Salvador Dali - Substantivo Plural

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Salvador Dali - Substantivo Plural
Salvador Dali e a poesia do inconsciente crítico-paranóico
João da Mata Costa
“O sono é um estado de equilíbrio, uma espécie de monstro, na qual seu corpo
desaparece”. “Restaurada pelo sono, a essência do homem é duplicada.”. Dali
“Persistência da Memória” (1931)
Há 104 anos nascia, em Figueras (Espanha), um dos maiores gênios do século XX
- Salvador Dali. Um artista multimídia e poliedricamente facético. Extravagante e
provocador. Pintor e escritor. Anarquista e Monarquista. Obsceno e ao mesmo tempo
casto. Cenógrafo e desenhista de moda e mobiliários. Ilustrador de alguns dos maiores
clássicos da literatura. Joalheiro e homem afeito a performances e happenings
provocadores e imaginativos. Dali soube converter toda a sua laboriosa vida num grande
espetáculo. Criador do método paranóico-crítico, onde as alucinações, visões e obsessões
eram postas em movimento numa sistematização das alucinações delirantes do
inconsciente. Dali atuava num mundo próprio difícil de situar. A morte, o dinheiro, o
erotismo e Gala, sua companheira, musa e modelo, foram suas obsessões permanentes.
No centenário-Dali (2004) muitas exposições foram realizadas no mundo inteiro em sua
homenagem, especialmente na sua Catalunha. Tivemos oportunidade de ver algumas
dessas exposições e, nesse artigo, fazemos uma rápida viagem por esse universo místico,
onírico e paranóico, onde discutimos algumas facetas menos conhecidas desse artista
múltiplo e genial.
Uma pintura conversível
Os anos 30 do século passado foram os mais significativos na pintura surrealista
do Dali- pintor- revolucionário. Nessa década Dali realizou diversos objetos-surrealistas
carregados de sensualidade. Esses “ready-made” eram feitos de objetos do cotidiano, mais
tornados inúteis do ponto de vista prático e racional. Entres esses objetos destacam-se o
Telefone-Lagosta (1938), o Sofá–Lábios vermelhos da atriz Mae West, 1937 e Manequins
com Gavetas. As coisas possuem múltiplas funções para Dali. São elas mesmas e são
outras coisas. O conversível é a essência da pintura daliniana, onde colheres são símbolos
gnósticos. As mandíbulas do Homem são os seus órgãos mais filosóficos. O “ovo frito”
pendente por uma corda é o paradigma de toda matéria macia e consistente, ao mesmo
tempo. O tutano do osso (ou medula) - o mole no duro-, possui para Dali, o valor da
verdade. A atividade paranóico-critica (paranóico: mole; crítica:dura) funciona para Dali
como uma máquina cibernética viscosa altamente artística (in prólogo à edição original
francesa do Mito trágico de El Ângelus).
Um dos quadros mais famosos de Dali é um Óleo sobre Tela “Persistência da
Memória” (1931) onde aparece um relógio escoando. Os relógios moles de Dali
representam um trocadilho que significa botar a língua para fora. Em francês, “faire la
montre molle”. Uma alusão ao tempo e a memória que escoa. O mole é como uma onda
que se propaga. O relógio também é uma alusão ao “Tosão de Ouro”, que Jasão e outros
heróis gregos - tripulantes da nave Argus, com ajuda de Medéia, foram buscar na
Cólquide, região do sol nascente. Eu havia dito a Waston, durante um almoço em Nova
York: “Meu quadro A “Persistência da Memória”, é uma previsão do ADN”. Meus
relógios moles, que carregam um tempo imemorial e gelatinoso, não eram nada mais que
os ADN especiais, chamados adormecidos, que seriam depositários da memória de
espécie. O LSD, diz Timothy Leary, tem como efeito dar corda de alguma maneira nos
relógios moles, e pôr assim o espírito em contato com as energias primordiais (Paixões
Segundo Dali 1968).
As belas telas “O Grande Masturbador”, “Jogo Lúgubre” e o “Retrato de Paul
Eluard” são do ano 1929. Inspirado em Goya, Dali pinta um quadro que prenuncia a
terrível guerra civil espanhola: “Premonição da Guerra Civil” (1936). Nesse quadro
aparece uma figura humana gigante, com várias mãos e pés se estrangulando em delírio.
Gala e o Ângelus de Millet (1933), O espectro do sex-appeal (1934), España
(1938), Metamorfoses de Narciso (1936-37), são outros grandes quadros desse pintor
original. Em Dali, observa Breton – o autor do “Manifestos do Surrealismo” - a pintura se
funde com a poesia. As imagens dalinianas são enigmáticas e capazes de suscitar os mais
diferentes sentimentos ocultos. Uma pintura altamente elaborada por alguém que conhece
profundamente a história das artes e da literatura. Tudo o que não nasce da tradição é
plágio, teoriza Dali. Ele analisa a obra Velázques, para concluir: “Velázques me ensina
mais sobre a luz, reflexões e espelhos do que toneladas de tratados científicos. Ele é um
tesouro inesgotável da matemática e das ciências exatas.”
Dali também foi um grande ilustrador de livros. Ilustrou o livro de poemas “Os
Cantos de Maldoror, A Divina Comédia, A Bíblia, As memórias de Casanova, o Dom
Quixote, a autobiografia de Benvenuto Cellini e outros grandes clássicos da literatura
foram enriquecidas e valorizadas em edições luxuosas com as ilustrações do pintor-leitor
e amante da literatura. A evolução do traço genial de Dali ao longo de sua carreira
também pode ser acompanhada nesses “signos que ele transformava em ouro” . A genial
personagem do D. Quixote, criação do seu conterrâneo Miguel de Cervantes, lhe
despertava um interesse especial e ele utilizou toda a sua inventividade e genialidade para
ilustrar com belas litografias, encomenda do editor Joseph Foret, o maior clássico da
literatura universal. Em “As confissões inconfessáveis de Salvador Dali”, ele diz: “ Dom
Quixote é uma espécie de louco, o mais fetichista da Terra, que tem a intenção de possuir
as coisas mais raras do mundo. Então eu quero que cada uma das minhas ilustrações de
Dom Quixote seja a coisa mais rara pelos meios empregados na sua execução. Cada
elemento destas litografias deve comportar um elemento de dom-quixotismo
exacerbado.”
Cinema
Dali era um apaixonado pela sétima arte e trabalhou em vários projetos para o
cinema. .Com o seu grande amigo Luis Buñuel, Dali trabalhou nos filmes O cão AndaluzLe Chien Andalou (1928), e a idade de Ouro -L´age d´or(1930). Este último filme teve
pouca participação de Dali, e ambos os filme provocaram um verdadeiro escândalo entre
os círculos conservadores. A marca onírica daliniana estão em cenas como a dos
sacerdotes ao piano do Cão Andaluz, e a mulher chupando o dedo de uma estátua, na
Idade de Ouro. Antes desses filmes surrealistas, Salvador Dali participou, como
assistente, de Jean Epstein em “ Mauprat” e “A queda da casa de Usher”. Depois do
rompimento com o diretor de “O discreto charme da Burguesia”, escreveu em 1932, o
roteiro da película surrealista Babaaou, que não chegou a ser filmada. O roteiro era uma
crítica sobre a arte do cinema. A relação conturbada entre as três grandes figuras
universais da Cultura espanhola do séc. XX pode ser lida no livro “Buñuel, Lorca, Dali El Enigma Sin Fin” de Agustín Sanches Vidal O enigma sem fim é um belíssimo quadro
de 1938, onde a realidade pintada equivale a um estranho quebra-cabeça. Como estranha
e conturbada é a relação entre os três estudantes da residência estudantil, em Madrid.
Uma relação de muito afeto e admiração mútua, mas também de grandes rivalidades e
hostilidades. O Grande biógrafo do poeta Garcia Lorca, assassinado pela guerra civil
espanhola, é Ian Gibson, que também escreveu o livro Lorca-Dali “ El amor que no pudo
ser” . Dali teve posições pessoais muito controversas e provocativas. Na mocidade foi
expulso de casa ao escrever “cuspo com prazer no retrato da minha mãe”. Politicamente,
tinha fascínio por Hitler, e elogiava o franquismo.
Dali era um grande admirador dos irmãos Marx, especialmente do Harpo. Em
1937 foi para os Estados Unidos trabalhar com Harpo Marx no roteiro de “Jirafas a
Caballo” ( “Girafas sobre um ovo a cavalo”). O roteiro que nunca foi concluído, tinha
Groucho como Shiva com múltiplas mãos preparando-se para pegar um telefone, e Harpo
tocando um instrumento a bordo de um barco que navega num mar de ciclistas Hitchcock
lhe pediu ajuda para realizar a cena do sonho em “Quando fala o Coração” (Spellbound)
1945, que trata pela primeira vez da psicanálise no cinema. “É mais uma história de caça
ao homem, mas aqui envolta em pseudo-psicanálise”, diz Hitchcock em entrevistas a
Truffaut. Uma seqüência desse filme bolada por Dali, devia mostrar a metamorfose da
heroína (Ingrid Bergman) numa estátua de onde escapavam milhares de formigas. Em
Roma, Dali apresenta uma exposição na estréia de “Como lhe agradar”, de Visconti, filme
no qual Dali realizou os cenários e figurinos.
Walt Disney lhe encarregou de um projeto de um filme sobre “O Quixote”. Esse
filme não foi realizado, mas Dali ilustrou brilhantemente cenas do célebre livro que
depois seriam utilizadas em edições ilustradas do maior clássico da literatura universal.
Dali também fez vários desenhos cenográficos para o projeto do filme “ Destino” de Walt
Disney, 1946 .
Literatura
Em 1942 Dali publica na Dial Press “The Secret life of Salvador Dali”, na
tradução de Haakon Chevalier. Chevalier também traduz o único romance de Dali,
“Hidden Faces” (Rostos Ocultos), publicado pela mesma editora Dial Press, em 1944.
Dali sente-se como parte de uma cosmogonia na qual Deus está presente, como mito, ou
como realidade. “Diário de um Gênio” é publicado em 1964; um livro-diário, que se
passa entre os anos 1952-1963, irreverente e impiedoso contra aqueles que defendem uma
falsa-moral e “dignidade da arte”. Nesse livro ele comparava Platão a “uma espécie de
Dama das Camélias do pensamento antigo”, mas aplicada a seus contemporâneos. De
Matisse, dizia: “esse pintor de algas que só serve para favorecer a digestão burguesa.” Ao
final do livro, os anexos: A arte de peidar, Elogio da Mosca por Luciano de Samosata, um
poema dedicado a Picasso (sua grande admiração), a mística daliniana diante da história
das religiões e Salvador Dali e O Mundo Angélico.
Vários livros são testemunhas do método de trabalho daliniano, e ajudam a
penetrar nesse universo de delírios eróticos e místicos. As paixões Segundo Dali, foi
publicado junto como escritor Pawels; Dali-Pauwels, em 1968. O Relato de sua vida
fabulosa e delirante foi confiado ao escritor André Parinaud, publicado com o título o “As
confissões inconfessáveis de Salvador Dali”, em 1973.Esse livro delirante é muito
revelador do método daliniano, e foi publicado com 33 desenhos a bico-de-pena do
próprio Dali. Dali ainda escreveu vários manifestos, artigos e ensaios sobre a arte.
“El Ângelus” de Jean-François Millet (1857-59)
O seu melhor livro é “El mito trágico de El Ângelus de Millet”. Este livro foi
escrito entre os anos 1932-35. Desapareceu e foi encontrado pelo editor francês JeanJacques Pauvert, que o publicou em 1963. Em 1978 saiu a edição espanhola pela
Tusquets Editores. O Ângelus de Millet, nec plus ultra do método paranóico-crítico,
comenta um pequeno e grande quadro do pintor Jean-François Millet. Um quadro
crepuscular onde aparece a mãe com as mãos unidas em pose de oração, e o pai
segurando o chapéu com a cabeça levemente encurvada. Vê-se uma igreja ao fundo, é a
hora do Ângelus. O Casal de camponeses veste roupas toscas, botina, touca e avental. Ao
lado do homem tem uma forquilha de três dentes. Ainda compõem o quadro, um carrinho
de mão, cestos e sacos para colher batatas. Esse quadro acompanhou Dali em toda a sua
vida e, é para ele, a mais perturbadora, a mais enigmática, mais densa e rica obra em
pensamentos inconscientes que jamais existiu (El mito Trágico de “El Ángelus” de Millet,
p. 27.).
Na interpretação paranóico-crítica-daliniana, observa-se muitas alusões incomodas
sobre um “erotismo rural”, que o quadro tentava camuflar. A mãe podia ser uma variante
da mãe fálica egípcia com cabeça de abutre, e utiliza seu marido estranhamente
despersonalizado como um carrinho de mão, a transportar seu filho para ser enterrado ao
mesmo tempo que fecunda a mulher, sendo ela a mãe-terra, nutridora por excelência. No
prólogo desse clássico do surrealismo, Dali diz que dos coeficientes de elasticidade e da
viscosidade jesuítica às estruturas éticas implacáveis dos mandamentos morais nascem as
grandes obras de arte. A interpretação paranóico-crítico daliniana se divide em várias
partes. Na 1ª parte, destaca-se a contra-luz do ambiente crepuscular que determina os
sentimentos atávicos, em um momento de espera e de imobilidade que anuncia a
eminente agressão sexual. Na 2ª parte, o filho realiza com a mãe “o coito por trás”,
segurando com as mãos as pernas da mulher à altura dos quadris. Trata-se de uma postura
que denuncia o mais alto grau da animalidade do amor rural Finalmente, o macho é
devorado pela fêmea depois do acasalamento. Dali não espera esgotar o conhecimento
real e altamente erótico escondido no Ângelus de Millet (1857-59), mas dá uma mostra
convincente das potencialidades do método paranóico-crítico de pesquisas.
Dali foi um gênio que deixou a sua marca nos mais diferentes campos das artes
em que atuou. Foi um “ Avida Dollars” que soube transformar tudo em arte e dinheiro,
como num toque de Midas Um artista completo e multi-mídia quando pouco se falava
disso. Uma vida repleta de contradições, ambivalências e provocações a serviço da arte.
Para aqueles que o tinham como louco, diria: “A única diferença entre um louco e eu, é
que não sou louco”. Até no final de sua vida, Dali fez arte e foi notícia. A morte não
existe para os artistas e poetas. Dali foi um pintor-poeta visionário que revolucionou o
século XX. Um artista eterno que continua a nos provocar delírios e vertigens. Dali
surpreende sempre quando se pensa na sua vastidão de saber e inteligência, feito de
provocações e muita honestidade intelectual e inventiva. Dali foi um precursor da pop
arte do século XX, e o conhecimento da sua vasta obra está longe de ser totalmente
compreendido. Esse pequeno artigo é só uma pequena mostra da versatilidade desse
artista genial e eterno, que venho estudando e me maravilhando há mais de 20 anos.

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