HISTÓRIA DA GEOMETRIA ANALÍTICA

Transcrição

HISTÓRIA DA GEOMETRIA ANALÍTICA
HISTÓRIA DA GEOMETRIA ANALÍTICA
Ligia Mesquita de Souza1
Universidade Estadual do Ceará
e-mail:[email protected]
Marcos da Nóbrega Teixeira2
Universidade Estadual do Ceará
e-mail:[email protected]
Simone Vieira de Mesquita3
Universidade Federal do Ceará
e-mail;[email protected]
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo apresentar uma breve análise da História da Geometria
Analítica, partindo do estudo do artigo “Descartes and the birth of analytic geometry”
de Eric G. Forbes, University of Edinburgh. Para desenvolver a discussão, utilizamos,
como referencial teórico de apoio, VENTURI (1949), VENTURI (2003), BOYER
(2001), dentre outros. Como metodologia, introduzimos brevemente conceitos retirados
do referido artigo e apresentamos a biografia e as realizações de estudiosos da
Geometria Analítica. Além disso, fizemos dois recortes temporais, a saber: entre os
séculos III A.C. e III d.C., a fim de identificar o momento histórico dos estudiosos dos
primórdios; e os séculos XVI e XVII, quando encontramos os estudiosos que moldaram
os conceitos em questão como nós os conhecemos hoje. Como resultado de nossa
pesquisa, pudemos primeiramente conhecer o conceito, por si só, da Geometria
Analítica e identificamos que certas ideias pré-estabelecidas, pertencentes ao senso
comum, sobre a autoria dos principais conceitos da ciência em questão são
fundamentalmente mais complexas do que aquilo que nos é apresentado no Ensino
Médio. Como consideração geral, acreditamos ser necessário aprofundar a pesquisa
sobre o tema. Tudo que apresentamos aqui deve servir como mote para outras pesquisas
relacionadas mais profundas.
Palavras-Chave: História da Geometria Analítica, Seções Cônicas, Plano Cartesiano.
1. Introdução
1
Aluna do curso de Licenciatura Plena em Matemática da UECE.
Aluno do curso de Licenciatura Plena em Matemática da UECE.
3
Co-autora e orientadora. .Doutoranda da Linha de História da Educação Comparada – LHEC – UFC.
Mestre em Educação Brasileira – LHEC – UFC. Especialista em Gestão Escolar - UECE. Pedagoga –
UFC. Professora da Rede Municipal de Educação de Fortaleza.
2
Antes que pudéssemos pesquisar sobre a História da Geometria Analítica,
acercou-nos a dúvida sobre o que é exatamente a Geometria Analítica. Nós percebemos
que não tínhamos uma ideia realmente clara sobre a definição do contexto. Vale
recapitular, então, os pontos que devem ser abordados na construção de um trabalho
científico: primeiro, por que estamos realizando essa tarefa (no caso, este artigo foi uma
designação da disciplina de História da Matemática); segundo, terceiro e quarto, quando
o assunto foi discutido historicamente, quem desenvolveu o assunto e como nós vamos
apresentá-lo, são tópicos que serão discutidos no corpo deste trabalho; finalmente o
quinto ponto, o que é o assunto, nos permite introduzir nossa discussão.
Começaremos, portanto, construindo a definição de o que é Geometria Analítica
porque simplesmente lançá-la sem mostrar que ela nem sempre existiu como é seria
inapropriadamente superficial. É muito fortuito que o conceito seja antes matemático,
como assevera Hermann Hankel:
Na maior parte das ciências, uma geração põe abaixo o que a outra
construiu, e o que uma estabeleceu a outra desfaz. Somente na
Matemática é que uma geração constrói um novo andar sobre a antiga
estrutura. (apud VENTURI, 2003, p.11)
Assim, nossa construção começa cerca de 2700 anos antes de Cristo, quando o
cientista egípcio Imhotep criou o primeiro ciclo zodíaco que ele dividiu em 12 partes
iguais. Esse zodíaco marcava o início do ano egípcio quando a estrela Sirius aparecia no
céu da cidade de Mênfis, a capital do Império. É necessário repararmos que a inovação
é astronômica, apesar de se utilizar da matemática, por conta do caráter principalmente
prático dos estudos egípcios.
Não é possível dar exatidão a quando aconteceu de fato, o que podemos afirmar
com certeza é que foram os gregos os próximos a incrementarem nossa construção no
momento em que eles se apropriaram do zodíaco egípcio. Podemos lembrar que a
sociedade grega era muito menos pragmática e que, portanto ela foi capaz de
desenvolver o ciclo idealizado por Imhotep muito além de suas intenções.
Os gregos dividiram seu zodíaco em trezentas e sessenta partes, que eles
chamaram de graus, e subdividiram esses graus em doze partes, chamadas signos. A
inovação egípcia era meramente um marcador temporal. Os gregos utilizaram suas
adaptações para mapear o caminho anual aparente do Sol. Ao medir distâncias, eles
criaram o primeiro sistema de referência; era um sistema que tinha um único eixo e que
servia como dispositivo para calcular a posição celestial de um planeta expressa em
termos de sua distância angular (em graus) até um corpo brilhante qualquer
representado, no eixo, por um signo. Essa distância angular foi chamada de Longitude
Celestial.
Hiparcchus de Nicéia achou pouca a precisão que um único eixo dava à posição
celeste, daí ele introduziu um segundo eixo, que sustentava a distância angular baseada
em ângulos retos medidos para o norte ou para o sul de um referencial. O referencial de
Hiparcchus foi a linha do horizonte e os ângulos retos eram baseados no zênite do sol a
pino. Hiparcchus chamou essa distância angular de Latitude Celestial. Mais tarde,
Hipátia de Alexandria, e seu pai Theon, desenvolveriam o sextante para calcular com
maior acuidade as latitudes de Hiparcchus. Longitude e latitude celestiais formam o
sistema de referência baseado em ângulos oblíquos que é o embrião do sistema que
usamos hoje no plano cartesiano.
Ptolomeu chamou essas magnitudes astronômicas de Coordenadas Retangulares
e adaptou essas coordenadas para serem usadas no chão. Foi através delas que ele
desenhou seus famosos mapas topográficos.
Figura 1: Mapa Mundi de Ptolomeu
Retirada de http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/museu/astronomia.htm
Antes que nós possamos mostrar o próximo passo da construção do nosso
conceito, nós precisamos entender a definição de dois outros conceitos que existem
hoje, mas que não são, nem remotamente, iguais aos que os gregos usavam, são eles a
Computação e a Logística. Computação era o cálculo puro e simples de uma magnitude
qualquer. Haja vista que a Notação da época era densa e muito limitada, eles precisavam
de uma técnica à altura para realizar esses cálculos, essa técnica era a Logística. É
preciso ressaltar que essa notação é a verdadeira causa de nós precisarmos construir o
que é a Geometria Analítica porque, embora as ideias e propósitos não tenham mudado,
a forma de expressá-los mudou.
Mesmo tendo absoluto controle sobre todas as partes daquilo que hoje
chamamos de Geometria Analítica, os gregos que a começaram não lhe definiram
porque, até Platão escrever “A República” em 380 a.C., não existia distinção, mesmo
para os rigorosos filósofos, entre os propósitos de, por exemplo, astronomia e
trigonometria. A obra do famoso aluno de Sócrates lança a ideia de separar a Teoria da
Prática. Na matemática, isso significou distinguir a ciência pura, a saber: Aritmética e
Geometria, da ciência aplicada: música, astronomia, geodesia, óptica, mecânica,
logística, etc. Esse fato é decisivo para a nossa construção na medida em que
possibilitou a estudiosos como Apolônio e Diofanto se dedicarem a Geometria Analítica
por ela mesma, nas palavras do próprio geômetra: “Elas são dignas de aceitação pelo
bem das demonstrações em si mesmas, da mesma forma que nós aceitamos muitas
outras coisas na Matemática por essa e por nenhuma outra razão.”
Por causa dos estudos agora focados no assunto e não na finalidade, surgiu a
Exegética na matemática clássica para demonstrar e justificar as descobertas. Exegética
era o cálculo de magnitudes aritméticas através de construções geométricas para
solucionar equações algébricas. Podemos inferir que a técnica exegética é um caminho
analítico para estudarmos geometria porque parte da equação e a desmancha em suas
partes menores representadas por potenciais lugares geométricos. A existência da
análise implica na existência de seu avesso: a síntese. Para os gregos, síntese era a
Zetética e usava, ao contrário, soluções aritméticas de equações algébricas para
construir os loci.
Pappus, na sua “Coleção”, é recorrente em mencionar um termo que é
considerado o elo perdido de todas as demonstrações, sejam elas sintéticas ou analíticas:
os Porismos. Porismos é uma parte dos “Elementos” de Euclides em três livros, todos
perdidos, conhecidos somente pelo apanhado de Pappus. Supostamente, Euclides usou o
termo para o que hoje é chamado de corolário (proposições intermediárias entre a
hipótese e o teorema). Foram proposições porísticas que Diofanto usou para demonstrar
o que foi chamado, mais tarde por Viète ao estudar a “Aritmética”, de Álgebra
Geométrica (a construção geométrica das soluções de equações algébricas).
A álgebra geométrica, cheia de limitações de natureza simbólica, mas
essencialmente imbuída da intenção, é o primeiro conceito de Geometria Analítica
formulado por si, que só precisou ser revisado por causa do salto súbito na evolução das
notações a partir do século XVI. Foi então que surgiu a ideia de Análise Geométrica, a
aplicação de técnicas de solução de problemas geométricos para solucionar equações
algébricas. Daí, finalmente, podemos entender o que Coolidge (1936, p.233) diz: “A
essência da geometria analítica pura é o estudo do loci por meio de suas equações.”
Agora que dispomos da definição e mantendo sempre viva a ideia de oposição
entre as abordagens analítica e sintética que o assunto acomoda, nós podemos fazer um
passeio pela História da Geometria Analítica a partir da história das pessoas que a
criaram, desenvolveram e estudaram. Logo depois, recuperaremos os respectivos
momentos históricos de cada estudioso.
2. Geômetras e Analíticos
2.1. Menaecmo
Menaecmo nasceu em Alopeconeso, na Trácia em 380 a.C. e morreu em Cízico
na Mísia em 320 a.C.. Ele foi aluno de Eudoxo, portanto era discípulo da Escola
Pitagórica. Enquanto seu irmão, Dinostrato, se dedicou a enquadrar o círculo,
Menaecmo prestou atenção a outro problema grego clássico: o Problema Deliano da
duplicação do cubo.
Para conseguir a medida do novo cubo de volume dobrado em relação ao cubo
original de lado um, Menaecmo utilizou duas curvas conhecidas dos geômetras gregos,
mas que, até então, não tinham sido de muita utilidade: a hipérbole e a parábola. O
motivo pelo qual Menaecmo é considerado o introdutor das Seções Cônicas é que, até
ele, as curvas eram meras construções geométricas sem representação algébrica, além
disso, na resolução do problema Deliano, intersecionar hipérbole e parábola, ele acabou
descobrindo uma terceira curva: a elipse.
O que ele fez foi usar as proporções de Eudoxo para algebrizar uma hipérbole
conveniente em y²=2ax e uma parábola adequada em y=x²/a; ao resolver o sistema entre
as duas equações ele descobriu um ponto cuja menor distância a origem do sistema de
referência utilizado era exatamente a medida desejada para o lado do novo cubo (que
hoje dizemos ser a raiz cúbica de dois, impossível de se obter na época apenas com
régua e compasso).
Figura 2: A Resolução de Menaecmo da Duplicação do Cubo
http://php.math.unifi.it/archimede/archimede/curve/curve_giusti/prima.php?id=3
A pedido de seu amigo Platão, Menaecmo forneceu uma origem mais palpável
para essas curvas. Até então elas eram apenas curvas, foi Menaecmo que as visualizou
como cortes de cones. Ele utilizou três cones distintos: um cone de vértice agudo,
chamado oxitome, que seccionou para obter a elipse; um cone de vértice reto, chamado
ortotome, que ele seccionou e obteve a parábola; e um cone de vértice obtuso, chamado
amblitome, cuja secção lhe rendeu a hipérbole.
Vale lembrar que as seções cônicas de Menaecmo foram nomeadas conforme os
cones de onde vieram e que as secções eram feitas perpendicularmente ao eixo, sendo
bastante para obter cada cônica cortar o cone respectivo.
2.2.
Apolônio
Apolônio de Perga nasceu em Perga na Panfília em 262 a.C. e morreu em
Alexandria no Egito em 190 a.C.. Apolônio ficou conhecido por seus contemporâneos
como “O Grande Geômetra” a despeito de o título hoje ser auferido a Euclides.
O “Tesouro”, consistindo em grande parte de obras de Apolônio,
consequentemente deve ter incluído muito do que hoje chamamos geometria
analítica; foi com razão que Apolônio, não Euclides, mereceu dos antigos o
nome de “O Grande Geômetra”. (BOYER, 2001, p. 97)
Apolônio era matemático de muitas faces e também foi astrônomo respeitado,
mas certamente sua obra prima foi as “Cônicas”. Nessa obra, escrita originalmente em
oito livros, dos quais só se tem registro dos sete primeiros, Apolônio recapitula os
conceitos conhecidos das seções, mas amplia-os enormemente. Por exemplo, foi
Apolônio quem instituiu o cone de folha dupla; ele provou que as seções podem ser
obtidas a partir de cones oblíquos; ele também provou que de um único cone pode-se
obter as três cônicas bastando variar a inclinação do corte; e finalmente foi ele quem
oficializou a nomenclatura atual, baseando-se nas relações entre um quadrado sobre as
ordenadas – y² – e um retângulo sobre a abcissa “x” e o latus rectum “l” – lx – assim:
 Parabola (comparação): y² = lx
 Hyperbola (lançamento além): y² > lx
 Ellipsis (falta): y² < lx
Apolônio, limitado que era pela notação da época, ainda instituiu as formas
canônicas das equações das cônicas:
 Parábola: y² = 2px
 Hipérbole: x²/a² - y²/b² = 1
 Elipse: x²/a² + y²/b² = 1
2.3.
Diofanto
Pouco se sabe da vida de Diofanto exceto que ele viveu em Alexandria e
quantos anos ele viveu por conta de uma charada em sua lápide (resolvida a charada ele
teria vivido 84 anos). Alguns historiadores recentemente consideram que ele deve ter
vivido durante o século III da era cristã por causa de referências de autores da época,
como Teão, pai de Hipatia, e de referências feitas pelo próprio Diofanto em sua obra
citando autores contemporâneos como Hipsícles.
Em fim, indiferente de seu local de nascimento e morte, nos interessa sua vida, e
Diofanto é respeitado como “Pai da Álgebra” clássico por sua obra “Aritmética” em que
trata basicamente de Teoria dos Números e equações algébricas, abrindo caminho para
uma notação muito mais manuseável, ponto de virada para o estudo da Geometria
Analítica, em suas equações diofantinas.
Esse tipo de equação é muito debatida porque uma tradução da “Aritmética”,
feita por Bachet no século XVI, foi lida por Pierre de Fermat que, em suas margens, diz
ter conseguido uma solução simples para uma equação diofantina que ficaria conhecida
como “O Último Teorema de Fermat”, mas que não poderia mostra-la devido à
limitação da dita margem.
2.4.
Viète e Ghetaldi
François Viète nasceu em Fontenay-le-comte em 1540 e morreu em Paris em
1603, na França. Marino Ghetaldi nasceu em 1568 e morreu em 1626 numa cidade da
Dalmácia chamada Ragusa, hoje Dubrovnik na Croácia. Os dois eram advogados, mas
nenhum dos dois passou muito tempo na legislatura. Ambos tornaram-se matemáticos
amadores muito respeitados.
Durante os séculos XVI e XVII, estava muito na moda traduzir obras clássicas.
Por ser huguenote Viète foi exilado algumas vezes e, durante seus exílios, se dedicou a
traduzir as obras de Apolônio. Essas traduções lhe renderam conhecimento suficiente
para publicar uma obra original intitulada In artem analyticam isagoge que lhe rendeu a
alcunha de “Pai da Álgebra” moderno.
Nesse livro, ele trata de equações de 2º, 3º e 4º graus e revoluciona a simbologia
existente criando uma notação muito parecida com a de que dispomos hoje; por
exemplo, foi ele quem sugeriu que letras fossem usadas para quantidades, quer fossem
conhecidas ou desconhecidas: para as desconhecidas, ele designou as primeiras letras do
alfabeto, para as conhecidas, as últimas. Foi ele também que sugeriu o nome coeficiente
para as magnitudes conhecidas. Viète só não disse a última palavra com relação à
notação moderna porque ele não concebia a heterogeneidade de dimensões.
Ghetaldi aparece como continuador e discípulo de Viète por tê-lo conhecido
num dos exílios do mestre e se interessado pelas traduções em que o francês se
empenhava. Vale lembrar que Viète morreu antes de poder concluir suas traduções e foi
Ghetaldi quem assumiu a responsabilidade de termina-las.
Da mesma forma que aconteceu com seu antecessor, Ghetaldi se envolveu tanto
nas traduções que acabou escrevendo sua própria obra, nela um livro intitulado De
resolutione et de compositione mathematica, libri quinque em que ele utiliza a
simbologia de Viète para estender seu trabalho e elucidar a homogeneidade de
dimensões de que seu mentor era tão fã.
Esse livro foi a inspiração para aquele que viria a ser a maior referência da
Geometria Analítica: René Descartes.
It is reasonable to ask: what is the most impressive ideas contained in
Ghetaldi's work? Without doubt, it is his application of algebraic
methods to the solution of problems in geometry. We now think of
Descartes as founding the application of algebra to geometry, and
although Ghetaldi never quite managed to achieve this breakthrough
(nowhere in his work are there algebraic equations for geometric
objects) nevertheless he came very close. Perhaps it is just as well
since somehow 'Ghetaldian geometry' does not quite have the same
ring as 'Cartesian geometry'. (O'CONNOR, 1999)
2.5.
Descartes
René Descartes nasceu em La Haye na França em 1596 e morreu em Estocolmo
na Suíça em 1650. Era advogado formado pela Universidade de Poitiers, mas formou-se
apenas para satisfazer seu pai. De fato, assim que recebeu o diploma ele o entregou ao
pai e saiu de casa para alistar-se como militar voluntário do exército de Maurício de
Nassau em 1616. Durante os doze anos seguintes, ele peregrinou pela Europa estudando
tudo o que lhe caia nas mãos.
Descartes foi um grande filósofo no sentido mais amplo da palavra, ele era um
“amigo do conhecimento”. As conquistas de Descartes na Geometria Analítica são, ao
mesmo tempo, superestimadas e subestimadas. São superestimadas porque nada, nem
mesmo o plano que leva seu nome (cartesiano), foi ideia originalmente dele, se muito
podemos dizer que ele reconfigurou conhecimentos muito mais antigos. Elas são
também subestimadas porque não são reconhecidas pelo que realmente são: tudo que
Descartes fez na Geometria Analítica foi do ponto de vista de um professor, não de um
matemático. É claro que ele tinha conhecimentos matemáticos profundos, mas sua real
contribuição reside na didática em ensinar esses conhecimentos.
Até Descartes escrever “O Discurso do Método”, em 1637, o conhecimento era
passado e apreendido assistematicamente. Não existia, literalmente, “método” para o
ensino de qualquer ciência. Quem se atrevia a ensinar, o fazia arbitrariamente e os
autodidatas povoavam a Europa. Por sua obra prima talvez fosse mais conveniente
chamar Descartes de o “Pai da Metodologia Moderna”.
Por exemplo, Descartes se apoderou da simbologia literária de Viète,
convencionando-a para o que conhecemos hoje, assim nós resolvemos a equação ax=b
em função de x por causa de Descartes sem ao menos perceber que obedecemos a uma
convenção.
“O Discurso do Método” tinha três anexos intitulados “A Dióptrica” sobre física
óptica; “Os Meteoros” sobre gravitação universal; e “A Geometria” que definiu a
Geometria Analítica como nós a estudamos hoje.
3. As “Grécias” de Menaecchmus, Apolônio e Diofanto
A cultura grega é classicamente dividida em três períodos: o Homérico,
aproximadamente entre 1200 a.C. e 800 a.C.; o Helênico entre, aproximadamente, 600
a.C. (quando surgiu a democracia) e 323 a.C. (quando Alexandre Magno morreu); e
finalmente o Helenístico, que começou com a morte de Alexandre e se estendeu até
depois da conquista romana.
O período Homérico é uma época de que se tem conhecimento apenas por fontes
basicamente mitológicas:
Temos, consequentemente, que considerar os gregos homéricos, em
grande parte de sua história, como um povo pré-literário cujas
produções intelectuais não iam muito além do desenvolvimento de
cantos populares, baladas e pequenas epopeias cantadas e
embelezadas pelos bardos em seu peregrinar de uma aldeia para outra.
(BURNS, 1965, p.150)
Se Homero realmente reuniu esses pequenos contos em suas obras – a Ilíada e a
Odisseia – é de fato irrelevante para nossa cronologia porque o primeiro geômetra da
nossa construção – Menaecchmus – viveu no período depois do Homérico e só o
mencionamos porque há muito pouco mais ilustrativo do que uma comparação.
Assim, começamos lembrando que a Grécia Helênica começou com o acúmulo
de riqueza agrária, durante o período Homérico, que forçou o êxodo, formou colônias
mercadoras, expandiu o comércio e a indústria e basicamente modelou uma civilização
urbana rica que, se não cresceu até seu fim, pelo menos inchou consideravelmente.
O inchaço intelectual é o que nos concerne: as reformas dos irmãos Sólon, em
594 a.C., moldaram a democracia grega e Clístenes a consolidou, em 508 a.C., para
Péricles, em 461 a.C., levá-la a seu ápice: ela era direta, não permitia a escravidão por
dívida, todo homem grego livre era cidadão com voto e veto, os tribunais populares
podiam julgar todo tipo de causa, o ostracismo era severo e o principio da maioria era
inflexível.
A participação popular na vida política do estado era tão considerável quanto o
que ela proporcionou ao desenvolvimento científico: o ócio era proibido por lei, aqueles
que não precisavam trabalhar, quer fosse no campo ou no comércio, precisaram se
dedicar às escolas. A Escola de Mileto, criada no século VI a.C., inaugurou a filosofia
grega com uma postura materialista, científica e monista de indivíduos notáveis como
Tales, Anaximandro e Anaxímenes.
A preocupação milésia com a elucidação da natureza física do universo e dos
problemas sociais e éticos do homem foi substituída pela interpretação metafísica da
Escola Pitagórica.
Pouco se sabe a respeito deles, salvo ter seu chefe, Pitágoras,
emigrado da ilha de Samos para o sul da Itália e fundado uma
comunidade religiosa em Crotona. Ele e seus discípulos
aparentemente ensinavam ser a vida especulativa o mais alto bem,
mas, para alcançá-lo, o homem deve purificar-se dos apetites
maléficos da carne. Sustentavam que a essência das coisas não é uma
substância material, mas um princípio abstrato – o número. (BURNS,
1965, p.170)
Se sabemos que Menaecchmus era Pitagórico, não nos resta precisar explicar
muito porque todo o seu trabalho é conhecido apenas pelas obras de outros autores
posteriores: seus estudos eram antes filosóficos do que propriamente matemáticos.
Como contemporâneo de Platão e seu amigo pessoal, no entanto, podemos acrescentar
que ele foi muito mais sistemático do que um pitagórico dos primórdios. É-nos possível
dizer que ele fugiu à regra ao dar propósito e algum método a sua filosofia matemática
sem desobedecer demais e publicá-la. Menaecchmus morreu pouco antes de ver a
revolução que o Período Helenístico traria para o pensamento grego.
Nosso próximo estudioso – o Grande Geômetra, Apolônio de Perga – é quem vai
enfrentar o retrocesso intelectual da época. O que Alexandre, como aluno de Aristóteles,
queria, quando iniciou suas conquistas desesperadamente rápidas, era levar, para o resto
do mundo, aquilo que ele considerava ser o auge de toda a evolução social: a cultura
helênica. No entanto, ele começou sua expansão numa época de declínio e fragilidade
da Grécia, e o que aconteceu, na verdade, foi que os hábitos dissolutos, voluptuosos e
desorganizados do Oriente corromperam a insossa e debilitada democracia e instituíram
uma nova cultura baseada na miscigenação e no misticismo.
Embora a língua da nova era fosse grega e os homens de
nacionalidade grega continuassem a desempenhar papel saliente em
inúmeras atividades, o espírito da cultura era em grande parte oriental.
O ideal clássico da democracia foi sobrepujado por um despotismo
talvez mais rigoroso que os do Egito ou da Pérsia. A devoção
Helênica à simplicidade e à moderação cedeu lugar à extravagância na
arte, ao devotamento ao luxo e aos excessos desenfreados. O sistema
econômico ateniense de produção em pequena escala foi suplantado
pelo desenvolvimento de vultosos negócios e por uma concorrência
desenfreada. Embora continuasse o progresso na ciência, a sublime
confiança no poder do espírito, que caracterizava os ensinamentos da
grande maioria dos filósofos, de Tales a Aristóteles, foi absorvida pelo
derrotismo e, por fim, pelo sacrifício da lógica à fé. (BURNS, 1965, p.
193)
Apolônio escapou, em boa parte, dessas influências nefastas porque foi viver no
centro de toda a produção intelectual relevante da época: Alexandria. Quando o general
de Alexandre, Ptolomeu tornou-se Ptolomeu I Sóter, rei do Egito, iniciou-se uma era
sem precedentes no desenvolvimento científico do Egito. Ptolomeu I estava muito
ocupado com as guerras de repartição do Império Alexandrino, mas depois de anexar
Síria, Fenícia e Palestina, ele propiciou a seu filho, Ptolomeu II Filadelfo, a devoção à
construção do museu e da biblioteca na capital egípcia, Alexandria. Para montá-los,
Ptolomeu II solicitou toda a ajuda helênica que ele pôde reunir. Foi um período de
produção massiva de escritos. Os estudiosos precisavam não somente estudar, mas
também viabilizar a distribuição de seus estudos. A obra “Cônicas”, produzida de
próprio punho por Apolônio, era uma das joias da Biblioteca recém-nascida.
Finalmente chegamos ao Pai da Álgebra clássico, Diofanto de Alexandria: uma
grande incógnita da matemática helênica porque, todas as fontes apontam, viveu num
período tenso da Antiguidade: o início do Império Romano – o Principado dos
Otavianos. Burns4 ilustra: “Entre 235 e 284 dominou completa anarquia – dos vinte e
seis homens que nessa época ocuparam o poder, somente um escapou à morte
violenta.” O historiador5 acrescenta que: “depois do ano 200, a decadência econômica
e política sufocou todo desenvolvimento cultural posterior.”
Novamente, Alexandria salvou a pouca ciência produzida na época. Embora sob
o domínio de Roma, o Egito conseguiu manter certa autonomia por conta da distância à
capital do Império. Quem vivia lá era livre para se expressar da maneira que melhor lhe
aprouvesse, prova disso é que a “Aritmética” resistiu à desorganização política, muito
embora não lhe tenham resistido dados seguros sobre a vida de seu autor.
4. A Europa que floresceu com a Renascença
Entre o Império Romano e a Idade Média, a ciência ocidental passou por um
longo período de estagnação. O Renascimento Cultural dos séculos XIV e XV abriu as
portas para o desenvolvimento científico. De fato, as universidades começaram a
florescer por toda a Europa nesses séculos. Uma das inovações da época foi o
aprimoramento da indústria naval: caravelas, galeões, naus e navios de maneira geral
eram construídos em escala nunca antes vista. O desenvolvimento de embarcações
maiores e mais fortes propiciou viagens mais longas e difíceis. A Expansão Marítima
enriqueceu os mecenas europeus. O Mercantilismo substituiu o decrépito feudalismo
como novo sistema econômico: ele instituiu o metalismo como meta de suas
peregrinações. O acúmulo de metais preciosos por alguns remodelou o sistema político,
pois aquele que tinha mais se nomeou rei: era o início do Absolutismo e do
intervencionismo estatal na economia.
4
5
BURNS, 1965, p. 231
BURNS, 1965, p. 232
Não podemos esquecer que a Igreja Católica foi, durante toda a Idade Média, a
maior senhora feudal da Europa. Durante os mil anos medievais, ela acumulou riquezas
que lhe permitiram manter-se soberana mesmo com o advento de uma nova economia,
além disso ela detinha a maior parte do controle intelectual da época na medida em que
limitava o acesso a livros e fontes. As novas universidades precisavam de seu aval para
quaisquer planos de aulas. Ela nomeava reis, salvava almas, controlava vidas e decidia
destinos. Mas os séculos de obscuridade e limitação estavam fadados a acabar. A toda
poderosa Igreja não poderia sustentar por muito mais tempo os avanços intelectuais de
homens como Leonardo Da Vinci e Galileo Galilei. O golpe de misericórdia foi dado
por um monge católico chamado Martinho Lutero: muito conhecido pela publicação de
suas 95 Teses em 1517, a verdadeira revolução que Lutero inaugurou foi a disseminação
do conhecimento. Enquanto as publicações eram mantidas herméticas pelo idioma que
utilizavam – o latim – a plebe não poderia formar sua própria opinião do certo e do
errado. No momento em que Lutero traduziu a Bíblia para o alemão o que ele ofereceu
foi discernimento, foi libertação. A Reforma Protestante foi antes uma vitória intelectual
do que efetivamente religiosa.
A Contra Reforma da Igreja foi rápida e severa, mas não foi suficiente. Uma vez
aberta a porta para o conhecimento é praticamente impossível fechá-la, e homens como
Rousseau, Montesquieu, Voltaire, Smith, Locke e Hobbes a escancararam
definitivamente durante o Iluminismo.
Os séculos XVI e XVII foram marcados por esse turbilhão de idas e vindas da
transição entre as Idades Média e Moderna. Estudiosos com nossos analíticos (Viète,
Ghetaldi e Descartes) viveram em meio as disputas por poder e dinheiro de absolutistas,
burgueses e religiosos, enquanto desenvolviam ciência, mergulhados nessas disputas
sem fazer realmente parte delas. Por exemplo, Viète era Huguenote, nome que era dado
aos protestantes calvinistas franceses, mas, apesar disso ter lhe rendido sucessivos
exílios conforme reis reformistas e contra reformistas se alternavam, ele próprio nunca
se envolveu diretamente em discussões que não fossem puramente matemáticas.
5. Conclusão
Quando começamos a estudar o assunto para prepararmos este artigo, nós
tínhamos uma concepção do assunto que foi abruptamente desconstruída. Primeiro,
assaltou-nos a verdade sobre nossa ignorância quanto à definição do conceito de
Geometria Analítica. Depois, nós percebemos que há uma limitação gigantesca muito
pouco clara quanto às notações utilizadas ao longo do tempo para desenvolver a
Geometria Analítica. Além disso, interessou-nos aprofundar nosso conhecimento sobre
a parte da Geometria Analítica que a inaugurou: As Seções Cônicas. Por último,
consideramos, da máxima importância, descobrir mais sobre as contribuições de
Descartes para o tema, uma vez que ele é respeitado como autoridade e referência sobre
a Geometria Analítica, mas por razões que ou nos eram desconhecidas ou foram mal
interpretadas.
Assim, nós consideramos elucidado o problema primário sobre a definição do
assunto e julgamos necessário ramificar esta pesquisa em outras três: sobre a evolução
das notações desde a Grécia Antiga até a Modernidade; sobre as Seções Cônicas; e
sobre as contribuições de René Descartes.
6. Referências Bibliográficas
BURNS, Edward M., História da Civilização Ocidental, 1965, 2ª ed., 5ª impressão,
Editora Globo, Porto Alegre.
BOYER, Carl B., História da Matemática, 2001, 2ª ed., 3ª reimpressão, Editora
Edgard Blücher Ltda., São Paulo.
O'CONNOR, J. J., ROBERTSON, E. F., Apollonius of Perga, 1999, disponível em:
http://www-history.mcs.st-andrews.ac.uk/Biographies/Apollonius.html
___________________________, Menaechmus, 1999, disponível em: http://wwwhistory.mcs.st-andrews.ac.uk/Biographies/Menaechmus.html
_______________, Diophantus of Alexandria, 1999, disponível em: http://wwwhistory.mcs.st- andrews.ac.uk/Biographies/Diophantus.html
________________________, François Viète, 1999, disponível em: http://wwwhistory.mcs.st-andrews.ac.uk/Biographies/Viete.html
________________________, Marino Ghetaldi, 1999, disponível em: http://wwwhistory.mcs.st-andrews.ac.uk/Biographies/Ghetaldi.html
________________________, René Descartes, 1999, disponível em: http://wwwhistory.mcs.st-andrews.ac.uk/Biographies/Descartes.html

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