome, depois teremos todos nós, pelo menos duas camisas, duas calças, um par de sapatos
para nos vestir no Domingo. Mas me parece que os muçulmanos se vestem
bem nas sextas-feiras, não sei. Quando é que se vestem bem? Na sextafeira? Porquê? Para ir rezar? Eu não rezo. Pedi várias vezes a Deus quando
era pequeno…quanto mais pedia, mais era oprimido. […] Deus dava mais
força ao colono para nos oprimir. […] Precisamos de enxadas para produzir
de forma a poder comprar seis lenços para nossas mulheres, seis capulanas,
seis vestidos, quatro pares de sapatos. […] Será que foi a mesquita que uniu
o povo de Moçambique? Será que foi a mesquita que educou o povo de
forma a se unir e se organizar? Foi a Mesquita? Foram os milagres? Onde
estão os milagres?»41
E falando da necessidade de as pessoas de Angoche se organizarem em aldeias comunais
para melhor receberem a ajuda das autoridades, Samora Machel declara:
«Devem viver juntos para facilitar a ajuda das autoridades […]. Será que
é possível? […]. É porque aqui no vosso distrito (Angoche) continuam a
viver como gazelas. Conhecem as gazelas? Vivem juntas ou dispersas? [...]
E vocês, como é que vivem? Será que podemos formar grupos de vigilância
para vigiar as gazelas ?»42
41- “Fazer do distrito mais destruído um exemplo de reconstrução: palavra de ordem do presidente Samora Machel à
população de Angoche”, Notícias da Beira, n°17817, 17 de Janeiro de 1979: 3.
42- Idem.
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Economia, Política e Desenvolvimento
Mistura de desprezo e de louvor: invés de falar com o povo, Samora Machel falava ao
povo, mandava fazer isto ou aquilo. Entrava numa relação de autoridade e retomava alguns dos instrumentos mais odiados do colonialismo. Segundo os dirigentes da Frelimo,
este procedimento justificava-se porque a religião tinha sido e continuava a ser uma ideologia anti-científica e baseada no obscurantismo. Por isso, ela era o «o ópio do povo»,
uma vez que não se podia conciliar com os conhecimentos científicos do mundo43.
Para os muçulmanos de Angoche, era inconcebível imaginar pessoas sem religião, pessoas que não tinham nenhum respeito formal por Deus, a quererem moralizar a sociedade. Segundo eles, o governo da Frelimo constituído depois da independência era um
governo de pagãos, que tinha dificuldades em fazer valer a sua natureza laica. Segundo
fontes locais, em Angoche, as rezas nas principais mesquitas44 evocavam com frequência
o sofrimento dos religiosos e do povo45.
Uma outra dimensão veio juntar-se a este sofrimento: a opressão entre os negros eles
mesmos, com a ideia de existência de “novos colonos”, desta vez vindos do sul do país.
O discurso de Samora Machel feito em 1976 no Inguri (Angoche) é revelador desta
situação:
“Eu passei daqui antes da independência, me parece que foi no dia 2 de
Junho de 1975 […] passei por todo o lado e depois fui até lá onde vocês
vivem. […] Como é que vocês chamam a vossa cidade? …Inguri…vi as
vossas casas e cheguei à conclusão que vocês não foram colonizados pelos
portugueses […], vocês são os cunhados de Kaúlza de Arriaga […], vocês
eram os cunhados de Kaúlza de Arriaga … são vocês que colonizaram os
portugueses, mas agora com a Frelimo tudo vai mudar.»46
Segundo A. R. da Conceição, para os muçulmanos desta região houve sempre e fatalmente, uma espécie de regresso do ciclo histórico. Essa visão serviu como detonador
para novos combates políticos47 e como catalizador da contestação silenciosa durante a
guerra civil a favor da Renamo contra o Estado-Frelimo.
Este artigo tem como objectivo mostrar, em primeiro lugar, até que ponto os factores de
ordem sócio-histórica e política, nomeadamente as relações tidas entre as populações e
elites locais com o Estado-Frelimo condicionaram, no âmbito da municipalização, uma
vitória eleitoral da Renamo nas eleições autárquicas de 2003. Em segundo lugar, explicar as causas da derrota eleitoral da Renamo, apenas cinco anos após a tomada do
43- “Causando Graves Prejuízos: “Angele” passou por Moçambique e atinge Madagáscar”, Notícias da Beira, n° 10573,
27 de Dezembro de 1978 : 1.
44- Em Angoche, cada família local importante (proveniente das Ilhas) tem a sua própria mesquita. Em 2006 existia uma
média de 3 mesquitas por cada Km2.
45- Entrevista com o Cheikh Jamal Rajabo, Adjunto do subdelegado do Conselho Islâmico de Moçambique em Angoche,
realizada no Inguri-Angoche no dia 19 de Outubro de 2006.
46- GOVERNO DA PROVÍNCIA de NAMPULA, Discurso de Sua Excelência o Presidente Samora Machel à População
de Angoche, Nampula, 16 Agosto de 1976, 10p, in AGN.
47- A. R. CONCEIÇÃO, Entre mer et terre. Situations identitaire des populations côtières du Nord Mozambicain (Cabo
Delgado): 1929-1979, Paris, Université de Paris VIII, 1999 : 179.
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Economia, Política e Desenvolvimento
poder no município de Angoche. Dito de outra forma, mostrar as acções e manobras
políticas e eleitorais empreendidas pelo Estado-Frelimo para recuperar, como dizia um
responsável da Frelimo, “uma cidade que estava sob gestão ruinosa e danosa por parte
de pessoas que não têm instrumentos para fazer política”48. Contudo, reduzir a vitória
eleitoral do Estado-Frelimo no município de Angoche a simples manobras políticas e
eleitorais seria ignorar todo um trabalho de mobilização e de reorganização operado por
Armando Guebuza desde a sua chegada à direcção do partido Frelimo. Com Guebuza,
uma atenção especial foi concedida às células de base e aos administradores de distrito,
que constituem historicamente um elo fundamental de controlo do território e da população. Inversamente, a Renamo, por um lado, mal organizada e mergulhada em conflitos
opondo facções internas no acesso e distribuição dos recursos económicos do município,
e, por outro lado, com uma estrutura sempre militarizada, ainda “não civilizada”, e com
um claro corte entre a direcção central e as suas bases, tinha grandes dificuldades em
apresentar uma alternativa credível, capaz de fazer face a um Estado-Frelimo no que diz
respeito à gestão municipal.
Eleições municipais de 2003: quem votou por quem?
Do ponto de vista político, as eleições locais de 19 de Novembro de 2003 confirmaram,
apesar da taxa de abstenção de 75,8449, a hegemonia do partido Frelimo em todo o território. Mas em Angoche, a Renamo conseguiu uma maioria na Assembleia Municipal e
elegeu o Presidente do Conselho Municipal.
Resultados das eleições Municipais de 2003 - Angoche
Eleitores Recenseados
44 242
Assembleia Municipal
Presidente do Conselho Municipal
Total de votos Expressos
14 574
Total de votos Expressos
14 532
% da abstenção
Partidos/G.Cidadãos
67, % da abstenção
06
Votos
obtidos
% Candidatos
GIDA
417 3, 03 Isidro Assane
PIMO
473
67,15
Votos
obtidos
%
837
6,12
3,44
Renamo
7 307
53, Alberto Omar
07
7 195
52, 60
Frelimo
5 572
40, J.
47 Constantino
5 646
41,28
13 678
100
Total
13 767
100 Total
Fonte : STAE. Eleições Autárquicas 2003, Maputo, Pandora Box, 2006.
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Economia, Política e Desenvolvimento
Mas por que é que as populações destas cidades se comportaram desta maneira? Os
resultados mostram a tomada de poder pela Renamo. Em Angoche, dos 31 assentos em
disputa na Assembleia Municipal, a Renamo ganha 17 contra 13 da Frelimo e 1 do Pimo.
A Renamo consegue assim tomar um poder que escapava às elites locais desde sempre.
Estas aproveitaram-se da descentralização para resolver problemas ancestrais nos seus
“territórios de pertença”. Um Cheikh de Angoche dizia a propósito: “o tempo de comer
da Frelimo já terminou, agora é nossa vez também de comer”50.
A formulação deste Cheikh levanta a questão do “xitique do governo” evocada por L.
Monnier. Segundo este autor, este modelo é útil para compreender as flutuações na fase
de transição que persistem em numerosos países. Para (Monnier 1993) o poder é um bem
simbólico que permite realizar grandes coisas quando o detemos, e deve ser igualmente
redistribuído de maneira a satisfazer todas as facções em jogo, permitindo aos regimes
dar uma perspectiva singular ao processo de democratização em curso. Neste sentido, a
democratização implica a redistribuição do poder político e os recursos económicos que
dele provêm. Segundo L. Monnier,
“A imagem do “xitique” traduz o rito de circulação de chefes de facções nas
posições de poder (cada um de sua vez) e refere-se à noção de equidade no
acesso ao poder e, a partir daí, à riqueza que permite juntar, que deve ser
igualmente redistribuída de modo a satisfazer todas as facções em jogo.”51
O “xitique” na gestão dos municípios de Angoche diz respeito por vezes aos patrões
políticos e seus clientes.
Mas será que a Renamo seria capaz de responder à grande esperança social dos seus
clientes, de cumprir com as promessas feitas durante a campanha eleitoral e partilhar o
“bolo”? Não seria ela vítima do seu próprio discurso, segundo o qual:
“Com a Renamo no poder, os habitantes de Angoche iriam recuperar o que
tinham perdido, […] iriam comer como antes, teriam emprego, e as suas
condições de vida melhorariam e a cidade de Angoche voltaria ao tempo
colonial, antes da chegada da Frelimo ao poder.”
Frelimo! Uma fraude engraçada
Apesar de detentora de um poder hegemónico, a Frelimo justifica a derrota eleitoral
no município de Angoche como sendo resultado da fraude orquestrada pela Renamo.
O primeiro secretário do partido Frelimo ao nível da província de Nampula explica,
durante a realização da terceira sessão ordinária do Comité Central do partido, que a derrota eleitoral tinha sido causada por dois tipos de factores.
50- A. Omar Mamudo, líder religioso, entrevista realizada em Muchelele no dia 10 de Agosto de 2007.
51- Idem.
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Economia, Política e Desenvolvimento
O primeiro de ordem interna, ligado à “anarquia de certos camaradas que não tinham suficientemente trabalhado para ajudar seus camaradas candidatos a ganhar as eleições”52.
Por exemplo, segundo o Jornal Domingo, nas mesas de voto situadas nos bairros onde
residem os funcionários do Estado, cuja maioria é próxima do partido Frelimo, por volta
das 12 horas, não havia mais votantes, enquanto, no Bairro de Inguri, muitos eleitores
encontravam-se ainda nas filas para votar 53 Foi o resultado dos conflitos e clivagens
internas no seio do partido Frelimo, provocadas pelo processo de escolha autoritária de
candidatos pelas instâncias centrais54. O segundo é de ordem externa. Em Angoche, a
vitória da Renamo tinha sido possível, não somente graças ao voto das populações oriundas dos postos administrativos de Sangage, Aube e Namaponda nas eleições municipais,
mas também devido à convocação de uma greve geral em que participaram os cerca de
1700 antigos trabalhadores da Companhia de Culturas de Angoche (CCA), o que impediu os eleitores da Frelimo de votarem55.
Se considerarmos válida a hipótese da fraude evocada pela Frelimo, a questão que se
coloca é de saber como é que num sistema de “poder dominante”, o Estado-Frelimo
não pôde impedir essa fraude? Por “Poder Dominante”, Carothers (2002) entende como
sendo um poder fundamentalmente caracterizado pela dificuldade de se distinguir o
Estado do partido no poder. Nesse sistema, o Estado, em tanto que fonte de recursos
financeiros, de empregos, de serviços de informação pública e com o controle que exerce sobre a Polícia, é gradualmente posto ao serviço do partido no poder56. De facto, a
Frelimo domina e monopoliza todas as instituições políticas e administrativas, incluindo
as comissões eleitorais a todos os níveis. Mas durante a campanha eleitoral, a Renamo e
o Grupo Independente de Desenvolvimento de Angoche (Gida) tinham afirmado que a
única forma que a Frelimo tinha para conservar o poder seria por intermédio da fraude.
Ora, os resultados eleitorais mostravam outra coisa, e a Frelimo acusava a Renamo de
ter organizado a fraude para chegar ao poder. Engraçada fraude, ainda mais porque as
razões da derrota eleitoral da Frelimo nesta região, se nos cingirmos apenas às mais
recentes, remontam à história local, à história das relações entre o partido Frelimo e as
elites locais e suas populações.
Por que votar na Renamo? Trajectórias sócio-políticas, religiosas e étnicas em Angoche
Para melhor compreender por que os habitantes de Angoche votaram a favor da Renamo nas eleições municipais de 2003 é necessário analisar as trajectórias sociopolíticas,
económicas, religiosas e étnicas locais.
52- “Nos municípios de Angoche, Ilha de Moçambique e Nacala Porto, Frelimo ainda com ressaca da derrota”, Savana,
n° 420, 4 de Dezembro de 2003 : 5.
53- “Bairro Inguri « tramou » Frelimo”, Domingo, n°1140, 23 de Novembro de 2003 : 5.
54- Sobre o peso exercido pelos órgãos centrais da Frelimo e da Renamo na indicação dos candidatos às eleições internas
para as eleições municipais de 1998 e de 2003, veja: D. M. ROSÁRIO, Les mairies des “autres”. Une analyse…, op.
cit.; WEIMER, B., « Abstaining from the 1998 local government elections in Mozambique: some hypotheses», Afrique
Politique, Paris, Karthala, 1999: 125-145
55- “Nos municípios de Angoche, Ilha de Moçambique…”, op. cit.
56- Idem; Sobre o regresso ao partido-Estado Frelimo, veja a carta pastoral dos padres católicos de Moçambique, <http//
oficina de sociologia.blogspot.com/2008/06/bispos-denunciam-partidarizaçao-do-Estado.html>, página visitada no dia
26 de Junho de 2008.
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Economia, Política e Desenvolvimento
A perseguição da religião e a exclusão das elites locais como determinantes do voto em
Angoche.
“Por causa das intimidações operadas por dirigentes e membros, nosso
partido criou inimigos na população de Angoche. Expliquei à população e
aos líderes locais que a Frelimo não é um partido divisionista, nem contra a
religião […]. Nos últimos actos eleitorais, os “angocheanos” votaram contra a Frelimo somente por vingança.”57
A citação acima do discurso da Ministra do Trabalho, Helena Taipo, deixa perceber que
as populações de Angoche operaram em todas as eleições um voto sanção contra um
Estado-Frelimo que não tinha boas relações com elas e com os seus líderes. Vimos acima
que logo que a Frelimo chegou ao poder se declarou “marxista- leninista” e implementou um conjunto de medidas para combater a religião. De facto, a segunda Conferência
Nacional do Departamento do Trabalho Ideológico declarou “que a religião era um obstáculo ao progresso do processo revolucionário” que “as actividades das organizações
religiosas eram nocivas” e que “a propaganda das igrejas era metafísica e idealista”58.
Ora, numa região como Angoche, de forte presença muçulmana desde os tempos do
Sultanato, a atitude e as acções da Frelimo provocaram tensões. Falando da política
da Frelimo em relação ao Islão durante os primeiros anos da Independência, o Cheikh
Hamisse Ibrahimo contou:
“Um dia, o secretário do grupo dinamizador do partido Frelimo em Inguri
chamou-nos a uma reunião: muita gente esteve presente. A questão principal era sobre a existência de Deus, e o orador era um homem vindo de Nampula para dirigir a reunião. Afirmava que muita gente, particularmente em
Angoche, estava errada em pensar que Deus tinha criado o universo […].
Dizia que Deus não existia e que toda a criação era resultado dum processo
de evolução de cerca de cinco milhões de anos. Dizia ainda que, a partir
daquele dia, toda a gente devia mudar de opinião em relação ao mundo, e
que não devíamos perder mais tempo, porque tinha sido a Frelimo a libertar
o país da dominação colonial e não Deus. Portanto, a “Frelimo era a entidade mais forte para a nossa vida”. Que para melhorar nossas condições
de vida não devíamos perder mais tempo com rezas inúteis para um Deus
que não existia […]. “Que o melhoramento de nossas condições de vida
dependia exclusivamente do nosso trabalho, e não seria nunca uma vontade
de Deus”. Todo o mundo ficou chocado com esse discurso, mas tínhamos
medo de desafiar o poder. Apesar de tudo, levantei a mão para pedir a palavra e critiquei duramente esse homem. Disse-lhe que se a Frelimo tinha
ganho a independência para matar o Islão, teria sido mais justo permanecer
sob a dominação colonial portuguesa.”59
57- “Em Nampula. Helena Taipo recebida com emoção”, Domingo, n° 1205, 20 de Fevereiro de 2005 : 5.
58- PARTIDO FRELIMO, II conferência nacional do trabalho Ideológico, Beira, 5 a 10 de Julho de 1978 : 102.
59- Cheikh Hamisse Ibrahimo, entrevista realizada no Inguri, no dia 22 de Outubro de 2006 ; entrevista com o Cheikh
Jamal Rajabo, Adjunto do subdelegado do Conselho Islâmico de Moçambique em Angoche, realizada no Inguri-Angoche
no dia 19 de Outubro de 2006.
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A crítica abrupta contra a religião tinha provocado a crítica contra a independência e
tinha criado na consciência das populações interrogações sobre a nova liberdade. A Frelimo queria, como observa F. Engels, “ criar ateus por decreto”60. O Cheikh continua:
“Tive o apoio da assistência, e, alguns minutos depois, o homem disse que
eu “era o tipo de pessoas que a Frelimo procurava educar, porque era um
“xiconhoca”, o inimigo do povo, porque tinha ousado e conseguido criar
agitação no seio das massas. Ele disse que sabia “que eu não estava sozinho, porque existia em Angoche muita gente como eu, que precisava de
ser curada pela Frelimo” […] A reunião terminou numa confusão total, e
uma semana mais tarde, o homem do grupo dinamizador local convocoume para a sede local do partido. No local, encontrei outros líderes religiosos
influentes e fomos conduzidos à Boila Namitoria61, num centro de educação
política e militar, onde permanecemos durante três meses, com o objectivo
de aprender a doutrina da Frelimo sobre o universo e onde fomos obrigados
a comer carne de porco.”62
Em Angoche, a perseguição religiosa e a tentativa de afirmação do materialismo continuaram com outras acções. O antigo régulo de Inguri, Chale Abdala, e o seu chefe do
Grupo, Abudo Mussa, contaram a sua experiência:
“Um dia, nas lições de educação política63, o professor falava do universo,
da natureza e de Deus. E para demonstrar que Deus não existia, chamou
dois estudantes ao quadro e ordenou ao primeiro para pedir pão a Deus. “
Deus, dê-me um pão”, disse o primeiro, que não teve resposta, e, portanto,
não teve o pão. O professor ordena ao segundo, para pedir pão à Frelimo:
“Frelimo, dê-me um pão”. E o professor, que era membro da Frelimo, deu
um pão ao segundo e disse: “vejam, a Frelimo é uma coisa real, enquanto
Deus é apenas uma imaginação de pessoas. A Frelimo existe, é forte e dá
de comer, mas Deus não existe. Vocês devem explicar isto que acabaram
de ver às vossas famílias e aos vossos pais ignorantes”. O procedimento
do professor chocou todos os alunos muçulmanos, cristãos e mesmo ateus
presentes na sala. E quando foram contar aos seus pais, estes últimos afirmaram que o novo governo da Frelimo estava a cometer o “Okufuru” e
iria, portanto, comparecer diante de Allah (no dia do Khiyamat ou do julgamento final).”64
60- F. ENGELS, Littérature d’émigrés sur la religion, 1874 : 144.
61- Posto administrativo do distrito de Angoche, local onde foi instalada a primeira escola interdistrital do partido, para o
Trabalho Ideológico. É uma escola que servia os distritos de Angoche, Moma, Mogincual e Mogovolas, com o objectivo
de “elevar os conhecimentos políticos e científicos dos operários e camponeses”. Nesta escola, os alunos estudavam a
origem do homem, as relações com a natureza e a unidade ideológica. Ver “ Angoche inaugurada escola interdistrital do
partido”, Notícias da Beira, n° 10701, 3 de Maio de 1979 : 1.
62- Hamisse Ibrahimo, entrevista citada..
63- Nessa época, as lições de educação política eram consideradas fundamentais como as de Matemática e Português,
ninguém devia faltar a essas aulas.
64- Entrevista colectiva com o régulo Chale Abdala, antigo chefe tradicional de Inguri, e seu antigo chefe do Grupo,
Abudo Mussa. Entrevista.
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A revolta e o descontentamento acumulados dos líderes religiosos locais e seus adeptos
em relação à política religiosa da Frelimo são, sem dúvida nenhuma, um dos factores
explicativos do voto. Aliás, como dizia o régulo e o seu chefe do grupo,
“Quando as mesmas pessoas que nos oprimiram há alguns anos atrás organizam cerimónias para nos enganar e depois pedir o nosso apoio para
convencer e mobilizar os nossos fiéis e as populações a votar neles, isso nos
incomoda. Não podemos nunca fazer tal coisa.”65
Por outro lado, a questão étnica e a marginalização da velha elite islamo-crioula, são outros factores evocados para explicar a hostilidade dos “angocheanos” contra a Frelimo.
Assim testemunha Estêvão Abudo, originário das Ilhas de Angoche:
“Nunca aparecemos como administradores de distritos no sul do país, mas,
para governar Angoche, nomearam desde 1975 muitos landins. Mesmo os
analfabetos do sul são administradores aqui em Angoche […]. Dos 17 directores das instituições do Estado existentes aqui, nenhum é Angocheano.
Mas o nível de estudos desses directores não é mais elevado que o de
muitos Angocheanos. Para nós, a Frelimo pertence aos landins […]. Existem administradores Changanes que vieram aqui nos humilhar, dizendo que
não pensávamos, que tínhamos cabeças de galinha e pernas finas, […] logo
compreendemos por que o administrador José Sidumo repetia várias vezes
que, como não tínhamos sido colonizados pelos portugueses, seríamos colonizados pela Frelimo […]. Depois da independência, a Frelimo assinou um
pacto com os Macuas do interior (Ampamela), nossos antigos escravos. São
esses que ocupam agora lugares importantes na administração. Tomaram o
poder. Por que é que não há um Koti no poder? Quando precisamos de um
administrador, vem do sul… um director para uma escola secundária mandam vir do interior.”66
As reivindicações destes angocheanos não são despidas de sentido. De acordo com Serra
(1996), é nas cidades e na costa, meios de cosmopolitismo, de mais intenso e rápido comércio de ideias e de culturas, que são mais facilmente contrastáveis padrões de socialização, níveis de sociabilidade, ritmos de cultura, capitais de participação no aparelho
de Estado, nas dinastias reinantes e, portanto, nas distribuições de prebendes, etc. Nas
cidades e na costa são mais visíveis e mais disputados os símbolos, os valores e os recursos da “boa vida” ou da “vida civilizada”, por outras palavras, as cedências étnicas
são necessariamente diferentes no campo e na cidade/costa. Mas as cidades podem ser
centros de intensa fermentação de rivalidades étnicas, se e quando estiverem em jogo
recursos de poder consideráveis (Serra 1996).
A tese da exclusão económica, do desemprego e da pobreza provocada pelo EstadoFrelimo é defendida por alguns angocheanos: Abel Reane, filho da terra, diz:
65- Idem
66- Estêvão Abudo, entrevista realizada no Parapato, dia 18 de Outubro 2006.
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“Com os Portugueses éramos considerados como gente. Olha nossas casas
no bairro de Inguri, foi o colono que construiu para nós. A Frelimo e os
Ampamela, quando chegaram em 1975, disseram que devíamos sair para ir
viver nas aldeias comunais e depois ficaram a ocupar as nossas casas […]
dormiram com nossas filhas. Aqui, quando sabem que você é Koti, você
é excluído. Estará sempre numa posição inferior em relação a um Ampamela.”67
E Abudo Amisse, acrescenta:
“O governo da Frelimo tem uma dívida para connosco. O colono tinha
deixado três fábricas de descasque da castanha de caju, uma de descasque
de arroz, três de sisal, três de pesca, o porto, três sectores de criação, etc
[…], mas a Frelimo fez desaparecer tudo isto. Nesta cidade de Angoche,
cerca de 564768 pessoas tinham trabalho. A comida que hoje só o Presidente
da República e os seus Ministros comem, nós já comíamos na época colonial […]. A Frelimo levou a castanha de caju que abastecia as fábricas daqui
para o sul69. As fábricas fecharam e isso provocou a miséria, a pobreza, o
desemprego, porque era a única actividade, depois de ter matado, com os
seus amigos soviéticos (Mosopesca) a indústria da pesca […]. Nós vemos a
Frelimo como um obstáculo ao desenvolvimento de Angoche. Se a Frelimo
não tomar conta daquilo que os portugueses nos haviam deixado, não haverá nunca paz com esse partido […]. A Frelimo nos mostrou que não nos
quer, mas nós também, não queremos a Frelimo.”70
A pobreza e a penúria em bens de consumo provocam uma conduta determinada. Quanto mais um regime consegue satisfazer as necessidades culturalmente e historicamente
condicionadas das massas, esse regime consegue produzir consensos. Dito de outra forma, uma gestão eficaz das massas depende do que Serra chama “composição orgânica do
político”71, quer dizer, uma gestão estatal que faz apelo sistemático à violência directa,
sem satisfazer as necessidades básicas das massas, deve esperar uma situação de anomia
social e de ruptura, e em consequência uma frustração tolerável ou intolerável72.
67- Abel Reane, entrevista realizada no bairro de Inguri, no dia 25 de Outubro de 2006.
68- Em 1974, antes da Independência, existiam em Angoche 3 fábricas de Descasque de Caju, nomeadamente a Antenes,
com 1826 trabalhadores, a Cajuca, com 1700, e a CCA, com 1021. A produção anual era de 75997 caixas de castanha e 15
toneladas de óleo alimentar. Existiam também 3 indústrias de pesca: a Promar, a Angopesca e a Impescal, cuja produção
mensal era de 60 toneladas de camarão. Havia também 3 Sectores de criação: CCA, Victor Rodrigues Pestana e Henriques Nunes Herdeiros, que empregavam 1100 trabalhadores. Ver ADMINISTRAÇÃO DO DISTRITO DE ANGOCHE,
Relatório 1975, 30 de Agosto de 1976, in AGN.
69- Os trabalhadores reivindicavam também a nomeação de um responsável local (Angocheano), porque estavam cansados de responsáveis vindos do sul. Ver Administração do Distrito de Angoche, Síntese do trabalho realizado na sequência
da greve dos trabalhadores da Caju de Moçambique de Angoche, 24 de Fevereiro de 1993, in AGN.
70- Abudo Amisse, entrevista realizada no bairro Puli, no dia 19 de Outubro de 2006; Ainca Mecusserima Chande, entrevista realizada no Inguri no dia 24 de Outubro de 2006 ; Madalena José Arão, entrevista realizada no Mossurire no dia 23
de Outubro de 2006 ; Alvaro Chale, entrevista realizada no Puli, no dia 21 de Outubro de 2006.
71- C. SERRA, De la gestion du corps à la gestion des mentalités en Zambézie, Mozambique (1890/1983). Rapports de
domination, conformisme et déviance politiques, thèse de doctorat en sociologie, EHESS, Paris, 1995 : 150.
72- Idem.
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O intolerável tinha sido provocado pela acção dos soldados da Frelimo, durante a guerra
civil, e pelo discurso do Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, logo depois do fim da guerra civil:
“Em 1992, depois do Acordo Geral de Paz, quando a Renamo ocupou
pela quinta vez a cidade de Angoche, o chefe do Estado Maior General
das forças Armadas disse que era necessário destruir Angoche e todos os
seus bandidos73 […] Nós também não queremos nada da Frelimo. Votamos
pela Renamo, porque, mesmo durante a guerra, a Renamo tinha ocupado 4
vezes a cidade mas nada destruiu […]. A última vez que ocuparam a cidade
antes dos acordos de paz de Roma, os militares da Renamo foram buscar o
homem que geria o gerador para restabelecer a luz na cidade e hastearam
uma bandeira Branca à entrada do Bairro Inguri para mostrar que estavam
em paz com a população. Foram os soldados da Frelimo que provocaram
a desordem […] disparavam e chamboqueavam toda gente nas ruas e nos
principais mercados da cidade. Arrombaram casas para roubar os bens da
população e agrediram mesmo o régulo […]. A última vez, quando tentavam recuperar a cidade, utilizaram muita violência e muitas pessoas perderam a vida quando tentavam atravessar o canal de Angoche em pequenas
canoas para se esconder nas ilhas.”74
Uma fonte oficial confirma esta situação:
“Existe um grupo de militares, incluindo oficiais, que não respeitam a população. Hoje, as populações de Angoche preferem os guerrilheiros da Renamo aos nossos militares. Na cidade de Angoche, estamos numa situação
de “terror”, cujos protagonistas são as Forças de Defesa e Segurança. A
população de Inguri pensa que o Governo está a violar os Acordos de Paz.
Os Soldados do governo estão a criar condições para a derrota eleitoral da
Frelimo.”75
Por outro lado, os abusos e as extorsões cometidos pelos milicianos e soldados da Frelimo durante a guerra civil figuravam entre os factores explicativos da dissidência das
populações:
73- Por bandidos, o Chefe do Estado Maior General, referia-se aos guerrilheiros da Renamo e à população de Angoche,
que os tinha acolhido durante 4 dias. Os militares da Academia Samora Machel, em Nampula, foram mobilizados para
libertar a cidade, mas, chegados ao local, a Renamo já tinha abandonado a cidade de Angoche, o que, contudo, não impediu os militares governamentais de bombardear a cidade.
74- António da Graça Semedo, Presidente da Assembleia Municipal de Angoche, entrevista realizada no Inguri, no dia 14
de Agosto de 2007 ; Amisse Phire, entrevista realizada no Muchelele, no dia 11 de Agosto de 2007.
75- GOVERNO DA PROVÍNCIA DE NAMPULA, Relatório sobre a Visita de Trabalho de Sua Excelência o Governador
da Província de Nampula ao Distrito de Angoche, Dezembro de 1992, 17p, in AGN.
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“Durante o período da guerra, Angoche estava sobrepovoado. As populações de todos os distritos vizinhos e das localidades de Sangage, Namaponda estavam aqui. As comunicações entre Angoche e Nampula estavam cortadas, e isso provocava uma penúria alimentar aguda […] Não havia nada
a comer. As pessoas morriam à fome. E para salvar as suas famílias da
fome, algumas pessoas arriscavam as suas vidas para ir a Nampula procurar
qualquer coisa para comer […] alguns foram mortos. Os que escapavam
e conseguiam chegar aqui com alguns quilos de farinha de milho, de arroz, de açúcar e outros produtos eram vítimas das milícias e dos soldados,
ali no quilómetro 13. Arrancavam tudo. Diziam que éramos cúmplices e
colaboradores dos “bandidos armados”, dos “candongueiros”. […], Uma
pessoa arriscava a sua vida para nada… corríamos o risco de ir a Nampula
comprar qualquer coisa para salvar os nossos filhos e as nossas famílias da
fome, mas depois eram as famílias das milícias e dos soldados da Frelimo
que comiam, enquanto os nossos filhos morriam à fome […]. Eles também
não tinham nada para comer, mas eles são o Estado. Eu nunca vi o Estado
roubar aos cidadãos.”76
Ora, quando um Estado é percebido como predador77, não só não reforça a “produção
na nação” como provoca reacções anti-estatais, que seguirão as linhas de mobilização
disponíveis, nomeadamente étnicas ou étnico-religiosas78.
O voto das populações de Angoche, cuja maioria é muçulmana, a favor da Renamo,
assim como a desconfiança em relação à Frelimo, encontraram a sua legitimidade nas
relações tidas com o Estado e no processo de marginalização do Islão, no período que
seguiu a independência. Isto não quer dizer que houve um voto muçulmano homogéneo
a favor da Renamo, mas sim um voto de certos segmentos da população, como resultado
de um longo processo histórico de conflitos sociais pelo controlo do poder e de recursos
de poder e de dominação. O voto de uns a favor da Frelimo e de outros a favor da Renamo resulta do facto de no Islão, a hierarquia não implicar necessariamente uma articulação funcional nem disciplinar, mas somente uma categorização de valores. A ausência
de uma subordinação hierárquica transforma cada dignitário muçulmano numa entidade
independente, o que obriga aos candidatos e partidos políticos a implementar estratégias
de sedução particular para conquistar cada dignitário e este por sua vez, os seus fiéis.
É possível uma política da Renamo num contexto de hegemonia política da Frelimo?
As eleições de Novembro de 2003 tinham transformado o poder simbólico que as elites
de Angoche detinham em verdadeiro poder político. Mas como é que a Renamo iria gerir
este município numa situação de hegemonia política da Frelimo, manifestada pelos seus
dirigentes?
76- Amisse Phiri, entrevista citada.
77- D. DARBON « L’État prédateur », Politique Africaine (Paris, Karthala), 39, 1990 : 37-45.
78- M. CAHEN, « Lutte armée d’émancipation anticoloniale ou mouvement de libération nationale ? Processus historique
et discours politique. Le cas des colonies portugaises et du Mozambique en particulier », Revue Historique (Paris-PUF),
315 (637), Janeiro 2006 : 113-138.
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“Nós começamos a preparar a vitória para as eleições municipais de 2008
logo que foram anunciados os resultados municipais de 2003 […] Hoje, nós
queremos consolidar nossa posição nos municípios sob gestão da Frelimo
e ganhar os que estão nas mãos da Renamo […] Em consequência vamos
fazer tudo para ganhar as eleições municipais de 2008, na Beira, em Marromeu, em Angoche, na Ilha de Moçambique e em Nacala Porto.”79
O discurso acima mostra que a Frelimo mal aceitava estar na oposição e que iria mobilizar todos os recursos à sua disposição, incluindo o Estado, para recuperar um poder que
tinha caído nas mãos dos “bandidos”.
A institucionalização e a gestão municipal da Renamo em Angoche
A institucionalização pode ser definida como sendo « o reconhecimento do carácter forçado e da legitimidade social de certas atribuições, aparelhos ou instâncias do governo,
que são supostas de exercer determinadas “funções” sociais ou políticas indispensáveis
: dirigir, elaborar regras, julgar sobre a validade das leis, impor respeito, etc. » (Lagriye
1993). Se considerarmos esta definição, podemos efectivamente considerar que a institucionalização supõe uma aceitação da ordem política proposta por um grande número de
grupos sociais que regem os seus comportamentos políticos e sociais no quadro proposto, segundo os critérios de identificação propostos (Darbon 1996). Assim vista, a institucionalização ultrapassa o quadro de interpretação estática e toma uma acepção dinâmica
que permite por vezes capturá-la como produto dum estado histórico de relações sociais,
e, se não como produto desse estado social, pelo menos como produto do quadro no
qual opera e estrutura acções e comportamentos (Huntington 1968). Ela nos permite
fazer uma interpretação em termos de trajectórias históricas do Estado, sublinhando os
mecanismos de reprodução e sobre a lógica da mudança das instituições (Thelen 2003).
Esta concepção é pertinente ainda mais, porque condicionantes estruturais, conjunturais
e relacionais contribuíram80 na implementação das políticas municipais da Renamo.
Após a vitória eleitoral, a Renamo se instala no município de Angoche. O seu objectivo
era mostrar que tinha uma política municipal “original”, cuja implementação serviria
de “espelho para uma futura governação nacional”81. E, para fazer esquecer a “má governação” da Frelimo caracterizada, desde 1975, pelo nepotismo, corrupção, anarquia
e exclusão de certos segmentos da população, a Renamo promete instalar uma “linha
telefónica aberta” para receber queixas, reclamações e sugestões dos habitantes82 sobre o funcionamento da administração municipal. O objectivo da Renamo era de tornar o Presidente do Conselho Municipal e respectiva Assembleia responsáveis perante
os cidadãos. Era uma tentativa de promover a “boa governação” pela descentralização
79- Entrevista com Filipe Paunde, Secretário Geral do Partido Frelimo, in http://www.jornalnoticias.co.mz/pls/notimoz/
getxml/contentx/255692, página visitada no dia 29 de Outubro de 2008.
80- T.L. KARL, « Dilemmas of Democratisation in Latin America » : 161-191, in D. RUSTOW & K. ERICKSON (eds.),
Comparative Political Dynamics, New York, Harper & Collins, 1991 : 165.
81- As eleições autárquicas de 2003 tiveram lugar um ano antes das eleições gerais de 2004. Ora, uma possível “boa governação” da Renamo iria dar a impressão de que ela podia governar o país duma forma diferente da Frelimo.
82- « Renamo terá linha aberta nos municípios », Notícias, 6 de Janeiro de 2004 : 3.
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política, ou seja, promover um conjunto de boas práticas visando a prevenção da tirania,
da anarquia, da corrupção, da instabilidade e da paralisia institucional (Henwood 2004).
O porta-voz da Renamo, Fernando Mazanga afirma a este propósito:
“Seremos imperdoáveis, não vamos admitir “brincadeiras”. Os funcionários, mesmo os Presidentes dos Conselhos Municipais que vão tentar roubar
o dinheiro público ou dos contribuintes locais colectado nos municípios
serão presos. Nossos municípios servirão de trampolim para uma futura
governação do país.”83
Ora, como podemos calcular, esta promoção da descentralização releva de um simples
slogan, ainda mais porque as instâncias descentralizadas não podem, de um dia para
outro, beneficiar de uma legitimidade política e fiscal suficientes que lhes permita recolher receitas locais necessárias para assegurar a viabilidade das suas colectividades. Por
outro lado, e sobretudo, o funcionamento quotidiano das instituições descentralizadas é
portador e produtor de oportunidades de desvios, de corrupção e de diferentes práticas
de desvios (Bako-Arifari e Laurent 1998).
De facto, num contexto de “municípios de penúria”, sem nenhuma base económica nem
fiscal e dependendo exclusivamente das subvenções do Estado ao nível central, a vontade e a capacidade da Renamo de produzir mudanças políticas, de desenvolver as suas
próprias competências políticas e de promover a “boa governação” dependiam completamente dos resultados das eleições gerais, legislativas e presidenciais de 2004. Estamos
perante uma dependência da periferia dos recursos do centro (Badie e Hermet 2001).
Assim, dois cenários seriam possíveis:
No primeiro caso, os eleitores ao nível nacional (presidenciais e legislativas), decepcionados pela governação da Frelimo, visto que as suas condições de vida não tinham
melhorado, iriam votar pela Renamo. Assim, a hipótese levantada por V. O Key, segundo
a qual os eleitores maximizam a sua função de utilidade eleitoral em relação à percepção
que têm das performances económicas recentes da equipa no governo, ou seja, a escolha
dos eleitores é mais baseada no cumprimento ou não das promessas passadas do que nas
propostas políticas futuras84, poderia observar-se para o caso de Moçambique. A possibilidade duma vitória eleitoral da Renamo nas eleições legislativas e presidenciais de
2004 não era uma possibilidade a excluir, ainda mais porque ela tinha conhecido uma
subida espectacular durante as eleições de 1999. De facto, a Renamo obteve 38,81% de
votos contra 48,54% da Frelimo. Afonso Dhlakama recolheu 47,71% de votos contra
52,29% de Joaquim Chissano. Do ponto de vista global, a Renamo registou um crescimento de 1,03% e conquista a província de Niassa, e Afonso Dhlakama progride em
14,81%, com a conquista dos votos dos candidatos que tinham participado nas eleições
de 1994 (13,80%), e arranca 1,01% de votos do candidato da Frelimo, Joaquim Chissano85.
83- “Renamo terá linha aberta…”, op. cit.; “Resultados das eleições ainda mexem”, Savana, n° 517, 5 de Dezembro de 2003:2.
84- V. O. KEY, The responsible electorate, Harvard, Harvard University Press, 1966: 189.
85- «Grande subida de Dhlakama», Notícias, 23 de Dezembro de 1999, in STAE, Recortes de Imprensa, Dezembro de 1999.
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No segundo caso, em que o partido Frelimo permaneceria no governo e continuaria detentor do poder político, económico e administrativo, decisivo para a governação local,
nenhum município da Renamo conseguiria, dentro do curto espaço de tempo que separava a tomada de poder ao nível local e as eleições nacionais, satisfazer as aspirações
do seu eleitorado. Armando Guebuza, então Secretário-Geral da Frelimo e candidato às
eleições presidenciais de 2004, dizia a propósito:
“A Renamo fez promessas impossíveis de realizar. Ela está agora a exercer
o poder municipal, ela vai compreender a complexidade de gerir a coisa
pública. […] Os eleitores que votaram pela Renamo nas eleições municipais de 2003 começam a arrepender-se, porque nada daquilo que lhes foi
prometido durante a campanha eleitoral, como emprego, abolição de taxas
de mercado, abastecimento de água potável, lhes está sendo concedido.”86
Os eleitores decepcionados com o partido/candidato escolhido podem chegar à conclusão
de que as mudanças operadas são inúteis, optando, nas eleições seguintes, pelo partido
que melhor conhecem. De facto, olhando para os resultados das últimas três eleições,
1999, 2003 e 2004, na cidade de Angoche, vemos bem que as populações da cidade votaram sempre na Renamo e seus candidatos. Mas observa-se também uma subida espectacular da Frelimo em 2004: de facto, a Frelimo obteve 39,43% de votos contra 41,61%
da Renamo. O candidato da Renamo, Afonso Dhlakama, obteve 45,86 contra 41,84 de
Guebuza. Da análise dos resultados, algumas perguntas se colocam: quais são os factores
que contribuíram para a subida espectacular da Frelimo? Qual foi o papel da abstenção
nesta mudança, sabendo-se que foi quase a mesma (cerca de 80%) nas eleições de 2003
e nas de 2004? Será que a gestão da Renamo foi tão má que fez mudar o comportamento
do seu eleitorado num ano apenas?
Uma resposta pode ser dada e é de tipo político e directamente ligada às eleições de
2004. De facto, a partir do momento em que a Renamo não conseguiu ganhar as eleições
presidenciais e legislativas de 2004, os municípios sob sua direcção foram submetidos a
uma forte pressão do Estado-Frelimo, que apesar de ter prometido uma oposição responsável, como dizia o secretário de mobilização e propaganda do partido Frelimo,
“Lá onde estaremos na oposição, é lógico que não vamos governar, mas
vamos somente deixar governar, se os interesses supremos do povo forem
respeitados […]. Os membros do nosso partido nas assembleias municipais
cujo poder está com a Renamo têm a responsabilidade de viabilizar o melhoramento das condições de vida dos habitantes.”87
Ora, segundo a Frelimo, os interesses supremos do povo não estavam a ser respeitados
pela Renamo, porque “ a situação dos municípios geridos por si era lamentável e não se
podia esperar grande coisa”88. Por essa razão, o Estado-Frelimo, através de uma super
86- “Que a Renamo saiba cumprir as suas promessas”, Notícias, 15 de Janeiro de 2004: 3.
87- “Nos municípios em que perdemos. Não vamos bloquear nenhuma governação”, Notícias, 23 de Dezembro de 2003 : 3.
88- “Nos 3 municípios de Nampula/Renamo desinforma”, Notícias, 9 de Março de 2004 : 3 ; “Munícipes de Angoche insatisfeitos com a edilidade”, Notícias, 23 de Agosto de 2004 : 4.
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tutela administrativa89, financeira e política, bloqueava a gestão da Renamo, “porque a
Frelimo tinha a responsabilidade histórica na direcção da nação Moçambicana”90. Assim, algumas medidas administrativas foram implementadas pelo Estado e as mais significativas foram:
- O encerramento da Estação de Rádio pertencente ao município de Angoche, alegadamente por ser ilegal e estar a servir os interesses particulares da Renamo;
- A transferência de toda a documentação administrativa e política da gestão municipal91
da Frelimo (1998-2003) para a sede do partido Frelimo ao nível local92, como se fosse o
fim da administração pública neste município. O antigo director de Apoio e Controlo do
Governo de Nampula dizia a respeito desta questão:
“Houve actos originados por emoção em certos municípios, como, por
exemplo, discórdias. Mas agora estamos a tentar organizar os arquivos e
outros documentos em todos os municípios de Nampula, de forma a garantir que os futuros gestores destes municípios encontrem toda a informação
necessária para prosseguir seu trabalho.”93
Em Angoche, a Delegação Distrital do INAS (Instituto Nacional da Acção Social), órgão
do Ministério da Acção Social, corta as pensões alimentares a 120 idosos que tinham participado em trabalhos voluntários de reparação de ruas, no quadro da vitória eleitoral da
Renamo nas eleições de 2003. As pensões foram cortadas porque, segundo a INAS, estes
idosos tinham demonstrado possuir ainda capacidade física para trabalhar. E porque,
como a Renamo tinha ganho o município, lhes iria dar emprego94.
A violação da Lei n° 11/99 sobre as finanças e património dos órgãos locais - o Conselho
Municipal de Angoche (Frelimo) continuava a fazer despesas (a última foi em 12 de
Janeiro) alguns dias antes da investidura da Renamo (Fevereiro 2004), colocando o município de Angoche numa situação de excessiva dívida em relação aos seus fornecedores.
Por exemplo, a quantia de 700 milhões de meticais que constituía superavit, segundo o
Relatório Balanço do primeiro mandato autárquico da Frelimo95, em Fevereiro, quando
a Renamo toma o poder, se tinha transformado em défice96.
89- “Ilha de Moçambique. Governo envia inspectores para averiguar desmandos”, Notícias, 9 de Fevereiro de 2005 : 3.
90- “Partido no poder promete oposição responsável”, Notícias, 16 de Fevereiro de 2004 : 3.
91- “A hora de despedida em Nampula, segundo a « Perdiz »: municípios conquistados pela Renamo a saque”, Savana, n° 522,
9 de Janeiro de 2004 : 2.
92- Para a consulta da documentação (actas e sínteses) do Conselho Municipal e da Assembleia Municipal, tive que ir às casas
particulares dos responsáveis da Frelimo.
93- “A Hora de despedida em Nampula…”, op. cit.
94- O delegado do INAS tinha enviado uma carta ao Presidente do Conselho Municipal, admitindo a possibilidade de retirar as
pensões alimentares concedidas aos idosos em razão da sua participação nos trabalhos da limpeza da cidade. Dizia que estas pessoas eram capazes de exercer actividades produtivas e, portanto, tinham mostrado que não precisavam mais da ajuda do governo.
Vide CONSELHO MUNICIPAL DE ANGOCHE, Acta da XXVII Sessão do Conselho Municipal de Angoche, 14 de Outubro
de 2004; “Somos cobaias neste processo”, Savana, n° 591, 6 de Maio de 2005: 12.
95- CONSELHO MUNICIPAL DE ANGOCHE, Relatório Balanço 1998-2003, Outubro de 2003, 31 p.
96- CONSELHO MUNICIPAL DA CIDADE DE ANGOCHE, Acta da reunião da visita dos deputados da Assembleia da
República ao Conselho Municipal da Cidade de Angoche, 17 de Fevereiro de 2004.
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As manobras perpetradas pelo Estado-Frelimo foram determinantes na forma como a
Renamo iria exercer o poder no município de Angoche. De facto, alguns meses depois da
sua investidura, eclodem conflitos opondo os membros do Conselho Municipal, Assembleia Municipal e simpatizantes. O ponto de discórdia residia na partilha e distribuição
do “bolo” e no cumprimento das promessas eleitorais, quando o candidato da Renamo
dizia:
“É sobre meu caminho que irão encontrar o que vocês perderam: vão comer
como antes, irão trabalhar, vamos reabrir as fábricas.”
A Renamo podia facilmente ser vítima do seu próprio discurso messiânico. A Renamo
tinha prometido, durante a campanha eleitoral aos habitantes de Angoche, que uma vez
ao poder iria resolver todos os problemas, nomeadamente o desemprego, que toda a
população iria trabalhar, e que as suas condições de vida melhorariam substancialmente.
Ora, o que se passava com a Renamo no poder em Angoche era o contrário: o desemprego progredia, os conflitos entre os membros e simpatizantes da Renamo capturados
pela rede do clientelismo e os excluídos se exacerbava.
Angoche: quando a tutela administrativa pesa sobre a gestão local
Em Angoche, a Renamo tenta criar postos de trabalho para satisfazer o seu eleitorado.
Substitui os directores das unidades administrativas autárquicas que tinham trabalhado
com a Frelimo97; rescinde os contratos de alguns funcionários que continuavam a trabalhar no município com contratos expirados98 e expulsa alguns, nomeadamente os cobradores de impostos, acusados de desvio de dinheiro das receitas cobradas nos mercados, e outros que, segundo a Renamo, confundiam a “política com a administração”99.
Estes últimos jogavam, segundo a Renamo, um duplo jogo, porque continuavam a servir
de espiões para a Frelimo na administração municipal da Renamo. O Presidente do Conselho Municipal de Angoche, numa reunião com os funcionários do município dizia:
“Vocês têm o direito de pedir transferências para não serem dirigidos por
“bandidos armados” […] notamos que aqui no município o problema é
com os supostos funcionários do Estado […] não impedimos aos membros de outros partidos de irem ao encontro de seus antigos dirigentes, ou
responsáveis de seus partidos […] mas se é para receber ordens no sentido
de inviabilizar o funcionamento dos órgãos municipais, não seremos toleráveis.”100
97- Angoche cessa as funções de 5 directores das unidades municipais autárquicas que tinham trabalhado com a Frelimo. CONSELHO MUNICIPAL DE ANGOCHE, Acta da V Sessão Ordinária da Assembleia Municipal, 1 de Março de 2004.
98- “O chefe da bancada da Frelimo na Assembleia Municipal lamenta os pré-avisos de rescisão dos contratos que os funcionários receberam do Conselho Municipal”, CONSELHO MUNICIPAL DE ANGOCHE, Acta da VI Sessão Ordinária da
Assembleia Municipal de Angoche, 24 de Março de 2005.
99- Os cobradores de impostos locais, Ana Zoana, Ancha Benedito, Muanacha Muquissirima, Johari Fonseca, Sónia
Mussa e Anlia Urembo, tinham sido acusados de ter desviado, entre 1 e 6 de Abril de 2004, cerca de 3 846 Mt. Josefina
Momade Nacir, Secretária do Presidente do Conselho Municipal, e Augusto Chiroque, chefe dos recursos humanos, eram
acusadas de falta de sigilo profissional. Eram acusados de fotocopiar sistematicamente documentos do município para
enviá-los ao Partido Frelimo.
100- CONSELHO MUNICIPAL DE ANGOCHE, Reunião dos funcionários com o Presidente do Conselho Municipal»,
Acta da III Sessão Ordinária do Conselho Municipal, 16 de Fevereiro de 2004.
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Mas as medidas aplicadas pelo Conselho Municipal de Angoche não surtiram os efeitos
desejados devido à intervenção imediata do Estado-Frelimo que, através do Ministério
da Administração Estatal, fez uso do poder de tutela administrativa e obrigou a administração municipal da Renamo a readmitir todos os funcionários que tinham sido expulsos.
Assim, a rede clientelista ao nível do município de Angoche era incapaz de integrar toda
a gente. Ela tinha apenas conseguido “capturar” certos notáveis com a sua integração na
estrutura do município, como, por exemplo, os pequenos funcionários, os vereadores nomeados pelo Presidente e os membros do Conselho Municipal escolhidos pelo partido.
O Presidente do Conselho Municipal de Angoche regozijava-se por estas nomeações da
seguinte maneira:
“Agora podemos falar de um verdadeiro poder local. […] As pessoas nomeadas para
ocupar os postos importantes na estrutura municipal são os “filhos da terra”, os Kotis.
Há uma ruptura com as antigas práticas da Frelimo. […] O poder está finalmente com os
seus “donos”, pessoas com legitimidade local.” 101
É verdade que os Kotis tinham recuperado o poder ao nível local, mas para os outros
notáveis e chefes locais, que não tinham sido integrados no município, esta situação era
intolerável, ainda mais porque eles tinham também votado pela Renamo, e mereciam
entrar na rede.
“Todos votamos, […] não temos dinheiro, morremos à fome, e ainda mais o Presidente
do Conselho Municipal é arrogante. Ele diz que não foi graças a nós que ganhou as
eleições, mas ao seu dinheiro, […] vamos ver se o dinheiro há-de ir às urnas para votar
nas próximas eleições autárquicas de 2008. […] Nossos filhos e nossas mães participaram na jornada de limpeza da cidade de Angoche para festejar a vitória eleitoral da
Renamo, mas agora que querem pessoas para trabalhar no município, foram buscar seus
amigos e familiares.”102
O mesmo se passava com os membros da Renamo na Assembleia Municipal, nomeadamente o Chefe da Bancada e o Presidente da Assembleia Municipal103, que reclamavam os mesmos benefícios concedidos ao Presidente do Conselho Municipal. A situação
vivida no município de Angoche é bem descrita por L. Monnier:
101- Alberto Omar, entrevista realizada no Puli, a 16 de Setembro de 2006.
102- Hibrahimo Hassane, entrevista realizada Inguri non dia 23 de Outubro de 2006.
103- O chefe do grupo político da Renamo na Assembleia Municipal era Mário Salimo, o candidato posicionado em primeiro lugar nas eleições internas da Renamo antes das municipais de 2003. O Presidente da Assembleia Municipal era António da Graça
Semedo, que tinha ficado em segundo lugar. Estes dois tinham trabalhado para a Renamo na clandestinidade durante o período
da guerra civil e tinham visto um recém-chegado Alberto Omar Assane tomar supostamente os seus lugares.
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“Há menos riqueza a adquirir e, por isso, a distribuir, porque a riqueza é
principalmente consumida ou redistribuída. Ela não é criadora de nova
riqueza. […] Face à penúria da redistribuição, assistimos a uma multiplicação de grupos e de facções que vêm exigir a sua parte do bolo. […] Logo
que o “xitique” é bloqueado e as suas regras sagradas violadas pelo presidente, […] é a expressão da crise […] É por isso que a massa cada vez mais
numerosa de excluídos vem ampliar o movimento que toma a forma duma
autêntica revolta de cadetes sociais” (Monnier 1993).
Estes descontentes sabotavam o desempenho do município, bloqueando a gestão do seu
próprio partido. É o resultado do conflito que tinha eclodido durante as eleições internas
no seio da Renamo e que tinha provocado, durante os primeiros anos da sua gestão, uma
espécie de paralisia institucional.
Angoche: paralisia institucional e conflito entre a Assembleia e o Conselho
Municipal Renamo
No sentido amplo do termo, a paralisia institucional é a incapacidade de o governo governar, ou a incapacidade de tomar decisões. Os três poderes que têm capacidade de tomar
decisões (o executivo, o judiciário e o legislativo) são, portanto, o lugar por excelência
de confrontação entre os partidos políticos e diferentes posições políticas pela produção
de normas. A paralisia institucional é o resultado da confrontação política quando existe
uma dispersão de recursos de poder entre actores radicalizados nas suas posições (Santos
1986).
Em Angoche, existiam três grupos de actores políticos em oposição radicalizada sobre o
tema da gestão municipal da Renamo.
O governo da Frelimo, que era detentor do poder político ao nível das unidades desconcentradas (administração do distrito de Angoche) e que exercia deliberadamente uma espécie de administração paralela por usurpação das competências atribuídas às unidades
descentralizadas (municípios), tais como a colecta de impostos e a gestão das fontes de
água existentes no território municipal104;
A “Renamo 1”, constituída pelo Conselho Municipal, representado pelo Presidente e
seus vereadores;
A “Renamo 2”, representada pelo Presidente da Assembleia Municipal, o Chefe da Bancada e o Secretário da Assembleia, em aliança com os membros da Assembleia Municipal pela bancada da Frelimo.
Apesar de ter a maioria na Assembleia Municipal (17 membros), o que era suficiente
para fazer passar todos os projectos para a gestão municipal, a ruptura de equilíbrio entre
104-CONSELHO MUNICIPAL de ANGOCHE « Moção de …”, op. cit. ; CONSELHO MUNICIPAL de ANGOCHE, Acta
da VI sessão, …op. cit.
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as instâncias do partido e as instâncias no seio da Assembleia Municipal pela bancada
da Renamo (4 membros dissidentes), a Renamo havia entregue o “ouro ao bandido”,
quer dizer ao partido Frelimo, na oposição (13 deputados). De facto, todos os projectos
submetidos pelo Conselho Municipal à Assembleia, durante os primeiros 4 meses, foram
rejeitados pela oposição, que se aproveita do conflito no interior da Renamo para provocar a paralisia institucional. A carta escrita pelo Presidente do Conselho Municipal ao
delegado político provincial da Renamo em Nampula é demonstrativa:
“Desde a tomada de posse em Fevereiro de 2004, a mesa da Assembleia Municipal impede o cumprimento do programa do governo da Renamo no Conselho Municipal […].
Eles são os responsáveis pelas más relações existentes entre a Assembleia Municipal, o
Conselho Municipal e o partido […] Estão sempre em desacordo com outros membros
da Assembleia Municipal do lado da Renamo e não cooperam com o Conselho Municipal […] Este conflito é utilizado pela oposição (Frelimo) para nos humilhar e rejeitar
todos os nossos projectos de governação.”105
O conflito entre a Assembleia e o Conselho Municipal da Renamo em Angoche foi sem
dúvida um dos grandes obstáculos à gestão municipal durante a primeira fase do processo. Mas não podemos esquecer a acção dos membros da assembleia pela Frelimo, que
no decurso das dezasseis sessões ordinárias da Assembleia Municipal que tiveram lugar
até Fevereiro de 2007, votaram sempre contra todas as propostas da Renamo, com a excepção de uma resolução sobre os benefícios acordados aos membros da Assembleia106.
Mas a Renamo queixava-se não somente da transferência tardia das subvenções do governo central para o município, o que dificultava a implementação dos seus programas
e projectos e do seu plano quinquenal, nomeadamente a construção de escolas e hospitais, a criação de emprego e a reabilitação de estradas, como também das sucessivas e
repetidas inspecções administrativas e financeiras sem pré-aviso, a que o município era
sujeito107. A contestação da Renamo não era dirigida às inspecções em si, mas sobre o
procedimento utilizado pelos Ministérios das Finanças e da Administração Estatal. De
facto, o regulamento das inspecções prévias estabelece entre quatro e cinco inspecções
por mandato (cinco anos), mas o município de Angoche recebia inspectores trimestralmente, contrariamente aos municípios sob gestão da Frelimo na mesma província (Monapo e Nampula), onde as inspecções eram realizadas de acordo com o regulamento108.
A acção do governo distrital, que sabotava, pelo menos durante os primeiros quatro
anos, todas as tentativas de implementação de políticas locais de desenvolvimento, foi
105- CONSELHO MUNICIPAL DA CIDADE DE ANGOCHE, Relacionamento negativo entre a Mesa da Assembleia e o
Conselho municipal : carta ao delegado politico provincial do partido Renamo, Junho de 2004, 2p.
106- Em Angoche tive a ocasião de ver todas as actas da Assembleia Municipal até o mês de Fevereiro 2007. Constatei que o
único documento que os membros da assembleia pela bancada da Frelimo tinham aprovado foi a resolução n° 27/005-S/ subsídios de transporte para membros da Assembleia Municipal. Segundo esta resolução, o presidente da Assembleia Municipal
ganharia 4080,00 mtn, o vice-presidente 2 940,00; o secretário 2531, 00; o chefe da bancada 1666, 00 e o membro da assembleia
1 200, 00. Veja CONSELHO MUNICIPAL de ANGOCHE, Acta da VI sessão …op. cit.
107- “Somos cobaias neste processo”, Savana, n° 591, 6 de Maio de 2005 : 12.
108- Alberto Omar Assane, Presidente do Conselho Municipal de Angoche, entrevista realizada no Puli , a 13 de Agosto de 2007.
Abudo Amisse, membro da Assembleia Municipal pela bancada do PIMO.
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outro factor. Em primeiro lugar, cobrava impostos e taxas no território municipal109, o
que colocava os residentes na área municipal numa situação de dupla imposição, sujeitos
aos níveis nacionais e local110. O vereador para a área de desenvolvimento económico e
turismo analisava este procedimento nos seguintes termos:
“No governo do distrito não há Angocheanos. Existem pessoas que vêm
do interior e do sul do país com a missão bem precisa de destruir a nossa
cidade, porque não lhes pertence. […] Se existissem “filhos da terra” na administração do distrito, talvez fariam melhor. […] Durante o primeiro mandato denunciamos os actos de sabotagem perpetrados pelos funcionários da
administração, mas nada foi feito para corrigir esta situação.”111
Em segundo lugar, a sabotagem era através dos secretários de quarteirão do partido Frelimo que geriam os fontanários de água e cobravam o dinheiro que provinha da venda de
água potável112. Em Angoche, a problemática da gestão das fontes de água não pode ser
dissociada de um outro conflito, o que opunha a Renamo e o governo do distrito quanto
ao controle das autoridades comunitárias. De facto, durante o primeiro mandato municipal (1998-2003), o Estado-Frelimo, que detinha o poder nas unidades descentralizadas
e desconcentradas, tinha, por intermédio do decreto 15/2000, legitimado todas as autoridades comunitárias existentes no distrito, incluindo as do município. Recordemos que
autoridades comunitárias são, segundo o decreto 15/2000, as pessoas
“Que exerciam uma certa forma de autoridade sobre uma comunidade determinada ou um grupo social, tais que chefes tradicionais, secretários de
bairro e outros dirigentes legítimos, legitimados em tanto que tal pelas comunidades ou por grupos sociais respectivos. a) chefes tradicionais, pessoas que assumem e exercem autoridade segundo as regras tradicionais na
respectiva comunidade; b) secretários de bairro, pessoas que assumem autoridade graças a escolha feita pela população do bairro no qual pertencem;
c) outros dirigentes legítimos: as pessoas que exercem um certo papel
económico, social e religioso ou cultural e que são aceites pelos grupos
sociais a que pertencem” (Forquilha 2006).
A forma como é apresentada a noção de autoridade comunitária dissimula questões
político partidárias, na medida em que este conceito recupera não somente os chefes
tradicionais, marginalizados depois da independência, mas também os secretários de
bairro, que, na maioria dos casos, são os intermediários do partido no poder ao nível
local. Ao mesmo tempo retira aos chefes tradicionais a exclusividade da mediação local entre o Estado e as populações locais (Forquilha 2006). Esta questão era crucial em
109- “Administrações interferem nas competências dos governos locais”, Notícias, 31 de Maio de 1999 : 6.
110- CONSELHO MUNICIPAL DE ANGOCHE, Acta da VI sessão…, op. cit.
111- Estêvão Abudo, entrevista realizada no Muchelele, a 14 de Julho de 2006.
112- CONSELHO MUNICIPAL DA CIDADE DE ANGOCHE, Acta da Reunião Quinzenal dos Directores das Unidades
Administrativas Autárquicas do Município de Angoche : Análise das Relações com as Instituições do Estado no Distrito, Janeiro
de 2005.
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Economia, Política e Desenvolvimento
distritos como Angoche, onde o conflito entre os secretários do grupo dinamizador, estruturas implementadas pelo partido Frelimo, e a estrutura local tradicional muçulmana
perdura até ao presente e é exacerbado pelo comportamento das autoridades administrativas locais, que tinham tendência a privilegiar, em caso de coexistência entre estas duas
estruturas, as primeiras em detrimento das segundas.
A vitória eleitoral da Renamo em 2003 tinha criado condições para o exercício do poder
executivo numa situação de legitimidade eleitoral, e a aprovação do diploma ministerial
80/2004, sobre a articulação dos órgãos dos governos locais com as autoridades comunitárias, deu à Renamo a possibilidade de reconhecer e legitimar as autoridades comunitárias que lhe eram favoráveis dentro do território municipal. Segundo este diploma,
nos municípios,
“O reconhecimento formal das autoridades comunitárias é presidido pelo representante
do poder local, em questão o Presidente do Conselho Municipal ou seu representante
legal, e consiste na identificação, registo e entrega do uniforme ou do símbolo distintivo
ao líder já legitimado.”113
A Administração municipal da Renamo, com o objectivo de fortificar o seu controle
social e político sobre as populações e de forma a “devolver” o poder à estrutura local
tradicional muçulmana, marginalizada durante o período do partido único, indica e legitima, ela também, as suas autoridades tradicionais. É por isso que existia, não somente
em Angoche, mas também na Ilha de Moçambique e Nacala Porto, municípios sob gestão
da Renamo, até antes das eleições autárquicas de 2008, autoridades comunitárias da Renamo com símbolos (Bandeira) do município e autoridades comunitárias da Frelimo
com uniforme e a bandeira da República de Moçambique em suas casas particulares114.
Isto instituía a dupla administração no território municipal da Renamo, um problema que
tornava, segundo Omar Assane, a gestão da Renamo impraticável e impossível.
“Como é que podemos governar? Nunca vi tanta bandeira da República de Moçambique,
mesmo durante o período da Revolução […] Agora, em cada casa do secretário de Bairro
da Frelimo, tem uma bandeira da República […] Quando mobilizamos as populações
para fazer as coisas, eles contra mobilizam. Olha, os secretários da Frelimo continuam a
cobrar impostos e a gerir os bens dos municípios, como por exemplo os fontanários de
água.” 115
Numa situação em que a água potável é um recurso escasso, a posse e a gestão dos
fontenários públicos constituía um recurso político capital. De facto, durante a primeira
gestão municipal, as autoridades comunitárias da Frelimo e a empresa de águas de Angoche tinham assinado um contrato de gestão dos fontenários de água. Segundo os termos desse contrato, os secretários deviam depositar cerca de 80 milhões de meticais na
113- Diploma Ministerial n° 80 de 14 de Maio de 2004, Boletim da República, I série, n° 19, Suplemento, 14 de Maio de 2004.
114- Sem querer fazer extrapolações abusivas, segundo aquilo que vi, nos territórios dos municípios geridos pela Renamo é onde
podíamos encontrar o maior número de bandeiras da República hasteadas em cada Km2 em Moçambique.
115- Alberto Omar, entrevista citada.
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Economia, Política e Desenvolvimento
empresa, resultantes da venda de água aos residentes. Essa cláusula tinha levantado uma
grande polémica, uma vez que os secretários de bairro não dispunham dessa competência116. Chamado pela Assembleia Municipal para justificar esta decisão, o director das
Águas de Angoche, dizia:
“Esta decisão é resultado de um longo processo de estudo, de sensibilização e de mobilização com métodos educativos de forma a instar a população a aderir a esta política
de gestão dos fontanárias públicos. Existe um contrato assinado com os secretários de
bairro […], e se alguém não respeitar vamos rescindir o contrato e entregaremos a gestão
a outros, porque existem muitos interessados.”117
Existiam muitos interessados porque a gestão dos fontanários era muito rentável. De
facto, os secretários de bairro da Frelimo, que faziam trabalho voluntário e gratuito de
mobilização e de angariação de simpatizantes, tinham encontrado uma forma de sobreviver e de ganhar facilmente dinheiro. Durante o período eleitoral, nenhuma soma foi
depositada na Empresa de Águas, e cada vez que a empresa ameaçava tomar medidas
administrativas, ou seja, rescindir os contratos, encontrava barreiras no seio das instâncias do partido. Daí resultou que os fontanários nunca eram reparados nem renovados.
Por outro lado, tinham criado uma pequena oligarquia de gestores ligados ao partido
Frelimo.
“Os gestores de fontanários de água existentes no Inguri e Johar nunca depositaram os 80 000 mtn acordados com a empresa de água para a reparação e renovação das fontes de água. Segundo a empresa queixas já foram
depositadas no tribunal do distrito de Angoche, mas até hoje, nenhuma decisão foi tomada. […] Na unidade Administrativa de Cerema das 36 fontanárias existentes, 17 estão avariados. […] O município se encontra num
dilema […]. As pessoas que gerem os fontanários deviam as reparar, mas
a independência destes em relação ao Conselho Municipal não permite
nenhum acompanhamento o que faz com que o município seja incapaz de
satisfazer uma das suas obrigações básicas: fornecer serviços públicos municipais incluindo o abastecimento em água potável.”118
De facto, o fornecimento de água constitui uma das atribuições dos governos municipais119. Mas, apesar de tudo e da gestão municipal da Renamo, a vontade do EstadoFrelimo em manter o “status quo” e as suas autoridades comunitárias permanecia e foi
expressa pelo chefe da bancada da Frelimo na Assembleia Municipal, Saide U. Passo:
117- Idem.
118- CONSELHO MUNICIPAL DE ANGOCHE, Proposta de Plano de Actividades, Orçamento de Receitas e Despesas para o
Exercício Económico 2006, Janeiro de 2006.
119- Ver o n° 1, alínea b) do artigo 25 da lei n° 11, de 31 de Maio de 1997.
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Economia, Política e Desenvolvimento
“Os fontanárias foram construídos pelo governo do distrito antes da municipalização, portanto, elas não pertencem ao município. Se o município
quiser gerir fontenárias, deve construir as suas e lhes atribuir a seus secretários de bairro […]. As fontanárias que existem foram atribuídos aos secretários do partido Frelimo, por isso eles continuarão a geri-los ”120
Eleições autárquicas de 2008: o regresso do partido único
A hipótese até aqui desenvolvida mostra que, assim que a Renamo ascendeu ao poder
em Angoche, o Estado-Frelimo mobilizou e implementou todos os mecanismos à sua
disposição, incluindo o controlo que ela exercia sobre o aparelho do Estado e também a
fraude121 para:
- Recuperar o poder nos municípios da Renamo;
- Consolidar o poder que detinha noutros municípios e;
- Alargar o seu poder a outros territórios, que, à luz da lei 3/2008, tinham ascendido à categoria de municípios:
O discurso de Manuel Tomé, chefe da bancada parlamentar da Frelimo na Assembleia da
República, é revelador desta vontade:
“Nossa palavra de ordem de sempre e actual é: a vitória se constrói […]
Aqui, nossa missão é de ganhar e de bem ganhar todos os municípios da
província de Nampula. É isso que a população exige de nós, porque ela sabe
que é somente com a Frelimo que a sua vida pode melhorar […] “Todos
vocês viram o trabalho do presidente do Conselho Municipal de Nampula?
… “o camarada Namuaca até não precisava passar por outra eleição, devia
apenas transitar de um mandato para o outro sem concorrer, porque ele
trabalhou”.[…] Quanto aos restantes municípios “a vitória está garantida e
o que falta é só chegar o dia e carimbar a vitória”. Porque a Frelimo possui
todas as condições materiais e objectivas para as ganhar […] por isso queremos vencer e convencer nos 28 municípios e recuperar o poder nos outros
cinco geridos pela oposição.”122
Os resultados das terceiras eleições municipais, de Novembro de 2008, testemunham
essa vontade do Estado-Frelimo de acabar com a oposição, conservar o poder a todos os
níveis e se tornar num único partido.
121- “A ilha das irregularidades”, in AWEPA, Boletim sobre o processo político em Moçambique n°37, Maputo, 15 de Dezembro de 2008: 9; “Situação dos votos a mais na Beira foi erro técnico e não acto propositado de que se pode castigar alguém”, in
122- AWEPA desafia CNE a provar que não alterou resultados eleitorais”, O País, (Maputo), 27 de Janeiro de 2009: 2.
<http://www.canalmoz.com/default.jsp?file>, página visitada no dia 5 de Novembro de 2008.
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Economia, Política e Desenvolvimento
Com uma taxa de participação de 46% mais elevada do que a das eleições locais de 2003
e de 1998, a Frelimo ganhou as eleições para os Presidentes dos Conselhos Municipais
em 42 municípios, menos no município da Beira123, e obteve maiorias, nas Assembleias locais nos 43 municípios em jogo. No que concerne a Angoche, objecto de nosso
estudo, a Frelimo e seu candidato, Américo Adamuji, ganharam as eleições com 66,12%
e 65,64% de votos, respectivamente, contra 32,35 para a Renamo e 34,36% para o antigo Presidente do Conselho Municipal, Alberto Omar. O Pimo obteve 1,53%, perdendo
assim, o direito de estar representando na Assembleia local. Em Angoche, dois outros
eventos podem explicar a recuperação do poder pela Frelimo:
- A ruptura com as antigas práticas de imposição de candidatos exteriores ao meio social
local pelas instâncias provinciais e centrais do partido Frelimo. De facto, se nas eleições
municipais de 1998 e 2003, a Frelimo tinha indicado José Constantino, um mestiço, (de
mãe Koti e pai originário do sul de Moçambique), contra a vontade das estruturas do
partido ao nível local124, para as eleições municipais de 2008, a Frelimo organizou “bem”
o processo de designação interna, que se saldou a favor de Américo Assane Adamuji,
“filho da terra”. Proveniente das Ilhas Catamoio, A. Adamuji era uma figura consensual,
não somente no partido (Angoche), mas também no seio dos notáveis locais. O discurso
do porta-voz do Comité Distrital da Frelimo, antes das eleições internas é revelador da
mudança de estratégia:
“Queremos escolher um candidato que reúne o consenso, não somente dos
membros e simpatizantes do partido, mas também dos diferentes segmentos
da sociedade civil. […] Não queremos correr os mesmos riscos do passado,
onde obtivemos resultados desastrosos nas eleições locais aqui em Angoche. Queremos que o eleitorado escolha livremente o seu candidato […];
O eleitorado está decepcionado com as promessas eleitorais não cumpridas
pela Renamo durante o seu mandato. […] A única coisa que a Renamo fez
durante o seu mandato foi desinformar as populações. […] Ela não consegue fazer nada devido a conflitos entre membros e simpatizantes no Conselho Municipal. Isto atrasa o desenvolvimento do município de Angoche e
leva as populações à miséria. […] Existem duas facções: uma que apoia o
presidente, e outra que apoia o presidente da Assembleia Municipal.”125
De facto, o conflito opondo o Presidente do Conselho Municipal aos notáveis locais em
relação ao cumprimento das promessas eleitorais de 2003 e a distribuição dos recursos
do município tinha-se exacerbado durante a gestão municipal da Renamo126 e tinha ocasionado a criação de uma “Renamo 2”, cujo representante dizia numa entrevista:
123- No município da Beira é o antigo Presidente do Conselho Municipal (Deviz Simango) que, expulso do partido, se apresenta como independente e ganha as eleições com cerca de 61,6% dos votos. Mesmo em Nacala Porto, em que nenhum dos
candidatos, nomeadamente Chale Ossufo, da Frelimo, e Manuel dos Santos, da Renamo, obteve a maioria na primeira volta, na
segunda volta foi o candidato da Frelimo que ganhou as eleições, com 54,67% contra 47,81% do antigo Presidente do Conselho
Municipal.
124- “Bairro Inguri Tramou Frelimo”, Domingo, n° 1140, 23 de Novembro de 2003 : 5.
125- “Eleições autárquicas : em Angoche Frelimo já pensa no candidato”, Notícias, 4 de Junho de 2008 : 4.
126- “Região Norte : situação política é favorável à Frelimo”, Notícias, 14 de Julho de 2006: 3; “ Angoche: munícipes divergem
quanto à gestão da autarquia”, Notícias, 1 de Setembro de 2008: 3
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Economia, Política e Desenvolvimento
“A Renamo nos devolveu o poder de rezar, mas a religião não enche a barriga […]. A Renamo escolheu um candidato que era chefe na Angocaju, que
tinha recebido muito dinheiro de indemnização quando fecharam a fábrica.
E quando chegou ao poder no município, deu emprego a seus antigos colegas e familiares e se esqueceu das pessoas que trabalharam para a Renamo
desde a longa data […]. Demos nosso voto a essa gente. Agora eles têm
salários altos. Se tornaram mais ricos, e nós muito mais pobres […], mas o
plano que temos é de lhes fazer perder as próximas eleições municipais. […]
Temos cerca de 600 cartões dos membros da Renamo descontentes com esta
situação e nos pediram para devolver esses cartões na sede do partido. […]
Se a Frelimo negociar connosco, se nos dar dinheiro, se se comprometer
connosco, […] iremos oferecer a vitória nas próximas eleições municipais
(2008) aqui em Angoche. […] O actual Presidente do Conselho Municipal
e a sua equipa nos mostraram que os partidos não servem para ajudar a
população, mas para ajudar suas famílias. Então! Nesse contexto, o partido
que irá melhor pagar, terá a vitória.”127
Lembremos que este grupo tinha, numa aliança com o partido Frelimo na Assembleia
Municipal, provocado uma espécie de paralisia institucional. Mas a Renamo, mostrando
uma atitude de total desprezo, considerava que
“Se tratava apenas de um pequeno grupo, sem nenhuma expressão social
nem política e que era instrumentalizado pela Frelimo para desestabilizar a
sua governação.”128
Sentindo-se enganados e desprezados pela direcção da Renamo, estes notáveis não hesitaram em reafirmar o seu apoio à Frelimo, em troca de vantagens materiais. Mas o facto
de a Frelimo ter apresentado, pela primeira vez, um Koti, de uma das grandes famílias
islamo-crioulas locais, como candidato a Presidente do Conselho Municipal pode também ter jogado um papel importante no voto a seu favor.
A mudança de orientação dos líderes locais e seus simpatizantes permitiu à Frelimo
enfraquecer politicamente a Renamo e daí recuperar o poder local no município de Angoche. Contudo, esta mudança não deve ser compreendida como de natureza ideológica,
mas de uma táctica política (Dobry 1992). Ela deve ser entendida como uma procura de
conservação do poder local, com os notáveis locais a abandonarem uma Renamo inapta
a servir de instrumento para a conservação do seu poder para se juntarem à Frelimo, em
posição de dominação.
127- Entrevista com Hibrahimo Hassane, realizada no Inguri no dia 23 de Outubro de 2007.
128- Entrevista com Alberto Omar (Presidente do Conselho Municipal), realizada no Puli, a 28 de Outubro de 2007; entrevista
com Ainca Mecusserima Chande, delegado político da Renamo no distrito de Angoche, entrevista realizada no Inguri, no dia 24
de Outubro 2007; ver também “Depois da visita do seu líder a Angoche: Renamo em crise de direcção desmembra-se”, Zambeze, n° 193, 25 de Maio de 2006: 32.
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Conclusão
A Renamo, na gestão municipal, entra em contradição com ela mesma. A ideia de “bem
governar” anunciada pelos seus dirigentes na altura da investidura no município de Angoche não foi implementada. Ela reproduziu na gestão local as práticas institucionais
do Estado neopatrimonial, nomeadamente a corrupção, o nepotismo e o clientelismo,
práticas do funcionamento da administração pública directamente ligadas à influência e
à trajectória do Estado-Frelimo. Aliás, como diz M. Douglas:
«As soluções que as instituições propõem, vêm da limitada gama de experiência que elas têm. Se a instituição em causa é ligada à participação, ela
responderá a essa preocupação: “mais participação”» (Douglas 1992).
A « Resistência » da Renamo a esse neopatrimonialismo, consistiu na construção e desenvolvimento do seu próprio modelo, mas um modelo perdedor, porque se tratava de
um neopatrimonialismo pobre. Não representava nenhuma alternativa, que seria, por
exemplo, a mobilização democrática dos habitantes por estruturas democráticas participativas, na escolha dos secretários de Bairros ou ainda a constituição de cooperativas
urbanas para retomar as fábricas de Cajú, de produção do sal, de pesca artesanal, potencialidades económicas desta região.
Em Angoche, durante a gestão do município pela Renamo, vimos, por um lado, a metódica asfixia económica organizada pelo governo central, com o envio tardio de fundos
destinados à gestão municipal, e, por outro, uma vontade manifesta de paralisia institucional, ligada à resistência de ordem mental, cultural e comportamental às mudanças
operadas por parte dos órgãos desconcentrados ligados ao Estado-Frelimo. Estes últimos
procuravam a todo o custo modificar, retardar e boicotar o trabalho dos seus rivais, utilizando, pelo menos parcialmente, o voto na Assembleia Municipal, de forma a impedir
a implementação duma política da Renamo. Esta constatação leva-nos a concluir, não só
que a Frelimo não quer de forma alguma a consolidação de outras legitimidades políticas
exteriores ao seu meio, mas também que não está e nunca estará preparada para estar na
oposição, mesmo ao nível local.
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Economia, Política e Desenvolvimento
Reforma, Contestação Eleitoral e Consolidação
da Democracia em Moçambique129
José Jaime Macuane130
Resumo
A constante alteração das leis e a recorrente contestação
dos resultados eleitorais são elementos que demandam
uma reflexão mais profunda sobre o que está por detrás
desta situação e sobre as implicações que isso tem para a
consolidação da jovem democracia moçambicana. Nessa
linha, este trabalho revisita a discussão sobre transição
democrática e consolidação, tendo no centro a discussão
sobre a reforma eleitoral. A questão a que o trabalho pretende responder é sobre o que estará por detrás da necessidade de mudança das leis eleitorais de forma sistemática, de
que forma isso se enquadra no processo de democratização
e que implicações a sistemática contestação eleitoral tem
na jovem democracia moçambicana. Palavras-Chave:
transição democrática, sistemas democráticos, eleições,
representatividade e estabilidade institucional.
129- Este artigo é a versão actualizada de uma comunicação apresentada no IX Congresso Luso-Afro Brasileiro de Ciências Sociais, que se realizou em Luanda, entre 28 e 30 de Novembro de 2006.
130- Doutor em Ciência Política e Professor Auxiliar do Departamento de Ciência Política e Administração Pública da
Universidade Eduardo Mondlane – Moçambique.
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Introdução
O processo moçambicano de democratização tem a particularidade de ter sido profundamente influenciado pela transição de um sistema monopartidário para o multipartidarismo num contexto de pacificação, que implicava a integração dos antigos beligerantes
no jogo democrático. Consequentemente, as instituições que daí advieram reflectem a
preocupação de encontrar formas de acomodação das duas principais forças políticas,
a Frelimo, o partido governamental e representante do antigo regime, e a Renamo, o
movimento que se opôs militarmente ao governo por 16 anos. Um dos exemplos mais
ilustrativos disso foi a discussão do sistema eleitoral ao longo do processo negocial, que
culminou com a escolha do sistema de representação proporcional, provavelmente por
se temer os possíveis efeitos nefastos na representatividade que seriam acarretados pelo
sistema maioritário. Esta preocupação estendeu-se posteriormente a outras arenas, como
a Comissão Nacional de Eleições (CNE), o Conselho Constitucional, o Conselho do Estado, que na sua composição ainda adoptam o critério de representação parlamentar.
A criação de várias arenas de partilha de poder, tendo como base a representação parlamentar, consagra a centralidade do processo eleitoral no sistema político, de cuja dinâmica dependem outros processos de partilha e legitimação do poder. Esta importância do
processo eleitoral na democracia moçambicana torna pertinente o seu estudo, pelas suas
implicações na dinâmica de várias instituições criadas no âmbito do processo de democratização com uma forte componente, também, de pacificação. Em Moçambique, pelas
suas peculiaridades, os efeitos que as regras eleitorais têm na dinâmica do sistema político, bem como os seus efeitos na democracia, vão para além da já clássica discussão que
se centraliza em aspectos como os efeitos no sistema partidário, a desproporcionalidade
(diferença entre votos e assentos parlamentares), a competitividade política, as oportunidades de sucesso do processo de democratização, dentre outros131. Aliás, como esta
mesma discussão mostra, os efeitos da engenharia eleitoral nos sistemas políticos são
muito mais complexos do que sugerem as tentativas de generalização, sem ter em conta
o contexto específico dos países. A discussão das leis eleitorais no contexto moçambicano reveste-se de um sentido muito mais amplo, qual seja, o de construção de um Estado
e de normalização da vida política democrática, num contexto em que as instituições
políticas e estatais, bem como a própria polity estão em processo de construção.
Nesse âmbito, e sem a pretensão de exaurir a discussão sobre o processo democrático
moçambicano, o foco deste trabalho será a busca da compreensão do sentido e enquadramento das sistemáticas mudanças nas regras eleitorais num contexto de democratização
e os seus efeitos na consolidação do sistema em Moçambique. O trabalho organiza-se
da seguinte forma: na secção 2 descreve-se o contexto da operação do sistema eleitoral
e seus efeitos na interacção entre os actores políticos principais, com enfoque nos dois
partidos acima mencionados. Este exercício desemboca no levantamento de questões
inerentes aos efeitos da operação das regras eleitorais, que depois são discutidas com
mais propriedade na secção 3 recorrendo à literatura que se debruça sobre a matéria, sua
operação, bem como aos processos de democratização e de funcionamento dos sistemas
131- Para mais detalhes sobre esta discussão, vide Lima Júnior (1999) e Grofman, e Lijphart (2003).
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políticos democráticos. Posteriormente, na secção 4 o trabalho faz uma análise do contexto moçambicano com base na discussão teórica, desembocando nas conclusões, que
versam sobre as implicações do que foi discutido no funcionamento e consolidação da
democracia em Moçambique.
Contexto
No histórico da democracia representativa moçambicana regista-se a realização de oito
eleições, das quais quatro foram gerais (legislativas e presidenciais) – 1994, 1999, 2004
e 2009 –,três foram autárquicas, as de 1998, de 2003 e de 2008 e uma provinciais de
2009. Com a excepção das eleições de 1994, que podem ser consideradas fundadoras,
porque introduziram o multipartidarismo no País, as outras eleições tiveram um denominador comum: foram antecedidas de um ajuste na legislação vigente e também foram
contestadas. As eleições autárquicas de 1998, que também podem ser consideradas fundadoras porque foram as primeiras do género no País, até certo ponto também foram
contestadas por uma outra via: o boicote feito pela oposição, que, coincidentemente ou
não, acabaram tendo uma abstenção eleitoral de mais de 80%.
O caso mais emblemático foi sem dúvida o das eleições de 1999, que foram precedidas de alterações pontuais na legislação eleitoral, aprovadas consensualmente pelos
principais partidos do País, a Frelimo e a Renamo. No entanto, os seus resultados, que
deram a vitória ao primeiro, foram profundamente contestados pelo segundo e quase
mergulharam o país num caos político sem volta, quando o Tribunal Supremo julgou improcedentes as reclamações apresentadas pelos contestatários. Este cenário estender-seia até a realização das manifestações da Renamo, que culminaram com a morte de seus
militantes numa cela em Montepuez, na província setentrional de Cabo Delgado. Para
remediar a situação de tensão que então se vivia, a Renamo propôs conversações com o
Governo, com vista à partilha de poder, tendo ambos os lados nomeado representantes
para um grupo de trabalho que se devia debruçar sobre as questões eleitorais. Este grupo
não só não chegou a nenhuma conclusão, como teve como rescaldo a expulsão do chefe
do grupo da Renamo do seu partido, após ter sido acusado de não ter estado a negociar
nenhum dossier eleitoral, mas sim questões pessoais132. Isto provocou uma grande cisão
dentro da Renamo, da qual até hoje certamente se ressente.
As eleições de 1999 mostraram uma face preocupante da frágil democracia moçambicana: que apesar dos consensos alcançados na aprovação da legislação eleitoral, a sua
aplicação às eleições e os seus efeitos geraram uma forte contestação e descrença em
relação às instituições, com enfoque para os órgãos de administração eleitoral. Neste
quesito, o foco das atenções foi a Comissão Nacional de Eleições, o órgão responsável
pela administração eleitoral, que inclui a coordenação do recenseamento eleitoral, contagem dos votos e anúncio dos resultados. Este órgão é composto por representantes de
partidos com assentos parlamentares, obedecendo ao critério de proporcionalidade e, por
conseguinte, dominado pelo partido maioritário, a Frelimo.
132- As revelações dos contornos da negociação foram feitas numa entrevista da rede pública de televisão (a Televisão de
Moçambique), na qual o então Presidente da República, Joaquim Chissano, dentre outras coisas, deu a entender que Raúl
Domingos havia solicitado o apoio do Governo no pagamento das dívidas que tinha com a banca.
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Nem a escolha do seu presidente pela sociedade civil, mas com posterior nomeação pelo
Presidente da República, conseguiu mitigar a suspeição de ser favorecedora do partido
maioritário, que sobre si pesava.
Outro elemento é a composição do Secretariado Técnico de Administração Eleitoral
(STAE), cujo director, até a revisão da lei 20/2002, de 20 de Outubro, era nomeado pelo
Conselho de Ministros após concurso público de avaliação curricular conduzido pela
CNE e coadjuvado por dois Directores-Gerais-Adjuntos, indicados pelos partidos e/ou
coligações parlamentares. Devido à vantagem que o partido maioritário tinha na CNE,
aliada à nomeação do director do STAE pelo Governo, este órgão foi sempre visto como
favorecendo os interesses do partido governamental.
Às agruras das eleições de 1999 seguiu-se um intenso debate sobre a composição e funcionamento da CNE, a realização ou não de um recenseamento de raiz (a Renamo sendo
a favor e a Frelimo contra), além das preocupações acima indicadas sobre o STAE. Os
argumentos em torno da CNE, pelo menos por parte da oposição, eram de que, sendo
um órgão de fiscalização do processo eleitoral, devia tomar as suas decisões com base
no consenso (2/3 dos seus representantes) e que devia também haver mais equilíbrio
na sua composição, incluindo a continuação de um presidente indicado pela sociedade
civil. A primeira pretensão não teve acolhimento, a segunda teve, embora mais tarde
se tenha posto em causa a imparcialidade do presidente eleito. Foi nesse quadro que se
realizaram as eleições gerais de 2004, que, além de terem tido como factor distintivo a
expressiva vitória da Frelimo, com mais de 60% dos votos nas eleições legislativas e
presidenciais, também se destacaram pela expressiva abstenção, que foi de mais de 60%
(STAE 2006).
Após as eleições de 2004, duas coisas ocorreram. A primeira foi a contestação de praxe
feita pela Renamo, apontando, dentre outras coisas, a existência de indícios de fraude,
como a discrepância entre os eleitores registados em certos círculos eleitorais e os votos obtidos pelo partido maioritário, que em alguns casos excediam o número total de
eleitores. O assunto foi remetido ao Conselho Constitucional, órgão de composição marcadamente partidária, que pela primeira vez era colocado na situação de ter que dirimir
conflitos eleitorais numa eleição geral. O acórdão foi peremptório: as reclamações da
Renamo tinham dado entrada no órgão fora do prazo, e, consequentemente, já não havia
mérito na questão, pelo que nem se chegou a emitir nenhum parecer ou decisão sobre a
matéria concreta em causa, nem houve pronunciamento público sobre a plausibilidade
dos indícios de fraude. O que ficou patente foi a admoestação deste órgão à Comissão
Nacional das Eleições pelo seu fraco desempenho, tendo sido inclusivamente avançada a
necessidade de uma reforma substancial nos órgãos de administração eleitoral, com vista
a serem menos politizados e mais técnicos (Weimer 2006). Por outro lado, o Tribunal
alertou para a necessidade de se superar a actual prática de se aprovar uma lei por cada
eleição, sem prejuízo da importância de ajustamento da legislação de acordo com as
lições advindas da prática (Hunguana 2006).
O posicionamento do Tribunal Constitucional, que sem dúvida tinha a devida cobertura
legal, foi seguido dos já costumeiros pronunciamentos sobre a parcialidade das institui116
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Economia, Política e Desenvolvimento
ções eleitorais e eventuais ameaças de ruptura do sistema democrático. O segundo acto
posterior às eleições de 2004 foi a criação, pela recém eleita Assembleia da República,
de uma Comissão Ad hoc para a Revisão da Lei Eleitoral, composta, como de praxe,
pelos representantes dos dois maiores partidos do País. Pela primeira vez, esta Comissão
começou a discutir com mais incidência aspectos com implicações profundas no sistema
eleitoral, como a remoção da barreira eleitoral de 5% (posicionamento defendido pela
Frelimo) que, com a excepção das eleições de 1994, até agora só permitiu a representação de dois partidos no legislativo. Por outro lado, a discussão também focalizou a
mudança do tamanho da CNE e a inclusão de mais membros da sociedade civil, como
forma de imprimir uma maior imparcialidade a este órgão, com vista a superar o crónico
criticismo que se abate sobre o mesmo e os processos eleitorais, em função do seu viés
maioritário e a consequente tomada de decisões pela maioria, que também representa a
tendência dominante no legislativo.
Neste contexto, a Renamo defendia a criação de uma CNE com 15 membros, dos quais,
14 seriam representantes dos dois partidos parlamentares numa base paritária, e o Presidente indicado pela sociedade civil. Por sua vez, a Frelimo defendia a criação de uma
CNE com apenas 9 membros, dos quais seis seriam indicados pela sociedade civil e três
pelos partidos parlamentares, na base da proporcionalidade, ficando desta forma 2 para
si e 1 para a Renamo. Relativamente ao STAE, as posições eram também divergentes,
uma vez que a Renamo defendia que este órgão devia estar subordinado à CNE, enquanto a Frelimo advogava que o mesmo devia ser um órgão do Estado e Governo, com
a função técnica de apoio aos processos eleitorais.
A falta de acordo naquele aspectos entre os dois principais partidos acabou levando à
dissolução da Comissão Ad hoc de Revisão da Lei Eleitoral e à remissão do assunto a
uma das comissões de trabalho da Assembleia da República – a Comissão de Agricultura, Desenvolvimento Regional, Administração Pública e Poder Local. Nesta comissão,
ainda foram alcançados consenso sobre o número de membros da CNE (que seriam 13),
mas ainda persistiam divergências sobre os mecanismos de indicação dos mesmos pelos
partidos e pela sociedade civil, sobre a que órgão o STAE deveria se subordinar, sobre
o recenseamento eleitoral e outros assuntos (Jornal Notícias 12/12/2006)133. Devido às
diferenças insanáveis entre os dois maiores partidos, a legislação eleitoral acabou sendo
aprovada pelo voto maioritário da Frelimo, com pelo menos duas inovações de vulto: a
primeira é a remoção da barreira eleitoral de 5%, o que teoricamente abriu mais espaço
para a representação parlamentar dos partidos pequenos; e a segunda é a composição da
CNE por 13 membros, dos quais 5 são apontados pelos partidos políticos, obedecendo
ao critério da proporcionalidade parlamentar, e 8 escolhidos pela sociedade civil. Dentre
estes também é proposto o Presidente da CNE, que deve ser eleito por todos os membros
deste órgão por consenso; porém, não havendo concordância, o voto da maioria prevalece (vide artigo 5 da lei n.º 8/2007 de 26 de Fevereiro).
133- Vide http://comunidademocambicana.blogspot.com/2006/12/reviso-da-legislao-eleitoral-propostas.html, acedido
no dia 08 de Setembro de 2009.
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Economia, Política e Desenvolvimento
No que concerne ao STAE, manteve-se a selecção e recrutamento do Director-Geral
por via do concurso público conduzido pela Comissão Nacional das eleições, desta vez
cabendo a sua nomeação ao Primeiro-Ministro. A mudança mais significativa foi a eliminação dos cargos de Directores-Gerais-Adjuntos indicados pelos partidos e coligações
com representação parlamentar, ficando a competência de nomeação dos directores de
área ao próprio Director-Geral do STAE. Neste novo figurino, os partidos e coligações
parlamentares não têm nenhuma representação, sugerindo um movimento no sentido de
uma maior profissionalização deste órgão.
Nas duas mudanças de vulto indicadas acima, o efeito da remoção da barreira de 5% só
será sentido após as eleições gerais de 2009, enquanto a nova composição da CNE já
fornece, pelo menos, dois elementos para reflexão. O primeiro é o processo de selecção
dos representantes da sociedade civil, que a par da falta de coordenação das organizações
da sociedade civil, na sua essência, ainda tem uma forte influência partidária. Exemplo
disso foi o poder que os membros indicados pelos partidos tiveram de rejeitar alguns
nomes propostos pela sociedade civil, tais como os jornalistas Salomão Moyana e Tomás
Vieira Mário e a activista de direitos humanos Alice Mabota.
O segundo é a abordagem inerente às decisões da CNE no que concerne à análise das
candidaturas às eleições gerais de 2009. Pela primeira vez, este órgão demonstrou
um rigor incomum ao pôr em causa a legalidade de alguns actos das candidaturas das
eleições presidenciais e legislativas, apontando erros nos processos dos dois principais
partidos (a Frelimo e a Renamo), do recentemente criado Movimento Democrático de
Moçambique (MDM) e de alguns partidos menores. Isto teve como consequência a rejeição das candidaturas do MDM às eleições legislativas em 9 dos 13 círculos eleitorais,
o que, em tese, aumenta as possibilidades do resultado das eleições gerais de 28 de Outubro de 2009 penderem a favor dos dois principais partidos134. Se isso acontecer, seria
a confirmação do pendor conservador das mudanças nas leis eleitorais, uma vez que os
seus efeitos, até aqui, pouco ou quase nenhum reflexo tiveram na correlação de forças ou
no aumento da inclusividade do sistema representativo moçambicano, que se manteve
praticamente bipartidário.
Os pontos acima expostos mostram-nos que há um processo democrático em curso, reflectido na realização frequente e pontual de eleições. Estas eleições têm a particularidade
de serem realizadas num quadro de constante ajuste de procedimentos, mas que até aqui
não afectaram estruturalmente o sistema representativo, porque não implicam mudanças
substanciais nos seus elementos estruturantes, tais como a estrutura do voto, as fórmulas
eleitorais, a magnitude distrital (número de assentos por distrito círculo eleitoral)135 e os
processos de administração eleitoral. Apesar dessas mudanças, cujo alcance e finalidade
ainda não estão claros, as eleições realizadas nos últimos anos revelam uma tendência
decrescente de participação dos eleitores.
134- No momento em que se encerra este artigo (09 de Setembro de 2009), os partidos que tiveram as suas candidaturas às
eleições legislativas rejeitadas reclamam da ilegalidade dos actos da CNE e já manifestaram a sua intenção de impugnar
tal decisão e recorrer ao Conselho Constitucional.
135- Exceptuando os casos de ajuste em função da mudança no número de eleitores.
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Economia, Política e Desenvolvimento
Por outro lado, há uma forte carga de contestação ao processo eleitoral, que torna pertinente a reflexão em torno de dois aspectos fundamentais:
•
•
Qual tem sido o sentido e o objectivo da revisão sistemática das leis eleitorais
sob o ponto de vista de funcionamento do sistema democrático moçambicano?
Que efeito tem a forma e o conteúdo dessas mudanças na consolidação da
democracia moçambicana?
A resposta a essas questões, no nosso entender, passa pela reflexão sobre dois aspectos
de crucial importância: o papel e o lugar que os processos e o sistema eleitorais ocupam no processo de democratização e as condições que devem existir num determinado
sistema político para que seja considerado uma democracia consolidada.
O foco nos processos eleitorais justifica-se por duas razões: uma de ordem normativa e
outra de ordem positiva/empírica. A primeira, a de ordem normativa, consiste na ideia de
que a democracia é um governo do povo, para o povo e pelo povo (Lijphart 2003:17)136,
sendo que no mundo actual isso só pode ser materializado a partir da eleição e responsabilização de representantes. Neste âmbito, há um consenso de que a existência de
eleições competitivas, muito mais do que outro factor, é um requisito fundamental para
a classificação de um sistema político como democrático (Powell Jr. 2000). A segunda, a
de ordem positiva/empírica, é a que deriva do processo de democratização e pacificação
em Moçambique, que propiciou a partilha de poder entre os principais actores políticos
em várias arenas institucionais e cujos princípios repousam na representação parlamentar, que por sua vez deriva das eleições. Desta feita, entender o processo eleitoral é crucial para a explicação da dinâmica do funcionamento das instituições e ponderar sobre
os seus efeitos.
A reflexão será feita em dois estágios: no primeiro serão discutidos, de forma breve,
os principais pontos existentes na literatura sobre a matéria e, no segundo, a reflexão
incidirá sobre o processo moçambicano, com o objectivo de aprofundar a compreensão
das questões aqui levantadas.
Transição, Consolidação Democrática e Eleições: Teoria e Realidade
Transição e consolidação democrática
A discussão sobre transição democrática teve um grande destaque após o livro seminal de
Huntington (1994) sobre a terceira onda da democratização. Um corpo vasto de literatura ocupou-se da reflexão sobre as condições que favoreciam a transição democrática e as
formas da sua consolidação, naquilo que hoje é conhecido, de forma um tanto ou quanto
crítica, como a transitologia e a consolidologia (Monclaire 2001; Carothers 2002).
136- Esta ideia foi originalmente expressa pelo presidente americano Abraham Lincoln e tem sido citada como a síntese
do ideal democrático (vide Lijphart, 2003:17).
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Economia, Política e Desenvolvimento
Nesse contexto, Linz e Stepan (1996) afirmam que a transição democrática está completa quando há um acordo sobre as regras para a eleição de um novo Governo, quando este
assume o poder como resultado de eleições populares livres e justas e tem o poder de
facto de gerar novas políticas e quando o executivo, o judiciário e o legislativo gerados
pela nova democracia não têm que dividir o poder com outros órgãos de jure. Ainda segundo os autores, as transições podem começar mas não terminar. Esta advertência evita
incorrer no erro da “falácia eleitoralista”, em que há processos eleitorais mas os representantes do regime autoritário podem ainda deter o poder, de tal forma que se esvazia o
sentido e poder de jure e de facto dos representantes eleitos. Esta situação gera os chamados sindromas políticos, que podem redundar na existência de uma força política (seja
movimento, partido ou família) que através da realização de eleições regulares domina
o poder, de tal forma que dificilmente se antevê alguma perspectiva de alternância no
poder no futuro próximo (Carothers 2002).
O segundo aspecto é a necessidade de acordo sobre as regras básicas, uma vez que um
desacordo substancial sobre as mesmas pode criar problemas de legitimidade, que podem não só atrasar o processo de consolidação, como também afectar a viabilidade do
sistema político em si. Citando o exemplo das eleições, Massicotte et al (2004) afirmam
que o objectivo dos processos eleitorais não é apenas produzir vencedores, mas também
de garantir que esses vencedores sejam vistos como legítimos. Por conseguinte, existe
uma certa tentação de questionamento dos resultados, de tal forma que a insatisfação
com os resultados pode levar facilmente a que se lance a culpa sobre as regras do jogo.
Para Linz e Stepan, a consolidação da democracia é vista como sendo aquelas situações
em que a democracia se tornou “no único jogo prevalecente”137 . Porém, a consolidação
da democracia não implica que o sistema não possa entrar em colapso e muito menos que
haja apenas um tipo de democracia consolidada.
Nesta linha de pensamento, como Geddes (2001) aponta, os processos de democratização variam de caso para caso e de região para região e as generalizações propostas na
explicação deste processo fracassaram em conciliar todas as variações do mundo real, ou
em explicá-las. Esta constatação é corroborada por Macuane (2000), que mostra a incapacidade explicativa das variáveis indicadas pela literatura na análise da democratização
no contexto africano.
Para Geddes (2001) a dificuldade da literatura em explicar de forma convincente os
processos de democratização está no facto de não levar em conta que eles dependem
substancialmente do tipo de regime autoritário: se militar, de partido único ou personalista. A transição democrática dos regimes militares começa com desacordos e divisões
internas, que muitas vezes terminam em negociação. Isso porque, segundo a autora, a
maioria dos oficiais valoriza a unidade e a capacidade da instituição militar mais do que
a ocupação dos cargos de mando, propiciando um menor apego ao poder em comparação
com outros tipos de autoritarismo. Neste contexto, os regimes militares acabam na verdade iniciando as transições, e os protestos populares pela democratização agregam-se
137- Nas palavras dos autores “the only game in town”.
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à uma vontade interna de mudança do próprio regime, facilitando assim a negociação.
Por sua vez, os regimes personalistas tendem a agarrar-se mais ao poder, e, muitas vezes,
são derrubados pelos levantamentos populares e rebeliões. Finalmente, os regimes de
partido único, sob pressão da oposição e dos doadores tendem a ser abertos à negociação, pressupondo que, se não se pode evitar a mudança, é melhor estar numa democracia
do que em alguma forma de autoritarismo. Em países que de facto se democratizaram,
os partidos hegemónicos não perderam a importância na vida política, mas em muitos
daqueles que não se democratizaram plenamente eles foram proscritos.
Se a transição em si já é complexa, a consolidação não o é menos. A instalação de regimes democráticos e a sua continuidade e consolidação dependem de vários factores e
subtilezas, que de forma alguma se esgotam nas definições e pressupostos generalizados
na literatura, tais como a cultura política, o desempenho económico e a normalidade e
manutenção da institucionalidade.
Nesta linha de pensamento, a literatura é profícua em explicações que apontam para
a importância do (bom) desempenho económico, a existência de uma cultura política
que favorece a participação no processo governativo, para além das eleições e da normalidade institucional, reflectida no respeito pelas regras do jogo e das instituições que
fazem parte do regime democrático (Linder e Bächtiger 2005; Monclaire 2001). No
entanto, conforme indicam Baquero (2001) e Linder e Bächtiger (2005), a relação entre
desenvolvimento económico e democratização não é assim tão forte como se afirma na
literatura. Isto ainda é corroborado pelo estudo de Cheibub e Przeworski (1997), que,
com base em dados empíricos, mostram que a decisão dos eleitores de responsabilizarem
os governantes (e pode-se assumir também o sistema) não parece ter um fundamento
económico sólido, uma vez que o bom desempenho económico não implica uma avaliação positiva dos governantes.
Este elemento é de capital importância, porquanto mostra a indefinição sobre as bases
com as quais os cidadãos responsabilizam os seus governantes e leva a questionar o
modo como as eleições podem ser uma forma eficaz de responsabilização política, dada
a sua centralidade no processo democrático. Relativamente à falta de atentados contra
a ordem institucional como requesito para a manutenção do sistema, Baquero (2001),
recorrendo ao caso brasileiro, afirma que os académicos da área a concebem como um
fim em si mesmo, sem levar em conta os resultados sociais que a democracia gera. Isto
leva à uma tendência ao juridicismo (Monclaire 2001) e à chamada judicialização da
política (Maciel e Koerner 2002)138, que se reflectem na idealização excessiva dada às
instituições, pressupondo-se que estas predeterminam o comportamento dos actores
políticos e desta forma, através da engenharia constitucional, podem-se criar as condições
para a estabilidade do sistema democrático.
Outro elemento desta vertente é a interpretação linear que é dada à democracia como
sendo sobretudo um Estado de Direito, descurando-se, assim, a sua essência prima de
expressão de vontade popular (Monclaire 2001).
138- Recorrendo a autores que abordam este assunto, Maciel e Koerner referem que um dos sentidos da judicialização da
política é a resolução de disputas e demandas nas arenas políticas recorrendo a métodos judiciais.
Revista Científica Inter-Universitária
121
Economia, Política e Desenvolvimento
Finalmente, no que se refere à cultura política, cabe questionar até que ponto a mesma
pode ser transformada de forma instantânea, sabido que é fruto de orientações cognitivas,
emocionais e valorativas estáveis e actuantes ao longo do tempo. A sua transformação
só poderá ocorrer se grandes rupturas históricas forçarem os grupos sociais a redefinir
os seus padrões. De outra forma, os padrões anteriores continuarão, Lamounier e Souza
(1991) apud Baquero (2001).
No entanto, na contramão da indefinição que grassa neste campo, Linder e Bächtiger
(2005), analisando diferentes variáveis apontadas como condicionantes da democratização, chegam à conclusão de que a partilha de poder é um dos elementos que no contexto
africano e asiático tem um considerável poder explicativo do sucesso da democratização.
Estes elementos claramente levantam questões sobre o poder de transformação que a
mudança de regras tem na sociedade e concretamente como o mesmo pode influir na
consolidação do sistema democrático. Voltamo-nos agora para o elemento específico
desta discussão, que é a reforma eleitoral.
Eleições e Reforma eleitoral
Segundo Massicotte et al (2004), o declínio da confiança nas instituições do Governo nas
democracias estabelecidas nos anos 90 também ajudou na retomada dos debates sobre a
reforma eleitoral. Isso ocorreu porque agora tem sido difícil contrastar as fraquezas da
democracia e os vícios do totalitarismo. A reforma eleitoral surgiu como uma forma de
criar condições para uma mudança institucional que pudesse melhorar a confiança nas
instituições, através da criação de formas de participação directa, como os referendos,
a facilitação do acesso ao voto (exemplo, através do voto electrónico). Se os efeitos das
leis eleitorais podem levar ao desejado é discutível. No entanto, como dizem ainda os
mesmos autores, as leis eleitorais não são neutras, uma vez que tendem a aumentar ou
diminuir as oportunidades de partidos e candidatos. Por isso, é importante entender o
sentido e objectivo da mudança das mesmas, para entender o alcance dos efeitos desejados ou projectados.
Para Norris (2006), a reforma eleitoral é fundamentada no princípio de que alterando as
regras formais haverá algum efeito mecânico no sentido de alcance de alguns objectivos no âmbito social e político, através do processo de produção de políticas públicas,
que se efectiva pela via da influência na eleição de candidatos e partidos. Se potencialmente existe um acordo razoável sobre esses efeitos, o mesmo já não ocorre em relação
aos chamados efeitos psicológicos, entendidos como a alteração do comportamento dos
políticos e cidadãos. Para entender estas questões, a autora recorre a duas abordagens
sobre o impacto das leis eleitorais na mudança do comportamento: o institucionalismo
da escolha racional e as teorias de modernização cultural.
122
Revista Científica Inter-Universitária
Economia, Política e Desenvolvimento
A abordagem da escolha racional defende a ideia de que as regras eleitorais formais
criam incentivos que moldam e constrangem o comportamento dos actores políticos139.
Nesta linha, os actores políticos são maximizadores racionais de votos em busca de cargos públicos electivos e que respondem de forma estratégica aos incentivos eleitorais,
adoptando estratégias consonantes com a necessidade de alcance dos seus objectivos.
Por sua vez, os cidadãos reagem às estratégias adoptadas pelos políticos e respondem directamente aos aspectos eleitorais que afectam o seu papel de cidadãos, com consequências claras no comportamento colectivo agregado. A engenharia eleitoral (a mudança das
regras eleitorais formais) gera consequências mais amplas, alterando o comportamento
estratégico dos políticos, cidadãos e partidos. Em suma, nesta linha de pensamento, a
alteração das regras eleitorais deve ter a capacidade de gerar consequências na representação política e no comportamento eleitoral (Norris 2006).
A vertente da teoria de modernização cultural é mais céptica em relação à capacidade de
a mudança nas regras eleitorais vir a mudar o comportamento político a curto prazo. Para
esta vertente, o comportamento político é resultado de um processo de modernização
societal que resulta no aumento do nível do capital humano (educação, alfabetização e
qualidades cognitivas). Esta modernização tem implicações na cultura política, que por
sua vez é transmitida através de um processo de socialização, colhido na infância e no
início da fase adulta, de tal forma que as elites políticas e os cidadãos são guiados mais
por motivações afectivas do que por um cálculo estratégico baseado nas recompensas
advindas das regras. Neste contexto, a engenharia eleitoral teria um efeito limitado na
mudança comportamental de curto prazo, embora as reformas possam ter um impacto
cumulativo a longo prazo, à medida que novas gerações crescem sob regras diferentes
(Norris 2006). Os políticos e partidos bem sucedidos seriam aqueles que têm a capacidade de seguir as tendências sociais e de adaptar-se aos padrões de comportamento do
eleitorado, ao invés de tentar moldá-lo.
Segundo a autora, apesar de uma aparente dicotomia, as duas vertentes podem explicar
satisfatoriamente o comportamento eleitoral, uma vez que evidências empíricas mostram
que a participação eleitoral tende a ser alta em sistemas que reduzem o custo de votar
(via recenseamento, acesso a mesas de voto, etc.), maximizam a competição partidária
e mantêm uma forte ligação entre as preferências dos cidadãos e os seus resultados na
governação. Por sua vez, em culturas com uma tradição de participação política, fruto
do capital humano derivado da modernização cultural, o comportamento dos eleitores
apenas será afectado marginalmente pela mudança de regras ou da administração eleitoral (Norris 2006).
Independentemente da vertente explicativa adoptada, se é assumido que a democracia
é o governo do povo para o povo, isto implica duas coisas fundamentais: que as instituições adoptadas propiciem a expressão genuína da vontade popular e que os políticos
possam ter estímulo para serem responsáveis perante os cidadãos, como uma forma de
responder aos estímulos e incentivos do contexto eleitoral.
139- O autor considera como regras eleitorais formais o quadro legislativo que governa as eleições, consubstanciado nos
documentos oficiais, convenções constitucionais, estatutos legais, códigos de conduta e procedimentos administrativos
criados por leis e cujo cumprimento é garantido pelos tribunais.
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123
Economia, Política e Desenvolvimento
A engenharia eleitoral deve estar focalizada na criação de incentivos que gerem um comportamento responsável por parte dos políticos e estimule a participação dos cidadãos,
sob risco de esvaziar a essência da relação de responsabilização que existe entre estes
dois e alijar os cidadãos da participação no processo político. Não havendo estímulo
para a participação dos cidadãos na produção das políticas públicas ou, pelo menos,
no exercício de uma certa influência através dos representantes, dificilmente se poderá
argumentar sobre a legitimidade do sistema, e isso poderá ter consequências negativas
na consolidação.
Reflexões e Desafios para a Reforma Eleitoral em Moçambique no Contexto da
Consolidação Democrática
Conforme indicado no início deste trabalho, há três elementos característicos do processo eleitoral em Moçambique no contexto da democratização e da democracia, nomeadamente a realização regular de eleições, a sistemática mudança de legislação em quase
todos os pleitos eleitorais e a contestação eleitoral. Todos esses elementos trazem em
si aspectos de crucial importância para a consolidação da democracia, que é pertinente
aqui indicar.
A realização regular de eleições
Desde 1994, com a introdução do multipartidarismo, Moçambique tem realizado eleições
regulares, apesar da forte dependência de recursos externos para o seu financiamento.
A par das liberdades que gradualmente se consagram, como as de imprensa, associação e outras, as eleições sobressaem como o traço mais nítido do processo democrático
moçambicano. No entanto, as taxas de participação mostram uma tendência de queda.
Apesar de alguns estudos feitos nesta área, as explicações ainda não são sólidas, por
várias razões, incluindo a intangibilidade do que estimula os eleitores moçambicanos a
votar.
Um estudo feito por Brito et al (2005), tendo como base as eleições gerais de 2004,
mostra dados contraditórios sobre o comportamento dos eleitores moçambicanos, ao
evidenciar que os padrões de apoio ao sistema democrático e aos partidos expressos pelo
universo estudado são dissonantes com o que ocorreu na realidade. Mais de 60% dos
inquiridos manifestaram a sua preferência pelo sistema democrático e mais de 70% disseram pertencer a um partido. Destes, mais de 90% manifestaram a sua preferência pelo
partido Frelimo e apenas pouco mais de 7% pela Renamo. Por outro lado, mais de 90%
declararam estarem recenseados e terem votado. Segundo o estudo, a sinceridade das
respostas é duvidosa, uma vez que historicamente (no contexto do multipartidarismo),
nem a Frelimo, nem a Renamo tiveram essas votações, e o nível de abstenção de 2004
foi de mais de 60%.
Estes dados, embora não sejam conclusivos, podem ser indícios de uma visão complexa do eleitorado em relação à democracia e ao processo eleitoral em si, o que levanta
questões sobre as suas reais motivações para participar. Conforme foi dito, desde 1994,
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foi havendo sucessivas mudanças na legislação eleitoral, mas a participação continua a
seguir a tendência decrescente. Sejam quais forem as razões, a fraca participação dos
cidadãos nos pleitos eleitorais pode ser algum indício de que não têm incentivos para
votar. A confirmar-se esta tendência, poderá continuar a manter-se a regularidade do
calendário eleitoral, mas sem a devida participação dos cidadãos. Por conseguinte, a
falta de adesão a um dos elementos essenciais da democracia, que é o direito de votar,
pode abrir espaço para a configuração de um sistema meramente rotineiro, em que os
mecanismos de representação não reflectem as preferências dos eleitores, ou simplesmente não são da confiança destes, uma vez que não têm incentivos para aderir. Esta
situação vai claramente na contramão da consolidação da democracia, porque levanta
questões sobre governos que são eleitos por uma margem reduzida dos cidadãos com
capacidade eleitoral.
Portanto, buscar as razões que estarão por detrás da decrescente participação eleitoral,
embora seja tendência em muitas democracias do mundo, é um passo importante para
entender os incentivos que os eleitores têm para participar no jogo democrático e, consequentemente, para definir as reformas eleitorais ou de outro tipo no sentido de promoção
ou estímulo da participação cidadã, com efeitos na legitimidade do sistema.
A sistemática revisão da legislação
A dinâmica da revisão da legislação eleitoral até aqui tem estado mais focalizada em
aspectos administrativos e de partilha de poder entre os dois actores políticos principais,
a Frelimo e a Renamo, e ainda não afectou aspectos essenciais de responsabilização,
representação e competição política. Estes dependeriam de uma redefinição do tipo de
voto – por exemplo, da actual lista fechada para um tipo de voto ordenável; do sistema
eleitoral em si – de proporcional para maioritário ou misto. Ironicamente, num sistema
fundamentado na partilha de poder, as sucessivas mudanças na legislação eleitoral têm
consagrado um sistema excludente – porque deixam de fora os partidos extra-parlamentares – não têm melhorado a competição partidária e apenas timidamente, e com efeitos
reduzidos, incluem a sociedade civil incipiente, através da sua participação relativa na
escolha do Presidente da CNE. Relativa porque a aceitação dos membros propostos pela
sociedade civil, que depois dá espaço para a escolha do Presidente da CNE depende
ainda dos partidos políticos em geral e do partido maioritário em particular.
A possibilidade de se recorrer à regra da maioria, se o consenso não for alcançado na
tomada de decisões na CNE, retira a eficácia e a pertinência da referência à formas consensuais de tomada de decisão, porque elas dependem essencialmente das conveniências
de coalizão maioritária e da confluência de interesses entre esta e a coalizão minoritária.
Em suma, esta mudança não eliminou a essência partidária da CNE, uma vez que a
sua composição ainda depende da anuência dos partidos com representação parlamentar. Logo, a mudança introduzida com a lei n.º 8/2007, apesar de aumentar a participação dos representantes da sociedade civil, pode não contribuir para a imparcialidade da
CNE, porque dá espaço aos partidos para escolherem figuras mais sintonizadas com os
seus interesses. A rejeição das candidaturas de Salomão Moyana, Alice Mabota e Tomás
Vieira Mário, figuras com um forte sentido crítico em relação ao regime do dia e à classe
Revista Científica Inter-Universitária
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Economia, Política e Desenvolvimento
política governante em geral (incluindo a oposição parlamentar), pode ser indício dessa
tendência.
Consequentemente, apesar da revisão da legislação na véspera dos sucessivos pleitos
eleitorais, até aqui não se reverteu o potencial de parcialidade dos órgãos de administração eleitoral, a CNE e o STAE, o que concorre para a manutenção de um sistema em que
os árbitros e os jogadores são os mesmos. Isto contribuiu para a transposição do conflito
político e da competição140 parlamentar para as arenas de administração e arbitragem
eleitoral, gerando tensões, baixa credibilidade e aceitação das decisões tomadas.
Mesmo na proposta de remoção da barreira eleitoral de 5%, defendida pela Frelimo e
negada pela Renamo, pode-se inferir alguns interesses estratégicos de ambos. Do lado da
Frelimo, a eliminação da barreira eleitoral de 5% pode trazer vantagens de várias formas.
Primeiro, poderá contribuir para a dispersão do voto num contexto em que crescem os
esforços para o fortalecimento do partido, já com uma considerável capacidade de mobilização, um forte conhecimento das instituições estatais e do país e também uma grande
disciplina partidária, aliada ao acesso a recursos que podem ser usados como moeda
política. Isto foi reiterado no seu IX Congresso, realizado em Novembro de 2006, ao se
condicionar a nomeação de quadros para cargos públicos à sua comprovada militância ao
nível da célula. Num contexto de fácil e potencial acesso aos recursos, devido às sucessivas vitórias eleitorais e ao domínio da máquina estatal e mesmo da economia, a Frelimo
tem mais possibilidades de consolidar o seu estatuto de partido dominante, mobilizando
os seus militantes para votar, de tal modo que mesmo em casos de fraca participação
eleitoral pode garantir a vitória do partido. Esta é, em parte, uma das explicações sugeridas para a sua esmagadora vitória nas eleições de 2004, que terá sido essencialmente
garantida pelo voto da militância, num contexto de fraca participação eleitoral. Numa
situação de fragilidade dos partidos políticos extra-parlamentares, a Frelimo pode estar
numa situação em que a força do seu maior rival ficaria reduzida.
O cenário pode ter mudado ligeiramente com o surgimento do MDM, que aparenta ter
alguma aceitação, mas a rejeição da sua candidatura em alguns círculos eleitorais devido
à supostas141 irregularidades detectadas pela CNE coloca a Renamo e a Frelimo em clara
vantagem. Por outro lado, os pequenos partidos que conseguirem concorrer às eleições
legislativas têm poucas oportunidades de conseguir assentos parlamentares, se tivermos em conta o seu passado histórico. Por exemplo, nas eleições de 2004 o terceiro
partido mais votado foi o Partido da Democracia e Desenvolvimento, com 60.758 votos
válidos (STAE, 2006). Se for levado em conta que o quociente eleitoral (número de
votos necessários para se ter um assento parlamentar) varia de acordo com o número de
eleitores de cada círculo eleitoral, mas nem sempre de forma linear,142 aliado ao facto de
140- No sentido de o Parlamento ser também uma arena em que os partidos competem, através da produção de políticas,
pela conquista dos votos dos eleitores.
141- Até a conclusão deste artigo a deliberação da CNE que ditou a rejeição das candidaturas ainda não era conhecida,
pelo que não há dados que permitam afirmar com segurança se houve ou não irregularidades.
142- Quer dizer que nem todos os círculos eleitorais têm o mesmo rácio assento parlamentar/n.º de eleitores, havendo
alguns em que para se obter um assento parlamentar são necessários mais votos (isso normalmente ocorre nas províncias
mais populosas).
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Economia, Política e Desenvolvimento
os partidos terem diferentes níveis de apoio no território, pode haver uma grande dispersão de votos entre os diversos círculos eleitorais, de tal forma que em nenhum deles
conseguirão obter um assento parlamentar. Desta forma, só os partidos pequenos com
um forte apoio eleitoral em círculos eleitorais específicos conseguirão obter assentos
parlamentares.
Relativamente à Renamo, a eliminação da barreira de 5% pode retirar o seu monopólio
de oposição parlamentar e contribuir para a dispersão dos votos. Por isso, apesar de se
auto definir como defensora da democracia, nessa base pode se explicar a sua defesa
de uma abordagem mais excludente do sistema eleitoral, e consequentemente de menos competição política. Essas tendências ficaram claras após a série de confrontos dos
membros deste partido com os membros do MDM e alegadas tentativas de assassinato
do seu líder, Daviz Simango.
Em suma, até aqui não foi feita uma reforma eleitoral como tal, porquanto não se mudaram os aspectos estruturais indicados acima. Pelo contrário, o sistema eleitoral surgido
num contexto específico de pacificação, que demandava consenso, acomodação e partilha de poder, tornou-se no foco de uma dinâmica negativamente adversarial e excludente,
com possíveis efeitos disruptivos no sistema democrático moçambicano, conforme testemunhado nos últimos pleitos eleitorais, com ênfase no de 1999. Isto ganha um peso
mais peculiar na forma como a contestação dos resultados eleitorais foi tratada.
A contestação eleitoral
A forma como a contestação dos resultados eleitorais de 1999 e de 2004 foi tratada remete-nos a uma reflexão sobre a judicialização e o juridicismo da política indicados acima.
A resposta dos órgãos a essas contestações, pelo Tribunal Supremo, em 1999, e pelo
Conselho Constitucional, em 2004, denotam a existência de um sistema de administração eleitoral com grandes lacunas de índole técnica, que levam a irregularidades, por um
lado, e a deficiências estruturais do sistema para reverter situações anómalas ao sistema
democrático. Aqui está-se com certeza no campo da relação entre Estado de Direito e
democracia, colocando-se a questão sobre o lugar que deve ocupar a vontade popular.
Conforme Hunguana (2006), o problema do contencioso eleitoral está na fraqueza técnica dos órgãos de administração eleitoral e dos partidos e candidatos, em termos de
conhecimento e aplicação da legislação, o que cria situações irregulares e anómalas que
poderiam ser evitadas. Mas se este elemento pode ser facilmente aceite e comprovado
pela análise da natureza dos recursos remetidos aos órgãos competentes, o mesmo não
se pode dizer em relação ao tratamento feito pelos órgãos competentes, num contexto de
fortalecimento das instituições democráticas. Aqui há duas vertentes do problema.
A primeira é o questionamento das razões para a persistência destes problemas, se nas
sucessivas revisões da legislação eleitoral o foco foi exactamente nos problemas de administração eleitoral, já sobejamente conhecidos e vivenciados nas eleições precedentes.
Cabe perguntar, que sentido teve a revisão eleitoral, se continuaram a persistir os problemas que provocaram as irregularidades nos outros pleitos eleitorais, como a contaRevista Científica Inter-Universitária
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Economia, Política e Desenvolvimento
gem dos votos, número de eleitores nas mesas de voto, etc? A resposta a esta pergunta
demanda uma análise aprofundada, mas o que se pode avançar é que a persistência
do problema, de uma forma ou de outra, revela a falta de interesse estratégico na sua
solução por parte dos actores relevantes, porque parece não afectar de forma crítica a
continuação do jogo eleitoral, pelo menos nos termos em que vem ocorrendo. Assim,
aceita-se conviver com o problema e não se investe na sua solução.
A segunda vertente do problema é a rigidez do processo em si, que, recorrendo a Hunguana (2006), é expressamente manifesto pelo Conselho Constitucional, no seu Acórdão
de Proclamação e Validação dos Resultados Eleitorais de 2004: os meios legais devem
ser actuados dentro dos prazos, sob pena de não haver nada a fazer, mesmo que haja irregularidades notórias. Esta abordagem, que tem mérito em qualquer Estado de Direito
Democrático, levanta questões de grande sensibilidade no contexto moçambicano. A
primeira é: até que ponto uma democracia em formação pode se dar ao luxo de conviver com processos eleitorais manchados por irregularidades e assim mesmo manter
a confiança e estabilidade no sistema. A segunda é: como é possível pensar-se na consolidação do sistema, se invariavelmente tem as suas eleições e opera num contexto de
inexperiência e conhecimento incipiente das regras pelos actores? Não estaria o sistema
desenquadrado da cultura política dominante, cuja adequação depende de vários factores
de modernização cultural, que contribuem para o desenvolvimento do capital humano,
conforme indicado acima?
A pertinência destas questões sinaliza a necessidade de uma reflexão profunda dos efeitos
que as mudanças nas regras eleitorais têm tido no comportamento dos actores políticos,
uma vez que parece haver uma considerável dissonância entre ambos. Nesta linha, é
pertinente pensar, no âmbito da reforma eleitoral, sobre os elementos que podem ajudar
a resolver ou mitigar estas dissonâncias, que até certo ponto podem perigar a continuação do sistema democrático. Afinal, a existência de eleições contestadas num contexto
de actores que não dominam as regras do jogo pode perpetuar a legitimação de processos
atentatórios à democracia sob a capa de legalidade, afastando o país da almejada consolidação democrática.
Conlusão
Este trabalho teve como objectivo analisar as questões e perspectivas da consolidação
democrática em Moçambique, tendo como base a reforma eleitoral. Da análise feita,
desponta a influência dos determinantes que estiveram por detrás do processo de democratização, com enfoque para a necessidade de partilha de poder pelos principais partidos
do País, a Frelimo e a Renamo, fruto do processo de pacificação que pôs cobro à guerra
que os opôs durante 16 anos. Estas condições determinaram a criação de condições mínimas para a realização de eleições regulares e a introdução de alguns aspectos de democratização, como a liberdade de imprensa e associação, mas ainda persistem problemas
de competição política, participação dos cidadãos e confiança em algumas instituições
que regulam e legitimam o processo eleitoral. Os sucessivos ajustes feitos à legislação
não podem ser vistos como uma reforma eleitoral no sentido estrito do termo, porque
não implicaram transformações profundas da situação existente aquando do início do
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processo de democratização, mas apenas contribuíram para a manutenção dos seus traços característicos, como a partilha de poder de forma bipolar, excluindo alguns actores
importantes do processo, com enfoque para os pequenos partidos e a sociedade civil.
Destas reflexões fica claro que a reforma eleitoral é um elemento crucial para a consolidação da democracia em Moçambique, porque toca num elemento importante do
sistema, mas a sua abordagem deve ser num sentido diverso do até aqui seguido, uma
vez que não tem conseguido garantir a adesão da sociedade ao jogo democrático, bem
como a aceitação dos resultados desse mesmo jogo. Deste modo, uma reforma eleitoral
que contribua para uma maior adesão dos actores políticos e para a aceitação dos resultados por todos (ou pelo menos grande parte dos actores) é um elemento crucial para
a consolidação da democracia, porque poderá consagrar dois aspectos importantes: a
primazia da democracia como o único jogo na sociedade e a ligação deste com as preferências e interesses da sociedade, manifesta pelo crescente incentivo desta de participar
nos processos políticos relevantes. Para tal, a reforma eleitoral deve abordar os aspectos
estruturantes da representação e legitimidade políticas, dentre as quais a promoção de
uma inclusão efectiva dos actores políticos relevantes nas instituições de representação,
assim como a criação de instituições de administração eleitoral com processos de selecção e decisão substancialmente representativos e credíveis. Com as eleições gerais de
28 de Outubro de 2009 à porta e os contornos que se desenham com a exclusão das candidaturas de alguns partidos, certamente, mais do que nunca, este debate é de extrema
necessidade para o futuro da democracia no País.
Revista Científica Inter-Universitária
129
Economia, Política e Desenvolvimento
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Economia, Política e Desenvolvimento
Biografia, memórias e Afirmação da Moçambicanidade 143
Elísio Jossias144
Resumo
O nacionalismo difundido pela Frelimo, antes e depois
da independência, permite olhar para a identidade nacional em Moçambique como processo histórico e eminentemente político-ideológico. No entanto, mais do que usar
este argumento para negar a existência de uma identidade
nacional moçambicana sugere-se, com base na reflexão
aqui feita, uma análise centrada na forma como os indivíduos se apropriam e articulam, discursivamente, as
categorias que sustentam a construção desta mesma identidade. Como opção metodológica seguiu-se a recolha e
análise das narrações dos percursos biográficos dos DFA,
o que é sustento pela ideia de que a identidade constitui-se
como acto de (auto)reconhecimento e de posicionamento perante as várias categorias definidoras da identidade
moçambicana. Palavras-Chave: Identidade, Identidade
Nacional, Moçambicanidade, Deficientes das Forças Armadas Portuguesas.
143- Este texto foi elaborado com base no trabalho de dissertação com o título, Entre a colónia e a nação: moçambicanos
deficientes físicos das forças armadas portuguesas, elaborado para a obtenção de grau de mestre em Antropologia no
ISCTE, Lisboa 2007.
144- Antropólogo, Docente do Departamento de Arqueologia e Antropologia, FLCS, UEM.
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Economia, Política e Desenvolvimento
Introdução
Não é possível falar da identidade nacional em Moçambique sem pensar nas relações
que se estabeleceram principalmente nas últimas três décadas da colonização. Não caberá neste artigo a discussão desta questão, contudo fica como aspecto a considerar uma
vez que é neste período que é fundada a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e o seu ideal libertador e, consequentemente, consolidam-se as bases que deram
origem à ideia de Moçambique como nação.
A independência proclamada em 1975 ao consagrar a FRELIMO como o único movimento político com legitimidade de governar o país, deu azo a que este movimento
procurasse aglutinar o país em torno de um pensamento único, o da construção de um
tipo de sociedade com base no pressuposto da ruptura com a situação colonial “herdada”
(Souto 2006). Neste processo, os líderes do movimento empenharam-se na “invenção” e
na “difusão” da identidade nacional, a “moçambicanidade”, que passou a ser suportada
pelo apelo a uma atitude anti-colonial (Ngoenha 1998; Liesegang 1998).
Neste artigo procuro situar os debates sobre a identidade nacional em Moçambique com
uma sugestão de abordagem que enfatiza o sentido que os indivíduos atribuem às suas
experiências (Cohen 1989) e a forma como (re)produzem e pensam a nação e seus símbolos. Para suportar estas discussões tomo como exemplo a (re)integração na “moçambicanidade” de certos grupos que tinham sido classificados como “traidores” da causa
nacional, os Moçambicanos Deficientes das Forças Armadas Portuguesas (DFA), em que
parto das narrativas do seu percurso biográfico e tento analisar o seu enquadramento no
ideal da moçambicanidade.
Para abordar esta questão considero que a análise dos percursos biográficos, vistos como
“elaborações” discursivas, e por isso mesmo subjectivas, permitem captar a forma como
as pessoas representam a sua individualidade (Ribeiro 1995; Bourdieu 1997), ou como
afirma Matsinhe (2001), citando Gusdorf (1991), que as narrativas sobre si constituem
momento da mediação entre o “Eu” e o “Outro” uma vez que a realidade social é um
“campo” de disputas pela legitimidade e representatividade.
Identidade Nacional: para além de “Comunidades Imaginadas”
A expressão “comunidades imaginadas” surge da obra de Benedict Anderson publicado
em 1983 para caracterizar os contextos de interacção em que os indivíduos não estão em
contacto directo (face-to-face), tal como numa nação. Neste caso o autor procura vincar
a ambiguidade objectiva da constituição da nação, negando deste modo a ideia de nacionalismo como simples ideologia e reconhecer o papel do Estado (entidade política) na
difusão dos pressupostos da nação.
Por seu turno Cohen (1989) propõe que se analise a comunidade como algo simbolicamente construído, como sistema de valores, normas e códigos de moral que dão sentido
às identidades dos seus membros. Neste caso dá ênfase aos “significados” que os membros constroem e atribuem à comunidade, por isso fala da diversidade das formas pelas
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Economia, Política e Desenvolvimento
quais o sentido de pertença é construído no contexto social local.
Comunidade implica simultaneamente similaridade e diferença, esta última noção dá
conta do processo relacional constitutivo dos limites de pertença. A noção de “limite”
vem na linha de Frederick Barth (1969) que significa a forma pela qual os processos
identitários são constituídos pela acção de delimitação das “fronteiras” de pertença no
acto de Inter-relacionamento entre indivíduos ou grupos. Seguindo esta linha de pensamento, Cohen afirma que a identidade individual constitui-se na e exige interacção
social (ibid. 12) e destaca a “subjectividade” como aspecto distintivo do processo de
interacção social o que sugere a possibilidade de imprecisão e ambiguidade dos sentidos
atribuídos à comunidade (ibid. 17).
Desta feita, as identidades, sejam elas individuais ou colectivas, constituem-se num
quadro de relações sociais que requer o reconhecimento das semelhanças e das diferenças. A identidade nacional é um tipo de identidade colectiva que implica uma consciência de comunidade política e que sugere a existência de um espaço social, território
demarcado e limitado com o qual os seus membros se identificam e ao qual afirmam
pertencer (Smith 1997).
Esta identificação com o território é muitas vezes, se não sempre, mediada pelo nacionalismo o qual fornece as bases para a existência das nações e os critérios formais que
definem a própria identidade nacional. Desta forma, o nacionalismo surge como um aspecto incontornável quando se procura analisar os fundamentos da identidade nacional.
Contudo, a ênfase no nacionalismo, ou nos mecanismos da sua constituição, não explica
a totalidade das dinâmicas que levam os indivíduos e os grupos a se identificarem com
a nação.
Davidson (2003) afirma que o estabelecimento da relação entre território nacional e
identidade requer um trabalho imaginativo no qual o local de nascimento é apenas usado
quando a referência é a dimensão nacional e não local e, deste modo, a estipulação
do local de nascimento tem a pretensão de juntar a identidade e o território. Anderson
(1991) já havia mostrado que na legitimação dos nacionalismos modernos está presente
a ligação do indivíduo com o local de nascimento.
Davidson (2003) ao afirmar que a unidade nacional assenta na historicidade do território e na territorialização da história enfatiza o princípio de que a identidade nacional
é um tipo de identidade cuja legitimidade assenta na existência de um território bem
delimitado. Abordagem semelhante encontra-se em Ngoenha (1998) quando apresenta a
moçambicanidade como uma identidade política territorializada e histórica.
Num outro desenvolvimento Macamo (1998) insiste no processo histórico e dinâmico
da afirmação da identidade nacional, ao que ele denomina por “moçambicanização”,
que é a forma como os indivíduos negoceiam com o meio social e imaginam a noção de
Moçambique. Na verdade está-se diante de uma abordagem que incide sobre a negociação de significados (Bhabha 1994) como o suporte da afirmação das identidades.
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Economia, Política e Desenvolvimento
Falar de negociação de significados que dão sentido à identidade nacional passa por
prestar atenção ao papel mediador da memória, a qual deve estar inscrita nos limites de
um território determinado, com história específica e onde se inscrevem os outros elementos que integram essa mesma identidade, tais como a língua, a economia, a moeda,
os símbolos nacionais e respectivos heróis (Sobral 2006). A memória tem o papel de
estabelecer a continuidade entre o passado e o presente, e é esta noção de continuidade
no tempo vazio e imemorial que constitui a base da existência de uma nação (Anderson
2005).
A memória ou memória social foi definida por Connerton (1993) como sendo a forma
como as nossas recordações do passado influenciam o presente, isto é, refere-se à forma como as imagens e as vivências do passado legitimam uma ordem social presente,
transmitida sob a forma de narrativas. É uma formulação que vai ao encontro da noção
de “invenção das tradições” (Hobsbawn e Ranger 1984), que procura traduzir o papel
ideológico do conjunto de práticas ritualizadas, discursos e símbolos que servem para
transmitir e “naturalizar” a ligação com o passado.
“Desportugalização” e a construção da identidade nacional
O protocolo que dissolveu os três movimentos145 que se tinham constituído nos países
vizinhos de Moçambique e que estabeleceu a constituição da Frente de Libertação de
Moçambique, assinado a 25 de Junho de 1962, constituiu o início da concretização da
ideia de construir Moçambique como um país e como uma nação. A análise feita a este
processo mostra que não pré-existiu um compromisso de constituição de um movimento
unificado de luta pela independência (Macquen 1997) e a constituição da FRELIMO
resultou de uma pressão externa sobretudo da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCEP), de Julius Nyerere e de Kwame Nkrumah
(Mondlane, 1995; Mateus 1999).
Sendo que o movimento que nasceu em 1962 era constituído por pequenos grupos que
tinham assumido inicialmente “projectos micro-nacionais” (Ngoenha 1998:20) o desafio
que se seguiu foi a tentativa de construir no seio do movimento uma ideia de “unidade”.
Este facto foi reconhecido pelo primeiro presidente do movimento, Eduardo Mondlane,
assassinado ainda no decurso da guerra em Fevereiro de 1969, quando escreveu:
“o movimento nacionalista não surgiu numa comunidade estável, historicamente
constituída, como uma unidade linguística, territorial, económica e cultural. Em
Moçambique foi a dominação colonial que deu origem à comunidade territorial
e criou as bases para uma coerência psicológica, fundada na experiência da discriminação, exploração, trabalho forçado e outros aspectos da dominação” (1995:
87).
A par de Mondlane, a construção de uma ideia de Moçambique como país independente
145- Os três movimentos que se uniram para dar origem a FRELIMO são a Mozambique African National Union
(MANU), criada em Tanganhica (Tanzânia) em 1959, a União Democrática Nacional de Moçambique (UDENAMO),
criada na Zâmbia em 1960, e a União Africana de Moçambique Independente (UNAMI), fundada no Malawi em 1961.
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Economia, Política e Desenvolvimento
nasce de uma “minoria educada” da qual constam os “assimilados” (Matsinhe, 2001:
184). Esta minoria vai influenciar a FRELIMO de duas formas: directamente, fornecendo líderes ao movimento, que vão ser determinantes na construção da sua ideologia
e, indirectamente, ao fornecer as bases para o desenvolvimento da consciência de um
Moçambique uno (Mondlane 1995; Mateus 1999).
A difusão da ideia de “Moçambique uno” partiu da constatação, por parte dos líderes do
movimento, das diferenças nas populações congregadas no território Moçambicano, daí
se compreender a opção por um “nacionalismo político” (Anderson 2005) que inicialmente vai assentar na denúncia da “experiência comum de sofrimento” e em acções que
visavam promover o reconhecimento e a consciência desse sofrimento (Cabaço 2002).
Quando em 25 de Setembro de 1964 o movimento nacionalista declarou o início da
guerra, defendeu o princípio da “guerra popular de libertação” que na prática significava
o desejo de envolver a maioria da população numa guerra de longa duração146. Esta
forma de fazer a guerra foi encarada pelos dirigentes do movimento como mais um
mecanismo que permitiria a construção da “unidade”, a constituição de uma consciência
de “moçambicanidade” e que iria contribuir para a eliminação das diferenças sociais.
A estratégia de luta e de mobilização das populações, quer das zonas rurais onde se
encontrava a grande base de apoio directo à luta, quer nas zonas urbanas, passava pela
declaração de Portugal como uma “força estrangeira” que invadiu Moçambique e dos
“portugueses” como os invasores de Moçambique e opressores do seu “povo”147. Este
processo enfrentou várias barreiras, sendo porventura a mais difícil a necessidade de
criar nas populações esta ideia de Moçambique como um todo. Este facto é reconhecido
por Mondlane quando afirma que em algumas regiões do território as populações não
tinham contacto com a administração colonial e por isso não tinham a consciência de
pertencer nem à “colónia” nem à “nação” (1995: 87).
Jacinto Veloso, proeminente dirigente da Frelimo, na sua autobiografia descreve alguns
exemplos dos procedimentos usados com o objectivo de “ensinar” e consolidar a noção
de “nação moçambicana” no seio do movimento e junto das populações. Veloso afirma
que para pôr em prática esta ideia houve necessidade de se elaborar um “Manual de Unidade Nacional” que serviu para “ultrapassar as barreiras da etnia, da religião e da cor da
pele” (Veloso 2006).
É desta forma que as zonas libertadas surgem no discurso nacionalista da FRELIMO
como o “laboratório” da nação onde se ensaiou a construção do Homem Novo, o que
pode ser visto nesta afirmação de Samora Machel:
146- Esta estratégia de luta resultava da influência chinesa no movimento e foi concebida como uma guerra feita e ganha
pelo “povo” e com grande envolvimento do “povo” em todas as acções, desde o combate armado até à produção, do
transporte de material ao reconhecimento do inimigo (Souto, 2003: 428)
148- A declaração do início da luta armada dizia: “ Moçambicanos e Moçambicanas, operários e camponeses, trabalhadores das plantações, das serrações e das concessões, trabalhadores das minas, dos caminhos-de-ferro, dos portos e das
fábricas, intelectuais, funcionários, estudantes, soldados moçambicanos no exército português, homens, mulheres e jovens, patriotas, em vosso nome, a Frelimo proclama solenemente a insurreição geral armada do povo moçambicano contra o colonialismo português, para a conquista da independência total de Moçambique” In Documentos do 3º Congresso
da FRELIMO, 3 a 7 de Fevereiro de 1977, pg.7
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Economia, Política e Desenvolvimento
“Quando falamos de zonas libertadas, não nos referimos apenas à ausência da presença militar e administrativa (…) o verdadeiro sentido de zona libertada é o de
zona que foi libertada das estruturas da dominação capitalista e colonial e feudaltradicional (…) As populações são organizadas pública e abertamente e vivem a
sua vida quotidiana orientadas e dirigidas pelas nossas palavras de ordem”148.
Posicionamentos desta natureza eram frequentes no seio dos membros do movimento
nacionalista e eram fundamentados pela ideia de que era o “povo moçambicano” que
lutava contra uma dominação estrangeira. Esta ideia fundadora foi muito usada na propaganda do movimento, na educação política dos guerrilheiros, nos panfletos que eram
publicados, nos contactos diplomáticos mantidos com alguns países que tinham aderido
à causa das independências dos países africanos. Podemos ver o exemplo do comunicado emitido pelo movimento em reacção ao golpe militar de 25 de Abril de 1974 em Portugal. Neste comunicado foram reafirmados os objectivos da Frelimo: “a independência
total e completa do povo moçambicano, a liquidação do colonialismo português”, dizia
ainda que “o povo moçambicano constitui uma entidade distinta do povo português,
possui a sua própria personalidade política, cultural e social que só pode ser realizada
pela independência de Moçambique” e concluía com a afirmação categórica de que “não
nos batemos para sermos portugueses de pele preta, batemo-nos para nos afirmarmos
enquanto moçambicanos…”149.
Como resultado dos Acordos de Lusaka, a FRELIMO passou a fazer parte do “Governo
de Transição” que vigorou até a proclamação da independência a 25 de Junho de 1975,
tendo-se constituído como governo da nova “nação”. Ainda em 1974, a FRELIMO decretou a constituição dos “Comités do Partido” nos locais de trabalho, de residência e
em todos os sectores da vida económica e social. Estes Comités foram concebidos como
órgãos de divulgação da ideologia política do movimento e órgãos de vigilância “contra
as tentativas de sabotagem”150.
Com a proclamação da independência, a FRELIMO transformou os Comités do Partido
em “Grupos Dinamizadores” que foram concebidos como estruturas político-administrativas do movimento e, consequentemente, do Estado e do governo. Estas estruturas
foram encaradas como mecanismos que levariam o povo a tomar o poder, ideia justificada pelo princípio de “democracia popular”151.
A FRELIMO vai pretender transformar o novo país independente numa grande “zona
libertada” tendo como palavra de ordem a ideia de “homem novo”. Tratava-se do modelo supostamente trazido da experiência da guerra que se procurou generalizar por todo o
país e era suportado pela seguinte justificação:
148- Samora Machel, O processo da Revolução Democrática Popular em Moçambique, Edições da Frelimo, Lourenço
Marques, s/d, p.46.
149- Declaração do Comité Executivo da FRELIMO em 27 de Abril de 1974.
150- “Datas e Documentos da História da FRELIMO”, Imprensa Nacional, 1ª edição, Maputo, 1975, pp. 165.
151- “Documentos da 8ª Sessão do comité central da FRELIMO”, Departamento de Informação e Propaganda da FRELIMO, Maputo, 1976,
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“Nós destruímos o sistema, destruímos essas estruturas e dissemos: zonas libertadas isto. Fora do controlo do inimigo, fora do sistema do inimigo. E criámos as
nossas estruturas. Essas estruturas nasceram da prática, nasceram da realização
diária das nossas tarefas (…) E temos sorte, porque as zonas libertadas são para
nós, fonte de inspiração”152. (sublinhado meu)
Samora Machel, na qualidade de primeiro presidente do novo país independente, realizou a primeira visita à província de Cabo Delgado, situada no Norte de Moçambique,
em 1976, palco das principais confrontações militares durante a guerra. Nesta visita,
ao passar por locais que durante a guerra estiveram sob influência das forças armadas
portuguesas, vai reafirmar o princípio da luta armada como produtor do “homem novo”
revolucionário e ao mesmo tempo que lamenta o facto da mesma ter terminado antes de
se concluir o processo de transformação da sociedade:
“A guerra deveria ter durado muitos mais anos. Tinha sido possível eliminar a presença
colonial da mente de muitas pessoas. Não aconteceu. E a alternativa põe-se. Ou as pessoas assumem o combate interno ou passam para o lado do inimigo. Entre a revolução e
a reacção não há meio-termo”153.
Como forma de integrar os objectivos da luta no contexto internacional, o movimento
definiu o “inimigo” como sistema colonial e não a população branca. Com a independência a necessidade de integrar as populações urbanas e de todas as áreas onde não tinha
ocorrido a guerra, a frente de combate adoptada nos primeiros anos vai ser a luta contra a
“mentalidade colonial”. Os antigos militares das forças armadas portuguesas assim como
todos os que directamente participaram nas instituições e organismos da administração
colonial, passaram a engrossar a categoria de “comprometidos” e “inimigos internos” a
combater porque assumiu-se que eles carregavam consigo a ideologia da dominação.
Nos primeiros anos da independência, principalmente entre 1975 e 1977, ano da realização do III Congresso, e até aos primeiros anos da década de 1980, o partido Frelimo154
traçou como objectivo principal “destruir as estruturas coloniais” e “implantar novas
estruturas” o que na prática significava a difusão da ideia de uma nova sociedade. A ideia
de “escangalhar” a estrutura do aparelho do Estado colonial, destruir a “mentalidade
colonial” e criar o “homem novo”, incorporava também o processo de integração da
população que não tinha experimentado o contexto da guerra “revolucionária”.
Com estas estratégias pretendia-se transformar aqueles que não tinham participado na
guerra e que eram considerados os “representantes dos valores do colonialismo” de modo
a assumirem os novos valores da revolução. A partir do momento que são identificados
152- Revista Tempo, nº 308, Revista Especial, pg.24 a 25, Discurso de Samora Machel em Cabo Delgado.
153- “Discurso de Samora Machel em Nangade”, Revista Tempo (Revista Especial) dedicada a visita do presidente a
Cabo Delgado, de 26 de Setembro de 1976, pg.3. Numa entrevista anterior a RT afirmou: “Eu gostaria que a guerra
tivesse durado pelo menos 15 anos. Pelo menos 15 anos. Teria transformado todas as mentalidades. Já não digo 20. Todo
o nosso país seria o que isto é (…) não tinha divergências, teríamos ganho a mesma experiência, a mesma visão, a mesma
capacidade de analisar”. In Revista Tempo, nº 308, de 22 de Agosto de 1976. pp. 50.
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Economia, Política e Desenvolvimento
como “colaboracionistas”, “comprometidos” ou “inimigos do povo” são colocados à
margem da sociedade, vigiados os seus movimentos e posteriormente submetidos a processos de “reintegração” que assumiram características ritualizadas. Os exemplos vão
desde as reuniões nas sedes dos Grupos Dinamizadores, os “Campos de Reeducação”, a
apresentação dos antigos inimigos em comícios populares como pessoas “purificadas”, a
exposição das suas fotografias e pequenas biografias nos “jornais do povo” das empresas
e dos locais de habitação, conferências de imprensa de apresentação dos “purificados”155.
Todo este processo culminou com a realização da “reunião dos comprometidos” em
Maio e Junho de 1982 que foi antecedida por uma fase que ficou conhecida por “vigilância popular” que significava a responsabilização das populações na identificação e
integração dos “traidores do povo” no novo contexto político e social.
Do surgimento dos DFA à constituição da Associação
A história dos DFA em Moçambique está directamente ligada à guerra de libertação e
às opções políticas tomadas depois da independência uma vez que esta categoria ganha
maior visibilidade no contexto de reivindicação dos direitos negados tanto pelo Estado
moçambicano como pelo Estado português. A Associação dos Deficientes das Forças
Armadas Portuguesas em Moçambique (ADFAPM) foi constituída em 1990, ano da
aprovação da nova Constituição que introduziu o princípio a liberdade de associação156,
e formalmente reconhecida pelo Estado moçambicano em 1997. O “mito de origem”
desta associação está ligada à figura de um adido militar que esteve em funções na Embaixada de Portugal em Moçambique entre os anos 1980 e 1990.
A maior parte dos deficientes com quem contactamos foi incorporada entre 1969 e 1971,
período em que se verificou o aumento do número de recrutamentos, que coincide também com a intensificação da guerra e consequentemente das baixas militares. Os dados
sobre o número de mortos e feridos na guerra ainda não são consensuais e sobre as
tropas recrutadas em África o que há são algumas aproximações e muita especulação por
falta de estudos aprofundados, consequência também da falta de dados, uma vez que as
forças militares de recrutamento local assumiram contornos diversos, alguns dos quais
fora do controlo do exército (Coelho 2003).
Em 1975 encontravam-se formalmente reconhecidos como mutilados de guerra pelas
autoridades portuguesas um total de 883 ex-combatentes e destes, 148 já beneficiavam
de pensão definitiva atribuída pela Caixa Geral de Aposentações e cerca de 400 beneficiavam de “pensão provisória”. As Pensões Provisórias eram pagas a partir do momento
em que o militar era considerado incapaz de cumprir o serviço militar devido a doenças,
acidentes ou ferimentos contraídos ao serviço das forças armadas158.
155- Na Revista Tempo nº 292, de 9 de Maio de 1976, pp 39-43, aparece uma reportagem extensa da Conferência de
Imprensa dada que serviu para apresentar João José Craveirinha Júnior como retornado do Campo de Reeducação. O
visado afirma o seu arrependimento por ter desertado das fileiras da FRELIMO em 1972, o facto de se ter juntado aos
“colonialistas” e de ter colaborado com a PIDE e faz grandes elogios ao processo de reeducação afirmando a sua importância na educação política.
156- Um ano depois foi aprovada a Lei das Associações (1991).
157- Ver os trabalhos de Rui Costa Maia (1998), Luís Quintais (2000) e Humberto Rodrigues (2000).
158- “Gabinete do Adido de Defesa da Embaixada de Portugal em Moçambique: Lista de Deficientes das Forças Armadas
Portuguesas”, (s/d) documento consultado na ADFAPM, Maputo em 22/04/2007.
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É no decorrer da guerra de libertação que irá surgir o estatuto de DFA consequência do
aumento de pessoas com ferimentos resultantes da participação no conflito. Para responder a esta situação foram aprovados alguns decretos que procuravam garantir a assistência e reformas, respectivamente em 1963, 1964, 1970, 1972 e 1973, e em grande
parte desta legislação o DFA foi equiparado ao funcionário público, com os mesmos
benefícios e as mesmas condições de aposentação (Sertório 2001).
Pelo Decreto-lei nº 210/73, de 9 de Maio de 1973, surge a primeira definição do DFA
como sendo “o militar que, tendo combatido na guerra de África, apresentasse algum
grau de incapacidade por ela causado ou agravado”. O mesmo decreto estabeleceu a possibilidade dos DFA solicitarem o reingresso no serviço activo voltando a ocupar o posto
e lugar que tinham antes da incorporação (Ibid. 221-222). É com base neste Decreto que
os militares recrutados nas colónias para o exército regular passaram a beneficiar de assistência em casos de acidentes.
Registada nos Acordos de Lusaka, assinados entre Portugal e a FRELIMO a 7 de Setembro de 1974 e que conduziram à proclamação da independência em 1975, fica a imposição
da FRELIMO em desmantelar todas as unidades militares criadas em Moçambique, retirar as tropas portuguesas até à véspera da proclamação da independência e desmobilizar
as tropas de recrutamento local incorporadas nas forças armadas portuguesas.159
Do lado oposto, Portugal queria que o futuro governo de Moçambique integrasse, no seu
futuro exército, parte dos homens de recrutamento local que estavam nas forças armadas
portuguesas ao que a FRELIMO recusou, exigindo a sua desmobilização imediata e o
desmantelamento de todas as forças militares, militarizadas e paramilitares que tinham
sido constituídas durante os anos da guerra, alegando que elas faziam parte da máquina
colonial que tinha que ser desmantelada (Coelho 2003). Iniciava desta forma a qualificação destes grupos como “inimigo interno”, “colaboracionistas e comprometidos” com
o colonialismo.
A FRELIMO apresentava muitos receios em relação aos efectivos que tinham pertencido
às forças armadas portuguesas e principalmente em relação ao grupo de tropas especializadas como os Comandos, os Flechas, os Grupos Especiais (GE) e Grupos Especiais
Pára-quedistas (GEP). Havia o receio da “conspurcação” ideológica e material que a
tropa que serviu o exército inimigo pudesse exercer junto de um exército movido por
ideais “de pureza revolucionária”, isto porque os guerrilheiros ocuparam um lugar de
destaque no movimento. Por isso rejeitou-se desde o início da guerra a separação entre
políticos e militares, e por isso “as Forças Populares de Libertação de Moçambique
(FPLM) constituíam o último reduto de pureza revolucionária” (Ibid.).
Seguiu-se um período, Setembro de 1974 a Junho de 1975, em que vigorou um “Governo
de Transição” constituído por representantes da FRELIMO e de Portugal e uma “Comissão Militar Mista” com a responsabilidade de supervisionar a evacuação das forças armadas portuguesas, supervisionar o desarmamento das forças militares e militarizadas
159- “Acordo de Cessar-fogo entre a Frente de Libertação de Moçambique e o Estado Português” (Veloso, 2006: 277-280).
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Economia, Política e Desenvolvimento
existentes, nomeadamente Grupos Especiais (GE), Grupos Especiais Pára-quedistas
(GEP), Flechas, Milícias, Guardas Civis, Organização Provincial de Voluntários de Defesa Civil (OPVDC) e assegurar a desmobilização dos efectivos recrutados localmente
garantindo assim a ordem pública160.
A ideia que fica nos vários registos, quer dos DFA quer de alguns membros da Frelimo161,
é de que a FRELIMO e Portugal acordaram que os DFA seriam assistidos por Portugal
enquanto fossem vivos. Em referência ao período que se seguiu à independência, os DFA
falam do cancelamento da sua assistência em Moçambique e as razões estão relacionadas com o encerramento das Finanças das Forças Armadas como resultado do fim das
actividades das Forças Armadas Portuguesas no território moçambicano.
Devido a este cancelamento, ainda em 1975, grupos de Deficientes manifestaram-se junto da Embaixada e da casa do Embaixador de Portugal em Moçambique para reclamar
a falta de clareza em relação à sua situação e exigiram a reposição dos pagamentos ora
cancelados162. Como resultado destas manifestações Portugal transferiu para o Governo
de Moçambique o correspondente ao pagamento das Pensões de acordo com os valores
vigentes antes da independência e o Ministério das Finanças de Moçambique procedeu
ao pagamento das Pensões aos DFA de acordo com a tabela de pensões em vigor na
altura163.
Do outro lado os mutilados de guerra constituíram em Portugal a Associação dos Deficientes das Forças Armadas Portuguesas (ADFA), a 14 de Maio de 1974, no meio de
muitas reivindicações e manifestações públicas. Nos seus manifestos os membros da
ADFA também irão reclamar uma maior responsabilização do Estado português na sua
reabilitação e inserção social e denunciaram sobretudo a sua marginalização na sociedade (Sertório 2001).
Depois da sua constituição e reconhecimento pelo Estado português, a ADFA inicia um
movimento de pressão junto do Estado na tentativa de obter um maior reconhecimento
para os deficientes das forças armadas o que resultou na revogação do Decreto-lei nº
210/73. Em seu lugar foi aprovado o Decreto-lei nº 43/76, de 20 de Janeiro de 1976,
que passou a considerar como DFA todos os militares que combateram no ultramar e
outros que tivessem sofrido acidentes em serviço equiparado e no qual o Estado assume
a responsabilidade da sua reabilitação e integração164. A partir do disposto na lei o Estado
português passou a responsabilizar-se pela “reparação”, “reabilitação” e “assistência”
aos cidadãos portugueses “que se sacrificaram pela pátria” mas esta Lei não faz nenhuma
alusão aos ex-combatentes que ficaram em África.
160- Ibid.
161- Conversa com Jacinto Veloso, membro e dirigente do partido Frelimo que participou nas negociações dos Acordos de
Lusaka, foi várias vezes ministro tendo ocupado várias pastas, deputado, na área de cooperação. Disse não se recordar de
nenhum acordo escrito mas confirmou que a FRELIMO exigiu que Portugal devia tomar conta daqueles que fizeram a sua
tropa (entrevista no dia 04.06.2007).
162- Não foi possível obter a confirmação da data de realização destas manifestações mas os DFA indicam o mês de Setembro de 1975, 3 meses depois da independência.
163- Entrevista com um DFA.
164- Art. 1º, nº 2. “É considerado deficiente das forças armadas portuguesas o cidadão que: no cumprimento do serviço
militar e na defesa dos interesses da Pátria adquiriu uma diminuição na capacidade geral de ganho”.
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Na sequência das pressões feitas aos governos africanos, principalmente na Guiné e
Moçambique, em 1982 Portugal aprovou o Decreto-lei no nº 348/82, de 3 de Setembro,
que no artigo 1º estabelece o seguinte:
“Mantêm o direito às pensões de reforma e de invalidez os cidadãos nacionais
dos países africanos de língua portuguesa que, enquanto nacionais portugueses, se
incapacitaram ao serviço das forças armadas portuguesas e satisfaçam, conforme
os casos, as disposições legais que regulamentavam para os cidadãos nacionais do
recrutamento ultramarino, em idêntica situação, o direito às mesmas pensões”.
A justificação desta medida vem no preâmbulo da Lei que começa por lembrar que o Estatuto de Aposentação (Decreto-Lei nº. 498/72) prevê a extinção de aposentação no caso
da perda da nacionalidade portuguesa mas, neste caso, abre-se uma excepção:
“por conta de acordos bilaterais com países africanos de língua portuguesa impõese ao Estado Português o pagamento de pensões de reforma, invalidez e preço de
sangue a cidadãos, hoje estrangeiros, que fizeram parte das forças armadas portuguesas ou com estas colaboraram”.
Estamos perante o reconhecimento da existência de acordos entre Portugal e as excolónias para a assistência aos “deficientes”. O decreto prevê o estabelecimento de acordos bilaterais com os países africanos de língua portuguesa para a concretização desses
pagamentos. No entanto não foi possível encontrar o referido acordo. Sobre a mesma
matéria os DFA falam da recusa por parte do governo de Moçambique em estabelecer tal
acordo, e tem sido esta justificação que eles usam para dar legitimidade a aquisição da
nacionalidade portuguesa.
O contexto político não irá favorecer esta última opção porque para o partido Frelimo a
independência significava a ruptura com a ordem colonial e a construção de uma nova
sociedade e é por isso que os primeiros anos da independência foram marcados por
acções que visavam reconciliar uma sociedade marcada por muitos conflitos que envolviam grupos sociais com interesses diversificados, aspectos raciais e tribais, muitos
deles manipulados durante anos pela administração colonial portuguesa.
Por uma questão estratégica Portugal não representava o grupo dos “bons” amigos de
Moçambique quer devido ao passado recente de colonização quer pela sua associação
ao capitalismo. E não convinha ao poder político ter Portugal como “amigo” uma vez
que a ideologia destes primeiros anos era de ruptura com uma identidade portuguesa e a
construção de uma identidade moçambicana singular.
Os primeiros moçambicanos na qualidade de “mutilados das forças armadas portuguesas” foram a Portugal entre 1982 e 1985 e regressaram 4 anos depois sendo portadores da nacionalidade portuguesa e como reformados do Estado português com direito
a uma Pensão mensal. A permanência em Portugal por este período deveu-se a dois
aspectos fundamentais: adquirir a nacionalidade portuguesa e a conclusão do processo
de atribuição da reforma. O primeiro aspecto é indispensável para a classificação como
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DFA e consequentemente para a atribuição da Pensão Definitiva (reforma).
Os “regressados” passaram a ter encontros regulares no Bairro da Malhangalene em Maputo onde ficam situados os prédios da “Fundação Salazar” construídos durante o tempo
da guerra para albergar os DFA. Destes encontros saiu a ideia de criar uma associação
igual à que tinham visto em Lisboa a qual passou a denominar-se ADFA – Núcleo de
Moçambique.
Já com a Associação constituída os DFA iniciaram com a limpeza das campas dos soldados mortos em Moçambique que se encontram no cemitério “São Francisco Xavier”
no centro da Cidade de Maputo. Depois do reconhecimento como núcleo da ADFA
começaram a receber apoios do Consulado e da Embaixada de Portugal em Moçambique
e foi com esse apoio que se construiu a actual sede da Associação que fica localizada nas
imediações dos prédios da “Fundação Salazar” ao longo da Avenida da Malhangalene.
Como primeiro passo para o reconhecimento como DFA é necessário tornar-se membro
da ADFAPM e este processo é feito mediante o preenchimento de uma ficha com os
dados sobre o ano de recenseamento, o ano da incorporação, o número mecanográfico
(número de identificação como militar), a especialidade militar, o posto que ocupou enquanto militar, a companhia a que pertenceu para além de descrever o momento do acidente. Estes dados são confrontados com a lista dos “mutilados” existente na ADFA que
foi fornecida pelo Gabinete do Adido Militar a mesma que foi entregue às autoridades
moçambicanas em 1975.165
De Maputo o processo segue para Lisboa e passa para a responsabilidade da ADFA.
Daqui seguem os procedimentos previstos para accionar o pagamento de pensões aos
DFA. Em Lisboa os DFA ficam na responsabilidade do Estado português até a conclusão
do processo quando a Caixa Geral de Aposentações aprova a atribuição da Pensão Definitiva e dos respectivos retroactivos de acordo com o nível de desvalorização. Nota
importante é que este processo não leva menos de 4 anos, havendo casos que demorou
mais de 6 anos na sua maioria passados em Portugal.
Percursos individuais dos DFA: reviver a relação colónia/nação
Ao analisar a forma como os DFA reconstituem o seu percurso biográfico nota-se que
estamos diante de um processo de avaliação, ou de racionalização a posterior (Bloch
1992), dos contextos que servem para dar sentido da sua identidade enquanto membros
legítimos de uma nação. Trata-se de um momento de (auto) reflexão em que ocorre a selecção dos aspectos que caracterizam o discurso da nação moçambicana, com referência
aos últimos anos da colonização e aos primeiros anos da independência, e é também um
momento de posicionamento perante as várias possibilidades de categorização.
165- Esta lista não contém data. Em contacto com o Gabinete do Adido Militar na embaixada de Portugal em Maputo não foi
possível confirmar a data da elaboração do documento. Mas os DFA confirmam que o documento foi entregue em Setembro
de 1975.
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Quando solicitados a contar as suas experiências de vida em Moçambique (percursos biográficos), apresentam uma narrativa com a seguinte estrutura: a) descrição do momento
da incorporação ou recrutamento para o serviço militar; b) descrição do momento do
acidente e a saída das forças armadas; c) a independência e a integração na “nova” sociedade; e d) descrição do momento da viagem para Portugal e o regresso a Moçambique.
Se tivermos em conta que ser DFA é uma situação que tem como implicação a confrontação com os pressupostos ideológicos da moçambicanidade, assumir esta identidade
obriga a elaborar um discurso justificador que tende a legitimar a sua moçambicanidade.
Reclamar o direito de serem assistidos por Portugal em nenhum momento é mencionado
como reivindicação da cidadania portuguesa.
Por isso compreende-se quando eles referem a sua participação nas forças armadas portuguesas como resultado de uma obrigação e coerção por parte do poder colonial. Ao se
apresentarem como vítimas do sistema colonial os DFA procuram criar uma espécie de
elo de ligação com os camaradas do partido Frelimo e, deste modo, conseguem projectar
para si a legitimidade de pertencer à moçambicanidade ao incorporarem o mesmo valor
ideológico associado ao passado do “povo moçambicano”, a “narração de sofrimentos”
(Cabaço 2002) ou a “consciência de exploração” (Matsinhe 2001).
A utilização da identidade de DFA é feita no meio do silêncio, prova de que eles se ressentem do discurso condenatório produzido pelo Estado depois da independência e é com
base nestes elementos que (re) constroem também a sua moçambicanidade o que revela a
influência do processo de “ideologização” levado a cabo pelo partido Frelimo no esforço
de “construção” da nação depois da independência, ao mesmo tempo que transportam
consigo os conflitos prevalecentes sobre a (i)legitimidade da sua moçambicanidade. Trata-se daquilo que Rafael da Conceição chamou de “mito da resistência anti-colonial” que
deu origem à exclusão e discriminação de certas camadas ou grupos de cidadãos (Conceição 2006). No caso vertente dos DFA estes serão afectados pela demarcação de fronteiras entre “camaradas”/“comprometidos”, “revolucionários”/“inimigos do povo”,
“(com) patriotas”/“reaccionários” ou “traidores”, que prevaleceu nos primeiros anos
da independência até meados dos anos 1980 e que simbolicamente foi eliminada dos
discursos oficiais com a realização da “reunião dos comprometidos”166.
Como forma de contornar as diversas acusações os DFA recorrem a argumentos do tipo:
“sempre fui moçambicano”, “nunca me identifiquei com Portugal”, “tive oportunidade
de ir a Portugal mas não fui porque minha terra sempre foi aqui”. E os que estão em
Portugal a tratar dos processos de reforma afirmam que: “nós somos moçambicanos,
nascemos em Moçambique e queremos voltar para lá, viver lá, é lá a nossa terra”167.
Aqui também denota-se o facto de eles recorrerem ao local de nascimento como forma
de dar legitimidade e autenticidade da sua identidade nacional. O local de nascimento
fornece aos DFA uma base sólida para a afirmação da moçambicanidade na ausência de
166- “Reunião dos comprometidos” realizou-se em Maio e Junho de 1982 e juntou antigos elementos da PIDE, da ANP,
Tropas, Madrinhas de Guerra, OPVDC, Comandos, GE, GEP, Flechas, Administradores, Régulos, Sipaios, Agentes da Psicossocial, “membros de partidos fantoches”, membros da assembleia legislativa provincial.
167- Entrevista com Titos, ex-Furriel Atirador do exército português (Ribeiro, 1999:31).
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outros elementos difundidos pelo movimento nacionalista, principalmente o anti-colonialismo. Mesmo assim não aceitam a simples acusação de alinhamento com o poder
colonial.
Quando questionados sobre o facto de possuírem a nacionalidade portuguesa, consequência dos requisitos para beneficiarem das reformas, apresentam um argumento de
vitimização dizendo que não tiveram outra alternativa para receber assistência na qualidade de DFA: “só queremos a nacionalidade para ter uma reforma, pois nós jurámos à
bandeira, lutámos por ela e fomos feridos a defender Portugal”168. Esta nacionalidade
formal, comprovada por documentos, assume nos discursos dos DFA o seu lugar formal
de acto administrativo que não se situa ao nível da identidade nacional porque não pressupõe um vínculo identitário do tipo “umbilical”.
Conclusão
A conclusão que tirámos destas narrativas sugere que a legitimidade e a autenticidade
da moçambicanidade proclamada pelos DFA passa pela incorporação dos aspectos manipulados pelo partido Frelimo, sobretudo o discurso que faz referência à experiência
comum de sofrimento e ao “mito de resistência anti-colonial” enquanto condições da
moçambicanidade. Isto é visível quando se referem aos recrutamentos militares caracterizando-os de obrigatórios e compulsivos, quando procuram vincar as diferenças de
tratamento entre os soldados brancos e soldados negros, das perseguições e vigilâncias
que eram objecto por parte da PIDE e finalmente a referência ao seu envolvimento na
denúncia daquilo que classificam como atrocidades cometidas por soldados brancos contra as populações rurais.
É também na questão política, enquanto aproximação ao partido Frelimo, que repousa
a afirmação da moçambicanidade por parte dos DFA. Em primeiro lugar porque “o ser
moçambicano estava ligado não apenas à terra de nascimento, mas também a um gesto
de vontade” (Thomaz 2004: 273). Em segundo lugar porque a questão política referese à identificação enquanto membro ou não do partido Frelimo se atendermos que este
partido continua a ser determinante na forma como imaginário e a memória da afirmação das identidades particulares e da identidade nacional são reconstituídos. Da parte
dos DFA, todo o esforço vai no sentido de evitar qualquer confrontação com o partido
Frelimo e neste ponto as afirmações do tipo: “mas quem não é da Frelimo neste país não
sobrevive….”, “Eu também sou da Frelimo, tenho cartão e tudo e não sei qual é o teu
partido, e se tens ou não, mas neste país só existe a Frelimo como partido, o resto veio
depois”169, permitem compreender as várias representações que demarcam o contexto
social da produção das representações sociais em Moçambique.
168- Ibid.
169- Entrevista no dia 2 de Março de 2007, Maputo.
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O partido Frelimo continua no poder desde a proclamação da independência e nos últimos anos vem se desdobrando em acções que procuram “recuperar” as figuras que do
ponto de vista dos seus ideólogos são representativas da unidade nacional ou da moçambicanidade, e como não deixaria de ser, a sua legitimidade está intimamente ligada a
guerra contra o colonialismo português. Logo, continua a ser o partido Frelimo que legitima os critérios da moçambicanidade e das restantes identidades sociais e culturais.
Os indivíduos e grupos aprendem a dominar as práticas e os discursos legitimadores
da moçambicanidade, ao mesmo tempo que incorporam as categorias da identidade
nacional difundidas pela Frelimo de forma diferenciada. Esta conclusão sugere que a
identidade configura-se de forma processual e afirma-se de forma estratégica (Vale de
Almeida, 1999) com base na apropriação das categorias historicamente produzidas e
difundidas. O recurso à naturalização e ao local de nascimento serve de suporte para os
DFA afirmarem a sua identidade enquanto moçambicanos fazendo deste modo ancoragem às várias categorias que fazem parte do seu universo, real e imaginário, onde estes
elementos têm a sua significação, Moçambique.
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