Davi entre as feras - Home | Ronaldo Correia de Brito

Transcrição

Davi entre as feras - Home | Ronaldo Correia de Brito
A dialética da compaixão1
Everardo Norões
Todas as janelas da literatura de Ronaldo Correia de Brito
– seja ela conto ou teatro –
abrem-se para uma cidade imaginária.
No entanto, essa cidade existe.
E o que a torna real são seus personagens,
seres que habitam ruas, praças
e, sobretudo, nossos silêncios.
Por onde passei ou vivi
encontrei personagens
como Maria Caboré ou Sebastião Candeia,
mas que se chamavam,
por vicissitudes da geografia ou da cultura,
Mustafá ou Mohamed,
Ibraimo ou Abdelkader.
Para a literatura, as tragédias humanas
necessitam de um cenário;
mas, pouco importa se esse cenário é Crato, Recife,
ou um lugarejo mítico situado em algum cosmos particular.
No fundo, ele é sempre o disfarce
de um lugar que não existe.
E é esse o grande milagre da literatura.
O Crato de Ronaldo é um lugar universal
e ao mesmo tempo extremamente seu,
porque apenas ele o observa assim:
como a Orã de Camus,
a Cairo de Taha Hussein,
a Maputo de Mia Couto,
ou a Recife de Joaquim Cardozo.
Numa visita da banda cabaçal Irmãos Aniceto,
ao país do Sul, um de seus integrantes foi levado a um alto edifício.
E, então, alguém lhe perguntou o que avistava dali.
– O Crato!, respondeu.
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Texto de Everardo Norões lido no lançamento de Livro dos Homens, na Livraria
Cultura, primeiro semestre de 2005.
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Ronaldo Brito é feito do mesmo fogo,
e do mesmo barro
desses irmãos Aniceto.
Os personagens de Ronaldo
são protagonistas de um sertão destruído,
território da desolação,
onde os valores arcaicos foram triturados
por uma espécie de máquina infernal,
mas que sobrevivem pela alquimia da imaginação,
única matriz da literatura.
Maria Caboré,
que entrava “na simplicidade das pedras do rio,
onde sentava para enxugar-se do banho”,
é sua Santa Maria Egipcíaca.
Sebastião Candeia,
personagem de um dos contos do livro,
é uma metáfora do sofrimento metafísico do autor:
o combate contra si mesmo e
contra esse seu mundo desmantelado e perdido.
É também a contrapartida do absurdo jogo da criação,
no qual ele se percebe o eterno e inevitável perdedor:
por mais que pense ter criado um novo invento
acaba por se dar conta de que apenas repete
os pequenos dramas do homem de qualquer lugar.
A literatura de Ronaldo Brito, no seu Livro dos homens,
opõe-se a uma outra literatura que sugere
um sertão de brasões, de fidalgos e de reis,
simples liturgia de veneração às sombras.
As sombras do que somos.
É uma literatura do real transfigurado,
e não a figuração do irreal.
O fio da meada dos contos do Livro dos Homens
nos conduz à linhagem clássica de Guy de Maupassant:
narrativas com inícios e fins,
pontuadas pelas contingências do humano,
marcadas pelo sentido da exatidão,
o rigor do estilo.
Mas, o que mais surpreende e cativa
nestes contos de Ronaldo
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(entre os quais destacaria Qohélet)
é aquela mesma paixão pelo próximo
que transborda dos livros de um outro escritor,
médico, como ele: Miguel Torga,
o grande mestre do conto português.
Em cada uma das histórias
encontramos uma pequena epopéia
da loucura e da desgraça do Livro dos homens,
que são, afinal,
os eternos alimentos
do entretenimento e da compaixão
do Leitor.
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