15 - Insight Inteligência

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15 - Insight Inteligência
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20 SCHOPENHAUER
INTELIGÊNCIA
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INTELIGÊNCIA
DOLOR,
DOLORES,
nuances do lixo da vida
ELOÍ CALAGE
JORNALISTA
É SOBRE-HUMANO VIVER.
MIGUEL WISNIK
EL ABANDONO DE RECIÉN NACIDOS EN
BASURALES ES UNA METÁFORA MAGISTRAL
DE LA CONVICCIÓN QUE TIENEN LOS MISERABLES IRREDENTOS DE QUE SU PROLE
NO TIENE NI TENDRÁ OTRO DESTINO.
SÍLVIA BLEICHMAR
E
LA VIVE DA ESCUTA E TEM DADO O QUE FALAR: A PSICANALISTA
SÍLVIA BLEICHMAR SUGERE A CRIAÇÃO DE UM NOVO INDICADOR SOCIAL, O “DOLOR PAÍS”, QUE SERIA COMPOSTO PELAS OCORRÊNCIAS DE SUICÍDIOS, ACIDENTES, INFARTOS, MORTES SÚBITAS, VIOLÊNCIA,
VENDA DE ANTIDEPRESSIVOS, AUMENTO DO ALCOOLISMO, ABANDONO
DE CRIANÇAS RECÉM-NASCIDAS EM LIXEIRAS, DESERÇÃO ESCOLAR E ÊXODO. SÍLVIA BLEICHMAR CHAMA DE “SOBREMALESTAR” AO INCREMENTO
DESSAS DORES E ATRIBUI ESSA MAIS-VALIA DE SOFRIMENTO À INSOLVÊNCIA ECONÔMICA DA ARGENTINA E AO QUE CONSIDERA A INSOLVÊNCIA
MORAL DE SUAS CLASSES DIRIGENTES.
ARGENTINA
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uem já precisou trabalhar com números relativos a estudos populacionais no Brasil
entende porquê minha primeira curiosidade foi sobre as fontes de informação da psicanalista, se trabalha com dados quantitativos, quais.
— No, Argentina no tiene estadísticas confiables. Los sintomas son cualitativos: migración de personas para incorporarse a la Guardía en España — respondiendo a una oferta —
o para trabajar em pueblitos del interior de España. Suicídios
de personas grandes, jubilados, que aparecen en los diários
porque elígen formas violentas: lanzarse por una ventana, o
arrojar-se al tren. Incremento importante de suicídios de adolescentes, por relatos de las guardías hospitalares.
Mas os dados objetivos não dariam conta de expressar o
“dolor país” pois, segundo a psicanalista, “habria que submergirse hasta el fondo de los seres humanos, tolerar el horror que números y planillas no reflejan, para encontrar alli
las imágenes de la devastación sorda a la cual han sido sometidos.”
Na impossibilidade de estabelecer uma medida para o sofrimento dos argentinos, a psicanalista aponta para um outro
sistema de avaliação que mantém seus compatriotas sobressaltados:
— Todos los dias miden el riesgo país com un cuidadoso
cálculo que define si tendremos o no libreta sanitaria para seguir trabajando, para seguir siendo plausibles de generar ganancias sin riesgo de infección. Y cada dia miles de argentinos
pauperizados repetimos aterrados los índices que pueden arrojarnos a la calle, o permitirnos seguir viviendo com un costo
cada vez mayor.
O efeito do desemprego e do empobrecimento galopante
sobre a subjetividade dos argentinos é uma espécie de lesão
moral que, segundo a psicanalista, leva as pessoas ao marasmo e à desesperança explícita no humor amargo do cartaz carregado por operários: “Tenemos tres problemas: no tenemos trabajo, no nos jubilan, no nos morimos...”
Sinto uma dor esquisita ao testemunhar, nas ruas de Buenos Aires, a dura vida dos novos pobres argentinos, olho para
os cafés vazios da Recoleta, para os homens jovens e saudáveis que, carregando balde d’água, sabão e rodo, disputam o
direito de limpar os pára-brisas dos carros na esperança de
algum dinheiro. Um punhado de lapiseiras aparece em primeiro plano, logo o sorriso constrangido que tenta me seduzir
na janela do táxi, mas o sinal é aberto, o carro segue, a mulher
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Q
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fica parada, a imagem da angústia, fixa, entre duas filas de
carros em movimento. Tudo isso na mesma paisagem de avenidas largas e limpas da Buenos Aires da memória e é como se
estivesse diante de um daqueles joguinhos de sete erros, alguma coisa não combina, sentimento de irrealidade. Por onde
quer que ande, me falam de medo de mais pobreza. O operário
fala com vocabulário de economista, o motorista de táxi chora
a dolarização que afastou os turistas brasileiros, ah o mercado
brasileiro! 100 milhões de possíveis consumidores, avalia ele,
lembrando dos nossos 50 milhões que passam fome.
As “locas” da Praça de Maio continuam lá, cumprindo o
ritual das quintas-feiras à tarde, ao som de versões de músicas de Chico Buarque, os lencinhos brancos bordados em ponto cruz azul, na hora exata reunidas atrás da faixa que se
estende para as fotos dos turistas, mas os restaurantes de
Porto Madero estão vazios e, na Rua Corrientes, uma faixa
se estende em frente a um restaurante de portas fechadas,
atrás das cortinas vêem-se as cadeiras empilhadas sobre as
mesas já empoeiradas, a faixa diz “estamos de paro”, um papel
fixado sobre o vidro da janela informa que a greve é por quatro meses de salários atrasados. No Centro Cultural da Recoleta, uma multidão se emociona e sua sob o calor no salão
sem ar-condicionado na inauguração de Nexo, exposição de
fotos e objetos do fotógrafo Marcelo Brodski, que teve o irmão desaparecido sob a ditadura e é um dos artistas líderes
do movimento de recuperação da memória recente do país.
Um dos objetos da exposição é uma grande pedra de granito,
escombro do que foi a sinagoga destruída por um ataque terrorista, um relato escrito a mão por uma mulher conta como
levou os filhos a um parque da cidade, para desenterrar livros ali escondidos durante a ditadura e conclui agradecendo ao destino terem sido os livros enterrados e não ela e o
marido.
Fantasmas do passado recente que, segundo Sílvia Bleichmar, estão sendo substituídos por algo ainda mais angustiante: “el temor a lo impensado”.
— Se trata de lo impensado, de lo no previsible, de que
“nos vayamos todos al demonio...”, sin que esté clara la forma
que estou puede asumir. Es evidente la aparici[on de um temor generalizado, asentado en lá pérdida de garantias sociales
e interpersonales; miedo de ser estafado, de recibir mala praxis médica, de ser atacado, de ser traicionado por los seres
queridos. Todo ello ligado a la fractura de enlaces solidarios y
un sentimiento de sálvese quien pueda. Estamos asi ante la
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imposibilidad de poder generar nuevos articuladores, nuevos
modos de representación social compartida que aún cuando
no agoten la racionalidad que producem los hechos, y más allá
de los elementos falsos que las impregnam, constituem la única via, paradójicamente, para salir del temor generalizado ante
el futuro y la desesperanza que lo impregna.
Na imprensa brasileira, as colunas assinadas por psicanalistas são editadas, em geral, nos cadernos femininos ou de
comportamento. No jornal Clarín, de Buenos Aires, a palavra
de Bleichmar é publicada nas páginas de opinião. Ao analisar
os efeitos da crise sobre a subjetividade dos argentinos, a psicanalista trata tanto de grandes questões concretas, quanto
de sentimentos e sensações do cotidiano, como no texto de 25
de julho, quando se refere ao “sobremalestar”: “...esta sensación de dolor profundo que consume hoy la mayoria de los argentinos, y que nos embarga hasta la cursileria — como quando se nos hace un nudo en la garganta al recordar un viejo
comercial en el cual un avión despega mientras una voz dice:
“Aerolíneas Argentinas, la Argentina que levanta vuelo”, o se
nos seca la boca escuchando una canción patria que fue motivo de chiestes infantiles: “Alta en el cieeeeloooo, un águila
guerrera...”
Domingo, 2/12, dia seguinte do confisco bancário na Argentina, abro a correspondência e lá está uma mensagem de
SB: “La sociedad argentina há entrado en estupor. No hay ninguna respuesta porque nadie se há detenido a debatir qué
hacer. Los intelectuales, que tinen la barriga llena y aceso al
pensamiento, tinen la obligación de levantar la cabeza y mirar
el entorno para producir alguna idea, aun cuando las soluciones políticas no sean sensillas, al menos que haya en el país
pensamiento crítico, y que este no se limite a repetir lo que ya
hemos dicho en los años 70, pero al mismo tiempo que no implique una renegación de toda posibilidad de sostener una esperanza que se reduzca a la real-política económica”.
Terça-feira, dia 4/12, ligo para SB, ela está de poucas palavras, “la gente llora en el subte, hay silencio en Buenos Aires.”
Os brasileiros estão
se suicidando mais
Sobre a provocação de Sílvia Bleichmar, uma proposta:
quantificar determinadas dores entre os brasileiros, apenas quantificar, sem outro objetivo além de saber quantos
somos os afetados por estes males e se estamos padecendo
mais ou menos.
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Não me matarei, meus amigos
Não o farei, possivelmente.
Mas que tenho vontade, tenho.
Tenho, e, muito curiosamente,
Com um tiro. Um tiro no ouvido,
Vingança contra a condição
Humana, ai de nós! Sobre-humana
De ser dotado de razão
A Canção do suicida, de Manuel Bandeira, e o verso/
epígrafe de Miguel Wisnik falam de uma dor que é constitutiva dos humanos, falhados que somos, a dor de existir,
insuportável para alguns. Na última década, o nível dessa insuportabilidade aumentou entre os brasileiros: em
91, suicidaram-se 3,50 brasileiros em cada 100 mil habitantes; em 98, a taxa de suicídios por 100 mil/ha sobe para
4,41. Na Tabela 1, os números absolutos são do Sistema
de Informação de Mortalidade/SIM, Ministério da Saúde,
as taxas por 100 mil/ha foram calculadas para este texto.
Mostra do típico desencontro de nossas estatísticas, ainda que pequeno, pode ser constatada, observando-se a diferença de números entre as duas colunas, a primeira consultada diretamente no SIM, a segunda constante do
CDROM da biblioteca da Fundação Getúlio Vargas, que
informa como fonte o mesmo SIM, com as respectivas taxas por 100 mil/ha.
De 91 a 98, a população brasileira cresceu em 10,20% e o
número de suicidas por 100 mil/ha aumentou em 19,72%. Os
homens brasileiros se matam, em média, quase 3 vezes mais
do que as mulheres, segundo números absolutos sobre ambos os sexos levantados pelo SIM, com cálculos sobre proporção de suicidas homens/mulheres feitos para esta edição (ver
Tabela 2).
Em 71, suicidaram-se 2,44 homens para cada mulher suicida; em 80 a proporção foi um pouco menor: 2,04 homens por
1 mulher suicida. Na última década do milênio, a diferença se
acentuou, segundo dados do SIM:
1990: 2,95 homens para cada mulher suicida
1993: 3,64 homens para cada mulher suicida
1996: 3,66 homens suicidas para cada mulher suicida
Em 1998, total mais recente, 7.146 brasileiros se suicidaram.
Mortes por acidentes:
mais de 100 mil por ano
Acidentes de transporte, quedas, afogamentos, exposição
à fumaça e ao fogo, envenenamentos e intoxicações, agressões
e outras chamadas causas externas de mortalidade, em grande parte evitáveis, alcançam números preocupantes no Brasil:
em 1998, resultaram em 117.600 mortes. Mais uma vez, os
homens são as vítimas preferenciais: 98.043 homens para
19.422 mulheres e 135 de sexo ignorado. As causas mais freqüentes estão na Tabela 3.
Sabe-se onde, mas não quantas crianças/
adolescentes se prostituem no Brasil
No Afeganistão, na região liberta dos talibãs, um fazendeiro
explicou aos jornalistas porque vai voltar a plantar papoulas,
que serão vendidas para produzir ópio: na região devastada,
nenhum outro cultivo é tão fácil e rendoso e ele tem 20 pessoas
para alimentar na família. Em Pernambuco, ação concertada
entre os governos federal e estadual acabou com o plantio de
canabis sativa na região que ficara conhecida como polígono da
maconha e que, agora, é ponto de aliciamento de prostituição de
crianças/adolescentes, informa o gerente do Programa Nacional
de Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente, psicólogo Antonio Mott. No mesmo estado, a região
extrativista conhecida como polígono do gesso é outro centro de
prostituição infantil e de adolescentes, que tem como clientes o
grande número de caminhoneiros que circulam pelo local, ainda
segundo Antonio Mott. Capitais dos estados, grandes pólos turísticos, portos, entroncamentos rodoviários, garimpos estão
entre os locais preferenciais da prostituição infantil. Mas nem
Mott, nem qualquer representante de instituições que cuidam
do assunto sequer arriscam uma estimativa sobre o número de
crianças/adolescentes que trabalham na prostituição.
Raquel Mello, que administra o banco de dados brasileiro
do Unicef, informa que, há dois anos, procura inutilmente levantar o número de recém-nascidos abandonados no Brasil.
Mesmo quanto tenta um informe pontual, sobre uma única
região ou instituição, há frustração, os registros são imperfeitos, só agora está se fazendo um esforço para implantar uma
coleta padronizada e integrada de dados. Os poucos informes
numéricos que se consegue não discriminam a exploração comercial de crianças e adolescentes, a prostituição aparece sob
a forma genérica de abuso sexual e a fonte mais confiável é o
trabalho feito pela Associação Brasileira Multiprofissional de
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Proteção à Infância e à Adolescência/Abrapia, que simplesmente vai agregando, ano a ano, as denúncias recebidas:
• 1997 a 1999: 1.258 denúncias
• 2000 a 2001: 564 denúncias
No período 2000/2001 o maior número de denúncias foi
recebido na Região Sudeste (50%), seguida do Nordeste
(28,89%), Sul (8,42%), Norte (6,53%) e Centro-Oeste (6,16%),
mas são números sobre os quais não se pode ir muito longe
pois incluem desde o abuso sexual dentro da família até aliciamento para prostituição como serviço prestado a turistas estrangeiros em apartamentos particulares, atividade que tem
crescido muito desde que os administradores de hotéis foram
chamados à responsabilidade pelas autoridades e fecharam
suas portas à prostituição infanto/juvenil.
Empresários preocupados
com abuso do álcool
No Brasil, o uso abusivo de bebidas alcoólicas está relacionado a uma série de situações dolorosas não apenas para os
alcoólatras, mas também para suas famílias: acidentes, atos
violentos, óbitos. O alto índice de licenças médicas e ausências
ao trabalho em função do abuso do álcool já é – há algum tempo – preocupação do empresariado. Em 1993, estudo patrocinado pela FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São
Paulo) concluiu que o uso abusivo do álcool e outras drogas
aumenta em 5 vezes as possibilidades de acidentes de trabalho, em 3 vezes as licenças médicas, é responsável por 50% do
absenteísmo e leva a família a utilizar 3 vezes mais a assistência médica-social.
O estudo feito pela FIESP tem uma característica comum
aos demais estudos e pesquisas feitos no Brasil: o uso do álcool
aparece, em geral, registrado junto ao uso de outras drogas. O
que se encontra são estudos pontuais feitos por instituições ou
regiões e a tendência atual inclui também o tabagismo que já
ganhou característica de epidemia, consumindo 2,25 do PIB
nacional, segundo pesquisa feita em 92, citada no trabalho
“Contextualização epidemiológica do uso indevido de drogas
no Brasil”, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, base de dados
para este texto.
No triênio 95/97 o alcoolismo aparece em quarto lugar no
grupo de doenças que mais incapacitam e, junto com “outras
drogas”, resultou em gastos com internações hospitalares superiores a R$ 310 milhões.
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O Sistema de Internação Hospitalar do SUS registra, em
96, a cirrose alcoólica do fígado como a sétima maior causa de
óbito na população acima de 15 anos, com mais de 39 mil pacientes internados, resultando em 3.626 óbitos. Em 93, foram
emitidas mais de 5 mil autorizações hospitalares por uso de
álcool e outras drogas; em 97, foram emitidas mais de 11 mil
destas autorizações. Os gastos totais com estes tratamentos
triplicaram no triênio, passando de US$ 902 mil para US$ 2,9
bilhões.
Álcool e outras drogas são responsáveis por 61% dos acidentes de trânsito; nos casos de choque e capotamentos a presença de álcool foi detectada em 71,1% e 63,6% respectivamente; em 56,2% dos pedestres atropelados foi registrada a
presença de álcool no sangue, segundo pesquisa feita em 1997
relacionando o uso do álcool e acidentes de trânsito em Recife,
Brasília, Curitiba e Salvador.
O alcoolismo é responsável também por grande número de
casos de violência doméstica e internações psiquiátricas mas,
segundo o estudo citado, este não é um problema específico
dos brasileiros. Nos Estados Unidos, os percentuais de eventos dolorosos ligados ao uso do álcool são semelhantes aos nossos: em 68% dos homicídios culposos o agressor ou a vítima, ou
ambos, estavam alcoolizados, segundo pesquisa do Instituto
Nacional de Abuso de Drogas e Alcoolismo dos EUA. O Instituto Materno Infantil de Pernambuco fez acompanhamento
de casos de transtornos psiquiátricos leves e identificou o alcoolismo do marido ou dos filhos como primeira causa de dificuldade de relacionamento familiar relatada pelas mulheres.
Antidepressivos: uma
vigilância estressante
Qual o consumo brasileiro de antidepressivos? Se o leitor
fizer essa pergunta à Agência Nacional de Vigilância Sanitária/ANVISA/Ministério da Saúde corre o risco de penar o que
eu penei: perguntas enviadas por escrito, o que é natural, 19
telefonemas para Brasília em busca de Nara, funcionária da
assessoria de imprensa do órgão que, entre outras dificuldades para dar a resposta, não conseguia a informação de Rosângela, a responsável pelos dados, “pessoa muito ocupada e
que não gosta que ninguém mexa nos informes” sob sua responsabilidade. Paciência, delicadeza, insistência e, finalmente, um discurso sobre o direito à informação resultaram numa
resposta tardia demais para que pudesse ser analisada por
um especialista e, para quem não é especialista, vazia de qual26 SCHOPENHAUER
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quer significado. Além disso, a recomendação que recorresse à
Abifarma (Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica),
que tem um serviço, o IMS Health capaz de fornecer informações nacionais e internacionais sobre o consumo de medicamentos. Eu já recorrera à Abifarma, cuja assessoria de imprensa lamentou muito não poder fornecer informações, uma
vez que toda documentação da instituição ainda está guardada em caixas à espera da nova arrumação, em conseqüência
da recente mudança para São Paulo. Os números oferecidos
pela ANVISA não discriminam os antidepressivos, relacionados entre outros medicamentos sob a denominação genérica
de substâncias psicotrópicas, apenas quantificadas por quilo,
ano a ano. Assim, sabemos que a quantidade de psicotrópicos
consumidos legalmente pelos brasileiros não aumentou nos últimos três anos: 52.122 kg em 96; uma significativa redução
para 39.672 kg em 97; 44.216 kg em 98; 46.529 kg em 99 e
56.847 kg em 2000.
O psiquiatra João Ferreira, diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, não confia em estatística sobre saúde no Brasil, as informações são coletadas em prontuários não-padronizados, registros subfaturados ou feitos de maneira incorreta.
“O que se coleta é sobre a demanda que tem acesso aos serviços, não a demanda real.” E exemplifica: não há nenhum caso
de meningite em Morro Agudo ou Nova Iguaçu porque a população destes lugares é atendida no Hospital Carlos Chagas,
em Nova Iguaçu. Em outros casos, a simples oferta de mais
atendimento tem feito subir os registros de determinadas doenças quando, na realidade, elas estão sendo é mais tratadas.
Mas o conhecimento do universo psiquiátrico o levou a concluir que há abuso de antidepressivos entre os brasileiros,
embora considere que este também não é um problema só nosso: é da nossa civilização, afirma, que diminuiu em muito os
limites de suportabilidade da dor.
Homens e mulheres: um
tempo de desencontros?
Sinal dos tempos ou coisa nossa? Eis aí uma questão a ser
estudada: o grande aumento de separações de casais. Está se
tornando banal a observação de profissionais da área psi a
respeito da supervalorização, não apenas no Brasil, da “autonomia” das pessoas ao invés da capacidade de estabelecer relações amorosas estáveis. Desta perspectiva, é considerado
mais saudável aquele capaz de ser “independente” do que o
que manifesta prazer e necessidade de viver com um compa-
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TABELA 1
Número de suicídios
Ano
Total*
Total**
1991
5.151
3,50 pcm
5.186
3,60 pcm
1992
5.295
3,60 pcm
5.268
3,54 pcm
1993
5.526
3,64 pcm
5.555
3,66 pcm
1994
5.935
3,86 pcm
5.932
3,85 pcm
1995
6.611
4,24 pcm
6.594
4,23 pcm
1996
6.836
4,35 pcm
6.743
4,29 pcm
1997
6.994
4,38 pcm
6.923
4,33 pcm
1998
7.146
4,41 pcm
6.988
4,31 pcm
pcm = por cem mil habitantes
* Dados do Ministério da Saúde
** Dados do Ministério da Saúde consolidados pela FGV
TABELA 2
Proporção de suicidas homens/mulheres
Ano
Sexo
Masculino
Feminino
1971
2.512
1.029
1980
3.172
1.555
1996
5.368
1.464
Ignorado
Total
3.541
4.727
4
6.836
TABELA 3
Mortes por acidentes
Masculino
Feminino
Ignorado
Total
Acidentes de transporte
24.632
6.329
33
30.994
Agressões
38.373
3.500
43
41.916
5.537
1.003
6
6.546
Afogamentos
TABELA 5
Óbitos por infarto agudo do miocárdio,
insuficiência coronariana aguda, insuficiência
congênita com insuficiência cardíaca
TABELA 4
Ano
Separações judiciais,
desquites e divórcios somados
1998
33.307
1999
34.327
2000
33.610
Ano
1979
Separações
Total de óbitos
Registros do Ministério da Saúde
38.858
1980
45.321
1985
112.321
1990
148.684
1995
185.863
1996
180.075
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27
nheiro. O homem quando nasceu, nasceu sozinho, já dizia Pancho Villa. O casamento por amor é, historicamente, uma invenção recente e em franca decadência, a julgar pela expansão de locais, produtos e serviços voltados para pessoas que
vivem sós, além do grande aumento do número de separações.
De 1980 a 1996, a população brasileira cresceu em 31,98%
e o total de separações de casais aumentou em 297,33%.
A lei foi promulgada em 1977, mas as estatísticas sobre
divórcio só aparecem nos anuários do IBGE a partir de 1982.
Para efeito da Tabela 4, foram somadas as separações judiciais, desquites e divórcios. Os dados, em sua maioria, são do
IBGE, com exceção dos relativos aos anos de 95/96, em que foi
necessário recorrer às Estatísticas do Registro Civil para obter o número de divórcios.
A vida sentimental pode estar mais complicada, já são banais as reportagens e artigos sobre o aumento da solidão, e
não apenas nas grandes cidades. Mas, a julgar pelas estatísticas, o coração dos brasileiros está reagindo bem aos supostos
abalos, ou está merecendo mais cuidados, porque nos últimos
três anos os números relativos a mortes “do coração” não aumentaram significativamente e, ao contrário, houve uma queda em 2000 (Tabela 5).
Depressão nossa de cada dia
e salvação pelo instinto
Hórus Vital Brasil, que começou a vida no exército, como
médico, e há 50 anos tem consultório de psicanálise no Rio de
28 SCHOPENHAUER
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Janeiro, responde sem hesitar que a depressão é doença nossa
brasileira, mas também do nosso tempo. Quando começou a
trabalhar, lembra, o diagnóstico mais freqüente era ansiedade. Mas os tempos e os modos mudaram e o que ele considera
preocupante neste nosso tempo é “o neopragmatismo liberal
globalizante que tem como valor absoluto a eficácia da ação
sobre o real, o absolutismo desse valor nega a multiplicidade
dos valores”. Considerando-se um antipragmático total diz que
procura o valor da verdade no discurso, o valor da denúncia,
uma verdade que pode até não ter nenhuma conseqüência,
mas que precisa ser dita. Diz que está na contramão da proposta deste texto, mais voltado para a categoria qualidade do
que quantidade. Para ele, o paradigma moderno é a complexidade dos fenômenos. Cita Beck, sociólogo alemão, criador da
expressão “sociedade de risco”, na qual nada é estável, perdem-se referências, há empobrecimento da vida comunitária,
tendência ao isolamento. Em tempos depressivos, diz, a depressão das pessoas é a dominância, o adulto volta “ao desamparo originário” do recém-nascido que sofre sem saber porquê.
E, surpreendentemente, declara sua confiança no instinto,
“...no instinto singularizado num homem como instrumento
de sobrevivência da espécie. Quando se chega no limite do suportável isso cria motivos para voltar à vida.” E sorri ao afirmar que tudo ainda vai piorar muito antes de melhorar.
Colaborou: Pablo Calage Mello
e - m a i l :
e l a n @ i i s . c o m . b r
LÁ ONDE O DIABO PERDEU AS BOTAS costuma ser
bem mais perto do que se pensa. Quando menos se
espera já está o demo infernizando, como lhe é próprio, a vida de bons cristãos. Isto é, de bons
cristãos, judeus, islâmicos, budistas e agnósticos. De infantes prostituídos e de seviciados idosos.
Prestando atenção, há de se ver que o demo bate as botas conforme o pulsar do coração humano
— ora cheio de fel, ora pleno de mágoa, ora inflado de nada. Dolor país, dolor Brasil.
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E
C
A
D
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INTELIGÊNCIA
MANUAL PARA O FUTURO
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BOTICÁRIO
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INTELIGÊNCIA
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
JULIO CESAR CARMO BUENO
ENGENHEIRO
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e uma forma abrangente, entende-se o Governo
como o conjunto de instituições públicas responsáveis por tomar decisões e executá-las visando
o bem-estar da sociedade. Refere-se ao Governo
como o chamado primeiro escalão do Poder Executivo, representado, no caso do governo federal, pelo presidente da República, os ministros e presidentes
das autarquias e empresas públicas.
A sociedade espera que, no seu interesse específico, esse
conjunto, denominado Governo, seja o mais efetivo possível.
Para tanto, elege, menos no Brasil e mais em sociedades mais
desenvolvidas, propostas políticas que abranjam questões
como aumentar ou cortar impostos, inserir ou retirar empresas estatais do mercado produtivo, estatizar ou privatizar
setores de utilidade pública. No caso brasileiro, por motivos
variados, nas eleições se discutem muito mais os desejos que
tem a sociedade do que os mecanismos para alcance desses
desejos. Talvez por isso as propostas sejam tão semelhantes
como “aumentar a segurança”, “reduzir o desemprego”, “melhorar a educação” etc. Naturalmente que há por trás de cada
grupo concorrente ao Poder um credo ideológico, em maior
ou menor grau, que norteará as principais decisões. Se o PT
vencer as eleições, espera-se uma maior intervenção do Estado na economia. Se, no entanto, a vitória é do PFL, a expectativa é de uma intervenção menor.
Independentemente do viés ideológico, a sociedade espera que as instituições funcionem. Na verdade, o que se nota
em recentes embates eleitorais no Primeiro Mundo, é que o
eleitor está muito mais preocupado com o funcionamento das
instituições do que com o caráter ideológico das propostas.
As escolas e hospitais têm que prover serviços de boa qualidade, o transporte público e estradas devem ser adequados,
enfim, todo o conjunto do Governo deve funcionar a contento
qualquer que seja o viés ideológico preponderante. Não está
aqui se defendendo a tese de que tanto faz o modelo ideológico, mas, sim, que na visão da sociedade e, portanto, do eleitor, o que importa é o resultado concreto que venha a ser
demonstrado. O governo do primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Tony Blair, é um dos exemplos desse resultado concreto. O projeto de modernização, renovação e reforma proposto
e colocado em prática pelo seu governo é um programa de
desenvolvimento a longo prazo que tem a finalidade de tornar a vida melhor para os cidadãos.
No caso brasileiro pode-se citar o exemplo da cidade de
32
BOTICÁRIO
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INTELIGÊNCIA
Vitória, capital do Estado do Espírito Santo, cujo prefeito,
Luiz Paulo Vellozo Lucas, do PSDB, tem-se notabilizado por
buscar, em sua administração, qualidade de vida para a população, através de uma gestão voltada para a excelência. O
prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, estará deixando o
governo em dezembro de 2001 como um dos melhores prefeitos que a cidade já teve, por força das estatísticas de segurança, prosperidade, serviços sociais e redução de impostos.
Só para ilustrar, em 1990, houve mais de 2.000 homicídios
em Nova York. Em 2000, foram 650. Todos esses casos se
destacam mais pela efetividade de suas ações do que pela
coloração de suas propostas.
Freqüentemente se colocam críticas e recursos na formação da imagem do governo pela mídia. O controle da mídia e
a propaganda são reconhecidamente elementos importantes
para a formação da imagem de qualquer governo. Mas, a
História demonstra fartamente que nenhuma proposta formadora de imagem resiste por longo tempo à ausência de
resultados concretos. Certamente, o conjunto da sociedade
não será jamais enganado por todo o tempo.
O interesse no funcionamento das instituições públicas
deve ser primordial em qualquer governo, qualquer que seja
a matiz ideológica. Verifica-se que essa discussão, central para
a sociedade, passa ao largo da discussão política, dos partidos, e, por incrível que pareça, de vários governos, nos seus
diversos níveis. A eficiência do setor público é uma questão
que se torna mais importante em países carentes como o Brasil, onde o recurso é conquistado a duras penas. Independentemente se estivermos falando de Estado mínimo ou de controle dos meios de produção pelo Estado, todos nós concordamos que a redução da iniqüidade no país depende de uma
atuação efetiva do Estado brasileiro. Um exemplo de como a
administração é importante é a recente crise de energia elétrica no Brasil. Em qualquer modelo, independente de reconhecermos a diferença de probabilidade de ocorrência da crise em um regime de planejamento centralizado ou de livre
mercado, se a administração do Governo tivesse sido eficiente, o país não entraria na crise da forma que entrou. O mesmo exemplo cabe para o caso da Califórnia, embora o modelo
seja diferente. No caso do Brasil, onde a maior parte da eletricidade é de origem hidrelétrica, faltaram investimentos e
integração entre o setor público e o privado. Na Califórnia,
onde o modelo energético é diferente do brasileiro, também o
poder público não foi efetivo por não se aperceber que a regu-
lamentação, muito rigorosa no que tange ao repasse de preço
ao consumidor e a requisitos ambientais, inibiu a oferta de
energia. Portanto, muito mais do que o modelo, a gestão foi,
em ambos os casos, fator crítico para o insucesso.
Mas como funciona o Governo no Brasil? Que dificuldades encontram as instituições governamentais em buscar a
eficiência? Como motivar o funcionalismo público? Como,
enfim, conseguir melhores resultados no atendimento à sociedade? Tais questões, que evidentemente não são novas, aprofundam a discussão e as importantes reformas no setor público empreendidas no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Não há como negar que, principalmente o
Programa de Desestatização e a nova conceituação de intervenção do Estado na economia, propiciando a criação de Agências Regulamentadoras mudaram completamente a faceta do
setor público federal no Brasil. Mas, persiste a pergunta: o
Estado brasileiro é eficiente se comparado com os de outras
nações? O que temos que mudar?
Naturalmente que o Plano Real, certamente a maior mudança de paradigmas no Brasil desde o Estado Novo, faz com
que qualquer análise e proposta responsáveis tenham como
hipótese o equilíbrio fiscal. A grande maioria da sociedade
repudia a volta da inflação porque, em última análise, é a
síntese do Estado ineficiente que não consegue nem proporcionar o pré-requisito mínimo para funcionamento do país,
que é a estabilidade econômica.
Um governo eficiente deve introduzir quatro princípios
na busca da excelência do setor público.
1
O primeiro princípio é o de ter seu corpo funcional adequadamente qualificado e remunerado. É importante
observar que para a busca da eficiência se desmistifiquem alguns pontos colocados na vida brasileira. Embora o conjunto da sociedade ainda pense que existam “marajás” no funcionalismo público, o setor público, em sua extensa maioria, tem salários expressivamente menores que o
setor privado, principalmente nos níveis de maior qualificação e nos níveis de gerência.
Outro mito é associar o funcionalismo público com negligência. Embora reconhecendo que dadas as condições de trabalho, seja muito mais difícil motivar os funcionários da área
pública quando comparado com a área privada, existem fartos exemplos de denodo e eficiência no setor público, mesmo
reconhecendo que quase nenhum esforço tem sido feito pelo
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empregador no campo da motivação. Um dramático e extremado exemplo é o da escola pública Joaquim Fontes, no bairro Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Foi com surpresa que o
Ministério da Educação constatou um elevado resultado dos
alunos dessa escola, tendo em vista a extrema pobreza da
região onde se situa. Aprofundando-se na questão, verificouse que os resultados estavam sustentados por enorme dedicação do quadro de professores, em especial da diretora da
escola. Exemplos como esse existem em várias áreas da administração pública brasileira.
Outro mito é o chamado inchaço do funcionalismo. É importante que se qualifique inchaço, quando houver. Porque a
realidade é que o setor público no Brasil praticamente não
contratou funcionários qualificados nos últimos 10 anos. Verifica-se no INMETRO, por exemplo, autarquia pública federal de grande credibilidade junto à sociedade, que de 1993 a
2000 o seu quadro funcional permanente sofreu uma redução de 20%. Se a política de não-contratação for mantida,
certas instituições podem vir a fechar por ausência de funcionários, dentro de poucos anos. No Brasil, a tendência é de
que os melhores quadros se afastem da área pública pela situação acima mencionada. Naturalmente que a eficiência do
Governo passa necessariamente por um corpo funcional profissional, qualificado, remunerado corretamente e na dimensão adequada.
2
O segundo princípio é o de uma legislação que induza à eficiência. A legislação brasileira, por conta dos
inúmeros casos de malversação e corrupção na área
pública amarra completamente a criatividade e a
iniciativa dos gestores. Há inclusive a seguinte regra: diferentemente do setor privado que tudo pode fazer que não contrarie a lei, no setor público só se pode fazer o que está previsto na lei. O bom senso indica que a lei, qualquer que seja
ela, é incapaz pela complexidade que administrar representa, de prever todas as situações. A tese, além de engessar a
criatividade e a iniciativa, vem sendo flagrantemente ineficiente, uma vez que os casos de malversação e corrupção fazem parte, infelizmente, do noticiário nacional. O remédio
proposto, além de não curar o doente, causou fortíssimo efeito colateral.
Uma das fontes do surgimento de regras tão amarradas
no setor público foi a constatação de que cada entidade pública trabalhava independentemente, descumprindo em muitos
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33
casos determinação do próprio governo e da legislação vigente. Como decorrência, foi criada no Brasil uma prática de controle baseada no processo e não nos objetivos. Em decorrência da legislação vigente, e também por uma questão cultural, os órgãos de controle avaliam quase que unicamente os
processos administrativos, desconsiderando os resultados
obtidos. Se a administração exceder suas metas de redução
de custos, aumento das receitas, e de indicadores relacionados à sua função social, ainda assim o corpo diretivo pode ter
suas contas reprovadas por infringir alguma regra burocrática. Por outro lado, se a administração for ineficiente mas
cumprir as regras, provavelmente terá avaliação positiva.
O procedimento atual inibe a eficiência e a criatividade.
Provavelmente, se os órgãos de controle se detiverem mais
atentamente aos resultados em vez do processo, os casos de
corrupção e malversação serão identificados antes do que
vêm sendo.
3
O terceiro princípio é o do controle social, que é o
efeito da ação do cidadão sobre os serviços públicos,
ou seja, da sociedade sobre o Estado, que confere à
democracia caráter mais participativo.
Questiona-se, com freqüência, a influência da indicação
política nos órgãos públicos. Naturalmente que a direção do
órgão público é uma indicação política, cuja fonte de poder é
a vitória eleitoral, que tem, em tese, uma proposta política
de condução do Governo. As regras da área pública brasileira
reconhecem que é necessário criar uma tecnocracia profissional, e, em decorrência, estabelecer a possibilidade de contratação exclusivamente através de concurso público. A grande
questão é que as instituições devem funcionar e para tanto
devem ter metas, missão, objetivos, enfim, todo o aparato
técnico e gerencial necessários. Devem também ser submetidas ao controle externo. Mas não basta isso. É muito mais
importante o controle social. A sociedade organizada deve
participar e dispor dos resultados alcançados pelas entidades públicas. O que se pretende evitar é a utilização dos órgãos públicos como aparelhos político-partidários. Isto significa evitar o inchaço através de contratações de pessoal com
fins eleitoreiros e a malversação dos recursos para a formação das famosas caixas de campanha. A complexidade da
administração mostra que a minimização dessa questão só
se fará com o controle dos resultados através da articulação,
pelo Governo, do controle social.
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BOTICÁRIO
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Uma questão importante a ser discutida se refere ao embate entre os interesses corporativos e o interesse da sociedade. Entidades públicas tendem a gerar doutrinas próprias
que as direcionam. Nem sempre, infelizmente, tais doutrinas visam ao interesse da sociedade. Ou porque se tornaram
antiquadas (as organizações públicas têm a tecnoburocracia
quase sempre em posição conservadora no sentido de não
mudar o estabelecido) ou porque buscam a defender interesses (internos ou externos) conquistados ao longo do tempo.
Quanto mais poderosa a instituição mais poderosa é a burocracia que dispõe de poder econômico e político para cooptar
parcelas influentes da sociedade em seu interesse. Da mesma maneira que o mercado é o vetor de transformação das
empresas, nas entidades públicas a transformação só se fará
através da força da sociedade. O Governo, na busca da eficiência, deve articular as forças da sociedade para transformar as instituições públicas, dar-lhes efetividade. Portanto,
a articulação do controle social é uma questão central da administração pública, embora não seja trivial. Dado que não é
possível que se tenha o controle direto pelos usuários dos serviços públicos, deve-se identificar que órgãos da sociedade
representariam tais interesses. Importante ainda observar
que a representação de interesses diferenciados é fundamental para que se proporcionem visões e objetivos abrangentes
para as instituições públicas. Um exemplo interessante é o
da prefeitura de Miami, que administra com a ajuda de uma
Comissão formada por nove membros representativos dos
segmentos da comunidade, e que tem como finalidade monitorar a execução das medidas implementadas e assegurar que
os objetivos propostos sejam alcançados. No Brasil, o orçamento participativo lançado pelas prefeituras do PT também
é um exemplo a ser assinalado.
Empresários e trabalhadores, setor produtivo e consumidores devem estar presentes no controle social. Identificar
entidades que realmente representem os interesses e ter uma
participação efetiva não é tarefa simples. Cabe ao principal
acionista, o Estado, esta tarefa.
4
O quarto princípio refere-se aos indicadores, números que traduzem para a sociedade os objetivos e
metas de cada órgão público e que devem ser incorporados no discurso político.
O que se sugere é o estabelecimento de áreas fundamentais de atuação do Estado e indicadores que serão utiliza-
dos, quando no Poder, como metas concretas de governo e,
quando na oposição, como base das críticas e propostas alternativas a serem levadas a público. A substância, portanto, é estabelecer um conjunto de indicadores que possibilite
a visualização pela sociedade do avanço ou do retrocesso
dos governos.
Os indicadores, como o próprio nome demonstra, não representam completamente todos os problemas de uma determinada área, apenas os indicam. A partir dos indicadores, possibilita-se agregar outras questões, que permitam
levar em conta aspectos cada vez mais complexos. Vale observar que quanto mais independente for a fonte geradora
Referências Bibliográficas
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maior será a sua credibilidade.
A prática política no Brasil ainda é reconhecidamente
muito atrasada. Os partidos políticos, em vez de serem alternativas de idéias, são, na verdade, apenas veículos com fins
eleitorais. No entanto, quanto mais se enraíza a democracia
no Brasil mais o eleitor se torna exigente com relação aos
princípios éticos e de eficiência administrativa. A discussão
aqui apresentada, normalmente ausente da prática partidária, vem se tornando cada vez mais decisiva na busca da viabilidade eleitoral.
e-mail: [email protected]
BUENO, Julio Cesar Carmo, OLIVEIRA, Ricardo de. Qualidade na política: uma estratégia da social-democracia brasileira. Mar., 1999.
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SEN, Amartya. Sobre ética e economia. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
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REFUGIADOS
INTELIGÊNCIA
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INTELIGÊNCIA
MENINOS
DO PASSADO
ELES NÃO SABIAM
O QUE OS ESPERAVA
O
S MAUS-TRATOS COMETIDOS CONTRA OS IDOSOS FORAM COMPREENDIDOS,
NESSE ESTUDO, DENTRO DE UM REFERENCIAL QUE PROCURA ENTENDER A VIOLÊNCIA DO COMPORTAMENTO A PARTIR DA VIOLÊNCIA ESTRUTURAL QUE CAUSA
OPRESSÃO DE GRUPOS, CLASSES, NAÇÕES E INDIVÍDUOS.
LAURA MACHADO
ROMEU GOMES
ELIZABETH XAVIER
P S I C Ó LO G A
C I E N T I S TA S O C I A L
G E R I AT R A
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presente investigação teve como objeto de estudo os maus-tratos cometidos contra os idosos. A
definição desenvolvida pela organização inglesa
Ação para o Abuso de Idosos e adotada pela Rede Internacional de Prevenção à Violência contra os Idosos (Inpea) é: o abuso de idosos é um ato isolado ou repetido, ou a ausência de
ação apropriada ocorrendo em qualquer relacionamento onde
haja uma expectativa de confiança que cause dano ou incômodo a uma pessoa idosa. Ela é normalmente classificada como:
„ Abuso físico: provocação de dor ou lesão; coerção física; restrição física ou química;
„ Abuso psicológico/emocional: imposição de angústia mental;
„ Abuso financeiro/material: exploração imprópria ou ilegal
e/ou uso de fundos ou recursos;
„ Abuso sexual: contato não consensual de qualquer tipo com
pessoa idosa;
„ Negligência: a recusa ou falha em cumprir obrigação de qualquer cuidado incluindo/excluindo esforço consciente e intencional
de infligir dor física ou emocional na pessoa idosa (OMS, 2001).
Neste estudo, os maus-tratos cometidos contra os idosos
foram compreendidos dentro de um referencial que procura
entender a violência do comportamento a partir da violência
estrutural que causa opressão de grupos, classes, nações e indivíduos (Bulding, 1981). Ainda em termos de marco conceitual, considerou-se que os maus-tratos cometidos contra os idosos nem sempre se encontram explícitos nas relações interpessoais, mas podem ser traduzidos por uma dimensão velada, no cenário da violência silenciosa (Mertes, 1981).
Atualmente a violência já é considerada um problema de
saúde pública, merecendo a atenção de órgãos governamentais
e não-governamentais no estudo, prevenção e estratégias de
intervenção para combatê-la. No entanto, como apontam Bennett et al (1997) o abuso de idosos era “a última forma de abuso
(que) ganhou legitimação como um fenômeno político juntamente
com o abuso infantil e a violência doméstica”.
Enquanto que a violência contra a criança começou a ser
considerada a partir da década de 60, foi apenas em 1975, que
surgiram os relatos científicos britânicos sobre maus-tratos contra idosos. Mesmo assim, esse tema levou cerca de 15 anos para
se tornar objeto de pesquisas e da atenção política no Reino Unido
(Bennett et al, 1997). Posteriormente, foram surgindo relatórios sobre o assunto nos Estados Unidos da América (U.S. Congress, 1980; Wolff) e Canadá (Podnieks; McLean, 1995).
Apenas no fim da década 90 é que no Brasil apareceram as
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REFUGIADOS
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A
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primeiras investigações e a preocupação com os maus-tratos
contra os idosos.
Em 1997, foi realizada uma investigação em quatro estados
brasileiros (Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Paraná),
replicada de um estudo na Argentina sobre a “Percepção sobre o
que são maus-tratos na velhice”. O estudo era composto de um
protocolo com questões abertas e semi-abertas, com idosos saudáveis na comunidade, e os resultados mostraram que prioritariamente os idosos percebem maus-tratos como a forma preconceituosa como são tratados pela sociedade em geral, e, por outro
lado, o abandono por parte das famílias (Machado et al, 1997).
A partir de 1998, começam a surgir trabalhos sobre a mortalidade de idosos por causas externas, categoria onde o campo da saúde considera os eventos violentos. No Estado do Rio
de Janeiro, por exemplo, em termos de pessoas de 60 ou mais
anos de vida, as causas violentas se situam em sexto lugar no
quadro geral de mortalidade, destacando-se nesse conjunto os
acidentes de trânsito e transporte, especialmente para o sexo
masculino, e as quedas no sexo feminino (Souza et al., 1998).
No que se refere à morbidade de idosos causada por ações
violentas, Souza e colaboradores (1999) observam que os dados
brasileiros são bastante escassos. Os mencionados autores, com
bases numa pesquisa realizada em dois hospitais públicos de
emergência do Município do Rio de Janeiro, constataram que,
em um mês, dos 5.151 casos, 384 se referiam a pessoas de 60 ou
mais anos de idade. A principal causa do atendimento identificada foram as quedas, representando em torno de 60% do total.
Os autores levantam a possibilidade de a dificuldade de locomoção ser um dos fatores associados a esse tipo de ocorrência.
Em levantamentos a alguns serviços de proteção a adultos
no Brasil, os dados confirmam os estudos citados acima, aonde
as reclamações sobre os transportes públicos, os acidentes e
quedas na vias públicas e as mortes por atropelamento e acidentes de trânsito se fazem muito presentes (SOS/RJ, 1992)
apontando que, na sociedade brasileira, a questão da violência
contra o idoso, é uma questão de violência estrutural.
Quanto à violência familiar, não existe nenhum estudo publicado sobre a incidência e prevalência no Brasil, muito embora os dados da situação do idoso no Brasil possam nos conduzir à suspeição de que as várias formas de maus-tratos e
negligência possam ocorrer.
Para se compreender como os idosos são possíveis vítimas
de violência familiar, basta que descrevamos muito sucintamente o panorama da situação dos idosos no Brasil.
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Os idosos brasileiros são mantidos preferencialmente em ca-se a realização de um estudo voltado para os maus-tratos
seus lares, garantidos juridicamente por lei (Constituição, cometidos contra o idoso na sociedade brasileira.
1998) e pela Política Nacional do Idoso (1996), e praticamente
A pesquisa vai tentar identificar quais os componentes do
apenas os que não têm família e condições básicas de sobrevi- abuso de idosos como identificados pelos próprios idosos e pelos
vência é que se encontram institucionalizados. Ainda em nos- integrantes das equipes de primeiros socorros.
sa cultura, existe um enorme preconceito quanto à institucionalização do idoso, além da insuficiência e da má qualidade de METODOLOGIA
O estudo integra um projeto de pesquisa sobre os mausgrande parte das instituições existentes.
O alto índice de desemprego no país, associado a altos índices tratos cometidos contra o idoso, coordenado, em parceria, pela
de divórcio na sociedade brasileira, fazem que os adultos retor- Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela International
nem à sua família nuclear — “boomerang generation” (Whistler) Network for the Prevention of Elder Abuse (Rede Internacioem condição de dependência emocional e financeira. Muitos des- nal de Prevenção à Violência contra os Idosos – Inpea), que se
tes filhos tornam-se responsáveis pelos cuidados de seus pais de- desenvolve no Brasil, Argentina, Índia, Líbano e Quênia.
A perspectiva do estudo tem como foco a abordagem da
pendentes para suas atividades de vida diária, e muitas vezes
convivendo e co-habitando com netos e bisnetos. Assim sendo, pesquisa qualitativa. A característica fundamental da pesquiestão preenchidos alguns fatores de risco, tais como dependência sa qualitativa é “o compromisso expresso de enxergar evendo agressor (filho adulto) à vítima (em geral, mulheres com de- tos, ações, normas, valores etc. da perspectiva das pessoas espendência física ou mental), associado à dependência econômica, tudadas” (Hudelson, 1994:2).
A investigação foi realizada com idosos e profissionais de
quando muitas vezes a renda do idoso é a única renda familiar.
A ausência do Estado no oferecimento de serviços adequa- saúde da cidade do Rio de Janeiro. Os idosos preencheram os
dos à assistência à saúde do idoso, assim como a falta de suporte seguintes critérios de inclusão: tinham 60 ou mais anos de
social, tornam o papel a ser exercido pelas famílias muito peno- idade e não tinham incapacidade mental. No que se refere a
so. A mulher de meia idade, necessitando estar no mercado de profissionais de saúde, foram selecionados aqueles que atentrabalho para ajudar na sobrevivência da família, cuida dos fi- diam aos seguintes critérios de inclusão: trabalhavam em atenlhos, e ao chegar em casa, ainda precisa assistir aos idosos de- ção primária de saúde; tinham no mínimo dois anos de experiência de trabalho com idosos; faziam parpendentes, muitas vezes com incontinênte de um grupo multiprofissional e não
cia e distúrbio de sono, fatores consideratinham experiência de trabalho com viodos como de risco para a ocorrência de violência contra os idosos.
lência contra o idoso (Bennett).
Os membros dos grupos selecionados
Ou seja: a falta de serviços intermeditiveram o direito de recusar caso não conários, como centros-dia, hospital-dia, cencordassem com os termos da pesquisa.
tros de convivência e serviços especializaAUSÊNCIA DO ESTADO
Aqueles que concordaram assinaram um
dos para o atendimento a pacientes e faNO OFERECIMENTO DE
termo de consentimento livre e informado
miliares portadores de demência, torna a
SERVIÇOS ADEQUADOS À
para participar dos grupos focais.
família brasileira muito desassistida para
ASSISTÊNCIA À SAÚDE DO
Na seleção dos idosos, contou-se com a
o cuidado com seus idosos.
IDOSO, ASSIM COMO A
mediação das seguintes instituições: SecreJunto à necessidade de se obter mais
FALTA DE SUPORTE
taria Municipal de Saúde do Rio de Janeidados sobre os maus-tratos cometidos conSOCIAL, TORNAM O PAPEL
ro (SMS/RJ) e do Instituto de Gerontologia
tra idosos, ressalta-se a importância de
A SER EXERCIDO PELAS
da Universidade Cândido Mendes (IG). A
se levar em conta a ótica das pessoas idoFAMÍLIAS MUITO PENOSO
escolha dessas instituições se deve ao fato
sas e de profissionais para elas voltados
de elas desenvolverem trabalho específico
no sentido de se prever ações mais adecom grupos de idosos: quer seja no campo
quadas a esses atores sociais.
de atuação de equipe de saúde de atenção
A partir dessas considerações, justifi-
A
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primária (SMS/RJ), e por atuarem como cennúcleos de sentido (units of meaning) nos
tros de convivência (ambas as instituições).
depoimentos dos grupos. Na análise, foA coleta de dados foi processada atraram percorridos os seguintes passos: (a)
vés de Grupo Focal. “O grupo focal é um
identificação dos núcleos de sentido dos
tipo especial de grupo em termos de propódepoimentos dos participantes dos difesito, tamanho, composição e procedimenrentes grupos; (b) comparação entre os diARA ALGUNS IDOSOS,
tos [...] o pesquisador cria um ambiente
ferentes conjuntos de depoimentos; (c)
UM DOS SINAIS DO INÍCIO
permissível no grupo focal que incentiva
descoberta de eixos (núcleos de sentido
DO PROCESSO DE
pontos de vista e percepções diferentes; sem
mais abrangentes) em torno dos quais giEXCLUSÃO É O
pressionar os participantes a votar, planeram as diferentes percepções identificaAPARECIMENTO DO
jar ou chegar a consensos (Krueger, 1994:6).
das acerca do problema e (d) discussão de
CABELO BRANCO PARA QUE
A sua utilização como técnica de pesquisa
temáticas que sintetizam os sentidos dos
A PESSOA SEJA TRATADA
foi proposta e aplicada pela primeira vez
depoimentos.
COMO VELHA
no campo das Ciências Sociais por Merton,
SUJEITOS DO ESTUDO
Fiske e Kendall em uma investigação soIdosos
bre o potencial de persuasão da propaganO estudo contou com a participação de
da durante a Segunda Guerra Mundial.
51 idosos, sendo que 47% eram do sexo
Nos últimos 30 anos, o uso desta técnica
masculino e 53% do sexo feminino. Nesse
tem sido freqüente nos campos da Psicologia Social e da Mercadologia, justificada por motivos de conve- conjunto, a idade média foi de 73 anos, sendo que a menor idade
niência como, por exemplo, atingir um número maior de pesso- foi 60 e a maior 95 anos. O total de idosos foi dividido em 6
as ao mesmo tempo, pela facilidade de obter dados com um cer- grupos focais.
Em relação ao estado civil, 46% eram viúvos, 39% casados,
to nível de profundidade em um período curto de tempo (Mor11% solteiros e 4% divorciados.
gan, l988).
Em termos de renda mensal, 24% dos idosos recebiam até
Operacionalmente, foram estruturados 8 grupos da seguinum salário mínimo, 22% até 5 salários mínimos, 51% acima de
te forma:
„ 6 compostos por idosos
5 salários mínimos e 4% não informaram sua rendas mensais.
• 2 do sexo masculino (gh1 e gh2)
No que se refere à escolaridade, 37% possuíam ensino supe• 2 do sexo feminino (gm1 e gm2)
rior, 34% ensino fundamental, 25% ensino médio e 2% não ti• 2 de ambos os sexos (gmh1 e gmh2)
nham escolaridade.
„ 2 compostos por profissionais de saúde voltados para
Em termos de aspectos da área da saúde, 63% possuíam plaa terceira idade (gp1 e gp2)
no de saúde e somente 48% utilizam a rede pública de saúde.
Nos grupos de idosos foram misturados os que moram sós
O primeiro problema de saúde referido mais comum foi a
com os que moram com famílias.
hipertensão, seguido de cardiopatia.
Nos grupos focais, inicialmente foi promovida uma discusComparando os idosos com as idosas, observou-se que: as
são sobre o papel do idoso na comunidade e os problemas vivi- mulheres viúvas eram em número maior do que os viúvos; as
dos por ele. Em seguida, foram discutidos os maus-tratos come- mulheres tinham maior escolaridade; os homens tinham uma
tidos contra o idoso. Em relação a esses maus-tratos, buscou-se idade média maior do que as mulheres e os homens tinham
identificar os seguintes aspectos: quais, onde, quando, por que, melhor renda do que as mulheres.
a quem recorrer e o quê fazer. Nos grupos, também foi discutido
se os maus-tratos contra o idoso deveriam ser preocupação dos Profissionais de saúde
O estudo contou com a participação de 17 profissionais de
profissionais de saúde e as sugestões para enfrentar o problema.
A análise dos resultados seguiu os princípios da Técnica de saúde que atuavam na rede de atenção primária em saúde, senAnálise de Conteúdo (Bardin, 1979), que procurou identificar do que 94% eram do sexo feminino. Em termos de faixa etária, a
P
42
REFUGIADOS
idade média foi de 44 anos, sendo que a menor idade foi de 26
anos e a maior de 58 anos.
Em termos de categoria profissional, 5 eram médicos, 4
assistentes sociais, 3 enfermeiras, 3 psicólogas e 2 fisioterapeutas. Entre os médicos, 2 tinham especialização voltadas
para o campo da geriatria/gerontologia. A média de anos de
experiência profissional foi de 9 anos, sendo que o menor tempo foi de 2 anos e o maior de 30 anos. Todos tinham renda
mensal maior do que 5 salários mínimos.
ANÁLISE DOS RESULTADOS
O idoso – “o ator por trás do palco”
Ao se discutir o papel do idoso, surge a imagem do “ator que
está por trás do palco” (gh2), que aponta a existência de um
sentido de alguém que vive na exclusão. Mesmo sendo alguém
que atua, “normalmente é posto de lado” (gm1). É considerado
como uma ”pessoa excluída da vida, não tem direito a certas
coisas, não tem direito a fazer parte [da comunidade] (gm2). É
como se fosse “um jornal que já acabou de ler, não serve mais
para nada” (gh2), “visto pela sociedade como uma pessoa que dá
trabalho, uma dor de cabeça, [que] atrapalha” (gh2). Pode ser
“uma tragédia” (gmh1). Os profissionais de saúde entrevistados
também percebem que o idoso é visto como alguém que “não
tem lugar na sociedade” [brasileira] (gp2).
Para alguns idosos, um dos sinais do início do processo de
exclusão é o aparecimento do “cabelo branco [para que a pessoa
seja] tratada como velha” (gmh2), como alguém “que está superado pela idade” (gh2) e “não tem lugar na sociedade” (gp2).
Assim, estão ”tirando todas as pessoas mais velhas e colocando
os mais jovens para trabalhar, quer dizer, botando para fora
mesmo pessoas mais velhas” (gm1). E não é só na comunidade
que isso acontece. “Na própria família [os idosos] estão excluídos” (gm2).
“Se lhe dessem um papel, ele desempenharia numa boa”
(gm1). Se isso acontecesse, o idoso sairia de trás do palco e entraria em cena. Dentre tantos desempenhos, poderia “orientar
os jovens, poderia encorajar as pessoas” (gh2). Segundo os profissionais de saúde, sua atuação seria decisiva para se manter
“a memória, o patrimônio através da história de vida de cada
um” (gp1). Já para os idosos, para que se possibilitasse essa
atuação seria importante, de um lado “sentir suas limitações e
[de outro] aproveitar as suas experiências” (gh1).
O desempenho de papéis por parte de idosos tem como pano
de fundo a discussão de se sentir velho ou jovem. As pessoas
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INTELIGÊNCIA
esquecem que “a mente não envelhece assim tão rápido [...] a
sociedade não vê [isso]” (gh2). Mas os idosos podem se “juntar
com os jovens. Este é que é o grande segredo. É não envelhecer
mentalmente [porque] fisicamente vai [se] envelhecendo” (gmh2).
Quando isso é descartado, alguns deles se sentem “um fóssil
vivo, cada vez mais fóssil e cada vez menos vivo” (gh2).
Frente a essa situação de discriminação dos velhos por parte dos jovens, há “muitos que não querem ser velhos” (gmh1);
outros “não sabem envelhecer” (gmh1). Mesmo considerando que
“cada caso é um caso” (gmh1), as pessoas “não estão preparadas
para isto” (gmh1).
Por outro lado, há idosos que acreditam que esse quadro pode
ser revertido. Um caminho percebido para que isso aconteça se
refere ao exercício da cidadania. Nesse sentido, segundo alguns
idosos, é preciso impor a “cidadania [porque] a cidadania não envelhece nunca. O cidadão envelhece, mas a cidadania não” (gh2).
Na percepção de alguns idosos, no passado esse cenário era
diferente. Era “uma velhice cheia de respeito com os idosos, eles
tinham muito valor” (gm2). Havia “prazer em auxiliar os velhos
[e] agora [eles] têm que auxiliar os jovens [está] havendo uma
inversão de valores” (gm1). A geração atual dos idosos é vista
como “geração imprensada [...] geração recheio de sanduíche
porque primeiro dava toda a atenção para os pais, depois toda a
atenção para os filhos [e com isso foram ficando] espremidos
entre os dois” (gm1). Outros acham que, atualmente, os idosos
são “felizes e não sabem [porque] tem que ter pena dessa juventude que vem agora, não vai chegar [a essa] idade” (gh1), uma
vez que a situação tende a piorar.
Os entrevistados identificaram que, na sociedade atual, costumam tratar o idoso “como criança [...] tratado infantilmente”
(gm1). Até aqueles que promovem o lazer usam palavras no diminutivo ao se dirigir a ele. Na ginástica voltada para o idoso,
por exemplo, o professor fala “levanta a perninha, olha a barriguinha” (gm1).
Cobram do idoso várias coisas. Cobram dele uma boa memória. “Ele não pode esquecer nada porque, se ele esquecer, está
esclerosado” (gm2). Das idosas cobram que seja uma “avó de
horário integral” (gm1), ou seja, querem que cuidem constantemente dos netos, enquanto os pais trabalham.
O papel do idoso também pode variar pelo fato de ele viver
no interior ou na cidade grande. No interior parece que tratam
melhor o idoso. Já nas “cidade grandes, isolam os idosos porque
não há tempo suficiente [para lhes dar atenção] a falta de renda
vai piorando [essa situação]” (gm1).
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001
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Dentro desse cenário, há quem se recuse ser excluído. São
“pessoas [que] têm outra visão de vida” (gm2). Fazem “parte de
diversos grupos da terceira idade” (gm2). Não querem ficar tomando conta de netos, “a não ser em casos especiais” (gm1).
Foram “fazer faculdade” (gm1) para não serem simplesmente
avós. Há idosa que se considera “vovó boêmia” (gm2), se divertindo muito nos bailes e nos passeios. Há, ainda, idosas atrizes,
idosos que praticam “natação [...] dança de salão, [desfila em]
Escolas de Samba” (gmh1), vão “ao teatro, ao cinema” (gmh1).
Todos essas são pessoas que têm “uma atividade muito intensa
[para que] o cérebro continue vivo” (gh2).
Junto à idéia de que o idoso tem que “procurar um papel”
(gm1), há também as situações em que nem sempre conseguem
desempenhar um papel. Quando, por exemplo, desejam trabalhar, não conseguem porque os empregos só estão disponíveis
para as pessoas “que têm 30 anos, 25 anos, por aí” (gh1).
Na busca de papéis, também não se pode descartar que o
envelhecimento traz limitações fazendo com que certos papéis
sejam exercidos pelos idosos na comunidade. “Existem dois tipos de limitações: uma é a física, outra é a mental. Quando as
duas se conjugam, aí é uma desgraça para o idoso” (gmh2). Uma
idosa traz um depoimento de como é difícil “usar fralda” (gmh2),
tanto em termos psicológicos como financeiros. A limitação física se acirra quando a pessoa não se locomove e, a exemplo dessa
entrevistada, que fica numa “cadeira de rodas” (gmh2).
Ser mulher idosa é diferente de ser homem idoso, segundo
as idosas; “idoso masculino [...] tem vergonha de ter ficado velho. Ele jogava bola, nadava e remava e agora ele não pode mais
fazer isso e ele se sente diminuído. O sexo é fundamental para
ele [e nem sempre pode mais fazer isso]. Uma mulher muito
mais facilmente encontra o que fazer, quando idosa e aposentada. O homem nunca foi doméstico [...] ele teve uma vocação para
aquilo onde ele acha que ele é o máximo [...] ele foi chefia da
casa, isso e aquilo, não tem mais nada para aprender na vida
[...]. Há mais homem idoso com depressão do que mulher porque as mulheres, se há possibilidade de fazer alguma coisa, elas
estão fazendo [...] costura [...] cozinha” (gm1). As mulheres percebem o homem como “menos participativo [e ele tem] preconceitos [quanto a certos tipos de lazer] (gm1). Nos grupos de idosos há mais mulheres participando do que homens. “Os homens
não sabem que eles fazem falta”. (gm1). Há homens que trazem
a explicação de que “eles não participam porque têm vergonha
[opinião de um sobre outros homens]” (gmh1), diferentemente
da “ mulher [que] é mais faceira [e] esconde a idade” (gh1). Nas
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REFUGIADOS
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INTELIGÊNCIA
relações de gênero, também há uma reprodução da idéia, presente no senso comum, de que a mulher depende do homem
quando uma idosa diz que se divertiria muito mais “se tivesse
marido [iria] passear muito mais” (gm2).
A reflexão sobre o papel do idoso na sociedade não trouxe
muitas diferenças entre os grupos masculinos e femininos, nem
entre os grupos de idosos e de profissionais de saúde. Em geral,
os depoimentos apontaram para a existência de uma violência
estrutural onde se excluem as pessoas por pertencerem a uma
certa faixa etária. Essa violência estrutural pode se acirrar se à
idade se soma a falta de condições econômicas para se sobreviver porque “o pior é ser velho e paupérrimo, isto é horrível” (gm1).
“Aposentadoria: o primeiro trauma
do trabalhador brasileiro”
Para os idosos ser aposentado significa ser maltratado por
parte do sistema social, que, em suas falas, se personifica pelos
governantes. Tanto nos grupos masculinos como naqueles constituídos de homens e mulheres, essa situação se destaca no conjunto dos maus-tratos. Os depoimentos dos grupos giram em
torno dos seguintes núcleos de sentido: inutilidade/exclusão,
desrespeito, dificuldades para viver, e indignação/revolta.
A inutilidade está associada ao status de aposentado. Não
importa o que ele foi durante a sua vida como trabalhador. Ele
pode ter exercido diferentes profissões, mas no final ele se reduz
a uma única classificação: aposentado. Viver sob essa classificação é, de uma certa forma, viver sob a humilhação porque “o
aposentado é considerado um estorvo de um modo geral. Tanto
na rua como na própria família [ele é visto] como um homem
ineficiente, ele não produz, não trabalha, no entanto ele consome” (gh2). Assim que “ele saiu da produção passou a ser um
peso morto” (gh2), passando a ser visto como “um inútil” (gmh2).
Esses depoimentos expressam que a inutilidade é resultado
da improdutividade. Na lógica do sistema social, aquele que não
produz “está fora” (gmh2) e, por conseqüência, é visto como um
peso morto, vivendo a “exclusão pela aposentadoria” (gmh2).
Assim, a atribuição de inutilidade por parte da sociedade em
geral decreta ao idoso a exclusão.
No entanto, junto a essa idéia geral, há um depoimento
que aponta que “o aposentado é visto pela sociedade como uma
fonte de recurso” (gh2). Essa valorização lhe é conferida quando sua família depende de sua aposentadoria para viver e quando vive numa localidade em que as condições de sobrevivência
são pouquíssimas, a ponto de seu pouco dinheiro se constituir
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INTELIGÊNCIA
como uma das únicas fontes de recurso.
À medida que o idoso vai vivendo como aposentado a sua
As falas dos entrevistados também apontam que há aposen- indignação vai aumentando a “cada dia que passa [porque vai
tados que se constituem numa “grande faixa de dificuldades [e] sentindo] o desprezo [por parte do governo]” (gh2). Essa situahá outros que não” (gh2) vivem essa situação. Estes últimos são ção gera um certo pessimismo traduzido pela idéia de que “não
aqueles idosos que recebem salários acima da grande massa de tem mais jeito” (gh2).
trabalhadores, formando uma minoria no conjunto de todos apo“Não pára aí... está cheio de meia cinco”
sentados.
Nos meios de transportes é outro espaço em que os idosos
Por trás da inutilidade atribuída ao aposentado está um grande desrespeito na forma como os idosos são tratados pelo sistema costumam ser maltratados. Os depoimentos apontam que, apesocial e isso começa com o seu “pedido de aposentadoria” (gm1). sar de haver direitos relacionados aos meios de transportes que
Nesse momento ele já começa a ser maltratado. Enfrenta uma são assegurados para quem chegou aos 65 anos, essas pessoas
via-crúcis, percorrendo vários setores das repartições públicas e nem sempre conseguem usufruir dessas prerrogativas. No conjunto desses depoimentos o principal núesperando por um longo tempo para ter o
cleo de sentido é o desrespeito. Como diz
salário de aposentado. Durante essa espeuma idosa, “se pegar um ônibus coletivo a
ra, muitos deles sofrem inúmeras privações.
gente vê como o idoso é tratado [mal]”
Quando recebe seu primeiro salário de
A LÓGICA DO SISTEMA
(gm2). Assim como no ser aposentado o idoaposentado, o idoso sofre “o primeiro trauSOCIAL, AQUELE QUE NÃO
so se sente desrespeitado, o mesmo ocorre
ma do trabalhador brasileiro” (gh1). AquiPRODUZ “ESTÁ FORA” E,
na situação de ser passageiro.
lo que ele passa a ganhar não é o suficiente
POR CONSEQÜÊNCIA, É
A sucessão de desrespeito começa dese, por conta disso, ele passa a ter dificuldaVISTO COMO UM PESO
de o momento em que o idoso se encontra
des de viver. Indaga um idoso perplexo:
num ponto de ônibus. Quando acena para
“onde um aposentado pode viver com um
MORTO, VIVENDO A
o veículo parar, “a primeira coisa que o mosalário mínimo?” (gh1). Outro depoimento
“EXCLUSÃO PELA
torista diz [para ele próprio] é assim ‘não
se junta a este, constatando que se “fosse
APOSENTADORIA”. ASSIM,
pára aí que está cheio de meia cinco [pesviver exclusivamente com o quê [...] recebe
A ATRIBUIÇÃO DE
soas com ou mais 65 anos de idade]” (gm1).
não dava nem para sair de casa” (gh2).
INUTILIDADE POR PARTE
O idoso “dá sinal, eles [motoristas] passam
Essa dificuldade que os idosos enfrentam
DA SOCIEDADE EM GERAL
direto. Ou então param bem adiante para
para viver com os seus recursos baixíssimos
DECRETA AO IDOSO A
o pobre do velho correr e pegar o ônibus. É
traz comprometimentos físicos e psicológiEXCLUSÃO
uma maldade” (gh1). “Isso é uma covarcos. A sensação para alguns é que as dificuldia” (gmh1).
dades vão se agudizando cada vez mais: “esHá um depoimento num grupo de idotou até hoje aposentado ganhando uma miséria [...] todo ano cai [o valor da aposentadoria], daqui a pouco eu sos que denuncia a violação dos direitos dos idosos que não precisam pagar passagem e por isso podem entrar pela porta da
não sei se vou receber dinheiro da aposentadoria” (gh2).
Essa situação que “é realmente aflitiva” (gh2) faz com que frente que é a de saída. Essa violação, às vezes, pode ter um
alguns idosos tenham um sentimento de indignação e revolta. desfecho fatal: “o idoso insistiu em entrar pela [porta da] frente,
Indignados porque assistiram ao longo de suas vidas que todos o trocador disse ‘não entra’, aí meteu o pé no velho, o velho baos recursos formados pelas contribuições mensais dos trabalha- teu com a cabeça no meio-fio [e] morreu” (gh2).
Quando o idoso “entra no ônibus, eles [motoristas] começam
dores foram “utilizados para finalidades absolutamente estranhas” (gh2) às de prover recurso para os aposentados viverem. a [acelerar] para [o idoso] cair” (gh1). Dentro dos ônibus “é aquele
O misto de indignação e revolta também é expressado pelos pro- desastre. É uma falta de respeito imensa com os idosos” (gm2).
fissionais de saúde quando denunciam que “a pessoa trabalhou “Às vezes se acha um filho de Deus que dá o lugar [para o idoso].
a vida inteira achando que vai aposentar e vai poder continuar Às vezes não” (gm2). Sobre isso os profissionais de saúde também expressam indignação, quando dizem que “ninguém levanvivendo com decência e a realidade não é essa” (gp2).
N
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001
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ta mais para uma senhora sentar” (gp2). Eles dizem também
que “os estudantes disputam com o idoso quem vai entrar primeiro, corre, bota a mochila primeiro para sentar mais rápido”
(gp2). Assim, é comum se “deixar o pobre velho caindo, não querem nem saber” (gh1) em dar lugar para eles.
O problema de não conseguir sentar, apesar de ter esse
direito, também ocorre no metrô que “tem uns bancos pintados de amarelo que é para idoso” (gh2), mas as pessoas “não
dão lugar” (gm1).
Uma senhora traz um retrato de desrespeito que ocorre
nos ônibus: “debocham da gente [...] eu peguei o ônibus e andei uns dois pontos e saltei. O motorista virou para mim [e
perguntou] ‘gostou do passeio’?” (gm2).
Em meio a essa situação, um depoimento diz que “há motoristas que têm respeito com a gente [idosa]” (gmh1). Outro diz
que “o motorista que faz isto é motorista velho porque os novos
não têm paciência” (gmh1). Junto a esses depoimentos isolados,
há outro que avalia que “está havendo abuso [por parte do idoso], não quer andar à pé de um ponto de ônibus até o outro”
(gmh1) e pega o ônibus ao invés de andar um pequeno percurso.
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INTELIGÊNCIA
um sentimento de rejeição muito grande” (gp1). O fato de “pessoas que deixam seus doentes e seus parentes [abandonados]
nos hospitais” (gm2) também foi mencionado por idosas.
Esse abandono, assim como no espaço doméstico, parece
ter uma certa sazonalidade. Um profissional de saúde observa
que é comum “pacientes terminais serem levados com muita
freqüência nos grandes feriados [para serem internados nos
hospitais]” (gp2), revelando que a família os abandona em determinados períodos do ano.
Um depoimento de um grupo de profissionais de saúde (gp2)
traz relatos de idosos maltratados no atendimento médico: “confunde-se o idoso desorientado, intoxicado por medicação [e o
tratam] como uma criança pirracenta. Isso é violentíssimo; um
profissional “ameaçava tirar a prótese, tirar o aparelho, tirar
os óculos [do idoso], aí ele agita. Quando ele agita, aí medica
[...] isto é violento; também há casos em se diz “olha não vou
deixar sua filha entrar se a senhora continuar assim”.
Dois depoimentos relativizam, de uma certa forma, o fato de
ocorrer maus-tratos contra o idoso nos serviços de saúde. O primeiro diz respeito ao fato de alguns idosos se sentirem “muito
bem tratados” (gmh1). Interessante observar que os maus-tra“Uma falta de respeito muito grande” que está
tos que ocorrem nesse espaço são mais mencionados pelos propresente nos serviços públicos
fissionais de saúde do que pelos próprios idosos. O segundo se
A discussão dos grupos focais revelou inúmeros espaços pú- refere ao fato de que os serviços públicos de saúde, por falta de
blicos onde ocorrem maus-tratos contra os
condições estruturais, não maltratam apeidosos. O debate apontou dois núcleos de
nas os idosos, mas os usuários em geral.
sentido presentes nos depoimentos dos gruO asilo também é mencionado como
pos: o abandono e o desrespeito.
palco dos maus-tratos. Neles, as pessoas
Nos serviços de saúde, as pessoas ido“são jogadas [...] ou às vezes esquecidas”
MA
SENHORA
TRAZ
UM
sas “já chegam violentadas na porta de
(gmh1). Mesmo nas casas geriátricas, luRETRATO
DE
entrada até o atendimento” (gp1). As “conxuosas, muitas vezes os idosos podem viDESRESPEITO QUE
sultas [...] são de 10 minutos, se tanto”
ver a solidão quando “não têm com quem
OCORRE NOS ÔNIBUS:
(gm1). Quando precisam fazer um exame
falar, com quem trocar uma idéia, contar
“DEBOCHAM DA GENTE. EU
mais especializado, “o aparelho está
uma piada” (gmh1).
PEGUEI O ÔNIBUS E ANDEI
quebrado”(gmh1). Especificamente, “nos
Segundo os profissionais de saúde, nos
UNS DOIS PONTOS E
hospitais [...] a maior parte [dos idosos]
asilos, os próprios idosos praticam mausSALTEI. O MOTORISTA
são maltratados” (gh1).
tratos entre eles. O que “está em melhoVIROU PARA MIM E
Por outro lado, nesses serviços os idores condições abusa do que está ali depenPERGUNTOU: GOSTOU DO
sos também são abandonados pelas suas
dente, acamado” (gp2). Há também “uma
PASSEIO?”
famílias. Os profissionais têm “uma difihistória de idosas que eram violentadas
culdade enorme de conseguir dar alta ao
pelos idosos que estavam bem. Iam lá à
paciente [idoso]. As famílias alegam milhanoite [nos quartos delas] e se aproveitares de motivos para não levá-lo [para casa]
vam [sexualmente] delas” (gp2).
isso causa no idoso que está hospitalizado
Na rede bancária também são identifi-
U
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REFUGIADOS
cados maus-tratos. Há “uma falta de respeito muito grande [...]
as filas de idosos dobra [...] enquanto botam 4, 5, 6 atendentes
para jovens e para [os idosos] só põem 1” (gmh1). Junto a essa
idéia, menciona-se que há idoso “que entra na fila, leva um monte
de contas [de outras pessoas]” (gmh1) para serem pagas, atrasando o atendimento dos outros. Fazendo contraponto a esse
depoimento, um grupo de profissionais de saúde diz que o idoso
faz isso “para conseguir aumentar a sua renda familiar” (gp2).
“O velho trambolho e o velho relíquia”: duas faces
da violência doméstica cometida contra os idosos
Saindo do espaço público, visto como palco dos maus-tratos cometidos contra os idosos na sociedade brasileira, as interações que ocorrem no espaço doméstico também revelam facetas de violência. Os depoimentos que discutem a violência
doméstica revelam três núcleos de sentido: deslocamento dos
maus-tratos físicos para outras famílias; ampliação do conceito de maus-tratos e relativização dos maus-tratos a partir da
situação econômica dos idosos.
A discussão sobre a violência doméstica começa pela sua redução a maus-tratos físicos. Talvez pelo fato de ser feita essa
redução e por conta desse tipo de violência, em princípio, ser
inconcebível no seio familiar, os idosos revelam uma atitude de
deslocamento dos maus-tratos físicos para outras famílias que
não as deles. Assim dizem: “na minha família não tenho do que
me queixar” (gm2), “não tenho queixa” (gm1). Independentemente do fato de haver ou não esse tipo de maus-tratos para
esses idosos, não se pode esquecer, como alerta um depoimento
de profissionais, que essa situação costuma-se “manter dentro
de quatro paredes e de preferência debaixo do tapete” (gp2).
Quando mencionam maus-tratos físicos, geralmente os entrevistados utilizam a terceira pessoa, admitindo que “tem muitos
[idosos] que são maltratados” (gm2). Trazem inúmeros casos: havia uma senhora “de 90 anos que a filha batia nela” (gm2); “nós
temos encontrado na nossa Ordem [religiosa] irmãozinhos que
apanham dos filhos” (gh2); “eu tenho uma vizinha que inclusive a
filha cegou ela [...] com a unha” (gmh1); “um dia a neta deu um
chute no estômago dele [idosos conhecido do entrevistado]”(gmh2).
Outra explicação que pode contribuir para a ausência dos
maus-tratos físicos no ambiente familiar dos idosos estudados
seja o fato de todos eles serem independentes em relação aos
seus familiares. Sobre isso há um depoimento bastante ilustrativo: “se eu não vou bater em casa de meu filho para pedir
ajuda, ele não vai bater em mim“ (gh2).
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INTELIGÊNCIA
No decorrer da discussão nos grupos focais, observa-se que
ocorre uma certa ampliação do conceito de maus-tratos. Os
idosos vão tomando consciência de que há outras formas de
violência a que estão expostos no espaço doméstico, sem ser os
maus-tratos físicos. Dentro dessas formas, sentem-se abandonados quando dizem que tem “7 netos, 3 bisnetos, mas ninguém vai lá em casa” (gmh1) para ver como ele está ou quando
dizem que “maus-tratos também é a falta de carinho” (gm2).
Segundo os depoimentos dos idosos parece haver uma certa
sazonalidade do abandono. No Carnaval, a família “para se divertir [...] deixa ele [o idoso] jogado” (gmh1). Também “no período de férias escolares, a primeira providência da família que
tem casa de praia é agarrar os velhos e jogar no hospital” (gmh1).
Em um dos grupos focais, ouve-se um desabafo de uma idosa: “a
gente tem mágoa [..] no Natal [...] nós passamos sozinhos” (gm2).
Os depoimentos dos profissionais de saúde também apontam outros tipos de violências domésticas às quais os idosos
são submetidos. Uma desses tipos se traduz pelo fato de “o
idoso ficar só o dia inteiro e quando todo mundo chega [...]
ninguém tem atenção para ele” (gp2). Dizem também que vêem
“muitos idosos sendo desrespeitados em casa, principalmente
perante os netos” (gp2). Nesse conjunto, há um depoimento de
um profissional que conhece um caso de uma idosa que perdeu
a consciência que é obrigada pelo seu marido a manter com ele
“certas práticas sexuais, que quando ela não estava demenciada ela não admitia” (gp2).
Outro eixo que atravessa a discussão dos grupos é relativização dos maus-tratos a partir da situação econômica dos idosos, ou seja, são as diferenças que surgem por conta de questões
sócio-econômicas. Um depoimento de um grupo é bastante ilustrativo acerca dessas questões: “Quando é um idoso pobre, que
não contribui [...] ele é tratado como um empecilho, ele é tratado
como um trambolho [...] aí se transforma [...] num alvo de violência maior do que o velho relíquia [...] o velho relíquia, ninguém maltrata ele, mas também não ouve [a voz dele], não respeita [...] Todos os dois são desrespeitados. Não é a questão de
ter violência ou não ter violência [...] Agora, se ele é um velho
que dá despesa para a família não contribui com dinheiro, é um
peso morto, aí ele é vítima da violência mesmo” (gmh2).
Seguindo esse raciocínio, os entrevistados dizem que maustratos “existem em todas as classes” (gm1), mas “na família de
baixa renda têm [...] violência física” (gm1). Já na classe com
maiores condições financeiras há “outro tipo de violência”
(gm1). Em geral, esta última classe expressa mais a exploraOUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001
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ção financeira cometida contra seus idosos.
Esse tipo de exploração também foi mencionado pelos idosos na terceira pessoa: “tem determinados idosos que são importantes do ponto de vista da economia” (gmh2); um filho foi
morar com a mãe e “agora com todo dinheiro, ela [a mãe] mora
dentro de um quartinho pequenino que nem janela tem. Ficou
jogada ali naquele cantinho e ele [o filho] é quem usufrui do
dinheiro dela” (gm2). Os profissionais de saúde também trazem casos de exploração financeira: “a filha se endividou no
cartão de crédito, pediu para ele [o pai] vender a casa, ele vendeu e ele fica agora numa kitchnete” (gp2); “a casa é da família, o salário é da família e o dinheiro é da família” (gp2) e
nada resta para certos idosos que são explorados.
Ser bem tratado por conta de uma boa situação financeira
não ocorre só no espaço doméstico. Nos serviços públicos, também há situações que ilustram bem essa discussão: “se o idoso
tem dinheiro, ele é bem tratado” (gmh1); “o idoso rico é realmente cortejado [...] realmente a maior discriminação é social
[porque] idoso pobre é realmente estorvo, traste, tem que desaparecer” (gh2)
Há outros depoimentos isolados que trazem uma outra forma de ver a questão do idoso ser ou não rico. Um deles diz
respeito ao fato de que “a comunidade de poder aquisitivo
menor, em razão de se viver assim tão junto, eles têm mais
respeito aos idosos” (gh1). Outra opinião é de um profissional
de saúde que se refere ao fato do idoso “até barganham essa
situação [de permitir que usem o seu dinheiro] para manter
um certo nível de poder dentro da família” (gp2).
As explicações para a ocorrência dos maus-tratos
Tanto os depoimentos dos idosos como os dos profissionais
de saúde articulam idéias que, de uma certa forma, explicam
a ocorrência dos maus-tratos cometidos contra os idosos. Essas idéias, que praticamente não se diferenciam entre essas
duas categorias de entrevistados, podem ser classificadas nos
seguintes núcleos de sentido: mudanças no cenário das famílias, impaciência com o idoso, despreparo para se lidar com a
velhice, estilos de ser idoso e mudanças de valores culturais.
No que se refere às mudanças no cenário das famílias, há
depoimentos que observam que os novos arranjos familiares e
os papéis familiares para dar conta de novas demandas sociais
podem contribuir para que os idosos sejam maltratados, principalmente no que diz respeito à negligência e ao abandono.
“Hoje em dia a mulher teve que sair de casa e ir trabalhar
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REFUGIADOS
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[e] nem sempre conta com a colaboração do marido porque não
é todo mundo que quer dividir tarefas” (gm1). “Os filhos [dos
idosos] trabalham. Quando chegam, estão cansados e vão cuidar de seus filhos [os netos], então não têm tempo” (gm2). Nesse
cenário, “ninguém tem mais tempo para o idoso” (gm1) e “não
se consegue uma junção da família para tratar do idoso” (gm1).
Junto a essa situação, devido à falta de condições financeiras, às vezes “falta estrutura nas famílias” (gm2) para se cuidar dos idosos. “Esses casos acontecem quando o filho também
se sente muito em dificuldades [...] os filhos também são maltratados [pela sociedade]” (gh2). Essa situação, às vezes, é confundida com a negligência. Nesse ambiente de pobreza, “quando
ele [idoso] deixa de produzir alguma coisa para a família, geralmente ele é rejeitado” (gp1).
A impaciência com os idosos é outra explicação para os
maus-tratos a eles dirigidos. Os filhos por não ter “paciência
[...] maltratam a mãe, não fisicamente, mas na maneira de
tratar” (gm2). “Depois que a pessoa fica mais idosa, ninguém
quer ter paciência” (gm2), percebe-se “a impaciência das pessoas mais jovens [porque] em geral o jovem é muito intolerante” (gmh2). Assim, “o idoso muitas vezes não é bem tratado
devido à impaciência de seu interlocutor” (gh2).
Segundo os profissionais de saúde, a impaciência às vezes
anda junta com a incompreensão de ser idoso. “O familiar não
entende [isso]” (gp1). “O não-compreender o idoso faz parte de
uma questão cultural que vem acompanhando a gente durante muito tempo”(gp1)”. Nos casos de demência, a incompreensão pode se agudizar. “A família não tem conhecimento disso
[a doença], muitas vezes acha que o idoso está agindo por pirraça, por agressividade, por teimosia e, não entendendo esse
processo [de demência], maltrata. Maltrata justamente por
desconhecer esses fatores”(gp2).
Além do desconhecimento, pode haver “um esgotamento da
vida da pessoa [que trata do idoso] (gp2)”, desencadeando a impaciência. Isso é comum ocorrer com os idosos que não “podem
se locomover [...] no princípio tudo bem, mas depois passando o
tempo [os cuidadores] não agüentam mais” (gm2).
A forma como o idoso se comporta também pode desencadear maus-tratos. Essa explicação é partilhada por idosos e profissionais de saúde. Seja por conta de o idoso ser “um chato que
vive reclamando” (gh2) ou por “se meter onde não é chamado, aí
‘[ele] é sempre maltratado”(gh1). Diante dessas situações, “é
difícil de tratar e de conviver com uma pessoa assim. Aí como é
difícil” (gmh2). Esses depoimentos apontam para o fato de que
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INTELIGÊNCIA
“às vezes se pensa que o idoso está muito
“o que leva o idoso à morte é a depressão,
na posição de coitadinho, de submisso, mas
é a mágoa, o abandono familiar” (gm2);
muitas vezes ele é o grande vilão da histó“se o idoso não tiver boa saúde [...] e se ele
DESPREPARO PARA
ria” (gp2). Assim, “o maltrato do idoso defor menosprezado, destratado, ele pode ter
LIDAR COM O
pende muito dele” (gmh2).
uma reação, pode ter um enfarte, um derENVELHECIMENTO SE
As mudanças de valores culturais tamrame” (gmh1); “a perda de saúde [...] um
APRESENTA COMO UMA
bém explicam a ocorrência dos maus-traadoecimento maior [...] um suicídio tamEXPLICAÇÃO PARA OS
tos. Nesse cenário, “as pessoas agora estão
bém” (gp2). Esses comprometimentos atuMAUS-TRATOS. TANTO OS
mais individualistas, só pensam em si”
am de forma quantitativa e qualitativa.
IDOSOS OBSERVAM QUE “O
(gmh1). Além disso, os indivíduos “estão
No balanço desses dois pólos, “pior que
PESSOAL NÃO ESTÁ
muito desumanos” (gm2). Outro valor disencurtar a vida, é reduzir a qualidade da
PREPARADO” PARA CUIDAR
seminado é o da juventude. “A mídia louva
vida” (gp2). Nos desfechos fatais, um deDELES, COMO OS
muito a juventude [e] isso atrapalha muipoimento faz uma imputação ao governo:
PROFISSIONAIS DE SAÚDE
to” (gm1) uma boa convivência com a ve“reduzir o número de idosos – a política
CONSTATAM QUE ELES
lhice. Um depoimento sobre os reflexos de
do governo é esta. A previdência só vai ter
PRÓPRIOS NÃO ESTÃO
“uma educação liberal” (gh1) também foi
equilíbrio se o velho morrer” (gh2).
PREPARADOS PARA O
incluído nas mudanças de valores prejudiA banalização dos maus-tratos tam“ENVELHECIMENTO”
ciais ao bom convívio dos jovens com os
bém é uma conseqüência do cenário da viidosos, impedindo que os pais tenham
olência. Isso “vai acabar se tornando na“mais autoridade sobre os filhos” (gh1).
tural. A pessoa vai olhar com indiferença
Por último, o despreparo para lidar com o envelhecimento se mesmo [...] acaba se acostumando” (gm1). Essa situação “vai
apresenta como uma explicação para os maus-tratos. Tanto os piorar e cada vez mais” (gh2) e essa banalização “empobrece a
idosos observam que “o pessoal não está preparado” (gh2) para humanidade como um todo” (gp2).
cuidar deles, como os profissionais de saúde constatam que eles
Um dos grupos de idosos deu um depoimento sobre uma
próprios não estão preparados para o “envelhecimento” (gp2). E possível conseqüência de o idoso se tornar violento também.
por conta desse despreparo “as pessoas não conseguem estabe- Narrando um atrito que teve com um jovem, ele reagiu com a
lecer uma relação sadia. Ou elas abandonam, maltratam, negli- seguinte fala “eu sinto não ter um 38 [revólver] para deixar
genciam ou acabam superprotegendo [os idosos]”(gp2). Assim, você morto aqui e agora” (gmh1).
“falta muita educação” (gp2) para se reverter esse quadro e tem
que haver uma “política para isso porque a gente não aprende O atendimento dos casos de maus-tratos do idoso
A discussão sobre o atendimento dos casos de maus-tratos
isso [envelhecer] espontaneamente ”(gmh2).
de idoso, segundo os depoimentos dos grupos focais, abrangeu
Conseqüências dos maus-tratos
dois campos de serviços. No primeiro, se incluem serviços que
Diante do abandono do idoso, uma das conseqüências é a desenvolvem ações para a garantia dos direitos civis do idoso e
solidão. “Já pensou uma pessoa com 90 anos [e não ter] com atuam na repressão de crimes cometidos contra ele. Já o sequem mais conversar, se os amigos da época já faleceram? En- gundo campo se refere ao atendimento prestado pelos serviços
tão não tem papo porque os jovens, quando a gente começa fa- de saúde. Essa discussão traz pouca reflexão sobre o tema.
lar, mandam sempre calar a boca” (gmh1). Fazendo contraponO debate sobre o conjunto dos primeiros serviços aponta,
to a essa idéia, outros depoimentos observam que “a gente faz a principalmente, dois núcleos de sentido: desconhecimento dos
solidão” (gm1) e “uma boa parte de idosos se sente solitária por- serviços e resolubilidade dos casos. Esses núcleos de sentido
que ela mesma se tranca” (gm1).
se articulam, uma vez que, de uma certa forma, a presença da
Comprometimentos na saúde e desfechos fatais também primeira inviabiliza a discussão da segunda.
foram apontados como conseqüência dos maus-tratos por toEm geral os depoimentos dos grupos focais, num primeiro
dos os grupos: “vem depressão, vem tudo, é uma cadeia” (gh2); momento, revelam um desconhecimento desses serviços. Em
O
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INTELIGÊNCIA
dois depoimentos pode-se resumir a citação de serviços: “Dele- idosos concordavam com tal pertinência mas não avançam muigacia Especial do Direito da Pessoa Idosa, Núcleo de Atendi- to em termos de argumentação. Outro atesta que o profissiomento ao Idoso da Defensoria Pública [...] Associação dos Apo- nal de saúde “deveria estar [preocupado com esse assunto] mas
sentados e Pensionistas pela Previdência Social do Estado do como é que ele pode atender a todos. Não pode [por conta do
Rio de Janeiro” (gh2) e “[...] Conselho Estadual de Defesa dos tempo da consulta ser pequeno]”(gh1).
Direitos da Pessoa Idosa” (gh2). A Delegacia Especial aparece
Os depoimentos dos profissionais de saúde concordam que o
em mais de um depoimento.
assunto deve ser objeto de sua atenção, mas trazem justificatiO desconhecimento desses serviços pode revelar, pelo me- vas para que tal situação não aconteça a contento, mostrando
nos, duas questões a serem investigadas, que podem ser arti- muitas vezes, o desconhecimento na identificação de maus-traculadas. A primeira se refere ao fato de haver pouca veicula- tos: “[os profissionais] ainda não estão preparados, precisa de
ção sobre a existência de tais serviços, enquanto a segunda muito trabalho em cima disso” (gp1); “[os profissionais] às vezes
pode indicar a falta de consciência dos idosos sobre os seus não têm tempo de escuta, não dão [a ele] tempo para escutar”
direitos. A primeira questão pode ser vista como causa da se- (gp1); “na maioria das vezes [...] os profissionais [...] não estão
gunda. Por outro lado a falta de consciência sobre os direitos atentos” (gp2); “alguns [profissionais] têm medo de notificação,
do idoso pode contribuir para que as informações sobre tais temendo represálias [por parte dos agressores dos idosos]” (gp2).
tipos de serviços não sejam buscadas.
Outro sentido presente nos depoimentos foi a resolubilida- Sugestões para se lidar com os maus-tratos
de do atendimento aos casos de maus-tratos de idoso. Em ge- dos idosos
A discussão sobre as sugestões para se lidar com os mausral, os grupos trazem uma certa descrença sobre o fato de que
esses serviços possam resolver efetivamente tais maus-tratos: tratos dos idosos, em geral, expressa um grande envolvimento
“Existe o Disque-Idoso [...] você não acessa nunca [...] depois dos participantes dos grupos focais. Os depoimentos trazem inúalguém atende e diz ‘ah, não é comigo” (gm1); “Você faz a de- meras idéias sobre o assunto. Por trás dessas idéias, há um núnúncia e não acontece nada” (gmh2); “[...] já liguei uma vez cleo de sentido dominante, que se traduz pela possibilidade de o
[para um serviço], me deram orientação pelo telefone [...] mas próprio idoso participar na busca de soluções. As sugestões, em
geral, apontam um papel a ser assumido
[disseram] que não teriam condição de repelo idoso frente ao problema, como cidasolver de imediato” (gp1).
dão. Esse sentido é altamente positivo, uma
Em dois grupos a falta de resolução dos
vez que aponta para a necessidade de se
casos é relativizada por dois depoimentos.
S
GRUPOS,
EM
GERAL,
mudar o papel de idoso como “ator por deO primeiro aponta a eficiência de um serAPONTARAM
MAIS
A
trás do palco” para o de idoso-ator que exerviço quando um participante diz que “Eu
VIOLÊNCIA
ESTRUTURAL
ce um papel no palco social.
mesmo já fiz [a denúncia de uma filha que
CONTRA O IDOSO DO QUE
Seguindo o raciocínio sobre esse sentiestava maltratando a mãe]” (gmh1) e a
OS
MAUS-TRATOS
NO
do, os depoimentos partem da constatação
agressora foi presa. Já o segundo depoiINTERIOR
DA
FAMÍLIA.
de que deve haver “educação e instrução”
mento, de uma certa maneira, atribui à
ISSO
PODE
SER
(gm1) para que “o idoso não se isolasse, que
vítima idosa a culpa do caso não ter um
EXPLICADO,
DE
UMA
ele não tivesse vergonha de ser idoso”
desfecho efetivo: “Os inquéritos nunca ou
CERTA
FORMA,
PORQUE
OS
(gm1). Em seguida, os idosos devem se “ormuito pouco prosperam porque o reclaIDOSOS
ENTREVISTADOS
ganizar” (gh1), tem que “juntar as revolmante, o queixoso, que é o idoso, ele geNÃO
DEPENDIAM
MUITO
tas” (gh2), “lutar” (gh1) para fazer uma
ralmente retira a queixa. Ele continua pai,
ECONOMICAMENTE
DE
“mobilização nacional” (gm2) para enfrenentão ele perdoa” (gh2).
SEUS
FAMILIARES
PARA
tar o problema. Uma das estratégias a ser
A discussão sobre a pertinência de os
SOBREVIVEREM
desenvolvida é “votar num deputado estamaus-tratos serem objeto de atenção dos
dual que a gente tenha acesso” (gm1) porserviços de saúde também traz pouco conque “nós podemos vir a ser uma força”
teúdo de reflexão. Alguns depoimentos de
O
50
REFUGIADOS
(gm1). Esse empreendimento não é percebido como um processo
de curto prazo porque “não [se] modifica o comportamento de
um povo em uma geração” (gh1). Em síntese, as soluções para
se prevenir ou intervir frente aos maus-tratos de idosos são de
responsabilidade do próprio cidadão: “precisamos nos juntar para
fazer uma luta, para termos uma legislação que nos ampare,
para termos força para impor os nossos direitos” (gh2).
Articulado à idéia que o idoso é capaz de buscar soluções,
um depoimento aponta a necessidade de reflexão prévia para
que o idoso possa estar preparado para uma ação: “a gente
tem que trabalhar psicologicamente porque é um negócio muito complicado na cabeça da gente. Não só o pique para fazer as
coisas, não só o pique para sair, pique em relação às questões
sexuais, enfim, uma série de coisas que a gente tem que começar a trabalhar na cabeça da gente” (gmh2).
Um sentido presente em alguns depoimentos que faz contraponto com a necessidade de mobilização revela uma certa
descrença política: “infelizmente eu não acredito mais no governo” (gh2); “podem ser organizar [os idosos], mas aí vai virar político, vai ter suas mansões, não vai fazer muita coisa
pelo aposentado não” (gm1); vai entrar [o candidato eleito pelos idosos] e não vai fazer nada” (gmh1).
Junto a esse movimento do próprio idoso na busca de seus
direitos, há depoimentos que condicionam as soluções dos maustratos às soluções estruturais: “há necessidade da melhoria da
sociedade em geral” (gh1); “diminuição da pobreza” (gmh2).
Outros depoimentos deslocam as soluções para os meios de
comunicação de massa: “fazer uma campanha ‘Idoso Esperança’
[...] massificar mesmo para que o problema seja [resolvido]” (gm1);
deveria haver “um canal de televisão que pudesse encaixar uma
coisa dessas” (gm1) e essa campanha “tem que ser maciça” (gmh2).
Outro sentido que está presente nas soluções é a idéia de
prevenir os maus-tratos através da articulação do velho com o
jovem. Nesse sentido, “que tivesse sempre uma creche ao lado
de um asilo, que aquelas crianças interagissem com os idosos
[...] a criança vai aprender com o idoso e ela vai dar muito
carinho para esse idoso e vice-versa” (gm1). Outra idéia que
esse núcleo de sentido traz é que na busca de soluções deve se
conseguir “gente jovem para trabalhar em favor dos mais idosos para ele [jovem] também vir gozar dessa [solução em sua
velhice]” (gm1) para isso “seria essencial que todo jovem pensasse que ele seria idoso um dia” (gm1).
Outros depoimentos indicam a necessidade de haver uma
melhoria dos serviços públicos: “haver mais instituições que
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INTELIGÊNCIA
abrigassem mais essa gente [maltratada], com amor e não aos
trancos e barrancos” (gm1); “ter um retiro [...] ter pessoas da
mesma idade para conversar” (gm2); promover “uma assistência especial [para os idosos maltratados]” (gh2).
Há alguns depoimentos isolados que condicionam a solução
ao poder divino: “não tem solução [...] para dar jeito nisso só se
viesse novamente Jesus na terra e tomasse conta” (gh1); “só
Deus pode ter poder [para resolver]” (gh1). Interessante, trazer
um depoimento que faz contraponto a esse sentido: “Eu também me atenho muito com Deus, mas não adianta”(gh1).
Em relação aos profissionais de saúde, seus depoimentos trazem, principalmente, o sentido de que tem que haver uma capacitação para se lidar com os maus-tratos de idosos. Para isso, a
“primeira coisa é identificar e configurar o que é violência” (gp1)
para, dente outras coisas, “desnudar essa violência escondida para
quem tem posse e tem condição de escondê-la” (gp1). “Capacitação de recursos humanos”(gp1) e “grupo de reflexão, de estudo,
para que comece haver um movimento” (gp2) são caminhos para
os profissionais ficarem “bem preparados” (gp2). Também é importante promover orientação “não só para os profissionais que
estão diretamente atendendo aquele idoso em grupo” (gp1). É preciso “ampliar” [a orientação]” (gp1) para todos os profissionais que
prestam assistência nos serviços de atenção primária à saúde.
Os profissionais também apontam para a necessidade de
políticas públicas específicas “fazendo parte de uma política
pública de saúde [em geral]” (gp1) e que essa política fosse
“efetiva que [desse] conta da família e do idoso porque o idoso
está dentro da família” (gp2).
CONCLUSÕES
Os tipos de maus-tratos citados não variaram por grupo,
segundo o sexo. A diferença ocorreu em termos de ordem e
ênfase da questão. Enquanto os homens citavam em primeiro
lugar o sofrimento causado pela diminuição de salário na aposentadoria, por exemplo, as mulheres citavam em primeiro
lugar os maus-tratos sofridos nos meios de transportes por
falta de respeito aos idosos.
Os grupos, em geral, apontaram mais a violência estrutural contra o idoso do que os maus-tratos no interior da família.
Isso pode ser explicado, de uma certa forma, porque os idosos
entrevistados não dependiam muito economicamente de seus
familiares para sobreviverem. Essa independência e autonomia talvez fizessem com que houvesse uma certa imposição
frente ao seu grupo familiar.
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001
51
Em geral, os depoimentos revelam que há um despreparo,
tanto no nível das pessoas como no campo das instituições,
para se lidar com o envelhecimento e a velhice. Isso de uma
certa forma pode potencializar a ocorrência de certos tipos de
maus-tratos cometidos contra o idoso.
Constata-se também como conclusão uma certa coerência
entre os tipos de problemas apresentados pelos grupos e as
soluções para sua resolução. Tanto nos problemas quanto nas
soluções há um forte acento para a necessidade de se construir uma cidadania do idoso.
Por último, é de fundamental importância sublinhar que
as questões levantadas pelos grupos trazem apenas um recorte de uma ampla e complexa realidade que emoldura os maustratos cometidos contra os idosos. Nesse sentido, na busca de
um maior aprofundamento da discussão, fazem-se necessários
outros estudos com outros sujeitos que tipifiquem outros recortes da realidade brasileira, sobretudo com idosos dependentes, idosos institucionalizados, idosos em classes mais desprivilegiadas.
RECOMENDAÇÕES
A partir deste estudo, seguem-se algumas recomendações
para ações visando combater a violência contra os idosos.
a) Promover educação gerontológica nas famílias e a educação para a cidadania em todas as faixas etárias sobre a
questão do envelhecimento e da velhice;
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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b) Elaborar e implementar políticas públicas na área de violência contra os idosos;
c) Implementar políticas públicas para a criação de serviços
comunitários para a assistência integral à saúde ao idoso;
d) Formar uma rede de suporte social às famílias
e) Capacitar profissionais na atenção primária de saúde para
identificação, prevenção e intervenção em casos de violência contra os idosos;
f) Elaborar um Consenso para orientação aos profissionais
da área de saúde à identificação, prevenção e intervenção
em casos de violência contra os idosos;
g) Elaborar um protocolo de atendimento ao idoso que inclua
o rastreamento de situações de maus-tratos a idosos.
E por último, e como recomendação fundamental, sugerimos a realização de um aprofundamento desta investigação,
através de inquéritos epidemiológicos mais amplos em causas
externas e nas instituições asilares. Na área familiar, sugerimos que a investigação possa contemplar o setor de emergência
dos principais hospitais da cidade, por ser este o espaço privilegiado para a detecção de maus-tratos familiares, com técnicas
de investigação de entrevistas individuais, para que neste espaço possa se propiciar um ambiente mais propício ao rompimento
do segredo familiar quanto à violência contra os idosos.
e-mail: [email protected]
MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL. Política Nacional
do Idoso – Lei nº 8.842 de 4 de janeiro de 1994.
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INTELIGÊNCIA
A SERPENTE
DOURADA
EDMUNDO CAMPOS
(Ë1939
h 2001)
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001
53
QUARTA-FEIRA, 27 DE JULHO
Às três da manhã ele deu por concluído seu tratado sobre
as urutus. A exceção, talvez, do capítulo V, no qual deixara
incompleto um complexo sistema classificatório, compusera
uma obra sob vários aspectos superior à Rattlesnakes do curador do zoológico de San Diego. No dia anterior decidira fazer
dois acréscimos: um anexo sobre ofiomancia, que lhe custara
exaustivas pesquisas nos vales do Jequitinhonga e Doce, e um
longo verbete relativo à presença das serpentes na heráldica
(a cascavel enrodilhada do estandarte do batalhão de John
Proctor, do Condado de Westmoreland, na batalha contra os
ingleses: “Não me pises”).
Releu, sem qualquer satisfação, um trecho do anexo:
“O oráculo deita-se à espera que as serpentes rastejem até
ele. E se lhe picarem os membros inferiores as raízes secarão
no solo e as mulheres abortarão seus filhos; e se lhe picarem o
tronco ou os braços, haverão de se precaver contra a peste e as
doenças; mas se lhe cravarem as presas no rosto e se sangrarem as gengivas e as pálpebras lhe caírem como a um embriagado, então as sementes germinarão e as mulheres darão à
luz seus filhos. E os da vila, que em torno dele se dispõem em
círculo, empurram as urutus em direção ao seu rosto para que
o piquem e venha ele a botar sangue pelas gengivas e lhe
caíam as pálpebras como aos bêbados”.
Pousou o manuscrito sobre a mesa de trabalho e fitou com
os olhos doloridos, na parede em frente, a reprodução de um
Siron Franco que mandara emoldurar: dois aterrados tapires,
cercados pelo afilado corpo de uma longa e dourada serpente.
QUINTA-FEIRA, 28 DE JULHO
Onze horas da noite. Há muito caiu sobre o sítio o pesado
silêncio serrano. Lá fora a escuridão era espessa como uma
massa oleosa. As crianças dormiam.
Sentado a um canto da sala ele examinou, sobre as páginas do livro que não conseguia ler, cada traço do rosto da mulher que, no divã à sua frente, folheava uma velha revista de
modas. Suas feições eram sombrias e tristes; havia-lhe surgido uma papada sob o queixo pequeno e arredondado, e o nariz
curvara-se em direção à boca, de lábios finos como um traço,
emprestando-lhe uma aparência de ave de rapina. O antigo
brilho dos olhos apagara-se, restando duas lentes opacas e lacrimosas. Era esta a sua mulher. E, no entanto, era necessário saber, naquela noite e com a urgência de uma dor cortante,
até que ponto haviam levado aquela indiferença hostil, aquele
54
CONTO
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INTELIGÊNCIA
desamor sofrido e velho que lhes grudara na alma.
Ocorreu-lhe dirigir-se à mulher, contar-lhe que, finalmente, terminara o seu tratado sobre as urutus, ao qual dedicara
tantos anos de sua vida. Mas ele próprio encarava com indiferença o término do trabalho. E, depois, faltou-lhe ânimo. Ele
sabia, do fundo do coração, que nada do que dissesse jamais
voltaria a interessá-la. Ela levantaria os olhos baços da revista, para fitá-lo com mudo ressentimento, e acrescentaria um
tijolo a mais no muro que emparedava sua mágoa.
SEXTA-FEIRA, 29 DE JULHO
À mesa, ao jantar, ele observou com profundo desgosto,
como se os visse pela primeira vez, a mulher e os dois filhos,
três estranhos a mastigarem, famintos. Era-lhe penoso admitir que já não enterneciam-lhe o coração, tanto mais quanto
não apagara da lembrança o alegre alvoroço que lhe causara o
nascimento dos dois.
Mas muitas outras coisas haviam morrido dentro dele; de
fato, pouco sobrara que valesse à pena. Ele se sentia como
quando terminara o seu tratado: você fecha o manuscrito, sem
prazer ou pena, olha para a parede à frente e vê uma serpente
imaginária, e de real existe apenas o medo pânico dos tapires
encurralados.
SÁBADO, 30 DE JULHO
Ele removeu as serpentes do laboratório montado no subsolo da casa do sítio. Carregou as caixas, uma a uma, até o
serpentário, um fosso de paredes altas e lisas sobre as quais se
debruçava, freqüentemente, para observar, por horas, as criaturas escamosas e coleantes. Por anos levara-as dali para o
laboratório onde abria-lhes o corpo – pesando vísceras, medindo, comparando. Jogava-lhes, ainda vivos, ratos e preás e gostava de surpreendê-los no momento em que, imobilizados de
terror, fechavam-se neles as finas presas perfuradas.
Com um gancho puxou as cobras para fora das caixas e
desceu-as ao fundo do fosso. Conhecia-as, todas, como se conhecem animais de estimação. Terminado o trabalho, pôs-se a
observá-las. Algumas deslizaram pela grama rala, outras se
encolheram, montículos de carne elástica, escamas coloridas,
línguas bífidas. Algumas cascáveis agitaram os guizos.
DOMINGO, 31 DE JULHO
Foi um dia longo e quente. Os meninos vagaram pela casa,
silenciosos e tristes como pequenas almas danadas. Depois do
almoço a mulher recolheu-se ao quarto pelo resto da tarde.
Sozinho, ele pensou em trabalhar por algumas horas no laboratório, mais por hábito do que por desejo, mas lembrou-se de
que terminara o tratado e de que removera as serpentes. Sentiu-se confuso e desorientado, não tanto pela falta de uma atividade que se tornara rotineira quanto pela intuição de que
estava condenado, pelo resto de sua existência, àquela solidão
silente.
À noite, deitado mas desperto, evitou olhar para a mulher
que ressonava a seu lado. Levantou-se e foi ao quarto das crianças. Curvou-se sobre um e outro para observar-lhes a face,
à procura da mais tênue linha na qual pudesse reconhecer-se.
Conseguiu apenas que o coração se confrangesse com sua própria aridez. Desceu ao laboratório, sentando-se à mesa de trabalho, sem ao menos notar o manuscrito que terminara há
quatro dias. Seus olhos vagaram até se fixarem na serpente
dourada que pendia da parede. Levantou-se, apagou a luz e
caminhou em direção ao serpentário.
Era uma noite magnífica. A lua, bela, fria e solitária, cobria a serra de uma luz azulada e transparente, o céu salpicado de estrelas cintilantes. Um silêncio majestoso nascia nas
montanhas e pairava sobre o vale adormecido.
Envolto pela claridade diáfana ele galgou a mureta do serpentário e deixou-se escorregar para dentro do fosso, ouvindo
o chocalhar de guizos enlouquecidos.
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INTELIGÊNCIA
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I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
orçamento
Em busca do
Fernando Limongi e Argelina Figueiredo
Cientistas Políticos
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GUARDA LIVROS
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INTELIGÊNCIA
perdido II
O FISIOLOGISMO, SE SUBIU, NINGUÉM SABE, NINGUÉM VIU
E
ste artigo dá continuidade ao trabalho que apresentamos no número anterior de Insight-Inteligência. Como
naquela ocasião, trazemos a público resultados de uma pesquisa em andamento1 . Na edição passada, discutimos
o arranjo institucional que estrutura o processo orçamentário no Brasil e suas implicações para uma avaliação
mais conseqüente e menos estereotipada da participação do Congresso no processo orçamentário e das relações
entre os Poderes. Neste artigo, nossas atenções se voltam para a distribuição interna dos recursos inseridos na peça
orçamentária por meio de emendas introduzidas por parlamentares. Trataremos também da execução das
emendas, explorando um aspecto das relações entre o Executivo e o Legislativo freqüentemente citado pela
crônica política, qual seja, o da relação entre a liberação dos gastos previstos pelas emendas e as votações no
Congresso Nacional.
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001
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Constituição de 1988, do ponto
de vista da participação do Legislativo na definição do gasto
público, procura encontrar um
meio termo entre a “liberalidade” da Constituição de 1946 e
“rigidez” do período militar.
Pelo texto em vigor, o Executivo detém a prerrogativa exclusiva de iniciar projetos de lei
que se refiram a matérias orçamentárias. Em especial, cabe
ao Executivo estimar as receitas. O Legislativo pode emendar
os projetos enviados pelo Executivo, mas tais emendas estão
condicionadas pelo teto das receitas disponíveis de acordo com
a definição prévia do Executivo. Isto significa que as emendas
do Legislativo ficam circunscritas a remanejamentos.
A possibilidade de emendar o orçamento remanejando gastos propostos dá ao Legislativo um poder considerável. Em
tese, poder-se-ia imaginar uma situação em que os legisladores realocassem todos os gastos propostos pelo Executivo, desfigurando e alterando totalmente a proposta inicial. Legisladores, seguindo este raciocínio, poderiam usar de maneira “esperta” este expediente. Poderiam, por exemplo, cancelar os
gastos e despesas inadiáveis contidos na proposta do Executivo, como, por exemplo, o pagamento de pessoal e da dívida
pública, transferindo estes recursos para os projetos que atendessem os interesses de suas clientelas eleitorais. Como, em
última análise, a responsabilidade de ser governo não cai nas
costas dos legisladores, estes poderiam, ao participar da confecção da peça orçamentária, agir de forma irresponsável,
transferindo despesas alocadas para prover fundos para gastos sabidamente inadiáveis — como pagamento de pessoal —
para financiar os projetos que atendessem seus interesses eleitorais.
A Constituição de 1946 não vedava o recurso a este expediente. No caso, como o Executivo não tinha a prerrogativa de
estimar as receitas, o irrealismo do orçamento podia ser levado ao paroxismo. Qual era, de fato, o comportamento dos parlamentares neste período é questão que pede, ainda, maiores
investigações. No entanto, qualquer que fosse este comportamento, o diagnóstico que se firmou na época foi o de que, para
usar a expressão cunhada por Roberto Campos, o Congresso
seria “uma verdadeira fábrica de déficits”. Os militares atacaram este problema da maneira que é própria aos regimes de
60
GUARDA LIVROS
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a
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INTELIGÊNCIA
força, qual seja, eliminando, pura e simplesmente, a possibilidade de que os parlamentares participassem da definição do
gasto público. O orçamento não podia ser emendado e, pior,
poderia ser aprovado por decurso de prazo.
A Constituição de 1988 permite que parlamentares remanejem os gastos previstos pelo Executivo. Porém, não podem
fazê-lo com todo e qualquer tipo de gasto. Os gastos inadiáveis, aqueles que garantem a continuidade e existência das
atividades estatais foram “protegidos”, e o foram pelo texto
constitucional, da possibilidade de cancelamento por meio de
emendas oferecidas por legisladores. Em realidade, a participação do Legislativo na definição dos gastos é limitada por
uma série de outros documentos legais que estipulam outras
tantas limitações. Estas podem ser de vários tipos. Por exemplo: há transferências constitucionais de receitas arrecadas pela
União aos estados e municípios; existem programas cuja continuidade é assegurada por lei e, também, há os casos de receitas cujos gastos estão vinculadas a certos programas, como o
salário educação.
Portanto, no atual quadro legal, o Legislativo tem assegurado o direito de participar da definição dos gastos públicos.
No entanto, esta participação é condicionada por um ordenamento que circunscreve a possibilidade de os legisladores emendarem a proposta enviada pelo Executivo a determinados gastos. Logo, antes de discutirmos a distribuição dos recursos orçamentários no interior do Legislativo, precisamos estabelecer o montante de recursos disponíveis e a porcentagem deste
valor que é efetivamente apropriada pelo Legislativo. Os recursos orçamentários, desta forma, podem ser divididos em
dois subtotais mutuamente exclusivos: os recursos cujo remanejamento é vedado e os passíveis de remanejamento. No interior deste último, temos os recursos cuja destinação é definida pelo Executivo e aqueles que são efetivamente remanejados pelo Legislativo.
À primeira vista, distinguir estes subtotais pode parecer
uma tarefa fácil mas, por incrível que possa parecer, não é tão
fácil obter a resposta para este problema aparentemente trivial. Não é por acaso que a literatura especializada registra
respostas díspares a esta questão. De acordo com os cálculos
apresentados por Rocha (1997), 23,4% do orçamento de 1996 e
20,6% do de 1997 poderiam ser remanejados por emendas parlamentares. Estes cálculos contrastam vivamente com os apresentados por Serra para 1991, para quem os recursos “não
condicionados representam tão-somente 5,7% do orçamento”
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INTELIGÊNCIA
(1994 34). Como se pode chegar a valores tão díspares? Os
Osvaldo Maldonado Sanchez (1998) observa que a Lei nº
diferentes anos utilizados podem explicar estas diferenças?
4.320/64, portanto, uma lei aprovada no período militar em
O problema é que nem sempre os autores estão falando acordo com o espírito da época, veda o cancelamento de despedas mesmas coisas ou usando dados similares. Em primeiro sas com custeio. O autor nota que este preceito, no entanto,
lugar, há controvérsias quanto ao próprio total de gastos pre- não foi seguido à risca em 1996 e 1997, ainda que conste dos
vistos pelo orçamento. Muitos autores defendem que as previ- pareceres preliminares consultados. Como se vê pela Tabela 1,
sões com a rolagem da dívida pública não devem ser conside- tal restrição atinge um montante considerável dos recursos.
radas como parte do orçamento. Os valores previstos neste
Não é nada fácil se movimentar por este verdadeiro cipoal
grupo de despesa são, necessariamente, superdimensionados, de normas e resoluções. Mais difícil ainda é encontrar a traduuma vez que as regras de contabilidade orçamentária adota- ção destas normas nos dados orçamentários. Muitas das resdas pela legislação brasileira levam à dupla, quando não à trições definidas pelo relator geral acabam por incidir sobre
quátrupla e sêxtupla, contagem. A importância desta decisão gastos já previamente protegidos. Outros envolvem uma verfica evidente quando se sabe que o serviço da dívida, entre dadeira selva de remissões cruzadas a outras decisões e docu1997 e 1999, nunca foi inferior a 37% do total do orçamento mentos que impedem a identificação do não-iniciado dos valoaprovado, sendo que, em dois anos, 1997 e 1999, representou res indicados. Todos estes problemas nos levaram a conclumais da metade dos valores orçados. Nas análises que seguem sões desanimadoras: não estamos seguros de ter calculado com
obedecemos a prática estabelecida nos últimos anos pelo pró- precisão os valores abertos a remanejamento por parte do Leprio Congresso de destacar os gastos do serviço da dívida e, gislativo.
para todos os efeitos, não considerá-los como parte integrante
Os problemas citados são agravados pelo fato de sabermos
dos gastos públicos definidos pela peça orçamentária.
que os valores da proposta enviada pelo Executivo com que
A Tabela 1 registra os valores constantes da Lei Orçamen- trabalhamos não são totalmente confiáveis. Há erros e não
tária Anual (LOA) para o período sob análise, distemos as informações necessárias para corrigi-los.
tinguindo o valor proporcional de cada Grupo de
Pior, há sempre uma diferença que não é de todo
Natureza de Despesa (GND), excluindo-se, pelas
desprezível entre os valores com que trabalhamos
razões expostas acima, os gastos com a rolagem
e os citados pelo parecer preliminar. Portanto, os
da dívida.
valores que apresentamos a seguir devem ser liO texto constitucional, mais precisamente o
dos à luz destas considerações.
NEM SEMPRE OS
artigo 166, veda cancelamentos de despesas em
Para se ter uma idéia da variação e probleAUTORES ESTÃO
gastos com pessoal e seus encargos, serviço da dímas envolvidos, concentremo-nos em dois anos.
FALANDO DAS
vida e as transferências constitucionais. No entanEm 1997, a partir do total enviado, considerando
MESMAS COISAS
to, para além do texto constitucional, deve se conapenas as restrições para os remanejamentos para
OU USANDO
siderar as demais restrições definidas em uma
os grupos de despesas cujo remanejamento é veDADOS SIMILAmiríade de documentos legais. No Parecer Prelidado por força do texto constitucional (Pessoal e
RES. HÁ CONminar, o Relator Geral explicita todos os impediJuros e Encargos) e pela Lei nº 4.320/64, teríaTROVÉRSIAS
mentos a cancelamentos de despesas contidos nos
mos que 7,2% do total enviado estariam livres para
QUANTO AO
diferentes documentos legais, incluindo aqueles
remanejamentos. Seguindo as indicações contidas
PRÓPRIO TOTAL
contidos na Constituição e na Lei de Diretrizes
no parecer preliminar, chegamos a uma proporDE GASTOS
Orçamentárias (LDO). Por exemplo: entre outras
ção livre para remanejamento inferior a 3% do
PREVISTOS PELO
restrições e vedações, o Relator Geral reafirma o
total enviado. Para 1998, as vedações para os três
ORÇAMENTO
compromisso do Legislativo em não cortar gastos
primeiros GNDs limitam os remanejamentos a
previstos oferecidos como contrapartida em programas finan- 19,28% do total. O parecer preliminar veda remanejamento
ciados parcialmente com recursos externos, elenca os progra- em mais de 9,82% dos recursos totais, com o quê a parcela
mas cujas dotações não podem ser alteradas e identifica as livre para remanejamento cai para 9,46% do total. Na realidatransferências constitucionais aos estados e municípios.
de, a expressão livre para remanejamento não é totalmente
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61
correta, já que parte destes recursos só pode ser remanejada
no interior de certos programas por força da vinculação entre
fonte arrecadadora e gasto1 .
Os valores a que chegamos para 1997 não parecem condizer com o que sabemos do processo orçamentário. O valor total
das emendas aprovadas para este ano é bem maior do que a
porcentagem prevista. Muito provavelmente, os valores com
que trabalhamos não são os mesmos com que o relator geral
trabalhou. A consistência interna dos dados indica, como discutiremos rapidamente adiante, que os dados originais contêm erros. No caso da proposta original do Executivo, carecemos da referência necessária para fazer correções, porque dificilmente poderemos distinguir entre três possibilidades: erros nos dados corrigidos por emendas legislativas, cortes de
gastos e os erros de notação.
Há ainda, como nos alerta Osvaldo Maldonado Sanchez
(1998), controvérsias quanto à interpretação e aplicação dos
textos legais vigentes, mais especificamente no que diz respeito à vedação de remanejamentos baseados em recursos alocados em despesas correntes, que nos impedem de ter clareza
quanto ao total de recursos disponíveis para acolhimento de
emendas. Segundo este autor, malgrado a restrição legal vigente, gastos destinados a custeio têm sido utilizados para
financiar emendas legislativas.
Assim, concluímos, não sem alguma frustração, que não
temos condições de saber qual a parcela dos recursos efetivamente abertas a remanejamentos e, conseqüentemente,
que parte deste subtotal é emendado pelo Legislativo. Sabemos com certeza, no entanto, por meio da leitura da LDO e
do Parecer Preliminar, que o Legislativo “amarra as suas
próprias mãos”, adicionando novos impedimentos à sua intervenção às vedações legais já existentes. O Legislativo procura impedir, assim, que ele venha a ser vítima dos atrativos de uma estratégia irresponsável. Na verdade, o Legislativo não seria tão “esperto” se agisse de maneira “irresponsável”. Isto porque o jogo entre o Executivo e o Legislativo
não se encerra com a aprovação da LOA. Há mais uma rodada a ser considerada, a da execução orçamentária. Como se
sabe, a lei orçamentária no Brasil autoriza o Executivo a fazer gastos, mas não o obriga a fazê-lo. Na ausência das receitas correspondentes, o Executivo conta com a possibilidade
de contingenciar gastos e, no caso de gastos inadiáveis, a
falta de recursos pode justificar remanejamentos. Assim, o
comportamento irresponsável do Legislativo ao aprovar a
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INTELIGÊNCIA
LOA poderia vir a reforçar o poder do Executivo no momento
da execução do orçamento. A execução do orçamento será
discutida adiante.
O total de recursos abertos à intervenção legislativa, portanto, não pode ser definido de maneira precisa e imune a
controvérsias. Temos assim, como rescaldo desta discussão,
uma imprecisão quanto à base de referência do problema a
ser tratado. Não sabemos com certeza qual o tamanho do
bolo que os congressistas podem dividir entre si. Sabemos,
apenas, que o Legislativo mostra ter um comportamento mais
responsável do que aquele retratado no folclore político brasileiro. A LDO e o Parecer Preliminar impõem limites à participação dos legisladores e protegem uma parcela considerável da proposta enviada.
Há uma forma alternativa de tratar o problema. Em lugar
de definir os montantes abertos à intervenção legislativa, podemos simplesmente trabalhar com os montantes aprovados e
analisar a divisão interna dos recursos efetivamente contemplados por emendas.
Recorrendo à LOA, podemos procurar distinguir para cada
gasto autorizado (e, posteriormente, para cada gasto executado) a sua origem, isto é, a parcela dos gastos previstos na proposta original enviada pelo Executivo e a resultante das emendas apresentadas pelos parlamentares.
Trata-se de operação que, à primeira vista, poderia ser levada a cabo de forma simples e direta. Infelizmente, e nós
descobrimos isto na prática, esta não é uma tarefa tão fácil
como parece. Pelo contrário. Não é o caso de explicar aqui todas as dificuldades envolvidas. O fato é que, em primeiro lugar, os dados disponíveis não são inteiramente consistentes
quando considerados em suas unidades mais desagregadas.
Por exemplo: há inúmeros casos de registros da aprovação de
dotações para determinadas rubricas por meio de emendas
parlamentares sem que a dotação seja registrada na LOA. Em
casos desta natureza, para impor consistência aos dados, regras operacionais precisam ser estipuladas e respeitadas. Qual
das informações deve ser considerada fidedigna e correta?
Decisões operacionais, neste tipo de casos, não estão imunes a certo grau de arbitrariedade. Para resolver problemas
de conflito de informações, a solução adotada foi a de tomar a
LOA como a base de referência. As demais informações foram
tratadas para atender à lógica do processo orçamentário. Por
exemplo: não pode haver emenda aprovada sem que seu valor
se encontre registrado na LOA. Retomar todos os passos e re-
INTELIGÊNCIA
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Tabela 1
Distribuição de Recursos por Grupo de Despesa (GND)
Lei Orçamentária Anual (LOA) — 1996-1999
GND
1996
1997
1998
1999
Pessoal
20,78
21,71
20,18
20,61
Juros e Encargos
11,66
12,17
15,52
20,45
Despesas Correntes
55,10
54,44
50,10
49,27
Investimentos
4,64
4,77
4,69
3,21
Inversões Financeiras
6,05
5,55
8,82
6,10
Despesas de Capital
0,18
0,05
0,03
0,00
Reserva de Contingência
1,59
1,31
0,67
0,35
190.946,41
207.579,59
239.452,86
245.345,85
TOTAL (em R$ milhões)*
* Exclui Amortização da Dívida.
Fonte: Assessoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados e Elaboração Cebrap
Tabela 2
Distribuição de Recursos por Grupo de Despesa e Poder
Lei Orçamentária Anual (LOA) — 1996-1999
1996
GND
exe
1997
leg
exe
1998
leg
exe
leg
1999
exe
leg
Pessoal
99,86
0,14
94,52
5,48
99,99
0,01
100,00
0,00
Juros e Encargos
99,93
0,07
100,00
0,00
100,00
0,00
100,00
0,00
Despesas Correntes
99,52
0,48
98,46
1,54
99,66
0,34
99,27
0,73
Investimentos
71,54
28,46
65,69
34,31
66,98
33,02
54,89
45,11
Inversões Financeiras
95,12
4,88
97,87
2,13
99,74
0,26
99,69
0,31
Despesas de Capital
76,28
23,72
97,53
2,47
100,00
0,00
—
—
Reserva de Contingência
Total*
100,00
0,00
99,51
0,49
100,00
0,00
100,00
0,00
98,77
1,23
97,87
2,13
99,05
0,95
99,17
0,83
* Exclui Amortização da Dívida.
Fonte: Assessoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados e Elaboração Cebrap
Tabela 3
Distribuição de Recursos das Emendas Parlamentares por Grupo de Despesa
Lei Orçamentária Anual (LOA) — 1996-1999
GND
Pessoal
Juros e Encargos
1996
1997
1998
1999
leg
leg
leg
leg
1,49
31,37
0,06
0,02
0,44
0,00
0,01
0,00
13,46
22,15
9,81
19,69
Investimentos
67,34
43,16
88,82
79,24
Inversões Financeiras
15,05
3,12
1,30
1,05
Despesas Correntes
Despesas de Capital
2,21
0,03
0,00
0,00
Reserva de Contingência
0,00
0,17
0,00
0,00
3.745,20
7.871,44
4.177,29
4.490,25
Total (R$ milhões)*
* Exclui Amortização da Dívida.
Fonte: Assessoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados e Elaboração Cebrap
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gras seguidas seria abusar da paciência do leitor. O que im- investimentos ou alocados na reserva de contingência para
porta ressaltar é que as informações e análises que apresenta- custear gastos com pessoal. Não pode fazer o inverso: financiar
mos a seguir são consistentes no nível mais elevado de desa- novos gastos em investimento cortando gastos em pessoal. Em
gregação com que trabalhamos, qual seja, a rubrica aberta por tese, portanto, estes gastos adicionais com pessoal podem reGND. Isto é, a consistência interna a que aludimos acima foi presentar prioridades do Legislativo não-contempladas pela
obtida para cada um dos 11.098 casos registrados
proposta do Executivo. Por exemplo: aumentos de
na LOA de 1996, para os 13.916 registrados em
gastos com certas categorias em função de aumen1997 e os 15.406 e 14.227 existentes nos bancos
tos salariais podem ser financiados desta forma.
de 1998 e 1999 respectivamente. Para cada um
No entanto, é necessário notar que a Tabela 2
destes casos, as regras próprias ao processo orçasobredimensiona a participação do Legislativo na
mentário foram seguidas e somos capazes de disdefinição do gasto público. Isto porque, uma vez
OS DADOS
tinguir os montantes que se devem à iniciativa de
iniciada a apreciação do Projeto de Lei OrçamenMOSTRAM QUE
cada um dos Poderes.
tária (PLO) enviada pelo Executivo ao Congresso,
A PARTICIPAÇÃO
Há uma dificuldade adicional que merece mentoda e qualquer alteração do projeto implica na
DO LEGISLATIVO
ção. Até 1998, os dados relativos aos valores aproapresentação e aprovação de uma emenda. Assim,
NA DEFINIÇÃO
vados por meio da intervenção legislativa, isto é,
se por ventura, ao longo da apreciação do PLO
DOS GASTOS SE
às emendas aprovadas, identificam apenas a ruvenha a se constatar algum erro no mesmo, por
LIMITA, PRATICAbrica contemplada sem distinguir o seu GND. Soexemplo, uma provisão de gastos inadequada para
MENTE, AOS
mente em 1999, as emendas vêem acompanhadas
pagamento do pessoal de um determinado setor
INVESTIMENTOS
da identificação do GND. Isto nos levou à necessida burocracia pública, o acerto necessário será feito
dade de deduzir o GND contemplado pela emenda com base por meio de emenda parlamentar. Ou seja: a participação renas dotações previstas pela LOA, garantida, como sempre, a lativa do Congresso no total aprovado que identificamos na
consistência interna requerida pelos dados orçamentários.
Tabela 2 inclui estas revisões e, portanto, sobreestima a partiCom base nestes procedimentos, para cada rubrica aberta cipação deste poder na definição do gasto público. Muito propor GND, identificamos duas parcelas, aquela que pode ser vavelmente, para voltar ao exemplo do parágrafo anterior,
atribuída à ação do Legislativo e a que se deve à proposta ori- gastos com pessoal introduzidos por emendas parlamentares
ginal do Executivo (PLO). Assim, pudemos construir a Tabela visam sanar erros identificados no PLO.
2, reproduzida abaixo. Em a participação relativa de cada um
Estes comentários nos levam, novamente, a conclusões, no
dos poderes para a LOA é agregada para cada Grupo de Natu- mínimo, desalentadoras para o objetivo deste trabalho. Os rereza de Despesa. Os dados mostram que, salvo para certos cursos identificados na Tabela 2 contêm valores que não deanos e casos que podem ser considerados anômalos, como os vem, verdadeiramente, ser contabilizados como tendo sido ingastos com despesas de capital em 1996, a participação do corporados ao orçamento por força de uma decisão interna do
Legislativo na definição dos gastos se limita, praticamente, Legislativo. Não temos como identificar emendas que visam
aos investimentos.
sanar erros das que, de fato, foram introduzidas pelo LegislaVale notar que registros de participação do Legislativo na tivo para atender suas prioridades.
definição de, por exemplo, gastos com pessoal, podem parecer
A análise da distribuição dos recursos aportados ao orçacontradizer o preceito constitucional que veda remanejamen- mento por meio de emendas parlamentares por GND, conforto de gastos neste GND. Mas não é este o caso. O Legislativo me apresentado na Tabela 3, mostra que as despesas com pesestá impedido de remanejar os gastos previstos na proposta soal e inversões financeiras não são desprezíveis para o total
inicial enviada pelo Executivo. Isto não implica que ele não de despesas definidas no âmbito do Legislativo. Ainda assim,
possa suplementar e propor novos gastos. Ele pode fazê-lo desde nota-se que gastos desta natureza variam de maneira consique os recursos identificados para levar adiante estes gastos derável ano a ano e, de acordo com a Tabela 2, pouco represennão estivessem em áreas cujo cancelamento é vedado. Assim o tam para os totais da LOA. Para efeitos práticos, tudo indica,
Legislativo pode remanejar recursos de dotações destinadas a gastos desta natureza são definidos exclusivamente pelo Exe64
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INTELIGÊNCIA
cutivo. Quando muito, nestes casos, o Legislativo desempe- pelo governo, os números da Tabela 2 indicam que o Congresnha uma função supletiva e corretiva que pouco nos diz de so tem uma participação decisiva na definição destes gastos.
suas prioridades.
Na parte restante deste artigo, trataremos da divisão inA participação do Legislativo na definição das despesas terna dos recursos presentes no orçamento por força da intercorrentes aponta para um problema mais complexo. Pelo ex- venção legislativa. Os totais se referirão, pelas razões exposposto acima, seria de se esperar que a participação do Legisla- tas, aos recursos destinados a investimentos. Para discutir esta
tivo em gastos desta natureza assumisse caráter semelhante questão, a referência necessária é, sem dúvida alguma, a Reaos analisados no parágrafo anterior. Em realidade, ainda que solução nº 2/95 do Congresso Nacional, um produto direto da
tenham alta participação relativa nos gastos definidos por meio CPI do Orçamento.
de emendas, tendo variado entre 9,8 e 22,2%, a contribuição
A Resolução nº 2/95-CN regula o processo orçamentário
do Legislativo é sempre ínfima quando comparada com os re- no interior da Comissão Mista de Orçamento. Segundo esta
cursos originários da proposta do Executivo.
Resolução, emendas podem ser apresentadas por três tipos
Nestes termos, os gastos com investimento contrastam com de atores: individuais, coletivos e relatores. Quanto às pritodos os demais. Quanto a estes, não cabe qualquer dúvida meiras, trata-se de emendas dos parlamentares, tomados inquanto à competência do Legislativo para remanejar a maior dividualmente, que podem ser apresentadas tanto por senaparcela dos gastos previstos na proposta originalmente envia- dores quanto por deputados. Quanto às emendas coletivas,
da pelo Executivo. Ou seja: neste caso, as restrições à inter- há três tipos: as emendas de bancadas estaduais, de bancavenção do Legislativo para a definição dos gastos são peque- das regionais e as de comissões do Senado e da Câmara. A
nas, quando existem. Em muitos programas, os dois Poderes apresentação de emendas deste tipo é estimulada pela Resocompetem em pé de igualdade na definição dos gastos públi- lução nº 2/95 que, em relação às regras vigentes anteriorcos. Como a análise dos dados incluídos na Tabela 2 revela, a mente, tornaram, ao mesmo tempo, mais exigentes à proparticipação relativa do Legislativo na definição
porção de assinaturas requeridas para o acolhidos gastos com investimento está longe de ser desmento das emendas coletivas. No caso das emenprezível. Nos anos incluídos em nossa análise, ela
das de bancadas estaduais, até a entrada em vivariou entre 28% e 45% deste subtotal.
gor da Resolução nº 2/95, a exigência para acaAssim, com base na análise conjunta das Tatar uma emenda de bancada era que nesta fosse
EM MUITOS
belas 2 e 3 aliada à leitura dos textos legais que
apoiada por ½ dos membros da referida bancaPROGRAMAS,
vedam o remanejamento dos recursos propostos
da. A partir de 1995, a emenda tem que receber
pelo Executivo, optamos por restringir nossa anáo apoio de ¾ da bancada. Quanto às emendas de
O LEGISLATIVO
lise às despesas comprometidas com investimenrelator, cabe distinguir dois tipos: as emendas
E O EXECUTIVO
tos. Incluir gastos de outra natureza poderia condo relator geral e as dos relatores parciais2 .
COMPETEM
A Tabela 4 apresenta a participação relativa
tribuir para minimizar a importância das deciEM PÉ DE
de cada um dos atores listados acima sobre o total
sões legislativas incluindo nas comparações gasIGUALDADE
dos valores aprovados para gastos com investimentos que somente o Executivo pode fazer e que,
NA DEFINIÇÃO
to nos anos que vão de 1996 a 1999. A Tabela
em verdade, nos mais das vezes, é forçado a faDOS GASTOS
mostra claramente que as emendas individuais
zer em função de decisões anteriores. Não estaPÚBLICOS
não são prioritárias para o Legislativo. Em nemos totalmente certos, todavia, de que este argumento se aplique integralmente às despesas de custeio. nhum dos anos considerados, os recursos destinados às emenEm trabalhos posteriores, pretendemos investigar este pon- das individuais passou de ¼ do total. As emendas coletivas,
to em maior profundidade, avaliando com maior precisão se sobretudo, as de bancadas estaduais, recebem a maior parte
nossa decisão não enviesa nossos resultados em uma ou ou- dos recursos. Somente em um ano, as emendas de bancada
obtiveram menos do que 50% dos recursos. Destacam-se, aintra direção.
Se os recursos destinados a despesas com investimentos da, as emendas de relatores cuja soma de valores rivaliza com
são cruciais na definição das políticas públicas levadas a cabo as aprovadas por meio de emendas individuais.
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001
65
Vale observar que esta constatação não é resultado do
fato de termos restrito nossa análise a emendas em gastos
destinados a investimentos. Antes o contrário, a participação das emendas individuais sobre o total cai se considerarmos o total de emendas aprovadas. Neste caso, a participação relativa dos relatores sairia reforçada. Isto porque as
emendas destinadas a gastos com pessoal, em geral, são apresentadas pelos relatores. Esta é uma indicação adicional de
que tais emendas visam, em realidade, sanar erros identificados na proposta inicial.
Seria interessante comparar esta distribuição por atores
sob a vigência da Resolução nº 2/95 com aquela que se verificou antes de sua entrada em vigor. Não é fácil fazê-lo. A base
de comparação deveria se estender para os anos entre 1989 e
1993, já que a CPI do Orçamento e o Plano Real fizeram com
que o Legislativo, para todos os efeitos, não participasse da
confecção dos orçamentos de 1994 e 1995. A base de dados
para estes anos está disponível, mas não podem ser trabalhadas sem a correção dos inúmeros erros que contém. Sabemos,
por exemplo, que neste período, muitas vezes, o Poder Judiciário não enviava a sua proposta orçamentária e esta era feita
inteiramente no Legislativo sendo atribuída a um único parlamentar. Assim, se não identificarmos estas emendas, a participação das emendas individuais sobre o total de emendas
aprovadas acaba sendo exagerado.
Os dados que dispomos para o orçamento de 1993 nos permitem separar as emendas destinadas a investimento das demais e, portanto, permitem comparações com o quadro atual.
Para 1993, as emendas de bancadas estaduais, o único tipo de
emenda coletiva prevista naquela ocasião, foram responsáveis
por 25,15% dos recursos destinados a investimento pelo Legislativo. O restante são emendas individuais, o que inclui as
emendas do relator que não são claramente distinguidas das
demais. Isto é, neste ano não é possível distinguir as emendas
que o relator mostra como relator das que apresenta em seu
próprio nome. Os dados reproduzidos na Tabela 4, portanto,
atestam a eficácia das novas normas adotadas.
A distribuição interna de recursos é um produto das normas contidas na Resolução nº 2/95. Esta resolução procurou
redefinir o papel do relator geral e dos relatores parciais. A
atuação destes passa a ser regulada por uma série de preceitos. Sobretudo, o processo de acatamento de emendas passa a
seguir normas que devem ser explicitadas nos pareceres preliminares. Estes pareceres, em realidade, passam a ter impor66
GUARDA LIVROS
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INTELIGÊNCIA
tância capital, à medida que estabelecem as regras a serem
seguidas em todo o processo.
Com isto, o trabalho do relator geral e dos relatores parciais perdeu grande parte da autonomia e, mesmo, discricionaridade com que eram levados a cabo no passado. As informações que precisam constar nos pareceres preliminares contribuem para que suas atividades passem a ter maior publicidade. Além disto, os trabalhos dos relatores passou a ser acompanhado por representantes dos partidos, um minicolégio de
líderes que atua exclusivamente na Comissão Mista de Orçamento (CMO).
A própria possibilidade dos relatores apresentarem emendas ao orçamento foram redefinidas. Até 1995, relatores podiam apresentar emendas em qualquer momento do processo
de apreciação das mesmas. Ou seja: relatores poderiam apresentar emendas em plenário com a votação em curso (a CPI do
Orçamento revelou que, na verdade, relatores continuavam a
“apresentar e aprovar” emendas mesmo depois da votação e
aprovação do orçamento em plenário). Não havia uma distinção clara entre as emendas individuais apresentadas pelo relator e as emendas da relatoria. Isto é, não havia separação
entre o papel institucional e o individual. As normas em vigor
atualmente procuram garantir que esta distinção seja feita,
reservando as emendas da relatoria a casos previamente definidos. Em outras palavras, as reformas introduzidas visam
garantir que relatores ajam como atores verdadeiramente institucionais e não usem de suas prerrogativas para obter vantagens individuais.
Obviamente, não é fácil alcançar estes objetivos. Osvaldo
Maldonado Sanches nota que o papel dos relatores ainda é
marcado por certa ambigüidade. Segundo este autor, “não obstante os esforços dos membros do Parlamento no sentido de
limitar os papéis decisórios do relator-geral, por intermédio
das normas da Resolução nº 2/95-CN (sobretudo as do artigo
23), que os situa basicamente como um coordenador dos relatores responsáveis pelas decisões, na prática este continua a
concentrar grande poder às expensas do esvaziamento das
Relatorias Setoriais” (1998 10).
O mesmo autor nota ainda que as emendas de relatores
setoriais se confundiram com as emendas de bancadas estaduais à medida que tanto o Parecer Preliminar de 1996 como
o de 1997 instituíram as chamadas “Indicações de Bancada
para Emendas de Relator, o que “além de contornar restrições às emendas de relator, vieram a sistematizar uma for-
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INTELIGÊNCIA
Tabela 4
Distribuição de Emendas Parlamentares por Tipo de Autor
Lei Orçamentária Anual (LOA) — 1996-1999
Tipo de Autor
1996
1997
1998
1999
Individuais (Deputados e Senadores)
21,17
23,34
21,93
21,92
Bancadas Estaduais
51,21
42,80
50,87
52,01
Bancadas Regionas
—
2,71
3,54
—
Bancadas (Subtotal 1)
51,21
45,51
54,41
52,01
Comissões (Subtotal 2)
1,30
2,90
5,97
7,20
Coletivas (Subtotais 1+2)
52,51
48,41
60,38
59,21
Relatores Parciais
26,32
7,95
7,03
18,86
—
20,31
10,66
—
Relator Geral
Subtotal 3 (Relatores)
26,32
28,25
17,69
18,86
Total (em R$ milhões )
2.522,15
3.397,30
3.710,07
3.558,36
Fonte: Assessoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados e Elaboração Cebrap.
Tabela 5
Taxa de Execução das Emendas
Parlamentares por Tipo de Autor
LOA e Orçamento Executado — 1996-1999
Tabela 6
Taxa de Execução por Partido
LOA e Orçamento Executado — 1996-1999
Tipo de Autor
1996
1997
1998
1999
Relator
62,31
69,12
63,44
75,21
Bancadas
47,55
69,38
61,13
66,19
—
64,02
53,39
—
Comissões
43,40
68,20
67,71
78,29
Individual
40,93
63,99
49,11
65,27
Total
49,98
67,87
59,02
68,56
Bancadas Regionais
Fonte: Assessoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da
Câmara dos Deputados e Elaboração Cebrap.
Partido
1996
1997
1998
1999
PMDB
47,08
66,11
52,97
71,24
PFL
52,13
71,14
61,72
72,59
PSDB
46,95
72,46
56,12
69,46
PPB
39,03
60,51
45,51
62,36
PTB
36,78
61,90
55,52
68,67
PDT
16,57
48,63
25,46
38,23
PT
15,74
44,92
14,99
41,29
PSB
15,59
54,51
21,30
65,76
PC DO B
16,15
40,50
16,91
46,71
PPS
44,59
52,97
25,63
58,09
5,03
42,31
0,00
55,07
—
—
—
0,00
36,05
56,14
54,73
67,75
Tabela 7
Apoio Médio da Bancada à Posição
do Governo FHC
Votações Nominais na Câmara dos Deputados —
1996-1999
PV
PSD
24,43
64,87
66,49
67,95
Partido
PMN
18,05
46,49
22,24
67,61
PPB
PSTU
PL
1995
1996
1997
1998
84,03
86,30
81,21
75,12
PSL
19,14
77,86
45,76
—
—
100,00
—
—
42,67
PFL
92,84
92,27
95,68
94,72
PSC
PTB
87,49
92,25
89,78
87,75
PRONA
—
—
43,78
76,79
S/PART
34,39
83,39
—
—
Total
40,93
63,99
49,11
65,27
PMDB
79,73
84,16
81,33
PSDB
92,11
93,88
93,78
92,13
PDT
14,47
21,83
12,64
5,99
PT
5,24
7,37
7,56
5,98
N
86
75
104
89
Fonte: Assessoria de Orçamento e Fiscalização Financeira
da Câmara dos Deputados e Elaboração Cebrap.
Fonte: Banco de Dados Legislativo Cebrap.
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ma de violação aos limites quantitativos fixados pela Reso- política neoinstitucionalista, este individualismo seria o prolução nº 2/95-CN para as emendas de bancadas estaduais” duto das leis eleitorais vigentes. Estas recompensariam a atu(1998 9).
ação parlamentar voltada para a defesa de clientelas eleitoOs dados apresentados na Tabela 4 indicam que os relato- rais localizadas. Políticos racionais agiriam desta forma para
res continuam a ter um papel que excede a mera distribuição garantir a perpetuação de seus mandatos. As expectativas ulde recursos entre os demais atores. As emendas apresentadas tra-individualistas, no entanto, não se confirmam empiricapelos próprios relatores são responsáveis por uma parcela con- mente. Em lugar de privilegiar as emendas individuais, o Considerável dos recursos apropriados pelo Congresso. Uma aná- gresso tomou medidas para favorecer as apresentadas coletilise mais aprofundada do tema pede tratamento mais circuns- vamente.
tanciado dos investimentos previstos por estas emendas, esEntre as emendas coletivas, nota-se que as emendas das
pecificando os programas e atividades financiados por elas. bancadas estaduais são aquelas privilegiadas pelo LegislatiIsto, no entanto, será feito no artigo a ser publicado no próxi- vo. As emendas de bancadas regionais desapareceram no úlmo número desta revista. No momento, basta notar que toma- timo ano e as emendas de comissões nunca chegaram a redos em conjunto, relatores aprovam uma média de 270 emen- presentar um valor considerável. As emendas de bancada, à
das ao ano. O valor médio anual das dotações destas emendas medida que exigem o apoio de ¾ da bancada estadual, são
variou entre 2 e 3,8 milhões de reais.
necessariamente suprapartidárias. Mas, em geral, dada a disSeja qual for o resultado desta análise, parece-nos difícil tribuição de cadeiras vigente no período, não envolviam, neatribuir aos relatores o mesmo papel que desempenhavam no cessariamente, acordos entre deputados governistas e oposipassado. O volume de recursos cuja inclusão no orçamento cionistas. Em 16 estados, os partidos da base de apoio ao
depende da iniciativa dos relatores continua a ser elevado. governo (PPB-PFL-PTB-PMDB-PSDB) controlaram mais de
Análises mais aprofundadas poderão revelar com maior clare- 75% das cadeiras nos quatro anos considerados. Migrações
za o papel que desempenham. É inegável, no entanto, que sob partidárias (na maior parte dos casos em favor do governo)
as normas vigentes antes da CPI do Orçamento, o poder de fizeram com que em quatro estados este controle se estenbarganha dos relatores era muito maior. Isto ficadesse por três anos. Ainda assim, na maioria dos
rá mais claro quando analisarmos as regras que
casos, os partidos de esquerda poderiam ser toregulam o acolhimento de emendas individuais. A
talmente eliminados destes acordos, já que não
capacidade de usar este poder de barganha como
chagavam a controlar 25% das cadeiras. Apenas
base de apoio para obter ganhos pessoais foi, como
no Rio Grande do Sul, Pernambuco e Amapá, a
veremos, claramente limitado.
esquerda controlou cadeiras suficientes para
EM 16 ESTADOS,
Quando comparamos os totais abocanhados
vetar acordos entre o governo e os pequenos parOS PARTIDOS DA
pelas emendas individuais e as coletivas, notamos
tidos de direita e, portanto, estavam em condiBASE DE APOIO
que as últimas são privilegiadas. O fato de um voções de incluir seus pleitos nas emendas estaAO GOVERNO
lume maior de recursos ser destinado às emendas
duais. Esta situação ocorreu em um ano em Ser(PPB-PFL-PTBcoletivas desmente as expectativas quer do folclogipe. Nos demais casos, sempre seria possível,
PMDB-PSDB)
re político brasileiro, quer da ciência política ancoao menos em tese, propor emendas de bancadas
CONTROLARAM
rada na análise institucional. Seria de se esperar
estaduais sem o concurso dos partidos de oposiMAIS DE 75% DAS
que o contrário ocorresse. Afinal de contas, não
ção. Mas estas são considerações hipotéticas.
CADEIRAS NOS
seriam os políticos brasileiros os mais individuaNão temos informações sobre as reuniões de banQUATRO ANOS
listas do mundo? Em sua versão folclórica, o indicadas estaduais e do tipo de apoio que recebem
CONSIDERADOS
vidualismo seria uma expressão acabada do subdos diferentes partidos. Mesmo que as esquerdesenvolvimento cultural e institucional do país, uma sobre- das possam ser alijadas desta distribuição, vale lembrar que
vivência do arcaico e do pré-moderno em um país que se mo- a base do governo é formada por cinco partidos e, no mais
dernizaria apenas nas aparências. O político de hoje não pas- das vezes, estes partidos disputam o poder estadual.
sa do coronel do passado. Na versão alimentada pela ciência
O importante a ressaltar é que, em vivo contraste com as
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INTELIGÊNCIA
expectativas, em lugar de fragmentar recursos para favorecer tares sabem de antemão que têm direito ao mesmo quinhão. O
clientelas localizadas, o Congresso Nacional adotou Resolu- relator não poderá, portanto, favorecer certos parlamentares
ções com vistas à ação conjunta das bancadas estaduais. O com mais recursos em troca de apoio às suas propostas, teapoio por ¾ das bancadas visa garantir que as
nham estas o objetivo (próprio ou institucionais)
prioridades dos estados sejam atendidas por meio
que tiverem. Na atuação dos relatores, pode-se,
deste tipo de emenda. O número médio de emendesta forma, separar o atendimento dos pleitos
das de bancada estaduais aprovadas em cada ano
individuais dos parlamentares de sua atuação proé de 230, ou seja, menos de dez por estado. O vapriamente institucional. Na apresentação de emenlor médio de uma emenda de bancada é da ordem
das individuais, os relatores são tratados como os
O VALOR
de R$ 7 milhões. Ou seja: mesmo sem analisar o
demais congressistas.
MÉDIO DE UMA
conteúdo destas emendas sabemos que envolvem
De outra parte, há uma clara limitação aos “créEMENDA
acordos suprapartidários e mobilizam recursos
ditos” orçamentários que podem ser reclamados
INDIVIDUAL
vultuosos para a atender o estado. Parece-nos diindividualmente pelos políticos. Para um deputaAPROVADA
fícil sustentar que emendas de bancada sejam
do interessado em atender exclusivamente sua cliTENDE A SER
meros guarda-chuvas a abrigar uma coleção de
entela eleitoral, para um parlamentar que siga a
INFERIOR A
interesses individuais.
estratégia típica prevista nos manuais de ciência
R$ 150 MIL
O tratamento dispensado ao acolhimento das
política norte-americana, isto é, um parlamentar
emendas individuais é bastante singular. Em todos os anos que queira distribuir benefícios concentrados para eleitores
considerados, o Parecer Preliminar estabeleceu uma divisão específicos na expectativa de que estes reconheçam seus esuniforme de recursos entre as emendas individuais apresen- forços e retribuam tais esforços com votos, para um político
tadas por parlamentares. Cada um teve direito a uma quota deste tipo, há que se convir, os recursos são escassos. Se a
de R$ 1.500.000,003 . Há, portanto, um tratamento igualitário participação no orçamento for o único ou mesmo o principal
que não distingue a filiação partidária, o número de mandatos meio pelo qual políticos constróem e retêm vínculos pessoais
exercidos, as posições institucionais ocupadas, as mantidas com com eleitores claramente identificados, será forçoso concluir
órgãos da sociedade civil ou iniciativa privada etc. Todos são que estes vínculos são frágeis e insuficientes para ter um peso
iguais. Inclusive, senadores recebem o mesmo tratamento que significativo na arena eleitoral.
deputados.
Na maioria dos casos, parlamentares parecem preferir
Para fins de comparação, cabe retomar os dados relativos dispersar suas emendas a concentrá-las. O valor médio de
ao ano de 1993. Neste ano, o deputado mais bem aquinhoado uma emenda individual aprovada tende a ser inferior a R$
recebeu valores mais de mil vezes superior ao menos favoreci- 150 mil. Isto é, o parlamentar médio tende a distribuir seus
do. Isto é a distribuição de recursos foi feita de forma assimé- recursos por mais do que dez emendas. O Parecer Prelimitrica, concentrando-se em alguns poucos deputados. Naquela nar, em realidade, força uma certa concentração da alocação
oportunidade, 495 deputados tiveram emendas acolhidas, 71% de recursos pelos parlamentares, uma vez que limita a 20 o
deles recebendo menos que a média. Para os senadores, 73 em número máximo de emendas que podem ser apresentadas
81 ficaram abaixo da média recebida pelos membros da casa por cada parlamentar.
alta, cuja média foi três vezes superior à dos deputados. Em
No que se refere às emendas individuais, a distribuição
outras palavras, antes da vigência da Resolução nº 2/95, os uniforme de recursos faz com que se torne desnecessária a
recursos eram distribuídos de forma bastante desigual entre análise da distribuição de recursos por partidos e ou estados.
os membros das duas casas, assim como no interior de cada Dada a regra adotada, se um estado particular receber uma
uma das casas.
dada porcentagem dos recursos, isto se deve ao fato da reAs conseqüências da fórmula adotada pelos Pareceres Pre- presentação deste controlar este percentual de cadeiras. O
liminares para distribuir os nacos do “bolo” orçamentário en- mesmo se aplica a partidos ou qualquer outra classificação
tre os parlamentares são profundas. O maior efeito é sobre a que se faça. No entanto, a distribuição é uniforme e se refere
ação dos relatores e seu poder de barganha. Todos parlamen- à LOA como um todo e nossos dados se restringem a investiOUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001
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mentos. A discrepância, no entanto, entre um e outro uni- vo são beneficiados, mas não monopolizam os recursos. Mesverso é mínima.
mo em anos em que as taxas de execução foram mais baixas,
Ainda assim precisamos considerar a diferença entre as em tese, o governo poderia redistribuir o total de recursos gasdespesas autorizadas e as efetivamente levadas a cabo. Como tos com emendas individuais de forma a garantir 100% da exealertamos acima, a lei autoriza a execução dos gastos, mas cução dos partidos da base do governo. Ou seja: os partidos de
não obriga o Executivo a fazê-lo. Em outras palaoposição não são totalmente excluídos da execuvras, a distribuição proposta pelo Legislativo pode
ção orçamentária, o que nos parece suficiente para
ser transformada pelo Executivo que goza de conindicar que as decisões relativas à liquidação de
siderável grau de autonomia para decidir sobre a
recursos não são ditadas apenas pelo apoio ou opoexecução efetiva das dotações propostas. A hipósição ao governo. Muito provavelmente, os progratese óbvia é a de que o Executivo, ao decidir se
mas beneficiados pelas emendas também afetam
O SALTO DO PT É
excuta ou não emendas, leve em consideração o
a sua probabilidade de execução.
DA ORDEM DE
apoio do parlamentar às suas propostas. Em ouAs variações nas taxas médias anuais da exe30%, O QUE O
tras palavras, o Executivo poderia usar o poder de
cução das emendas individuais são significativas.
LEVA A TRIPLIliberar recursos para obter, para usar um termo
Cabe notar que a variação observada parece caCAR A SUA TAXA
neutro, o apoio às suas propostas.
minhar no sentido inverso ao esperado por teses
DE EXECUÇÃO.
Vejamos, em primeiro lugar, a taxa de execudo ciclo eleitoral. Como 1996 e 1998 foram anos
ASSIM, A TAXA
ção das emendas legislativas de acordo com a
eleitorais, seria de se esperar que estes anos apreMÉDIA DE
classificação por tipo de autores. Conforme mossentassem as taxas de execução mais elevadas.
EXECUÇÃO DO PT
tra a Tabela 5, as emendas dos relatores se enNão foi o caso. O que acontece é justamente o
EM 1997 É
contram sempre entre as mais executadas. Esta
inverso.
SIMILAR À DO
vantagem é bem maior no primeiro ano da série,
A análise conjunta da variação anual e entre
PSDB EM 1996
enquanto nos demais, ainda que favorecidas no
partidos revela aspectos inesperados. Em 1996, a
momento da execução, as taxas estão mais próximas das taxa média de execução foi de 40,9%, subindo para 63,99% no
médias. No outro extremo, se encontram as emendas indivi- ano seguinte. Os partidos da base do governo, em sua maioria,
duais. Este tipo de emenda tem, em todos os anos, as meno- têm um crescimento médio da taxa de execução que acompares taxas de execução. Estas informações, por si só, não pa- nha o crescimento da taxa geral, isto é, da ordem de 20%. No
recem respaldar a tese de que o Executivo usa as emendas entanto, quando se comparam os valores registrados para os
para obter apoio em votações chaves. Um Executivo que fos- partidos de esquerda, vê-se que estes ganharam, relativamense presa da chantagem dos parlamentares deveria mostrar te, bem mais com a maior execução de 1997. O salto do PT é da
maior disposição para executar as emendas individuais do ordem de 30%, o que o leva a triplicar a sua taxa de execução.
que as dos relatores e das bancadas.
Assim, a taxa média de execução do PT em 1997 é similar à do
A Tabela 6 trata apenas das emendas individuais e organi- PSDB em 1996. Os anos de 1998 e 1999 repetem o ciclo obserza os dados por partidos, distinguindo a taxa de execução por vado em 1996-1997. Quando há cortes, os partidos de oposição
partidos. É evidente, pela análise dos dados apresentados, que são os mais prejudicados, mas estes não deixam de ganhar
o Executivo favorece os partidos da sua base de apoio. Há um recursos quando a taxa de execução se eleva no ano seguinte.
enorme contraste entre as taxas de execução médias do PFL e Proporcionalmente, os ganhos da oposição são maiores que os
do PT para ficar com dois casos polares. Há diferenças no inte- do governo nos anos de execução elevada, mas isto decorre, é
rior da própria base do governo. É digno de nota que, entre os claro, do tamanho das restrições que sofrem nos anos de conpartidos governistas, o PFL tenha sempre recebido o melhor tenção de gastos quando a execução das emendas de oposiciotratamento, acima mesmo do PSDB, o partido do presidente. nistas quase chega a zero.
De outra parte, entre os partidos que apóiam o presidente, o
A variação nas taxas médias anuais de execução de emenPPB recebeu, em todos os anos, o pior tratamento.
das dos partidos não guarda uma relação direta com o apoio
Os partidos que pertencem à coalizão de apoio ao Executi- dos partidos à agenda presidencial. A Tabela 7 traz a propor70
GUARDA LIVROS
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INTELIGÊNCIA
ção média de votos de cada partido dados em acordo com a precisa e podem, assim, chantagear o presidente, ameaçandoindicação do líder do governo de 1995 a 1998, isto é, para o o com o voto contrário caso seus pedidos particularistas não
primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso. Há, clara- sejam aceitos. Há inúmeras variações do argumento como aquemente, dois grupos de partidos. De um lado, estão os parti- les que supõem a existências das mais variadas bancadas, como
dos que pertencem à coalizão que apóia o presidente (PPB- a dos ruralistas, evangélicos, comunicadores, esportistas etc.
PFL-PTB-PMDB-PSDB) que, de fato, votam favoravelmente Em todas elas, o presidente entra no argumento como a parte
aos interesses do governo. Do outro lado, estão os partidos fraca porque precisa de votos que só os parlamentares podem
de oposição (PDT-PT) que, sistematicamente, votam contra lhe dar. O presidente distribui os recursos que controla para
o governo. Vê-se que o comportamento destes dois grupos de obter apoio e não lhe ocorreria, de acordo com este argumento,
partidos é razoavelmente estável, apresentando pequena usá-lo da mesma maneira que se assume que congressistas
variação ano a ano.
usam os seus. A análise fria desta relação indica que em uma
Tomados de maneira agregada, há uma associação entre barganha caso a caso e construída individualmente, o presiexecução orçamentária e apoio ao presidente em votações no- dente não pode ser tomado como o negociador mais fraco. Conminais. No entanto, esta associação não permite inferir que a gressistas só podem recorrer ao presidente. Já o presidente
execução orçamentária explica o apoio ao governo por parte pode negociar com 594 congressistas e, por isso mesmo, qualdos parlamentares filiados aos partidos que apóiam o presi- quer ameaça conseqüente e crível de negar apoio ao presidendente. Para que isto fosse verdade, seria necessário que as te só pode ser feita coletivamente. Para isto existem os partioscilações anuais das taxas de execução das emendas fosse dos, para resolver os problemas de coordenação entre parlaacompanhada por flutuações nas taxa de apoio ao
mentares com interesses similares.
governo. Cabe notar que em 1995, não há propriaMas esta discussão é uma discussão que intemente participação do Legislativo no orçamento
ressa a este texto apenas marginalmente. O tema
e, ainda assim, a taxa de disciplina da coalizão do
deste trabalho é o orçamento e não os partidos. É
governo é elevada. Como vimos, a taxa de execuhora de recapitularmos os principais pontos levanção cai em 1998 em relação a 1997 para todos os
tados ao longo deste texto. Vimos que a participaA PARCELA QUE O
partidos da coalizão sem que isto encontre corresção do Legislativo na definição dos gastos orçaLEGISLATIVO
pondência na disciplina.
mentários, praticamente, se limita aos investiREIVINDICA PARA
Com base nestes dados podemos questionar as
mentos. Nestes gastos, sua participação é sempre
SI É SEMPRE BEM
generalizações baseadas nas recorrentes alegações
significativa e não pode, de forma alguma, ser desINFERIOR A QUE
de que a liberação de verbas do orçamento é usaconsiderada ou tomada como irrelevante. Ainda
PODERIA RECLAda para garantir apoio ao Executivo. Se votos são
assim, neste tipo de despesa, que pode ser tomaMAR. EM TESE, O
conseguidos no varejo, em uma negociação individa como aquela que é efetivamente passível de
LEGISLATIVO
dual, caso a caso, o Executivo se veria muito rapicompressão e redefinição ano a ano, há uma certa
PODERIA CHEGAR
damente sem recursos. O Executivo não dispõe de
divisão do bolo entre os dois Poderes. A parcela
MUITO PERTO
tantos recursos, afinal não se pode esquecer que
que o Legislativo reivindica para si é sempre bem
DE DEFINIR
vigora o teto de R$ 1,5 milhão para emendas indiinferior a que poderia reclamar. Em tese, o Legis100% DAS
viduais. Se alguém se desse ao trabalho de somar
lativo poderia chegar muito perto de definir 100%
DESPESAS COM
todos os recursos que se afirma terem sido liberadas despesas com investimento. Não o faz. No ano
INVESTIMENTO.
dos pelo Executivo, o total obtido excederia os gasem que reivindicou para si a maior parte destes
NÃO O FAZ
tos com investimentos previstos em um ano.
recursos, sua participação nas despesas deste gruA visão corrente sobre estas barganhas inverte totalmente po foi de 45%. Ainda que a série histórica analisada seja peas coisas. A ser verdade o que quer o nosso folclore político, quena, pode-se notar que a participação do Legislativo na deteríamos que admitir que em uma barganha entre o presiden- finição dos investimentos cresceu no período e, sobretudo, esta
te e 594 parlamentares agindo isoladamente, o presidente é tendência foi acentuada no último ano quando o Executivo corfraco e os parlamentares fortes. Estes têm os votos que aquele tou gastos para ajustar as contas nacionais.
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001
71
As regras internas que regulam a participação parlamentar na confecção do orçamento favorecem atores coletivos. Em
termos dos recursos distribuídos e de fato executados, as emendas de bancadas estaduais são muito mais importantes que as
individuais. A forma como os recursos são distribuídos por
parlamentares, a adoção de uma distribuição uniforme que
assegura a todos um mesmo patamar, retira qualquer incentivo para trocas de apoio (log-roll para usar o jargão da ciência
política) entre parlamentares para aprovar uns as emendas dos
outros. Sobretudo, esta forma de distribuir recursos, neutraliza
o poder dos relatores que perdem muita a autonomia que tinham para beneficiar uns poucos em detrimento da maioria.
A possibilidade de que o presidente use a execução orçamentária par obter apoio às suas iniciativas parecem limitadas. Em realidade, o Executivo dispõe de armas mais poderosas para congregar as forças que o apóiam. A imagem de uma
REFERÊNCIAS
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relação entre o Executivo e o Legislativo baseada na negociação que se dá no varejo, no caso a caso, no “é dando que se
recebe”, em que as verbas consignadas em emendas individuais são liberadas para obter apoio em votações cruciais não
resiste à análise dos dados. Em realidade, a análise sugere
uma hipótese alternativa que pede consideração. O Brasil pode
ser governado por uma coalizão partidária que funciona como
se supõe que coalizões normalmente funcionam. Os dados apresentados indicam a pertinência de se considerar seriamente esta
hipótese. Ao menos, ela não pode ser descartada. A noção de que
a participação do Legislativo no orçamento seja ditada pelos vínculos pessoais e apartidários que unem eleitores a políticos, de
outra parte, não resistem à análise cuidadosa dos dados.
e - m a i l :
e - m a i l :
f d m p l i m o @ p o p . u s p . b r
a r g e l i n a @ u o l . c o m . b r
ROCHA, Paulo Eduardo Nunes de Moura (1997) — Congresso Nacional e orçamento público: o processo decisório da fase legislativa do ciclo orçamentário ampliado. Brasília: dissertação de mestrado, Departamento de Ciência Política da UnB.
SANCHES, Osvaldo Maldonado (1998) — A Atuação do Poder Legislativo no Orçamento: problemas e imperativos de um novo modelo. Revista de
Informação Legislativa 35(138) pp 5-23.
SERRA, José (1994) — O Orçamento no Brasil: as raízes da crise. São Paulo: Atual.
NOTAS
1 Note que estes valores não são calculados com base nos dados da Tabela 1, mas sim sobre o projeto enviado pelo Executivo, o Projeto de Lei Orçamentária (PLO).
2 A Resolução nº 1/2001 – CN alterou o número de assinaturas necessárias para 2/3 para melhor adequação destas exigências as bancadas estaduais do
Senado. Como os votos são tomados separadamente, o mínimo de 3/4 das assinaturas dos senadores de um estado implicava em exigir unanimidade.
3 Para 2000, este total foi elevado para 2 milhões.
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GUARDA LIVROS
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INTELIGÊNCIA
UNI, DUNI, TÊ,
SALAMINO VEM AÍ
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BÁRBAROS
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M á r c i o
INTELIGÊNCIA
S c a l e r c i o
Historiador
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eferindo-se à necessidade de
guerra aberta contra o terror internacional, em especial o islâmico, depois dos
atentados em Nova Iorque e
Washington, o presidente
dos Estados Unidos declarou
que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Esse conceito não é novo: em 1941, falando
sobre a invasão da União Soviética pelos exércitos nazistas
que desde 1939 moviam uma guerra de morte contra a Inglaterra, Churchill, um ferrenho anticomunista, afirmou que não
pensaria duas vezes em oferecer seu apoio a Stálin. Muito
antes disso, a idéia esteve presente em velhas e importantes
rixas entre o Ocidente e o mundo muçulmano. Recordemos
alguns fragmentos da Primeira Cruzada.
Corria o ano da graça de 1097. A cidade era o Cairo, capital do Califado Fatímida do Egito. O poderoso Vizir al-Afdal
Chahinchah saboreava uma mensagem enviada por seu aliado, Aléxis Comneno, Imperador Romano do Oriente e cristão
ortodoxo, que anunciava a chegada em Constantinopla de um
grande exército de cavaleiros cristãos do Ocidente, nesse período genericamente designados como “francos”1 . O Imperador contava com o auxílio dos francos para reconquistar os
vastos territórios situados na Ásia Menor e no litoral norte
da Síria que o velho império perdera para os turcos de seldjuk, vassalos nominais do Califa sunita de Bagdá. Entre as
inúmeras antigas e famosas cidades arrebatadas pelos turcos, resplandecia Antioquia, uma das jóias mais prezadas pelo
trono bizantino e porta de entrada para a Síria.
O grande Vizir al-Afdal pôs a carta de lado e começou a
rememorar os inquietantes acontecimentos das últimas décadas. Os turcos-altáicos — divididos em inúmeros ramos tribais, como karakânidas, seldjuks, kipchaks, danishmends e
turcomanos —, ao abandonarem suas estepes originais, empregavam-se como mercenários nos exércitos do Islã. Tocados pela mensagem do Profeta, sua combatividade natural
havia sido fortalecida por uma fé ardorosa, sempre presente
entre os povos recém-convertidos, e assim instilaram sangue
novo no mundo muçulmano, cultivando um fervor religioso
repleto de entusiasmo. Esplêndidos guerreiros, eram mestres no modo nômade de combater, fundado na associação
eficaz entre cavalo e arco compósito, o que lhes permitia, em
desabalado galope, despejar chuvas de setas mortais sobre o
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BÁRBAROS
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R
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adversário até destruí-lo por completo. Agredir, fugir e agredir mais uma vez — esse era o modo de luta dos turcos, desenvolvido nas duras rusgas que travavam entre si ou contra
outros bandos nômades que habitavam suas pastagens ancestrais2 .
A sinceridade da conversão turca, aliada à audácia e à
ambição de sultões capazes, foi a combinação que permitiu
que mercenários ou mesmo escravos militares — mamelucos, termo que significa “reconhecidos” — viessem a se tornar com o tempo os senhores de fato das terras islâmicas.
Admitidos no Islã sob a doutrina sunita, oravam em seus
acampamentos e mesquitas em favor do Califa de Bagdá.
Tornaram-se o sustentáculo militar da ortodoxia sunita e
campeões dessa interpretação da fé, atraindo de imediato
contra si a mais agressiva oposição das facções xiitas.
Os turcos do ramo de seldjuk, por sua vez, alcançaram
grande nomeada e poder ao baterem um numeroso exército
bizantino no campo de Manzikert, em 1071. A vitória conquistada nessa grande batalha decretou o fim do poderio imperial na Ásia Menor e no norte da Síria, privando a Marinha bizantina do uso de portos importantes e, o pior de tudo,
provocando a queda da rica cidade de Antioquia. Por todo o
Islã sunita foram erguidas preces a Alá em honra de Alp Arslan, Sultão dos seldjuks, senhor da Ásia Menor e flagelo dos
“Rum”.
Rememorando tais fatos e olhando novamente para a missiva que recebera há pouco, o coração xiita de al-Afdal encheu-se de júbilo. Se o Imperador dos “Rum” não estivesse
exagerando, o poderio dos cristãos ocidentais, unido às tropas de Comneno, representaria um rude golpe contra os odiados adversários sunitas de Bagdá e seus lacaios de seldjuk.
Segundo soubera o poderoso vizir, os francos, além de auxiliarem Comneno em seus projetos de reconquista, pretendiam
marchar até a Cidade Santa, al-Quds, a Jerusalém dos “Povos do Livro”, e plantar sobre suas muralhas os símbolos do
profeta Cristo. Nem mesmo de relance, sequer entre um leve
pestanejo, passou pela mente de al-Afdal qualquer sentimento
de “solidariedade islâmica” em razão das dificuldades que seus
inimigos atravessariam. Afinal, “o inimigo dos meus inimigos é meu amigo”.
Não me causa espécie imaginar um Vizir medieval pensando nos mesmos termos do presidente Bush: como dito anteriormente, esse conceito não era grande novidade já no tempo de al-Afdal. Tentarei, no entanto, ser tolerante com o gran-
de Ministro do Egito xiita. O Vizir, que se deleitava em imaginar os vindouros apuros do inimigo, certamente ignorava o
tipo de gente com a qual teria de lidar ao se tornar vizinho
compulsório dos francos. Os cruzados não se conformaram
em ser meros auxiliares da reconquista bizantina. Com o
auxílio dos recursos imperiais, entraram na Ásia Menor e
esmagaram o Exército seldjuk em Doriléia. Animados pelos
sucessos iniciais, precipitaram-se sobre a Síria e alcançaram
Antioquia, pondo a cidade sob apertado sítio.
Antioquia, a porta da Síria, era uma imponente cidade
sob qualquer ponto de vista. Com cerca de cinco quilômetros
e meio de extensão e um quilômetro e meio de largura, era
protegida por um cinturão de muralhas entremeadas por nada
menos que quatrocentas torres construídas no tempo do imperador Justiniano e reforçadas pelos velhos senhores bizantinos. Boa parte da população era cristã e o poderio turco se
instalara na região há apenas 12 anos.
O grande prêmio representado pela posse de Antioquia
revelou as primeiras fendas na aliança franco-bizantina. Relaterei essa passagem para demonstrar o quanto a arena política é sempre uma atividade que acolhe sob seu véu situações de profunda gravidade. Entre os chefes cruzados, destacava-se a figura de Bohémond de Tarento, um normando da
Itália pertencente à linhagem dos Hauteville, sobrinho dos
grandes chefes Roger e Robert Guiscard, líderes dos grupos
armados de normandos que, anos antes, haviam partido de
suas bases na França para atacar a navegação muçulmana
no Mediterrâneo.
À luz da santa religião católica, essa fora uma tarefa que
não deixava de ser meritória, já que se caçavam embarcações
infiéis. Como empreendimento mundano, tratara-se de uma
ação sobremaneira lucrativa. Os saques, apresamento de embarcações e resgates exigidos para a devolução dos prisioneiros de qualidade haviam servido de combustível para manter flamando a chama da fé. Há que se ressaltar que mesmo
que tenham aceitado o batismo e a latinização, os norman-
O
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dos jamais permitiram que a água benta espargida em suas
frontes diluísse seu sangue pirata. Hábitos antigos são difíceis de mudar, e ao levar a cabo ataques no mar e animadas
pilhagens nas cidades costeiras mediterrâneas, simplesmente obedeciam a seus antigos talentos e duradouras inclinações. Inicialmente aliados dos bizantinos contra o Islã, logo
passaram a acossar também os navios gregos.
Em 1060, liderados pelos Guiscard e contando com a anuência papal, os normandos conquistaram a Sicília e nela se
instalaram permanentemente. Sua Santidade apreciara a
idéia de ter os normandos por perto para servirem de contrapeso ao poder dos imperadores alemães nas disputas italianas. Além disso, é sempre bom lembrar o que disseram venerandos historiadores do quilate de um Henry Pirrenne, de
um Fernand Braudel ou mesmo de um Steven Runciman:
segundo eles, as depredações normandas efetuadas contra a
navegação muçulmana em muito contribuíram para que as
naus ocidentais voltassem a se assenhorar do Mediterrâneo3 .
Desse modo, não foi sem um franzir de cenho muito preocupado que os funcionários imperiais vislumbraram entre as
fileiras dos exércitos de seus aliados francos um poderoso magote de cavaleiros normandos, soberbamente equipados e muito dispostos, liderados por Bohémond de Tarento, cuja fama
de intrepidez e coragem só era ofuscada por sua imensa cupidez e rapacidade. Bohémond havia tomado a cruz porque vira
na cruzada boas oportunidades. Imaginou que no Oriente
seria possível obter as terras e o poder que ainda não acumulara. Enquanto cavaleiros, peregrinos, belenguins e homenssantos da Cruzada sonhavam com a conquista da distante
Jerusalém para Cristo, Bohémond, pragmático como um pirata, queria Antioquia para si. Era mais normando que cristão, e as circunstâncias acabaram por ajudá-lo.
Um artesão fabricante de couraças de Antioquia chamado Firuz, muçulmano de origem armênia, havia tido uma séria
desinteligência com o governante turco da cidade. Amargurado e desejoso de vingança, entrara em contato com os nor-
s saques, apresamento de embarcações e resgates exigidos para
a devolução dos prisioneiros de qualidade haviam servido de combustível para manter flamando a chama da fé. Mesmo que tenham aceitado o batismo e a latinização, os normandos jamais permitiram
que a água benta espargida em suas frontes diluísse seu sangue pirata
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mandos, prometendo, em troca de ouro e
ceber que entre os infiéis recém-chegados
terras, abrir uma das janelas da torre sob
poderiam existir outros chefes ladinos da
sua guarda, que dava para o vale. Na calamarca de um Bohémond. Este soubera com
da da noite, protegida pelas sombras, uma
muita habilidade usar a ira de um muçulforça decidida de normandos entraria na
mano zangado contra seus irmãos de fé. Ao
cidade e, apanhando a guarnição despreque parecia, a falta de escrúpulos exibida
venida, escancararia as portas e permitinas ações do normando só podia ser comria a entrada do Exército sitiante. Firuz
parada à escassez de tal sentimento nortea calada da noienviara seu filho como refém, com o fito de
ando a alta política de um vizir egípcio.
te, protegida
assegurar que não se tratava de uma arTeria al-Afdal, ao ver a imagem dos atos
pelas sombras, uma
madilha.
de Bohémond, assustado-se com o reflexo
força decidida de
Os argumentos de Bohémond para seus
de sua própria face? Nunca saberemos.
normandos entrapares cruzados não podiam ser mais claO que se sabe, pois nos contam a gesta
ria na cidade e, aparos: colocaria a artimanha em andamento
da cruzada e os lamentos do Islã, é que o
nhando a guarnição desem troca da posse de Antioquia. Só ele e os
Exército franco entrou na Palestina na diprevenida, escancararia
membros de seu séquito sabiam da identireção de Jerusalém. O formidável poderio
as portas e permitiria
dade do tratante e qual das torres teria a
dos turcos não fora capaz de deter o ímpeto
a entrada do Exército sijanela aberta. Cabia ao Conselho dos Bada hoste ocidental que, superando todos os
tiante. Firuz enviara seu
rões Cruzados tomar uma grave decisão. A
contingentes enviados contra ela, mantivefilho como refém, com
traição de Firuz a serviço dos normandos
ra-se firme em sua marcha em direção ao
o fito de assegurar que
deveria ser retribuída com a traição dos
sul. Os francos eram enormes guerreiros,
não
se
tratava
de
uma
cruzados aos compromissos firmados com
fortes como touros, e muitos se protegiam
armadilha
os bizantinos. Note-se que, além de evitar
com resistentes e caríssimas cotas de maa dura tarefa de sustentar um cerco prolha. Sua tática principal era o peso da carlongado e difícil contra uma cidade bem fortificada, os bate- ga frontal de cavalaria, que levava de roldão qualquer grupo
dores da cruzada trouxeram a inquietante nova de que um de homens que ousasse tentar resistir. Portavam grandes
grande exército turco, liderado por Kerbogha, o Atabeg de espadas, pesados machados e longas lanças. Eram capazes
Mossul, aproximava-se com célere rapidez. De sitiantes, os de esmigalhar os adversários inapelavelmente4 . Mesmo alfrancos se arriscavam a passar à condição de sitiados, pren- Alfdal, homem experiente que a tudo havia assistido, não
sados entre a guarnição de Antioquia e o exército de Mossul. podia se furtar de esconder sob o manto a cabeça tomada de
Não obstante a contrariedade e os ciúmes de muitos dos ba- horror ao saber das desventuras sofridas pela população de
rões do exército e dos veementes protestos dos plenipoten- al-Quds quando a praça finalmente caiu.
Os cruzados fincaram no cimo dos muros de Jerusalém
ciários bizantinos denunciando a quebra do acordo e as desprezíveis ambições normandas, a força dos acontecimentos uma cruz de aço retinta de sangue, nem um pouco saciada,
favoreceu uma escolha que beneficiava as pretensões de Bo- clamando por mais. A agressividade brutal dos francos eshémond. Assim, o ardil foi posto em andamento, a cidade foi candalizou os muçulmanos. O Exército cruzado massacrava
tomada e os estandartes normandos drapejaram sobre as indistintamente combatentes e não-combatentes, muçulmanos, judeus e mesmo cristãos não-latinos, mulheres, velhos,
ameias da cidadela de Antioquia.
É fácil imaginar um astuto sorriso de satisfação brotando crianças. Quando a Cidade Santa caiu, guerreiros revestidos
na face de al-Afdal ao tomar ciência de tais eventos. “Esses de luzidias cotas de malha oraram em fervoroso agradecinazarenos brigam entre si, traem-se mutuamente e quebram mento a Deus por sua vitória, ajoelhados em devota felicidaacordos solenes tal qual fazem os muçulmanos”. Futuramen- de e apoiados em suas grandes espadas, ferramentas da morte, haveria com certeza modos de tirar proveito disso. Entre- te, nas poças de sangue que cobriam as ruas. Ao longo das
tanto, alvoroçava-se um pouco mais do que gostaria ao per- costas da Palestina e do Líbano, bem como nas áreas do leste
N
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da velha terra dos armênios, estabeleceram suas conquistas
demonstrando que ali pretendiam ficar indefinidamente.
Os primeiros saldos da guerra cruzada alicerçaram a presença ocidental no Oriente Médio. Ao Reino de Jerusalém
somaram-se os demais estados latinos: o Principado de Antioquia e os Condados de Trípole e Edessa. Dos limites de suas
conquistas, os cruzados ameaçavam as importantes cidades
muçulmanas de Damasco, Alepo e Ascalon, e não tardaram a
erguer poderosos castelos de pedra em lugares estrategicamente escolhidos5 . A partir daí, inauguraram a aventura do
Outremer. O Islã, por sua vez, defrontava-se com as agruras
de uma longa ocupação.
Logo após esses macabros eventos, vozes agoniadas por
todo o Islã não tardaram a apregoar a necessidade imperiosa
da união dos muçulmanos contra os bárbaros incréus. A prédica de convocação da Jihad ecoou pelas mesquitas. Era um
clamor justificado, em razão da formidável força do oponente, mas muito difícil de concretizar politicamente. As facções
que dividiam o mundo muçulmano, as velhas disputas e os
ódios recalcados opunham tenaz resistência à tarefa de unirse contra o inimigo comum. Os estudiosos das cruzadas e da
resistência islâmica à agressão ocidental são unânimes ao
afirmar que caso tal divisão entre os muçulmanos não existisse, dificilmente uma força militar numericamente tão modesta — os aproximadamente 1.200 cavaleiros e 13.000 infantes da Primeira Cruzada — teria sucesso na conquista de
áreas tão importantes.
Já naquela época, os ocidentais, a exemplo de Bohémond,
não tardaram a perceber a grande divisão que, como uma
chaga viva, afligia e enfraquecia o Islã. Urgia tirar proveito
dessa situação. A mente dos cruzados era igualmente povoada pela idéia de que o inimigo de meu inimigo é meu amigo.
Uma aplicação concreta dessa máxima é a história do Velho
da Montanha e sua “seita dos assassinos”.
Hassan as-Sabbah era um intelectual e poeta xiita nascido na Pérsia. Nas longas noites estreladas, enquanto as caravanas descansavam, corria de boca em boca e para ouvidos
atentos e ávidos por histórias a lenda de que, na juventude,
as-Sabbah havia sido companheiro de folguedos do grande
poeta persa Omar Khayan. Mas não foram os belos versos
em estrofes bem delineadas, cantando o amor às mulheres
encerradas em haréns ou escritos em devoção a Deus e aos
ditames do Profeta o legado deixado por as-Sabbah. Na verdade, o persa nutria o desejo de participar ativamente da
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luta em prol da destruição do Califado sunita de Bagdá e de
seus aliados turcos. Era um jovem religioso, adepto do partido de Ali Ibn Abi Talib — shiatu Ali — primo e genro do
Profeta e, por conseguinte, adepto da Shia.
Os xiitas, como vieram a ser chamados, afirmavam que a
luz da revelação divina presenteada a Mohamed — louvado
seja seu nome para sempre — continuara a resplandecer entre os membros de sua família após sua morte. Assim, a sucessão do Profeta, isto é, a chefia dos crentes, só poderia ser
reclamada por seus parentes. Entendendo de maneira contrária, a maioria dos demais membros da comunidade islâmica original opinou que a revelação de Alá, o Todo-Poderoso
e Compassivo, restringia-se exclusivamente à pessoa do Mensageiro de Deus, ou seja, era intransferível. Nesse caso, a
sucessão deveria pertencer ao mais capaz de seus companheiros imediatos. A disputa sucessória dividiu o Islã em seu nascedouro, fazendo parte da própria raiz da religião. A partir
de tal contenda, os crentes se separaram definitivamente em
duas grandes facções: os sunitas — partidários do sucessor
mais capaz — e os xiitas — partidários de Ali, às vezes também designados “fatímidas”, pois Ali havia sido esposo de
Fátima, uma das filhas do Profeta6 .
Após a ascensão do Profeta aos céus, o Islã se expandiu
territorialmente com célere rapidez. Os cavaleiros árabes,
endurecidos pelo deserto e empolgados pela Mensagem Divina da qual eram portadores, derrotaram com incrível facilidade os grandes impérios vizinhos, bizantino e persa sassânida. Mas o alargamento do “Dar al-Islã” — a Casa do Islã —
significou também a propagação da velha disputa original
nas regiões anexadas e no coração dos povos convertidos. O
Islã se tornou uma grande morada que abrigava em seu seio
uma imensa diversidade de raças e culturas. Além dos árabes de todas as tribos, cingiram o turbante da fé persas, turcos, egípcios, bérberes, populações de origem grega e eslava,
curdos, povos da Índia, gente do Cáucaso, negros da savana
africana, tribos mongóis, cavaleiros quirquizes e basquires e
multidões dos arquipélagos da Insulíndia. Este é um ponto
que deve ser levado em consideração quando se efetua qualquer reflexão sobre o Islã: sua rica diversidade. A cisão original da comunidade muçulmana entre sunitas e xiitas viajou
por todos os cantos das terras convertidas, ganhando, em cada
lugar e de acordo com cada cultura, novas nuanças, interpretações originais e variadas práticas ritualísticas.
Os dois poderosos califados que controlaram as porções
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mais significativas das terras do Islã durante parte do período medieval, os Omíadas e depois os Abássidas, sustentaram
sua autoridade política sobre os fiéis defendendo zelosamente a ortodoxia sunita. A dissidência xiita era tolerada pelos
califas quando seus seguidores optavam pelo caminho da
moderação. No Islã, contudo, religião, política e poder de Estado sempre foram inseparáveis. A contestação à situação
política reinante dificilmente era destituída de um caráter
marcadamente religioso, daí os movimentos de resistência
política contra as camadas de poder dominantes estarem historicamente associados às várias facções organizadas por
adeptos da Shia.
O jovem as-Sabbah, ao aderir às fileiras xiitas, simpatizara com um de seus segmentos mais radicais: os ismaelitas.
Os ismaelitas acreditavam no uso da violência como um meio
legítimo para alcançar suas finalidades políticas. Até aí, nenhuma novidade, nem para a época, nem para nossos dias.
Notável mesmo foi o talento e a engenhosidade de as-Sabbah
para a organização e o planejamento da violência. Em uma
negra noite, no ano de 1090, as-Sabbah, juntamente com alguns companheiros, tomou de surpresa a fortaleza de Alamut, o “ninho da águia” — que, defendida por uma guarnição
atenta, era verdadeiramente inexpugnável —, situada na
cadeia de montanhas de Elbruz, próxima ao Mar Cáspio7 .
De sua sólida base no alto das montanhas, as-Sabbah organizou seus seguidores e os preparou tenazmente para enfraquecer as lideranças sunitas por meio da prática do assassinato. Os integrantes do grupo de as-Sabbah eram fortemente doutrinados, convencidos da justeza de sua causa e
ensinados a praticar o assassínio dos dignatários sunitas,
sempre às sextas-feiras após a oração e na porta das mesquitas, ou seja, no momento em que a aglomeração de pessoas
era maior. Matar não era o bastante. A vítima deveria morrer diante de muitas testemunhas e, nessas circunstâncias,
a inevitável morte do assassino, executado imediatamente
pelas armas dos guardas do dignatário, servia como exemplo
de sua valentia e de sua dedicação à causa.
Logo os ismaelitas de Alamut se infiltraram por vários
lugares, arregimentando associados e organizando novos grupos de ação. Estabeleceram bases permanentes em fortalezas importantes. Na Síria, compraram aos muçulmanos a
fortaleza de Qadmus. Ocuparam ainda al-Kahf, Khariba e
Masyaf. As atividades dos ismaelitas na Síria eram coordenadas por um homem chamado Sinan Ibn-Salman Ibn Muha80
BÁRBAROS
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mad, originário de uma aldeia próxima à Basra, no Iraque. A
rede estendida por Sinan alcançava toda a Síria, os limites
do Egito e atuava com competência dentro dos territórios controlados pelos latinos. Com o tempo, Sinan, líder regional dos
seguidores de Alamut, passaria a ser conhecido por cristãos
e muçulmanos como o Velho da Montanha. Sinan demonstraria ser tão competente e operoso na coordenação das lúgubres façanhas dos militantes sob seu comando, que superaria as melhores expectativas nutridas por as-Sabbah. Uma
vez instaladas suas bases, os punhais foram afiados e iniciou-se a matança8 .
Diante das ações alarmantes dos seguidores de Alamut,
um enxame de boatos inundou um Islã atordoado. O mais
difundido afirmava que os seguidores de Sinan, o Velho da
Montanha, praticavam seus crimes drogados, com as mentes
inebriadas pelo haxixe. Daí o termo pelo qual ficaram conhecidos, haschaschin, que os francos logo traduziram para assassinos. O temor que o método dos assassinos despertava se
baseava em uma questão para a qual até hoje não existe resposta satisfatória: como deter um homem que está disposto a
sacrificar a vida sem qualquer hesitação em prol da vitória
de sua causa?
Talvez o vizir al-Afdal, ele próprio muçulmano e xiita,
soubesse a resposta. Afinal, o mundo islâmico, sunita ou xiita, sempre foi repleto de seitas, grupos, entidades, associações religiosas e pupilos reunidos em torno de homens santos
a propagar as mais extravagantes doutrinas e práticas. É
possível que na mente de al-Alfdal a associação entre política
e misticismo mostrasse o caminho da inteligibilidade para
esse tipo de ação. O assassino mata e depois permite ser
morto. Sua obra tem a finalidade de conquistar objetivos políticos concretos. Seu punhal foi dirigido contra as costelas
de uma liderança do Estado ou contra um famoso sábio das
mesquitas inimigas. O assassinato, por conseguinte, tem a
clara finalidade de enfraquecer o sistema de poder por meio
da eliminação de personalidades importantes.
Em seqüência quase sempre obrigatória, o assassino permite ser morto na frente de todos, de preferência diante do
testemunho de milhares. Ele quer ser visto porque seu martírio é a confirmação da justeza de sua causa. Hoje, diríamos
que se trata de um ato de propaganda. Ao mesmo tempo,
todo o evento é carregado de forte conteúdo místico. Ao matar, o assassino busca eliminar o erro, aquilo que para o grupo a que pertence é uma falsa interpretação da Palavra. Re-
A
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aliança oportunista entre os cruzados e os assassinos do Velho da Montanha foi um dos componentes que permitiram aos
Estados Cruzados persistir por tanto tempo. Tal união inconfessável,
contudo, não salvou o Reino Latino de Jerusalém de sua destruição
final diante de uma liderança política muçulmana
mover o inimigo político significa, simultaneamente, a eliminação de uma interpretação religiosa equivocada e um passo
na direção da concretização da verdade divina entre os homens.
Suponho que o tipo de clareza acerca dos caminhos escolhidos pelos seguidores do Velho da Montanha que habitava
a mente de al-Alfdal, dificilmente teria a mesma acolhida
nos pensamentos de um barão cruzado como Bohémond, por
exemplo. Para o normando, e depois para os demais líderes
francos que o seguiram, pouco importava a busca de um entendimento mais agudo das diferentes concepções místicas
dos muçulmanos. No caso dos latinos, seus interesses de cunho material estavam bem definidos. Guerreava-se contra o
infiel com o intuito de assegurar a posse dos lugares santos
de Jerusalém, mas também para defender o vasto patrimônio em terras obtido com as conquistas. Em torno de castelos
e cidades ocupadas, a nobreza cruzada enfeudou as áreas e
procurou submeter os povos à servidão. Ao mesmo tempo, as
repúblicas mercantis italianas se apossavam de um suculento naco do comércio oriental ao conseguirem livre acesso aos
portos dos litorais da Palestina e do Líbano ocupados pelos
cruzados.
Desse modo, os estados latinos do Outremer, cuja defesa
empolgou gerações de cavaleiros e peregrinos de muitas partes da Europa, revestiam-se também de um claro valor comercial que “sabujos” da marca de um Borrémond souberam
farejar desde o início. Na defesa do butim obtido e, vá lá, dos
lugares santos e das trilhas de peregrinação, valia a pena
apoiar um inimigo contra o outro. Para homens como Bohémond, assim como pensava o vizir al-Afdal, seria uma tolice,
ou pior ainda, um crime, agir de outra maneira.
Através de emissários, reis cruzados de Jerusalém, barões francos e mestres das principais ordens religiosas de
monges-soldados — os Cavaleiros do Templo de Sion e os
Cavaleiros de São João do Hospital — procuraram entrar
em conchavo com Sinan, o Velho da Montanha. Tiveram
boa acolhida. Afinal, um princípio aparentemente sólido se
repetia: o inimigo do meu inimigo é meu amigo. Várias vezes, contando com apoio e subsídio dos cruzados, os assassinos sustentaram sua política de eliminar chefes muçulmanos sunitas. Regularmente, suas vítimas eram destacadas
lideranças que se empenhavam na união dos crentes contra
os francos. O cádi dos cádis de Bagdá, Abu Saad al-Harawi,
esplendor do Islã, um dos primeiros próceres a clamar pelo
Jihad, foi apunhalado. Ibn al-Khachab, líder que propiciou
a união entre Alepo e Mossul, teve destino idêntico. A lista
de chefes e líderes religiosos abatidos pelas lâminas dos
assassinos é imensa.
Também não causa espanto saber que nas rusgas que freqüentemente brotavam entre os chefes cruzados os assassinos pudessem ser contratados para resolver o problema. Um
boato insistente dizia que a rainha Melisanda de Jerusalém,
ao urdir o assassinato do jovem pretendente ao trono Afonso
Jordão, havia recorrido aos serviços do Velho da Montanha
para a devida eliminação do rapaz.
A aliança oportunista entre os cruzados e os assassinos
do Velho da Montanha foi um dos componentes que permitiram aos Estados Cruzados persistir por tanto tempo. Tal
união inconfessável — ao menos à luz da moral religiosa de
ambas as fés —, contudo, não salvou o Reino Latino de Jerusalém de sua destruição final diante de uma liderança política muçulmana que, a despeito dos punhais, fez-se mais coesa. Salad al-Din Yusuf (Saladino), Sultão do Egito e da Síria,
de origem curda, foi o mais destacado arquiteto da reunião
dos emires que proporcionou a força necessária para o esmagamento do Exército do Rei de Jerusalém na grande batalha
dos Cornos de Hattin, em 11879 . Em rápida sucessão, os demais Estados Latinos e a própria Cidade Santa passaram
mais uma vez para o controle dos devotos do Profeta. Dos
potentados cruzados sobraram apenas tênues faixas do litoral, reforçadas ainda pelas ações empreendidas pela Terceira Cruzada, que conseguiu recapturar a praça forte de São
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João d’Acre. A saga da cruzada e a presença ocidental no
Oriente Médio finalmente terminariam com a queda dessa
cidade em 1294.
Após o recontro nos Cornos de Hattin, os assassinos continuaram a aterrorizar as lideranças sunitas por meio de suas
dramáticas ações. No ano cristão de 1256, no entanto, a fortaleza de Alamut foi sitiada por um novo inimigo que, tal
como os turcos já haviam feito, emergiu das distantes estepes da Ásia Central. A temível horda mongol, que aparentemente não se detia diante de nada nem de ninguém, tomou o
“ninho da águia” e se encarregou de destruir completamente
a base dos assassinos. Os fanáticos de Alamut foram dispersados para sempre.
Esse cenário medieval mostra que não é recente a aliança entre lideranças ocidentais e figuras e grupos dos mais
sinistros com o intuito de tirar proveito das divisões político-religiosas do Islã. Ao mesmo tempo, algumas das facções
islâmicas não hesitam em pôr de lado seus pruridos e receber ajuda ocidental contra seus adversários imediatos. O
inimigo de meu inimigo é meu amigo. Esse princípio esteve
presente nas mentes e nas atitudes de homens como al-Afdal, o vizir, Bohemónd, o pirata, e Sinan, o Velho da Montanha. Eles morreram há muito, mas seu mote desfruta de
uma atualidade que para muitos pode parecer surpreendente. De um modo ou de outro, há de se reconhecer que o
tilintar das espadas chocando-se com as cimitarras ainda
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INTELIGÊNCIA
pode ser ouvido, mesmo com os modernos satélites desenhando ousadas órbitas no céu. Não vivemos ainda um tempo em que as rusgas entre o Ocidente e o mundo muçulmano se tornaram coisa do passado. Ao mesmo tempo, o peso
da modernidade revelado por um planeta cada vez mais ligado em redes tecnológicas sofisticadas em nada esvaziou o
conflito amargo e ressentido que cinde inapelavelmente o
mundo islâmico. Ao que tudo indica, o punhal dos assassinos continua vivo sob a forma de um AK-47 e, para o olhar
ocidental, um líder muçulmano envergando amplas vestes,
turbante e longa barba sempre guarda em si um ar aparentado com o Velho da Montanha, que oculta em sua mente
desígnios necessariamente escusos e sinistros.
O encontro entre Ocidente e Oriente sempre foi complexo
e tortuoso. Hoje, contudo, mais até que na época da Primeira
Cruzada, o convívio entre essas culturas é absolutamente
inevitável — diria mesmo desejável. Nesses tempos preocupantes no qual as espadas e o arco compósito foram substituídos por mísseis de precisão e armas biológicas, deve ser possível, não obstante os tumultos da conjuntura, que se implemente honestamente uma política que busque superar os atos
passados, as façanhas que notabilizaram al-Afdal, Bohémond
e Sinan. Algo melhor e um pouco mais generoso que simplesmente reafirmar que o inimigo do meu inimigo é meu amigo.
e - m a i l :
s c a l e r c i o @ l i n k . c o m . b r
1 MAALOUF, Amin. As cruzadas vistas pelos árabes. São Paulo, Editora Brasiliense, 1988.
2 MIGUEL, André. O Islame e a sua civilização. Lisboa, Edições Cosmos, Rumos do Mundo, vol. VII, 1971.
3 BRAUDEL, Fernand. A gramática das civilizações. Lisboa, Editorial Teorema, 1989 e RUNCIMAN, Steven. História das Cruzadas. Lisboa, Livros
Horizonte, vol I, 1992.
4 MARSHALL, Christopher. Warfare in the Latin East. Cambridge, England, Cambridge University Press, 1996.
5 LAWRENCE, T.E. Crusader castles. Oxford, Clarendon Press, 1990.
6 LEWIS, Bernard. O Oriente Médio. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1996.
7 READ, Piers Paul. Os Templários. Rio de Janeiro, Imago, 2000.
8 MAALOUF, Amin. As cruzadas vistas pelos árabes. São Paulo, Editora Brasiliense, 1988.
9 LYONS, Malcolm Cameron and JACKSON, D.E.P. Saladin: the politics of Holy war. Cambridge, England, Cambridge University Press, 1997.
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BÁRBAROS
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INTELIGÊNCIA
O Irã e eu,
COM PASSAPORTE BRASILEIRO
MICHEL GORDON
FÍSICO
“Um judeu nunca deve emparelhar com um muçulmano numa via pública. Ele está proibido de
falar alto com um muçulmano. Um credor judeu de um muçulmano deve cobrar sua dívida com
modos respeitosos e voz trêmula. Se um muçulmano insultar um judeu, este último deve baixar
a cabeça e permanecer em silêncio”. Essas imposições foram aplicadas aos judeus iranianos da
cidade de Hamadan pelos mullahs, espécie de professores de teologia, no longínquo ano de
1892 (segundo o autor Bernard Lewis, no livro “Judeus do Islã”).
Mausoléu de Esther e Mordehai, profetas judeus do período
Aquemênida, na cidade de Hamadã, noroeste do Irã
84
TURISTA ACIDENTAL
Nessa cidade onde há um século os judeus baixavam as cabeças, tive uma agradável surpresa. Pude
visitar o mausoléu de Esther e Mordehai, as personagens da festa de Purim. Na ante-sala há uma sinagoga pequena e em suas paredes encontramos
algumas escrituras em aramaico. Na entrada, um
senhor extremamente simpático orienta para que sejam tirados os sapatos. Ele nos leva até duas tumbas
de madeira, dispostas simetricamente, repletas de ornamentos e com escrituras em hebraico com os nomes dos profetas. Fica praticamente no centro da
cidade e o porquê de eles estarem enterrados lá,
isso eu não sei responder, afinal de contas, a cidade
de Hamadan fica relativamente distante da cidade
de Shus, onde viveram as personagens acima citadas. De qualquer forma, o senhor que cuida do local é um judeu e não acredito que o governo iraniano proporcione um auxílio financeiro para a manutenção do local. Esther foi responsável pela salvação
do povo judeu num dos primeiros movimentos antijudaicos registrados na História e, por isso, foi merecedora de um livro na bíblia, contando sua história.
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Fotos Michel Gordon
Rua do bairro judeu de Kerman, sudeste do Irã
E por falar em mulheres, é sobre elas que as regras fundamentalistas pesam mais. A Hejab, lei de costumes para
as mulheres, as obriga a vestirem um véu sobre os cabelos (já que os homens não podem vê-los) e essa regra vale
para todas as mulheres, não importa o credo. Podem ser muçulmanas, judias, cristãs e até zoroastristas (isso não
é um grande problema para os judeus, que têm as mesmas normas em suas tradições). Andar de mãos dadas
com uma mulher, só se for sua esposa. Claro que nem todas as regras são respeitadas e a “polícia moral” não
pode controlar todas as pessoas do país. Isso pode parecer loucura, mas a loucura é relativa. No vizinho Afeganistão, as mulheres mal podem sair de casa desacompanhadas; seus corpos devem ser cobertos dos pés às
cabeças, sem deixar nada à mostra. Na capital do Irã, há lojas que vendem roupas femininas, das mais variadas
marcas e cores, mas todas elas serão cobertas por um manto preto, o shador. Hoje em dia, as mulheres que vivem
em Teerã podem escolher panos das mais variadas cores, que cobrem apenas os cabelos.
Os mullahs ainda habitam o Irã. Dezenas deles passeiam
pelas largas avenidas de Teerã. Entretanto, o Irã é outro
país. No século XIX, ainda era conhecido como Pérsia,
derivado dos persas, povo que vive por lá desde os tempos bíblicos. O termo Irã vem de ariano, etnia dos persas, e foi adotado em 1934. Os arianos de Hitler são
frutos da imaginação do ditador alemão e não têm nenhuma conexão com os verdadeiros arianos.
Até 1979, o Irã era liderado pelo Xá (rei) Reza Pahlevi.
Em janeiro daquele ano, uma revolução popular levou
ao poder o Aiatolá Khomeini. De lá pra cá, a política
Interior do Mausoléu de Esther e Mordechai
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001
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INTELIGÊNCIA
externa iraniana mudou completamente. Parceiros estratégicos como Estados Unidos e Israel, tornaramse inimigos mortais. Ainda hoje pode ser encontrado
nas ruas da capital cartazes como “Down with USA”,
com um desenho das linhas vermelhas da bandeira
americana transformando-se em mísseis.
Quanto aos judeus, esses sempre estiveram por lá,
também desde os tempos bíblicos, muito antes de
Maomé ter nascido e o islã ser a religião oficial do
país. Os judeus viviam em várias cidades antes da
revolução islâmica (chamada por alguns iranianos
de “black revolution”, em alusão à crise econômica
vivida pelo país desde então), entretanto, hoje eles
Judeu em loja do centro de Teerã
vivem em poucas cidades, e suas comunidades são
minúsculas. São aproximadamente vinte e dois mil judeus que habitam o país (o próprio comitê judaico iraniano
não sabe ao certo esse número). Eles estariam divididos da seguinte forma: doze mil em Teerã, oito mil em Shiraz,
mil e quinhentos em Isfahan, e outras centenas divididas em cidades como Yazd, Hamadan, Kerman etc.
Ir ao Irã, não como judeu e sim na condição de brasileiro, facilita bastante. O nosso passaporte é a nossa
salvaguarda. Não obstante, desembarcar no aeroporto e dar de cara com um gigantesco retrato de Khomeini,
um outro do presidente Khatami e um terceiro do atual Aiatolá Khamenei, é de dar um frio na barriga, mais pelas
notícias que nos chegam daquela região do que propriamente pelas caras feias que eles fazem nas fotos.
O número de judeus diminuiu consideravelmente após 1979. Isso porque o Aiatolá sempre declarou abertamente sua repulsa com relação ao Estado judeu. Entretanto, esse ódio não se configurou numa perseguição aos
judeus iranianos. Quando vi uma foto, na sede do Comitê Judaico, de membros da comunidade chorando no
funeral do Aiatolá, em 1989, fiquei surpreso. Depois me disseram que Khomeini fora bom com os judeus, sempre
declarando que eles deveriam ser respeitados assim como seus cultos. No entanto, o sionismo seria tratado como
heresia e deveria ser julgado como tal. Assim, shabat, festas judaicas e rezas diárias nas sinagogas foram mantidas, e seus templos nunca foram profanados. Há, portanto, uma linha divisória entre o anti-sionismo e o antisemitismo, embora alguns autores modernos acreditem que anti-sionismo virou anti-semitismo, depois que os
judeus foram inocentados no caso do deicídio.
Foi passeando pelas ruas de Teerã, mais precisamente subindo a Rua Ferdosi (nome de um grande poeta local) e
virando à direita, na Rua Manuchehri, que encontrei os primeiros judeus. Nas portas de suas lojas, pequenas e
discretas mezuzot guardam a entrada. Lá, eles
têm suas lojas de souvenires feitos em prata, ouro,
vidro etc. Vendem miniaturas (desenhos com escritos hebraicos de cinqüenta anos atrás), tapetes, cerâmicas entre outras coisas. É quase como
um Bom Retiro, entretanto seus vizinhos são xiitas. Os xiitas, aliás, estão muito longe do estereótipo criado no Ocidente. Eles são extremamente simpáticos e hospitaleiros. E, surpreendamse: muitos deles são amigos dos judeus e em
final de expediente formam rodas para tomar
chá com bolachas de açúcar, às vezes numa loja,
às vezes noutra. O assunto raramente é Israel.
Falam sobre problemas locais e por vezes discutem os horrores da guerra Irã-Iraque.
Artesanato judaico em Teerã
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TURISTA ACIDENTAL
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INTELIGÊNCIA
Em todos os estabelecimentos comerciais, o sujeito tem que colocar uma foto do Aiatolá Khomeini. Ele é considerado um santo homem, mas não é um imã (profeta muçulmano), embora ostente este predicado. Os xiitas
acreditam em doze imãs, e isso que os diferencia dos sunitas, que só acreditam em três. O primeiro imã xiita é o
último dos sunitas, o imã Ali. Ali foi casado com Fátima, a filha de Maomé. Em todo o território iraniano, há
apenas um imã enterrado, é o imã Reza, cujo mausoléu se encontra na cidade de Mashhad (nordeste do Irã).
Aliás, esse mausoléu está repleto de ouro e mármore e várias cúpulas formam a mesquita desse santuário.
Diariamente centenas de peregrinos choram a morte do imã e fazem o ritual de autoflagelação, entoando um
solfejo fúnebre. A visão desse ritual é ao mesmo tempo assustadora e emocionante. Duas fileiras de quinze
homens vestidos de preto. Ao centro, um homem veste cinza e entoa versos chorando. De repente, todos os
homens de preto iniciam uma coreografia e batem em suas costas com uma espécie de chicote feito de argolas
de algum metal. Eles param e o canto se inicia novamente. Ao meu redor, as pessoas vinham se aglomerando e
assim que ouviam um único verso entoado, caíam num choro compulsivo. Para os judeus, quem está enterrado
no lugar do imã é um judeu.
Num mausoléu em Shus (sudoeste do Irã), ocorre o contrário. Os judeus acreditam estar enterrado o profeta
Daniel enquanto que os muçulmanos ergueram uma mesquita em homenagem a um dos seus.
Mas voltando aos estabelecimentos comerciais, os judeus também são obrigados a colocar uma foto de Khomeini em suas lojas e,
para evitar qualquer tipo de problema, eles
o fazem sem constrangimentos. O curioso é
que alguns xiitas não colocam essa foto e
sim a do imã Ali, argumentando que Ali sim,
é um imã.
Como em qualquer parte do globo, encontrar um judeu significa encontrar todos. Dessa maneira, conheci a sinagoga de Teerã, na
Rua Felestin (Palestina). Essa rua tem algumas
histórias interessantes. Além de abrigar a
maior sinagoga de Teerã, a Abrishami, encerra também um monumento a intifada e a
Comerciante judeu na rua Manuchehri, centro de Teerã
embaixada da Palestina, que fica no mesmo
prédio onde era a embaixada israelense até 1979. Os judeus passam em frente ao local e se confortam com o
fato de o proprietário do imóvel ser um dos seus. Mas o monumento e o fato de a embaixada da Palestina serem
próximos à sinagoga soam como uma provocação.
Um shabat na Abrishami é algo indescritível. Eles são muito religiosos e até uma criança de cinco anos sabe rezar
tudo sem precisar ler em qualquer lugar. O hebraico não é ensinado nas escolas judaicas e sim nas sinagogas,
apenas para que as rezas possam ser realizadas. O curioso fica por parte do Shemá, que é entoado da mesma
forma que em qualquer parte do mundo, mas ali, particularmente, poderia soar como uma manifestação sionista. E por falar em Shemá, tive que rezá-lo antes de entrar na sinagoga, como prova de que era judeu. A sinagoga
Abrishami é grande e iluminada e estava abarrotada de gente. Algo como duzentas pessoas participavam do
culto. Quando minha presença foi notada, imediatamente fui alvo de olhares desconfiados vindos de todas as
partes, inclusive das mulheres, à minha esquerda. Minha presença incomodou algumas pessoas, mas após uma
breve apresentação fui acolhido e tratado como um filho. As rezas proporcionaram a sensação de estar em casa.
Os cantos eram semelhantes a um culto em qualquer sinagoga tradicional de São Paulo. Após a sinagoga, o rabi
Shlomi me convidou para ir à sua casa. Lá, pudemos ouvir a rádio israelense, que já estava sintonizada desde
antes do shabat. Sentamos ao chão sobre um belíssimo tapete persa. Depois de algumas rezas, comemos e
bebemos para celebrarmos o shabat. A casa estava cheia, os pais do rabino e uns amigos da família participaOUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001
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vam do jantar. Eram dentistas,
engenheiros, enfim, pareciam
levar uma vida normal. Não
pude obter muitas informações
nessa noite, pois eles não gostavam muito de falar em política na frente de estranhos. Não
podia sequer anotar um número de telefone para uma conversa futura, pois “no shabat,
não podemos escrever nada,
devemos descansar”, assim disse o Sr. Ramin, um dos convidados ao tapete.
O Sr. Ramin, responsável pela
segurança da sinagoga, fez
questão de me acompanhar um
trecho quando retornei ao meu
hotel, que ficava no centro da Praça em Shiraz, onde os judeus se encontram para confraternização no dia do Shabat
cidade. Naquele momento, fui
alertado sobre os perigos que eu corria brincando de detetive em Teerã. Disse ele que a “inteligência iraniana”
era extremamente avançada e que já sabiam que eu era judeu, que estava visitando locais judaicos e isso, e
aquilo... Confesso que não dormi muito bem aquela madrugada.
A essa altura, já estava totalmente adaptado ao confuso dia-a-dia de Teerã. Os carros e as motos transitavam em
todas as direções e transformavam o trânsito de São Paulo em modelo; para atravessarmos uma rua, é preciso
olhar para todos os lados, inclusive para o céu. No sábado, depois de tomar um chá e comer dois ovos no hotel,
passei pela Avenida Said, virei à esquerda até a Avenida Enghelab Eslami (avenida da revolução islâmica), onde
fica a Universidade de Teerã, atravessei a Avenida Valiasr e alcancei a Rua Felestin, até chegar à sinagoga, onde
fizemos uma prece especial aos judeus brasileiros. Os judeus iranianos mal podiam imaginar que temos uma comunidade bem estabelecida aqui. Quando disse a eles que éramos uns cento e cinqüenta mil,
quase caíram pra trás.
Na Rua Khavaran, bem ao sul da capital, fica o cemitério judaico.
Não é tão grande, mas guardava grandes surpresas. Uma tumba chamava a atenção. Bem ao fundo, perto do muro, estavam enterrados
dois soldados judeus, mortos na guerra Irã-Iraque. Algum leitor, algum dia aventou a possibilidade de assistir um judeu lutar e dar sua
vida para defender o regime do Aiatolá? Mas, por lá, isso pareceu
muito natural. O Aiatolá afirmava que os judeus iranianos eram melhor que os outros judeus, pois não eram sionistas. Na verdade, durante a guerra, muitos jovens judeus saíram do Irã para não servir no
Exército.
Lápide do cemitério israelita ao sul de Teerã
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TURISTA ACIDENTAL
Os judeus de Teerã vivem relativamente bem (do ponto de vista econômico), embora possamos encontrar alguns vivendo quase que na
miséria. O antigo bairro judeu (Mahale Yehudiah) fica ao sul da capital, perto do cemitério, e abriga algumas sinagogas, praticamente
abandonadas. A sinagoga Ezra Yaacov é uma delas. Quem cuida
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INTELIGÊNCIA
dela são duas senhoras que vivem da caridade de terceiros. O local onde dormem é escuro e úmido; não há
camas nem outros móveis, apenas um bujão de gás para preparar o tradicional chá. Outra sinagoga do antigo
bairro judeu é a Hadash, que guarda uma Torá de mais de dois séculos em seu armário. A maioria dos judeus
passou a viver no bairro nobre de Youssefabad, no norte da cidade. Lá, fica a sinagoga de mesmo nome, a
segunda maior de Teerã, perdendo em tamanho para a Abrishami. Eles também têm um clube de jovens, outro de
mulheres e outro para idosos. Esses clubes são na verdade salas de encontro, alguns têm teatro e quadras para
prática desportiva.
E, por falar em teatro, havia um coral de jovens judeus ensaiando para comemorar o aniversário da revolução
islâmica. É como aqui, quando cantamos o hino do Brasil nas escolas, mas, definitivamente, não poderíamos
jamais imaginar esse tipo de situação!
Se em Teerã os judeus têm escolas, mais de vinte sinagogas, clubes e até um hospital, enfim, uma vida social
bastante agitada, isso não pode ser dito com relação aos judeus de Isfahan. A cidade de Isfahan, no coração do
Irã, é considerada uma das mais belas do mundo. Nela podemos encontrar as mais suntuosas mesquitas, como
a Masjed-é-Emam e a Masjed-é-Jame. Mas, por trás da praça central, caminhando em direção à magnífica
ponte dos Trinta e Três Arcos, encontramos algumas lojas de roupas, onde trabalham os judeus. São desde
proprietários até funcionário das lojas. O Sr. Suleiman (Salomão) é funcionário de uma loja à Rua Chahan Abassi.
Todos os dias, no final do expediente, ele fecha a loja e vai de moto até sua casa, que fica num bairro modesto
da cidade. Lá ele vive com a esposa, sogra, filhos e sobrinhos. A pobre sogra não passa cinco minutos sem chorar
e lembrar de seus filhos que estão em Israel os quais, a princípio, não mais verá. Mesmo no humilde lar, a
recepção foi sempre calorosa e repleta de frutas. Não houve uma casa visitada em todo o Irã, na qual não me
fossem oferecidos frutas, pepino, chá e às vezes bolos.
Guardião da sinagoga de Isfahan, região central do Irã
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Na loja ao lado da que Suleiman trabalha, fica a do jovem e proprietário Benhur. Ele é sionista convicto. Ama Israel
e chegou a visitá-lo uma vez (os judeus
viajam para a Turquia e para Chipre e,
de lá, costumam ir para Israel). Nossos
diálogos foram em hebraico e ele fazia
questão de enfatizar seus anseios por
Eretz Israel. Um de seus amigos, que trabalha também com vendas, passou uns
tempos na prisão, junto com outros doze
judeus acusados de espionagem. Essa é
uma questão polêmica e que angustia a
comunidade local. Havia na loja outros
amigos judeus e xiitas e decidimos sair
para uma balada na noite de Isfahan.
Vista externa da sinagoga de Shiraz, ao sul do Irã
De carro zero (coreano), cantando pneu,
fomos para uma pizzaria e encerramos a noite fumando narguile e tomando chá, num parque distante do centro
da cidade. Em Isfahan há apenas uma sinagoga funcionando.
Se em Isfahan não há muitos judeus, em Shiraz, bem ao sul do Irã, eles são oito mil. No shabat, eles se reúnem
numa praça da cidade, próximo ao boulevard Azadí. A principal sinagoga fica numa travessa do boulevard
Karimkhan. O Sr. Zion gentilmente me convidou para celebrar o shabat em sua casa, convite feito também pelo
“Doctor”, o famoso dentista de Shiraz. A casa de “Doctor” mais parece um prédio de dois andares. Seu filho
Pedram e seu amigo Ryan não cogitam a possibilidade de se casar com não-judias. Na capital, o casamento
misto ocorre com freqüência, isso porque as mulheres em idade de se casar não encontram maridos judeus, já
que muitos foram para Israel ao invés de se alistar no Exército para lutar na guerra contra o Iraque.
Em Kerman, cidade que fica entre dois grandes desertos do Irã, distante onze horas de ônibus de Shiraz, vivem
cerca de trinta judeus. Encontrá-los não foi uma tarefa fácil. Não se podia sair por lá perguntando às pessoas se
são ou se conhecem judeus. Mas foram encontrados. Elisha é um jovem de vinte anos, que fala hebraico e cuja
comunicação comigo foi através da semiótica, até a intervenção de sua irmã Elizabeth, que falava inglês. Eles
vivem com outros dois irmãos e seus pais,
numa casa de sapé numa rua de terra.
O tio Shmuel vive ali perto e todos os
dias vem visitá-los. O bairro judeu não é
asfaltado e a própria sinagoga fica em
rua de terra. Entretanto, ela é grande e
iluminada, o que deixa no ar uma sensação de que aquela comunidade está no
fim, pois a sinagoga jamais lota. Um telefone dentro dela tem que ser usado as
vezes para chamar os homens adultos
para completarem o miniam. O pai de
Elisha trabalha no Bazar da cidade, vendendo tecidos.
Finalmente Yazd, uma das mais antigas
cidades habitada ininterruptamente, há
cerca de cem judeus. Eles mostram com
orgulho a Torá de mais de trezentos anos,
90
TURISTA ACIDENTAL
Interior da sinagoga de Kerman
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guardada no armário da única sinagoga em atividade da cidade, ofuscada por uma belíssima mesquita. É
sempre assim. As sinagogas não ostentam beleza alguma, mas guardam tesouros preciosos para o nosso povo.
Os judeus estão adaptados à vida no Irã. Perfazem a maior comunidade do Oriente Médio, excetuando-se
obviamente Israel. Vivem relativamente bem e podem transmitir suas tradições para as gerações futuras, assim
como os cristãos armênios e os zoroastristas (não se pode dizer o mesmo dos Bahai, religião não-permitida no
Irã). Entretanto, eles são ao mesmo tempo vigiados pelo governo e eventualmente podem ser usados como
moeda de troca na delicada relação existente naquela região. Em 1998, treze judeus foram presos acusados de
espionagem. Dois deles foram soltos no ano passado e onze deles aguardam julgamento numa prisão próxima
de Shiraz.
Em junho deste ano houve eleições para presidente no Irã. O candidato vencedor foi o Sr. Khatami, atual presidente. Desde que assumiu o poder em 1998, ele tem disputado um braço de ferro com os conservadores aliados
do Aiatolá. Mas, mesmo o liberal Khatami nada pode fazer com relação aos judeus presos, pois o Poder Judiciário é independente do Executivo e do Legislativo (que, aliás, é obrigado por lei a ter um judeu como um de seus
vogais). Além disso, esse Poder Judiciário é dominado pela ala política conservadora, com apoio do Aiatolá e seus
séqüitos, e é essa a grande disputa política que existe hoje no Irã, esse embate
entre conservadores (que querem manter as estruturas revolucionárias) e reformistas (que buscam mudanças sensíveis
na sociedade iraniana).
Assim como a sogra de Suleiman, são
muitos os familiares judeus que estão
separados. Os iranianos são excelentes
pessoas, mas são bombardeados pela
imprensa (controlada pelo governo) com
notícias das atrocidades cometidas pelos israelenses junto aos palestinos. Não Judeu mostra a Torá de 300 anos, da sinagoga de Yazd, região central do Irã
há um dia sequer, que a manchete do
Teerã Times não hostilize Israel e não conclame o povo a queimar bandeiras. Não há uma propaganda do
governo em prol da paz na região. Pelas ruas de Teerã podemos encontrar sempre desenhos da mesquita de AlAqsa em Jerusalém, cercada de arames farpados e com dizeres em farsí, conclamando o povo para libertar a
cidade santa das mãos dos judeus.
Quando desembarquei em Paris, ao final dessa viagem, notei que tudo se resumia simbolicamente ao dia da
partida. No dia em que parti para o Irã, havia um avião ao lado, da companhia israelense El-Al. Naquele portão
de embarque, israelenses e iranianos transitavam lado a lado, pra lá e pra cá. São pessoas comuns, cada qual
com suas crenças. Pensei, por alguns instantes, como queria ir para Israel, visitar Jerusalém, visitar as cidades de
Haifa, Bersheva e Tel Aviv. Tudo seria tão mais simples, não haveria o medo de ser preso acusado de espionagem,
não haveria o medo de uma fiscalização mais rigorosa, enfim, Israel, é a pátria judaica.
Entretanto, é preciso conhecer o outro lado, ver como as coisas funcionam, como as pessoas se comportam e o
porquê desse comportamento. Essa viagem foi um pouco em busca disso, de uma compreensão para que um dia
possamos obliterar esse ódio criado pelo próprio homem. Foi uma viagem em busca não de uma nova visão, mas
sim de novos olhos. Na Terra Santa, ninguém é “santo” e, talvez, a chave para tudo isso seja a tolerância.
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INTELIGÊNCIA
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A
No dia 9 de setembro de 2001 Ahmad Shah
Massoud, o mais importante líder tadjique da
Aliança do Norte, foi assassinado em uma
emboscada dentro de seu próprio quartel-general.
Sua morte foi mais uma da longa lista de
violências que marcam, de forma quase
ininterrupta, a história do Afeganistão. A rigor,
antes mesmo que o país existisse como tal, a região
da Ásia onde ele se localiza já era palco de lutas
entre clãs locais e destes com inúmeros
conquistadores. Os persas, Alexandre, o Grande, o
Império Ghaznavid — que, no século XI,
estabeleceu o islamismo naquela parte da Ásia —,
Gêngis Khan, dentre outros, fizeram-se presentes
na área que hoje compreende, além do
Afeganistão, o Cazaquistão, o Uzbequistão, o
Quirguistão, o Turcomenistão e o Tadjiquistão.
v e r d a d e i r a
história da guerra
do fim do mundo-nação
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história do Afeganistão propriamente dito
também começou com um assassinato, o do
rei persa Nadir Shah, em 1738, durante
embates com o Império Mogol da Índia pelo
controle dos territórios que iam da cidade
de Herat a Peshawar. Após a morte de
Nadir Shah, um de seus chefes militares, o
afegão Ahmad Khan, acabou por assumir
o título de Durr-I-Durani (Pérola das Pérolas), fundando o Império Durani nos territórios em questão.
Embora fosse então o segundo maior império muçulmano, perdendo em extensão apenas para o Otomano, o Império Durani
teve a duração do reinado de Ahmad Khan. Em razão de lutas
clânicas e dinásticas, em meados do século XIX Herat já era
novamente província persa, as regiões turcomanas estavam
autonomizadas e a cidade de Peshawar voltara ao domínio
mogol. Foi neste momento de desagregação territorial e política que o Afeganistão entrou em contato com o mundo dos impérios europeus.
A expansão do Império Russo em direção à Ásia muçulmana resultou na consolidação da presença russa nas áreas
dos atuais Uzbequistão, Tadjiquistão, Quirguistão, Turcomenistão e Cazaquistão. Os ingleses, por seu lado, vinham expandindo ao longo do século XIX seu império colonial na Índia, tendo inclusive conquistado regiões do antigo Império
Durani, como o Punjab. O Afeganistão viu-se assim no meio
do Grande Jogo de russos e ingleses, tendo os últimos a pretensão de transformá-lo em estado-tampão entre o subcontinente indiano e o Império Russo. Como conseqüência, após
duas Guerras Anglo-Afegãs, em 1838-1842 e 1878-1880, o
Afeganistão acabou por perder o controle sobre sua política
externa. Em contrapartida, sob supervisão e proteção inglesas, suas modernas fronteiras foram traçadas, englobando
um amplo conjunto de etnias e clãs que delas transbordavam, como evidencia o Quadro I.
A manutenção da unidade política e territorial representou um desafio constante para Abdur Raham Khan, o monarca que presidiu o país entre 1880 e 1901 sob tutela britânica, obrigando-o a realizar mais de 20 guerras contra chefes
locais. O sucesso de sua empreitada pode ser medido pelo
fato de que sua morte foi natural e sua sucessão não foi lavada em sangue. De tal placidez não gozou, no entanto, seu
filho Habibollah, assassinado em 1919 por partidários da
entrada do país na Primeira Guerra Mundial ao lado das
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Potências Centrais. Alertado pela morte prematura de Habibollah, seu sucessor, Amanollah, não tardou a declarar a
Terceira Guerra Anglo-Afegã, que resultou na soberania afegã sobre sua política externa. Embora vitorioso, Amanollah
não chegou propriamente a esquentar o trono. Buscando implementar no Afeganistão reformas semelhantes às que Kemal Ataturk, o fundador da República laica turca, realizava
em seu país, acabou por entrar em choque com o clero e os
chefes clânicos, levando o país à guerra civil de 1928. Somente em 1933, quando Mohammad Zahir Shah chegou ao poder, o Afeganistão encontraria novamente relativa estabilidade. O longevo monarca, hoje com quase 90 anos e exilado
em Roma desde 1973, é tido como um dos líderes do Afeganistão pós-taliban. Mas seu reinado, ainda que longo, foi
marcado por disputas étnicas, enfrentamentos com o clero e
choques com o Paquistão.
Sendo ele próprio um caldeirão étnico de alta intensidade, em cujo território vivem pushtus, beluquis, punjabis, sindis e mohajires (muçulmanos de origem indiana que nunca
foram assimilados, chegando a fazer uma guerra civil pelo
controle da cidade de Karachi na década de 1980), o Paquistão viu-se, desde sua fundação, em 1947, no meio de dois
fronts: o afegão, que estimulava a autonomia da população
pushtu, e o indiano. O segundo front foi sempre o mais problemático, dada a natureza dos problemas envolvidos — Caxemira e Bangladesh —, e a estatura do adversário. Conseqüentemente, embora tenha buscado minimizar os atritos com
o Afeganistão em torno da questão pushtu, nos anos 1960 o
Paquistão chegou a fechar sua fronteira afegã, ocasionando
uma forte tensão entre os dois países.
Os anos 1960 marcaram também uma séria crise política
no reino. O país testemunhava então o nascimento de partidos políticos, inclusive o comunista, que criaram lealdades e
compromissos desvinculados da política tradicional afegã e
ocasionaram choques com as organizações clânicas e religiosas. A aproximação do país com a União Soviética, de quem
buscava apoio para enfrentar a questão paquistanesa e modernizar a infra-estrutura e o exército levaram, também, à
reação dos chefes locais, temerosos de que a centralização política, econômica e militar em Cabul fragilizasse seus poderes.
Finalmente as tentativas de mudanças nos costumes, como a
instituição do uso voluntário da burka, levaram à intensa oposição do clero. Diante de tal quadro, no qual a vida dos partidos políticos e as relações entre os governos central, provinci-
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ais e municipais não estavam instiQuadro I
tucionalizadas, o país entrou em
Principais Etnias do Afeganistão
mais uma crise política que levaria
Etnia
Algumas características
à queda de um monarca. Zahir Shah
Pushtus
Somando cerca de 10 milhões de indivíduos, formam algo em
não foi assassinado mas a monartorno de 40% dos afegãos (a própria tribo dos afegãos é de etnia
quia caiu, dando lugar à República
pushtu). A fronteira traçada pelos britânicos dividiu os pushtus
entre o Afeganistão e seu próprio império colonial. Conseqüentedo Afeganistão, que tampouco foi
mente, no atual Paquistão vivem cerca de 20 milhões de pushtus.
Peshawar, que pertenceu ao Império Durani, tornou-se a capital da
capaz de solucionar o crônico probleprovíncia paquistanesa da Fronteira do Noroeste e é majoritariama das relações de Cabul com os
mente pushtu, além de ser o centro dos refugiados afegãos.
chefes clânicos. Após uma seqüênTadjiques
São cerca de 25% da população e falam o dari, língua oficial do
país ao lado do pushtu. Possuem uma forte ligação com o
cia de assassinatos e completo caos
Tadjiquistão, país em que formam 60% da população.
político, os comunistas tomaram o
Hazares
Somam algo em torno de 20% da população e, embora seus
ancestrais sejam originários da China, de onde foram
poder e fundaram, em 1978, a Reprovavelmente trazidos por Gêngis Khan, falam um persa arcaico.
pública Democrática Afegã. De novo,
Por serem xiitas, são fortemente discriminados em um país de
maioria sunita.
os chefes clânicos e religiosos levanUzbeques
Fortemente ligados às repúblicas em que são etnicamente
taram-se contra as tentativas de cene quirguizes
majoritários. Os primeiros formam 60% da população do
tralização política de Cabul, agravaUzbequistão e, os segundos, 50% da do Quirguistão.
Nuristanis
Foram convertidos à força ao islamismo em 1895 durante o
da pela reforma agrária que um goprocesso de tentativa de unificação política dos país. Na ocasião,
verno — ateu — implementava. No
o nome da região que habitam foi mudado de Kafiristão (Terra
dos Infiéis) para Nuristão (Terra da Luz).
verão de 1979 o Afeganistão veria
Beluquis,
Etnias bastante minoritárias. Os beluquis, hindus e sikhs vivem,
portanto o nascimento de mais uma
hindus,
assim como os pushtus, cindidos entre o Afeganistão e o Paquistão.
guerra civil, mas com um convidado
sikhs, parsis
Já os judeus emigraram em boa parte, tanto para Israel quanto
e
judeus
para os Estados Unidos.
de honra trazido pelos comunistas:
a União Soviética.
A presença soviética fez do conflito afegão cenário dos moFinalmente em 1989 uma exaurida União Soviética daria
mentos finais da Guerra Fria, transformando líderes clâni- os primeiros passos de volta às suas fronteiras e sairia do
cos e religiosos em guerreiros (mujahedeen) da liberdade. Ao Afeganistão para começar a entrar na história. Mas a guerra
menos como tal eles foram percebidos por Ronald Reagan, civil continuou, primeiro contra o governo comunista ainda
decidido a fazer do Afeganistão o Vietnam soviético. Para tal, no poder e, depois da queda deste, em 1992, entre as diferenos Estados Unidos financiaram o esforço de guerra mujahe- tes etnias e chefes clânicos pela tomada do poder. O breve
deen através do Paquistão e da Arábia Saudita. O governo governo de união nacional presidido por Burhanuddin Rabpaquistanês, no entanto, canalizou os recursos americanos bani foi desafiado pela insatisfação pushtu em ver um tadjipara chefes pushtus, como Gulbudin Hekmatyar, que logo que ocupando o cargo presidencial. Logo Hekmatyar e outros
passaria a exercer as lucrativas práticas do contrabando e do líderes pushtus dariam início a mais uma guerra civil contra
plantio de papoulas nas áreas sob seu controle. Já a Arábia Rabbani e suas bases uzbeques e tadjiques, lideradas por
Saudita enviaria para o país Osama Bin Laden e seu exército Ahmad Shah Massoud, que só teria fim com a entrada em
de árabes, nacionalistas islâmicos chechenos e paquistane- cena da milícia taliban.
ses. Como resultado, o mais capacitado líder mujahedeen,
Os talibans (estudantes) surgiram nas madrassas (escoAhmad Shah Massoud, recebeu apoio financeiro apenas da las religiosas) de refugiados pushtus afegãos em Peshawar,
Índia, que assim buscava contrabalançar o poder dos pushtus onde entraram em contato com o islamismo deobandi origie, conseqüentemente, a influência paquistanesa na política nário da Índia do século XIX. Tal islamismo, uma manifestainterna do Afeganistão. A guerra destruiu a infra-estrutura ção de resistência à ocupação colonial britânica, transformouafegã, além de ter provocado um êxodo de cerca de 5 milhões se, no Paquistão pós-1947, em forte sentimento nacional ande refugiados para o Irã e o Paquistão.
tiindiano. Conseqüentemente, os talibans possuem importanOUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001
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tes laços com setores nacionalistas islâmicos paquistaneses,
principalmente no exército e no serviço secreto, o que torna
frágil a posição pró-Estados Unidos do presidente paquistanês Parvez Mosharraf. Na arena afegã propriamente dita, os
talibans surgiram como fenômeno politicamente relevante em
1994, quando, com apoio paquistanês, entraram na guerra
civil com o objetivo de desarmar as facções em luta e impor
ao país a sharia (lei muçulmana). Em 1998 o taliban já ocupava 95% do território afegão, tendo como principal adversário a Aliança do Norte de tadjiques, uzbeques e hazares.
Com o taliban, o Afeganistão tornou-se um santuário para
movimentos fundamentalistas islâmicos de outros países.
Conseqüentemente, o Iran xiita (ligado aos hazares), a Rússia às voltas com os chechenos, o Cazaquistão, o Quirguistão,
o Tadjiquistão, o Uzbequistão e a Índia passaram a dar apoio
à Aliança do Norte, ao passo que o Paquistão e a Arábia Saudita mantiveram seu apoio aos talibans. Foi neste cenário
conturbado que Osama Bin Laden, financiando os talibans,
encontrou neles proteção para implementar sua cruzada antiamericana. No dia 9 de setembro, provavelmente para fazer uma gentileza aos seus hospedeiros, enviou dois de seus
militantes marroquinos para matar Ahmad Shah Massoud.
Dois dias depois, os atentados ao World Trade Center e ao
Pentágono recolocaram os conflitos afegãos no centro dos
problemas mundiais.
O Afeganistão e a questão
do estado nacional
A presença de Bin Laden no Afeganistão levanta a questão de como ele conseguiu formar um estado dentro do estado, com exército, campos militares e fontes de financiamento
próprios. A julgar pela história afegã, a resposta parece evidente: o Afeganistão nunca chegou a se constituir efetivamente em um estado nacional.
Ao contrário do que gostariam os adeptos dos diferentes
nacionalismos, as nações, tal qual entendidas hoje, são uma
construção histórica de não mais de 200 anos. Foi somente
no século XIX que elas passaram a ser associadas, na Europa, a critérios étnico-lingüísticos e a demandar, para a efetiva vivência da experiência nacional, um estado próprio. O
Império Habsburgo ainda era capaz de unir, sem fissuras
nacional-estatais, uma grande quantidade de línguas e religiões diferentes. Mas depois de 1914 até o mais cosmopolita
clube do mundo, o das dinastias européias, acabou por su96
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cumbir ao princípio das nacionalidades e, em 1917, George
Jorge V, da casa alemã de Saxe-Coburg-Gotha, mudou seu
nome para Windsor, tornando inglesa a família real da Inglaterra.
Os princípios do estado-nação atingiram as outras regiões do mundo em boa medida a partir de movimentos de libertação nacional. A Índia elaborou o seu nacionalismo, expresso no Congresso Nacional Indiano e em líderes como Jawaharlal Nehru e Mohandas Gandhi (que, não por acaso, estudaram na Inglaterra), em reação à presença colonial britânica, assim como a Argélia deve sua existência enquanto estado nacional em boa parte graças à dominação colonial francesa. Em outros casos, o movimento nacional surgiu como
percepção da incapacidade, ou da recusa, à assimilação de
um grupo que passou a ser visto como não pertencente à nação. Foi este o caso do sionismo, nascido no seio do anti-semitismo presente nos Estados nacionais europeus de fins século XIX, e que chegou mesmo a criar um território nacional, a
Palestina, e uma língua nacional, o hebraico moderno. Para
tal, o sionismo realizou uma releitura nacional-estatal da
narrativa bíblica, fazendo da frase Ano que vem em Jerusalém, repetida pelos judeus ao longo dos séculos como expressão do desejo pela volta iminente do Messias, em expressão
do desejo secular pela (re)construção de um estado nacional
judaico na Palestina, como se tal estado houvesse existido na
Antigüidade. A partir do sionismo, imigrantes das mais variadas procedências, da Alemanha ao Iêmen, migraram para
Israel e criaram uma identidade nacional nova, israelense,
irredutível a qualquer uma das anteriores. O Afeganistão,
no entanto, não tendo tido uma experiência como a judaica
ou uma relação de dominação colonial, jamais desenvolveu
um movimento de libertação nacional que cimentasse uma
identidade unindo suas diferentes etnias.
Por outro lado, o Afeganistão tampouco teve um Estado
construtor da identidade nacional, seja através de uma burocracia, que universaliza procedimentos, seja através do sistema educacional, que universaliza a língua e a memória nacional. Enquanto a Inglaterra dotou a Índia de uma burocracia e uma administração central, no Afeganistão a reação dos
chefes locais às tentativas de centralização política em Cabul, aliada à fragilidade político-militar de todos os monarcas, impediu a construção de ambas. Nem o breve exército
unificado de Abdur Raham Kahn chegou a controlar todo o
território e ainda em 1979 cerca de 85% da população afegã
era rural, estando sob o controle direto dos chefes locais. A
ausência de uma administração central teve como contrapartida a inexistência de um sistema educacional que universalizasse uma língua e uma memória nacional. Na Itália, na
França, nos Estados Unidos ou em Israel, habitantes de diferentes regiões ou imigrantes de diferentes países foram socializados em uma mesma língua nacional por sistemas educacionais universalizantes. Oitenta por cento dos afegãos, contudo, são analfabetos, o que significa dizer que nem as duas
línguas oficiais do país, o pushtu e o dari, são correntes entre
o conjunto da população. O governo de Abdur Raham Khan
construiu apenas uma escola em Cabul, e mesmo assim uma
madrassa, cujo livro-texto básico, o Corão, é escrito em árabe, língua que não é falada por nenhuma etnia afegã. Conseqüentemente, não foi tampouco criada, a partir de livros didáticos, uma memória nacional que transformasse pushtus,
hazares, nuristanis, tadjiques e etc., em afegãos. Já o Reich
bismarckiano levou tão a sério a construção de uma memória
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porções, não representavam exatamente um passado glorioso.
Como consolo ao Führer, seu arquiteto, Albert Speer, presenteou-o com a Teoria dos valores das ruínas de uma obra, um
método de construção que faria o Estádio de Nurenberg tornar-se, passados os milênios, uma ruína célebre.
Se a Alemanha bismarckiana construiu um passado puramente alemão para a Alsácia-Lorena e Hitler planejava
tornar-se um novo Vespasiano, legando às futuras gerações
arianas um Coliseu germânico que as inspirassem a construir o Quarto Reich, torna-se evidente que a memória nacional é um campo da luta simbólica. Nesta, é fundamental a
escolha de o que deve ser lembrado, esquecido, apagado, como
Trotsky o foi dos livros didáticos da União Soviética stalinista, ou mesmo inventado, como aconteceu com as tradições da
nobreza britânica. Exemplos desta natureza abundam e, para
sair do registro europeu, a herança colonial percebida como
autenticamente americana é a dos puritanos da Nova Inglaterra e não a dos escravocratas da Virginia, e mesmo os gran-
nexiste no Afeganistão um sentimento de comunhão entre as diversas etnias que
as faça partícipes, senão de uma mesma origem, ainda que mítica, ao menos de um
mesmo destino. Sem jamais ter formado um Estado nacional, o Afeganistão é no
entanto tratado como tal em um mundo estruturado em Estados nacionais, ainda que
suas etnias estejam apenas presas a fronteiras que, muito freqüentemente, parecem
destituídas de sentido
nacional que unificasse simbolicamente uma Alemanha que
ele havia unificado politicamente, que ao fim da Primeira
Guerra Mundial não havia na biblioteca da Universidade de
Strasburgo um livro sequer de história que fizesse menção à
presença francesa na Alsácia-Lorena ao longo dos séculos.
A memória nacional, ao construir um passado comum para
os membros de uma comunidade, cimenta neles também a
perspectiva de um destino compartilhado. Portanto não é de
forma alguma anedótica a frustração de Adolf Hitler, cujo projeto era construir um Reich que durasse mil anos, com as escavações arqueológicas de seu solo natal. Hitler tinha um de
seus conhecidos ataques de fúria a cada vez que Benito Mussolini mandava avisá-lo da descoberta de mais uma ruína romana. De posse de tais relíquias, o Duce traçava uma linha de
continuidade entre ele, o novo César, e a Roma Imperial. Já
Hitler tinha que se contentar com machadinhas arianas, as
quais, mesmo para um homem com seu peculiar senso de pro-
des virginianos, como George Washington e Thomas Jefferson, são lembrados nos livros didáticos menos pelos escravos
que possuíram do que pela defesa que fizeram das causas da
independência e da liberdade. Neste sentido o Afeganistão,
ainda que marcado pela guerra civil desde o nascimento, poderia construir uma memória nacional que remetesse suas
origens, por exemplo, às glórias do Império Durani, o que
certamente não deixaria muito tranqüilos os seus vizinhos.
Desde que, evidentemente, possuísse um movimento nacional e/ou um Estado com projeto nacional.
Em suma, inexiste no Afeganistão uma comunidade imaginada da qual todos os seus habitantes façam parte, para
além da crença islâmica comum. Inexiste um sentimento de
comunhão entre as diversas etnias que as faça partícipes,
senão de uma mesma origem, ainda que mítica, ao menos de
um mesmo destino. Sem jamais ter formado um estado nacional, o Afeganistão é no entanto tratado como tal em um
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mundo estruturado em estados nacionais, ainda que suas
etnias estejam apenas presas a fronteiras que, muito freqüentemente, parecem destituídas de sentido.
O terror da al-Qaeda, a resposta
americana e a questão nacional
Se Osama Bin Laden encontrou no Afeganistão abrigo
para sua al-Qaeda por ser este país um território sem estado,
o seu terrorismo é essencialmente transnacional. Ao contrário do ETA, do IRA ou mesmo do fundamentalista islâmico
Hamas, cujas agendas políticas são indissociáveis das questões nacionais basca, irlandesa e palestina, o terror da alQaeda não possui fronteiras: suas reivindicações vão da Arábia Saudita ao Iraque e Palestina, sua atuação abrange a
Europa, América, Ásia e África, suas bases populares parecem ir da Indonésia à Argélia e seus agentes são recrutados
em diversos países. O FBI admite que cerca de 200 agentes
da al-Qaeda ainda devem estar circulando em território ame-
S
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Bin Laden, tal presença, assim como outras ações de caráter
econômico-político-militar-estratégico, como o embargo da
ONU ao Iraque, ou mesmo a existência de Israel, têm suas
naturezas transmutadas para a dimensão da ofensa ao Islã,
devendo portanto ser eliminadas.
Se Osama Bin Laden tem buscado se apresentar ao mundo islâmico como um guerreiro santo civilizacional, os americanos não têm assumido postura diferente. Tanto o governo
quanto a mídia dos Estados Unidos têm apresentado o combate a al-Qaeda como uma cruzada em defesa dos valores
americanos, utilizando uma retórica que articula uma mensagem civilizatória com a barbarização do inimigo. Tal operação não constitui exatamente novidade. A participação
americana na Primeira Guerra Mundial foi apresentada pelo
governo Wilson quase que como um ato de generosidade americana, com o objetivo de resolver as querelas européias e
colocar um fim em todas as guerras. Já Franklin D. Roosevelt, na Segunda Guerra, propunha-se a oferecer ao mundo
e Osama Bin Laden tem buscado se apresentar ao mundo islâmico como um
guerreiro santo civilizacional, os americanos não têm assumido postura diferente. Tanto o governo quanto a mídia dos Estados Unidos têm apresentado o combate
a al-Qaeda como uma cruzada em defesa dos valores americanos, utilizando uma
retórica que articula uma mensagem civilizatória com a barbarização do inimigo
ricano e, é bom lembrar, os pilotos suicidas de Nova York e
Washington foram treinados na Flórida, não em uma obscura base terrorista afegã.
O terror da al-Qaeda é transnacional porque Bin Laden
assume um discurso civilizacional que busca abarcar todo o
mundo islâmico. No entanto, a julgar por suas origens, ele se
move a partir de uma leitura fundamentalista da tradição
islâmica ultra-conservadora wahabita, implementada à força pela família Saud no processo de unificação da Península
Arábica e que faz da Arábia Saudita um dos mais fechados
regimes do mundo. Portanto, sua teologia nada tem a ver
com as tradições islâmicas históricas e nem mesmo com os
guardiões da ortodoxia wahabita, a família Saud, que não
parecem se importar (pelo contrário) com a presença militar
americana em solo saudita — para Bin Laden, não apenas
um solo nacional, mas a terra que testemunhou a revelação
divina ao Profeta — desde o fim da Guerra do Golfo. Para
98
ANTIQUÁRIOS
as quatro liberdades básicas — de expressão, de religião, da
necessidade e do medo — de que, segundo ele, gozavam os
cidadãos dos Estados Unidos. Como contrapartida, no primeiro conflito os alemães foram seguidamente representados pela mídia como gorilas e, no segundo, os japoneses foram reduzidos a japs.
A diferença entre Wilson, Roosevelt e Bush parece ser a
de que os dois primeiros participaram de conflitos mundiais
com um projeto para as relações internacionais, ao passo que
o último, fiel à tradição isolacionista de seu partido, foi jogado no cenário mundial em 11 de setembro com uma visão
bastante limitada destas, o que pode ser aferido pela recusa
em assinar os Protocolos de Kyoto, em aceitar a constituição
de um Tribunal Penal Internacional ou na pouca importância atribuída à ONU na crise do Afeganistão e na estratégia
eminentemente militar para fazer face ao terror da al-Qaeda. Resta saber se tal estratégia, de caráter territorial, tem
como objetivo o combate ao terrorismo ou, como afirmam alguns analistas, a implantação de uma cabeça-de-ponte americana no coração da Ásia, o que certamente desestabilizaria
ainda mais o cenário internacional. Se o objetivo da ação
militar americana no Afeganistão for efetivamente o combate a Bin Laden, fica ainda a dúvida acerca de sua eficácia,
mesmo com a morte deste. Estratégias territoriais são altamente questionáveis como garantidoras da desarticulação de
redes de terrorismo extra-territoriais e, mesmo, territoriais,
como Israel já deveria saber. Por outro lado, no momento
mesmo em que o território afegão passa a ser controlado pelos americanos, o Pentágono já anuncia o intento de continuar a ofensiva militar em direção ao Iraque e, depois deste, a
outros estados considerados delinqüentes, em operações de
natureza policial potencialmente desestabilizadoras dos regimes seus aliados no mundo islâmico, como o Paquistão e a
Arábia Saudita.
O que é preocupante na reação americana aos atentados
de 11 de setembro é que ela tem contribuído para que Bin
Laden seja identificado, e não só no mundo islâmico, como
uma liderança capaz de desafiar o principal beneficiário de
uma ordem internacional injusta. Tal fenômeno parece ter
uma certa identidade com a associação entre vários setores
da esquerda e os movimentos de libertação nacional face ao
esfacelamento dos imperialismos europeus no pós-Segunda
Guerra, quando regimes autoritários acabaram por receber
bênçãos pela única virtude de se oporem àqueles. Quando
uma organização terrorista movida por motivações teológicas transforma-se, ao menos para alguns, em expressão da
luta contra a hegemonia americana e sua globalização iníqua, torna-se evidente a urgência da construção de um projeto político que realmente dê conta dos impasses e perplexidades ora vividos, superando as supostas propostas civilizatórias de Bin Laden e George W. Bush.
Por uma globalização afirmativa
A trajetória do Afeganistão, o terror da al-Qaeda e resposta militar americana, cada qual à sua maneira, sugerem
que a natureza do conflito iniciado em 11 de setembro é bem
mais complexa do que a capacidade de resposta encontrada
nos marcos conceituais do estado nação. Os Estados Unidos,
diante de um adversário transnacional, ao buscar o controle
do território afegão, agem como se estivessem diante de um
adversário tradicional e, com isto, potencialmente ampliam
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o teatro de operações em direção a outros países islâmicos,
podendo desestabilizar regimes aliados sem com isto obter
nenhuma garantia de que o terrorismo da al-Qaeda, ou de
qualquer outra organização, não mais se volte contra eles; já
o Afeganistão, condenado a ser um estado nacional sem nação e sem estado, vê perpetuar-se uma guerra civil, latente
ou manifesta, desde que suas fronteiras foram traçadas. Mas
é o embate entre israelenses e palestinos, um dos pontos da
agenda de Bin Laden, que talvez melhor evidencie tal afirmação. Há mais de meio século ambos os povos têm lutado
para construir — e, no caso israelense, manter — seus estados nacionais em uma faixa de terra extremamente exígua,
em que territórios e populações se interpenetram e bens naturais, como água, e lugares de memória, como Jerusalém,
são disputados. Neste cenário, mesmo aceitando a criação de
um Estado palestino, Israel (e nisto estão unidas a direita e a
esquerda sionistas) exige que tal estado seja desmilitarizado
e que seu espaço aéreo e sua política externa lhe sejam subordinados. Se para os israelenses, e sempre tendo como referência os princípios do estado nação, tais exigências parecem razoáveis — e basta uma olhada no mapa da região para
ver que não são desprovidas de sentido —, para os palestinos
elas significam, evidentemente, abrir mão da própria idéia
de estado nação.
A resposta para dilemas como estes, à primeira vista insolúveis, pode estar no tão debatido processo de globalização.
Os princípios do estado-nação foram apropriados por diferentes correntes políticas ao longo da existência deste. Nas
primeiras décadas do século XX suas características identitárias foram exaltadas principalmente por movimentos políticos de extrema-direita e ao final deste século ele acabou por
ter como defensores movimentos e líderes identificados a seus
papéis regulatórios sobre os mercados nacionais. Estes lamentam a perda de tais papéis diante do processo de globalização produtiva e financeira e a quebra dos compromissos
assumidos no pós-Segunda Guerra Mundial entre estados,
grandes corporações e trabalho organizado, origem dos estados de bem-estar da Europa, da Ordem do New Deal americana e, mesmo, da Era Vargas no Brasil. No entanto, é forçoso reconhecer que tais regulações nacionais, com as possíveis
exceções de alguns países europeus, foram incapazes de democratizar direitos e universalizar consumo para suas populações, e isto mesmo em um país como os Estados Unidos.
Para os que gostam de números: segundo dados do Censo
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Americano divulgados em 2000, 21% da população de Washington-DC, cidade majoritariamente negra, e 36% de suas
crianças, vivem em lares abaixo da linha de pobreza, definida em US$ 16 mil anuais. Como, em média, os lares de Washington são compostos por 4 pessoas, cada uma delas vive
com US$ 4 mil ao ano. Um detalhe: 50% destes lares têm
uma renda de apenas US$ 8 mil por ano.
É a percepção deste fato (que, no caso americano, mas
também no brasileiro ou em qualquer outro, não pode ser
atribuído apenas a fatores externos, mas também à correlação de forças internas às próprias sociedades, às escolhas
históricas que elas mesmas fizeram) que pode levar a uma
postura afirmativa diante da globalização. A concorrência
destrutiva entre as empresas e os países, a ausência de regras para os fluxos financeiros internacionais — por onde
passeiam os recursos de Bin Laden —, e a ordem internacional que simultaneamente gera fortes tensões e inibe a construção de mecanismos democráticos para administrá-los,
não são o seu destino inexorável. Se o pós-Segunda Guerra
caracterizou-se por acordos sociais de caráter nacional, o
redimensionamento do papel dos Estados e das sociedades
nacionais pode levar não à anomia nacional, mas à construção de acordos crescentemente globais que exijam padrões
mínimos de condições de trabalho, remuneração e segurança social. E pactos sociais desterritorializados podem ser
um bom indicativo para que se repense a própria natureza
100 ANTIQUÁRIOS
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INTELIGÊNCIA
dos estados nacionais, de seus valores, razões e concepções
de segurança, assim como das relações entre eles, superando uma dimensão conflitiva e competitiva por uma solidária e cooperativa.
O campo está aberto à criatividade. Ainda que timidamente, trabalhadores de diferentes países buscam construir
alternativas conjuntas para fazer face às estratégias globais
de suas empresas; o movimento ambientalista tem evidenciado que os conflitos ambientais exigem estratégias globais;
ONGs e movimentos sociais têm tido presença crescente em
fóruns até recentemente exclusivos de governos nacionais,
como agências da ONU; movimentos pacifistas têm rejeitado
tanto o terror transnacional de Bin Laden quanto as estratégias eminentemente nacional-estatais de George W. Bush e
de israelenses e palestinos, ao mesmo tempo em que esboçam soluções novas para o último conflito, como o compartilhamento de sistemas de segurança, de soberanias e de capitais nacionais.
Em um mundo marcado pelos valores do nacionalismo,
não surpreende que o historiador (não por acaso) judeu alemão Rudolf Kayser tenha caído no esquecimento. No entanto, tais movimentos podem estar gestando o embrião do que
ele defendia ainda na década de 1910, ao realizar a crítica do
estado-nação: fazer da Terra a pátria dos homens.
e - m a i l :
l i m o n c i c @ v e n t o . c o m . b r
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
FRAGMENTOS DE UM
MARXISTA
FUGAZ
LUIZ CESAR FARO
J O R N A L I S TA
E
o jovem Bob Fields, quem diria, amava a revolução. Na cronologia do inusitado, estamos na
década de quarenta. Entrincheirado em Lake Success, anfiteatro dos debates da fase inicial
das Nações Unidas, o emergente diplomata disparava missivas, senão retintas de rubro escarlate, reveladoras de forte apreço pelas idéias de Marx.
Que o diga o embaixador Santiago Fernandes, vulgo “matamoros”, interlocutor epistolar durante
todos esses verdes anos de amor e ódio ao marxismo, quando o jovem Roberto Campos, parafraseando o poeta, ainda não tinha se perdido de amores pelo direito de todos defenderem as causas
mais antipáticas, e inebriando-se com a arrebatadora paixão, ser-lhe doce abraçá-las todas.
Insight-Inteligência saúda, a seu jeito e maneira, a memória daquele que foi seu entusiasta e
conselheiro de primeira hora.
Seja ele o Robertchov, o Bob, o Roberto. Em todos os comboios, passageiro.
Profissão: razão.
102 CARTA
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INTELIGÊNCIA
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001 103
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
CONSOLIDANDO OS
CONFINS
DA CONFEDERAÇÃO
IMPERIAL
CESAR
GUIMARÃES
C I E N T I S TA P O L Í T I C O
Não é plausível a afirmação de Jean Paul Sartre de
que tudo compreender é tudo perdoar. Nos assuntos
humanos a distinção entre saber e avaliar (e, pois,
julgar) nada tem de fácil, mas devemos agir como se ela
tivesse ao nosso alcance para que possamos, ao menos,
nos aproximar da idéia desta diferença fundamental.
Esta generalidade de sabor kantiano não vem a
pequeno propósito — pois é invocada à luz de um horror
premeditado. Os responsáveis pelos atentados de 11 de
setembro em Nova Iorque e Washington devem
responder por seus atos — julgados. Mas julgar compele
a compreender o que é isto — este terror.
106 ENCRENQUEIRO
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001 107
ompreender, desde logo, em nada se
assemelha ao repulsivo argumento de
que, nesta matéria, os Estados Unidos são responsáveis por não pequena lista de horrores, antes, durante e
depois da Guerra Fria, daí se seguindo a justificativa deste ato de terror
com base em idéias de vendetta, da lei de Talião. É preciso
cultivar a esperança de que tais noções não repliquem, no
novo século, as misérias do que se encerrou há pouco.
A esperança tem nome. A criação de tribunal internacional para ajuizar crimes contra a humanidade (o terror, o genocídio...), uma corte realmente internacional e a não deste
ou daquele país ou apenas européia — por que isto é arrogante e ilegítimo — é negociação em curso há muito tempo,
mas não se conclui. Conta com a oposição de duas potências:
a China e os Estados Unidos, estranhos parceiros. Ou talvez,
no caso, nem tanto.
Enquanto não temos o império da lei, ficamos à mercê da
lei do Império. O governo americano resolveu-se pela “guerra ao terror”, a começar pelo Afeganistão, a fim de liquidar
com o “regime Talibã”, com al-Quaida e, principalmente, com
Osama Bin Laden — presumíveis autores do crime, num contexto em que indícios se tornam provas que não são dadas a
público — salvo a governos amigos, solidários ou assustados.
A guerra ao terror — que põe em moda o conceito de “conflito assimétrico” apenas começou. O embate ocorre, neste
momento, no Afeganistão, mas pode ser conduzido ali onde
estejam outros terroristas, ou onde haja governos que os
apóiem — vale dizer, não se situando geograficamente em
lugar definido, o terror pode estar em todo o lugar. Ter apoio,
por exemplo, na tríplice fronteira entre o Brasil, a Argentina
e o Paraguai. Ou na Colômbia. E obviamente nos rogues states da definição americana: o Iraque, é claro, a Líbia, a Coréia do Norte... a lista é modificável ao sabor das necessidades imperiais.
Se a história de violências externas dos Estados Unidos
não justifica ou sugere perdão à brutalidade de que foram
vítimas, esta última não pode servir de pretexto para que a
potência mundial hegemônica imponha a sua justiça, o seu
arbítrio. O ex-amigo Bin Laden repugna a humanidade — e
não só por eventual culpa pelos mais recentes atos de terror
— mas seus recursos são poucos. Violências maiores poderão
ser cometidas “em nome da lei”. É de lembrar Rousseau: ali
108 ENCRENQUEIRO
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C
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INTELIGÊNCIA
onde impera a força é desnecessário aludir ao Direito. Mas a
suposta lei só persiste enquanto a força durar. Como se sabe
“tudo que nasce está fadado a perecer”.
Talvez caiba relembrar o passado recente. A Guerra Fria
deu um norte à política externa dos Estados Unidos. Tratava-se de contenção (containment) do comunismo — conceito
que adquiriu características elásticas para abranger hostilidades a regimes nacionalistas, esquerdistas, neutralistas...
assunto que, por aqui, no Terceiro Mundo, no Sul, não é desconhecido. É hoje consenso entre os scholars da comunidade
estratégica americana que se tratou sempre de um bipolaridade assimétrica. Ou trocando em miúdos: possuindo o “grade igualador” — um arsenal atômico — a União Soviética
detinha condições de manter a integridade de seu território e
de sua área de domínio no Leste Europeu, enquanto os Estados Unidos dispunham de meios superlativamente mais amplos para influir e intervir no “resto do mundo”.
A emergência da China como Estado comunista não criou
nenhum Movimento Comunista Internacional ou Bloco SinoSoviético — fraseologia de paranóicos ou propagandistas, mas
um adversário. E os arreganhos soviéticos para além do seu
“quintal” geralmente resultaram em derrota — a mais humilhante exatamente no Afeganistão.
G
uerra Fria finda, hegemonia (militar) inconteste, a “contenção” revelou sua verdade — uma enorme expansão diplomática, militar, cultural de potência econômica de alto poder
competitivo. As alegrias da vitória, contudo, foram recuperadas pela incerteza. Unipolaridades são tidas por instáveis.
Como impedir a emergência de “par competidor” (país ou bloco)? A Guerra Fria fizera uma parte do serviço, pois a propósito de conter soviéticos, os Estados Unidos mantiveram o
controle militar na Europa (leia-se principalmente Alemanha), via OTAN, que por isso persiste, e no Japão. Competidores militares futuros entre os atuais aliados, nem pensar.
Esta política persiste no pós-Guerra Fria, com o primeiro
Bush, Clinton e o segundo Bush. Mas ela precisa de alguma
legitimação, pois, afinal, se trata de aliados e do público interno. A melhor delas é a existência de um inimigo.
Aqui há variações. O primeiro Bush pôde contar com a
ONU na guerra que impediu o Iraque de apossar-se de um
Estado soberano — a desmesura americana veio depois. Clinton dedicou seu primeiro mandato à diplomacia econômica (a
criação da OMC, a tentativa do fast track, as dezenas de acor-
dos bilaterais), e ampliou a
doutrina de segurança nacional
para além da defesa: é agora
possível criar democracias e
mercados livres: free trade democracies. Paralelamente, reforçou a noção rogue states, dedicados a produção de “armas
de destruição em massa”, ao
terrorismo, ao narcotráfico. Eis
aí, portanto, uma área de consenso entre aliados, complementado por aproximações com
Rússia e difíceis mas factíveis
entendimentos com a China.
Nada disto com o segundo
Bush. Cercado de uma equipe
de hard-liners — o vice-presidente Dick Cheney, o secretário de Defesa Donald Rumsfeld, a assessora para Segurança Nacional, Condolezza Rice
— perto dos quais o secretário de Estado, general Colin
Powell é de enorme leveza — sua orientação é desde o início
marcada por notória política externa expansionista. A “comunidade estratégica” a denominou primacy (primazia),
eufemismo acadêmico não sem humor. Conseqüências: revisão de tratados de produção e testes de armas nucleares;
novo formato da “guerra nas estrelas”; repulsa às negociações de Kyoto; investimentos garantidos na chamada “revolução tecnológica militar”. Ms. Rice, em artigo em Foreign
Affairs, revela repulsa a “normas ilusórias de comportamento internacional” que prejudicam o “interesse nacional”.
Adeus também a outras ilusões: a China não é strategic
partner, como diria Clinton mas um strategic competitor —
a conter, portanto.
A
lgo, contudo, é objeto de continuidade: “a ameaça de regimes malévolos (rogue) e poderes hostis” com seu potencial
para o terrorismo e a produção de armas de destruição em
massa. Essa reafirmação de Ms. Rice e do governo Bush II,
vem agora vinculada ao intento de ampliar o inimigo. Pois
de onde pode vir o terror? De todo o lugar, mas principalmente de “civilizações” adversas. Ms. Rice, assim como outros
formuladores das idéias de unipolaridade e primazia, muito
deve à insistência do professor Samuel Huntington sobre o
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INTELIGÊNCIA
O ÚNICO PROBLEMA SÉRIO
COM A “CIVILIZAÇÃO ISLÂMICA”
DEU-SE COM A
REVOLUÇÃO
IRANIANA DE 1979 — COISA DE
XIITAS, FUNDAMENTALISTAS ETC.
A PROPÓSITO: BIN LADEN É
SUNITA... DE RICA FAMÍLIA
DA
ARÁBIA
“choque de civilizações” (o primeiro artigo é de 1993) que institui o conflito ideológico como, digamos, fábrica das inimizades convenientes.
E
ste conjunto de semiverdades, etnocentrismo, senão racismo, e conhecimento notoriamente superficial da história
não-ocidental, logrou ver o inimigo dentro do país: no multiculturalismo e na imigração para os Estados Unidos. E fora
dele: na “cultura islâmica” e no Sul em geral. The West versus the Rest. O terror está em todo lugar, mas prefere certos
espaços mais propícios...
Retornando agora à Guerra Fria. A política externa dos
Estados Unidos incentivou com freqüência partidos islâmicos contra os nacionalistas. No Egito, na Síria, no Iraque (préSadam), por exemplo. Aliou-se fortemente à Arábia Saudita
— o núcleo mais poderoso do Islã político. Obviamente, na
“civilização islâmica” existem partidos religiosos. No Ocidente,
onde religião e política são esferas funcionalmente diferenciadas, “modernas”, existem partidos democrata-cristãos. Mas
enfim... ninguém é perfeito.
O único problema sério com a “civilização islâmica” deuse com a Revolução Iraniana de 1979 — coisa de xiitas, fundamentalistas etc. A propósito: Bin Laden é sunita... de rica
família da Arábia.
Além do mais, o trato de Bush II com a região tem sido
excessivamente civilizado: promessas de violência, utilização
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001 109
continuada da expressão ofensiva “rogue states” e principalmente o abandono dos palestinos à política do governo Sharon, exacerbação da Catástrofe, para usar expressão corrente entre os vitimizados.
P
esquisas de opinião pública, entre elites e massas, indicavam, durante os anos 90, que a insistência dos governos
americanos na questão do terrorismo conquistou corações e
mentes. Oklahoma foi obra de “fundamentalista” nativo, mas
ainda assim acentuou os temores, sempre incentivados pelas
advertências governamentais. Elas tinham, aliás, algum fundamento: em declaração recente, o secretário Rumsfeld revelou que o Iraque é o terceiro produtor da bactéria do Antrax,
desenvolvendo tecnologia americana, cedida quando o então
amigo Sadam Hussein fazia guerra ao Irã — a origem política da invasão ao Kuwait... tratava-se de cobrar a conta.
Tornou-se claro àqueles que se valem do terror — no Oriente Médio e alhures — que nada seria mais eficiente para
desmoralizar a potência que se expressava agora com a linguagem do Império. A escolha dos alvos, em seu horror, o
demonstra.
A “guerra ao terror” começou. Promete ser prolongada,
suja e, pior que tudo, preventiva. O terror está lá (aqui?), no
Sul, mas a “barbárie” está em todo lugar. Vale tudo, portanto. De momento, as pesquisas de opinião mostram apoio ao
desapreço pelo Estado de Direito e pelas liberdades públicas
110 ENCRENQUEIRO
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nos Estados Unidos: prisões preventivas e secretas, incluindo tortura, gravações de conversas sem permissão judicial,
controle da minoria mais visada, criação de tribunais militares de exceção. Além, é claro, da extensão da guerra ao Iraque e aonde quer quê.
Intelectuais, jornalistas, alguns jornais de elite, grupos
de direitos civis começam a protestar, mas não é fácil. É grande e dolorosa a ferida aberta. E, contudo, é preciso que o movimento cresça. Tal como se efetiva, o contraterror equivale,
no limite, à supressão das liberdades democráticas. Equivale
também a uma enorme ampliação da presença americana,
em todas as suas formas, nos mais diversos países — é sabido que o governo brasileiro e seu hábil quadro diplomático
não estão alheios às dificuldades por vir.
Por outro lado, o terrorismo — odioso e antigo recurso
político — tende, sim, a se fazer ouvir com mais freqüência.
É preciso, pois, defini-lo com clareza, antes que sirva de pretexto para suprimir qualquer tipo de resistência à opressão.
É necessária a colaboração internacional, sem dúvida, mas
que fique bem claro que não existe Operação Condor democrática. Se o terror é um perigo, perigo maior é defini-lo na
prática (ainda que negando-o na retórica) como próprio a esta
ou aquela “civilização”. Será que o Holocausto nada ensinou
sobre este (des)respeito?
e - m a i l :
c g u i m a r a e s @ i u p e r j . b r
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
A ESQUERDA
DOS NÚMEROS
112 ALBERT EINSTEIN
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
À DIREITA
ALBERTO CARLOS ALMEIDA
CIENTISTA POLÍTICO
DOS FATOS
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001 113
s pesquisas de opinião são utilizadas
para medir conceitos. Intenção de voto,
por exemplo, é um conceito mensurado por uma pergunta relativamente
simples. Ela é formulada mais ou menos da seguinte maneira: “Ano que vem
(ou este ano, dependendo da data da
pesquisa) teremos eleição para presidente. Se a eleição fosse hoje e os candidatos fossem esses (é mostrado um disco com os nomes dos
candidatos) em quem o(a) sr(a) votaria?” Há, por outro lado,
conceitos complexos que exigem do pesquisador uma elaboração mais cuidadosa de seus métodos de medição. É o caso do
conceito de ideologia esquerda-direita, que necessita de uma
avaliação sobre suas medições existentes.
É preciso mostrar que mesmo que sejamos capazes de
medir de forma correta o que é ser de direita e de esquerda, é
possível que isto não seja uma variável explicativa do voto.
Vale lembrar que a ciência política brasileira desenvolveu pouco, ou simplesmente não desenvolveu, medições adequadas de conceitos e variáveis para explicar o comportamento político-eleitoral.
O primeiro passo para uma avaliação do efeito da ideologia no comportamento eleitoral é definir o que deve ser entendido como esquerda e direita. O segundo passo é definir
qual será a medição. Que tipos de perguntas serão usadas,
que escalas são as mais adequadas etc. O terceiro passo é
analisar os resultados.
A literatura especializada de ciência política e economia
apresenta grandes linhas consensuais acerca do que é uma
posição de esquerda e de direita. Destacam-se duas dimensões: a econômica e a de costumes.
Na dimensão econômica, diminuir a intervenção e regula-
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A
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mentação estatal está associado com ser de direita. E o oposto
está associado à esquerda. Por outro lado, justamente o inverso se aplica à ação do Estado em relação aos costumes. Quando o governo intervém, punindo ou regulando comportamentos sociais e culturais, tais como criminalizando o aborto, reprimindo manifestações religiosas, enfim, agindo para dizer o
que é certo ou errado fazer, isto é uma ação associada à direita. A não ação estatal para regular tais comportamentos está
associado à esquerda.
As concepções econômicas de esquerda e de direita, sintetizadas na noção de intervencionismo versus não-intervencionismo estatal na economia, estão relacionadas com visões de
mundo e programas de ação em diversas áreas. A Tabela 1
sintetiza isto. O núcleo filosófico desta divisão é a importância
conferida à ação individual versus coletiva. Segundo a visão
direitista o indivíduo e suas escolhas voluntárias sobrepujam
o coletivo representado na ação do poder público, enquanto
que para a visão esquerdista ocorre o inverso.
Portanto, para sermos fiéis ao que a literatura de ciência
política e de economia afirma sobre as visões de esquerda e
direita na atividade econômica, é preciso mensurar as variáveis listadas na Tabela 1, e outras congêneres desde que classificadas de acordo com o núcleo filosófico fundamental de cada
visão de mundo.
A classificação apresentada na Tabela 1 permite afirmar
que, no que diz respeito à economia os republicanos norteamericanos, os gaullistas franceses, o Partido Conservador
britânico, a Democracia Cristã alemã e italiana, são todos defensores de pontos de vista direitistas. Por outro lado, o ponto
de vista esquerdista no tratamento das questões econômicas é
defendido pelos democratas norte-americanos, socialistas franceses, pelo Partido Trabalhista britânico e pela Social Democracia alemã e o ex-Partido Comunista italiano.
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COMPORTAMENTO ELEITORAL
QUE DEVE SER
ENTENDIDO COM
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ESQUERD
A E DIRE
ITA
114 ALBERT EINSTEIN
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INTELIGÊNCIA
Tabela 1: Programas de ação associados ao intervencionismo
e ao não-intervencionismo estatal na economia
Intervenção na economia
A pobreza é um problema social, assim deve haver redistribuição de renda
a favor dos mais pobres por meio de impostos
Mercado de trabalho regulado por meio da adoção do salário mínimo,
regras que dificultem demissões etc.
A redistribuição de riqueza a favor dos mais pobres é prioritária se for
necessário escolher entre ela e o aumento da eficiência da economia.
Para isto, o Estado intervém no mercado
Defesa de políticas de cotas e da ação afirmativa
Defesa da ampliação do Estado de bem-estar social
Sempre que for necessário deve-se recorrer a mais taxação da propriedade
para a solução de problemas econômicos
Não
-intervenção na economia
Não-intervenção
A pobreza é um problema individual, cada um deve buscar melhorar
sua renda por meio do trabalho
Mercado de trabalho desregulado, o salário mínimo é definido pelo
mercado, não há regras para demissões
O aumento da eficiência econômica e da geração de riqueza é
prioritário se for necessário escolher entre isto e a redistribuição de
riqueza a favor dos mais pobres
Combate às políticas de cotas e à ação afirmativa
Defesa da redução do estado de bem-estar social
A taxação da propriedade é o último recurso para a solução de
problemas econômicos e deve ser evitada
Tabela 2: Programas de ação associados ao intervencionismo
e ao não-intervencionismo estatal nas ações individuais não-econômicas
Esquerda: não
-intervenção
não-intervenção
Descriminalização do aborto
Descriminalização da maconha
Legalização da união matrimonial de duas pessoas do mesmo sexo
Defesa da inovação comportamental
Religião menos importante
Direita: intervenção
Aborto ilegal
Maconha ilegal
Proibição da união matrimonial de duas pessoas do mesmo sexo
Defesa da tradição como principal orientação para o
comportamento social
Religião mais importante
Diagrama 1: Duas dimensões de esquerda-direita
Mais intervenção do Estado na economia
ESQUERDA
Menos intervenção
do Estado no
comportamento
não-econômico
Mais intervenção
do Estado no
comportamento
não-econômico
DIREITA
Menos intervenção do Estado na economia
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001 115
Assim, da mesma forma que é possível classificar os partidos quanto a estas dimensões, também é possível classificar
seus eleitores caso eles votem de acordo com a variável ideologia na dimensão econômica. Medir o posicionamento dos partidos é mais fácil e direto do que medir a visão de mundo dos
eleitores. No primeiro caso os programas e documentos internos de cada partido tendem a ser suficientes, enquanto no segundo caso é preciso realizar um survey com perguntas adequadamente formuladas.
Na dimensão cultural as posições pró e antiintervencionismo estatal se invertem. Agora a visão de esquerda é contra a
ingerência do Estado dizendo o que as pessoas podem e devem
fazer, enquanto a visão de direita defende que o Estado deve
regular o comportamento individual dos indivíduos nos aspectos denominados culturais.
O ponto de partida filosófico para esta divisão é o argumento de John Stuart Mill, que defende que os indivíduos devam fazer o que bem desejarem desde que isto não cause danos a terceiros. Um exemplo interessante disto, e atual, é o
homossexualismo. Para a visão de esquerda os direitos daqueles que são homossexuais devem ser reconhecidos, posto que
sua opção sexual não causa danos a terceiros. Para a visão de
direita isto não é correto, pois contribui para desestruturar os
valores que regem a vida social.
Um outro exemplo é o da legalização, ou não, do aborto.
Tanto um esquerdista quanto um direitista podem ser por
princípio contra o aborto. Mas na visão de esquerda não cabe
ao Estado dizer que a pessoa não deve abortar, mas somente
ela tem o direito de tomar esta decisão. Por outro lado, na
visão de direita a legalização do aborto funcionaria como uma
fonte de corrosão dos valores sociais tradicionais. Para utilizar uma terminologia comum, digamos que a posição de esquerda seja mais libertária, enquanto que a de direita menos. A Tabela 2 é o equivalente da Tabela 1 para a ação do
Estado na regulação do comportamento individual quanto a
ações não-econômicas.
Mais uma vez, a Tabela 2, assim como a Tabela 1, não é
exaustiva, mas também oferece uma boa noção do que está
associado ao programa de esquerda e ao de direita. Assim como
foi feito acima, é possível classificar inúmeros partidos políticos de acordo com esta divisão. De modo geral, os partidos que
conhecemos como sendo de direita — Republicano, Gaullistas
e Conservador — são menos libertários, e os de esquerda mais
libertários.
116 ALBERT EINSTEIN
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INTELIGÊNCIA
É curioso, portanto, observar que esquerda e direita, quando
conjugam em seus programas de ação econômica e comportamento social não-econômico, trocam os sinais quanto ao papel
a ser cumprido pelo Estado. Chamo a atenção que isto é um
tipo ideal, e que por isso nem sempre encontra total consonância com a realidade empírica.
Estas duas dimensões estão combinadas no Diagrama 1.
Note-se que o tratamento apresentado aqui é para a ideologia esquerda-direita tal como definida pelos manuais de economia e ciência política. Esta definição tem alicerces filosóficos, e inúmeras conseqüências práticas, que estão materializadas na existência de políticos e partidos que defendem tais
pontos de vista. Por isso, é mais do que razoável concluir que
existem eleitores que pensam desta forma.
Desta maneira, se a ideologia realmente importa para o
comportamento político, se realmente influencia o comportamento de representantes e representados, os eleitores de uma
dada ideologia têm que votar em candidatos que a expressem.
Além disso, a ideologia tem que ser mensurada considerandose o conceito estabelecido.
Há três maneiras básicas de se mensurar a ideologia: 1)
por meio do auto-posicionamento do entrevistado em uma escala esquerda-direita, 2) por meio de uma proxy, uma aproximação confiável da visão de mundo do entrevistado, e 3) por
meio da avaliação dos valores defendidos pelo entrevistado
quanto ao papel do Estado na economia e em relação ao comportamento não-econômico.
O AUTO-POSICIONAMENTO ESQUERDA-DIREITA
Existem inúmeros surveys realizados no Brasil que avaliam a ideologia do eleitor solicitando-o a se posicionar em
uma escala (que pode ir de 1 a 7, ou de zero a 10) esquerdadireita1 . As perguntas têm a seguinte formulação:
Considerando esta escala de 1 a 7 (é apresentado um cartão com os números, e entre cada um deles uma distância idêntica), na qual 1 significa ser de esquerda, e 7 ser de direita,
como o(a) sr(a) se classificaria?
As respostas se distribuem em todos os números, com os
maiores percentuais nos números 4 e 5, o que significa centro,
e centro-direita, e a média é maior do que 4 indicando que o
eleitorado é levemente inclinado para a direita.
O grande problema desta medição é que ela assume que os
pesquisados sabem o que é ser de esquerda e de direita. Algo
bastante problemático. Há pesquisas que mostram que a maio-
ria dos eleitores não sabe expressar o que é esquerda e direita,
e que aqueles que sabem, em grande parte, afirmam erradamente que esquerda é oposição e direita é governo.
Por exemplo: Singer (1999) cita em seu trabalho as pesquisas sobre Cultura Política/89 e 90 para mostrar que na média
60% dos eleitores não sabem dizer o que é esquerda ou direita.
Entre os 40% que sabiam dizer alguma coisa, 20% disseram
que esquerda é oposição, e direita é governo.
Este autor considera correta a resposta governo e oposição
para direita e esquerda, apesar de não haver referência à literatura de ciência política para sustentar esta conceituação.
Ele mesmo se pergunta: “como pode o eleitor usar seu posicionamento em um espectro esquerda-direita para orientar a
decisão do voto, se não sabe o que é esquerda e direita?” A sua
resposta a esta questão é: trata-se de um sentimento do que
significam estas posições ideológicas.
É desnecessário enfatizar que não é possível fazer inferências científicas a partir de especulações acerca do que achamos que as pessoas pensam sobre determinados assuntos. Não
é errado que se trate de um sentimento, algo que a maioria
das pessoas não consegue expressar, mas ainda assim é preciso saber o que elas acham que é esquerda e direita. O fato é
que nas pesquisas de Cultura Política desenvolvidas na década de 1990, pelo menos metade dos que expressaram alguma
coisa o fizeram equivocadamente considerando-se qualquer
classificação ideológica. Afinal, ser de oposição ou de governo
não significa ter qualquer ideologia em particular.
Neste caso, se os 20% que afirmaram governo e oposição
para direita e esquerda forem utilizados para uma análise estatística, tenderão a votar de acordo com o que eles acham que
eles são. Se fulano acha que ser de esquerda é ser de oposição,
e ele se considera de esquerda, então votará na oposição. O
mesmo se aplica para a direita.
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INTELIGÊNCIA
Entre agosto e outubro de 2000, o DataUff realizou no
município do Rio de Janeiro, conjuntamente com o Iuperj e
financiado pela Fundação Naumman, uma pesquisa domiciliar com amostra probabilística sobre cultura política. Duas
perguntas foram formuladas para saber se as pessoas tinham
alguma noção sobre o que é ser de esquerda e de direita. A
formulação foi a seguinte:
• Na política as pessoas falam algumas vezes de esquerda e
de direita. Na sua opinião, o que é ser de esquerda?
• E o que é ser de direita?
A Tabela 3 lista as repostas para as duas perguntas.
Uma simples leitura das respostas encontradas mostra que
pouco ou nada se encaixa nas conceituações da ciência política
ou da economia a respeito do que é ser de esquerda ou de direita. Mesmo ser a favor do povo em uma das respostas a o que é
ser de esquerda é questionável, posto que nenhuma das duas
visões de mundo considera que seja contrária ao povo.
O que as respostas mostram é que não há uma classificação objetiva do que é ser de esquerda e de direita, mas
sim um elevado percentual de julgamento de valor. Muitas
das repostas consideram ser de esquerda algo bom (ser a
favor do povo) ou algo ruim (fazer baderna), o mesmo se
aplica para ser de direita. É óbvio que aqueles que consideram ser algo positivo votam com a esquerda ou direita (dependendo do que é considerado positivo), e aqueles que consideram ser algo negativo não votam no que é avaliado negativamente.
Considerando-se estas respostas, qualquer medição de ideologia baseada em autoposicionamento dentro de uma escala,
e apresentando ao entrevistado a denominação esquerda e direita, não será uma medição válida. Assim, não é possível utilizar esta medição para análises científicas.
A razão deste equívoco é que as perguntas utilizadas para
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CANDID
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001 117
auto-posicionamento foram adaptadas de questionários utilizados em outros países, sem os devidos cuidados metodológicos. É mais comum que as perguntas tenham que ser bastante
modificadas, para que em outros países sejam capazes de prover medições válidas do mesmo conceito.
MEDINDO A IDEOLOGIA ESQUERDA-DIREITA
Uma outra maneira de se mensurar ideologia no espectro
esquerda-direita é por meio de uma proxy. É comum, para isto,
a utilização de simpatia partidária, de notas para partidos nas
quais zero é quando não se gosta do partido e 10 quando se
gosta muito, ou a aplicação deste mesmo recurso para lideranças políticas de destaque.
O problema é que estas formas de medição, mesmo como
apenas proxys, são bastante questionáveis. Dar notas a políticos e lideranças mede o posicionamento político ou a imagem
que o político tem face a outras dimensões, como ética ou competência técnica? Do ponto de vista lógico é difícil considerar
isto uma proxy adequada.
Questionamentos semelhantes se aplicam a notas dadas a
partidos ou preferência partidária. A preferência ou identidade partidária é em si uma variável explicativa do voto, que
pode ela mesmo ser explicada por outras razões que não a ideologia, como por exemplo a representação de interesses. Alguém pode preferir um partido não por se tratar de um partido de direita ou de esquerda, mas porque é o partido que defende seus interesses.
O mesmo se aplica ao método de dar notas aos partidos,
com o agravante que aqui, assim como no caso dos políticos, o
que pode estar sendo avaliado é a imagem, para além de considerações ideológicas. Assim, do ponto de vista lógico, estas
proxys apresentadas para a medição do contínuo esquerdadireita não são adequadas.
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I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
PERGUNTAS SOBRE AS VISÕES DE MUNDO
DAS PESSOAS
Existe uma literatura ampla e sofisticada sobre como medir predisposições progressistas/liberais/de esquerda e conservadoras/de direita. Esta literatura aborda principalmente a
consistência das medições, que ao contrário do que ocorre para
outros conceitos (por exemplo, nível de informação política), é
bastante problemática. Ela é problemática porque é muito sensível à estruturação do questionário, e à formulação das perguntas. Além disso, o mais adequado é que as medições sejam
capazes de diferenciar, e evitem classificar os entrevistados
de forma demasiadamente homogênea.
Antes de avaliar o desempenho das medições, cumpre estabelecer alguns critérios para que isto seja feito.
1) Ter várias perguntas para formar um índice é sempre melhor do que testar uma pergunta de cada vez.
2) Os índices esquerda-direita formados com mais de uma pergunta devem passar por testes de confiabilidade estatística
(por exemplo, alfa de Conbrach).
3) Quando for utilizada apenas uma pergunta de cada vez
para diferenciar os eleitores, quanto mais homogênea for a
diferenciação, menos confiáveis serão os resultados. Se 90%
assumirem uma determinada posição, a pergunta não se
mostra capaz de diferenciar os eleitores segundo o critério
estabelecido.
Estes são os critérios mais simples e diretos, que dispensam experimentos. Há ainda um grande rol de critérios —
empíricos — que podem ser estabelecidos por meio de experimentos com amostra dividida.
Os surveys realizados no Brasil na década de 1990, e
utilizados por alguns autores para estabelecer a relação
entre ideologia e voto, deixam lacunas importantes no desenvolvimento de medições. Um estudo publicado2 que lança
PARTID
E
D
A
D
I
T
ÁRIA É
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IA OU
C
N
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O VOTO,
A PREF
LICATIVA D
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VARIÁ
EM SI UMA
LICADA POR OUTRAS
QUE PODE ELA MESMO SER EXP
118 ALBERT EINSTEIN
RAZÕES QUE NÃO
A IDEOLOGIA, CO
MO POR
EXEMPLO
A REPRES
ENTAÇÃO
DE INTER
ESSES
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Tabela 3: respostas às perguntas o que é ser de esquerda e o que é ser de direita
O que é ser de esquerda?
RESPOSTA
Não sabe
Fazer oposição
Defender o povo / os pobres / o social / a igualdade
Ser errado
Outro
Ser contra o sistema / o regime
Não fazer nada
Ser contra o povo
Ser comunista
Não respondeu
Ser do lado bom / honesto / ter boas idéias
Ser agitador / fazer baderna
É quem vota contra as leis
É quem não está no poder
Apoiar o governo
É o PT
Ser o contrário da direita
Ser negativo / pessimista
O que é ser de direita?
PERCENTUAL
44,6
29,7
5,6
3,7
3,1
3,0
1,9
1,5
1,4
1,2
0,9
0,8
0,7
0,6
0,4
0,4
0,3
0,3
RESPOSTA
PERCENTUAL
Não sabe
45,6
Ser a favor do governo
19,3
Outro
14,5
É quem manda no país / quem está no poder
5,2
É quem faz as coisas certas / está do lado bom
4,1
Ser contra o povo / a favor da elite
4,1
Fazer pelo povo / governar bem / pensar no bem comum 3,9
Não responde
1,5
Atuar em benefício próprio
1,6
Tabela 4: Percentuais para os totais por pergunta
Pergunta 1
a) O melhor para o Brasil seria que o governo deixasse as empresas dirigirem tudo na economia, inclusive serviços básicos
como educação, saúde e habitação
b) O melhor para o Brasil seria que o governo dirigisse apenas esses serviços básicos, deixando o resto para empresas particulares
c) O melhor para o Brasil seria que o governo dirigisse tudo na economia, os serviços básicos, o comércio exterior, as indústrias pesadas
%
Base
18%
30%
52%
250
435
747
Pergunta 2
a) Acha que a atuação de um líder que coloque as coisas no lugar seria melhor para resolver os problemas do Brasil
b) Acha que a participação da população nas decisões importantes de governo seria o melhor para resolver os problemas do Brasil
c) As duas coisas.
%
38%
10%
52%
Base
718
194
986
Nível de concordância com: (3 perguntas)
a) Nós teríamos menos problemas no Brasil se as pessoas fossem tratadas com mais igualdade,
b) Tudo o que a sociedade produz deveria ser distribuído entre todos, com a maior igualdade possível,
c) Em um país como o Brasil é obrigação do governo diminuir as diferenças entre os muito ricos e os muito pobres
%
Base
94% Não disp.
84% Não disp.
82% Não disp.
Os dados da tabela mostram que as perguntas diferenciam pouco o eleitor.
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001 119
mão destes dados utilizou um número pequeno de perguntas para encontrar relação entre ideologia e voto. No total,
foram usadas nove perguntas para avaliar o comportamento dos eleitores em duas eleições presidenciais. As questões
foram:
1) Uma pergunta para mensurar o nível de apoio para
mais ou menos Estado na economia. Concordar ou discordar com as seguintes afirmações: a) O melhor para o Brasil
seria que o governo deixasse as empresas dirigirem tudo na
economia, inclusive serviços básicos como educação, saúde e
habitação; b) O melhor para o Brasil seria que o governo dirigisse apenas esses serviços básicos, deixando o resto para
empresas particulares; e c) O melhor para o Brasil seria que o
governo dirigisse tudo na economia, os serviços básicos, o comércio exterior, as indústrias pesadas.
Esta pergunta é de um survey realizado em 1989 para estabelecer conexões com o voto no 1º turno.
2) Uma pergunta para mensurar o nível de apoio a soluções por meio de liderança forte. Concordar ou discordar com as seguintes afirmações: a) Acha que a atuação de um
líder que coloque as coisas no lugar seria melhor para resolver
os problemas do Brasil, b) Acha que a participação da população nas decisões importantes de governo seria o melhor para
resolver os problemas do Brasil, c) As duas coisas.
Esta pergunta é de um survey realizado em 1990 para estabelecer conexões com o voto no 2º turno.
3) Cinco perguntas para mensurar o nível de apoio à
igualdade, por meio da discordância ou concordância com as
seguintes frases: a) Nós teríamos menos problemas no Brasil
se as pessoas fossem tratadas com mais igualdade, b) Tudo o
que a sociedade produz deveria ser distribuído entre todos,
com a maior igualdade possível, c) Em um país como o Brasil é
obrigação do governo diminuir as diferenças entre os muito
ricos e os muito pobres, d) O Brasil estaria bem melhor se nós
nos preocupássemos menos com que todo mundo seja igual, e)
Se o país for rico, não importa que haja muitas desigualdades
econômicas e sociais.
Todas estas perguntas são de um survey realizado em 1993.
4) E, por fim, duas perguntas para avaliar o nível de
apoio a ações repressivas do governo, por meio da dis122 ALBERT EINSTEIN
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INTELIGÊNCIA
cordância ou concordância com as seguintes frases: a) Uso
da polícia contra manifestações de rua, e b) Uso de tropas
para acabar com greves.
Survey realizado em 1990 para estabelecer conexões com o
voto no 2º turno.
De um total de nove perguntas usadas para diferenciar o
eleitorado brasileiro em relação à ideologia, cinco não podem
ser utilizadas para explicar o comportamento eleitoral porque
são de um survey de 1993, um ano não-eleitoral. Além disso,
da forma com que foram formuladas e utilizadas para análise, não foi feito um índice de ideologia esquerda-direita baseado em uma combinação de perguntas, mas apenas uma medição baseada em uma pergunta de cada vez, algo considerado
inadequado pela literatura metodológica.
Uma análise da distribuição percentual das respostas mostra que as perguntas não foram muito úteis para diferenciar o
eleitor. Para 5 das 9 perguntas foram apresentadas em tabelas a distribuição para o total de respondentes de cada categoria. Isto é sistematizado na Tabela 4.
Os dados da tabela mostram que as perguntas diferenciam
pouco o eleitor. A que mais diferencia é a pergunta 1. De acordo com seus resultados, no que tange à dimensão econômica
do contínuo esquerda-direita 18% dos eleitores são de direita,
30% de centro e 52% de esquerda. O mais interessante é que
isto contradiz contribuições de autores que consideram que o
eleitorado brasileiro é de direita.
A pergunta 2 é mais problemática do que a 1. Isto porque
os resultados não diferenciam esquerda e direita: 52% dos eleitores são de centro. Do ponto de vista de qualquer medição, o
primeiro requisito é que ela seja capaz de diferenciar segundo
o atributo que ela deseja mensurar.
Por fim, a pergunta 3 sofre do mesmo problema, manifestado de forma diferente. Nela, a frase que menor consenso tem
agrega 82% das pessoas. Isto significa que qualquer cruzamento destes resultados com o voto, ou outro aspecto do comportamento eleitoral não iria levar a nenhuma conclusão cientificamente relevante.
AS MEDIÇÕES DO SURVEY DATAUFF-IUPERJ
No survey desenvolvido pelo DataUff e pelo Iuperj, buscouse também mensurar a ideologia esquerda-direita por meio de
perguntas. A Tabela 5 apresenta as principais características
metodológicas deste survey, e em seguida são apresentadas as
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Tabela 5: Características metodológicas do survey
Tema da pesquisa
Tamanho da amostra
Tipo de amostra
População
Técnica de entrevista
Duração aproximada da entrevista
Número de perguntas
Período de realização
Período de realização de 95% das entrevistas
Comportamento político
496
Probabilística
Adultos residentes no município do Rio de Janeiro
Domiciliar
1 hora
310
02/08/00 a 01/10/00
08/08/00 a 09/09/00
Tabela 6: Percentuais para os totais por pergunta (utilizadas para medir a distribuição esquerda-direita e respectivos resultados)
Pergunta 1
Com qual afirmação o(a) sr(a) concorda mais
As pessoas que nascem na pobreza têm menos chances
de melhorarem de vida ou
As pessoas que têm talento e trabalham muito têm as mesmas
chances que qualquer pessoa, mesmo que seus pais sejam pobres
Pergunta 2
Na sua opinião, o homem e a mulher devem trabalhar, ou
Apenas o homem deve trabalhar enquanto a mulher deve
cuidar da família e da casa
Pergunta 3
Com qual afirmação o(a) sr(a) concorda mais:
O governo deve fazer mais coisas para melhorar a sociedade ou
As pessoas devem fazer mais coisas para melhorar a sociedade,
Ou ambas
Pergunta 4
Com qual afirmação o(a) sr(a) concorda mais
O governo deve ajudar as pessoas a ter um emprego e
a melhorar sua condição econômica, ou
As pessoas devem lutar sozinhas e trabalhar para conseguir
um emprego e melhorar sua condição econômica
Pergunta 5
O que é melhor na sua opinião:
Que o governo diminua os impostos e o(a) sr(a) tenha mais
dinheiro no bolso para pagar saúde e educação particulares ou
Que o governo aumente os impostos e melhore
os serviços públicos de saúde e educação
% Base
33% 162
67% 324
% Base
89% 431
11%
55
%
46%
29%
25%
Base
226
143
124
% Base
91% 432
9%
43
% Base
82% 378
18%
81
Pergunta 6
% Base
Alguns dizem que o Brasil deve comprar menos produtos de outros
países para produzir mais aqui e com isso criar mais empregos,
90% 415
Outros dizem que o Brasil deve comprar mais produtos de outros países
porque assim os preços diminuem e a qualidade dos produtos fica melhor10% 49
Pergunta 7
Gostaria que o(a) sr(a) dissesse para cada uma das
situações que vou mencionar, se o aborto deveria ser
permitido ou não. (OBS: os percentuais são relativos às
respostas SIM, e a base à soma das respostas sim e não)
Se há grandes chances de o bebê nascer com defeitos graves
Se a mulher é casada, mas não quer ter mais um filho
% Base
65% 480
17% 483
Se a vida da mulher está em risco por causa da gravidez
Se a família é muito pobre e não tem como sustentar mais um filho
Se a mulher ficou grávida por causa de um estupro
Se a mulher for solteira e não quiser casar com quem lhe engravidou
Se a mulher quiser fazer o aborto por qualquer razão que seja
77%
26%
70%
12%
10%
470
477
476
482
480
Pergunta 8
O(A) sr(a) é contra ou a favor da pena de morte para
aqueles que foram condenados por assassinato
Contra
A favor
Depende do assassinato
% Base
50% 236
42% 198
8% 40
Pergunta 9
Eu vou ler algumas atividades e gostaria que o(a) sr(a) dissesse
para cada uma delas se ela deve ser feita só pelo governo, se
deve ser feita só pelas pessoas, ou se deve ser feita pelo governo
e pelas pessoas
Só o
Só as
O governo e
governo
pessoas
as pessoas
Reformar as escolas em mau estado 51% (247) 2% (7)
48% (233)
Amparar e consolar doentes
em hospitais
30% (145) 10% (50) 60% (291)
Manter a cidade limpa
17% (83)
13% (61) 70% (341)
Ajudar os viciados em
bebidas alcoólicas
16% (77)
13% (64) 69% (338)
Reformas hospitais
78% (381) 0% (2)
21% (103)
Melhorar o asfalto das ruas
86% (418) 0% (2)
14% (14)
Ajudar os viciados em drogas
17% (83)
8% (37)
75% (360)
Pergunta 10
Agora eu vou ler alguns serviços e gostaria que o(a) sr(a) dissesse
para cada um deles quem deve fazer, se só o governo, se só as
empresas particulares, ou se governo e empresas particulares
Só o
Só as
O governo e
governo
empresas as empresas
Universidade / educação superior
37% (176) 6% (27)
58% (279)
Produzir carros / automóveis
14% (65)
50% (238) 37% (176)
Serviço de telefone celular
18% (85)
47% (227) 35% (169)
Atendimento hospitalar
59% (286) 3% (13)
38% (187)
Produzir petróleo
52% (249) 17% (81) 31% (150)
Justiça / tribunal de justiça
75% (360) 3% (12)
23% (111)
Transporte de trens
47% (227) 12% (59) 41% (196)
Educação primária
63% (306) 3% (14)
34% (167)
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001 123
perguntas utilizadas para realizar esta medição (Tabela 6).
Os resultados das freqüências simples para as perguntas
testadas mostram que não é trivial a medição da ideologia esquerda-direita. As perguntas 2, 4, 5 e 6 são de pouca ou nenhuma utilidade para, cada uma delas separadamente, diferenciar o eleitor quanto a este atributo.
As demais perguntas foram cruzadas, separadamente, com
intenção de voto para prefeito na cidade do Rio de Janeiro.
Sendo o voto a variável dependente, e a ideologia a independente, a escolha metodológica foi avaliar se cada uma destas
perguntas diferenciava entre o voto em César Maia (à época
no PTB, atualmente no PFL) e Benedita da Silva (PT). Note-se
que ambos são conhecidos como candidatos claramente identificados com um dos lados, direita e esquerda respectivamente.
Este teste é crucial, pois se as perguntas não diferenciarem entre Benedita e César Maia, então elas não serão capazes de diferenciar entre os demais candidatos, já que entre
eles é menos clara qualquer diferença ideológica. Apresento
abaixo a lista das seis perguntas que diferenciaram significativamente esta escolha:
1) Opinião sobre o aborto: se há grandes chances de o
bebê nascer com defeitos graves.
Os que apóiam o aborto nestas circunstâncias tendem a
votar mais em César Maia e menos em Benedita, e vice-versa.
Este resultado é o oposto do que ocorre em outros países, onde
a esquerda é favorável à descriminalização do aborto e a direita a favor. Isto ocorre provavelmente porque, também ao contrário dos demais países, no caso de Benedita e César Maia a
religião está mais associada à esquerda (supondo-se ser representada por Benedita) do que à direita.
2) Opinião sobre o aborto: se a mulher for solteira e não
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I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
quiser casar com quem lhe engravidou.
Mesmo resultado da questão anterior.
3) Opinião sobre quem deve operar (governo, empresas ou ambos) o serviço de telefone celular.
A diferença significante ocorre nas respostas só as empresas e ambos. Os que acham que só as empresas devem operar
a telefonia celular tendem a votar mais em César Maia do que
Benedita, e vice-versa para a resposta ambos (empresas e governo). O resultado é na direção esperada da diferenciação
esquerda-direita.
4) Opinião sobre quem deve prover (governo, empresas ou ambos) o atendimento hospitalar.
O resultado também se verificou dentro do esperado na
diferenciação esquerda-direita. Neste caso, porém, esta diferenciação foi nas respostas só o governo, por um lado, e só as
empresas e ambos por outro lado.
5) Opinião sobre quem deve prover (governo, empresas ou ambos) o transporte de trens.
O resultado também se verificou dentro do esperado na
diferenciação esquerda-direita. Esta diferenciação ocorreu nas
respostas só o governo e só as empresas.
6) Opinião sobre quem deve prover (governo, empresas ou ambos) a educação primária.
Mesmo padrão de resposta para a pergunta sobre o atendimento hospitalar.
Em suma: dos oito itens da bateria de perguntas sobre a ação econômica do Estado face ao papel da iniciativa privada, quatro diferenciaram bem o voto Benedita-
ANDO
TO QU
R
O
B
A
O
APÓIAM
SCER
O BEBÊ NA
OS QUE
E
D
S
E
C
N
ES CHA
HÁ GRAND
A VOTAR
COM DEFEITOS GRAVES TENDEM
MAIS EM CÉSAR
MAIA E MENOS
EM BENE
DITA, E V
ICE-VERS
A
124 ALBERT EINSTEIN
César Maia. Adicionalmente, utilizei estes oito itens para
fazer um índice esquerda-direita considerando este aspecto da ação estatal. O Alfa de Cronbach para este índice foi 0,65. O coeficiente alfa é tão melhor quanto mais
próximo de 1, não sendo incomum a obtenção de alfas
maiores do que 0,8. O valor de 0,65 está na faixa do menor valor tolerável para a realização de análises estatísticas com índices.
No índice esquerda-direita, –2 (menos dois) é o máximo de
esquerdismo e +2 (mais dois) o máximo de diretismo, o zero é
a posição de centro. O Gráfico 1 mostra esta distribuição no
eleitorado do Rio de Janeiro.
O eleitorado do Rio de Janeiro é fortemente a favor da ação
do Estado na economia. Isto obriga os políticos e candidatos a se posicionarem mais contra do que a favor das privatizações, mais contra do que a favor da diminuição do
Estado, e vice-versa. Por outro lado, como indicado pelo
Alfa de Cronbach (0,65), o índice não apresenta um desempenho bom. Seria melhor que houvesse uma diferenciação maior entre esquerda e direita, abrangendo toda a
amplitude do contínuo.
É interessante notar na Tabela 7 que, ao se cruzar este
índice com a intenção de voto Benedita-César Maia, ele é capaz de diferenciar os eleitores de forma estatisticamente significante. Para a realização deste cruzamento, foi necessário
somar “direita” e “centro”, posto que o número de casos “direita” foi muito pequeno.
A conclusão é de que é possível diferenciar esquerda e direita quanto aos aspectos econômicos, e que isto diferencia o
voto. Não deve-se perder de vista duas ressalvas importantes:
a) Esta análise é feita acerca do voto em dois candidatos que se
distinguem claramente, Benedita e César Maia.
O ELEI
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I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
b) Não foi controlada nenhuma outra variável explicativa do
voto.
IDEOLOGIA E OUTRAS VARIÁVEIS EXPLICATIVAS
As análises estatísticas utilizadas por Singer em seu livro
são muito básicas e exploratórias. O resultado é que análises
deste tipo apresentam resultados que não são verificados em
tratamentos estatísticos mais avançados (ainda que não muito avançados). Isto se aplica, por exemplo, à avaliação da direção do voto em Benedita ou César Maia considerando-se a posição esquerda-direita.
Os dados da pesquisa DataUff – Iuperj foram utilizados
para o teste de alguns modelos de regressão logística. Em primeiro lugar, verificou-se que as variáveis sociodemográficas
como local de moradia, e escolaridade, não apresentaram nenhuma relação significativa com o voto em Benedita, César
Maia, ou mesmo Conde. Em seguida, foram testados modelos
com as seguintes variáveis: 1) o índice esquerda-direita quanto à ação econômica do Estado, acima apresentado (pergunta
10), e 2) a avaliação da prefeitura de Conde.
Note-se que a avaliação da prefeitura de Conde é importante, porque César Maia era tido naquela eleição como o
“pai político” de Conde, enquanto Benedita vestia o figurino da candidatura de oposição tanto a Conde quanto a César Maia.
A estatística mais relevante para se avaliar cada um dos
modelos é o RL2, a chamada redução proporcional do qui-quadrado. O RL2 pode variar entre 0 e 1, e mede o peso da contribuição de cada variável independente para a explicação da
variável dependente. Quanto mais próximo de zero for o RL2
mais irrelevante é a variável independente para explicar a
variação da variável dependente. Os modelos e seus respectivos RL2 estão apresentados a seguir.
TORAD
O DO R
IO DE
JANEIR
OÉ
TE A FAVO
R DA AÇÃO
DO ESTADO
NA ECONOMIA. ISTO OBRIGA OS
POLÍTICOS
EM MAIS
A SE POSICIONAR
E CANDIDATOS
IZAÇÕES
S PRIVAT
A
D
R
O
V
FA
DO QUE A
CONTRA
FORTEMEN
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001 125
Modelo 1
RL2: 0,142
Variável dependente: voto em Conde
Variável independente: avaliação do governo Conde
Modelo 2
RL2: 0,003
Variável dependente: voto em Conde
Variável independente: índice esquerda-direita
Modelo 3
RL2: 0,147
Variável dependente: voto em Conde
Variáveis independentes (modelo aditivo): avaliação do governo Conde e índice esquerda-direita
Modelo 4
RL2: 0,013
Variável dependente: voto em Benedita
Variável independente: avaliação do governo Conde
Modelo 5
RL2: 0,015
Variável dependente: voto em Benedita
Variável independente: índice esquerda-direita
Modelo 6
RL2: 0,032
Variável dependente: voto em Benedita
Variáveis independentes (modelo aditivo): avaliação do governo Conde e índice esquerda-direita
Modelo 7
RL2: 0,013
Variável dependente: voto em César Maia
Variável independente: avaliação do governo Conde
Modelo 8
RL2: 0,006
Variável dependente: voto em César Maia
Variável independente: índice esquerda-direita
Modelo 9
RL2: 0,015
126 ALBERT EINSTEIN
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I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Variável dependente: voto em César Maia
Variáveis independentes (modelo aditivo): avaliação do governo Conde e índice esquerda-direita
Os dados mostram que o melhor modelo é o que explica o
voto em Conde por meio da avaliação da prefeitura de Conde.
Neste caso, a contribuição da variável independente esquerda-direita é irrelevante. Nos demais modelos tanto a avaliação de Conde quanto a ideologia são irrelevantes. Isto fundamenta a hipótese de que esquerda e direita não são importantes para explicar o voto.
É necessário apontar para algumas limitações da análise
realizada. A primeira é que ela não utiliza outras variáveis
que podem vir a ser importantes, como preferência partidária e imagem dos candidatos. Isto acontece porque a pesquisa não coletou informações sobre esta última variável, e porque a informação de preferência partidária coletada é inadequada: poucas pessoas declararam ter preferência por algum
partido.
A segunda limitação é que foram testados modelos lineares aditivos. Isto quer dizer que pode haver relações mais robustas e significativas para modelos com termos de interação,
ou mesmo não-lineares.
CONCLUSÃO
A análise de algumas medições de ideologia esquerda-direita já feitas no Brasil, e de sua utilização em estudos acadêmicos, revelam alguns pontos que merecem destaque.
1) Não é fácil mensurar de maneira adequada o conceito de ideologia esquerda-direita
Há procedimentos a seguir e, não fazê-lo, resulta em medições imprecisas e incorretas. Além disso, fica claro que mesmo
a adoção de tais procedimentos não assegura a obtenção de
uma medição relevante.
2) A ciência política brasileira ainda não foi capaz de
desenvolver esta medição
Enquanto em outros países do mundo há formas de diferenciar a população entre liberais e conservadores, intervencionistas e não-intervencionistas, no Brasil os cientistas políticos não conseguiram ainda desenvolver esta medição. Isto
tem uma implicação muito ruim para os estudos desenvolvidos sobre o Brasil. Sem a diferenciação do eleitorado segundo
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Gráfico 1: Distribuição do eleitorado do município do Rio de Janeiro segundo o
índice esquerda-direita
45%
40%
Proporção de eleitores
35%
30%
25%
20%
15%
10%
5%
0%
extrema esquerda
centro-esquerda
centro
centro-direita
extrema direita
Posição no contínuo esquerda-direita
Tabela 7: Índice econômico esquerda-direita e voto em Benedita e César Maia
Esquerda
Observado
Esperado
Percentual
Resíduos ajustados
Benedita
51
43,1
60,7
2,6
César Maia
33
40,9
39,3
-2,6
Total
84
84
100
Centro e direita
Observado
Esperado
Percentual
Resíduos ajustados
25
32,9
39,1
-2,6
39
31,1
60,9
2,6
64
64
100
Total
Observado
Esperado
Percentual
76
76
51,4
72
72
48,6
148
148
100
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001 127
este critério não é possível sequer testar a hipótese de que o
eleitor vota de acordo com a ideologia.
3) O perigo de se importar perguntas de surveys
A análise revela também que a simples importação de perguntas de pesquisas de opinião não é suficiente para fornecer
medições adequadas. Em geral, quando uma pergunta de survey é adotada e reutilizada nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, ela passou por pré-testes para avaliar sua validade e confiabilidade. É interessante a esse respeito registar que o British
Social Attitudes, o survey acadêmico anual mais importante da
Grã-Bretanha, não copiou textualmente nenhuma pergunta do
General Social Survey norte-americano, em que pese ambos
serem formulados na mesma língua. Isto ocorre em função dos
diferentes contextos culturais. O que não dizer então das diferenças existentes quanto ao entendimento de perguntas entre
brasileiros e habitantes de países mais desenvolvidos?
4) A diferenciação entre medir ideologia, e utilizar esta
medição para explicar o voto
Fica claro que uma coisa é mensurar a ideologia, outra totalmente diferente é utilizar esta medição para se testar a hi-
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INTELIGÊNCIA
pótese da explicação do voto por meio da ideologia. Ainda que
seja possível medir adequadamente a ideologia, isto não significa que ela será uma variável explicativa relevante do comportamento eleitoral.
5) É impossível testar teorias sem boas medições
Um teórico que se limite a cruzar variáveis e gerar modelos estatísticos terá que no mínimo saber avaliar a medição que está utilizando: seus defeitos e qualidades, sua validade e confiabilidade, capacidade de diferenciar o que está
sendo medido etc. Se a medição não for boa o teórico fará
mau uso de seu tempo lançando mão dela para análises e
estudos.
Por outro lado, o metodólogo que desenvolve instrumentos
de medição só pode fazê-lo após conhecer a literatura e as principais questões do tema estudado. Por que esquerda e direita
são relevantes? A literatura responde. Mais do que isto, ela
permite construir o conceito de esquerda e direita, sendo esta
uma etapa que precede as operações mais estritamente técnicas de uma medição.
e-mail: [email protected]
1. Para isto veja-se o livro de Singer, Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro, Edusp e Fapesp, São Paulo, 1999. Neste artigo irei considerar de forma
mais detalhada alguns argumentos de Singer, por se tratar de um autor que abordou de forma detalhada este tema.
2. Singer (1999).
128 ALBERT EINSTEIN
I N S I G H T
a arte de
JULIANO
GUILHERME
INTELIGÊNCIA
A obra de Juliano Guilherme se filia
à tradição expressionista na arte
ocidental, que existe antes mesmo
de o expressionismo surgir como
movimento. Na essência, ser
expressionista significa responder
de forma contundente a uma realidade que também o é. Com a palavra, o artista: “Minha linguagem é
fortemente urbana e acredito que a
natureza turbulenta, às vezes trágica, às vezes cômica, da minha cidade se transfere, através da minha
subjetividade, às minhas pinturas.”
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001 129
I N S I G H T
142 ASTRÓLOGOS
INTELIGÊNCIA
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
O PROTECIONISMO
É INEVITÁVEL
M.F.
THOMPSON
MOTTA
ENGENHEIRO
A primeira manifestação conhecida de
proteção de mercado nos Estados Unidos
surgiu em 1643, quando o Estado de
Massachusetts garantiu a uma fundição de
ferro a reserva de mercado por 21 anos, a
fim de protegê-la da concorrência inglesa
(THE INDUSTRIAL HISTORY
OF ENGLAND – Abbot Usher).
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001 143
ASSIM É SE LHE PARECE
A globalização pode ser definida como um processo de integração do mercado mundial, compreendendo a desregulamentação do comércio entre países e a liberdade completa de
movimentação de pessoas e capitais.
As nações que fizerem parte dessa nova realidade terão,
daqui por diante, que direcionar seu crescimento para intensificar as relações internacionais, se não quiserem ser marginalizadas.
O sistema pressupõe um acirrado processo competitivo
entre as nações e blocos econômicos, a completa desmontagem dos mecanismos de proteção e segurança dos menos ajustados e a submissão de todos os comportamentos à racionalidade e à eficiência da economia.
A globalização não cria necessariamente embaraço ao desenvolvimento econômico e pode até criar novas oportunidades de crescimento, desde que os agentes tenham uma noção
clara do processo e os governos desenvolvam estratégias que
permitam aproveitar as vantagens da globalização.
É necessária uma compreensão adequada do processo e
um projeto nacional do setor produtivo, privado e estatal, pois,
de outra forma, seria difícil e complexa a utilização dos instrumentos, aceitos internacionalmente, de salvaguarda e de
negociações compensatórias.
Na globalização é importante que o Estado seja dotado de
recursos materiais e humanos para a instalação e bom funcionamento de um sistema de investigação de irregularidades
e aplicação tecnicamente correta das medidas de defesa comercial e contra práticas desleais. As decisões devem ser rigorosas e exatas, pois de outra forma existe o risco de serem
invalidadas as decisões nacionais.
O processo de globalização é rápido e dinâmico em função
dos seguintes fatores básicos: 1) a aplicação generalizada de
tecnologias avançadas no setor de comunicação; 2) a integração de grandes blocos de comércio; 3) a interligação dos mercados financeiros internacionais.
Embora o perfil da globalização lembre alguns processos
históricos de modernização da economia mundial, essas mudanças trazem no seu cerne pela primeira vez a criação de
um sistema financeiro integrado, com o surgimento de novas
instituições e organizações mundiais.
Além disso, um dos componentes centrais da globalização
está relacionado com as novas formas de produção e comerci144 ASTRÓLOGOS
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INTELIGÊNCIA
alização, que alteram em boa parte a própria lógica das relações entre países, sobretudo no que se refere a produtos manufaturados.
Assim, o bem manufaturado, com determinada especificação e modelo, é fabricado simultaneamente em diversos países, sendo a decisão de onde fabricar cada componente uma
função das vantagens comparativas de cada país. Esta globalização industrial é um resultado não só de novas técnicas
produtivas como também da crescente homogeneização a nível mundial, tanto da oferta de produtos como dos padrões
de consumo.
Nos países em desenvolvimento, carentes normalmente
de política industrial ou de comércio exterior, o produto globalizado pode trazer a perda do controle acionário de empresas locais e o abandono da tecnologia até então desenvolvida.
Assim, quem quiser ser parceiro da Ford no Brasil para a
produção do Fiesta ou Ford KA, vai ter que cruzar o Atlântico e se entender com os fornecedores europeus, comprando
tecnologia, formando joint venture ou até negociando seu controle acionário. É o denominado “Global Sourcing”, que já
atingiu centenas de indústrias de autopeças brasileiras, inclusive as duas maiores — Metal Leve e COFAP.
A internacionalização da produção é um fenômeno observado desde o século passado porém, não há precedentes para
a maneira e o ritmo de crescimento desse processo nos últimos anos. A importância da internacionalização ficou clara
na aprovação após quase meio século da Organização Mundial do Comércio, que completa os esquemas regulamentários das finanças, Fundo Monetário Internacional e fluxos de
crédito público (Banco Mundial, BID etc.) e privados (EXIMBANK Americano, Japonês etc.).
É interessante frisar que o mundo hoje pode ser dividido,
do ponto de vista econômico, em quatro zonas: América do
Norte, Comunidade Européia, Ásia Pacífica (APEC) e o resto
do mundo. No ano de 1998, segundo dados da ONU, o comércio dentro destas regiões totalizou US$ 1,5 trilhão e o comércio entre as regiões US$ 1,6 trilhão.
A maioria dos países da América do Sul abandonou a estratégia de crescimento econômico apoiada em modelos de
substituição de importação e procura dar um novo impulso à
integração, com a liberalização generalizada do comércio, que
implica em reduções substanciais nas tarifas e na integração
crescente com o resto do mundo.
As estratégias autônomas, buscadas de forma contínua
por países como o México e o Brasil e de forma intermitente
por outros como a Colômbia, a Venezuela e a Argentina, foram substituídas por políticas de cunho pragmático, que enfatizam os interesses econômicos imediatos e tentam reduzir
a marginalização dos países da região nos processos globais
de transformação do sistema internacional.
A globalização da economia nacional implicou uma mudança radical na postura do empresário nacional privado e
do Governo, que levou em consideração o potencial de novas
oportunidades de negócios, estudo operacional, estratégia de
marketing, política de desenvolvimento de novos produtos,
ênfase à pesquisa e desenvolvimento, sistema de comunicações atualizado, política financeira, política de investimentos, política de associação e de fontes de produção.
ASSIM É COMO É
A complexidade das negociações comerciais no quadro de
integração está diretamente associada ao comércio de produtos sensíveis do comércio bilateral ou à competição de exportação em terceiros mercados. O Brasil é normalmente o país
latino-americano mais afetado por barreiras não-tarifárias
tipo “hardcore” (restrições quantitativas, tarifas específicas
e administrativas), principalmente no comércio com os Estados Unidos.
O bloqueio às exportações brasileiras nos EUA é reconhecido por especialistas norte-americanos, como Gary Hufbauer,
do Instituto de Economia Internacional, de Washington, que
em trabalho recente afirmou que o protecionismo dos Estados Unidos custa pelo menos US$ 6 bilhões anuais ao Brasil,
em exportações perdidas de suco de laranja, açúcar, aço, bens
de capital etc.
As negociações em torno da impossibilidade de cooperação e/ou integração intra-regional se convertem no único espaço ativo das políticas externas latino-americanas, constituindo, em todos os casos, um campo de ação diplomática.
São os Ministérios de Relações Exteriores que devem armar
as redes interburocráticas, onde, obviamente, se incluem os
ministérios da área econômica, pois são esses que usualmente têm a direção dos órgãos vinculados à política cambial e
tarifária. Além disso, o setor privado, como executor da política de comércio exterior, deveria participar ativamente em
todas as fases das formulações e entendimentos nesta área.
É interessante frisar que a maioria das nações opera no
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INTELIGÊNCIA
comércio exterior com base nesta ação. Os governos em sintonia com o setor privado utilizam todos os meios, políticos e
comerciais, para apoiar e assegurar as vendas dos seus produtos no mercado internacional.
Dentro deste contexto mundial, a economia brasileira, num
período muito curto, vem realizando uma abertura comercial
sem precedentes no mercado internacional, pois foram derrubadas as elevadas barreiras, inclusive às de reserva de mercado que abrigavam importantes setores da atividade econômica do país, como a informática e a automobilística.
Essa abertura comercial do Brasil leva a um efeito extremamente salutar no sentido de motivar de forma intensa a
busca de competitividade por parte da indústria nacional, não
só através da absorção de novas tecnologias, como também
pelo uso de métodos de produção e de aumento de produtividade e qualidade.
Entretanto, as aberturas comerciais no Brasil têm sido
caracterizadas por extremos, desde o século passado, ou seja,
parte-se sempre de um fechamento quase total para uma abertura quase súbita e irrestrita do comércio exterior, com o conseqüente desequilíbrio da balança comercial e o retorno inevitável da antiga situação de fechamento.
Além disso, o governo não está preparado para enfrentar a
concorrência desleal dos produtos importados que chegam ao
Brasil com um preço menor que o cobrado no país de origem
(dumping) ou beneficiados por subsídios governamentais. Os
técnicos do Departamento Técnico de Tarifas (DTT) e da Secretaria do Comércio Exterior (SECEX) do MICT, que deveriam investigar os fornecedores no país de origem, não dispõem de equipes especializadas e muito menos de recursos.
Para a forte demanda de importações, com um alto componente especulativo, os instrumentos que as autoridades econômicas dispõem são o aumento das tarifas e a política de
juros reais elevados, com objetivo de encarecer a manutenção de estoques de produtos importados.
Por outro lado, as práticas protecionistas do comércio ainda predominam no atual modelo de economia globalizada.
Os principais parceiros comerciais do Brasil adotam diversas medidas em defesa dos seus mercados, através, principalmente, de protecionismo tarifário e não-tarifário (tipo
hardcore — restrições quantitativas tarifas específicas e administrativas), com prazos relativamente curtos e a cobrança de um comportamento competitivo.
Os Estados Unidos, por exemplo, o principal parceiro para
OUTUBRO• NOVEMBRO• DEZEMBRO 2001 145
os produtos brasileiros, são exímios praticantes de instrumentos de proteção por intermédio de um agressivo mecanismo de
sobretaxas que podem chegar até 80% (oitenta por cento), dependendo do país e do produto. É o caso do suco de laranja
brasileiro, que hoje paga US$ 490 (quatrocentos e noventa dólares) adicionais por tonelada ingressada nos Estados Unidos.
Além disso, a estrutura americana reúne grande número de mercadorias sujeitas a alíquotas iguais ou superiores a
50%. É interessante frisar que o Brasil é um dos alvos desse
protecionismo, sendo o país latino-americano mais afetado
por barreiras não-tarifárias tipo “hardcore”, restrições quantitativas, tarifas específicas e administrativas, a saber:
„
Chapas grossas de aço, tubos de aço com costura e tubos de
aço sem costura, entre outros tipos de aço – o Governo
americano considera que algumas siderúrgicas brasileiras praticam dumping.
„ Suco de laranja – as exportações de suco de laranja do Brasil para os EUA são taxadas em cerca de US$ 490 a tonelada.
A taxação foi imposta depois de um processo anti-dumping.
„ Fumo – o Congresso americano aprovou há dois anos uma
legislação que limita a 25% o percentual de fumo importado
usado nos cigarros produzidos nos EUA.
„ Gasolina – recentemente, a OMC condenou os EUA por
proibirem a importação de gasolina do Brasil (e da Venezuela). Os americanos alegam que a gasolina brasileira está fora
das especificações da lei ambiental dos EUA.
„ Carnes – várias barreiras sanitárias e burocráticas adotadas pelo governo americano impedem que o Brasil exporte
carne bovina e de frango in natura.
„ Camarão – os EUA proibiram a importação de camarão brasileiro. As autoridades americanas exigem que a frota camaroneira brasileira instale dispositivos que permitam a fuga
das tartarugas marinhas.
„ Têxteis – as exportações brasileiras de produtos têxteis para
os EUA estão limitadas por um regime de cotas herdado do
extinto acordo MULTIFIBRAS.
„ Bens de capital – a indústria brasileira é praticamente impedida de exportar para o governo americano face às restri-
REFERÊNCIAS
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I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
ções contidas no “Buy Americam Act” de 1933.
„ Indústria naval – desde 1922 vige o “Jonas Act” que determina que na cabotagem americana sejam utilizados navios
fabricados nos EUA.
As dificuldades no comércio internacional tendem a se
agravar como resultado da queda dos fluxos de investimento
dos países ricos em área emergentes, pois boa parte do comércio global é gerada pelas relações entre matrizes e subsidiárias de empresas multinacionais.
Por outro lado, a reação protecionista mundial talvez seja
a mais intensa desde o início do ciclo de libertação comercial
no pós-guerra. Deste modo as dificuldades tendem a ser crescentes.
A economia brasileira entra nessa onda protecionista enfraquecida, pois liberalizou sem exigir contrapartidas dos seus
principais parceiros comerciais. A recuperação agora tende a
ser vista como retroceder junto à OMC.
Passados cerca de 2 anos da desvalorização do real frente
ao dólar, a evolução dos valores das exportações brasileiras
continua desajustada. É um sinal claro que não bastou atualizar o câmbio para alavancar negócios. É um indicador de
situação internacional e do atraso do Brasil em relação aos
sistemas de exportação de outros países.
Em conclusão, a globalização da economia nacional exige
a formulação de uma política de comércio exterior firme e
duradoura, em perfeita sintonia com o setor privado, e, além
disso, é indispensável um grande esforço de parceria entre o
Estado e o setor privado, no sentido do aumento da competitividade, onde a atuação da diplomacia e dos órgãos formuladores da política econômica é fundamental.
De outra forma, o Brasil corre o risco de ser marginalizado na economia mundial, tornando-se apenas um exportador
eventual de bens primários e com tecnologia defasada como
nas primeiras décadas deste século, caso não sejam adotadas
as medidas capazes de garantir a competitividade da economia nacional num mundo cada vez mais globalizado.
e-mail: [email protected]
Diversas Publicações da FUNCEX; Export Handbook – Confederation of British Industries; Handbook of International Business.
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