Do controle do estado à liberdade de
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Do controle do estado à liberdade de
Do controle do estado à liberdade de mercado: os casos de duas cidades em Angola e na Rússia Clovis Ultramari1 Sylvia Leitão2 Zulma Schussel3 Cualquier viajero por el Moscú actual paseará por una ciudad con el escenario preparado por el clasicismo socialista, el pompier estaliniano convertido en improvisado campamento para los topos y urdidores del capitalismo salvaje. (Manuel Vázquez Montalbán, 1997) Introdução O presente artigo é resultado de uma reflexão sobre experiências profissionais dos autores em duas cidades: Luanda, em Angola, e Togliatti, na Rússia. Luanda é uma cidade com aproximadamente 3.5 milhões de habitantes, fundada em 1575, sendo considerada a primeira cidade construída pelos portugueses na parte continental da África. Até o século XIX teve um crescimento lento, mantendo toda sua área urbana dentro dos limites definidos pela Fortaleza de São Miguel, Ermida de São José, Convento de Nossa Senhora do Carmo, Ermida da Nazaré e a praia da baía.4 Nessa época, a 1 Professor do Departamento de Arquitetura da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Consultor para o projeto de transformação urbana da cidade de Tugliatti, Rússia. E-mail: [email protected] 2 Professora do Departamento de Arquitetura da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Consultora para o projeto de recuperação urbana de Viana, província de Luanda, Angola. 3 Doutoranda em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná, Professora do Departamento de Arquitetura da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Consultora para o projeto de recuperação urbana de Viana, província de Luanda, Angola. 4 De acordo com o modelo medieval que vigorava em Portugal, a cidadela deveria localizar-se numa baía ou sobre um elevado (cidades como Lisboa e Porto). A cidade era concebida de forma dual – cidade alta e cidade baixa – podendo-se associar a estratificação do espaço à hierarquia social. Na cidade alta, atividade econômica principal consistia no comércio de escravos para o Brasil. Entre 1641 e 1648 foi ocupada pelos holandeses que, nesse curto período destruíram edifícios e dizimaram a maioria dos habitantes. Com a construção da atual Sé Arquiepiscopado (1651) e da Igreja da Nazaré (1664) começou-se a delinear a parte baixa da cidade. Na parte alta, que ia da Fortaleza do morro de S. Miguel até a Igreja da Conceição, a não ser a construção do hospício de Santo António, em 1668, nada mais de notável se realizou. No período imediatamente posterior a 1836, com o decreto que aboliu o tráfego de escravos, houve uma queda nas exportações pelo porto de Luanda e com isso uma degradação da cidade. Já no início do século XX, 45% da população da cidade era branca, pois nas décadas anteriores se havia promovido a expulsão dos negros para a periferia, surgindo os musseques, que delimitavam os espaços entre as classes sociais, promovendo forte segregação espacial. Segundo PEPETELA, na Luanda colonial, o espaço estava “repartido entre a cidade do asfalto e o musseque”. 5 O musseque, nesta época, caracterizava-se como um espaço transcultural: além de fazer a ponte entre a cidade e o campo, era o lócus onde se mesclavam várias culturas e línguas: a do colonizador português, para a vida urbana, e as do camponês, o colonizado, como o kimbundo e o kikongo. A partir de 1948, o crescimento de Luanda se acelerou, constituindo um reflexo da fase em que Angola é o quarto produtor mundial de café. Em 1975, com a independência de Portugal, iniciou-se a guerra civil angolana que se localizavam-se as instituições, os edifícios administrativos e religiosos, e a maior parte das áreas residenciais; na cidade baixa, às margens de rio ou do mar, a zona comercial. Este modelo pode ser identificado na cidade colonial brasileira, como por exemplo em Salvador. Em SANGODEYI-DABROWSKI (2003), p. 169 e 170. 5 O termo musseque faz referência a um tipo de areai vermelha, comum na região, onde eram assentados os casebres dos colonizados. PEPETELA (1990). p.103 e 106. estendeu até a década de 90, promovendo um forte processo de migração campo-cidade e deixando marcas na cidade desse período de violência. O Tratado de Amizade e Cooperação com a União Soviética, assinado em 1976, influenciou a formação das estruturas institucionais locais, com o modelo socialista de gestão, o qual influenciou a arquitetura e o urbanismo. Atualmente, o país vivencia inúmeras transformações de ordem institucional e física com o final da guerra e a retomada da economia voltada para a exploração mineral – petróleo e diamantes – sobretudo sob o comando de uma nova população migrante estrangeira e que exige novos espaços de ocupação. Isso permite ensaios de reconstrução urbana em Luanda e exige a oferta de novos espaços sob novos dogmas de urbanismo. Togliatti, projetada pelo arquiteto Yury Bocharov, é uma cidade com aproximadamente 600.000 habitantes, localizada a 900 km a leste de Moscou, nas margens do rio Volga. Construída nos anos 60, sob os dogmas do urbanismo moderno funcionalista, hoje, a economia da cidade gira em torno da indústria automobilística Lada. A despeito das mudanças que no momento se visualizam, Togliatti ainda se apresenta como mais um empreendimento soviético na área do urbanismo, respeitando a segregação funcionalista e, mais do que o modelo de Le Corbusier pôde imaginar, fortemente relacionada com uma arquitetura modernista constituída por uma paisagem homogênea de conjuntos habitacionais. Togliatti vincula-se, em termos de polarização, à cidade de Samara, a 100 km de distância e que se estrutura segundo princípios anteriores ao urbanismo modernista, mesclando um patrimônio arquitetônico do Século XIX pré-revolução de 1917, agora em valorização, e uma arquitetura com fortes raízes no construtivismo soviético. A semelhança dos processos ora observados nessas duas cidades permitiram construir a discussão que aqui se apresenta, indicando inclusive uma situação urbana que pode ser considerada recorrente em outras cidades dos chamados países em desenvolvimento, sobretudo aqueles que agora se voltam para a economia de mercado, após décadas de forte controle estatal. Sem poder generalizar duas experiências que, em princípio parecem distantes social, ambiental e geograficamente, o presente artigo aponta para fatos urbanos que, ao se analisar outros estudos, elaborados para outras cidades, constituem tendências quando decorrentes das mesmas mudanças na economia, na política e nas instituições nacionais. A seguir, uma síntese dos fatos observados nessas cidades, quando de seus esforços atuais de transformação urbana. Cidades e governos nacionais A despeito de recorrentes observações de que as cidades, cada vez mais, assumem o lead de mudanças econômicas e mesmo de transformações sociais profundas, os casos analisados levam a uma conclusão inversa; ou seja, a despeito de as cidades ainda serem o lócus das mudanças de perfis diversos – é nas cidades que as coisas acontecem – os espaços urbanos ainda são extremamente dependentes de decisões de ordem nacional e internacional. Nos casos analisados, as mudanças buscadas nas estruturas físicas, seja em Luanda, seja em Togliatti, acontecem como permissões ou exigências daquilo que é decidido nacionalmente. Apesar de as mudanças buscadas serem negociadas, planejadas e implementadas por agentes da administração local, o início do processo é observado no nível nacional. Entretanto, vale lembrar que um entendimento como esse reposiciona ou relativiza a importância de políticas urbanas na transformação de uma economia nacional, por exemplo: A maneira como as cidades gerenciam seu desenvolvimento, incluindo a atração de indústrias, é de grande importância na determinação do nível de desenvolvimento econômico [do país]. Governos urbanos podem incentivar o desenvolvimento econômico assim como podem provocar retrocessos. (World Bank, 2000, p 126, traduzido). Evidentemente, tais decisões nacionais não estão, por sua vez, desprovidas de interesses internacionais, sobretudo das agências de financiamento tais como o Banco Mundial. Aurélio Vianna Junior, ao analisar a importância dessas agências para o caso brasileiro, afirma: ... além da importante função meramente financeira, os Bancos têm atuado como ‘inteligência’ auxiliar do Governo na elaboração de programas e projetos, como por exemplo, os programas responsáveis por políticas de ajuste estrutural, os projetos setoriais de desenvolvimento, os de combate à pobreza... Desse modo, parte das novidades em políticas públicas e projetos do governo brasileiro é, muitas vezes, o resultado de um trabalho de cooperação internacional em que o Banco Mundial e o BID têm um relevante papel. (1998, p. 82). Nos dois casos internacionais analisados, é marcante a flexibilização do dogmatismo socialista nas economias – angolana e russa – com a revisão da propriedade do solo e a possibilidade de agentes externos à administração governamental em atuar na proposição e na implantação de políticas para as suas cidades. Assim, o término do comunismo na Rússia e o fim da guerra em Angola (também com o questionamento de dogmas sobre a centralidade do Estado), ambos permitindo alterações profundas nas necessidades básicas da população, têm provocado alterações no uso, na apropriação e mesmo na paisagem urbana desses países. Na Rússia, fica claro o surgimento de usos comerciais até então inexistentes antes do processo de abertura política e econômica. Devido ao fato de não haver espaço construído para tal uso, observa-se uma apropriação de espaços públicos, sobretudo quando da existência de largos passeios, para a instalação de quiosques de pequeno comércio privado. Da mesma maneira, com o o intuito de mostrar um desdém à arquitetura até então provida pelo governo, as classes em ascensão agora procuram formas e estilos que se singularizam na paisagem urbana, repetindo um cenário conhecido em países que já contam com tradição na atuação da iniciativa privada e individual na transformação do espaço construído urbano. Em Luanda, da mesma forma, o espaço público é assumido pelos milhares de vendedores ambulantes que substituem o mercado formal e têm nesse pequeno comércio - a sua única fonte de renda. Um exemplo disso é a significativa área de sua orla que foi ocupada durante o período da guerra civil com musseques gigantes e com o mercado aberto de mais de 2 km de extensão, chamado Roque Santeiro6, onde convivem centenas de barracas com mercado diversificado - de pão a peças para helicópteros. Gentrification e um novo urbanismo O surgimento de uma classe que agora pode7 viver sem a dependência do estado (não apenas em termos de habitação e urbanismo, mas também em termos de educação e saúde, por exemplo) tem, na realidade, exercido significativas pressões para um redesenho urbano. Entre tais pressões, é ostensivo o desejo de gentrification observado nessas sociedades, sobretudo na russa. As novas classes em Togliatti, com poder aquisitivo superior à média, agora desejam mais espaços de lazer, uma proximidade com recursos naturais (no caso, as margens do rio Volga) e uma arquitetura diferenciada daquela até então oferecida pela atuação governamental. Nesse caso, isso pode ser 6 Com o nome em alusão a um personagem de uma novela da televisão brasileira, esse mercado é considerado o maior mercado popular do mundo segundo o Guiness. 7 Evidentemente, há também uma outra classe, carente, que é obrigada que a viver sem essa dependência. confirmado pela decisão de a municipalidade empreender esforços para a construção de um waterfront nas margens do Volga e a disponibilização de áreas residenciais valorizadas para uma classe emergente. Assim, enquanto o projeto original da cidade de Togliatti ignorou a presença do rio, distanciando-se desse aproximadamente 2 km, criando uma faixa de terra ocupada por grandes parques subutilizados, com referenciais para a glória da revolução comunista, a administração atual deseja a utilização desse recurso paisagístico. Assim, a idéia de waterfront tão cara a cidades do mundo desenvolvido ou para aquelas com forte apelo turístico – Johanesburgo e Cidade do Cabo, na África do Sul, Baltimore, nos Estados Unidos e inúmeras outras na Europa, para citar alguns exemplos – aqui é repetida: um fato novo, em meio a um urbanismo “utilitarista”. Em Luanda, observa-se a consolidação de um modelo urbano baseado numa forte segregação social que se materializa através dos condomínios fechados. Equipados com fortes esquemas de proteção, representam o novo urbanismo da segurança que vem se reproduzindo rapidamente nas cidades dos países periféricos e semi-periféricos.8 Com isso, a fragmentação dos espaços urbanos é perceptível, alternandose grandes espaços vazios, musseques e condomínios esparsos. Do ponto de vista da infra-estrutura, esses condomínios servem-se de geradores de energia e poços de água próprios, enquanto a maioria da população permanece sem esses serviços – no caso da água, observam-se caminhões que a vendem. Do ponto de vista da produção desses espaços, os condomínios repetem as características internacionais, com uma arquitetura que não se comunica com a sociedade local; ao contrário, estabelece uma linha divisória delimitada espacialmente. Quanto ao consumo desses espaços, cabe ressaltar a sua 8 No caso do Brasil, o modelo dos condomínios fechados vem se proliferando na paisagem urbana, porém com uma segurança menos ostensiva que no caso angolano. relação com questões de ordem social e étnica. De um lado, de forma mais significativa, a ocupação desses condomínios se dá por representantes de uma classe social emergente – funcionários públicos e empresários. De outro lado, estão os representantes das empresas estrangeiras que hoje participam do processo de reestruturação do país. Da submissão ao governo central à submissão ao modelo internacional No caso de Togliatti, com seu waterfront, inicia-se então uma flexibilização das regras advindas de diretrizes nacionais que moldaram as cidades soviéticas e suas paisagens urbanas e que repetiram princípios em todo o território sob as ordens do governo central. Resumidamente, tais diretrizes podem ser assim apresentadas: limites quanto ao tamanho das cidades, criação de paisagens simbólicas no centro das cidades, provimento de facilidades culturais e de consumo para todos os habitantes, áreas residenciais perto de áreas industriais, reduzindo as distâncias diárias dos trabalhadores, rígido zoneamento; Controle estatal da habitação (construção e manutenção), e provimento de grandes espaços verdes para uso recreacional. (Fonte: <http://www.macalester.edu> Acesso em outubro de 2004, adaptada). Em Moscou, mais que nas outras cidades, essas diretrizes parecem ter sido adotadas com grande zelo. Assim, em 1935, já com o governo comunista consolidado e terminada a Primeira Grande Guerra, a cidade recebe seu Grande Plano, como foi chamado o plano imposto por Stalin, no sentido se refletir a “grandeza e a beleza” do período soviético. Evidentemente, a visibilidade internacional permitida por Moscou levou o governo central a utilizar esses princípios à exaustão; no caso de Togliatti, cidade localizada numa Europa distante e pouco conhecida, é menor a monumentalidade e a sofisticação do desenho urbano e da arquitetura oficial. Ainda assim, os princípios nacionais para o urbanismo são aí observados sobretudo no traçado da cidade, na divisão de funções no tecido urbano e na reserva de grandes áreas livres para lazer, no culto à imagem de heróis nacionais e, também, na própria denominação da cidade. Assim, as regras do urbanismo oficial são observadas não apenas na concretude do espaço construído e na sua apropriação pelos habitantes, mas também na toponímia, quase sempre escolhida segundo líderes históricos do comunismo ou mesmo de líderes ainda no poder. É o caso, por exemplo, de Joseph Stalin, cujo nome serviria para batizar cidades até o período conhecido como de destalinização, em 1961. Togliatti assiste às mesmas transformações: originalmente conhecida como Stavropol, a cidade foi obrigada a mudar de sítio de ocupação quando da construção do Reservatório Lênin, para produção de energia, nos anos 50, o que permitiria a sua industrialização. Em 1964, foi renomeada em homenagem ao líder do Partido Comunista Italiano Palmiro Togliatti. Hoje, as mudanças exigidas em Togliatti, além daquelas que resultam de sua nova classe com melhor poder aquisitivo, é a da inserção de sua produção automobilística9 no mercado internacional: uma maior ou menor demanda pelo mercado importador agora é mais fundamental para a sobrevivência da cidade que decisões do governo local ou central. As mudanças no nível internacional, principalmente na União Soviética e a fragilização econômica de Cuba, fizeram o governo angolano aproximarse dos organismos multilaterais mantidos pelos países capitalistas na busca de recursos para a reconstrução do país. Em 1994, foi instituído o “direito individual de uso da superfície”, que tinha o objetivo de produzir lotes 9 Antes estatal, agora produzindo em parceria com indústrias estrangeiras. urbanizados em parceria com a iniciativa privada, o que foi uma transformação significativa do ponto de vista ideológico, num país onde até então o solo era exclusivamente propriedade pública. Em 1996, foi criada uma empresa de capital misto entre o governo da província de Luanda e uma empresa privada, cuja finalidade era a gestão desses novos processos de ocupação do solo. Com base nos conceitos de planejamento estratégico de cidades, o governo central coordenou a elaboração de um projeto de reestruturação urbana para Luanda. Para tanto foram feitos contratos de consultorias internacionais e elaborado um plano estratégico de desenvolvimento. O plano previu três frentes de atuação: reabilitar a parte central da cidade – área circunvizinha ao porto onde se encontram construções coloniais dos séculos XIX e XX; integrar os musseques que envolvem a área central da cidade; e expandir a cidade rumo a novas áreas. No que se refere ao terceiro item, foi elaborado o programa denominado Programa Auto-financiado Luanda Sul. A característica principal do projeto, além da viabilidade econômica, era atender aos diversos segmentos de renda. No que se refere às faixas de renda média e alta foram executados modernos empreendimentos, em áreas ainda não ocupadas pelos musseques, construindo um waterfront na orla do Atlântico, seguindo tendências internacionais. No que se refere às camadas de baixa renda, foram produzidas 2000 habitações, com recursos do governo central. 10 Com relação ao desenho urbano, é importante registrar que nas décadas de quarenta e cinqüenta, Luanda e outras cidades coloniais portuguesas como Lourenço Marques, Macau, São Tomé foram organizadas e planejadas 10 O Programa Luanda Sul proporcionou ao governo de Angola o Prêmio Internacional de Dubai em 2000: Melhor prática na melhoria dos meios de vida em infra-estrutura, comunicações e transportes, habitação, arquitetura e desenho urbano. segundo princípios de uma urbanística formal, na qual se reconhecem ensinamentos de experiências como as habitacionais holandesas dos anos trinta, os estudos de Unwin no Town Planning e os conceitos de unidade de vizinhança. 11 Segundo José M. Ressano Garcia Lamas, estes princípios teriam sua origem nos planos de Faria da Costa para os bairros de Alvalade e do Areeiro em Lisboa12: expansão planejada, livre de restrições fundiárias e com forte controle público; e equilíbrio entre a cidade tradicional e a área de expansão, quanto à organização das funções e dos equipamentos, quanto à hierarquização viária, quanto às zonas livres e arborizadas. Mudanças recentes Em ambos os casos, na busca de explicações para as mudanças em operação, pode-se dizer que a revisão da propriedade da terra, até então quase que integralmente estatal, é a que mais impacto tem gerado nos casos analisados. Em Togliatti, por exemplo, já são marcantes na paisagem urbana os novos prédios construídos para uma classe emergente que conseguiu inserir-se na nova economia de forma mais competitiva. Todavia, os edifícios dessa nova classe estão lado a lado dos edifícios construídos pelo Estado provedor das necessidades urbanas básicas. Tal convivência, todavia, nem sempre é positiva, seja pelo padrão arquitetônico, na maioria das vezes um pastiche da arquitetura ocidental internacional, sem compromisso com a realidade local e que valoriza a visualização ostensiva de qual classe o usuário da arquitetura pertence. Referenciando-se menos em Togliatti e mais em Moscou13, para a qual as informações são mais disponíveis, tem-se, pois, um 11 Em Lamas (2004), p. 286. Os bairros foram projetados em momentos diferentes: Areeiro em 1938, para 9000 habitantes, em 32 ha; Alvalade em 1945, para 45000 habitantes, em 230 há, porém em decorrência do período da política desenvolvimentista de Duarte Pacheco frente à Câmara de Lisboa. Em LAMAS (2004), p.284 a 286. 13 Cerca de 90% dos aproximadamente 3 milhões de domicílios em Moscou foram construídos após 1955, a maioria na forma de blocos de edifícios. A despeito de muitos necessitarem de renovação, todos têm água e esgoto e a maioria tem água quente. Em 1992, a municipalidade permitiu aos moradores adquirir a 12 setor privado emergente, porém pronto para vender um produto urbanístico e arquitetônico que responda aos anseios de uma classe social igualmente emergente e que considera importante distinguir-se meio a uma sociedade que por anos se quis homogênea em termos de recursos financeiros. Tais mudanças têm ocorrido não apenas nas áreas residenciais construídas segundo os preceitos do urbanismo modernista, mas também, e isso é o que mais impressiona, em áreas de valor histórico singular para esses países. De certa maneira, nesse caso, a história se repete: se em alguns casos, a Revolução Socialista Soviética havia posto abaixo ícones importantes para dar lugar a uma nova simbologia urbanística, agora, a despeito de algumas tentativas de desfazer alguns danos, o capital privado, e não mais o Estado, compromete valores importantes do patrimônio histórico-arquitetônico. Como exemplo, tem-se a construção do complexo da Manezhnaya Ploshchad (praça) e Shopping Center nas imediações do Kremlin, até há pouco tempo um espaço árido ganho com a demolição de antigos imóveis e que, com o atual projeto, tornou-se referência para a população jovem da cidade e mesmo para o turismo internacional. “ ... the external treatment is so crassly decorated and over ornamented with both architectural and sculptural elements that comparisons with Disneyland are appropriate.” (Maria Kiernan, 1998). Outro exemplo é a destruição da Igreja do Cristo Salvador, em 1931, para dar lugar ao Palácio dos Sovietes e, nos anos 90, recuperada a um alto custo financeiro, porém de grande valor imagético. Na Rússia, porém, esses desejos de uma arquitetura e de um urbanismo monumental, ora se constituem na concretização de um sonho, ora permanecem na prancheta de seus idealizadores. Atualmente, o governo propriedade de seus apartamentos, a partir de uma <http://www.tia2000.ru/dv/m/m.shtml> Acesso em novembro de 2004 pequena taxa. Fonte: anuncia, mais uma vez, em parceria com o setor privado14, a construção daquilo que seria o mais alto prédio da Europa, um irmão mais novo dos arranha-céus da era stalinista conhecidos como as Sete Estrelas15 que dominaram a paisagem moscovita por 50 anos: o Rússia Tower16, parte do Moscow-City, ou Moscow International Business Center, um dos mais ambiciosos projetos da cidade. Situado a 4 Km do Kremlin, na área conhecida como Krasnopresnenskaya Naberezhnaya (embarcadouro), ao longo do rio Moscou, o projeto tem data prevista de conclusão em 2015 e deverá custar algo em torno de U$10 bilhões a U$ 12 bilhões, financiados com recursos internacionais. Nesse relato, tem-se então, uma mudança e uma permanência: o Estado agora divide com o setor privado as intervenções na cidade, porém permanece, da parte de um e de outro, o desejo de referendar uma determinada idéia: se no passado, teve-se a ideologia de um novo mundo socialista, agora tem-se a esperança marcada pelo dinheiro, podendo a arquitetura e o urbanismo, mais uma vez, fantasiar a concretização de uma ideologia. Do mesmo modo que Stalin assumiu o urbanismo modernista17 com rapidez a ponto de não se poder filtrá-la de seus eventuais aspectos negativos, o mercado hoje, lança-se num modelo de desesperada inserção internacional no mundo considerado desenvolvido. Em Angola, sobretudo na capital, Luanda, o padrão arquitetônico que se observa também reflete a atuação de escritórios internacionais, porém numa 14 Resumidamente, a municipalidade participa com a infra-estrutura e o setor privado com a obra propriamente dita. 15 Joseph Stalin desejou marcar, com sucesso, sua época por meio de um grande projeto urbanístico e arquitetônico que revelasse a glória do povo soviético e as maravilhas do modelo socialista : seriam, dentre outras coisas, a construção de sete grandes edifícios, a partir de 1947, com gigantismo desmesuarado. O mais significativo, talvez, seja o da Universidade Lomonossov, com 26 andares estrategicamente alocado sob uma colina. 16 Projeto do Escritório Skidmore, Owings & Merrill. 17 Vale lembrar que na arquitetura, Stalin abandona a qualificada arquitetura modernista (conhecida como o concretismo soviético) e busca a magnitude de seus projetos na arquitetura neo-gótica, tal qual se observa nos edifícios de Nova York. escala significativamente menor, no sentido de registrar a mudança política e econômica do país. Evidentemente, o capital imobiliário em Angola não recebe os afluxos americanos e europeus observados na Rússia e as consultorias internacionais ocorrem muito mais em termos de reconstrução de uma cidade destruída pela guerra que na dinamização de um espaço consolidado com décadas de estagnação imposta por um modelo de economia de mercado como na então União Soviética. Os novos passivos urbanos De um momento para outro, a partir das mudanças políticas em seus países, cidades como Togliatti e Luanda – podendo-se especular sua generalização para as outras cidades de Angola e Rússia – passaram a não mais atender às necessidades básicas e tradicionais de seus habitantes. Se, sobretudo em Luanda, carências já existiam, a nova configuração das sociedades dessas cidades, agora deve procurar novos espaços e novas formas de ocupação para satisfazer seus interesses. Na Rússia, a partir do exemplo de Togliatti, dois aspectos chamam a atenção: espaços para o setor de novos comércios e serviços e espaços para uma classe média emergente que procura no modelo ocidental sua satisfação e mesmo suas novas necessidades criadas a partir de uma imagem de cidade externa aos seus meios. Em Togliatti, naquilo que diz respeito a espaços que ora se constroem segundo a tendência de gentrification, como foi dito, tem-se a proposta de construção de um waterfront e de uma nova disponibilização de área residencial e comercial ao longo do rio Volga, desde sempre esquecido de propostas urbanísticas anteriores. Tal proposta, devido à escassez de recursos do governo e talvez devido a um desinteresse em inverter capitais em áreas remotas, distantes de Moscou ou São Petersburgo, sobrecarregará os esforços em recuperar imóveis e infra-estruturas urbanas há muito abandonadas pelo governo. Se esse governo foi hábil em disponibilizar infra-estruturas urbanas de forma universal e mesmo de eliminar o déficit habitacional em termos quantitativos, hoje, a cidade construída e consolidada, apresenta novas demandas, ou seja, passivos antes não considerados no planejamento urbano oficial. Resumidamente, o que se tem, são imóveis e cidades que já não mais atendem ao perfil de uma população que agora consome, ou assim o deseja, segundo padrões ocidentais dos países ricos. No caso de Angola, o passivo mais marcante que se observa ainda é o do déficit habitacional, quantitativo e qualitativo, sobretudo devido ao grande afluxo de população das áreas rurais, uma vez permitido pelo fim da guerra em 1994. Luanda passou de uma população de 560 mil em 1970 para 3 milhões em 2000, sendo que no mesmo período Angola passou de 5,5 milhões para 12,4 milhões de habitantes. A concentração dessa população agravou ainda mais a carência de infra-estrutura e habitações da cidade, expandindo os antigos musseques, fazendo surgir novos e formando um verdadeiro cinturão em torno do centro tradicional. Além dessa demanda, um passivo tradicional em países pobres, uma outra necessidade surge, ou seja, aquela que resulta do desejo de isolamento das novas classes emergentes e ricas do país. De um lado, um passivo com alto apelo social; de outro, uma demanda que resulta de uma nova riqueza e de um desejo de externá-la pela arquitetura e algumas intervenções urbanas, e de mantê-la por meio do urbanismo de segurança. Em ambos os casos, há, pois, uma forte perda de referencial do patrimônio não apenas arquitetônico, mas também cultural de maneira ampla, com um processo de aculturação, com efeitos na construção de uma cidade que se quer nova, que muitas vezes quer abandonar deliberadamente o velho como parte de um passado que não se quer lembrar18. Em ambos os casos, novas soluções e novos problemas decorrentes de uma nova situação econômica, social e política. Tal situação exclui parcelas da cidade, cria novas elites e, o que é importante para a conclusão deste trabalho, busca na arquitetura e no urbanismo, para o bem e para o mal, instrumentos de proteção, de demonstração de poder e de revelação de mudanças. Referências <http://www.macalester.edu> Acesso em outubro de 2004 <http://www.tia2000.ru/dv/m/m.shtml> Acesso em novembro de 2004 CARDOSO, M.da C.L. Alguns aspectos da vida de Luanda Antiga. Conferência proferida na Associação Comercial de Luanda em 12/09/1952. in <http://www.casadeangola.org/RATO/gentes%20luanda/subhluanda.htm> Acesso nov 04. KIERNAN, Maria. A guide to Soviet and post-Soviet architecture. Ellipsis London Limited, Londres, 1998. LAMAS, José Manuel Ressano Garcia. Morfologia urbana e o desenho da cidade. Fundação Calouse Gulbenkian, Fundação para a Ciência e Tecnologia, Ministério da Ciência e do Ensino Superior. Porto, 2004. MELO NETO, M. O Caso Luanda-Sul: Desenvolvimento e sustentabilidade. Dissertação apresentada ao Núcleo de Pós-Graduação em Administração - Universidade Federal da Bahia, 2002. 18 Essa questão é largamente discutida na China, sobretudo em Shangai, onde, ainda sob a influência dos pensamentos de Mao Tze Tung, o qual, na sua Revolução Cultural, insiste na destruição de um passado que nada mais significava que opressão das classes dominantes e sujeição ao capitalismo internacional. Hoje, a arquitetura, principalmente nas cidades da costa leste do país, o urbanismo e a arquitetura insistem em reproduzir o modelo ocidental como maneira de ostentar o milagre econômico chinês e sua opção capitalista. MONTALBÁN, Manuel Vázquez, 1997. De La Ciudad Socialista a la Ciudad de la Barbárie. Madrid, El País, 27 / 11 / 1997 PEPETELA, Artur Pestana. Luandando. Porto, Portugal: Elf Aquitaine Angola, 1990. SANGODEYI-DABROWSKI, Delphine. As raízes ideológicas da segregação no Brasil: o exemplo de Salvador. In: Panoramas urbanos: reflexões sobre a cidade. Salvador: EDUFBA, 2003. VIANNA Jr., Aurélio (Org). Estratégias dos Bancos Multilaterais para o Brasil: análise crítica e documentos inéditos. Brasília: Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, 1998. WORLD BANK. Entering the 21st Century. World Development Report 1999/2000. Washington: World Bank, 2000