- Pós Clássicas

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Universidade Federal do Rio de Janeiro
“RUMPITUR INVIDIA QUIDAM”: UM ESTUDO SOBRE OS CONCEITOS
DE IMITATIO, AEMULATIO E PLAGIUM NOS EPIGRAMMATA DE
MARCIAL.
Mariana Beraldo Santana do Amaral da Rocha
2016
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
“RUMPITUR INVIDIA QUIDAM”: UM ESTUDO SOBRE OS CONCEITOS
DE IMITATIO, AEMULATIO E PLAGIUM NOS EPIGRAMMATA DE
MARCIAL.
Mariana Beraldo Santana do Amaral da Rocha
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa
de
Pós-Graduação
em
Letras
Clássicas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como parte dos requisitos necessários
para a obtenção do Título de Mestre em Letras
Clássicas.
Orientadora: Profa. Doutora. Arlete José Mota.
Rio de Janeiro / UFRJ
Fevereiro de 2016
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“RUMPITUR INVIDIA QUIDAM”: UM ESTUDO SOBRE OS CONCEITOS
DE IMITATIO, AEMULATIO E PLAGIUM NOS EPIGRAMMATA DE
MARCIAL.
Mariana Beraldo Santana do Amaral da Rocha
Orientadora: Profa. Doutora Arlete José Mota
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários para a
obtenção do Título de Mestre em Letras Clássicas.
Examinada por:
Rio de Janeiro
Fevereiro/2016
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Dedico esta dissertação
Aos meus pais.
Ao meu marido.
Ao meu irmão.
Às minhas crianças.
À minha orientadora.
Obrigada!
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeço a Deus por esta oportunidade, se minha vida não estivesse
calcada na vontade Dele, isto nunca ocorreria. Agradeço a Ele por tudo que fez comigo
durante os anos de graduação e mestrado, de como me sustentou debaixo de Sua Graça
infinita. Muito Obrigado, Senhor!
Aos meus pais, porque se não fosse pelo apoio deles e suas orações, o que seria de
mim? Em todo momento apoiaram minhas decisões, me deram forças e condições, mesmo
que a situação fosse apertada, para frequentar a faculdade e poder estudar para concluí-la,
mesmo que muitas vezes me tirassem das seções de estudo para descansar, contra a minha
vontade. Agradeço pelos dias acordando de madrugada, pela disposição e oração. Muito
obrigada por serem exemplos e meu apoio fundamental. Ao meu irmão, agradeço por me
fazer rir e pelo apoio incondicional, fico muito orgulhosa do rapaz que você se tornou e
espero ter sido exemplo em sua vida, não desista de fazer sua faculdade e seja o melhor! Amo
vocês.
Ao meu amado marido, por fazer parte da concretização desse sonho muito antes
dele ser sonhado, por estar comigo durante as longas seções de estudo para o vestibular, por
entender meu “desespero” em relação à faculdade, me ajudando comprando meu primeiro
dicionário de latim, por nunca me deixar, mesmo atrelada com inúmeras preocupações,
durante a graduação, em relação ao nosso futuro. E, me apoiou quando decidi fazer o
mestrado, me aparou quando o desespero e as preocupações vieram. Por tantas vezes que me
acordou do meu sono sob os livros e cadernos, por carregar minha mochila na prova do
mestrado, por estar presente e por alegrar-se comigo quando passei. Te amo e muito obrigada
pelas suas orações, pelas massagens em minha mão dolorida e, principalmente, pelo seu amor.
À minha orientadora, Professora Doutora Arlete Mota, por dar-me a chance de fazer
Iniciação Científica, e lá se vão seis anos, e me apresentar a Marcial e a todo universo que
envolve a sua obra. Agradeço por me escutar e por estar ao meu lado em cada decisão que
tomei, por me ajudar a vencer a timidez de me apresentar nas JIC´s e por plantar a vontade de
fazer o mestrado, e cá estou. Muito obrigada por ser como uma mãe para mim e por aceitar
ser a minha orientadora.
Não posso esquecer-me de agradecer a duas pessoas que me convenceram a fazer
Letras, quero agradecer aos meus tios, Tiago e Mônica, muito obrigada por acreditarem em
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mim, muito obrigada por estarem ao meu lado em cada decisão, estarem comigo nos
primeiros meses de faculdade. Agradeço a Deus por serem exemplos em minha vida. Muito
Obrigada!
Quero agradecer a todos que fizeram parte da minha caminhada, diretamente e
indiretamente, a minha vó Áurea, por me ajudar durante a graduação, aos meus familiares que
não sabiam o que eu fazia, mas, com a plena certeza, estão alegres por mim. Não posso
esquecer-me das pessoas que fizeram parte da minha vida durante a graduação: minha linda
amiga Sarita, muito obrigada por me alegrar durante as aulas, por comemorar comigo cada
conquista, mesmo longe, estamos perto uma da outra, minha querida amiga Zildene, que além
de dividir a orientadora, dividiu as angústias do mestrado, e tantos outros (Myllena, Profs.
Sherer e Renan, os amigos de espanhol) que indiretamente foram importantes para que eu
pudesse chegar até aqui, só tenho que agradecer.
Por fim, agradeço a CAPES por fomentar a realização do meu mestrado.
“omnem sollicitudinem vestram proiicientes in eum, quoniam ipsi cura est de vobis”
I Pe. 5.7
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“At chartis nec furta nocent et saecula prosunt,
Solaque non norunt haec monumenta mori.”
Marcial. X, 2
“omnia tempus habent et suis spatiis transeunt universa sub caelo”.
Ecl. 3.1
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RESUMO
“RUMPITUR INVIDIA QUIDAM”: UM ESTUDO SOBRE OS CONCEITOS DE
IMITATIO, AEMULATIO E PLAGIUM NOS EPIGRAMMATA DE MARCIAL.
Mariana Beraldo Santana do Amaral da Rocha
Orientadora: Profa. Doutora Arlete José Mota
ROCHA, Mariana Beraldo Santana do Amaral. “Rumpitur invidia quidam”: um estudo sobre
os conceitos de imitatio, aemulatio e plagium nos Epigrammata de Marcial, Rio de Janeiro,
2016. Resumo da dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do Título de Mestre em Letras Clássicas.
O principal objetivo do presente trabalho é analisar os epigramas de Marcial (39/41 – 103/104
d.C), trazendo a lume o processo de produção literária dos antigos romanos. Antes de adentrar
ao assunto, realizar-se-á um pequeno estudo sobre o gênero epigramático em geral. Em
seguida, pretende-se discutir sobre os processos de imitatio e aemulatio, à luz do que os
próprios retóricos antigos tinham como conceituação. Uma vez que estejam entendidos os
processos de imitatio e aemulatio sob a ótica dos autores antigos, será preciso conceituar tais
processos dentro do que os teóricos modernos chamam de intertextualidade. Para exemplificar
os processos, far-se-á necessário analisar como o epigramista trabalhou com os processos
indicados, em especial no que tange a emulação de Catulo, mestre declarado do poeta,
Horácio, emulado dentro de um viés filosófico e Ovídio, emulado no que cerca a temática do
exílio em sua obra. Para que se trate sobre o plágio na Antiguidade, recorrer-se-á aos
ensinamentos do direito romano, sem que antes se entenda o processo de cópia e publicação
de uma obra naquele tempo, ademais, a obra de Marcial oferece escopo necessário para que se
entenda como se desenvolvia o vício de plágio na Antiguidade, visto que o poeta foi pioneiro
ao se referir ao copiador de suas obras como plagiador.
Palavras-Chave: Marcial, epigrama, plágio, imitatio, aemulatio.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016.
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ABSTRACT
“RUMPITUR INVIDIA QUIDAM”: A STUDY ON THE CONCEPTS IMITATIO,
AEMULATIO AND PLAGIUM IN EPIGRAMMATA OF MARTIAL.
Mariana Beraldo Santana do Amaral da Rocha
Orientadora: Profa. Doutora Arlete José Mota
ROCHA, Mariana Beraldo Santana do Amaral. “Rumpitur invidia quidam”: um estudo sobre
os conceitos de imitatio, aemulatio e plagium nos Epigrammata de Marcial, Rio de Janeiro,
2016. Abstract da dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do Título de Mestre em Letras Clássicas
The main purpose of this study is analyze the epigrams of Martial (39/41 - 103/104), bringing
to light the literary production of the ancient romans. Before to come to the point, we will
realize a small study on the general epigrammatic genre. After it intended to discuss the
imitatio and aemulatio processes, these understanding by the old rhetorical had as
conceptualization. Once it is understood the imitatio processes and aemulatio from the
perspective of ancient authors, we need to conceptualize these processes within what modern
theorists call intertextuality. To illustrate the process, will be necessary to analyze how the
epigramist worked with the indicated processes, especially when it comes to emulation
Catullus, declared master of the poet, Horace, emulated within a philosophical bias and Ovid,
emulated in around the theme of exile in his work. For the case of plagiarism in antiquity, it
will call upon the teachings of the Roman rights, without first understand the process of
copying and publication of a work at the time. Moreover, the work of Marcial features the
necessary scope in order to understand how it developed plagiarism addiction in antiquity, as
the poet was a pioneer when referring to the copyist of their works as plagiarist.
Keywords: Martial, epigram, plagiarism, imitatio, aemulatio.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
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SUMÁRIO
Resumo
Abstract
I – INTRODUÇÃO
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II – CAPÍTULO 1: “Toto notus in orbe Martialis”: a vida e obra do poeta
conhecido em todo mundo
20
III – CAPÍTULO 2: “Epigrammaton Liber”: noções sobre o gênero epigramático
na literatura clássica e em Marcial
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IV – CAPÍTULO 3: “Imitatio et aemulatio”: algumas noções
49
A imitatio em Marcial: as águas em que o poeta bebeu e se esbaldou
58
V – CAPÍTULO 4: “Rumpitur inuidia quidam”: e quando aparecem os
invejosos? Aspectos sobre o plágio nos epigramas de Marcial
95
4.1 O livro e sua circulação literária
95
4.2 Uma ameaça: o plágio em Marcial
105
VI – CONCLUSÃO
121
VII – BIBLIOGRAFIA
125
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I – INTRODUÇÃO
Marco Valério Marcial, epigramista romano, nasceu 39/40 e morreu por volta
103/104, em Bilbilis, na Hispânia Terraconense. Chega a Roma por volta do ano de 64 para
tentar a sorte na cidade e divulgar suas obras. Por falta de apoio recorre aos patronos e à
adulação aos poderosos, assim a venda de seus livrinhos se torna realidade. Sabe-se que o
poeta conseguiu alguns privilégios enquanto vivia em Roma. Adulou Tito com seu Liber
Spetaculorum e depois, com a chegada de Domiciano, adulou-o com o mesmo livro. Em
consequência, garantiu o ius trium liberorum, apesar de não ter filhos – a expressão vale para
o número de livros – e lhe foi conferida a ordem equestre, títulos dados por Tito e mantidos
por Domiciano. Louvou as qualidades do princeps e suas vitórias militares, propagando o
governo e suas realizações públicas. Não adula somente ao imperador, mas a todos que
faziam parte do mesmo círculo que ele.
A obra de Marcial chegou até os tempos atuais em sua totalidade, cerca de 1500
epigramas divididos em quinze livros publicados durante os trinta e quatro anos que o poeta
viveu em Roma. Inicialmente, para a elaboração deste trabalho, foi preciso traçar um histórico
sobre o poeta. Sabe-se que não existe nenhum tipo de texto biográfico que conte a história do
poeta, por isso atentou-se apenas nas informações que o próprio Marcial apresenta aos seus
leitores bem como o informativo de sua morte, dado por Plínio, o Jovem, amigo do
epigramista. Plínio declara a morte do poeta, em Ep. III, 21. Para entender melhor a vida e a
obra de Marcial, foi importante a leitura da tese de doutorado de GRAÇA (2012), intitulada
Roma na poesia de Marcial: imagens e ecos de um espaço físico e social, que apresenta um
importante painel sobre a vida do poeta bem como a sua variedade temática.
A distribuição dos seus livros não gerava lucros, quem ganhava com a circulação da
obra eram os livreiros da época, o poeta esperava outro benefício, a imortalidade de seus
escritos e alguma proteção de um patrono rico e influente. O patronato consistia numa prática
bastante comum em Roma, que consistia em uma relação baseada em troca de bens e
serviços: o patrono, possuidor de certo capital e bem relacionado em todas as esferas –
políticas, econômicas e culturais – “apadrinhava” alguns poetas, chamados de cliens, e o
poeta, por sua vez contribuía de alguma forma com o prestígio de seu protetor através de uma
saudação matinal, uma procissão ou uma citação em um poema. O protegido recebia em troca
uma pequena remuneração, um convite para ceia ou alguns pequenos benefícios. Havia certa
dependência de Marcial em relação aos seus patronos ricos e o epigramista se compara a
Virgílio e a Horácio, por conta dos favores que estes receberam de Augusto e Mecenas, além
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do retorno que os poetas lhes fizeram em seus livros. Ao tempo que bajulava, também
criticava seus patronos, e se queixa de sua situação econômica, pedindo ao seu leitor que
pagasse por seus epigramas. Para entender as questões sobre o patronato, foi necessária a
leitura da dissertação de mestrado de LEITE (2003), O patronato em Marcial. Cita-se
também, como fonte teórica importante, o artigo de VENTURINI (2001), intitulado Amizade
e política em Roma: o patronato na época imperial, onde, por exemplo, a autora afirma sobre
o patronato:
O sistema patronal mostrava-se como um veículo reprodutor da estrutura de poder
no qual era essencial à capacidade e a habilidade que o patrono demonstrava para a
aquisição de clientes.
O patronato se apresentava, portanto, como um sistema marcado pela ambiguidade e
pela flexibilidade. Ambiguidade na relação patrono/cliente, em função da
diversidade social que a envolvia, e flexibilidade no acesso para o conhecimento de
pessoas influentes no interior da sociedade romana, pois o cliente dependia, muitas
vezes, da apresentação de um patrono para fazer parte de um determinado círculo
político (2001, p. 222).
Após a apresentação sobre a vida e os aspectos relevantes sobre a obra de Marcial,
será preciso entender como o gênero epigramático se tornou um gênero literário efetivamente.
Em si, o epigrama representava toda sorte de pequenas inscrições, como as inscrições sob a
lápide de um ente querido, gravadas em qualquer tipo de superfície sólida que pudesse servir
de apoio a inscrição, marcadas pela seriedade e concisão. Eram em sua maioria escritos de
ocasião, para comemorar algum evento, falar de alguém já falecido ou bajular o dono da festa.
O epigrama, na Grécia Arcaica, ainda não se apresentava como um gênero literário, entretanto
durante o século V a.C., o epigrama adquire status de gênero literário, visto que houve uma
proliferação de escritos sob os moldes epigramáticos. No século IV a.C., o gênero é
reconhecido como tal e a temática é ampliada: não se trata somente de temas sérios, o
epigrama abre espaço para as homenagens, as descrições e as canções de amor.
Em Roma, antes do aparecimento do movimento dos poetae novi, quase não se ouvia
falar sobre a escrita epigramática, embora alguns estudiosos apontarem que Virgílio tenha
escrito alguns textos epigramáticos, por exemplo. Até o momento a literatura servia a
República e os poetas não expressavam as suas opiniões nos versos. É com os neotéricos,
século I a.C., que a poesia começa a transpor o sentimento do poeta. É neste espaço que o
epigrama ganha notoriedade e alargamento temático; agora o gênero trata de amor na mesma
maneira que trata de temas licenciosos, uma espécie de subversão dos seus valores
primordiais. Para entender melhor o gênero, foi preciso a leitura da dissertação de mestrado
14
de SILVA (2014), Escrever, sobrescrever: metalinguagem nos epigramas de Calímaco, onde
o autor versa sobre a escrita epigramática. Comenta o estudioso:
O verbo, epigráphō, que corresponde à forma nominal epígramma, é a descrição
precisa da forma primeira de transmissão desse tipo de texto: um epigrama deveria
ser inscrito, “escrito em”, a fim de fixar a memória cultural: divulgar leis e decretos
da pólis e assegurar o significado de monumentos e tumbas contra o esquecimento
do futuro. Levando-se em conta os testemunhos mais antigos que possuímos de
inscrições feitas no alfabeto grego, a prática teria se disseminado a partir do século
VIII a.C..
À medida que se tornava um gênero estimado, o epigrama ampliava sua definição.
Se nasce de algum modo inspirado nas inscrições públicas fúnebres ou votivas, em
meados do século IV a.C., o termo epígramma indica qualquer poesia breve, quase
sempre em dísticos elegíacos, já não mais necessariamente inscrita e de sabor
convival e de tom variado: poderia agora ser sentenciosa ou jocosa, humorística ou
ofensiva (2014, p. 10 e p.12).
Marcial foi o grande expoente do gênero e soube, em poucas linhas, falar de tudo e de
todos, se tornando uma espécie de cronista social da época. O gênero se tornou famoso em
Roma, além do poeta ser reconhecido em vida como autor de epigramas. Marcial escreveu
exclusivamente se valendo do gênero epigramático e soube aproveitar muito bem as
características cunhadas pelos seus antecessores gregos e pelo autor que lhe serviu de maior
inspiração, Catulo. Para entender a escrita epigramática em Marcial, a leitura da dissertação
de mestrado de CESILA (2004), Metapoesia nos epigramas de Marcial: tradução e análise,
foi relevante na estruturação das informações prestadas no capítulo em que se fala da
composição dos Epigrammata. Diz o autor sobre a estruturação dos epigramas de Marcial:
A maior contribuição de Marcial, segundo diversos autores (Conte, 1994: 508;
Gentili, 1987: 437-438; Citroni et al., 1991: 187; Martin & Gaillard: 1981: 409), está
no aperfeiçoamento e na primazia com que usou a técnica de produção do humor e
da graça no epigrama. Tal técnica, que já está presente na poesia helenística e,
sobretudo nos epigramas de Lucílio – poeta que escreveu em grego e viveu em
Roma na época de Nero –, consiste em estruturar a epigrama em duas partes: a
primeira, mais extensa, expõe, explica, desenvolve o tema, criando uma tensão e
uma expectativa no leitor, e deixa para a segunda parte, correspondente em geral ao
último verso ou às últimas palavras do poema, a frase picante, o dito mordaz, o
comentário inteligente e espirituoso, os elementos, enfim, responsáveis pelo humor e
pela graça do epigrama. O efeito da parte final é tanto maior quanto mais
surpreendente e inesperado for o elemento cômico nela presente (2004, p. 28).
A escolha temática se deu após a leitura do artigo de TORRÃO; COSTA (2010),
Inveja e emulação em Marcial: a vida e os costumes temperados com o sal romano. Após a
reflexão sobre o texto dos estudiosos, veio a seguinte questão: “Como se dava o processo de
criação de um texto na Antiguidade, principalmente nos escritos de Marcial?”.
15
Em inúmeros escritos, o poeta versa sobre o seu próprio fazer literário e sobre o
processo de criação literária, mas atentou-se para os escritos que fizeram alguma referência a
autores que vieram antes de Marcial na literatura latina. Para tal, a leitura do artigo intitulado
Autores de referência na obra de Marcial de TORRÃO (2004) foi um importante meio
informativo, pois o crítico elenca os autores que são citados em Marcial, desde aqueles mais
famosos, como Catulo até aqueles dos quais não se tem material escrito, como Pacúvio:
Uma leitura, por mais simples que seja da obra de Marcial faz-nos encontrar um
número bastante razoável de nomes de autores. De facto, Marcial utiliza alguns dos
seus epigramas para referir toda uma série de escritores de que possuímos pouca ou
nenhuma informação quer se trate de contemporâneos quer de autores mais antigos,
mas não deixa de nos referir também o nome de alguns outros que, já nessa altura,
apareciam como referência evidente na literatura latina e, em alguns casos menos
numerosos, também na literatura grega. Acontece até que, em algumas situações, a
divulgação destes nomes só é feita através dos epigramas do bilbilitano, como é o
caso de alguns contemporâneos do poeta (TORRÃO, 2004, p. 137).
Foi de extrema importância a leitura do artigo de FEDELLI (2004), Marziale
Catuliano, onde o estudioso italiano traz um importante comentário sobre a influência de
Catulo nos epigramas de Marcial. A partir daí, dentre inúmeros epigramas em que o poeta
alude aos versos catulianos, foram selecionados nove poemas, que passeiam nos temas
catulianos, como o pardal de Lésbia, por exemplo.
Um aspecto da vida de Marcial é um tanto curioso, o seu autoexílio em Bilbilis. O
distanciamento do poeta de Roma trouxe à luz o afastamento de Ovídio da Urbe. Embora por
motivos diferentes, Marcial se apropria dos sentimentos ovidianos para descrever o seu exílio
autoimposto: cansado da vida agitada da cidade e de sua condição de cliens, parte para a sua
terra natal. O tema se mostra recorrente na tese de doutorado de CENNI (2009), Ovidio e
Marziale: Tra poesia e retorica, e no artigo de CECCO e MANSILLA (2006), El libro como
embajador del exiliado. Intertextualidad de Ovidio en Marcial. Estas obras serviram de apoio
para a análise dos epigramas selecionados.
Por fim, apesar de os escritos de Marcial serem essencialmente irônicos, a dissertação,
no terceiro capítulo, tem como objetivo mostrar alguns escritos de Marcial que têm algum
viés filosófico. Para tal, o epigrama I, 15 foi o ponto de partida para a exemplificação. Neste,
Marcial lança mão do tema epicurista do carpe diem e traz ecos da ode I, 11, de Horácio. A
leitura do artigo de BRANDÃO (1998), Marcial e o amor a liberdade, foi necessária para
entender alguns aspectos da doutrina epicurista e como esta se desenvolveu nos epigramas de
Marcial.
O mihi post nullos, Iuli, memorande sodales,
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si quid longa fides canaque iura valent,
bis iam paene tibi consul tricensimus instat,
et numerat paucos vix tua vita dies.
non bene distuleris videas quae posse negari,
et solum hoc ducas, quod fuit, esse tuum.
exspectant curaeque catenatique labores,
gaudia non remanent, sed fugitiua volant.
haec utraque manu conplexuque adsere toto:
saepe fluunt imo sic quoque lapsa sinu.
non est, crede mihi, sapientis dicere 'Vivam'
sera nimis vita est crastina: vive hodie.
5
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(Amigo, Júlio, antes do qual ninguém conta-me,
se as leis têm crédito e fidelidade nos antigos,
já quase o sexagésimo cônsul te segue de perto
e com dificuldade a tua vida conta poucos dias.
Parece mal que retardes o que pode negar
e somente tomes ser teu o que passou.
Esperam cuidados e trabalhos encadeados,
as alegrias não permanecem, mas, passageiras, voam.
Segura com as duas mãos e com os braços,
mesmo assim escorrem, passando pelo peito.
Não é sábio, creia em mim, dizer: ‘Viverei!’
Demasiadamente tarde vem a vida de amanhã: vive o hoje!)
Com o corpus reunido, será preciso trabalhar com os conceitos que Marcial apresenta
nesses epigramas: imitatio e aemulatio. Para os antigos, a imitatio consistia na imitação de
modelos tradicionais, de estilos, de temas anteriores, de reprodução da natureza enfim de tudo
que caracterizava uma referência, vinculada a uma tradição. Na Antiguidade era esperado dos
autores que imitassem aos escritores do passado, que suas obras se igualassem aos modelos
antigos e esta imitação tinha que ser expressa e conhecida, senão seria plágio. Não bastava ao
autor imitar: o ato da imitatio vinha acompanhado do desejo de superação, chamado de
aemulatio, sentimento que leva o indivíduo a igualar ou superar algo/alguém por mérito e
consiste no esforço contínuo para igualar a alguém em alguma coisa. Há outra definição para
a aemulatio, que diz respeito a uma homenagem feita àquela pessoa que o poeta admira. Por
muitas vezes Marcial se deixou levar pela admiração de alguns poetas. O fez às vezes apenas
com uma menção discreta a alguns autores que lhe serviam de referência. Mas há várias
menções diretas, por exemplo, a Catulo – poeta que lhe serviu de referência para a escrita
epigramática e a Ovídio, em especial, ao seu exílio.
Para entender esses conceitos, foi de valia a leitura da tese de doutorado de PRATA
(2007), O caráter intertextual dos Tristes de Ovídio: uma leitura dos elementos épicos
virgilianos. Não obstante, para que se compreendesse melhor o tema, foi necessária a leitura
17
de diversos autores, como os elencados a seguir: CONTE; BARCHIESI (2010), no primeiro
capítulo, Imitação e arte alusiva: modos e funções de intertextualidade, do livro Espaço
Literário da Roma Antiga. Vol. 1: A produção do texto, de onde foram retiradas inúmeras
informações essenciais para que se entendesse o mecanismo de alusão – termo usado pelos
autores e PASQUALI (1968), no artigo, Arte Allusiva, importante divisor de águas sobre o
pensamento do processo imitativo. E por fim, RUSSEL (1979), no capítulo De imitatione, do
livro Creative imitation and Latin literature, que trouxe um panorama sobre o conceito de
imitatio na Antiguidade.
Para entender o processo de imitatio, cita-se, como exemplo
VASCONCELLOS (1999):
(...) a imitatio é uma arte poética sutil, criadora de sentido, amplamente praticada e
especialmente evidente na poesia latina. Até o momento, só é encontrado nos
antigos as referências ao caráter emulativo da imitação e especialmente a sua função
de ornamento, como se citar um predecessor ilustre significasse nada mais que
emprestar algo do seu brilho e excelência ou medir forças com ele (p. 86).
Outro questionamento se fez latente, no decorrer dos estudos para a redação desta
dissertação: “Existia direito autoral na Antiguidade?”. Em busca de respostas, foi preciso
pensar sobre os mecanismos de produção e publicação de um livro na Antiguidade, para isso a
tese de doutorado de LEITE (2008), O universo do livro em Marcial e o artigo The circulation
of literary texts in the Roman world, de STARR (1987), foram essenciais para o entendimento
destes mecanismos. O primeiro apresenta em que materiais os livros eram escritos e como se
dava a preparação dos manuscritos, o segundo, as diversas maneiras pelas quais um livro pode
ser divulgado e/ou publicado.
O primeiro contato com o terceiro conceito estudado nesta dissertação se deu após a
leitura do anexo II da dissertação de mestrado de CESILA (2004), Marcial e as origens do
termo plágio. Com seus escritos, Marcial ficou conhecido por toda Roma: esta elogiou, amou
e cantou seus livrinhos. O epigramista ainda diz que seus textos estavam em todos os bolsos
romanos, mas sua fama, além do reconhecimento, trouxe alguns dissabores, como ser copiado
por muitos. Em alguns de seus epigramas, em sua maioria irônicos, o poeta delata a tal
prática, cita nomes próprios, embora não se possa afirmar a veracidade destes – um Fidentino
era o alvo predileto do poeta, por exemplo.
Para maior entendimento sobre o plágio, se fez indispensável buscar outros textos que
servissem de apoio teórico para a escrita, como o artigo de ZANINI (2013), A tutela das
criações intelectuais e a existência do direito de autor na Antiguidade Clássica, que foi
essencial para que o plágio fosse entendido no âmbito do direito e por traçar um importante
18
histórico sobre o plágio. A tese de doutorado Intertextualidade e Plágio: questões de
linguagem e autoria, de CRISTOFE (1996), serviu para solucionar as diferenças entre o
processo de imitatio e o plágio. O livro The plagiarism in latin literature, de MCGILL
(2012), serviu de importante texto para a seleção do corpus do quarto capítulo desta
dissertação, além de traçar um essencial histórico sobre o plágio na história da literatura
clássica.
Por fim, após a seleção do corpus, foi importante a análise e a tradução dos textos
como também a redação dos comentários relevantes para a dissertação. Quanto à tradução dos
originais latinos, esclarece-se que os textos em que não é nomeada a autoria da tradução,
foram traduzidos pela autora deste trabalho, no entanto para o poema II de Catulo, valeu-se da
conhecidíssima tradução de João Angelo Oliva Neto (CATULO, 1996) e para os textos de
Ovídio, recorreu-se a Patrícia Prata (PRATA, 2007), as demais traduções serão indicadas nas
notas desta dissertação. Tal escolha se deve a um propósito de homenagear as já tradicionais
publicações de tradução dos autores latinos, consideradas academicamente como excelentes.
Deve-se salientar ainda, que, para uma maior compreensão do texto de Marcial, recorreu-se a
um cotejo com um importante trabalho a respeito dos epigramas de Marcial: a tese de
doutorado de CAIROLLI (2014), Marcial Brasileiro, primeira tradução na íntegra de toda a
obra de Marcial feita no Brasil.
A escolha do título desta dissertação se deu em respeito ao epigrama I, 1 (vv.1-2) –Hic
est quem legis ille, quem requiris, / Toto notus in orbe Martialis – “Este aquele que lês,
aquele que buscas: Marcial, conhecido em todo o orbe”. Por ser tão conhecido, se vê exposto
à inveja. Plagiários e invejosos o cercam, como se pode observar, por exemplo, no epigrama
IX, 97. Neste, dirigindo-se ao seu amigo Júlio, cita um invejoso (não nomeado) que “estoira”
de inveja por causa de seus epigramas. O poeta nem sempre foi capaz de controlar a sua ira
diante das afrontas que levava por conta dos cobiçosos de sua fama notória. Segue o poema,
com exímia tradução de TORRÃO; COSTA (2010, p. 76):
Rumpitur invidia quidam, carissime Iuli,
quod me Roma legit, rumpitur invidia.
rumpitur invidia quod turba semper in omni
monstramur digito, rumpitur invidia.
rumpitur invidia tribuit quod Caesar uterque
ius mihi natorum, rumpitur invidia.
rumpitur invidia quod rus mihi dulce sub urbe est
parvaque in urbe domus, rumpitur invidia.
rumpitur invidia quod sum iucundus amicis,
quod conviva frequens, rumpitur invidia.
5
10
19
rumpitur invidia quod amamur quodque probamur:
rumpatur quisquis rumpitur invidia.
(Estoira de inveja um fulano, caríssimo Júlio,
porque Roma inteira me lê, estoira de inveja.
Estoira de inveja por, em todos os ajuntamentos,
com o dedo me indicarem, estoira de inveja.
Estoira de inveja por dois Césares me facultarem
o direito dos três filhos, estoira de inveja.
Estoira de inveja por eu ter uma grata quinta suburbana
e uma pequena casa urbana, estoira de inveja.
Estoira de inveja por eu ser o deleite dos amigos,
por ser muito convidado, estoira de inveja.
Estoira de inveja porque sou amado e aplaudido.
Estoire então quem quer que estoire de inveja.)
Embora se reconheça que existam inúmeros estudos voltados para os temas que serão
trabalhados, tem-se como propósito apresentar os aspectos mais relevantes em cada conceito e
como esses conceitos relacionam-se dentro da obra de Marcial. O poeta trabalhou à exaustão
com os conceitos de imitatio e aemulatio e condenou o exercício do plágio, visto que o ato de
plagiar anularia o seu direito sobre a obra e, consequentemente, o seu pouco lucro – além de
uma possível glória e proteção de alguém influente. Através de uma linguagem de fácil
entendimento, objetiva-se direcionar o estudo dos conceitos listados, apresentando as teorias
de diversos estudiosos e trazendo a conceituação dos termos, segundo os próprios autores
antigos.
20
II – CAPÍTULO 1: “Toto notus in orbe Martialis”: a vida e obra do poeta conhecido em
todo mundo
A trajetória de vida de Marcus Valerius Martialis1 encontra-se quase que inteiramente
em seus mais de 1500 epigramas escritos durante o reinado de Tito, Domiciano – em sua
maioria, Nerva e Trajano. Tem-se conhecido, portanto que o poeta nasceu em Bilbilis, na
Espanha Tarraconense, no mês de março como narra no epigrama X, 24 e X, 29, entre 39 e
41, ainda que haja dúvidas em uma datação mais precisa. Segue como exemplo o epigrama X,
24:
Natales mihi Martiae Kalendae2,
lux formosior omnibus Kalendis,
qua mittunt mihi munus et puellae,
quinquagensima liba septimamque
vestris addimus hanc focis acerram.
his vos, si tamen expedit roganti,
annos addite bis precor novenos,
ut nondum nimia piger senecta,
sed vitae tribus areis peractis
lucos Elysiae petam puellae.
post hunc Nestora nec diem rogabo.
5
10
(As calendas de março nas quais eu nasci,
dia formosíssimo de todos os meses,
quando as meninas enviam presentes a mim,
é a quinquagésima sétima vez
que unimos em seu altar de incenso.
Se convier a quem roga, a tantos anos,
adicionem mais dezoito, peço,
para que a velhice não seja preguiçosa em demasia,
mas cumpridas as três fases da vida,
suplique à virgem Elísia, os sacros bosques.
Não rogo um dia a mais que os de Nestor.)
Segundo o que se lê no epigrama V, 34, seus pais foram Frontão e Flacila. Neste
poema, o poeta narra a morte de alguém muito querido e pede que seus pais cuidem da alma
1
Seu nome sugere ser realmente de um cidadão romano, mas o poeta fala que é descendente dos celtas e iberos e
que sua aparência era de um homem com feições duras com cabelo hispânico, em X, 65,7. É preciso lembrar que
a obra do poeta não é biográfica, por isso as informações sobre a vida de Marcial pode não ser tão precisas e
verdadeiras.
2
Originalmente, os romanos comemoravam o ano novo e a posse de um novo cônsul nesta data como também
indicava o retorno às atividades normais. LEWIS (1890, p. 453) aponta que era no mês de março que ocorriam
as festividades para as mulheres casadas, as Matronalia.
21
de Erócio3 a pequena escrava que trabalhava na casa do poeta e que faleceu muito jovem, aos
seis anos de idade. Alguns estudiosos questionam a veracidade da informação, pois acreditam
que Frontão e Flacila são pais da menina e não do poeta4.
Hanc tibi, Fronto pater, genetrix Flaccilla, puellam
oscula commendo deliciasque meas,
parvola ne nigras horrescat Erotion umbras
oraque Tartarei prodigiosa canis.
impletura fuit sextae modo frigora brumae,
5
vixisset totidem ni minus illa dies.
inter tam veteres ludat lasciva patronos
et nomen blaeso garriat ore meum.
mollia non rigidus caespes tegat ossa, nec illi,
terra, gravis fueris: non fuit illa tibi.
10
(A esta menina recomendo, Frontão, pai e Flacila, mãe,
os meus beijos e carinhos,
que a pequenina Erócio não tema as negras e estupendas
sombras e a boca do cão do Tártaro.
Completaria o frio de seis invernos,
se ela tivesse vivido mais seis dias.
Que jovial brinque entre os patronos tão velhos
e o meu nome murmure gaguejando.
Que um solo rígido não cubra os ossos delicados,
que não sejas para ela, ó terra, um peso: ela não o foi para ti.)
Marcial relata que foram os seus pais que lhe ensinaram o caminho das letras 5, uma
profissão onde não se veem muitos lucros quando comparada a outras profissões, que buscam
o enriquecimento a qualquer custo.
O poeta chegou a Roma no ano de 64, época do grande incêndio da cidade, ficando
sob a proteção do Círculo de Sêneca, onde permaneceu durante trinta e quatro anos, como
deixa a entender em X, 103.
Municipes Augusta mihi quos Bilbilis acri
monte creat, rapidis quem Salo cingit aquis,
ecquid laeta iuvat vestri vos gloria vatis?
nam decus et nomen famaque vestra sumus,
3
Marcial dedica três epigramas à menina, são eles V, 34; V, 37; e X, 61. Nos três percebe-se uma ternura para
com a menina não muito comum nos textos do poeta, que estava acostumado a atacar os vícios de seus
personagens.
4
Bell (1984, p. 21-24) confirma a informação que Frontão e Facila são pais do poeta e não da escravinha morta,
mas aponta que a menina pode ser filha do poeta, fato que carece de confirmação.
5
IX, 73, 7: at me litterulas stulti docuere parentes – “a mim, meus pais, tontos, me ensinaram as letrinhas” –
tradução nossa.
22
nec sua plus debet tenui Verona Catullo
5
meque velit dici non minus illa suum.
quattuor accessit tricesima messibus aestas,
ut sine me Cereri rustica liba datis,
moenia dum colimus dominae pulcherrima Romae:
mutavere meas Itala regna comas.
10
excipitis placida reducem si mente, venimus;
aspera si geritis corda, redire licet.
(Compatriotas, que a Augusta Bilbilis cria,
no alto monte, que o Salão cerca com águas passageiras,
é agradável a glória favorável deste vate?
Sou vossa glória, nome e fama, pois
não deve ser mais do que o superficial Catulo a Verona
e ela não desejaria menos do que dizer que sou seu filho.
Trinta e quatro verões passaram sem mim,
oferece a Ceres os rústicos presentes
enquanto habito os belíssimos muros da Senhora Roma:
os domínios ítalos mudaram os meus cabelos.
Se me recebeis com ânimo plácido, eu chego;
se ásperos corações conserveis, é permitido eu regressar)
Não se sabe muito detalhes de sua vida durante os primeiros vinte anos após sua
chegada à Vrbs. Após a conjuração dos Pisões (em 65), Marcial perde o apoio do Círculo de
Sêneca e procura um novo esteio nos patronos e passa a vender suas poesias. O poeta nada
publicou durante seus primeiros dezesseis anos na Urbe, seu primeiro livro de epigramas não
foi publicado antes do ano 80. Em II, 90, o poeta justifica a Quintiliano o motivo de não
advogar, uma vez que teria estudado para isso, o que dificultou seu sustento em Roma,
ficando destinado à condição de cliens:
Quintiliane, vagae moderator summe iuventae,
gloria Romanae, Quintiliane, togae,
vivere quod propero pauper nec inutilis annis,
da veniam: properat vivere nemo satis.
differat hoc patrios optat qui vincere census
atriaque inmodicis artat imaginibus:
me focus et nigros non indignantia fumos
tecta iuvant et fons vivus et herba rudis.
sit mihi verna satur, sit non doctissima coniunx,
sit nox cum somno, sit sine lite dies.
5
10
(Quintiliano, sumo guia da juventude errante.
Quintiliano, glória da toga romana.
Porque acelero o viver dos anos pobre e inútil,
conceda-me um pedido: ninguém acelera o suficiente a vida.
Retarda aquele que escolhe superar as pátrias posses
23
e átrios e se enche de imagens desmedidas:
um fogo – não os indignos fumos negros –,
um teto, uma fonte viva e uma erva rude me bastam.
Que eu possua um escravo saciado e uma mulher não tão
habilidosa,
que eu tenha uma noite com sono e um dia sem disputa.)
Aos poucos, o poeta sente falta de sua terra natal, Roma não tinha mais atrativos que
prendessem o poeta. Desiludido regressa a Bilbilis, por volta do ano 98/99. Lá, o poeta
encontrou ajuda em uma espécie de patrona, Marcela, que oferece uma propriedade rural,
onde o poeta pôde desfrutar do descanso do campo. Mas o poeta sente falta da barulhenta
Urbe, como narra no prólogo do livro XII.
A sua morte ocorre em 103/104, em Bilbilis e é anunciada por Plínio, o Jovem, na
epístola III, 21, escrita para Cornélio Prisco. Plínio descreve que ofereceu os recursos
necessários a Marcial para que voltasse para Bilbilis, como recompensa pelo epigrama X, 20,
em que foi homenageado: Audio Valerium Martialem decessisse et moleste fero. Erat homo
ingeniosus acutus acer, et qui plurimum in scribendo et salis haberet et fellis nec candoris
minus. – “Ouço e aflijo-me, pois, Valério Marcial morreu. Era um homem espirituoso,
aguçado, ácido e que, escrevendo, possuía muitíssimo de fel e sal e não menos de candura.”.
Os epigramas de Marcial visam os ataques impessoais principalmente, para isso
recorre ao uso de nomes fictícios, segundo o próprio poeta. Observa-se, entretanto que estes
nomes poderiam ter algum significado, pois sua escolha poderia realçar alguma característica
que estava sendo descrita. Ao criticar os vícios da Urbe do século I, fazia uso da ironia, do
humor e da mordacidade, elementos típicos da escrita epigramática. Todo tipo de anomalia
social é observada nos versos do poeta.
Em contrapartida, quando o poeta elogiava alguém, ele usava o nome verdadeiro,
como maneira de imortalizar a pessoa digna de homenagem, além disso, estava sempre em
busca de alguma recompensa, como algum apoio de um patrono, que lhe garantisse a
sobrevivência na agitada Roma. A poesia de Marcial agradava a quaisquer tipos de leitores,
pois ali era encontrada uma vivacidade palpável e uma poesia que se opunha aos gêneros
maiores – gêneros em que se produziam textos que, segundo o poeta, eram pouco lidos, como
se percebe em IV, 49, 9-10:
“Illa tamen laudant omnes, mirantur, adorant.”
Confiteor: laudant illa, sed ista legunt.
(“Aquelas, porém, todos as louvam, admiram, veneram.”
24
De acordo: louvam-nas, sim, mas são estas que leem.)
Era na época das Saturnais6 que Marcial revela ao público os seus livros. A sua criação
literária se igualava aos festejos, pois ela se despia de toda a aparência e austeridade assim
como a época das festas.
Com o ofício de poeta, Marcial não obteve muito retorno financeiro. Então, para
sobreviver, viveu como cliens, fazendo o que não lhe agradava, uma vez que havia muitas
obrigações e muitos patronos ingratos. Mas o seu ofício lhe rendia algum fruto, ao vender
seus livrinhos aos livreiros e editores da época. Em I, 3 cita a loja de Argileto, onde seus
livros eram vendidos:
Argiletanas mavis habitare tabernas,
cum tibi, parve liber, scrinia nostra vacent.
nescis, heu, nescis dominae fastidia Romae:
crede mihi, nimium Martia turba sapit.
maiores nusquam rhonchi: iuvenesque senesque
et pueri nasum rhinocerotis habent.
audieris cum grande sophos, dum basia iactas,
ibis ab excusso missus in astra sago.
sed tu ne totiens domini patiare lituras
neve notet lusus tristis harundo tuos,
aetherias, lascive, cupis volitare per auras:
i, fuge; sed poteras tutior esse domi.
5
10
(Antes queres habitar as lojas do Argileto,
quando, parco livro, entregam-te os meus escrínios.
Ignoras, ai! Ignoras a aversão da soberana Roma.
Creia em mim, a multidão marcial gosta muito.
Nenhuma parte tem maiores sons: os jovens, os velhos
e as crianças possuem nariz de rinoceronte.
Quando grandes aplausos ouvires, enquanto lanças beijos,
irás para os astros, envolvido por um bem esticado manto.
A fim de não sentires por tantas vezes as correções do dono
e para que uma triste pena não reprove tuas zombarias.
Lascivo! Desejas voar em etérias brisas.
Vá, foge! Mas estar em casa podia ser mais seguro.)
Os epigramas de Marcial se dividem entre quinze livros: o primeiro conta com trinta
composições, Liber Spetaculorum, contendo os relatos de diversos espetáculos realizados
durante a inauguração do Anfiteatro Flávio, o Coliseu, no ano 80, sob o comando do
6
As Saturnais consistiam em um festival em honra a Saturno e ocorria no mês de dezembro – entre os dias 17 a
23, no solstício de inverno. O festival se iniciava com grandes banquetes e sacrifícios. Um costume comum na
Saturnália era visitar os amigos e trocar de presentes.
25
imperador Tito. Em seu repertório, Marcial se apresenta como um espectador atento dos
espetáculos, entregando aos seus leitores uma grande contribuição documental sobre o que
ocorria dentro da arena durante os cem dias de festa.
Acompanhando uma ordem de publicação, logo após o Liber Spetaculorum, o poeta
publica por volta de 83/84 o Xenia (numerado em sua coletânea como o livro XIII), 127
dísticos elegíacos que vinham acompanhando pequenos presentes nos festejos das Saturnais.
Em 85, Marcial publica os Apophoreta (numerado em sua coletânea como o livro XIV), 223
dísticos que tratam dos alimentos ofertados e consumidos nos festejos, os versinhos eram
sorteados nos banquetes e as pessoas os levavam pra casa.
Há um conjunto de epigramas, os chamados Epigrammata, que representam a maioria
dos textos do epigramista. A obra é composta por doze livros, publicados a partir de 86.
Seguindo a ordem dada por estudiosos do poeta7, os livros I e II foram publicados em 86; o
livro III8, no final de 87; o IV, em 89; em dezembro de 90, foi publicado o livro V; o VI, em
dezembro de 91; o VII, em dezembro de 92; em dezembro de 94, o livro VIII; o IX, na
primavera de 95; o X, em dezembro de 95 – a primeira edição e a segunda edição, em meados
de 98; o XI, em dezembro de 96; e entre 101/102, o livro XII. Os textos reunidos no conjunto
possuem uma variedade temática fabulosa, ali, o poeta soube transmitir o passear nas ruas
romanas, os jantares, os banhos, os costumes daquele povo multifacetado do final do século I.
CESILA (2004, p.33) aponta que, “na maioria dos epigramas, no entanto, a linguagem
empregada é mais próxima da do dia-a-dia, em consonância com o aspecto fortemente realista
da poesia de Marcial. As características de seu estilo – os temas, a linguagem, os metros e
técnicas utilizados, etc.”.
No decorrer da leitura, o leitor esbarra com inúmeros tipos de personagens que foram
compostos pelo poeta. Marcial parece sentir alguma atração pelo grotesco e pelo diferente,
pois aborda todo tipo de comportamento e, sobretudo, escreve sobre uma Roma viva, que
apesar de está presa em um passado glorioso, corre a passos largos para o futuro. O
epigramista faz uso dos mecanismos jornalísticos para noticiar o aqui e o agora dos romanos,
tornando-se um cronista de hoje na Roma de ontem9.
7
CESILA (2004, p.32), comenta: “A atual ordenação da obra completa de Marcial – derivada, segundo Conte
(1994), de uma edição feita após a morte do poeta – numera as coleções dos Xenia e dos Apophoreta como os
livros XIII e XIV, ficando à parte, sem numeração, o Liber Spectaculorum”.
8
Na época da publicação do livro III, o poeta não se encontrava em Roma, estava no Fórum de Cornélio.
Marcial já se mostrava cansado da falta de recursos e da recepção desgastada de seus livros. (Cf. CESILA, 2012,
p. 5)
9
(PIMENTEL, 1992, p. 165-186.)
26
Em um primeiro momento, Marcial poderia ser considerado um poeta sem muitos
ganhos financeiros, que vivia sob condições sociais degradantes, pois, como cliens, parecia
mendigar para conseguir algumas regalias ou apenas um convite para jantar de seus patronos,
que por vezes poderiam ser mesquinhos em relação aos seus clientes. Esta situação e os seus
pormenores se tornavam matéria epigramática para os seus livros. Mas parece que o poeta
brinca com a consciência do leitor, ao narrar os seus percalços como cliens e a sua situação de
pobreza extrema. Todavia será que o poeta seria mesmo tão miserável?
A pobreza descrita parece dúbia, uma vez que o poeta tinha alguns privilégios em
Roma. Marcial homenageou a Tito com o Liber Spetaculorum em 80 e, com o mesmo livro,
homenageia o seu sucessor, Domiciano. Como recompensa por seu trabalho, lhe foi concedida
a vantagem do ius trium liberorum – “o direito sobre os três filhos10”, sendo prova de seu
caráter literário e não pela sua situação familiar, já que o poeta era solteiro.
A vantagem consistia em uma série de direitos e privilégios concedidos por Augusto
através da Lex Papia Poppaea11 do ano 9, que incentivava o casamento e a procriação, e era
destinada aos cidadãos casados e que possuíam filhos. Assim se recompensava os romanos
que tivessem pelo menos três filhos ou cidadão liberto que tivesse, no mínimo, quatro filhos.
Mais tarde, a lei passa a ser um favor concedido a qualquer pessoa, mesmo solteira e sem
filhos, como foi concedido a Marcial por Tito e ratificado por Domiciano, visto que o
imperador sucessor tinha que ratificar as medidas do seu antecessor. Marcial, em II, 9212,
mostra que lhe foi concedida tal vantagem.
Natorum mihi ius trium roganti
Musarum pretium dedit mearum
solus qui poterat. Valebis, uxor:
non debet domini perire munus.
(O direito dos três filhos, a mim que o pedia,
deu como prêmio por minhas Musas,
o único que podia concedê-lo. Vai-te embora, esposa!
O benefício do senhor não se deve desperdiçar.)
Além das vantagens do ius trium liberorum, foram concedidos ao poeta os títulos de
tribunus e eques, como é narrado em III, 95. Citam-se deste epigrama os versos 1 a 9:
10
(FITZGERALD, 2007, p. 12 e p. 136.)
A lei foi introduzida pelos cônsules M. Papius Mutilus e Q. Poppaeus Secundus. (SMITH, 1859).
12
Ver também: II, 91.
11
27
Numquam dicis have sed reddis, Naevole, semper,
quod prior et corvus dicere saepe solet.
cur hoc expectas a me, rogo, Naevole, dicas:
nam, puto, nec melior, Naevole, nec prior es.
praemia laudato tribuit mihi Caesar uterque
natorumque dedit iura paterna trium.
ore legor multo notumque per oppida nomen
non expectato dat mihi fama rogo.
est et in hoc aliquid: vidit me Roma tribunum.
5
(Nunca dizes olá, mas respondes, Névolo, sempre
e até o corvo tem o costume de saber dizer.
Porque esperas de mim? A mim, rogo, Névolo, que digas.
Com efeito, nem és melhor, Névolo, nem és o primeiro.
Os dois césares concederam o prêmio a mim,
deram como o pai de três filhos tem direito.
Sou lido por muitos e um nome conhecido na cidade,
a mim, deu fama ao rogo inesperado.
Há algo mais nisso: Viu-me tribuno em Roma.)
O comportamento bajulador de Marcial pode ser considerado como tática de sua
posição como cliente. Ao louvar ao imperador à época, o poeta faz uma espécie de
propaganda para o governante, para receber em troca alguns benefícios e ganhos pessoais.
É importante acrescentar que a maior parte da obra de Marcial foi escrita durante o
governo de Domiciano (81- 96) – alguns de seus livros foram dedicados a ele, como o livro
V13. Marcial muitas vezes faz uso de epítetos como Caesar e dominus. Segundo Suetônio14
foi o próprio Domiciano quem institui os epítetos dominus e deus para que se dirigissem a ele.
Cite-se, como exemplo de dedicatória, o prefácio do livro VIII, escrito em prosa, onde
Marcial assim saúda a Domiciano: Imperatori Domitiano Caesari Augusto Germanico Dacico
Valerivs Martialis S. – “Valério Marcial saúda o Imperador Domiciano César Augusto
Germânico Dácico”.
Segundo o próprio poeta, além dos títulos e vantagens, ele possuía um pequeno
apartamento em Roma, próximo ao templo de Quirino, onde habitavam muitas famílias. Em I,
86, Marcial fala de um de seus vizinhos, Nóvio e ainda fala que o lugar em que vive é
pequeno, pois ele consegue alcançar a janela de Nóvio. O poeta possuía também uma pequena
13
Acrescente-se que não foram publicados durante o governo de Domiciano os epigramas do Liber
Spetaculorum, escritos durante o governo de Tito. Além deste, a reedição do livro X e o livro XII foram
publicados sob o principado de Trajano e o livro XI sob o governo de Nerva.
14
(PIMENTEL, 2004, p.22.)
28
quinta em Nomento, a 23 km da Urbe, dada possivelmente por Polla, viúva do poeta Lucano,
como ele narra em VI, 4315.
Marcial narra que viveu por muitos anos sendo cliens de algum patrono abastado e
influente. Segundo VENTURINI (2008), o sistema patronal se apresentava como reprodutor
da estrutura de poder no qual era essencial que o patrono demonstrasse sua habilidade para a
aquisição de clientes. E o sistema era marcado pela ambiguidade, onde havia direitos e
deveres para ambos os envolvidos e flexibilidade no acesso do cliente para as pessoas
influentes daquele tempo, pois cabia ao patrono apresentar seu cliente a um determinado
círculo político e/ou literário16. LEITE (2003, p. 26) aponta que durante o Império, o
patronato representava a solução para a necessidade de manutenção e reprodução de poder:
“O patronato criou as condições necessárias para que o poder central do Imperador fosse
sentido em todos os pontos do Império, de forma rápida e sutil.”.
O patrono e o seu cliente tinham seus direitos e deveres. Cabia ao patrono ser
mediador de seu protegido, garantindo-lhe o acesso aos bens que o indivíduo, sem o apoio do
senhor, não conseguiria e também estabelecia a ponte para a integração social. Ainda cabia ao
senhor defender seu protegido em questões financeiras e/ou jurídicas. Em II, 13, Marcial narra
a função de advogado que o patrono deveria exercer:
Et iudex petit et petit patronus:
solvas censeo, Sexte, creditori.
(E o juiz pede e pede um patrono.
Aconselho, Sexto, pague ao credor.)
Cabia igualmente ao patrono outorgar uma toga aos seus clientes para que se
apresentassem conforme a ocasião e o estatuto. Inclusive os artistas, principalmente os que
praticavam as artes escrita, poética ou histórica, procuravam um patrono que os apoiasse e
financiasse, em verdadeira relação de mecenato.
Os clientes também tinham seus deveres – officium. Logo pela manhã, os clientes
faziam visitas ao patrono, vestidos de toga e eram recebidos mediante a uma ordem de
hierarquia, a saudação era denominada salutatio. Também era dever do cliente recomendar o
patrono – commendatio e dar apoio através do voto ao patrono – suffragatio, o que não
ocorria mais no principado. Sobre a saudação matinal, Marcial narra em V, 22:
15
16
Ver também sobre esse assunto os epigramas I, 117 e II, 38.
(2001, p.222).
29
Mane domi nisi te volui mervitque videre,
sint mihi, Paule, tuae longius Esquiliae.
sed Tiburtinae sum proximus accola pilae,
qua videt anticum rustica Flora Iovem:
alta Suburani vincenda est semita clivi
et numquam sicco sordida saxa gradu,
vixque datur longas mulorum rumpere mandras
quaeque trahi multo marmora fune vides.
illud adhuc gravius quod te post mille labores,
Paule, negat lasso ianitor esse domi.
exitus hic operis vani togulaeque madentis:
vix tanti Paulum mane videre fuit.
semper inhumanos habet officiosus amicos:
rex, nisi dormieris, non potes esse meus.
5
10
(Se logo cedo não quis nem mereci te ver em casa,
de mim fique longe, Paulo, tua Esquila.
Mas estou próximo do pilar de Tiburtina,
onde a campestre Flora vê o antigo Júpiter:
a alta travessa há que vencer da Cadeira em Suburra
e em degraus nunca secos as pedras sórdidas
e com dificuldade é dado romper através das mulas
e dos mármores trazidos a muitas cordas.
O que é grave até agora depois de mil tarefas?
Paulo, o porteiro, nega a este fatigado que não está em casa.
Este é o resultado da vã obra, da toga molhada.
Não valeu à pena ver Paulo de manhã.
Sempre aquele que é atencioso possui amigos desumanos,
Ó rei, se não dormires, não podes ser meu.)
Em III, 46, cansado de suas obrigações como cliente, Marcial envia um liberto para
saudar seu patrono Cândido, diferentemente do que fizera em III, 4, quando manda que seu
livro vá cumprir suas tarefas em seu lugar. O poeta, na ocasião da publicação de seu terceiro
livro, se encontrava em outra cidade – sua saída da Vrbs reflete a sua insatisfação com a sua
condição de cliente.17 Segue o epigrama III, 4:
Romam vade, liber: si, veneris unde, requiret,
Aemiliae dices de regione viae;
si, quibus in terris, qua simus in urbe, rogabit,
Corneli referas me licet esse Foro.
cur absim, quaeret; breviter tu multa fatere:
"non poterat vanae taedia ferre togae."
17
5
Sobre este tema e a insatisfação do poeta têm-se os poemas X, 70 e XI, 24: as obrigações eram tantas que o
poeta não tinha tempo para escrever seu livro. Em X,74, Marcial já está cansado de tantas obrigações como
cliente.
30
"quando venit?" dicet; tu respondeto: "Poeta
exierat: veniet, cum citharoedus erit."
(Para Roma, vai, livro. Se de onde vens questionarem,
dirás da região da via Emília.
Se nas terras e cidades por onde estivermos questionarem,
podes afirmar: no Fórum Cornélio.
Porque me ausentei? Tu confessas brevemente:
“Não pode suportar o tédio em toga vã.”
“Quando vem?” - Dirão. Tu responderá: “ O poeta
desterrou-se: voltará quando for um citaredo.”)
Havia na Urbe todo tipo de cliente, como Marcial, havia aquele que precisava da
sôfrega sportula para sobreviver, que originalmente seria uma cesta de refeição para se
substituir o hábito de oferecer um jantar aos clientes, durante a época imperial, passou a ser
uma quantia em dinheiro, em substituição do convite para jantar – o que não retirava
totalmente a obrigação de se oferecer um jantar ao cliente, uma vez que, nos locais onde se
oferecia o jantar, criava-se um ambiente para novas possibilidades de contatos entre as
pessoas, além de representar um símbolo de prestígio para os clientes. Para Marcial, um
ambiente de observação para a composição de novos epigramas. Note-se, contudo que nos
jantares havia uma discrepância entre o que era ofertado ao patrono e o que era oferecido ao
cliente, sempre visando o prejuízo do último. O cliente vive na penúria e precisa sobreviver
com a mesquinharia do patrono. Em I, 43, por exemplo:
Bis tibi triceni fuimus, Mancine, vocati
et positum est nobis nil here praeter aprum;
non quae de tardis servantur vitibus uvae
dulcibus aut certant quae melimela favis;
non pira quae longa pendent religata genesta
5
aut imitata breis Punica grana rosas;
rustica lactantis nec misit Sassina metas
nec de Picenis venit oliva cadis:
nudus aper, sed et hic minimus qualisque necari
a non armato pumilione potest.
10
Et nihil inde datum est; tantum spectavimus omnes:
ponere aprum nobis sic et harena solet.
Ponatur tibi nullus aper post talia facta,
sed tu ponaris cui Charidemus apro.
(Fomos convidados contigo, Mancino, sessenta pessoas
e coisa nenhuma foi servida para nós ontem, exceto um javali.
Nem as uvas que são conservadas das videiras tardias,
ou maçãs doces que disputam com bolinhos de mel;
nem as peras que pesam atadas a longos arbustos,
31
ou as romãs que imitam a botões de rosas efêmeras,
nem a simples Sassinate produziu queijos redondos,
nem a azeitona chegou dos potes de Piceno.
Um javali sem nada, mas um pequenino, tal como é possível
ser morto por um anão desarmado.
E nada foi oferecido dali; todos apenas vimos
colocar o javali para nós assim, a arena tem esse costume.
Nenhum javali te seja servido depois de tais fatos,
mas que sejas servido ao mesmo javali que Caridemo.)
As queixas sobre a obrigação do cliente permeiam a obra de Marcial. As dificuldades
eram tantas que culminam com o regresso do poeta desanimado para a sua terra natal. Com
tantas obrigações como cliente, a todo o momento, Marcial se queixa também que não sobra
muito tempo para praticar a sua poesia.
32
III – CAPÍTULO 2: “Epigrammaton Liber”: noções sobre o gênero epigramático na
literatura clássica e em Marcial
Quando se pensa em epigrama (ἐπίγραμμα), a primeira imagem que vem à tona é a de
um poema curto com um final espirituoso e o único autor que vem a cabeça é Marcial, mas o
poeta não foi o precursor do gênero na Literatura Clássica. Os antigos gregos lançaram mão
do gênero e tinham uma concepção diferente sobre o que seria o epigrama e a escrita
epigramática.
O gênero epigramático foi cultivado em toda Antiguidade e se confunde com a própria
história da escrita na Grécia Antiga, nos idos do século VIII a.C. Neste período, segundo a sua
etimologia, o epigrama seria o ato de inscrever sobre uma superfície de pedra ou metal. As
inscrições em pedra poderiam ser feitas em lápides, monumentos, e em objetos votivos
dedicados a algum deus, tendo como função informar o nome de alguém morto e seu país de
origem ou o nome do doador de algo e o nome do deus, já as inscrições em metal eram
gravadas em troféus ou estátuas de bronze. Essas inscrições, datadas do século VIII a.C.,
tinham o caráter informativo e eram esvaziadas de características literárias. Segundo SILVA,
O verbo, epigráphō, que corresponde à forma nominal epígramma, é a descrição
precisa da forma primeira de transmissão desse tipo de texto: um epigrama deveria
ser inscrito, “escrito em”, a fim de fixar a memória cultural: divulgar leis e decretos
da pólis e assegurar o significado de monumentos e tumbas contra o esquecimento
do futuro. Levando-se em conta os testemunhos mais antigos que possuímos de
inscrições feitas no alfabeto grego, a prática teria se disseminado a partir do século
VIII a.C. (2014, p. 10).
Embora as inscrições não fossem sempre versificadas, o uso do hexâmetro, metro
preferencial da épica, generaliza-se desde cedo na Grécia Arcaica e denunciava a influência
da poesia épica, não só pelo metro dos versos, mas ainda pelo tom homerizante, evidente pelo
uso de epítetos tradicionais (Cf. ADRADOS, 1988). Mais tarde o hexâmetro será suplantado
pelo uso do dístico elegíaco. Muitas dessas inscrições epigramáticas não foram assinadas,
como a inscrição de Dipylon (Cf. FEREZ, 1988) ou a taça de Nestor. Neste primeiro
momento, a escrita epigramática tinha a função prática de registro e não de poesia, VIOQUE
(2004, p.9 e 10) aponta que “os primeiros epigramas [...] são quase contemporâneos dos
poemas homéricos e [...] compartilhavam com eles o metro – o hexâmetro – e inclusive a
língua, pois foram escritos utilizando os torneios, epítetos e fórmulas próprias da língua da
poesia épica, tal como a formulou Homero”.
33
O epigrama clássico e arcaico, tratado dentro da história dos gêneros literários, pode
ser considerado um tipo de literatura menor e paralela a uma antiga literatura oral, que advém
de suas primeiras aparições, incrustadas nas pedras. Estas inscrições ficaram excluídas do
aparato de um discurso oral próprio dos grandes gêneros, assim o epigrama se comportou
como um gênero marginalizado, uma vez que não precisava de uma coletividade para ser lido.
Talvez, ao se pensar o gênero como algo menor, se leve em consideração a forma em que os
poemas eram escritos, talhados em algum tipo de material duro, o que os exclui do que seria
comum na literatura daquele período, as performances das poesias épica e lírica diante da
coletividade.
Aos poucos, a forma das inscrições epigramáticas se assemelhava com a forma dos
poemas elegíacos, dado que o metro escolhido para compor as inscrições era o dístico
elegíaco. As inscrições passam a ser reconhecidas como um tipo de poema e, em
consequência disso, surge uma confusão entre o que seria epigrama – retirado das pedras e o
que seria elegia, muitos autores elegíacos da época, como Simônides e Anacreonte se
lançaram a escrever o gênero (Cf. FEREZ, 1988). Segundo AGNOLON (2009, p.2), o uso do
dístico elegíaco conferia ao epigrama a melodia melancólica destinada aos versos fúnebres.
Logo, quem quer que escreva em dísticos elegíacos fazia uso da economia verbal, do tom
sentencioso e solene. Para SILVA,
À medida que se tornava um gênero estimado, o epigrama ampliava sua definição.
Se nasce de algum modo inspirado nas inscrições públicas fúnebres ou votivas, em
meados do século IV a.C., o termo epígramma indica qualquer poesia breve, quase
sempre em dísticos elegíacos, já não mais necessariamente inscrita e de sabor
convival e de tom variado: poderia agora ser sentenciosa ou jocosa, humorística ou
ofensiva (2014, p. 13).
No século V a.C., durante as Guerras Médicas18, abundavam as inscrições
epigramáticas, em decorrência aos inúmeros epitáfios para os mortos durante a guerra como
também inúmeras inscrições dedicatórias em troféus para os vencedores da batalha e muitos
epigramas que comemoravam os triunfos militares, mas os epigramas ainda não eram
assinados. Sabe-se, portanto que a produção de epigramas era constante, uma vez que os
versos continuavam a ser registrados nos monumentos e nos marcos fúnebres. O anonimato
destas inscrições podem ser justificadas pela função prática de inscrição, o que não requeria
do autor a declaração de sua identidade (Cf. SILVA, 2008). Observa-se o epigrama abaixo
18
Guerras Médicas ou Guerras Greco-Persas foram alguns conflitos bélicos entre os antigos gregos e o
Império Aquemênida (Império Persa) durante o século V a.C.
34
que foi encontrado em um relevo de mármore na Estela Tumular de Polixena, nos anos de 380 / -360 a.C.:
πένθος κοριδίωι τε πόσει καὶ μητρὶ ιποσα
καὶ πατρὶ τῶι φύσαντι Πο υξένη ἐνθάδε κεῖται.
(Deixando tristeza para a filhinha, o marido, a mãe
e o pai que a criaram, Polixena aqui jaz.) 19
Entre os primórdios do epigrama como gênero literário e a expansão do gênero, estão
os textos de Simônides de Ceos (556 – 468 a.C.), autor que contribuiu para a transposição do
gênero das pedras para as folhas. Simônides foi o mais importante autor de epigramas do
período arcaico, que fez da poesia a sua profissão e receber os benefícios dela. Segundo a
tradição, dentre todos os fragmentos epigramáticos que apontam a autoria do poeta, apenas
um pode ser confirmado, um epitáfio sobre o adivinho Megistias (Μεγιστίας), morto na
batalha de Thermopylae, ocorrida durante a Segunda Guerra Médica (480 a.C.). É do século V
a.C. a notícia de uma possível coletânea epigramática de autoria do autor, chamada de Sylloge
Simonidea20, que se tornou importante fonte de modelo epigramática no sistema literário
helenístico. Segue um dístico de Simônides de Ceos, neste, o autor narra a grande batalha de
Termópilas, batalha esta entre as forças gregas lideradas pelos espartanos contra os persas.
´Ω ξεíν´, ´αγγέ ειν Λακεδαιμονíοις ´οτι τηδε
κείμεθα τοîς κείνων ρήμασι πειθόμενοι.
(Estrangeiro, vai contar aos Lacedemónios que jazemos
aqui, por obedecermos às suas normas.) 21
Outros autores foram importantes para o gênero durante o período arcaico. Por
exemplo: Arquíloco (700 – 650 a.C.), o primeiro poeta a escrever com o dístico elegíaco e em
pequenas estrofes, mas não se pode afirmar a veracidade da autoria dos epigramas atribuídos
ao poeta. Neste epigrama, Arquíloco aconselha que o leitor enfrente as tempestades da vida e
aprenda a reemergir em oposição aos obstáculos que os inimigos lhe possam afligir.
19
Texto original e tradução diponivel em: RIBEIRO JR., W. A. Estela tumular de Polixena. Portal Graecia
Antiqua, São Carlos. Disponível em: greciantiga.org/img.asp?num=0147, acesso feito em 06/01/2016.
20
(MOLYNEUX, 1992, p. 300.)
21
Texto original e tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, in Hélade, 6.ª ed., Coimbra, FLUC, 1995, p. 148.
35
θυμέ, θύμ', ἀμηχάνοισι κήδεσιν κυκώμενε,
ἀναδευ δυσμενῶν δ' ἀ έξ εο προσβα ὼν ἐναντίον
στέρνον ἐνδοκοισιν ἐχθρῶν π ησίον κατασταθεὶς
ἀσφα έω ς· καὶ μήτε νικ έω ν ἀμφάδην ἀγά εο,
μηδὲ νικηθεὶς ἐν οἴκωι καταπεσὼν ὀδύρεο,
ἀ ὰ χαρτοῖσίν τε χαῖρε καὶ κακοῖσιν ἀσχά α
μὴ ίην, γίνωσκε δ' οἷος ῥυσμὸς ἀνθρώπους ἔχει.
5
(Ânimo, ânimo, convulso por aflições sem cura,
levanta, protege-te dos inimigos volvendo adverso
peito em infensas traições próximo postado
firme; e vencendo não exultes abertamente,
nem vencido em casa caído lamentes,
mas com alegrias alegra-te e deplora males
sem excesso: conhece qual ritmo rege os homens.)22
Anacreonte (570 – 488 a.C.) escreveu sobre os prazeres da vida e segundo a tradição,
foi o primeiro poeta a falar do sentido do carpe diem. Seus escritos trouxeram graça, frescor e
elegância aos epigramas gregos através de seus versos festivos e laudatórios. Segue um
exemplo da Antologia grega (VII, 160), com tradução de José Paulo Paes:
καρτερὸς ἐν πο έμοις Τιμόκριτος, οὗ τόδε σᾶμα
Ἄρης δ᾽ οὐκ ἀγαθῶν φείδεται, ἀ ὰ κακῶν.
(Eis a tumba do resoluto Timócrito;
a guerra poupa os covardes, não os bravos.) 23
É neste contexto de miscelânea entre a elegia e o epigrama que surgem os textos
literários epigramáticos, mas não há uma data precisa que diga respeito à transposição das
inscrições epigramáticas das pedras e túmulos para as páginas. Acredita-se, portanto que
aconteceu entre o século IV a.C. e com os autores helenísticos, que vieram no século seguinte
e foram responsáveis pela desvinculação do epigrama de sua condição de uma simples
inscrição, convertendo-o em gênero poético. Afirma Alexandre Agnolon:
Para que o epigrama se convertesse em gênero poético era necessário que o seu
suporte material deixasse de ser a pedra tumular ou o objeto votado a um Deus; e
sua fruição, por seu turno, não fosse mais determinada pela realidade da morte ou
das práticas rituais, mas, agora na qualidade de poesia, se subordinasse à mímesis.
Embora seja muito difícil determinar com precisão o momento exato deste
desenvolvimento, ou mesmo quem teria sido o primeiro a fazê-lo, é certo, todavia,
que os poetas gregos do século IV a.C. e os helenísticos do seguinte foram os
22
Tradução de Rafael Brunhara. Texto original e tradução disponível em primeirosescritos.blogspot.com.br/2008/07/arquloco.html, acesso feito em 06/01/2016.
23
Texto original disponível em: perseus.tufts.edu, acesso feito em 06/01/2016. Tradução de PAES,1995, p. 13.
36
responsáveis por desprender o epigrama de sua condição de “inscrição” e, enfim,
convertê-lo em gênero de poesia (AGNOLON, 2009, p. 3).
Os helenistas não queriam competir com os clássicos gregos, mas procuraram meios
alternativos para se expressarem, usando o que tinham das velhas formas, inovando,
transpondo os temas comuns para um novo gênero. Logo, o epigrama saiu do status de uma
literatura marginalizada para adentrar no meio dos gêneros literários grandes, tal qual a
tragédia e a epopeia. A engenhosidade, a agudeza e a brevidade das inscrições contribuíram
para a fluidez da linguagem epigramática e na transformação literária do gênero. As
características listadas mais o caráter picante, jocoso e mordaz nos escritos se consolidarão
como unidade básica para a invenção de novos epigramas.
Segundo SILVA (2014), os poetas desse período não estavam em busca de uma
competição literária com os seus antecessores, mas buscavam novas formas de expressão,
lançando mão de seus modelos anteriores. Assim, pode ser encontrado em seus escritos um
absoluto rigor formal, ligado ao conhecimento de uma tradição, mas em utilização nos
assuntos corriqueiros e inusitados. A oralidade, item importante para a comunicação poética e
para a transmissão dos textos da tradição, agora divide espaço com os textos epigramáticos. O
texto epigramático tem fácil recepção, já que trata do indivíduo em sua particularidade, no
momento em que está inserido dentro de suas relações sociais e nas situações cruciais de sua
vida. Conforme GUTZWILLER (1998, p.53), o que diferenciava o epigrama helenístico da
elegia antiga seriam a brevidade e a formalidade ao se tratar de assuntos corriqueiros.
Para entender melhor este período, é preciso conhecer um pouco da história. Sabe-se
que a literatura helênica se desenvolve após a Batalha de Queroneia, em 338 a.C., disputada
por Filipe II, rei da Macedônia, contra o exército formado pelos cidadãos de Atenas e Tebas,
acarretando a vitória da Macedônia. Depois disso, as cidades gregas se aliaram ao rei Filipe II
para que se conservasse a independência. Após a morte do rei, seu filho, Alexandre, assumiu
o trono, efetivando a dominação sobre a Grécia. Após a morte de Alexandre (323 a.C.),
depois de doze anos de constantes guerras, sobrou um vasto império que compreendia a
Grécia e a África Setentrional. Como não deixou herdeiros, rapidamente o território
conquistado foi dividido em inúmeras partes, inicialmente ficando sob a tutela de seus
generais. Então o vasto Império ficou assim dividido: os Ptolemeus, no Egito, os Selêucidas,
na Mesopotâmia e Ásia Central, os Atálidas, na Anatólia e os Antigónos, na Macedônia.
Apenas um reino obteve sucesso, durante dois séculos: o reino de Ptolomeu, no Egito,
importante centro da cultura grega, que tinha como capital a célebre cidade de Alexandria.
37
Alexandria se tornou um importante centro cultural com pátios magníficos – criou-se
uma cidade suntuosa como seria mais tarde a Roma dos tempos de Augusto. Ainda era um
importante núcleo de exportação de manufaturados e grãos, estabelecendo um notável
comércio em todo Egito. A cidade recebeu os gregos advindos de diversas partes do Império
bem como os cidadãos de ilhas e colônias distantes. A cidade não era apenas um enorme polo
econômico, mas se tornou lugar de reunião de inúmeros artistas e foco de uma vida cultural
agitada durante o Helenismo. Entre os imigrantes mais famosos, podem ser citados os poetas
Calímaco de Cirene, Posidipos de Pella e Teócrito.
Os cidadãos, que ali residiam, possuíam uma grande sede de conhecimento e a
transmissão do aparato cultural grego era disposta nas bibliotecas públicas. A alteração da
recepção do paradigma cultural repercute no modo de composição e recepção da poesia
daquele tempo. As características mais importantes no cenário da poesia helenística estão
associadas a esta incorporação na poesia dos valores culturais de caráter cosmopolita e
universal, que já eram propagados pelos sofistas no século V a.C.
O poeta deste período está preocupado com a solidez formal e técnica de sua obra e
em como poderia transmitir uma nova consciência moral e política com um fim estético.
Ademais, os helenistas praticavam a imitação dos velhos modelos em consequência do fácil
acesso as bibliotecas e colocavam-se como herdeiros e continuadores de uma tradição,
depositários de uma rica e extensa tradição. Após a escolha do modelo, o poeta é levado a
praticar o processo emulativo, tendo espaço para inovar dentro da imitação.
Sobre a temática dos epigramas, Leni Ribeiro Leite aponta:
No epigrama literário, portanto, a circunstancialidade da inscrição derivou em
preferência por temas cotidianos – um convite para jantar, um bilhete para um
amigo, um agradecimento por um presente recebido, felicitações pelo aniversário de
alguém, uma breve mensagem por qualquer razão, uma piada suscitada por um
assunto do momento; todos estes são temas possíveis para um epigrama, que se
torna assim um gênero leve, de ocasião (LEITE, 2008, p.49).
E quanto aos elementos legados aos poetas seguintes, comenta Alexandre Agnolon:
As características mais importantes que determinarão de vez a apreensão do gênero
epigramático para a tradição posterior, como a agudeza e seu caráter picante, jocoso
e amiúde acerbo, ingredientes que dependeriam também, segundo diversos autores,
de sua unidade básica (Cf. SULLIVAN, 1999), consolidar-se-ão no período
helenístico (AGNOLON, 2009, p. 4).
É só no começo do século III a.C. que o epigrama assume forma de gênero autônomo
e poético. É neste período que se tem os escritos de Calímaco de Cirene (300 a.C. - 240 a.C.).
38
Seus textos foram fontes de inspiração para alguns poetas romanos como Catulo e Ovídio. O
poeta ainda tinha um duplo ofício, pois era poeta e bibliotecário da Biblioteca da Alexandria,
incorporando ao seu fazer poético todo um repertório de uma tradição, mantida em diversos
rolos na biblioteca. Com este enorme contato, Calímaco pôde incorporar em sua poesia
diversos ideais importantes dentro da cultura helenística, refletindo em seus versos sobre o
fazer literário e o fazer de uma grande tradição. São de sua autoria os Aítia (As causas), que
influenciou Ovídio na composição de suas Metamorfoses e alguns epigramas.
O exemplo, que será apresentado a seguir, apresenta um tom que seria próprio de um
texto tumular, comum nos epigramas arcaicos, uma vez que o papel faz a vez do túmulo. Mas
o que o diferencia das antigas inscrições é que agora o poeta não vivenciou o acontecimento,
este acontecimento narrado é fictício. O texto não é apenas informativo, ele possui elementos
que o definem como pertencente a um gênero poético propriamente dito. Segue o epigrama
18, com tradução de João Angelo Oliva Neto:
Νάξιος οὐκ ἐπὶ γῆς ἔθανεν Λύκος, ἀ ᾽ ἐνὶ πόντωι
ναῦν ἅμα καὶ ψυχὴν εἶδεν ἀπο υμένην,
ἔμπορος Αἰγίνηθεν ὅτ᾽ ἔπ εε. χὢ μὲν ἐν ὑγρῆι
νεκρός, ἐγὼ δ᾽ ἄ ως οὔνομα τύμβος ἔχων
κηρύσσω πανά ηθες ἔπος τόδε 'φεῦγε θα άσσηι
συμμίσγειν ἐρίφων ναυτί ε δυομένων᾽.
5
(Não jaz na terra, Lico, o náxio, mas no mar
viu a nau, junto, a vida viu perder-se
ao voltar, mercador, de Egina. Em plainos úmidos
vai seu corpo, seu nome eu levo, mero
túmulo e vera clamo esta palavra: “evita,
ó nauta, o mar, quando as Cabras mergulham.”) 24
Leônidas de Tarento é outro autor que merece destaque, uma vez que demonstra uma
grande habilidade técnica e elegância ao tratar de termos populares. A maioria dos seus
escritos se encontra na Coroa de Meleagro de Gádara. A seguir o texto retirado da Antologia
Palatina (VII, 198), onde Leônidas dá voz a um grilo, que ficou durante dois anos sendo
amado e cuidado por Filênis. O autor a elogia, pois o carinho que a mulher tinha pelo bicho
estava fincado na doçura que este tinha ao cantar. O epigramista teatraliza diversas
características que possam passar pela temática erótica, mas que estava presente dentro do
universo dos poetas helenísticos.
24
Texto original disponível em: perseus.tufts.edu, acesso feito em 06/01/2016. Tradução de CATULO, 1996,
p.33.
39
Εἰ καὶ μικρὸς ἰδεῖν καὶ ἐπ' οὔδεος, ὦ παροδῖτα,
ᾶας ὁ τυμβίτης ἄμμιν ἐπικρέμαται,
αἰνοίης, ὤνθρωπε, Φι αινίδα· τὴν γὰρ ἀοιδὸν
ἀκρίδα, τὴν εὖσαν τὸ πρὶν ἀκανθοβάτιν,
διπ οῦς ἐς υκάβαντας ἐφί ατο, τὴν κα αμῖτιν,
καὶ θρέψ' ὑμνιδίῳ χρησαμένην πατάγῳ·
καί μ' οὐδὲ φθιμένην ἀπανήνατο, τοῦτο δ' ἐφ' ἡμῖν
τὠ ίγον ὤρθωσεν σᾶμα πο υστροφίης.
5
(Se julgas, viajante, pequena e rasteira
a laje que se estende sobre a tumba,
dê graças à Filênis, homem! Pois um grilo
cantor, que outrora errava sobre espinhos –
um gafanhoto! – amou por dois anos inteiros
e, por doce algazarra, ela estimou:
não rejeitou meu corpo inane, mas ergueu
de meu cantar ligeiro o breve túmulo.) 25
Asclepíades de Samos é considerado um importante epigramista social e erótico,
alguns de seus epigramas tornaram-se epitáfios fúnebres, muitos louvavam pessoas que o
poeta admirava e outros eram simples canções de amor. A única fonte de seus textos é a
Antologia grega, mas não se pode certificar a autoria dos epigramas. Como exemplo, retirado
da Antologia Grega, V, 85:
Φείδῃ παρθενίης. καὶ τί π έον; οὐ γὰρ ἐς Ἅιδην
ἐ θοῦσ' εὑρήσεις τὸν φι έοντα, κόρη.
ἐν ζωοῖσι τὰ τερπνὰ τὰ Κύπριδος· ἐν δ' Ἀχέροντι
ὀστέα καὶ σποδιή, παρθένε, κεισόμεθα.
(Preservas a virgindade.
Mas o que ganhas, menina?
Quando chegares ao Hades,
não hás-de encontrar amantes.
Entre os vivos as delícias
da Cípria. Lá no Aqueronte,
oh virgem, nós jazeremos
apenas ossos e pó.) 26
Cabe destacar também os escritos de Posidipo de Pela (310-240 a.C.), poeta e
dramaturgo grego. Dentre os seus epigramas, destaca-se o epigrama em que dialoga com a
25
Original e tradução de Agnolon (2013, p. 63), In. Filênis, de belle de jour à alcoviteira: matéria erótica na
antologia grega, disponível em: revista.classica.org.br/classica/article/viewFile/60/60, acesso feito em
06/01/2016.
26
Texto latino disponível em: loebclassics.com, acesso feito em 06/01/2016. Tradução de SILVA, 2008.
40
deusa Fortuna, na estátua de Lysippos, um escultor grego do século IV a.C. No exemplo
abaixo Antologia Palatina, V, 213, Posidipo parece estar diante da porta de uma cortesã,
Pitias. O eu lírico interroga a serva da cortesã se a cortesã estaria dormindo acompanhada. Se
ela estivesse sozinha, que a chamasse, mas ela só atenderia, se ele dissesse uma senha.
Πυθιάς, εἰ μὲν ἔχει τιν᾽, ἀπέρχομαι: εἰ δὲ καθεύδει
ὧδε μόνη, μικρόν, πρὸς Διός, ἐσκα έσαις.
εἰπὲ δὲ σημεῖον, μεθύων ὅτι καὶ διὰ κ ωπῶν
ἦ θον, Ἔρωτι θρασεῖ χρώμενος ἡγεμόνι
(Se Pitias possui alguém, eu me afasto; mas se ela dorme
assim sozinha, por Zeus! Chama-a cá fora um pouco.
Dize a senha: ébrio, ele veio por entre ladrões,
usando o ardiloso Eros como guia.) 27
No século III a.C. muitos poetas faziam antologias com seus próprios escritos e com
os de outros no intuito de conservar o acervo de epigramas. Então os epigramas eram
arranjados por uma ordem semântica e lexical, através de temas e léxicos comuns. Alguns
autores são considerados como organizadores e autores da Antologia Palatina, como
Arquíloco, Anacreonte e Safo. Meleagro de Gádara destaca-se como redator de uma antologia
epigramática denominada Guirlanda.
Havia duas principais antologias que circulavam na época helenística, as de Meléagro
de Gádara e a de Filipe de Tessalônica, que contribuem para o conhecimento de inúmeros
epigramas gregos. A Antologia (Guirlanda) de Meléagro foi compilada em torno de 95/96
a.C. e reuniu mais de 800 epigramas. Meléagro restringiu o termo epigrama para aqueles
textos breves, afirmando a brevidade como característica primordial do gênero. A Antologia
de Filipe seguiu o modelo de Meléagro, os textos dali são exclusivamente escritos em dísticos
elegíacos.
A poesia epigramática não se restringiu ao mundo grego. A partir do momento em que
a Grécia expande seu domínio, a sua literatura também se expande e chega a Roma. Logo o
epigrama foi importado e cultivado na Vrbs. Mas o gênero não teve grande tradição na
literatura latina, alguns autores citados por Marcial se perderam com o tempo, ou muito pouco
resta dos escritos epigramáticos. O único autor citado pelo poeta cuja obra está preservada em
sua totalidade é Catulo, apesar de seus textos não serem exclusivamente epigramáticos.
27
Texto original disponível em: perseus.tufts.edu , acesso feito em 06/01/2016. Tradução de SILVA, 2008.
41
Em um primeiro momento, o epigrama romano ainda carregava a mesma temática do
epigrama arcaico, ligado aos temas votivos ou fúnebres, segundo TOIPA (2006), durante a
segunda metade do século III a.C., já eram encontradas algumas inscrições métricas, em
destaque as inscrições dos túmulos dos Cipiões.28 Aos autores Ênio, Névio, Plauto e Pacúvio
também são atribuídos alguns epigramas que possuíam a temática fúnebre.
É no século II a.C. que o epigrama torna-se o gênero da classe culta, pois abria espaço
para falar dos prazeres da vida, com humor e sarcasmo, próprios da escrita epigramática.
Assim, para os romanos, o epigrama representava quaisquer tipos de inscrições breves. E
junto com os temas habituais, os pequenos instantes do cotidiano, como o nascimento ou
morte de alguém, casamento, aniversário serviam de temática para a escrita epigramática no
final da República e no início do Principado.
O gênero ainda sofre inúmeras alterações, que poderiam ser consideradas como
subversão dos seus valores primordiais, como a introdução de matizes obscenos e licenciosos.
Os primeiros poetas que se lançaram ao gênero epigramático foram Crinágoras de Mitilene,
cidadão grego que veio a Roma como emissário, ficando na cidade durante os anos de 45 e 25
a.C., sendo patrocinado por Otávia, irmã do princeps Augusto. Seus escritos retratavam a vida
cotidiana e alguns eventos históricos da época. Antípatro de Tessalônica, que também era
grego e foi nomeado governador da Tessalônica pelo procônsul romano Lúcio Calpúrnio
Pisão, foi outro nome importante deste período.
Lucílio (180-102 a.C.), poeta grego, produziu epigramas que apresentavam todo tipo
de defeito físico, com a intenção de desmascarar o vício humano, depreciando profissões e
certos tipos morais e sociais, no século I d.C.. Ainda o poeta também escreveu alguns
epigramas eróticos. Uma característica usual nos epigramas de Lúcilio é o final inesperado,
procedimento usual, também nos epigramas de Marcial.
Já no século II d.C., o epigrama tem seu impulso literário com as publicações de
Lutácio Catulo, escritor de epigramas e poemas ocasionais em dísticos elegíacos,
desenvolvendo seu uso em Roma; Valério Edítuo, escritor de epigramas eróticos, considerado
como um dos precursores do movimento poetae novi e Pórcio Lícino – este, além de
epigramas, escreveu alguns poemas amorosos e foi defensor da influência da poesia grega em
Roma. Os escritos destes poetas são caracterizados por utilizarem o dístico elegíaco, mas
também souberam usar os hexâmetros, hendecassílabos falécios e trímetros iâmbicos.
28
(2006, p. 110).
42
Plínio, o Jovem, oferece uma lista de autores que se lançaram a escrever o gênero,
tanto na República quanto no Império, em Ep. V, 3,5. Esses poetas compuseram epigramas,
mas sempre como uma atividade secundária, sem a preocupação de redigir um texto
esteticamente epigramático e sem a ambição de publicá-los; então escreviam como atividade
do otium.
An ego verear — neminem viventium, ne quam in speciem adulationis incidam,
nominabo -, sed ego verear ne me non satis deceat, quod decuit M. Tullium, C.
Calvum, Asinium Pollionem, M. Messalam, Q. Hortensium, M. Brutum, L. Sullam,
Q. Catulum, Q. Scaevolam, Servium Sulpicium, Varronem, Torquatum, immo
Torquatos, C. Memmium, Lentulum Gaetulicum, Annaeum Senecam et proxime
Verginium Rufum et, si non sufficiunt exempla privata, Divum Iulium, Divum
Augustum, Divum Nervam, Tiberium Caesarem?
(Ou será que devo temer (não nomearei ninguém que esteja vivo, para não cometer
algum tipo de adulação), será que devo temer que não me seja decente o bastante o
que foi decente a Marco Túlio Cícero, Caio Calvo, Asínio Polião, Marco Messala,
Quinto Hortêncio, Marco Bruto, Lúcio Sula, Quinto Catulo, Quinto Getúlico, Aneu
Sêneca, Aneu Lucano e, mais recentemente, Vergíneo Rufo, e – se o exemplo de
personalidades da vida privada não basta – o divino César, o divino Augusto, o
divino Nerva, Tibério César?29).
Com a chegada dos poetae novi, o epigrama passa a tratar de temas do quadro político
daquele momento.
Os poetas novos empregavam alguns preceitos helenísticos como a
brevidade, gracejo e a leveza em seus escritos rompendo com a austeridade, a virtude e a
gravidade do mos maiorum. Deste período, merece destaque como cultor do gênero, Catulo
(provavelmente, 87/84 a 57/54 a.C.), o poeta soube imprimir em seus escritos epigramáticos
um novo significado e um novo valor que foram partilhados por outros autores do gênero,
principalmente Marcial. Mesmo tratando de temas de ocasião, Catulo exprime em seus versos
os seus sentimentos e os sentimentos de uma coletividade, apresentando, em alguns
momentos, alguns pedaços de sua vida particular, como quando o poeta escreve sobre seus
sentimentos por Lésbia.
No prólogo de seu primeiro livro, Marcial apresenta três autores, além de Catulo, que
também, escreveram no gênero epigramático: Domício Marso, Albinovano Pedão e Gneu
Cornélio Lêntulo Getúlico.
(...) Lascivam verborum veritatem, id est epigrammaton linguam, excusarem,
si meum esset exemplum: sic scribit Catullus, sic Marsus, sic Pedo, sic
Gaetulicus30, sic quicumque perlegitur. (...)
29
Tradução dipsonível em: AGNOLON, Alexandre. Uns epigramas, certas mulheres: a misoginia nos
"Epigrammata" de Marcial (40 d.C - 104 d.C). Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 2007.
30
Marcial faz referência a Pedão em II, 77 e V, 5; a Marso em II, 77; V, 5; IV, 29; e VII, 29 e 99.
43
(Quanto à franqueza lascívia com as palavras, isto é, a linguagem dos
epigramas, eu daria uma desculpa, se o exemplo fosse meu: mas assim
escreveu Catulo, assim Marso, assim Pedão, assim Getúlico, assim todo
aquele que é lido por inteiro.).
Domício Marso foi poeta na época de Augusto, amigo de Virgílio e contemporâneo de
Horácio, membro do círculo de Mecenas e se destacou, sobretudo, pelos epigramas que
compôs – Cicuta, embora tivesse escrito um texto épico – Amazonis e um tratado filosófico –
De Vrbanitate. O autor ainda é citado por Ovídio em Pont. IV, 16, 5-6 e por Quintiliano, em
Inst. Or., VI, 3, 102-108; Marcial cita o poeta nos epigramas II, 71, II, 77, VII, 29 e VIII, 55.
Pouca informação tem-se sobre Albinovano Pedão. Sabe-se que teria vivido entre o
final do século I a.C. e o começo do próximo e era amigo do poeta Ovídio. Pedão escreveu
alguns epigramas e um poema épico – Theseis (mencionada por Ovídio em Ex Pont. IV 10).
Quintiliano, por exemplo, dizia que Pedão era um ótimo autor de textos épicos (Inst. Or. X, 1,
90). Tudo o que resta de sua obra é encontrado nas Suasoria de Sêneca, o retor31.
Getúlico foi cônsul e general romano, sendo comandante das legiões da Germânia
Superior em 26 d.C., durante o governo de Calígula. O poeta escreveu alguns poemas eróticos
sobrando nove epigramas de seu trabalho. A obra de Getúlico é mencionada em Tácito An.
VI, 30.
Ao final da República, juntam-se aos temas de amor e convívio, os instantâneos do
cotidiano, os episódios da vida real, os convites e as mensagens que acompanhavam os
presentes. A temática erótica foi desenvolvida durante os reinados de Augusto e Tibério. Os
temas políticos e os epigramas que tinham como tema o culto aos imperadores, durante os
reinados de Claúdio e Nero. Após Marcial, o epigrama ainda é cultivado por Ausônio, Floro e
Claudiano, por exemplo.
É com Marcial que o epigrama adquire maior importância e a forma consolidada de
um gênero literário. É importante ressaltar que o poeta se debruçou exclusivamente em
escrever epigramas,32 mostrando aos seus leitores todo o seu engenho e sua ars na
composição destes versos. Além disso, as características de sua escrita demonstram as
próprias características do gênero epigramático, apesar dessas características não serem
31
Sua. 1,15.
Marcial escolhe o termo epigramma dentre tantas outras expressões como nugae, lusus e ioci, para designar a
sua coleção de poemas. Embora lance mão dessas expressões para designar seu próprio livro, o poeta é
categórico ao inserir o seu livro em um estilo de escrita, em quase 1500 textos. Marcial escreveu
predominantemente epigramas, como deixa a entender na abertura de seu primeiro livro: argutus epigrammaton
libellis, I, 1,3.
32
44
inovações do poeta, mas características de uma tradição começada na Grécia Arcaica, Marcial
lançou mão delas para a produção de sua extensa obra.
A maior contribuição do poeta seria o aperfeiçoamento dessas características na
confecção da escrita epigramática e o uso da técnica de produção do humor e graça dos
epigramas, que já fora usada por Lucílio, por exemplo. Tal técnica contribui para a estrutura
do epigrama, que se estruturava da seguinte maneira: a primeira parte mais extensa, onde a
situação é elucidada para o leitor. Nos versos cria-se uma expectativa que será desfeita na
segunda parte do epigrama, que geralmente, são os últimos versos ou últimas palavras do
poema, onde escreve uma frase picante, um questionamento, um dito mordaz, algum
comentário irônico ou espirituoso que dá a graça no epigrama (Cf. CESILA, 2004).
Mesmo que o gênero epigramático não fizesse parte dos gêneros nobres da literatura
latina à época, como a tragédia e a epopeia, Marcial agradava aos seus leitores, por causa da
vivacidade de seus escritos e da facilidade de leitura, ocasionada pela menor extensão de seus
versos, em contraposição àqueles que eram admirados, mas pouco lidos. O poeta atesta que
era conhecido em todo o orbe, como se observa no epigrama I, 1:
Hic est quem legis ille, quem requiris,
toto notus in orbe Martialis
argutis epigrammaton libellis
cui, lector studiose, quod dedisti
viventi decus atque sentienti,
rari post cineres habent poetae.
5
(Eis aqui quem lês e a
quem buscas, o famoso Marcial, conhecido
em todo o orbe por picantes livrinhos de epigramas.
Oh! Leitor aplicado! A honra que deste
àquele que vive e que sente,
raros poetas têm após as cinzas.).
Em suas linhas, o poeta apresenta quaisquer comportamentos humanos, em especial
fala sobre os defeitos físicos e sobre os aspectos psicológicos dos passantes da Urbe. Cada
personagem é apresentado dentro de uma multiplicidade caricatural, desfilando aos olhos do
leitor todos os tipos de caracteres: os devassos, os plagiários, os beberrões, os glutões, os
avarentos, a moça casadoura, os falsos amigos.
Marcial trabalha com uma vasta gama de temas, podem aparecer dois ou mais
epigramas que apresentam o mesmo tema ou a continuação de uma história contada em um
epigrama anterior, mas os temas vão desde elementos relacionados a profissões, à
45
apresentação caricatural de alguns defeitos físicos ou uma celebração de nascimento,
aniversário, morte. Além dos temas satíricos, o poeta escreveu votos de boa viagem e cantos
fúnebres. Tudo e todos faziam parte de seus epigramas. Escrevia sobre os banquetes de que
participava, nota-se por vezes o carpe diem horaciano, fala sobre seus amigos, sua vida de
cliens. Encontram-se alguns poemas laudatórios, destinados ao imperador, e a amigos
próximos. Nesta pluralidade o poeta apresenta um questionamento: qual seria o papel do leitor
dentro Sobre a variedade de temas, Marcial diz em X, 59:
Consumpta est uno si lemmate pagina, transis,
et breviora tibi, non meliora placent.
dives et ex omni posita est instructa macello
cena tibi, sed te mattea33 sola iuvat.
non opus est nobis nimium lectore guloso;
hunc volo, non fiat qui sine pane satur.
5
(Se a página é reduzida em um único tema, passes.
preferes os mais breves e não os melhores.
A rica ceia de todo mercado é servida para ti,
mas somente te agradam os petiscos.
Meus trabalhos não são para o leitor mais voraz.
Desejo aquele que sem pão não se satisfaz.).
Marcial contraria o seu modelo: Catulo, que ao falar e a criticar os vícios recorre aos
nomes reais, ao usar nomes fictícios, como em Calímaco, transportando os versos para o
terreno ficcional. Porém ao fazer uma homenagem ou bajular o imperador e sua corja, Marcial
usa os nomes reais. O poeta se empenha em não atacar as pessoas diretamente, ele se lança a
criticar apenas os vícios, sem qualquer preocupação moralizante, mas com ironia, humor e
mordacidade, características próprias do gênero, como afirma em X, 33. A preocupação não
era reprovar ou condenar algo, até porque o poeta diz que também pode cometer alguns
vícios.
Simplicior priscis, Munati Galle, Sabinis,
Cecropium superas qui bonitate senem,
Sic tibi consoceri claros retinere penates34
Perpetua natae det face casta Venus:
Ut tu, si viridi tinctos aerugine versus
Forte malus livor dixerit esse meos,
33
5
Quanto ao vocábulo mattea, ae, tem-se, em GAFFIOT,a seguinte definição “algo delicado, petisco”. Ver
também o vocábulo em Sêneca, Cont., 9, 4, 20.
34
De acordo com a religião romana, os penates são deuses do lar, responsáveis pelo bem-estar e prosperidade de
uma família. O culto aos penates estava ligado à deusa Vesta e ao deus Lar.
46
Ut facis, a nobis abigas, nec scribere quemquam
Talia contendas carmina, qui legitur.
Hunc servare modum nostri novere libelli,
Parcere personis, dicere de vitiis.
10
(Munácio Galo, que és o mais simples do que os antigos sabinos
e, em bondade, és superior ao velho cecrópio.
Assim que a casta Vênus te permita manter
os notáveis penates, através de imorredoura tocha nupcial
de tua filha:
que tu, se versos pintados de uma ferrugem esverdeada
por acaso a má inveja disser “és meu”,
que, tal como o fazes, defenda-nos, dizendo que
quem é lido, não escreve isso.
Os meus livros sabem observar esta regra:
poupar as pessoas e dizer sobre os vícios.).
Os comportamentos evidenciados pelo poeta se aproximam daqueles apresentados
pelos personagens-tipo da comédia, isto é, uma representação de um determinado
comportamento, de reconhecimento da coletividade e de fácil associação por parte do
leitor/expectador – cite-se, como exemplo, o personagem Euclião na peça Aulularia, de
Plauto, que possui como característica essencial a extrema avareza, vício também apontado
por Marcial em inúmeros epigramas. Deste modo, o epigramista forja estes personagens em
seus hábitos mais corriqueiros, em oposição ao que ocorre nas grandes epopeias, que
pretendiam retratar os feitos considerados heroicos do homem romano. É como se Marcial
fosse uma espécie de cronista social de sua época.
Seus epigramas retratam a sociedade dentro de um definido núcleo espaço-temporal da
Roma do século I d.C., onde também se insere o poeta. Logo, descreve uma sociedade
embebida em inveja, ganância, discórdia. O poeta é um observador atento que consegue
capturar essa sociedade um tanto conturbada para ser sua principal fonte de inspiração.
Os epigramas de Marcial são de curta extensão, mesmo que haja algum que tivesse
uma extensão maior, o poeta cuidava que este não passasse de uma coluna no rolo de papiro.
Em seus escritos, o epigramista justifica a sua linguagem, mas a comicidade está, por vezes,
na fala obscena e nos termos picantes. Em X, 4, Marcial diz que escreve sobre o sabor de
homem, pois o poeta fala dos vícios destes.
Qui legis Oedipoden caligantemque Thyesten,
Colchidas et Scyllas, quid nisi monstra legis?
quid tibi raptus Hylas, quid Parthenopaeus et Attis,
47
quid tibi dormitor proderit Endymion35?
exutusve puer pinnis labentibus? aut qui
odit amatrices Hermaphroditus aquas?
quid te vana iuvant miserae ludibria chartae36?
hoc lege, quod possit dicere vita 'Meum est.'
non hic Centauros, non Gorgonas Harpyiasque
invenies: hominem pagina nostra sapit.
sed non vis, Mamurra, tuos cognoscere mores
nec te scire: legas Aetia Callimachi.
5
10
(Tu que lês: “Édipos”, um tenebroso Tiestes,
“Cólquidas” e “Silas”, por que lês coisas funestas?
Em que Partinopeu, Átis, Hilas raptado
e o dorminhoco Endimião te servirão?
E o menino despojado de penas caídas? Ou
Hermafrodito que odeia as águas amantes?
Por que te agrada o jogo vazio de um miserável papiro?
Leia isto do que a vida poderia dizer: “É meu”.
Não encontrarás Centauros, Górgones e Harpias
aqui: as minhas páginas tem sabor humano.
Mas não desejas, Mamurra, teus costumes ler,
nem conhecer-te: leias As Causas, de Calímaco.).
Em V, 15, diz que seus versos não podem ofender a ninguém, pois ele, como escritor
prestigiado, contribui para a fama da pessoa que se torna personagem de seus escritos:
Quintus nostrorum liber est, Auguste, iocorum
et queritur laesus carmine nemo meo;
gaudet honorato sed multus nomine lector,
cui victura meo munere fama datur.
"Quid tamen haec prosunt quamuis venerantia multos?" 5
non prosit sane, me tamen ista iuvant.
(Augusto, este livro é o quinto de nossos gracejos,
e ninguém ferido reclama por causa de meus poemas.
Muito leitor se alegra pelo nome honrado,
leitor para qual a fama imortal é dada pelo meu presente.
“Embora venerando muitos, são úteis pra quê?”
Não aproveito nada: mas eles, contudo, me agradam.)
Convém acrescentar, a respeito da obra de Marcial, a afirmação de TORRÃO; COSTA
(2010, p. 73), que resumem o talento, a arte e a força motora de seus versos:
35
Endymion: era um belo jovem que causou o amor de Diana que pediu a Júpiter para colocá-lo em um sono
profundo para poder observá-lo.
36
Chartae: uma variante vocabular que o autor usa para se referir ao livro.
48
(...) o poeta esboçou a representação crítica da vida integral, evidenciando a sua
torpeza, celebrando a sua grandeza… Da paleta da emoção humana, não podiam
deixar de chegar à sua epigramática tela, entre tantos outros, o indigno sentimento da
inveja e a meritória vontade de emulação!
49
IV – CAPÍTULO 3: “Imitatio et aemulatio”: algumas noções
O termo imitatio foi muito utilizado pelos teóricos latinos da retórica clássica, como
Quintiliano e também por Horácio, para caracterizar o processo de produção de um novo
texto. O termo hoje apresenta uma característica pejorativa, ligado ao conceito de plágio,
assunto para o próximo capítulo. Antes atenta-se que o termo imitatio nada tem com a noção
de copiar alguém ou alguma coisa e sim com o próprio fazer literário na Antiguidade.
O processo de imitatio, que hoje os estudiosos denominam, sem chegar a um real
consenso, intertextualidade, para os antigos gregos, a mímesis, estava relacionada com a arte
poética e o estudo da retórica, os retóricos antigos costumavam se valer da mímesis para
descrever os tipos de atividade humana e não a imitação de uma tradição e/ou autor37.
Aristóteles, no quarto livro da Poética, conceitua que a origem da poesia é interligada ao uso
da mímesis
38
e que esta imitação é algo congênito ao ser humano, o que o faz diferente dos
outros animais, pois, desde a infância, participa do mecanismo de imitação. A imitação seria
então algo natural e inerente ao ser humano.
O ato de imitar se constitui em um ato positivo, diferente da ideia que se tem de
imitação ser algo ligado ao plágio, uma vez o ato está presente em diversas nuances humanas
e o filósofo se mostra interessado em observar o processo dentro da ótica da produção
artística, em especial, a poesia. Imita-se então a natureza humana em seus atos e
comportamentos, excluindo aqueles poetas que tratam de temas ligados à física e medicina,
que, sob os olhos do poeta, não constituíam temas para serem imitados.
Aristóteles considerava a obra de arte como mímesis e, como tal, a separava
conforme o imitado, o meio de imitação e a maneira pela qual essa imitação
se efetuava. A poesia, por tratar de uma verdade geral e operante, pode,
através do poeta, escolher este ou aquele incidente para alcançar uma
realidade mais profunda que aquela expressa na realidade comum. 39
É importante lembrar que antes que se tivesse o advento da escrita, a poesia grega era
essencialmente baseada no discurso oral que se nutria de outros discursos. A imitação ocorria
através da memória dos textos poéticos dessa tradição oral, à época do filósofo a escrita já
37
(RUSSEL, 1979)
O vocábulo grego designa a ação de imitar; cópia, reprodução ou representação da natureza, o que constitui, na
filosofia aristotélica, o fundamento de toda a arte. Heródoto foi o primeiro a utilizar o conceito e Aristófanes, em
Tesmofórias, já o aplica.
39
In: PONTES. In: jornaldepoesia.jor.br/carlosgildemar7.html, acesso feito em 06/01/2016.
38
50
tinha seu desenvolvimento e as primeiras obras tinham seu campo de atuação, e assim, para
Aristóteles, a imitação estava relacionada à obra e ao seu receptor. Para SILVA (2009, p.22):
O artista não copia o real servilmente, mas o representa em um espectro
racionalmente estruturado, apresentando uma nova forma do objeto de
imitação à recepção, na medida em que apreende e reelabora o real segundo
as diretrizes que regem a perfeição da obra de arte.
Para os antigos, a imitação é parte integrante de todo aparato clássico que alcançou
enorme respeito na consolidação do passado. Ela se deu em diversos aspectos, como a
utilização do recurso em exercícios retóricos, onde havia cópia de trechos conhecidos,
assimilando as qualidades dos modelos literários. Imbuídos de um espírito de conquista
natural do povo romano, os autores latinos se apropriavam das obras de seus predecessores
gregos.
Apesar de o termo ter sido definido de várias maneiras com os autores modernos, para
os antigos, a ideia de imitação da natureza (mímesis/ imitatio/ imitação), como fator
determinante para elaboração de certo texto, vinha acompanhada da observação e imitação de
textos de mesmo gênero, anteriores àquele que se estava construindo. Não bastava o autor
imitar a natureza, também se fazia como outros autores de mesmo gênero já tinham
procedido, utilizando, por exemplo, os mesmos lugares-comuns e os mesmos mecanismos
compositivos específicos de cada gênero.
A multipluralidade do processo imitativo foi comparada a uma colmeia de abelhas por
Petrarca, para transpor o fato de que a tradição da literatura Greco-Latina oferecia aos novos
autores os mais variados exemplos de imitação, o que levou a ser um processo indissociável
ao processo de produção de texto. Segue o trecho referente de Petrarca e a tradução feita por
MORGANTI (2014, p. 70):
Michi quidem, fateor, de hac re non amplius quam unicum consilium est; quod si
fortassis inefficax experimento deprehenderis, Senecam culpabis; at si efficax, sibi
non michi gratiam referes; denique, in omnem eventum, illum habeas velim consilii
huius auctorem. Cuius summa est: apes in inventionibus imitandas, que flores, non
quales acceperint, referunt, sed ceras ac mella mirifica quadam permixtione
conficiunt40.
(Confesso que, para mim, não há mais que um único conselho a respeito disso; este
conselho, se talvez julgares ineficaz à sua experiência, deverás culpar Sêneca; se o
julgares eficaz, deverás agradecer a ele e não a mim, e assim, em todo caso, eu
gostaria que o considerasses o seu autor. A síntese desse conselho é a seguinte: nas
invenções, devem ser imitadas as abelhas, que não restituem as flores tal qual
tomaram, mas produzem cera e mel por meio de uma admirável mistura).
40
Fam. I, 8, 2.
51
Na Ars Poetica, Horácio aconselha que os irmãos Pisões se valham da tradição
estabelecida de seus antecessores, principalmente dos autores gregos. Contudo a imitação não
pode ser considerada como uma mera cópia, pois tal consideração demonstra a incapacidade
daquele que se põe a escrever um texto, de certa forma, original.
Vos exemplaria Graeca
nocturna versate manu, versate diurna.
(Quanto a vós, compulsai de dia e
compulsai de noite os exemplares gregos.)41
Nas Epistolae I, 19 (vv.19 - 20), o poeta nomeia os maus imitadores como seruum
pecus, condenando uma imitação servil, aquela que é fiel a um modelo sem qualquer
inovação, sendo uma imitação mal sucedida. Portanto, para que a imitação seja feita
corretamente, é preciso que o imitador tenha consciência e saiba escolher os modelos que
sejam imitados.
O imitatores, servom pecus, ut mihi saepe
bilem, saepe iocum vestri movere tumultus!42
(Ó! Imitadores, servis gados, quantas vezes
a bile e o prazer moveu-me o vosso tumulto!)
Em linhas práticas, o autor deveria imitar os grandes modelos do passado, não copiar
palavra por palavra – ipsis litteris, e sim, imitava-se a essência criativa, o conteúdo temático,
competindo com os modelos escolhidos, tentando, se possível, superá-los. Daí se tem a
aemulatio, conceito indissociável ao processo imitativo, que se define como uma
“competição” entre o autor e o seu modelo escolhido e com a tradição que este se insere.
Conclui-se que apesar de o processo imitatio adquirir certo sentido pejorativo ao longo dos
anos, este processo se relaciona com o próprio processo de criação literária dos antigos e
ainda contempla o processo de aemulatio, “uma vez que as ‘imitações’ eram vistas como
forma de rivalizar com os predecessores, bem como ornamentos que engrandeciam a obra e
homenageavam os autores considerados dignos de citação” (PRATA, 2002, p. 31 e 32).
REZENDE diz que estes dois conceitos são indissociáveis, pois o processo emulativo
está inserido dentro do processo imitativo. Para o autor, aemulatio é
41
42
(HORÁCIO, 2001)
(HORACE, 1978) – tradução nossa.
52
(...) um procedimento de imitação em que o imitador é tomado do desejo de ‘fazer
melhor’, ou de conduzir a um resultado diferente, ou seja, impelido por um processo
de imitação ativa, motivado por um zelo ardoroso, o imitador busca a superação ou a
descaracterização do modelo. Subjaz, enfim, à emulação certo caráter de rivalização
(2009, p.115).
Quintiliano diz
Quid? in verbis, sententiis, figuris, dispositione totius operis nonne humani ingenii
modum excedit? - ut magni sit viri virtutes eius non aemulatione, quod fieri non
potest, sed intellectu sequi.
(Ainda mais? Nas palavras, nas sentenças, nas figuras, na organização da obra como
um todo, não é verdade que excedeu a medida do talento humano? Em consequência
disto, há que haver nos homens que se queiram grandes a competência para seguir as
qualidades dele, não pela emulação, pois que isso não se pode fazer, mas pela
compreensão intelectual apenas.) 43
Os próprios oradores antigos aconselham o exercício da imitação. Ainda segundo
REZENDE (2009), Cícero fez uso da prática para chegar ao aperfeiçoamento. Em sua
juventude, o orador lia os clássicos gregos e os traduzia para o latim, não apenas para
aprender novas palavras, mas para imitar os procedimentos gregos e a recolha de novos
vocábulos que teriam novos usos para a língua latina. Para que o orador realizasse a imitação,
era preciso que este fizesse um exercício de imitação: reprodução e representação do modelo
escolhido. Aconselha Cícero que não se imitem elementos de fácil associação, porque estes
são viciosos. Por fim, diz que para que se tenha uma boa imitação, não é preciso apenas fazer
exercícios retóricos frequentemente, mas também é preciso escrever44.
Postea mihi placuit, eoque sum usus adulescens, ut summorum oratorum Graecas
orationes explicarem. Quibus lectis hoc adsequebar, ut, cum ea quae legeram
Graece, Latine redderem, non solum optimis verbis uterer et tamen usitatis, sed
etiam exprimerem quaedam verba imitando, quae nova nostris essent, dum modo
essent idonea45.
(Em seguida, ainda adolescente, me agradava a tarefa de explicar as orações escritas
em grego. Lidos esses discursos, eu procedia: à medida que lia em grego, eu vertia
em latim, não somente servia as ótimas palavras, e em uso, mas também imitar elas,
as quais serviam novas para nós. No entanto, eu fazia que parecessem idôneas –
tradução nossa).
O autor da Retórica a Herênio46 diz
43
Inst . X, 1, 50 – (tradução de REZENDE, 2009, p. 115.)
Cic. De Orat. II, 90-96.
45
Cíc., De Orat. I, 155.
46
Rhet. ad Her. , 1,3.
44
53
Haec omnia tribus rebus adsequi poterimus: arte, imitatione, exercitatione. Ars est
praeceptio, quae dat certam viam rationemque dicendi. Imitatio est, qua impellimur
cum diligenti ratione ut aliquorum similes in dicendo valeamus esse. Exercitatio est
adsiduus usus consuetudoque dicendi.
(Tudo isto poderemos alcançar por três meios: arte, imitação e exercício. Arte é o
preceito que dá o método e sistematização ao discurso. Imitação é o que nos
estimula, com método cuidadoso, a que logremos ser semelhantes a outros no dizer.
Exercício é a prática assídua e o costume de discursar.) 47
Assim o autor é impulsionado – impellimur – a escrever dentro do processo de
imitação, visto que é um processo integrante dentro de um processo maior do fazer literário,
sendo assim, a imitação seria uma força, que necessita ser consciente e racional – diligenti
ratione –, do contrário perde seu princípio original, que é de gerar novos significados (que
precisaria sempre ser impulsionada pelo escritor e esta força impulsionada geraria
reconhecimento de um leitor).48 O processo imitativo deve ser feito desta maneira para que
seja validado: é preciso que o autor tenha uma bagagem teórica sobre o próprio processo
imitativo para que seja praticado até sua exaustão por meio de exercícios retóricos. O
processo imitativo é um caminho que precisa passar entre o conhecimento e o exercício
retórico na geração de novos textos.
VASCONCELLOS (1998) aponta Macróbio, autor dos Saturnaliorum libri. O
estudioso diz que no século V, época de publicação do livro, Macróbio explicita que os
antigos tinham plena consciência sobre o processo imitativo e entendiam que este processo
era um processo de retomada constante. Diz Vasconcellos:
No entanto, desejando mostrar quão grande proveito tirou o nosso Virgílio da leitura
de seus predecessores e que flores e que ornamentos colheu de todos eles, de partes
diversas, a fim de embelezar seu poema, receio oferecer aos ignorantes ou aos
maldosos pretextos para criticá-lo repreendendo em tão grande homem a usurpação
do alheio, sem considerar que tal é o fruto da leitura - tentar igualar o que nos outros
se aprova e usar em benefício próprio do que mais se admira na obra dos outros; foi
isso que fizeram amiúde não só os nossos, tanto entre si quanto tomando emprestado
dos gregos, como os melhores dentre os gregos entre si. 49
Já o autor do De Sublime, Pseudo-Longino, destaca que o processo imitativo é um
meio essencial para que o escritor atinja o sublime, tal processo não rouba partes de outros
textos, mas se caracteriza por trabalhar com as reminiscências de obras que serviram de
47
Original e tradução de: CÍCERO, 2005.
(REZENDE, 2009.)
49
(VASCONCELLOS, 1998).
48
54
inspiração para ele, cabendo-lhe perceber a essência de cada composição literária50. A
aemulatio, segundo Pseudo-Longino, é algo ligado e indissociável ao processo de imitatio e
inerente ao procedimento criacional de um novo texto.
Halicarnasso, no Tratado da Imitação,51 diz que o processo de emulação é algo
espontâneo e sem muitas regras como o processo imitativo, pois é considerado como uma
simples atividade mental (Cf. PRATA, 2002), enquanto a imitatio é um procedimento
objetivo de reprodução de um modelo pré-existente.
Uma das características inescapáveis da literatura latina é que quase todos os autores,
em quase tudo o que escrevem, reconhecem seus antecessores e a tradição na qual ele foi
criado. Na verdade, a relação entre os gêneros latinos e seus exemplares gregos pode ser vista
como um caso especial de uma aceitação greco-romana do conceito de imitação, como um
elemento essencial em toda composição literária (RUSSEL, 1979, p. 2-6).
SULLIVAN (1989, p.8) descreve que “The imitator is drawn to great models through
admiration or emulation (zelos) and receives the impression of the model through imitation
(mimesis), while inspecting the model.52” De acordo com o estudioso, o processo imitativo
perpassa o sentimento de admiração de uma tradição e/ou obra e é sob o modelo preterido que
o autor se debruça e lança o seu melhor, emulando a obra.
O ato de imitação não seria apenas a ação de copiar algo, isto o que Horácio chamará
de imitação servil, a tradução palavra por palavra: nec uerbo uerbum curabis reddere fidus/
interpres (Ars. 133-134) – “nem como servil intérprete, traduzir palavra por palavra”, mas
seria uma questão de melhorar e criar sob o modelo desejado.
VASCONCELLOS (1999, p.86) comenta que
(...) a imitatio é uma arte poética sutil, criadora de sentido, amplamente praticada e
especialmente evidente na poesia latina. Até o momento, só é encontrado nos
antigos as referências ao caráter emulativo da imitação e especialmente a sua função
de ornamento, como se citar um predecessor ilustre significasse nada mais que
emprestar algo do seu brilho e excelência ou medir forças com ele.
Apesar das informações apresentadas, o termo imitatio põe margem a inúmeras
interpretações errôneas quanto ao seu significado. Aos estudiosos modernos, o termo imitatio
parece não abarcar todas as coisas a que o processo se refere, logo trazem à luz outros termos
que englobariam o amplo significado do processo imitativo.
50
De Sublime XIII, 85, 86.
(HALICARNASSO, 1986).
52
“O imitador é direcionado para os grandes modelos através de admiração ou de emulação (zelos) e recebe a
impressão do modelo através da imitação (mimesis), enquanto o examina em profundidade” - tradução nossa.
51
55
Em um artigo intitulado Arte Allusiva (1968), Pasquali conceitua o processo imitativo
como alusão. A justificativa para a escolha vocabular reside no fato de que imitação possui
um caráter pejorativo e ao utilizar o termo escolhido, Pasquali coloca em foco a troca que se
realiza entre o texto que tem inserido o processo de alusão e os modelos aludidos.
(...) in poesia culta, dotta io ricerco quelle che da qualche anno in qua non
chiamo più reminiscenze, ma allusioni, e volentieri direi evocazioni e in certi
casi citazioni. Le reminiscenze possono essere inconsapevoli; le imitazioni, il
poeta può desiderare che sfuggano al pubblico; le allusioni non producono
l’effetto voluto se non su un lettore che si ricordi chiaramente del testo cui si
riferiscono…53
Com a prática da alusão, o autor constrói um texto final de maneira intencional e
consciente, uma vez que as alusões presentes em seu texto só poderão ser reconhecidas por
um leitor capaz de decodificá-las. Para o estudioso italiano, a alusão só será válida, se houver
um leitor que possa reconhecer os ecos alusivos. Em vista disso, segundo os preceitos do
estudioso, a alusão colocaria em destaque a figura do autor que escreve de maneira consciente
e intencional e o processo abarcaria a rivalidade do autor com os modelos de uma tradição
anterior para que o faça escrever melhor do que os seus predecessores, possibilitando
inúmeras leituras de um único texto como também do texto base. O foco é direcionado ao
leitor, é ele que tem o poder de decodificar e interpretar os ecos alusivos presentes em um
texto. Assim, as alusões presentes em um texto tendem a pressupor que se tem a existência de
um leitor capaz de identificar e entender as diversas ramificações presentes no texto, ao fazêlo, produzirá o efeito de trazer à mente do leitor o (s) texto (s) evocado (s).
Já CONTE (1989) aponta que o termo imitatio não cobre tudo o que o processo de
imitação abarca, pois o termo se dirige apenas ao processo de produção de texto. O estudioso
comenta que o termo era baseado em uma relação interpessoal e binária, calcada na
competição e rivalidade entre a tradição e o novo. Assim CONTE; BARCHIESI (2010)
nomeiam o processo imitativo como arte alusiva, visto que o termo, além de estar ligado ao
próprio processo imitativo, abarca o papel interpretativo do leitor.
CONTE; BARCHIESI (2010) deixam a entrever que o movimento de citação de um
autor predecessor é movido pela paixão e sentimento, uma vez que os poetas tendem a se
apresentar como amantes destas obras predecessoras, fazendo com que estes sejam
53
(PRATA, 2002, p.32) “(...) em poesia culta, douta, eu procuro o que de uns anos para cá não chamo mais
reminiscências, mas alusões, e de bom grado diria evocações e, em certos casos, citações. As reminiscências
podem ser involuntárias; as imitações, o poeta pode desejar que passem despercebidas ao público; as alusões não
produzem o efeito desejado senão sobre um leitor que se recorda claramente do texto ao qual se refere.” –
tradução nossa.
56
revitalizadores de uma tradição que se autolegitima. Ademais, o processo imitativo é mediado
pela memória, dado que esta é a soma das linguagens presentes na mente do autor e o
processo precede o velho para formar o novo. O novo texto escrito precisa que haja leitores
capacitados e aptos para que reconheçam as alusões subtendidas, ou que se apresentam no
texto. A imitação, segundo os autores, serve para instruir os leitores, pois o novo texto tem o
papel de unir autor e leitor em uma única leitura. Para os romanos, o processo de imitação não
é somente uma prática que é visível no texto, como também é um processo educativo que era
trabalhado à exaustão pelos educadores retóricos. Assim, os estudiosos complementam que
todo texto literário se configura pela absorção e assimilação de outros textos, então uma obra
literária pode ser lida como uma conexão com outros textos ou contra estes textos. Uma
produção de um texto por meio de outros textos para um leitor orientado.
VASCONSELLOS (2001) explica que o aspecto principal do processo alusivo é a
criação de sentido e o reconhecimento de um intertexto criado a partir deste processo e que
este intertexto possui um significado.
Os estudos recentes ainda mostram o processo de imitação como intertextualidade
(inter: no interior de dois + textus: fazer tecido, entrelaçar.),54 e, desde que foi cunhado por
Kristeva, o termo tem gerado discussões, pesquisas e propostas de definição, sem que se tenha
chegado à plenitude. Segundo a autora, quando se fala em intertextualidade, se aponta que
todo texto é uma absorção e transformação de outro texto: “(...) todo texto se constrói como
mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto” (KRISTEVA,
1974, p. 64).
Sobre a citação de Kristeva, é importante destacar que não existe um texto neutro e
puramente original. Todo texto faz referência a um ou mais textos, visto que o escritor faz uso
da memória e traz ao conhecimento os enunciados que outrora ouviu ou leu para que, a partir
deste momento, se construa o seu texto final. Isto posto, talvez a utilização do termo
intertextualidade possa acabar com as dúvidas existentes sobre a nomenclatura deste processo
de relação intertexto, uma vez que o termo designa a presença em um texto de outros textos
que produzem significado, fazendo um diálogo textual. O foco não é o processo de escrita
propriamente dito, mas o modo como foi confeccionado o texto e depois o foco se desloca
para a relação leitor-texto.
54
Dicionário eletrônico Houaiss. Disponível em houaiss.uol.com.br/, acesso feito em 06/01/2016.
57
O autor, segundo PRATA (2007) não é foco, ele apenas cria e põe em funcionamento
o jogo alusivo de forma consciente e intencional para que, no final, o leitor esteja apto para
reconhecer o emaranhado de citações – diretas ou indiretas.
SILVA (2005, p. 26) diz
Intertextualidade refere-se à produtividade da escritura literária, no sentido de
textos anteriores ficarem disseminados ou redistribuídos em novos textos; por
isso, seria preciso pensar um texto hodierno como um intertexto. 55
Para FOWLER (2000), a intertextualidade está inserida dentro do sistema literário,
mas esse sistema não é algo unificado, visto que o sistema literário abarca inúmeras
possibilidades de interpretação e é dependente de um leitor que seja capaz de reconhecer o
texto como um texto intertextual. A leitura intertextual cria inúmeros sentidos a partir da
leitura do texto que afeta o sentido real do texto escrito bem como afeta o sentido do texto
referente. O processo intertextual é algo consciente, mas não é algo fixo, já que parte do
princípio de criar novas significações, sempre colocando o leitor em lugar de destaque. Cabe
destacar que o processo intertextual espera que haja um leitor que seja capaz de visualizar as
relações intertextuais presentes em um texto, que são multifacetadas. Como afirma Fowler,
Allusion was figured as an ‘extra’, a bit added to special types of text by an author
who wanted to make a special point: intertextuality, on the other hand, is simply the
way in which texts – all texts – mean. The textual system exists before any text, and
texts are born always already situated within that system, like it or not. Just as no
person can escape her or his historical situatedness, so no text can exist except
against the matrix of possibilities created by those pre-existing texts.56
Portanto, de maneira resumida, entende-se a intertextualidade (alusão, arte alusiva,
imitatio) como a condição essencial de existência de um novo texto e esse novo texto só
poderá ser conhecido, se houver um leitor que esteja capacitado, que tenha em mente os
modelos anteriores vinculados a uma tradição e que codifique toda a teia intertextual. Em
vista disso, seguindo o pensamento de Kristeva, que um texto é um mosaico de citações,
55
(SILVA, 2006, p. 25-33.)
(FOWLER, 2000, 119.) “A alusão era representada como um “acessório”, adicionado a tipos especiais de
textos por um autor que quisesse apontar um ponto especial; a intertextualidade, por outro lado, é simplesmente a
forma na qual os textos – todos os textos – significam. O sistema textual existe antes de qualquer texto, e os
textos nascem sempre dentro desse sistema, queira ou não. Assim como ninguém escapa de sua situação
histórica, nenhum texto pode existir, exceto se estiver de acordo com as matrizes de possibilidades criadas por
aqueles textos pré-existentes.” (PRATA, 2007, p. 43).
56
58
entende-se que o texto codificado é uma recriação de um modelo anterior que se confronta
com o texto atual.
Segundo HINDS (1998), o poeta ao recorrer a um predecessor, faz com que haja um
remanejamento de uma tradição, o artista é influenciado por esta tradição e a reescreve. Este
processo é utilizado por Marcial em favor de um lugar na tradição, ao criar inúmeras
expectativas próprias do gênero em que escreve, mas o poeta não se engessa na tradição
epigramática, já que o poeta inova em suas linhas, alterando a percepção que o leitor terá do
gênero epigramático.
Por fim, a imitatio (intertextualidade, alusão, arte alusiva) é base condicional para a
existência de um texto, contudo, para a realização do estudo proposto, volta-se à noção
primeira daquilo que os antigos entendiam como imitatio, ou seja, uma referência explícita ou
implícita de uma obra que servirá de comparação e associação de ideias por parte do leitor. A
imitação está ligada a uma tradição que representa um tipo de pensamento ou corrente
literária, todavia a imitação só será reconhecida e identificada por um leitor conhecedor do
contexto em que a imitação está inserida.
A imitatio em Marcial: as águas em que o poeta bebeu e se esbaldou.
Para exemplificar o processo imitativo dentro da obra de Marcial, foram selecionados
três poetas que Marcial parece imitar diretamente: Catulo, Horácio e Ovídio. Claro que a obra
de Marcial não foi inteiramente pautada da imitação destes três modelos, o epigramista soube
explorar com destreza todo o sistema literário Greco-Latino e soube transpor em suas linhas
toda a tradição dos gêneros literários. Isto posto, segundo Robson Tadeu Cesila, “os poemas
de Marcial são formados por outros textos, por outras vozes que dialogam, se absorvem e
assimilam para gerar outros textos com novos sentidos.” 57
Logo na abertura de seu primeiro livro de epigramas, Marcial apresenta aqueles
autores que lhe serviram de base para a escrita epigramática. Como apontado no capitulo 2
desta dissertação, o poeta enumera quatro autores que o influenciaram a escrever neste
gênero, mas em especial destaca-se a figura de Catulo. A influência do poeta de Verona nos
escritos de Marcial será vista a seguir.
57
(CESILA, 2008, p. 135).
59
Dos poetas que Marcial citou como modelos para a sua escrita epigramática, Catulo
foi quem lhe serviu de maior inspiração. A obra de Catulo (aproximadamente 87/84 – 54/52
a.C.) é caracterizada por uma extensa variedade temática e estilística. Ao todo chegaram até
nós 116 carmina que foram dedicados a Cornélio Nepos, historiador contemporâneo ao poeta.
Catulo rompe com as tradições dos autores antigos, tais como Ênio e Ácio e apresenta uma
nova abordagem aos temas da literatura, fazendo parte de um grupo de poetas, nomeados por
Cícero como poetae novi, uma expressão que parece contar com certo matiz pejorativo.
Segundo CARDOSO (2003), mesmo que não fosse a divisão feita pelo poeta, a obra
catuliana é dividida em três grupos. O primeiro grupo (poemas 1 a 62) compreende a
pequenos textos de metragem variada, escritos em um tom jovial e alegre, sendo considerados
poemas de amor ou circunstância. Nestes poemas, Catulo se dirige a Lésbia, sua musa
inspiradora. Ao dedicar os poemas a ela, Catulo ora apresenta um tom alegre e
despreocupado, ora amargurado e triste, ora irônico. O segundo grupo (poemas 63 a 65)
compreende a oito poemas longos com uma linguagem ornada, repleta de figuras e requinte.
O último grupo (poemas 69 a 116) apresenta quase a mesma temática do primeiro grupo, onde
é empregada uma variedade de metros, inspirados nos líricos gregos, como Safo. Além disso,
o poeta apresenta alguns epigramas escritos em dísticos elegíacos. Nestes últimos, Catulo se
dirige aos seus amigos e conhecidos e apresenta a sociedade romana à época com um tom
irônico, picante e mordaz. Deste modo, os escritos catulianos são referência para a construção
epigramática de Marcial, uma vez que este assimila o tom jovial, irônico, picante e por vezes
mordaz dos textos de Catulo, mas sem atacar diretamente as pessoas que fossem retratadas
nos textos, como fez o veronês. É de herança catuliana ainda a variedade métrica e temática
de Marcial, tendo como preferência, dístico elegíaco.58
A temática principal da obra de Catulo é o seu caso de amor com Lésbia.59 A paixão
de Catulo o levou a ter uma vida agitada por conta dos contrastes que esse sentimento lhe
dava, o poeta morre precocemente em seus trinta anos. E em toda obra catuliana pode-se
perceber que o relacionamento do poeta com a mulher não é linear, ou o poeta está
perdidamente apaixonado, ou a odeia perdidamente. Como exemplo deste amor desmedido,
pode-se destacar o poema V, onde Catulo pede a Lésbia que ela viva o amor ao seu lado.
Marcial, em VI, 34, traz à lembrança o poema VII de Catulo, quando questiona a
Díndimo quantos beijos o rapaz daria. O epigramista descreve que os beijos do rapaz seriam
58
Marcial, em seus epigramas, descreve Catulo como tener (IV, 14, 13); tenuis (X, 103,5) e doctus (VII, 99, 9),
em uma referência à tenacidade e à doutrina catuliana.
59
Ovídio aponta que Lésbia pode ter sido um cognomen de uma mulher. Ver Tristes. II, 427-428.
60
maiores do que aqueles que são oferecidos por Lésbia, como as conchas, as ondas, as abelhas
e os aplausos, superando o seu antecessor.
Basia da nobis, Diadumene, pressa. "Quot?" inquis.
Oceani fluctus me numerare iubes
et maris Aegaei sparsas per litora conchas
et quae Cecropio monte vagantur apes,
quaeque sonant pleno vocesque manusque theatro
cum populus subiti Caesaris ora videt.
nolo quot arguto dedit exorata Catullo
Lesbia: pauca cupit qui numerare potest.
5
(Beijos apertados me dá, Díndimo. Quantos?
Manda que eu conte as ondas do oceano
e as esparsas conchinhas nas praias do Egeu
e as abelhas dos montes da Cecrópia,
cada voz no teatro lotado e os aplausos
ao ver-se o rosto súbito de César,
quais Lésbia deu, movida, ao arguto Catulo,
não quero: poucos quer quem faz conta.)
No poema VII de Catulo, o poeta quer saber quantos beijos à amada pode oferecer a
ele. Por meio de metáforas, o poeta diz que os beijos de Lésbia são incontáveis como as areias
do mar e as estrelas do céu - até as pessoas maldosas não puderam contar a quantidade de
beijos. Segue o poema de Catulo:
Quaeris, quot mihi basiationes
tuae, Lesbia, sint satis superque.
quam magnus numerus Libyssae60 harenae
lasarpiciferis61 iacet Cyrenis
oraclum Iovis inter aestuosi
et Batti veteris sacrum sepulcrum;
aut quam sidera multa, cum tacet nox,
furtivos hominum vident amores:
tam te basia multa basiare
vesano satis et super Catullo est,
quae nec pernumerare curiosi
possint nec mala fascinare lingua.
(Perguntas quantos beijos teus
para mim, Lésbia, são o bastante.
Como os numerosos grãos de areia líbica,
a repousar em laser preparado em Cirene,
60
61
Continente africano.
Esse tipo de planta também era usado como contraceptivo feminino.
5
10
61
entre o oráculo de Júpiter ardente
e ao sacro templo do antigo Bato.
Ou como muitas estrelas quando a noite cala,
e os amores furtivos dos homens observam.
Inúmeros beijos tu beijares,
ao louco Catulo, é o bastante.
Que os curiosos não possam enumerar
e nem as más línguas enfeitiçar.).
Outro momento em que Marcial alude a Catulo é observado no poema II do veronês,
em que este fala do pardalzinho de Lésbia e como o pequeno animal se divertia com a sua
amada. Catulo inicia o poema colocando o pardal como personagem central do poema, com o
uso de uma apóstrofe – passer, evocando a imagem do pequeno animal como um filho amado
de Lésbia. Interpreta-se também que o poema poderia ter alguma conatação sobre a história
dos dois amantes, sendo o pequeno animal a metáfora do próprio poeta. Tem-se a seguir o
poema de Catulo, seguido da tradução de João Angelo Oliva Neto (CATULO, 1996, p.67):
Passer, deliciae meae puellae,
quicum ludere, quem in sinu tenere,
cui primum digitum dare appetenti
et acris solet incitare morsus,
cum desiderio meo nitenti
carum nescio quid lubet iocari
et solaciolum sui doloris,
credo ut tum gravis acquiescat ardor:
tecum ludere sicut ipsa possem
et tristis animi levare curas!
5
(Pássaro, delícias de minha amiga -com quem brincar e ter no colo, a quem
no ataque dar a ponta dos dedinhos
e acres dentadas incitar costuma
quando lhe apraz ao meu desejo ardente
um capricho, um gracejo preparar,
não sei qual, só um consolo à sua dor,
creio, para acalmar o ardor assim -pudesse eu como ela brincar contigo
e a mente esquecer pensamentos tristes!
Para mim é tão bom quanto à menina
veloz se diz que foi a maçã de ouro
que o cinto atado há muito enfim soltou.)
Passa-se ao poema III. Neste, Catulo escreve uma ode fúnebre sobre o pequeno animal
de Lésbia que veio a falecer:
62
Lugete, o Veneres Cupidinesque,
et quantum est hominum venustiorum:
passer mortuus est meae puellae,
passer, deliciae meae puellae,
quem plus illa oculis suis amabat.
nam mellitus erat suamque norat
ipsam tam bene quam puella matrem,
nec sese a gremio illius movebat,
sed circumsiliens modo huc modo illuc
ad solam dominam usque pipiabat.
qui nunc it per iter tenebricosum
illuc, unde negant redire quemquam.
at vobis male sit, malae tenebrae
Orci, quae omnia bella devoratis:
tam bellum mihi passerem abstulistis
o factum male! o miselle passer!
tua nunc opera meae puellae
flendo turgiduli rubent ocelli.
5
10
15
(Chorai, ó Vênus e Cupido,
e quantos homens mais amáveis há.
Está morto o pássaro de minha menina.
Pássaro, delícias de minha menina,
quem bem mais que seus olhos, ela amava,
pois era como mel e a conhecia
como tão bem a filha conhece a sua própria mãe.
Nem de seu colo ele se mexia,
mas saltitando uma vez aqui e outra ali,
somente para a dona sempre piava.
Agora vai por via tenebrosa lá,
de onde jamais retornou ninguém.
Vós, malditas sejam, más trevas de Orco!
Que devorais todas as coisas belas:
um pássaro tão lindo de mim tirastes.
Que maldade! Ó que pobrezinho pássaro!
Agora por culpa tua, os olhinhos da minha menina
estão vermelhos e inchados de chorar.)
Agora nota-se o epigrama I, 7 de Marcial. O ponto central é a comparação entre o
poema de Estela, amigo de Marcial, que se referia a sua pomba – columba – e o poema de
Catulo, que tece elogios ao passarinho – passer de Lésbia. É interessante que Marcial se vale
da temática dos dois poemas de Catulo, utilizando como mote principal a relação entre o
passer e a columba. Observa-se a maneira como Marcial se refere à columba de Estela:
Stellae delicium mei columba assim como Catulo, nos dois poemas, se refere ao passer:
passer, deliciae meae puellae. Em seguida, Marcial refere-se à Verona, local de nascimento
63
de Catulo, funcionando como um mero detalhe, um parêntese dentro do julgamento que faz o
epigramista. Marcial decreta que o primeiro tem mais importância do que o segundo, já que a
pomba de Estela é maior do que o pardal de Catulo. Marcial escreve um poema com apenas
uma finalidade, louvar o talento poético de seu patrono e amigo.
Stellae delicium mei columba,
Verona licet audiente dicam,
vicit, Maxime, passerem Catulli.
Tanto Stella meus tuo Catullo
quanto passere maior est columba.
5
(Pomba, delícias do meu Estela,
direi, ainda que Verona ouça,
Máximo, vence o pardal de Catulo.
Tanto meu Estela é maior do que teu Catulo
quanto à pomba é maior do que o pardal.)
Os cinco primeiros versos do epigrama I, 109 se iniciam com o uso da anáfora62.
Estilisticamente, utiliza também outras figuras de linguagem, como a comparação: purior,
blandior, carior, adjetivos no grau comparativo e com os ablativos comparativos: passere
osculo omnibus puellis, lapillis indicis. Além disso, a identidade do animal é constantemente
lembrada nos quatro primeiro versos para finalmente o leitor descobrir que Issa é uma
cadelinha – catella. A comparação, que inicia o epigrama, somente reforça os ecos catulianos
no texto. Assim como Catulo (II, vv.2-8 e III, vv.5-10), Marcial inicia a comparação com as
qualidades físicas, morais e comportamentais do animal. Ao que parece, o animal é quase um
ser humano, pois têm sentimentos que são próprios dos humanos (v.7), o poeta também narra
que Issa possui um comportamento que é natural ao animal (vv.8-13). Merece destaque a
maneira como Marcial se vale das aliterações para descrever o animal, por exemplo, nos
versos 6 e 7 que evocam o latido da cadelinha: Hanc tu, si queritur, loqui putabis;/ sentit
tristitiamque gaudiumque, ou o som do liquido sendo bebido pela cadela: Castae tantus inest
pudor catellae,/ ignorat Venerem63; nec invenimus/ dignum tam tenera virum puella64. O uso
da aliteração também é percebido em Catulo, por exemplo, nos versos 3-4 do carmen 2, onde
se percebe o som das bicadas do passarinho nos dedos de Lésbia: cui primum digitum dare
appetenti/ et acris solet incitare morsus. Evocando o som derivado do verbo pipiabat, Catulo
62
WILLS (1996, p. 398) aponta que por iniciar cinco versos consecutivos com o uso da anáfora, Marcial evocou
a anáfora catuliana de passer em 3, 3- 4: “passer mortuus est meae puellae,/ passer, deliciae meae puellae”.
63
Merece comentário o uso do vocábulo Venerem em clara alusão ao Veneres de Catulo – 3,1.
64
Ver também CESILA (2008)
64
faz uso da aliteração nos versos 9-10 do carmen 3: sed circumsiliens modo huc modo illuc/ ad
solam dominam usque pipiabat (Cf.VASCONCELLOS, 1991). Em seguida, tem-se o poema
na íntegra:
Issa est passere nequior65 Catulli,
Issa est purior osculo columbae,
Issa est blandior omnibus puellis,
Issa est carior Indicis lapillis,
Issa est deliciae catella Publi.
Hanc tu, si queritur, loqui putabis;
sentit tristitiamque gaudiumque.
Collo nixa cubat capitque somnos,
ut suspiria nulla sentiantur;
et desiderio coacta ventris
gutta pallia non fefellit ulla,
sed blando pede suscitat toroque
deponi monet et rogat levari.
Castae tantus inest pudor catellae,
ignorat Venerem; nec invenimus
dignum tam tenera virum puella.
Hanc ne lux rapiat suprema totam,
picta Publius exprimit tabella,
in qua tam similem videbis Issam,
ut sit tam similis sibi nec ipsa.
Issam denique pone cum tabella:
aut utramque putabis esse veram,
aut utramque putabis esse pictam.
5
10
15
20
(Issa é mais do que o pássaro de Catulo.
Issa é mais pura do que o beijo de uma pomba.
Issa é a mais encantadora de todas as meninas.
Issa é mais preciosa do que as pérolas da Índia.
Issa é uma cachorrinha querida de Públio.
Se ela late, pensarias tu que ela quisesse falar,
ela sente tristeza e alegria.
Em seu colo repousa e cai no sono
de tal maneira que nenhum suspiro pode sentir.
E pressionada pelo de sua bexiga,
mas, brandemente, com a patinha o acorda
para que a tire da cama e roga que a levante.
Tanto pudor se acha na casta cadela.
Ignora Vênus e, não achamos
marido digno de tão tenra menina.
Não a leve por completo o último dia,
pinta-a Públio em um quadro,
65
Marcial faz uso do mesmo vocábulo que Catulo usou em Carmen VII, 14, 4: Lesbia, nequitiis passeris orba
sui. É interessante notar que a leitura dos textos podem trazer uma dúbia interpretação, acarretando uma leitura
sexual tanto no epigrama quanto no poema.
65
no qual tão semelhante verás Issa.
Nem ela mesma seja tanto parecida,
põe, enfim, Issa junto ao quadro,
ou ambas acharás serem verdadeiras,
ou ambas julgarás serem pintadas.)
A morte da cadelinha é expressa somente no verso 17 do epigrama e é descrita de
maneira ao mesmo tempo épica e trágica, após sua morte, Marcial aconselha a seu amigo que
pinte um retrato de Issa para que a memória do animal fosse preservada. Ainda cabe comentar
que este trecho também alude ao momento em que Catulo descreve a morte do passarinho de
Lésbia – no poema III, vv.11-15, narrando a descida da alma do bichinho aos Infernos: qui
nunc it per iter tenebricosum/ illuc, unde negant redire quemquam./ at vobis male sit, malae
tenebrae/ Orci, quae omnia bella devoratis:/ tam bellum mihi passerem abstulistis. – “Agora
vai por via tenebrosa lá/ de onde jamais retornou ninguém./ Vós, malditas sejam, más trevas
de Orco! Que devorais todas as coisas belas:/ um pássaro tão lindo de mim tirastes”.
Alguns estudiosos apontam que este epigrama poderia ter sido um trabalho
encomendado por Públio para homenagear seu animalzinho.66 CITRONI (1975) diz que
parece improvável que um autor que é dotado de toda ironia e mordacidade pôde escrever
epigramas funerários, entretanto o poeta, em poucos escritos, soube transparecer os seus
sentimento, por exemplo, quando fala do falecimento da pequenina escrava, em V, 34.
O estudioso ainda traz um dado interessante sobre a temática do epigrama. Havia duas
tradições epigráficas de homenagem ao animal de estimação: uma ligada aos inscritos
helenísticos em forma de homenagem e uma tradição que era dotada do excesso de apego
pelos donos dos animais. Esses dois momentos coexistem dentro da obra de Marcial, todavia
como a veia irônica é latente em seus epigramas, em respeito desta tradição, o poeta, em VII,
87 zomba do carinho excessivo que um de seus amigos tem com seus animais de estimação.
Já em XI, 69 o poeta escreve um epitáfio a um cão de caça, fazendo a este um grande louvor,
de tom épico, lançando mão de inúmeras comparações, mas nota-se que o animal
homenageado não é um simples animal de estimação e sim um animal de caça, então o louvor
é prestado pelo os seus “serviços”.
Outra temática aludida em Marcial é a tratada no poema XIII de Catulo. Este faz um
convite incomum a Fabulo, seu amigo, que venha jantar em sua casa, mas leve os
componentes do banquete, pois Catulo está desejoso por um jantar com boa e abundante
comida – bonam atque cenam magnam –, uma bela menina – candida puella –, vinho, piadas
66
Ver também: Ovídio, por exemplo, compôs um poema elegíaco saudando o papagaio de sua amada Corina
(Amores. II, 6), Estácio também escreveu um memorial para um papagaio em Silvae. II,4.
66
e risos – vino et sale et omnibus cachinnis. O poeta ainda avisa que em sua carteira só o que
encontrará são teias de aranha (v.8) e só poderá oferecer-lhe sua amizade e um perfume igual
ao que foi dado por sua amada.
Cenabis bene, mi Fabulle, apud me
paucis, si tibi di favent, diebus,
si tecum attuleris bonam atque magnam
cenam, non sine candida puella
et vino et sale et omnibus cachinnis.
haec si, inquam, attuleris, venuste noster,
cenabis bene; nam tui Catulli
plenus sacculus est aranearum.
sed contra accipies meros amores
seu quid suavius elegantiusve est:
nam unguentum dabo, quod meae puellae
donarunt Veneres Cupidinesque,
quod tu cum olfacies, deos rogabis,
totum ut te faciant, Fabulle, nasum.
5
10
(Jantarás bem, meu Fabulo, comigo,
muito em breve se os deuses te estimam,
se contigo levares farto e bom
jantar, e não sem a cândida menina, vinho,
graça e todas as risadas. Se isto
se levares, meu querido, digo,
jantarás bem, pois a bolsa de teu Catulo
está cheia de teias de aranha.
Mas recebas em troca simples amores
e o que há de mais suave e honesto,
porque darei um perfume que à minha garota
Vênus e os Cupidos deram,
quando sentires o aroma, rogarás aos deuses
que te façam, Fabulo, um nariz inteiro.)
O tema sobre um convite para jantar é recorrente característica de uma poesia de
ocasião. Em XI, 52, Marcial convida para jantar o seu amigo Júlio Cerial, poeta
contemporâneo de Plínio, o Jovem e amigo do poeta. O epigramista especifica as modalidades
de reuniões e banhos da Roma daquele tempo e descreve o cardápio do banquete oferecido de
maneira simples e minuciosa, contrastando com a sua situação. No final do epigrama, o poeta
retoma a lembrança do poema XIII de Catulo e marca a diferença entre os dois autores. Catulo
oferece ao seu convidado um bom perfume, Marcial nada oferece, já basta o jantar pomposo.
Ainda recusa a recitar algo se o amigo quiser, poderá recitar os clássicos virgilianos.
67
Cenabis belle, Juli Cerialis, apud me;
condicio est melior si tibi nulla, veni.
octavam poteris servare; lavabimur una:
scis quam sint Stephani balnea juncta mihi.
prima tibi dabitur ventri lactuca movendo
utilis, et porris fila resecta suis,
mox vetus et tenui maior cordyla lacerto,
sed quam cum rutae frondibus ova tegant;
altera non deerunt leni versata favilla,
et Velabrensi massa coacta foco,
et quae Picenum senserunt frigus olivae.
haec satis in gustu. Cetera nosse cupis?
mentiar, ut venias: pisces, coloephia, sumen,
et chortis saturas atque paludis aves,
quae nec Stella solet rara nisi ponere cena.
plus ego polliceor: nil recitabo tibi,
ipse tuos nobis relegas licet usque Gigantas67,
rura vel aeterno proxima Vergilio.
5
10
15
(Jantarás bem junto a mim, Julio Cerial,
se não tiver compromisso melhor, venha.
Poderás reservar a oitava hora, nos banharemos juntos:
sabes o quanto está perto de mim o banho de Stephani.
Primeiro, o alface servirá para relaxar a barriga,
e cortados filamentos de alho-poró,
logo a seguir, um atum em conserva, maior do que um peixe franzino,
mas muitos ovos cobertos com folhas de arruda,
não faltarão outros, envoltos em delicadas brasas
e um bolo de queijo condensado em fogo de Velabro
e as azeitonas que sentiram o frio do Piceno.
Isso é bastante como aperitivo. Desejas saber o que resta?
Mentirei para que venhas: peixes, moluscos, teta de porca,
e aves gordas do curral e também dos juncos,
os quais nem Estela tem costume de oferecer em ceias raras.
Mas eu prometo: coisa nenhuma recitarei para ti,
mesmo que releias na íntegra os teus Gigantes,
ou as Geórgicas, próximas do eterno Virgílio.)
Há ainda outros epigramas de Marcial que estão de alguma forma relacionados ao
poema XIII de Catulo. O epigramista incorpora a razão para o convite pobre e a adaptação de
vários tipos de banquetes oferecidos pelos mais variados patronos. Em V, 62, por exemplo,
Marcial convida um amigo para visitar os jardins de sua casa e exorta-o para levar tudo o que
fosse necessário para um descanso tranquilo, porque o poeta possui apenas um pequeno sofá.
67
Provavelmente obra escrita por Júlio Cerial.
68
Iure tuo nostris maneas licet, hospes, in hortis,
si potes in nudo ponere membra solo,
aut si portatur tecum tibi magna supellex:
nam mea iam digitum sustulit hospitibus.
nulla tegit fractos — nec inanis — culcita lectos,
putris et abrupta fascia reste iacet.
Sit tamen hospitium nobis commune duobus:
emi hortos; plus est: instrue tu; minus est.
5
(Tens o direito de permanecer, hóspede, em meu horto,
se puderes pôr teu corpo no chão desnudo.
Carrega-se para ti grandes mobílias,
pois a minha já pede aos hóspedes os dedos.
Nenhum colchão cobre os leitos ruidosos e vazios;
apodrecida e quebrada a cinta com a corda repousa.
Porém, seja comum a hospitalidade entre nós dois:
comprei os hortos, que é o melhor; a mobília, pegue tu, que é o de
menos.)
Assim como Catulo aconselha Fabulo a trazer a bona atque magnam cenam (vv.3-4),
o amigo de Marcial trará a magna supellex (v. 3) para ele. Além dessa alusão, FEDELI
(2004), aponta que, em Catulo o uso da conjunção explicativa nam, serve para introduzir a
justificativa de sua pobreza (vv.7-8), em Marcial, introduz a justificativa de extrema pobreza,
pois seus bens foram leiloados (v.4).
Em III, 12, Marcial destina o epigrama a Fabulo, mesmo destinatário do poema
catuliano, mas o poeta se comporta de maneira contrária a forma com que Catulo se
comportou, Marcial mostra qual seria o comportamento certo no caso do convite de Fabulo. O
anfitrião deu aos seus convidados um vidrinho de perfume, mas em troca deixou seus
convidados morrerem de fome.
Unguentum, fateor, bonum dedisti
convivis here, sed nihil scidisti.
Res salsa est bene olere et esurire.
qui non cenat et unguitur, Fabulle,
hic uere mihi mortuus videtur.
5
(Confesso que, ontem, ofereceste aos convidados, um bom
perfume, mas não cortaste coisa alguma.
Que engraçado! Cheirar bem e estar faminto.
quem não janta e se perfuma, Fabulo,
a mim parece um verdadeiro defunto!)
69
No poema XIII, Catulo é o anfitrião de um banquete e convida Fabulo para cear, mas o
poeta vive em uma elegante pobreza e não tem dinheiro para oferecer o banquete ao seu
convidado, por isso pede que este trouxesse algumas coisas ao jantar, já que sua carteira está
repleta de teias de aranha. Ao aludir ao poema catuliano, Marcial inverte a situação, Fabulo
não é mais o convidado e sim o anfitrião mesquinho do jantar e o poeta, o parasita, é
convidado para a ceia (vv.1-8). O epigramista traz de volta o fato de que Fabulo recebeu de
Catulo um vidrinho de perfume como presente (v.12), já o anfitrião, Fabulo, oferece um
perfume, mas se esquece de oferecer alguma comida (vv.1-2).
Observa-se, em Marcial como já se apontou anteriormente, a alusão aos mais diversos
assuntos tratados por Catulo. E a referência clara a um dos poemas mais famosos de Catulo, o
poema LXXXV, surge no epigrama I, 32,68 por exemplo. Nota-se a mesma estrutura e a
recuperação do odi como quase sinônimo de non amo te que abre e fecha o epigrama de
Marcial.
Poema LXXXV, de Catulo
Odi et amo. quare id faciam, fortasse requiris.
nescio, sed fieri sentio et excrucior.
(Odeio e te amo. Talvez queiras saber porquê.
Desconheço, é assim que me sinto e isso dilacera-me.)
Epigrama I, 32, de Marcial
Non amo te, Sabidi, nec possum dicere quare:
hoc tantum possum dicere, non amo te.
(Não te amo, Sabídio, por qual razão não posso dizer:
por causa disto, só posso dizer: não te amo.)
Um tom diferente do usual – irônico – de Marcial surge em poemas alusivos àqueles
em que há um sofrimento experimentado por Catulo, por exemplo, no poema CI69, em que se
dirige ao seu irmão morto, como uma espécie de presente ao falecido. O veronês assume um
tom terno, cheio pesar em seus versos.
Multas per gentes et multa per aequora vectus
68
69
Ver também V, 83; XII, 46.
Ver também CATULO LXV e LXVIII B.
70
advenio has miseras, frater, ad inferias,
ut te postremo donarem munere mortis
et mutam nequiquam alloquerer cinerem.
quandoquidem fortuna mihi tete abstulit ipsum.
5
heu miser indigne frater adempte mihi,
nunc tamen interea haec, prisco quae more parentum
tradita sunt tristi munere ad inferias,
accipe fraterno multum manantia fletu,
atque in perpetuum, frater, ave atque vale.
10
(Chego arrastado por muitos povos e muitos mares,
Ó irmão! Para essas oferendas miseráveis,
para que eu possa dar-te como a última homenagem de morte
e falar, em vão, a muda cinza.
Já que a Fortuna tirou-lhe a si mesmo para mim.
Ah! Infeliz irmão tirado injustamente de mim,
agora, neste momento, essas coisas, à maneira dos antigos,
são entregues para homenagem como triste rito.
Receba com lágrimas fraternas que escorrem
e para sempre, irmão, te saúdo: adeus.)
Em I,88, Marcial escreve um epitáfio para o jovem Alcimo, um escravo que foi
sequestrado no auge de sua juventude. Repara-se que o poeta deixa transpor em seus versos
todo o sentimento pela morte do rapaz. Volta-se ao poema catuliano, onde o poeta tenta
compreender a morte de seu irmão (vv.5-6), mesmo que ele seja contra o destino que o levou.
Marcial resume suas condolências, pois o rapaz foi sequestrado; o que em Catulo representa
as lágrimas, em Marcial é apenas a dor da perda, uma dor genérica, mas o gesto é idêntico,
começando com o mesmo imperativo – accipe.
Alcime, quem raptum domino crescentibus annis
Labicana levi caespite velat humus,
accipe non Pario nutantia pondera saxo,
quae cineri vanus dat ruitura labor,
sed faciles buxos et opacas palmitis umbras
quaeque virent lacrimis roscida prata meis
accipe, care puer, nostri monimenta doloris:
hic tibi perpetuo tempore vivet honor.
cum mihi supremos Lachesis perneverit annos,
non aliter cineres mando iacere meos.
5
10
(Alcimo, aquele que foi roubado ao senhor na infância,
a terra labicania e a relva cobrem.
Aceita, não a pesada mármore de Paros,
o vão trabalho entregue às cinzas,
mas os buxos flexíveis e as sombras opacas das videiras
e os prados frescos que verdejam com as minhas lágrimas.
71
Aceita, caro menino, os monumentos da minha dor:
esta honra viverá em perpértuo tempo,
quando houver-me Laquesis, o ano final
de outro modo, não encarrego que pousem as minhas cinzas)
Em VI, 85, Marcial escreve um epitáfio a Camônio Rufo, morto durante uma viagem à
Capadócia. O epigramista faz uma analogia com a morte do irmão de Catulo, também morto
em terras distantes e espera que sua poesia possa substituir os incensos funerários.
Editur en sextus sine te mihi, Rufe Camoni,
nec te lectorem sperat, amice, liber:
impia Cappadocum tellus et numine laevo
visa tibi cineres reddit et ossa patri.
funde tuo lacrimas orbata Bononia Rufo,
et resonet tota planctus in Aemilia:
heu qualis pietas, heu quam brevis occidit aetas!
viderat Alphei praemia quinta modo.
pectore tu memori nostros evolvere lusus,
tu solitus totos, Rufe, tenere iocos,
accipe cum fletu maesti breve carmen amici
atque haec absentis tura fuisse puta.
5
10
(É produzido, sem ti, o meu sexto livro, Camônio Rufo,
e não te espera, amigo, como leitor.
A terra cruel da Capadócia com a vontade infeliz,
que visto, ossos e cinzas, volta ao pai.
Derrame as lágrimas, Bonômia, privada de teu Rufo
e que ressoe o lamento em toda via Emília.
Ai! Que piedade! Ai! Breve tempo pereceu!
Verá de Alfeu, recentemente, o quinto prêmio.
No peito, tu de memória, guardavas os meus gracejos,
só tu, Rufo, possuía todos os gracejos.
Leva com lágrima do amigo, os breves versos tristes,
e ainda, tem um incenso de um ausente.)
Pode-se concluir através dos exemplos apresentados que Marcial realmente bebeu e se
esbaldou nas águas catulianas. O poeta não foi um mero imitador, mas soube tirar proveito
dos motes criados pelo veronês, superando-os com maestria. Cabe ao leitor da obra do
epigramista entender as alusões que ora estão explicitas no texto, como em nomes de
personagens e situações, ora alusões estruturais, ora apenas apresentadas em um vocábulo,
como por exemplo, quando Marcial nomeia seus textos como ninharias e seus livros como
livrinhos sem importância, trazendo à lembrança o carmen 1 catuliano. Neste, o veronês
72
oferece seu livrinho ao seu amigo e patrono Cornélio Prisco e o nomeia como libellum e
nugae.
Outro mestre nomeado por Marcial – com o qual exercita a imitatio – foi Horácio.
Foram selecionados neste trabalho alguns epigramas em que Marcial apresenta a temática do
carpe diem horaciano. Sabe-se que Horácio (65 – 8 a. C.) era contemporâneo de Virgílio e
surge no cenário literário romano por volta de 35 a.C., só depois de ter sido apresentado por
Virgílio a Mecenas e publicar o livro I das Sátiras – Sermones. Além destes, publica os
Epodos – 17 poemas com origem relacionada à poesia iâmbica –, Epístolae, entre elas a
Epístolas aos Pisões, Canto Secular e os quatro livro das Odes. A obra de Horácio é marcada
por uma variedade métrica e temática. O poeta trata da juventude, do amor, dos prazeres do
vinho, da alegria da vida, dos deuses e de temas mitológicos, além disso, trata do espírito
cívico e patriótico.
Nota-se que frequentemente Marcial expressa a ânsia da libertação do Homem do jugo
que o domina em seus escritos (Cf. BRANDÃO, 1998, p.151), visando principalmente a
felicidade plena, o grito pela liberdade frente ao que o poeta encontrava em Roma, cidadãos
influenciados pelos costumes nefastos advindos da urbanidade, da vida social e profissional.
O cinismo, o estoicismo e o epicurismo tentavam propor saídas para o sentimento de
aprisionamento do ser humano, indicando um caminho para essa tal liberdade, mas Marcial
nada contra as correntes filosóficas desprezando-as e ironizando-as, exceto por alguns
ensinamentos epicuristas como o carpe diem e a vita beatior, presentes em alguns de seus
epigramas.
Com Horácio, a poesia do carpe diem (expressão, aliás, criada por ele) achou morada
em Roma. O “poeta do meio termo” foi o grande propagador das doutrinas filosóficas daquele
tempo. Seus poemas são considerados o ponto culminante de seu esforço lírico, neles o poeta
canta os prazeres e a alegria de se viver a vida. O tema é representado na ode I, 11:
Tu ne quaesieris (scire nefas) quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. Ut melius quicquid erit pati!
Seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum, sapias, vina liques et spatio brevi
spem longam reseces. Dum loquimur, fugerit invida
aetas: carpe diem, quam minimum credula postero.
5
(Não indagues (é lícito saber) o fim para mim e
para ti que os deuses darão, Leuconoe. Nem examines os
73
números babilônicos. Tão melhor é suportar tudo aquilo que vier!
Quer Júpiter conceda muitos invernos quer último,
que agora despedaça o mar Tirreno contra os rochedos.
Que sejas sábio, dissolves os vinhos para o breve espaço,
podas a longa esperança. Enquanto falamos, fugirá
o tempo cruel: colhe o dia, confiando o mínimo no amanhã.)
A ode em questão é uma das mais breves composições líricas horacianas e apresenta
temas relativos à fugacidade do tempo, à urgência de viver o presente, ao fruir da vida e ao
carpe diem. Horácio inicia a ode com a incerteza em relação ao que futuro reserva, não é
possível sondar os intuitos divino, nem mesmo prever o dia de amanhã, mais do que um ato
inútil, isso é algo nefasto.
Horácio descreve a incerteza do amanhã com serenidade, uma vez que o homem não
tem qualquer poder de manipulação do porvir. Qual seria, portanto o motivo de se preocupar,
se o homem pode desfrutar do hoje vivendo um dia de cada vez sem excessos? Como
aproveitar os prazeres cotidianos, como o vinho, tão comum na sociedade em que o poeta
transita? O sentimento “carpediano” nasce da consciência de que o tempo devora tudo. O deus
Cronos ou Saturno,70 na mitologia, o deus que devora seus filhos para que nenhum deles o
destronem. É o criador do tempo e de tudo que nele existe, tudo e todos seriam mais cedo ou
mais tarde devorados pelo tempo.
Geralmente, o verbo carpĕre – no imperativo, no v. 8 – tem acepções associadas ao
fruir e gozar. É visto no poema um sentido de separar uma parte do dia para aproveitar o
tempo, o que significa não adiar o tempo e suas escolhas, mas também não o antecipar ou
precipitar. Spatio brevi (v.6) é outro indicador de efemeridade no texto. Sua construção em
ablativo de lugar conota tempo, significando o espaço breve que logo pode acabar, uma
espécie de metáfora espacial que denota a condição geral da própria existência humana71.
Horácio retoma a temática na ode II, 5, 12-14. Esta, que é considerada uma ode
erótica, é destinada a uma personagem anônima apaixonada por Lálage, que tem como
empecilho para a concretização do amor, a pouca idade da jovem, por isso o poeta aconselha
o apaixonado a deixar amadurecer:
iam te sequetur; currit enim ferox
70
Sobre a ideia do tempo como devorador, tem-se, por exemplo, em Ovídio: Tempus edax rerum, tuque
invidiosa vetustas / omnia destruitis, vitiataque dentibus aevi / paulatim lenta consumitis omitia morte.(Met. XV,
234-236) – “Ó tempo devorador das coisas e tu, detestável velhice, vós tudo destruís. Com os dentes do tempo
consumis tudo pouco a pouco, com uma lenta morte”).
71
ANDRÉ, Carlos Ascenso. A mestria do poeta lírico: notas sobre Horácio (8). Boletim de Estudos Clássicos.
Vol. 52, 2009, p. 43-49.
74
aetas et illi quos tibi dempserit
adponet annos
(Logo (ela) te seguirá, pois corre o tempo
feroz e ele lhe acrescentará os anos,
que tiver tirado de ti.)
Sempre relacionado à ideia de tempo, o termo aetas apresenta muitas nuances,
podendo significar idade, passagem de tempo, a própria vida, ou a passagem de tempo de uma
pessoa, como a juventude ou a velhice (Cf. SARAIVA, 2006). A obra de Marcial liga-se ao
escrito horacianos, visto que o epigramista se vale do jeito horaciano para escrever sobre o
ócio e sobre a propaganda imperial.
O epigramista tem consciência sobre a fugacidade da vida. Em I, 15, por exemplo,
adverte a Júlio Marcial, um amigo, de que estava desperdiçando os seus melhores dias. Já em
V, 20, Marcial volta a aconselhar a seu amigo, lamentando que o passar dos anos pode roubar
momentos importantes da vida de Júlio:
Si tecum mihi, care Martialis,
securis liceat frui diebus,
si disponere tempus otiosum
et uerae pariter vacare vitae:
nec nos atria nec domos potentum
nec litis tetricas forumque triste
nossemus nec imagines superbas;
sed gestatio, fabulae, libelli,
campus, porticus, umbra, Virgo, thermae,
haec essent loca semper, hi labores.
nunc vivit necuter sibi, bonosque
soles effugere atque abire sentit,
qui nobis pereunt et inputantur.
quisquam vivere cum sciat, moratur?
5
10
(Se fosse permitido a mim, caro Marcial,
pudesse passar os dias sem cuidados,
se pudesse dispor de tempo livre
e desfrutar em tua companhia a verdadeira vida,
nem os átrios nem as casas dos poderosos,
nem litígios cruéis nem o triste fórum
conheceríamos, nem as estátuas soberbas;
mas passeios de liteira, as historinhas, os livrinhos,
o Campo de Marte, o pórtico, a sombra, o aqueduto da Água Virgem,
as termas,
estes seriam sempre os locais, estes os trabalhos.
Agora nenhum dos dois vive para si mesmo, e os melhores
dias sente fugir e desaparecerem,
75
que para nós morrem e são contados.
Quem é que, sabendo viver, anda a perder tempo?)
Em I, 55, o poeta expõe de um lado a rejeição de suas obrigações como cliens, os
átrios dos poderosos e, por outro, o desejo epicurista de aproveitar de uma vida simples em
um campo, onde plantasse apenas para o seu sustento. A vida de cliens é representada pelas
frias pinturas de mármore espartano que estavam nos átrios dos poderosos e pela saudação
matinal – matutinum have – v. 6 –, que se tornariam obstáculos para que o poeta realizasse a
sua libertação e pudesse gozar da vida. A chegada de Marcial na Vrbs se deu de maneira
utópica, pensando que sobreviveria de suas letras. Mas, para sobreviver na cidade, o poeta se
lançou na vida de cliens.
Vota tui breviter si vis cognoscere Marci,
clarum militiae, Fronto, togaeque decus,
hoc petit, esse sui nec magni ruris arator,
sordidaque in parvis otia rebus amat.
Quisquam picta colit Spartani frigora saxi
et matutinum portat ineptus Have,
cui licet exuviis nemoris rurisque beato
ante focum plenas explicuisse plagas
et piscem tremula salientem ducere saeta
flauaque de rubro promere mella cado?
pinguis inaequales onerat cui vilica mensas
et sua non emptus praeparat ova cinis?
non amet hanc uitam quisquis me non amat, opto,
vivat et urbanis albus in officiis.
5
10
(As aspirações do teu Marco, se as queres conhecer brevemente,
Frontão, ilustre em milícias e honra da toga,
são estas: ser o lavrador de um campo seu, não muito grande,
pois ama os singelos ócios e as poucas rendas.
Quem pode admirar as frias pinturas em mármore espartano
e leva o matutino ‘olá’, desmotivado,
se pode, feliz, com as colheitas do bosque e dos campos,
desatar as redes plenas ante o fogo
e puxar o peixe saltitante da trêmula linha
e o mel dourado tirar do pote vermelho?
Se a caseira gorda põe a mesa enorme
e a cinza não comprada lhe prepara os ovos?
Não ame esta vida quem não me ama, desejo.
e que viva pálido entre as obrigações da cidade.)
No próximo epigrama, X, 47, Marcial encontra-se de partida para sua terra natal,
Bilbilis. Assim propõe ao seu amigo, Júlio Marcial, que viva uma vida mais feliz – vita
76
beatior, em seu uso no acusativo (v.1), elencando várias situações de que se pode aproveitar
na vida. A vida pública desgastante é representada pela toga rara (v. 5), um impedimento
para o poeta realizar os seus desejos. Aproveitar a vida é ter uma existência isenta de causas
e, se antes, com as inúmeras obrigações como cliens, a mente ficava agitava, com uma vida
mais feliz, a mente se aquieta – mens quieta (v. 5). O espírito quieto acarreta a melhora da
saúde – salubre corpus (v. 6), em uma vida mais simples – prudens simplicitas (v. 7) e em
uma amizade sem interesses – pares amicis/convictus facilis (v. 7-8), tão diferente da amicitia
do patronato. O aproveitar a vida ainda acarreta uma vida longe dos banquetes requintados,
das bajulações excessivas e do esbanjar da bebida. O poeta deseja uma noite de sono sem
maiores preocupações – soluta curis (v. 9), pois como em sua condição de cliens, uma noite
só o faz lembrar-se das obrigações que lhe esperavam no próximo dia.
Vitam quae faciant beatiorem,
Iucundissime Martialis, haec sunt:
Res non parta labore, sed relicta;
Non ingratus ager, focus perennis;
Lis numquam, toga rara, mens quieta;
Vires ingenuae, salubre corpus;
Prudens simplicitas, pares amici;
Convictus facilis, sine arte mensa;
Nox non ebria, sed soluta curis;
Non tristis torus, et tamen pudicus;
Somnus, qui faciat breves tenebras:
Quod sis, esse velis nihilque malis;
Summum nec metuas diem nec optes.
5
10
(O que faz uma vida mais feliz,
Amabilíssimo Marcial, é isso:
os bens adquiridos não no trabalho, mas herdados,
um campo não ingrato, um fogo eterno,
litígio, nunca, toga rara, espírito quieto,
vigor inato, corpo são,
simplicidade prudente, amigos semelhantes,
convívio fácil, mesa sem artifícios,
uma noite sem embriaguez, mas livre de preocupações,
uma cama não triste, porém pudica,
um sono que faça breve as trevas.
Não queres nada mais que ser quem seja,
não tema o último dia, nem o deseje.)
Para terminar a exemplificação relacionada à poesia horaciana, volta-se ao primeiro
livro de Marcial. Em I, 15, o poeta se dirige novamente a Júlio Marcial e parece que está
consciente da fugacidade da vida ao aconselhar a seu amigo a não desperdiçar os seus
77
melhores dias, mesmo que esteja próximo de completar sessenta anos. Assim Marcial
recomenda a Júlio que não adie mais as alegrias, já que elas passam voando – gaudia non
remanent, sed fugitiva volant (v. 8) –, esperando um futuro que nunca chega. O poeta parece
se lembrar dos versos horacianos: Dum loquimur, fugerit invida/ aetas: carpe diem, quam
minimum credula postero (“Enquanto falamos, fugirá o tempo cruel: colhe o dia, confiando o
mínimo no amanhã”), ode I, 11, 7-8, quando Horácio, nos últimos versos, aconselha ao seu
amigo que se agarre no que o hoje apresenta antes que seja muito tarde. Segue o epigrama
mencionado:
O mihi post nullos, Iuli, memorande sodales72,
si quid longa fides canaque73 iura valent,
bis iam paene tibi consul tricensimus instat,
et numerat paucos vix tua vita dies.
non bene distuleris videas quae posse negari,
et solum hoc ducas, quod fuit, esse tuum.
exspectant curaeque catenatique74 labores,
gaudia non remanent, sed fugitiva75 volant.
haec utraque manu conplexuque adsere toto:
saepe fluunt imo sic quoque lapsa sinu.
non est, crede mihi, sapientis dicere 'Vivam'
sera nimis vita est crastina: vive hodie.
5
10
(Amigo, Júlio, antes do qual ninguém conta-me,
se as leis têm crédito e fidelidade nos antigos,
já quase o sexagésimo cônsul te segue de perto
e com dificuldade a tua vida conta poucos dias.
Parece mal que retardes o que pode negar
e somente tomes ser teu o que passou.
Esperam cuidados e trabalhos encadeados.
as alegrias não permanecem, mas, passageiras, voam.
Segura com as duas mãos e com os braços.
Mesmo assim, escorrem, passando pelo peito.
Não é sábio, creia em mim, dizer: ‘Viverei!’
Demasiadamente tarde vem a vida de amanhã: vive o hoje!)
Encerrando a explanação sobre a imitatio na obra de Marcial, cabe destaque a imitação
dos versos ovidianos em Marcial. Conhece-se que Ovídio fazia parte do Círculo de Messala e
72
Quanto ao verso O mihi post nullos, Iuli, memorande sodales, ver também, em Ovídio, Tristia 1, 5,1.
Fides cana: a boa fé nos tempos de outrora, a antiga boa fé (cf. Virgílio. Aen. I, 296).
74
Catenatus: “encadeado”, “acorrentado”. Quanto a Catenatique labores: “provas”, “experiências encadeadas”.
(SARAIVA, 2006).
75
Fugitiua: o vocábulo escolhido para tradução (“passageira”), teve como base o significado do vocábulo
fugituus para Marcial: “que dura pouco”, “passageiro”, “caduco”. (SARAIVA, 2006)
73
78
tinha amizade com os poetas Macer, Propércio e Horácio76. Ovídio soube muito bem manejar
o verso típico da elegia e metro de predileção do epigrama, o dístico elegíaco. Em Amores,
Ovídio canta o seu amor por Corina, em Ars Amatoria, ensina aos cidadãos romanos a
conquista amorosa. O poeta versa também sobre a mitologia em Metamorfoses e Fastis.
Durante o período do exílio, Ovídio escreveu duas obras – Tristia e Epistulae ex Ponto –
nestas, Ovídio transcreve a sua memória de uma vida anterior e de seus entes queridos. Deixa
transparecer toda a sua dor e apela a quem puder ler que seja lhe dado o perdão para que sua
sorte possa, um dia, mudar. Nota-se que o poeta combina o tom do gênero elegíaco com as
características da correspondência que é percebida nas suas linhas, e ainda percebe-se uma
infinidade de descrições e narrativas. É em Tristia que o poeta consegue transmitir todo o seu
sentimento. Não só sua esposa é tirada dele, agora o poeta está separado de sua Urbe e sente a
dor da separação dos seus amigos, de sua biblioteca e da corte77.
Marcial possui uma experiência de vida semelhante à de Ovídio. Os dois afastaram-se
de Roma e foram incapazes de retornar. Embora as causas do afastamento fossem diferentes,
os autores possuíam o mesmo sentimento, o desejo permanente e a memória idealizada da
pátria. Marcial também se sente como um exilado e o termo usado por ele carrega a amplitude
do significado, ligado à saída do país, voluntariamente ou imposta, como uma punição
resultante de uma infração. Os dois autores tentam que seus escritos não sejam esquecidos
pela população romana, dada às circunstâncias. Assim o livro se torna o embaixador do poeta,
em razão da impossibilidade de retorno78.
Nada se sabe por parte dos biógrafos e historiadores sobre a causa do exílio de Ovídio,
mas o pretexto oficial seria a acusação de imoralidade do livro Ars Amatoria. Ovídio apenas
confessa um carmen et error que teria desencadeado a ira do princeps. Sobre o carmen,
especula-se que foi o livro já citado e sobre error, indaga-se que seja algo que o poeta tenha
visto.79
Em dois momentos durante a sua vida, Marcial escolhe se isolar da Urbe. No ano de
87, época da publicação de seu terceiro livro de epigramas, quando se encontrava no Fórum
Cornélio, e em 101/102, época da republicação do seu décimo segundo livro de epigramas,
quando o poeta já se encontrava em Bilbilis, sua terra natal. Marcial retorna a sua cidade por
76
Cf. Trist. IV, 102.
Além das obras citadas, Ovídio escreve ainda Remedia amoris, De medicamine faciei feminae, Medea (na
verdade, têm-se deste último apenas dois versos).
78
Trist. I 1.1-2: Parve -nec invideo- sine me, liber, ibis in urbem, ei mihi, quod domino non licet ire tuo –“ Ó
meu pequeno livro - e não invejo - irás a Roma sem mim/ Aonde, ai de mim!, a teu senhor não é permitido ir”.
As traduções de Tristia, que se seguirão, são de autoria de PRATA, Patrícia, O caráter intertextual dos
tristes de Ovídio: uma leitura dos elementos épicos virgilianos. Tese de doutorado, UNCAMP, 2007.
79
Trist. II, 78 -103.
77
79
causa de dificuldades financeiras, mas causam aversão ao poeta à obrigação maçante do ofício
de cliens, a ingratidão e a avareza dos patronos e a pouca valorização de sua escrita, além
disso, a Vrbs era muito agitada e barulhenta. Ao longo dos seus últimos livros, percebem-se
momentos de queixas constantes do poeta. Mas apesar de buscar a paz e a tranquilidade em
Bilbilis, Marcial sente falta da agitação da caput mundi, sente falta da vida cultural e social da
cidade, pois é lá que seus maiores leitores se encontram e é lá que se encontrava a fonte para
os seus escritos. Em XII, 2, Marcial se sente em um país estrangeiro apesar de estar na terra
em que nasceu.
O exílio de Marcial difere do que ocorreu com Ovídio, uma vez que o epigramista se
exilou voluntariamente em Bilbilis. É importante ressaltar que Marcial sai de sua terra natal,
no ano de 64 e vai à Urbe na esperança de fazer fortuna e alcançar a fama literária. Durante
trinta e quatro anos, o poeta tentou com afinco alcançar os seus desejos. Teve uma relativa
fama literária, como ele mesmo mostra em diversos epigramas, por exemplo, os epigramas I,
1 e V, 60, mas ainda não tinha alcançado uma estabilidade financeira. Então, como já foi
comentado anteriormente, para conseguir sobreviver na cidade, se tornou um cliente, em
busca dos favores de patronos benevolentes. A decisão de se autoexilar se deu por conta da
insatisfação sobre a sua situação financeira. Ademais, a insatisfação quanto às suas finanças e
os atrativos da cidade se tornou latente após o assassinato do Imperador Domiciano em 96.
Assim, sem seu principal patrono, o poeta se vê retornando a sua cidade natal, assumindo os
mesmos sentimentos ovidianos.
Em alguns epigramas percebe-se uma alusão direta a Ovídio e ao modelo que o
elegíaco segue, por vezes Marcial reproduz sentenças inteiras de seu antecessor, as adaptando
ao contexto epigramático, um contexto um tanto frívolo e sem muito sentimento, mas sempre
com o respeito e o cuidado com a forma. O contexto em que Marcial faz referência a Ovídio é
variado. O epigramista cita a cidade em que o elegíaco nasceu e fala da fama que Ovídio
ganhou postumamente, por exemplo.
No epigrama I, 61,80 Ovídio é mencionado junto a outro viés alusivo da obra de
Marcial, Catulo. Embora os dois poetas estejam em um mesmo plano, Marcial parece fazer
uma comparação entre os dois autores. Os arcabouços artísticos utilizados por Catulo são
mais apreciados do que aqueles usados por Ovídio, o elegíaco é lembrado pela sua grandeza
poética.
80
Ver também XII, 44
80
Verona docti syllabas amat vatis,
Marone felix Mantua est,
censetur Aponi Livio suo tellus
Stellaque nec Flacco minus,
Apollodoro plaudit imbrifer Nilus,
Nasone Paeligni sonant,
duosque Senecas unicumque Lucanum
facunda loquitur Corduba,
gaudent iocosae Canio suo Gades,
Emerita Deciano meo:
te, Liciniane, gloriabitur nostra
nec me tacebit Bilbilis.
5
10
(Verona ama os metros de seu douto vate
e com Marão, Mântua é venturosa;
A terra de Ápono tem seu renome com seu Lívio,
por Estela e não menos por seu Flaco;
O chuvoso Nilo aplaude Apolodoro;
Os pelignos cantam Nasão;
Dos dois Sênecas e do único Lucano
A facunda Córdoba fala;
Rejubila a divertida Cádiz com seu Cânio
e Emérita, o meu Deciano.
Contigo, ó Liciniano, se gloriará
Bilbilis e não me silenciará.)
Marcial narra que a glória de cada personagem deve ser motivo de orgulho na cidade
em que cada poeta nasceu. Ovídio, em Am. III, 15,7-10, faz uso da mesma forma de escrita
para falar de alguns poetas, inclusive cita Catulo.
Mantua Vergilio, gaudet Verona Catullo;
Paelignae dicar gloria gentis ego,
quam sua libertas ad honesta coegerat arma,
cum timuit socias anxia Roma manus.
(Rejubila Mântua com Virgílio, Verona com Catulo
que me digam que sou a glória do povo peligno,
a quem a sua liberdade obrigou a pegar as armas por toda causa
quando Roma angustiada receou uma sociedade de tropas.)
Ainda sobre o epigrama I, 61, note-se que Marcial aponta que Verona ama os versos
de Catulo e orgulha-se de sua poesia assim como Mântua se orgulha e se alimenta da arte
81
virgiliana e Sulmona goza da notoriedade de Nasão. Percebe-se que todos os poetas são
nomeados e somente Ovídio é descrito pelo seu cognomen 81.
Acrescente-se o epigrama VIII, 73. Neste, Marcial cita outros poetas que o
antecederam e que bem poderiam ser considerados mestres e onde, curiosamente, traz uma
nova insatisfação: a falta de um personagem – amado ou amante – que sirva de inspiração à
composição. A persona poética de Marcial se queixa de que sua poesia é sem força, visto que
não tem uma musa para amar. O epigramista então destaca alguns poetas que tiveram êxito
em sua poesia, pois estavam apaixonados, como Propércio, Tibulo, Virgílio, Catulo que são
nomeados diretamente e Ovídio que é citado indiretamente pelo nome da amada, Corina.
Instanti, quo nec sincerior alter habetur
pectore nec nivea simplicitate prior,
si dare vis nostrae vires animosque Thaliae
et victura petis carmina, da quod amem.
Cynthia te vatem fecit, lascive Properti;
ingenium Galli pulchra Lycoris erat;
fama est arguti Nemesis formosa Tibulli;
Lesbia dictavit, docte Catulle, tibi:
non me Paeligni nec spernet Mantua vatem,
si qua Corinna mihi, si quis Alexis erit.
5
10
(Instâncio, que outro não é tido o mais sincero peito,
nem superior em simplicidade perfeita.
Se queres dar forças e ânimos à nossa Tália
e pedes cantos que hão de sobreviver, dá-me o que eu ame.
Cíntia te fez vate, lascivo Propércio;
A bela Lícoris era o engenho de Galo;
A formosa Némesis fez a fama do delicado Tibulo;
Lésbia ditou-te, douto Catulo:
nem os pelignos e nem Mântua me negariam como vate,
se eu tivesse um Aléxis ou uma Corina.)
Voltando-se ao tema do descontentamento com a Cidade, em III, 38,82 Marcial assume
o tom amargurado. O poeta estava cansado de sua vida na Urbe e da sua condição financeira.
A menção ao nome de Ovídio juntamente com Virgilio torna o epigrama um pano de fundo
para uma crítica social, uma vez que os dois poetas augustanos participavam do círculo de
Mecenas, que garantia a proteção cultural bem como o apoio para a sobrevivência dos poetas.
81
Geralmente é o terceiro nome de um cidadão romano, passou a denominar uma espécie de apelido, um
exemplo disso é Pompeu, que passou a ser chamado de Gnaeus Pompeu Magno, tendo como cognomen Magnus,
relacionado com as suas vitórias militares. No caso de Ovídio, seu cognomen é relacionado com o seu nariz.
82
Ver também o epigrama V, 10. Neste, o poeta fala com certa amargura sobre a falta de reconhecimento em
vida.
82
Tal sistema não mais existe e na cabeça do poeta se tornou apenas uma utopia, vide a sua
situação econômica, dependente da bondade dos patronos mesquinhos.
Quae te causa trahit vel quae fiducia Romam,
Sexte? Quid aut speras aut petis inde? Refer.
“causas” inquis "agam Cicerone disertior ipso
atque erit in triplici par mihi nemo foro."
egit Atestinus causas et Civis – utrumque
5
noras –; sed neutri pensio tota fuit.
"si nihil hinc veniet, pangentur carmina nobis:
audieris, dices esse Maronis opus."
insanis: omnes gelidis quicumque lacernis
sunt tibi, Nasones Vergiliosque vides.
10
"atria magna colam."Vix tres aut quattuor ista
res aluit; pallet cetera turba fame.
"quid faciam? suade: nam certum est vivere Romae."
si bonus es, casu vivere, Sexte, potes.
(Que causa ou certeza te traz para Roma, Sexto?
O que procuras ou esperas aqui? Responde:
“Causa – que digas – defenderei com mais eloquência do que o
próprio Cícero
e não há ninguém igual a mim nos três foros”.
Defenderam as causas Aestino e Cive – conheces a ambos?
Mas para o aluguel, não ganharam.
“Se nada dali vier, comporemos poemas para nós,
quando os ouvir, dirás que é obra de Marão.”
Estás louco: em todos que estão por aí
com lacernas delidas, verás Virgílios e Nasões.
“Frequentarei os grandes átrios”. Dificilmente alimentou tal coisa
três ou quatro, empalidece o resto da turba com fome.
“O que farei? Aconselha-me: é certo viver em Roma?”
Se és honesto, Sexto, poderás viver ao acaso.)
São muitos os exemplos de imitatio relacionados a Ovídio. Seguem poemas e
comentários em que temas e tons distintos podem ser observados: desde a questão da ironia
presente no texto até as referências ao próprio livro, aos versos, tendo os livros
personificados, atuando como mensageiros. Em II, 41, por exemplo, Marcial escreve dotado
da ironia, do vitupério, comumente observados em seus escritos. O epigramista mostra ao
leitor a feiura de uma mulher, Máxima, que quase não tem os dentes e os que restaram em sua
boca são negros e amarelados. Também nota-se que o poeta alude a Ovídio como Pelignus. E
parece que o poeta traz à lembrança sentenças de Ars Amatoria, em que Ovídio escreve: Quis
credat? discunt etiam ridere puellae, quaeritur atque illis hac quoque parte decor (Ars. III,
281, 282) – “De arte precisa a dama, ater quando se alegra;/ crede, é só graça o rir na que se ri
83
com regra”. Spectantem specta, ridenti mollia ride (Ars. III 513) – “Olhai a quem vos olhe, e
ride a quem vos ria83”.
Observa-se que no texto ovidiano o leitor recebe um conselho de um amigo, uma
pessoa mais experiente, entretanto, em Marcial, o leitor é incitado a rir e aproveitar a vida,
quase como se fosse um ensinamento horaciano. Em outro momento, Ovídio recomenda que
não se coma arroz para que não se suje os dentes da menina, em contrapartida, Marcial
constrói um emaranhado de comparações grotescas para descrever uma mulher. A
insensibilidade de Marcial se dá no último verso do epigrama: plora, si sapis, o puella, plora
– “chora, se souberes, ó menina, chora”, em uma forma inversa daquela que aparece o
primeiro verso. Ovídio narra que chorar é uma arte em Ars III, 291-292: Quo non ars
penetrat? discunt lacrimare decenter,/ Quoque volunt plorant tempore, quoque modo – “Até
no choro entra a arte, aprende-se a maneira de chorar com agrado e como que se queira”84.
“Ride si sapis, o puella, ride”
Paelignus, puto, dixerat poeta:
sed non dixerat omnibus puellis.
verum ut dixerit omnibus puellis,
non dixit tibi: tu puella non es,
et tres sunt tibi, Maximina, dentes,
sed plane piceique buxeique.
quare si speculo mihique credis,
debes non aliter timere risum,
quam ventum Spanius manumque Priscus,
quam cretata85 timet Fabulla nimbum,
cerussata86 timet Sabella solem.
voltus indue tu magis severos,
quam coniunx Priami87 nurusque maior;
mimos ridiculi Philistionis
et convivia nequiora vita
et quidquid lepida procacitate
laxat perspicuo labella risu.
te maestae decet adsidere matri
lugentique virum piumue fratrem,
et tantum tragicis vacare Musis.
at tu iudicium secuta nostrum
plora, si sapis, o puella, plora.
83
5
10
15
20
A tradução destes versos, bem como o verso seguinte, é de OVÍDIO. Obras: os Fastos, os amores, a arte de
amar. Trad. Antônio Feliciano de Castilho. São Paulo: Edições cultura, 1943, [?]p.
84
Tradução em NASÃO, Ovídio Publio. Arte de Amar. Tradução de: Antônio Feliciano de Castilho. Rio de
Janeiro: Editores Eduardo e Henrique Laemmert, 1862, [?]p.
85
Cretata: “que pôs cor branca no rosto”. (SARAIVA,2006).
86
Cerussata: “branqueada com alvaiade”. Cerussa: “carbonato de chumbo”. (SARAIVA,2006)
87
Coniunx Priami: Hécuba, mãe de Heitor, Páris e Cassandra. Segundo o mito, foi transformada em cadela.
84
(Ri, se puderes, oh menina! Ri.
O poeta peligno, acho, disse,
mas não disse para todas as meninas,
na verdade, mesmo que tivesse dito a todas,
não disse a ti: tu não és uma menina.
E o que tens, Máxima, são três dentes,
porém totalmente escuros e amarelados.
Então, no espelho e em mim acredita,
deves, não de outra forma, temer o riso,
como Espênio teme o vento e Prisco a mão de alguém,
como, cheia de argila, Fabula teme a nuvem de chuva,
e como, alvaiada, teme Sabela o sol.
Do rosto mais severo, reveste-te,
mais do que a esposa de Príamo e mais que a nora.
Os gracejos do risível Filistião,
e os mais devassos convidados, evita;
E tudo aquilo que, com o devasso banquete,
deixa transparente nos lábios, o riso.
Convém sentares junto à lacriminosa mãe,
a quem lamenta o marido ou o pio irmão.
E somente das musas trágicas te ocupes.
Mas tu, o meu julgamento obedecido,
chora, se souberes, ó menina, chora.)
Marcial cria uma rede de sentimentos que parecem ser roubados de Ovídio. Em XII, 2,
o poeta apresenta o livro como peregrino, visto que ele mesmo não pode – ou não quer – sair
de seu exílio. Marcial recorda os versos de Ovídio no prefácio de Tristia (I. 1. 1-2): Parve—
nec invideo—sine me, liber, ibis in urbem:/ ei mihi, quod domino non licet ire tuo! – “Ó meu
pequeno livro - e não invejo - irás a Roma sem mim: / Aonde, ai de mim! A teu senhor não é
permitido ir”. Como Ovídio, Marcial está distante de sua casa, a expressão ab Urbe... íbis
(v.1) retoma a frase que abre os Tristia. O sutil jogo imitativo permite que o epigramista
brinque com as palavras. O acusativo em Ovídio – in urbem –, em Marcial é substituído por
Romam, trazendo ao leitor um paralelo entre a situação dos dois poetas, mesmo que em uma
delas fosse fictícia. Marcial deixa claro que seu trabalho não é um trabalho qualquer (vv.5-6),
tenta apresentar ao leitor uma nova interpretação sobre o tema e espera que seu trabalho seja
reconhecido, mesmo que ele esteja fora da cidade (vv.16-17). Uma vez que não está mais em
Roma, começa a sentir-se nostálgico, lembrando-se dos anos que passou a observar os
caracteres romanos, do ponto de vista artístico, pois o poeta não se mostrava satisfeito em face
de sua situação econômica. Ele esperava que a vida no campo lhe trouxesse tranquilidade.
Ad populos mitti qui nuper ab Urbe solebas,
ibis, io, Romam nunc peregrine liber
85
auriferi de gente Tagi tetricique Salonis,
dat patrios amnes quos mihi terra potens.
non tamen hospes eris, nec iam potes advena dici,
cuius habet fratres tot domus alta Remi.
iure tuo veneranda novi pete limina templi,
reddita Pierio sunt ubi tecta choro.
vel si malveris, prima gradiere Subura;
atria sunt illic consulis alta mei:
laurigeros habitat facundus Stella penatis,
clarus Hyanteae Stella sititor aquae;
fons ibi Castalius vitreo torrente superbit,
unde novem dominas saepe bibisse ferunt:
ille dabit populo patribusque equitique legendum,
nec nimium siccis perleget ipse genis.
quid titulum poscis? versus duo tresve legantur,
clamabunt omnes te, liber, esse meum.
5
10
15
(Aquele que antes era mandado aos povos da Urbe,
irás a Roma agora como livro estrangeiro,
da nação do laurífero Tago e do cruel Salão,
dá-me pátrios manes a terra forte.
Mas hóspede não serás, nem és dito estrangeiro,
tendo tantos irmãos no alto lar de Remo.
Vai com direito ao venerado templo novo,
onde o piério coro volta ao templo
ou, se queres, primeiro vá a Suburra:
lá estão os átrios do meu cônsul
facundo Estela habita os láureos penates.
O ilustre Estela com sede em fonte hianteia,
a fonte Castália se orgulha do fluxo vítreo.
De onde as nove senhoras, como dizem, sempre bebem.
Dar-te ao povo, aos senadores, a équite, a leitura
e ele mesmo, em lágrimas, o lerá por inteiro.
Para quê título pedes? Dois ou três versos leiam-se
e te clamarão todos, livro, que és meu.)
Tanto Marcial quanto Ovídio esperavam que seus livros fossem lidos e tivessem
audiência. Assim como Ovídio em Trist. I, 1,7: nec titulus minio, nec cedro charta notetur –
“Nem o título de vermelho seja adornado nem de cedro, o papel”. Marcial (vv.17-18) coloca
que seu livro não precisa de um título, seus leitores o reconhecerão apenas lendo as primeiras
linhas.
Deve-se acrescentar que, ainda em relação à questão do exílio, do mesmo jeito que
Ovídio descreve Tomos, Marcial descreve a Bilbilis. Mas, para este, a cidade é grosseira,
rude, bárbara e nociva para a sua criação poética – os sentimentos evocados pelo epigramista
parecem um tanto superficiais, se comparados aos evocados por Ovídio. Com relação a
86
Ovídio, o sentimento parece ser mais dramático e lamentoso, visto que o elegíaco foi
realmente para o exílio, longe de tudo o que lhe era querido e não escolheu se retirar da Urbe,
como no caso de Marcial. Ovídio e Marcial, entretanto mostram que o afastamento prejudica
a criação literária, por exemplo, em Ovído, Tristia IV, 1 e V, 12.
De forma distinta da que ocorre no epigrama anterior (XII, 2), em I, 70, o livro é
personificado por Marcial para que vá saudar em seu lugar, Gaio Lúlio Próculo, um rico
patrono do poeta. O objetivo do epigrama é saudar o patrono de Marcial, que parece ser um
homem culto e douto, mas o que chama a atenção é o modo como o poeta descreve a cidade e
suas ruelas. Ele encaminha o seu libellus por entre os templos dos inúmeros deuses da Urbe,
aludindo às estátuas construídas durante o reinado de Domiciano e o próprio culto ao
princeps, incorporando nos versos um viés épico, como o explorado por Virgílio na Eneida,
mostrando que Próculo e Domiciano tem suas virtudes endeusadas – como o Enéias de
Virgílio, o pius. Assim Marcial eleva o tom do epigrama e consegue trazer à memória ecos da
própria epopeia.
Vade salutatum pro me, liber: ire iuberis
ad Proculi nitidos, officiose, lares.
quaeris iter, dicam. Vicinum Castora canae
transibis Vestae virgineamque domum;
inde sacro veneranda petes Palatia clivo,
plurima qua summi fulget imago ducis88.
nec te detineat miri radiata colossi
quae Rhodium moles vincere gaudet opus.
flecte vias hac qua madidi sunt tecta Lyaei
et Cybeles89 picto stat Corybante90 tholus.
protinus a laeva clari tibi fronte Penates
atriaque excelsae sunt adeunda domus.
hanc pete: ne metuas fastus limenque superbum:
nulla magis toto ianua poste patet,
nec propior quam Phoebus amet doctaeque sorores.
si dicet 'Quare non tamen ipse venit?',
sic licet excuses 'Quia qualiacumque leguntur
ista, salutator scribere non potuit'.
5
10
15
(Vai saudar por mim, livro, serás mandado que vá
a casa brilhante de Próculo, serviçal.
88
Referência a uma estátua de Nero que media cem pés de altura (cerca de trinta metros), posteriormente,
Vespasiano substituiu a cabeça de Nero pelo sol, coroado de raios. A estátua era maior do que o Colosso de
Rodes – que é considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo.
89
O culto a Cibele, deusa da fertilidade. O culto a deusa chega a Roma na época das Guerras Púnicas e ocorria
no templo no Palatino, lá ocorriam manifestações orgiáticas e era celebrado com curetes e os coribantes.
90
Dançarinos da deusa Cibele, ornados de capacetes que seguiam o ritmo de um pandeiro, flautas ou címbalos
(Lucr. II. 600-643). Também é o nome das dançarinas do culto de Baco.
87
Questionas o caminho, direi: Castor vizinho à antiga
Vesta passarás e o lar das virgens,
dali, ao Palatino irás por encosta sacra,
onde a estátua do sumo chefe brilha.
Não te prenda a radiante construção colossal,
que gosta de superar a obra ródia.
Vire onde estão os monuementos de Lieu e
Cibele, na abobada que pinta um coribante.
Eis, à esquerda, a frente dos nobres Penates,
te aproxima do excelso átrio do entrar de casa.
Entre aí: não temas a soleira luxuosa e soberba,
qual a porta se abre ainda mais,
nem ama Febo ou as irmãs doutas de mais perto.
Se disser: ‘Porque não vem ele em poesia?’
Se possível, respondas: ‘Porque o que for que aqui se leia,
um saudador não poderia escrever!’)
O epigrama lembra uma das elegias dos Tristia, de Ovídio, a III, 1, em um primeiro
momento, mas, ao longo da obra do elegíaco, há várias referências para que o livro visite a
Urbe, já que o poeta, neste caso, está impossibilitado de ir, como em Tristia III, 7, o poeta está
em Tomos e pede que seu livro vá a Roma sozinho. No epigrama, Marcial pede que seu livro
vá saudar Próculo, em uma intenção direcionada ao patronato. Ovídio pede que seu livro vá
saudar sua sobrinha Perila91, que também, como o patrono de Marcial, possuia algum
interesse pela poesia. O elegíaco tece algumas considerações sobre a poesia e aos dons do
engenho que são bens intransferíveis e que não podem ser tirados do poeta. Seguem os versos
1 a 10, de Trist. III, 7:
Vade salutatum, subito perarata, Perillam,
littera, sermonis fida ministra mei.
aut illam invenies dulci cum matre sedentem,
aut inter libros Pieridasque suas.
quicquid aget, cum te scierit venisse, relinquet,
nec mora, quid venias quidve, requiret, agam.
vivere me dices, sed sic, ut vivere nolim,
nec mala tam longa nostra levata mora:
et tamen ad Musas, quamvis nocuere, reverti,
aptaque in alternos cogere verba pedes.
(Vai saudar, carta escrita às pressas, Perila,
cúmplice fiel de minhas palavras!
Ou a encontrarás junto a doce mãe sentada,
ou entre os livros e suas Piérides.
O que esteja fazendo, ao saber de tua vinda, deixará
91
Filha de Fábia, terceira mulher do poeta; assim como Ovídio, dedicava-se à poesia.
5
10
88
sem demora, por que vens ou que faço perguntará.
Dirás que vivo, mas que assim preferia não viver,
que longo espaço de tempo meus males não remediou,
E que às Musas, embora me tenham prejudicado, voltei-me
e adequadas palavras reúno em pés alternados.)
É de conhecimento que Ovídio não praticou o patronato, nesta elegia o poeta saúda
sua enteada e não a um patrono, mas Perila e Próculo possuíam algum interesse em poesia.
Ovídio discursará sobre a importância da poesia e lembra que o dom do engenho é algo
intransferível e mesmo estando longe, ainda possui capacidade de escrever seus textos (cf. v.
43 e seguintes). Jocosamente, Marcial diz ao seu patrono que não poderia entregar bons
poemas, se tivesse que cumprir as suas obrigações como cliente. Segundo CESILA (2007),
Ovídio se preocupa com a qualidade poética de seus textos quando estes chegarem a Perila
(vv.21-22 e 31-32). Marcial também se inquieta com a qualidade de seus escritos, face às suas
obrigações de cliente, uma vez que estas prejudicam o seu labor literário. Em Vade salutatum
pro me, liber: ire iuberis (v.1) contém alusões claras ao texto ovidiano. A substituição do
poeta pelo livro é marcada pela expressão pro me – “em meu lugar” – tu tamen i pro me, tu,
cui licet, aspice Romam. (Trist. I, 57) – “Mas tu, vai em meu lugar, e tu, a quem é permitido,
visita Roma”.). Ovídio apresenta a substituição, já que se vê impossibilitado de visitar Roma
por causa de seu exílio imposto por Augusto.
Em I, 3,92 em um tom afetuoso, Marcial ainda alude a temática do exilado. O poeta
pede que a plateia seja benevolente, Marcial teme a incompreensão dos críticos e a
inconstância do público romano, em comparação aos outros poetas. Cabe destaque o prefácio
dos Tristia, de Ovídio. A relação entre o livro e Ovídio é única, visto que o livro renuncia aos
adornos que ficariam em seu exterior, tendo como foco a redenção perante a Urbe. A situação
entre o epigramista e o elegíaco é diferente. Marcial ainda está na cidade, mas se sente exilado
na cidade que escolheu como lar, em contrapartida, Ovídio está realmente exilado, longe de
Roma, não se permitindo que ele se comunique com o seu público na Urbe. Logo o livro é a
única opção de contato do autor com seus leitores. Apesar da relativa vantagem, no que se
refere à situação de seu antecessor, parece que Marcial anseia viver o exílio em sua plenitude,
como o poeta elegíaco viveu. Nota-se uma mistura de nostalgia e medo, diante da
inadequação e da dificuldade de estar em um local estrangeiro.
Percebe-se que o livro é personagem principal também no epigrama III, 4:
92
O epigrama foi citado integralmente, no original, seguido de tradução, no primeiro capítulo desta Dissertação.
89
Romam vade, liber: si, veneris unde, requiret,
Aemiliae dices de regione viae;
si, quibus in terris, qua simus in urbe, rogabit,
Corneli referas me licet esse Foro.
cur absim, quaeret; breviter tu multa fatere:
"non poterat vanae taedia ferre togae."
"quando venit?" dicet; tu respondeto: "Poeta
exierat: veniet, cum citharoedus erit."
5
(Para Roma, vá, livro: se de onde vens questionarem,
dirás da região da via Emília;
Se em quais terras e cidades em que estamos questionarem,
podes afirmar: no Fórum Cornélio.
Porque me ausento, tu confessas brevemente:
“Não pode suportar o tédio em toga vã.”
“Quando vem?” Dirá. Tu responderás: “O poeta
desterrou-se: voltará quando for um citaredo.”)
Novamente, Marcial se embebe do sentimento de Ovídio e pede que seu livro vá a
Roma em seu lugar, dando-lhe dicas de como se comportar, se houver quaisquer
questionamentos quanto ao seu paradeiro. Identifica-se mais uma alusão clara a obra do exílio
de Ovídio, principalmente na elegia I, 1, dos Tristia, a partir do verso 15 ao 24, apresentada a
seguir em seu original e a tradução de Patrícia Prata, In: PRATA, 2007, p. 121.
Vade, liber, verbisque meis loca grata saluta!
contingam certe quo licet illa pede.
siquis, ut in populo, nostri non inmemor illi,
siquis, qui, quid agam, forte requirat, erit:
vivere me dices, salvum tamen esse negabis;
id quoque, quod vivam, munus habere dei.
atque ita tu tacitus, (quaerenti plura legendum)
ne, quae non opus est, forte loquare, cave!
protinus admonitus repetet mea crimina lector,
et peragar populi publicus ore reus.
20
(Vai, livro, e saúda com minhas palavras os lugares que me são caros!
Tocá-los-ei, indubitavelmente, pelo pé que me é permitido.
Se lá existir alguém, em meio a tanta gente, que se lembre de mim,
Se por acaso alguém quiser saber o que estou fazendo,
Dirás que vivo, que esteja bem, todavia, negarás,
E até mesmo isso, o fato de viver, é dádiva de um deus.
E então tu, silencioso - deve ler quem procura saber mais Acautela-te de falar casualmente o que não é necessário!
Imediatamente, advertido, o leitor recordará meus crimes
E serei condenado como réu público pela boca do povo.)
90
No momento descrito, Ovídio demonstra o distanciamento do livro e começa a
questionar sobre a vida dele e lembrar com nostalgia da cidade. Marcial não está tão longe
quanto Ovídio, mas se apossa dos sentimentos ovidianos ao compor o epigrama. Observa-se
um paralelo com o texto de Ovídio: Cur absim, quaeret; breviter tu multa fatere:/ "Non
poterat uanae taedia ferre togae (vv.5-6). Aqui Marcial introduz, após os questionamentos
sobre sua partida (v.5), a sua insatisfação com a vida de cliente. O problema não é a distância
geográfica, mas o sentimento de marginalização de sua arte. Ele se sente exilado dentro da
cidade que escolheu como lar, uma vez que é forçado a viver em uma situação que não lhe é
cômoda. Assim como em Trist. I, 1, 19 e segs., Marcial pede que seu livro não fale muito
(v.5), porém a intenção do epigramista é diferente daquela que Ovídio tem, o elegíaco pede
que o livro não fale muito, porque teme que o que escreveu possa complicar sua situação no
exílio. De modo dramático, Marcial termina assim o epigrama: “Quando venit?” dicet; tu
respondeto: "Poeta/ exierat: veniet, cum citharoedus erit." (vv.7-8). O que significa que só
retornará quando aprender uma nova profissão que lhe renda algo.
Assim como na elegia primeira do primeiro livro dos Tristia, observa-se, no epigrama
X, 104, que Marcial deseja que o seu livro faça uma viagem segura. O epigramista descreve,
com muita precisão, o caminho que o livro poderá seguir desde a estrada de Tarraco até
Bilbilis. Marcial diz que o livro pode cumprimentar os seus amigos e interrompe as
recomendações para que a obra não se atrase em sua viagem:
I nostro comes, i libelle, Flavo
longum per mare, sed faventis undae,
et cursu facili tuisque ventis
hispanae pete Tarraconis arces:
illinc te rota tollet et citatus
altam Bilbilin et tuum Salonem
quinto forsitan essedo videbis.
quid mandem tibi quaeris? ut sodales
paucos, sed veteres et ante brumas
triginta mihi quattuorque visos
ipsa protinus a via salutes,
et nostrum admoneas subinde Flavum
iucundos mihi nec laboriosos
secessus pretio paret salubri,
qui pigrum faciant tuum parentem.
haec sunt. iam tumidus vocat magister
castigatque moras, et aura portum
laxavit melior. vale, libelle:
navem, scis, puto, non moratur unus.
5
10
15
91
(Vai, livrinho, com meu amigo Flavo,
por um longo mar, mas a favor das ondas,
e, em curso veloz nos teus ventos,
procura o ponto mais alto da Hispânia Terragona.
Dali, a roda te levará, sacudido,
e verás a alta Bilbilis e o teu Salão
e talvez cinco carroças.
Por que te mando, perguntas? Para os amigos,
poucos, mas antigos, que faz trinta
e quatro brumas que por mim não são vistos.
Da mesma via ao longe cumprimentas
e lembres incessantemente do nosso Flavo,
que um retiro agradável e sem trabalhos
por preço útil para mim encontre
e que faça preguiça em seu mestre.
É isso: já inchado te chama o condutor
e censura a demora. Bons ventos
liberam o porto. Adeus, livrinho!
Um navio, sabes, creio que não espera um só.)
Percebe-se que o mar é o fio que liga a elegia de Ovídio ao epigrama de Marcial. Para
Ovídio, o mar não lhe traz calma e tranquilidade, por exemplo, Et mea cumba, semel vasta
percussa procella, / Illum, quo laesa est, horret adire locum (Trist.I, 1, 85-86) – “E minha
barca, uma só vez golpeada pela terrível tempestade, tem horror de ir àquele lugar em que foi
danificada”. Em muitos trechos, o mar é a causa mortis, o causador de uma sensação de
sufocamento, já que a imensidão do mar engole a vida e lhe tira o fôlego.93 Em Marcial, o mar
é a porta de saída do livro, que parte para Urbe e as ondas e os ventos marítimos são
favoráveis para que o livro possa viajar em paz. A forma como Marcial constrói o epigrama
recorda ao leitor a forma como Ovídio construiu a elegia, pois assim como o elegíaco, o
epigramista se atenta às condições climáticas. Não é algo aleatório no epigrama, a
preocupação de Marcial com as condições do tempo. O poeta assume, mais uma vez, uma
atitude protetora para o seu livro (v.14).
Já no epigrama III, 2, o livro assume o papel de mensageiro e o poeta constrói o seu
texto em um tom amigável e cortês, sem a usual ironia:
Cuius vis fieri, libelle, munus?
festina tibi vindicem parare,
ne nigram cito raptus in culinam
cordylas94 madida tegas papyro
vel turis piperisve sis cucullus.
93
94
Ver também Trist. I, 2, 33-36.
Atum novo que não atingiu um ano de idade. (cf. SARAIVA, 2006)
5
92
Faustini fugis in sinum? sapisti.
cedro nunc licet ambules perunctus
et frontis gemino decens honore
pictis luxurieris umbilicis,
et te purpura delicata velet,
et cocco rubeat superbus index.
illo vindice nec Probum timeto.
10
(De quem queres ser, livrinho, presente?
Apressa-te a conseguir um patrono,
para que em negra cozinha, depressa pego,
não cubras o atum com papel molhado,
nem sejas de incensos ou de pimentas o cartucho.
Foges ao seio de Faustino? Espertinho!
Podes agora caminhar banhado em cedro
e, gracioso na dupla honra da fronte,
com os cilindros pintados exceder,
e a delicada púrpura te velar,
e o quermes95 enrusbeça o orgulhoso título.
Nem Probo temerás com tal defensor!)
Todo o epigrama é construído em forma de bilhete para um destinatário distante, com
uma breve lembrança do tom com que Ovídio constrói a sua elegia. O livro de ambos os
poetas se apresenta sem as características para que um livro tenha quaisquer méritos. Apesar
de Ovídio não se ater ao exterior de seu livro, Marcial precisa que seu livro esteja bem ornado
para que lhe possa garantir alguma proteção futura. A seguir os versos 5 a 12 da elegia I, 1 de
Tristia:
nec te purpureo velent vaccinia fuco—
non est conveniens luctibus ille color—
nec titulus minio, nec cedro charta notetur,
candida nec nigra cornua fronte geras.
felices ornent haec instrumenta libellos:
fortunae memorem te decet esse meae.
nec fragili geminae poliantur pumice frontes,
hirsutus sparsis ut videare comis.
10
(Nem as violetas roxas te cubram de púrpura Não combina com lutos tal cor Nem o título de vermelho seja adornado nem de cedro, o papel,
Nem leves cornos brancos com uma fronte negra!
Que esses ornatos embelezem livros alegres:
A ti, convém a lembrança da minha sorte.
Nem as duas frontes sejam polidas pela frágil pedra-pomes,
Para que te vejam hisurto, de cabelos desalinhados .)
95
Segundo CAIROLLI (2014, p. 214): cochonilha que produz uma tinta de cor escarlate.
93
Ovídio precisa que seu livro tenha uma capa preta e triste (v.8), Marcial entrega a sua
obra para algum patrono para que o papel deste se livre da fumaça de uma cozinha escura e do
destino infame de servir de embrulho para peixe, ficando impregnado de cheiros
desagradáveis (vv. 2-5). Ovídio espera que sua obra tenha um tom mais humilde, Marcial quer
que seu trabalho seja brilhante, com enfeites exagerados (v.8). Parece dessa forma que
Marcial possui certa vantagem sobre o seu antecessor. O livro do epigramista tem um
destinatário que possa distribuí-lo na cidade, enquanto Ovídio não possui um destinatário
específico. Talvez o livro do elegíaco encontre alguma dificuldade pelo caminho: qui mihi
monstraret, uix fuit unus, iter (Cf. Trist. III. 1, 22) – “Houve apenas um que me mostrasse o
caminho”.
Ainda em relação ao epigrama III, 2, percebe-se que Marcial recupera alguns
vocábulos usados por Ovídio pra criar uma situação completamente nova. Como no v. 2, o
livro é um fugitivo – vindicem parare -, Faustino é o único que lhe pode conceder a salvação
e a defesa a quaisquer críticas – illo vindice nec Probum timeto (v.12). O livro de Ovídio não
tem certeza de que será bem recebido na Urbe, o poeta se encontra sozinho e distante.
Finalmente, é de relevância a presença dos mitos nos escritos de Marcial, mesmo que a
intenção do poeta não seja tratá-los com seriedade, ele perfaz os caminhos dos mitos para
construir alguns de seus textos. O tratamento mitológico nos epigramas de Marcial é bem
variado: ora trata o mito a partir de alusões irônicas, ora ele é utilizado em contextos
diferentes – talvez tenha sido influenciado pelas sátiras de Lucílio. Mas não se pode ignorar a
influência ovidiana quanto ao trato do tema, uma vez que o elegíaco foi o primeiro a romper
com a tradição mitológica, produzindo uma série de escritos baseados na reunião do que é real
e do que seria de natureza fictícia. Marcial recupera a capacidade de manipular o mito em
favor do texto, agora incluindo o mito no viés epigramático com notas irreverentes e irônicas.
Dentre inúmeras referências mitológicas, tem-se o epigrama X, 4, já traduzido no
primeiro capítulo. Quanto a Ovídio, segue a passagem de Trist. II, 1, 395-406.
Qui legis Electran et egentem mentis Oresten,
Aegisthi crimen Tyndaridosque legis.
nam quid de tetrico referam domitore Chimaerae,
quem leto fallax hospita paene dedit?
quid loquar Hermionen, quid te, Schoeneia virgo,
teque, Mycenaeo Phoebas amata duci?
quid Danaen Danaesque nurum matremque Lyaei
haemonaque et noctes cui coiere duae?
quid Peliae generum, quid Thesea, quiue Pelasgum
Iliacam tetigit de rate primus humum?
400
94
huc Iole Pyrrhique parens, huc Herculis uxor,
huc accedat Hylas Iliacusque puer.
405
(Tu que lês Electra e o insano Orestes
Também lês o crime de Egisto e da Tindárida.
Com efeito, que direi do severo vencedor da Quimera,
Que uma pérfida hospedeira quase levou à morte?
O que falarei de Hermíone, de ti, virgem Esquenéia,
E de ti, ó Febéia, amada do general Miceno?
O que de Dânae, e da nora de Dânae, e da mãe de Lieu?
E de Hémon e daquele para quem a noite se duplicou?
O que do genro de Pélias, o que de Teseu ou daquele Pelasgo,
Que primeiro atingiu em uma nau a terra ilíaca?
Aqui Íole e a mãe de Pirro, ali a esposa de Hércules,
Acrescente-se também Hilas e o jovem troiano.)
Tanto Ovídio quanto Marcial faz uma espécie de catálogo de personagens mitológicos.
O epigrama é destinado a Mamurra e apresenta um diálogo íntimo sobre a própria inventiva
epigramática (v.8), sobre a condição humana (v.10) e sobre o autoconhecimento (v.12).
Ovídio tenta banalizar o assunto com uma pergunta retórica, apontando para a futilidade dos
recursos mitológicos, a fim de treinar o leitor. A recuperação dos personagens literários
aparece como forma de um jogo – muito inteligente – de notações.
O termo Colchidas (v.2 do epigrama) parece ter sido tirado das Metamorfoses de
Ovídio (VIII, 6-151), onde o poeta descreve o retrato da figura mitológica. Parece que todos
os personagens retratados por Marcial se encontram unidos pelos crimes que cometeram
contra algum ente próximo. Nota-se que Édipo está ligado a Scylla, pois ambos mataram seus
pais, enquanto Medeia e Thyestes se interligam, já que ambos atentaram contra a vida de
crianças. Ovídio cita o mito de Hylas (v.406), Marcial também faz menção ao personagem
(v.3), companheiro de Hércules durante a expedição dos Argonautas, que fora sequestrado
pelas ninfas96.
Outros nomes são mencionados por Marcial e que estão ligados ao excerto
apresentado de Ovídio, como a menção a Hermafrodito, filho de Afrodite e Hermes,
transformado em um ser andrógeno por uma ninfa. Ovídio, em Met. IV, 285-388 narra a
metamorfose do personagem. O mito retorna em Apo. 174, onde o epigramista reformula o
que foi contado por Ovídio, em Met. IV, 378-379: nec duo sunt et forma duplex, nec femina
dici / nec puer ut possit, neutrumque et utrumque videntur – “se uniram, não são dois, mas
uma forma dupla,/ nem rapaz, nem mulher, e que a um ou outro parece”.
96
Ver também Georg. 3, 6.
95
V – CAPÍTULO 4: Rumpitur invidia quidam: e quando aparecem os invejosos? Aspectos
sobre o plágio nos epigramas de Marcial
Na Introdução deste trabalho, comentou-se a respeito do ônus que Marcial carregou
por ter fama em todo o mundo. Foram citados os primeiros versos do epigrama IX, 97, onde o
poeta faz menção a certo cobiçoso que “estoira” de inveja. Julgou-se que não haveria nada
mais apropriado para nomear o capítulo que segue, onde se pretende expor as noções de
plágio e as referências ao tema nos Epigrammata.
4.1 O livro e sua circulação literária
Desde seus primórdios, a civilização romana entrou em contato com a escrita. Os
primeiros registros históricos de documentos escritos datam do fim do século VI a.C. Para o
desenvolvimento da escrita literária foi de suma importância à conquista da Magna Grécia, ao
sul da Itália. Os romanos, ao entrarem em contato com uma literatura que conhecera séculos
antes em seu apogeu, passam a considerar como fonte metodológica e cultural a produção dos
autores gregos. Não se deve esquecer que a imitatio se relaciona não a uma cópia servil de
modelos anteriores, mas a um reconhecimento de um modelo que deve ser suplantado.
Destaca-se que a oralidade nunca foi abandonada dentro do processo de criação, pois
estava relacionada com o processo de “publicação” das obras e importante ensinamento para
os oradores romanos, com o ensino da eloquentia e da arte retórica. Entende-se que os livros
“publicados”, naquela época, tinham como função serem ouvidos e lidos em voz alta em
praças públicas ou em encontros privados, uma vez que a sociedade antiga era uma sociedade
essencialmente oral.
Dado ao exposto, apesar do advento dos meios de comunicação e da rápida
transmissão de ideias no mundo ocidental, o livro ainda permanece firme no epicentro da
cultura literária. Nas linhas a seguir, é proposto um esboço sobre como o livro, na
Antiguidade Clássica, foi composto, copiado e distribuído aos leitores à época.
A primeira imagem que se tem ao falar sobre o livro em Roma, é a imagem do livrorolo – volumen – que consistia em uma longa faixa feita de papiro ou pergaminho. O formato
teve maior utilização na Antiguidade. Quando não havia nenhum destes materiais à
disposição, a escrita era feita em folhas de palmeiras, metais ou em simples tábuas de
madeira, sem a camada de cera, ou com a entrecasca das árvores – liber.
96
Com os egípcios, começa a produção do papiro (papyrus) para a confecção dos rolos,
volumen - onde eram escritas as obras literárias, por volta de 2500 a.C. Confeccionava-se o
papiro com a parte interna – branca e esponjosa – da planta Cyperus papyrus. Cortava-se o
material retirado em finas tiras que eram mergulhadas em uma solução de vinagre e água,
depois eram sobrepostas e cruzadas em uma superfície lisa para que fossem prensadas e
regadas no Nilo por seis semanas, formando um papel fino. A seiva da planta servia como
cola, unindo as tiras, formando um papel compacto. O volumen era formado de seis a dez
metros de comprimento e dividido em colunas verticais – paginae.
O volumen era enrolado em uma vareta de madeira ou marfim, criando um rolo,
visando o melhor armazenamento. A escrita ocorria em paralelo às fibras do papiro. Para que
o leitor pudesse ler o rolo, era necessário que usasse as duas mãos para desenrolá-lo –
evoluere - e desdobrasse-o – explicare - enquanto lia. As bordas do papiro, que eram
chamadas de umbilici ou cornua, precisavam ser reforçadas para que não ocorresse desgaste
do material. Ovídio se refere às Metamorfoses como um trabalho de quinze volumina: Sunt
quoque mutatae, ter quinque volumina, formae, carmina de domini funere rapta sui (Trist. III,
14, 19-20) – “Há também quinze volumes das Metamorfoses,/ Versos arrancados ao funeral
de seu dono”.) 97
A falta de uma palavra que definisse o livro propriamente fez com que os autores
abrissem mão de expressões perifrásticas para que houvesse uma identificação com o que se
conhece modernamente por livro. Para isto, fez-se uso de expressões como versus, carmen,
poemata, commentarii, epistulae, ou o diminutivo de liber – libellus-, expressão utilizada
principalmente na poesia.98 Marcial lança mão de outros termos para designar o seu livro,
assim como o diminutivo de liber: opus, charta, membrana (o caderno de pergaminho),
versus ou carmen.
Com o passar do tempo, a utilização do papiro se tornou impraticável, visto que os
volumes eram muito grandes e de difícil escrita quando havia alguma anotação para se fazer.
Ademais, o material era escasso e o preço muito alto. Para reverter esta situação, no século III
a.C., o povo de Pérgamo, na Ásia Menor, substituiu o material pelo pergaminho.
O processo de formação do pergaminho ocorria da seguinte maneira: em uma solução
de hidróxido de cálcio, eram postos pedaços de pele de animais, geralmente de cabra,
97
Tradução: Prata, 2007
Ver, por exemplo, em Catulo, 1 (v. 1-2): Cui dono lepidum novum libellum/ arida modo pumice expolitum? –
“A quem dou um belo e novo livrinho/ há pouco árido polido com pedra-pomes?”; e em Marcial, Ep. I pref.:
Spero me secutum in libellis meis tale temperamentum ut de illis queri non possit quisquis de se bene senserit –
“Eu tendo seguido tamanha moderação nos meus livrinhos, espero que qualquer um que se sinta bem consigo
não possa reclamar deles” – tradução nossa.
98
97
carneiro, cordeiro ou ovelha. Com a pele úmida, limpava-se com uma espécie de foice para
que o produto ficasse liso. Após o processo, o pergaminho era posto para secar, esticado em
uma moldura e banhado em outro tipo de solução para que nada lembrasse uma pele de
animal. O vellus era um tipo de pergaminho bem tratado. Estas peles tratadas davam um
material de escrita fino, macio e claro, usado para documentos e obras importantes.
Para escrever era preciso o uso de graphium ou calamus, que possuía uma ponta
transversal que conferia à escrita uma caligrafia elegante, dependendo da finura da ponta,
feitos com junco e mergulhados em tinta, que consistia em uma mistura de carvão à qual que
se adicionava goma, ou algumas substâncias metálicas para que se tivesse fluidez e
consistência.
Marcial é o primeiro poeta a falar sobre o uso do pergaminho para a confecção de uma
obra literária, conforme XI, 1, por exemplo:
Quo tu, quo, liber otiose, tendis
cultus Sidone99 non cotidiana?
numquid Parthenium videre? Certe:
vadas et redeas inevolutus.
libros non legit ille sed libellos100;
nec Musis vacat, aut suis vacaret.
ecquid te satis aestimas beatum,
contingunt tibi si manus minores?
vicini pete porticum Quirini:
turbam non habet otiosiorem
Pompeiusvel Agenoris puella,
vel primae dominus levis carinae.
sunt illic duo tresve qui revolvant
nostrarum tineas ineptiarum,
sed cum sponsio fabulaeque lassae
de Scorpo fuerint et Incitato.
5
10
15
(Aonde tu, aonde, livro ocioso, vais
enfeitado pela púrpura não cotidiana?
Por acaso verás Partênio? Certamente
vais e voltas não desenrolado.
Livros, ele não lê, apenas petições.
Não tem tempo para as Musas ou teria para as suas.
Acaso pensa que é suficiente feliz,
se te caiu em sorte por mãos pequenas?
Procura o pórtico ao lado de Quirino:
não tem uma multidão mais ociosa
99
Sidon: cidade fenícia, famosa pela produção de púrpura.
A acepção escolhida para esta tradução se deve ao uso do vocábulo em Suetônio, com o significado, no
plural, de petições ou requerimentos (cf. SARAIVA, 2006.)
100
98
nem Pompeu ou a filha de Agenor,
ou o leviano guia do primeiro navio.
Existem ali dois ou três que folheiam
as traças de minha loucura,
mas só quando a aposta e as historinhas fatigadas
sobre Escorpo e Incitato terminarem.)
Na Roma Antiga, havia outros tipos de formatos e materiais para a escrita, como os
lintei, tiras de linho que eram usados em assuntos ligados à religião, por exemplo, o registro
de hinos. Havia as tabellae, material popular que consistia em tábuas de madeiras que
poderiam ser cobertas ou não por cera. Para escrever nas tábuas, seria necessário o uso de
stylus, uma espécie de caneta de metal ou de madeira com ponta aguda que servia para
escrever sobre a cera, ou de ponta redonda para apagar o que foi escrito. As tabellae se
assemelham ao caderno moderno e poderiam ser reutilizáveis (Cf. LEITE, 2013). Observemse, por exemplo, os materiais, nos Apophoreta: em XIV, 3 “Tabuinhas de cedro”; em XIV, 5,
“Tabuinhas de marfim”; e, em XIV, 7, “Pergaminho”. Seguem os exemplos citados:
XIV, 3 – Pugillares citrei:
Secta nisi in tenues essemus ligna tabellas,
essemus Libyci nobile dentis onus.
(Se fôssemos madeiras cortadas em finas tábuas,
seríamos o nobre peso do marfim líbio.)
XIV, 5 - Pugillares eborei:
Languida ne tristes obscurent lumina cerae,
nigra tibi niveum littera pingat ebur.
(Para que as ceras medonhas não escureçam os olhos cansados,
que as letras negras sejam pintadas no marfim branco.)
XIV, 7 - Pugillares membranei:
Esse puta ceras, licet haec membrana vocetur:
delebis, quotiens scripta novare voles.
(Julga ser de cera, embora seja chamada de membrana.
Apagarás quantas vezes desejares renovar os escritos)
99
Outros termos são importantes: scrinium, um estojo cilíndrico com uma tampa
superior, que servia para guardar o rolo de papiro ou pergaminho, em um tamanho menor este
rolo era chamado de capsa. O termo bibliotheca designava uma estante em que se guardavam
os volumes, mais tarde o sentido se ampliou para significar uma coleção de livros em um
determinado cômodo.
O uso do pergaminho também se tornou obsoleto, o que permitiu o aparecimento do
códice, o livro tal qual se conhece hoje, em que as folhas eram costuradas em forma de
caderno. O codex era um tipo de tabuinha de madeira, o termo designava o conjunto de
tabullae enceradas, unidas por um cordão, permitindo que se folheasse a obra em quaisquer
seções sem a obrigação de ler continuamente, conferindo mobilidade e portabilidade.
Pouco se sabe sobre a circulação e o comércio de livros romanos na Antiguidade, mas
é sabido que a atividade editorial, no findar da República, era muito significativa. As obras
literárias circulavam em determinados círculos sociais, influenciados pelos interesses
literários, pelo status social e pelo círculo de amigos que regulavam os critérios de amizade
do mundo antigo.
É relevante estudar o processo de publicação de uma obra na Antiguidade, tendo em
vista as dificuldades que o escritor do século I d.C. enfrentava para que a sua obra fosse
divulgada. Cabia ao autor a inspiração para escrever a sua obra. Após a confecção, o escritor
tinha três meios para que sua obra fosse divulgada. Ele poderia enviar uma cópia de sua obra
para algum amigo de confiança para que este fizesse seus comentários e críticas. As cópias
enviadas eram feitas ou pelo próprio autor, ou por algum escravo copista. Cícero, por
exemplo, pedia conselho a Ático, célebre editor e patrono das letras. Ao ler os escritos de
Cícero, Ático marcava os trechos que necessitavam de revisão com pedaços de cera101.
Horácio aconselha que, antes de mostrar o seu livro aos amigos, é preciso que o autor revise
os seus escritos, pois nescit vox missa reverti (Ars. 390) – “a palavra expressa não pode
voltar”.
O autor também poderia chamar seus amigos para a recitação de sua obra a fim de
suscitar comentários e reações. Só os amigos mais próximos poderiam participar da recitação
e nesta incluía os patronos e clientes.
Na Grécia Antiga, surgem os primeiros relatos de transmissão oral de uma obra
literária, mais tarde os textos recitados se transpõem para a transmissão escrita. Já em Roma,
Asínio Polião, patrono de Virgilio, foi criador do processo de recitatio, na época imperial,
101
Att. XV, 19, 27 e XVI, 11.
100
sobretudo à época de Augusto, promovendo a leitura da obra literária diante de um público
que poderia ser restrito ou não. As recitações ocorriam em locais públicos como teatros,
termas, odeons, no fórum ou nas tabernae librariae, uma espécie de livraria. Horácio, Virgílio
e Propércio, por exemplo, foram famosos autores que praticaram a recitação pública.
A recitação teve adesão das classes abastadas, que possuíam uma educação voltada
para a oratória. O processo era incluído no ensino de oradores, em que a leitura em voz alta e
a escrita eram movimentos indissociáveis. A recitação se tornava meio principal para que o
autor fosse publicado e divulgado entre os seus – possíveis – leitores. Dependendo da ocasião,
o autor contratava um leitor para obra ou quando o público fosse maior e mais importante,
como em competições de recitação, ele mesmo lia.
É no primeiro século depois de Cristo que a recitatio tornou-se popular na vida
literária da Urbe, pois era uma forma de propaganda gratuita de uma obra literária. E, de
alguma forma, estava relacionada com o papel do patronato em Roma, uma vez que o autor
precisaria de alguma proteção, por exemplo, se escrevesse algo ofensivo. Ou o patronato nas
letras seria um meio de propagar a obra escrita, porque o patrono, como dito, era bem
relacionado em diversas esferas da sociedade. Logo, não é surpreendente encontrar a figura do
patrono em destaque na vida dos autores, como o imperador Augusto, nas Bucólicas e na
Eneida, de Virgílio, ou Domiciano, nos epigramas de Marcial.
Plínio, o Jovem apresenta em suas cartas diversos relatos de reuniões particulares para
recitação de uma obra. Estas reuniões ocorriam na casa do autor ou de seu amigo mais
próximo. Ovídio, mesmo exilado em uma região remota e inóspita, praticava a recitação
diante de uma plateia de bárbaros pitorescos.102
Além dos locais propícios para a recitação, também ocorriam leituras em alguns
eventos sociais como em banquetes, quando um escravo ou liberto lia para os convidados
reunidos à mesa. A leitura no mundo antigo era uma prática de grupo que fabricava a
agregação social entre as pessoas, até mesmo nas leituras privadas na casa do autor, visto que
a leitura pública contribuía para a solidificação de vínculos de amizade e estabelecimento de
novas relações sociais. Nota-se tal fato, por exemplo, no epigrama I, 63:
Ut recitem tibi nostra rogas epigrammata. Nolo:
non audire, Celer, sed recitare cupis.
(Tu pedes que te recites meus epigramas. Não quero.
Não desejas ouvi-los, Céler, mas recitá-los.)
102
Ver, por exemplo, Ex Ponto IV, 13.
101
O poeta acusa Céler de querer copiar os seus versos enquanto este recita em voz alta,
mas o epigramista logo recusa o pedido de Céler. Também é possível interpretar de outra
forma: é melhor recitar para que Céler ouça do que ouvir a Céler recitando algo ruim.
Em VII, 51, Marcial toma para si as relações sociais que envolvem o processo de
recitação ao sugerir que Úrbico convide para jantar Pompeio Aucto, que recitará os versos do
poeta de cor. Marcial quer ver como se sairá o mau recitador.
Mercari nostras si te piget, Urbice, nugas
et lasciva tamen carmina nosse libet,
Pompeium quaeres — et nosti forsitan — Auctum;
ultoris prima Martis in aede sedet:
iure madens varioque togae limatus in usu
5
non lector meus hic, Urbice, sed liber est.
sic tenet absentes nostros cantatque libellos
ut pereat chartis littera nulla meis:
denique, si vellet, poterat scripsisse videri;
sed famae mavult ille favere meae.
10
hunc licet a decuma — neque enim satis ante vacabit —
sollicites, capiet cenula parva duos;
ille leget, bibe tu; nolis licet, ille sonabit:
et cum "Iam satis est" dixeris, ille leget.
(Se comprar as minhas bagatelas, Úrbico, te aborrece,
embora, os versos lascivos queiras conhecer,
a Pompeu Aucto – a quem talvez conheças – perguntarás.
Ele está sentado à entrada do templo de Marte Vingador,
umedecido em leis, polido nos usos variáveis da toga.
Ele não é meu leitor, Úrbico, mas é o livro.
Mesmo ausentes, possui e declama os meus livrinhos,
que letra alguma falta de minhas folhas.
Em suma: se quisesse, poderia parecer que escreveu,
mas ele prefere se favorecer da minha fama.
A partir da décima hora, com efeito, antes não terá tempo suficiente,
solicitas, e a ambos concederá um banquetizinho.
Ele lerá, tu bebe, ainda que não queiras; ele cantará
e mesmo que lhe digas: “É o bastante”, ele lerá.)
A liberação da obra para as outras pessoas, que não faziam parte do seu círculo de
amigos e patronos, indicava que a obra já estava pronta e o livro já não teria o controle de seu
autor. Em IV, 72, Marcial envia o seu livro à livraria para que não gastasse seu dinheiro com
as cópias que seriam dadas de presentes aos seus amigos:
Exigis ut donem nostros tibi, Quinte, libellos.
102
non habeo, sed habet bibliopola Tryphon.
"aes dabo pro nugis et emam tua carmina sanus?
non, inquis, faciam tam fatue." Nec ego.
(Exiges que eu doe a você, Quinto, os meus livrinhos.
Não tenho, mas o livreiro Trífon tem.
“Darei uma moeda pelas bagatelas e obterei os teus versos?”
Dizes: “não farei”. Estúpido! Nem eu.)
Os leitores, para que conhecessem a obra de um determinado autor, dependiam dos
editores. Estes publicavam a obra e se ocupavam do envio de uma cópia como presente ou
participar de uma recitação pública para tomar conhecimento sobre a nova obra. É importante
destacar que o livro físico teve papel preponderante nos círculos literários e as recitações
tinham importância dentro do processo de criação dos textos que circulavam em Roma.
Portanto, após os livros serem finalizados com todo o tipo de correção, eram copiados,
encadernados por escravos especializados e poderiam ser oferecidos como presente aos
amigos do mesmo círculo de que fazia parte o autor. Os autores, que gozavam de prestígio
ainda em vida, tinham a sua obra encontrada em bibliotecas e livrarias de Roma. Marcial, em
I, 1, diz que todo mundo o conhece – cite-se novamente a expressão toto notus in orbe
Martialis. O poeta era famoso na Urbe e também em partes mais longínquas do Império e em
todos os bolsos desde os cidadãos mais ilustres até os romanos mais pobres. Então como o
livro era distribuído?
Na Grécia Antiga, desde o século V a.C., se tem notícia da figura do livreiro, porém
sua função não era tão específica. Já em Roma, o comércio livreiro tem seu início durante a
República. Neste período, aparece o ofício de bybliopola, um profissional que exercia a
função de editor e de livreiro, que ficaria responsável pelas cópias do manuscrito e pela
distribuição da obra. Este profissional tinha os librarii como ajudantes, que eram responsáveis
pela cópia de diversos manuscritos. O termo possuía diversas acepções: poderia designar o
escravo-escriba, que seria um tipo de secretário do autor; uma espécie de escrivão oficial da
obra; um escravo-copista que copiava as obras a mando do bybliopola;103 ou até mesmo o
livreiro que repassava os livros para os leitores. Segundo Zanini,
Os autores não tinham, como os livreiros, relações comerciais para vender e espalhar
as obras por Roma e suas províncias. Também não tinham condições de reproduzir
as obras, o que demandava trabalho enfadonho e, às vezes, necessitava de um
copista com tal instrução que não era fácil encontrar. Isso sem falar na adulação e no
servilismo, especialmente diante dos imperadores, o que acabava por ofuscar, muitas
103
Muitos bybliopolae e librarii eram de origem grega, como por exemplo, Trífon, livreiro de Marcial.
103
vezes, o gênio de muitos artistas romanos, que não podiam criar com
independência104.
No epigrama I, 117, Luperco pergunta a Marcial onde pode comprar um de seus
livrinhos de epigramas – libellum epigrammaton (v.3). O poeta lhe responde, através de
informações detalhadas, onde encontrar uma cópia de seu livrinho. Aponta que seus livros são
vendidos em uma taberna libraria (vv.9-12). As pequeninas livrarias se situavam em uma
região privilegiada, em locais de grandes movimentos junto ao Fórum ou ao Circo Máximo.
Occurris quotiens, Luperce, nobis,
'vis mittam puerum' subinde dicis,
'cui tradas epigrammaton libellum,
lectum quem tibi protinus remittam?'
non est quod puerum, Luperce, vexes.
longum est, si velit ad Pirum venire,
et scalis habito tribus, sed altis.
quod quaeris propius petas licebit.
argi nempe soles subire Letum:
contra Caesaris est forum taberna
scriptis postibus hinc et inde totis,
omnis ut cito perlegas poetas:
illinc me pete. +Nec+ roges Atrectum —
hoc nomen dominus gerit tabernae —;
de primo dabit alterove nido
rasum pumice purpuraque cultum
denaris tibi quinque Martialem.
'tanti non es' ais? Sapis, Luperce.
(Me enches, Luperco, toda vez
sempre dizes: “Queres que eu mande o meu escravo
para que entregues o livro de epigramas,
que lido, logo te devolverei?”
Não tem que incomodar, Luperco, o escravo.
É longe, se ele quiser vir ao Piro;
eu moro no terceiro andar, mas é alto.
O que procuras, mais perto podes conseguir.
Costumas ir, certamente, ao Argileto.
Há uma loja em frente ao fórum de César,
com duas colunas, aqui e ali, repleta de cartazes,
em que depressa encontrarás todos os poetas.
Procura-me ali: não peças a Atreto,
este é o dono que trata da loja.
Do primeiro ou segundo compartimento dará,
pela pomes polido e ornado em púrpura,
por cinco denários, é teu um Marcial.
104
(ZANINI, 2013, p. 124.)
5
10
15
104
“Não vales tanto!” Espertinho, Luperco!)
A localização atraía os compradores, uma vez que as obras em “lançamento” ficavam
expostas nos portais das portas (v.11), os pequenos trechos das obras ficavam expostos em
móveis na entrada do estabelecimento.105 Este tipo de publicidade facilitava o reconhecimento
do leitor de um público maior, fora do círculo dos intelectuais. As livrarias serviam ainda para
as recitações públicas. Marcial se beneficiava desse tipo de publicidade para divulgar os seus
livros, mas alguns autores se recusavam a ter trechos de suas obras expostos de qualquer
maneira.106 Muitas vezes, Marcial indicava aos seus leitores as lojas que vendiam os seus
livros. É interessante observar o jogo publicitário que o poeta fazia. Além de divulgar as suas
obras, ele divulgava os seus livreiros preferidos.
Para que o livreiro tivesse a autorização de vender uma obra literária, era preciso que
ele obtivesse a autorização do escritor para que fosse feita a publicação. Após a autorização, o
livreiro comparava o manuscrito revisado previamente pelo autor. Todo o direito que o autor
tinha com a obra, já não lhe pertencia. O livreiro era o detentor de todos os direitos como
também de uma parte dos lucros, já que uma boa quantia ia para os editores que copiavam a
obra até a exaustão. Alguns livreiros, em atitude de má-fé, publicavam os livros de alguns
autores ainda em sua juventude, sem qualquer autorização. Marcial, em VII, 17, mostra o
desejo de encontrar divulgados os seus livros, mesmo que eles estejam dispostos em uma
biblioteca estabelecida em uma região mais simples. Dirige-se a própria Biblioteca:
Ruris bibliotheca delicati,
vicinam videt unde lector urbem,
inter carmina sanctiora si quis
lascivae fuerit locus Thaliae,
hos nido licet inseras vel imo,
septem quos tibi misimus libellos
auctoris calamo sui notatos:
haec illis pretium facit litura.
at tu munere, delicata, parvo
quae cantaberis orbe nota toto,
pignus pectoris hoc mei tuere,
Iuli bibliotheca Martialis.
5
10
(Biblioteca de um campo delicado,
105
O modo como os livros ficavam dispostos, nos umbrais das portas, facilitou, de certa forma, a proliferação de
gêneros literários de rápida leitura, dos próprios epigramas. Além deste fator, as recitações públicas também
foram responsáveis pela popularização dos epigramas.
106
Cf. também Horácio, em Sat. I, 4, 72-73: nulla taberna meos habeat neque pila libellos,/ quis manus insudet
volgi – “Nenhuma taberna, nenhuma coluna terá meus livros/ Para que a mão do povo os molhe com seu suor”.
105
onde o leitor observa uma cidade vizinha,
entre os mais sagrados poemas, se algum espaço
tiver para a minha lasciva Talia,
insere, mesmo que em um compartimento mais profundo,
sete livrinhos que te enviei,
anotados pela caneta do seu autor:
Estas rasuras fazem o seu preço.
com este pequeno louvor a teu aprumo,
serás declamado e conhecido em todo Orbe.
Contempla este presente de meu coração,
oh, Biblioteca de Júlio Marcial.)
Os autores não obtiveram lucros com o comércio livreiro: foram os livreiros que
lucraram. Embora não enriquecesse, um autor possuía um benefício mais duradouro e
estimado: a glória da imortalidade de seus escritos. Segundo Pereira,
Com efeito, enquanto o nome de um indivíduo ficar gravado e for recuperado pelos
seus semelhantes, por força das suas obras, atitudes, vícios ou virtudes, a sua
existência nunca findará por completo. Disso tinha consciência Ovídio. Condenado
ao exílio, vê na escrita uma forma de expressar um pouco da sua dor, não um mero
meio de obter glória. Aproveita para, na sua obra Tristia, ofertar à sua tão amada
esposa os seus versos. Julga de esse modo estar a dar-lhe o maior dos presentes,
superior a qualquer dádiva material (“Non ego diuitias dando tibi plura dedissem”):
a fama imortal (“Perpetui fructum donaui nominis”), o que, juntamente com a sua
virtude, comparável à de Penélope, Alceste, Andrómaca, Evadne, será motivo de
inveja (“inuideantque tibi”). O seu nome será lembrado enquanto os versos forem
lidos (“dumque legar, mecum pariter tua fama legetur”)107.
Além disso, um bom autor possuía a proteção de pessoas influentes, em uma espécie
de mecenato literário. Destaca-se que na Antiguidade não havia quaisquer direitos autorais e
garantias jurídicas contra as cópias indevidas e a circulação dos livros de forma não
autorizada. Ainda não havia uma maneira de limitar a circulação de uma obra, visto que, após
a venda do manuscrito, o autor não detinha mais a posse de sua obra, deixando espaço para
uma ameaça pungente em qualquer processo literário: os plagiadores.
4.2 Uma ameaça: o plágio em Marcial.
Analisa-se primeiro o que o vocábulo plagium tem a oferecer vernaculamente. O
termo deriva-se do grego – π άγιος (“desonesto”) – assumindo um significado referente a
algo doloso e tortuoso. Apesar de o termo ter um sentido diferente daquele proposto pelo
107
(PEREIRA, 2012).
106
direito romano, o vocábulo grego traz o sentido de que era algo que não era certo fazer.
ERNOUT; MEILLET (1951) apontam que o termo, etimologicamente, tem sentido de algo
que seduz e induz. Ainda comentam que o termo foi usado pela primeira vez, como tal se
conhece, por Marcial: “Plagium: vol d'homme, plagiat. Emprunt du gr. plágion. plagiarius
(clas.) qui mancipium vel pecus alienum distrahit seducendo (...); qui induce pueros et seducit
servos. Le sens de ‘plagiaire’ apparait dans Martial I, 53.”108
Já CESILA (2004) comenta que o plagium estava ligado ao furto, que em grego era
representado pelo vocábulo κ οπή, “furto”, “roubo”, “rapto”, relacionado com o furtum
latino, este derivado de fur, “ladrão”. Em grego, o plagiário seria o κ οπή όγος, “o roubo de
palavra” – furtum uerbum.
Conforme CHRISTOFE (1996), a primeira vez que a palavra plagium109 aparece no
direito Romano ocorre no século I a.C. através da Lex Fabia Plagiariis. Tomando como base
o direito romano, o crime de plagium se qualificava como o sequestro e/ou apropriação de um
homem livre para fazê-lo como escravo, como também sequestro de um escravo de outrem
sem autorização do dono. A Lex Fabia Plagiariis foi instituída em 209 a.C., por Fabius
Verrucosus e dizia sobre o direito de propriedade e crime de violação de liberdade. As
sanções eram pecuniárias, mas, com o passar do tempo, a condenação poderia ser trabalhos
forçados ou confisco de bens, por exemplo.
Salienta-se que a sociedade romana era dividida em duas camadas: os patrícios –
classe privilegiada e os plebeus – os clientes e os libertos que dependiam da primeira classe.
Dito isto, em que classe se inseriam os escravos? Em nenhuma, uma vez que não eram
considerados pessoas reais e sim um bem, um objeto ou propriedade de alguém. Logo, o
escravo não tinha nenhum direito, mas se constituía um objeto jurídico.
Em vista disso, o plagium era algo simulado, corruptivo, que poderia ocorrer por
inúmeros motivos e de diversas formas. Tanto quem escravizava e quem deixava se escravizar
seriam culpabilizados, dependendo da intenção criminal. Como punição pagava-se uma multa
108
“Plagium: crime de plagiário; plágio. Emprestado ao grego plágion. plagiarius (clas.), qui mancipium vel
pecus alienum distrahit seducendo (...); qui induce pueros et seducit servos.O sentido de “plagiador” aparece em
Marcial, I, 53.” – tradução nossa.
109
Observem-se os verbetes plagium e plagiarius, por exemplo, nos seguintes dicionários: 1) SARAIVA (2006),
plagium, ii, “crime de plagiário”; plagiarius, “plagiário”, “o que estraga, desencaminha e dá refúgio a escravos
alheios”, “o que desencaminha pessoas” e, em Marcial, “ladrão literário”; 2) ALMEIDA (2001), plagium,
“roubo de escravos”, “plágio”; plagiarius, “aquele que rouba os escravos de outros ou compra ou vende como
escravo uma pessoa livre”, “plagiário”; 3) TORRINHA (1983) plagium, “roubo de pessoa”, “plágio”; plagiarius,
“aquele que rouba escravos alheios ou que secretamente os acolhe”, “o que desencaminha ou rouba pessoas”,
“plagiário”.
107
de 50.000 sestércios ou, em alguns casos, o indivíduo era condenado a confisco ou
humilhação e até a pena de morte.
O escravo não possuía voz jurídica, para que pudesse reivindicar a sua liberdade, ele
precisaria de alguém que o fizesse em seu lugar. Assim, era preciso que se desse início à
causa liberalis para que se decidisse se o escravo seria um liberto ou não, ato incluído em um
processo de vindicatio in libertem e/ ou in servitem. As duas partes do processo eram o
plagiator – aquele que cometia o crime – e o adsertor liberaris – aquele que advogava a causa
do objeto, o escravo. O mecanismo que assegurava a liberdade do escravo era denominado de
manumissio – est autem manumissio datio libertatis, “a alforria (manumissão) é uma dação de
liberdade.”,
110
que era um recurso legal com o qual o escravo passava a ser considerado
cidadão romano, o libertus.
Durante a República, havia a noção de actio iniuriarum, que estava relacionada à
iniuria e a delitos semelhantes. Tal noção não só procurava proteger a dignidade e a reputação
de um indivíduo, mas também sua integridade física. Entretanto, com o decorrer do tempo, a
noção do crime se amplia, passando a envolver diversos delitos, como o ataque aos bons
costumes e à boa fama de uma mulher, por exemplo. Com a evolução do direito romano, o
entendimento também evolui, assegurando a proteção contra qualquer lesão que possa ocorrer
em relação à personalidade de alguém, diferente de uma lesão física. ZANINI (2013) aponta
que esta noção possa ter sido usada para julgar os casos de plágio ou a publicação sem o
consentimento do autor, em proteção à honra deste. Considerando esse sentido, uma obra
literária é uma projeção das características da personalidade de um autor, então o plágio
ofenderia a personalidade do autor e estaria intrinsecamente ligado à noção de actio iniuriam.
Porém, Marcial aponta que havia a possibilidade de um tipo de ghost-writer, ou seja, uma
pessoa que, embora tivesse escrito um texto, não receberia os créditos por ele. Quem o
receberia seria aquele que contratou o serviço, como se vê no epigrama I, 66.
Metaforicamente, o vocábulo plagium designa a apropriação de uma obra, seja de
qualquer tipo, como se fosse propriedade do plagiador. Tal crime acarretava o repúdio do
público e o criminoso retirava do plagiado quaisquer notoriedades e glórias pessoais.
Recorde-se que, após a venda do manuscrito ao livreiro, o autor não recebia lucros, restava a
ele a imortalidade de sua obra, por isso talvez não houvesse nenhuma sanção pecuniária ou
penal. O plágio estava ligado diretamente a uma ofensa ao engenho do poeta.
110
Justiniano, Institutiones I, 5.
108
Segundo ZANINI (2013), na Grécia, em 330 a.C., havia uma lei que ordenava um
depósito de cópias exatas das obras clássicas nos arquivos estatais. O copista e o autor teriam
que respeitar os arquivos depositados. É também na Grécia, em 650 a.C., que alguns pintores,
para que a autoria de seus vasos fosse reconhecida, assinavam o objeto, preservando o direito
de paternidade. No século VI a.C., Teógnis de Mégara menciona que criou um selo autoral,
um tipo de assinatura – sphragís (σφραγίς), que tinha como função prevenir o roubo de sua
obra literária.
Então, percebe-se que já na Grécia daquele tempo havia acusações de plágio. ROCHA
(2001) conta que Philostráto de Alexandria acusava Sófocles de ter plagiado Ésquilo, que
plagiou Frínico e este a algum antecessor. Platão acusava Eurípedes de ter reproduzido
integralmente a Anaxágoras, por exemplo. Na Roma antiga, o direito do autor era transferido
ao livreiro da época, pois ele detinha os direitos de reprodução de uma obra literária, mas o
direito de publicação ainda era do autor. Para Ático, Cícero questionou se seria justo que um
livro fosse publicado sem o seu consentimento. Virgílio foi constantemente acusado de
plagiar a Homero com a Eneida, obra que foi construída através do processo imitativo de duas
obras homéricas – Odisseia e Ilíada.
Antes de seguir com esta explanação, é preciso que se faça uma diferenciação entre
que seria o plágio e o que seria o processo de imitatio. O processo imitativo, como já se falou
no capítulo terceiro, era um processo de imitação de um modelo vinculado a uma tradição,
não se tratando de uma cópia ipsis litteris, mas um exercício para se chegar a excelência
literária, ligado ao processo de aemulatio, o desejo de superação da obra imitada. A diferença
entre o plágio e a imitatio reside no fato de que o processo imitativo está relacionado com o
processo criativo do autor antigo e o desejo de superá-lo, enquanto o plágio é apenas a
imitação servil.
Dito isto, volta-se a explanação do tema. De acordo com PEREIRA (2012), nem
sempre a memória de um texto conferia autenticidade do nome dos verdadeiros autores ou,
em algumas ocasiões, o estilo e a linguagem se aproximavam do estilo de um determinado
autor ao qual era conferida a autoria, sem que essa fosse verdadeira. Havia ainda os casos de
pseudônimos, que também dificultavam o reconhecimento autoral. Em casos escassos, os
pseudônimos conferiam certa autoridade ao texto.
Assim, resumidamente, conforme SCHNEIDER (1990, p.48), plágio poderia ser
conceituado como
109
... um comportamento refletido que visa o emprego dos esforços alheios e a
apropriação fraudulenta dos resultados intelectuais de seu trabalho. Em seu sentido
estrito, o plágio se distingue tanto da criptomnésia, esquecimento inconsciente das
fontes, ou da influência involuntária, pelo caráter consciente do empréstimo e da
omissão das fontes. É desonesto plagiar. O plagiário sabe que o que [ele] faz não se
faz.
Então constata-se que o plágio é algo consciente, relacionado com a má-fé em
utilizar um texto que não é próprio. Significa utilizar palavra por palavra, incluindo as ideias e
até mesmo os erros, sem denunciar o nome do verdadeiro autor. Para PEREIRA,
O plágio não espelhava apenas um roubo autoral, com todas as implicações que o
acto detinha para a preservação do nome do seu autor, para além da sua morte.
Tratava-se igualmente de um latrocínio de lucros passíveis de obter pelo seu
compositor, através da sua venda. Tal revelava-se gravoso para figuras como
Marcial, que não apresentava grandes recursos, como se depreende numa das suas
composições.111
À guisa de complementação, julgou-se relevante acrescentar algumas informações a
respeito do conceito atual de plágio. Dentro da história do direito existem vários elementos
que envolvem a lei sobre os direitos autorais. Os juristas dedicados ao assunto não entram em
acordo sobre em que momento da história o crime de plágio passa a vigorar, visto que, nos
séculos seguintes ao uso do termo por Marcial e durante a história da literatura antiga, o ato
de copiar um dado texto, como forma de aprendizado, era o elemento fundamental dos
estudos retóricos, pois o aluno tinha como foco o aperfeiçoamento do modelo proposto por
uma tradição.
Há teóricos que apontam que o direito autoral está sujeito à invenção da imprensa por
Gutemberg, no século XV. Entretanto, como foi visto nesta dissertação, as civilizações
antigas, em especial a civilização grega e a romana, já possuíam meios de impressão e
publicação de livros, onde a profissão de copista era a base desse tipo de atividade rudimentar.
Ademais, cabe mencionar a importância dos livreiros, que tinham como função vender os
escritos dos autores da época. Embora não existisse uma lei específica, não restam dúvidas de
que as civilizações antigas forneceram informações preciosas para o que se conhece hoje
como direito autoral. JARDES112 aponta que o crime de plágio era punido de diversas
maneiras como, por exemplo, com castigos físicos – amputação de uma das mãos, castigo
comum para os ladrões. Pode-se considerar que, de forma embrionária, os romanos já tinham
111
112
(PEREIRA, 2012).
Informação disponível em: thajardes.jusbrasil.com.br/ , acesso feito em 06/01/2016.
110
a noção de assegurar a proteção autoral tutelada pela actio iniuriam e mais tarde com a Lex
Fabia Plagiariis.
No período medieval, a produção cultural se encerrava dentro dos monastérios. Com o
advento das universidades, cresce a demanda de produção e reprodução de obras literárias.
Talvez a invenção de um modo mais rápido de imprensa tenha facilitado a proliferação de
plagiários e consequentemente da busca de alguma lei que assegurasse o direito dos autores.
Logo, seria necessário pensar em um modo para proteger os trabalhos impressos bem como os
autores. Os ideais Iluministas serviram para construir o que hoje se conhece como direito
autoral de obras impressas e musicais, sobretudo.
No século XVIII, o termo originalidade está associado ao que se entendia como autor.
Ligado à propriedade literária, o autor seria o inventor/dono de um texto original. Em 1710,
na Inglaterra, no período da rainha Ana, foi assinada a primeira lei específica para os casos de
plágio, visando proteger as obras literárias, denominada de Copyright Act. A lei tinha como
principal função proteger o direito de cópia ilegal, sem autorização do autor do manuscrito,
oferecendo a tutela de 21 anos de uma determinada obra aos editores. Porém, a lei não dava
conta da venda clandestina dos livros. Em 1791, durante a Revolução Francesa, houve dois
decretos que diziam respeito ao direito exclusivo do autor de reprodução de sua obra. Em
1886, promulgou-se a Convenção de Berna, onde se dispuseram as leis sobre os direitos
materiais, com abrangência em todo mundo, influenciando inclusive a legislação brasileira,
conferindo o direito do autor durante 50 anos.
No Brasil, durante o Império, não houve quaisquer tratamentos sobre o direito autoral.
Havia uma lei da época que garantia o privilégio de 10 anos para os editores de livros sobre os
textos produzidos. Somente em 1830 que o plágio se configurou como crime propriamente
dito, com o código criminal daquele ano, que impôs sanções sobre quem gravasse ou
imprimisse quaisquer tipos de escritos que tivessem sido feitos ou traduzidos por brasileiros,
que estivessem vivos ou com menos de dez anos de morte, se estes tivessem herdeiros. Em
1891, os autores de obras de qualquer natureza tinham o direito exclusivo sobre a sua obra e
podiam reproduzi-la da maneira que julgassem conveniente. A lei Medeiros e Albuquerque,
de 1898, foi a primeira lei conhecida sobre os direitos autorais, encarados como privilégio de
cinquenta anos após a publicação de uma obra, tendo a proteção da Biblioteca Nacional. O
Código Civil de 1916 veio a substituir as disposições da Lei Medeiros e Albuquerque.
Todavia, com o advento dos meios de comunicação, a lei foi editada para solucionar os
conflitos de reprodução de uma obra, culminando na Lei nº 5.988 de 14.12.1973, com 134
artigos, que instituíam as regras sobre o sistema autoral brasileiro, constituído no Conselho
111
Nacional de Direito Autoral (CNDA), nas Associações de Defesa dos Direitos Autorais e no
Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD). Com a promulgação da
constituição de 1988, foi incluída a lei 9610/98,113 que resguarda os direitos de uma obra
intelectual, artística, comercial ou tecnológica, punindo todo aquele que se aproprie
indevidamente da obra, ficando sujeitos às sanções civis e penais cabíveis.
Se nos dias atuais, a questão é latente e tem-se muitos meios para denunciar a
apropriação intelectual, na Antiguidade, a denúncia não era tão fácil. Deve ser por isso que
Marcial se irritava frente aos plagiários que insistiam em se apropriar dos seus versos. Aliás,
Marcial, como já se comentou, foi o primeiro escritor a utilizar o termo tal qual se conhece
hoje 114. Como exemplo, em I, 52:
Commendo tibi, Quintiane115, nostros —
nostros dicere si tamen libellos
possum, quos recitat tuus poeta —:
si de servitio gravi queruntur,
adsertor116 venias satisque praestes,
et, cum se dominum vocabit ille,
dicas esse meos manuque missos.
hoc si terque quaterque clamitaris,
inpones plagiario pudorem.
5
(Recomendo-te, Quinciano, os meus livrinhos,
se é que meus os posso chamar,
que um poeta teu amigo os recita.
Se de penosa servidão eles se queixam,
que venhas como testemunha de liberdade e os coloque totalmente à
disposição.
E, quando aquele se autointitular proprietário,
diga que são meus e foram libertos pela minha mão.
Se três ou quatro vezes gritares isso
causarás pudor ao plagiário).
Na época em que viveu Marcial não havia nenhum tipo de direito autoral. Como já se
comentou, o poeta vendia a sua obra ao editor ou livreiro, que mandava copiar e vender a obra
da maneira que quisesse. O autor teria apenas o valor da venda ao livreiro e, se conseguisse, o
113
A lei está disponível em planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm, acesso feito em 06/01/2016.
Cf. VANDENDORPE (1998) “Marcial é o primeiro a aplicar o termo em um sentido figurado para designar
alguém que tinha se apropriado de seus versos (I, 52, 9).”. Disponível em: uot-tawa.ca/a- ca--demic/arts-/lettres/p-la-giat.htm, acesso feito em 06/01/2016.
115
Também é lembrado em V, 18.
116
Adsertor/assertor: “o que liberta, alforria”, “libertador”, “defensor”, “vingador”, “o que reclama alguém
como escravo, ou afirma que o é” (Cf. SARAIVA, 2006).
114
112
renome público. Para a sobrevivência, o escritor dependia de atividades paralelas, como o
mecenato.
O poeta compara os seus livros a escravos, usando os dois conceitos do vocábulo
plagiarius, como ladrão de escravos e como ladrão de palavras. Ao entregar o seu livro para
que fosse publicado, Marcial os alforria assim como o dono de escravos que os alforriam,
libertando-os para o mundo – manu mittere. Alguém quer se apropriar deles e se apresentar
como autor, reduzindo os seus livros a escravos – gravi servitio (v. 4), aquele que se intitula
dominus é o novo proprietário de seus versos/escravos. O poeta faz uma associação com a Lex
Fabia Plagiariis. Como escravos, os livros são levados a um adsertor (v.5), um tipo de
libertador ou defensor – uma espécie de testemunha de liberdade, que possa contestar a
escravidão dos versos que são de Marcial. O adsertor deveria fazer uma contestação oral para
que os livros retornassem ao verdadeiro dono – manus missos (v. 7), esperando o silêncio do
plagiário. O modo com que os romanos puniam esses casos era com a gritaria (vv.8-9), corriase pela rua gritando e culpando o criminoso sobre a apropriação indevida ou mau pagamento,
com a finalidade de desmoralizá-lo. Logo, o epigramista espera que isto aconteça com o
plagiário. Assim, mesmo que os tivesse libertado, Marcial ainda diz que pertencem a ele, em
uma relação de afetividade.
Em Epistulae. I, 20, Horácio demonstra sua preocupação com o livro, comparando a
um escravo liberto. Horácio adverte ao livro quando percebe que ele está a ansiar o
reconhecimento de amplos públicos e despreza os leitores mais humildes. O venusino liberta a
obra para que ela siga em frente. O poeta não aceitará arrependimentos (vv.1-6), uma vez que
o “sucesso” pode durar pouco (vv.6-8) e, no futuro, o livro pode destinar-se a ser alimento
para as traças (vv.9-13). A seguir a epístola (vv.1-13), acompanhada da tradução de
Alexandre Prudente Piccolo (PICCOLO, 2009, p.179):
Vortumnum Ianumque, liber, spectare videris,
scilicet ut prostes Sosiorum pumice mundus.
Odisti clavis et grata sigilla pudico,
paucis ostendi gemis et communia laudas,
non ita nutritus. Fuge quo descendere gestis;
non erit emisso reditus tibi: 'Quid miser egi?
Quid volui?' dices, ubi quid te laeserit; et scis
in breve te cogi, cum plenus languet amator.
Quodsi non odio peccantis desipit augur,
carus eris Romae donec te deserat aetas;
contrectatus ubi manibus sordescere volgi
coeperis, aut tineas pasces taciturnus inertis
aut fugies Vticam aut vinctus mitteris Ilerdam.
5
10
113
(Para Vertuno e Jano, ó livro, tu pareces estar olhando,
decerto para que te apresentes à venda polido pela pedra-pomes dos
Sósios.
Odeias as chaves e os sinetes, caros ao pudico;
lamurias seres apresentado a uns poucos e os lugares públicos louvas,
não tendo sido assim instruído. Foge para onde anseias descer;
uma vez livre, não terás retorno: “Infeliz de mim, o que fiz?
O que desejei?” – dirás, quando algo te ferir; e ainda sabes
em que aperto te confinas quando, cheio de ti, se enfadar teu amante.
A não ser que, dada a irritação com tuas vilezas, o áugure desvarie,
serás amado em Roma até que te deserte a juventude;
ensebado, quando pelas mãos do vulgo começares
a sujar-te, ou quieto alimentarás as traças insossas,
ou fugirás para Útica, ou amarrado serás enviado a Lérida.)
O público espalhou a notícia de que alguém estava plagiando os versos de Marcial. O
poeta esconde a fonte que começou a espalhar o boato e afirma que os versos são seus.
Fidentino117 se apropria dos versos do epigramista nas recitações públicas, o epigramista
sugere que o plagiador pague uma taxa para que possa se apropriar de seus escritos e usa da
retórica para desmascarar o ladrão literário, citando que foram apenas rumores. Entretanto, a
maneira incisiva da fala de Marcial parece confirmar que Fidentino é o plagiário de seus
versos. Observe-se o epigrama I, 29:
Fama refert118 nostros te, Fidentine, libellos
non aliter populo quam recitare tuos.
si mea vis dici, gratis tibi carmina mittam:
si dici tua vis, hoc eme, ne mea sint.
(Corre o boato de que tu, Fidentino, recita meus versinhos
ao povo como teus, sem alterar.
Se quiseres que sejam ditos meus, te enviarei de graça os meus
poemas,
se quiseres que sejam ditos teus, compra, para que não sejam meus).
Pode-se analisar o vocábulo Fama associado ao mito. Inicialmente, o O vocábulo
grego119 para Fama significa algo que é exposto/revelado ou a voz pública, daí a associação
117
MCGILL (2012) diz que Marcial constrói o ciclo ao personagem, ao dirigir alguns epigramas ao plagiário. É
interessante pensar na origem do nome FIDENTINO, talvez esteja relacionado ao substantivo fides, “fé”,
“confiança”, “boa-fé”, e em seu particípio presente, fidens: “aquele que confia”, “que tem confiança”. Pressupõese assim que Fidentino seria alguém digno de confiança, o contrário daquilo que Marcial apresenta. Para o poeta,
Fidentino é alguém impertinente, insolente, impetuoso, imprudente e cínico.
118
CAIROLLI (2014, p.174) traduz assim a sentença: Fama refert como “Diz a lenda”.
119
Fama: do grego φήμη (phêmê)/ φαναι (pnánaí).
114
com o ato de divulgação através de uma palavra ou sinal, trazendo a advertência ou
mensagem dos deuses. A deusa Fama estava incumbida de divulgar toda a sorte de notícias,
fossem elas divinas ou humanas. Andava tanto a noite como durante o dia e, sem conseguir
calar-se, colocava-se sobre os lugares mais altos para levar ao público todo tipo de novidades
– as falsas e as verdadeiras. A Fama era representada pela figura de um ser alado, muito
agitado e de feições assustadoras. Os romanos a descreviam como um monstro com asas e
muitos olhos e orelhas.120
Como se não bastasse plagiar os versos do poeta, Fidentino ainda os recitava em locais
públicos. Sabe-se que a recitação na Antiguidade era uma das formas de divulgação da obra
do autor: se fosse mal recitada, consequentemente, traria ao escritor má fama. Por isso,
Marcial indigna-se por ser mal recitado por Fidentino. Para não ser comprometido, não ser
acusado de mau poeta, o epigramista sentencia que, se os versos são maus recitados, são
versos de Fidentino e não dele, como em I, 38:
Quem recitas meus est, o Fidentine, libellus:
sed male cum recitas, incipit esse tuus.
(O verso que recitas é meu, Fidentino!
Mas, quando recitas mal, passam a ser teus.)
O poeta, em I, 53, denuncia a má qualidade dos escritos de Fidentino e a ousadia deste
em misturar seus maus versos aos versos de Marcial. Marcial acusa a Fidentino de que uma
página dentro de seu livro é do plagiário (v.1), uma vez que esta destoa no fino trato e na
maneira de escrita do poeta. Marcial parece dizer que o plagiário oferece aos leitores um
“atestado de burrice”, pois eles descobrirão que o texto inserido não é de autoria de Marcial,
pois sed certa domini signata figura (v. 2). Tal feito de Fidentino ocasionou a diferença de
qualidade na obra de Marcial, o que acarretou o manifesto furto (v.3). Para demonstrar essa
diferença entre os escritos, Marcial propõe uma série de comparações díspares, que combinam
o grosseiro com o refinado. Após fazer as devidas comparações, o poeta é incisivo e mostra
ao seu leitor que, neste caso, não cabe julgamento: o próprio texto de Fidentino o acusará, ele
é um ladrão – Fur es (v. 12). O que se pode entender deste epigrama é que o crime de plágio,
desde daquele tempo, configura-se como uma vergonha a um escritor, que passa de escritor
para criminoso, mostrando-se incapaz e fraco de engenho. E, ainda, Marcial acusa
publicamente Fidentino como o plagiário dos escritos do epigramista. Segue o epigrama:
120
Virgílio, na Eneida, a descreve como um monstro horrendo, que transmitia quer a verdade quer todo tipo
mentiras. É a deusa quem noticia os amores de Dido e Enéias. (Eneida. IV, 173-177).
115
Una est in nostris tua, Fidentine, libellis
pagina, sed certa domini signata figura,
quae tua traducit manifesto carmina furto.
sic interpositus villo contaminat uncto
urbica Lingonicus Tyrianthina bardocucullus121,
sic Arrentinae122 violant crystallina testae,
sic niger in ripis errat cum forte Caystri,
inter Ledaeos123 ridetur corvus olores,
sic ubi multisona fervet sacer Atthide lucus,
inproba Cecropias offendit pica querelas.
indice non opus est nostris nec iudice libris,
stat contra dicitque tibi tua pagina “Fur es.”
5
10
(Uma página dos meus livrinhos, Fidentino, é tua,
mas, está assinado com o retrato explícito do dono,
que acusa teus poemas de evidente furto.
Assim, misturado às púrpuras vestes da cidade,
o manto ligônico os contamina com o seu pelo espesso;
assim os vasos aretinos violam os de cristal,
assim o negro corvo, se acaso erra nas margens do Caístro
é motivo de riso entre os cisnes de Leda;
e assim , quando se agita o sacro bosque com a ruidosa Atis,
a ousada pega ofende os cecrópios lamentos.
Não precisam, os meus livrinhos, nem de juiz nem de delator.
Está contra ti a tua página e te diz: “És um ladrão!”).
Já em I, 66, Marcial apresenta o viés da mercantilização do seu livro e oferece alguns
conselhos ao seu plagiário:
Erras, meorum fur avare librorum,
fieri poetam posse qui putas tanti,
scriptura quanti constet et tomus vilis:
non sex paratur aut decem sophos nummis.
secreta quaere carmina et rudes curas
quas novit unus scrinioque signatas
custodit ipse virginis pater chartae,
quae trita duro non inhorruit mento:
mutare dominum non potest liber notus.
sed pumicata fronte si quis est nondum
121
5
10
Manto com capuz, originário da do povo celta da Gália.
Vasos comuns da cidade etrusca de Arezzo, na Toscana, de argila bem fina de cor avermelhada, sobre eles
tem-se Plínio, Hist, XXXV, 160; Marcial, Ep. I, 53, e XIV, 98.
123
Na mitologia grega, Leda era rainha de Esparta, esposa de Tíndaro. Zeus transformou-se em um cisne e
seduziu-a. Dessa união, Leda chocou dois ovos, e deles nasceram Clitemnestra, Helena, Castor e Pólux. Helena e
Pólux eram filhos de Zeus, mas Tíndaro os adotou, tratando-os como filhos de sangue. Cf., por exemplo,
Marcial, Ep. I, 36, e Ovídio, Metamorforses II, 252 e segs., e V, 386.
122
116
nec umbilicis cultus atque membrana,
mercare: tales habeo; nec sciet quisquam.
aliena quisquis recitat et petit famam,
non emere librum, sed silentium debet.
(Equivoca-se, ávaro ladrão de meus livrinhos,
que pensas tornar-te poeta pelo preço,
que custa a escrita e um vil rolo:
seis ou dez moedas não compram os aplausos.
Busque poemas inéditos e textos inacabados,
que só um conhece - no escritório
guarda-os o próprio pai do papiro virgem,
que não se enxugou, gastado por um queixo áspero.
O livro conhecido não pode mudar de dono.
Se há algum que não foi polido em pedra-pomes,
nem ornado com cilindros e com capa de membrana,
compra. Possuo alguns e ninguém saberá.
Quem recita versos alheios e busca a fama,
não deve comprar o livro, mas o silêncio.)
Aqui o epigramista deixa a entender que seus livros são facilmente encontrados nas
livrarias e com os livreiros, visto que, em outro momento (Ep. I, 1, por exemplo), mostra que
é lido por toda Roma. Talvez isso facilite o trabalho do plagiário, que, com algumas moedas,
consegue um livro do poeta. Mas uma boa recitação de uma obra não pode ser comprada.
Mesmo que o livro seja “sequestrado”, o nome do autor não muda.
Marcial lança mão do vocábulo fur (v.1) para designar aquele que comete o crime de
plágio. O ávido ladrão quer comprar os escritos de Marcial para se tornar um poeta, mas os
aplausos não vêm com a compra de um rolo barato (vv.3-4). O poeta aconselha que o ladrão
procure aqueles textos que ainda não foram publicados (vv.7-8). Não basta ao ladrão ter o
meio para a publicação do livro, se não tiver o talento. Aqui, o poeta apresenta um vislumbre
de como os livros eram armazenados e escritos: em folhas de papiro ou pergaminho, que eram
coladas umas às outras e enroladas e em suas extremidades, havia um cilindro de metal ou um
pedaço de marfim que auxiliava a leitura do livro. O livro que o plagiário quer não se pode
comprar, pois os escritos de Marcial são conhecidos em todo o Império e são constantemente
lidos (v.9). Ainda neste mesmo verso, o poeta utiliza o vocábulo dominus mais uma vez
comparando seus livros a escravos através da ideia de posse que o vocábulo traz. Marcial faz
referência aos rascunhos do livro que não passara por nenhum acabamento (vv.10-12). Depois
de concluído, o livro passa por inúmeros processos para que se torne um volumen
comercializável, como o polimento das bordas com pedra pomes – pumicata (v. 10). Para
retirar as falhas da folha, alguns livros recebiam um fino trato, uma capa protetora ou uma
117
pintura de cor púrpura (v.11). Marcial aconselha que o ladrão compre estes livros que ainda
não foram polidos e finda o epigrama, sentenciando que, se o plagiário não quer ser pego, ele
deve comprar não só a obra, mas também o silêncio do verdadeiro autor (v.14).
Fidentino é personagem de mais um epigrama. Em I, 72, o personagem acredita ser
um bom poeta (vv.1-2), mas o problema é que os versos que Fidentino diz serem seus, na
verdade, pertencem a Marcial. Logo, o poeta se lança a comparar: Egle tentava convencer que
possui dentes, mas ela comprou ossos e presas, usadas para fins estéticos, que precisavam ser
retirados antes das refeições para que desse lugar aos seus dentes caídos (vv.3-4) e, o pior, os
dentes eram mais negros do que uma amora madura (v.5). Lycoris acredita ser bonita, mas
possui o rosto todo coberto de pó branco, costume comum em Roma (v.6), ou seja, ela só se
acha bela por causa do uso de cosméticos. Fidentino só é poeta por causa dos poemas de
outros, assim como um careca pode ter cabelo, usando peruca (vv.7-8). Marcial utiliza
analogias para desqualificar Fidentino, que, para o poeta, se comporta como um desdentado
que compra um dente ou um careca que acredita ter cabelos.
Nostris versibus esse te poetam,
Fidentine, putas cupisque credi?
sic dentata sibi videtur Aegle
emptis ossibus Indicoque cornu;
sic quae nigrior est cadente moro,
cerussata sibi placet Lycoris.
hac et tu ratione qua poeta es,
calvus cum fueris, eris comatus.
5
(Com meus versos, ser poeta,
Fidentino, julgas e desejas que acreditem?
assim como Egle parece ter dentes,
com os ossos e presas comprados da Índia;
assim, mais escura do que uma amora madura,
Lycoris se parece bonita, alvaiadada.
Pela mesma razão pela qual és poeta,
serás, quando fores calvo, cabeludo)
Em II, 20, o poeta apresenta a figura de Paulo. Marcial brinca com a noção de posse –
iure possis (v.2) quando narra que Paulo recita os poemas que compra. Assim torna-se dono
deles, pois Paulo não tem engenho suficiente para escrever os seus próprios poemas:
Carmina Paulus emit, recitat sua carmina Paulus.
nam quod emas possis iure vocare tuum.
(Paulo compra poemas, recita seus próprios poemas, Paulo!
118
Pois o que compras, tens por direito, chamar de teus.)
Nota-se o epigrama VII, 77. Tuca exige que o poeta o presenteie com os seus livros,
mas o rapaz quer agir de má-fé: não quer os escritos de Marcial apenas para ler e sim para
vendê-los como seus.
Exigis ut nostros donem tibi, Tucca, libellos.
non faciam: nam vis vendere, non legere.
(Exiges que eu te dê, Tuca, os meus livrinhos.
Não dou, pois queres vender e não ler).
Voltando-se a ideia de uma mistura de versos originais aos plagiados, em X, 100, o
plagiário une seus versos de má qualidade aos de Marcial. Parece ainda que Marcial volta a se
dirigir a Fidentino, apesar de não nomeá-lo, pois o verso 2 remete aos versos 2 e 3 de I, 53.
Mais uma vez, Marcial lança várias analogias para comparar uma poesia de boa qualidade
com uma de má qualidade. Nos versos 3 e 4 reforçam a qualidade dos versos do plagiário
(uolpes et noctuas) e os versos de Marcial (leonibus et aquilis). Marcial, metaforicamente,
comenta que não adianta o plagiário ter apenas um dos pés, como de Ladas, famoso corredor,
se o outro pé é uma perna de pau (vv.5-6).
Quid, stulte, nostris versibus tuos misces?
cum litigante quid tibi, miser, libro?
quid congregare cum leonibus volpes
Aquilisque similes facere noctuas quaeris?
habeas licebit alterum pedem Ladae124,
inepte, frustra crure ligneo curres.
5
(Por que, estúpido, misturas aos meus versos os teus?
De que te serves, miserável, um livro que o litiga?
Por que procuras juntar os leões às raposas
e queres igualar as corujas às águias?
Ainda que tenhas um dos pés de Ladas,
inútil, em vão correrás com uma perna de pau.)
De forma jocosa, em X, 102, Marcial apresenta o personagem Fileno, que quer saber
como se tornou pai, sem ter quaisquer relações. O poeta explica: Fileno é pai do mesmo modo
que Gaditano é poeta. Este copia os poemas alheios e depois diz que são seus. Fazendo assim
uma forma de analogia entre a paternidade biológica e a paternidade intelectual. Assim tanto
Fileno quanto Gaditano são pais.
124
Ladas: corredor a serviço de Alexandre, o Grande, famoso por sua rapidez (HARVEY, 1998, p. 301).
119
Qua factus ratione sit requiris,
qui numquam futuit, pater Philinus?
Gaditanus, Avite125, dicat istud,
qui scribit nihil et tamen poeta est.
(Questionas de que forma aconteceu:
Fileno, que nunca fodeu, é pai?
Gaditano, Ávito, explicaria isso.
Ele que escreve coisa nenhuma, se diz poeta.)
Deixando clara uma reflexão a respeito de questões morais e religiosas, em XI, 94,
Marcial se dirige a um poeta judeu, que, além de ser um plagiário e de criticar os versos de
Marcial, ainda possui um comportamento libidinoso, que parece chocar o epigramista, devido
aos princípios morais judeus. O poeta diz que não se importa que seus versos sejam plagiados,
mas se importa quando o plagiário tem relações libidinosas com o seu escravo. A repetição do
vocativo verpe poeta evidencia a ironia de Marcial frente ao comportamento do plagiador:
Quod nimium lives nostris et ubique libellis
detrahis, ignosco: verpe poeta, sapis.
hoc quoque non curo, quod cum mea carmina carpas,
compilas: et sic, verpe poeta, sapis.
illud me cruciat, Solymis126 quod natus in ipsis
5
pedicas puerum, verpe poeta, meum.
ecce negas jurasque mihi per templa Tonantis.
non credo: jura, verpe, per Anchialum.
(Quanto a ti, me invejar e criticar os meus livrinhos,
por toda parte, ignoro, poeta circunciso;
Sabes também que não me preocupo, mesmo que critiques os meus
poemas, e os copie, poeta circunciso.
O que me perturba, é que tu, embora nascido em Jerusalém,
enrabas, poeta circunciso, meu escravinho.
Negas e juras a mim, pelo templo de Júpiter.
Não creio: jura, circunciso, é por Anquíalo.)
Mais adiante, em XII, 63, Marcial volta a fazer algumas comparações entre os bons e
os maus poetas:
Uncto Corduba127 laetior Venafro,
Histra128 nec minus absoluta testa,
125
Lúcio Estertínio Avito, poeta e amigo de Marcial, foi consul suffectus, em 92 .
Jerusalém, cidade que é sagrada para os judeus e cristãos, mais tarde se tornou sagrada também para os
muçulmanos.
127
Cidade da província romana da Hispânia Citerior ou Bética, no sul da Península Ibérica.
126
120
albi quae superas oves Galaesi129
nullo murice nec cruore mendax,
sed tinctis gregibus colore vivo:
dic vestro, rogo, sit pudor poetae,
nec gratis recitet meos libellos.
ferrem, si faceret bonus poeta,
cui possem dare mutuos dolores.
corrumpit sine talione130 caelebs,
caecus perdere non potest quod aufert:
nil est deterius latrone nudo:
nil securius est malo poeta.
5
10
(Córdoba, mais rica do que a oleosa Venafro,
não menos perfeita que a ânfora repleta da Ístria,
que vences as ovelhas do branco Galeso,
com nenhum falso molusco ou pelo sangue,
mas de rebanhos tingidos de viva cor.
Diz ao teu poeta, rogo, para ter pudor,
que ele nem de graça recite os meus livrinhos.
Eu aguentaria, se ele fosse um bom poeta,
a quem eu pudesse causar semelhante dor.
Impune são os solteiros corruptos.
O cego não pode perder aquilo que o priva.
Nada é pior que um ladrão nu,
nada é mais seguro que um mau poeta.)
Note-se que o epigramista fala da produção de azeite de boa qualidade (vv.1-2) como o as
cidades de Córdoba, cidade à qual se dirige no epigrama, e Venafro, mas os produtos que os
habitantes de Ístria vendiam não eram fabricados na cidade, ali eles os revendiam, como se
fossem deles, em ânforas de fabricação local. Córdoba também era famosa pela produção de
lã, que possuía uma tonalidade toda especial (v.5). O poeta acusado de plágio provavelmente
é nascido em Córdoba e teria copiado os poemas de Marcial. Este não deixa por menos e diz
que o plagiador é um mau poeta (v. 13). O epigramista é taxativo ao indicar que, se alguém
quer copiar os seus escritos, que seja pelo menos um bom poeta. Marcial compara os poemas
do plagiador a um cego que não pode se valer da lei do “olho por olho”, assim o plagiador não
poderá ser punido, já que é um mau poeta. Ao final, tem-se a ideia de que, por se tratar de um
mau poeta mesmo, não vale a pena puni-lo.
128
Cidade de origem grega que ficava próxima ao delta do Danúbio.
Rio que banhava Tarento (atual Taranto), na Calábria (sul da Itália).
130
Provavelmente diz respeito a lex talionis, que consiste na reciprocidade do crime e da pena, o que pode ser
chamado de retaliação ou com a máxima: “olho por olho, dente por dente”.
129
121
VI – CONCLUSÃO
Embora reconhecendo a grandiosa fortuna crítica a respeito dos Epigramas, de
Marcial, este estudo teve como objetivo mostrar mais um viés da obra do poeta. Acrescente-se
que se manteve sempre a ideia de que o epigramista é uma espécie de poeta de mil e uma
funcionalidades. Apesar de tratar dos temas mais distintos, moldados por vezes por acentuada
ironia, uma mínima porcentagem de seus escritos, deu-lhe a fama de licencioso.
De sua ida para Roma em busca de sucesso, a sua volta desgostosa à terra natal,
Marcial, em cerca de 1500 epigramas, narrou o comportamento de uma sociedade considerada
por muitos como decadente. O poeta isenta a pessoa real do vício ao caricaturar os vícios mais
corriqueiros dessa sociedade, comportamentos estes que eram de fácil reconhecimento por
parte do público. Para tal, lança mão de personagens que se aproximam dos nomeados
personagens-tipo para que não expusesse figuras importantes do Império.
Apesar da vida dita sofrida, Marcial conseguiu se dedicar inteiramente a apenas um
gênero literário, o epigrama. Gênero marginal da poesia antiga que acarretou glória e fama em
vida ao poeta. Dos pedregulhos e pedras tumulares sem nenhuma assinatura, às páginas de
livro, com Marcial, o epigrama passou por uma constante evolução e adequação. Antes,
quando não era reconhecido como gênero poético, na Grécia Arcaica, o epigrama
homenageava e fazia votos aos deuses. No século V a.C., o epigrama cresce e passa a ser
considerado gênero literário. Apenas nos séculos seguintes é que o gênero adquire certo
sucesso, por exemplo, com os escritos de Calímaco.
Os dois primeiros capítulos da dissertação foram primordiais para situar Marcial
dentro do gênero epigramático assim como para entender como o gênero chegou até o poeta,
tornando-se reconhecido. Mas foi preciso compreender como Marcial construiu o seu estilo
epigramático e para isso foi necessário o entendimento do que seria o processo de imitatio, tão
comentado por Quintiliano e ensinado nas aulas de retórica.
Levando-se em conta o que foi observado durante o terceiro capítulo, a imitatio é um
processo que é unido intrinsecamente a própria produção literária e que é a base da literatura
latina, visto que, para os antigos, o processo consistia em retomar um modelo antigo que fazia
parte de uma tradição literária. Apesar das inúmeras nomenclaturas que os estudiosos
modernos lançaram e de várias discussões apresentadas, os antigos tinham consciência de
tudo aquilo que foi conceituado posteriormente.
Assim, para eles, a imitatio só teria validade se houvesse um leitor que pudesse
reconhecê-la, como PASQUALI (1968) apontou ao dizer que a imitatio – alusão para ele – só
122
poderia ser concluída se houvesse um leitor douto e capaz. Deixando de lado a exaustiva
explicação de CONTE; BARCHIESI (2010), a imitatio – ecos alusivos/ arte alusiva– está
ligada à paixão e à memória. É certo que os autores antigos tinham um apego aos seus
antecessores, do contrário, não seria válido imitá-los e muito menos escrever um gênero que
não lhes era querido. Os estudiosos ainda apresentam um dado importante sobre o conceito: a
imitatio une o autor e o leitor, uma vez que o autor também já foi um leitor em algum
momento e, por ter lido uma obra literária e gostado dela, ele se lançou na escrita de uma obra
que poderia ser melhor do que a sua antecessora. Assim, para que o processo imitativo seja
reconhecido como tal e não como uma mera cópia ipsis litteris, é preciso que o escritor nutra
um desejo de superação do modelo escolhido, daí o nome aemulatio.
E partindo da definição de Kristeva para imitatio – intertextualidade –, os textos
apresentados de Marcial, na segunda parte do terceiro capítulo, são textos construídos dentro
de um mosaico de citações, em um movimento de absorção e transformação de outro texto.
Dito isto, é de conhecimento daqueles que estudam o gênero epigramático em Marcial, que
Catulo foi a grande influência na escrita do epigramista.
Apesar de não escrever exclusivamente o gênero epigramático, Catulo foi um dos
precursores das nuances que serão trabalhadas em Marcial. Este assimila o tom jovial, irônico,
picante e mordaz dos textos catulianos, a exceção é que Marcial trabalha com nomes fictícios
e Catulo ataca diretamente as pessoas retratadas. Também é de herança catuliana a variedade
temática encontrada nos escritos de Marcial, que teve como preferência escrever em dístico
elegíaco.
Comumente Marcial é conhecido como um poeta irônico e satírico, mas, por conta do
enorme leque temático, podem ser encontrados importantes ensinamentos filosóficos em seus
escritos. Em alguns momentos Marcial parece se apropriar dos ideais epicuristas para
aconselhar ao seu amigo Júlio Marcial a aproveitar mais a vida, pois esta passa depressa.
Marcial se apresenta como um conhecedor da temática do carpe diem horaciano, quando, no
epigrama I, 15, por exemplo, diz a seu amigo que não desperdice os melhores dias de sua
vida, mesmo que Júlio Marcial esteja perto de completar seus sessenta anos. O poeta pede que
seu amigo não adie mais as alegrias de viver. Então parece que Marcial lembra-se dos últimos
versos da Ode I, 11, de Horácio, quando este aconselha ao amigo que se agarre ao hoje: Non
est, crede mihi, sapientis dicere 'Viuam'/ sera nimis vita est crastina: vive hodie (I, 15, 11-12).
Ainda no terceiro capítulo, foi interessante apresentar outras nuances temáticas da obra
de Marcial. É de reconhecimento que o poeta se cansa da vida que leva na cidade e se cansa
também de suas obrigações como cliens. E em uma atitude desesperada, se exila da Urbe, em
123
um primeiro momento em 87 d.C., época da publicação de seu terceiro livro, e de maneira
definitiva em 98/99 d.C., volta a sua terra natal, Bilbilis.
Durante o seu último e definitivo exílio, o poeta parece ter se apropriado dos
sentimentos ovidianos, por ocasião em que o poeta elegíaco é afastado da Urbe. Embora as
causas fossem diferentes, os dois poetas se afastaram da Cidade e estavam incapazes de
voltar, assim, nos escritos de Marcial e de Ovídio, percebe-se o mesmo sentimento, o desejo
permanente de voltar para Roma e a memória idealizada da pátria. Marcial se sente um real
exilado, mesmo que Roma não fosse a sua terra natal. O epigramista teme que seja esquecido
pela população da cidade que tanto amou e cantou nos seus livrinhos. Para que isso não
ocorra, manda que o livro se torne embaixador de suas palavras, assim como fez Ovídio.
Para entender o terceiro conceito apresentado, foi preciso entender como era o
processo de publicação e venda dos livros. Após a explicação, pode-se concluir que, na
Antiguidade, não havia nenhuma lei que garantisse o direito autoral de uma obra literária,
contra as cópias indevidas, a circulação não autorizada ou os casos de plágio.
Sabe-se que a noção de plágio nada tinha a ver com a noção tal qual se conhece hoje.
O crime de plágio se caracterizava como o sequestro e/ou apropriação de um homem livre
para torná-lo escravo, como também sequestro de um escravo de outrem sem autorização do
dono, punido pela Lex Fabia Plagiariis.
A noção de plágio dos dias atuais foi cunhada pela primeira vez por Marcial, portanto,
metaforicamente, o plágio consistia em apropriação de uma obra, de qualquer tipo, como se
fosse do plagiador. Tal crime acarretava o repúdio do público e o criminoso retirava do
plagiado quaisquer notoriedades e glórias pessoais, visto que, após a vendagem do manuscrito
ao livreiro, o autor não recebia lucros, restava ao escritor a imortalidade de sua obra. Por isso
talvez não houvesse nenhuma sanção pecuniária ou penal. O plágio estava ligado diretamente
a uma ofensa ao engenho do poeta.
Sendo assim, usando os comentários de PEREIRA (2012), o furto literário se constitui
como um exercício de preguiça mental, mesmo que o plágio se caracterize como um crime e
tenha sanções especificas, o ato de copiar algo que não lhe pertence se torna cada vez mais
evidente. O plágio nada mais é do que um atestado de incapacidade e de incompetência. Em
tempos de internet é mais fácil denunciar a prática: coitado de Marcial que se enervava! E o
plagiário continuava a agir e a querer ser poeta com os seus versos
Por fim, já dizia Marcial: Rumpitur invidia (IX, 97), “exploda de inveja”. Afinal, é
toto notus in orbe (I, 1), “conhecido em todo mundo”, pois laudat, amat, cantat nostros mea
Roma libellos (V, 60), “minha Roma elogiou, amou e cantou meus livrinhos”. Se alguém quer
124
plagiá-lo, precisa non emere librum, sed silentium debet (I, 66), “não comprar os livros, mas
comprar o silêncio”, porque não adianta plagiá-lo, inserir escritos próprios dentro dos livros
de Marcial: quae tua traducit manifesto furto (I, 53), os (maus) poemas do plagiário o
denunciarão.
Logo, o poeta sentencia At chartis nec furta nocent et saecula prosunt,/ Solaque non
norunt haec monumenta mori (X, 2). Quanto aos seus escritos, nem os furtos os destroem,
nem o passar dos séculos os consomem, e seus versos são os únicos monumentos capazes de
resistir à morte.
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