encontros teológicos 65

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encontros teológicos 65
Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC
Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC
ISSN 1415-4471
http://www.facasc.edu.br
Encontros Teologicos 65.indb 1
17/10/2013 15:09:08
FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARA
FACULDADE CATÓLICA DE SANTA CATARINA – FACASC
INSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA – ITESC
Corpo Diretivo
Diretor Geral da FACASC e do ITESC: Pe. Dr. Vitor Galdino Feller
Diretora Acadêmica da FACASC: Profa. Ana Cristina Barreto Floriani
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Coordenador da Graduação em Teologia da FACASC e Secretário do ITESC: Prof. Celso Loraschi
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CRB-14/416
Encontros Teológicos. Revista da Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC
e do Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC, n. 65, Florianópolis, 2013.
Quadrimestral ISSN 1415-4471
I. Instituto Teológico de Santa Catarina
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ENCONTROS TEOLÓGICOS
Revista quadrimestral fundada em 1986
Diretor: Elias Wolff
Editor: Vitor Galdino Feller
Redator: Ney Brasil Pereira
Conselho Editorial:
Celso Loraschi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Domingos Nandi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Edinei da Rosa Cândido – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Elias Wolff – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Helcion Ribeiro – PUC – Curitiba, PR
Inácio Neutzling – UNISINOS – São Leopoldo, RS
João Batista Libânio – ISI-FAJE – Belo Horizonte, MG
José Artulino Besen – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Lilian Blanck de Oliveira – FURB – Blumenau, SC
Luiz Carlos Susin – PUC-RS e ESTEF – Porto Alegre, RS
Márcio Fabri dos Anjos – Pontifícia Faculdade N. Sra. da Assunção – São Paulo, SP
Maria Clara Bingemmer – PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ
Maria de Lourdes Pereira Dias – UFSC – Florianópolis, SC
Marlene Bertoldi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Ney Brasil Pereira – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Rudolf von Sinner – EST – São Leopoldo, RS
Valter Maurício Goedert – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Vilmar Adelino Vicente – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Vitor Galdino Feller – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
CoNSELHO CONSULTIVO:
Analita Candaten – Centro de Fomação Scalabriniana – Passo Fundo, RS
Armando Lisboa – UFSC – Florianópolis, SC
Cecília Hess – UNIVILLE – Joinville, SC
Érico Hammes – PUC-RS – Porto Alegre, RS 
Evaristo Debiasi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Fábio Régio Bento – UNISUL – Tubarão, SC
Gabriele Cipriani – CONIC – Brasília, DF
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Luís Dietrich – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Luís Inácio Stadelmann SJ – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Márcio Bolda da Silva – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Marta Magda Antunes Machado – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Paulo Cezar da Costa – PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJ
Roberto Iunskovski – UNISUL – Florianópolis, SC
Sérgio Rogério Junqueira Azevedo – PUC-PR – Curitiba, PR
Siro Manoel de Oliveira – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Vilson Groh – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa.
Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisadores e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o
objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de
informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais.
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Sumário
Editorial ....................................................................................................... 7
A revitalização das paróquias
Pe. Edson Oriolo.......................................................................................................
11
Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais
José Carlos Pereira..................................................................................................
31
A paróquia e um conceito “forte” de comunidade: Uma compreensão pela
sociologia e pela pastoral
Prof. Sérgio Ricardo Coutinho..................................................................................
51
Formação cristã na comunidade paroquial
Pe. José de Lima.......................................................................................................
65
O cristão leigo e a paróquia
Laudelino Augusto dos Santos Azevedo....................................................................
79
A missão “da” e “na” paróquia: Um ensaio de releitura do documento de
estudos 104 da CNBB, na perspectiva da “missão”
Sidnei Marco Dornelas, CS......................................................................................
99
Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia
Elias Wolff.................................................................................................................
115
Família como comunidade e comunidade eclesial como família: fraternidade
cristã e universal na nova paróquia
Rafael Cerqueira Fornasier......................................................................................
133
A nudez de Francisco, o Papa
Elias Wolff.................................................................................................................
145
A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pósconciliar: história, questões e desafios
Murilo Guesser.........................................................................................................
157
Recensões...................................................................................................... 177
Crônicas........................................................................................................ 187
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(Faça uma cópia, caso não queira recortar esta página da revista!)
Editorial
Vivemos um tempo de reflexão e repensamento sobre a organização da
comunidade cristã em torno da paróquia. Estruturada segundo os contextos sociocultural e religioso da Idade Média, por séculos a paróquia
foi praticamente o único espaço de referência para a vivência da fé dos
cristãos católicos. Ali se conjugam a vida social e a vida religiosa, são
recebidos os ensinamentos da fé, os sacramentos, a orientação espiritual para o cotidiano da existência. A paróquia atinge a totalidade da
vida dos seus membros, nas suas várias dimensões e circunstâncias, do
batizado ao sepultamento.
A paróquia tem sido uma possibilidade privilegiada para uma
verdadeira experiência de vida comunitária, de encontro e diálogo,
conhecimento mútuo, solidariedade, crescimento comum na fé. Isso
acontece onde ela se caracteriza pela acolhida, relação, gratuidade,
solidariedade, testemunho comum da fé.
Essa forma de organizar a comunidade sofreu distorções ao
longo do tempo. O espírito comunitário, participativo, de amizade e
solidariedade fraternas foi-se fragilizando por uma série de fatores. As
distorções aparecem, sobretudo, no paroquialismo, no clericalismo, na
burocratização dos serviços pastorais, entre outros. E a paróquia deixou
de ser um espaço significativo para responder às necessidades espirituais
de muitos paroquianos. Além disso, emergem atualmente novas formas
de vida comunitária, ambientais, afetivas, virtuais... que congregam
as pessoas sobretudo pelo vínculo afetivo. Os elementos objetivos do
projeto pastoral da paróquia, bem como o elemento canônico do território, não são critérios únicos de pertença a uma comunidade paroquial.
Para muitos, o vínculo comunitário é subjetivo, o critério de pertença
é existencial, afetivo, espiritual. E por não sentirem-se correspondidos
nesses critérios, muitos deixam a comunidade paroquial como o lugar de
referência para a vivência comunitária da fé. Outras formas de organizar a comunidade cristã concorrem com a comunidade paroquial, além
de muitas comunidades paroquiais agregarem em si mesmas diferentes
formas de viver em comunidade.
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Editorial
Esse fato tem implicações também para a função do líder religioso
tradicional da paróquia, o pároco. Muitos paroquianos já não mais têm
o pároco como seu líder religioso, e por vezes nem mesmo um membro do
clero. Há líderes que transcendem as fronteiras territoriais da comunidade paroquial – como também canônicas, teológicas, litúrgicas... Igualmente, questiona-se o conteúdo da orientação religiosa que a paróquia
oferece. Enfim, outras formas de organizar a comunidade, com outros
líderes religiosos, apresentam diferentes conteúdos pastorais e espirituais
que não raro se manifestam concorrentes. A paróquia, centro histórico de referência para a educação e vivência da fé, recebe atualmente
questionamentos, oriundos de contextos ad intra à Igreja – teológicos,
pastorais, eclesiais e de contextos ad extra – socioculturais.
O Concílio Vaticano II buscou revigorar a paróquia como espaço
privilegiado para a vida comunitária dos cristãos católicos. A partir
de então, as conferências do episcopado latino-americano procuram
fortalecer a paróquia em sua dimensão profética (Medellín, 1968), de
comunhão e participação (Puebla, 1979), lugar da nova evangelização,
da promoção humana e da cultura cristã (Santo Domingo, 1992), comunidade do discipulado e da missão (Aparecida (2007). A conferência de
Aparecida possibilita um real repensamento da paróquia para que seja
“comunidade de comunidades”. Para tal, faz-se necessária uma verdadeira “conversão pastoral” que apresenta três exigências: uma pastoral
missionária; a superação da pastoral de conservação – abandonando
estruturas que não mais contribuem com as exigências da evangelização
hoje; a setorização da paróquia em unidades territoriais menores, com
mais dinamismo, criatividade e lideranças leigas.
É no horizonte da proposta da Conferência de Aparecida que a
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil propõe uma compreensão
de Paróquia como: a) Casa da Iniciação à Vida Cristã; b) Lugar de animação bíblica da pastoral; c) Comunidade de comunidades; d) Serviço
da vida plena para todos (Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja
do Brasil 2011 a 2015). O debate sobre a “Paróquia: comunidade de
comunidades” se intensificou na 51ª Assembleia Geral da CNBB (abril
de 2013), resultando no Documento de Estudos n. 104, “Comunidade de
comunidades: uma nova paróquia”. Trata-se de uma questão essencial
para a vida cristã e eclesial: como organizar e viver na Igreja de comunhão e participação? É uma questão teológica, pastoral e espiritual, a
um só tempo. Exige o resgate dos valores das primeiras comunidades
cristãs, onde “todos os que abraçaram a fé estavam unidos e tudo par-
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Editorial
tilhavam... a multidão dos fiéis tinha um só coração e uma só alma”
(At 2,44-45 e 4,32). Retoma a eclesiologia de comunhão proposta pelo
Concílio Vaticano II e a tradição latino-americana, afirmando o valor
da corresponsabilidade de todos os fiéis na organização da Igreja Povo
de Deus e na evangelização, a criação de uma comunidade toda ministerial versus o binômio clero-leigo, a pastoral orgânica e de conjunto e o
planejamento pastoral versus o voluntarismo e o personalismo, a opção
preferencial pelos pobres, as pastorais sociais e a presença profética da
comunidade paroquial na sociedade.
A revista Encontros Teológicos quer dar a sua contribuição nesse esforço de refletir sobre a Paróquia para que ela seja uma rede de
comunidades. Apresentamos aqui a reflexão de Edson Oriolo sobre a
“Revitalização das Paróquias”, José Carlos Pereira mostra os “Desafios
Centrais para uma Paróquia Comunidade de comunidades”, Sérgio
Coutinho reflete sobre “A paróquia e um conceito ‘forte’ de comunidade”, em perspectiva sociológica e pastoral, José de Lima trata da
“Formação cristã na comunidade paroquial”, Laudelino Augusto dos
Santos Azevedo trata da relação entre “O cristão leigo e a paróquia”,
Sidnei Marco Dornelas, analisa “A missão ‘da’ e ‘na’ paróquia”, a
partir do documento 104 da CNBB, Elias Wolff propõe os “Grupos de
Reflexão como modelo de vida comunitária para a paróquia”, Rafael
Fornasier reflete sobre a relação “Família e Paróquia”. Apresentamos,
ainda, recensões e crônicas.
Esperamos, assim, contribuir para o debate sobre a paróquia
que busca compreendê-la como espaço de relações solidárias, de acolhida, de corresponsabilidade, de comunhão... Paróquia, Comunidade
de Comunidades.
Elias Wolff
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Publicações de nossos Professores
FELLER, Vitor Galdino. “Ser Padre hoje”,
São Paulo, Editora Ave Maria, 144 pp.
O autor, doutor em Teologia, é Diretor da nossa Faculdade Católica
de Santa Catarina, FACASC, vigário geral da Arquidiocese de Florianópolis
e colaborador mensal da página “Tema do Mês” do Jornal da Arquidiocese.
Com vários livros publicados e experiência pastoral diversificada – foi vigário paroquial, pároco, reitor de Seminário, coordenador de Pastoral etc, e há
30 anos professor de Teologia – tem condições de explicitar o “Ser”, “hoje”,
dessa figura humano-divina que é o Padre, o Presbítero, ao qual o Concílio
dedicou dois documentos: “Presbyterorum Ordinis” e “Optatam totius”.
Após uma Introdução, o autor procede por três capítulos. O primeiro
(pp. 13-30), situando o padre “no mundo que nos cerca”, com seus desafios:
sociais, eclesiais, pessoais, etapa do VER. O segundo (pp. 31-77), apresentando os elementos fundamentais da teologia do presbiterato, do mistério, do ser
do Presbítero, no modelo e no seguimento do único, sumo e eterno Sacerdote,
Jesus Cristo, conforme o magistério da Igreja e o ensino dos grandes mestres,
etapa do JULGAR. O terceiro (pp. 79-140), apontando caminhos práticos do
ministério, do agir presbiteral, no seguimento de Jesus Cristo, Bom Pastor, no
serviço à Igreja e ao Reino, etapa do AGIR. “Situar, ser e agir. Mundo, mistério e ministério. No mundo em que o padre se situa, ele se configura no ser e
no mistério do Cristo, para agir no ministério do Cristo e da Igreja, a serviço
do Reino” (p. 11).
Citamos a Conclusão (p. 141): “O presbítero de hoje situa-se num mundo carregado de desafios, numa ‘mudança de época’ que exige dele força interior e abertura. Somente possuído pelo Espírito Santo ele conseguirá exercer a
caridade pastoral de Jesus Cristo em favor do povo santo de Deus Pai. Ele não
pode deixar-se levar pela inquietação provocada pelo pluralismo religioso do
nosso tempo nem pode fechar-se em copas, com medo de perder os privilégios
que o clero alcançou no passado. Deverá ser homem ousado, com uma espiritualidade centrada no seguimento de Jesus Cristo, no anúncio do Reino de
Deus e na opção pelos pobres. Para além do culto a ser celebrado no interior
da comunidade de fé, ele deverá fazer uso da palavra de Deus a ser anunciada
em toda parte e de todos os modos, em vista da formação das consciências e
da edificação de uma sociedade justa, igualitária e fraterna. Deverá presidir a
comunidade que lhe for confiada, valorizando todas as riquezas espirituais e
morais dos fiéis leigos e priorizando a caridade em favor dos necessitados, em
cujo rosto há de sempre enxergar e apontar o rosto do Senhor, crucificado e
ressuscitado.” (N.B.P.)
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Resumo: As muitas transformações pelas quais passa a paróquia como modelo
de organização da Igreja, exige um repensamento que a favoreça como lugar
da experiência comunitária dos cristãos católicos. Isso exige avaliar a estrutura
paroquial em sua história, organização concreta e finalidades. Urge resgatar e
revitalizar a paróquia como lugar da vida eclesial, da experiência comunitária dos
fiéis, da pregação do Evangelho. Para tal, é fundamental uma readequação dos
elementos institucionais da paróquia ao contexto social e religioso dos nossos
tempos, de modo a possibilitar à paróquia continuar sendo lugar de referência
para a vivência da fé.
Abstract: As a result of many transformations happening in the parish as a
model of Church organization, it is no surprise that new thought patterns have
to be taken into account in order to face up with the demands for improvement
of all sorts of community experience of Catholics. This requires an evaluation
of the parochial structures in the course of history, especially its organization
and objectives. Above all the parish has to be endowed with new life in order to
fulfill its role as source of vitality in ecclesial performance affecting the sense of
belonging of the faithful to a community and its relationship with Jesus Christ,
preaching the Gospel. The need for a more adequate scaffolding for the institutions of the parish in the present time there are stringent procedures to be
attended affecting both the social and religious context, so that the parish may
continue to have its functional relevance in the faith community of the Church
and its role in spreading Christian culture throughout the world.
A revitalização das paróquias
Pe. Edson Oriolo*
*
O autor é presbítero da Arquidiocese de Pouso Alegre, MG. Mestre em Filosofia Social,
Especialista em Marketing, Pós Graduado em Gestão de Pessoas, Pós Graduação
em Aristóteles, Professor na Faculdade Arautos do Evangelho, em Caieiras, SP, no
Instituto Filosófico Aristotélico Tomista (IFAT) e no Instituto Teológico São Tomás de
Aquino (ITTA), Caieiras, SP.
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A revitalização das paróquias
Nestes últimos anos, a instituição paróquia tem passado por grandes transformações no desempenho da missão e da administração. É uma
instituição eclesiástica antiga e atual1, que devemos valorizar. Acredito
que são inúmeros os termos para referir neste artigo sobre “paróquia”. A
reestruturação, a reorganização, o reajustamento, a reforma, a renovação,
a reorientação, a revitalização etc... Achei por bem intitulá-lo como a
revitalização das paróquias.
O artigo surge como proposta para ajudar a resgatar e revitalizar
as paróquias. É uma luz para o cristão escutar a Boa Nova, celebrar a
fé, dar sua resposta participativa e se alimentar no mistério da unidade,
a Eucaristia. A intenção é valorizar, possibilitar e abrir caminhos para a
instituição paroquial se adequar ao contexto histórico. É um incentivo
para se criar novas estruturas pastorais e administrativas, a fim de que
a paróquia seja “uma determinada comunidade de fiéis, sob o cuidado
pastoral do pároco como seu pastor próprio, em união com o bispo diocesano” (cf. Cân. 515 &1).2 O artigo quer colaborar no esforço para que
a paróquia seja lugar de visibilidade da Igreja, não ficando indiferente
ao mundo em mudança.3
A Igreja tem a missão de evangelizar. Desde seu inicio, a Igreja
sabe da necessidade de anunciar a Boa Nova, segundo a ordem de Jesus:
“Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda Criatura” (Mc
16,15). A Igreja sempre se preocupou em responder a esta nobilíssima
vocação de ser portadora da Boa Nova e de ser sacramento universal de
salvação (cf. LG 48). Para tanto, no decorrer do tempo, criou estruturas,
e a paróquia é uma delas.
No início da era cristã, o Império Romano abrangia grandes
metrópoles como Roma, Alexandria e Antioquia da Síria, ligadas entre
si pelas vias romanas. Com a expansão do cristianismo, em Roma e
Alexandria, os presbíteros começaram a presidir assembléias cristãs,
dispersas pelas cidades, mas as grandes celebrações do batismo e da
12
1
“A antiga e venerada estrutura da paróquia tem uma missão imprescindível e de
grande atualidade: iniciar e congregar o povo na normal expressão da vida litúrgica;
conservar e reavivar a fé das pessoas de hoje; oferecer-lhes a doutrina Salvadora
de Cristo; realizar pelo coração e pela prática da caridade as obras boas e fraternas”
(cf. Paulo VI, discurso ao clero de Roma, de 24 de junho de 1963).
2
O Código de Direito Canônico consagra às “paróquias, párocos e vigários paroquiais”
o Cap. VI do titulo III Secção II, livro II, num total de 38 cânones (512-552).
3
A Paróquia representa, de alguma maneira, a Igreja visível espalhada por toda a terra
(SC 42).
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Edson Oriolo
eucaristia eram reservadas aos bispos4. A Igreja, sob a presidência do
bispo com seus presbíteros e diáconos, desenvolveu-se até o século V
com base nas comunidades estabelecidas nas cidades.
Com a queda o Império Romano, as cidades perderam a importância e houve o predomínio rural, acarretando enorme perturbação
na organização da Igreja. Surgiram vários lugares de culto, espalhados
pelos campos, e foi implementado o sistema paroquial, no qual o bispo
concedia ao pároco poderes para celebrar localmente a eucaristia nas
festas mais solenes5. Assim sendo, a partir do século VI, multiplicam-se
as Igrejas rurais menores, isto é, as paróquias, à frente das quais estava
um presbítero diocesano ou presbítero paroquiato, que imitava toda ação
do bispo para responder às necessidades dos fiéis.
Mais, tarde, surgem vários movimentos dissidentes ou heréticos
(Valdenses, Cátaros etc.), fazendo com que a paróquia se afirmasse como
lugar de controle dos fiéis. Com a obrigação imposta aos fiéis de se confessarem ao seu pároco ao menos uma vez por ano e de comungarem pela
Páscoa na sua Paróquia (cf. Concilio de Latrão IV, 1205), conclui-se uma
evolução secular. Com esta medida fica reforçada a função de controle
social da paróquia, função retomada e ainda mais valorizada pelo Concilio
de Trento e pelos subseqüentes movimentos de reforma.6
Segundo o Concílio de Trento, a paróquia era um território demarcado, com um pároco, em nome do bispo, residindo nele. Havia
uma estreita ligação do pároco com os fiéis e a obrigação de conhecer as
ovelhas. Foi com Trento que surgiram os “livros das almas” e os registros
paroquiais que se conhecem e fazem comunidade7. Eles deram credibilidade à instituição paróquia. Com a Renascença, a Reforma Protestante
e os Sínodos dos séculos XVII e XVIII, foi-se estruturando o sistema
paroquial. A preocupação maior recaía mais sobre a boa organização,
registros, contabilidade e festas populares do que sobre a santidade manifestada no testemunho cristão da consciência e obrigação missionária
da Igreja Católica8.
4
Cf. Canônica, Lusitânia, A Paróquia Comunidade de Fiéis, pp. 35-36
5
Id. Cf. pp. 37- 42.
6
BORRAS, Alphonse e Routhier, Gilles, A NOVA PAROQUIA, Gráfica Coimbra, p. 22.
7
BORRAS, Alphonse e Routhier, Gilles, A NOVA PAROQUIA, Gráfica Coimbra,
pp. 40-41.
8
Id. Cf. pp. 42-49.
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A revitalização das paróquias
Os documentos do Concílio Vaticano II vieram modificar, ou
melhor, corrigir o modelo de paróquia adotado por Trento, cinco séculos
antes, e apresentar uma relação calorosa entre os fiéis que se conhecem e
fazem comunidade.9 Eles deram credibilidade à instituição “paróquia”. É
bom lembrar que o Concílio, mesmo não tendo dedicado um documento
ou capítulo à instituição paróquia, a reforma pastoral provocada por ele
teve repercussões profundas na vida e constituição desta instituição.10
O método indutivo, aplicado pelo Vaticano II à própria Igreja e
à sua missão no mundo, permite considerar a paróquia como um grupo
humano de crentes, estabelecido num lugar, com determinadas relações
e implicações sociais.11 Toda a literatura sobre a paróquia, a partir de
1965, embora não anunciasse simplesmente o seu desaparecimento,
preconizava, se não a abolição do princípio territorial, ao menos a revisão
da ideia de paróquia, que deveria criar-se a partir da junção de pequenos
grupos afins constituídos na base de relações de proximidade. Sobre esses
alicerces seriam edificadas verdadeiras “comunidades cristãs”.12
O Concilio Vaticano II definiu a paróquia como “célula da diocese”
(cf. AA 10c) e ainda, segundo o mesmo, “as paróquias representam a
Igreja visível estabelecida em toda a terra com o propósito de que floresça o sentido comunitário paroquial (cf. SC 42). A Constituição sobre
a liturgia deu à paróquia um quadro eclesiológico imprescindível, ao
afirmar que, como não é possível ao bispo, sempre e em todas as partes,
presidir pessoalmente na sua Igreja a toda a grei, deve, por necessidade,
erigir diversas comunidades de fiéis. Entre elas sobressaem as paróquias,
entregues localmente a um pastor que faz as vezes do bispo, já que de alguma maneira representam a Igreja visível estabelecida em toda a terra.13
O Vaticano II descreve a paróquia de modo análogo ao da Igreja local,
com a diferença de que esta é a Igreja ou nela reside a Igreja, enquanto
que a paróquia realiza a Igreja diocesana parcialmente e na dependência
da referida Igreja local.
9
BORRAS, Alphonse e ROUTHIER, Gilles, A NOVA PARÓQUIA, Gráfica Coimbra,
pp. 40-41.
10
11
14
FLORISTÁN, Casiano, “Para Compreender a Paróquia”, p. 51.
Id., Ibid.
12
BORRAS, Alphonse e ROUTHIER, Gilles, A NOVA PARÓQUIA, Gráfica Coimbra,
p. 43.
13
SC 42. Podemos citar quatro textos conciliares relativos à paróquia: LG 28; PO 5,6 e
8 e AA 10.
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Edson Oriolo
As noções teológico-canônicas mais significativas de paróquia são
dadas pelo Concilio Vaticano II, à luz da tradição e da doutrina católica,
baseadas na eclesiologia de comunhão e traduzidas, depois, em leis pelo
Código de Direito Canônico.14 Segundo o Código de 1983, “a paróquia é
uma determinada comunidade de fiéis, constituída de modo estável na Igreja particular, cujo cuidado pastoral, sob a autoridade do bispo diocesano,
se entrega a um pároco, como pastor próprio” (cf. Cân 515 &1).
Dão-se, agora, relevo a quatro critérios: a paróquia representa a
Igreja universal; é uma parte da Igreja diocesana; é uma comunidade de
fiéis; e desenvolve uma ação pastoral básica.
a) Representa a Igreja Universal
O Vaticano II afirmou com clareza que a paróquia representa, de
alguma maneira, a Igreja visível espalhada por toda a terra (cf. SC 42) e
que reduz à unidade todas as diversidades humanas que nela se encontram, inserindo-as na universalidade da Igreja (cf. AA 10b).
A paróquia é a Igreja, localmente implantada, na sua catolicidade
essencial. É a realização concreta da Igreja num determinado lugar.
b) É uma parte da Igreja Diocesana
A paróquia é, de fato, uma parte da diocese, em virtude do
princípio da territorialidade. A Igreja local não é uma parte da Igreja
universal, mas uma porção, isto é, a realização da Igreja do Senhor
num determinado lugar.
O novo Código tem em conta a teologia da Igreja local ao afirmar,
com o Concílio (cf. CD, 11a), que a diocese é uma porção do povo de
Deus cujo cuidado pastoral se entrega ao bispo, com a colaboração do
presbitério, de maneira que, unida ao seu pastor e congregada por ele
no Espírito, mediante o evangelho e a eucaristia, constitua uma Igreja
particular, na qual está presente e atua a Igreja de Cristo, una, santa,
católica e apostólica (cf. Cân 369).
14
Presbítero Pastor e Guia da Comunidade Paroquial, 18.
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c) É uma comunidade de fiéis
De acordo com a eclesiologia da comunhão, a paróquia é congregação de fiéis (cf. LG, 28), confiada a um presbítero que representa o bispo
(cf. PO, 5). É comunidade de fiéis, ainda que não única, mas organizada
na base do povo. Teologicamente falando, os fiéis que a compõem são
a Igreja: contribuem para a sua missão neste lugar.
O pároco não faz tudo, mas vela para que tudo se faça: é, pois,
consignada uma oportunidade importante, quer para a renovação do
ministério presbiteral, quer para a aprendizagem da colaboração pastoral
da parte dos fiéis que tiverem as qualidades requeridas para tal.
d) Desenvolve uma ação pastoral básica
A paróquia é sinal visível da Igreja universal (cf. AA 10) quando
vivencia a profecia (Espírito Santo), a diaconia (evangelho), a liturgia
(eucaristia) e o serviço (ministérios). Segundo o decreto Apostolicam
Actuositatem, a paróquia oferece um modelo claríssimo de apostolado
comunitário, porque reduz à unidade todas as diversidades humanas e
insere-se na universalidade da Igreja (cf. AA 10b). Historicamente, a
estrutura paroquial foi ganhando forças principalmente com os padres
conciliares no Vaticano II, que analisaram a evolução do sistema paroquial
como uma condição histórica do cumprimento do mandato de Jesus. Basta
percorrermos os documentos conciliares, o Código de Direito Canônico
e o Catecismo da Igreja Catolica15.
Porém, nos tempos subseqüentes, pela década de 70 e 90, por conta
do progresso e da urbanização, a instituição paroquial passou a ser objeto
de grandes interrogações e reflexões. Poderíamos dizê-la uma instituição
“vetusta”, no sentido de antiquada? Ao longo da segunda metade da década de sessenta, as maiores reparações dizem respeito ao reajustamento
do espaço litúrgico, para adaptá-lo às orientações da reforma litúrgica na
vida paroquial. Depois, na segunda metade da década de setenta, o acento
é posto, com toda a evidência, na instalação de escritórios e secretarias.
Finalmente, por volta dos anos oitenta, prossegue a mesma tendência,
15
16
SC 24 e 42, LG 20 e 26, CD 28-32, 35, 44, OT 2, 22, AA 10, 26, 30, AG 37, PO 19-22.
CDC cânones 374$1, 515-552, 1740-1752 e ainda 89, 107, 233, 510&2, 757, 776,
800, 833, 877, 911, 958, 968, 1079, 1110, 1272. CIC 2579 e 2226.
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acrescentando-se-lhe a instalação de salas de reunião e para a prestação
dos diferentes serviços: encontros, reuniões das comissões etc...16
A área da paróquia estreita-se e converte-se cada vez mais num
espaço para serviços religiosos especializados: sacramentos e educação
da fé. Assim, a compra do mobiliário necessário para os escritórios e
salas de reunião, supera em muito todo o resto, inclusive a aquisição
de bens relacionados com a função litúrgica da paróquia. Os gastos do
ítem papelaria e despesas de secretaria sofrem um aumento constante,
sobretudo a partir dos anos oitenta.
O documento Catechesi Tradendae, fruto do Sínodo de 1977
sobre catequese, afirmou: “A paróquia foi profundamente abalada pelo
fenômeno da urbanização. Alguns chegaram mesmo a admitir com demasiada facilidade que a paróquia estava ultrapassada, se não mesmo
votada ao desaparecimento, em favor de pequenas comunidades mais
adaptadas e mais eficazes”17. De fato, o mundo urbano nos apresenta
novas questões e pede novas respostas. Não podemos descansar num
cristianismo tradicional, baseado em ritos e tradições culturais. Temos
que ser visionários em relação à instituição paroquial.
Foi a partir da década de 80, que a instituição paroquial ganhou
maior renovação na linha eclesiólogica, sendo progressivamente reconhecida e revalorizada. No final do ano de 1988, na exortação apostólica
pós-sinodal Christifideles laici, sobre a Vocação e Missão dos Leigos na
Igreja e no Mundo, o papa João Paulo II afirmou que as paróquias vivem
numa fase nova e prometedora: “A paróquia não é uma estrutura, um
território, um edifício, mas é a família de Deus, como uma fraternidade
animada pelo espírito de unidade; é uma casa de família, fraterna e acolhedora, a comunidade dos fieis18.
Com efeito, cada paróquia está fundada sobre uma realidade
teológica, pois ela é uma comunidade eucarística. Isso significa que ela
é uma comunidade idônea para celebrar a Eucaristia, na qual se situam
a raiz viva do seu edificar-se e o vínculo sacramental do seu estar em
plena comunhão com toda a Igreja. Essa idoneidade mergulha no fato
de a paróquia ser uma comunidade de fé e uma comunidade orgânica,
isto é, constituída pelos ministros ordenados e pelos outros cristãos, na
16
BORRAS, Alphonse e ROUTHIER, Gilles, A NOVA PARÓQUIA, Gráfica Coimbra, p. 61.
17
Catechesi Tradendae, 67.
18
Christifideles Laici, 26.
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qual o pároco, que representa o bispo diocesano, é o vinculo hierárquico
com toda a Igreja particular19.
Com o passar do tempo e, recentemente, com os processos de
urbanização, rurbanização e conurbanizacão, a estrutura paroquial ainda
continua objeto de discussão e questionamento. O âmbito desse questionamento é muito variado: uns comentam a abolição desse modelo,
pois o consideram sem perspectiva; alguns dizem que é algo medieval
e rural e outros afirmam, ainda, que é uma realidade totalmente voltada
para si mesma, uma instituição eclesiástica que ignora o crescimento e
desenvolvimento do mundo. De fato, o surgimento da civilização urbana
transforma os modos de viver, as estruturas habituais da existência e
os relacionamentos na família, na vizinhança, modificando os próprios
moldes da comunidade eclesial.
Alguns caminhos, pistas, balizas para revitalização das Paróquias,
são a compreensão da paróquia enquanto instituição insubstituível e
grandeza teológica, bem como as noções de paróquia evangelizadora e
de setorização paroquial:
A) Paróquia: instituição insubstituível
Na Exortação Apostólica Catechesi Tradendae, de 16 de outubro
de 1979, o papa João Paulo II afirmou: “A paróquia foi profundamente
abalada pelo fenômeno da urbanização. Alguns chegaram mesmo a admitir com demasiada facilidade, que a paróquia estava ultrapassada, se não
mesmo votada ao desaparecimento, em favor de pequenas comunidades
mais adaptadas e eficazes. Quer se queira quer não, a paróquia continua
a ser ponto de referência importante para o povo cristão, a até mesmo
para os não praticantes” (n. 67).
Atualmente, a instituição paróquia sofre com tantas mudanças
culturais, principalmente com o avanço vertiginoso e desordenado da
urbanização e da rurbanização. Mesmo assim, a paróquia constitui uma
instituição insubstituível. Ela continua sendo o lugar privilegiado onde
a maioria dos fiéis busca fazer uma experiência concreta de Cristo, na
verdadeira comunhão eclesial.
19
18
Congregação para o Clero, O presbítero, pastor e guia da comunidade paroquial, 14.08.2002, pág. 18.
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Desde o século IV, a instituição paróquia sempre foi uma estrutura
eclesial a que o povo cristão teve mais acesso para viver sua experiência
cristã. Mesmo sabendo que as paróquias, nos séculos XIV e XV, tinham
um baixo nível espiritual, o Concílio de Trento, em 1563, sancionou o estatuto jurídico da paróquia considerada como órgão principal da pastoral,
com o decreto De reformatione, sessão XIV. Decidiu que cada populus
(conjunto de pessoas residentes num determinado lugar) constituísse uma
paróquia e que tivesse um pastor para conhecer suas ovelhas, residindo
no território e cuidando do ministério da palavra e dos sacramentos. A
paróquia tridentina estava, pois, baseada na autoridade sagrada do pároco,
na celebração da Palavra, dos sacramentos e no cuidado do povo.
Nos dias de hoje, pela realidade que nos cerca, sabemos que a
estrutura paroquial não corresponde aos desafios da missão, sobretudo,
neste mundo em “mudança de época”. A estrutura eclesial não pode parar na paróquia, sobretudo, na paróquia tradicional avessa à renovação.
Frente a esta sociedade em mudança, a instituição paróquia tem que
desenvolver projetos missionários que atendam às reais possibilidades
dos fenômenos da urbanização, rurbanização, da evangelização e missão
profética da Igreja.
A paróquia deve prestar uma contribuição relevante em nível de
relacionamento humano. De fato, a paróquia é a última localização da
Igreja. Em certo sentido, é a própria Igreja que vive no meio das casas
dos seus filhos e das suas filhas, com a missão de ser “uma casa de
família, fraterna e acolhedora” (CFL, 26). Assim sendo, a instituição
paroquial tradicional é concebida para ter continuidade, ser receptiva
a mudanças e com possibilidade de efetuar diálogo com a sociedade
moderna, mesmo fazendo memória do pensamento do papa Clemente I
(ano 88 e 97) quando afirmou: “A Igreja tem consciência da necessidade
de pensar a evangelização, mas tem dificuldade de encontrar caminhos
para a ação”.
A conferência de Santo Domingo (1992) abriu horizontes ao
afirmar que “a nova evangelização exige conversão pastoral” (n. 30), e
o documento de Aparecida veio dar mais um passo importante no caminho da Igreja Latino-americana, com a questão da “conversão pastoral”.
Assim, a instituição paróquia requer conversão pastoral. Uma verdadeira
comunidade, onde a Palavra e Eucaristia levem à verdadeira experiência
do encontro pessoal com Jesus Cristo.
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A paróquia como instituição exige transformações radicais: a profunda conversão pastoral e missionária de nossas comunidades, de que
fala o Documento de Aparecida, n. 384, como que recolhendo clamores,
aspirações e indicações que vêm de toda parte. Destarte, a paróquia, como
suporte institucional no contexto atual, só será insubstituível quando
aprender, com a história do magistério ordinário e extraordinário, a saber
se renovar a tempo e assimilar, sem ingenuidades ou falsos preconceitos,
os valores seculares condizentes com o Evangelho que ela tantas vezes
apregoa e aprecia.
Para isso tornar-se realidade, o papa Bento XVI nos ensina: “[...]
uma das tarefas da paróquia é a hospitalidade, para quantos não conhecem
esta vida típica da comunidade paroquial. Não devemos ser um círculo
fechado em nós mesmos. Temos os nossos costumes, mas devemos
abrir-nos e procurar criar também vestíbulos, ou seja, espaços de aproximação. Devemos procurar criar, com a ajuda da Palavra, aquilo que a
Igreja antiga criou para os catecúmenos: espaços pelos quais a Palavra se
torna compreensível e realista, correspondente às formas da experiência
real” (Discurso de Bento XVI, 26 de fevereiro de 2009).
B) Paróquia: grandeza teológica
João XXIII foi o papa do aggiornamento, isto é, da atualização, da
revisão e da modernização da Igreja. Iluminado pelo Espírito Santo, fonte
de luz e renovação, fez a Igreja sacudir a poeira de séculos. O papa do “novo
pentecostes” teve uma formação piedosa, sólida, no estilo de paróquia
rural. Era afável, bondoso e, quando morreu, ficou conhecido como “João
o Bom, o Bondoso” por causa de sua pessoa e de seu apostolado.
Em seu breve pontificado, deixou-nos muitas intuições, principalmente quando disse: “A paróquia é como que a fonte da aldeia à qual
todos acorrem para matar a sede”. Com esta máxima podemos transcender a instituição paroquial, da dimensão de realidade jurídica para a
dimensão de mistério, ou melhor, a paróquia, uma grandeza teológica
onde a Eucaristia é a verdadeira fonte.
A paróquia, à luz da teologia eucarística, faz da celebração da
eucaristia fonte e referência de todas as atividades sacramentais, pastorais, caritativas... O próprio Código de Direito Canônico nos ajuda a
entender que é “pela eucaristia, continuamente, que vive e cresce a Igreja”
e que, por ela, “é significada e se realiza a unidade do povo de Deus e
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se completa a construção do Corpo de Cristo” (Cân. 897). Portanto, “o
sacrifício eucarístico, memorial da morte e ressurreição do Senhor, no
qual se perpetua pelos séculos o sacrifício da cruz, é o ápice e a fonte de
todo o culto e da vida cristã” (Cân. 897).
Na sociedade que liquefaz as instituições, é um desafio reavivar
o valor da paróquia entre os demais desafios de nossa época. O fato de
vivermos em um mundo globalizado significa que não sós os limites
geográficos se desfazem. As transformações atingem os setores da vida
humana, de modo que já não vivemos “uma época de mudança, mas
uma mudança de época”. O que era certeza se mostra insuficiente para
responder a situações novas (cf. DGAE 2011-2015,19).
Nesse contexto, na celebração eucarística, o povo de Deus se reúne
sob a presidência de um ministro qualificado e legitimamente autorizado
(Cf. Cân 899,§2), para celebrar a memória sacramental d’Aquele que
quer ser reconhecido presente em cada irmão e em cada irmã (Mt 18,20;
Mt 25,40) e que clama: ABBA! Pai! (Gl 4,6)
A partir dessas considerações, podemos entender que a essência
da paróquia como fonte de vivência cristã só vai ser entendida quando o
mistério eucarístico for o alimento para o nosso caminhar peregrino neste
mundo. A paróquia, nesse sentido, é uma realidade dinâmica e viva, cuja
transformação visa ser realmente o espaço onde o fiel possa alimentar-se
do mistério de Jesus Cristo celebrado eclesialmente.
Assim, a missão do pároco consiste em fazer com que a celebração
da Eucaristia se torne o elemento central da vida eclesial dos fieis (Cf.
Cân. 5280), de sorte que tenham energia para irradiar o seu sentido de
ação de graças em todos os momentos de suas vidas. Pois, o antigo “Ite,
missa est” insinuava, e podemos dizer: “Ide, a missa continua”, isto é,
agora é vossa a missão!
A Eucaristia vai aos poucos apontando horizontes novos para
que a paróquia não fique apenas no aspecto territorial, mas vivencie
seu autêntico caráter de assembléia eucarística. Finalmente, a paróquia
realizará seu indispensável papel institucional, não como uma instância
burocrática de prestação de serviços religiosos, mas como um organismo
vivo, se souber estabelecer uma ligação simbiótica com as comunidades
locais e destas com ela, bem como com os movimentos e as associações,
respeitando e promovendo a sua legítima autonomia.
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C) A paróquia evangelizadora
A Igreja tem a missão de evangelizar. Desde seu início, a Comunidade dos discípulos soube ser chamada a anunciar a boa-nova, segundo
a ordem de Jesus: “Ide por todo o mundo, proclamai o evangelho a toda
a criatura” (Mc 16,15).A Igreja de todos os tempos se preocupou em
compreender esta sua vocação e responder a ela. O Vaticano II sintetiza
essa consciência ao afirmar que a comunidade eclesial é portadora da
boa-nova e é sacramento universal de salvação (cf. LG, 48).
Hoje, cada vez mais, tem-se a consciência de que a evangelização
faz parte constitutiva da instituição paroquial. Já então, o Sínodo dos
Bispos sobre os leigos (1987), pedia que as paróquias fossem verdadeiramente missionárias, no sentido de que anunciassem o evangelho de Jesus
Cristo aos não crentes e também aos batizados, para que eles vivessem
assiduamente uma vida plenamente cristã, a nível pessoal, familiar e comunitário (cf. Proposição 11). Em setembro de 2010, o papa Bento XVI
criou o Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização
através do motu proprio, intitulado Ubicumque et Semper. O objetivo
desse Conselho, segundo o papa, é que retome o dinamismo da missão
de Jesus Cristo e explicite para os nossos dias o sentido e o alcance da
nossa missão como Igreja.
São, pois, atribuições deste novo Conselho: aprofundar o significado teológico e pastoral da evangelização nos tempos atuais; dar a
conhecer e incentivar iniciativas ligadas a uma evangelização que vá ao
encontro dos anseios humanos atuais; estudar e favorecer a utilização
das formas de comunicação modernas, pelo seu papel de transformação
das relações entre as pessoas; promover o uso do Catecismo da Igreja
Católica como roteiro essencial e completo do conteúdo da fé para os
homens do nosso tempo.
Nessas atribuições, percebe-se a preocupação eclesial em vivenciar
o mandato missionário de Jesus Cristo: anúncio de uma boa nova para
o coração inquieto do ser humano atual. Se o anúncio do evangelho é,
segundo Paulo VI, a verdadeira identidade da Igreja, o desafio é como
tornar esse anúncio fonte de uma experiência de fé transformadora da
vida e da convivência humana. Se a evangelização é suscitar a fé, então
a paróquia, como espaço de ação evangelizadora, tem que se constituir
para os seus membros no tempo e lugar para poderem viver e irradiar a
alegre mensagem cristã.
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Para tanto, as instâncias paroquiais: anúncio profético, serviço
diaconal, celebração litúrgica da fé e comunhão no amor, cada uma a seu
modo, expressam a dimensão essencial da Igreja de Jesus Cristo: semear
a semente do amor soberano de Deus que quer pessoas comprometidas
na sua irradiação para a vida digna de todos os homens. A evangelização
na instituição paroquial acontece, portanto, com o serviço de unidade
a ser realizado pelo pároco, de forma colegiada, e em nome do bispo.
Acontece com o anúncio da palavra de Deus, em sintonia com os ensinamentos da fé. Acontece pela celebração da memória de Jesus Cristo, que
vivifica os seus através de gestos sacramentais. Acontece também pela
prática fiel das obras de amor misericordioso, que resgatam a dignidade
humana (Mt 25,30 ss).
Percebe-se que a ação evangelizadora na vida paroquial será uma
realidade, se ali se desenvolver a rede de comunidades cuja interação
relacional tem o objetivo de todos se manterem em comum união. A visibilidade disso se dá pelo bom entendimento entre os fiéis paroquianos
com o seu pároco, e deste com o seu bispo. Não se trata de falsa harmonia,
como se fosse possível viver sem conflitos. Mas, que estes não levem à
ruptura e ao contra-testemunho.
A porção do povo de Deus, confiada a um bispo, a que chamamos
de diocese, é uma instância colegiada no exercício de governar. É indispensável a cooperação do presbitério que comporta, em sentido amplo,
não apenas os ministros ordenados, mas também os demais agentes
pastorais. Cada qual tem sua responsabilidade própria. Todos, porém,
estão a serviço da unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade da
Igreja (cf. CD,11). Nestas nossas considerações vamos focar o papel do
bispo e dos sacerdotes como servidores privilegiados da ação evangelizadora. Deles se pede comunhão e que sejam agentes da unidade na
caridade (cf. PO, 6).
Portanto, a paróquia é uma comunidade de fiéis confiada pelo
bispo diocesano ao pároco e seus colaboradores para que lhe proporcionem os bens da salvação. A ação evangelizadora na comunidade
paroquial impõe ao bispo e ao pároco a busca de conhecer os membros
de sua comunidade. Esse esforço fomenta o progresso da vida cristã,
seja em cada um dos fiéis, seja nas famílias, seja nas associações,
principalmente nas que se dedicam ao apostolado, seja na comunidade
paroquial inteira (cf. CD, 30).
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A revitalização das paróquias
A ação evangelizadora na vida paroquial requer também o desenvolvimento do ensinamento do evangelho. De acordo com o documento
conciliar Christus Dominus, que acredito ser a Carta Magna dos responsáveis pelas paróquias, os párocos devem “pregar a Palavra de Deus a
todos os fiéis, a fim de que, fundados na fé, esperança e caridade, cresçam
em Cristo, e a comunidade cristã dê aquele testemunho de caridade que
o Senhor recomendou” (CD, 30). Sem duvida, a paróquia conta com os
meios tradicionais para isso, como a homilia e a catequese. Contudo, é
preciso ir além, p. ex., desenvolver uma leitura orante da palavra de Deus,
escola da fé, círculos bíblicos, sem esquecer o recurso das redes sociais.
Um espaço que está para ser mais bem conhecido e aproveitado.
A ação evangelizadora da vida paroquial se preocupará em desenvolver os meios pelos quais a ação atuante do Espírito santifica os
membros da comunidade. Para que a Eucaristia seja o centro e o ponto
alto de toda a vida da comunidade cristã, sua celebração deve ser diversificada, segundo o tempo e as circunstâncias concretas. Igualmente os
demais sacramentos serão celebrados de forma variada, tendo presente
as necessidades concretas dos fiéis. A frequência não pode levar à rotina,
nem a variedade à busca de novidade. A vivência sacramental requer
um envolvimento consciente e uma afetuosa participação litúrgica (cf.
CD, 30). Celebrar bem os sacramentos é servir ao povo de Deus (cf.
Mc 9,35). O programa paroquial preverá tempos fortes de oração e de
contemplação, pessoal e comunitária.
Sem dúvida, a melhor maneira para a paróquia ser evangelizadora
é termos presbíteros cujo discipulado e missionaridade os faça servidores
da vida digna e cheios de misericórdia, à luz do que nos ensina o evangelho e que o documento de Aparecida exorta:
a) Padres-discípulos: que tenham profunda experiência de Deus,
configurados com o coração do Bom Pastor; dóceis às orientações do
Espírito, que se nutram da Palavra de Deus, da Eucaristia e da oração; b) Padres-missionários: movidos pela caridade pastoral que os
leve a cuidar do rebanho a eles confiado e a procurar os mais distantes,
pregando a Palavra de Deus, sempre em profunda comunhão com o bispo,
com os outros presbíteros, os diáconos, religiosos, religiosas e leigos;
c) Padres-servidores da vida: que estejam atentos às necessidades
dos mais pobres, comprometidos na defesa dos direitos dos mais fracos,
e promotores da cultura da solidariedade;
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d) Padres-cheios de misericórdia: disponíveis para administrar
o sacramento da reconciliação, o que, inclusive, foi uma das tônicas do
Sínodo para a Nova Evangelização celebrado recentemente, em Roma.
(cf. DAp, 190).
D) Setorização Paroquial
O Documento de Aparecida aconselha-nos a setorizar as paróquias, para que haja comunidades de famílias que vivam em comum sua
fé cristã e dêem respostas aos problemas que enfrentam, tendo à frente
a animação e coordenação de equipes de leigos (cf. DAp. 372; 403;
406; 413; 458; 505; 508; 513-518). Assim, levando em consideração as
dimensões de nossas paróquias, é preciso transformá-las em unidades
territoriais menores, com equipes próprias de animação e coordenação,
que permitam uma maior proximidade das pessoas e dos grupos que vivem na região. A setorização das paróquias é um modelo de organização
pastoral baseado nos moldes das comunidades primitivas, de uma Igreja
presente nas casas, que desenvolve a missão a partir da constituição de
relacionamentos dos seus membros, vizinhos, companheiros de trabalho
ou estudo e familiares.
A respeito das pequenas comunidades eclesiais, o Documento
de Aparecida afirma: “Constata-se que nos últimos anos está crescendo
a espiritualidade de comunhão e que, com diversas metodologias, não
poucos esforços têm sido feitos para levar os leigos a se integrarem em
pequenas comunidades eclesiais, que vão mostrando frutos abundantes.
Nas pequenas comunidades eclesiais temos um meio privilegiado para
a nova evangelização e para chegar a que os batizados vivam como
autênticos discípulos e missionários de Cristo” (DAp. 308)
Os setores na vida da paróquia colaboram para que a ação pastoral,
evangelizadora e missionária, faça a passagem de uma pastoral da conservação para uma pastoral da conversão pastoral, renovando a vida das
pessoas e as estruturas das comunidades e de todo o corpo eclesial para
uma visibilidade maior da Igreja. A paróquia é a Igreja viva e eficaz. Na
diocese, devem florescer as paróquias e as comunidades cristãs, como
células vivas e pujantes da vida eclesial (cf. SD, 55).
A setorização paroquial contribui para a revitalização da paróquia, fazendo dela “comunidade de comunidades”. Os setores são
um lugar privilegiado para uma experiência concreta de Cristo e uma
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experiência de comunhão. Os setores “são um ambiente propício para
se escutar a Palavra de Deus, para se viver a fraternidade, para se animar na oração, para aprofundar processos de formação na fé, e para
fortalecer o exigente compromisso de termos apóstolos na sociedade
de hoje. São os lugares de experiência cristã e evangelização que, em
meio à situação cultural que nos afeta, secularizada e hostil à Igreja,
se fazem muito mais necessários” (DAp. 308).
Assim, a setorização na vida paroquial deve proporcionar o crescimento do relacionamento interpessoal na fé, o aprofundamento da Palavra
de Deus, a participação na Eucaristia, a comunhão com os pastores e
um maior compromisso social (cf. DAp. 307-310). As pequenas comunidades são a esperança da Igreja (cf. EN, 58). Os setores são um belo
modo de ser Igreja: Igreja discípula, Igreja missionária, Igreja nas ruas,
nas casas, Igreja Povo de Deus. Não podemos permanecer na sacristia,
nem na secretaria paroquial. Temos de ir ao encontro do povo, ir onde o
povo está. Os verbos ir, sair, partir, caminhar, tão próprios da atividade
missionária, são muito usados no livro dos Atos dos Apóstolos para falar
da atividade missionária das primeiras comunidades cristãs.
As paróquias devem se tornar, mediante uma ação renovadora,
espaços de iniciação cristã, da educação e celebração da fé, abertas à diversidade de carismas, serviços e ministérios. A paróquia “comunidade de
comunidades” deve ser o lugar privilegiado no qual a maioria dos fiéis tem
uma experiência concreta de Cristo e da Comunhão eclesial. As paróquias
são chamadas a ser “casas e escolas de comunhão” (DAp. 170).
Conclusão
“Coisas novas estão surgindo” (Is 43,19). Estas palavras do profeta
Isaías abrem perspectivas para que as paróquias, na sociedade pós-moderna, sejam criativas, operativas, funcionais, organizadas, estratégicas,
estabeleçam entre os fiéis um envolvimento diferenciado e possibilitem
a experiência concreta do Cristo Ressuscitado. Assim sendo, o profeta
Isaías abre horizontes para o novo tempo que precisa ser conquistado.
Nosso Deus é aquele que cria caminho onde não existe caminho algum.
Ele cria algo novo, uma saída para situações em que não se enxerga mais
possibilidade alguma.
No mundo pós-moderno, estamos cansados, estressados por tantas
questões vindas do ambiente paroquial em que vivemos ou somos res-
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ponsáveis. O risco do burnout, síndrome do esgotamento, pode atingir a
todos, leigos e ministros ordenados. Esta situação exige que os párocos
façam do seu ministério um dom de amor, de entrega, de dedicação e
de envolvimento com as pessoas, para que nossas paróquias sejam mais
vivas e se destaquem como um sinal do Reino de Deus na vida das comunidades de fé. Precisamos que bispos, sacerdotes e leigos trabalhem
juntos para lançar as sementes do Verbo num contexto complexo e que
nos traz perplexidades.
Neste tempo, caracterizado como de “mudança de época”, as paróquias devem ser um lugar privilegiado de evangelização, de encontro,
de alegria, de conforto, de acolhida, de encorajamento e de expressão da
comunhão e participação eclesial; um ambiente propício à reflexão e à
escuta orante da Palavra de Deus; um lugar de oração pessoal e comunitária e da vivência dos sacramentos, principalmente da Eucaristia.
Devemos buscar, juntos, caminhos para que nossas paróquias
progridam como:
a) espaço de santificação dos seus membros: “Seguindo o exemplo
da primeira comunidade cristã (cf. At 2,46-47), a comunidade paroquial
se reúne para partir o pão da Palavra e da Eucaristia e perseverar na catequese, na vida sacramental e na prática da caridade “a fim de que todos os
discípulos missionários possam, nos sacramentos, dar frutos permanentes
de caridade, reconciliação e justiça para o mundo” (DAp 175).
b) lugar privilegiado onde os fiéis possam fazer a experiência concreta da Igreja diocesana: “A paróquia é a realização concreta da Igreja
num determinado lugar. É sinal da Igreja universal” (AA 10).
c) comunidade onde os leigos participam ativa e ardorosamente:
As paróquias devem ser: “espaços da iniciação cristã, da educação e
celebração da fé, abertas às diversidades de carismas, serviços e ministérios, organizadas de modo comunitário e responsável, integradoras de
movimentos de apostolado já existentes, atentas à diversidade cultural
de seus habitantes, abertas aos projetos pastorais e supraparoquais, e às
realidades circundantes” (DAp 170).
d) comunidade fiel à missão de anunciar o Evangelho. As paróquias
sejam missionárias (cf. DAp 173) e “todos os membros da comunidade
paroquial são responsáveis pela evangelização dos homens e mulheres
em cada ambiente” (DAp l71).
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A revitalização das paróquias
Olhando para esses paradigmas, dando-lhes vida e priorizando-os,
podemos dizer com o profeta Isaías que “coisas novas estão surgindo”
(43,19). Necessitamos investir na organização da missão e da finalidade
das paróquias na vida eclesial, para que elas possam se tornar uma prática
vantajosa, altamente benéfica que, por sua vez, atesta a necessidade de rever
e criar novos ministérios, formando novas funções e idealizando novas
tarefas numa sociedade em constante transformação. Assim, certamente,
a paróquia contribuirá para a realização de um mundo renovado segundo
o projeto de Deus: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5).
No entanto, a conversão pastoral, na dinâmica da nova evangelização, necessita de uma visão sistêmica (magistério ordinário e extraordinário) sobre a natureza, a finalidade e a missão da Igreja de Jesus
Cristo, isto é, identificar o papel e a importância de todas as áreas, ações
e atividades da Igreja.
Quanto ao pároco, pelo fato de ser ele o referencial da vida paroquial, é sua a responsabilidade de cuidar das coisas sagradas (santificar)
e desempenhar a missão de ensinar e governar o povo de Deus que lhe
foi confiado. Para tudo isso, além de agir in persona Christi, ele deveentender a dinâmica da liderança. O pároco, como persona Christi, é
servo, no sentido de que sua existência, ontologicamente configurada
com Cristo, adquire uma índole essencialmente relacional: ele vive em
Cristo, por Cristo e com Cristo a serviço das pessoas Ele pertence a Cristo
e encontra-se radicalmente a serviço dos irmãos e irmãs. É ministro de
sua salvação, nessa progressiva assunção da vontade de Cristo, na oração,
no “estar coração a coração” com ele. Esta é a condição imprescindível
de cada anúncio, que exige a participação na oferenda sacramental da
Eucaristia e a obediência dócil à Igreja (cf. Bento XVI, Audiência geral,
Praça São Pedro, 24/06/2009).
As paróquias têm um papel fundamental na evangelização e
precisam tornar-se sempre mais comunidades vivas e dinâmicas de
discípulos e missionários de Jesus, sendo os seus responsáveis verdadeiros líderes in persona Christi (cf. DGAE 2008-2010, 154 e DGAE
2011-2015, 57). Destarte, o pároco com convicções fortes, objetivos
claros e bem definidos, deve ser capaz de recrutar leigos e leigas para
participarem de pastorais e movimentos, somando forças na construção
da Igreja do Senhor.
Os párocos devem ser líderes in persona Christi nos seguintes
aspectos: espiritualidade, autoridade, conhecimento e personalidade.
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Edson Oriolo
O pároco líder deve ser capaz de conquistar respeito para si próprio
como pessoa, por ser homem de Deus, de oração, da cruz, do amor sem
limite, do evangelho, da Eucaristia, da esperança, do discernimento e
das vocações.
Referências bibliográficas
BORRAS, Alphonse; ROUTHIER, Gilles. A nova paróquia. Tradução
de Margarida Maria Osório Gonçalves. Coimbra: Gráfica Coimbra,
2010.
CELAM. Documento de Aparecida. 2. ed. Brasília: CNBB; São Paulo:
Paulinas; Paulus, 2007.
CONCILIO ECUMÊNICO VATICANO II. Compêndio do Vaticano II:
constituição, decretos, declarações. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1968.
CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Instrução O presbítero, pastor
e guia da comunidade paroquial. 14 agosto 2002.
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FLORISTÁN, Casiano; SIMÕES, Idalino. Para Compreender a Paróquia. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1995.
FUENTE, E. Bueno de la; PÉREZ, R. Calvo. La Iglesia Local. Madrid:
Ed. San Pablo, 2000.
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CNBB, com notas e comentários de Jesus Hortal, sj. São Paulo: Loyola,
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MAESTRO, Jésus Alvarez. La Nueva Parroquia Evangelizadora.
Renovación interior y creatividad pastoral. Madrid: Edibesa, 2012.
Revista Vida Pastoral, n. 278, Maio e Junho de 2011, pp. 5 a 7, sob o
titulo: “A Revitalização da Paróquia”.
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A revitalização das paróquias
Revista Eclesiástica Brasileira (REB), n. 282, Abril de 2011, pp. 426
a 438, sob o titulo: “ Identidade Presbiteral: Estatuto Social do Sacerdote”.
REB, n. 287, Julho de 2012, pp. 688 a 710, sob o titulo: “ A Revitalização da Paróquia”.
REB, n. 289, Janeiro de 2013, pp. 181 a 200, sob o titulo: “Paróquia –
lugar de transmissão da fé”.
ROCHA, Georgino. Paróquia e unidades pastorais. Coimbra: Gráfica
Coimbra, 2010.
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Resumo: Refletir sobre a Paróquia como Comunidade de comunidades é simples.
Difícil mesmo é colocar em prática tal proposta. Sabemos os caminhos, os procedimentos, mas nos falta ainda o ardor missionário para agir dentro desse processo,
pois ele exige a renovação de nossas estruturas paroquiais e a conversão para a
missão, e muitos ainda não estão preparados ou dispostos a isso. Sabemos que
não se faz renovação estrutural das paróquias sem a conversão dos seus agentes. Assim sendo, esta reflexão busca apontar os apelos da Igreja, através dos
seus principais documentos dos últimos anos, e questionar nossa postura diante
desses apelos, apontando as questões e os desafios centrais para organizar uma
paróquia que seja, verdadeiramente, comunidade de comunidades.
Palavras chaves: paróquia, comunidade, estrutura, renovação, missão.
Abstract: Reflecting on the Parish as a community of communities is simple. It is
difficult to put into practice such a proposal. We know the roads, the procedures,
but we still lack the missionary zeal to act within this process, as it requires the
renewal of our parish structures and conversion to the mission, and many are not
prepared or willing to do so. We know that one does not make structural renewal
of parishes without a conversion of the agents. Therefore, this reflection seeks to
identify the calls of the Church, through its principal documents of recent years,
and to question our attitude to these appeals, pointing out the issues and challenges central to organize a parish that is truly community of communities.
Keywords: parish, community structure, renovation, mission.
Paróquia, comunidade de comunidades.
Desafios centrais
José Carlos Pereira*
*
José Carlos Pereira é padre passionista, professor licenciado em Filosofia pela UNISAL; bacharel em Teologia pelo Ateneo Santo Anselmo de Roma; mestre em Ciências
da Religião e doutor em Sociologia pela PUC-SP. É autor de mais de 45 livros nas áreas
de Sociologia, Antropologia, Espiritualidade e Teologia (eclesiologia, missiologia, pastoral, dogmática), publicados no Brasil e no exterior. Tem-se especializado em gestão
do terceiro setor, com ênfase em paróquias. Publicou artigos em Revistas e Jornais
nacionais e internacionais. Foi pesquisador bolsista do CNPq (Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e expôs diversas pesquisas em Congressos de Universidades brasileiras e estrangeiras, dentre elas, na Universidade de
Coimbra (Portugal), Universidade Nacional de Córdoba (Argentina) e Universidade de
Havana (Cuba), além de universidades brasileiras, como USP; PUC/SP; Universidade
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Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais
Introdução
Desde a V Conferência do Episcopado Latino Americano e Caribenho, a paróquia tem sido tema central de reflexão na Igreja. Até então
se falava muito em missão, mas os espaços das paróquias não eram vistos
como campo de missão e nem se alardeava a importância dela como lugar
de formação dos discípulos missionários. A partir da V Conferência, a
Igreja lançou luzes sobre as paróquias e, sabiamente, enxergou nelas
um espaço privilegiado para a formação de missionários e lugar onde
a missão deve começar. Vale lembrar que, se não formos missionários
nas nossas paróquias, dificilmente seremos missionários em outros
lugares. Muitos investimentos na missão ad gentes não têm dado certo
porque são enviados missionários para essa modalidade de missão que
não foram missionários nos seus lugares de origem, nas suas paróquias.
Quando isso acontece, o resultado é catastrófico, pois o que se espera de
todo missionário, mas, sobretudo dos missionários da missão ad gentes,
é que tenham sido missionários nas suas paróquias e que tenham, além
da prática, recebido formação para a missão.
Assim sendo, o Documento de Aparecida chama a atenção para
a formação permanente de missionários em nossas paróquias, dizendo
que “se queremos que as nossas paróquias sejam centros de irradiação
missionária em seus próprios territórios, elas devem ser também lugares
de formação permanente” (D. Ap, n. 306). Assim sendo, a tônica recai
sobre a formação de missionários em nossas paróquias, de modo que ela, a
paróquia, adote uma postura missionária. Adotar uma postura missionária
significa que todos os trabalhos da paróquia, até aqueles que parecem
nada ter de missão, sejam missionários. Quando o pároco, seus vigários
paroquiais e demais agentes de pastoral, leigos e consagrados, adotam
Metodista (São Bernardo do Campo/SP); Faculdade Católica do Tocantins (Palmas/
TO), entre outras. Tem participado de bancas de defesa de tese e em outros eventos
acadêmicos. É membro do Núcleo de Estudos Religião e Sociedade (NURES), do
Programa de pós-graduação em Ciências Sociais da PUC/SP; é articulista da Revista
“Paróquias e Casas Religiosas”, da qual também faz parte do Conselho de conteúdo
e participou das pesquisas do CERIS (Centro de Estatística Religiosa e Investigações
Sociais), fazendo a análise sociológica das suas últimas pesquisas sobre a realidade
do clero brasileiro. É assessor do CCM (Centro Cultural Missionário), de Brasília/DF,
organismo da CNBB e ministra cursos e palestras em paróquias e dioceses do Brasil. Maiores informações curriculares encontram-se na Plataforma Lattes do CNPq.
Endereço eletrônico: http://lattes.cnpq.br/3087275365776123 e em sua home page:
www.pejosecarlospereira.com.br.
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José Carlos Pereira
posturas missionárias, toda a paróquia se torna missionária, pois os trabalhos desenvolvidos por esses agentes serão trabalhos missionários.
Mas, para que isso aconteça, é preciso mexer na estrutura da
paróquia, fazendo com que ela passe de uma paróquia com pastorais de
manutenção, centralizadora, para uma paróquia, rede de comunidades.
Por essa razão, o Documento de Aparecida propôs a formação de redes
de comunidades nas nossas paróquias, porque esse é o procedimento
mais indicado para torná-la missionária. Na esteira de Aparecida nós
tivemos o Projeto de Evangelização, a Missão Continental, que acentuou esse procedimento nas paróquias, vendo nele algo essencial para a
missão. Nessa mesma linha, os Bispos do Brasil lançaram as Diretrizes
Gerais para a Ação Evangelizadora da Igreja: 2011-2015, enfatizando,
entre seus desafios, a formação de comunidades nas paróquias, trazendo
como um de seus eixos de reflexão, a “Igreja, comunidade de comunidades”. Por se tratar de um tema medular no processo de evangelização
permanente, e na formação de uma paróquia missionária, esse tema foi
eleito para a 51ª Assembleia dos Bispos do Brasil, onde foi refletido com
esta formulação: “Comunidade de comunidades, uma nova paróquia”
(Doc. Estudos da CNBB, n. 104). Vemos, assim, a importância do tema
para a vida de nossas paróquias. A comunidade como o caminho para a
reestruturação de nossas paróquias, de modo que elas se tornem verdadeiramente missionárias.
É nessa direção que conduzo esta reflexão, retomando algumas
questões, ou desafios centrais, para uma paróquia comunidade de comunidades. Quais são estes desafios? O que precisamos fazer para responder
a eles? Que procedimentos tomar diante de uma paróquia ainda centralizadora e com pastorais de manutenção? Esses e outros questionamentos
serão respondidos nesta reflexão, buscando apontar caminhos para a
formação de comunidades em nossas paróquias. Para isso, é necessário
retomar os últimos documentos mais relevantes da Igreja e extrair deles
as propostas para uma Paróquia, Comunidade de comunidades. Quais
são estes Documentos? O primeiro e mais importante é o Documento
de Aparecida. Desse Documento, outros se desdobraram. Farei, assim,
num primeiro momento, uma breve abordagem do Documento de Aparecida, extraindo dele as indicações para uma paróquia missionária.
Depois resgatarei alguns elementos da Missão Continental, sobretudo
do Documento “O Brasil na Missão Continental” (Doc. CNBB 88).
Em seguida, veremos as Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da
Igreja no Brasil: 2011-2012 (Doc. CNBB, n. 94), e os Estudos da CNBB
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Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais
(Doc. 104), “Comunidades de Comunidade, uma nova paróquia”. Desses
Documentos apontaremos os desafios, e também as pistas de ação, para
uma paróquia Comunidade de comunidades.
As reflexões aqui propostas serão práticas e objetivas, sem a
pretensão de incursões teóricas pelo complexo universo da Teologia,
mas, sim, enveredaremos pelos caminhos da práxis pastoral e da missão.
Assim sendo, são reflexões eclesiológicas, com enfoque na ação pastoral
e missionária da paróquia.
1 A paróquia no Documento de Aparecida
Ao analisar o Documento de Aparecida, buscando nele o tema
paróquia, vamos encontrar 39 citações. Não é pouco, quando comparado
com a grandeza desse Documento e a gama de temas que nele é tratado.
Dessas 39 citações, duas delas dão destaque à paróquia, de modo que
tudo o que nós temos de reflexões sobre a paróquia, são extraídas destes dois números do Documento (170 e 304). Mas, o que dizem de tão
importante esses números do Documento de Aparecida para as nossas
paróquias? Eles trazem as indicações medulares para qualquer trabalho
missionário. São constatações e pistas de ações que, se colocadas em
prática, a paróquia estará em estado permanente de missão. Dessas pistas
surgiram outras, ampliando a e visibilizando a sua importância. Vejamos
rapidamente estas indicações.
1.1 Paróquia em células: Comunidade de Comunidades
A partir do número 170, até o número 177, nós encontramos o
tema central desta nossa reflexão. A proposta de uma paróquia que se
torne uma Comunidade de comunidades. Ou seja, a estrutura da paróquia
deve ser uma estrutura que forme e fomente comunidades. Se assim não
for, ela perde sua razão de ser e se empobrece. Uma paróquia que não se
preocupa com a vida de comunidade em seu território, é uma paróquia
estagnada no tempo, sem ação missionária, que se encerra no seu conceito
jurídico e administrativo. Porém, não é fácil formar comunidade, porque
comunidade se subentende consciência do seu significado, compromisso
e responsabilidades. À vista disso, não se forma comunidade por decreto.
Não basta sair por aí comprando terreno e levantando templos, que eles
não serão comunidades se antes não existir uma conscientização sobre
esse modo de vida e, sobretudo, uma conversão para viver essa proposta
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eclesial. Há párocos que até procedem assim, supondo formar comunidade por decreto, imposição, ou ação isolada, mas esse procedimento não
funciona. O que se cria com esses procedimentos são capelas, templos,
que correm o risco de reproduzirem um modelo centralizador de paróquia,
mas não comunidade no seu verdadeiro sentido.
Comunidade é lugar de comunhão, de partilha, de solidariedade.
Lugar onde um grupo de pessoas se reúnem e celebram a vida em todas
as suas dimensões. Nisso consiste uma comunidade, e não apenas um
templo onde se reproduzem estruturas arcaicas de comportamentos religiosos, mas sem compromissos ou laços afetivos. Assim, comunidade
é uma espécie de “célula” que ajuda a conferir vida a um corpo que é a
paróquia. Desse modo, as comunidades são células vivas da paróquia,
enquanto as paróquias são células vivas da Diocese e, por sua vez, as
Dioceses formam as células vivas da Igreja como um todo. Temos assim,
uma espécie de corpo eclesial, com cada célula cumprindo o seu papel.
Assim sendo, as comunidades da paróquia são células que ajudam a
compor um corpo onde a vida pulsa em todas as suas dimensões.
É nesse sentido que o Documento de Aparecida usa a expressão
“células vivas da Igreja”. Essa expressão não é uma expressão nova,
como muitos imaginam. Ela vem de outro momento forte de mudança
da Igreja, o Concílio Vaticano II e seus desdobramentos. A primeira vez
que se tem notícia do uso dessa expressão foi com Decreto Apostolicam
Actuositatem, sobre o apostolado dos leigos, promulgado em de 18/11/65.
Portanto, é uma expressão com mais de 50 anos. A expressão foi usada
na época para reforçar a unidade da Igreja. “Célula” tem sentido de unidade. É um termo oriundo da biologia, mas que expressa muito bem o
que desejamos quando falamos de Comunidade de comunidades. Assim,
comunidade é lugar de unidade, de entrelaçamento de ideias, de ações, de
pessoas que, com suas diferenças, estão unidas por algo em comum, que
é Cristo, dentro de um corpo que é a Igreja. Esta, no caso, representada
pela paróquia, irradiando suas energias e somando forças, conferindo
vitalidade a esse corpo. É nesse sentido que a expressão foi usada. Porém, no Decreto conciliar, enfatizava-se a unidade das paróquias com as
Dioceses. As paróquias eram vistas como células da Diocese e deveriam
comportar-se como tais. Diz o Decreto: “Cultivem o sentido de diocese,
de que a paróquia é como uma célula, e estejam sempre prontos, à voz
do seu pastor, a somar as suas forças às iniciativas diocesanas” (A.A, n˚
10). Essa recomendação expressa muito bem o sentido da unidade que
deve existir na comunidade. A paróquia não deve ser uma igreja partiEncontros Teológicos nº 65
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Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais
cular agindo por conta própria, sem vínculo ou sem dar satisfações ao
Bispo, mas uma igreja filiada à Diocese, sintonizada com suas ações e
colocando em prática as suas recomendações e orientações, sem perder a
sua particularidade própria de cada realidade missionária onde a paróquia
está inserida. Com esse espírito de unidade a paróquia torna-se comunidade, ou seja, comum-unidade com a Diocese. Esse é o primeiro passo
para que ela se torne, de fato, Comunidade de comunidades. Sem esse
primeiro procedimento, dificilmente a paróquia irá formar comunidade
em sua estrutura. A partir desse indicativo caminha-se para a formação
da unidade dentro da estrutura paroquial.
Porém, antes de tratar da comunidade dentro da estrutura paroquial,
quero trazer presente outro momento em que o termo “célula vida da
igreja” foi utilizado. Foi na IV Conferência do Episcopado Latino Americano, que aconteceu em Santo Domingo, na República Dominicana,
em 1992. Ali esse tema voltou, reforçando o sentido de unidade das
paróquias com as Dioceses, mas já apontando também para a vivência
dessa unidade dentro das paróquias. Diz esse Documento: “Em torno do
Bispo e em perfeita comunhão com ele, devem florescer as paróquias e
as comunidades cristãs, como células vivas e pujantes de vida eclesial”
(Santo Domingo, n˚ 55). Assim, despontam aqui as comunidades cristãs
dentro das paróquias, formando aquilo que a Conferência de Aparecida
chamou de “células vivas da Igreja”.
É dentro desse contexto histórico que a Conferência de Aparecida
retomou a expressão, colocando-a no coração do projeto da transformação, ou reestruturação, das paróquias em Comunidades de Comunidades,
de modo que toda a conjuntura paroquial seja uma rede de comunidades,
e não apenas as capelas pertencentes a essa paróquia, como comumente
se imagina. Ainda hoje, quando se fala de comunidade, a primeira imagem que vem a mente é a das capelas. As capelas podem e devem se
tornar comunidades, mas não apenas elas. Outras instâncias e grupos da
paróquia precisam se tornar comunidade, sobretudo a chamada “igreja
matriz”, tão comum no modelo tradicional de paróquia. Aqui está um dos
desafios. Como fazer com que a igreja matriz seja uma comunidade? Para
que a igreja matriz seja uma comunidade ela precisa dividir, repartir suas
ações, sobretudo, as celebrações e atividades formativas, catequéticas etc.
Temos, assim, o desdobramento da expressão “células vivas da Igreja”,
usada em Aparecida como o tema central para a formação de comunidade de comunidades. Desse tema central se desdobram outros, que vão
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José Carlos Pereira
formando aquilo que estamos a refletir neste momento, os desafios para
uma paróquia ser de fato Comunidade de comunidades.
Assim, o Documento de Aparecida retoma essa expressão significativa e destaca a importância de as paróquias serem células vivas da Igreja, enfatizando-as como lugar privilegiado no qual a maioria dos fiéis tem
uma experiência concreta de Cristo, vivendo a comunhão eclesial. Desse
modo, comunidade é lugar de comunhão. Se não houver a experiência de
comunhão, não é comunidade. Quando o Documento fala de comunhão,
não está se referindo apenas à comunhão eucarística, no sentido estrito do
termo, mas, sobretudo, à vida de comunidade que se desdobra da comunhão eucarística, tendo como modelo as primeiras comunidades cristãs
(At 2, 42-47), que se tornaram comunidades porque comungavam com
Cristo. Eram espaços onde as pessoas eram perseverantes em tudo, como,
por exemplo, na escuta dos ensinamentos oriundos da Palavra de Deus;
na comunhão fraterna; no partir o pão e nas orações, colocando tudo em
comum. Lugar onde, com tais gestos, se aprende o temor de Deus, não no
sentido de medo de Deus, mas de ser fiel à sua Palavra, colocando-a em
prática, o que consiste no amor a Deus e aos irmãos, na solidariedade e
na compaixão. Nesse sentido, destaque para a questão da união, algo tão
importante para a vida de comunidade. Onde não há união, não se pode
dizer que há comunidade. Esse pode ser um identificador para verificar
se nas nossas paróquias existe verdadeira vida de comunidade. Assim,
podemos perguntar: há união nos trabalhos da paróquia? As pessoas se
ajudam? Há comprometimento com os empreendimentos missionários
da paróquia, ou apenas alguns assumem, enquanto outros ficam apenas
observando, ou criticando o trabalho dos irmãos e irmãs?
1.2 Paróquias: Casas e Escolas de formação
de comunidades
O Documento de Aparecida destaca ainda o elemento da formação. É preciso que nossas paróquias invistam na formação dos seus
leigos, pois somente assim teremos verdadeiros missionários que sabem
formar e viver em comunidade. Quando o documento afirma que nossas
paróquias “são chamadas a serem casas e escolas de comunhão”, está
afirmando que a paróquia tem o dever de ensinar as pessoas a viverem
em comunidade. Esse é um dos grandes desafios de nossas paróquias:
formar pessoas para viverem em comunidade e formar outras comunidades. Não é algo tão simples, tendo em vista o mundo em que vivemos,
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Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais
que prima pelo individualismo, pela competição, por incitar as pessoas a
levarem vantagem em tudo, num clima de competição que não respeita
o próximo. Às vezes essas situações são reproduzidas dentro de nossas
paróquias, nos espaços que chamamos de “comunidades”. Que comunidade é essa onde as pessoas querem prejudicar as outras, onde o eu é
mais forte que o nós, onde as vaidades pessoais são mais importantes
que o bem comum? Enquanto existirem na Igreja, ou seja, nas paróquias,
essas relações que refletem as relações da sociedade, nós, isto é, nossas
paróquias, estaremos longe de ser comunidade cristã. Podemos ser comunidade no sentido social do termo, mas não comunidade cristã, com
valores teológicos, onde impera a teologia da graça e não simplesmente
as relações de troca. À vista disso, o Documento reforça a questão da
formação, tornando nossas paróquias lugares de formação permanente.
Nisto consiste a expressão “casas e escolas de comunhão”. Casa é o lar,
lugar de pertença, lugar onde nos sentimos bem, à vontade, lugar que é
nosso, de encontro e de convivência entre irmãos. Quando a Igreja se
torna essa “casa”, todos se sentirão em casa nela e não apenas alguns.
Porém, quando as comunidades têm donos, com territórios demarcados, elas não estão sendo verdadeiramente comunidade. Comunidade
não tem dono, é de todos e para todos. O mesmo sentimento que sentimos
em nossa casa, devemos sentir na Igreja para que ela seja comunidade
de fato. Além disso, temos a expressão “escola de comunhão”, que dispensa comentários. Escola é lugar onde se aprende. A paróquia precisa
ser lugar onde se ensina e se aprende a viver em comunhão, isto é, em
comunidade. Enquanto nossas paróquias não se preocuparem em ser
escolas de comunhão, elas não serão comunidade.
1.3 Renovação das estruturas paroquiais
Para que tudo isso aconteça, é preciso romper com certas estruturas, sobretudo com estruturas arcaicas, centralizadoras, que reproduzem
modelos de Igreja que não respondem mais aos desafios e demandas da
atualidade. Essa reestruturação é fundamental, se queremos uma paróquia verdadeiramente missionária, comunidade de comunidades. Porém,
quando se fala em mexer em estruturas, muitos se arrepiam, sobretudo os
padres. Não digo todos, mas apenas os que se acomodaram nos modelos
tradicionais de paróquias e que não estão abertos a mudanças. Aqueles
que não querem perder os benefícios que esse modelo tradicional lhe
confere. Esses precisam passar por um processo de conversão, porque
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se isso não ocorrer a sua paróquia estará longe de conseguir se renovar e
se tornar missionária. O Documento de Aparecida fala de “uma valente
ação renovadora das paróquias”. É preciso valentia e ousadia para empreender tal renovação, pois ela mexerá com estabilidades. Estabilidade
financeira, patrimonial, estrutural e geográfica, teológica. É preciso
mudar conceitos, paradigmas, valores. E nem todos estão preparados
para tais mudanças.
Nesse novo modelo de paróquia, a igreja matriz deixa de concentrar todas as ações em seu espaço e divide com as comunidades as suas
atividades. O padre divide suas ações com os leigos. De início pode
parecer algo desestabilizador da vida da paróquia e das ações do padre,
mas não é. Pelo contrário, é divisão de ações para somar forças. Essa é
a ideia principal que norteia o conceito e a vida de comunidade. Quando
as ações são divididas, as forças se multiplicam e todos têm participação
ativa, afetiva e efetiva na comunidade. Nasce assim o verdadeiro sentido
de comunidade, pois comunidade é muito mais que um espaço geográfico,
é um sentimento humano.
Portanto, o objetivo dessa ação renovadora das paróquias é torná-la
espaços de comunidades e esses espaços se tornam comunidades quando
eles se tornam espaços de iniciação cristã, espaços de educação, espaços
de celebração da fé, espaços de confraternização, espaços abertos às
diversidades de carismas, serviços e ministérios, de partilha de dons.
Enquanto nossas paróquias tiverem sempre as mesmas pessoas, fazendo
sempre as mesmas coisas, concentrando tudo num pequeno grupo, sem
dar espaço para outros, sem renovarem seus agentes de pastoral, ela ainda
não atingiu o sentido de comunidade renovada. Cabe aqui a cada um
olhar para o interior de sua paróquia e visualizar sua estrutura pastoral e
administrativa e verificar se ali existe o sentido de comunidades, ou se
são apenas “panelinhas”. Para isso, veja quantos anos um agente de pastoral permanece na coordenação de uma determinada pastoral. Verifique
quais os argumentos são usados para se permanecer na coordenação por
muitos anos, como, por exemplo, “não tem ninguém que quer assumir”,
“não temos pessoas preparadas”, “ninguém quer compromisso” etc.
Essas desculpas são desculpas de quem não quer que outros assumam
o seu lugar. Não somos imprescindíveis e nem insubstituíveis. Sempre
virão outros depois de nós que poderão fazer igual, ou ainda melhor do
que nós. O mais importante é renovar.
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Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais
Quando uma paróquia investe em seus agentes de pastoral, ela sempre terá bons agentes e esses não precisarão se perpetuar na mesma função,
como acontece, por exemplo, com muitos ministros extraordinários da
sagrada comunhão, que assumem o ministério como se fosse o sacramento
da ordem, para sempre. Uma paróquia renovada é uma paróquia que renova
os seus agentes de pastoral, de modo que eles tenham tempo determinado
em determinada função. Depois que cumpriu o seu tempo, ceda o lugar
para outro e vá atuar em outras frentes pastorais da comunidade. Isso serve
também para os padres. Seria bom que as Dioceses tivessem um tempo
determinado para os párocos e que esse tempo não fosse mais que quatro
ou seis anos. Um tempo muito longo, que ultrapasse seis anos, pode não
contribuir para a renovação da paróquia.
Desse modo, uma comunidade paroquial renovada é uma comunidade que faz uma espécie de rodízio dos seus agentes nos seus trabalhos
pastorais. É uma comunidade integradora e não uma comunidade que
dispersa e desagrega. Uma comunidade integradora é uma comunidade
que acolhe a todos, sobretudo seus movimentos de apostolado, que, às
vezes, caminham isolados da conjuntura pastoral da paróquia. Quando
todos os organismos são integrados, a paróquia se revela na sua dimensão de comunidade. Porém, quando as pastorais, movimentos, grupos
e demais organismos, caminham isoladamente, fechados em sim, sem
se abrir aos demais e aos desafios da paróquia e da igreja, a paróquia
dá demonstração de que não é integradora e nem comunidade de comunidades. É importante lembrar que todos os membros da comunidade,
independentemente da pastoral ou movimento de que participam, são
responsáveis pela evangelização das pessoas e do próprio ambiente onde
atuam. Sim, nossos espaços e ambientes de atuação pastoral carecem de
evangelização permanente. Quem acha que já sabe tudo, que está pronto
e que não precisa mais ser evangelizado, revela seus limites e fraquezas,
de modo que precisa, ainda mais que outros, de ser evangelizado, para
não dizer, convertido. Enfim, reconhecer as fragilidades não é fraqueza,
é humildade, e a Igreja precisa de pessoas que sirvam na humildade.
À vista disso, a missão da paróquia é se abrir para a missão territorial. Parece redundante e paradoxal essa proposta, mas é exatamente
isso que a Igreja está pedindo às nossas paróquias, ao pedir que elas
se transformem em comunidade de comunidades. Assim, a tarefa missionária das paróquias é abrir-se às comunidades, assim como ocorreu
em Pentecostes (At 2,1-13), conforme pede o Documento de Aparecida
(nº 171). É diante de tudo isso que a Igreja apresenta o grande desafio
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de nossas paróquias: reformulação de suas estruturas, com tudo o que
isso implica. Porém, sem essa reformulação, não se atingirá o objetivo
de se formar comunidades de comunidades. O caminho é a formação
de redes de comunidades, através da setorização da paróquia em unidades menores.
1.4 Rede de comunidades: a setorização das paróquias
A setorização, ou descentralização da paróquia, é um passo importante para a transformação dela em Comunidades de comunidades.
O que são setores? Setores, como diz o Documento de Aparecida, são
unidades menores, como, por exemplo, as áreas pastorais, os bairros,
quadras ou quarteirões, as capelas, as ruas, os grupos de reflexão, enfim,
os próprios organismos da paróquia (pastorais, movimentos, grupos e
associações). Todas essas instâncias podem ser setores que ajudam a
descentralizar da matriz suas atividades e criar nesses espaços verdadeiras
comunidades. Mas, para que esses setores sejam comunidades, é preciso
que eles tenham intensas atividades, como, por exemplo, celebrações,
formação, conselhos, atividades pastorais, confraternizações, enfim,
vida de comunidade.
A esta altura da reflexão, muitos devem estar se perguntando:
mas como o padre vai dar conta de tudo isso? Vamos precisar de muitos
padres? Porém, se fizermos tais perguntas é porque não entendemos o
sentido da descentralização pedida na formação dessas comunidades. O
padre não precisa estar o tempo todo nessas comunidades. Elas existem
exatamente para dar responsabilidades e participação dos fiéis leigos. Se
o padre tiver que sempre celebrar missa em todas essas comunidades,
elas continuam clericais e não se enquadram no modelo renovado. É
apenas uma ampliação da estrutura paroquial já existente. Nesse modelo
renovado destaca-se o protagonismo do leigo, que assume dirigir as celebrações da Palavra, ministrar as formações sacramentais e os próprios
sacramentos, como, por exemplo, os batizados, os casamentos e tudo
aquilo que a Igreja possibilita que os leigos façam. Comunidade onde
tudo está centrado na figura do padre, não é uma comunidade renovada.
Isso não quer dizer que, com esse modelo de paróquia renovada nas
suas estruturas, o padre irá perder o seu papel, a sua importância. Pelo
contrário, ele continua sendo muito importante, mas esse modelo quer
dizer que os leigos também ganharão importância, sem diminuir o valor
e a importância do presbítero.
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Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais
Um dos objetivos da formação e da transformação da paróquia
em comunidades de comunidade é fazer com que a Igreja se achegue
mais às pessoas, principalmente os mais afastados. Quando a paróquia
divide responsabilidades, ela soma forças. Essa divisão em células, isto
é, em setores, significa formação de comunidades. Significa aumento
no alcance da paróquia, e assim, ela será mais evangelizadora, mais
missionária, porque está mais próxima das pessoas, dando-lhes oportunidade de participar mais efetiva e afetivamente. Muitos não vão até
a nossa matriz, por vê-la muito distante de sua realidade. Alguém que
mora na periferia se sentiria deslocado dentro da igreja matriz, mas se
sentirá em casa na comunidade do seu bairro, entre iguais. Essa pessoa
que participa da sua comunidade local é tão católica quanto aquela
que participa da igreja matriz, no centro da cidade, com a diferença de
que ali, na sua comunidade, ela é conhecida, reconhecida, valorizada,
podendo desempenhar funções que talvez em outros espaços, como
o supracitado, ela não conseguiria. Vemos, assim, que a formação de
pequenas comunidades possibilita a participação das pessoas em todos
os sentidos. Isso é comunidade, e não aquele modelo antigo, em que as
pessoas vão à igreja para “assistir” a missa, saindo tão anônimas quanto
chegaram, sem nenhum envolvimento afetivo com as pessoas e com o
espaço onde participa da celebração.
Essa mudança de estrutura vale para todas as realidades de paróquia, tanto para as do mundo urbano, como para as paróquias rurais.
Porém, cada realidade tem o seu desafio e cabe à comunidade paroquial
descobrir quais são esses desafios e empreender a missão de superá-los.
Uma sugestão para isso é fazer um recenseamento paroquial, a fim de se
obter um mapa da realidade. Com esse procedimento ficará mais fácil à
descentralização, a setorização em unidades menores. Para isso, é preciso imaginação e criatividade, diz o Documento de Aparecida (n˚ 173).
Somente assim se poderá chegar às multidões dos afastados.
1.5 Paróquias com novas estruturas pastorais
Dentre as sugestões que o Documento de Aparecida apresenta, está
a criação de novas estruturas pastorais. Estruturas pastorais que respondam aos desafios encontrados pela paróquia nas suas respectivas áreas
de missão. Dentre as pastorais que considero uma ferramenta imprescindível no processo de evangelização e na formação e comunidades, estão
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a Pastoral da Acolhida e a Pastoral da Visitação. Essas duas pastorais
são fundamentais nesse processo de renovação paroquial.
a. Pastoral da Acolhida ou dimensão do acolhimento
A pastoral da acolhida se enquadra na dimensão do acolhimento.
Uma paróquia que não é acolhedora, não evangeliza. Quando falo da
Pastoral da Acolhida, não falo de mais uma pastoral na paróquia, mas de
uma pastoral que esteja permeada na ação de todos os agentes de pastoral,
sobretudo nas ações do padre. Uma paróquia que não prima pelo acolhimento é uma paróquia fadada à estagnação e ao fracasso missionário. A
acolhida está na base de todas as ações de evangelização. É o primeiro
passo para qualquer trabalho pastoral. A missão da pastoral da acolhida
é fazer com que todos os agentes de pastoral, e a própria paróquia como
um todo, adote uma postura acolhedora. Do acolhimento nascem outras
ações que colocarão a paróquia em estado permanente de missão. Ela
ajuda, sobretudo, a reforçar o sentido e a vivência de comunidade. Paróquia que não acolhe não é comunidade.
b. Pastoral da visitação ou dimensão missionária
A pastoral da visitação é outra pastoral de suma importância. Ela
é uma ferramenta eficaz no processo de evangelização permanente e na
formação de comunidades. Com a pastoral da visitação, a igreja sai dos
seus templos e vai até as pessoas, sobretudo dos afastados, e os inclui na
comunidade. Com essa pastoral se poderá obter um retrato fiel da comunidade paroquial missionária. Ela poderá ajudar a paróquia no processo
de setorização e na formação de comunidades nesses setores. Por isso ela
é muito importante. Paróquias que ainda não têm essas duas pastorais de
ponta no processo de evangelização, terão mais dificuldade de renovação
de suas estruturas. A pastoral da visitação representa a dimensão missionária da paróquia, na sua ação mais concreta e evidente. É a pastoral que
vai ao encontro das multidões de afastados, como pede o Documento de
Aparecida. Cada agente dessa pastoral é um discípulo missionário que vai
ao encontro das “ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 10, 6).
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Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais
2 Os desdobramentos da V Conferência
para as paróquias
Tratamos até agora de alguns dos apontamentos feitos pela V
Conferência do Episcopado latino americano e caribenho, contidos no
Documento de Aparecida, tendo em vista a renovação das estruturas
paroquiais para a formação de paróquias que sejam comunidade de comunidades. Vejamos agora os seus desdobramentos em outros documentos,
que acentuaram essas e outras indicações e desafios. Começamos pela
Missão Continental.
2.1 A Missão Continental
Podemos dizer que a missão continental foi a tentativa mais ousada
que a Igreja deste Continente teve para colocar em prática os elementos
centrais da Conferência de Aparecida. Podemos afirmar também que,
dentro do método “ver, julgar e agir”, usado nessa Conferência, a Missão Continental corresponde à parte do agir. A Missão Continental foi
distribuída em cinco etapas, e cada uma delas buscou abarcar os pontos
principais de um processo de evangelização em vista da missão permanente, que no final culmina na formação de comunidades.
A primeira etapa começou logo após as conclusões da Conferência
de Aparecida (2007) e seu objetivo primordial foi e ainda é, fortalecer a
dimensão missionária da Igreja, envolvendo as paróquias nesse processo
missionário. Ela provocou-nos a repensar muitas das nossas estruturas
pastorais, tendo como espírito constitutivo a “espiritualidade de comunhão”, ou seja, aquela espiritualidade que brota da comunidade e na
comunidade, e não uma espiritualidade apenas intimista e individualista,
presente em certos movimentos religiosos que não querem compromisso com a paróquia e nem com a vida de comunidade. Assim, um dos
propósitos dessa primeira etapa foi a conversão pessoal para vida de
comunidade. Para isso, a Missão lançou o desafio de se criar, nas nossas
paróquias, estruturas abertas e flexíveis, capazes de animar a missão
permanente da Igreja. Cada etapa da missão continental teve indicativos
de ação, tempo delimitado de aplicação destas ações, propostas e meios
para se atingir os objetivos propostos.
A primeira etapa, delimitada entre os anos de 2008 e 2009, teve
como meta a preparação e sensibilização dos agentes de pastoral. Foi
um passo fundamental, porque correspondeu ao tempo previsto para a
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conscientização para a necessidade da missão. Lamentavelmente, não
foram todas as Dioceses e paróquias que deram esses passos, dificultando
a obtenção dos resultados previstos nessa missão. A segunda etapa foi a
partir de 2009, e teve como objetivo a formação e o reencantamento dos
agentes de pastoral. A partir desse ano, era para se ter buscado meios e
estratégia de reencantar os nossos agentes de pastoral, regatando o seu
ardor missionário, o seu gosto pela missão, enfim, conseguir revesti-los
da dimensão missionária. Sabemos que pessoas desencantadas com a
Igreja dificilmente serão missionárias. E temos muitos agentes de pastoral, inclusive padres, desencantados com a missão. Esses fazem as
coisas mecanicamente, por obrigação. Esses deveriam ser os primeiros
a serem reencantados.
A terceira etapa, a partir de 2010, foi a de trabalhar com grupos
prioritários, como, por exemplo, os catequistas, os professores de religião, enfim, pessoas e grupos que trabalham em campos específicos,
que lidam com muita gente. A quarta etapa, a partir de 2011, chamada
de missões setoriais e ambientais, tratou de aproximar de nós a missão,
trazendo-a para determinados setores da sociedade e da Igreja. Por fim,
a quinta e última etapa traz a missão até as nossas paróquias. É a missão
territorial (a partir de 2012 em diante). Ou seja, é a hora da missão em
nossas paróquias. Assim, a missão territorial é a missão paroquial. É a
missão Continental na paróquia, onde todos os passos acima devem ser
vividos e celebrados. E esse está sendo o nosso esforço enquanto Igreja
que somos. A Igreja no Brasil vem se empenhando nisso. Está aí, diante
de nós, o grande desafio de fazer, de nossas paróquias, comunidade de
comunidades: esse é um passo importante na missão territorial.
Ampliando o projeto da Missão Continental, a CNBB lançou
o projeto “O Brasil na Missão Continental” (Doc. 88) onde tratou de
definir os objetivos, geral e específico, desse empreendimento missionário, destacando a necessidade de “abrir-se ao impulso do Espírito
Santo e incentivar, nas comunidades e em cada batizado, o processo
de conversão pessoal e pastoral ao estado permanente de missão para a
vida plena” (objetivo geral do Brasil na Missão Continental). Nos seus
objetivos específicos encontramos a meta de “repensar as estruturas de
nossa ação evangelizadora para um compromisso de ir e atingir a quem
normalmente não atingimos”. Aqui vemos contemplada a pastoral da
visitação e da acolhida, como foi dito anteriormente, e a formação de
pequenas comunidades que possibilitam não apenas a igreja chegar até
os afastados, mas os afastados se achegarem à igreja.
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Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais
2.2 Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja
no Brasil: 2011 – 2015. Um passo importante nesse
processo de formação para a missão
As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil:
2011-2015 foram um passo importante nesse processo de orientação de
nossas paróquias para a formação de comunidades de comunidade em
sua estrutura. Aqui o termo paróquia não aparece muitas vezes, mas,
nas poucas vezes que aparece, tem um enfoque especial. Aliás, todo o
documento dá enfoque especial às paróquias, porque traz como tema
medular a proposta de uma Igreja, comunidade de comunidades. Se
nós queremos que nossas paróquias se tornem comunidade de comunidades, não podemos prescindir desse documento. Aqui encontramos as
principais constatações e pistas de ação, ou operacionalização, de que
precisamos para executar esse projeto.
Das cinco citações sobre a paróquia encontradas nesse Documento,
a primeira (nº 60), traz o tema que estamos a refletir, e que foi tema da
51ª Assembleia dos Bispos: a necessidade de as paróquias se tornarem
Comunidade de comunidades. Na segunda (nº 90), encontramos a paróquia como lugar privilegiado de iniciação cristã; na terceira (nº 99),
volta o tema da Comunidade de comunidades, mostrando a urgência
de se trabalhar esse aspecto em nossas paróquias, de modo que elas
se tornem vivas e dinâmicas; na quarta citação (nº 101), encontramos
a urgência da setorização das paróquias em unidades menores, como
uma das formas de renovação paroquial. Por fim, na quinta referência
à paróquia (nº 138), vemos a necessidade de pensar os organismos de
articulação dessas pistas de ação para tornar as paróquias Comunidades
de comunidades. Dentre esses organismos, destaque para as assembleias
paroquiais, os conselhos paroquiais, enfim, instâncias onde se podem
definir os passos a serem dados, envolvendo a comunidade paroquial
nesse processo. Aqui, nesse número, as Diretrizes retomam o desafio
da renovação das paróquias, transformando-as em unidades menores,
através da setorização. Percebemos assim que são temas contemplados
no Documento de Aparecida, e que ganham destaque nessas Diretrizes
da Ação Evangelizadora.
Enfim, as Diretrizes ora tratadas dizem categoricamente que, se
queremos uma paróquia verdadeiramente missionária, é preciso torná-la
uma Comunidade de comunidades. E que, para assim torná-la, é preciso
que aprendamos a valorizar as diversas formas de vida comunitária, não
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apenas as mais conhecidas, como as CEBs (Comunidades Eclesiais de
Base), ou as tradicionais capelas de nossas paróquias. Hoje, existem
muitas maneiras de se viver em comunidade, as chamadas, novas comunidades cristãs e tantas outras. Outro passo importante já visto é a
setorização da paróquia em unidades menores, formando uma rede de
comunidades e, essas pequenas comunidades, sendo células vivas, formando no seu interior conselhos e coordenações pastorais que fomentem
essa organização de comunidade.
2.3 51ª Assembleia Geral dos Bispos e o enfoque
na dimensão da Comunidade
Por fim, tivemos a 51ª Assembleia dos Bispos do Brasil, que se
reuniu em Aparecida, de 10 a 19 de abril de 2013, para tratar do tema da
paróquia, enfatizando a dimensão de Comunidade de comunidades. Com
o tema, “Comunidade de comunidades: uma nova paróquia”, o Documento de Estudo lançou luzes sobre aquilo que para nós, Igreja no Brasil,
é prioridade e que estamos aqui refletindo. De início o Documento faz
uma constatação que é real. Nossas paróquias têm oferecido resistência,
ao longo da história, para a renovação de suas estruturas. Essa resistência é sentida quando adentramos as realidades das dioceses e paróquias
pelo Brasil afora. São poucos os que estão empenhados nessa mudança
estrutural. As resistências derivam de uma série de fatores, dentre eles,
a acomodação, a falta de comprometimento por parte de lideranças
pastorais, sobretudo de padres e de bispos que não têm essa preocupação como prioridade; o desconhecimento dos apelos do Documento de
Aparecida e dos demais Documentos da Igreja no Brasil; uma paróquia
voltada mais para o culto, isto é, a liturgia, mais do que para a vida de
comunidade, a pregação ou o serviço. São afirmações contundentes que
encontramos no n˚ 54 desse Documento e que nos levam a pensar a nossa
vida de Igreja hoje, de comunidades paroquiais que já não respondem
aos desafios do mundo atual.
Diante desses apelos, qual deve ser o nosso procedimento enquanto
agente de pastoral, comprometido com a Igreja? O primeiro passo é conhecer mais profundamente o que a Igreja vem pedindo, através dos seus
Documentos, estudando e fomentando o estudo desses materiais entre
o clero e os leigos de nossas paróquias. Muitas dioceses vêm propondo
essa reflexão com seu clero e leigos, e esse é um passo importante. Desses estudos e reflexões nascem iniciativas importantes, que ajudam as
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Paróquia, comunidade de comunidades. Desafios centrais
paróquias a darem passos nessa direção. Assim sendo, ter conhecimento
dos desafios e propostas desse projeto de evangelização, e colocar em
prática as pistas de ação indicadas nesses Documentos, bem como as
pistas de ação que cada diocese ou paróquia encontrar na sua realidade,
é também outro passo importante a ser dado.
Considerações finais
Estamos diante do grande apelo da Igreja no Brasil, que é a
conversão de nossas paróquias em Comunidade de comunidades. Para
isso, temos grandes desafios, dentre os quais, alguns estão apontados
no Documento de Aparecida e em outros Documentos, e tivemos oportunidade de refletir sobre eles. Outros despontam em nossas realidades
paroquiais. Todos são passíveis de ser enfrentados, carecendo apenas
do empenho e comprometimento de todos, e de todas as instâncias da
Igreja, começando pelas Dioceses, paróquias, ou seja, bispos, padres e
leigos. Dos desafios apresentados, destaco resumidamente, a título de
conclusão, os mais urgentes.
Renovação ou reformulação das estruturas de nossas paróquias.
Essa renovação consiste, em primeiro lugar, na sua descentralização que,
por sua vez, significa a formação de unidades menores, como células
vivas, e dessas células formar-se-ão comunidades. Assim, a paróquia
estaria no processo de renovação pedido pela Igreja. Para isso é preciso
investir na formação, em todas as suas dimensões, sobretudo espiritual
e missionária, de modo que a paróquia adote uma postura missionária.
Mas sabemos que, para atingir tal objetivo, será necessário, em primeiro
lugar, conversão pessoal e comunitária. Vemos, assim, quão desafiador
é o processo de formação da paróquia em Comunidade de comunidades,
mas não há outro caminho. Ou vamos por esse, sugerido pela Igreja, ou
ficamos parados, estagnados, vendo a nossa Igreja fenecer por falta de
ousadia missionária. Ainda está valendo a proposta para avançarmos
para águas mais profundas. É hora de soltar as âncoras de nossos barcos,
ajeitar as velas e se lançar mar adentro. Os rumos já nos foram apontados. O lado certo para jogar as redes, também. Faltam agora pessoas,
com renovado ardor missionário, para tomarem o leme e conduzirem o
barco nessa direção, com as redes em punho. Muitos já estão fazendo
essa travessia e se encontram em meio às águas turbulentas da missão.
Outros estão ainda ancorados na praia, com medo ou acomodados. Aos
que já estão na rota da missão, cabe chamar os que ainda estão nas mar-
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gens. Eis um dos tantos desafios que ainda temos, para atingir a meta de
transformar a paróquia em Comunidade de comunidades. O desafio está
lançado também para os estudantes de teologia, seminaristas, os futuros
padres que irão conduzir as paróquias nesta direção.
Bibliografia
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Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. Brasília/São Paulo:
CNBB/Paulus/Paulinas, 2007.
_____. A Missão continental. Para uma Igreja missionária. Brasília:
CNBB, 2008.
_____. Itinerário da Missão Continental. Brasília: CNBB, 2009.
CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil:
2011-2015. São Paulo: Paulinas, 2011.
_____. Projeto Nacional de Evangelização: O Brasil na Missão Continental. Documentos da CNBB, n. 88. Brasília: CNBB, 2008.
_____. Comunidade de Comunidades: Uma nova paróquia. Col. Estudos da CNBB, n˚ 104. Brasília: CNBB, 2013.
PEREIRA, José Carlos. Paróquia Missionária à luz do Documento de
Aparecida: Procedimentos fundamentais. Brasília: CNBB, 2012.
_____. Projeto Paroquial: Orientações para a implantação de uma
evangelização permanente. Petrópolis: Vozes, 2009.
_____. Como fazer um recenseamento paroquial. Metodologia de
pesquisa. Uberlândia/MG: A Partilha, 2013.
_____. Serviço de animação vocacional paroquial. Subsídio de implantação, formação e atuação dos agentes. São Paulo: Paulus, 2013.
Endereço do Autor:
Rua Barão de Mesquita, 763
Bairro Andaraí
20540-002 Rio de Janeiro, RJ
Encontros Teológicos nº 65
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Papa Francisco
AOS CATEQUISTAS, NO ANO DA FÉ
No domingo, 29-09, partindo da 1ª leitura da Missa, que era um
texto de Amós, o Papa Francisco assim se dirigiu aos catequistas: “Ai
dos despreocupados em Sião, daqueles que comem, bebem, cantam, se
divertem e não se preocupam com os problemas das outras pessoas”
(cf Am 6,1.4) [...] Tentemos perguntar-nos: Por que é que isso acontece?
Como é possível que as pessoas, talvez também nós, caiamos no perigo
de encerrar-nos, de colocar a nossa segurança nas coisas, que no final das
contas nos roubam o rosto, o nosso rosto humano? Isso acontece quando
perdemos a lembrança de Deus. Se não há memória de Deus, tudo fica
nivelado, tudo vai para o ego, para o meu bem-estar. A vida, o mundo, os
outros, perdem a consistência, não contam para nada, tudo se reduz a uma
única dimensão: o ter. [...]
Agora, olhando para vocês, me pergunto: quem é o catequista? É
aquele que protege e alimenta a memória de Deus: guarda-a em si mesmo
e sabe despertá-la nos outros. É bonito isso: fazer memória de Deus, como
Nossa Senhora, que, diante da ação maravilhosa de Deus na sua vida, não
pensa na honra, no prestígio, nas riquezas, não se fecha em si mesma. Pelo
contrário, depois de ter acolhido o anúncio do Anjo e de ter concebido o
Filho de Deus, o que faz? Vai,visita Isabel, também grávida, para ajudála: e, no encontro com ela, o seu primeiro ato é fazer memória do atuar de
Deus, da fidelidade de Deus na sua vida, na história do seu povo, na nossa
história: “A minha alma engrandece o Senhor... pois sua misericórdia se
estende de geração em geração” (Lc 1,46.50) [...]
O catequista é precisamente um cristão que carrega consigo a memória de Deus, se deixa guiar pela memória de Deus em toda a sua vida, e
sabe como despertá-la no coração dos outros. Isso é exigente! Compromete
toda a vida!
O que é o Catecismo, senão a própria memória de Deus, memória
da sua ação na história, do seu ter-se feito próximo em Cristo, presente na
sua Palavra, nos Sacramentos, na sua Igreja, no seu amor?
Caros catequistas, pergunto-lhes: nós somos memória de Deus?
Somos realmente como sentinelas que despertam nos outros a memória de
Deus, que nos aquece o coração?
Encontros Teologicos 65.indb 50
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Resumo: O texto visa propor uma “concepção forte” de comunidade para desafiar a ideologia individualista, presente no conceito de redes sociais, predominante na atualidade. Uma boa comunidade é aquela em que há argumentação
e até conflito sobre o significado dos valores e objetivos compartilhados; é o
lugar em que nos comunicamos com os outros, tomamos decisões, chegamos
a acordos sobre padrões e normas, perseguimos em conjunto o esforço de criar
uma forma de vida de valor. Daí, o texto procura aplicar esta concepção na atual
configuração da “paróquia” no Brasil.
Abstract: This text aims to propose a “strong design” of community to challenge
the individualistic ideology, in this social networking concept, prevalent nowadays. A good community is one in which no argument and even conflict over
the meaning of shared values and goals, is the place in which we communicate
with others, make decisions, come to agreements on standards and norms, we
pursue together the effort to create a way of life value. Hence, this text seeks to
apply this concept in the current configuration of the “parish” in Brazil.
A paróquia e um conceito “forte”
de comunidade:
Uma compreensão pela sociologia
e pela pastoral
Prof. Sérgio Ricardo Coutinho*
*
Mestre (UnB) e doutorando (UFG) em História Social, professor de Teoria Política e
de Formação Política e Econômica do Brasil no curso de Serviço Social do Centro
Universitário IESB de Brasília, professor de História da Igreja no Instituto São Boaventura, presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina
(CEHILA-Brasil) e assessor da Comissão Episcopal Pastoral para o Laicato, Setor
CEBs, da CNBB.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013, p. 51-63.
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A paróquia e um conceito “forte” de comunidade
1 O “sentimento de comunidade”: o conceito pelo
olhar da Sociologia Clássica e Contemporânea
O conceito de comunidade nunca foi uma unanimidade. Os autores
clássicos, como Ferdinand Tönnies, procuravam conceituar a comunidade
em oposição à sociedade. Tönnies procurou criar um conceito “puro” de
comunidade, idealizada, oposta ao conceito de sociedade, criado pela
vida moderna. Para Tönnies, Gemeinschaft (comunidade) representava
o passado, a aldeia, a família, o calor. Tinha motivação afetiva, era orgânica, lidava com relações locais e com interação. As normas e o controle
davam-se através da união, do hábito, do costume e da religião. Seu círculo abrangia família, aldeia e pequena cidade. Já Gesellschaft (sociedade)
era a frieza, o egoísmo, fruto da calculista modernidade. Sua motivação
era objetiva, mecânica, observava relações supralocais e complexas. As
normas e o controle davam-se através de convenção, lei e opinião pública.
Seu círculo abrangia metrópole, nação, Estado e Mundo. Para Tönnies, a
comunidade seria o estado ideal dos grupos humanos. A sociedade, por
outro lado, seria a sua corrupção.1
No entendimento de Max Weber, o conceito de comunidade
baseia-se na orientação da ação social. Para ele, a comunidade funda-se
em qualquer tipo de ligação emocional, afetiva ou tradicional. Weber
explica comunidade pelo tipo de relação social provocada por uma ação
social: “Chamamos de comunidade uma relação social na medida em
que a orientação da ação social, na média ou no tipo ideal – baseia-se
em um sentido de solidariedade: o resultado de ligações emocionais ou
tradicionais dos participantes”.2 Para Weber, a comunidade só existiria
propriamente quando, sobre a base de um sentimento de situação comum
e de suas consequências, está também situada a ação reciprocamente
referida e essa referência traduz o sentimento de formar um todo. Dessa
forma, a visão de uma comunidade como “redentora” e tipo “ideal” de
convivência humana permeia muitas das visões e ideias da sociologia
clássica, bem como a dicotomia entre comunidade e sociedade.
Por isso, a palavra comunidade era (e ainda é em muitos círculos
acadêmicos) frequentemente utilizada no sentido de “grupos de pequena
52
1
MERLO, Valério. Rumo à Origem da Sociologia Rural: Vontade Humana e Estrutura
Social no Pensamento de Ferdinand Tönnies. In MIRANDA, Orlando. Para Ler Ferdinand Tönnies. SP: EDUSP, 1995.
2
WEBER, Max. Conceitos Básicos de Sociologia. SP: Editora Moraes, 1987, p. 77.
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Sérgio Ricardo Coutinho
escala”, de relações diretas, particularmente a pequena cidade, a vila, o
vilarejo, o povoado; é o que os alemães chamam de Gemeinschaft. Há
uma longa tradição de glorificação desse tipo de comunidade, mas de uma
maneira frequentemente sentimental e nostálgica. A ideia moderna de
comunidade começou a se distinguir de seu protótipo antigo, apoiando-se
em diferentes princípios de coesão entre os seus elementos constituintes,
como o contraste entre parentesco e território, sentimentos e interesses,
etc. Este conceito “moderno” de comunidade foi identificado com diversos aspectos complexos como a coesão social, a base territorial, o
conflito e a colaboração para um fim comum, e não mais a ideia de uma
relação familiar, como na Gemeinschaft tönnesiana.
Palacios3 enumera os elementos que caracterizariam esse tipo
complexo de comunidade: o sentimento de pertença, a territorialidade, a
permanência, caráter corporativo, emergência de um projeto comum e a
existência de formas próprias de comunicação. O sentimento de pertença,
ou “pertencimento”, seria a noção de que o indivíduo é parte do todo,
coopera para uma finalidade comum com os demais membros (caráter
corporativo, sentimento de comunidade e projeto comum); a territorialidade, o locus da comunidade; a permanência, condição essencial para
o estabelecimento das relações sociais.
Outros autores, como Beamish4, explicam que o significado de
comunidade giraria em torno de dois sentidos mais comuns. O primeiro
refere-se ao lugar físico, geográfico, como a vizinhança, a cidade, o bairro. Assim, as pessoas que vivem em um determinado lugar geralmente
estabelecem relações entre si, devido à proximidade física, e vivem sob
convenções comuns. O segundo significado refere-se ao grupo social,
de qualquer tamanho, que divide interesses comuns, sejam religiosos,
sociais, profissionais, etc. Ou seja, Beamish separa o conceito sob dois
aspectos: o do território como elemento principal na constituição do
grupo e/ou o interesse comum (e neste caso, o território comum não é
mais condição para a existência das relações entre as pessoas) como
cerne da constituição do grupo.
3
PALACIOS, Marcos. Cotidiano e Sociabilidade no Cyberespaço: Apontamentos para
Discussão. Disponível em: <http://facom/ufba/br/pesq/cyber/palacios/cotidiano.
html>.
4
BEAMISH, Anne. Communities on-line: A Study of Community–Based Computer
Networks. Tese de Mestrado em Planejamento de Cidades. Instituto de Tecnologia
de Massachusetts – Estados Unidos. 1995. Disponível em: <http://albertimit.edu/
arch/4.207/anneb/thesis/toc.html>.
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A paróquia e um conceito “forte” de comunidade
Pode-se observar assim que o termo comunidade evoluiu de um
sentido quase “ideal” de família, comunidade rural, passando a integrar
um maior conjunto de grupos humanos com o passar do tempo. Com o
advento da Modernidade e da urbanização, principalmente, as comunidades rurais passaram a desaparecer, cedendo espaço para as grandes
cidades. Com isso, a ideia de comunidade como a sociologia clássica a
concebia, como um tipo rural, ligado por laços de parentesco em oposição
à ideia de sociedade, parece desaparecer não da teoria, mas da prática.
Ray Oldenburg, citado por Hamman5 e Rheingold6, afirma que as
comunidades estariam desaparecendo da vida moderna devido à falta dos
lugares que ele chama de “great good places” (“lugares muito bons”).
Segundo ele, haveria três tipos importantes de “lugares” em nossa vida
cotidiana: o lar, o trabalho e os “terceiros lugares”, referentes àqueles
onde os laços sociais fomentadores das comunidades seriam formados,
como a igreja, o bar, a praça etc. Esses lugares seriam mais propícios
para a relação social que ele julga necessária para o “sentimento de comunidade”, porque seriam aqueles onde existe o “lazer”, onde as pessoas
encontram-se de modo desinteressado para se divertirem (lugares de vida
pública “informal”, nas palavras do autor). Como esses lugares estariam
desaparecendo da vida moderna, devido às atribulações do dia-a-dia, as
pessoas estariam sentindo que o “sentimento de comunidade” estaria em
falta. O trabalho de Oldenburg revelou que na maior parte das cidades
da América do Norte e do Ocidente realmente havia um declínio desses
“terceiros lugares”. Daí a constatação de Bauman: “a decadência da
comunidade nesse sentido se perpetua; uma vez instalada, há cada vez
menos estímulos para deter a desintegração dos laços humanos e para
procurar meios de unir de novo o que foi rompido”.7 Por outro lado,
este “sentimento” é paradoxal. Como afirma o mesmo Bauman, “não ter
comunidade significa não ter proteção; alcançar a comunidade, se isto
ocorrer, poderá em breve significar perder a liberdade”.8 Rheingold aponta
esta ausência do “sentimento de comunidade” como uma das causas do
surgimento das chamadas comunidades virtuais ou redes sociais.
54
5
HAMMAN, Robin. Introduction to Virtual Communities Research and Cybersociology
Magazine Issue Two in http://members.aol.com/Cybersoc/is2intro.html.
6
RHEINGOLD, Howard. La Comunidad Virtual: Una Sociedad sin Fronteras. Gedisa
Editorial. Colección Limites de La Ciencia. Barcelona, 1994, p. 61.
7
BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. RJ: Jorge
Zahar Ed., 2003, p. 48.
8
Idem, p. 10.
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2 Do conceito de comunidade para o de rede
social: uma nova sociabilidade?
A generalização da atual interconexão entre as pessoas tem chamado a atenção de muitos teóricos, sobre seus efeitos no quadro das relações
individuais e igualmente na forma como os grupos se comportam quando
se constituem como redes de alta densidade. Todos eles apontam para
uma mesma situação: estamos em rede, interconectados com um número
cada vez maior de pontos e com uma frequência que só faz crescer.
Em função disso, o que os recentes analistas de redes apontam é
para a necessidade de uma mudança no modo de compreender o conceito
de comunidade: novas formas de comunidade surgiram, o que tornou
mais complexa nossa relação com as antigas formas. Para isso, o foco se
dirige diretamente para os “laços sociais e para os sistemas informais de
troca de recursos”, ao invés de focar nas pessoas vivendo em vizinhanças e nas pequenas cidades. O que se verá é uma imagem das relações
interpessoais bem diferentes daquelas com as quais a sociologia clássica
se habituou a pensar.
Por isso, as análises recentes remetem para uma transmutação do
conceito de comunidade para o de rede social. Se solidariedade, vizinhança e parentesco eram aspectos predominantes quando se procurava
definir uma comunidade, hoje eles seriam apenas alguns dentre os muitos padrões possíveis das redes sociais. Atualmente, o que os analistas
estruturais procuram avaliar são as formas nas quais padrões estruturais
alternativos afetam o fluxo de recursos entre os membros de uma rede
social. Estaríamos diante de novas formas de associação, imersos numa
complexidade chamada rede social, com muitas dimensões, e que mobiliza o fluxo de recursos entre inúmeros indivíduos distribuídos segundo
padrões variáveis.
Deste modo, para esses analistas de redes e sociólogos urbanos, o
conceito de redes sociais responderia a uma compreensão da interação
humana de modo mais amplo que o de comunidade. As análises sociológicas de Granovetter9 e Wellman10 caminhavam nessa direção já no
final dos anos 1970, e as proposições filosóficas de Deleuze e Guattari
também seguiram esse caminho nessa mesma época. Conceitos como
9
10
GRANOVETTER, M. Le marché autrement. Paris: Desclée de Brouwer, 2000.
WELLMAN, B. & BERKOWITZ, S. D. Social structures: a network approach. New
York: Cambridge University Press, 1988.
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A paróquia e um conceito “forte” de comunidade
rizoma11 e agenciamento coletivo procuravam traduzir o sentimento de
que a sociedade do final do século XX já não se organizava mais segundo parâmetros convencionais de localidade, parentesco, vizinhança
etc.12 Essas reflexões surgiram, de fato, ao mesmo tempo em que se
desencadeava uma profunda revolução nos meios de comunicação. Isto
acabou por provocar uma mudança determinante na forma de interação
entre os indivíduos, no modo como cada um poderia interagir e estar
em contato com outros ao seu redor. É o que vivenciamos hoje, com o
surgimento do ciberespaço, a multiplicação das ferramentas de colaboração on-line, as tecnologias de comunicação móvel se integrando às
mídias tradicionais etc.
E o resultado mais conhecido de todo esse processo são as comunidades virtuais. Desde seu início, elas sempre foram criticadas pela ausência
de contato físico entre seus participantes. Mas para Pierre Lévy13, as comunidades virtuais são uma nova forma de se fazer sociedade. Essa nova
forma é rizomática (cf. nota 12), transitória, desprendida de tempo e espaço,
baseada muito mais na cooperação e trocas objetivas do que na permanência
de laços. E isso tudo só foi possível com o apoio das novas tecnologias de
comunicação. Assim, para estes sociólogos, não se trataria mais de definir
relações de comunidade exclusivamente em termos de laços próximos e
persistentes, mas se deveria mudar o foco em direção às redes pessoais. É
cada indivíduo que está apto a construir sua própria rede de relações, sem
que essa rede possa ser definida precisamente como comunidade.
A pergunta que fica é: esta nova forma de sociabilidade preencheria
a perda do “sentimento de comunidade”? A “permanência de laços”, no
tempo e no espaço, não faz mais sentido hoje?
3 Um conceito “forte” de comunidade: a dimensão
discursiva-normativa
Pode-se buscar uma explicação “política” para esta perda do
“sentimento de comunidade” e a sua substituição por novas sociabili11
56
Termo oriundo da Botânica e é aplicado para a extensão do caule que une sucessivos
brotos. É a parte rasteira que cresce horizontalmente no subterrâneo. A grama é um
exemplo bastante conhecido de planta rizomática, assim como o bambu e a cana de
açúcar – todos da família das gramíneas.
12
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1982.
13
LÉVY, Pierre. Cyberdemocratie. Paris: Odile Jacob, 2002. Encontros Teológicos nº 65
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Sérgio Ricardo Coutinho
dades em torno das redes sociais em nossa sociedade contemporânea. O
fortalecimento do Estado, após a “Era das Revoluções” (E. Hobsbawm),
trouxe como consequência a localização abstrata do homem, constituído
como cidadão na medida em que ultrapassasse laços particularizados,
rejeitando eventuais identidades comunitárias, para integrar-se definitivamente ao Estado-nação, pois esta última pressupõe, de uma maneira
ampla, “a adesão prioritária do cidadão à nação concebida como uma
entidade superior a todas as outras comunidades intermediárias”.14
No entanto, a concepção de Estado que tem predominado em nossa
sociedade é o moldado pelo modelo normativo liberal de democracia.
Nesse modelo, a noção de direitos individuais é anterior a qualquer atividade política. A autonomia privada (liberdade) é o grande bem a ser
preservado, na medida em que os indivíduos são capazes de formular
suas próprias concepções de vida digna, independentemente do Estado.
Quaisquer vínculos sociais são de importância secundária e podem ser
sempre restringidos em nome da garantia da autonomia privada. Assim,
o Estado é visto como um aparelho burocrático que garante a realização
de interesses individuais predefinidos.
Podemos dizer que este modelo, excessivamente legalista e formalista, negligencia a importância da solidariedade social. Sociedades
e instituições nunca poderão ser baseadas unicamente no contrato que
maximiza as oportunidades de indivíduos. Devem, ao contrário, ser também, sociedades e instituições preocupadas com a busca do bem comum.
Por isso, é necessário propor uma “concepção forte” de comunidade para
desafiar a ideologia individualista, também presente no conceito de redes
sociais, predominante na atualidade.
Neste sentido, mostra-se bastante útil o pensamento de Martin
Heidegger sobre o modo de ser da existência humana. Para o filósofo,
ser-com-o-outro faz parte da existência humana. A vida em comunidade
não é uma opção solipsista, pois o cidadão é com o outro cidadão a partir
das referências existenciais cotidianas. A comunidade é crucial para a
determinação do “mundo”; isto é, o “mundo” é sempre compartilhado,
e a comunidade o espaço no qual os elementos compartilhados são
construídos. Considerando as características dessa existência humana,
compreender a comunidade exige voltar-se para o conjunto de situações
14
NAY, Oliver. História das Ideias Políticas. RJ: Vozes, 2007, p.505.
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A paróquia e um conceito “forte” de comunidade
concretas em que é construída, sem se esquecer da importância da linguagem, pois toda comunidade é uma instância discursiva.
Quando no mundo de hoje qualquer grupo social (da família à
espécie humana), enfrenta questões fundamentais em relação à própria
viabilidade de nosso modo de vida atual, não podemos deixar de nos
perguntar o que queremos ser e aonde queremos ir. O que faz de um
grupo uma comunidade e não uma simples associação contratual, para a
maximização de interesses dos indivíduos envolvidos (como no modelo
normativo liberal), é uma preocupação compartilhada com a questão
de saber o que fará deste grupo um bom grupo, questão essa que geralmente não é opcional, pelo contrário: da resposta dada a ela depende o
próprio futuro do grupo. Qualquer instituição, como uma universidade,
cidade ou sociedade, desde que procure ser uma comunidade, precisa
se perguntar o que é uma boa universidade, o que é uma boa cidade ou
o que é uma boa sociedade, etc. Desde que obtenha consenso a respeito
do bem que deve realizar (o que será sempre contestável e aberto ao
debate), torna-se uma comunidade com alguns valores comuns, mas
também com objetivos comuns.
Uma boa comunidade é aquela em que há argumentação e até
conflito sobre o significado dos valores e objetivos compartilhados, e
certamente como serão realizados no dia-a-dia. Comunidade é o lugar
em que nos comunicamos com os outros, tomamos decisões, chegamos a
acordos sobre padrões e normas, perseguimos em conjunto o esforço de
criar uma forma de vida de valor. Este é o “mundo da vida” (o Lebenswelt
de Jürgen Habermas) e é lá que se realiza a comunidade.
4 A Paróquia enquanto “Comunidade de
Comunidades” ou “Rede de Comunidades”
O que significam essas reflexões para a compreensão atual da
Paróquia? Rede de comunidades (ou redes sociais) nos conduz a pensar
em duas realidades. Uma nova maneira de pensar a articulação do tecido
social e, o que nos interessa aqui sobremaneira, uma nova maneira de
pensar a estrutura eclesial (“um novo jeito da igreja ser”). Como vimos,
apesar de serem estruturadas de forma transitória, desprendida de tempo
e espaço, baseada muito mais na cooperação em vista de trocas objetivas
que propriamente na permanência de laços, sociologicamente a rede de
comunidades desloca o modo de pensar a estrutura social em si. Em vez
58
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Sérgio Ricardo Coutinho
de assumir a forma piramidal, opta-se pela interligação entre os corpos
sociais: a forma rizomática.
As duas metáforas – pirâmide e rede – traduzem bem a diferença. A pirâmide pensa o poder a partir da ponta, do chefe, da autoridade
maior. Dela derivam as ordens, as decisões para a base realizar. Não se
trata necessariamente de autoritarismo no sentido de defeito, de abuso de
poder. Acontece haver autoridades delicadas, finas, respeitosas, mas elas
decidem e a base realiza. A questão não gira em torno de pessoas, mas
da concepção de funcionamento da instituição em questão. A estrutura
piramidal concentra, em última análise, o poder, pratica-o de maneira
hierarquizada tanto no comando como na execução. Impera a figura
geométrica do vertical.
De fato, novas técnicas de coleta de dados mais sistemáticas,
desenvolvidas desde os anos de 1950, mostraram que as comunidades
tradicionais (naquele sentido idealizado por Tönnies) não eram tão solidárias quanto se acreditava. Analisando algumas sociedades de países em
desenvolvimento ou pobres, constatou-se que muitas localidades (vilas,
povoados, pequenas cidades) não possuem comunidades de suporte, redes sociais ou laços de parentesco consistentes como se imaginava. Para
Wellman e Berkowitz, esses estudos mostram que “as relações dentro
dessas sociedades pré-industriais são em geral hierárquicas, com laços
de exploração especializados, com uma profunda divisão separando
facções. Além disso, historiadores têm sistematicamente usado fontes
demográficas e de arquivo para demonstrar que muitas comunidades
pré-revolução industrial eram menos solidárias do que se pensava”.15
A experiência destas redes sociais contemporâneas, e de suas comunidades virtuais, traz em si outra concepção de estruturação social que
é a sua horizontalidade rizomática. Por isso, a metáfora da rede modifica
o esquema fundamental. Os corpos menores relacionam-se entre si, e da
conjugação de suas deliberações surgem as decisões. Predomina a busca
do consenso entre todos. As informações circulam livremente. Evita-se
a concentração de poder em determinados cargos. Todos se ligam com
todos. Predomina a figura geométrica do horizontal.
15
Cf. Wellman e Berkowitz, op. cit., p. 125.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
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A paróquia e um conceito “forte” de comunidade
Conforme Pe. Almeida16, do ponto de vista estritamente sociológico, constata-se que muitas paróquias no Brasil se caracterizam por
serem uma:
a) Instituição de Cristandade17;
b) Organização de Massa18;
c) Caráter territorial19;
d) Centralidade do culto20;
e) Arquiteta da unidade e da ordem21;
f) Liderança sacerdotal22;
g) Instituição econômico-financeira23.
Sabedores desta realidade, os bispos na Conferência de Aparecida pedem reiteradamente que as paróquias se transformem “cada
vez mais em comunidades de comunidades” (DA 99, 179, 309) e, para
isso, “exige-se a reformulação de suas estruturas, para que sejam uma
60
16
ALMEIDA, Pe. Antonio José de. Paróquia, comunidades e pastoral urbana. SP: Paulinas, 2009, pp. 63-87.
17
De forma simples e objetiva, Cristandade é mais que o modo concreto pelo qual a
Igreja vive num determinado tempo e numa determinada cultura, mas sim a formação
gradual de um modo de os cristãos regerem, em nome do Evangelho, a sociedade
em que vivem; é a expressão de uma extensa fé coletiva e de um comportamento
geral (pelo menos na grande maioria dos povos cristianizados), fiel ao Evangelho e
ao Magistério da Igreja.
18
Nas missas paroquiais, os fiéis estão um ao lado do outro, mas sem comunicação
entre si. No máximo há uma relação com o pároco e, através dele, com os demais
fiéis. A paróquia, desta forma, não é uma comunidade.
19
Com o Edito de Milão (313) a Igreja foi fazendo suas as estruturas organizativo-administrativas da sociedade civil imperial, criando um paralelismo com as suas circunscrições
eclesiásticas. Vítima de seu caráter territorial, a paróquia perde mobilidade e acaba
se confundindo com a exterioridade física: a Igreja-matriz (simplesmente chamada
de paróquia, com sua casa paroquial, secretaria e outros espaços físicos).
20
A principal função da paróquia, em sua prática mais constante e universal, não é a
pregação, nem o serviço, mas o culto. Ela tem mantido e reforçado, ao longo dos
séculos, o privilégio de celebrar os sacramentos.
21
A paróquia procura (ou pelo menos procurou durante a época de Cristandade) contribuir
para a manutenção dos padrões coletivos tradicionais, hierárquicos, de comportamento
e de ordem social. A unidade é construída verticalmente, muitas vezes à custa da
liberdade individual, e confundindo-se com uniformidade.
22
Na paróquia, tudo gira em torno do pároco, que é um sacerdote, ou seja, um homem
do culto. Responsável pela administração em todos os sentidos e abrangência, em
última instancia, a paróquia é o “senhor pároco”.
23
O maior volume do financiamento da Igreja passa pelas paróquias. Sendo que outras
instâncias eclesiais necessitam de dinheiro para se sustentar e sustentar suas atividades, a captação de recursos financeiros nas paróquias é incessante.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
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Sérgio Ricardo Coutinho
rede de comunidades e grupos, capaz de se articular, conseguindo que
os participantes se sintam realmente discípulos e missionários de Jesus
Cristo em comunhão” (DA 172).
Mas como? Como fazer a paróquia se tornar uma “comunidade
de comunidades” naquele “sentido forte” de comunidade enquanto o
lugar em que nos comunicamos com os outros, tomamos decisões, chegamos a acordos sobre padrões e normas, perseguimos em conjunto o
esforço de criar uma forma de vida de valor e, no nosso caso, de “valor
evangélico”?
Em nossas dioceses, temos muitas comunidades. Em muitas delas,
costuma-se denominá-las de comunidades eclesiais de base (CEBs), em
algumas outras têm-se preferido chamar de “pequenas comunidades eclesiais”. Para se ter uma ideia, vejamos este pequeno quadro comparativo
com algumas dioceses brasileiras:
Prelazias/
(Arqui)Dioceses
Regional
Nº
CNBB
Paróquias
Nº de
CEBs e/ou
Peq. Comum.
Faixa
Densidade
Média por percentual de Demogr.
Paróquia
Católicos
(Hab./km2
(2010)
2010)
Tefé (AM)
N1
14
600
42,8
75-85
Sinop (MT)
O2
33
800
24,2
75-85
2-11
Almenara (MG)
L2
17
271
15,9
75-85
11-24
Crateús (CE)
NE 1
15
804
53,6
+ 92
24-48
Brejo (MA)
NE 5
16
1.250
78
85-92
24-48
CO
35
120
3,4
65-75
48-216
Palmas (TO)
Criciúma (SC)
2-11
S4
29
524
18,06
85-92
48-216
NE 3
28
695
24,8
85-92
48-216
Florianópolis (SC)
S4
67
602
8,9
75-85
48-216
Cachoeiro de Itapemerim (ES)
L2
41
1.030
25,1
65-75
48-216
Passo Fundo (RS)
S3
54
900
16,6
85-92
48-216
São Paulo (SP)
(Região Brasilândia)
S1
39
159
4,07
65-75
216-13 mil
Porto Alegre (RS)
S3
156
738
4,7
65-75
216-13 mil
544
8.493
Vitória da Conquista (BA)
TOTAL 13
(4,7% das 274 dioceses do
Brasil)
11
(5,07%
das 10.720
paróquias
do Brasil)
15,6
64,6
22,4
CEBs/Peq.
Comum. por
Paróquia
Média
nacional
Média
nacional
Igreja “com CEBs” praticamente existe em todo o país. Elas proliferam, tornando-se pontos vitais de participação, de compromisso, de
vida comunitária e de escuta da Palavra. Se quisermos pensar rede de
comunidades, então não basta que a paróquia, a diocese, “tenha CEBs”,
mas que as pensemos em outro esquema de estrutura eclesial, com outras
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A paróquia e um conceito “forte” de comunidade
estruturas de mediação decisória e de atuação. Precisamos distinguir entre
“Igreja com CEBs” e “Igreja de CEBs” (rede de comunidades).
Em vez de elas se entenderem a partir do centro – matriz ou catedral
–, elas se concebem como conjunto de comunidades entre si ligadas (horizontalidade rizomática) e dessa conexão emerge a ideia de paróquia ou
diocese. Ambas não precedem as comunidades, mas o contrário. Primeiro
estão as comunidades, que só se compreendem em relação de serviço,
de oferta e demanda em relação às outras. E a ideia de diocese ou paróquia surge desse tecido de comunidades. As informações circulam pelas
comunidades livremente, e desde daí elas decidem as ações, levando em
consideração as outras comunidades na dupla atitude de quem oferece e
recebe conforme a sua própria possibilidade e necessidade. Dessa forma,
poderíamos falar de uma “Igreja de CEBs”.
Se quisermos mudanças de fato, devemos descentralizar a experiência de fé em muitas de nossas comunidades paroquiais:
a) Todas as comunidades devem ser estimuladas a dar prioridade à
Palavra, para que esta possibilite o despertar e a educação da fé;
b) Descentralizar a celebração dos sacramentos, desde o batismo,
passando pelo matrimônio, até a eucaristia, quando possível.
Uma comunidade não é mini-matriz, mas tem direito a todos
os serviços da fé e caridade;
c) Que as comunidades mesmas administrem suas próprias finanças;
d) Os conselhos, econômico e pastoral, são os grandes meios de
representação, de participação e de corresponsabilidade dentro
das comunidades e no conjunto da paróquia;
e) Neste processo de descentralização, muda a posição do pároco.
Como o bispo tem o seu presbitério e o conselho presbiteral, o
pároco deve ter sua equipe de pastoral que o ajude a pensar e
a aprofundar a missão da Igreja, e com eles partilhar a missão
de articulador das comunidades.
Ouso, neste momento, fazer uma proposta para encerrar este texto:
que a paróquia se transforme em área geográfica ou jurídica de pequenas
comunidades eclesiais (CEBs). Considerem-se como “células vivas” da
Igreja estas comunidades de discípulos-missionários, as comunidades de
base, as comunidades geradas pela Palavra (com autonomia suficiente
para serem base da Igreja). Coordenadas por leigos e leigas ou por diáconos permanentes, quando existirem, cada conjunto de comunidades
62
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
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Sérgio Ricardo Coutinho
se articula dinamicamente, e de forma própria, dentro de uma paróquia,
tendo um presbítero como animador e articulador. Talvez isso concretize
a proposta de Aparecida para que a paróquia seja, de fato, “uma rede de
comunidades e grupos, capaz de se articular, conseguindo que os participantes se sintam realmente discípulos e missionários de Jesus Cristo
em comunhão” (DA 172).
Em que tipo de rede gostaríamos que as Paróquias se transformassem: naquela que maximiza os interesses dos indivíduos que privilegiam
suas redes pessoais (comunidades virtuais), ou naquela que maximiza
valores e objetivos compartilhados por meio do debate e das tensões
provenientes do “mundo da vida” (comunidades reais)?
O que marca uma rede são os seus “laços” e não os “pontos fixos”.
Endereço do Autor:
SKN 212 Bl. A. Ap 114
Asa Norte
70864-010 Brasília, DF
Encontros Teológicos nº 65
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Diálogo inter-religioso
Conferência do rabino JOSEPH A. EDELHEIT
No dia 3 de outubro, à tarde, no auditório da FACASC, tivemos
a oportunidade de ouvir o rabino húngaro-americano Joseph Edelheit,
professor de Ciências da Religião na Universidade estatal de Saint Cloud,
Minnesota, Estados Unidos. Ele estava em Florianópolis dando uma série
de conferências na Universidade Federal de Santa Catarina. Ele começou
citando Martin Buber, o pensador judeu famoso pela criação da filosofia
do Diálogo, num texto que ressalta os valores do pluralismo:
“É obrigação de cada pessoa em Israel saber e ter consciência de
que ele é único no mundo com sua característica particular, e que nunca
existiu alguém como ele no mundo, pois nesse caso não haveria necessidade de ele estar no mundo. Cada indivíduo é algo novo no mundo, e
é chamado a cumprir esta sua particularidade neste planeta. Exatamente
porque isto não está sendo feito, eis a razão por que a vinda do Messias é
adiada”. Por isso, a mais importante tarefa de cada um é a atualização de
suas únicas, não precedentes e nunca mais recorrentes potencialidades, e
não a repetição de alguma coisa que um outro, por maior que tenha sido,
já tenha realizado.
Todos os seres humanos têm acesso a Deus, mas cada um de modo diferente. A grande chance da humanidade está precisamente nessa diferença
entre as pessoas. E toda a inclusividade de Deus se manifesta precisamente
na infinita multiplicidade dos caminhos que levam até Ele.
Citou também Abraham Heschel, um dos mais profundos pensadores judeus do século passado, professor no Seminário rabínico de
Nova York, famoso pela sua tese doutoral sobre os profetas. Sintetizando
seu pensamento: O profeta é a voz emprestada à maioria silenciosa. O
profeta é a voz de um Deus irado, impaciente com a maldade humana. Ele
antes sacode, choca, perturba, do que consola. E lembra insistentemente
que “poucos são os culpados, mas todos somos responsáveis!” O profeta
visa antes de tudo sacudir a indiferença, a calosidade, a “casca grossa” da
consciência das pessoas. Assim, concretamente, os campos de extermínio
nazista não são culpa (só) dos alemães, mas da indiferença da humanidade...
Concluindo: Deus nos chama a servir, não a julgar os outros. (N.B.P.)
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Resumo: O conceito de paróquia tem significado canônico, teológico e pastoral,
indicando uma comunidade formada por uma porção dos fiéis que buscam viver
conjuntamente a fé cristã, e se organizam orientados por um pároco o qual tem
a responsabilidade de lhes orientar na vida cristã e eclesial. O Documento de
Aparecida propõe a paróquia como “comunidade de comunidades”, “células
vivas”, lugar privilegiado da vida cristã e eclesial. Isso exige repensar não apenas
a paróquia, mas a Igreja que nela se manifesta.
Abstract: The meaning of the word “parish” contains distinctions in various
contexts, such as canonical, theological, and pastoral, applied to a determinate
number of followers of the Catholic religion. A creative use of this term focuses
on the endeavor to create an interfaith exchange of experience and religious
rites under the directives of a pastor, appointed by the bishop, who is in charge
of the organization and leadership in the style of life and ministry of the faith
community. The Document of Aparecida privileged the parish as a “community of
communities” supplemented by “living cells” in terms of relationship, participation,
and responsibility of the parishioners in Church activities.
Formação cristã na comunidade
paroquial
Pe. José de Lima*
*
Diocese de Cornélio Procópio – Paraná. Assessor Diocesano da Animação Bíblica
da Catequese.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013, p. 65-78.
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Formação cristã na comunidade paroquial
1 Definição do termo paróquia
Para o termo paróquia e para o assunto que será abordado neste
artigo, é importante recordar, num primeiro momento, que “paróquia”
segundo o Código de Direito Canônico “é uma certa comunidade de
fiéis, constituída estavelmente na Igreja particular, cuja cura pastoral,
sob a autoridade do Bispo diocesano, está confiada ao pároco, como
seu pastor próprio”1.
Em segundo lugar, quando se fala em paróquia ou comunidade
paroquial, está se referindo a ela como um todo, ou seja, não somente nas
pessoas que vivem em torno do centro aonde se localiza a Igreja matriz,
mas, seguindo a afirmação pastoral do Documento de Aparecida: “a paróquia é comunidade de comunidades, nas quais vivem e se formam os
discípulos missionários de Jesus Cristo [...]. São células vivas da Igreja
e o lugar privilegiado no qual a maioria dos fiéis tem uma experiência
concreta de Cristo e de comunhão eclesial”2.
Por último, a paróquia, segundo as Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja do Brasil 2011 a 2015 é: a) Casa da Iniciação à Vida
Cristã; b) Lugar de animação bíblica da pastoral; c) Comunidade de
comunidades; d) Serviço da vida plena para todos.
Nesse sentido, “é dever próprio e grave, sobretudo dos pastores de
almas3, cuidar da catequese do povo cristão4, para que a fé dos fiéis, pela
instrução doutrinal e experiência da vida cristã, se torne viva, explícita e
operosa”5. “O pároco, em razão do ofício, tem obrigação de procurar a
formação ‘catequética’ dos adultos, dos jovens e das crianças”6.
66
1
CODIGO DE DIREITO CANONICO. Can. 517, 1§.
2
CELAM. Documento de Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do
Episcopado Latino-Americano e do Caribe: 13-31 de maio de 2007. Tradução de Luiz
Alexandre Solano Rossi. Brasília/São Paulo: CNBB/Paulus/Paulinas, 2007. Cap. V.
n. 170.
3
Entenda-se “pastores de almas” como os párocos. (Grifo meu)
4
Esse termo nos remete a toda a formação cristã de maneira geral. E quando aparecer
a palavra “catequese”, não se está referindo nesse artigo a um grupo específico de
evangelizadores, ou seja, os catequistas propriamente ditos, mas a todas as pessoas
e grupos: pastorais, movimentos e organismos, envolvidos no processo de formação
do povo de Deus na paróquia. (Grifo meu)
5
Ibid, Can. 773.
6
Ibid, Can. 776.
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José de Lima
2 A Igreja num mundo em mudança
Atualmente, porém, especialistas como Joel Portella Amado têm
afirmado que, como estamos num tempo de “mudança de época”, este
fato atinge os critérios de julgar, de ver e de compreender a vida. Afirma
que os valores que no passado eram importantes, foram colocados de
lado e outros valores que estavam adormecidos, retornaram para o centro
do atual cenário mundial.
Para ele, este contexto gera um novo perfil de crente, de relacionamento com a crença, com a fé, com a religião. Não há mais preocupação
com a distinção entre as três palavras: crença, fé e religião. Esse novo
crente, segundo Portella, é alguém que tem a preocupação mais voltada
para si, do que para a instituição; para a escolha do que para a tradição;
para a novidade, do que para a repetição; para a emotividade, do que
para a racionalidade. Nesse caso, aqueles mecanismos que antes eram
usados para transmitir a fé, já não têm a mesma força7. Para o autor, se
faz necessário refletir sobre duas questões, por meio das quais se contextualiza o que está acontecendo:
A primeira constatação nos leva a ultrapassar os limites da Igreja. O
fenômeno que estamos experimentando não é específico da Igreja Católica. No âmbito religioso, ele atinge também as Igrejas da Reforma,
notadamente as históricas, chegando até às demais religiões. Trata-se,
portanto, de um fenômeno de amplo alcance. A diferença está no modo
como ele atinge cada uma destas religiões e o modo como elas reagem.
A segunda observação alarga ainda mais o fenômeno, pois chama nossa atenção para o fato de que não se trata de algo específico desta ou
daquela região do planeta. A realidade sobre a qual estamos falando
diz respeito ao mundo todo, ainda que sob diversos graus de afetação. É
por isso que um dos termos mais usados para descrevê-lo é exatamente
globalização8.
“Ao ler o Documento de Aparecida, ele traz em seus números 37
a 44, o tema da globalização, mostrando que, além de ser uma realidade
geográfica, no sentido de que atinge praticamente todos os povos, é também existencial, pois abrange as diversas instâncias da vida de pessoas e
7
Cf. Vídeo da 3ª Semana Brasileira de catequese. Iniciação à Vida Cristã. Comissão
Episcopal para Animação Bíblico-catequética. Brasilia: Edições CNBB, 2010.
8
Texto do I Congresso Brasileiro de Animação Bíblica da Pastoral. Conferência Episcopal para Animação Bíblico-Catequética. Goiânia – GO, 8 a 11 de outubro de 2011.
pg 1. CD fornecido pelo Congresso.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
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Formação cristã na comunidade paroquial
povos”9. Somado ao que apresenta Joel Portella, esse assunto está dentro
da proposta de renovação da Igreja.
Ele se coloca dentro da preocupação missionária que perpassa hoje
toda a Igreja, preocupada com a descristianização galopante tanto em
países de antiga (Europa) como de nova cristandade (Brasil). Não é um
tema novo, mas um desdobramento do Diretório Nacional de Catequese
(2005), de Aparecida (2007): ‘uma Igreja em estado de missão’, da
Missão Continental (2008)... e tantos apelos atuais da Igreja.10
3 Por onde começar
O momento é de grande transcendência. É o tempo de Deus e
do anúncio do Evangelho, o tempo de Jesus, tempo da escuta de Deus,
tempo de profecia, tempo da descoberta de Deus como nos tempos primitivos. As pesquisas, portanto, fazem perceber uma grande debilidade
do cristianismo. Existe uma progressiva diminuição da prática religiosa
e da catequese das crianças e jovens.
Aumentam os batismos de adultos, antes quase inexistente. Nesse
sentido, quando se fala atualmente de formação cristã na paróquia, está-se
falando de gerar agentes que consigam assimilar todas essas complexas
mudanças que foram citadas, para poder, a partir delas, fazer o anúncio
do Evangelho, pois se sabe que:
A renovação da paróquia e das comunidades depende de agentes de
pastoral preparados para essa nova mentalidade. É necessário reforçar
uma clara e decidida opção pela formação de todos os membros das
comunidades. Trata-se de um itinerário que implica uma aprendizagem
gradual e requer caminhos diversificados que respeitem os processos
pessoais e os ritmos comunitários. Hoje, é indispensável a interação na
qual a pessoa não é apenas informada, mas aprende a formar-se junto
com os outros. Métodos, pedagogias interativas e participativas, precisam ser desenvolvidos entre as lideranças cristãs, para que promovam
a participação na comunidade. Essas metodologias devem considerar
especialmente a prática das comunidades e as experiências de vida das
9
10
68
Ibid, pg. 2.
Itaici (SP), Encontro Nacional do Clero, 08 de Fevereiro de 2010. Pe. Luiz Alves de
Lima, sdb – expositor.
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José de Lima
pessoas, formando a consciência sobre o valor da vida comunitária
para a fé cristã11.
Também é preciso saber que a formação do povo de Deus é sempre
uma “ação eclesial que brota de Jesus Cristo”12. Ela precisa vir depois da
fé em Cristo, porque formação é aquilo que vem depois. Antes é preciso
anunciar a Palavra, para que a pessoa se coloque em pé, no seguimento,
no discipulado, por isso “começa sempre a partir de Jesus Cristo”13,
“que introduz o ser humano na vida de comunhão com Deus e permite
a entrada na sua Igreja”14.
Mais do que, num primeiro momento, ou seja, o ensino de teorias,
normas, dogmas, doutrina, a fim de obter um possível resultado feliz
nas ações pastorais, por parte dos agentes, é preciso fazer o anúncio de
Cristo, porque, a fé não é óbvia:
Sucede não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação
com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com
a própria fé, considerando-a como um pressuposto óbvio da sua vida
diária. Ora, tal pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente
acaba até negado. Enquanto, no passado, era possível reconhecer um
tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos
conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece que não
é assim em grandes setores da sociedade, devido a uma profunda crise
de fé que atingiu muitas pessoas15.
“Na sua própria estrutura, o catecismo da Igreja Católica apresenta
o desenvolvimento da fé até chegar aos grandes temas da vida diária.
Repassando suas páginas, descobre-se que o que ali se apresenta não é
uma teoria, mas o encontro com uma Pessoa que vive na Igreja”16. Essa
Pessoa é Cristo. E Ele não é apenas um tema que se discute em reunião
11
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. 51ª Assembleia Geral da
CNBB. Comunidade de comunidades: uma nova paróquia. Aparecida-SP, 10 a 19 de
abril de 2013.
12
DOCUMENTOS DA CNBB. Diretrizes Gerais da ação evangelizadora da Igreja no
Brasil 2011-2015. Documento 94. São Paulo: Paulinas, 2011, n. 4.
13
Ibid, pg. 6.
14
BENTO XVI. A porta da fé (porta fidei). Carta Apostólica do Papa Bento XVI com a
qual se proclama o Ano da Fé. São Paulo: Paulus, 2011. n. 1.
15
Ibid, n. 2.
16
Ibid, n. 11
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Formação cristã na comunidade paroquial
de pastoral, em uma conferência, em seminários de teologia, mas Alguém
que deve ser anunciado como proposta de vida para o mundo.
Portanto, um projeto de formação paroquial deve começar com
o primeiro anúncio, o Kerigma, porque o caminho da fé se começa por
ele e depois virá o ensino da catequese, da doutrina. Sem o Kerigma, se
constrói a comunidade sobre a areia e quando surge o menor vento de
novas doutrinas, se cai no relativismo ou na idolatria.
O primeiro anúncio se faz, não se ensina, e ao fazê-lo, ele dever
estar impregnado de uma espiritualidade que vem da prática, dos momentos de vivência, partilha e celebrações na comunidade, nos pequenos grupos etc. Depois vem o conteúdo, mas há que saber que é como,
sem menosprezo, tratar de uma criança. O alimento não pode ser muito
sólido de início e tem que esperar o tempo que cada um precisa para
poder receber na boca, mastigar, engolir e, mais ainda, muitas vezes é
preciso dar um tempo suficiente para a pessoa digerir, ruminar, assimilar
a proposta, seja ela qual for.
4 Ação formativa planejada
Sabe-se que toda ação evangelizadora, portanto, demanda projetos
com seus objetivos gerais, específicos, e cronograma onde são colocados
os conteúdos, as pessoas envolvidas com os temas, o início, o meio, o
onde, o como e com quem fazer o cronograma etc. Esses são requisitos
mínimos e básicos e servem para inúmeras áreas do saber e do fazer.
Se houver desprezo ou não for levando em conta de maneira
séria, pode ter em mente que os resultados não serão os esperados. Os
fracassos e as frustrações chegarão logo, por não serem levadas em
conta coisas tão sérias.
Somado a isso, faz-se necessário refletir um pouco, ou relembrar, no entanto, as inúmeras vezes que aconteceram reuniões nas
paróquias, nos setores, nas dioceses, nos regionais. Quanta paciência,
amor, sabedoria, caridade, calma, habilidade, foi necessário por parte
dos organizadores, palestrantes, para com as pessoas em particular,
porque cada um é único, e deve dar a ele ou a ela um tratamento, acompanhamento personalizado, assim também com os grupos de maneira
geral com suas mais variadas questões, anseios, angústias, alegrias e
muitas vezes tristezas.
70
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José de Lima
Ao avaliar a ação evangelizadora concretizada naquele determinado período, anteriormente proposto para determinadas ações e, depois,
uma possível elaboração de projetos de evangelização futuros, os mais
variados grupos e pessoas que compõem as pastorais, movimentos e organismos, ao debaterem sobre o planejamento da ação evangelizadora da
Igreja, quase sempre pedem para que se tenha mais formação. De início,
não fica claro sobre quais conteúdos se deseja estudar, por onde começar,
mas sempre houve uma grande insistência com o tema.
São gritos, não anônimos, que surgem das bases. Estão, na verdade,
dizendo que há uma carência de conhecimento e que não será possível
levar adiante, de maneira eficaz, uma evangelização efetiva. Na verdade, o real interesse é que estejam melhor habilitados para o serviço do
anúncio do Evangelho.
Esse debate enriquecedor, com certeza lançou e continua lançando
luzes e fundamentos para a criação de escolas e núcleos de formação em
seus mais variados níveis, e continua ajudando na reflexão sobre como
deve ser pensado, formulado, formatado, reelaborado, reeditado um bom
projeto, seja ele para o nível básico, de aprofundamento, de graduação ou
pós-graduação. Esse anseio dos grupos citados é sentido por toda Igreja,
por todos os que lidam diariamente com as dificuldades de manter uma
comunidade viva e atuante, muitas vezes debilitada nos conhecimentos
básicos da fé, da religião, da Igreja, de Jesus Cristo.
5 A catequese de Iniciação à Vida Cristã
Sabe-se, portanto, que essa questão não é nenhuma novidade para
a Igreja, “perita em humanidade”, sobretudo no que diz respeito à necessidade de se conhecer melhor, para seguir melhor o Senhor. Seguindo
o Concílio Vaticano II, por exemplo, estamos convencidos de que: “A
eficácia do apostolado só é plena quando se conta com uma formação
diversificada e integral, [...] adaptada à capacidade e circunstância em que
vive cada um”17. “A doutrina cristã deve ser proposta de forma adaptada
às necessidades de hoje, respondendo às dificuldades e às principais
questões que angustiam e preocupam a humanidade”18.
17
Conc. Vat. II, Decreto Apostolicam actuositatem sobre o apostolado leigo. n. 28-29.
18
Conci. Vat. II, Decreto Christus Dominus sobre a função pastoral dos bispos e da
Igreja. n. 13.
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Formação cristã na comunidade paroquial
Sejam vigilantes no que diz respeito à instituição catequética, que visa,
pela ilustração da doutrina, tornar viva, explícita e atuante a fé entre os
seres humanos. Que ela seja ministrada cuidadosamente às crianças e
aos adolescentes, como também aos jovens e adultos. Observe-se sempre
o método mais apropriado, dentro da ordem ditada menos pela conveniência da matéria do que pela índole, capacidade, idade e condição de
vida dos ouvintes, sempre com base na Sagrada Escritura, na Tradição,
na liturgia, no magistério e na vida da Igreja. Procurem fazer com que
os catequistas sejam bem preparados para a sua função, conhecendo
plenamente a doutrina da Igreja, a psicologia, a pedagogia, tanto prática
como teoricamente. Reestabeleçam também, na forma mais apropriada,
a instituição dos catecúmenos adultos19.
Ao ler o Concílio Vaticano II, (GS, 64; SC, 65), se tem a impressão de que a reflexão catequética e a realidade eclesial vivida fez com
que a Igreja olhasse para o passado para entender como as comunidades
cristãs primitivas iniciavam aqueles que poderiam tomar parte dentro da
própria comunidade. Nesse sentido, a Iniciação à Vida Cristã deve ser
entendida como um processo pelo qual as pessoas são introduzidas, pelo
desígnio salvador do Pai, ao mistério pascal do Filho, de tal forma que,
gerados com filhos de Deus e cheios do Espírito Santo, se identificam
progressivamente com Cristo.
Isso significa que, aquilo que hoje tradicionalmente denominamos
“catequese”, deve ser conduzido conforme o processo de iniciação, que
é muito mais exigente e comprometedor, e não apenas “preparar para
os sacramentos”, os quais infelizmente, em nossa realidade, tornam-se
frequentemente “sacramentos de finalização” ou seja, são os últimos
contatos que, muitas vezes, jovens e crianças têm com a Igreja (a crisma
muitas vezes se degenera em “sacramento do adeus”!).20
6 O caminho da Iniciação à Vida Cristã
Esse tema é de grande atualidade, porque a realidade pastoral está
exigindo uma profunda renovação. O interlocutor que temos atualmente,
os catequistas, sem dúvida são um novo sujeito, também novo é o contexto cultural em que vive a Igreja. É por isso que se faz necessário planejar
72
19
Ibid, 14.
20
Itaici (SP), Encontro Nacional do Clero, 08 de Fevereiro de 2010. Pe. Luiz Alves de
Lima, sdb – expositor.
Encontros Teológicos nº 65
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José de Lima
uma renovação da catequese a partir desta perspectiva. A fé não é alheia
a este tempo de crise na transmissão de todo tipo de valores. Portando,
vamos analisar a partir de diferentes perspectivas o que implica falar de
Iniciação à Vida Cristã.
O tema da Iniciação à Vida Cristã sem dúvida reveste-se de uma
extraordinária importância para a atualidade, porque ele está relacionado
com o começo da vida cristã e se refere àquilo que se pode chamar de
“tarefa central de toda a Igreja”21, a de “fazer cristãos”22.
Olhando para os primeiros tempos, esse tema traz luzes para a
revisão da atual realidade pastoral, e inspira para descobertas de novos
caminhos. Não se trata de repetir modelos anacronicamente, senão de
beber da mística que animava aqueles tempos, para recriar a catequese
atual dando um novo significado à prática cotidiana.
“A revisão e renovação da catequese inicial é uma convicção
geral que surge, tanto da nova eclesiologia proposta a partir do Concílio
Vaticano II, como da necessidade de uma consequente pastoral orgânica,
junto à realidade social e cultural atual, profundamente desafiante”23.
Vive-se uma mudança de época, com profundas transformações, culturais,
sociais, familiares etc. Nesse sentido, para uma nova proposta pastoral,
se faz necessário urgente reajuste a esta nova realidade. Deve-se olhar
com muito realismo e sinceridade a atual situação.
São muitos os crentes que não participam da Eucaristia dominical, nem
recebem com regularidade os sacramentos, nem se inserem ativamente
na comunidade eclesial [...]. Esse fenômeno nos interpela profundamente
a imaginar e organizar novas formas de participação comunitária e de
compromisso cidadão. Temos uma alta porcentagem de católicos sem
consciência de sua missão de ser sal da terra e fermento no mundo.
Esses têm uma identidade cristã fraca e vulnerável [...]. Por isso, o
grande desafio hoje é a Iniciação à Vida Cristã [...]. Nesta sociedade e
cultura em que se vive, sobretudo tendo em conta a descrição que traz o
21
CONSTITUIÇÃO LUMEN GENTIUM. In: KLOPPENBURG, B. (org) Compêndio do Vaticano II: Constituições, decretos e declarações. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. n. 8.
22
Cf. ALMEIDA, J. Antonio. ABC da Iniciação Cristã. São Paulo: Paulinas, 2010. pg.
23
Cf. Comissão Episcopal de catequese e pastoral Bíblica da Argentina. Isca. Módulo
0. El “Hoy” de la Iniciación Cristinana. pg. 3.
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Formação cristã na comunidade paroquial
Documento de Aparecida quando diz que, em muitas partes, a Iniciação
à Vida Cristã tem sido pobre e fragmentada”24.
Diante desse desafio, a realidade da catequese nos questiona sobre
a necessidade de uma profunda renovação, para que se tenha uma verdadeira catequese de Iniciação à Vida Cristã, a qual, além de mostrar o
quê, “dê elementos para o quem, o como e o onde se realiza”25.
7 Um olhar para nossa realidade pastoral. O sujeito
da IVC26, suas motivações e as motivações da
Igreja para com ele
O Documento de Aparecida nos diz que, quando falamos de IVC,
sempre se ouvem vozes em nossas comunidades que diagnosticam o
seguinte:
• Falta de compromisso e perseverança dos batizados. Onde
estão eles?
• Uma identidade cristã frágil ou fraca. Essas pessoas se dizem
católicas?
• Falta de consciência da missão. Não teríamos que ser sal e
fermento na massa?
Portanto, como comunidade eclesial, o Documento de Aparecida
nos convida a revisar:
• Como estamos educando na fé.
• Como estamos alimentamos a vivência cristã.
Devemos voltar com fervor aos primeiros tempos da Igreja, para
dar testemunho de nosso encontro vital com Jesus Cristo...
• Convidar outros e acompanhá-los em seu encontro com Jesus
Cristo. Que sejam “discípulos”.
74
24
CELAM. Documento de Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do
Episcopado Latino-Americano e do Caribe: 13-31 de maio de 2007. Tradução de
Luiz Alexandre Solano Rossi. Brasília/São Paulo: CNBB/Paulus/Paulinas, 2007. n.
286-287.
25
CNBB. Iniciação à Vida Cristã: um processo de inspiração catecumenal. Brasília:
Edições CNBB, 2009. Estudos da CNBB 97.
26
Daqui para frente, aonde se ler IVC, entende-se Iniciação à Vida Cristã.
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José de Lima
• Compartilhar com eles o caminho da fé para que sigam a
Cristo. Que sejam “missionários”.
É necessário buscar com criatividade um modelo operativo de IVC
que ajude a repensar e dar um significado novo para...
•
•
•
•
O que?
Para quem?
O como?
Onde se realiza a IVC.
8 Perda da centralidade do Mistério Pascal na
liturgia e da prática sacramental
Não é nova a questão de que se perdeu a prática sacramental. Há
muito tempo se fala de que é preciso resgatar o domingo como “dia do
Senhor”, como afirma a Verbum Domini e Aparecida. É sabido que uma
autêntica espiritualidade de comunhão nasce da Eucaristia. Ela preenche,
com ampla plenitude, os anseios de unidade fraterna que abriga o coração
humano. Não é casual que o termo “comunhão”, foi transformado em
um dos nomes específicos deste sublime sacramento.
Do mesmo modo, esta atitude do coração alimenta-se na escuta
constante da Palavra de Deus como afirma a Verbum Domini, na liturgia
dominical, na celebração gozosa do sacramento da penitência, na oração
pessoal e na vida comunitária com todas as suas exigências.
Muitos não participam na vida das comunidades cristãs, debilitando-se seu sentido de pertença e seu crescimento na fé. Diante dessa
realidade espiritual, cada vez mais acentuada, há que se colocar um
particular empenho para que, mediante um vigoroso anúncio do Evangelho, nenhum batizado fique sem completar sua Iniciação à Vida Cristã,
facilitando a preparação e o acesso aos sacramentos da Confirmação,
Reconciliação e Eucaristia.
Com suave, porém, firme, persuasão pastoral, a Igreja convida
a todos para participarem de uma vida cristã que se distingue pela arte
da oração, pelo olhar de quem quer alcançar a plenitude da participação
eucarística, sobretudo na celebração dominical. Se a comunidade estiver
comprometida com a renovação da catequese que hoje se chama Iniciação à Vida Cristã, terá como fruto um resurgimento de tudo o que foi
dito acima, uma vez que o encontro com o Senhor desperta verdadeira
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Formação cristã na comunidade paroquial
fome, sendo que só Ele é capaz de ser o alimento verdadeiro que é distribuído entre os irmãos e irmãs que partilham da mesma fé, membros
de Sua família.
9 Conceito chave: cristocentrismo trinitário nos
sacramentos
A Iniciação à Vida Cristã é um caminho progressivo de identificação com Cristo que tem seu começo quando o catecúmeno é marcado
com a Cruz do Senhor e alcança seu momento culminante quando se faz
um com Ele participando sacramentalmente do seu Mistério Pascal.
Neste caminho de configuração com Cristo, o Batismo submerge a
pessoa na vida de filhos no Filho. A Confirmação, pelo Dom do Espírito
Santo, configura os cristãos mais perfeitamente com Cristo e fortalece a sua
vida. E, pela Eucaristia, o cristão se identifica plenamente com o Senhor.
Participando de seu sacrifício, os membros da comunidade se
oferecem com Cristo ao Pai e, comendo o Corpo e o Sangue do Filho,
desfrutam da antecipação salvífica do banquete celeste. Cada um dos
sacramentos da Iniciação à Vida Cristã expressa um progressivo aprofundamento no Mistério de Cristo.
Cada sacramento prepara a pessoa para o que vem depois, para
o outro sacramento que virá, realizando no cristão o que se realizou em
Jesus Cristo. Sendo assim, pode-se dizer que a IVC, supõe uma sequência
ritual, que expressa sacramentalmente uma progressiva participação na
graça de Deus. Porque os fiéis, renascidos no Batismo, se fortalecem
com o Sacramento da Confirmação e são alimentados pela Eucaristia
[...], assim recebendo, cada vez mais, com mais abundância, os tesouros
da vida divina e avançando para a perfeição da caridade.
Nesse sentido, é preciso aprofundar uma autêntica teologia deste
Grande Sacramento, por isso é necessário contemplar a intrínseca relação entre a IVC e o acontecimento pascal e considerar seu significado
trinitário27. Considerar a IVC como acontecimento trinitário significa
compreendê-la como ação de Deus Trindade, o que implica a conversão ao Deus trinitário e procura a inserção plena – se bem que sujeita
27
76
CELAM. Documento de Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do
Episcopado Latino-Americano e do Caribe: 13-31 de maio de 2007. Tradução de Luiz
Alexandre Solano Rossi. Brasília/São Paulo: CNBB/Paulus/Paulinas, 2007. n. 6.1.
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José de Lima
à tensão escatológica, do “já, porém, ainda não” – na vida trinitária de
Deus. Portanto, para planejar uma renovação da catequese com a chave
da IVC, implica assumir radicalmente os conceitos já colocados no Diretório Geral de Catequese:
Jesus revela o Espírito Santo que, com o Pai, Ele envia à sua Igreja. O
Espírito nos une a Jesus Cristo, formando um único Corpo, a Igreja,
Povo santo de Deus. Jesus de Nazaré, Filho Unigênito do Pai, e de Maria
sempre Virgem, é a Palavra encarnada do Pai: Palavra única e definitiva que fala ao mundo em todas as línguas, com o seu Espírito, no seu
Corpo eclesial e católico (cf. Ap 2,11). Particularmente na Confirmação,
a catequese aprofunda mais a presença e a ação do Espírito com seus
dons e carismas e seu impulso para a missão. O mistério da Santíssima
Trindade, revelado por Jesus, é o centro da fé e da vida cristã. O Deus
revelado em Jesus Cristo é um Deus-Comunhão. Esse Deus-Comunhão
de Pai, Filho e Espírito Santo é a inspiração da comunhão que somos
chamados a viver. É isso que significa ser “criado à imagem e semelhança
de Deus”. Essa comunhão deve estar refletida nas relações pessoais, na
convivência social e em todas as dimensões da vida, inclusive econômica, social e política, fazendo-nos irmãos, filhos do mesmo Pai (cf. CR
201-202; cf. P 211-219). Jesus nos ensina que a vida trinitária é a fonte
e meta da nossa vida e, portanto, também da catequese.28.
A Palavra de Deus, encarnada em Jesus de Nazaré, Filho de
Maria virgem, é a Palavra do Pai, que fala ao mundo por meio de seu
Espírito. Jesus remete-se constantemente ao Pai. Ele é conhecido como
Filho Único e ungido pelo Espírito Santo. Ele é o caminho que leva ao
mistério íntimo de Deus. O Cristocentrismo da catequese, em virtude de
sua própria dinâmica interna, conduz à confissão da fé em Deus: O Pai
e o Filho e o Espírito Santo.
É um cristocentrismo essencialmente trinitário. Os cristãos, pelo
Batismo, são configurados com Cristo, a segunda pessoa da Santíssima
Trindade, e esta configuração situa os batizados como filhos no Filho
em comunhão com o Pai e com o Espírito Santo. Por isso, a sua fé é
radicalmente trinitária. O Mistério da Santíssima Trindade é o mistério
central da fé e da vida cristã.
O cristocentrismo trinitário da mensagem evangélica impulsiona
a catequese a cuidar, entre outras coisas, dos seguintes aspectos:
28
Diretório Geral de Catequese 99-100.
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Formação cristã na comunidade paroquial
• A estrutura interna da catequese, em qualquer modalidade de
apresentação, será sempre cristocêntrica-trinitária: por Cristo
ao Pai e no Espírito. Uma catequese que omitir uma dessas
dimensões e desconhecer sua orgânica união, correria o risco
de trair a originalidade da mensagem cristã.
• Seguindo a mesma pedagogia de Jesus, em sua revelação do
Pai, de si mesmo como Filho e do Espírito Santo, a catequese
mostrará a vida íntima de Deus, a partir de suas obras salvíficas
em favor da humanidade. As obras de Deus revelam quem é
Ele em si mesmo e, o mistério de seu ser íntimo ilumina a inteligência de todas suas obras. Sucede assim, analogicamente,
nas relações humanas: as pessoas se revelam por suas obras e,
à medida que as conhecemos melhor, compreendemos melhor
sua conduta.
• A apresentação do ser íntimo de Deus, revelado por Jesus,
uno na essência e trino nas pessoas, mostrará as implicações
vitais para a vida dos seres humanos. Confessar a um Deus
único, significa que o homem não deve submeter sua liberdade pessoal, de modo absoluto, a nenhum poder terreno.
Significa também, que a humanidade, à imagem de um Deus
que é comunhão de pessoas, está chamada a ser uma sociedade fraterna, composta por filhos de um mesmo Pai, iguais
em dignidade pessoal. As implicações humanas e sociais da
concepção cristã de Deus são imensas. A Igreja, ao professar
sua fé na Santíssima Trindade e anunciá-la ao mundo, se compreende a si mesma como uma multidão de pessoas reunidas
pela unidade do Pai, e do Filho e do Espírito Santo.
E-mail do Autor:
[email protected]
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Resumo: Num momento em que a CNBB faz uma Assembleia e todo um mutirão
para elaborar um Documento sobre: “Comunidade de comunidades: uma nova
Paróquia”, o autor apresenta uma pesquisa sobre “O Cristão Leigo e a Paróquia”,
em que busca nos textos e no espírito do Concilio Ecumênico Vaticano II e nos
seus desdobramentos nas Conferências do CELAM, nos Sínodos Mundiais e
nos Documentos da CNBB, bem como na caminhada do Conselho Nacional
do Laicato do Brasil – CNLB e em sua experiência como Cristão Leigo, discípulo missionário na Igreja e no mundo, a fundamentação sobre a identidade,
a vocação, a espiritualidade e a missão dos Cristãos Leigos e Leigas e o seu
“protagonismo” na “conversão pastoral” e conseqüente renovação da Paróquia.
Para facilitar a leitura e a compreensão, optou por transcrever no texto as citações
dos referidos Documentos sem, é claro, a pretensão de ter esgotado o assunto
que, certamente, permanece aberto para críticas e complementações.
Abstract: At a precise moment when CNBB gathers in assembly in order to
produce a document on “The Parish as a community of communities” the author
presents the results of his research beginning with the initial outlay dealing with
“The Christian Layman and the Parish” in which he gathers relevant texts and
inspiration from the Vatican Council II as well as the aftermath in the documents
of the Conferences of CELAM, in the world Synods of bishops, in the documents
of CNBB, in the national Council of the Laity of Brazil (CNLB). Included as well
are his value judgments and assumptions, his personal commitment as a missionary, his thoughts and convictions regarding identity, vocation, spirituality, and
the mission of Christian laymen and Lay women pertaining to their leadership
and pastoral conversion aiming at the renovation of the parish. So as to facilitate
the assimilation of the content of the texts the author chose to transcribe the
quotations of relevant documents without claiming to be all inclusive and widely
extensive, thus leaving space for detailed suggestions und further remarks.
O cristão leigo e a paróquia
Laudelino Augusto dos Santos Azevedo*
*
O autor nasceu em Caxambu, MG, aos 13 de setembro de 1954, de uma família
cristã participante da Ação Católica. Há 40 anos mora e trabalha em Itajubá, também
no Sul de Minas. É professor de Ensino Médio, foi vereador, deputado estadual e
vice-prefeito, é agente de pastoral desde a juventude e assessor de formação para a
missão. Atualmente, é o vice-presidente do Conselho Nacional do Laicato do Brasil
– CNLB, do qual já foi presidente e secretário. Como sempre gosta de se apresentar,
é cristão leigo, membro da comunidade eclesial de Santa Isabel, na periferia da Paróquia de São José Operário, em Itajubá, na Arquidiocese de Pouso Alegre. É discípulo
missionário na Igreja e no mundo.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013, p. 79-97.
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O cristão leigo e a paróquia
Introdução
A celebração dos 50 anos da realização do Concílio Ecumênico
Vaticano II tem sido uma oportunidade privilegiada para retomarmos
não apenas os textos, é claro, mas, especialmente, o espírito conciliar, a
renovação ou, no dizer do Beato João XXIII, o “aggiornamento” da Igreja.
Vale lembrar as primeiras linhas da “Introdução Geral ao Compêndio do
Vaticano II”1, escritas pelo então Frei Boaventura Kloppenburg, OFM :
Sentir com a Igreja, no momento atual, significa sentir e sintonizar
com o Vaticano II. E para viver e amar este XXI Concílio Ecumênico é
necessário conhecê-lo em seus documentos, em sua intenção e em seu
espírito. Na Carta ao Congresso de Teologia pós-Conciliar, de 21-091966, escrevia Paulo VI: “A tarefa do Concílio Ecumênico não está
completamente terminada com a promulgação de seus documentos.
Esses, como o ensina a história dos Concílios, representam antes um
ponto de partida que um alvo atingido. É preciso ainda que toda a vida
da Igreja seja impregnada e renovada pelo vigor e pelo espírito do
Concílio, é preciso que as sementes de vida lançadas pelo Concílio no
campo que é a Igreja cheguem à plena maturidade. Ora, tudo isso não
poderá chegar a termo antes que o riquíssimo patrimônio legado pelo
Concílio à Igreja tenha sido aprofundado cuidadosa e diligentemente
pelo povo cristão, antes que este o conheça e realmente possua”. Aos
Bispos da Itália perguntava o mesmo Papa no dia 06-12-1965: “Findo
o Concílio, volta tudo ao que era antes? […] Aludimos ao modo de considerar a Igreja, modo que o Concílio cumulou tanto de pensamentos,
de temas teológicos, espirituais e práticos, de deveres e de confortos,
a ponto de exigir de nós um novo fervor, um novo amor, como que um
novo espírito”.
De lá para cá, nestes 50 anos, os Documentos dos Papas, os Sínodos Mundiais, as Conferências do CELAM, as Diretrizes Gerais e os
Documentos da CNBB, bem como os Planos Pastorais das Arquidioceses
e Dioceses, vêm procurando aplicar os ensinamentos do Concílio. Com
relação ao laicato, por exemplo, o Sínodo sobre os Cristãos Leigos, que
teve suas conclusões apresentadas na Exortação Apostólica “Christifideles Laici – Vocação e Missão dos Leigos na Igreja e no Mundo”, de
João Paulo II, afirma já na introdução :
1
80
Editora Vozes, 1968.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
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Laudelino Augusto dos Santos Azevedo
Nos nossos dias, a Igreja do Concílio Vaticano II, numa renovada efusão
do Espírito de Pentecostes, amadureceu uma consciência mais viva da
sua natureza missionária e ouviu de novo a voz do seu Senhor que a
envia ao mundo como “sacramento universal de salvação”. [...] De um
modo especial o Concílio, com o seu riquíssimo patrimônio doutrinal,
espiritual e pastoral, dedicou páginas maravilhosas à natureza, dignidade, espiritualidade, missão e responsabilidade dos fiéis leigos. [...]
Trilhando os caminhos do Concílio e abrindo-se à luz das experiências
pessoais e comunitárias de toda a Igreja, os Padres, enriquecidos por
sínodos precedentes, abordaram de forma específica e ampla o tema: a
vocação e a missão dos leigos na Igreja e no mundo. [...] Com efeito, o
desafio que os padres sinodais aceitaram foi o de indicar os caminhos
concretos para que a maravilhosa “teoria” sobre o laicato, expressa pelo
Concílio, possa converter-se numa autêntica “praxe” eclesial.
A Igreja no Brasil, para citar outro exemplo, ainda durante o
Concílio, incentivada por João XXIII, elaborou o seu Plano Pastoral de
Conjunto, dentro já do “espírito conciliar”, contemplando uma eclesiologia de comunhão e participação, Igreja Povo de Deus, que viria a ser
confirmada e incentivada pelos documentos aprovados. As duas primeiras
“Campanhas da Fraternidade”, ainda antes da conclusão do Vaticano II,
demonstram este empenho da Igreja no Brasil: em 1964, “Lembre-se:
você também é Igreja!” e, em 1965: “Faça de sua Paróquia uma Comunidade de Fé, Culto e Amor”.
Apesar das preocupações da Conferência de Aparecida : “Lamentamos, seja algumas tentativas de voltar a um certo tipo de eclesiologia
e espiritualidade contrárias à renovação do Concílio Vaticano II, seja
algumas leituras e aplicações reducionistas da renovação conciliar” (DAp
100b) e o fato de que “há Paróquias que não assumiram a renovação
proposta pelo Concílio Vaticano II ...”2, podemos afirmar que o Concilio
Ecumênico Vaticano II foi e vem sendo acolhido e colocado em prática
no Brasil. O próprio Papa Francisco, em sua recente visita ao nosso país,
falando ao episcopado brasileiro, destacou: “A Igreja no Brasil recebeu e
aplicou com originalidade o Concílio Vaticano II; e o percurso realizado,
embora tenha sido de superar determinadas doenças infantis, levou a uma
Igreja gradualmente mais madura, aberta, generosa, missionária.”
2
Estudos CNBB 104, 91.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
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O cristão leigo e a paróquia
Na Igreja e no mundo
Recebi a incumbência de escrever sobre “O Cristão Leigo e a
Paróquia”, certamente motivado pela oportunidade que estamos vivendo
de que a CNBB, trilhando os caminhos do Concílio, atendendo uma disposição de Aparecida, após realizar uma Assembléia Geral com o tema
central: “Comunidade de Comunidades: uma Nova Paróquia”, está em
processo de elaboração de um documento sobre este tema, contando com
a participação de todos os segmentos do Corpo Eclesial3.
De início, é preciso ficar bem claro que a missão da Igreja: Corpo
Místico de Cristo, presente e atuante na História como Povo de Deus
peregrino, é missão de todos os seus membros. A missão evangelizadora
da Igreja é realizada por todo o povo de Deus, com sua variedade de vocações e ministérios – ministros ordenados, consagrados e consagradas,
leigos e leigas – que se harmonizam, sem confundir-se, na realização da
tarefa comum”.4
Partimos, portanto, desta consciência de que nós, cristãos leigos e
leigas, vivenciamos nossa identidade, vocação, espiritualidade e missão
tanto na Igreja como no mundo. “O Concílio, por sua vez, está interessado
em descrever positivamente o leigo. Por isso, na seqüência vai afirmar –
partindo da ênfase sobre o Batismo – a sua “incorporação a Cristo”, a sua
“constituição no Povo de Deus”, a sua participação na tríplice função de
Cristo. Esses elementos são comuns a todos os membros da Igreja; por
isso, ao afirmá-los, o Concílio acrescenta – sem ainda explicitá-los – dois
elementos de caráter distintivo: “a seu modo”, quanto à participação na
tríplice função, e “pela sua parte”, quanto ao exercício da missão comum.
Não deve passar despercebida a afirmação de que o leigo exerce, pela
sua parte, a missão do povo cristão “na Igreja e no mundo”. O Concílio
supera, desta maneira, a repartição “a Igreja aos clérigos” e o “mundo
aos leigos. Isto é muito claro, pois a Igreja existe para o Reino de Deus e
o Reino está presente e se realiza no mundo, na História da humanidade.
Evidentemente, todos os cristãos – ordenados, consagrados e consagradas, leigos e leigas, são membros do Corpo/Igreja pelo Batismo e vivem
no mundo. A diferença está no modo de estar presente e atuante tanto na
Igreja como no mundo e na função, serviço, ministérios exercidos.
82
3
Documento 104: Estudos CNBB.
4
CNBB 62, 62.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
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Laudelino Augusto dos Santos Azevedo
A III Conferência do CELAM, em Puebla, no México, falando
sobre o cristão leigo, afirma: “A fidelidade e coerência com as riquezas
e exigências do seu ser lhe conferem a identidade de homem da Igreja
no coração do mundo e de homem do mundo no coração da Igreja” (DP
786). A V Conferência, em Aparecida, retoma esta citação (DAp 209),
que pode parecer equívoca, uma vez que também os cristãos ordenados,
religiosos e religiosas, são “homens e mulheres da Igreja no coração do
mundo e homens e mulheres do mundo no coração da Igreja”. Inclusive
o cristão bispo de Roma, o qual chamamos carinhosamente de Papa, é
coração da Igreja no mundo e do mundo na Igreja. A diferença, repito,
está no modo de estar presente e nos serviços que prestam. Com relação ao cristão leigo, Aparecida enfatiza: “A construção da cidadania,
no sentido mais amplo, e a construção da eclesialidade nos leigos, é
um só e único movimento”. (DAp 215). Ou seja, o cidadão ou cidadã,
consciente e ativo na sociedade, é o mesmo cristão ou cristã, consciente
e ativo no Corpo Eclesial.
Toda esta reflexão é para concluirmos que falar sobre “o Cristão
Leigo e a Paróquia” inclui, necessariamente, a vivência e atuação na Igreja
e no mundo. Não se pode restringir só “na Igreja” e nem muito menos só
“no mundo”, pois o leigo e a paróquia não são entidades isoladas uma da
outra. O cristão leigo é membro da paróquia como comunidade eclesial e
ambos são integrantes da comunidade humana, do mundo, ao qual devem
servir, testemunhar e nele instaurar o Reino de Deus.
Sem redução ao intra-eclesial
Na realidade que temos presenciado e constatado, o mais comum
tem sido reduzir a presença e atuação dos leigos e leigas ao “intraeclesial”, com pouca incidência na sociedade. Isto, tanto por parte da
hierarquia quanto de muitos leigos. Temos encontrado pessoas esgotadas de tantos trabalhos nas pastorais, movimentos, comunidades, com
uma agenda estafante, reduzidas exclusivamente a atividades no âmbito
eclesial, como, também, encontramos outros tantos que se esgotam em
atividades sociais e políticas e quase não participam mais de eventos e
nem mesmo de celebrações eclesiais. As duas situações são equivocadas, por isso nossa insistência. A propósito, vale recordar o item 90 do
Documento 62 da CNBB: “Missão e Ministérios dos Cristãos Leigos e
Leigas”, que aprofunda:
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O cristão leigo e a paróquia
Também a distinção entre ministérios “ad intra” e ministérios “ad extra”
merece uma reflexão mais aprofundada. Que, de um lado, existam funções
voltadas mais para a edificação e a manutenção da comunidade eclesial
e, de outro, funções marcadamente destinadas à atuação da Igreja na
sociedade, é um dado de fato. Aliás, salta à vista também que, nas atuais
circunstâncias, na maioria de nossas Igrejas Particulares, temos um
número muito maior de leigos e leigas engajados em tarefas catequéticas
e litúrgicas do que, por exemplo, nas pastorais sociais ou nas atividades
missionárias. A distinção entre ministérios “ad intra” e ministérios “ad
extra” baseia-se numa visão teológica que separa rigidamente e inadequadamente “Igreja” e “mundo” e, conseqüentemente, “vida” da Igreja
e “missão” da Igreja, “vida interna da Igreja” e “missão da Igreja no
mundo”. Na verdade, a expressão “missão da Igreja” ou “ministério da
Igreja” engloba num único dinamismo, embora complexo e articulado,
a vida interna da Igreja e sua atuação no mundo. Se entendermos que
a igreja é aquela porção da humanidade que professa, proclama, vive,
celebra e serve ao mistério da salvação que Deus opera no mundo e na
história, tudo na Igreja e todos na Igreja estão a serviço desse mesmo
desígnio de salvação e libertação.
Não é preciso ‘sair’ da Igreja para ‘ir’ ao mundo, como não é
preciso ‘sair’ do mundo para ‘entrar’ e ‘viver’ na Igreja. A palavra será
sempre palavra da Igreja-sacramento, serva da obra de salvação de Deus
na história e no mundo. A liturgia – que é ‘o cume para o qual tende a
ação da Igreja e a fonte de onde emana toda a sua força’ – cantará as
maravilhas que Deus opera nos seres humanos com todas as suas relações, mais ainda, na sua história e em todo o universo. O serviço não
será visto como a presença da Igreja no mundo através de alguns de seus
membros ou de seus organismos, mas a face mais concreta da missão da
Igreja no mundo. E estas três dimensões – palavra, liturgia, serviço – não
são elementos estanques e incomunicáveis, mas intimamente entretecidos na unidade do mesmo desígnio salvífico. Por isso, não é adequado
pensar a repartição das tarefas e ministérios, como se alguns devessem
dedicar-se exclusivamente à ‘vida interna’ da Igreja e outros se encarregassem da ‘presença no mundo’, reproduzindo, numa forma nova, o
velho esquema dos ‘dois gêneros de cristãos’. A compreensão da Igreja
como ‘sacramento de salvação’ exige a superação de um ‘ad intra’ (em
que a Igreja existiria e funcionaria em si e para si) e um ‘ad extra’ (em
que a Igreja ou parte dela agiria a serviço do mundo). Por isso, não há
ministérios para a vida interna da Igreja e ministérios para o exterior da
Igreja. Os ministérios são sempre ministérios na Igreja e para a Igreja,
84
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Laudelino Augusto dos Santos Azevedo
sempre Igreja sacramento de salvação e libertação do homem todo e de
todos os homens na única história da salvação”.
Que beleza, diria Santo Agostinho, tão antiga e tão nova! O “ser
cidadão” e o “ser cristão” num único e mesmo movimento, como também a Igreja no mundo na “única história da salvação”! É o “mistério
da Encarnação” que se atualiza, se faz história, que passa pela cruz, na
dinâmica pascal!
No concílio ecumênico Vaticano II
O Concílio Ecumênico Vaticano II, que foi o “Concílio da Igreja
Povo de Deus com ênfase no laicato”, afirma, no item 21 do Decreto
“Ad Gentes”, sobre “A Atividade Missionária da Igreja”: “ A Igreja não
se acha deveras consolidada, não vive plenamente, não é um perfeito
sinal de Cristo entre os homens, se aí não existe um laicato de verdadeira expressão que trabalhe com a hierarquia. Porque o Evangelho não
pode ser fixado na índole, na vida e no trabalho dum povo, sem a ativa
presença dos leigos. Por isso desde a fundação da Igreja, teve-se o máximo cuidado em constituir um laicato cristão maduro”. A Constituição
Dogmática “Lumen Gentium”, já havia ensinado que “O apostolado dos
leigos é participação na própria missão salvífica da Igreja. A este apostolado todos são destinados pelo próprio Senhor através do Batismo e
da Confirmação. Os sacramentos, principalmente a Sagrada Eucaristia,
comunicam e alimentam a caridade para com Deus e para com os seres
humanos, a alma de todo apostolado. Os leigos, porém, são especialmente
chamados para tornarem a Igreja presente e operosa naqueles lugares e
circunstâncias onde apenas através deles ela pode chegar como sal da
terra. Assim, todo leigo, em virtude dos próprios dons que lhe foram
conferidos, é ao mesmo tempo testemunha e instrumento vivo da própria
missão da Igreja ‘na medida do dom de Cristo’”. (LG 33).
Com relação aos cristãos leigos e a Paróquia, o Concílio, no Decreto “Apostolicam Actuositatem”, exorta: “A paróquia apresenta um
exemplo luminoso do apostolado comunitário, congregando num todo
as diversas diferenças humanas que encontra e inserindo-as na universalidade da Igreja. Habituem-se os leigos a trabalhar na paróquia, intimamente unidos aos seus sacerdotes, a trazer para a comunidade da Igreja
os problemas próprios e do mundo e as questões relativas à salvação dos
homens, para serem examinados e resolvidos por troca de consultas; a
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empenhar-se, na medida de suas forças, em auxiliar todas as iniciativas
apostólicas e missionárias da própria família eclesial.” (AA 10).
Nesta questão de “trazer para a Igreja os problemas próprios e do
mundo”, vale lembrar “Ad Gentes”, que continua: “Os fiéis leigos pertencem plenamente tanto ao Povo de Deus como à sociedade civil. Fazem
parte do povo que os viu nascer. Pela educação começaram a participar
de seus tesouros culturais. Ligam-se à sua vida por multiformes laços
sociais. Cooperam para o seu progresso, no exercício da profissão. Sentem como próprios os seus problemas e se esforçam por solucioná-los.
São também de Cristo porque foram regenerados na Igreja pela fé e pelo
Batismo para, em novidade de vida e obras, serem de Cristo. Assim, em
Cristo tudo será sujeito a Deus e afinal Deus será tudo em todas as coisas.
[...] Destarte a fé em Cristo e a vida da Igreja já não serão estranhas à
sociedade em que vivem, mas começarão a penetrá-la e a transformá-la.
Unam-se a seus concidadãos numa caridade sincera, para que em sua
vida se manifeste o novo vínculo de unidade e solidariedade universal,
haurido do mistério de Cristo. Propaguem também a fé de Cristo entre
aqueles a que os ligam as relações de vida e a profissão. Essa obrigação tanto mais se impõe quando muitos homens não podem a não ser
pelos leigos mais próximos ouvir o Evangelho e conhecer a Cristo. [...]
Respeitadas as atribuições e responsabilidades próprias dos pastores e
dos leigos, toda a Igreja nova preste um só testemunho vivo e firme de
Cristo, a fim de que ela se torne lúcido sinal da salvação que em Cristo
nos chegou” (AG 21).
A serviço do Reino
Com todas estas observações, ficamos mais à vontade para
falar da riqueza e da diversidade de ministérios e de serviços que os
cristãos exercem para a edificação do Corpo eclesial e para a revelação e crescimento do Reino de Deus no mundo. “Os leigos e leigas
contribuem para a edificação da comunidade eclesial, à qual prestam
muitos serviços ou ministérios com generosidade e competência”
(CNBB 62, 62). São milhões de catequistas, ministros extraordinários
da Comunhão Eucarística, ministros da Palavra, do canto e animação
litúrgica, animadores de comunidades, pastorais, movimentos apostólicos, associações laicais nascidas de carismas de congregações
religiosas, comunidades novas, funcionários das instituições eclesiais
que colaboram na manutenção da Igreja.
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O estudo, aprofundamento e elaboração de um documento sobre
“Comunidade de comunidades: uma nova Paróquia”, vem contribuir
decididamente para que sejamos uma Igreja Povo de Deus, presente e
atuante na história, revelando e construindo o Reino. “Para isto existe a
Igreja: para o Reino de Deus, que o Cristo glorificado, na força do Espírito, continua a realizar na história humana, onde a Igreja ‘vive entre as
criaturas que gemem e sofrem como que dores de parto até o presente, e
aguardam a manifestação dos filhos de Deus’. Existindo em si mesma,
mas não para si mesma – pois é sacramento, isto é, sinal e instrumento
de salvação e libertação – ‘as alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que
sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias
dos discípulos de Cristo’. Assim como o Filho do Homem ‘veio, não
para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos’, a
Igreja toda deve – cada vez mais – colocar-se ‘efetiva e concretamente a
serviço do Reino’ para que ‘todos tenham vida e vida em plenitude’”5.
No Sínodo Mundial sobre o Laicato
Já que este artigo visa refletir, embasar e aprofundar a relação do
cristão leigo com a paróquia, vamos retomar alguns outros textos em
documentos pós conciliares, que tratam deste assunto. Vinte anos após
o Concílio, em 1987, realizou-se o Sínodo Mundial sobre a “Vocação
e Missão dos Leigos na Igreja e no Mundo”. A Exortação Apostólica
“Christifideles Laici”, fruto deste Sínodo, trata, da mesma questão,
apontando a Paróquia como um dos espaços privilegiados de participação. No item 27, por exemplo, João Paulo II exorta sobre “o empenho
apostólico na paróquia” : “Necessário se torna agora considerar mais de
perto a comunhão e a participação dos fiéis leigos na vida da paróquia.
Neste sentido, deve chamar-se a atenção de todos os fiéis leigos, homens
e mulheres, para uma observação tão verdadeira, significativa e estimulante, feita pelo Concílio: ‘No seio das comunidades da Igreja – lemos
no Decreto sobre o apostolado dos leigos – a sua ação é tão necessária
que, sem ela, o próprio apostolado dos pastores não pode conseguir, na
maior parte das vezes, todo o seu efeito’. Esta é uma afirmação radical
que, evidentemente, deve ser vista à luz da ‘eclesiologia de comunhão’:
sendo diferentes e complementares, os ministérios e os carismas são
5
CNBB 62, 76.
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todos necessários para o crescimento da Igreja, cada um segundo a própria modalidade”. E, continua: “Os fiéis leigos devem convencer-se cada
vez mais do particular significado que tem o seu empenho apostólico
na sua paróquia. É ainda o Concílio que com autoridade o sublinha: ‘A
paróquia dá-nos um exemplo claro de apostolado comunitário porque
congrega numa unidade toda a diversidade humana que aí se encontra e
insere essa diversidade na universalidade da Igreja”. E, prossegue com
o texto de AA 10, já citado acima. A Exortação continua: “O acento
posto pelo Concílio na análise e na solução dos problemas pastorais
‘com o contributo de todos’ deve encontrar o seu progresso adequado
e estruturado na valorização cada vez mais convicta, ampla e decidida
dos Conselhos Pastorais Paroquiais, nos quais justamente insistiram os
padres sinodais”.
Vale acrescentar, neste caso, que em nossa experiência temos encontrado muitas paróquias com um Conselho Pastoral bem estruturado,
funcionando, com caráter não só consultivo mas deliberativo, o que faz
com que cresça a comunhão eclesial e a missão evangelizadora aconteça
mais eficazmente. Certamente, existem as que possuem o CPP apenas
para constar, com pessoas clericalizadas e que apenas dizem amém ao
que já vem decidido e, infelizmente, não são poucas as paróquias que
ainda não têm o Conselho funcionando.
O item 27 da CfL conclui com um belíssimo texto: “A paróquia,
sendo a Igreja colocada no meio das casas dos homens, vive e atua profundamente integrada na sociedade humana e intimamente solidária com
as suas aspirações e os seus dramas. Frequentemente, o contexto social,
sobretudo em certos países e ambientes, é violentamente sacudido por
forças de desagregação e de desumanização: o homem pode encontrar-se
perdido e desorientado, mas no seu coração permanece o desejo, cada
vez maior, de poder sentir e cultivar relações mais fraternas e humanas.
A resposta a este desejo pode ser dada pela paróquia, quando esta, graças
à participação viva dos fiéis leigos, se mantém coerente com a sua originária vocação e missão: ser no mundo ‘lugar’ da comunhão dos crentes
e, ao mesmo tempo, ‘sinal’ e ‘instrumento’ da vocação de todos para a
comunhão; numa palavra, ser a casa que se abre para todos e que está a
serviço de todos, ou, como gostava de dizer o Papa João XXIII, ‘a fonte
da aldeia’ a que todos acorrem na sua sede”.
Que beleza a nossa vocação e, ao mesmo tempo, que responsabilidade a nossa em ser a ‘fonte da aldeia’! Como Corpo Eclesial, pastores
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e fiéis se constituem numa Igreja que se torna resposta às necessidades
mais profundas dos seres humanos. As pessoas têm sede e buscam a fonte.
Não as encontrando, vão atrás das que se apresentam como tais. Outras
se refugiam nas drogas, na bebida, na devassidão, na violência. Ovelhas
que se perdem enquanto nos ocupamos com algumas poucas que nunca
saem do redil. Esta tem sido uma realidade freqüente que temos encontrado e que explica por que, no maior país católico do mundo, crescem
a violência, a corrupção, as contradições e as seitas, sem o conseqüente
compromisso cristão.
A Exortação Apostólica prossegue apresentando “formas de participação na vida da Igreja”: “Os fiéis leigos, juntamente com os sacerdotes,
os religiosos e as religiosas, formam o único povo de Deus e Corpo de
Cristo. Ser ‘membros’ da Igreja nada tira ao fato de cada cristão ser um
ser ‘único e irrepetível’; antes, garante e promove o sentido mais profundo da sua unicidade e irrepetibilidade, enquanto é fonte de verdade e
de riqueza para a Igreja inteira” (CfL 28). Fala, a partir daí, das formas
pessoais de participação, começando pelo testemunho de vida, “primeira
e insubstituível forma de evangelização” e das formas agregativas. O
Sínodo constatou “um notável impulso nos tempos modernos que têm
visto o nascer e o irradiar de múltiplas formas agregativas: associações,
grupos, comunidades, movimentos. Pode falar-se de uma nova era agregativa dos fiéis leigos” (CfL 29). De fato, é o que está acontecendo, com
o surgimento de centenas de associações laicais, movimentos apostólicos
e as chamadas novas comunidades ou comunidades novas, como alguns
já têm se expressado. “Antes de mais, é necessário reconhecer-se a liberdade associativa dos fiéis leigos na Igreja. Essa liberdade constitui um
verdadeiro e próprio direito que não deriva de uma espécie de ‘concessão’
da autoridade, mas que promana do Batismo, qual sacramento que chama
os fiéis leigos para participarem ativamente da comunhão e da missão
da Igreja” (CfL 29). O próprio Código de Direito Canônico reconhece:
“Os fiéis podem livremente fundar e dirigir associações para fins de
caridade ou de piedade, ou para fomentar a vocação cristã no mundo, e
reunir-se para alcançar em comum esses mesmos fins” (CDC 215). O
item 29 da Exortação Apostólica conclui declarando que “trata-se de
uma liberdade reconhecida e garantida pela autoridade eclesiástica e que
deve ser exercida sempre e só na comunhão da Igreja; nesse sentido, o
direito dos fiéis leigos em agregar-se é essencialmente relativo à vida de
comunhão e à missão da própria Igreja”. Com esta preocupação, João
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O cristão leigo e a paróquia
Paulo II apresenta, em seqüência, os “critérios de eclesialidade para as
agregações laicais” (Cf. CfL 30).
No Brasil, têm sido realizados encontros, reuniões e Seminários
com representantes, na maioria os próprios fundadores e fundadoras, de
comunidades novas e de associações laicais, com participação direta dos
mesmos e sob a coordenação da Comissão para o Laicato da CNBB e
do Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB.
Na relação do cristão leigo com a paróquia é de fundamental
importância considerar estas novas formas agregativas, pois, com o
enfraquecimento do velho modelo ou mesmo com a displicência de pastores e/ou leigos, que deixam a paróquia fria e sem entusiasmo, cria-se
o risco de fechamento ou mesmo de substituição do modelo por alguma
destas novas formas. Não é à toa que os mais recentes documentos da
Igreja sempre chamam a atenção para a necessidade de se observarem
os “critérios de eclesialidade” e de estarem de acordo com a pastoral
orgânica das paróquias e dioceses.
Esses textos apresentados até agora e outros que aprofundamos
no dia a dia, respaldados pela vivência e troca de experiências diárias,
vão nos convencendo cada vez mais de que a comunidade cristã, no caso
a paróquia, como espaço de vivência e partilha, deve ser, também, de
formação para a missão que se dá no mundo, nas malhas da sociedade. A
Christifideles Laici, a partir do nº 36, vai explicitar exatamente o “viver o
Evangelho servindo a pessoa e a sociedade”. “Neste contributo à família
dos homens, de que é responsável a Igreja inteira, cabe aos fiéis leigos
um lugar de relevo, em razão da sua ‘índole secular’, que os empenha,
com modalidades próprias e insubstituíveis, na animação cristã da ordem
temporal”. Daí, o documento vai explicitando: Promover a dignidade da
pessoa, defender o inviolável direito à vida: “Ora, se a todos pertencem
a missão e a responsabilidade de reconhecer a dignidade pessoal de cada
ser humano e de defender o seu direito à vida, certos fiéis leigos são a
isso chamados por um título particular: são os pais, os educadores, os
agentes de saúde e todos os que detêm o poder econômico e político. […]
Os fiéis leigos que, a qualquer título ou a qualquer nível, se empenham
na ciência e na técnica, bem como na esfera médica, social, legislativa e
econômica, devem corajosamente enfrentar os ‘desafios’ que lhes lançam
os novos problemas da bioética. Como disseram os padres sinodais, ‘os
cristãos devem exercer a sua responsabilidade como donos da ciência
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e da tecnologia, não como seus escravos’”. E, por aí vai, na família, no
mundo do trabalho, na política etc.
Em Santo Domingo
Em 1992, reuniu-se em Santo Domingo a IV conferência do CELAM, que também traz importantes considerações sobre o nosso tema.
Citamos apenas alguns itens: “A paróquia, comunidade de comunidades
e movimentos, acolhe as angústias e esperanças dos homens, anima
e orienta a comunhão, participação e missão. ‘Não é principalmente
uma estrutura, um território, um edifício, é a família de Deus, como
uma fraternidade animada pelo Espírito de unidade ...’ [...] A paróquia,
comunhão orgânica e missionária, é assim uma rede de comunidades.
Mas ainda é lento o processo de renovação da paróquia em seus agentes
de pastoral e na participação dos fiéis leigos” (DSD 58). “Hoje, como
sinal dos tempos, vemos um grande número de leigos comprometidos na
Igreja; exercem diversos ministérios, serviços e funções nas comunidades
eclesiais de base ou atividades nos movimentos eclesiais. Cresce sempre
mais a consciência de sua responsabilidade no mundo e na missão ‘ad
gentes’” (DSD 95).
Prosseguindo, o documento constata : “Comprova-se, porém, que
a maior parte dos batizados ainda não tomou plena consciência de sua
pertença à Igreja. Sentem-se católicos, mas não Igreja. […] Também se
comprova que os leigos nem sempre são adequadamente acompanhados
pelos Pastores na descoberta e amadurecimento da própria vocação. A
persistência de certa mentalidade clerical nos numerosos agentes de
pastoral, clérigos e inclusive leigos, a dedicação preferencial de muitos
leigos a tarefas intra-eclesiais e uma deficiente formação privam-nos de
dar respostas eficazes aos atuais desafios da sociedade” (DSD 96).
Neste ponto, vale muito lembrar as palavras do Papa Francisco
aos cristãos bispos do CELAM, em sua recente visita ao Brasil. Alertando quanto a “algumas tentações”, Francisco adverte: “O clericalismo
é também uma tentação muito atual na América Latina. Curiosamente,
na maioria dos casos, trata-se de uma cumplicidade pecadora: o pároco
o clericaliza, e o leigo lhe pede por favor que o clericalize, porque, no
fundo, lhe resulta mais cômodo. O fenômeno do clericalismo explica,
em grande parte, a falta de maturidade e de liberdade cristã em parte do
laicato da América Latina”.
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O cristão leigo e a paróquia
Nossos pastores já haviam assumido, em Santo Domingo (97),
como desafio, “que todos os leigos sejam protagonistas da nova evangelização, da promoção humana e da cultura cristã. É necessário a constante
promoção do laicato, livre de todo clericalismo e sem redução ao intraeclesial”. Foi nesta Conferência também que se incentivou a organização
do laicato: “Promover os conselhos de leigos, em plena comunhão com
os pastores e adequada autonomia, como lugares de encontro, diálogo e
serviço, que contribuam para o fortalecimento da unidade, da espiritualidade e da organização do laicato” (DSD 98).
No Documento 62
Para uma reflexão e aprofundamento sobre “o Cristão Leigo e
a Paróquia”, necessariamente temos que retomar o documento 62 da
CNBB: “Missão e Ministérios dos Cristãos Leigos e Leigas”. Começou
a ser escrito em 1997, passou pela Assembléia da CNBB em 1998,
transformou-se em documento de estudos (nº 77), foi para as bases,
comunidades, paróquias, dioceses, pastorais, movimentos, conselhos de
leigos, passou pela IV Assembléia Nacional dos Organismos do Povo
de Deus em outubro de 1998 e, finalmente, foi concluído e votado na
AGO da CNBB em 1999. Este histórico é importante para mostrar que
é resultado de ampla participação e tem o respaldo de experiências concretas. Aliás, o histórico começa mesmo na eclesiologia conciliar, passa
pelas Conferências do CELAM, pelo Sínodo Mundial sobre o Laicato,
ou seja, trata-se da “maravilhosa ‘teoria’ sobre o laicato, expressa pelo
Concílio”, como afirmou João Paulo II na introdução da Exortação
Apostólica “Christifideles Laici” e que deve “se converter numa autêntica
‘praxe’ eclesial”, conforme conclui o texto. Podemos, então, considerar que este documento está na linha do desdobramento do Concílio e
contempla avanços teóricos e práticos na caminhada da Igreja no Brasil.
Passados quase 15 anos de sua promulgação, já se faz necessário novo
aprofundamento, o que levou a CNBB a escolher o “laicato” como tema
prioritário para a próxima Assembléia Geral de 2014.
Passamos a fazer algumas citações e considerações a partir deste
documento, deixando como proposta que se retome a leitura e aprofundamento do texto por inteiro. Nossa ótica, neste artigo, se refere ao
tema “O Cristão Leigo e a Paróquia”. O próprio título do documento já
explicita que se trata da missão e ministérios de um “sujeito eclesial” –
o cristão leigo ou leiga, membro do Corpo que é a Igreja, cuja cabeça é
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o próprio Cristo. A insistência no substantivo “cristão” é para marcar a
“igualdade fundamental” de todos os membros da Igreja , a “condição
cristã comum a todos os batizados”. Assim, no Corpo Eclesial temos
os cristãos leigos e leigas, os cristãos consagrados e consagradas, os
cristãos religiosos e religiosas, os cristãos diáconos, os cristãos presbíteros e os cristãos bispos, incluindo o cristão bispo emérito de Roma
e o cristão bispo de Roma, que amamos tanto e chamamos de Papa. O
documento 62, inclusive, no item 96, afirma: “O leigo é, antes de tudo, o
‘homo christianus’, a cristã ou o cristão típico”, citando São Leão Magno.
Neste sentido, muito nos esclarece a frase de Santo Agostinho, citada pelo
Concílio na Lumen Gentium, concluindo o item 32 sobre “a dignidade
dos leigos enquanto membros do Povo de Deus”: “Atemoriza-me o que
sou para vós; consola-me o que sou convosco. Pois para vós sou bispo,
convosco sou cristão. Ser bispo é um dever, ser cristão é uma graça. Ser
bispo é um perigo, ser cristão é salvação”.
Na primeira parte,em que apresenta dados e análise da realidade
da época, encontramos uma estatística interessante: “Em média, atualmente, para cada presbítero, as comunidades dispõem de mais de 50
(cinqüenta) leigos, exercendo tarefas ou ministérios pastorais. Entre
os agentes de pastoral, destaca-se a presença e atuação das mulheres,
que constituem o contingente maior”. (62, 39). Nos itens 65 até o 79,
o documento traz reflexões e decorrências sobre a expressão ‘Povo de
Deus”, que seria longo tratar neste artigo, mas que vale a pena retomar,
pois incidem diretamente na presença e ação dos cristãos em geral. Traz,
entre outras, a reflexão sobre a participação dos cristãos leigos e leigas
na”função profética”, na “função sacerdotal” e na “função real”. No
item 77, ressalta: “A expressão Povo de Deus é também apropriada para
ressaltar que a missão da Igreja não é responsabilidade de alguns, mas de
todos. […] É neste sentido que se pode falar de ‘Igreja toda ministerial’,
de ‘corresponsabilidade diferenciada’, de ‘todos responsáveis na Igreja’
de ‘Igreja de responsabilidades apostólicas compartilhadas’, de ‘Igreja
toda em serviço’, de ‘comunidade enviada de serviço’, de ‘comunhão e
participação’ (Puebla) ou de ‘comunhão e missão’.”
O item 90 já foi citado no início deste trabalho falando sobre a
necessidade de “superação entre o ‘ad intra’ e o ‘ad extra’ “ e o 91 mostra
a “diferença entre serviço cristão e ministério”, importante para os cristãos
leigos e leigas. O 92 lembra que “os cristãos leigos permanecem leigos”
quando assumem ministérios, citando Puebla 811: “Os ministérios não
clericalizam aqueles que os recebem: estes continuam sendo leigos com
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O cristão leigo e a paróquia
uma missão fundamental de presença no mundo”. O item 100 traz uma
preciosidade: “A condição de vida do leigo é lida teologicamente como
vocação. A sua existência – pautada no Evangelho, na vivência da fé, da
esperança e da caridade – é, por si mesma, antes mesmo de qualquer ação,
possuidora de valor evangélico. É vivendo a sua própria vida “segundo
Deus” que o leigo procura o Reino. Esta é a sua vocação primeira e os
compromissos que ela comporta são vontade de Deus”.
Os itens 104 e seguintes, mostram a necessidade de superar o
binômio “hierarquia e laicato” e assumir o binômio “comunidade –
carismas e ministérios”. Isto é fundamental na dinâmica da paróquia
pós-conciliar. Depois, o documento traça algumas diretrizes para a evangelização, do “conhecimento e da prática da Doutrina Social da Igreja”,
do “serviço e participação na transformação da sociedade pelo bem dos
pobres” com ênfase na participação política, citando, inclusive João
Paulo II na Exortação Apostólica sobre a Igreja na América: “A América necessita de cristãos leigos capazes de assumir cargos de dirigentes
na sociedade. É urgente formar homens e mulheres capazes de influir,
segundo a própria vocação, na vida pública, orientando-a para o bem
comum. No exercício da política, considerada em seu sentido mais nobre
e autêntico de administração do bem comum, esses homens e mulheres
podem encontrar o caminho da própria santificação” (EA 44).
Finalmente, o documento trata da “formação, espiritualidade e
organização” dos cristãos leigos e leigas: “Uma espiritualidade cristã,
baseada na oração pessoal e comunitária, na leitura da Bíblia e na vida
sacramental, capaz de sustentá-los em sua atuação no mundo – na realidade da família, da educação, do trabalho, da ciência, da cultura, da
política, dos compromissos sociais e civis – para testemunhar o Evangelho e transformar a sociedade”. Traz “orientações para a formação dos
leigos” e cobra : “da parte da hierarquia e particularmente dos presbíteros,
espera-se efetiva disposição de acompanhar os leigos e leigas que atuam
nos diferentes campos de evangelização […]. O protagonismo do cristão
leigo requer profundas mudanças no estilo do governo e no exercício
da autoridade por parte da hierarquia [...].” Conclui incentivando os
conselhos de leigos nos diversos níveis.
Uma nova paróquia
As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil,
votadas a cada quatro anos, sempre trazem disposições sobre os cristãos
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Ano 28 / número 2 / 2013
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Laudelino Augusto dos Santos Azevedo
leigos e leigas e sua pertença e ação nas paróquias. É desnecessário fazer
citações para não ficar muito repetitivo. O atual documento de estudos, nº
104, sobre “Comunidade de comunidades: uma nova paróquia”, traz vários itens sobre a questão. Basta-nos uma citação : “A conversão pastoral
da paróquia em comunidade de comunidades supõe o protagonismo dos
leigos. O empenho para que haja a participação de todos nos destinos da
comunidade supõe reconhecer a diversidade de carismas e de ministérios
dos leigos. Até mesmo confiando-lhes a administração de uma paróquia,
quando a situação o exigir, como prevê o Código de Direito Canônico”
(104, 189). Trata-se do Cân 517, § 2. Eu mesmo, por 5 anos, de 1983 a
1988, como cristão leigo, fui administrador da Paróquia de Sant’Ana,
em Sapucaí Mirim, na Arquidiocese de Pouso Alegre, no Sul de Minas.
Uma experiência enriquecedora e maravilhosa!
Tensão entre Igreja e mundo
Em todos esses anos de experiência como cristão leigo: Pastoral da
Juventude, Equipe de Liturgia, Administrador de uma Paróquia, Conselho de Leigos, vereador, deputado estadual, vice-prefeito, presidente do
CNLB, assessor de formação para a missão, posso afirmar que muitos
avanços foram conquistados mas que muito ainda precisa ser feito. Tanto
na formação e atuação no âmbito eclesial, quanto, e principalmente, para
a atuação como Igreja no mundo. Os cristãos leigos e leigas e também os
pastores, não conhecem as “ferramentas” de construção da sociedade que
precisam utilizar por força da missão: movimentos populares e sociais,
sindicatos, partidos políticos, conselhos de políticas públicas, ongs, grupos de acompanhamento do Legislativo, apenas para citar alguns. Até
conhecem, mas não reconhecem como “ferramentas” de construção da
sociedade segundo o Projeto de Deus. O pior é que os cristãos não usam
mas outros usam e aí, estamos vendo e sofrendo os resultados. Graças a
Deus, está crescendo a presença qualificada dos católicos militantes na
sociedade, mas precisamos melhorar bem mais.
Nós, cristãos leigos e leigas, vivemos numa tensão constante
entre a oração, as celebrações, os trabalhos na comunidade eclesial,
que amamos e fazemos com tanto carinho e a presença nas malhas da
sociedade, no mundo do trabalho, da família, testemunhando, revelando
e construindo o Reino de Deus. Nós do CNLB, somos cobrados porque
alguns cristãos leigos e leigas, tão imersos nas realidades do mundo, participam pouco da vida da comunidade eclesial, não atuam nas pastorais
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O cristão leigo e a paróquia
e movimentos, chegando a faltar algumas vezes à Missa Dominical e às
Festas dos Padroeiros. Acolhemos tais questionamentos e procuramos
corrigir. Porém, muito nos preocupa a realidade em que muitas vezes
acontece o inverso. Ou seja, cristãos leigos e leigas que não saem do
âmbito eclesial, super atarefados com pastorais e movimentos, participam
até diariamente das Missas, mas não assumem o compromisso sóciopolítico-transformador da realidade e construtor do Reino. Muitas vezes
nem respeitam e nem apoiam os que conscientemente assumem. Outras
tantas vezes, são as próprias comunidades, paróquias, movimentos e
agentes de pastoral, ordenados ou não, que seguram os cristãos leigos e
leigas dentro do âmbito da instituição. Ora, os Cristãos Bispos em Santo
Domingo, já insistiam: “Evitar que os leigos reduzam sua ação ao âmbito
intra-eclesial, impulsionando-os a penetrar os ambientes socioculturais
e a serem eles os protagonistas da transformação da sociedade à luz do
Evangelho e da Doutrina Social da Igreja” (DSD 98).
Conclusão
Concluo aludindo ao trecho final da apresentação do Documento
62 da CNBB que, de certa maneira, explica a preocupação que tive com
a mensagem transmitida neste texto:
O Documento retoma uma preocupação presente na Christifideles Laici, que deseja, na vida do leigo cristão, unidade e comunicação entre
a inserção nas realidades temporais e a vida no Espírito, que brota da
comunhão com Cristo fundada no Batismo, a fim de que leigos e leigas
possam santificar-se no mundo (cf. CfL 17, que cita AA 4).
Essa mesma unidade é desejável também no nível das associações
e organizações católicas do laicato. Elas também devem favorecer a articulação e comunicação eficaz entre as atividades dos cristãos que estão
voltadas para ordenar o mundo segundo a vontade de Deus e aquelas atividades que estão voltadas para a edificação da comunidade eclesial.
Por isso, o Documento, nas suas orientações práticas, em lugar de
opor – com o risco de separar – empenho dos leigos no mundo e serviço
na Igreja (atividades ‘ad extra’ e atividades ‘ad intra’), traça diretrizes
para que os leigos participem, com autêntica inspiração cristã, de toda
a missão da Igreja, ou seja, de toda a ação evangelizadora. Esta exige
‘serviço, diálogo, anúncio e comunhão’, sem jamais descuidar da presença no mundo, no coração dos dramas humanos, e sem nunca deixar
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Laudelino Augusto dos Santos Azevedo
de haurir o espírito de Cristo na palavra do Evangelho, na celebração
da Liturgia e no encontro com as pessoas humanas, especialmente dos
pobres e sofredores”.
Concluindo mesmo, faço minhas as palavras do item 195 da
“conclusão” do Documento: “Nele, procuramos contemplar a Igreja
dos nossos melhores sonhos: Igreja fiel à Trindade, Igreja servidora do
Evangelho, Igreja companheira de caminhada da humanidade, Igreja
missionária, dialógica e ministerial”. E, ainda, de Medellin, 2: “Esta não
deixou de ser a hora da palavra, mas tornou-se, com dramática urgência,
a hora da ação!”
Na dinâmica do Reino, em tempos de Francisco, vamos
caminhando!
Endereço do Autor:
Rua Urbano Matos, 110 – casa B
Bairro Vila Isabel
37505-184 Itajubá, MG
Tel.: (35) 9131-0523
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Novidade
GALLAZZI, Sandro. “O Evangelho de Mateus.
Uma leitura a partir dos pequenininhos”, São Paulo,
Fonte Editorial/Santuário, 2013, 584 pp.
Realmente, uma novidade, e bem-vinda novidade, no campo exegético. O
livro faz parte do “Comentário Bíblico Latinoamericano – Novo Testamento”,
coleção que começou na década de 80, lançada por três editoras associadas, Vozes/
Sinodal/Metodista. Interrompida a publicação, ela foi agora retomada por duas
editoras associadas, a Fonte Editorial e a Santuário. Dos quatro evangelhos, na coleção, está ainda faltando o de Lucas, que esperamos seja publicado em breve.
Sandro Gallazzi, ao qual devemos o comentário de “Ester, a mulher que
enfrentou o palácio” (1987), “Primeiro Macabeus, auto-crítica de um guerrilheiro”
(1993), e “Judite, a mão da mulher na história do povo”, agora nos brinda com
este excelente comentário do primeiro dos evangelhos, tão apreciado ao longo
da história da Igreja por nos apresentar uma síntese extraordinária dos feitos e
ensinamentos do Senhor. O subtítulo é programático: “Uma leitura a partir dos
pequenininhos” (sic, um diminutivo do diminutivo: pequenininho). Para quem
não conhece o autor, Sandro é italiano, tendo chegado ao Brasil como missionário, no Amapá, em 1973, assessor da Comissão Pastoral da Terra desde 1983,
membro integrante do movimento bíblico no Brasil e na América Latina, doutor
em Ciências da Religião em 1996, autor de inúmeros artigos e livros na área da
leitura popular da Bíblia.
Quanto ao comentário, o estilo característico de Sandro torna a leitura muito
agradável e, feita “a partir dos pequenininhos”, muito proveitosa. A Introdução
(pp. 9-43) aborda: 1. “o evangelho de Mateus e a história, a memória e o mistério de Jesus”; 2. “o contexto do escrito de Mateus”; 3. “o pré-texto do escrito de
Mateus”; 4. “o texto do evangelho segundo Mateus”; 5. “questões em debate”.
A leitura do texto é distribuída em 7 partes: 1. A gênesis de Jesus; 2. A gênesis
do Reino dos céus; 3. O caminho da libertação: um novo Êxodo; 4. Dúvidas,
dificuldades e conflitos; 5. A vida nova na ekklesía: o Levítico reformulado; 6. O
caminho da vida e o caminho da morte; um outro Deuteronômio é possível; 7. O
evangelho da comunidade de Mateus.
Uma das muitas riquezas do livro é a constante citação de textos da tradição rabínica, ajudando a compreender o relacionamento entre o próprio Jesus, a
comunidade de Mateus, e a Sinagoga. Vale realmente a pena conhecer este novo
“Mateus”. (N.B.P.)
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Resumo: Neste artigo, o autor se propõe a fazer uma releitura do documento
de estudos 104 da CNBB, “Comunidade de comunidades: uma nova Paróquia”,
observando como se insere a “missão” em seu conteúdo. Assim, primeiramente
se estuda como se pode entender a missão “na” Paróquia, enquanto acolhida
e ação missionária em seu território. A seguir, se busca discernir a missão “da”
Paróquia, como participação na natureza missionária de toda Igreja.
Palavras-chaves: ação missionária; paróquia missionária; pastoral missionária.
Abstract: The aim of this study is to engage in an attempt to draw attention to
the document 104 issued by CNBB, as a major contribution to “the new parish
as a community of communities”, which is concerned to include its “mission” as
the role of the crucial theme. To begin with, it presents a special study of the
mission within the parish as the place where the missionary activity spreads to
its closer context and wider adjacencies. In the second part, the author attempts
to develop the meaning of “mission” applied by the parish participating in the
missionary activity of the whole Church.
Key words: missionary activity, parish engaged in missionary activity, missionary
pastoral activity.
A missão “da” e “na” paróquia
Um ensaio de releitura
do documento de estudos 104 da CNBB,
na perspectiva da “missão”
Sidnei Marco Dornelas, CS*
*
O autor é Assessor da Comissão Episcopal para a Missão Continental – CNBB.
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Ano 28 / número 2 / 2013, p. 99-113.
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A missão “da” e “na” paróquia
O tema central da 51ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), realizada em abril de 2013, resultou
num documento de estudo, “Comunidade de comunidades: uma nova
paróquia”. Esse tema despertou um grande interesse em todos aqueles
que tomaram a sério a proposta lançada pela Conferência de Aparecida,
em 2007: a de pôr a Igreja da América Latina em estado permanente de
missão. Percebeu-se a determinação dos Bispos em colocar em pauta um
tema difícil, a reestruturação e renovação das paróquias (DAp 170ss).
Assim, vinha ao centro da preocupação da Igreja a quarta urgência das
Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, “Igreja,
comunidade de comunidades”.
Não por acaso, um dos temas tratados insistentemente no âmbito das
atividades do projeto da Missão Continental refere-se justamente à Paróquia
Missionária. Nos vários encontros promovidos em diferentes instâncias
da Conferência Episcopal, e que têm por objetivo colocar em prática a
proposta de Aparecida nas Igrejas Locais, a problemática das paróquias
é uma das mais sensíveis. Por isso, deu-nos satisfação a oportunidade de
poder acompanhar e de alguma maneira colaborar no processo de desenvolvimento desse documento. Foi com esse interesse na “missão”, antes
e depois de sua publicação, que nos propomos a proceder à sua releitura,
observando como se insere a “missão” em seu conteúdo, e em que medida
aponta para o que seria uma paróquia mais missionária.
“Comunidade missionária é comunidade acolhedora”
(A missão na Paróquia)
Inicialmente, é preciso dizer que a questão da “missão” da e na
Paróquia não é o objeto principal das reflexões desse documento. Embora
desde o primeiro parágrafo se deixe claro que se busca a “conversão
pastoral” das estruturas de Igreja, num “processo de transformação permanente e integral”, e nesse sentido corresponde à proposta da Missão
Continental – isso tudo não significa que haja uma intenção missiológica
propriamente dita por trás de suas reflexões.1 Ao contrário, percebe-se
uma utilização genérica e imprecisa do termo “missão” em vários pontos
do desenrolar do documento. Na verdade, o foco do seu interesse está
1
100
Na verdade, o documento não faz referência aos grandes documentos da Igreja sobre
a Missão, ou mesmo sobre a Nova Evangelização, como a Ad Gentes, a Novo Milenio
Ineunte ou a Redemptoris Missio.
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Sidnei Marco Dornelas, CS
em resgatar o valor da vida de comunidade como o fundamento de uma
renovação das estruturas paroquiais. Desse processo deveria resultar
aquilo que seria uma pastoral mais missionária.
De alguma maneira, uma noção um pouco mais clara sobre a
pastoral missionária surge apenas no final do documento, ao tratar da
“transmissão da fé: novas linguagens”. Ali temos a expressão “comunidade missionária é comunidade acolhedora” (§ 206). Aqui poderíamos
dizer que a pastoral da acolhida, ou a dimensão da acolhida das atividades pastorais da comunidade paroquial, é que deveria qualificá-la como
“missionária”. Talvez esse entendimento sobre a missão possa encontrar
uma explicação nas opções tomadas ao longo da própria construção do
texto, ao privilegiar a conversão de suas estruturas e não tanto o seu
dinamismo missionário. Com efeito, desde a abordagem dos dois primeiros capítulos, com a perspectiva bíblica e teológica, foi-se optando
pela noção da Paróquia como “casa”, local e ambiente de construção
de relações comunitárias. Existe aqui um eco da conhecida expressão
cunhada em Aparecida, da Igreja como “casa e escola de comunhão”
(DAp 272; NMI 43).
Em torno da “casa” como referência da comunidade paroquial é
que se pensa a renovação de todas as suas práticas pastorais. A partir da
iniciativa evangélica da reconstrução das relações comunitárias em seu interior, se coloca em foco a transformação de suas estruturas ultrapassadas,
que minariam a sua missionariedade (§ 90). Considerando que a paróquia
permanece ainda hoje como um lugar visível de presença da Igreja, mas
também o espaço de referência para o encontro da comunidade, o texto
do documento avança duas noções fundamentais para repensar a Paróquia
no contexto das “mudanças de época”: casa e acolhida de peregrinos;
comunidade como lar dos cristãos (§ 83-85). Da explicitação do sentido
da “casa”, local de acolhida para os desamparados de nosso tempo, mas
também imagem da Igreja feita de “pedras vivas” (§ 75), o texto aponta
três dimensões fundamentais da Paróquia: a casa da “palavra”, do “pão”
e da “caridade”. Em síntese, a missionariedade se revelaria na disponibilidade de receber a todos e acolhê-los no convívio fraterno.
Com esse referencial fundamental, o 3º capítulo trata de tudo o
que impede à Paróquia assumir sua tarefa de evangelizar nos “novos
contextos” com suas “mudanças de época”: a crise da pastoral de manutenção, o excesso de burocracia, a falta de participação dos leigos, de
planejamento pastoral, de inovação na evangelização, o fechamento nas
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A missão “da” e “na” paróquia
pastorais e movimentos em si mesmos. Apesar das muitas iniciativas
inovadoras, os desafios continuam inquietantes: a acentuação do intimismo religioso individual, as mudanças na estruturação das famílias,
a identificação da Paróquia com o território, as estruturas obsoletas de
pastoral, a cultura pós-moderna e o pluralismo cultural e religioso. No
âmbito da discussão sobre a comunidade e a dimensão missionária da
Paróquia, entre tantos desafios, o que mais nos interessa é aquele referente
à questão da territorialidade.
Apesar da abertura já presente no Código do Direito Canônico
atual para outras formas de definição de Paróquia, o território ainda é o
principal referencial que a constitui jurídica e pastoralmente, condicionando todas as suas atividades e sua relação com a Igreja Local.2 O documento 104 refere-se a essa dificuldade, discute como se coloca a questão
da territorialidade atualmente (§ 105-109), e tenta apontar para novas
realidades e possibilidades de organização que privilegiam as relações
comunitárias. Entretanto, no intuito de valorizar e estimular as iniciativas
de vida comunitária, o documento apenas tangencia as questões ligadas
ao território, sua definição canônica e a centralidade da figura do pároco.
Existe uma insistência de que a Paróquia não deve se identificar com o
território, e caminhar no sentido de sua superação (§ 87; 107-109; 133).
Porém, no fundo, a concepção de território como base da ação pastoral
continua intacta, ainda conforme um modelo tradicional de Igreja, que
corresponde por sua vez a uma visão ultrapassada de missão. Como tal,
prevalece a tendência em pensar a paróquia a partir de uma concepção
2
102
No Código do Direito Canônico (CDC) de 1983 temos a definição de Paróquia:
“Paróquia é uma determinada comunidade de fiéis, constituída estavelmente na
Igreja Particular, e seu cuidado pastoral é confiado ao pároco como a seu pastor
próprio, sob a autoridade do Bispo Diocesano.” (c. 515 §1) Essa definição pode ser
complementada por outro parágrafo: “Por via de regra, a paróquia seja territorial, i.e.,
seja tal que compreenda todos os fiéis de um determinado território; onde, porém, for
conveniente constituam-se paróquias pessoais ...” (c. 518) Essa definição já aponta
para alguns traços fundamentais da Paróquia e que configuram juridicamente sua ação
pastoral: a comunidade estável situada na Igreja Local; a figura central do pároco,
sob a autoridade e legitimidade do Bispo Diocesano; o fato de ser uma comunidade
de “fiéis”, que subentende a submissão como regra e a “cura d’almas” como padrão
da ação pastoral; e o território como o que configura a jurisdição da ação pastoral,
que enquadra a sua normatização e a sua prática. É verdade que o CDC de 1983 (can
518) dá uma grande abertura para a constituição de “paróquias pessoais”, ou outras
modalidades de administração paroquial, visando atender necessidades pastorais das
Dioceses, como a presença de grandes grupos de migrantes de uma mesma língua
ou cultura, e o documento 104 também reconhece isso, mas com reservas: “...essa
segunda possibilidade de criação de paróquias precisa ser aprofundada”. (§106)
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Sidnei Marco Dornelas, CS
estabilizada e sedentarizada de comunidade, onde certa inércia da tradição
levaria à perpetuação de estruturas de conservação:
Ora, é essa visão de Igreja e missão que está em jogo quando
Aparecida fala de “conversão pastoral”: passar “de uma pastoral de manutenção para uma pastoral decididamente missionária” (DAp 370); ou
quando o tema da “paróquia missionária” ou da “pastoral missionária”
se torna objeto de tantos debates (mesmo antes do Concílio Vaticano II).3
Existem há anos no Brasil, várias iniciativas inovadoras de missão que
apontam para um novo entendimento de prática missionária, buscando
a renovação da Paróquia por meio de uma nova relação com o seu território. Relembramos todo um aprendizado acumulado na prática das
missões populares, que a partir do desenvolvimento das Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs) conheceu um novo impulso e uma enorme
renovação, trazendo à consciência de milhares de leigos um novo protagonismo pastoral e missionário. É na caminhada das CEBs, em várias
Dioceses no interior do país, ou na periferia das metrópoles, que temos
o exemplo melhor sucedido daquilo que hoje se denomina “setorização”,
“rede”, ou mesmo “comunidade de comunidades”, como forma de ação
evangelizadora e missionária que busca garantir uma capilaridade das
comunidades e sua organização em rede no território paroquial. Assim,
3
De fato, o tema da “paróquia missionária” conhece um histórico já antigo de debates:
cf. MICHONEAU, 1960; BLEUZEN, 2004. Recentemente o tema da “paróquia missionária” foi também objeto de algumas publicações: PEREIRA, 2012; MIKUSKA,
2012. Sobre a “pastoral missionária”, cf. COLOMBO, 1993.
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A missão “da” e “na” paróquia
mesmo os espaços físicos da Paróquia e de suas comunidades ganham
um novo sentido:
Essa dinâmica missionária garante que as estruturas da paróquia estejam
a serviço de todas as dimensões da vida dos participantes da comunidade,
atingidas pela missão em todos os ambientes do território paroquial, assim
como a missão encontra nas estruturas paroquiais um ponto de referência, de
apoio e de motivação para uma verdadeira capilaridade da ação evangelizadora. As origens dessa contribuição positiva das CEBs para a dinamização
da vida das Igrejas Locais, como primeira experiência de “setorização” de
grandes territórios paroquiais, estão registradas na memória dos primeiros
Encontros Intereclesiais de CEBs nos anos 1970 e 19804. O documento 104
praticamente não se reporta a essa contribuição das CEBs, seja como experiência já adquirida de uma modalidade de “setorização” paroquial, seja como
uma experiência renovadora de vida comunitária e dinamismo missionário,
concretizado nas iniciativas das missões populares.5 Por outro lado, a importância da metodologia das missões populares para a conversão pastoral, como
aprendizado acumulado em todo o Brasil, com certeza foi o que permitiu às
DGAE formularem sinteticamente o que poderia ser um programa de missão
permanente no âmbito da Igreja Local, Diocese e Paróquia:
Cabe a cada comunidade eclesial perguntar quais são os grupos humanos ou
as categorias sociais que merecem atenção especial e lhes dar prioridade no
trabalho de evangelização. Entre esses grupos estão os que têm pouco vínculo
104
4
Cf. relatórios publicados nos cadernos do SEDOC, dos anos 1975, 1976, 1978 e 1981.
Um bom exemplo da contribuição dada pela formação das CEBs para a renovação
da ação evangelizadora da Igreja em meio urbano pode ser comprovada pela criação de comunidades na periferia da cidade de São Paulo durante os anos 1970, por
ocasião da chamada “Operação Periferia”, promovida por Dom Paulo Evaristo Arns,
Cf. DOMEZI, 1995.
5
Para se conhecer um pouco mais da experiência das missões populares, ou das
Santas Missões Populares como são mais conhecidas, cf. CNBB, 2007. O Pe. Luis
Mosconi é o nome mais conhecido como animador da metodologia das Santas Missões Populares inspiradas na prática das CEBs. Cf. MOSCONI, 2004;
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Sidnei Marco Dornelas, CS
com a Igreja. Às vezes são jovens; outras vezes, pessoas vivendo na periferia
de nossas cidades, intelectuais, artistas, políticos, formadores de opinião,
trabalhadores com grande mobilidade, nômades etc. Importa ir ao encontro
deles, não apenas nas famílias e nas residências, mas em todos os ambientes.
As missões populares, indo ao encontro do apelo da Missão Continental, têm-se
mostrado um caminho eficaz. As visitas sistemáticas nos locais de trabalho,
nas moradias de estudantes, nas favelas e nos cortiços, nos alojamentos de
trabalhadores, nas instituições de saúde, nos assentamentos, nas prisões, nos
albergues e junto aos moradores de rua, entre outros, são testemunho de uma
Igreja samaritana. A pastoral da visitação pode dar maior organicidade e
eficácia a este serviço. (DGAE 2011-2015 §78)
Assim, podemos dizer que o caminho para a missão “no” território
da Paróquia parece bem delineado, muito embora a questão das diferentes
metodologias de inserção missionária permaneça ainda um campo extremamente vivo de debates. Também parece aceito que tal esforço missionário
deva se prolongar em alguma forma de “pastoral missionária” permanente,
e que formas novas de estruturação e planejamento pastoral devam ajudar
nesse sentido. É outra perspectiva para entender a proposta de trabalho
em “rede” de comunidades, grupos, movimentos e pastorais, como uma
das grandes urgências da Igreja no Brasil. Na continuidade da reflexão
despertada pelo documento 104 parece então muito importante que essa
experiência das missões populares, da pastoral da visitação, e a própria
proposta da Missão Continental oriunda da Conferência de Aparecida seja
mais bem apreciada. É uma carência que se percebe nessa estruturação do
documento em torno da “casa”, que parece se limitar aos espaços físicos
da Paróquia, e sua centralidade na dinamização da vida pastoral. A missão,
dessa forma, não seria pensada apenas como uma comunidade que acolhe
bem, pronta para receber quantos que desejarem participar, mas sai em
busca dos que estariam “afastados”, nos mais diferentes ambientes.
Reconhecendo essa tendência de pensar pastoralmente a Paróquia
de maneira fixa, como lugar de “acolhida”, ou a comunidade como “lar
dos cristãos”, não há como negar o enorme esforço para tratar os grandes
desafios à ação pastoral e as tarefas que se impõem: o resgate da vida comunitária, a “setorização” da sua organização territorial e o trabalho em rede,
a “conversão” das estruturas de pastoral, a busca de formas de gestão mais
compartilhadas, a atualização da linguagem da evangelização. Sobretudo, é
de se ressaltar a consciência de que é necessária muita criatividade pastoral,
a fim de que surjam novas formas de atuação pastoral no meio urbano, onde
justamente a questão do território ganha em complexidade (§ 131).
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A missão “da” e “na” paróquia
Comunidade missionária é também aquela
que envia! (a missão da Paróquia)
Ao lado da concepção da Paróquia como “casa”, o estudo de suas
origens bíblicas, históricas e teológicas aponta, no documento 104, para
outra concepção que parece ainda mais rica em intuições para a ação
da Igreja na realidade atual: a da Paróquia como “estação”. Com efeito,
do levantamento da etimologia da palavra “paróquia” sobressai que em
sua origem (numa época sem as atuais estruturas pastorais, visibilizadas em seus espaços físicos e sua territorialidade) ela se referia a uma
“habitação em pátria estrangeira”, para o “estrangeiro que se encontra
de passagem” (§44-45): “Paróquia, desse modo é uma ‘estação’ onde se
vive de forma provisória, pois o cristão é um caminheiro”. Em outros
termos, a “casa” é também uma “estação”, o que faz lembrar uma condição de mobilidade, de desinstalação da própria comunidade, que não só
nasceu da missão, acolhe os peregrinos, mas envia para a missão, para
além de seu território, para ser estrangeiro, “pároikos”, nas “casas” das
comunidades em outros lugares.6
Nesse sentido, é importante ressaltar também como para Paulo, o
grande missionário das origens da Igreja, cada “casa” estava integrada
à “rede” de comunidades espalhadas por todo o mundo conhecido, além
de ser o polo dinamizador da evangelização de toda uma região (§4647). Trata-se de outra fundamentação para a proposta de “comunidade
de comunidades”, que relativiza o território, apostando em novas formas
de relacionamento, e logo, em novas modalidades de evangelização. O
documento vai lembrar a necessidade da descentralização da vida comunitária, da inserção nas redes sociais, e que a “setorização” é antes um
meio em vista de novas formas de participação e integração, revitalizando
nesse novo contexto a vida da comunidade cristã (§ 154ss).
No entanto, apesar da riqueza dessa proposta de interpretação
do significado da paróquia para a vida da Igreja, expressa na ideia de
“estação”, ela não foi suficientemente explorada no desenvolvimento
do documento. Para quem busca redescobrir a dimensão missionária da
Paróquia, contudo, essa intuição relembra que a experiência de fé se dá
também (se não principalmente) no “caminho”, e não apenas na “casa”,
6
106
Por trás desses dois parágrafos, com suas várias citações bíblicas, existe toda uma
gama de estudos bíblicos e teológicos que revela o caráter profundamente itinerante,
missionário e diaspórico (expressão da grande diáspora das comunidades judaicas e
cristãs) da Igreja Primitiva. Cf. a título de exemplo BOSCH, 2009; WAN, 2011.
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Sidnei Marco Dornelas, CS
e que a casa-comunidade nasceu na verdade da missão, e por isso é chamada a despertar o continuo desejo de partir em missão. Da leitura dos
textos do Novo Testamento, sobretudo dos Atos dos Apóstolos, emerge
de maneira clara como a missão constituiu a Igreja, e a Igreja permanece
construindo-se e renovando-se na missão.
Essa visão de Igreja ganha grande atualidade no mundo globalizado atual, que tanta perplexidade causa pelo desnorteamento de antigos
referenciais, o que se convencionou chamar de “mudanças de época”. O
mundo não se organiza mais por seus territórios estabilizados, como referência clara e iniludível de todas as identidades, mas pelo imenso circuito
de fluxos que desterritorializam e reterritorializam permanentemente o
cenário da vida cotidiana.7 As redes sociais a que o documento se refere
são apenas um dos aspectos mais salientes dessa mobilidade, imprevisibilidade e provisoriedade das formas contemporâneas de pensar, agir e
se organizar socialmente. Na sociedade globalizada e multicultural, em
que existe a sensação do tempo imediato, do encurtamento das distâncias,
a incessante troca de influências culturais e religiosas, a multiplicidade
e recriação de identidades e alteridades obrigam a repensar constantemente qualquer estratégia de ação pastoral. Nesse cenário cambiante, a
instabilidade é a regra de todos os dias. Como pensar a missão da Igreja
nesse contexto?
Antes do Concílio Vaticano II, diante da inexorável necessidade
de dialogar com o mundo secularizado que agia cada vez mais de forma
alheia às orientações da Igreja, muitas dessas questões já se colocavam.
Nesse sentido, dentre as muitas intuições seminais do Concílio, encontrase uma referente à nova concepção da natureza missionária da Igreja:
A Igreja, enviada por Deus a todas as gentes para ser «sacramento
universal de salvação», por íntima exigência da própria catolicidade,
obedecendo a um mandato do seu fundador, procura incansavelmente
anunciar o Evangelho a todos os homens ... A Igreja peregrina é, por sua
natureza, missionária, visto que tem a sua origem, segundo o desígnio
de Deus Pai, na «missão» do Filho e do Espírito Santo. (AG 1-2)
Ainda hoje não se tiraram todas as consequências dessa nova
forma de conceber a missão na Igreja. A missão da Igreja deixa de ser
vista como estratégia de expansão “geográfica”, para se tornar um traço
7
Para uma leitura sobre a questão do território nos dias atuais, cf. HAESBAERT, 2004;
HAESBAERT & LIMONAD, 2007; SOUZA & PEDON, 2007.
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A missão “da” e “na” paróquia
fundamental da compreensão de sua natureza. A dimensão missionária
da Igreja está enraizada na própria Trindade, entendida como “Missio
Dei”.8 Portanto, é próprio da catolicidade da Igreja sair de si mesma, se
desinstalar, para formar novas comunidades, que ao se irmanarem entre
si formam o único Povo de Deus. Em cada comunidade que celebra
a Eucaristia e se reúne em torno da Palavra de Deus temos presente a
verdadeira Igreja de Cristo, na medida em que está em comunhão com
todas as comunidades que igualmente se reúnem e estão espalhadas no
mundo inteiro. Cada uma delas é “porção” de um mesmo Povo de Deus, e
por isso se constituem por natureza uma “comunidade de comunidades”.
Assim, a catolicidade das igrejas e a colegialidade de seus pastores, são
dimensões essenciais que se expressam pelo mesmo empenho na missão.
Por meio da missão, a Igreja se reconstitui permanentemente, e deverá
estar sempre em “peregrinação”. Os Bispos em Aparecida, num capítulo
essencial para rever os rumos da evangelização no continente9, tiraram
as consequências desses imperativos da missão da Igreja:
A conversão pastoral de nossas comunidades exige que se vá além de
uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente
missionária. Assim será possível que “o único programa do Evangelho
continue introduzindo-se na história de cada comunidade eclesial” com
novo ardor missionário, fazendo com que a Igreja se manifeste como
mãe que vai ao encontro, uma casa acolhedora, uma escola permanente
de comunhão missionária”. (DAp 370)
Logo, perguntar pela missão “da” paróquia é ir além da preocupação com suas estruturas, ou mesmo da evangelização em seu território.
O mesmo impulso que conduziu à proposta da Missão Continental, e
que encontrou nas missões populares e nas CEBs, uma expressão dessa
busca por paróquias descentralizadas, com comunidades vivas e participativas, de ardor missionário crescente, deve também gestar o desejo pela
missão além fronteiras. Numa visão de Igreja mais ampla, a missão “na”
paróquia poderia ser a “sementeira” da vocação missionária, que abre a
consciência para a missão “da” paróquia. Nesse nível, não se conhecem
108
8
Para uma visão ampla dos impactos da concepção da Missio Dei no âmbito do cristianismo atual, cf. BOSCH, p. 466-467. Uma boa introdução para uma teologia da
Paróquia, podemos encontrar em RAMOS, 2001.
9
Trata-se do capítulo VII, que dará as motivações principais para o projeto da Missão
Continental, como iniciativa da Nova Evangelização na América Latina, mas também
apontará para a importância da Missão Ad Gentes (DAp 373-379). Interessante notar
que esse capítulo inicia justamente com a citação de AG 2.
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mais limitações de territórios ou de estruturas de institutos, grupos ou
movimentos, pois o horizonte agora é a participação na missão de toda
Igreja. A espiritualidade de comunhão que animou o Vaticano II ressoa
até hoje no continente latino-americano, convidando à permanente generosidade para sair em missão. A Igreja Local – como Diocese, Vicariatos
ou Paróquias – é chamada, dessa forma, a fazer comunidade com outras
Igrejas Locais, e por isso a sair de si mesma e animar na catolicidade
uma mesma comunhão.
Porém, a mentalidade reinante na maioria das lideranças das Igrejas
Locais, sejam elas Bispos, Párocos, leigos atuantes, parece ainda não
perceber o alcance das implicações dessa concepção da missionariedade
da Igreja. Constatamos pela nossa participação nos encontros de tantos
Regionais da CNBB, Dioceses e Paróquias pelo Brasil, um enorme
desconhecimento da organização missionária da Igreja. Se Aparecida
associa o impulso da missão permanente (a Missão Continental, a Nova
Evangelização) à vocação para a missão ad gentes de toda Igreja (DAp
365-379), por outro lado, na prática das Dioceses e Paróquias a chamada
pastoral “ordinária” parece completamente dissociada da “animação
missionária”. A formação dos Conselhos Missionários Diocesanos (COMIDIs) e Paroquiais (COMIPAs), quando existem, é frequentemente
vista com reservas, e é muito comum que eles atuem paralelamente às
outras pastorais e organismos, ou que os agentes de pastoral em geral a
vejam como uma “pastoral a mais”. Não percebem que sua finalidade na
Igreja Local é atuar como “conselho” – instância de consulta, animação,
mediação e formação de mentalidade – e, assim, contribuir para que toda
a Igreja se assuma como missionária.10
Igualmente o trabalho para despertar vocações para a missão e a
cooperação Intereclesial, pela preparação e envio de missionários além
fronteiras, ainda é marginal na maioria das Dioceses brasileiras, quando
não encarada com aberta resistência. O documento 104 não explicita
diretamente nem a organização missionária nem a missão ad gentes.
Apenas em alguns pontos se menciona alguma forma de cooperação
entre Igrejas. No § 198, o documento fala da importância de “manter
vínculos afetivos e efetivos com as paróquias de áreas missionárias,
especialmente na Amazônia”, e mais adiante sobre a “bela experiência
das paróquias irmãs, dentro e fora da Diocese, análogo ao projeto Igrejas10
A instrução Cooperatio Missionalis frisa que é dever de toda Igreja Local participar e
colaborar na missão de toda Igreja. Cf. §2; 162-13.
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A missão “da” e “na” paróquia
irmãs”. Faltaria ser mais incisivo, e não ver a missão apenas como uma
atividade ao lado de outras. Seria preciso apresentá-la como dimensão
que expressa a catolicidade das Igrejas Locais, Dioceses e Paróquias,
de sua abertura para irmanar-se com qualquer Igreja de qualquer lugar
do mundo. A cooperação entre as igrejas, o sair em missão, deveria ser
um traço normal e corriqueiro do seu ser igreja, e não percebido como
algo extraordinário.
No entanto, é talvez no cenário urbano, em que a territorialidade
que define o espaço paroquial se dilui, que melhor percebemos como a
Igreja se vê obrigada a rever as estratégias pastorais e missionárias em
vista de um trabalho mais integrado e cooperativo em “rede”. No meio
urbano, em que se cruzam grupos de etnias, culturas e praticas religiosas
as mais diversas, é que a Igreja descobre que nesse espaço a missão ad
gentes se configura como missão inter-gentes. No documento 104, em
alguns parágrafos, podemos perceber essa segunda maneira como se
manifesta a percepção da necessidade da cooperação intereclesial. No
§ 197 se afirma que a paróquia não pode se isolar das outras paróquias,
que deve trabalhar em consonância com elas, guiadas pelo planejamento
urbano. Trata-se ainda de uma exortação. De fato, faltaria lembrar que
todas as paróquias formam uma Igreja Particular, e que a eclesialidade se
manifesta na colegialidade comum do presbitério, que se dedica ao mesmo Povo de Deus que habita a mesma cidade. Esse horizonte permitiria
dar uma resposta de Igreja à constatação do § 192, a propósito da “interatividade da sociedade atual”, vivendo a missionariedade da paróquia
para além dos seus limites geográficos, institucionais e humanos.
Exemplo de experimentação de missão inter-gentes no plano
urbano, de permeabilidade e interatividade nos mais diversos níveis da
Igreja, é o trabalho que em vários países e também no Brasil, as paróquias
desenvolvem no atendimento aos migrantes. Pode-se testemunhar em
várias cidades do mundo, em localidades com grande concentração de
grupos de várias procedências e etnias, a formação de comunidades de
migrantes que, ao mesmo tempo em que interagem com outros grupos
no território de uma Paróquia, e dividem o uso do espaço de sua sede,
mantém uma rede de relações com outras comunidades e outros grupos
associativos da mesma nacionalidade e/ou etnia. Igualmente, dada a
diversidade de situações de trabalho e convivência entre grupos de nacionais e estrangeiros, no território paroquial e diocesano, multiplicam-se
os serviços e as iniciativas para o seu acompanhamento. Assim como
com os migrantes, existiriam também exemplos de acompanhamento de
110
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jovens, moradores de rua, entre outros. Essas experimentações são um
sinal claro de que em vários níveis a “criatividade missionária” à qual
o documento faz apelo no § 131 já se faz sentir. No entanto, elas são
ainda uma dimensão excepcional, minoritária, ainda longe de motivar
a transformação do corpo todo da Igreja. Apontam caminhos e, principalmente, são um sinal profético do rosto missionário da Igreja, daquilo
que pode ser a missão “da” Paróquia, se ela souber ir além das estruturas
de conservação.
Considerações finais
Em At 13,1-5, temos um relato das origens da missão, enquanto
gesto voluntário, inspirado pelo Espírito. Veio de uma Igreja local, Antioquia, nascida e formada na Diáspora, por missionários diaspóricos, e que
resolve enviar alguns dos seus membros, Paulo e Barnabé, para levarem a
Boa Nova a outras cidades. Ela é o retrato de uma casa-comunidade que
também se torna uma “estação” para os missionários, que dela partem
e para ela voltam. A continuidade da narração dessa primeira iniciativa
missionária empreendida por Paulo e Barnabé, mostra que eles retornaram a Antioquia para relatar tudo que puderam realizar, as comunidades
que puderam formar e as pessoas que aderiram à proposta do Reino: “...
contaram tudo o que Deus fizera por meio deles e como ele havia aberto
a porta da fé aos pagãos. Passaram depois algum tempo com os discípulos”. (At 14,27b) A nossa “porta da fé”, hoje, talvez nos lembre que
devemos voltar a ser “estação”, com comunidades e paróquias que sejam
como “casas” abertas para acolher, mas também livres e generosas para
enviar e deixar partir. Ao tratar da missão “da” paróquia nos lembramos
de que a finalidade da vivência da fé, a construção do Reino, não reside
nela própria. Antes, a experiência da fé se faz no “caminho”. É lá que
a “porta da fé” se abre, no meio da missão, e é também lá que a Igreja
reencontra seu rosto e identidade.
Nas DGAE 84, quando se fala da missão ad gentes, sabiamente
se afirma: “Uma Igreja Particular não pode esperar atingir a plena maturidade eclesial para, só então, começar a se preocupar com a missão
para além de seu território. A maturidade eclesial é consequência e não
apenas condição de abertura missionária.” Relembrando os primórdios
da comunidade cristã, também hoje a afirmação de sua identidade missionária é condição para que as comunidades paroquiais não apenas se
renovem, mas também encontrem sua verdadeira maturidade.
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A missão “da” e “na” paróquia
Referências
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da Congregação para a Evangelização dos Povos, São Paulo, Paulinas,
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DOMEZI, Maria Cecília, Do corpo cintilante ao corpo torturado: uma
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HAESBAERT, Rogério, Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade, Conferência realizada em Porto Alegre em 2004; cf. http://www.
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globalização, Revista eletrônica: etc..., espaço, tempo e crítica. N° 2(4),
112
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SOUZA, Edevaldo A.; PEDON, Nelson R., Território e Identidade, Revista Eletrônica da Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Três
Lagoas – MS, V 1 – n.º6 – ano 4, Novembro de 2007; cf. http://www.
cptl.ufms.br/revista-geo/artigo6_EdevaldoS._e_NelsonP.pdf.
WON, Enoch, Diaspora Missiology: theory, methodology, and practice, Portland, Institute of Diaspora Studies, 2011.
Endereço do Autor:
SE/Quadra 801 – Cj. B
CEP 70200-014 Brasília, DF
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Livros dos nossos Professores
Candido, Edinei da Rosa, “São Gregório Nazianzeno
sobre a mulher”, col. “Cadernos Patrísticos”, vol. 6,
n. 11 (novembro 2012), Florianópolis, 272 pp.
Diz o autor, na Apresentação: “Este trabalho foi gestado em ambiente
acadêmico, a partir do ano de 2002, no Instituto Patrístico Augustinianum
de Roma, apresentado a uma banca ad hoc e defendido publicamente em
2005, como tese para obtenção do grau acadêmico de Doutor em teologia
e Ciências Patrísticas, pela Pontifícia Universidade Lateranense também de
Roma, tendo por título “A Mulher no pensamento de Gregório Nazianzeno:
entre Teologia, Literatura e Pastoral”. Cumprindo as formalidades de praxe, foi publicado um excerto da Tese [...]. Desde então, concebi um amplo
projeto de trabalho patrístico, do qual fazia parte a publicação integral dessa
pesquisa empreendida”. A seguir, o autor refere os passos dados de então
para cá, aqui em Florianópolis: a criação da revista “Cadernos Patrísticos
– Textos e Estudos”, já com 11 números publicados, e a criação também da
“ABEPatri – Associação Brasileira de Estudos Patrísticos”.
Ainda o autor: “Enfim, sob o impulso dessa nova atmosfera, com a clara
consciência do dever cumprido, coloco à disposição do público interessado
o presente trabalho, produto de longos anos de pesquisa e de espera. Este
livro quer ser eco e reflexo de tudo isso, mas não é só; na sua especificidade,
quis prenunciar o III Encontro Nacional de Estudos Patrísticos, realizado nos
dias 16 a 19-09 p.p., aqui na Ilha de Santa Catarina, com o tema “A Mulher
na antiguidade cristã”.
O livro, após a Introdução, se desenvolve em quatro capítulos: o
primeiro, “Homem e mulher: imagem e semelhança de Deus”; o segundo,
“Os estados de vida: a mulher na vida cristã”; o terceiro, “O perfil feminino
da exegese do Nazianzeno”; e o quarto, “Paradigmas de análise”. Após a
conclusão, seguem 15 páginas de bibliografia.
Da conclusão, cito ainda o parágrafo final: “Na abrangência e no modo
como trata as questões femininas, Gregório Nazianzeno deixa a inconfundível
convicção da sua concepção da missão do pastor, revelando simultaneamente
o seu próprio perfil. No fundo, no tratamento que faz dos estados de vida da
mulher cristã, virgem, casada ou viúva, e nas recorrentes admoestações sobre
como bem vivê-los, o Teólogo deixa entrever sua preocupação com o espaço
que a sociedade deixa à ação e à participação feminina, em qualquer estado
de vida abraçado livremente pela mulher” (p. 256). (N.B.P.)
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Resumo: Os Grupos de Reflexão/Família (GR-F) são um jeito de a Igreja se
organizar para realizar sua missão evangelizadora. Contribuem para responder
aos anseios por vida comunitária na medida em que ajudam a paróquia a formar
redes de relações entre pessoas e grupos. O GR-F não é, portanto, um setor
pastoral ou uma atividade entre outras. A proposta aqui é entender o GR-F como
o jeito de a Igreja ser e o eixo dinamizador das pastorais. Isso exige desenvolver
uma eclesiologia, uma espiritualidade e um planejamento pastoral que acredite
nos pequenos grupos que formam a “Igreja de tamanho humano”, ajudando a
paróquia a ser “comunidade de comunidades” que se sustentam no encontro,
no diálogo e na cooperação.
Palavras-chaves: Igreja, comunidade, diálogo, participação, missão.
Abstract: A determinate Groups of Thought in collaboration with Family (GR-F)
and related organizations are a new trend active in the Church dealing with the
task of evangelization. Its aim is to answer to the aspirations for a life in community which will help the parish to organize a net of relationship between people
and groups. It is to kept in mind that the GR-F is one among many sectors of
pastoral activities. What remains to be made clear from now on is the unfolding
of this new approach in terms of a kind of procedure interacting dynamically on
other pastoral ministries. This involves a type of ecclesiology, spirituality, and
programs which give value to small groups and constitute a “Church of a more
human size”. Its objective should be quite helpful to organize the parish as a
“community of communities” which will be consolidated by personal encounter,
dialogue, mutual cooperation.
Grupo de Reflexão, modelo
de comunidade para a paróquia1
Elias Wolff*
* Presbítero da diocese de Lages/SC, professor de teologia na Faculdade Católica de
Santa Catarina e na PUCPR.
1
O presente artigo sintetiza a conferência do autor A Igreja nos Grupos de Reflexão/
Família, feita por ocasião da Semana Teológica realizada no Instituto Teológico de
Santa Catarina em 2006, que tinha como referência principal a experiência dos Grupos
de Reflexão/Família no Regional Sul IV da CNBB.
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Ano 28 / número 2 / 2013, p. 115-132.
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Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia
Introdução
Ao refletirmos sobre a “Paróquia: comunidade de comunidades”,
é oportuno resgatar uma das experiências comunitárias mais significativas vividas por longos anos em várias dioceses do Brasil: os Grupos
de Reflexão/Família. Eles existem desde os anos 70 do século passado,
como uma rica história de vivência da fé, de oração marcada pela bíblia
e pela piedade popular, de organização de comunidades, de evangelização e atuação no meio social. É uma história vivida por gente simples, a
maioria pobre, habitantes de áreas rurais ou nas periferias das cidades.
Essas pessoas encontram nos Grupos de Reflexão/Família um espaço
social e eclesial onde podem se expressar em suas alegrias, frustrações,
esperanças. Por ser uma realidade de fé que fortalece a vivência e a convivência cristãs, a história dos GR-F é uma história de Igreja. A Igreja
encontra nos Grupos um jeito próprio de ser, na simplicidade de sua
organização, na liberdade de expressão, na espontaneidade dos acontecimentos, na construção do comunitário sem a complexidade institucional,
com legitimidade de comunidade eclesial.
Nesta hora em que se fortalece a expectativa por um modo de ser
Igreja caracterizado pela simplicidade, proximidade, encontro, diálogo
e cooperação, fortalecidos na mística de Francisco, os GR-F têm muito
a oferecer para uma Paróquia Comunidade de Comunidades.
1 Matrizes históricas
A origem dos GR-F tem suas raízes nos “Círculos Bíblicos” que surgiram na década de 70 do século passado. Em algumas dioceses, sobretudo
do Nordeste Brasileiro, surgiram até um pouco antes, com a Campanha da
Fraternidade na diocese de Natal, em 1962. A partir de 1964, a Campanha
da Fraternidade foi adotada em todas as dioceses do país. Para bem viver
a Campanha, surgiram os grupos que se reuniam para rezarem nas casas,
sobretudo durante a Quaresma e o Natal. Com o tempo, passou-se a elaborar subsídios próprios para os encontros nesses grupos e muitos deles
passaram a ser permanentes. Na década de 70, a maioria das dioceses do
país já faziam a experiência comunitária nos Grupos.
Essa experiência é vivida de modos diferentes nas diversas regiões do Brasil. No Nordeste, os Círculos Bíblicos são, pelo menos em
sua origem, raíz e expressão de um modelo de Igreja que se configura
como Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Na região Sul e Sudeste,
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Elias Wolff
eles estão mais vinculados ao estilo tradicional da paróquia. O que há
de comum é o tripé que os sustenta: a oração, a reflexão e a ação2. Eles
são centrados na releitura bíblica que ilumina os fatos da vida, são coordenados por lideranças leigas, possuem uma estrutura simples, e uma
significativa autonomia em relação à paróquia. Os GR-F são, portanto,
uma forma de organizar a Igreja conforme as orientações do Concílio
Vaticano II, centrada na eclesiologia do povo de Deus, com base no
sacramento do batismo e no sacerdócio comum dos fiéis. O episcopado
latino-americano, sobretudo nas assembléias de Medellín (1969) e Puebla
(1978), deram força a essa forma de organização eclesial.
A partir dos anos 90, se intensificam novas formas de experiência
comunitária, sobretudo através dos movimentos eclesiais e das chamadas
novas comunidades. Diferem muito da proposta comunitária dos GR-F
em seu horizonte eclesiológico, espiritual e pastoral. Também sua organização é outra: segue-se uma liderança única, que decide, orienta, dá as
“normas” da comunidade – diferente dos pequenos grupos onde há mais
possibilidades para partilhar a liderança; a mensagem é mais doutrinal,
moral e espiritualizante, com raríssima incidência no cotidiano social das
pessoas; o encontro tem características de massa, a maioria desconhecida,
diferente do pequeno grupo onde todos se conhecem; se reúnem mais
para ouvir uma mensagem, homilia, lição, do que para falar e partilhar
suas próprias vivências.
Atualmente, os GR-F, que foram “prioridades” em muitas dioceses
e paróquias até os anos 90, não recebem mais a mesma atenção pastoral.
Em muitos lugares deixaram de existir aqueles pequenos grupos que se
encontravam, semanalmente, para refletir e rezar os fatos da vida à luz
da Palavra de Deus.
2 Características da comunidade nos GR-F
Os GR-F caracterizam-se por três elementos fundamentais: Social
– é uma experiência de encontro comunitário que acontece nas bases da
sociedade onde estão, em sua grande maioria, pessoas pobres e simples.
Teológico – alimentam a fé num Deus próximo, presente, solidário nas
lutas do cotidiano. Eclesial – entendem a Igreja como Povo de Deus,
2
Carlos Mesters, Introdução Geral aos Círculos Bíblicos: Guia do dirigente, Vozes,
1981.
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Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia
“Igreja nas casas/Igreja doméstica”3, “o jeito normal de ser Igreja”4, “um
instrumento que favorece um novo jeito de ser Igreja”5. Entende-se que
“a Igreja que estamos construindo através dos Grupos de Famílias ..., é
sinal do Reino”6.
Essas características – social, teológica e eclesial – se expressam
nos GR-F pela:
– Dimensão comunitária da oração: o povo tem uma herança
religiosa, na qual a oração tem destaque. O povo reza com
fervor e alegria, mesmo em situações de sofrimento. A dimensão comunitária da oração forma a consciência eclesial de um
jeito novo, mesmo quando se cultivam as formas tradicionais
de oração vocal (terço, novenas, ladainhas, etc.).
– Celebrações: são momentos privilegiados e de encontro, comunhão, animação evangélica, afirmação da esperança. É algo
essencial da Igreja GR-F, presente no dia-a-dia como fator de
união, festa, solidariedade e reflexão. Aqui o povo mostra sua
criatividade com respeito aos símbolos, à vivacidade e fecundidade, plasmando a liturgia em sintonia com a vida concreta,
com cantos, oração, a Palavra, a partilha. É uma celebração
doméstica, familiar, na qual os acontecimentos do cotidiano
são motivos de louvor e súplica.
– Vida sacramental: a Igreja dos/nos GR-F permite uma eficaz
compreensão dos sacramentos e uma revisão de sua administração7. Trata-se de sinais de santificação e edificação da Igreja,
fecundados pela vivência concreta que historiza o amor/caridade, para o qual os sacramentos apontam. Os sacramentos são
celebrações proféticas do Reino. Não são ritos mágicos, mas
3
Diocese de Criciuma, Orientações para Animadores e Animadoras – Grupos de
Família, s/d, 3.
4
Diocese de Rio do Sul, Igrejas nas Casas – Subsídio para formação de animadores de Grupos de Reflexão, 2004.
5
Arquidiocese de Florianópolis, A Igreja nas Casas – Espiritualidade e missão
dos animadores e animadoras dos Grupos de Reflexão, 2002, 13.
6 Diocese DE LAGES, Diretrizes e Orientações Pastorais da Ação Evangelizadora –
200-2003, 22.
7
118
Há dioceses que, explicitamente, vinculam GR-F e sacramentos: DIOCESE DE LAGES
entende ser o GR-F o espaço para a formação/catequese do sacramento do Batismo;
exorta para que catequistas e catequizandos sejam participantes ativos nos GR-F
(Diretrizes e Orientações, 48ss).
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Elias Wolff
sinais de vida nova, de serviço de responsabilidade solidária
por um mundo melhor e por uma Igreja sacramento do Reino.
Nos GR-F eles revelam toda a sua densidade e dimensão dialogal e libertadora.
É importante observar, ainda, as características de institucionalidade e autonomia do GR-F. Ele não é uma organização paralela à
organização da paróquia. É a própria comunidade paroquial reunida
em grupos. Isso dá um caráter institucional ao GR-F, presente nas
discussões dos Conselhos Diocesanos e Paroquiais que planejam a
evangelização, com pertinência na catequese, na liturgia, nos movimentos etc. De outro lado, o caráter institucional dos GR-F não pode
tirar-lhes a liberdade e a autonomia. Eles não podem ser enquadrados
em esquemas formais a partir da instituição. A sua autonomia se manifesta: na espontaneidade e liberdade para a organização dos grupos e
para a realização dos encontros; nas estruturas dos grupos em relação
às estruturas paroquiais; na prioridade da atuação dos ministérios leigos
em relação aos ministérios ordenados.
Assim, a paróquia, a diocese, o regional, funcionam como elementos de referência para a promoção, articulação e abastecimento dos
GR-F, sem torná-los dependentes de suas referências institucionais como
únicas. A referência primeira, que determina o modo de ser concreto
da Igreja no GR-F é a comunidade local onde o grupo existe. É com
base nessa realidade que outras instâncias podem ajudar na formação e
andamento dos GR-F.
3 Mas..., o que é mesmo um Grupo de Família/
Reflexão?
Assumimos aqui a definição de “grupo” apresentada por PichónRivière, psiquiatra e psicanalista argentino, o qual afirma que
Grupo é todo um conjunto de pessoas ligadas entre si por constantes
de tempo e espaço, e articuladas por sua mútua representação interna,
que se propõem explícita ou implicitamente uma tarefa que constitui sua
finalidade. Podemos dizer, então, que estrutura, função, coesão e finalidade, juntamente com o número determinado de integrantes, configuram
a situação grupal, que tem seu modelo natural no grupo familiar8.
8
Enrique Pichon-Riviére, O Processo grupal, Martins Fontes, 1982, 34.
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Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia
Utilizando essa compreensão de grupo para a nossa conversa
sobre os GR-F, alguns elementos merecem consideração:
a) A formação do grupo só existe onde houver “ligação” entre
pessoas, um vínculo que dura no tempo e que se vive num
determinado ambiente. Essa “ligação” significa que existe
um processo de mútua identificação afetiva e espiritual entre
os membros do grupo, com valores comuns e também com
problemas comuns. É o reconhecimento disso que “liga” os
membros do grupo. No caso dos GR-F, entre os elementos de
ligação destacam-se a fé, a pertença a uma mesma comunidade/
Igreja, a pertença ao mesmo meio social.
b) Todo grupo possui uma estrutura interna própria, de coordenação, função, finalidade, que articula a ligação entre as pessoas.
Essa estrutura faz com que os GR-F sejam 1) vitais: porque
vão ao encontro das realidades existenciais de seus membros,
respondem aos seus anseios, expectativas, sonhos, desejos,
projetos. Concretamente: os GR-F articulam a vida de fé e
alimentam o desejo de uma vida socialmente feliz para todos
os seus membros; 2) ágeis: porque dinamizam e fortalecem o
encontro entre as pessoas usando a criatividade para responder
às necessidades apresentadas por elas e/ou pelo ambiente; 3)
pluriformes: de acordo com as pessoas e o ambiente, será a
organização e o andamento “da situação grupal”.
c) Microestruturas e busca do comunitário: os grupos são estruturas pequenas e simples, de dimensão humana, que personalizam as relações, permitem o mútuo reconhecimento e
valorização das pessoas, diferente de uma certa esclerose das
grandes instituições, que não satisfazem às exigências de fraternidade. Assim, os GR-F são “microcomunhões” (Besret),
mostrando que a pertença à Igreja passa pela pertença a uma
multidão de pequenos grupos9. Os GR-F objetivam refazer o
tecido comunitário pela experiência de “ser-junto”, “ser-com”,
“ser-para”, caracterizado pelo desejo de comunhão. Nessas
microestruturas, a comunhão é humana, afetiva, espiritual.
Tal é um critério e condição para a comunhão também institucional e doutrinal.
9
120
Almir Ribeiro Guimarães, Comunidades de Base no Brasil, Vozes, 1978, 55.
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Encontros Teologicos 65.indb 120
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Elias Wolff
d) Os GR-F são unidades estruturantes da Igreja: por eles e neles, a Igreja assume um jeito próprio de ser, uma organização
específica, peculiar, de acordo com a experiência de fé que ali
acontece. A essência dessa organização consiste em fazer com
que as estruturas eclesiais sejam mais circulares, colegiadas,
acolhedoras, inclusivas. A paróquia, historicamente “guardiã da
tradição” e centro unificador único, dá espaço para outro ponto
de referência, o grupo, onde acontece o encontro e a comunhão
de vida entre as pessoas. Diferentes GR-F formam uma rede
de contatos em diferentes níveis da vida cristã e eclesial. Esta
“rede”, formada pelos GR-F, tem três tarefas:
1) possibilitar a comunhão sem fragmentar a experiência
de fé;
2) possibilitar uma vida cristã autêntica num processo de
educação continuada na fé;
3) ser o “centro de coordenação e animação de comunidades,
grupos e movimentos” (Puebla, 640).
4 Objetivos dos Grupos de Reflexão/Família
O objetivo geral dos GR-F é evangelizar, anunciando e testemunhando a libertação que vem com o advento do Reino10. Isso acontece
através da experiência da “Igreja nas casas”, “na base”, no “chão da
vida”. Visa “aproximar a Igreja de hoje com a vida das primeiras comunidades cristãs”11, favorecendo o amadurecimento do ser cristão na vida
pessoal e comunitária. Assim, o GR-F “evangeliza a pessoa, a família, a
comunidade e a sociedade como um todo, em parceria com as pastorais,
movimentos e ministérios, para conscientizar o povo de Deus, fortalecer
a vivência cristã e transformar a realidade social”12.
Desse objetivo geral, saem os objetivos específicos para os GR-F:
1) Possibilitar a formação permanente da vida cristã, sobretudo
para os adultos;
2) Vivenciar com profundidade os tempos litúrgicos;
10
11
Diocese de Criciuma, Orientações para Animadores e Animadoras – Grupos de
Família, 4.
Arquidiocese de Florianópolis, A Igreja nas Casas, 7.
12
Diocese de Joinville, Diretrizes pastorais 2003-2007, 35.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
Encontros Teologicos 65.indb 121
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Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia
3) Formar para a vida comunitária, na Igreja e na sociedade;
4) Despertar e formar lideranças na comunidade eclesial e na
sociedade;
5) Contribuir com a vida paroquial na realização dos projetos de
evangelização, fazendo da paróquia uma “rede de comunidades” e das comunidades uma rede de grupos13;
6) Possibilitar um maior conhecimento das pessoas, sobretudo da
vizinhança, criando e fortalecendo laços de amizade, fraternidade e solidariedade – superando o anonimato, o individualismo,
o egoísmo, o espírito de competição;
7) Despertar a consciência crítica da cidadania cristã, favorecendo
a tomada de posição frente às questões sociais que contradizem
o Evangelho e ameaçam a vida humana e do planeta.
Esses objetivos formam a vida cristã e eclesial, unindo oração,
reflexão e ação:
É exatamente a reflexão que une a oração com a ação. É pela reflexão
da Palavra de Deus e da realidade social, que se consegue fazer com que
a oração não seja desligada da vida, mas comprometida e comprometedora com as causas e as lutas do povo. É pela reflexão que se consegue
fazer que a ação não seja desligada da fé, mas fique bem enraizada no
coração de Deus. Por isso, preferimos chamar nossos grupos de Grupos
de Reflexão14.
5 Desafios dos GR-F para a experiência
comunitária na Igreja
5.1 Desafios para toda a Igreja
Compreender a Igreja como Povo de Deus e como Igreja doméstica/família/casa nos GR-F e a partir deles, tem desafios de renovação
para a Igreja toda:
a) Mudanças na atual fisionomia da Igreja: na mentalidade teológica, nas relações hierárquicas, no agir pastoral.
122
13
Diocese de Criciuma, Orientações para Animadores e Animadoras – Grupos de
Família, 3.
14
Arquidiocese de Florianópolis, A Igreja nas Casas, 8.
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Elias Wolff
b) Mudanças institucionais: além da paróquia e dos ministérios
ordenados, o GR-F propõe à Igreja o reconhecimento do valor
de outros espaços/mediações da vida eclesial.
c) Interação entre o antigo e o novo na Igreja: não se abandona
a tradição de fé, os elementos já consolidados pela tradição
eclesial. Mas faz-se uma reinterpretação e atualização desses
elementos para um modelo concreto de Igreja nos GR-F. Tratase de superar a “pastoral da conservação”15, como propõe o
documento de Aparecida.
d) Espiritualidade de serviço: a espiritualidade desenvolvida nos
GR-F tem uma característica eminentemente prática, numa
interação estreita entre oração e ação, no horizonte da disponibilidade, da solidariedade, da generosidade.
e) Educação permanente para a vida cristã: participar dos GR-F
é desenvolver um processo de catequese permanente, numa
atualização constante na fé. Isso tem consequências positivas
para os participantes dos grupos e para a comunidade como
um todo.
f) Abertura missionária: tanto o GR-F quanto a comunidade
encontram sua razão de ser no testemunho do evangelho. O
evangelho é proclamado e testemunhado no meio social onde
vivem os cristãos e onde a Igreja se organiza. Assim, os GR-F
colocam a Igreja numa “pastoral decididamente missionária”16:
decidida, como querem os bispos da América Latina.
g) Aceitação da variedade e organicidade dos ministérios e esclarecimento do conteúdo dos vários ministérios: a Igreja dos
GR-F é uma realidade toda ministerial, com uma pluralidade
de ministérios/serviços que surgem por obra do Espírito Santo
e como resposta às necessidades do serviço ao Evangelho em
contextos bem definidos. É preciso saber acolher as múltiplas formas de evangelização, esclarecendo as competências
devidas para os diferentes modos de agir dos ministros, num
entendimento preciso da função que compete a cada um e numa
relação orgânica dos diferentes serviços.
15
CELAM, Documento de Aparecida, n. 370.
16
CELAM, Documento de Aparecida, n. 370.
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Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia
5.2 Desafios para a paróquia
O modo de a Igreja ser nos GR-F faz com que a paróquia como
um todo seja por ele dinamizada: “os membros dos serviços, pastorais,
movimentos e associações devem participar dos Grupos de Famílias em
suas Paróquias como espaço comum para todos”17. Por isso, o GR-F é “o
lugar da vivência da fé, da formação da consciência crítica, da formação
de novas lideranças e da organização de comunidades vivas e participativas dos discípulos e discípulas de Jesus”18.
A multiplicação dos GR-F como “microcomunhões”, como
“rede”, como “micro-estruturas eclesiais”, colabora com a proposta de
“setorização” das paróquias, como pede o episcopado latino-americano19.
Ajuda a paróquia a ser comunidade de comunidades, rede de relações.
O principal desafio para a paróquia é deixar-se vitalizar, dinamizar,
desmassificar, desconcentrar, descentralizar pelos GR-F. Eles exigem
da paróquia mais atuação como apoio, serviço, formação, do que como
administração. A matriz não é o único ponto de referência da vida eclesial, é preciso confiar nas lideranças do GR-F. As estruturas clássicas da
paróquia e seus agentes, sobretudo o clero, não respondem sozinhos a
todas as necessidades da evangelização. Faz-se necessário uma presença
além do formal e institucional, entendendo que a paróquia sozinha não
é suficiente para garantir a pertença à Igreja.
Assim, o GR-F articula-se através de concretizações e estruturas
comunitárias diferentes das tradicionais, com liberdade de ação e autonomia num campo de experimentação próprio. A paróquia e suas estruturas
estão a serviço dos GR-F. A matriz funciona como sinal de unidade na
variedade; centro de abastecimento e apoio; deve suprir o que os GR-F
não podem fazer; oferecer aos GR-F espaço de maior integração e troca
fraterna. Os GR-F não são “agências” da paróquia, mas realidades de
Igreja, com diferentes estruturas de pertença, relação, serviços, participação e corresponsabilidade20.
É importante enfatizar que não pode haver perda do vínculo entre
os GR-F e a paróquia. Nos GR-F há um jeito de ser Igreja que precisa
124
17
Diocese de Criciuma, Orientações para Animadores e Animadoras – Grupos de
Família, 4.
18
Diocese de Criciuma, Plano de Pastoral.
19
CELAM, Documento de Aparecida, n. 372.
20
Dom Luís Fernandes, Como se faz uma CEBs, Vozes, 1984, 68.
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Elias Wolff
ser respeitado e incentivado, sempre em comunhão com a paróquia.
Autonomia e comunhão. A paróquia não impõe aos grupos o seu modo
como conditio sine qua non de ser Igreja; e os GR-F não caminham
isoladamente da paróquia. O que se deve é desenvolver um sentido de
pertença mútua, espiritual e institucional, numa liberdade solidária para
com os projetos de evangelização. É isso o que faz com que os GR-F
sintam-se membros de uma comunidade eclesial maior, expressão dela
ao mesmo tempo que contribuem para a sua renovação.
5.3 Desafios para a comunidade
Os GR-F contribuem para renovar a comunidade em alguns elementos principais:
a) as comunidades de hoje não estão mais apoiada no simples
fato de se ter uma tradição, ou na paróquia, ou mesmo apenas
em princípios religiosos. Na sociedade e na cultura atuais, é
cada vez mais difícil encontrar-se razões para a formação de
comunidades. Estas só nascem ao redor de uma causa, um
carisma, com vínculos afetivos. Isso se encontra em pessoas
que possuem convicções. É esse o espírito dos participantes dos
GR-F. E eles se sentirão membros da comunidade na medida
em que nesta houver o espírito que os vincula nos grupos. Aqui,
o desafio para a comunidade tornar-se acolhedora, sensível
às necessidades e valores de seus membros, simples em suas
estruturas, afetiva nas relações.
b) Nos GR-F, o processo de construção do ser Igreja é comunitário, acontece recolhendo experiências, devagar, com paciência. Ninguém sabe tudo, todos aprendem no caminho. Há
uma parceria na construção dos projetos onde se aposta mais
no outro do que em si mesmo. Sabe-se reconhecer os limites,
com humildade, e é preciso estar disposto a recomeçar sempre
que necessário. Também isso é um desafio para a comunidade.
Os membros dos GR-F se sentirão comunidade na medida da
participação efetiva que nela puderem ter.
c) Os GR-F levam a “investir e apostar na Igreja dos pequenos
grupos”21. Igualmente, levam a crer nas pequenas comunidades, “de tamanho humano”, versus massa. A massa é uma
21
Diocese de Criciuma, Plano Diocesano de Pastoral 2002-2007, 51.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
Encontros Teologicos 65.indb 125
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Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia
“mobilização aeróbica” (Gomes de Souza). Muitos eventos e
celebrações na grande comunidade são verdadeiros atos-espetáculos. A questão é se o que eles propõe tem continuidade na
vida eclesial e encaminham, de fato, a vivência cristã. Muitas
dessas experiên­cias, de aparente mobilização comunitária e
de conversões, pouco ou nada construíram na comunidade
que permaneça. A grandiosidade das mobilizações com ares
de triunfalismo e competição, perde o senso crítico sem as
exigências de uma fé adulta. No GR-F, a experiência da fé, as
celebrações, a prática da caridade, são ancoradas em compromissos. E é isso o que sustenta as pequenas comunidades22.
d) Os GR-F são “experimentações abertas” (Gomes de Souza),
as práticas procuram seus próprios caminhos. Não se pode
formalizar a caminhada de modo muito rápido, sob o perigo
de uma “enganosa eficiência” e um engessamento teórico da
experiência prática. O GR-F não é uma experiência entre outras, mas a própria Igreja que se experimenta nele. Sobrevive
porque responde à necessidade vital da fé para as pessoas e para
a comunidade. Daqui a importância de a comunidade saber ser
flexível em suas organizações, estruturas, lideranças. Onde não
houver isso, não haverá também valorização e incorporação
das experiências vividas nos GR-F.
e) Os GR-F explicitam a emergência de uma novidade criadora.
Trata-se do Evangelho em permanente reconstrução23. Têm-se
novas problemáticas e novos horizontes ao nível do real e da
consciência possível que são tratados nos grupos – questões
de gênero, da subjetividade, das etnias, da corporalidade, do
ecumenismo, do diálogo inter-religioso, etc. Esses horizontes
ampliam a visão de fé no GR-F e exigem opções irrenunciáveis
para o grupo e para a Igreja como um todo. A partir disso, emerge a necessidade de uma refundação da comunidade eclesial,
o que não é simples repetição de estruturas e orientações, mas
real abertura para o novo que constrói a Igreja do hoje, para
falar aos homens e às mulheres de hoje, em suas situações e
contextos atuais.
126
22
L.A. Gomes de Souza, “As CEBs vão bem, obrigado”, in REB, 237 (2000) 106.
23
L.A. Gomes de Souza, “As CEBs vão bem, obrigado”, in REB, 237 (2000) 107.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
Encontros Teologicos 65.indb 126
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Elias Wolff
5.4 Desafios para uma Igreja ministerial
Os GR-F são um alargamento das potencialidades dos leigos, com
uma efervescência de novos serviços/ministérios. A Igreja é tarefa de
todos os batizados, da criança ao adulto, homens e mulheres. Por muito
tempo, os leigos e as leigas foram expropriados/as na sua linguagem,
reduzidos/as a ouvintes subservientes do padre, seduzidos/as pelo brilhantismo da oratória e traje clerical ou pela sacralidade de suas decisões/
gestos. No GR-F, o/a leigo/a entende-se “agente de pastoral”, “evangelizador popular” (Puebla). É sujeito eclesial. Desenvolve-se um sentido
amplo de ministérios, não resumido à prática sacramental: coordenar o
grupo, arrumar o ambiente, entoar os cantos, fazer as leituras, preparar
os símbolos, representar o grupo em encontros da comunidade, etc.
Praticamente não existe membro do GR-F sem algum serviço.
O ministério leigo acompanha espiritualmente o GR-F e o representa na comunidade eclesial. Também representa publicamente
a sua comunidade eclesial perante a população civil e as autoridades
políticas. Essa representação ministerial fundamenta-se em cinco eixos: o testemunho do Evangelho (martyría); o serviço-ação no mundo
(solidariedade); o anúncio (profecia); a celebração (sacerdotal); a
coordenação (pastoral).
Esses elementos fazem com que a realidade ministerial da Igreja
se manifeste naturalmente nos GR-F. A partir das necessidades do grupo
é que os ministérios vão surgindo, espontaneamente. Trata-se de um
dom de Deus ao grupo como tal, para o benefício de todos os que dele
participam. Por isso eles não são concentrados em pessoas, são rotativos.
A mesma função pode ser desenvolvida por pessoas diferentes, cada
um com seu próprio modo de agir. Vê-se, assim, que os GR-F propõem
um novo exercício do ministério para a comunidade eclesial. São notas
características desse novo estilo a circularidade da coordenação, a democratização das decisões, a partilha das responsabilidades.
5.5 Desafios para o ministério ordenado
O ministério leigo é solidário com o ministério ordenado. Ao
mesmo tempo, apresenta desafios para este ministério, apontando possibilidades – e necessidades – para uma redefinição dos ministérios
clássicos na Igreja. Tais desafios se explicitam na multiplicação dos
novos ministérios, na descentralização do poder, na socialização da
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
Encontros Teologicos 65.indb 127
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Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia
orientação religiosa da comunidade de fé. São componentes básicos para
uma Igreja setorizada, renovada, participativa, Igreja comunhão, que se
assenta nos GR-F. O ministério ordenado não esgota todos os ministérios
na Igreja. E na medida em que se renova na compreensão de si mesmo,
vai descobrindo qual a relação mais adequada que pode ter com os ministérios laicais e com os GR-F. Nos GR-F os ministros ordenados têm
uma função mistagógica e pedagógica: dar o espírito, o elã, o ânimo
para o grupo. Eles oferecem as condições e o apoio necessários para a
organização dos GR-F como experiência de fé. Ajudam os GR-F a se
afirmarem como comunidade eclesial e chão desta. Permitindo que o
ministério leigo tenha seu lugar na comunidade, o ordenado deve saber
calar muitas vezes e falar na hora certa; em vez de apresentar-se como o
administrador, deve ser pai, conselheiro, amigo; é o ponto de encontro,
de unidade entre todos – “alma escondida de tudo” 24, o “cura do povo
de Deus”, que cuida, zela, ama.
5.6 Desafios para a evangelização
Os GR-F propõe uma evangelização que possibilite a comunicação de fé de um modo mais existencial/experiencial do que doutrinal/
disciplinar. A mensagem de fé nos grupos atinge as pessoas que não se
satisfazem com uma fé formal/institucional. Essas pessoas sentem-se
atraídas pelo evangelho na medida em que são atingidas em suas “regiões de crenças” e “regiões de incredulidade”. Para tanto, há que se
propor uma nova metodologia de evangelização, capaz de reconfigurar
os símbolos religiosos (imagens, ritos, linguagem, instituições) em um
novo contexto de religiosidade.
A “fé existencial” é aquela que responde às necessidades espirituais
do cotidiano das pessoas, dando sentido às situações pessoais, familiares,
sociais. Desse modo, a evangelização nos GR-F ajuda a desenvolver uma
linguagem. adaptada ao meio dos ouvintes, da mensagem proclamada.
É uma linguagem secularizada, leiga, sem a gramática do teologuês
magisterial. Isso faz dos GR-F espaços catecumenais para muitos que
não vão à Igreja oficial. E mostra, também, que as estruturas paroquiais
não são suficientes para garantir a pertença comunitária, chave da evangelização em toda a Igreja.
24
128
Dom Luís Fernandes, Como se faz uma CEBs, 62-63.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
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Elias Wolff
Dois elementos ajudam para isso: 1) na evangelização nos GR-F
são as tradições de devoções e piedades populares. Essas tradições sustentam a fé das pessoas no contexto de suas experiências cotidianas. Mas
em geral, essas devoções têm origem na Igreja tradicional e são acríticas.
Precisam ser atualizadas em seu significado para as pessoas e comunidades de fé atuais. Isso exige ressignificação linguística, simbólica e gestual
da piedade popular. Em situações de sofrimento e dor, as devoções unem
o consolo e a profecia numa função crítica e de contestação, quando se
constatam situações de injustiça na raiz do sofrimento humano.
2) É fundamental entender os GR-F como uma escola bíblica.
Recupera-se, assim, a sua origem nos “Círculos Bíblicos”. O desafio
na metodologia da evangelização da Igreja que se assenta nos GR-F é
desenvolver um método de compreensão das Escrituras que torne o texto
carregado de sentido para o contexto dos que o escutam nas reuniões do
grupo. Trata-se da releitura bíblica, como elemento fundamental para a
eficácia da evangelização nos GR-F.
5.7 Desafios para a formação dos GR-F
Sem dúvida, muitos são os desafios para fazer com que o conteúdo
catequético-pastoral dos GR-F (bíblico, teológico, social, espiritual) seja
transmitido e assimilado com profundidade, tanto no grupo quanto na
comunidade eclesial. Dentre esses desafios, destacam-se:
a) A necessidade da formação de animadores/as de GR-F com
uma bagagem teórica e metodológica que os capacite para
uma atuação eficiente e eficaz nos grupos. As pessoas que
desenvolvem o serviço de animação dos GR-F receberam
uma formação comum às outras lideranças. E muitas delas
não receberam formação nenhuma... Dada a especificidade
dos GR-F, como aqui constatada, faz-se mister também uma
formação específica, com uma teoria e metodologia adequadas
à eclesiologia, pastoral e espiritualidade dos GR-F.
b) O conteúdo catequético-pastoral do GR-F concorre com outros
conteúdos, apresentados em outros espaços eclesiais. A vitalidade da Igreja que ele propõe não encontra fácil integração
ou complementariedade nos conteúdos teológicos, pastorais e
espirituais transmitidos nesses espaços. Talvez a chave para
equilibrar, e se possível integrar, os diferentes conteúdos, seja
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
Encontros Teologicos 65.indb 129
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Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia
apresentar o conteúdo proposto pelo GR-F como “critério de
discernimento” dos demais conteúdos.
c) O conteúdo social parece, por vezes, uma “racionalização” da
fé, da vida eclesial e social, por parte de quem elabora o material
do GR-F. Este possui uma consciência de fé esclarecida, teologizada e politizada. Mas há que se verificar se na consciência
religiosa popular essa “forma” encontra acolhida real. Nem
todas as pessoas “tornam-se adultas” na fé e na vida eclesial,
mesmo após anos de participação no GR-F... A maioria(?)
permanece no horizonte da religiosidade popular espontânea e
apolítica. Isso parece não responder à “racionalidade” presente
no planejamento e articulação dos GR-F.
Não se pretende oferecer nenhuma receita para superar os desafios.
Buscamos apenas indicar alguns elementos que podem ajudar na busca
de saídas aos impasses constatados.
Primeiro, é preciso investir na compreensão da Igreja que se
manifesta nos GR-F, desenvolvendo uma eclesiologia que lhes seja
apropriada. A viabilidade dos GR-F está onde a Igreja se manifesta como
Povo de Deus, de comunhão e participação, com espaços efetivos para
a atuação dos ministérios leigos. Os GR-F são conaturais a essa forma
de ser Igreja.
Segundo, é preciso apresentar os GR-F como um critério de orientação, discernimento e organização da vida eclesial. Não significa que
outros modos de ser e de agir não tenham espaço na Igreja. É óbvio que
os GR-F não são a única forma de ser Igreja. Mas o GR-F é um modo
privilegiado de expressão da Igreja. Outros modos têm lugar na medida
em que se vinculam de alguma forma aos GR-F. Numa Igreja que tem
por “chão” os GR-F, não poderia haver projetos e/ou ações que estejam
deles totalmente desvinculados.
Terceiro, é preciso assumir as consequências da opção eclesial
na pastoral. O modo de ser Igreja implica no seu modo de agir. Trata-se
de assumir a metodologia, os objetivos e o conteúdo teológico/eclesial
dos GR-F como a metodologia, os objetivos e o conteúdo da evangelização e da organização da Igreja. Isso implica na coragem de redimensionar estruturas eclesiais, objetivos e planos pastorais, teologias
e espiritualidades, a fim de que os GR-F sejam os eixos dinamizadores
da comunidade eclesial.
130
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
Encontros Teologicos 65.indb 130
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Elias Wolff
Quarto, é preciso ser coerente com a espiritualidade dos GR-F.
Não pode haver contradição entre o modelo de Igreja que se quer e a espiritualidade que a alimenta. A espiritualidade é o que liga o plano teórico
e o prático do ser e agir da Igreja. É aqui que, de fato, se concretiza a
opção pelos GR-F. O jeito de ser Igreja no GR-F envolve espiritualmente a Igreja como um todo. A opção por esse jeito de ser é um processo
espiritual, e somente quem o faz entende o que significa dizer: “o GR-F
é o chão da Igreja”. Tal fato envolve o intelecto – compreender Deus e
a Igreja no GR-F; e o afeto – “viver/sentir” a experiência de Deus e de
Igreja nos GR-F.
Concluindo: Paróquia, comunidade em rede
dos Grupos de Reflexão/ Família
A paróquia é chamada a ser uma comunidade de comunidades, que
se constitui pela rede dos vários GR-F. Paróquia-comunidade-grupos,
todos vinculados por um programa comum de evangelização, na dinâmica
da organização da vida cristã e na espiritualidade que forma o projeto
eclesial e social. Isso garante uma interdependência das diferentes instâncias da comunidade cristã, numa relação orgânica entendida como
“rede”. A rede dos GR-F garante a colaboração, a solidariedade, a ajuda
mútua, o compromisso comum entre os grupos e destes com a comunidade e a paróquia. Permite a troca de experiências e de informações, a
diversidade e autonomia no interior da interdependência. No sistema de
rede funciona o aprendizado e o crescimento comum. Não pode haver
competição, acumulação, querer tirar vantagem. Todos lutam por todos,
num espírito de gratuidade, serviço, caridade. A ação é do Espírito, livre
e vinculada ao mesmo tempo.
Na rede, o papel da liderança se desenvolve através do diálogo.
A coordenação não está autorizada a “falar em nome dos” membros do
grupo. É, antes, um eco da fala deles. Não representa o pensamento do
grupo, mas o transmite. Quem lidera não “age pelos outros” mas faz do
seu agir uma expressão e um prolongamento da ação do grupo. A experiência da democracia nas decisões é “direta”, e não “representativa”.
Na democracia direta a ação dos membros do grupo é determinante,
suas opiniões e decisões dão o andamento do conjunto. Se há delegação
de poder, também isso é fruto de um acordo livre, aberto e rotativo, de
acordo com a disponibilidade de cada um.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
Encontros Teologicos 65.indb 131
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Grupo de Reflexão, modelo de comunidade para a paróquia
A rede dos GR-F é uma organização horizontal, que propõe um
modelo bem definido de Igreja e de sociedade, o modelo de comunhão
e participação em oposição ao modelo piramidal/hierárquico. Isso faz
com que os GR-F em rede formem a comunidade paroquial num jeito
próprio de ser Igreja. Na medida em que o espírito da colaboração, da
participação e da corresponsabilidade vai se fortalecendo, a paróquia
torna-se comunidade. Cada membro do GR-F quer fazer na paróquiacomunidade a experiência de participação que faz no próprio grupo, sendo
autônomo em sua ação e responsável pelos seus efeitos na realização
da sua missão.
Endereço do Autor:
Paróquia N.S.de Lourdes e São Luiz
Rua Padre Schrader, 01 – Agronômica
88025-090 Florianópolis, SC
132
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
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Resumo: A partir do texto de Estudos da CNBB 104, publicado pela Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil, o presente artigo se debruça sobre o vocábulo
“casa” aplicado à proposta de renovação paroquial, a fim de insistir na necessária transformação da paróquia em comunidade de comunidades. Retoma-se
a expressão latina Domus Ecclesiae, confrontando-a com a expressão Ecclesia
domestica, atribuída pelo recente magistério à família, no intuito de se enfatizar
a relação entre as características da família, como comunidade de pessoas, e
a vocação da comunidade eclesial em se tornar uma família, sobretudo pelas
relações humanas caracterizadas pela fraternidade.
Palavras-chave: Igreja doméstica, família, comunidade, fraternidade.
Abstract: From the text of Estudos da CNBB 104, published by the National
Conference of Bishops of Brazil, this article focuses on the word “home” applied
to the proposed parish renewal, in order to insist on the necessary transformation
of the parish as community of communities. Take up the Latin expression Domus
Ecclesiae, confronting it with the phrase Ecclesia domestica, attributed by the
recent magisterium to the family, in order to emphasize the relationship between
the characteristics of the family as a community of people, and the vocation in the
ecclesial community to become a family, especially through human relationships
characterized by brotherhood.
Keywords: Domestic church, family, community, brotherhood.
Família como comunidade
e comunidade eclesial como família:
fraternidade cristã e universal
na nova paróquia
Rafael Cerqueira Fornasier*
* O autor é assessor da Comissão Episcopal de Vida e Família, da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013, p. 133-144.
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Família como comunidade e comunidade eclesial como família
Introdução
O texto de estudo Comunidade de comunidades: uma nova paróquia, publicado recentemente pela Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, através de comissão ad hoc,1 ao se apoiar no vocábulo “casa”, o
emprega tanto no seu sentido alegórico quanto literal, propondo que a
urgente renovação paroquial passe pela transformação da comunidade
eclesial em verdadeira comunidade de comunidades ou família de famílias, que se concretiza em meio às casas dos homens e mulheres de
nosso tempo.
Partindo do emprego que o texto supracitado faz desse vocábulo,
o presente estudo se deixa incitar ao aprofundamento da percepção da
realidade familiar e comunitária da Igreja primitiva e sua transposição à
proposta pastoral a que se pretende, colocando em evidência o desdobramento da experiência eclesial na casa de família ou na casa-comunidade.
Em seguida, assumindo a clássica expressão Domus Ecclesiae como
chave hermenêutica da vida comunitária eclesial para os nossos dias,
propõe-se assumir, por um lado, a analogia com a família, a fim de se
desenvolver a ideia de uma comunidade familiar, e, por outro, haurir
da reflexão sobre a expressão frequentemente usada pelo magistério,
Ecclesia domestica – vizinha da primeira expressão – a contribuição da
família como primeira comunidade eclesial no seio da Igreja. Por fim,
buscando verificar a existência de estreita ligação e interação entre Domus
Ecclesiae e Ecclesia domestica, avança-se a proposta de se servir da
noção de fraternidade como síntese no processo de reflexão teológica,
apontando suas implicações eclesiológicas e pastorais.
I A casa de família e a casa-comunidade
na experiência eclesial
No texto de estudos n. 104 da CNBB, o vocábulo “casa” retorna
aproximadamente quarenta e cinco vezes. Num primeiro momento, o
texto faz referência ao dado escriturístico, fundamentando a experiência
eclesial no relato da experiência cristã vivida em casas de família: “Depois da celebração, em casa, na pequena comunidade da família, o povo
aprofundava o significado das leituras ouvidas na sinagoga (cf. 2Tm 3,15;
1
134
CNBB, Comunidade de comunidades: uma nova paróquia. Estudos da CNBB 104.
Brasília: Edições da CNBB, 2013. Doravante indicado pela abreviação CC.
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1,5).”2 Era nas casas que, principalmente, a comunidade cristã se constituía sobre as quatro colunas indicadas por Lucas.3 Nesta perspectiva,
Jesus é apontado como aquele que “recupera a dimensão caseira da fé”,4
pois ele mesmo acolhia em sua própria casa (cf. Mt 9,28; Mc 1,33).
Em consonância com esta leitura bíblica, a perspectiva teológica
do texto supracitado retoma a referência à experiência paulina de Igreja
e afirma que
São Paulo prefere usar a expressão Igreja Doméstica (Domus Ecclesiae), indicando que as comunidades se reuniam na casa dos cristãos.
As comunidades cristãs de Jerusalém, Antioquia, Roma, Corinto, Éfeso,
entre outras, são comunidades formadas por Igrejas Domésticas, sendo
que as casas serviam de local de acolhida dos fiéis para ouvir a Palavra,
repartir o pão e viver a caridade que Jesus ensinou.5
Ressalta-se que, com a progressiva expansão do mundo urbano, as
comunidades da Palestina, marcadamente rurais e itinerantes, passaram a
um modelo6 de Igreja mais sedentarizada, porém ainda, nos três primeiros
séculos, caracterizadamente doméstica. “A casa era a estrutura básica
da sociedade e estava ligada à totalidade da mesma.”7 No entanto, nos
períodos históricos subsequentes, a Igreja doméstica ou familiar cede
espaço para a paróquia, na qual o organização central se apoia no dado
territorial.8 A experiência eclesial vivida na igreja-casa se aglutina em
torno a um grupo maior, ao local de reunião ou ao templo, à comunidade
paroquial.9
2
Ibid., n. 12.
3
Cf. n. 36. Segundo uma leitura que se inspira da tradição judaica, alguns exegetas
apontam, em lugar de quatro colunas ou fundamentos, três. Cf. BOSSUYT, P; RADERMAKERS, J. Témoins de la Parole de la Grâce. Actes des Apôtres. 2 Lecture
continue. Collection IET 16. Bruxelles: Institut d’Etudes Théologiques de Bruxelles,
1995, p. 158-161. Ver também BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. The
New Jerome Biblical Commentary. New Jersey: Prentice Hall, 1990, p. 734.
4
CC, n. 22.
5
Ibid., n. 46. Cf. Fl 1,2; Col 4, 15; Rm 16, 5; 1Cor 16, 19; At 1, 13; 2, 46.
6
A respeito dos modelos de Igreja, veja-se, por exemplo, CIPOLINI, P. C., A Igreja e seu
rosto histórico. Modelos de Igreja e modelo de Igreja na cidade. Revista Eclesiástica
Brasileira, Petrópolis, Fasc. 244, p. 825-851, dez. 2001.
7
CC, n. 47.
8
Não é intenção deste estudo fazer uma avaliação do dado negativo ou positivo da
criação das paróquias como espaços de reunião ou templos, localizados e delimitados
por um território.
9
Cf. CC, n. 49.
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Família como comunidade e comunidade eclesial como família
Por um lado, fica evidenciado o real risco de massificação e anonimato dos cristãos em meio à grande assembleia. Por outro, a relação
entre Igreja-casa e Igreja-comunidade sempre esteve articulada como
duas faces indissociáveis da mesma realidade, ou seja, a comunidade
eclesial.10 Como o afirma o próprio texto de estudo da CNBB, Jesus Cristo
ele mesmo, desde sua tenra infância, experimentou a vida religiosa na
casa de sua família e em relação ao templo,11 local de culto público do
povo de Israel. E, mais tarde, nos ensinamentos e encontros acontecidos
em casa própria e alheia ou nas sinagogas e diante de multidões.12
II Relação entre ecclesia domestica e domus
ecclesiae na comunidade paroquial13
O Documento de Aparecida e as Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora no Brasil (2011-2015) insistem na importância da família na
ação evangelizadora, orientando que a família seja assumida como eixo
transversal de toda a vida pastoral da comunidade cristã.14 De fato, “na
renovação paroquial, a questão familiar exige conversão pastoral para não
perder nada do que a Igreja ensina e, igualmente, não deixar de atender,
pastoralmente, as novas situações familiares.”15
Ao final do documento de estudos 104 da CNBB, algumas proposições são indicadas e necessitam ser aprofundadas e implementadas
para se realizar esta conversão pastoral em vista da nova evangelização,
sobretudo no âmbito da pessoa e da família. Ao se falar da caridade, o
texto reforça a necessidade de “valorizar a família, santuário da vida, e
os grupos de casais que se apoiam mutuamente, promovendo encontros
entre as famílias”, pois “são exemplos de iniciativas para conscientizar as
10
11
136
Cf. ZULEHNER, P. M. Comunidade. In: EICHER, P. (Dir.) Dicionário de Conceitos
Fundamentais de Teologia. São Paulo: Paulus, 1993, p. 102.
Cf. CC, n. 12.
12
Cf. CC, n. 22-23. O fenômeno de massa merece maior atenção quanto à sua contribuição no âmbito da fé cristã. Descartá-lo simplesmente, em nome da justa preocupação com a realização da vida cristã comunitária local, significa perder algo próprio
da natureza humana atestado ao longo de sua história secular e também religiosa.
13
A título de metodologia, optou-se aqui por atribuir a expressão Domus Ecclesiae
à comunidade e Ecclesia domestica à família, como empregado em documentos
magisteriais, embora a tradução “Igreja doméstica” seja com frequência empregada
tanto a uma quanta a outra.
14
DGAE, n. 108 e DAp, n. 435.
15
CC, n. 102.
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pessoas sobre a importância da família na vida de cada um.” Ao mesmo
tempo, “acolher, orientar e incluir nas comunidades aqueles que vivem
numa outra configuração familiar, são desafios do presente.”16
Todavia, é mister reassumir o lugar da família não só como sujeito
a ser evangelizado, mas como sujeito de evangelização. Retomando a expressão da Lumen gentium, n. 11, o Documento de Aparecida afirma:
Ao mesmo tempo, quando essa experiência de discipulado missionário é
autêntica, “uma família se faz evangelizadora de muitas outras famílias
e do ambiente em que ela vive”. (FC 52; CCE 1655-1658, 2204-2206,
2685) Isso age na vida diária “dentro e através dos atos, das dificuldades,
dos acontecimentos da existência de cada dia”. (FC 51) O Espírito, que
faz tudo novo, atua inclusive dentro de situações irregulares, nas quais
se realiza um processo de transmissão da fé, mas temos de reconhecer
que, nas atuais circunstâncias, às vezes esse processo se encontra com
muitas dificuldades. Não se propõe que a Paróquia chegue só a sujeitos afastados, mas à vida de todas as famílias, para fortalecer nelas a
dimensão missionária.17
A fim de se evitar a simples justaposição entre comunidade familiar
e comunidade eclesial, como frequentemente corre-se o risco de se fazer
na prática pastoral e na pesquisa teológica, é bem-vinda a apropriação da
noção de Domus Ecclesiae – Igreja doméstica – aplicada à proposta de
comunidade eclesial, que, por sua vez, quer vislumbrar o novo rosto da
paróquia. Contudo, haja vista a atual situação do emprego da expressão
nos limites da pesquisa quase que exclusivamente no âmbito da história
da Igreja primitiva ou nos estudos de liturgia, parece importante adotar,
como chave hermenêutica, o emprego de expressão análoga, comumente
atribuída pelo magistério da Igreja à família (Ecclesia domestica). Tarefa
que poderia ser objeto de pesquisa mais aprofundada, à qual aqui só se
fez rápida alusão.
A correlação entre os empregos em teologia da expressão Ecclesia
domestica para a família e Domus Ecclesiae para comunidade paroquial necessita de aprofundamento, ainda que en passant, a fim de se
colherem eventuais contribuições para a experiência eclesial que brota
16
Ibid., n. 229.
17
DAp, n. 204.
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Família como comunidade e comunidade eclesial como família
do vis-à-vis destas duas realidades, tanto em nível teológico-pastoral
quanto social.18
II.1 Ecclesia domestica como família-comunidade
O Documento de Aparecida oferece grande contribuição ao presente estudo, ao afirmar que “dentro do território paroquial, a família
cristã é a primeira e mais básica comunidade eclesial. Nela se vivem
e se transmitem os valores fundamentais da vida cristã. Ela se chama
‘Igreja Doméstica’”.19
Na mesma linha, as conferências latino-americanas também
fizeram uso da expressão Ecclesia domestica (Igreja doméstica), aplicada à família, insistindo no aspecto comunional. A família é, portanto,
“comunidade de fé, de oração, de amor, de ação evangelizadora, escola
de catequese”20, da qual depende em grande parte o futuro da evangelização.21 Santo Domingo declara que a família cristã é “a primeira
comunidade evangelizadora.”22
A própria vida quotidiana de uma família autenticamente cristã constitui
a primeira “experiência de Igreja”, destinada a confirmar-se e a progredir na gradual inserção ativa e responsável dos filhos na mais vasta
comunidade eclesial e na sociedade civil. Quanto mais os esposos e
pais cristãos crescerem na consciência de que a sua “Igreja doméstica”
participa na vida e na missão da Igreja universal, tanto mais os filhos
poderão ser formados para o “sentido da Igreja” e experimentarão a
beleza de dedicar as suas energias ao serviço do Reino de Deus.23
No entanto, a família não é autossuficiente e, muitas vezes, não
recebe somente apoio na vida da comunidade eclesial, como também a
comunidade se torna uma verdadeira referência de família, através da
138
18
É também a preocupação manifestada por Hermann Häring acerca de uma eclesiologia que se desdobra através de elementos históricos, sociológicos e dogmáticos.
Cf. HÄRING, H. Igreja/Eclesiologia. B. Teologia Sistemática. In: EICHER, P. (Dir.) op.
cit., p. 375.
19
DAp, n. 204. Grifo nosso.
20
MEDELIN, n. 3.IV.7
21
Cf. PUEBLA, n. 4 do Discurso Inaugural; n. 1.2
22
SANTO DOMINGO, n. 64; ver também n. 40; 210; 214; 297;
23
JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica pós-sinodal Christifideles laici, n. 62. Grifo
nosso.
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fraternidade, da amizade, da partilha, da solidariedade da transmissão da
fé etc., que muitos não dispõem no seio da própria família de origem.24
Mesmo exercendo o seu ministério – segundo a expressão da Familiaris
consortio, n. 53 – como Igreja doméstica, haja vista que a missão de
evangelização e de catequese deriva da única missão da Igreja, em vista
da edificação do corpo de Cristo, a família permanece em comunhão com
os serviços e pastorais responsáveis pela evangelização e pela catequese
no seio das comunidades locais.25
II.2 Domus ecclesiae como comunidade-família
Do lado da expressão domus ecclesiae parece haver uma lacuna
teológica no seu aprofundamento, haja vista que se limita, em sua acepção
literal, a localizar sua incidência histórica, e avaliá-la socialmente no
contexto da eclesiologia da Igreja primitiva, isso quando não é omitida
totalmente.26 Em sua conotação espiritual, que reenvia à realização da
própria Igreja de Cristo na comunidade local, parece haver pouca transposição de seu valor teológico para a atual experiência eclesial. Talvez
isso se deva ao fato de se atribuir rapidamente ao grupo de seguidores
de Jesus Cristo o termo koinonía (comunidade/comunhão), que, por sua
vez, dará paulatinamente lugar ao termo ekklesia.27 Portanto, o documento de Estudo 104 da CNBB faz uma instigante escolha hermenêutica
ao designar a comunidade paroquial como “casa” ou domus ecclesiae.
Com efeito, esta analogia pode contribuir a resgatar a própria ideia de
comunidade, a partir da noção de família.
Voltando ao texto de estudos da CNBB, constata-se que, ao se
retomar o Documento de Aparecida,28 juntamente com a concepção da
24
Cf. DAp, n. 119;
25
Cf. JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica pós-sinodal Familiaris Consortio, n. 53.
26
Veja, por exemplo, a rápida menção que se faz da expressão em FRANKEMÖLLE,
H. Igreja/Eclesiologia. A. Teologia Bíblica. In: EICHER, P. (Dir.) op. cit. Ao se tratar da
comunidade primitiva em sua obra de teologia fundamental, Salvador Pié-Ninot não
menciona a domus ecclesiae. Cf. PIE-NINOT, S. La teologia fondamentale. Biblioteca
di Teologia Contemporanea, BTC 121, Brescia: Queriniana, 2002, p. 514-515.
27
Cf. TILLARD, J.-M. Comunhão. In: LACOSTE, J.-Y. (Dir.) Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas-Loyola, 2004, p. 400-405. Ver também PIE-NINOT, S. op.
cit., p. 514-515.
28
O termo “casa” também é empregado na reflexão das cinco urgências no documento
da CNBB, Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora no Brasil – (2011-2015).
Brasília: Edições da CNBB, 2011. Cf. n 29; 37.
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Família como comunidade e comunidade eclesial como família
paróquia como “comunidade de comunidades”, ela também é designada
como “casa” e, por conseguinte, como família.29 Por isso, não se hesita em
assumir tal imagem, rica de significados que sugerem desenvolvimentos
pastorais consequentes. A paróquia como casa ou a casa-comunidade30
torna-se, então, objeto de reflexão teológica e de ação pastoral.31 A
justificativa da escolha da imagem é dada nos n. 74 e 75:
A ideia de paróquia como casa [...] pretende fornecer o conceito de
lar, ambiente de vida, referência e aconchego de todos que transitam
pelas estradas da vida. Recuperar a ideia de casa não significa fixar um
território ou lugar, mas garantir o referencial para o cristão peregrino
encontrar-se no lar. É uma estação, uma parada no caminho para a
pátria definitiva. Uma “estação” para prosseguir na estrada de Jesus
e com ele nos deter na casa dos amigos, como ele fazia em Betânia, na
casa de Marta, Maria e Lázaro.
Atualmente, há uma situação social de desamparo, de falta de pertença
e até de deserto espiritual, que reclama uma casa de acolhida em meio
às dificuldades. A paróquia pode e deve ser essa casa.32
Note-se, no texto citado, o carácter ambivalente do vocábulo
“casa” empregado para a comunidade eclesial: ele assume ao mesmo
tempo uma acepção dinâmica e estática. É necessário recordar que o
texto de estudo já havia anteriormente trabalhando esta circularidade
entre os aspectos dinâmico e estático da experiência eclesial, ao retomar
a etimologia das palavras gregas paroikía, paroikein, pároikos.33 Há,
portanto, uma referência a um topos, ou “localização” da ressurreição,
que, segundo Zulehner, é uma determinação teológica34 tipificando a
própria experiência cristã.
140
29
CC, n. 69.
30
Ibid., n. 73.
31
Cf. Veja-se, por exemplo, ALMEIDA, A. J. Ser comunidade hoje: à luz da experiência
das primeiras comunidades. In: CNBB. Igreja, Comunidade de comunidades: Experiências e avanços. Projeto Nacional de Evangelização O Brasil na Missão Continental.
Brasília: Edições da CNBB, 2009, p. 48-51.
32
O documento desenvolve, em seguida, sua reflexão a partir da trilogia: casa da Palavra,
casa do pão e casa da caridade. Cf. n. 76-82. Ver também a interessante trilogia da
comunidade, proposta por Dom Dadeus Grings. Cf. GRINGS, D. As Comunidades
Paroquiais. Cartilha da Nova Paróquia. Porto Alegre: Padre Reus, 2013.
33
Cf. CC, n. 44-45.
34
Cf. ZULEHNER, P. M., op. cit., p. 101.
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III A fraternidade como conditio sine qua non
da comunidade eclesial
Ao se estudar o tema da comunidade eclesial como família, deparase quase que naturalmente com a noção de fraternidade, estreitamente
ligado à teologia da filiação divina. A comunidade eclesial tem aí um
grande escopo. Ela deve ser
fraterna, a ponto de se intercambiar o apelativo de irmão, já que todos
se sentem coparticipantes do mesmo itinerário de fé: a fé em Cristo
Messias e Senhor e a consolante certeza de possuir o Espírito de Jesus;
que é espírito de filiação em relação ao Pai e espírito de fraternidade
em relação ao Filho.35
É notória a insistência de alguns autores na necessidade de se
fomentar, gerar, desenvolver e alimentar a comunhão vivida no seio das
comunidades paroquiais através da fraternidade,36 como forma adequada
da existência da Igreja-comunidade ou das comunidades domésticas.37
Com efeito, “uma Igreja sólida como instituição, mas vazia de vida comunitária real, como casa ou família, não está de acordo com a inspiração
do Novo Testamento.”38
O tema da fraternidade pode ser assumido como uma das grandes
características do ethos próprio da comunidade eclesial, como elemento
comum e estrutural necessário à indissociável interação entre domus
ecclesiae e ecclesia domestica. Ademais, sua concepção antropológica
e teológica39 pode receber importante aporte da experiência familiar.
Pois, “graças à caridade da família, a Igreja pode e deve assumir uma
dimensão mais doméstica, isto é, mais familiar, adotando um estilo de
relações mais humano e fraterno.”40
A fraternidade começa geralmente no seio da família, onde se
aprende e se ensina, incondicionalmente, a acolher e ser acolhido, a ouvir
35
RUCCIA, A. Parrocchia e Comunità. Bologna: EDB, 2007, p. 89.
36
Cf. PEREIRA, J. C. Paróquia Missionária à luz do Documento de Aparecida.
Procedimentos fundamentais. Brasília: Edições da CNBB, 2012, p. 31-32.
37
Cf. HUBBELING, H.G. Emil Brunner. In: GUCHT, R. V.; VORGRIMLER, H. Bilan de la
théologie du XXe Siècle. T. 2, Les disciplines théologiques – portraits de théologiens
– l’avenir de la théologie, Tournai-Paris: Casterman, p. 742.
38
CC, n. 71.
39
A este respeito, ver RATZINGER, J. Fraternité. In: Dictionnaire de Spiritualité, T. 5,
Colonne 1141, Beauchesne Editeur. Disponível em: http://www.dictionnairedespiritualite.com/. Acesso em: 02 mar. 2013.
40
JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Familiaris consortio, n. 64. Grifo nosso.
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Família como comunidade e comunidade eclesial como família
e ser ouvido, a cuidar e ser cuidado, a se doar e a receber, a amar e ser
amado. Contudo, a família se abre igualmente para além de si mesma,
para dar e receber, e por isso se torna como que o seminário para a vida
comunitária em nível social e eclesial. De fato, ela não somente é Igreja
doméstica, mas também é célula da sociedade.41
Por isso, alguns importantes traços da fraternidade cristã são
deduzidos da família e podem ser, mutatis mutandis, transpostos para a
comunidade eclesial, chamada a viver uma grande fraternidade.
Aqui nós devemos voltar ao original significado cristão de ekklesia, o
qual, antes de tudo, significa a atual realização da Igreja no seio de
particular comunidade local. A fraternidade só pode ser realizada no
seio da comunidade local – no seio de particular paróquia. Heinz Schürmann observou que a questão do tamanho da comunidade paroquial
deve ser organizada nessa perspectiva. Deveria ser possível para todos
se conhecerem entre si. “Pois não se pode viver em fraternidade com
alguém que nem mesmo se conhece”.42
As relações humanas vividas no seio da família, que caracterizam
a fraternidade, são, por um lado, paradigmáticas das relações vividas
em comunidade e, por outro, complementares tanto numa perspectiva
antropológica quanto teológica. Neste sentido, mereceria maior atenção
a relação entre a ideia de comunhão de pessoas (communio personarum),
desenvolvida por uma antropologia personalista, notadamente por João
Paulo II,43 e a mesma ideia aplicada à comunhão dos cristãos membros
da comunidade eclesial. Y. Congar afirma:
A paróquia é o ambiente para a geração e formação do ser cristão. Assim
como a família é o ambiente formador do homem, não conforme esta ou
aquela qualificação, tal especialidade, mas simplesmente na qualidade
básica de homem, a paróquia engendra e forma homens simplesmente
conforme esta nova existência e esta qualidade de membro do Segundo
Adão: sem qualificação especial.44
142
41
Cícero afirma que o matrimônio – ou a família – “est principium urbis et quasi seminarium rei publicae” (Cic. off. 1.17.53 s.) apud LOBRANO, G., A teoria da respublica
(fundada sobre a “sociedade” e não sobre a “pessoa jurídica”) no Corpus Juris Civilis
de Justiniano (Digesto 1.2-4). Revista Seqüência, no 59, p. 13, dez. 2009.
42
RATZINGER, J. The meaning of Christian Brotherhood (Title of the German original:
Die christliche Brüderlichkeit, Munich, Kösel-Verlag, 1960), San Francisco: Ignatius
Press, p. 67.
43
JOÃO PAULO II, Homem e mulher o criou. São Paulo: Edusc, 2005.
44
CONGAR, Y. apud GRINGS, D. op. cit, p. 42.
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Rafael Cerqueira Fornasier
Por conseguinte, a família acaba se tornando para a comunidadefamília o acesso para o horizonte de todas as famílias que a compõem e,
por isso mesmo, para o horizonte da vida quotidiana e para a sociedade
em geral. Quanto mais o caráter social da família for levado em conta
pela comunidade eclesial, mais esta contará com a importante mediação
da família entre o público e o privado,45 a fim de se evitar a privatização
da família e a divagação pública da comunidade.
Segundo P. C. Cipolini, “É interessante notar que a família como
espaço primeiro da comunidade, capaz de transformar a realidade para
melhor, não é somente uma aspiração da Igreja”. E prossegue citando M.
Castells: “Na verdade, acredito que a reconstrução das famílias sob formas
igualitárias seja o alicerce necessário para a reconstrução da sociedade pela
base”.46 A sociedade urbana cada vez mais “líquida”, para usar a expressão
de Z. Bauman, não é favorável nem à comunidade nem à família.47
A fraternidade emerge como categoria relacional que garante os
vínculos não só de relações essencialmente humanas, mas igualmente, de
modo sempre novo – pois sempre aberta a crescer através da missão – eclesiológicos e sociais.48 A comunidade eclesial, como família de famílias, tem
a vocação de realizar um intercâmbio mútuo de presença e solidariedade
entre todas as famílias, cada uma pondo ao serviço das outras a própria
experiência humana, como também os dons da fé e da graça.49
Não obstante as dificuldades que podem ser encontradas no dia
a dia da família, da sociedade e da comunidade eclesial, a fraternidade
aparece no horizonte daqueles e daquelas que desejam algo mais do que
simplesmente ter “êxito” pessoal e satisfação imediata a todo custo. A
exigência de fidelidade para com o outro, busca sua energia na própria
fidelidade de Deus, e não é uma aposta no vazio, mas a condição para
reconhecer o outro e ser reconhecido. A fraternidade cristã, portanto,
depende desta fidelidade de todo homem para o bem de todos. Em sua
primeira saudação à Igreja e ao mundo, após sua eleição no dia 13 de
45
Cf. DONATI, P. Perché “la” famiglia? Le risposte della sociologia relazionale.
Cantagalli, p. 35-42.
46
CIPOLINI, P. C. op. cit., p. 847-848.
47
Cf. CNBB – INP. Pastoral urbana. Categorias de análise e interpretação pastorais.
Brasília: Edições da CNBB, 2010.
48
Cf. BRIGHENTI, A. Evangelização inculturada e mundo urbano. In: CNBB – INP, op.
cit., p. 17.
49
Cf. JOÃO PAULO II, Familiaris consortio, n. 69.
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Ano 28 / número 2 / 2013
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Família como comunidade e comunidade eclesial como família
março de 2013, o Papa Francisco desejou que a Igreja, em seu caminho,
seja presidida na caridade. E completou: “Um caminho de fraternidade,
de amor, de confiança entre nós.” Colocar a caminhada da Igreja na
perspectiva da fraternidade significa redescobrir o sentido profundo da
mesma. Desta redescoberta da fraternidade e da sua vivência depende
a tão almejada renovação de nossas comunidades paroquiais. Faz-se
necessário:
abrir ainda mais as portas da grande família que é a Igreja, concretizada
na família diocesana e paroquial, nas comunidades eclesiais de base
ou nos movimentos apostólicos. Ninguém está privado da família neste
mundo: a Igreja é casa e família para todos, especialmente para quantos
estão “cansados e oprimidos”.50
Em guisa de conclusão
A experiência cristã se inicia, cresce e se aprofunda na experiência
eclesial, vivida tanto no âmbito da grande assembleia quanto no âmbito da família, numa sinergia que garante o equilíbrio da vida pessoal,
familiar, eclesial e social. Porém, as pequenas comunidades devem ser
irrenunciáveis interfaces, permitindo a abertura da família à experiência
eclesial comunitária e evitando a privatização51 da experiência de fé e
o anonimato eclesial. À família como Igreja doméstica compete, em
primeiro lugar, a necessária transmissão da fé, da vida e do amor em
estreita relação com a Igreja doméstica, comunidade paroquial, chamada a ser família dos cristãos, presente no meio das casas e agregando
todas as famílias, sobretudo as mais frágeis e desestruturadas.52 Nesta
interação entre família, como igreja, e comunidade, como família, “trata
se de garantir comunidades onde se encontram relações interpessoais, a
comunhão de fé e a participação de todos.”53
Endereço do autor
S/ESul Quadra 801 – Conjunto “B”
70200-014 Brasília, DF
144
50
Ibid., n. 85.
51
A este respeito, ver ZULEHNER, P. M. op. cit., p. 105.
52
JOÃO PAULO II, Christifideles laici, n. 26.
53
CC, n. 47.
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Ano 28 / número 2 / 2013
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Resumo: O breve período de pontificado do papa Francisco está mostrando
um novo modo de exercício do ministério petrino. Sua presença na 28ª Jornada
Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, é uma expressão dessa novidade.
Ela caracteriza-se, sobretudo, pela proximidade, acolhida, ternura, simplicidade.
Não são estratégias, mas um modo de ser e de agir do papa Francisco. É de se
esperar que a Igreja seja sempre mais fiel à sua natureza e missão.
Abstract: The initial period of the pontificate of Pope Francis I is already quite
relevant because it is showing forth a new mode of exercising his papal ministry.
His active involvement during the 28th World Journey of Youth in Rio de Janeiro
evidences this novelty. It stresses no doubt his proximity, forthcoming, tenderness, and simplicity. They are not to be interpreted as mere strategies but as
his personal trait and procedures of Pope Francis. It is to be expected that the
Church as a whole will be faithful to his nature and mission.
A nudez de Francisco, o Papa
Elias Wolff*
*
O autor, doutor em Teologia e Presbítero da diocese de Lages/SC, é professor na
FACASC/Fpolis e na PUC/PR.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013, p. 145-155.
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A nudez de Francisco, o Papa
A JMJ foi um fato eclesial e social, simultaneamente, impactando
a Igreja e a sociedade no âmbito nacional e internacional, sobretudo
através do incansável empenho dos profissionais e ativistas das redes
sociais que procuravam transmitir, quase em tempo real, as imagens,
os gestos e as palavras que captavam tanto do papa Francisco como
da juventude que o perseguia onde quer que ele fosse pela cidade do
Rio de Janeiro. Distintas expressões de fé e de culturas, de vida cristã e
modelos de igreja, conseguiram uma convergência quase identitária no
uníssono que ecoava, com sotaques globais e regionais, em toda a orla
de Copacabana: “somos a juventude do papa”.
Os jovens do papa Francisco e o papa dos jovens se encontraram sem saber quem procurava quem. A juventude foi ver o papa e o
papa foi encontrar-se com a juventude. Uma mútua procura que fundia
anseios, expectativas, motivações. A imagem popular de Francisco se
confundia e se confirmava na imagem da multidão concentrada na praia.
A grandiosidade de uma confirmava a magnitude de outra. A multidão
de jovens não formava apenas um cenário para a atuação do papa (o que
era desnecessário, considerando a moldura construída pela paisagem
natural onde estavam), a juventude era o motivo da sua presença. Não
era apenas um destinatário da sua mensagem, mas interlocutor e, de certo
modo, também o conteúdo.
Essa 28ª. edição da JMJ pode até se parecer com as anteriores: o
papa, os jovens, emoção e fé. Mas há algo muito diferente. E não apenas
por ser no Rio de Janeiro – o que já é uma tremenda peculiaridade. A
novidade está na conduta do pastor. Não apenas ensina, tem vontade de
aprender; não se expressa com frieza de intelectual, partilha sentimentos
e emoções; não se distancia dos ouvintes, aproxima-se, toca, abençoa;
não usa gestos medidos, calculados, tensos, mas espontâneos, naturais,
livres; nenhuma aura de poder, e sim uma simplicidade quase desconcertante para o uso do seu cargo. Sem a distância de uma autoridade
magisterial, burocrática, curial, mas desejoso de um encontro direto
com as pessoas: “Queria bater em cada porta, dizer “bom dia”, pedir
um copo de água fresca, beber um “cafezinho”, falar como a amigos da
casa, ouvir o coração de cada um, dos pais, dos filhos, dos avós...”1. Na
verdade, o papa Francisco despiu-se diante da multidão. Não vestiu as
formas tradicionalmente utilizadas para o exercício do seu ofício. E em
sua nudez transparece um modo de ser Igreja, cujo conteúdo se expressa
1
146
Visita à comunidade da Varginha, dia 25.
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Elias Wolff
na sintonia dos seus gestos com os 19 pronunciamentos que fez em apenas
8 dias, entre discursos, homilias, ângelus e entrevistas:
1 – Despojado de si mesmo: o papa é do povo, não é papa para si
mesmo, não se pertence. Como discípulo de Cristo, sabe que “o discípulo
não ocupa uma posição de centro”; “Não admite a auto-referencialidade:
ou refere-se a Jesus Cristo ou refere-se às pessoas a quem deve levar o
anúncio dele”2. E para isso é necessário a humildade, que está no DNA
de Deus3. Despoja-se de si próprio doando-se a quem encontra. Na
verdade, o papa não entrega a si mesmo às pessoas, mas o que recebeu
como herança, a fé em Jesus Cristo. Entende que “para transmitir a
herança é preciso entregá-la pessoalmente, tocar a pessoa para quem
você quer doar”4. E não espera pelo outro, toma a iniciativa de ir em sua
direção, com os longos braços abertos que enlaça as pessoas antes que
elas possam ter qualquer reação. Sempre espontaneamente, sorridente,
olho no olho.
2 – Despojado do próprio tempo: O despojamento de si, a autoentrega aos outros, a relação com a multidão, exige despojar-se também
do próprio tempo. Francisco precisa percorrer da Praia do Forte até o
Leme, atravessar toda a praia de Copacabana, e chegar no horário marcado para iniciar a cerimônia. Mas entre um ponto e outro, ao longo do
trajeto, estão as pessoas. Se o papa é delas, o seu tempo é delas. Então os
papéis se invertem: não são elas que foram encontrar o papa, é o papa que
as busca. O veículo que o conduz pára quantas vezes for necessário para
dedicar tempo e atenção a uma criança, um idoso, um doente. Valoriza
os símbolos que lhe alcançam. Há tempo para um chimarrão. Estar com
o outro, na proximidade existencial, caminhar com ele, no seu próprio
ritmo, é o jeito de ser líder. “Recuperemos, queridos irmãos, a calma de
saber sintonizar o passo com as possibilidades dos peregrinos, com os
seus ritmos de caminhada, recuperemos a capacidade de estar-lhes sempre
perto para permitir a eles abrirem uma brecha no desencanto que existe
nos corações, para que possam entrar”5. O papa e o seu tempo pertencem
a quem ele encontrar no caminho.
3 – Despojado de programações rígidas: E assim é com a agenda,
sem formalismo rígido, inflexível, próprio dos aristocratas. Na agenda
2
Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28.
3
Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27.
4
Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27.
5
Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27.
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A nudez de Francisco, o Papa
do papa há como incluir uma viagem a Aparecida, um encontro com os
peregrinos patrícios, uma entrevista ao repórter, Tem flexibilidade para
tirar proveito dos imprevistos, como a mudança do lugar da vigília: “Não
quererá porventura o Senhor dizer-nos que o verdadeiro “Campus Fidei”,
o verdadeiro Campo da Fé, não é um lugar geográfico, mas somos nós
mesmos?”6. Muitos outros encontros, ainda que fortuitos, foram desejados – Pudera ter conseguido incluir também um encontro específico
com líderes de Igrejas e Religiões.... Seria uma oportunidade privilegiada
para manifestar ainda mais a abertura e renovação do ministério do papa
Francisco. A brevíssima saudação feita no santuário de Aparecida e no
teatro municipal do Rio de Janeiro deixaram a desejar.
4 – Despojado de temores: Para despojar-se, entregar-se ao outro,
é preciso vencer todos os temores, de ordem física e espiritual. Francisco
anda pelas ruas em carro aberto, expondo seu rosto sereno e seu largo
sorriso para todos, sem qualquer receio de que as pessoas sejam más
ou possam fazer-lhe algum mal. É do bem, veio na paz. Impossível não
lembrar do filho de Pietro di Bernardone dei Moriconi e Pica Bourlemont,
na medieval cidade de Assis. E à pergunta se não tem medo, responde
tranquilamente ao repórter: “vim visitar gente e os trato como gente”,
com o olhar, o toque, o abraço, o carinho. Por isso não pode “fechar-se
em uma caixa de vidro”, impedindo a relação física, condição para uma
verdadeira relação humana, afetiva e espiritual. Sente-se em casa onde
chega, respeita o lugar do outro e pede licença: “que nesta hora eu possa
bater delicadamente a esta porta”7. Vai aonde quer e brinca bem humorado, “sou inconsciente, não tenho medo”8. Na verdade, tem consciência
de que só há relação humana por uma auto-entrega sincera, “é tudo ou
nada”, conclui ao repórter.
O despojamento dos temores de males físicos possibilita profunda
liberdade interior para falar o que quiser e na forma que quiser. Não
porque entende que como papa fala de tudo com autoridade infalível.
É exatamente sobre as falhas que quer falar. Não teme abordar temas
complexos, sobretudo problemas eclesiásticos que em outros tempos e
por outros tantos seriam tratados a portas fechadas. E os trata como quem
se propõe a tratá-los, do cardeal mais próximo ao repórter que encontra
pela primeira vez. Não há aqui nenhuma inconsequência. O que há é
148
6
Homilia na Vigília, Copacabana, dia 27.
7
Acolhida no Palácio da Guanabara, dia 22.
8
Entrevista ao repórter da Globo.
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Elias Wolff
coragem, transparência e sinceridade de quem conta com a colaboração
de todos na busca de resposta às questões que dizem respeito a todos.
5 – Despojado de títulos: Não se ouvia referências ao papa Francisco com o uso das expressões medievais costumeiramente utilizadas
por seus antecessores: “sucessor de Pedro” e “Pontifex Maximus” (Leão
I, séc. V), “Vicarius Christi“ (Inocêncio III, séc. XIII), “Vicarius Dei”
(Inocêncio IV, séc. XIII), “sua santidade”, “santo padre”.... É, simplesmente, o papa Francisco, papa do povo, papa dos pobres. Títulos que
não ostentam posses ou status, não tem a “psicologia de príncipes”9.
Representante de Deus? Certamente, mas não mais do que qualquer
outro ser humano, também imagem e semelhança do Criador. Mesmo
o termo “papa” é desmitificado, deixando de indicar um ser quase mitológico, que toca os céus com as mãos e tem uma chave que o abre
ou fecha quando quiser. Sua autoridade é despretenciosa, o verdadeiro
líder da Igreja sabe que “é nisso que se exerce e mostra a autoridade: na
capacidade de serviço”10. “Pappas” em Francisco recupera o significado
etimológico do termo grego que designa pai venerável e amoroso, no
Oriente denominava todos os bispos e não um em particular. É o jeito
humano e afetivo de acolher, abraçar, beijar, cuidar, estar próximo. O que
se realça não é o valor teológico ou magisterial do título, mas a dimensão existencial, ministerial, pastoral. Os gestos o confirmam. Eis o que
convence, a razão da comoção de quem dele se aproxima, ou apenas o
vê a centenas de metros de distância. Não buscam uma bênção como se
fosse um dom extraordinário “do papa”. É de Francisco, o bispo de Roma
que sabe ser Pappas, que esperam por um sorriso, um carinho, um aceno
de mão, um simples olhar, uma palavra. Afeto humano que expressa a
bênção divina. Isso o faz popular, mostrando um Deus povoado. O papa
é pop mas não é “pop star” como os cantores da missa – aproximam-se
estes do povo...?
6 – Despojado de insígnias: O despojamento dos títulos papais
leva ao despojamento também das insígnias, indumentárias imperiais e
corte herdadas do imperador desde o papa Silvestre (séc. V). Uma simples
batina branca, uma cruz e um anel de prata, sapatos pretos, um solidéu
que pode ser trocado pelo boné de um jovem peregrino. É o suficiente
para um líder da Igreja: “Não tenho ouro nem prata, mas trago o que
Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28.
10
Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28.
9
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A nudez de Francisco, o Papa
de mais precioso me foi dado: Jesus Cristo!”11. O espírito de Francisco
nada lembra o fausto, o luxo, a ostentação. Aceita um simples quarto
residencial para hospedagem. Já alguns auxiliares, cantores sacros e
populares... Chega ser constrangedor estar diante do papa utilizando
cruz e anel dourados, batinas e túnicas de tecidos finos – ou caríssimos
celulares, computadores e outros meios alheios às motivações pastorais.
E o que dizer do uso do dinheiro dos fiéis para sustentar o supérfluo
em cúrias, casas paroquiais e automóveis? O papa é claro: “ofende o
coração do povo”. Revela que está a caminho uma política financeira
transparente para toda a Igreja.
Para revestir a Igreja
O despojamento do papa Francisco tem uma finalidade: dar nova
roupagem à Igreja, revesti-la, reconstruí-la. Em sua nudez, a transparência
da Igreja. Não mais a roupagem da eclesiologia triunfalista, arrogante,
exclusivista, sustentada na plenitudo potestatis, mais magistra do que
mater, mais caput do que communio. Não a Igreja da supercomplexidade
dogmática, do casuísmo moralista, do legalismo disciplinar. Essa Igreja
“De servidora’ se transforma em ‘controladora’”12, mais ensina do que
aprende, mais fala do que ouve, não dialoga e não convive com as diferenças. Não a Igreja auto-referenciada, burocrática, que se entende “mais
como organização” do que como “Povo de Deus na sua totalidade”13.
Esta Igreja transforma-se em uma ONG14.
Qual é a Igreja do papa Francisco? Uma Igreja disposta a uma
profunda reforma interior por um processo de conversão pastoral, em
perspectiva de missão. Uma Igreja excêntrica, descentralizada, profeticamente aberta para o mundo. É preferível uma Igreja que vive nas ruas
mesmo com o risco de sofrer algum acidente, do que uma Igreja adoentada por estar fechada em casa, recolhida no templo: “É nas favelas,
nos cantegriles, nas villas miseria, que nós devemos ir procurar e servir
a Cristo [...] Não podemos ficar encerrados na paróquia, nas nossas comunidades [...] Não se trata simplesmente de abrir a porta para acolher,
11
150
Acolhida no Palácio da Guanabara, dia 22.
12
Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28.
13
Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28.
14
Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28.
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Elias Wolff
mas de sair pela porta fora para procurar e encontrar15. E aos jovens
esparramados na praia a exigência é clara: “Peço que vocês também sejam protagonistas, superando a apatia e oferecendo uma resposta cristã
às questões políticas que se colocam em diversas questões do mundo.
Envolvam-se num mundo melhor. Não sejam covardes, metam-se, saiam
para a vida. Jesus não ficou preso dentro de um casulo. Saiam às ruas
como fez Jesus”16. A Igreja que não é auto-referenciada tem referências claras. Primeiro, Cristo e seu Evangelho, a razão e o caminho da Igreja. Segundo, os
pés no chão, no contexto sócio-cultural em que vivem os fiéis. Terceiro,
o Vaticano II, que ainda precisa ser recebido. E para a Igreja da América
Latina, o Documento de Aparecida “continua animando os trabalhos do
CELAM para a anelada renovação das Igrejas particulares”, assumindo a
conversão pastoral. E urge reconhecer que “estamos um pouco atrasados
no que a Conversão Pastoral indica” 17.
As notas principais dessa Igreja são: 1) Maternidade, “a mãe não
se conhece por correspondência”, toca, abraça, beija, dá carinho, cuida.
“’Pastoral’ nada mais é que o exercício da maternidade da Igreja. Ela
gera, amamenta, faz crescer, corrige, alimenta, conduz pela mão...”18; 2)
Proximidade, igreja sempre disponível para o outro, de forma samaritana. Ela se faz próxima para “fazer companhia ... acompanha o caminho
pondo-se em viagem com as pessoas ... que se dê conta de como as razões, pelas quais há quem se afaste, contém já em si mesmas também as
razões para um possível retorno”19. 3) Solidária: Estar próximo é ajudar
a carregar a cruz tocando a cruz de Cristo: “Ninguém pode tocar a Cruz
de Jesus sem deixar algo de si mesmo nela e sem trazer algo da Cruz
de Jesus para sua própria vida”20. 4) Misericórdia, a Igreja não coloca
a lei e a disciplina como primeiros critérios para a pertença à comunidade de fé, mas o amor e o perdão. Para os tempos atuais, “serve uma
Igreja capaz de redescobrir as entranhas maternas da misericórdia”21; 5)
Diálogo, a Igreja promove a “cultura do encontro”; se relaciona com a
15
Missa na Catedral do Rio de Janeiro, 27/0.
16
Homilia na vigília, Copacabana, dia 27.
17
Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28.
18
Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27.
19
Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27.
20
Homilia na Via Sacra, Cobacabana, dia 26.
21
Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
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151
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A nudez de Francisco, o Papa
sociedade, com as outras igrejas e as religiões para, a partir da própria
fé, encontrar-se num projeto comum de cooperação para o bem de toda a
humanidade. Seus ministros são “servidores da comunhão e da cultura do
encontro”, pessoas de diálogo: “Entre a indiferença egoísta e o protesto
violento, há uma opção sempre possível: o diálogo”22. “Diálogo, diálogo,
diálogo...” sabendo que “Não queremos ser presunçosos, impondo as
‘nossas verdades’”23, com todos buscamos “estabelecer um diálogo de
amigos”24. 6) Inclusiva: a) Igreja que acolhe a todos, independente de
condição social, cultural, religiosa: “O Evangelho é para todos, e não
apenas para alguns. Não é apenas para aqueles que parecem a nós mais
próximos, mais abertos, mais acolhedores. É para todas as pessoas”25.
b) Abre-se para a ministerialidade de todos os batizados, sobretudo o
ministério laical “sem manipulação ou indevida submissão”, servindo-se
dos Conselhos. E pergunta: “Tanto estes (Conselhos Diocesanos) como os
Conselhos paroquiais de Pastoral e de Assuntos Econômicos são espaços
reais para a participação laical na consulta, organização e planejamento
pastoral?” Pergunta crucial para os tempos de concentração clerical da
pastoral. E constata com pesar: “Acho que estamos muito atrasados
nisso”26. c) Que valoriza a mulher. As mulheres “constituem uma força
quotidiana que faz evoluir” a sociedade e a Igreja27. “ Não reduzamos o
empenho das mulheres na Igreja; antes, pelo contrário, promovamos o
seu papel ativo na comunidade eclesial. Se a Igreja perde as mulheres,
na sua dimensão global e real, ela corre o risco da esterilidade.... Tende
isso em séria consideração!”28. Ir ao Santuário de Aparecida foi como
rezar para a Igreja mulher. Como o papa teria se alegrado se tivesse visto
alguma mulher como principal condutora de “ao menos um” dos eventos
centrais da JMJ em Copacabana... 7) Missionária: a missão da Igreja é
recuperar e fortalecer o sentido da vida das pessoas orientando-as para
que “bote Fé”, “bote esperança”, “bote amor”, “bote Cristo em suas
vidas”29. É encorajar as pessoas para que “não deixem que lhes roubem a
152
22
Aos políticos, diplomáticos, empresários..., 27/07.
23
Homilia na missa na Catedral do Rio de Janeiro, dia 27.
24
Cerimônia de boas-vindas, Palácio da Guanabara, dia 22.
25
Homilia na missa de envio, Copacabana, dia 28.
26
Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28.
27
Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27.
28
Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27.
29
Saudação do papa na acolhida aos jovens, Copacabana, dia 25.
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Elias Wolff
esperança”30, conservando-a, com abertura às surpresas de Deus e vivendo
na alegria31. É uma igreja que “sai para fora de si mesma”, existe para o
testemunhar o evangelho no mundo, vai além da “pastoral da conservação”. Urge fortalecer a Missão Continental, a qual é programática (atos
de índole missionária) e paradigmática (colocar em chave missionária
as atividades habituais das igrejas particulares). “Decididamente pensemos a pastoral a partir da periferia, daqueles que estão mais afastados,
daqueles que habitualmente não frequentam a paróquia. Também eles são
convidados para a Mesa do Senhor”32. 8) Atenta aos pobres: Na ação da
Igreja tem preferência o pobre, injustiçado e descartado: Por isso a missão
contribui para a transformação do mundo: “Não se cansem de trabalhar
por um mundo mais justo e mais solidário! Ninguém pode permanecer
insensível às desigualdades que ainda existem no mundo!”33.
Essas notae ecclesiae franciscanas ajudam a Igreja a vencer as
tentações da ideologização da mensagem evangélica, da ideologização
psicológica, a proposta gnóstica, a proposta pelagiana, o funcionalismo,
o clericalismo34. Então a Igreja se entende como o campo onde Deus
semeia, onde se treina o seguimento de Cristo, e um canteiro de obras
onde Deus constrói35. O resultado da sua ação pastoral depende da “criatividade do amor”, não é “expansão de um aparato governamental ou de
uma empresa”. Francisco acusa: “existem pastorais ‘distantes’, pastorais
disciplinares que privilegiam os princípios, as condutas, os procedimentos organizacionais… obviamente sem proximidade, sem ternura, nem
carinho. Ignora-se a ‘revolução da ternura’, que provocou a encarnação
do Verbo”36. É preciso perguntar: “somos ainda capazes de aquecer o
coração?”37. Pois “Evangelizar significa testemunhar pessoalmente o
amor de Deus, significa superar os nossos egoísmos, significa servir,
inclinando-nos para lavar os pés dos nossos irmãos, tal como fez Jesus”38.
Atenta aos sinais dos tempos, a Igreja se pergunta continuamente, “Para
onde Jesus nos manda? Não há fronteiras, não há limites” é preciso “levar
30
Visita no Hospital São Francisco de Assis, dia 24.
31
Homilia no Santuário Nacional de Aparecida, dia 24.
32
Homilia na missa na Catedral do Rio de Janeiro, 27.
33
Visita à Comunidade da Varginha, dia 25.
34
Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28.
35
Homilia da Vigília, Copacabana, dia 27.
36
Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28.
37
Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27.
38
Homilia na missa do envio, Copacabana, dia 28.
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A nudez de Francisco, o Papa
Cristo para todos os ambientes, até as periferias existenciais, incluindo
quem parece mais distante, mais indiferente”39.
Conseguirá o papa Francisco dar essa nova roupagem à Igreja?
Deixa claro que não se satisfaz com remendos, as mudanças não deverão ser superficiais, mas estruturais. Sim, tem consciência dos muitos
obstáculos e resistências que deverá enfrentar. Sobretudo da parte de
quem não compreende “o caminho que Deus quer para ‘hoje’”, e fechase em posições “restauracionistas” de linguagens, ritos e instituições
anacrônicas ao tempo em que vivemos. Isso “não é do bom espírito.
Deus é real e se manifesta no ‘hoje’”40. Mas renovar a Igreja é próprio
do espírito de Francisco, é sua missão: “A ‘mudança de estruturas’ (de
caducas a novas) não é fruto de um estudo de organização do organograma funcional eclesiástico, de que resultaria uma reorganização estática,
mas é consequência da dinâmica da missão. O que derruba as estruturas
caducas ... é justamente a missionariedade”41.
Conseguirá o ser de Francisco, o papa, fazer que se torne o modus
essendi e o modus operandi da Igreja? Conseguirá o espírito de Francisco
penetrar nas estruturas eclesiásticas?
Difícil responder, mas uma coisa é certa: o papa soube por onde
iniciar a renovação eclesial, por si mesmo. Num instante, o papa Francisco parece responder ao clamor pela reforma do papado que atravessa os
séculos na história da Igreja. Mais que um novo “pontífice”, personifica
a renovação do pontificado. Entende-se papa porque é, primeiramente,
bispo. Não se posiciona como bispo de todas as dioceses do mundo, não
obstante as prerrogativas jurídicas do seu ministério. É bispo de Roma.
Casou com sua Igreja local e critica a “poligamia episcopal”. Não tem
preocupação em mostrar que a Igreja de Roma é mater, caput et magistra
de todas as Igrejas particulares. Não quer romanizar o catolicismo, nem
uniformizar a vivência da fé. Não intimida pela onipresença, onisciência,
onipotência de quem se considera “Deus mesmo na terra”. Recorda a
todos que o papa é um bispo e fala de “bispo para bispo, de igual para
igual”. E compreende-se necessitado dos outros – “rezem por mim”;
precisa ouvi-los – prefere os rumores da convivência na Casa Santa Marta
do que o silêncio da solidão dos aposentos privados; pede perdão se a
154
39
Homilia na missa de envio, Copacabana, dia 28.
40
Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28.
41
Encontro com os dirigentes do CELAM, dia 28.
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Elias Wolff
fala ofende alguém. Para ser líder na Igreja “não é suficiente a burocracia
central, mas é preciso fazer crescer a colegialidade e a solidariedade”.
Por isso não é papa solus, trabalha em equipe e pede aos ministros da
Igreja que valorizem as parcerias e os/as cooperadores/as. Deve-se trabalhar pela comunhão eclesial, como “uma teia que deve ser tecida com
paciência e perseverança”42. Comunhão que se constrói por “uma rede
de testemunhos regionais que, falando a mesma linguagem, assegurem
em todos os lugares, não a unanimidade, mas a verdadeira unidade na
riqueza da diversidade”43.
É um novo jeito de ser líder na comunidade, ser bispo na Igreja,
com “a atitude mais do pastor do que de quem comanda”, que não ameaça,
não amedronta, não exclui, “não manipula”. Aponta para uma renovação
da Igreja por uma “conversão pastoral”, e vice-versa, de relação humana,
teológica e pastoral acima do legalismo. Conseguirá o papa Francisco
revestir com o seu próprio hábito a Igreja dos nossos tempos...?
Endereço do Autor:
Paróquia N.S.de Lourdes e São Luiz
Rua Padre Schrader, 01 – Agronômica
88025-090 Florianópolis, SC
42
Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27.
43
Encontro com o episcopado brasileiro, dia 27.
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Resumo: Este artigo abre um debate sobre a questão da prática musical nas
assembleias litúrgicas buscando compreender a música na Igreja em relação à
produção musical. Olhando o horizonte histórico, busca-se elencar os motivos
que desencadearam as mudanças significativas da vivência musical contemporânea. Passando pelo discurso filosófico, fundamenta-se na indústria cultural
um fenômeno geral que atingiu a prática musical universal. Posteriormente
apresenta-se o pensamento conciliar e o ensinamento da Igreja, sobre a música
como elemento unificador da assembleia. Conclui-se com a urgente necessidade
de fomentar iniciativas de cunho formativo, pastoral ou acadêmico, para suprir
as lacunas musicais e litúrgicas da vivência cristã, para que a música ritual seja
sempre um canto novo, não como uma novidade passageira e descartável, mas
seja emanação de nosso próprio ser.
Palavras chave: Produção musical; Música Ritual Cristã; Indústria Cultural;
Formação.
Abstract: This article opens a debate on the question of musical practice in
liturgical assemblies, seeking to understand music in the Church in relation to
music production. Looking at the historical horizon, we try to list the reasons
that triggered significant changes in contemporary musical experience. Passing
by the philosophical discourse, it envisages the cultural industry as large as a
general phenomenon that influenced musical practice universal. Later it shows
the Conciliar thought and Church teaching on ritual music as the assembly unifying element. It concludes with the urgent need to promote initiatives aiming
at formation, pastoral or academic, to address the shortcomings of musical and
liturgical Christian living, so that the ritual music be always a new song, not as
a fad and disposable novelty, but as emanation of our own being.
Keywords: Music Production; Christian Ritual Music; Cultural Industry; Training.
A produção musical cristã contemporânea
e a música ritual cristã pós-conciliar:
história, questões e desafios
Murilo Guesser*
*
Graduando em Teologia pela Faculdade Católica de Santa Catarina (FACASC). Seminarista da Arquidiocese de Florianópolis.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013, p. 157-175.
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A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar
Uma realidade que se apresenta fortemente em nossas assembleias
litúrgicas é a inserção/adaptação de um estilo musical decorrente das
novas práticas litúrgico-musicais que atingem o Brasil em sua grande
maioria, fruto de uma nova fase de produção e gravação musical. Como
compreender a música na Igreja hoje em relação à produção musical?
Não está ela também como um simples adereço, simples ocupação do
tempo livre? Existe um estilo musical próprio para o culto?
Quanto à questão dos estilos, a Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium, ao mencionar as normas para a adaptação à índole
e tradições dos povos, diz:
A Igreja não deseja impor na Liturgia uma rígida uniformidade para
aquelas coisas que não dizem respeito à fé ou ao bem de toda a comunidade; mas respeita e procura desenvolver as qualidades e dotes de
espírito das várias raças e povos (SC 37).1
Esse respeito ao espírito das raças e povos, pode ser inculturado na
Liturgia sempre que favoreça o verdadeiro e autêntico espírito litúrgico,
segundo as necessidades dos lugares, desde que tal adaptação seja regida
por alguns limites fixados (Cf. SC 37, 38 e 39). Diz ainda o Concílio que
em alguns lugares e circunstâncias especiais são necessárias adaptações
mais profundas (Cf. SC 40). Ainda que o termo inculturação não esteja
empregado no documento conciliar, essa “adaptação” demonstra abertura, com o objetivo de que todos possam assim participar da liturgia
de forma “plena, consciente, ativa e frutuosa.” (Cf. SC 14, 19 e 21). A
Música Ritual, como parte integrante da liturgia, deve também se inculturar, buscando sempre expressar os mistérios celebrados com uma
linguagem musical específica. Isto pelo fato de que a Igreja “aprova e
admite no culto divino todas as formas de verdadeira arte, dotadas das
qualidades devidas” (SC 112). Destarte, “a música sacra será tanto mais
santa, quanto mais intimamente estiver ligada à ação litúrgica” (SC 112).
Esse impulso de renovação e agregação cultural na liturgia só chegará a
bom termo do ponto de vista da música sacra, quando atingir o principal
objetivo: “a glória de Deus e a santificação dos fieis” (SC 112). Esta foi
de fato a grande arrancada Conciliar.
1
158
BECKHÄUSER, Alberto. Sacrosanctum Concilium: texto e comentário. São Paulo:
Paulinas, 2012. p. 60.
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Murilo Guesser
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II foi feita numa dupla preocupação: de aggiornamento cultural e de enraizamento bíblico e eclesial.
Isto quer dizer, para a música, de um lado, uma abertura às músicas que
podem favorecer a participação das assembleias celebrantes e, de outro
lado, o renascimento de formas inscritas na tradição do canto cristão,
como a salmodia, as aclamações, as litanias etc. Se avaliarmos a partir
do impulso criador que esta reforma provocou nas diversas partes do
mundo, o balanço já será positivo.2
Contudo, a reforma litúrgica, bem como o próprio Concílio, buscou
refletir e dar respostas às questões emergentes na crise que permeava a
sociedade. Que crise? Quando se iniciou? Vejamos, pois, uma possível
vertente histórica. Como teórico relevante para dialogar nesse sentido
temos Theodor Wiesengrund Adorno, filósofo da Escola de Frankfurt,
que visibilizou ideias interessantes sobre essa grande temática da crise
da modernidade.
A crise da modernidade é fortemente marcada por um contexto
técnico científico, onde a ciência moderna, com sua ânsia de traduzir o
maior número possível de eventos naturais em “relações numéricas, lógicas, acabou movimentando mais ainda esse processo de abstração entre
aquilo que se pensa e a realidade vivida pelos homens.”3 Essa ideia foi
teorizada a partir de Descartes e se caracteriza pela dominação e controle.
Em síntese, conhecendo a natureza, se pode dominá-la. Tal conhecimento,
todavia, permeia apenas o elemento racional, pois os sentidos, segundo
o filósofo, são fonte de enganos e erros no processo do conhecimento
objetivo da natureza. “O sujeito adequado é aquele que será, de início,
“pura consciência de si” reflexivo, puro cógito.”4 Com esses princípios se
fundamentou uma série de fenômenos e pesquisas que buscavam apenas
progresso, progresso esse que se transformou em poderoso instrumento
usado pela Indústria Cultural para conter o desenvolvimento da consciência crítica das massas, impedindo a formação de indivíduos autônomos,
independentes, capazes de julgar e decidir conscientemente.5
2
GELINEAU, Joseph. O caminho da música. Concilium. Petrópolis, v. 222, 1989/2. p. 145.
3
FREITAS, V. Adorno e a arte contemporânea. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2008. p. 15.
4
MATOS, Olgária C. F. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. São
Paulo: Moderna, 1993. (Coleção Logos). p. 41.
5
Cf. ZILLES, Urbano. A escola da teoria crítica e a religião. Porto Alegre: EST, 2006.
(série Pensar). p. 8.
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A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar
Segundo o conceito de Indústria Cultural, o ser humano, ao buscar
entender todos os fenômenos pelas vias da razão, acabou por reproduzir
o isolamento e a dessensibilização.6 Atrelando isso aos interesses do
capital, compactua-se a produção da barbárie estilizada, arraigada nos
mecanismos da Indústria Cultural.7 Essa ideia já está alegoricamente
tratada na Odisséia de Homero, onde Ulisses e sua tripulação tentam a
todo custo domesticar a própria natureza interna para dominar a natureza
externa.8 O astuto Ulisses ordena que os remadores selem os ouvidos
com cera para que continuem remando com todas as forças e escapem
do encanto das sereias. Para não escutar o canto das sereias, Ulisses pede
que seja atado ao mastro do navio, a fim de vencer o encanto do canoro. Mediante o sofrimento, ele emancipa-se. Mas é uma emancipação
totalmente alienante, pois quanto mais era seduzido pelo canto, mais
amarrado se encontrava.
Na Modernidade, Immanuel Kant buscou apresentar o real sentido
do esclarecimento, qual seja: “a saída do homem de sua menoridade, da
qual ele próprio é culpado.”9 Em Kant, o sujeito autônomo, livre, não
pensa em voz baixa. A autonomia é justamente o ato de manifestar-se
publicamente. Para Adorno, o esclarecimento verdadeiro é, antes de
tudo, sobre si mesmo. Todavia, segundo Adorno, baseado em Kant, o
homem da modernidade vive um falso esclarecimento, considerando que
a emancipação através da técnica atingiu toda a humanidade, gerando nela
a dependência, como que narcótica, enfeitiçada, da verdade científica.
Só tem valor de verdade tudo que pode ser logicamente demonstrado.
O que foge a esses padrões de logicidade não se fundamenta. Com isso,
há um desvio da razão em direção à geração de riquezas e à produção
de tecnologias, afundando os seres humanos em um enorme estado
de barbárie. A esse processo, Adorno chamou de “Indústria Cultural”.
Dentro da análise desse conceito, Adorno tenta compreender a relação
entre produção e reprodução social, mercadorização da cultura e sua
reificação. Juntamente com Horkheimer, Adorno empregou pela primeira
160
6
Cf. PUCCI, Bruno; OLIVEIRA, Newton Ramos de; ZUIN, Antônio Álvaro Soares. Adorno:
o poder educativo do pensamento crítico. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 52.
7
Cf. JAY, Martin. La imaginación dialéctica: una historia de la escuela de Frankfurt.
Madrid: Taurus, 1989. p. 354.
8
Cf. ADORNO; HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos.
Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 44.
9
KANT, Imamnuel. Resposta à pergunta: que é Esclarecimento? In: KANT, Immanuel.
Textos seletos. Tradução Floriano de Sousa Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1974.
p. 100.
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Murilo Guesser
vez a expressão ‘Indústria Cultural’ cerca dos anos 1940. O mundo nesse
período, ardendo em meio à guerra, despontava para uma realidade que
mudaria o rumo das relações humanas com a evolução dos meios de
comunicação social.
Existe ainda uma questão importante, que foi a divisão do tempo,
entre tempo de trabalho e tempo livre, e as atividades que a cada período
competem. A Indústria Cultural tem sua raiz primeira nessa evolução,
como uma proposta para dar subsídios ao ser humano de como bem viver
seus momentos de tempo livre.
Segundo a moral do trabalho vigente, o tempo em que se está livre do trabalho tem por função restaurar a força de trabalho [...] Por um
lado, deve-se estar concentrado no trabalho, não se distrair, não cometer
disparates [...]. Por outro lado, deve o tempo livre, provavelmente para
que depois se possa trabalhar melhor, não lembrar em nada o trabalho.
Esta é a razão da imbecilidade de muitas ocupações do tempo livre.10
Com a Revolução Industrial desenvolve-se um novo modo de
produção capitalista, concentrando exclusivamente a atividade operária
nos muros da fábrica. Passa-se a uma produção por meio de maquinário
pesado, dividindo a produção em turnos previamente estabelecidos. Outro
aspecto é que, embora esteja submerso à produção, o operário passa a
ser assalariado e, com isso, afirma-se a necessidade do trabalho para a
subsistência física do mesmo e o surgimento de um novo contexto de
vivência social: o tempo livre, e com ele o entretenimento, como atividade
para essa nova ordem de vida.
Cria-se um dualismo acentuado entre a fábrica, como espaço de
trabalho, e a vida do pós-trabalho, o tempo de lazer e descanso. Essa
distinção resultou também em liberdade. O autor não discute a questão
da religião, mas levantamos a questão: não seria esta também uma ocupação para o tempo livre?
O uso e fruto do lazer propriamente dito era privilégio de poucos
trabalhadores. A grande maioria dos trabalhadores, por causa de seus
salários, mal conseguiam sobreviver. Então surgem os movimentos
operários. Com o surgimento dos movimentos operários e a redução da
carga horária de trabalho, a situação econômica obteve certa melhora, e
isso desencadeou uma ascensão das massas que buscavam desfrutar seu
10
ADORNO. Indústria cultural e sociedade. Tradução Julia Elizabeth Levy. São Paulo:
Paz e Terra, 2002. p. 106-107.
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A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar
momento livre. Cria-se a máquina a vapor, que deu maior mobilidade aos
destinos de entretenimento. Com isso, surgem os primeiros estabelecimentos de divertimento, os music halls, na Alemanha e Inglaterra. Locais
amplos, onde os trabalhadores comiam e bebiam, assistindo a shows de
variedades musicais e artes circenses.11 Essa gênese do entretenimento
moderno culmina com as invenções científicas, especialmente o rádio,
as gravações sonoras e o cinema.
Fonógrafo e gramofone foram os primeiros aparelhos de comunicação
que eram usados preferencialmente no entretenimento privado. Eles
transformaram a música numa mercadoria tecnicamente produzida e
individualmente consumível ao bel prazer.12
Conforme Rodrigo Duarte, a partir do século XVII, a ciência europeia adquiriu os meios teóricos para intervir em processos do mundo
físico e, quase duzentos anos depois, com a revolução industrial, o conhecimento se traduziu em tecnologia: com objetivos econômicos bem
definidos a alcançar.13 É como uma nova revolução industrial dentro do
negócio do entretenimento. Como diversão, a Indústria Cultural “ocupa
os sentidos dos homens da saída da fábrica, à noitinha, até a chegada ao
relógio do ponto na manhã seguinte.”14
Por isso, a crítica de Adorno se dirige a tal indústria, atribuindo a
esta um caráter ideológico como instrumento manipulador das consciências, transformando tudo em mercadoria, substituindo dessa forma a
própria consciência. “Os próprios seres humanos se tornaram parte desse
mundo reificado, e sua subordinação à lógica da dominação é realçada
pela mercantilização da força de trabalho dentro do capitalismo.”15 O
consumidor é apenas objeto de lucro para o sistema.
O imperativo da sociedade tecnológica é que o homem deve
adaptar-se, sem especificar a que coisa; adaptar-se àquilo que, sem a
reflexão, como reflexo da potência e onipresença do existente, constitui
11
162
DUARTE, Rodrigo. Indústria cultural: uma introdução. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
p. 19.
12
DUARTE, 2010, p. 24.
13
Cf. FREITAS, Verlaine. Kathársis: reflexões de um conceito estético. Belo Horizonte:
Arte, 2002. p. 29.
14
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 123.
15
THOMPSON, John. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na área dos
meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 131.
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Murilo Guesser
a mentalidade comum. Mediante a ideologia da Indústria Cultural, a
adaptação toma o lugar da consciência. Na Indústria Cultural, tudo se
torna mercadoria. Tudo isso é eloqüentemente [sic] exemplificado por
fenômenos-chaves como o cinema, o entretenimento, a publicidade, a
arte, a Educação.16
Todo esse processo gera, no ser humano, uma mentalidade fortemente consumista, rompendo com a subjetividade e a própria autenticidade. O indivíduo inserido é aquele que acompanha o último gesto
da moda, da publicidade, da propaganda, da mídia e da própria cultura.
Toda essa realidade é denominada, por Adorno, como fetiche, conceito
de cunho marxista,17 que atribui à mercadoria laços de relações sociais,
de exploração do trabalho pelo capital, que de fato, a produz.18
Cai-se prontamente em estado de êxtase diante do belíssimo som
convenientemente anunciado pela propaganda de um Estradivarius
ou de um Amati; no entanto, só podem ser distinguidos de um violino
moderno razoavelmente bom por um ouvido especializado, esquecendose de prestar atenção à composição ou à execução, da qual sempre se
poderia ainda tirar algo de valor. Quanto mais progride a moderna
técnica de fabricação de violinos, tanto maior é o valor que se atribui
aos instrumentos antigos. De vez que os atrativos dos sentidos, da voz
e do instrumento são fetichizados e destituídos de suas funções únicas
que lhes poderiam conferir sentido, em idêntico isolamento lhes respondem – igualmente distanciadas e alheias ao significado de conjunto
e igualmente determinadas pela lei do sucesso – as emoções cegas e
irracionais, como as relações com a música na qual entram carentes de
relações. Na realidade, as relações são as mesmas que se verificam entre
as músicas de sucesso e os seus consumidores. Parece-lhes próximo o
totalmente estranho: são estranhos, alienados da consciência das massas
por um espesso véu, como alguém que tenta falar aos mudos. Se estes
16
ADORNO; HORKHEIMER, op. cit., p. 133.
17
Segundo Marx, na sociedade capitalista, os objetos materiais possuem certas características que são conferidas pelas relações sociais dominantes, mas que aparecem
como se lhes pertencessem naturalmente. Essa síndrome impregna a produção
capitalista, e por isso se lhe atribui também o nome de ‘fetichismo da mercadoria’. O
valor dos objetos torna-se como que real e natural. [Cf. FETICHISMO. In: BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Tradução Waltensir Dutra. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 149.]
18
Cf. DUARTE, 2010, p. 61.
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A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar
por ventura ainda reagirem, já não fará diferença alguma se se tratar
da sétima sinfonia ou do short de banho.19
Observa-se que também a música, enquanto produção artística,
transformou-se num simples meio para o divertimento. Entretendo-se
em meio aos fones, o indivíduo gera dentro de si uma ilusão homérica
de realização que é justamente usufruir de um prazer momentâneo. A
música passa a ser, então, um elemento determinante no tempo livre.
Isso retira dela seu real valor de apreciação autêntica. Essa é uma das
faces da barbárie estética. Que implicâncias teriam essas colocações na
Brasil? Ao que nos parece, os filhos desta pátria mais garrida estão, em
sua maioria, embebidos dessa realidade fetichizada.
De um modo geral, a cultura brasileira considera a música como uma
atividade de lazer despreocupado: algo para ouvir e relaxar, seja show
popular, seja ópera, seja concerto. Diversas outras importantes funções
que a música possui (educativa, científica, religiosa, reflexiva) simplesmente não são consideradas pela cultura contemporânea. Isso é algo
que o compositor de música sacra precisa compreender muito bem,
pois certamente a função da música na liturgia não é a de conceder um
lazer superficial.20
Mentes economicamente ilustres souberam integrar os padrões
da indústria cultural às necessidades espirituais. Em algumas igrejas
cristãs é evidente essa mercantilização do sagrado. Pessoas que atuam num determinado rito litúrgico, nesse contexto, facilmente caem
numa armadilha onde “uma fusão da aura midiática com a religiosa,
ressignifica as aspirações do divino, expressas culturalmente nos fiéis
transformados em fãs”.21
Retomando a temática do aggiornamento conciliar, mencionado
no início deste artigo, unido à crise que atingia o mundo no século XX,
especialmente na década do Concílio, e tendo explanado ideias chaves da
literatura filosófica do mesmo século, adentramos num tema abrangente
164
19
ADORNO, Theodor W. O fetichismo na música. Tradução Zéljko Loparié. São Paulo:
Nova Cultural, 1975. (Os Pensadores). p. 180.
20
MOJOLA, Celso. A música brasileira e suas implicações na composição de musica
ritual cristã. In: MOLINARI, Paula (org). Música brasileira na liturgia 2. São Paulo:
Paulus, 2009. (coleção Liturgia e música). p. 41.
21
CARRANZA, Brenda. “Católicos midiáticos”. In: TEIXEIRA, Faustino e MENEZES,
Renata. (org.). As Religiões no Brasil: continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes,
2006. p. 79.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
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Murilo Guesser
e de complexidade. Que exista uma dificuldade na vida musical da Igreja
Romana, a prática nos revela que sim. A questão é entender de fato, se
tal dificuldade não seria já anterior ao Concílio, quando na vida social
houve o que Adorno intitulou de regressão da audição. Esse fenômeno
atingiu também as abóbadas cristãs?
Nos primeiros anos da aplicação das reformas conciliares, essa
questão desenvolve-se em duas perspectivas: uma, tradicional e outra,
progressista. Apontam-se questionamentos de investigação em torno
do avançar dos processos de secularização e da fragmentação dos equilíbrios tradicionais da fé católica sujeita ao processo de modernização.
Ainda que essa crise não se limite ao canto no culto cristão, ela chegou
inclusive a este, pois, a música, segundo Gelineau, “foi a que constituiu
a parte mais dinâmica das formas rituais, na história do culto cristão.
Isso porque ela sempre foi a mais atingida, de imediato, pelas mudanças
culturais.”22 A vertente progressista pressiona para que o Vaticano II
fosse além da forma como o próprio Concílio tinha sido aplicado; e o
segundo reagrupamento, o tradicionalista, se opõe a certos princípios da
reforma litúrgica, apontando o próprio Concílio como responsável por
ser condescendente e complacente com os rumos desviantes da secularização.23 Unindo a divisão interna na vida eclesial à força midiática, que
logo desponta como a grande sensação, inicia-se nova fase musical na
Igreja. De um lado, um grupo que prossegue a prática tradicional de um
canto para especialistas e, de outro, a efervescência pastoralista. Esse
fenômeno não se circunscreveu aos muros eclesiásticos, mas abriu-se
a um contexto mundial, como uma grande reação ao mal estar frente à
conduta mecanicista do progresso. Encontramos essa reação nas artes
em geral, não só na música.
Sabe-se que no mesmo momento começavam a aparecer, no mundo ocidental, em reação contra a sociedade industrial e tecnológica, diversas
correntes como a investigação das raízes étnicas, a revalorização da arte
e do sentimento, um recrudescimento da religiosidade, traduzindo-se de
múltiplas maneiras, desde a renovação carismática até o sucesso das
seitas e dos esoterismos. É claro que esses fenômenos teriam repercussões
na liturgia e principalmente na música.24
22
GELINEAU, 1989, p. 143.
23
Cf. MENOZZI, Daniele. La Chiesa Cattolica e la secolarizzazione. Torino: Einaudi,
1993. p. 232.
24
GELINEAU, op. cit., p. 145.
Encontros Teológicos nº 65
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A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar
Com a reforma litúrgica e consequentemente uma nova configuração litúrgico musical, surgem nas comissões episcopais setores ou
secretarias específicas para coordenar esse trabalho. Todavia, ao passo
que se organizava uma renovação tão almejada, surgia também uma
movimentação que introduzia elementos musicais norteamericanos,
inicialmente nas igrejas pentecostais, advindas dos Estados Unidos em
missão ao Brasil, e que na década de setenta, com o impulso renovador
da Renovação Carismática Católica, vai agregando esses elementos na
dinâmica musical também dentro da igreja católica.
A essa música importada convencionou-se chamá-la de “gospel”,
termo abrangente, que aqui é parcialmente entendido como a produção
musical paralela à hinódia oficial do protestantismo tradicional, que
em sua composição estrutural agrega valores seculares, litúrgicos e de
mercado, incorporando nas apresentações musicais performances até
então seculares usadas em acampamentos, avivamentos, cuja única
finalidade era evangelizar através de uma música inserida na realidade
do jovem, uma música comum que fala de Deus ou, pelo menos, das
coisas de Deus. No culto propriamente dito, esse estilo, no começo, não
era bem vindo.
Em nome da evangelização e da interação com o mundo, a música
gospel foi aos poucos sendo colocada nas rádios, e adentrou no culto
também. Não é questão aqui julgar os métodos, eficazes ou não, de evangelizar. O fato é que, com isso, a música gospel passa a ser apreciada
nas rádios e afins. Inaugura-se uma nova forma de pregar o Evangelho.
Acontece então uma explosão do mercado musical fonográfico cristão.
Com essa virada cultural, num mundo pós-guerra, estabeleceuse uma nova etapa histórica, a pós-modernidade, “mudança em uma
esfera cultural mais ampla ao envolver modos de produção, consumo e
circulação de bens simbólicos.”25 A música cristã, como bem simbólico,
acabou sendo submetida aos interesses e desejos de seus “consumidores”,
oferecendo-lhes um tipo de religiosidade capaz de satisfazê-los. Essa é
justamente a marca do ser humano pós-moderno, é ele que decide “o
que fazer com seu tempo, seu lar, seu corpo e seus deuses.”26 Tudo isso
contribuiu para a consolidação da música gospel e de um mercado espe-
166
25
FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: Globalização, pós-modernismo
e identidade. São Paulo: Studio Nobel, 1995. p. 29-30.
26
FEATHERSTONE, 1995, p. 158.
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cífico para ela. Esse comércio de bens simbólicos não é algo novo. Já no
templo de Jerusalém Jesus expulsa os vendilhões (Mc 11,15-19).
No contexto pós-moderno, a música gospel encontra respaldo
na identidade religiosa “mais intensa e sensorial”.27 A própria religião
entra no mundo do valor econômico dos símbolos e do valor simbólico
dos bens econômicos, uma religião para o consumo, para satisfazer as
próprias emoções.
Padres-cantores celebram “showmissas” para milhares de pessoas;
líderes evangélicos estufam seus templos e suas contas bancárias; centros espíritas, terreiros e outros espaços sagrados abrem com frequência
[sic]; revistas laicas dedicam páginas às possibilidades da utilização
de Deus como agente de negócios e lojas faturam vendendo florais de
Bach, runas e duendes.28
Tudo isso pelo fato de que os princípios que norteavam a conduta
humana caíram por terra, e, em nome de um falso esclarecimento se
busca viver uma falsa liberdade, sem compromissos éticos, morais e até
mesmo religiosos.
Assim como posso dar uma passada no McDonald’s e fazer um lanche,
em qualquer bairro encontro um templo religioso disposto a dar uma
reposta – mais ou menos lógica, mas a lógica é o que menos importa
nesse tipo de ação – aos problemas do universo. [...] Assim sendo,
diante da diversidade de ofertas, as soluções efetivamente religiosas
que ofereçam um serviço rápido, fácil e com resultados comprováveis,
adaptados, portanto, à realidade de uma sociedade em transformação
contínua... Em outras palavras, é uma religião fast-food.29
Todavia, o gospel enquanto música em si, não é o maior problema,
mas o que dificulta é o fato de que, por vezes, tal música se toma para
o uso litúrgico. A demasiada mudança de repertório, por conta de uma
superficial mania de novidade ou concessão à onda de consumismo, faz
com que o povo não aprenda bem nenhum canto, ficando impedido de
27
FREDDI, Sérgio. Música cristã contemporânea: renovação ou sobrevivência? São
Paulo: Editorial Press, 2002. p. 78.
28
SOUZA, A. Secularização em declínio e potencialidade transformadora do sagrado.
In: Religião e sociedade. Rio de Janeiro: ISER, 1986. p. 3.
29
MARTINO, Luís Mauro Sá. Mídia e poder simbólico: um ensaio sobre comunicação
e campo religioso. São Paulo: Paulus, 2003. p. 53.
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participar dele com gosto e prazer.30 Ainda que com certa radicalidade,
faz sentido o que Safatle afirma:
Ficamos muito inebriados com a ideia de que o Brasil é um país musical, e não conseguimos perceber que isso não é verdade. O Brasil tem
uma produção musical muito limitada. Desenvolvemos uma ideologia
cultural que coloca nossa experiência sensorial como muito elevada,
então nossa produção cultural tem que ser igualmente espontânea. Por
essa ideia, tudo aquilo que nasce de maneira espontânea do ponto de
vista musical é a prova maior da peculiaridade da vida brasileira. Mas
você pode espontaneamente compor uma canção, mas dificilmente irá
compor espontaneamente uma sinfonia. É como se você tivesse uma
produção literária de um país que se reduzisse a crônicas. O compositor
Gilberto Mendes falou uma coisa que sintetiza muito bem a situação
brasileira. Se você chegar para uma pessoa da classe média, letrada, e
perguntar que tipo de filme gosta, ela vai falar em Fellini, Antonioni e
tal; na literatura, Virginia Woolf, Thomas Mann; já na música, Caetano
Veloso e Chico Buarque... Nada contra os dois, mas se percebe que há um
descompasso. Não há mais pianos nas casas e as pessoas simplesmente
não conhecem as obras, não sabem quem são os compositores. Estamos
criando uma situação histórica muito peculiar, de uma época que não
conhece sua própria música.31
Surgem situações preocupantes: celebrações promovidas por
movimentos religiosos, congregando frequentemente grande número
de participantes, aqui e acolá, com ampla divulgação da mídia, pouco
levando em conta os textos litúrgicos, substituindo-os facilmente por
letras intimistas de grande pobreza existencial, poética e teológica.32
O nosso gosto musical foi formado pelo que pode ser mais corretamente
denominado como uma música popular industrializada, ou seja, uma
música que se tornou produto fonográfico e, a partir desse fato, encontrou
as condições para sua divulgação e distribuição. O processo de escolhas
que levou a essas decisões de investimento por parte de diferentes em30
Cf. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. A música litúrgica no
Brasil. São Paulo: Paulus, 1999. (Estudos da CNBB, 79). n. 30.
31
SAFATLE, Vladmir. Minha música. Revista Concerto. Guia mensal de música clássica.
São Paulo. Ano XVIII 189, nov. 2012. p. 80.
32
Cf. Estudos da CNBB 79, n. 43.
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presas não é evidentemente, inocente. Passa por questões econômicas,
culturais, étnicas, religiosas e políticas.33
Nem a religião escapa do espetáculo da sociedade de consumo.
Troca-se o silêncio pela histeria, a meditação pela emoção, a liturgia
pela aeróbica. Uma igreja mais voltada ao “louvor”, com padres-artistas
muito à vontade transitando entre o púlpito e o palco, não como meros
pregadores, mas artistas. E no Brasil agregam-se outros fenômenos:
Num país de tanta riqueza musical como o Brasil, mas onde quase
ninguém sabe ler música, a gravação dos cantos é sobretudo para que
os cantos sejam conhecidos e aprendidos. Música gravada significa
música difundida e aprendida; música não gravada significa música
desconhecida. E houve muita música boa que não foi gravada, e música
medíocre que foi gravada. A mídia é uma força, mas também pode ser um
perigo. As músicas, as celebrações e missas que aparecem nela tornamse critério de verdade que todos querem copiar e reproduzir, sejam elas
boas ou ruins, litúrgicas ou não. Portanto, é grande a responsabilidade
de quem usa esses meios de comunicação social.34
Desponta uma curiosidade: as iniciativas de estúdios e mecanismos
de gravação católicos que existem no Brasil são iniciativas da Comissão
Episcopal ou iniciativas particulares? Independente disso, resta saber
qual a motivação ou ideologia que rege esses meios. Eis o que nos diz
Gelineau, ao falar das tentações do músico cristão:
A terceira tentação é a do prestígio mundano. Os agentes do som ritual
encontram nele um meio de dominação social. Os cantores-vedetes, já
vilipendiados por Jerônimo, sempre existem. A embriaguez das descobertas sonoras feitas pelos polifonistas da Ars Nova, ou pelos inventores
de novas possibilidades instrumentais, pode ser encontrada mais que
nunca em certas pesquisas de linguagem musical e de sons eletrônicos.
Enfim as suntuosas músicas sacras das cortes principescas da época
barroca não deixam de ter uma certa relação com os contemporâneos
shows mediáticos na própria liturgia.35
33
VICENTE, Eduardo. Por onde anda a canção? os impasses da indústria na era do
MP3. In.: SANTOS, Roberto Elisio dos et al (Orgs.). Mutações da cultura midiática.
São Paulo: Paulinas, 2009. p. 148-149.
34
WEBER, José. A CNBB e a renovação do canto litúrgico no Brasil: recuperação da
memória histórica. In: MOLINARI, Paula (org). Música brasileira na liturgia 2. São
Paulo: Paulus, 2009. (coleção Liturgia e música). p.21- 22.
35
GELINEAU, 1989, p. 144.
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A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar
E o canto na celebração litúrgica? Algumas práticas nos geram
inquietação. Nosso canto é celebração da fé ou diversão religiosa? Que
modelo de Igreja alguns cantos nos levam a vivenciar? Que tipo de
compromisso cristão está motivando? Parece-nos por vezes um canto
de exagerado individualismo, intimista e sentimentalista, desvirtuando a
dimensão comunitária da fé, numa busca de emoções que reduz a relação
com Deus a mero jogo de sentimentos.36
Não ignoramos que nestes últimos anos alguns artistas, com grave ofensa
da piedade cristã, ousaram introduzir nas Igrejas obras destituídas de
qualquer inspiração religiosa, e em pleno contraste até mesmo com as
justas regras da arte. Procuram eles justificar esse deplorável modo de
agir com argumentos especiosos, que eles pretendem fazer derivar da
natureza e da própria índole da arte. Afinal, dizem eles que a inspiração
artística é livre, que não é lícito subordiná-la a leis e normas estranhas à
arte, sejam elas morais ou religiosas, porque desse modo se viria a lesar
gravemente a dignidade da arte e a criar, com vínculos e ligames, óbices
ao livre curso da ação do artista sob a sagrada influência do estro.37
Entrementes, “a música contemporânea pode ser um lugar privilegiado para a experiência espiritual e abrir novos caminhos para Deus,
inclusive para pessoas que não sentem gosto pela liturgia atual.”38 Essa
coincidência dos problemas postos pela liturgia e pela arte não é gratuita nem deve ser inútil: deve-se antes ver nela um sinal dos tempos,
um Kairós. A liturgia irá aprender da arte e de sua poética a aprofundar
a urgência e a natureza do gesto expressivo; a seguir, realizá-lo-á, pois
disso é capaz; uma vez realizado, ela o proporá à arte como exemplo de
comunicação social, de linguagem. Será uma contribuição e não desprezível, para a edificação da sociedade humana.39
Traduzindo o pensamento conciliar e o ensinamento da Igreja, na
liturgia, não se canta por cantar. Também não se canta por ser o canto
bonito ou divertido. A Instrução Geral da Liturgia das Horas apresenta
o sentido verdadeiro do canto no culto cristão:
170
36
Cf. Estudos da CNBB 79, n. 44.
37
JOÃO PAULO II. Carta aos artistas. Disponível em: http://www.meloteca.com/pdfsacra/
magisterio-joao-paulo-ii_carta-aos-artistas.pdf. Acesso em 13 de janeiro de 2013. n. 9.
38
GELINEAU, 1989, p. 148.
39
Cf. STEFANI, G. A aclamação de todo um povo: as diversas expressões vocais e
corais da celebração litúrgica. Petrópolis: Vozes, 1969. (Musica Sacra n. 4). p. 10.
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Murilo Guesser
O canto não deve ser considerado como mero ornamento que se acrescenta à oração, como algo extrínseco, mas antes como algo que emana
do profundo do espírito daquele que trabalha e louva a Deus, e mostra
de maneira plena e perfeita a índole comunitária do culto cristão.
(IGLH 270).
Por isso, o canto deve servir à assembleia como elemento unificador. “Servir” não quer dizer satisfazer quaisquer desejos da comunidade.
O canto antes de tudo deve introduzir, pela fé, toda a assembleia no
mistério de Cristo. Então não se pode compreender a assembleia como a
soma de indivíduos isolados que se justapõem, ou, pior que isso, plateia.
São pessoas em comunhão, Igreja, onde Cristo está presente e agindo.
Para continuar sendo o canto da Esposa, a música da Igreja deve
prevenir-se permanentemente de múltiplas tentações, mais perigosas
ainda por deitarem raízes nas profundezas pré-lógicas do homem.
Antigos demônios sempre estão à espreita para desviar o ato sonoro
de seu fim exato.40
O canto deve estar pleno do mistério de Deus, deve comunicar
esse mistério. Antes de qualquer coisa, a música ritual cristã deve ser
teológica, litúrgica, pastoral e estética. Por meio dela, pode-se dar as
razões de nossa esperança, de nossa fé, como São Pedro apresenta em
sua epístola (1Pd 3,15). Também na Patrística essa dimensão torna-se
ainda mais evidente, como nos atesta Stefani:
Os padres da Igreja elaboraram toda uma teologia do canto litúrgico, partindo do pressuposto que cantar é uma ação agradável. O prazer
de cantar parece algo aceito como uma lei natural, embora interpretado
como uma benigna concessão da Providência à fraqueza humana, doçura
desposada com a austeridade salutar da Palavra de Deus; poética, em
suma, que sabe unir o útil ao agradável; estética que sabe “temperar a
verdade com suaves versos”.41
“Temperar a verdade com suaves versos” é manifestar sonoramente as razões da fé pelo cantar. E quais são essas razões? Cantar a
ação de Deus em nossa vida, unidos ao Mistério Pascal do Senhor, e no
Espírito, render graças a Deus, por aquilo que ele opera no seu povo
eleito e redimido.
40
GELINEAU, 1989, p. 144.
41
STEFANI, 1969, p. 72.
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A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar
Quantas composições sacras foram elaboradas, ao longo dos séculos,
por pessoas profundamente imbuídas pelo sentido do mistério! Crentes
sem número alimentaram a sua fé com as melodias nascidas do coração
de outros crentes, que se tornaram parte da Liturgia ou pelo menos uma
ajuda muito válida para a sua decorosa realização. No cântico, a fé é
sentida como uma exuberância de alegria, de amor, de segura esperança
da intervenção salvífica de Deus.42
Bem haja aos que se debruçam sobre a necessidade de a música
litúrgica voltar constantemente àqueles princípios de inspiração conciliar, para promover, em conformidade com as exigências da reforma
litúrgica, um desenvolvimento que esteja, também neste campo, à altura
da tradição litúrgico musical da Igreja.43 Urge cada vez mais fomentar
iniciativas de cunho formativo, pastoral ou acadêmico, para suprir as
lacunas musicais e litúrgicas de nossa vivência cristã, fazendo-nos sair
desse estado de uma música pura e simplesmente comercial.
Nossa Faculdade (FACASC), atenta ao que a Constituição Sacrosanctum Concilium tão sabiamente ensina: “É desejo ardente na mãe
Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e ativa participação nas celebrações litúrgicas que a própria natureza da Liturgia exige
e que é, por força do Batismo, um direito e um dever do povo cristão [...]
(SC 14.),44 elaborou um curso de extensão em Música e Canto Litúrgico
que oferece formação litúrgica e musical para os agentes de pastoral
litúrgica, para que estes possam, em suas comunidades, desempenhar
o seu ministério litúrgico-musical, nos mais diversos níveis/âmbito de
atuação, com qualidade teológica, litúrgica, estética e pastoral.
A partir de uma perspectiva antropológica se poderia observar que uma
verdadeira educação musical significa uma verdadeira educação para
o religioso. Talvez seja necessário subtrair o próprio rito à cultura do
momento e, igualmente, subtrair o fato musical ritual às modas musicais,
pelo menos àquelas que não têm conteúdo “religioso”; em outras palavras, não façam referência à “totalidade do viver” e ao sentido global
que todo homem tenta atribuir à própria existência..45
172
42
JOÃO PAULO II. Acesso em 13 de janeiro de 2013. n. 12.
43
Quirógrafo do Sumo Pontífice João Paulo II no Centenário do Motu Proprio “Tra Le
Sollicitudini”: Sobre A Música Sacra. In.: Documentos sobre a música litúrgica. São
Paulo: Paulus, 2005. n. 2.
44
BECKHÄUSER, 2012. p. 34-35.
45
TERRIN, Aldo Natale. O rito: antropologia e fenomenologia da ritualidade. Tradução de José
Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2004. (Coleção estudos antropológicos) p. 313.
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Ano 28 / número 2 / 2013
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Cantar é preciso, também na liturgia. Mas não basta cantar. É preciso saborear espiritualmente aquilo que se canta. É preciso que a música,
na liturgia, seja vivida como um diálogo, uma comunhão, com Deus, de
altíssima qualidade, uma participação no “mistério” do próprio Deus,
revelado em Jesus, cuja memória celebramos na liturgia.46 Cantar “com
inteligência”, fazendo com que nossa mente compreenda e acompanhe
aquilo que nossa voz canta.”47
Se o canto serve para polarizar e liberar profundos sentimentos vitais
– e comumente inibidos – a liturgia renovada não pode deixar de encorajar o canto. Enquanto ação simbólica do homem libertado da morte,
enquanto acontecimento que compromete o homem todo, para ser sinal
verdadeiro a liturgia requer que o homem possa manifestar, do modo
mais intenso e completo possível, sua necessidade de salvação, e sua
alegria na ação de graças.48
Que nosso canto seja sempre novo, não como uma novidade passageira e descartável, mas seja emanação de nosso próprio ser que, ao
entoar cânticos, cante a novidade da graça de Deus, fonte de alegria e
paz. Sim, “cantai com a voz, cantai com o coração, cantai com os lábios,
cantai com a vida: Cantai ao Senhor Deus um canto novo.”49 Resta desejar
que este artigo também não se torne um mero produto!
Referências
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_____. Indústria cultural e sociedade. Tradução Julia Elizsabeth Levy.
São Paulo: Paz e Terra, 2002.
_____. HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento: fragmentos
filosóficos. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985.
46
Cf. BUYST, Ione; FONSECA, Joaquim. Música ritual e mistagogia. São Paulo:
Paulus, 2008. (coleção Liturgia e música). p. 7.
47
BUYST; FONSECA, 2008, p. 15.
48
STEFANI, G. O canto. In GELINEAU, J. Em vossas assembleias: sentido e prática
da celebração litúrgica. São Paulo: Paulinas, 1973. p. 223.
49
SANTO AGOSTINHO. Homilia 34,1-3.5-6: CCL 41,424-426. Apud MELO, José Raimundo de. A missa e suas partes: para celebrar e viver a Eucaristia. São Paulo:
Paulinas, 2011. (Coleção Jesus Mestre). p. 142.
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Ano 28 / número 2 / 2013
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A produção musical cristã contemporânea e a música ritual cristã pós-conciliar
BECKHÄUSER, Alberto. Sacrosanctum Concilium: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2012.
BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Tradução
Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BUYST, Ione; FONSECA, Joaquim. Música ritual e mistagogia. São
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CARRANZA, Brenda. “Católicos midiáticos”. In: TEIXEIRA, Faustino
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ZILLES, Urbano. A escola da teoria crítica e a religião. Porto Alegre:
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CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL Documentos
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_____. A música litúrgica no Brasil. São Paulo: Paulus, 1999. (Estudos
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DUARTE, Rodrigo. Indústria cultural: uma introdução. Rio de Janeiro:
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FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: Globalização,
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FREITAS, Verlaine. Kathársis: reflexões de um conceito estético. Belo
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GELINEAU, J. Em vossas assembleias: sentido e prática da celebração
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JAY, Martin. La imaginación dialéctica: una historia de la escuela de
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KANT, Immanuel. Textos seletos. Tradução Floriano de Sousa Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1974.
174
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
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Murilo Guesser
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Endereço do Autor:
Seminário Teológico “Convívio Emaús”
Rua Dep. Antônio Edu Vieira, 1690
Bairro Pantanal
88040-001 Florianópolis, SC
E-mail: [email protected]
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
Encontros Teologicos 65.indb 175
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Encontros Teologicos 65.indb 176
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Recensões
GELINEAU, Joseph, OS CANTOS DA MISSA – NO SEU ENRAIZAMENTO RITUAL,São Paulo, Paulus, 2013, col. “Liturgia
e Música”, pp. 116
Ney Brasil Pereira*
O jesuíta Pe. Gelineau (1920-2008) é dessas pessoas extraordinárias que “descobriram o ovo de Colombo”. Encontrou uma fórmula
simples, que qualquer um poderia ter descoberto antes, mas ninguém o
fez antes dele. Ainda jovem, nos seus 30 anos, Pe. Gelineau percebeu,
na tradução dos salmos do hebraico para o francês, o fenômeno da repetição mais ou menos regular do acento das palavras. Nessa tradução
ele trabalhou, com a colaboração de R. Schwab, para a Bíblia de Jerusalém, publicada primeiro em fascículos, até o lançamento integral em
1955. Ao cantarolar os versículos traduzidos, descobriu a possibilidade
de cantá-los com fórmulas melódicas, que facilitariam enormemente
o canto dos salmos em francês e, em conseqüência, nas outras línguas
modernas. Essa intuição lhe ocorreu, como biblista e como músico, cerca
de dez anos antes do Concílio Vaticano II, cujo primeiro documento, a
Sacrosanctum Concilium, deslanchou a grande reforma litúrgica cujos
frutos continuamos colhendo.
Nós, os que vivemos aqueles anos anteriores ao Concílio, não
podemos esquecer a sensação de sadia novidade e abertura que representaram os primeiros salmos de Gelineau traduzidos aqui no Brasil, a
partir da equipe de Música Sacra do Rio de Janeiro. Ainda hoje está na
memória a melodia do Magníficat, com sua antífona: “O Senhor fez em
mim maravilhas”... o Sl 99, também com sua antífona: “Cantemos ao
Senhor”... o Sl 23, igualmente com a antífona: “O Senhor é o meu pastor,
nada me há de faltar”... A propósito, penso que Frei Joaquim Fonseca, na
excelente apresentação do livro em epígrafe, se equivoca levemente nas
datas, ao escrever que “os conhecidos ‘Salmos e Cânticos’, compostos
por Gelineau no final da década de 1950, na França, foram publicados
*
O autor é presbítero da arquidiocese de Florianópolis, Mestre em Ciências bíblicas
e, como músico, compositor e regente do Coral da Catedral.
Encontros Teológicos nº 65
Ano 28 / número 2 / 2013
Encontros Teologicos 65.indb 177
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Recensões
no Brasil no início dos anos 60...” A meu ver, a composição é anterior
a 1955, porque eu me lembro de ter cantado alguns desses salmos em
português, com os seminaristas de Azambuja, já antes dos anos 60.
Mas gostaria de começar minha recensão com o primeiro parágrafo
do citado Frei Joaquim Fonseca, na sua apresentação do volume: “A
coleção ‘Liturgia e Música’ se orgulha de ter entre seus títulos uma obra
de Joseph Gelineau. Este renomado músico e liturgista francês descobriu,
desde cedo, o valor incomensurável do canto e da música no culto cristão.
Como bom jesuíta, obteve uma sólida formação teológica e bíblica. Investiu todo o seu potencial de músico e teólogo a partir da fonte geradora
que emerge da experiência do mistério celebrado e vivenciado na ação
litúrgica” (p. 7). Frei Joaquim termina sua apresentação, dizendo: “Aqui,
o leitor encontrará uma conceituação precisa dos diversos gêneros que
constituem o canto dos cristãos que se reúnem, sobretudo para celebrar
a Eucaristia, como: os cantos processionais, as aclamações, as cantilações, as ladainhas etc. Enfim, este livro de Gelineau, em boa hora, vem
complementar o primeiro da coleção, que trata da função ministerial dos
cantos da Missa e do Ofício Divino das Comunidades” (p. 8).
O livro, escrito em 2001, quando o autor contava já seus 81 anos
de idade, é fruto de mais de 50 anos dedicados ao movimento litúrgico
pré e pós-conciliar. É dividido em 10 pequenos capítulos, precedidos,
musicalmente, de um “Prelúdio” e um “Poslúdio”. No “Prelúdio”, após
explicar o que se entende por “cantos da missa”, Gelineau lembra a
grande “intenção do Vaticano II”: a participação ativa e consciente da
assembleia celebrante (SC 14). Lembra as “rupturas que marcaram a
história do culto cristão na esfera da liturgia romana” (p. 12), rupturas
superadas com a reforma do Concílio: a assembleia volta a ser o primeiro
sujeito da celebração; a Palavra volta a ser anunciada em vernáculo;
o canto se torna “forma privilegiada de participação do povo nos ritos”
(p. 13). Além de aprofundar-se a relação texto-música, percebeu-se a
necessidade de atender à relação rito-assembleia. Como fazê-lo, porém,
pergunta G., isto é, “como retomar a pesquisa e a criação, em matéria
de canto litúrgico, recorrendo, ao mesmo tempo, à tradição e ao impulso
pós-conciliar?” (p. 14)
Numa avaliação do que foi feito, G. afirma que “ficamos muito
na periferia da ação litúrgica. O perigo é de ‘ocupar-se em cantar’, sem
se preocupar com o rito em questão” e sem “colocar em relevo o papel
específico do canto litúrgico”. Por isso, terminando seu “Prelúdio”, G.
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declara a finalidade do seu livro: “não somente estudar a forma musical
de cada um dos cantos da missa”, mas, “antes, entender como a liturgia
adota ou gerencia diversas formas melódicas segundo os ritos, as palavras,
os lugares, os ministros e as assembleias” (p. 16).
O 1º capítulo estuda “o universo sonoro do culto cristão”, no
qual o anúncio da Palavra, característico da revelação bíblica, ocupa
um lugar especial. Numa síntese gráfica, inspirada na paleta (melhor do
que “palheta”) das tintas do pintor, G. apresenta, na p. 16, a “paletaouvido” da voz ritual, na qual se distinguem dois níveis de palavras; na
parte inferior, as maneiras de dizer que denominamos palavras “faladas”,
contrapondo-se às palavras “cantadas” da parte superior. Entre as palavras
“faladas”, abaixo do limiar do tom, podemos distinguir: o murmúrio, a
meia-voz, por toda a assembleia; a palavra espontânea; e a palavra em
público. Quanto aos “tons” nas palavras, podemos distinguir os brados,
as proclamações, e as cantilações (pp. 20-21).
O “verbo-melodismo” é uma expressão que designa o mais específico do culto cristão: a simbiose mais profunda entre o lógos, palavra,
e o melos, melodia. Nesta simbiose, a melodia não pode mais separar-se
da palavra que a viu nascer. Melodia, às vezes, silábica, às vezes, mais
lírica. “Nos dois casos, a música esposa as palavras para manifestar o
conteúdo inteligível e para descobrir nelas o sabor espiritual” (p. 24). A
seguir, G. discorre sobre “refrãos sálmicos e responsos breves”, “antífonas
processionais ou estacionais” e o “hinário antigo em prosa lírica”. Estuda
também o “hino estrófico”, dando como exemplo os hinos de Santo Ambrósio, e o “cântico com refrão”. Sobre os hinos e cânticos, G. observa:
“constituem uma fonte inesgotável para a participação das assembleias na
celebração litúrgica, mas sua exuberância e facilidade não devem eclipsar
as outras formas de canto ritual que a liturgia requer” (p. 30).
Quanto ao imenso repertório de “música sacra”, em latim, que a
partir de meados da Idade Média desenvolveu-se nas igrejas que tinham
mais recursos musicais, percebe-se hoje que ela continua a ter valor em
si, como música, bastando-se a si mesma, nos concertos, mas dificilmente
se integra na ação ritual litúrgica. Concluindo esse tema, assim escreve
G.: “Face ao ‘thesaurus’ da música sacra, fruto da cultura ocidental e
testemunha de sua fé, um discernimento deve, necessariamente, intervir
para de novo ser utilizado na liturgia atual. Evitaremos tanto o ostracismo
como o esteticismo. Devemos julgar, em cada caso, o que é bom para tal
assembleia em tal circunstância” (p. 32).
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O capítulo 2º aborda os “processionais”, isto é, os cantos rituais
que acompanham, ou podem acompanhar, cinco momentos da missa. O
primeiro é o canto “de Entrada”, que é ao mesmo tempo abertura da missa
e início dos “ritos de abertura”, que vão do canto de entrada até a oração
do dia. Comentário de G.: “É o canto de entrada que constitui ritualmente
a assembleia como tal [...]. É um privilégio do canto coletivo assinalar a
unidade, fusionando as vozes, quando os corpos já estão justapostos” (cf.
p. 36). Quanto à procissão de entrada, G. observa que seu “símbolo mais
importante é a cruz da procissão: o Senhor entra no meio do seu povo
e o atrai para segui-lo. A cruz, sinal da vitória pascal, é assim plantada
ante o altar, face a toda a assembleia. É ela que dá o sentido – orientação
e significado – à procissão e à reunião dos batizados” (37).
Sobre o canto processional, G. faz observações e propostas
detalhadas, começando por dizer que “entre as formas de canto que se
utilizam no início da missa, nem todas são igualmente processionais”
(p.38). Explica as formas litânicas, os tropários com seus três elementos,
os cânticos com refrão, e os cantos estróficos (pp. 38-40). Quanto à procissão do Livro, G. observa que “nos ritos orientais, a liturgia da Palavra
se abre por uma entrada processional do Livro da Escritura acompanhada
de cantos”, diferente da procissão de entrada, e que valeria a pena adotar
(pp. 40-41). Diferente dessa procissão do Livro, temos a procissão do
Evangeliário, acompanhada da aclamação, normalmente o canto do
Aleluia com seus versículos demorando o tempo suficiente.
O processional das oferendas é naturalmente diferente de um
canto de entrada. A Instrução Geral do Missal Romano (IGMR) nada
diz sobre o conteúdo dos textos desse momento ritual. Segundo G.,
musicalmente há várias formas possíveis, a mais rica das quais seria
o modelo do “tropário”, com as estrofes cantadas pelo coro, o refrão
por todos, e os versículos por solistas. E observa: “O valor espiritual e
litúrgico da procissão das oferendas, para que toda a assembleia ‘entre’
em eucaristia, fica ainda por descobrir para a grande maioria dos grupos
celebrantes, grandes ou pequenos”. E continua, belamente: “Mas aqueles
que já fizeram experiência, de modo consistente e por vários anos, podem
testemunhar o benefício pastoral que se tem da ‘grande entrada’: a oração
eucarística, cume da liturgia, torna-se mais comunitária, mais densa, mais
aberta ao Espírito. Assim, o primeiro dos gestos do Senhor na Ceia, que
retomamos em memória dEle, alcança todo o seu sentido e todo o seu
valor místico. Esse rito costitui um limiar: entrada no mistério, abertura
ao louvor, oferenda de toda a Igreja” (p. 45-46).
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O processional da comunhão é o canto mais documentado desde
a antiguidade. Para cada missa, o Missal oferece um texto próprio, que
pode ser cantado de forma responsorial. Entretanto, segundo observa
G., como nem todos desejam cantar durante o percurso muito pessoal
até o ministro que distribui a comunhão e, especialmente, no momento
em que comungam, pode-se, de acordo com a sugestão da IGMR (cf. p.
47), valorizar o “hino” de toda a assembleia, após o silêncio que segue
a comunhão. Esse hino tornaria tanto mais desnecessário o “canto de
saída”, “vestígio da antiga missa cantada em latim, na qual só havia
canto popular após a missa” (p. 48).
O capítulo 3º trata das aclamações, proclamações, diálogos,
“momentos intensos de participação da assembleia” (p. 49). Aqui, além
dos “amém” e “aleluia”, que não deveriam ser apenas sussurrados (!)...
valorize-se, cantando em resposta ao ministro, o “Glória a vós, Senhor”,
antes e depois do Evangelho. Da mesma forma, o “Vosso é o Reino”,
após o embolismo do Pai-nosso. Entre os diálogos, o mais breve e mais
frequente é “O Senhor esteja convosco”, cuja resposta literal, de origem
bíblica (1Cor 2,10), “E com o teu espírito”, não significa um banal “e
contigo também”, mas o desejo da assembleia de que o Senhor, com o
dom do seu Espírito esteja com o presidente no exercício da sua função.
“Não é coisa sem importância”, diz G. (p. 53). Infelizmente, no Brasil,
a resposta “Ele está no meio de nós” tem um belo sentido, sem dúvida,
mas não é o que a fórmula litúrgica exprime.
O capítulo 4º tem por título: “As cantilações”, que se distinguem
dos cantos propriamente ditos. Nas cantilações, diz G., a conduta rítmica e melódica depende das palavras e de sua justa dicção; nos cantos,
é o ritmo e a melodia que conduzem o texto (cf. p.55). Normalmente, a
cantilação cabe a um solista, ministro de um rito: leitura de uma passagem da Escritura, especialmente do Evangelho, prefácio, oração... mas
há também a cantilação coletiva, p. ex. da salmodia, ou do Pai-nosso.
Quanto aos salmos, é interessante a evolução do seu emprego: do canto
ou forma responsorial, o salmo reduziu-se a um versículo musicalmente
elaborado, chamado “Gradual”, confiado a um cantor, até retornar à forma responsorial com o Vaticano II. É interessante a opinião de G. na p.
57, em cima, quanto ao uso dos folhetos, normalmente criticados pelos
liturgistas: para G., eles ajudam a saborear a Palavra inspirada... Ainda
quanto aos salmos na missa, G., que é autor de um “Tratado de Salmodia” (cf. nota de rodapé na p. 58), faz várias sugestões muito úteis (pp.
58-59). Pessoalmente, noto a tendência de alguns salmistas a ornarem
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e florearem demasiado os versículos e o próprio refrão, dificultando a
compreensão e participação da assembleia.
Quanto às leituras bíblicas, G. reflete sobre “os tons da palavra
pública”, chamando a atenção para a mudança ocorrida com o uso do
microfone. Observa, por exemplo, que “num prefácio dito num tom
banal de conversa individual, há uma distorção entre o ato da palavra e
sua condição ritual” (p. 61). Em todo caso, quanto à leitura dos textos
bíblicos, eles “são proclamados para serem ouvidos como Palavra de
Deus”: nesse ponto, quanta deficiência de leitor e de microfone em nossas
assembleias! Quanto à cantilação das leituras, usual na tradição judaica
e, também, latina, G. pergunta: tem ainda razão de ser essa cantilação
em língua vernácula, a não ser em circunstâncias muito especiais, como
Vigília Pascal, noite de Natal etc?” (cf. p. 62). Do Prefácio, G. diz que
nele se encontra “o cume lírico da missa”, e que “uma sua cantilação
bem feita sinaliza melhor a entrada na Eucaristia como louvor” (p. 63). A
seguir, depois de tratar do Pai-nosso (p. 64), G. reflete sobre a Profissão
de Fé, o “Creio”, que era uma das peças principais do repertório coral.
Com a reforma litúrgica do Vaticano II, passou a ser normalmente rezado, embora a IGMR diga que ele é “cantado pelo padre com o povo”
(p. 65). G. faz uma série de questionamentos a respeito, e lembra que
“o único texto de origem propriamente litúrgica é o Símbolo batismal,
transmitido sob forma de pergunta-resposta na vigília pascal e na celebração do batismo” (p. 65).
O capítulo 5º é dedicado às Litanias, ou seja, as “Ladainhas”,
palavra que vem do gr. litê, “oração”. Depois de expor a forma da
Ladainha dos Santos, com as seis secções que a constituem, G. lembra
que, na missa, três cantos podem ser relacionados à forma litânica: o
“Senhor”, o “Cordeiro de Deus” e a “Oração dos fiéis” (p. 68). Quanto
às invocações do Senhor, no Kyrie, diz G. que “não são feitas para apagar
nossos pecados, mas para dizer ao Cristo nossa confiança na sua misericórdia” (p. 70). O fato, porém, é que esse momento está sendo chamado
de “ato penitencial”... e certas novas composições, de letra discutível,
estão encompridando desnecessariamente esse momento, ao qual logo
segue outro canto, o “Hino de louvor”. Quanto à “Oração universal”, que
conserva esse nome na sexta-feira santa, e que chamamos de “Preces da
comunidade”, é uma das mais bem acolhidas restaurações da reforma
litúrgica: G. a comenta nas pp. 71-72.
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Quanto ao “Cordeiro”, que acompanha o gesto da “fração” do pão,
G. aventa a hipótese (pois o “sans doute” do francês não significa “sem
dúvida”, mas “provavelmente”!) de que o “dai-nos a paz” seria uma
introdução ao ósculo da paz, que sabidamente está mal colocado nesse
momento da celebração (p. 72). E lamenta que a “fração” do pão, termo
que ele sugere seja substituído por “partilha” do pão, esteja tão apagado
ante o “acúmulo de textos e ritos”. É nesse sentido que ele sugere um
“canto para a partilha do pão” (pp. 73-74).
A Oração Eucarística, “ponto culminante da missa”, é tratada
no capítulo 6º. Quanto ao “Hino seráfico”, o “Santo”, é preciso lembrar
a sua origem em Is 6,3. Certas melodias saltitantes que temos por aí não
correspondem a essa proclamação da “santidade”, ou seja, da transcendência divina, através desse que “é o mais sagrado dos cantos da missa”
(p. 79). É expressivo, na sua sóbria solenidade, o modelo do Sanctus 18
do Kyriale, que G. reproduz na p. 77. Seguem várias considerações sobre
a aclamação da anamnese, logo após as palavras da consagração (p. 79),
e as outras aclamações, inclusive a Doxologia final (pp. 81-82).
Os Hinos e os Cânticos são tratados no capítulo 7º. Depois de
breve síntese sobre a história dos Hinos na liturgia cristã, G. trata do
“Glória”, introduzido na liturgia romana no séc. VI, “tesouro da oração
cristã, que tem sua origem nos primeiros séculos” (p. 85). É um hino
em prosa lírica, com três estrofes desiguais, após a aclamação inicial.
Das três estrofes, a primeira é dirigida ao Pai, a segunda ao Filho, e
a terceira ainda ao Filho, mas com conclusão trinitária. Os modos de
cantá-lo variaram no decorrer dos séculos, destacando-se a abundância de
polifonias e músicas concertantes compostas sobre o texto latino. Hoje,
em vernáculo, há propostas em forma responsorial e também na forma
estrófica. G. observa a “carga ritual” de três cantos para o único rito de
entrada (p. 87), sendo, pois, preferível reservá-lo para grandes festas.
Quanto ao “Canto da Palavra”, é uma sugestão, não prevista
pela IGMR, entre a homilia, após um tempo de silêncio, e a Oração da
comunidade, com o objetivo de aprofundar e aplicar a mensagem bíblica do dia. G. fala em experiências na França, praticamente inexistentes
entre nós (pp. 88-90). Quanto ao Hino após a Comunhão, previsto na
“Instrução”, G. lembra o “grande número de Hinos, de valor incontestável, feitos para a Liturgia das Horas”, e que poderiam ser aproveitados.
Considerações semelhantes ele as faz sobre os Cânticos com refrão,
que poderiam ser designados “cantos rituais”, com várias formas, para
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os quais poderíamos/deveríamos aproveitar “o tesouro das melodias
religiosas populares (antigas)” (pp.91-92).
O breve capítulo 8º fala sobre Precisão e ritmo, “duas palavras
familiares aos músicos”, que se traduzem “no tom justo afinado e no
tempo certo” (p. 93). São conceitos relativos a uma cultura e às várias
situações, p. ex. a diferença entre um dia de Natal e um domingo comum.
Em parágrafos curtos, G. alerta para certas tendências e contraposições:
“um único gênero de canto”; “muito ou pouquíssimo canto”; “cantos
muito longos ou muito curtos”; “muita ênfase ou acento banal”; “muita
música ou música insuficiente”; “o festivo e o ordinário”... (pp. 94-96)
O capítulo termina observando que “não há outra regra senão a graça
do dia, da assembleia, do momento, que é preciso discernir... ao sopro
do Espírito” (p. 96).
No capítulo 9º, G. aborda a questão das “Assembleias do Domingo”, nas comunidades onde não se pode celebrar a Eucaristia, fenômeno
cada vez mais frequente, inclusive na Europa. Ele começa advertindo
que, apesar de faltar o “coroamento”, que é a partilha do Pão eucarístico,
essas assembleias são “imagens autênticas de uma igreja local”, gozando
também da presença do Senhor Ressuscitado (cf. Mt 18,20). Elas, porém,
não deveriam ficar esparsas, mas estabelecer laços com as comunidades
vizinhas. E seu canto deve ter características próprias, diferentes de uma
assembleia eucarística (pp. 97-98). Nesse caso, o modelo alternativo seria
uma Hora de Ofício? Qual o “modelo de base”, que destaque os “três
momentos fundamentais” da oração, da Palavra, e da intercessão e ação
de graças? (p. 99) Na p. 100 há um interessante quadro de comparação
dos três esquemas: assembleias, lit. das horas, missa. Quanto às “assembleias ecumênicas”, não entendi bem por que, segundo G., “não se
pode, sem hipocrisia, cantar juntos, se não somos concordes” (p. 101)...
Pelo contrário, respondo positivamente à sua pergunta final: “Utilizar,
nas nossas assembleias locais, os tesouros dos irmãos separados, não é
abrir um caminho para esta unidade desejada?” (ibid.)
O capítulo 10º, tratando da “necessária inculturação”, começa
observando que esse conceito “progrediu muito” depois do Concílio, e
que “não há culto sem cultura, e toda cultura tem seus ritos” (p. 103).
Afirma também que “este início do séc. XXI está bem longe da cultura
religiosa de onde viemos”... Comenta ainda o fato da diversidade das
assembleias: pequenos grupos, grandes assembleias festivas, a assembleia da igreja local (às vezes reduzida, em grandes espaços). Quanto
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aos sacramentos, p.ex., a inculturação hoje deveria espelhar-se no que
fizeram, no final do séc. IV, Crisóstomo em grego e Ambrósio em latim (p. 105). Quanto ao canto do povo na liturgia, reconquistado após
séculos de canto em latim apropriado por elites, continua a tarefa de
“um verdadeiro trabalho de inculturação, partindo do rito” (p. 106). G.
comenta a difícil depuração do repertório que está sendo composto, cujo
critério deveria ser “o que nos introduz ou não no mistério”. A propósito,
lembra o fato de apenas cinco sequências terem sido conservadas, entre
as milhares compostas na Idade Média! (p. 107). Quanto ao que chama
de “autoinculturação”, G. fala com a experiência do trabalho realizado
como pároco (!) em cinco paróquias (pp. 107-108). Comenta o problema
de “tantos cantos diferentes na missa” e se pergunta “se não seria melhor
cantos mais longos, criando um verdadeiro clima de oração” (p. 109).
“É preciso tempo”, diz G., “para entrar no jogo ritual e chegar, graças a
ele, à adoração, á súplica, ao louvor e ao silêncio, onde o Espírito fala
ao coração” (p. 110).
Das belas duas páginas do “Póslúdio”, com o subtítulo “o que o
ouvido não escutou”, destaco apenas esta alínea: “É próprio da liturgia
que o invisível não se manifeste senão no visível, que o além não venha
senão no ‘aqui e agora’ dos símbolos, da postura, da palavra e também...
dos sons! É preciso um reencontro entre a ascensão do desejo e a descida
da graça oferecida” (p. 111).
Antes de concluir a recensão, na qual procurei dar uma ideia, muito
incompleta, do precioso conteúdo dessa obra escrita por um “jovem”
de 83 anos (!), algumas poucas observações de revisão: 1) na p. 12, na
primeira alínea, o vocábulo “maestrias” mereceria, em nota, a menção
do original francês “manécanterie”, escola de meninos cantores; 2) na p.
36, na 4ª alínea, se fala do “celebrante” quando deveria ser “presidente”,
como aliás se diz na nota do rodapé; 3) na p. 38, valeria a pena traduzir o
que está citado em francês na nota 3 do rodapé; 4) na p. 40, 3ª alínea, em
vez de “portanto”, leia-se “porém”, traduzindo o fr. pourtant; 5) na p. 47,
2ª alínea: “uma antífona ou refrão com os versículos”, não “como os...”;
6) na p. 57, pelo final da 4ª alínea, o vocábulo “stique” em português é
“estíquio”; 7) na p.58, última alínea, “frequência semanária” deve ser
“semanal”; 8) na p. 66, 2ª alínea, omitir a preposição “de” na referência
ao “símbolo niceno-constantinopolitano”; 9) na p. 72, última alínea, o
“sem dúvida”, do fr. sans doute, deve ser traduzido por “provavelmente”;
10) na p. 76, no meio da 5ª alínea, em vez de “um contorno melódico”
deve ser “um torneio”...; 11) na p. 86, na penúltima alínea, em vez de
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“cantochão musical”, o que é óbvio, deve ser “cantochão tonal”; 12) na
p. 100, na 5ª alínea, em vez de “da cruz que louva a assembleia”, deve
ser “da cruz que a assembleia está louvando” (verificar o original fr.).
E termino, para não me alongar mais, subscrevendo a última afirmação da contracapa: “A ampla documentação, a apresentação concisa,
a abertura à liturgia, à teologia, à musicologia, à história, fazem deste
livro uma obra de referência.”
Endereço do Recensor:
Caixa postal 5041 – ITESC
88040-970 Florianópolis, SC
E-mail: [email protected]
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Crônicas
Tríduo Bíblico 2013
As palestras do Tríduo Bíblico de 2013, ocorridas na Faculdade
Católica de Santa Catarina entre os dias 27 e 29 de maio, trouxeram grande
oportunidade de crescimento intelectual e espiritual aos alunos e professores da instituição, bem como às demais pessoas presentes no evento, que
tratou da Hermenêutica Bíblica a partir do Evangelho de Lucas. Da parte
da assembleia, atenção, participação, escuta, muito interesse; da parte do
assessor, conhecimento exposto de maneira acessível e bem humorada,
sem deixar de lado a profundidade e a seriedade exigida pelo estudo.
A temática trabalhada pelo Prof. Dr. Francisco Orofino esteve
inserida na proposta bíblico-pastoral da CNBB de estudos acerca do
Evangelho de Lucas, em 2013, vinculada ao tema da hermenêutica,
extremamente atual e pertinente. Vale ressaltar, também, a busca da animação bíblica de toda a pastoral, a partir das Diretrizes Gerais da Ação
Evangelizadora da Igreja no Brasil. Ainda: a oportunidade de celebrar o
cinquentenário do Concílio Vaticano II, a partir da releitura e aprofundamento de seus documentos, dentre os quais sobressai a Dei Verbum – a
partir da qual outros documentos foram escritos, com destaque para A
interpretação da Bíblia na Igreja (1993) e a Verbum Domini (2010).
Desde o início dos trabalhos, o professor propôs a análise do “Livro
de Lucas” como um todo – considerando suas duas partes, separadas, na
Bíblia, entre Evangelho e Atos dos Apóstolos. O objetivo a ser alcançado
pela visão unitária do escrito lucano foi perceber tanto o destinatário do
livro de Lucas – a emblematicidade do termo ‘teófilo’, que o professor
uniu à figura do neófito na Igreja primitiva – bem como as intenções do
autor, que, diferentemente dos demais evangelistas presentes no cânon,
dirige-se às comunidades greco-romanas situadas no mundo urbano do
final do século I – muito diferente do espaço de surgimento do Evangelho
de Jesus Cristo e das comunidades da Palestina, na sua maioria rurais.
Lucas, nesse sentido, encontra diante de si um novo interlocutor, semelhante àquele encontrado pela equipe missionária de Paulo, no intento de
anunciar a boa notícia nas regiões da Grécia e de Roma – podendo até
Lucas ter participado da equipe missionária, questão que pode ser posta
partindo-se das possibilidades interpretativas da “seção nós” dos Atos
dos Apóstolos. Nesse pano de fundo, a cidade, emerge a necessidade da
catequese para os neoconvertidos – tanto o anúncio querigmático como
a catequese continuada, sempre vinculando fé e vida, com todas as imEncontros Teológicos nº 65
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Crônicas
plicações da acolhida da fé cristã por uma pessoa do contexto no qual
Lucas está inserido, ou seja, tanto o universo da religião judaica como o
universo político do Império Romano. A tentativa de Lucas aproxima-se
dos ideais de uma pastoral urbana, atualizando, pela hermenêutica, as
motivações de Jesus, dadas em espaço diverso.
O que pode ser mudado no espaço cultural? Quais os temas dos quais
não se pode abrir mão? É possível viver no mundo urbano a proposta da
solidariedade rural, firmada no Batismo e concretizada na Eucaristia, como
base da comunidade? O professor Orofino levou as discussões por esse
caminho, valendo-se, principalmente, da ideia-chave do livro de Lucas,
que caracteriza um “caminho do Espírito” até os confins do mundo.
O fundamento para que se entenda a obra de Lucas num todo é a contraposição de duas propostas oponentes: dois senhores, com suas respectivas
palavras e espíritos. O primeiro parte de Roma, o centro do mundo conhecido,
pronunciando uma palavra que, por meio de um maquinário de comunicação
potente (espírito), alcança o “fim do mundo”, Nazaré. O outro Senhor, partindo de Nazaré – o lugar escondido que se torna o centro do mundo –, também
pronuncia uma Palavra, que se desloca por meio do Espírito, chegando a ser
anunciada até o “fim do mundo”, Roma. A oposição entre essas duas forças, o
Império Romano e o Evangelho de Jesus, dão o fio condutor para uma análise
da obra como um todo, desde a Anunciação e a Encarnação até a pregação apostólica de Pedro e Paulo, que ocupam, cada um, metade dos relatos dos Atos dos
Apóstolos, no qual a palavra chega à capital do Império. Por aqui se percebe a
unidade do livro, de Nazaré, passando por Jerusalém (Evangelho/vida de Jesus)
e Antioquia, até alcançar Roma (Atos dos Apóstolos/missão e martírio de Pedro
e Paulo). Perceber o fato de que a morte dos apóstolos não é narrada, porque
a finalidade do livro de Lucas é narrar o deslocamento da Palavra até o fim do
mundo, o que ocorre com a chegada dos apóstolos a Roma.
O professor ressaltou, por meio de um esquema breve, o importante momento do choque entre os espíritos, marcado pelo símbolo forte
da cruz, que determina a força de um senhor em detrimento do outro.
É uma leitura positiva da palavra, de modo ascendente e uniforme (por
vezes contrário à realidade das perseguições aos cristãos), como aparece
no Magnificat.
Francisco Orofino enfatizou o caráter catequético do contraste e
sua importância no processo pedagógico da catequese em meio urbano,
para se atingir o efeito desejado, ou seja, a clareza daquilo que se queria
comunicar, o modo de agir dos seguidores de Jesus. A apresentação
desse contraste é presente em diversas parábolas de Jesus, bem como
nos exemplos postos por Lucas em seu livro: Zacarias e Maria; Barnabé
e Ananias e Safira.
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Crônicas
O escrito em forma metafórica (parábola) sempre é limitado pela
linguagem utilizada e vale-se da linguagem para enfatizar os aspectos
mais importantes. As parábolas do capítulo quinze – abordadas pelo
professor na primeira noite do evento, com grande público presente –
mostram Deus voltado àquilo – àqueles – que Ele “perdeu” – os pagãos.
O Prof. Orofino enfatizou o modo como as parábolas se fazem entender
tanto no ambiente masculino como no feminino, sempre por meio de duas
histórias que relacionam aspectos do cotidiano – o tema do pastor, por um
lado, e o da moeda perdida na casa, por outro. O caráter hiperbólico das
narrativas acentua o fato de que não se está contando um fato, simplesmente, mas, por meio dele, quer-se chegar a um ensinamento espiritual
e moral, segundo a ótica das comunidades em formação.
Impressionou o modo como o assessor uniu a realidade vivida ao
ensinamento cristão dado na parábola. Na explicação de Lc 15,11-32,
foi ressaltado não tanto a prodigalidade do filho que tornou à casa, mas
a atitude do irmão que permaneceu com o pai. Numa interpretação que
privilegiou o ambiente cultural das cidades e a acolhida de pagãos neoconvertidos por judeus que abraçaram a proposta de Jesus, o professor
enfatizou a necessidade da abertura do coração e da casa para a acolhida
do diferente, que quer celebrar na comunidade cristã. A comunhão exige
abertura frente à tradição, com ponto fundante na comunhão de mesa
(tendo em conta toda a questão alimentar judaica e os problemas com a
impureza, torna-se mais enfática a mudança que significava a conversão dos judeus). Esse processo difícil de assimilação levou à pergunta
central: depois que o filho mais novo – o “filho perdido”, na proposta do
professor, numa sequência com a ovelha e a dracma perdidas – entrou
para o banquete e foi recebido pelo pai como “filho”, desde a restituição
da herança à comunhão de mesa, como se comportou o filho mais velho,
entrou ou não na casa para compartilhar da alegria do pai e do irmão que
fez o processo de conversão?
O pai revela a liberdade da relação entre ele e o filho que esteve sempre
em casa – os judeus deveriam ter liberdade nas relações com Deus, de modo a
poderem se “apossar” de tudo o que é do pai. Uma religião que não promove
a liberdade, como pode levar à conclusão a parábola do filho perdido, e que
não comunica mais Deus de maneira eficaz, como mostra a manifestação de
Deus a Zacarias no Templo, revela-se obsoleta. Jesus não descarta a escolha
de Israel, povo do qual ele mesmo faz parte, mas aprofunda o significado da
Aliança como estabelecida no início: “No início, não era assim...”.
Ao longo do Tríduo, o professor abordou as temáticas centrais para a
acolhida do Evangelho no meio urbano. Evidenciou, também, a necessidade
de maleabilidade no modo como a fé cristã foi se desenvolvendo, com o
processo de abertura, por um lado, mas também com clareza daquilo que,
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Crônicas
em qualquer ambiente, não poderia ser tolerado entre os irmãos: fatores
tanto sociais – o aborto, o infanticídio, o divórcio, que não concordam com
a proposta cristã de igualdade e complementaridade entre os casais – quanto
da vivência da espiritualidade na comunidade e individualmente – a acolhida ao próximo, o fazer-se próximo, o processo de conversão, a atitude
de acolhida, etc. Esses aspectos, dentre outros, ficaram evidenciados na
parábola do bom samaritano, bem como em Lc 15, descrito acima.
No contexto do Ano da Fé, o assessor propôs a figura de Lídia como
emblemática para o entendimento da missão de Paulo, mas também para
o modo de vivenciar a missionariedade hoje. Lídia é a única personagem
bíblica citada na Porta Fidei, de Bento XVI, para a convocação do Ano
da Fé, na comemoração do cinquentenário do Concílio Vaticano II. De
At 16 o professor ressaltou a importância da atividade missionária como
decorrência do Batismo, feita sempre em nome da Igreja. Discernindo
o apelo do Espírito, a equipe missionária se dirige à Macedônia, onde
encontra Lídia e é por ela acolhida em casa. O Espírito envia a equipe a
um destinatário claro, Lídia, que, após o recebimento do Batismo (abertura de coração), acolhe a Igreja em sua casa (abertura da porta da casa).
Daqui vêm admoestações sérias para o processo catecumenal de ontem
e de agora. Para o professor, o fato de o papa ter escolhido Lídia como
único rosto de seu escrito chama a atenção da Igreja para a missão e o
processo catequético que transforme as atitudes dos participantes.
Na terça-feira à noite o tema da quarta conferência foi dedicado
ao uso do dinheiro pela comunidade cristã, tema bastante relevante para
a vida na cidade e donde brota para a comunidade cristã a exortação à
coerência de vida. O professor distinguiu e contrapôs a ótica do acúmulo
(casa do acúmulo) à ótica da partilha (casa da partilha/Igreja). Lucas
caracteriza o fariseu como amigo do dinheiro (filárguros = amigo da
prata). É o representante da ótica do acúmulo e de todos os que não se
abrem à partilha para a construção da casa-Igreja.
Na cidade, que faz conviver muito próximos ricos e pobres, o
dinheiro pode ser instrumento de exclusão, mas pode, por outro lado,
ajudar a promover a partilha, da qual é retrato ideal At 2,42-47. Em
contrapartida, o professor ressaltou a postura mentirosa de Ananias e
Safira que, ao reterem parte do dinheiro consigo e mentirem para a comunidade, traem o espírito cristão, não porque não colocam tudo o que
possuem à disposição, mas porque não se portam de maneira autêntica.
A distribuição igualitária é vista na ótica da necessidade de cada um. A
Igreja não interfere nas disposições dos fiéis sobre seus bens. Por sua vez,
o fiel não pode mentir para a comunidade, matando o seu Batismo.
O contexto urbano cada vez mais é ampliado no sentido da globalização. Por outro lado, a tecnologia que proporciona esse desenvolvimento
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traz no seu rastro o problema do individualismo que se estabelece entre as
pessoas. A pastoral da Igreja nas cidades trabalha – deve trabalhar – nesses
dois sentidos, para garantir e enfatizar os aspectos da catolicidade da fé e
também do ambiente íntimo no qual a mesma deve ser vivenciada. A proposta da Igreja como “casa da partilha”, ao mesmo tempo em que ilumina a
ação, coloca novos desafios para a evangelização real, ampla e eficaz. Numa
sociedade extremamente dependente do sistema econômico, urge pensar
a relação da fé com o modo de utilização dos bens materiais, não vistos
de maneira negativa, mas buscando sua contribuição para a comunidade,
espaço sem o qual não pode existir verdadeiro cristianismo.
O tema do Tríduo Bíblico foi desenvolvido em duas partes: primeiramente, o professor destacou passagens do livro de Lucas que serviam
para uma compreensão global do texto, a partir de temas centrais para
a evangelização em meio urbano, espaço de evangelização para o qual
o Evangelho de Lucas foi pensado. Uma segunda parte ficou implícita
durante todo o processo, que, justamente, permeou todas as conferências,
porque imprescindível para a leitura bíblica: a escolha de uma chave de
leitura hermenêutica. No último dia do Tríduo, o Prof. Orofino enfatizou
esses princípios, com base em A interpretação da Bíblia na Igreja (1993),
além de tomar duas contribuições de textos dos papas Paulo VI e João
Paulo II. Esses pontos formaram a contribuição da Igreja no Brasil para
o sínodo da Palavra, ocorrido em 2008:
1. Crer e acolher a Bíblia como Palavra de Deus, na comunidade
de fé;
2. A Bíblia é Palavra de Deus com linguagem humana – a leitura
exige métodos de compreensão da linguagem humana, a partir
das ciências;
3. A Palavra é o instrumento de Deus para revelar a si mesmo – o
homem é chamado a fazer a experiência de Deus;
4. Jesus é a chave principal de leitura da Bíblia – mostra como fazer
a experiência de Deus/do nome de Deus (como presença);
5. Aceitar a lista canônica e inter-relacionar os livros, aceitandoos por igual;
6. A Bíblia é o livro da Igreja – ler com e na Igreja, que diz que
a Bíblia é a Palavra de Deus – o ambiente de fé é o contexto
hermenêutico (valorização dos ambientes de leitura popular);
7. Levar em conta os critérios da fé – unidade da Escritura; Tradição; analogia da fé (DV 12);
8. Levar em conta os critérios da realidade – da época do escrito
e da atualidade;
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9. Complementariedade entre Bíblia (proposta) e oração (resposta) – o processo hermenêutico se conclui com a resposta do
homem a Deus;
10. A interpretação bíblica deve estar a serviço da evangelização.
Finalizando os trabalhos do evento, o professor escolheu o texto
dos discípulos de Emaús (Lc 24), que encerra a primeira parte do livro de
Lucas, apontando o caminho de Emaús como caminho da desobediência
e da conversão, a partir da cegueira dos discípulos – ao que parece um
casal –, que percebem a presença de Jesus no pão partilhado, quando
abrem sua casa para acolhê-lo, sem saber que era ele o Senhor ressuscitado. A passagem revela um processo de reencantamento por Jesus,
dentro da dinâmica da própria liturgia da Igreja, da Palavra anunciada
e explicada ao pão partido, revelando a ótica da partilha. Em tempos
de nova evangelização, faz-se necessário ter em conta a dinâmica da
celebração eucarística como lugar propício para o reencantamento com
a pessoa de Jesus.
O mundo urbano é marcado pela diversidade. A aceitação da
diversidade na Igreja passa pelos indivíduos e pela não-tentativa de
padronização, que acaba por ser excludente. Na atualidade, abre-se
ainda mais o leque da diversidade. O desafio fica na pergunta: “Quem
e por que eu excluo determinadas pessoas que se aproximam da casaIgreja?”. Há necessidade de buscar o Espírito que renova e dá equilíbrio
a todas as coisas.
Paulo Stippe Schmitt
(Acadêmico do 1º ano de Teologia da FACASC)
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