Cartas de Leibniz a Sparvenfeld1 Tradução e notas

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Cartas de Leibniz a Sparvenfeld1 Tradução e notas
Cartas de Leibniz a Sparvenfeld1
Tradução e notas:
Juliana Cecci Silva e William de Siqueira Piauí2
Carta de 29 de janeiro de 1697
Envio-lhe [junto com essa carta], que você vê, também a passagem do prefácio
colocado antes da edição póstuma das Origine francese ou étymologies do falecido Sr.
Ménage3. Foi-me assegurado que o padre Besnier é o autor desse prefácio e o
conhecimento que ele obteve com você [Sparvenfeld] o confirma; talvez o que há de
mais justo em tal prefácio seja o que diz sobre seu mérito. Pois, no mais, ainda que
pareça conter erudição, parece-me igualmente que existem poucas coisas dignas
colocadas na apresentação de um livro do Sr. Ménage. A obra Menagianas4 atribuiu a
este erudito homem ter dito que Aristóteles escreveu etimologias. O padre Besnier
acredita que o Sr. Ménage, ou algum crítico holandês5 em quem ele confiasse, teria
corrigido ou considerado mal a passagem de um [autor] antigo que afirmou ter
Aristóteles escrito Nomina barbarica (Das leis dos bárbaros) e a teria trocado apenas
por Nomina. Como se Nomina fosse encontrado nas versões latinas do que não está
1
Apresentamos aqui a tradução de partes de duas cartas do filósofo alemão G. W. Leibniz (1646-1716) ao
linguista sueco Johan Gabriel Sparvenfeld (ou Sparwenfeldt, 1655-1727), datadas de 29 de janeiro e
(talvez) de 29 de novembro de 1697; a importância dessas cartas está no fato delas comprovarem a busca
de Leibniz por evidências para a defesa da sua hipótese de que as origens e conexão das nações podem ser
compreendidas a partir das origens e conexões das línguas. Hipótese que motivará não apenas essas, mas
muitas outras cartas de Leibniz e, do mesmo modo, como se poderá verificar no decorrer das notas, parte
de outros de seus trabalhos, como o Nouveaux essais sur l’entendement humain (doravante N.E.), de
1704, o Brevis designatio meditationum de originibus gentium ductis potissimum ex indicio
linguarum (Breve plano das reflexões sobre as origens dos povos traçado principalmente a partir das
indicações [contidas] nas línguas, doravante Brevis), de 1710, o De origine francorum (Sobre a origem
dos francos), de 1715, dentre outros. Estas obras vêm sendo nosso objeto de trabalho e estudo já há
bastante tempo; além de já termos concluído uma tradução dos N.E., que espera por publicação,
recentemente publicamos a tradução comentada do Brevis (Kairos Revista de Filosofia & Ciência –
Universidade de Lisboa, nº 4, 2012, pp. 119-149). As presentes traduções foram feitas a partir da obra
L’Harmonie des Langues, edição apresentada, traduzida e comentada por Marc Crépon. Paris: Éditions
du Seuil, Janeiro 2000, carta XVII p. 158 e carta XX p. 163.
2
Juliana Cecci Silva é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Tradução na
Universidade de Brasília, Postrad – UnB, e fez seu bacharelado em Letras-Francês pela Universidade de
São Paulo (FFLCH-USP), e-mail: [email protected]. William de Siqueira Piauí é doutor em
Filosofia pela Universidade de São Paulo, FFLCH – USP e, atualmente, é professor da Universidade
Federal de Sergipe, UFS, e-mail: [email protected].
3
Gilles Ménage (1613-1692) escreveu a obra Origines de la langue française; publicada em 1650,
reeditada dois anos após sua morte com o nome Dictionnaire étymologique de la langue française, a
qual foram acrescentados os textos “As origens francesas” de Mr. Pierre de Caseneuve (1591-1652),
“Discurso sobre a ciência das etimologias” do padre jesuíta Pierre Besnier (1648-1705) – ao qual Leibniz
certamente está se referindo – e uma lista de nomes de santos organizada segundo suas origens pelo abade
francês Claude Chastelain (1639-1712). Vale lembrar que, em 1715, Leibniz termina de escrever seu De
origine francorum, no qual retoma as críticas que faz aqui.
4
Em 1693, sob a direção de Antoine Galland (1646-1715), é publicada a obra Menagiana, uma espécie
de ontologia dos pensamentos de G. Ménage; obra criticada pelo viajante e médico francês PierreFrançois Bernier (1620-1688) em sua obra Anti-menagiana, também de 1693. Se não estamos
enganados, Leibniz confunde os autores Besnier e Bernier.
5
Não conseguimos saber quem seria esse crítico holandês, mesmo porque, como se verá, nessa época
muitos são os autores que desenvolviam esse tipo de pesquisa e poderiam ter feito tal crítica.
senão no grego; ou como se o Sr. Ménage, ou algum crítico holandês, pudesse ser capaz
de uma semelhante bobagem. Ele despreza o Etymologicon de Gerard Jean Vossius6 e
os trabalhos do Sr. Meninski7, mas, entretanto, fala com ar de estima a respeito de
alguns livros italianos e espanhóis que não a merecem nem um pouco8; no que ele
mantém a índole de sua nação que tem costume de fazer caso mesmo das bagatelas que
vêm da Itália e da Espanha, e facilmente não faz jus àquilo que vem da Alemanha, da
Inglaterra, da Holanda ou dos países ainda mais setentrionais. E este padre faz para si
uma imagem engraçada ao crer que os etimologistas ingleses ficam tristes com o fato de
que a língua deles retira muitas palavras da francesa, enquanto eu sei que os ingleses se
vangloriam de ter enriquecido sua língua a partir de pilhagem de muitas outras. Ao falar
dos dinamarqueses, ele se engana em lhes atribuir o Magog Arameus; quanto a isso, ele
diz que o autor dinamarquês não lhe é conhecido senão por este título de seu livro o
qual ele considera bizarro. No entanto, seu autor é o Sr. Stiernhlelm e não vejo por que
este título seja mais bizarro que aquele Phaleg de Borchart9. Enfim, é uma grande pena
que o próprio Sr. Ménage não tenha feito um prefácio à sua obra, nós teríamos
descoberto aí muitas coisas belas. Este padre Besnier certamente possui muito espírito,
mas ele vai um pouco rápido [demais] e lembro-me que quando eu estava em Paris,
quando seu projeto impresso de La réunion des langues podia ser visto, o Sr. Huet10 me
dizia que tal [projeto] só poderia vir de um aventureiro. [...]11
Eu consegui um fragmento da gramática dos tártaros [vinda] da China. Seus
caracteres são engraçados, não expressam as coisas como os dos chineses, nem como as
nossas letras, mas [expressam] as sílabas de uma maneira bastante singular. Eu gostaria
muito de um dia poder aprender mais particularidades das línguas dos povos da Tartária
e como elas diferem [da língua] dos siberianos, dos czircasses, dos calmucos, dos
mongóis, dos usbeques, e dos lamas da China12. Asseguraram-me que a língua dos
húngaros ainda se encontra perto do mar Cáspio. Quando considero as descrições que os
antigos faziam dos hunos e as que os viajantes nos fazem dos calmucos, parece-me que
é um mesmo povo. Isso porque tanto a uns quanto aos outros [é atribuído] um rosto
6
Gerrit Janszoon Vos ou Gérard Jean Vossius (1577-1649) nasceu em Heidelberg, escreveu as obras
Historia pelagiana sive Historiae de controversies quas Pelagius ejusque reliquiae moverunt (1618)
e Etymologicum linguae Latinae (1662).
7
François de Mesgnien Meninski (1623-1698) escreveu um Thesaurus linguarum orientalium,
publicado em 1680.
8
Sobre quem seriam os autores mais apropriados para tratar das origens das línguas dos espanhóis e dos
italianos, cf. Brevis, p. 9 da versão original.
9
Assim como Sparvenfeld, Georg Stiernhielm (1598-1672) era sueco; Stiernhielm ficou conhecido por
seus estudos comparativos do gótico e das línguas escandinavas apresentados em sua obra Magog
aramæo-gothicus, sive origines vocabularum in linguis paenia omnibus, ex lingua svetica veteri.
Leibniz se refere também ao pastor huguenote Samuel Borchardt (1599-1677) que escreveu em dois
volumes a obra Geographia sacra seu Phaleg et Canaan, publicada em 1646.
10
Leibniz se refere ao francês Pierre Daniel Huet (1630-1721); Huet participou ativamente no embate
conhecido como a Querela dos antigos e dos modernos, ou Querela dos clássicos e modernos, que teve
início na Academia Francesa.
11
Em acordo com a coletânea a partir da qual extraímos os originais, o sinal “[...]” marca as partes
suprimidas da carta.
12
Não conseguimos saber a que povo se refere “czircasses” (na próxima carta aparecem os termos
tschircasses, talvez se referindo ao mesmo povo e czeremisses, que também não conseguimos exatamente
a que povo se referem); os “calmucos” são um povo de origem mongólica, também conhecido por
mongóis ocidentais, fundaram um império na Ásia central no séc. XV e atualmente habitam regiões da
Sibéria, China e Mongólia; os “usbecs”, ou “massagetas”, são um povo da Cítia de origem iraniana que se
fixou no nordeste da Europa, entre o mar Cáspio e o mar de Aral. Leibniz também se refere à parte dos
habitantes do que hoje chamamos de Tibete (por conta da sonoridade, talvez esteja se referindo ao grupo
étnico que hoje chamamos de lhobas); mais à frente, Leibniz mencionará o “grande Lama”, certamente
uma referência a um dos Dalai Lamas que era o líder político e espiritual daquele país.
achatado e largo e olhos extremamente pequenos, e a localização tem relação da mesma
forma.
Eu não sei se a língua dos calmucos tem relação com a língua do Turquestão,
como aquela dos tártaros da Criméia, cuja língua, como eu acredito, possui bastante
concordância com aquela dos turcos. Se você souber algo a esse respeito, peço-lhe que
me diga sua opinião sobre a conexão das línguas13. No apêndice de sua gramática russa,
o senhor Ludolf14 usa a expressão “buchartzi”, mercadores mahometanos que vêm
desde a Sibéia; acredito que são os usbeques de Bochara. Se é verdade que os calmucos,
assim como os mongóis e os tártaros da China, seguem o grande Lama, em matéria de
religião, é possível que ainda exista relação [entre] as línguas e as origens desses povos.
Se não for apenas o formato e a constituição dos corpos que se encontram diferentes
demais entre eles. Lembro-me de ter lido em algum lugar (mas não saberia encontrálo)15 que um certo viajante tinha dividido os homens em determinadas tribos, raças ou
classes. Ele atribuiu uma raça particular aos samoiedos, uma outra aos chineses e povos
vizinhos, uma outra aos negros, ainda uma outra aos cafres e hotentotes. Na América há
ainda uma diferença maravilhosa, por exemplo, entre os galibis ou caribes, que têm
muito valor e mesmo espírito, e entre aqueles do Paraguai que parecem ser crianças ou
colegiais durante toda vida; isso não impede que todos os homens que habitam esse
planeta não sejam todos de uma mesma raça que foi alterada pelos diferentes climas, tal
como vemos os animais e as plantas mudarem de natureza e se tornarem melhores ou
degenerarem16.
Aguardamos uma obra póstuma do padre Thomasin17 da oratória, na qual ele
pretende nos fornecer a harmonia das línguas e, ao relacioná-las todas com o hebraico,
13
Como dissemos na nota 1, o principal motivo da troca de cartas entre Leibniz e Sparvenfeld se associa
à defesa da hipóteses geral segundo a qual a conexão da línguas permitiria compreender a connexion des
nations (cf. a carta de Leibniz a Sparvenfeld de 06/12/1699, também já traduzida por nós e que espera ser
publicada ainda esse ano na Revista de literatura e pensamento - O mutum (UnB)). O Brevis será a
própria expressão dessa hipótese, pois nele Leibniz vai reafirmar essa tese do seguinte modo: “Visto que
as ‘origens dos povos’ [mais] remotos estão para além da História, as ‘línguas’, em seu lugar, são os
monumentos dos [povos] antigos”. Nos N.E., parte do fundamento da unidade das línguas que permitiria
compreender a origem comum das nações é expresso do seguinte modo: “não há nada nisto que vá contra
ou não favoreça preferivelmente a opinião da origem comum de todas as nações, e de uma língua radical
e primitiva. (...) se tivéssemos a língua primitiva em sua pureza, ou conservado o suficiente para ser
reconhecível, seria preciso que aí aparecessem os motivos das conexões, sejam físicas, sejam de uma
instituição arbitrária, sábia e digna do primeiro autor [Deus]” (N.E., livro III, cap. II, § 1). O que significa
que a conexão que serve de base para a ligação entre as nações tem um fundamento que compreende as
línguas em geral e que, até certo ponto, permitiria pensar que mesmo a diversidade das línguas não foge
ao “princípio de razão suficiente” (e veremos Leibniz afirmar mais à frente que “não existe nada sem
razão”) e à “harmonia preestabelecida” que parecem estar expressos em uma infinidade de onomatopéias,
como será mencionado mais à frente, conservadas nas línguas; trata-se de evidências históricas daquela
origem, perdida para a História, das nações e da existência de uma única língua.
14
A obra que Leibniz menciona, Grammatica Russica, foi escrita em latim por Heinrich Wilhelm
Ludolf (1655-1710) e publicada em 1696.
15
Talvez Leibniz esteja pensando, sem lembrar exatamente, no que afirmava o antropólogo François
Bernier, já mencionado mais acima.
16
Podemos perceber aqui marcas da opinião de Leibniz para quem este é “o melhor dos mundos
possíveis”; o que também significa que o mundo, com tudo o que ele contém, se encaminha para o
melhor. Seria interessante relacionar o modo como Leibniz pensa a história da origem das línguas com os
modos como Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) e Charles Darwin (1809-1882) pensaram a história
natural, ou melhor, a história da origem e o desenvolvimento das espécies. Vale lembrar que quando
escreveu essas cartas, Leibniz já havia escrito ao menos o prefácio de sua obra Protogea, onde ele
considerava a pré-história até antes da criação do homem, obra da qual um resumo havia sido publicado
nas Acta eruditorum de 1693.
17
Leibniz se refere ao padre francês oratoriano Louis Thomassin d’Eynac (1619-1695), que escreveu a
obra Glossarium universale hebraicum e só foi publicada dois anos após sua morte, isso é, em 1697.
mostrar que o gênero humano veio todo ele de Adão. É uma grande e bela empreitada
essa da [busca pela] harmonia das línguas, mas duvido que esse padre, por mais erudito
e trabalhador que ele (seja), tenha conseguido tratar dignamente dessa matéria;
atualmente, só conheço você, Sr. [Sparvenfeld], que pode conferir a isso todas as luzes
necessárias. Além da erudição e da [capacidade de] julgamento, você fez grandes
viagens, conhece as línguas antigas e modernas e sozinho pôde cruzar os [povos]
orientais com os do Norte, sem ser influenciado por opiniões ultrajantes {outros}, tais
como as de alguns de teus senhores. Eu bem compreendo que seu tempo, seus
compromissos de corte e seus afazeres não lhe permitirão realizar um trabalho tão
grande quanto o assunto mereceria, mas bastaria que você nos desse um ristretto18 de
muitas de suas belas observações e meditações, que forneçam luzes que outros possam
seguir.
Hanôver, 29 de janeiro 1697.
Carta de 29 de novembro (?) 1697
Eu gostaria muito de saber o que você acha da língua cantábrica, ou vascona; ela
parece bem diferente das outras, dado que a língua do País de Gales e dos pequenos
bretões é metade germânica ou no mínimo [metade] céltica. Se seu dicionário
harmônico esclavônio19 se parece com uma gramática, eu mesmo me poria a estudá-lo,
pois vejo a importância dessa língua.
O Sr. Witsen20 tinha me comunicado que, no que se refere à língua, os usbeques
combinam muito com os persas; sabe-se, aliás, que persas e partos são a mesma coisa. E
acredita-se que os partos sejam cíticos de origem. O Sr. Witsen me comunicou ainda
que os mongóis e os calmucos falam quase a mesma língua. Eu imagino que os
permianos siberianos e outros povos semelhantes devem ter línguas próprias, diferentes
da russa. Observou-se entre os permianos ou nas proximidades dessas regiões palavras
que se aproximam das dos camponeses da Livônia. Isso confirma minha opinião de que
os povos, dos lapões até os tártaros situados do outro lado do mar Cáspio, eram de uma
raça próxima, à qual é necessário associar os finos, estiones e livônios, permianos,
samoiedos etc, e mesmo os húngaros que habitavam entre a Sibéria e o mar Cáspio.
Você tem certeza, Sr. [Sparvenfeld], que em sua base a língua dos calmucos e mongóis
combina com aquela do turquestão e dos turcos, e que ambas combinam com as dos
tártaros e crimeus? Se você possui algumas particularidades a esse respeito peço-lhe que
Sobre a língua de Adão; cf. N.E., livro II, cap. XXIX, §7, e livro III, cap. II, §1 e cap. VI, §27; Brevis, p.
2 da versão original a Carta a Sparvenfeld de 07/04/1699.
18
Isso mostra que, certamente, Leibniz já tinha em mente escrever algo semelhante, isso é, uma pequena
ou breve (ristretto) consideração em torno da origem e conexão das línguas e nações, daí o título da obra
de 1710 ser Brevis designatio meditationum de originibus gentium ductis potissimum ex indicio
linguarum. Na verdade, além das muitas cartas que Leibniz escreveu sobre o assunto, o projeto de
escrever sobre esse assunto é mencionado, na fala de Filaleto, no §2, cap. II, livro III, dos N.E..
19
Segundo Marc Crepón (op. cit., p. 151, nota 1), a partir de 1695 Leibniz trocou várias cartas com
Sparvenfeld; essas trocas devem ter se intensificado após ter terminado a redação dos N.E., já que lá
(especialmente no livro III, cap. I e II) o sueco não é mencionado. Sparvenfeld escreveu um Lexicon
Slavonicum, ao qual Leibniz se refere aqui, e fez um famoso mapa da Sibéria; de 1709 a 1712, justamente
por seu vasto conhecimento de várias línguas, ele passa a trabalhar para a Academia de Ciências de
Berlim na elaboração de um alfabeto universal, talvez a partir de seu Vocabularium Germanico-turcicoarabico-persicum.
20
O holandês Nicolaas Witsen (1641-1717) foi, dentre outras coisas, um dos diretores da Companhia
Holandesa das Índias Orientais e, por conta do conhecimento adquirido em suas muitas viagens, fez um
mapa detalhado da parte setentrional e oriental da Europa e da Ásia, desde a Nova Zembla (no extremo
norte da Rússia) até a China.
me coloque a par; quanto aos tschircasses, eu tinha imaginado que sua própria língua
deveria também diferir da russa como aquela dos czeremisses ao longo do Volga.
Também gostaria muito de saber se os búlgaros vindos da Bulgária foram uma raça
esclava, ou de uma outra espécie; e na Bulgária moderna encontra-se ainda algum traço
de sua antiga língua. Eu tenho um dicionário da língua georgiana impresso em Roma a
la propaganda; essa língua me parece extremamente diferente de todas as outras, exceto
por aquilo que a religião e o comércio lhe trouxeram dos gregos e dos latinos. Quanto às
outras línguas vizinhas da Ibéria Colchida e, em uma palavra, as dos países entre o mar
Cáspio e o Ponto Euxino, não estou nenhum pouco informado. Gostaria que Chardin21,
que percorreu esses países, tivesse nos fornecido algumas amostras dessas línguas. Mas
é isso que os viajantes raramente fazem. E os antigos o fazem ainda menos. Plínio22, ao
dizer que os romanos tratavam dos seus afazeres na Dioscuria ville do Ponto Euxino,
graças a cem e tantos outros intérpretes, deveria nos conservar algumas palavras dessas
línguas. É também estranho o quanto a língua armênia difere das outras. Há um homem
erudito que afirma que ela tem relação com a antiga língua egípcia23. Se isso se
verificasse, seria uma bela descoberta [...].
Eu vi e folheei o livro de Schriekius Rodornius24, no qual há muita leitura, mas
não um julgamento adequado; e ele é estravagante, sobretudo quando explica os nomes
próprios das pessoas e lugares a partir do teutão. No entanto, é bem verdade [que a
língua] teutônica com frequência expressa muito bem a natureza das coisas e pode ser
melhor que a própria hebraica. Observei amostras disso com frequência. L, por
exemplo, significa um movimento doce e tranquilo, [daí] lassen, lieben, leben, lied,
lind, lallen, wallen, wollen; para nossos camponeses leye é liquescere e está de acordo
com o grego luw Solvo, e eles se servem dela para dizer que a neve ou o gelo derrete
Solvitur acris hyems. R significa movimento violento, como rinnen, rennen, rad,
rauben, ruffen, Rhenus, Rhodanus. Pois o velho céltico e o teutão eram sem muita
concordância, e uma boa parte do latim vem, sem dúvida, do céltico, como uma parte do
grego vem dos getas e do Ponto Euxino. Seria preciso, primeiramente, estabelecer a
partir de uma boa indução a força das letras isoladas e, em seguida, passar às
combinações. [A combinação] Sp, por exemplo, significa em teutão alguma penetração
ou algo capaz de penetrar, [daí] Spiz, Spiess, Spate, Spada, Spur, Spund, Spliter,
spannen, sperren, spalten, Spelta, Spindel, Spinnen25. Ouvi dizer que Claubergius26,
filósofo erudito cujos escritos sobre a filosofia cartesiana são conhecidos, quis trabalhar
em filosofia tendo como base a língua teutônica e que ele mandou imprimir algumas
folhas para servir de amostra. Um dos meus amigos27 as possui, mas eu ainda não as vi.
Ele teria sido adequado para aprofundar essa matéria. No que diz respeito às vogais,
21
Jean Chardin (1643-1713), viajante e escritor francês, ficou famoso por narrar em sua obra Voyages de
monsieur le chevalier Chardin en Perse et autres lieux de l’Orient suas viagens à Pérsia e ao Oriente
no fim do séc. XVII e início do XVIII.
22
Leibniz se refere a Plínio (23-79 d.C.), o velho, que escreveu a famosa enciclopédia Historia natural.
23
Talvez Leibniz esteja se referindo a Andreas Acoluthus (1654-1704), professor de teologia e
orientalista alemão, com quem Leibniz se correspondeu. Cf. Brevis, pp. 4 e 5 da versão original.
24
Em 1614, Adrianus Rodornius Scrieckius (1560-1621) publicou a obra Originum rerumque
Celticarum et Belgicarum.
25
Em muitas outras cartas Leibniz repete esse tipo de consideração; e faz o mesmo no capítulo II, do livro
III, dos N.E. e nas primeiras páginas do Brevis.
26
Leibniz se refere ao filósofo alemão Johannes (ou Johann) Clauberg (1622-1665) que, dentre outros,
escreveu uma Logica vetus et nova e um breve ensaio intitulado Ars etymologica teutonum, do qual se
trata aqui. Nesse ensaio, o autor anunciava a redação de uma grande obra sobre a língua alemã, o De
causis linguae germanicae; inacabado, o manuscrito dessa obra, do qual se perderam as pistas no início
do século XVIII, era composto de cinco volumes.
27
Não conseguimos saber a quem Leibniz se refere
considero a e u como os dois sons extremos, tal como o claro e o escuro na pintura.
Aqueles que estão entre os dois são como as cores médias. Como não existe nada sem
razão28, não duvido nem um pouco que quando os homens deram nomes às coisas, eles
só fizeram seguir suas paixões e imaginações quando o objeto as excitava e quando não
as tinham expressas por sons que tinham relação com isso; imagino que não só Adão29,
mas também os outros homens, com frequência, quiseram onomatopoiein30 quando
encontravam novos objetos e, embora acredite que muitas palavras vêm de uma língua
primitiva, [acredito] que muitas outras tenham sido inventadas a partir do encontro de
nações ou raças.
Hanôver, 29 de novembro (?) 1697.
28
Vide nota 13; quanto ao “princípio de razão suficiente” cf. Monadologia, §32.
Leibniz lembra aqui uma discussão importante em sua época: Seria possível a língua de Adão? E como
ela seria? Vide nota 17.
30
Criar onomatopéias, cf. o Brevis p. 2 da versão original.
29