Nossa, Paulo Nuno Sociedade e Cultura 1, Cadernos do Noroeste

Transcrição

Nossa, Paulo Nuno Sociedade e Cultura 1, Cadernos do Noroeste
Nossa, Paulo Nuno
Sociedade e Cultura 1, Cadernos do Noroeste, Série Sociologia / 2000
Volume 1
do Minho
[email protected]
Epidemiologia, Mobilidade e Comportamento Social – o caso do VIH
Resumo: Tendo como base a eclosão de uma “nova” doença, cuja difusão e
consequente mundialização constitui uma das mais violentas epidemias deste século,
abordaremos a concertação de um conjunto de factores políticos, sociais, económicos
e sanitários tidos como facilitadores do actual status quo do SIDA, dos quais
destacamos a mobilidade. No caso particular da infecção por VIH, a evolução
temporal/espacial da patologia confronta as sociedades contemporâneas no que
respeita às suas crenças, atitudes e comportamentos, constituindo-se como catalisador
incontornável no que respeita à emergência de novas práticas preventivas e ao
exercício da sexualidade, emergindo simultaneamente como factor de risco, inovação
e tolerância.
Summary: Starting on outbreak of a “new” disease, whose diffusion and consequent
globalization settle down one of the most violent epidemics of this century, we will
approach the contribution of political, social, economics and sanitary factors, which
become easy the actual path way of Aids, highlighted the mobility. In particular case
of infection for HIV, the temporal/spatial evolution of the pathology confronts the
contemporary societies in what it respects to its faiths, attitudes and behaviors. By this
way, it becomes in a major modifier agent in what respects to the emergency of new
preventive practices and the exercise of the sexuality, emerging, simultaneously, as
risk factor, innovation way and tolerance factor.
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 2
1.1 – Mundialização de uma "nova" doença
O início dos anos 80 testemunhou o aparecimento de uma "nova" e estranha doença cuja
patologia infecciosa escapava aos modelos clássicos. Manifestava-se em indivíduos na sua
maioria jovens, através de uma ou mais infecções concomitantes de inusitada severidade e
persistência, aparentando a falência do sistema imunitário, conduzindo à morte num lapso de
tempo relativamente curto.
A opinião pública foi alertada para este facto através de um artigo editado no - New York
Times - de 3 de Julho de 1981, intitulado: « Cancro raro detectado em 41 Homossexuais ».
Estava dado o alarme e referenciado um grupo de pertença. A esta data, a classe médica e a
sociedade em geral estavam longe de suspeitar que a afecção inicialmente registada em 26
doentes sob a forma algo atípica de sarcoma de kaposi, ou constituindo formas graves de
pneumonia e meningite criptocócica, assinalavam o eclodir de uma grave e extensa epidemia
que viria a marcar de uma forma sem precedentes os esforços da medicina moderna,
permitindo-nos acumular em apenas 12 anos mais conhecimentos sobre o VIH1 do que sobre
qualquer outro vírus (Merson, 1993).
Do ponto de vista social, a eclosão desta síndrome foi acompanhado por um ambiente de
quase histeria, sinalizando o pânico sob a forma de severa discriminação e estigmatização,
originando interpretações abusivas, conectando a letalidade da doença com actos de punição
que se abateriam sob comportamentos ou preferências sexuais liberais. Estaríamos pois na
presença de uma qualquer patogénese selectiva, um mal que parecia não se abater sobre
«gente honesta» (Grmek, 1990).
Para além dos aspectos clínicos típicos da infecção em causa, todos os indivíduos nesta pool
inicial, revelavam orientações homossexuais, admitiram inalar com frequência substâncias
1
- VIH (Human Immunodeficiency Virus; Vírus da Imunodeficiencia Humana) - nome atribuído ao vírus
causador da SIDA (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida) em Maio de 1986 por uma comissão de
nomenclatura virológica, pondo fim a um diferendo internacional sobre a designação e paternidade da descoberta
do vírus (1983) entre dois investigadores; Luc Montaigner [Instituto Pasteur, Paris] e Robert Gallo [Laboratório
Robert Bassin, Bethesda] (Grmek, 1990).
2
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 3
químicas vulgarmente designadas por "poppers"2. Apenas um declarou a utilização
endovenosa de drogas.
Até à conquista de explicações etiológicas convincentes, um aspecto comportamental comum,
a homossexualidade, desempenhou nos primeiros estádios desta epidemia um papel
importante, levando à suspeição de estarmos perante uma Doença Sexualmente Transmissível
[DST], típica de determinado grupo, facto por demais evidente em algumas das designações
iniciais propostas para identificar este síndrome: «pneumonia gay» e «cancro gay».
Apesar da verdadeira etiologia da doença permanecer desconhecida, o contágio através de
contactos íntimos parecia evidente, tanto mais que ainda não se haviam registado quaisquer
casos fora da comunidade homossexual, embora alguns doentes confirmassem a utilização
endovenosa de drogas, constituindo uma potencial porta de infecção através da reutilização de
material não esterilizado.
Em comum permaneciam práticas sexuais heterodoxas, muitas delas traumáticas, com
exposição a pequenas quantidades de sangue e fezes, factores desde logo assinalados como
potenciadores do risco de infecção, juntando-se a aspiração continuada de "poppers" e a
permanência em ambientes promíscuos frequentados por algum do "submundo homossexual".
Sentindo-se particularmente visada e responsabilizada, a comunidade gay, bastante activa e
organizada nos EUA, reage de uma forma algo violenta, defendendo a inocuidade das suas
preferências face à patologia em causa e acusa a designação de «cancro gay» como uma
invenção homofóbica3, aceitando no máximo, como explicação etiológica, o efeito de um
qualquer factor ambiental sem qualquer relação com as suas práticas (Grmek, 1990).
2
- Poppers: substância química composta por nitrito de amilo ou de butilo. Líquido de rápida evaporação com
odor a banana, cujo nome se deve ao ruído característico produzido pela quebra da ampola onde está
armazenado. Quando inalado provoca vasodilatação favorecendo o aumento da intensidade do orgasmo (Grmek,
1990).
3 - Mais tarde, já com a etiologia do VIH perfeitamente definida e caracterizada, grupos reticentes elaboraram
um pastiche sobre a designação oficial de SIDA referenciando-a como: Síndroma Imaginária para Desencorajar
os Amantes.
Durante a IXth International Conference on AIDS - Berlim -1993, e na XII World Conference on AIDS, Genebra,
1998, grupos activistas anti-VIH, distribuíram panfletos acusando a classe médica de inventar o SIDA como
forma de dilatar os seus proventos.
12 years of the AIDS-lie are enough! / HIV is good for you! / How many gays have cervical cancer?
All clear: There is no "AIDS-Virus"! / Entwarnung: Es gibt kein "AIDS-Virus"! AIDS ALL OVER NOW!
- Designado na gíria médica da altura por: Gay-related Immune Deficiency ou Gay Compromise Syndrome
4
3
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 4
Deve notar-se que não sendo a homossexualidade uma atitude exclusivamente
contemporânea, a comercialização do sexo e a concentração de indivíduos com este tipo de
orientação em áreas urbanas específicas, ou em pontos interceptores de importantes rotas
comerciais, funcionou até dada altura como importante factor difusor da doença, como
poderemos confirmar posteriormente.
Com o evoluir da epidemia novos dados são lançados. No relatório de 28 de Agosto o CDC
anunciava o aumento da incidência, registando 108 casos, na sua maioria entre homossexuais
e bissexuais. Pela primeira vez incluía-se uma mulher. No final do mesmo ano (10 de
Dezembro de 1981) o rigoroso New England Journal of Medicine, reputado em meios
homossexuais como ultraconservador e por isso objecto de algumas retaliações, publica os
resultados de um inquérito epidemiológico realizado. Para além do habitual quadro de elevada
letalidade associada a este síndrome4, com valores próximos dos 40%, é relatado o seu
aparecimento em 5 pacientes heterossexuais com hábitos toxicómanos.
Pela primeira vez a orientação sexual deixou de ser um factor comum, mas antes a pertença a
um determinado grupo social, de algum modo marginal na comunidade. No ano seguinte,
1982, o número de casos volta a aumentar cifrando-se num total superior a 200, atingindo 15
Estados, espalhando-se para além dos três focos iniciais nos extremos litorais do País - Nova
Iorque, Los Angeles, S. Francisco.
4
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 5
Fig. 1 - Distribuição geográfica dos primeiros 10 000 casos de Sida nos EUA (Maio 1985) -
-
101
-
24
3
-
25
2
65
1
31
3
15
203
11
75
7
17
7
176
208
14
106
7
23
87
10
42
13
150
585
3
5
503
67
33
48
2277
43
5
3734
7
22
19
115
143
101
703
Outros territórios sob
administração americana:
123 casos
5
33
Fonte: Peterman; Curran et al; 1985
A rápida expansão desta epidemia exigiu a consideração de todas e quaisquer pistas. Assim,
os investigadores conseguiram verificar que nove dos treze homossexuais incluídos no estudo
e residentes nos condados de Los Angeles e Orange formavam uma espécie de rede sexual
entre si.
Tal como informa Grmek (1990), no decurso dos cinco anos precedentes, cada um destes
nove doentes havia mantido relações sexuais com pelo menos um outro membro do grupo.
Para além da maior ou menor frequência dos contactos mantidos, havia que considerar um
factor por demais importante, capaz de explicar a ampla difusão espacial de que gozava a
doença apesar do número relativamente reduzido de casos num país com quase 9,4 milhões de
Km², esse factor chama-se mobilidade.
Para a maioria dos autores (Cahill, 1983; Grmek, 1990; Zwi, 1992; Gould, 1993), a
mobilidade pode ser apontada como um dos principais potenciadores desta epidemia,
facilitando uma e outra vez o contacto de indivíduos seropositivos com outros que não o são.
Foi assim no início da epidemia, e permanece assim 18 anos volvidos. A mobilidade
funcionou como um verdadeiro amplificador, uma caixa de ressonância da endemia inicial.
5
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 6
Tirando partido de informações adicionais recolhidas pelo inquérito realizado e controlado
pelos CDC, foi possível reconstituir a mobilidade dos indivíduos, estabelecendo alguns
percursos comuns evidenciados pela construção de um diagrama, traçando contactos
homossexuais entre diversos membros da rede Californiana e grupos similares de outras
partes do país, nomeadamente de Nova Iorque, na costa Este, que parecia assumir-se como
importante foco difusor. Um notável exemplo de mobilidade pode ser verificado no percurso
particularmente intenso de Gaetan Dugas, comissário de bordo da Air Canada, denominado
neste inquérito por «paciente zero» porque, tanto quanto as evidencias permitem verificar,
parece ter funcionado como veículo difusor do VIH entre os grupos situados na costa Oeste
[Los Angeles] e na costa Este [Nova Iorque] e em outras oito cidades. Grmek (1990) informa
que o indivíduo em causa era homossexual tendo infectado, directa ou indirectamente, 40 dos
248 doentes diagnosticados até Abril de 1982. Foi referenciado como parceiro sexual em 9
dos 19 casos iniciais em Los Angeles e em outros 22 doentes em Nova Iorque. O seu estatuto
profissional colocava-o na situação privilegiada de viajante, cobrindo grandes distâncias num
período de tempo curto, aproveitando as suas múltiplas escalas para diversificar os seus
contactos, confirmando-se-lhe aproximadamente 250 parceiros por ano.
Não ficou definitivamente provado que o indivíduo referenciado no inquérito epidemiológico,
parceiro comum de um vasto grupo de homossexuais numa e noutra costa dos EUA era, em
sentido rigoroso, o «paciente zero», introdutor do vírus VIH em território americano durante o
período de tempo em que permaneceu assintomático (Fig. 2).
Apesar de algumas evidências apontarem uma presença algo mais antiga do VIH, este poderia
não ter beneficiado até esta data da invulgar mobilidade e oportunidade de contactos, fazendo
deste indivíduo em particular, um vector privilegiado à escala quase nacional.
À medida que as evidências apontavam um número crescente de casos registados fora da
comunidade homossexual, abalava-se o desejo ameno de «contágio selectivo», pertença
exclusiva de minorias marginais [homossexuais e tóxicodependentes], cujos comportamentos
são objecto de alguma censura social.
6
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 7
Fig. 2 -Provável percurso do «paciente zero» durante a fase inicial da epidemia nos EUAN.Y
S.F
N.Y
N.Y
N.
Y
Pe
N.Y
N.Y
N.Y
N.
Y
N.Y
N.Y
L.A
Paciente
N.Y
N.Y
N.Y
N.Y
L.A
L.A
L.A
Zero
N.Y
N.Y
N.Y
N.Y
L.A
L.A
N.Y
N.J
N.Y
L.A
N.Y
Tx
N.Y
N.Y
L.A
L.A
Ge
Ge
Fl
Fl
• contactos sexuais
Fonte: Gould, 1993
Do exterior chegam relatos de casos semelhantes aos do "Síndrome Americano", como são os
casos registados na Dinamarca e no Haiti. A verdadeira dimensão da epidemia começa a
emergir. Para além de insinuar vulnerabilidade sobre a totalidade dos grupos e
comportamentos, coloca também a hipótese da externalidade da doença, impondo a
necessidade de uma exaustiva investigação acerca do seu percurso, e da sua verdadeira
origem biológica e geográfica.
1.2 - Mobilidade de um vírus
Um dos casos relatados na Dinamarca envolvia um doente com hábitos homossexuais que
havia falecido no ano de 1980, vítima de patologia típica deste síndrome: pneumonia e
enfraquecimento progressivo inexplicado. Retrospectivamente, verificou-se que o indivíduo
7
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 8
em causa havia visitado os EUA por motivos profissionais no ano de 1977 e que durante a sua
estadia mantivera relações sexuais com múltiplos parceiros. Outros doentes havia que, apesar
de nunca terem visitado os EUA, desenvolveram contactos íntimos, directos, com
homossexuais Nova-Iorqinos, ou por interposta pessoa.
Um pouco por todo o lado, Espanha, França, Alemanha e Itália, os casos sucediam-se com
forte similaridade, quase sem excepção marcados pela elevada frequência de contactos, e pela
elevada mobilidade que permeava os meios homossexuais mais liberais e organizados.
A informação recolhida permitia uma investigação retrospectiva onde se identificavam alguns
casos que fugiam ao critério padrão, expondo curiosas conexões que posteriormente vir-se-ão
a revelar significativas, envolvendo pacientes com orientações não homossexuais e sem
passado toxicómano. Alguns casos referidos por Grmek (1990) na sua obra - História da
SIDA -
talvez tenham constituído um dos primeiros indícios premonitórios acerca da
intercontinentalidade da epidemia e da extrema facilidade com que esta se difundiu enquanto
oculta.
Do conjunto de relatos compilados, destaca-se o caso de uma cidadã Dinamarquesa ocorrido
em 1977. Médica de profissão, faleceu vítima de um quadro clínico confuso para a época, em
tudo semelhante aos anteriormente descritos. A sua história pessoal não regista quaisquer
preferências lésbicas, não se drogava e nunca visitara os EUA. Não sendo na altura relevante,
declarou ter exercido durante alguns anos a profissão de cirurgiã na África Central.
Casos semelhantes foram identificados em França no ano de 1982. Pacientes heterossexuais
haviam sucumbido ou estavam severamente imunodeprimidos sem qualquer razão aparente.
Em alguns casos, o facto de terem sido transfundidos fora do país de origem e em anos
anteriores à declaração oficial da epidemia, em partes do globo como o continente Africano
ou o Haiti poderia justificar o seu estado. Outros, como o caso detectado por Leibowitch
(1984) na década de 70, num português residente em Paris que reafirmava a sua exclusiva
heterossexualidade, pareciam indicar a presença de um vírus cuja origem era exterior ao
continente europeu. Este jovem evidenciava as habituais infecções recidivantes, tendo-lhe
sido diagnosticadas pneumocistose e candidíase orofaríngea. Naquela altura (1977-1979),
8
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 9
apenas se percebeu estar perante uma doença imunitária, «uma infecção maligna, ainda
desconhecida de origem africana».
Da sua história individual destacam-se os seguintes factos:
«O jovem Português estivera ao serviço da marinha colonial no início dos anos setenta e,
depois de ter feito a guerra em Angola, permanecera em África como motorista de veículos
pesados. Não era homossexual. A profissão que exercia tornava fáceis os contactos com as
mulheres indígenas. Entre 1973 e 1976 ele tinha percorrido muitas vezes a estrada que,
passando pelo Zaire, liga Angola a Moçambique. Dez anos mais tarde foi diagnosticada a
presença de anticorpos anti-VIH-2 no soro congelado deste doente» (Grmek, 1990).
Outros casos foram relatados, desta vez em mulheres africanas residentes em Cabo Verde, e
em Zairenses emigradas em França e na República Federal da Alemanha.
Numa fase inicial, a casuística remete-nos para um vasto conjunto de histórias individuais
cujo percurso migratório e o modo de contágio evidenciam impressionantes sobreposições de
características comuns. Por esse motivo Leibowitch (1983), e mais tarde Grmek (1990),
afirmaram com segurança a presença e sobreposição de dois focos infecciosos distintos no
continente europeu. Um deles, talvez o mais antigo, seria originário de África, afectando
indistintamente indivíduos dos dois sexos, na sua maioria heterossexuais. Um outro, oriundo
dos EUA que, num estádio inicial, parece decalcar o percurso de homossexualidade
organizada com ramificações europeias, estendendo-se posteriormente a indivíduos com
orientações heterossexuais através da partilha de seringas ou de relações com bissexuais.
Relatórios epidemiológicos sistematicamente produzidos, alguns dos quais foram aqui
mencionados, provas bioquímicas entretanto recolhidas por virulogistas e a experiência
acumulada, conduziram a que os responsáveis pela saúde pública rapidamente percebessem a
potencial extensão desta epidemia, antecipando previsões de elevada morbilidade e
mortalidade.
O facto de se transmitir por via sexual, campo onde num passado recente algumas batalhas
ainda não haviam sido totalmente ganhas, conseguindo-se o seu controlo mas não a
erradicação, constituía um mau prognóstico. Só por este motivo tenderia a ser estigmatizante,
conduzindo a uma segregação irracional mercê da sua transmissibilidade e letalidade.
9
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 10
Posteriormente, reuniram-se provas definitivas sobre a responsabilidade etiológica do sangue
na transmissão deste síndrome, alargando as fontes de contágio à semelhança da hepatite B.
Para além da perigosa reutilização de material não esterilizado por parte de
tóxicodependentes, a prescrição terapêutica de sangue e seus derivados funcionou, durante o
período de silêncio da epidemia e em fases posteriores, como instrumento iatrogénico. Um
pouco por todo o lado, hemofílicos e transfundidos foram também infectados pelo vírus VIH.
Recentemente, acusações de negligência e ocultação deliberada de informação por motivos
económicos têm conduzido a morosos processos judiciais em tribunais europeus,
questionando-se, não raras vezes, a responsabilidade do próprio Estado neste campo5.
O passado já nos havia confrontado com patologias infecciosas de mais fácil
transmissibilidade e de elevada letalidade. A difusão do VIH/SIDA foi em muito facilitada e
ampliada pelo longo período de latência6 do vírus, durante o qual o portador permanecia
assintomático, obrigando por este motivo e numa fase posterior, à revisão do conceito de
«portador são» próprio da epidemiologia clássica. Este, era por definição, um indivíduo que,
embora colocasse outros em perigo pela sua capacidade de transmitir a doença, permanecia
saudável ele próprio. Tal não acontece com os infectados pelo vírus VIH. Neste caso, quando
se mede a taxa de anticorpos presentes num indivíduo, esta apenas indica a importância da
invasão viral, não constituindo indicador sobre o grau de protecção imunitária
disponibilizada.
Os mecanismos habituais de defesa do organismo têm uma acção reduzida sobre o vírus VIH,
facto que não acontece com a maioria das patologias infecciosas.
Mas não é só o modo de evolução e replicação do vírus VIH que constitui novidade, fugindo
ao padrão clássico das doenças infecciosas que marcaram a primeira e segunda era da saúde
pública. Toda a conjuntura social e espacial que lhe serve de base é agora diferente.
5 - Em Portugal, um caso paradigmático deste tipo de procedimento foi protagonizado pela associação de
doentes hemofílicos vs Ministério da Saúde, naquilo que ficou conhecido como o caso Leonor Beleza.
6 - Segundo dados recentemente avançados, falar-se em «fase de latência» para o vírus VIH constitui uma
designação imprópria. Poder-se-á tratar não de uma fase de silêncio total, com o VIH integrado sob a forma de
próvirus no genoma dos linfócitos, mas antes de uma fase crónica, subclínica. Os viriões seriam produzidos
constantemente mas o organismo combatê-los-ia vigorosamente (Grmek, 1993).
10
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 11
O percurso realizado pelo vírus até atingir o continente americano, particularmente os EUA,
permaneceu silencioso sem que se avançasse qualquer explicação válida e satisfatória.
Uns meses após a síndrome se ter declarado, a comunidade homossexual já não era a única a
ser afectada, continuando no entanto a expiar maioritariamente a culpa endereçada pela
opinião pública relativamente à introdução e difusão do vírus letal.
Em meados de 1982, os epidemiologistas repararam no aparecimento cíclico de novos casos
num grupo de indivíduos cujo contexto comportamental e social parecia atípico, podendo vir
a constituir novas hipóteses de investigação. Na sua maioria, os casos diziam respeito a
indivíduos do sexo masculino que se afirmavam heterossexuais e evidenciavam
sintomatologia semelhante à do já vulgarmente denominado «cancro gay», a par de outras
manifestações clínicas que indicavam imunodepressão, acrescentando maior desadequação à
designação adoptada.
No seu conjunto negavam preferências homossexuais e a utilização endovenosa de drogas,
subtraindo-se por esta via ao padrão clássico de transmissão, numa época em que múltiplos
contactos heterossexuais ainda não eram reconhecidos como comportamento de risco. Entre
eles parecia destacar-se um grupo localizado na costa Leste que partilhava a mesma área de
residência numa comunidade próxima de Miami-Dade. Em comum tinham o facto de serem
estrangeiros, emigrantes oriundos do vizinho Haiti que, em número cada vez mais elevado
atingiam a costa dos EUA procurando escapar a uma depauperada situação económica e à
ditadura vigente no seu país.
A análise deste fenómeno sócio-sanitário exigia algumas cautelas que, ao que parece, não
foram tomadas.
O fluxo migratório de Haitianos para os EUA não era um caso recente. Muitos dos recémchegados, a maioria dos quais na condição de emigrantes clandestinos evidenciavam, regra
geral, um estado de saúde precário, sendo frequentemente detectada a presença de
tuberculose, desnutrição e diversas parasitoses.
Em face do quadro descrito, não é de todo surpreendente que os casos notados pelos
epidemiologistas fossem na sua maioria referenciados pelo Jackson Hospital of Miami, uma
unidade de saúde que serve a área pobre da cidade e não na área urbana de Nova Iorque onde
11
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 12
está instalada uma das maiores comunidades haitianas, curiosamente a de implantação mais
antiga e a mais abastada (Landesman, 1983).
Como habitualmente, após a notificação dos casos, técnicos do CDC desenvolveram um
apertado inquérito epidemiológico entre a comunidade haitiana que procurava os serviços de
saúde locais. Rapidamente se percebeu que a doença apresentava neste grupo étnico
características sócio-demográficas particulares. Segundo o relato de Landesman (1983), a
idade média dos doentes investigados rondava os trinta anos, sendo três a seis anos inferior à
média de idades dos homossexuais e tóxicodependentes até aí registados. O tempo médio de
permanência destes emigrantes nos EUA era reduzido, aproximando-se dos 2,7 anos, sendo
que, a quase totalidade dos casos incidia sobre estes indivíduos e não sobre os residentes mais
antigos instalados à dez e mais anos. Na sua grande maioria negavam visitas recentes ao país
de origem ou quaisquer contactos sexuais com emigrantes recém-chegados.
A análise destes dados sugeria a consideração de algumas hipóteses distintas. Uma delas
passaria pela admissão do contágio destes indivíduos enquanto no seu país de origem há três
ou mais anos, colocando-nos perante uma revelação tardia da síndrome, tal como havia
acontecido com homossexuais naturais dos EUA.
Como segunda hipótese, poder-se-ia considerar a sua infecção já no país de acolhimento
através de contactos heterossexuais sendo que, por qualquer causa imunológica ainda não
esclarecida, a sua raça, seria neste caso, particularmente susceptível à infecção em causa.
Uma coisa parecia evidente, admitindo-se a origem haitiana da infecção, a presença do vírus
na ilha seria recente uma vez que, indivíduos emigrados em épocas anteriores, partilhando dos
mesmos hábitos culturais e religiosos não evidenciavam qualquer sintomatologia. Por outro
lado, médicos haitianos alertados pela experiência americana, reconheceram na ilha de Portau-Prince a presença de formas agressivas e atípicas de sarcoma de kaposi e outras formas
gastro-intestinais características de SIDA. Todavia os registos clínicos destas patologias
também eram recentes, datando a sua aparição do final dos anos setenta. Com base nestes
dados pode-se concluir que a aparição da SIDA em território haitiano seria mais ou menos
contemporâneo do início da epidemia americana, permanecendo em aberto a questão inicial
sobre a origem e percurso do VIH.
12
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 13
Apesar do grande rigor metodológico de que os epidemiologistas se rodearam nesta
investigação, os resultados preliminares dos inquéritos realizados, bem como os casos
posteriormente relatados foram, uma vez mais, objecto de interpretações abusivas, salpicadas
por algum conservadorismo e nacionalismo, sobretudo quando extravasaram para lá da
comunidade científica e se tornaram públicas.
Ainda que sem qualquer fundamento, a comunidade haitiana, sobretudo a pertencente ao
segundo período migratório, foi tomada no seu todo como um grupo de risco. Sectores menos
informados não hesitaram em atribuir a estes emigrantes a responsabilidade pela importação
de tão indesejado vírus, que identificavam com comportamentos sexuais bizarros e situações
de generalizada pobreza.
O erro voltava a repetir-se. Na fase inicial da epidemia foram apontados comportamentos
sexuais pouco ortodoxos como responsáveis pela etiologia da síndrome. Agora, a
nacionalidade conjuntamente com a condição sócio-económica desfavorecida, característica
desta fase de emigração, surgiam como potencial ameaça para a saúde pública, colocando em
risco a já precária integração social destes grupos, empurrando-os para comprometedoras
situações de exclusão.
A doença foi, durante um lapso de tempo, responsabilidade de estrangeiros, importada de um
país que em nada se identificava com as sociedades desenvolvidas.
Para muitos americanos, o Haiti não passava de uma ilha exótica, um destino turístico barato,
pleno de contrastes sociais, pobre e onde se assinalavam algumas áreas insalubres, uma
cultura curiosa, religiosamente marcada pela prática sanguinolenta do vodu. A uma doença
mistificante sobrepunha-se o exotismo de uma cultura.
À data em que Landesman (1983) descreveu a epidemia na comunidade haitiana emigrada
nos EUA parecia já deter algumas certezas:
•
a SIDA registava-se em cidadãos haitianos residentes nos EUA e no Haiti;
•
os presumíveis modos de transmissão, sangue, contacto homossexual, pareciam não ter
contribuído para a introdução da síndrome entre a comunidade haitiana;
13
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 14
•
as características clínicas e imunológicas da doença são semelhantes às observadas em
homossexuais, viciados em drogas intravenosas e hemofílicos;
•
a doença era frequentemente mais comum nos haitianos emigrados para os EUA nos
últimos cinco anos.
As observações de Landesman estavam parcialmente correctas. Na época talvez não lhe fosse
dado observar aquilo que, anos mais tarde, foi constatado e relatado por Grmek (1990). A
introdução do vírus VIH na ilha teve como causa próxima a extrema mobilidade existente
entre aquele país e os EUA, funcionando como destino privilegiado de turistas homossexuais
americanos que acabaram por introduzir o vírus na ilha ao contactarem intimamente com a
população local. O modo como este atingiu a comunidade heterossexual haitiana foi
desvendado numa fase posterior, através de uma análise atenta da história individual de
alguns destes doentes, devidamente contextualizada com a situação económica e social vivida
no país de origem.
Alguns dos haitianos infectados relataram ao seu médico a prática de relações homossexuais
ocasionais, fundamentalmente com estrangeiros que os procuravam para esse fim, como
forma de suprir algumas das suas necessidades económicas. Tal como assinala Grmek (1990):
«Estes indivíduos não se consideravam portanto homossexuais, designação desonrosa no seu
meio cultural. Com efeito eles eram bissexuais. Prostitutos na sua maior parte, continuavam
a ter relações heterossexuais para seu próprio prazer.
Deste modo transmitiram a doença em dois meios sociais diferentes».
Esta realidade veio a ser confirmada e o número de casos registados foi em muito ampliado.
No final da década de oitenta verifica-se uma sobreposição entre a incidência de casos de
SIDA no país e os principais locais de turismo e veraneio no Haiti, dando origem a um
contágio hierárquico de núcleos urbanos mais importantes do ponto de vista turístico para
outros que o não são, atingindo posteriormente áreas rurais através do percurso de
trabalhadores sazonais deslocados do seu local de residência em períodos de maior procura
turística.
14
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 15
O actual estado do conhecimento permite dar como provado que a introdução da SIDA nas
Caraíbas é posterior a 1972. O vírus provavelmente era oriundo dos EUA, contudo, não é de
excluir uma possível origem africana (Grmek 1990).
Quer os relatos referenciados na Europa, quer os relatos americanos, revelam a existência
segura de conexões geográficas exteriores num e noutro caso.
Para Leibowitch (1983), Grmek (1990) e outros investigadores, o status quo da doença em
meados da década de oitenta, a par dos primeiros casos registados e identificados com
fidedignidade com a síndrome da imunodeficiência humana, suportados pela anamnese de um
número significativo de doentes, autorizam a afirmação de que duas vagas sucessivas desta
"nova" doença ter-se-iam cruzado na Europa.
Do conjunto de casos, alguns dos quais diagnosticados retrospectivamente na Europa,
verificou-se a sua ocorrência em doentes naturais do continente africano, ou com longa
permanência naquele território que, socorrendo-se dos serviços de saúde das antigas potências
coloniais, nomeadamente França e Bélgica nos anos de 1976, 1977 e 1980, indiciaram a
origem africana deste foco original que posteriormente se difundiu na Europa infectando
indivíduos de ambos os sexos.
Paralelamente, um segundo foco de manifestação mais tardia e fortemente correlacionado
com comportamentos homossexuais, oriundo do continente Americano, terá afectado durante
algum tempo um grupo restrito de indivíduos do sexo masculino, atingindo numa segunda
fase os dois sexos, não só pela manutenção de contactos bissexuais mas também pela
administração de sangue contaminado.
Apesar dos esforços efectuados por notáveis equipas de epidemiologistas, sabe-se sempre
mais sobre a propagação de um vírus do que sobre a sua origem e causa de eclosão. No caso
do VIH, os especialistas apontam algumas hipóteses com elevada probabilidade de verdade,
todas elas centradas no continente africano onde, algumas espécies de primatas,
nomeadamente macacos verdes, portadores de estirpes virais semelhantes ao VIH-2, integram
a dieta alimentar de populações autóctones. Para além do vírus se poder transmitir a
populações humanas por via alimentar, tarefa tornada possível pelo consumo de cérebro
15
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 16
fresco de primatas, como é tradicional em alguns povos Zairenses, muitas vezes estes
macacos provocam lesões cutâneas aos seus captores ou nos que com eles lidam directamente.
Anicet Kashamura fornece uma outra pista baseada na observação do comportamento sexual
de grupos indígenas que habitam a região dos grandes lagos, na África Central e Oriental:
« Para estimular um homem ou uma mulher e provocar neles uma actividade sexual intensa,
é-lhes inoculado nas coxas, na região púbica ou nas costas, sangue colhido num macaco,
para o homem, numa macaca para a mulher.»
Este relato sugere uma porta de entrada preferencial para este tipo de contágio viral; contacto
directo com sangue animal contaminado, ultrapassando desta forma a importante barreira de
protecção que a superfície cutânea constitui.
Luc Montagnier (1986) considerando a «Hipótese Áfricana» do vírus admite a possibilidade
de contágio horizontal entre populações humanas:
«O vírus existia já há muito tempo no seio de certas tribos Africanas vivendo isoladamente
sem que provocasse nelas o menor dano: não existia SIDA porque a tribo se adaptara
geneticamente ao vírus e o tolerava, transmitindo-o desde há muitas gerações. Depois, por
razões ainda indeterminadas o vírus teria passado recentemente para outras populações
Africanas que, pelo facto de nunca o terem contactado anteriormente eram muito mais
sensíveis ao germe.
Então a doença apareceu .»
1.3 - O contributo político e económico
No caso particular da SIDA, para além das causas psico-comportamentais habitualmente
mencionadas, reconhecidos «comportamentos de risco» estão, em alguns casos, fortemente
comprometidos com uma determinada contextualização social, política e económica,
característica de países ou de regiões, sujeitando de uma forma involuntária estratos ou grupos
populacionais a «situações de alto risco» das quais não podem ou não sabem libertar-se.
16
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 17
Neste contexto cabe aqui introduzir a definição de Wilson (1990) para descrever «situações
de alto risco»: aquelas cuja variação das forças sociais, económicas e políticas colocam
grupos em situação de alto risco, particularmente de infecção por VIH.
Este tipo de reconhecimento contextual é também partilhado por Zwi e Cabral (1992) que
retomam esta perspectiva, assumindo que a saúde em geral, e a incidência da infecção por
VIH em alguns aspectos particulares, é mais rapidamente determinada por situações e
contextos sociais locais ou regionais, do que pelo comportamento individual e cuidados de
saúde tornados disponíveis.
A abordagem em causa é especialmente adequada quando é necessário questionar e avaliar,
não um determinado tipo de comportamento na sua forma objectiva, mas um conjunto de
determinantes que actuam a este nível, particularmente no que diz respeito à relação
infecção/prevenção, identificando conjuntos de factores capazes de condicionar ou induzir a
uma eficácia parcelar.
Referimo-nos concretamente aos problemas sociais e sanitários colocados à escala global pela
crescente mobilidade e trabalho migrante, pelo empobrecimento e exclusão de determinados
estratos sociais, pela crescente urbanização e anomia citadina, agravada em áreas periurbanas
por fenómenos de marcada desigualdade social étnica e económica.
Algumas regiões acrescentam a este vasto rol, disrupção social causada pela guerra ou por
conflitos sociais de carácter violento, desinformação e analfabetismo, o estatuto de
inferioridade feminina, diferentes significados atribuídos aos desempenhos sexuais, o
contacto abrupto com novas realidades e valores mais ou menos comuns á generalidade dos
processos de colonização/descolonização. Mais recentemente, tal como foi mencionado a
propósito da possível conexão EUA-Haiti no caso da infecção por VIH, determinados grupos
"consentiram" em se subjugar aos hábitos de lazer das sociedades abastadas, nomeadamente
no que diz respeito à prática do turismo, na sua forma particular de turismo sexual.
Para além da vincada determinação biológica e psicológica intrínseca à conduta sexual dos
grupos [fertilidade, libido e orientação sexual], é necessário reconhecer-se a este nível a
diversidade das influências culturais que lhe estão associadas, sejam elas sinalizadas sob a
forma de rituais de iniciação, ocorridos em prostíbulos ou no seio tribal, rituais fúnebres, ou
17
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 18
outras formas socializadas de coesão do clã ou da sociedade, sejam tradições, crenças,
dependência económica e determinações religiosas.
A este nível, as diferenças comportamentais entre os géneros, conducentes a situações de
risco, são particularmente mais gravosas para a mulher, onde a maior probabilidade de
contágio está directamente relacionado com o estatuto sócio-económico que lhe é atribuído
pelo grupo onde está inserida.
O estatuto de menoridade atribuído à mulher em determinadas regiões acarreta
simultaneamente um menor arbítrio sobre a sua sexualidade, significando muitas vezes
incapacidade para impor práticas sexuais seguras ao nível marital ou no domínio do sexo
comercial7.
Estudos realizados na Índia e Tanzânia demonstram que, para muitas mulheres o maior risco
de contraírem uma qualquer DST, particularmente a infecção por VIH, advém do simples
facto de serem casadas (Moodie et al, 1993).
O profundo diferencial económico verificado entre países vizinhos ou entre regiões vizinhas,
tem estado na origem de importantes fluxos migratórios internos e externos, constituindo um
importante factor difusor da epidemia, decalcando os mesmos trajectos do trabalho migrante.
Em muitos países [África do Sul, Malásia, Indonésia, Tailândia], a indústria extractiva, a
actividade florestal e a construção civil têm a sua mão-de-obra assegurada por comunidades
migrantes, economicamente menos dispendiosas, domiciliadas em campos de trabalho e
albergues mistos8, onde recorrem frequentemente a práticas sexuais não seguras, colocandose numa situação de risco, funcionando como veículos difusores de DST quando de regresso
às suas aldeias de origem.
O estatuto económico de que gozam muitas nações, a par de políticas pouco restritivas do
ponto de vista migratório e sanitário, tem proporcionado a existência de um verdadeiro
7 - A título de exemplo, pode referir-se que na Conferência do Cairo (1994) foi calculado em mais ou menos 120
milhões o número de mulheres que desejariam utilizar um qualquer método contraceptivo e que o não fazem por
receio da família ou da comunidade local.
8 - Albergues Mistos: locais onde homens e mulheres compartilham o mesmo quarto ou espaço para usufruírem
algumas horas de descanso.
18
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 19
comércio de mão-de-obra escrava cujo principal destino é a prática de sexo comercial em
importantes capitais europeias ou em áreas prósperas do sudeste Asiático (Gould, 1993).
Uma qualquer desejada mudança de comportamento e do padrão epidemiológico da epidemia,
passará, obrigatoriamente, por uma custosa reorganização e modificação dos cenários sociais
e económicos nos quais se insere uma significativa percentagem da população mundial, por
forma a que as campanhas de prevenção e informação não sejam encaradas como um gasto
supérfluo, por indivíduos que, antes de pensarem em práticas sexuais seguras, procuram antes
de mais assegurar, com extrema dificuldade, o mínimo necessário para continuarem vivos9.
Quadro 1 - Nomenclatura vulgarmente associada ao risco de infecção por VIH Grupo de Risco
Comportamento de Risco
•
Descreve um conjunto de
indivíduos que pelas suas
preferências ou hábitos
sexuais são tidos como
potenciais vitimas da
infecção por VIH;
•
Descreve comportamentos
individuais ou de grupo que
capazes de acarretar
reconhecido risco
relativamente à transmissão
da infecção por VIH;
•
Estigmatizador;
•
Pode falhar na identificação
das determinantes do
comportamento;
•
Inespecífico;
•
Pode induzir a um
enviesamento das
conclusões por excessiva
generalização.
Situações de Alto Risco
(Zwi e Cabral, 1992)
• Reconhece que a saúde é
mais rapidamente
determinada por
situações sociais e
económicas do que pelo
comportamento
individual;
•
Descreve a variação das
forças sociais,
económicas e políticas
que colocam os grupos
em situação de alto risco,
particularmente no que
diz respeito à infecção
por VIH;
•
Reconhece o risco da
infecção por VIH como
fazendo parte do perfil
social da vida das
sociedades
contemporâneas.
Ø
facilita a ocorrência de
intervenções parcialmente
eficazes.
9 - Segundo os valores anunciados na Cimeira de Copenhaga (1995), 1/5 da população mundial vive em
reconhecida situação de pobreza, 70% dos quais são mulheres.
19
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 20
1.4 - Cultura e sexualidade
Observando
particularmente
o
continente
Africano,
o
mais
comprometido
epidemiologicamente e demográficamente pela infecção por VIH, verifica-se que, até ao
início da colonização ocidental, as populações de um modo geral estavam organizadas em
microestruturas espaciais, agrupadas étnicamente, constituindo pequenas comunidades
agrárias ou recolectoras, denotando forte coesão cultural.
A sujeição à dominação estrangeira, nomeadamente a partir do século XVIII e seguintes,
introduziu profundas alterações no modo de vida e na organização social, exportando desde a
Europa o modelo económico emergente da Revolução Industrial.
No período pós colonial, em sentido restrito, o continente Africano oferece-nos um notável
exemplo de difusão hierárquica e contágio espacial relacionado com a difusão do VIH. A
seroprevalência é particularmente elevada em áreas urbanas sobrepovoadas 10, conectadas a
longa distância por voos internacionais, ou por trajectos calcorreados continuamente por
refugiados, população migrante e camionistas. Ao longo do percurso Uganda-Moçambique,
grupos de condutores testados aleatoriamente indicaram uma seroprevalência que variava
entre os 30-80% (1993). Esta realidade, comum à região Oriental de África, é perfeitamente
demarcada no espaço, sinalizando de uma forma cruel as principais rotas de transporte
terrestre, áreas de paragem, importantes entrepostos comerciais, onde a seroprevalência cresce
numa razão exponencial (Gould, 1993).
A história recente ajuda-nos a melhor compreender a nova relação espacial imposta neste
continente. As décadas de 70 e 80 foram particularmente importantes no tocante à
mobilidade. O vazio político gerado pela descolonização/autodeterminação nacional, esteve
na origem de numerosos conflitos locais e regionais que perduram até hoje, proporcionando
uma miscigenação de população, a abertura de campos e corredores de refugiados, gerando
uma aglomeração sem precedentes nas grandes cidades. Simultaneamente, do exterior
10 - Dados relativos ao Ex-Zaire para o ano de 1993, indicavam uma seroprevalência estimada nas aldeias em
2%, 4,5% nas vilas e >10% nas grandes cidades (SIDA Afrique, nº 1, 1993). No final de 1997, o valor total de
adultos infectados era de 7;8% (UNAIDS, 1998).
20
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 21
chegavam contingentes significativos de mercenários, adidos militares ou expedicionários,
oriundos da Europa e da América, que a par da guerra e do exotismo procuravam sucessivas
companheiras ao longo da sua permanência.
Pela conjugação destes factores e por aspectos que se prendem com a própria cultura sexual
africana11, é apenas natural que a principal categoria de transmissão do VIH diga respeito a
indivíduos heterossexuais (> 80%, 1993), e não a grupos homossexuais, toxicodependentes e
hemofílicos que caracterizaram os estadios iniciais da epidemiologia Europeia.
Procurando reflectir a realidade Africana nos seus múltiplos aspectos culturais directamente
implicados na difusão do VIH, Grmek (1990) comenta:
«Nas cidades Africanas, a sobrepopulação anda a par com a sobrecopulação. A prostituição
regista um extraordinário aumento e o sistema de parceiros livres substitui a poligamia
tradicional. Desde tempos imemoriais que uma grande condescendência caracterizava os
costumes sexuais dos africanos[...].
Contudo, a vida sexual era regrada de uma forma que, embora não correspondesse à moral
cristã, não deixava por isso de ser bastante constrangedora e limitava consideravelmente a
transmissão de germes patogénicos por via genital, interdição da prostituição, medo da
influência nefasta de estrangeiros...»
Esta realidade, associada à disrupção social gerada pela guerra e pela urbanização caótica é
apontada por diversas autoridades Africanas (Zwi, Cabral, 1992) como os mais significativos
factores de risco.
A ausência de níveis mínimos de educação e qualificação profissional, os baixos salários e a
elevada taxa de desemprego, geradora de movimentos migratórios em grande escala,
favorecem a elevada percentagem de prostituição urbana, protagonizada por grupos de
mulheres que se designam por «mulheres livres» e por celibatários desenraizados, antigos
combatentes e desempregados chegados à cidade grande. Os índices de seropositividade
registados em trabalhadores do «sexo comercial» são particularmente preocupantes em
regiões como Abidjan, com valores que variam entre os 10-90%, onde campanhas de
11 - Para além da orientação marcadamente heterossexual, alguma literatura refere um possível contributo de
hábitos culturais particulares na difusão do VIH tais como: poligamia, excisão do clitóris, infibulação,
escarificação, tatuagem e troca de sangue durante rituais de fertilidade e iniciação.
21
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 22
incentivo a práticas sexuais seguras soam a algo distante e bizarro, quando se percorrem 40 ou
mais quilómetros para encontrar preservativos cujo custo ronda os 10% do salário médio
nacional. Estudos feitos no Quénia, orientados especificamente para mulheres que
reconhecidamente eram trabalhadoras sexuais, originárias de classes sociais mais baixas,
revelaram que estas tinham mais do dobro do índice de seropositividade do que prostitutas de
estratos sociais mais elevados. As mulheres mais pobres recebiam dez a trinta vezes menos
por encontro que as suas colegas de classes mais elevadas, procuradas por turistas e homens
de negócios, e tinham oito a dez vezes mais parceiros por ano.
Um aspecto fundamental, apontado unanimemente por responsáveis de diversos países
Africanos e pela OMS, necessário para a melhor compreensão da rápida difusão e elevada
prevalência da infecção por VIH neste continente chama-se: trabalho migrante.
Caracterizadas por uma economia regional e localmente depauperada, as áreas industriais,
portuárias e mineiras são um pólo irresistível de atracção para um número cada vez mais
elevado de homens e, mais recentemente, de mulheres. Tal como refere Jorge Cabral
(1992)12:
«O trabalho migrante está na origem da separação de famílias as quais só visitam raramente
[...] procuram a companhia de mulheres que vivem perto do seu local de trabalho,
predizendo um alto risco para a actividade poligamica e a propagação de DST's
(facilitadoras da infecção por VIH)...As mulheres continuam nas áreas rurais pobres,
dependentes dos recursos dos seus familiares ausentes, podendo recorrer ao sexo comercial
para suplementar a renda e reduzir a dependência.»
Por tudo isto, actuais relatórios epidemiológicos traçam para este continente um cenário assaz
preocupante. Aldeias inteiras na região de Rakai, Uganda, perderam a quase totalidade da
população masculina e feminina na classe entre os [15-45] anos. Dos mais de 30,6 milhões de
seropositivos em todo o mundo (1997), África detém aproximadamente 22 milhões de
infectados, ou seja 7,4% do total de adultos [15-49] anos. Estimativas feitas por organismos
12
- Ministro da Sáude da República Popular de Moçambique (1992).
22
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 23
internacionais (OMS, OPALS13) antevêem para o ano 2000 o aparecimento de 500 mil a 950
mil novos casos declarados.
Quadro 2
Total de adultos
e crianças
infectadas (VIH)
África Sub21 milhões
saariana
(Dez.1997)
Norte de África
210 mil
e Médio
Oriente
(Dez.1997)
*[0-14] anos; Fonte: UNAIDS 1998
Adultos [1549]
anos
Adultos
infectados
(%)
Mulheres
infectadas [1549] anos
Crianças
infectadas*
20 milhões
7,41
9,9 milhões
960 mil
200 mil
0,13
40 mil
7 mil
Como consequências demográficas directas, espera-se um incremento da taxa de mortalidade
na infância [< 5 anos], e na classe etária entre os [20-49] anos, atingindo até ao final do século
valores > 10%o. No que diz respeito à taxa bruta de mortalidade, valores traçados no início da
década de 80 previam que, no limiar do século se atingissem valores próximos dos 9%o,
foram agora dilatados para valores ≥ 16,4%o para o ano 2010, passando a mortalidade
prevista para os 5 primeiros anos de vida dos actuais 180%o para os 220%o, com uma
esperança de vida à nascença não superior a 47 anos, acrescida de 40 milhões de órfãos em 23
países da região Sub-saariana (USAID, 98).
Lamentavelmente, apesar das campanhas de prevenção registarem algum êxito junto das
camadas mais jovens da população [10-19] anos, já não vai ser possível evitar que a SIDA
seja inscrita como a principal causa de morte em núcleos urbanos, para homens e mulheres
entre os [20-40] anos, comprometendo a renovação de gerações futuras, aguardando-se uma
mortalidade neo-natal >30%o.
Para além do continente Africano, sobre o qual recai merecida preocupação, outras áreas do
globo, como a região da Ásia e do Pacífico, abrangendo aproximadamente cinquenta países,
são desde meados da década de 80 objecto de particular atenção em relatórios
epidemiológicos específicos para o VIH/SIDA. Ao contrário do que aconteceu na Europa e na
13
- Organisation Pan-Africaine de Lutte Contre le SIDA.
23
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 24
América, a difusão da infecção por VIH emergiu mais tardiamente, registando-se os primeiros
índices desta epidemia nos anos de 1984 e seguintes.
Durante algum tempo, prevaleceu a crença local de que as populações asiáticas eram imunes a
este vírus próprio de homens brancos e de homossexuais, inócuo para os naturais da região.
Simultaneamente, autoridades sanitárias com elevada responsabilidade no controlo da saúde
pública ocultaram, enquanto foi possível, toda e qualquer informação relativa à epidemia com
o questionável objectivo de não declarar o pânico entre a população. Por este motivo, durante
demasiado tempo, a prevalência de seropositividade nesta região do globo foi oficialmente
subestimada, atribuindo-se a esta área o estatuto de «área de menor risco».
Hoje, a infecção VIH/SIDA é uma das principais prioridades em saúde pública, obrigando a
difíceis campanhas de sensibilização e intervenção, particularmente diversificadas em face da
elevada heterogeneidade cultural, económica, política e religiosa característica desta área do
globo.
As determinantes anteriormente averiguadas para o contexto socio-comportamental
apresentam aqui significativa diversidade cultural, o que se constitui numa barreira à
intervenção através de crenças e atitudes profundamente incrustadas no quotidiano das
populações:
•
Socialização do sexo comercial como fonte de recreação masculina;
•
Estatuto de inferioridade feminina e aceitação consuetudinária da poligamia masculina;
•
Costumes hospitaleiros conectados com hábitos de gratificação sexual.
É virtualmente impossível abordar a temática da seroprevalência no continente asiático sem se
verificar a casuística epidemiológica da Tailândia que, juntamente com a Índia, detinha, no
início dos anos noventa, os maiores indicadores de prevalência para a infecção por VIH,
estimada em valores próximos dos 500 mil casos para a Tailândia e aproximadamente 1
milhão de casos para a Índia, prevendo-se que no ano 2000 existam 4 a 5 milhões de
seropositivos em cada um dos países.
24
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 25
Quadro 3
Sul e Sudeste
Asiático
(Dez.1997)
Total de adultos
e crianças
infectadas
(VIH)
Adultos [15-49]
anos
5,8 milhões
5,7 milhões
Adultos
infectados
(%)
0,61
Mulheres
infectadas [1549] anos
Crianças
infectadas*
1,5 milhões
81 mil
Ásia Oriental
420 mil
e Pacífico
*[0-14] anos; Fonte: UNAIDS 1998
420 mil
0.05
53 mil
2 mil
A literatura científica e a imprensa em geral são pródigas na multiplicidade de análises
epidemiológicas e sociológicas feitas sobre a Tailândia, transformando-a num referencial
obrigatório, necessário para uma compreensão adequada da realidade asiática no que respeita
à infecção VIH/SIDA, talvez por este país constituir declaradamente o principal destino
turístico regional, com fortes conexões com a prática de turismo sexual organizado.
Cohen (1988), Moodie e Gould (1993) são alguns dos muitos autores que produziram
informação científica absolutamente importante para a compreensão das determinantes
económicas e sociais adjacentes à epidemia.
Unanimemente foram apontadas atitudes negligentes das autoridades nacionais e a
idiossincrasia asiática no que diz respeito aos desempenhos e comportamentos sexuais como
algo preponderante para explicar o actual status quo da infecção por VIH neste país.
De uma forma inesperada, a aparição da SIDA na Tailândia coincidiu com o limiar de uma
vasta campanha internacional que objectivava colocar o país como principal destino turístico
regional, actividade de vital importância para assegurar o crescimento do PIB, tendo como leit
motive o sexagésimo aniversário do Rei apontando 1987 como - Visit Thailand Year -.
Segundo a imprensa local (Bangkok Post, 1987), a declaração oficial de casos de SIDA em
território nacional comprometeria inequivocamente a imagem nacional junto dos principais
mercados turísticos (Cohen, 1988).
Esta justificação parece escassa para muitos autores. Gould (1993) vai mais longe, e aponta
todo o processo de ocultação de informação desencadeado pelas autoridades locais como uma
forma de "optimizar" uma epidemia.
25
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 26
A sociedade tailandesa apresenta uma elevada masculinização, particularmente visível nas
áreas urbanas e na esfera da decisão familiar. A existência de concubinato e o recurso ao
«sexo comercial» é encarado como uma outra qualquer forma de entretenimento, associando
sentimentos de compensação e felicidade a este tipo de práticas. Reflectindo esta realidade
Ron Moreau (1992), articulista do NewsWeeK afirmou:
«Na Tailândia a prática da prostituição é ilegal, mas em muitas partes do país é mais fácil
encontrar uma "Sex shop" do que uma sapataria...Só a capital Banguecoque tem mais de 600
prostíbulos e mais de 30 mil trabalhadoras(es) de «sexo comercial» dos quase 800 mil
existentes no país.».
Gould (1993) reforça estas informações num tom particularmente violento, acusando
interesses económicos internacionais, elites dirigentes e autoridades locais de estarem unidas
em torno do mesmo propósito:
«Este é o país onde nas últimas duas décadas o turismo sexual foi promovido, onde a
prostituição é ilegal, onde um estudo
estima
em 450 mil os tailandeses que visitam
diariamente os bordéis, e onde um Chefe da Polícia afirma repetidas vezes: não existem
bordéis na Tailândia.»
A ausência de alternativas credíveis de emprego e o aliciamento sistemático de famílias de
fracos recursos económicos, empurra todos os anos milhares de jovens tailandeses, entre os
12 e 15 anos, para a prostituição. Oriundas de áreas rurais, tal como grande parte dos
trabalhadores migrantes da indústria, são devolvidos às suas famílias quando apresentam
menor utilidade ou quando infectados. ONG's locais e internacionais, denunciam
sistematicamente a existência de redes de tráfico internacional de mulheres e de escravatura
feminina, operadas localmente com destino à Europa14.
Motéis, ginásios "sex shops" e locais de "massagem" são quase uma instituição nacional de
"reconhecida utilidade" no início sexual dos jovens varões tailandeses, uma forma de
14 - Gould (1993) denuncia a presença de jovens mulheres tailandesas em Frankfurt, onde podem ser alugadas
por US$2500 com uma caução de US$500. Colocadas no mercado de «sexo comercial» angariam rapidamente
US$275 por dia, constituindo por este motivo um "investimento" lucrativo.
Gould, Peter - The slow Plague, Blackwell - 1993; p.p. 88-106
26
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 27
recompensa para zelosos trabalhadores, um símbolo local de hospitalidade para os milhares
de turistas que, com as suas divisas, ajudam a economia nacional.
Para que qualquer campanha de prevenção tenha uma eficácia mínima, é absolutamente
indispensável que os varões tailandeses modifiquem as suas crenças e atitudes para com as
mulheres, antes mesmo de repensarem as suas práticas sexuais.
Comentando este assunto na sociedade tailandesa, a escritora Sukany Hantrakul afirma que na
estrutura social tradicional, seja a que nível for, é suposto a mulher ser casta até ao casamento
e monogamica depois deste. O homem espera-se que seja experiente.
Após alguns anos de deliberada ocultação da verdadeira dimensão da epidemia, e com a
morte pré-anunciada de 2% da população feminina detentora de educação secundária, as
autoridades sanitárias deixaram de negar a existência da SIDA em território nacional.
A consciencialização para as vantagens de práticas sexuais seguras é uma das principais
prioridades em saúde pública. Só no ano de 1991 as autoridades distribuíram 70 milhões de
preservativos, a par de inúmeras campanhas de educação junto de prostitutas e em locais de
"reconhecido interesse turístico".
Decorridos oito anos após a adopção deste tipo de estratégia, a educação e a prevenção
direccionadas para a infecção VIH/SIDA atingiram finalmente o estatuto de prioridade
nacional, apresentando um conjunto de dados animadores capazes de constituírem um
excelente caso de estudo regional, particularmente para os países que se debatem com
elevados valores de transmissão nas categorias heterossexuais e utilizadores de drogas
endovenosas.
A campanha nacional para a prática de sexo seguro, introduzindo o preservativo a par da
implementação de políticas educativas nas escolas e locais de trabalho, contribuiu para alterar
o cenário de tardia mas exponencial progressão da infecção. Hoje, quer as autoridades de
saúde pública tailandesas quer investigadores independentes da UNAIDS, reconhecem
alterações profundas no comportamento sexual desta população, destacando-se um
diminuição significativa da procura de sexo comercial, e o aumento de práticas sexuais
seguras lideradas pelo uso do preservativo. Investigadores como Phoocharoen (1998)
atribuem especial relevo à estratégia seguida após 1991, recentrando as políticas preventivas e
27
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 28
educativas na análise das forças económicas, sociais e culturais, como vectores fortemente
condicionantes de comportamentos facilitadores da infecção por VIH, diminuindo o ênfase de
campanhas exclusivamente direccionadas para o alerta do risco ao nível individual.
A recente crise económica, declarada entre os denominados -Tigres Asiáticos (Agosto 1997),
pode retardar alguns dos progressos já alcançados, caso a comunidade internacional não
responda aos múltiplos apelos das autoridades sanitárias regionais. No caso Tailandês, onde
são esperados 70 mil óbitos por causa relacionadas com a SIDA no ano 2000, os projectos
governamentais sofreram significativas reduções ao nível das políticas preventivas e
curativas, passando dos 50 milhões de dólares em 1997 para 26 milhões de dólares em 1998.
A menos que um vasto programa de solidariedade internacional seja accionado, tal como foi
proposto na XII Conferência Mundial sobre SIDA, Genebra, 1998, abrangendo numerosos
países asiáticos e a quase totalidade do continente africano, o risco de explosão regional
voltará a emergir.
Bibliografia:
Aggleton, Peter et al -Risking everything ? Risk, Behavior change, and AIDS, in Science,
Vol. 265, 15 July, 1994
Angell, Marcia -A Dual Aproach to the AIDS epidemic, in The New England Journal of
Medicine, Vol 324, nº 21, May 23, 1991
Aral, O & Peterman T. – Do we know the effectiveness of behavioural interventions?,
Lancet 1998; 351 (suppl III): 1 –36
Bartlett, John G. – 1998 Medical Management of HIV Infection, Ed. Jonhs Hopkins
University School of Medicine, Baltimore, Maryland, 1998
Boulton, Mary -Methological issues in HIV/AIDS social research: recent debates, recent
developments, in AIDS, 7, 1993
Bulterys, Marc et al -Multiple sexual partners and mother-to-child transmission of HIV-1, in
AIDS, 7, 1993
Cohen, Erik -Tourism and AIDS in Thailand, in s/ref. The Hebrw University of Jerusalem,
Israel, 1988
Cohen, M.S. – Sexually transmitted diseases enhance HIV transmission: on longer a
hypothesis, Lancet 1998; 351 (suppl III): 1 –36
28
Epidemiologia, mobilidade e comportamento Social - 29
Diaz, Theresa et al -Sociodemographics and HIV risk behaviors of sexual men with AIDS:
results from a multistate interview project, in AIDS, 7, 1993
Gerbase, A.C. et al – Global epidemiology of sexually transmitted disesaes, Lancet 1998;
351 (suppl III): 1 –36
Global AIDS News, nº 1, 2, WHO, 1995
Gould, Peter -The Slow Plague - a geography of the AIDS pandemic-, Ed. Blackwell,
London, 1993
Grmek, Mirko -História da SIDA, Ed. Relógio D'Água, Lisboa, 1994
Horton, Richard – AIDS, the unbridgable gap., Lancet, Vol. 351, n.º 9119, 20 June 1998
Moreau, Ron -Fighting a killer, in Newsweek, June 29, 1992
Piot, Peter – The science of AIDS: a tale of two worlds, in Science, Vol. 280, 19 June 1998
Semprini, Augusto -Infecção HIV paterna e transferência do HIV da mãe para o feto, em
British Medical Journal, Ed. Língua Portuguesa, Vol. 3, 9 Outubro, 1994
Zwi, Anthony et al -Identificar «Situações de Alto Risco» para prevenir a SIDA, em British
Medical Journal, Ed. Língua Portuguesa, Vol. I, nº 3, Março, 1992
Fontes Estatísticas:
UNAIDS/WHO - Report on the Global HIV/AIDS epidemic, June 1998
29

Documentos relacionados