Prefácio: O Leão e a Joia, de Wole Soyinka

Transcrição

Prefácio: O Leão e a Joia, de Wole Soyinka
Prefácio: O Leão e a Joia, de Wole Soyinka
A 1ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura, que aconteceu em Brasília, entre 14 e 23 de
abril, foi marcada pelo lançamento da obra “O Leão e a Joia”, do poeta, escritor e
dramaturgo nigeriano Wole Soynka, primeiro africano a receber o Prêmio Nobel da
Literatura. Trata-se de um roteiro teatral sobre um triângulo amoroso em uma tribo
iorubá, pano de fundo para o autor debater os conflitos entre a manutenção das
tradições culturais africanas e as influências da contemporaneidade.
A primeira edição nacional de uma obra do combativo escritor tem tradução de
William Lagos e prefácio do historiador Ubiratan Castro de Araújo, diretor-geral da
Fundação Pedro Calmon.
Abaixo, íntegra do prefácio de O Leão e a Jóia (Editora Geração, 168 págs.):
Wole Soyinka
O Leão e a Joia
Prefácio
Para o leitor brasileiro é uma festa a primeira edição em língua portuguesa do escritor
nigeriano Wole Soyinka. Além da excelência de sua literatura, reconhecida com a
concessão de um Prêmio Nobel, ele é um dos mais importantes intelectuais no
processo contemporâneo de renascimento africano, principalmente por sua atuação
cidadã em seu país, a Nigéria, contra o militarismo e o autoritarismo, tristes legados da
ocupação colonial.
A obra escolhida, O LEÃO E A JOIA, é um exemplo de como um intelectual, a partir de
seu texto literário, pode pensar e atuar no processo de reconstrução cultural e política
do seu país. Trata-se de uma obra africana na sua forma e no seu conteúdo. A
apresentação em forma de uma peça de teatro permite que o texto literário tenha o
suporte da linguagem cênica da música, da dança, da mímica e dos tambores. Dentro
da cultura Iorubá é como uma apresentação das Gueledés, nas feiras nigerianas,
fazendo a crítica dos costumes através a representação teatral. É o que os italianos
chamam de Ridendo castigat mores. Após cada sequência de diálogos, é na
performance dos atores que se reflete sobre a temática e se define a continuidade do
texto.
O conteúdo desta peça de teatro refere-se a uma temática fundamental para os países
africanos contemporâneos que é a superação de um período pós-colonial, no qual
foram mantidas as estruturas coloniais, antes dirigidas pelos brancos europeus, agora
por elites africanas, que incorporaram os comportamentos dos antigos colonizadores.
Nas décadas que se seguiram às independências africanas proliferaram-se na África
generais ditadores, imperadores sanguinários e autoritários de toda a ordem. Todos
eles se comportavam como colonizadores do seu próprio povo.
O LEÃO E A JOIA é uma fábula contemporânea que tem como cenário a pequena aldeia
de Iluijinle, no país Iorubá, onde a bela Sidi, a jóia, recebe propostas de casamento e
escolhe o seu parceiro. Ela representa a cultura ancestral iorubá, assediada por um
jovem professor primário Lakunle, treinado nos saberes ocidentais, disposto a
erradicar a tradição em nome de uma europeização dos costumes. Um terceiro
personagem é Baroka, o bale da aldeia, chefe tradicional e poderoso, que pretende,
através do casamento com a bela jóia manter o seu prestígio e poder, bem como
perenizar a sua linhagem de leão da mata.
Na trama que se desenvolve ao longo da peça teatral, o autor explora com fino humor
as situações de conflito, dentro das referências da cultura aldeã ioruba. O jovem
professor modernizador não consegue convencer sua amada das vantagens da ruptura
com a tradição e passa a ser visto por ela e pelos outros aldeãos como portador de
saberes inúteis, como um fraco, como um estrangeiro. O velho Baroka, aos 62 anos,
joga toda uma sabedoria ancestral para seduzir Sidi. Ele mesmo faz circular a falsa
notícia de sua impotência sexual para depois convencer sua pretendida que o
casamento com ela era uma prova para toda a aldeia da virilidade do velho leão,
condição fundamental para a manutenção do seu poder e da continuidade da cultura
tradicional.
Um outro sistema de conflito nas sociedades tradicionais africanas é a questão de
gênero. Cada vez mais as mulheres africanas vem ocupando espaços culturais e
espaços de poder, inclusive com o recebimento de vários prêmios Nobel da Paz. Nesta
fábula, a bela Sidi está disposta a reproduzir a tradição mas não se conforma com um
papel passivo no harém do bale Baroka. Sua grande aliada é a experiente Sadiku,
primeira mulher do chefe local, que conhece todas as suas fraquezas e passa para a
futura esposa do seu marido, a convicção de que as mulheres são mais fortes do que
os homens, até porque elas são responsáveis pela virilidade deles e pelo futuro de suas
linhagens. Assim entendemos que Sidi escolheu ser modernizadora da tradição e não
sua destruidora.
Voltando à história contemporânea africana, podemos ler esta belíssima fábula “O
Leão e a Joia” como uma busca de alternativa para as sociedades africanas no póscolonialismo. A simples substituição de brancos por negros nas mesmas estruturas de
poder colonial fracassou. A simples manutenção das culturas tradicionais não
responde mais aos desafios da África contemporânea. A escolha de Sidi pode ser a
saída para a incorporação de novos personagens sociais (a mulher, por exemplo) em
processos de modernização que respeitem as identidades tradicionais. Talvez este seja
o verdadeiro sentido do “renascimento africano”.
Ubiratan Castro de Araújo