Uma Visão católica da Ortodoxia Frei Aidan

Transcrição

Uma Visão católica da Ortodoxia Frei Aidan
Uma Visão católica da Ortodoxia
Frei Aidan Nichols OP
traduzido do inglês por: Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior
Este texto foi apresentado em um encontro da Pro Scandiae Populis, sobre as relações de
católicos e ortodoxos, em Turku (Aabo), Finlândia, no dia 21 de abril de 1995. A seção que
esboça uma possível reforma da cúria romana foi inserida neste contexto com o objetivo de
esclarecer a um pedido tácito de clarificação do Bispo Ambrósio de Joensuu da Igreja ortodoxa
da Finlândia.
Neste artigo eu farei um apanhado geral em quatro partes. Primeiro, eu irei analisar porque os
católicos não só deveriam mostrar um pouco de interesse pelo ecumenismo com a Ortodoxia,
mas também, tratar os ortodoxos como seus interlocutores ecumênicos privilegiados ou
prioritários.
Em segundo lugar, eu irei investigar por que aconteceu o cisma entre as igrejas católicas e
ortodoxas, focalizando a atenção nos “pontos históricos divergentes” em que esta divisão se
concretizou.
Em terceiro lugar, irei avaliar o estado atual das relações católico-ortodoxas, dando uma
especial atenção ao problema dos “uniatas”, ou seja, as igrejas católicas orientais.
Em quarto e último lugar, tendo sido muito favorável e respeitoso ao longo de todo o artigo
para com os ortodoxos, concluirei mostrando aquilo que, em meu parecer, há de errado na
igreja ortodoxa e por que ela necessita do catolicismo para (humanamente falando) sua
própria salvação.
I
Primeiro, então, por que deveriam os católicos tomar os ortodoxos não só como um parceiro
ecumênico, mas como parceiro ecumênico por excelência? Há três tipos de razões: histórica,
teológica e prática – das quais, na maioria das discussões, somente a histórica e teológica são
mencionadas. O que eu chamo de “prática” nos leva a áreas de controvérsia potencial entre os
próprios católicos ocidentais.
As razões históricas para preferir os ortodoxos a todas as outras comunhões separadas se
resumem no fato de que o cisma entre a igreja romana e as antigas igrejas calcedonianas do
oriente é a mais trágica e penosa das divisões na cristandade histórica se levarmos em conta
uma perspectiva universal e não meramente regional.
Embora a Grande Igreja tenha perdido parte da Igreja dos Padres, com a saída da unidade
católica das igrejas assírias (nestorianas) e ortodoxas orientais (monofisitas), depois dos
concílios de Éfeso (431) e Calcedônia (451) respectivamente, os cristãos que representavam as
duas culturas principais da bacia mediterrânea onde o evangelho teve seu maior florescimento
- a cultura grega e a latina - viveram em paz e unidade entre si, apesar de agitações ocasionais
e de algumas dificuldades locais até o final da época da patrística.
Essa época teve o seu clímax com o sétimo concílio ecumênico, o Niceno II, em 787, o último
concílio que os católicos e os ortodoxos tiveram em comum, concílio que, em seus
ensinamentos sobre a iconografia, e notavelmente sobre os ícones de Cristo, trouxe um final
triunfante à série de definições conciliares acerca da fé cristológica da Igreja, que havia sido
iniciada com o concílio de Nicéia, em 325.
A iconografia, a vida litúrgica, o credo e os dogmas da Igreja antiga chegam até nós numa
forma que, ao mesmo tempo, é ocidental e oriental; e foi esta rica comunhão da cultura
patrística, expressão da fé da comunidade apostólica, que foi quebrada com o cisma entre
católicos e ortodoxos, cisma este nunca (tão distante de ser) reparado.
Gostaria, porém, de lembrar que a história da Igreja nos dá pouquíssimos exemplos de cismas
históricos superados. Assim, se tivermos a história como nossa mestra, nós não temos nenhum
fundamento para confiar ou ser otimistas, que o mais catastrófico de todos os cismas será
superado. “Catastrófico” porque, historicamente, como o papa apontou, utilizando uma
metáfora criada por um eclesiólogo francês, o falecido Cardeal Yves Congar, cada Igreja, tanto
a ocidental como a oriental, desde então, passaria a "respirar apenas com um pulmão".
Nenhuma Igreja poderia reivindicar agora a totalidade do patrimônio cultural do calcedonismo
oriental e ocidental - quer dizer, a correta interpretação cristológica, e, conseqüentemente,
trinitária e soteriológica do Evangelho. O resultado da conseqüente rivalidade e conflito foi a
criação de uma invisível linha divisória no meio da Europa. E as conseqüências históricas disso,
nós as conhecemos suficientemente bem ao olharmos para a situação atual da ex-Iugoslávia.
Depois da razão histórica, temos a teológica. A segunda razão para dar prioridade às relações
ecumênicas com os ortodoxos é teológica. Se o ponto principal do ecumenismo, ou trabalho
para a restauração da unidade da Igreja, fosse simplesmente reparar males históricos e
esquecer causas historicamente geradoras de conflito, então poderíamos supor que nós
deveríamos estar igualmente – ou talvez até mesmo mais – interessados em nos voltarmos
para o cisma católico-protestante.
Afinal de contas, não houve, verdadeiramente, nenhuma guerra de religião – como tal – entre
católicos e ortodoxos, ao contrário do que ocorreu entre católicos e protestantes no século
XVI, na França, ou no século XVII, com o Sacro Império Romano. Mas, teologicamente, não há
dúvida que a Igreja católica deva dar mais importância ao dialogo com os ortodoxos, do que às
conversações com qualquer grupo protestante.
Pois as igrejas ortodoxas são igrejas na sucessão apostólica; elas são portadoras da Tradição
apostólica, testemunhas da fé apostólica, do culto e da ordem – embora elas também estejam,
ao mesmo tempo, infelizmente separadas da prima sedes, a primeira sé.
Seus Padres e outros escritores eclesiásticos, seus textos e práticas litúrgicas, sua tradição
iconográfica, permanecem loci theologici – fontes autênticas – para as quais o teólogo católico
pode e deve se voltar em sua compreensão do cristianismo católico. Não se pode dizer a
mesma coisa do patrimônio anglicano, luterano, reformado ou de qualquer outro tipo de
protestantismo.
Para dizer a mesma coisa de outra forma: as comunidades ocidentais separadas têm tradições
cristãs – no plural, com um “t” minúsculo – que podem ser merecedoras do interesse e
respeito do teólogo católico. Mas só os ortodoxos são, juntamente com a Igreja católica,
portadores de santa Tradição – no singular, com um “T” maiúsculo, isto é, do evangelho em
sua transmissão orgânica e plena através da totalidade da vida doutrinal, doxológica e ética –
da Igreja de Cristo.
Há, para os católicos, então, um imperativo teológico de restabelecer a unidade com os
ortodoxos, imperativo que não existe em nossa abordagem do protestantismo – embora eu
não gostaria de ser mal-interpretado, como se estivesse dizendo que não há nenhuma base
teológica para o impulso de aproximação católico-protestante porque nós encontramos esta
base na oração de nosso Senhor, na Última Ceia, para “que todos sejam um”.
Estou enfatizando que deveríamos dar uma maior prioridade para as relações com os
ortodoxos, porque eu não acredito nas afirmações otimistas de muitos especialistas em
ecumenismo, de que todos os diálogos bilaterais – cada uma das negociações com as
comunhões separadas –favoreçam uns aos outros de forma positiva e sem problemas.
Seria agradável pensar que um passo em direção a um grupo separado de cristãos nunca
significasse um passo para longe de um outro, mas a freqüência com que esta piedosa
reivindicação é repetida não faz com que ela se torne mais plausível. A questão da ordenação
de mulheres, tomando um exemplo particularmente claro, é evidentemente um tópico que
nos aproximaria do mundo protestante, e que nos afastaria dos ortodoxos como um todo – e
vice-versa.
Isto me leva à terceira razão para defender a relação ecumênica com os ortodoxos: suas
vantagens práticas. Atualmente, a Igreja católica, em muitas partes do mundo, está passando
por uma das crises mais sérias de sua história, uma crise que é o resultado de um encontro
desorientador com a cultura secularista e agravado por uma perda do discernimento cristão
por parte de muitas pessoas durante os últimos vinte e cinco anos – desde a mais alta
hierarquia até o fiel comum.
Esta crise abrange muitos aspectos da vida da Igreja, mas, principalmente a teologia e a
catequese, a liturgia e a espiritualidade, a vida religiosa e a ética cristã em geral. Em todas
estas áreas, ou ao menos na maioria delas, os ortodoxos possuem uma boa postura capaz de
estabilizar o catolicismo.
Se nós nos perguntássemos, numa abordagem simplesmente empírica e fenomenológica,
como é a Igreja ortodoxa, nós poderíamos descrevê-la como uma Igreja dogmática, litúrgica,
contemplativa e monástica – fornecendo, em todos estes aspectos, um contrapeso útil, capaz
de equilibrar certas características do atual catolicismo ocidental.
Assim, em primeiro lugar, a Igreja ortodoxa é uma Igreja dogmática. Ela vive da plenitude da
verdade impressa pelo Espírito nas mentes dos apóstolos no primeiro Pentecostes, uma
plenitude que transformou a percepção dos apóstolos e que tornou possível o tipo de
pensamento especificamente cristão que chamamos de pensamento dogmático.
A Trindade Santa, o Deus-homem, a Mãe de Deus e os santos, a Igreja como o mistério do
Reino expresso em uma vida comum na terra, os sacramentos como meios para a deificação
da humanidade – nossa participação na vida incriada do próprio Deus – estas são as verdades
entre as quais os ortodoxos vivem, se movem e têm seu ser.
A teologia ortodoxa, em todas suas formas, é um chamado à renovação de nossas mentes em
Cristo, tal renovação não tem como regra a pura razão ou a cultura secular, mas na pregação
apostólica atestada pelos Santos Padres, em conformidade com os principais dogmas de fé que
foram resumidos nos concílios ecumênicos da Igreja [1].
A Igreja ortodoxa é uma Igreja litúrgica*
Em segundo lugar, a Igreja ortodoxa é uma Igreja litúrgica. É uma Igreja que recebe da liturgia
toda uma atmosfera expressa em poesia, música e iconografia, texto e gestualidade, e o traço
característico desta vida litúrgica não é a capacidade de a liturgia expressar as preocupações
contemporâneas (por legítimas que sejam tais preocupações em seu próprio contexto), mas,
para ser bem claro, seu traço característico é a capacidade de a liturgia agir como um veículo
do Reino: ela é nossa entrada antecipada, aqui e agora, na vida divina.
Igreja ortodoxa é uma Igreja contemplativa*
Em terceiro lugar, a Igreja ortodoxa é uma Igreja contemplativa. Embora certamente não
ignore os chamados à atividade missionária e à caridade prática, essenciais ao evangelho e à
comunidade do evangelho como tais, a Igreja ortodoxa põe ênfase na vida de oração como
condição absolutamente necessária de todo cristianismo que mereça este nome.
Na tradição dos Padres do deserto, e da maioria dos grandes teólogos místicos, como os
Padres capadócios, São Maximo Confessor e São Gregório Palamas, tal como seu pensamento
está contido na Filocalia (a antologia da espiritualidade cristã oriental), os ortodoxos dão
testemunho da primazia daquele que o próprio Salvador chamou de primeiro e maior
mandamento: amar ao Senhor Deus com todo o coração, alma, mente e força. É com a luz
deste mandamento – com seu apelo a um processo teocêntrico de conversão e santificação
pessoal em Deus – que os nossos esforços por viver o mandamento correlativo de amar o
próximo e a nós mesmos devem ser guiados.
Igreja ortodoxa é uma Igreja monástica*
Em quarto lugar, a Igreja ortodoxa é uma Igreja monástica, uma Igreja com um coração
monástico onde os monastérios fornecem os padres espirituais de bispos, os conselheiros dos
leigos e o exemplo de radicalidade cristã. Uma Igreja sem um monaquismo florescente, sem o
“martírio vivo” de um asceticismo inspirado pelo mistério pascal da cruz do Senhor e pela
ressurreição, dificilmente seria uma Igreja de acordo com o pensamento do Cristo dos
evangelhos, pois o monaquismo, dentre todos os modos de vida dos cristãos, é o que mais
claramente, e publicamente, tudo abandona por causa do Reino.
Para falar de forma prática, a volta desta Igreja dogmática, litúrgica, contemplativa e
monástica à unidade católica, só poderia ter o efeito de estabilizar e fortalecer esses aspectos
do catolicismo ocidental que hoje estão mais ameaçados pelo securalismo e pelo liberalismo
teológico corrosivos.
II
Volto agora à verdadeira origem do cisma de um ponto de vista católico, juntamente com um
relato – necessariamente resumido e simples – dos quatro “pontos históricos divergentes”: as
questões disputadas, que os historiadores mostraram ter preocupado muito os orientais,
quando olham para o desenvolvimento da Igreja latina, e que constituiu a pauta das discussões
dos concílios de Lyon II, em 1274 e Florença em 1439.
Este é, sem dúvida, um assunto enorme e que requereria um relato da maior parte da história
da Igreja no primeiro milênio para ser bem desenvolvido. Aqui eu só posso dar uma indicação
breve e indicar aos interessados em maiores detalhes históricos – e certamente o fascinante
material disponível não falta – a minha obra Roma e as Igrejas Orientais: Um Estudo do Cisma
[2].
O desenvolvimento do cisma entre o oriente grego e o ocidente latino foi provocado,
essencialmente, por três fatores. O primeiro destes é a distância cultural crescente, e assim o
estranhamento, a suspeita e, eventualmente, a hostilidade que contrapôs, um contra o outro,
os bizantinos e os latinos da bacia mediterrânea, assim como áreas da Europa distantes umas
das outras – especialmente a Rússia por um lado, e o mundo germânico no outro,
evangelizadas, como foram, respectivamente, pelas Igrejas mães grega romana.
Já que um idioma comum, uma organização política comum, uma estrutura social comum, e
um universo teológico comum, no final da patrística e no início do período medieval, se
tornaram coisa do passado, os cristãos orientais e ocidentais deixaram de se sentir partes de
uma comunidade – e isto encontrou uma brutal expressão no saque de Constantinopla pelo
exército cruzado, em 1204.
O segundo fator principal que contribuiu para o cisma foi a rivalidade entre os imperadores
bizantinos e os papas romanos, considerados como dirigentes da comunidade cristã,
responsáveis pela sua direção global e para o ajuste de seus problemas organizacionais ou
conflitos internos. Constantino, o Grande, não somente herdou a ideologia imperial dos
governantes da res publica romana, mas também permitiu – talvez encorajou – a
transformação desta ideologia em uma amadurecida teologia imperial, por meio de figuras
como Eusébio de Cesaréia [3].
O imperador cristão, embora não pretendesse ter o poder de determinar os dogmas,
reivindicou um direito global de supervisão da vida pública e externa das igrejas. Mas esta era
exatamente a posição que os ocidentais desejavam dar ao Papa, apoiando-se na teologia em
desenvolvimento do único ministério “petrino” do bispo de Roma. No primeiro milênio, de
uma forma geral, não havia acordo eclesiológico sobre o primado de Roma. Encontra-se, seja
latinos que tomaram uma visão minimalista, seja gregos que tomaram uma visão maximalista.
Mas, em geral, é claro que os ocidentais vieram a favorecer uma alta teologia da Igreja e do
bispo de Roma, enquanto os orientais olhavam tal doutrina teológica com um mau
pressentimento, vendo-o como um afastamento do ethos da Pentarquia (a idéia da concórdia
necessária dos cinco patriarcados de Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém
– que, ao menos, por volta do oitavo século deveria ser tida como a visão bizantina normal do
que comportava especificamente o poder episcopal).
O terceiro e último fator no desenvolvimento das tensões em um verdadeiro cisma foi o
aparecimento das quatro questões disputadas que serviram como lentes que concentraram o
calor emitido nestas tensões crônicas ou estruturais, até que ele se tornasse explosivo.
Seguindo a ordem do seu aparecimento histórico, os tópicos ou questões são: o Filioque, a
natureza do primado romano, o uso de pães ázimos ou não fermentados na missa ocidental, e
a doutrina do purgatório, especialmente a representação de o estágio intermediário ser um
fogo purificador.
Em todos estes pontos (até mesmo o dos ázimos que poderia ser considerado um assunto
singularmente improdutivo ou pelo menos periférico para o pensamento cristão) idéias
teológicas de grande interesse foram levadas à frente por ambos os lados, embora hoje,
provavelmente, só o Filioque e a questão do primado sejam consideradas como “pontos de
divisão”.
Com relação ao Filioque – a processão do Espírito Santo, conforme a versão latina emendada
do credo niceno-constantinopolitano, não somente do Pai, mas também do Filho –, creio eu
que, se pudéssemos contar com um mínimo de boa vontade, nós seríamos capazes, sem dano
para a integridade doutrinal de nossas duas comunhões, solucionar este questão técnica de
teologia trinitária: técnica, mas também crucial para nossa forma de ver o Espírito em sua
relação com o Filho, e assim como as suas respectivas economias relacionadas com nossas
vidas. O problema do primado romano é menos facilmente resolvido, e eu retornarei a ele ao
final de minha exposição.
Isto nos basta – muito esquematicamente, e inadequadamente – no que tange à gênese
histórica do cisma e seus quatro pontos de conflagração doutrinal, a ação dos três fatores (o
estranhamento cultural mútuo, as expectativas contraditórias sobre os papéis do imperador e
do papa, e as questões teológicas especificamente) significou que, por volta de 1450, a igreja
bizantina, rejeitando a união florentina de 1439, definitivamente rompeu a comunhão com a
sé romana, situação esta que foi gradualmente se estendendo de um modo bastante desigual
para o resto do mundo ortodoxo no decorrer dos séculos XVI e XVII, havendo alguns exemplos
de communicatio in sacris - por exemplo, do costume do clero latino, principalmente jesuítas,
de pregar e ouvir as confissões dos fiéis ortodoxos gregos – em alguns lugares, em data tão
recente quanto a primeira metade do século XVIII.
III
Passo agora à terceira parte de meu artigo que concerne à situação atual das relações católicoortodoxas. Depois de uma fase preparatória de contatos iniciais, conhecida como o “diálogo da
caridade”, o diálogo teológico católico-ortodoxo foi oficialmente estabelecido em 1979, com a
“declaração comum” feita pelo Patriarca Ecumênico Dimítrio I e pelo Papa João Paulo II na
conclusão da visita ao Fanar, a sede patriarcal em Istambul, em novembro daquele ano.
Neste contexto, a situação entre ortodoxos e católicos era em certos aspectos mais otimista do
que, por assim dizer, no tempo do concílio de Florença, mas, em outros aspectos, ela era
menos promissora. Era mais promissora por causa da participação dos ortodoxos no
Movimento Ecumênico desde a década 1920, que levou a que se acostumassem à idéia de
trabalhar para unidade cristã – embora uma minoria forte e barulhenta sempre tenha
expressado reservas para com esta política como que para confirmar o que os católicos
chamariam de “indiferentismo”.
Se em suas origens, o Movimento Ecumênico era uma idéia principalmente pan-protestante, a
entrada dos ortodoxos em seus objetivos pressionou o movimento, contudo, em uma direção
que tornou possível para a Igreja católica o seu ingresso, quase quarenta anos depois, na
véspera do Concílio Vaticano II. Os ortodoxos tiveram este efeito saudável no qual a sua voz –
combinada com a dos anglicanos de mentalidade neo-patrística (então um grupo mais
numeroso do que hoje) – conseguiu dispersar a sensação de que o ecumenismo seria
basicamente um movimento que preparava para uma união de cristãos puramente moral e
sentimental – ao invés uma união doutrinal e sacramental.
Assim, por meio destas linhas gerais, as igrejas ortodoxas funcionaram de forma construtiva
dentro do Movimento Ecumênico até os anos 80, embora ainda não se possa dizer se elas
poderão continuar fazendo o mesmo no futuro no contexto do Conselho Mundial de Igrejas –
considerando que este conselho foi capturado por um programa de trabalho bastante secular.
A este luminoso relato sobre o ecumenismo ortodoxo deve ser anexado um caveat
importante. É possível superestimar o componente teológico do papel de Ortodoxia no
Movimento Ecumênico do século XX, se negligenciarmos o fato que o desejo de muitos
ortodoxos de uma maior interação com comunhões ocidentais era em parte um desejo
pragmático e até mesmo político.
Com o colapso da Rússia tsarista em 1917, não havia mais o poderoso protetor das igrejas
ortodoxas, e comunidades ortodoxas em estados hostis como a Rússia bolchevique ou a
Turquia kemalista, ou em estados ortodoxos confessionais relativamente fracos como a
Bulgária e Grécia, precisavam do apoio de uma consciência política cristã que ainda sobrevivia
nas grandes potências da primeira metade deste século como a Inglaterra e os Estados Unidos.
Esta precaução realista sobre os motivos de algum ecumenismo ortodoxo me leva às
características menos esperançosas do que a situação que cercou a abertura de diálogo oficial
no início dos anos 80.
No mais de quinhentos anos de falência da união florentina, ortodoxos e católicos tiveram
tempo para ensaiar ainda mais polêmicas um contra o outro, desgastar as imagens um do
outro, e também acrescentar (especialmente do lado ortodoxo) novas questões de
controvérsia doutrinal embora em um caso, a definição em 1870 da jurisdição universal e
infalibilidade doutrinal do bispo de Roma, a consternação dos ortodoxos fosse, é claro,
completamente previsível, como fora indicado por vários bispos católicos orientais no Concílio
Vaticano I.
Nós achamos pensadores ortodoxos tão influentes como, por exemplo, o teólogo grego leigo
João Romanides que ataca a doutrina ocidental do pecado original como herética, fazendo o
dogma latino mariano da imaculada conceição – a justificação original de Maria – supérfluo,
senão absurdo. Ou novamente, e este poderia ser um ponto que ocupou os responsáveis pelo
diálogo oficial dos últimos quinze anos, algum ortodoxo gostaria agora de considerar a prática
pastoral através da qual muitas igrejas locais no ocidente latino adiam a confirmação (ou
crismação) de crianças até depois da sua primeira santa comunhão como baseada em um
grave erro de apreciação da doutrina sacramental.
Porém, nada disto impediu a Comissão Internacional Comum para o Diálogo Teológico entre a
Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa – para usar o seu título prolixo – de produzir vários
(três, para ser preciso) documentos muito úteis para uma compreensão comum (na Grande
Igreja da qual a ortodoxia e o catolicismo são as duas expressões) do mistério da própria Igreja,
em sua estrutura sacramental e especialmente eucarística, visto em relação com o mistério do
Deus unitrino, a realidade fundamental de nossa fé. Estas declarações são conhecidas pelo
lugar e data de sua origem: Munique 1982, Bari 1987, e Válamo (na Finlândia) 1988 [4].
Uma sombra lançada mais recentemente, era em 1979 apenas uma nuvem no horizonte, uma
nuvem, como nos confrontos de Elias com Acab no Primeiro Livro de Reis, não maior que a
mão de um homem. E esta é a ameaça feita ao diálogo pelo revigoramento das igrejas uniatas
então suprimidas pelos comunistas, ou seja, as igrejas católicas orientais, especialmente as da
Ucrânia e da Transilvânia, durante o final dos anos 80 e da década de 90.
A existência de comunidades de rito bizantino em união com a Santa Sé já era um importante
incômodo para os ortodoxos, apesar de algumas destas comunidades, por exemplo na Itália
Meridional e Sicília, terem gozado de uma história sem ruptura de união e não tenham sido de
forma alguma resultado de proselitismo ou trapaça política.
O que os ortodoxos bastante natural e justamente objetam é o uniatismo como método de
separar dioceses ortodoxas e paróquias de suas igrejas mães com o princípio de divide et
impera. Nem todas as uniões parciais com os ortodoxos bizantinos podem ser julgadas
historicamente sob este título, pois algumas, como uma união com parte do patriarcado
antioqueno que produziu a atual igreja melquita, é principalmente o resultado da iniciativa
oriental, e não ocidental.
É certamente uma das ironias da história da Igreja que o mesmo Papa (João Paulo II) que
conduziu o início do diálogo católico-ortodoxo seja também o Papa que protagonizou a
destruição do comunismo. O fim da hegemonia marxista-leninista, a desintegração interna da
União soviética, as rebeliões emuladas contra a nomenklatura nacional comunista em países
como a Romênia, fez com que fosse possível o re-aparecimento de igrejas católicas orientais,
outrora violentamente re-unificadas com as ortodoxas pelo Comintern de Stalin nas
repercussões do pós-guerra.
O processo foi suficiente para colocar em dificuldade o projeto de reunião católico-ortodoxa
que é a grande meta da política eclesiástica, enquanto distinta da política meramente pública,
mais querida ao coração deste eslavo extraordinário que é bispo de Roma.
Assim em junho de 1990, na reunião plenária da Comissão em Freising na Baviera, os
ortodoxos recusaram continuar com o programa de trabalho oficial discutindo “Conciliaridade
e autoridade: as conseqüências eclesiológicas e canônicas da estrutura sacramental da Igreja”
até que um documento possa ser redigido sobre as igrejas católicas de rito bizantino, um
documento que foi depois produzido em Balamand no Líbano em 1993 e que,
lamentavelmente, tanto não satisfez muitos ortodoxos, como ainda enfureceu muitos
católicos orientais [5].
IV
Isto me traz à quarta e última seção de minha “visão de conjunto” onde, como mencionei no
início, irei individuar um aspecto negativo da ortodoxia para fazer um comentário, assim
espero, caridoso e pacífico de como, em minha opinião, os ortodoxos necessitam da
comunhão católica da mesma forma que – por razões bastante diferentes já esboçadas – os
católicos precisam (neste momento histórico, sobretudo) da igreja ortodoxa.
A animosidade, na verdade a fúria mal-disfarçada, com que muitos ortodoxos reagem ao tema
do uniatismo quase não tem explicação. A não ser em termos de um difundido e não
prontamente defensável sentimento ortodoxo sobre a relação entre a nação e a Igreja.
Na verdade, deve haver algum fator de psicologia social ou ideologia incorporada que
complicam este tema. Tenha-se em mente que os ortodoxos não tiveram dificuldade alguma
neste século de criar formas de ortodoxia de rito ocidental, como por exemplo, na França
debaixo da égide do patriarcado romeno ou, mais recentemente, nos Estados Unidos debaixo
da jurisdição de um exarca do patriarca de Antioquia. E o que são estas entidades se não
uniatismo ortodoxo – contra o qual a Igreja católica, porém, não fez alguma objeção.
Nem as igrejas não-calcedonianas como os assírios (no Iraque e Irã), o jacobitas (na Síria) ou os
cristãos siro-malabares de sul da Índia, reagem deste modo diante da idéia de que algumas das
suas comunidades possam estar em paz e comunhão com a irmã mais velha Roma. Uma
exceção parcial – e significativa – entre tais igrejas ortodoxas não-calcedonianas são os copta
do Egito – justamente por causa da noção de que o patriarca copta é pai de toda nação copta.
Em outras palavras, entrou aqui o que nós podemos chamar um fator político – dando à
palavra “político” seu possível significado mais largo.
É o vínculo íntimo entre Igreja e consciência nacional, consciência patriótica que faz o
uniatismo tão absolutamente inaceitável em tais países como a Grécia e Romênia e é este
fenômeno de nacionalismo ortodoxo que eu acho a característica menos atraente da
ortodoxia hoje.
Um exemplo extremo é a filo difundida na Igreja de Sérvia que passa pelo nome de São Sava,
rei sérvio da idade média – conseqüentemente Svetosavlje, “São-Sava-nismo”. Esta criação do
famoso bispo Nikolay Velimirovich, que morreu em 1956, argumenta que o povo sérvio é, pela
sua história de martírio, uma nação eleita, até mesmo entre os ortodoxos, portadora sem igual
de sofrimento salvífico, um povo incomparavelmente santo, em contraposição especialmente
aos seus vizinhos ocidentais que são apenas pseudocristãos, que crêem na humanidade sem
divindade [6].
E se as origens de tais atitudes ortodoxas se encontram nas tentativas de nacionalistas do
século dezenove de mobilizar o potencial político dos camponeses ortodoxos contra os
governantes islâmicos e católicos, que eu não vacilaria em chamar de profundamente não
cristãs, estas forças podem contrariar até mesmo os interesses da ortodoxia – como nós
estamos vendo hoje na embaraçosa campanha no Sagrado Monte Athos de desalojar os
monges não-gregos e desencorajar os peregrinos não-gregos, totalmente contra o espírito da
república monástica atonita que, historicamente, é um testemunho vivo da inter-racialidade
ortodoxa, internacionalismo ortodoxo.
Para uma mente católica, a Igreja de Pentecostes é uma Igreja de todas as nações no sentido
de ecclesia ex gentibus, uma Igreja tomada de todas as nações e reunida – é claro que também
com seus próprios talentos espirituais e humanos – em uma comunidade universal à imagem
da divina Triunidade onde a diferença entre o Pai, Filho e Espírito somente serve às suas
relações de comunhão.
A Igreja de Pentecostes não é uma ecclesia in gentibus, uma Igreja distribuída entre as nações,
no sentido de dividida entre elas, se acomodando completamente às suas estruturas, e
deixando o seu sentido de identidade autônoma imperturbado.
Falando como alguém que cresceu em uma Igreja nacional, a Igreja da Inglaterra, embora eu
seja feliz por me considerar perfeitamente inglês, eu também considero como uma bênção da
catolicidade me sentir livre do particularismo, na vida mais espaçosa de uma Igreja que
cresceu para ser um sinal para todas as nações, uma Igreja onde toda raça, cor e cultura
podem se sentir em casa, na casa do Pai.
É nesta perspectiva final que se deveria considerar o papel do bispo de Roma como um
“primado universal” no serviço da comunhão global das igrejas. Um dos mais amados títulos
do bispo de Roma para o ocidente medieval era o de papa universalis, e enquanto não se
possa nem se deva resumir todos os aspectos de eclesiologia latina no período da alta Idade
Média, para um cristão católico a comunhão universal das igrejas locais em sua variedade
múltipla precisa de um pai no Papa, da mesma maneira que como a própria igreja local, com
suas congregações variadas, ministérios e atividades, precisa de um pai na pessoa do bispo.
É dito freqüentemente que tal uma eclesiologia do serviço papal é irremediavelmente
ocidental e latina, e incapaz de tradução em condições orientais. Eu acredito que tal
declaração é injusta. Da mesma maneira que um patriarca, como um primaz regional, é
responsável pelo funcionamento devido das igrejas locais de sua região, sob o seu governo
episcopal, assim um primado universal é responsável pelo funcionamento da ordem e das
obrigações de todo o episcopado, e assim para todas as igrejas em uma escala mundial.
Nem é necessário dizer: este serviço serve para a construção, não para a destruição, de toda
ordem episcopal, fundada em última instância no testamento do desejo do Redentor, ao
estabelecer a missão apostólica, e mais tarde depurada pela Tradição na instituição de
patriarcados e outros primados nesta ou naquela porção do todo eclesial. Mas, ao mesmo
tempo, se o ministério de um bispo primaz verdadeiramente é satisfazer as necessidades da
Igreja universal, isso o levará, às vezes, a ter de tomar decisões que são duras ou impopulares
em algumas comunidades locais.
Para que as Igrejas ortodoxas e católicas se tornem uma só, algumas reformas da estrutura do
primado romano seriam não menos necessárias, especialmente no nível da cúria romana. A
congregação para as Igrejas Orientais se tornaria um secretariado no serviço dos apocrisários
permanentes (enviados) dos patriarcas e outros primazes.
A grande maioria dos outros dicastérios seria redefinida como órgãos do patriarca ocidental,
ao invés do sumo pontífice. E tal primazia não seria meramente um carimbar com o selo da
cúria romana as decisões das igrejas locais ou regionais, para que estas tivessem valor; isso
pareceria algo pouco realístico.
Assim o Papa, como primaz universal, precisaria manter: primeiro, um órgão doutrinal para a
coordenação do ensinamento da Igreja, e, em segundo lugar, algum tipo de “secretariado
apostólico”, substituindo a presente mal-nomeada “Secretaria de Estado”, para uma
harmonização dos princípios de ação pastoral. A tudo isso, pode-se acrescentar, em terceiro
lugar, algum dos “novos organismos curiais” que lidam com os que estão fora da casa de fé
que se possa julgar como útil, e finalmente, um permanente “Conselho para os Negócios
Públicos da Igreja”, para a defesa da liberdade das igrejas (e dos direitos humanos) diante do
poder Estatal.
A utilidade do quarto destes itens para os Ortodoxos é óbvia. Para o restante (dos quais
somente os dois primeiros são de importância crucial), eles só deveriam funcionar nas raras
ocasiões de “crise de administração” como instrumentos de ação papal nas igrejas orientais.
Normalmente, eles deveriam funcionar, na verdade, como canais por meio dos quais os
impulsos das igrejas orientais – impulsos dogmáticos, litúrgicos, contemplativos, monásticos –
que poderiam atingir, através do papa, de forma mais abrangente, a Igreja e mundo.
Para este propósito os apocrisários dos patriarcas, juntamente com os prefeitos dos dicastérios
ocidentais, precisariam constituir seus comitês administrativos, sob a presidência papal. Isso
aconteceria sem a necessidade de se dizer que as igrejas orientais desfrutariam naturalmente
de total paridade com a igreja latina por todo o mundo, e não simplesmente em suas pátrias –
que é a prática católica atual [7].
Os ortodoxos têm que perguntar a si mesmos (como já o fazem!) se tais instrumentos de
comunhão universal (que limitam e libertam) talvez não valham a pena. Ou os prazeres da
particularidade têm que vir primeiro?
Notas:
[1] Cf. A. Nichols, O. P., Light from the East. Authors and Themes in Orthodox Theology
(London 1995).
[2] Rome and the Eastern Churches. A Study in Schism (Edinburgh 1992).
[3] J.-M. Sansterre, 'Eusebe de Césarée et la naissance de la théorie "cesaropapiste"',
Byzantion 42 (1972), pp. 131-195; 532-594.
[4] Convenientemente coligidos em P. McPartlan (ed.), One in 2000? Towards CatholicOrthodox Unity (Middlegreen, Slough, 1993).
[5] Publicado em inglês in One in Christ XXX 1 (1994), pp. 74-82.
[6] Cf. T. Bremer, Ekklesiale Struktur and Ekklesiologie in der Serbischen Orthodoxen Kirche im
19. and 20. Jahrhundert (Würzburg 1992).
[7] [Uma causa justificável de ira entre os católicos orientais de hoje: cf. T. E. Bird, 'The Vatican
Decree on the Eastern Catholic Churches Thirty Years Later', Sophia 21, 4 (1994), pp. 23-29.
* (Destaque do editor)
Texto gentilmente enviado por Fabio Wagner, São Paulo – Brasi
Fonte:
http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/dialogo_ecumenico/uma_visao_catolica_da_ortodoxia
.html

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