Do controle do estado à liberdade de

Transcrição

Do controle do estado à liberdade de
Do controle do estado à liberdade de mercado:
os casos de duas cidades em Angola e na Rússia
Clovis Ultramari1
Sylvia Leitão2
Zulma Schussel3
Cualquier viajero por el Moscú actual paseará por una ciudad con el escenario
preparado por el clasicismo socialista, el pompier estaliniano convertido en
improvisado campamento para los topos y urdidores del capitalismo salvaje.
(Manuel Vázquez Montalbán, 1997)
Introdução
O presente artigo é resultado de uma reflexão sobre experiências
profissionais dos autores em duas cidades: Luanda, em Angola, e Togliatti, na
Rússia.
Luanda é uma cidade com aproximadamente 3.5 milhões de habitantes,
fundada em 1575, sendo considerada a primeira cidade construída pelos
portugueses na parte continental da África. Até o século XIX teve um
crescimento lento, mantendo toda sua área urbana dentro dos limites definidos
pela Fortaleza de São Miguel, Ermida de São José, Convento de Nossa
Senhora do Carmo, Ermida da Nazaré e a praia da baía.4 Nessa época, a
1
Professor do Departamento de Arquitetura da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Consultor para o
projeto de transformação urbana da cidade de Tugliatti, Rússia. E-mail: [email protected]
2
Professora do Departamento de Arquitetura da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Consultora para
o projeto de recuperação urbana de Viana, província de Luanda, Angola.
3
Doutoranda em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná, Professora do
Departamento de Arquitetura da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Consultora para o projeto de
recuperação urbana de Viana, província de Luanda, Angola.
4
De acordo com o modelo medieval que vigorava em Portugal, a cidadela deveria localizar-se numa baía ou
sobre um elevado (cidades como Lisboa e Porto). A cidade era concebida de forma dual – cidade alta e
cidade baixa – podendo-se associar a estratificação do espaço à hierarquia social. Na cidade alta,
atividade econômica principal consistia no comércio de escravos para o
Brasil.
Entre 1641 e 1648 foi ocupada pelos holandeses que, nesse curto período
destruíram edifícios e dizimaram a maioria dos habitantes. Com a construção
da atual Sé Arquiepiscopado (1651) e da Igreja da Nazaré (1664) começou-se
a delinear a parte baixa da cidade. Na parte alta, que ia da Fortaleza do morro
de S. Miguel até a Igreja da Conceição, a não ser a construção do hospício de
Santo António, em 1668, nada mais de notável se realizou.
No período imediatamente posterior a 1836, com o decreto que aboliu o
tráfego de escravos, houve uma queda nas exportações pelo porto de Luanda e
com isso uma degradação da cidade. Já no início do século XX, 45% da
população da cidade era branca, pois nas décadas anteriores se havia
promovido a expulsão dos negros para a periferia, surgindo os musseques, que
delimitavam os espaços entre as classes sociais, promovendo forte segregação
espacial. Segundo PEPETELA, na Luanda colonial, o espaço estava
“repartido entre a cidade do asfalto e o musseque”. 5 O musseque, nesta época,
caracterizava-se como um espaço transcultural: além de fazer a ponte entre a
cidade e o campo, era o lócus onde se mesclavam várias culturas e línguas: a
do colonizador português, para a vida urbana, e as do camponês, o
colonizado, como o kimbundo e o kikongo.
A partir de 1948, o crescimento de Luanda se acelerou, constituindo um
reflexo da fase em que Angola é o quarto produtor mundial de café. Em 1975,
com a independência de Portugal, iniciou-se a guerra civil angolana que se
localizavam-se as instituições, os edifícios administrativos e religiosos, e a maior parte das áreas residenciais;
na cidade baixa, às margens de rio ou do mar, a zona comercial. Este modelo pode ser identificado na cidade
colonial brasileira, como por exemplo em Salvador. Em SANGODEYI-DABROWSKI (2003), p. 169 e 170.
5
O termo musseque faz referência a um tipo de areai vermelha, comum na região, onde eram assentados os
casebres dos colonizados. PEPETELA (1990). p.103 e 106.
estendeu até a década de 90, promovendo um forte processo de migração
campo-cidade e deixando marcas na cidade desse período de violência.
O Tratado de Amizade e Cooperação com a União Soviética, assinado
em 1976, influenciou a formação das estruturas institucionais locais, com o
modelo socialista de gestão, o qual influenciou a arquitetura e o urbanismo.
Atualmente, o país vivencia inúmeras transformações de ordem institucional e
física com o final da guerra e a retomada da economia voltada para a
exploração mineral – petróleo e diamantes – sobretudo sob o comando de uma
nova população migrante estrangeira e que exige novos espaços de ocupação.
Isso permite ensaios de reconstrução urbana em Luanda e exige a oferta de
novos espaços sob novos dogmas de urbanismo.
Togliatti, projetada pelo arquiteto Yury Bocharov, é uma cidade com
aproximadamente 600.000 habitantes, localizada a 900 km a leste de Moscou,
nas margens do rio Volga. Construída nos anos 60, sob os dogmas do
urbanismo moderno funcionalista, hoje, a economia da cidade gira em torno
da indústria automobilística Lada. A despeito das mudanças que no momento
se visualizam, Togliatti ainda se apresenta como mais um empreendimento
soviético na área do urbanismo, respeitando a segregação funcionalista e,
mais do que o modelo de Le Corbusier pôde imaginar, fortemente relacionada
com uma arquitetura modernista constituída por uma paisagem homogênea de
conjuntos habitacionais.
Togliatti vincula-se, em termos de polarização, à cidade de Samara, a
100 km de distância e que se estrutura segundo princípios anteriores ao
urbanismo modernista, mesclando um patrimônio arquitetônico do Século
XIX pré-revolução de 1917, agora em valorização, e uma arquitetura com
fortes raízes no construtivismo soviético.
A semelhança dos processos ora observados nessas duas cidades
permitiram construir a discussão que aqui se apresenta, indicando inclusive
uma situação urbana que pode ser considerada recorrente em outras cidades
dos chamados países em desenvolvimento, sobretudo aqueles que agora se
voltam para a economia de mercado, após décadas de forte controle estatal.
Sem poder generalizar duas experiências que, em princípio parecem distantes
social, ambiental e geograficamente, o presente artigo aponta para fatos
urbanos que, ao se analisar outros estudos, elaborados para outras cidades,
constituem tendências quando decorrentes das mesmas mudanças na
economia, na política e nas instituições nacionais. A seguir, uma síntese dos
fatos observados nessas cidades, quando de seus esforços atuais de
transformação urbana.
Cidades e governos nacionais
A despeito de recorrentes observações de que as cidades, cada vez mais,
assumem o lead de mudanças econômicas e mesmo de transformações sociais
profundas, os casos analisados levam a uma conclusão inversa; ou seja, a
despeito de as cidades ainda serem o lócus das mudanças de perfis diversos –
é nas cidades que as coisas acontecem – os espaços urbanos ainda são
extremamente dependentes de decisões de ordem nacional e internacional.
Nos casos analisados, as mudanças buscadas nas estruturas físicas, seja em
Luanda, seja em Togliatti, acontecem como permissões ou exigências daquilo
que é decidido nacionalmente. Apesar de as mudanças buscadas serem
negociadas, planejadas e implementadas por agentes da administração local, o
início do processo é observado no nível nacional. Entretanto, vale lembrar que
um entendimento como esse reposiciona ou relativiza a importância de
políticas urbanas na transformação de uma economia nacional, por exemplo:
A maneira como as cidades gerenciam seu desenvolvimento, incluindo a
atração de indústrias, é de grande importância na determinação do nível de
desenvolvimento econômico [do país]. Governos urbanos podem incentivar o
desenvolvimento econômico assim como podem provocar retrocessos. (World
Bank, 2000, p 126, traduzido).
Evidentemente, tais decisões nacionais não estão, por sua vez,
desprovidas de interesses internacionais, sobretudo das agências de
financiamento tais como o Banco Mundial. Aurélio Vianna Junior, ao analisar
a importância dessas agências para o caso brasileiro, afirma:
... além da importante função meramente financeira, os Bancos têm
atuado como ‘inteligência’ auxiliar do Governo na elaboração de programas e
projetos, como por exemplo, os programas responsáveis por políticas de ajuste
estrutural, os projetos setoriais de desenvolvimento, os de combate à pobreza...
Desse modo, parte das novidades em políticas públicas e projetos do governo
brasileiro é, muitas vezes, o resultado de um trabalho de cooperação
internacional em que o Banco Mundial e o BID têm um relevante papel. (1998,
p. 82).
Nos dois casos internacionais analisados, é marcante a flexibilização do
dogmatismo socialista nas economias – angolana e russa – com a revisão da
propriedade do solo e a possibilidade de agentes externos à administração
governamental em atuar na proposição e na implantação de políticas para as
suas cidades. Assim, o término do comunismo na Rússia e o fim da guerra em
Angola (também com o questionamento de dogmas sobre a centralidade do
Estado), ambos permitindo alterações profundas nas necessidades básicas da
população, têm provocado alterações no uso, na apropriação e mesmo na
paisagem urbana desses países.
Na Rússia, fica claro o surgimento de usos comerciais até então
inexistentes antes do processo de abertura política e econômica. Devido ao
fato de não haver espaço construído para tal uso, observa-se uma apropriação
de espaços públicos, sobretudo quando da existência de largos passeios, para
a instalação de quiosques de pequeno comércio privado. Da mesma maneira,
com o o intuito de mostrar um desdém à arquitetura até então provida pelo
governo, as classes em ascensão agora procuram formas e estilos que se
singularizam na paisagem urbana, repetindo um cenário conhecido em países
que já contam com tradição na atuação da iniciativa privada e individual na
transformação do espaço construído urbano.
Em Luanda, da mesma forma, o espaço público é assumido pelos
milhares de vendedores ambulantes que substituem o mercado formal e têm
nesse pequeno comércio - a sua única fonte de renda. Um exemplo disso é a
significativa área de sua orla que foi ocupada durante o período da guerra
civil com musseques gigantes e com o mercado aberto de mais de 2 km de
extensão, chamado Roque Santeiro6, onde convivem centenas de barracas
com mercado diversificado - de pão a peças para helicópteros.
Gentrification e um novo urbanismo
O surgimento de uma classe que agora pode7 viver sem a dependência do
estado (não apenas em termos de habitação e urbanismo, mas também em
termos de educação e saúde, por exemplo) tem, na realidade, exercido
significativas pressões para um redesenho urbano. Entre tais pressões, é
ostensivo o desejo de gentrification observado nessas sociedades, sobretudo
na russa.
As novas classes em Togliatti, com poder aquisitivo superior à média,
agora desejam mais espaços de lazer, uma proximidade com recursos naturais
(no caso, as margens do rio Volga) e uma arquitetura diferenciada daquela até
então oferecida pela atuação governamental. Nesse caso, isso pode ser
6
Com o nome em alusão a um personagem de uma novela da televisão brasileira, esse mercado é
considerado o maior mercado popular do mundo segundo o Guiness.
7
Evidentemente, há também uma outra classe, carente, que é obrigada que a viver sem essa dependência.
confirmado pela decisão de a municipalidade empreender esforços para a
construção de um waterfront nas margens do Volga e a disponibilização de
áreas residenciais valorizadas para uma classe emergente. Assim, enquanto o
projeto original da cidade de Togliatti ignorou a presença do rio,
distanciando-se desse aproximadamente 2 km, criando uma faixa de terra
ocupada por grandes parques subutilizados, com referenciais para a glória da
revolução comunista, a administração atual deseja a utilização desse recurso
paisagístico. Assim, a idéia de waterfront tão cara a cidades do mundo
desenvolvido ou para aquelas com forte apelo turístico – Johanesburgo e
Cidade do Cabo, na África do Sul, Baltimore, nos Estados Unidos e inúmeras
outras na Europa, para citar alguns exemplos – aqui é repetida: um fato novo,
em meio a um urbanismo “utilitarista”.
Em Luanda, observa-se a consolidação de um modelo urbano baseado
numa forte segregação social que se materializa através dos condomínios
fechados. Equipados com fortes esquemas de proteção, representam o novo
urbanismo da segurança que vem se reproduzindo rapidamente nas cidades
dos países periféricos e semi-periféricos.8
Com isso, a fragmentação dos espaços urbanos é perceptível, alternandose grandes espaços vazios, musseques e condomínios esparsos. Do ponto de
vista da infra-estrutura, esses condomínios servem-se de geradores de energia
e poços de água próprios, enquanto a maioria da população permanece sem
esses serviços – no caso da água, observam-se caminhões que a vendem. Do
ponto de vista da produção desses espaços, os condomínios repetem as
características internacionais, com uma arquitetura que não se comunica com
a sociedade local; ao contrário, estabelece uma linha divisória delimitada
espacialmente. Quanto ao consumo desses espaços, cabe ressaltar a sua
8
No caso do Brasil, o modelo dos condomínios fechados vem se proliferando na paisagem urbana, porém
com uma segurança menos ostensiva que no caso angolano.
relação com questões de ordem social e étnica. De um lado, de forma mais
significativa, a ocupação desses condomínios se dá por representantes de uma
classe social emergente – funcionários públicos e empresários. De outro lado,
estão os representantes das empresas estrangeiras que hoje participam do
processo de reestruturação do país.
Da submissão ao governo central à submissão ao modelo
internacional
No caso de Togliatti, com seu waterfront, inicia-se então uma
flexibilização das regras advindas de diretrizes nacionais que moldaram as
cidades soviéticas e suas paisagens urbanas e que repetiram princípios em
todo o território sob as ordens do governo central. Resumidamente, tais
diretrizes podem ser assim apresentadas: limites quanto ao tamanho das
cidades, criação de paisagens simbólicas no centro das cidades, provimento de
facilidades culturais e de consumo para todos os habitantes, áreas residenciais
perto de áreas industriais, reduzindo as distâncias diárias dos trabalhadores,
rígido zoneamento; Controle estatal da habitação (construção e manutenção),
e provimento de grandes espaços verdes para uso recreacional. (Fonte:
<http://www.macalester.edu> Acesso em outubro de 2004, adaptada).
Em Moscou, mais que nas outras cidades, essas diretrizes parecem ter
sido adotadas com grande zelo. Assim, em 1935, já com o governo comunista
consolidado e terminada a Primeira Grande Guerra, a cidade recebe seu
Grande Plano, como foi chamado o plano imposto por Stalin, no sentido se
refletir a “grandeza e a beleza” do período soviético. Evidentemente, a
visibilidade internacional permitida por Moscou levou o governo central a
utilizar esses princípios à exaustão; no caso de Togliatti, cidade localizada
numa Europa distante e pouco conhecida, é menor a monumentalidade e a
sofisticação do desenho urbano e da arquitetura oficial. Ainda assim, os
princípios nacionais para o urbanismo são aí observados sobretudo no traçado
da cidade, na divisão de funções no tecido urbano e na reserva de grandes
áreas livres para lazer, no culto à imagem de heróis nacionais e, também, na
própria denominação da cidade.
Assim, as regras do urbanismo oficial são observadas não apenas na
concretude do espaço construído e na sua apropriação pelos habitantes, mas
também na toponímia, quase sempre escolhida segundo líderes históricos do
comunismo ou mesmo de líderes ainda no poder. É o caso, por exemplo, de
Joseph Stalin, cujo nome serviria para batizar cidades até o período conhecido
como de destalinização, em 1961. Togliatti assiste às mesmas transformações:
originalmente conhecida como Stavropol, a cidade foi obrigada a mudar de
sítio de ocupação quando da construção do Reservatório Lênin, para produção
de energia, nos anos 50, o que permitiria a sua industrialização. Em 1964, foi
renomeada em homenagem ao líder do Partido Comunista Italiano Palmiro
Togliatti.
Hoje, as mudanças exigidas em Togliatti, além daquelas que resultam de
sua nova classe com melhor poder aquisitivo, é a da inserção de sua produção
automobilística9 no mercado internacional: uma maior ou menor demanda
pelo mercado importador agora é mais fundamental para a sobrevivência da
cidade que decisões do governo local ou central.
As mudanças no nível internacional, principalmente na União Soviética
e a fragilização econômica de Cuba, fizeram o governo angolano aproximarse dos organismos multilaterais mantidos pelos países capitalistas na busca de
recursos para a reconstrução do país. Em 1994, foi instituído o “direito
individual de uso da superfície”, que tinha o objetivo de produzir lotes
9
Antes estatal, agora produzindo em parceria com indústrias estrangeiras.
urbanizados em parceria com a iniciativa privada, o que foi uma
transformação significativa do ponto de vista ideológico, num país onde até
então o solo era exclusivamente propriedade pública. Em 1996, foi criada
uma empresa de capital misto entre o governo da província de Luanda e uma
empresa privada, cuja finalidade era a gestão desses novos processos de
ocupação do solo.
Com base nos conceitos de planejamento estratégico de cidades, o
governo central coordenou a elaboração de um projeto de reestruturação
urbana para Luanda. Para tanto foram feitos contratos de consultorias
internacionais e elaborado um plano estratégico de desenvolvimento. O plano
previu três frentes de atuação: reabilitar a parte central da cidade – área
circunvizinha ao porto onde se encontram construções coloniais dos séculos
XIX e XX; integrar os musseques que envolvem a área central da cidade; e
expandir a cidade rumo a novas áreas.
No que se refere ao terceiro item, foi elaborado o programa denominado
Programa Auto-financiado Luanda Sul. A característica principal do projeto,
além da viabilidade econômica, era atender aos diversos segmentos de renda.
No que se refere às faixas de renda média e alta foram executados modernos
empreendimentos, em áreas ainda não ocupadas pelos musseques, construindo
um waterfront na orla do Atlântico, seguindo tendências internacionais. No
que se refere às camadas de baixa renda, foram produzidas 2000 habitações,
com recursos do governo central. 10
Com relação ao desenho urbano, é importante registrar que nas décadas
de quarenta e cinqüenta, Luanda e outras cidades coloniais portuguesas como
Lourenço Marques, Macau, São Tomé foram organizadas e planejadas
10
O Programa Luanda Sul proporcionou ao governo de Angola o Prêmio Internacional de Dubai em 2000:
Melhor prática na melhoria dos meios de vida em infra-estrutura, comunicações e transportes, habitação,
arquitetura e desenho urbano.
segundo princípios de uma urbanística formal, na qual se reconhecem
ensinamentos de experiências como as habitacionais holandesas dos anos
trinta, os estudos de Unwin no Town Planning e os conceitos de unidade de
vizinhança.
11
Segundo José M. Ressano Garcia Lamas, estes princípios
teriam sua origem nos planos de Faria da Costa para os bairros de Alvalade e
do Areeiro em Lisboa12: expansão planejada, livre de restrições fundiárias e
com forte controle público; e equilíbrio entre a cidade tradicional e a área de
expansão, quanto à organização das funções e dos equipamentos, quanto à
hierarquização viária, quanto às zonas livres e arborizadas.
Mudanças recentes
Em ambos os casos, na busca de explicações para as mudanças em
operação, pode-se dizer que a revisão da propriedade da terra, até então quase
que integralmente estatal, é a que mais impacto tem gerado nos casos
analisados. Em Togliatti, por exemplo, já são marcantes na paisagem urbana
os novos prédios construídos para uma classe emergente que conseguiu
inserir-se na nova economia de forma mais competitiva. Todavia, os edifícios
dessa nova classe estão lado a lado dos edifícios construídos pelo Estado
provedor das necessidades urbanas básicas. Tal convivência, todavia, nem
sempre é positiva, seja pelo padrão arquitetônico, na maioria das vezes um
pastiche da arquitetura ocidental internacional, sem compromisso com a
realidade local e que valoriza a visualização ostensiva de qual classe o usuário
da arquitetura pertence. Referenciando-se menos em Togliatti e mais em
Moscou13, para a qual as informações são mais disponíveis, tem-se, pois, um
11
Em Lamas (2004), p. 286.
Os bairros foram projetados em momentos diferentes: Areeiro em 1938, para 9000 habitantes, em 32 ha;
Alvalade em 1945, para 45000 habitantes, em 230 há, porém em decorrência do período da política
desenvolvimentista de Duarte Pacheco frente à Câmara de Lisboa. Em LAMAS (2004), p.284 a 286.
13
Cerca de 90% dos aproximadamente 3 milhões de domicílios em Moscou foram construídos após 1955, a
maioria na forma de blocos de edifícios. A despeito de muitos necessitarem de renovação, todos têm água e
esgoto e a maioria tem água quente. Em 1992, a municipalidade permitiu aos moradores adquirir a
12
setor privado emergente, porém pronto para vender um produto urbanístico e
arquitetônico que responda aos anseios de uma classe social igualmente
emergente e que considera importante distinguir-se meio a uma sociedade que
por anos se quis homogênea em termos de recursos financeiros. Tais
mudanças têm ocorrido não apenas nas áreas residenciais construídas segundo
os preceitos do urbanismo modernista, mas também, e isso é o que mais
impressiona, em áreas de valor histórico singular para esses países. De certa
maneira, nesse caso, a história se repete: se em alguns casos, a Revolução
Socialista Soviética havia posto abaixo ícones importantes para dar lugar a
uma nova simbologia urbanística, agora, a despeito de algumas tentativas de
desfazer alguns danos, o capital privado, e não mais o Estado, compromete
valores importantes do patrimônio histórico-arquitetônico. Como exemplo,
tem-se a construção do complexo da Manezhnaya Ploshchad (praça) e
Shopping Center nas imediações do Kremlin, até há pouco tempo um espaço
árido ganho com a demolição de antigos imóveis e que, com o atual projeto,
tornou-se referência para a população jovem da cidade e mesmo para o
turismo internacional. “ ... the external treatment is so crassly decorated and
over ornamented with both architectural and sculptural elements that
comparisons with Disneyland are appropriate.” (Maria Kiernan, 1998). Outro
exemplo é a destruição da Igreja do Cristo Salvador, em 1931, para dar lugar
ao Palácio dos Sovietes e, nos anos 90, recuperada a um alto custo financeiro,
porém de grande valor imagético.
Na Rússia, porém, esses desejos de uma arquitetura e de um urbanismo
monumental, ora se constituem na concretização de um sonho, ora
permanecem na prancheta de seus idealizadores. Atualmente, o governo
propriedade
de
seus
apartamentos,
a
partir
de
uma
<http://www.tia2000.ru/dv/m/m.shtml> Acesso em novembro de 2004
pequena
taxa.
Fonte:
anuncia, mais uma vez, em parceria com o setor privado14, a construção
daquilo que seria o mais alto prédio da Europa, um irmão mais novo dos
arranha-céus da era stalinista conhecidos como as Sete Estrelas15 que
dominaram a paisagem moscovita por 50 anos: o Rússia Tower16, parte do
Moscow-City, ou Moscow International Business Center, um dos mais
ambiciosos projetos da cidade. Situado a 4 Km do Kremlin, na área conhecida
como Krasnopresnenskaya Naberezhnaya (embarcadouro), ao longo do rio
Moscou, o projeto tem data prevista de conclusão em 2015 e deverá custar
algo em torno de U$10 bilhões a U$ 12 bilhões, financiados com recursos
internacionais.
Nesse relato, tem-se então, uma mudança e uma permanência: o Estado
agora divide com o setor privado as intervenções na cidade, porém
permanece, da parte de um e de outro, o desejo de referendar uma
determinada idéia: se no passado, teve-se a ideologia de um novo mundo
socialista, agora tem-se
a esperança marcada pelo dinheiro, podendo a
arquitetura e o urbanismo, mais uma vez, fantasiar a concretização de uma
ideologia. Do mesmo modo que Stalin assumiu o urbanismo modernista17
com rapidez a ponto de não se poder filtrá-la de seus eventuais aspectos
negativos, o mercado hoje, lança-se num modelo de desesperada inserção
internacional no mundo considerado desenvolvido.
Em Angola, sobretudo na capital, Luanda, o padrão arquitetônico que se
observa também reflete a atuação de escritórios internacionais, porém numa
14
Resumidamente, a municipalidade participa com a infra-estrutura e o setor privado com a obra
propriamente dita.
15
Joseph Stalin desejou marcar, com sucesso, sua época por meio de um grande projeto urbanístico e
arquitetônico que revelasse a glória do povo soviético e as maravilhas do modelo socialista : seriam, dentre
outras coisas, a construção de sete grandes edifícios, a partir de 1947, com gigantismo desmesuarado. O mais
significativo, talvez, seja o da Universidade Lomonossov, com 26 andares estrategicamente alocado sob uma
colina.
16
Projeto do Escritório Skidmore, Owings & Merrill.
17
Vale lembrar que na arquitetura, Stalin abandona a qualificada arquitetura modernista (conhecida como o
concretismo soviético) e busca a magnitude de seus projetos na arquitetura neo-gótica, tal qual se observa nos
edifícios de Nova York.
escala significativamente menor, no sentido de registrar a mudança política e
econômica do país. Evidentemente, o capital imobiliário em Angola não
recebe os afluxos americanos e europeus observados na Rússia e as
consultorias internacionais ocorrem muito mais em termos de reconstrução de
uma cidade destruída pela guerra que na dinamização de um espaço
consolidado com décadas de estagnação imposta por um modelo de economia
de mercado como na então União Soviética.
Os novos passivos urbanos
De um momento para outro, a partir das mudanças políticas em seus
países, cidades como Togliatti e Luanda – podendo-se especular sua
generalização para as outras cidades de Angola e Rússia – passaram a não
mais atender às necessidades básicas e tradicionais de seus habitantes. Se,
sobretudo em Luanda, carências já existiam, a nova configuração das
sociedades dessas cidades, agora deve procurar novos espaços e novas formas
de ocupação para satisfazer seus interesses.
Na Rússia, a partir do exemplo de Togliatti, dois aspectos chamam a
atenção: espaços para o setor de novos comércios e serviços e espaços para
uma classe média emergente que procura no modelo ocidental sua satisfação e
mesmo suas novas necessidades criadas a partir de uma imagem de cidade
externa aos seus meios.
Em Togliatti, naquilo que diz respeito a espaços que ora se constroem
segundo a tendência de gentrification, como foi dito, tem-se a proposta de
construção de um waterfront e de uma nova disponibilização de área
residencial e comercial ao longo do rio Volga, desde sempre esquecido de
propostas urbanísticas anteriores. Tal proposta, devido à escassez de recursos
do governo e talvez devido a um desinteresse em inverter capitais em áreas
remotas, distantes de Moscou ou São Petersburgo, sobrecarregará os esforços
em recuperar imóveis e infra-estruturas urbanas há muito abandonadas pelo
governo. Se esse governo foi hábil em disponibilizar infra-estruturas urbanas
de forma universal e mesmo de eliminar o déficit habitacional em termos
quantitativos, hoje, a cidade construída e consolidada, apresenta novas
demandas, ou seja, passivos antes não considerados no planejamento urbano
oficial. Resumidamente, o que se tem, são imóveis e cidades que já não mais
atendem ao perfil de uma população que agora consome, ou assim o deseja,
segundo padrões ocidentais dos países ricos.
No caso de Angola, o passivo mais marcante que se observa ainda é o do
déficit habitacional, quantitativo e qualitativo, sobretudo devido ao grande
afluxo de população das áreas rurais, uma vez permitido pelo fim da guerra
em 1994. Luanda passou de uma população de 560 mil em 1970 para 3
milhões em 2000, sendo que no mesmo período Angola passou de 5,5 milhões
para 12,4 milhões de habitantes. A concentração dessa população agravou
ainda mais a carência de infra-estrutura e habitações da cidade, expandindo os
antigos musseques, fazendo surgir novos e formando um verdadeiro cinturão
em torno do centro tradicional.
Além dessa demanda, um passivo tradicional em países pobres, uma
outra necessidade surge, ou seja, aquela que resulta do desejo de isolamento
das novas classes emergentes e ricas do país. De um lado, um passivo com
alto apelo social; de outro, uma demanda que resulta de uma nova riqueza e
de um desejo de externá-la pela arquitetura e algumas intervenções urbanas, e
de mantê-la por meio do urbanismo de segurança.
Em ambos os casos, há, pois, uma forte perda de referencial do
patrimônio não apenas arquitetônico, mas também cultural de maneira ampla,
com um processo de aculturação, com efeitos na construção de uma cidade
que se quer nova, que muitas vezes quer abandonar deliberadamente o velho
como parte de um passado que não se quer lembrar18.
Em ambos os casos, novas soluções e novos problemas decorrentes de
uma nova situação econômica, social e política. Tal situação exclui parcelas
da cidade, cria novas elites e, o que é importante para a conclusão deste
trabalho, busca na arquitetura e no urbanismo, para o bem e para o mal,
instrumentos de proteção, de demonstração de poder e de revelação de
mudanças.
Referências
<http://www.macalester.edu> Acesso em outubro de 2004
<http://www.tia2000.ru/dv/m/m.shtml> Acesso em novembro de 2004
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18
Essa questão é largamente discutida na China, sobretudo em Shangai, onde, ainda sob a influência dos
pensamentos de Mao Tze Tung, o qual, na sua Revolução Cultural, insiste na destruição de um passado que
nada mais significava que opressão das classes dominantes e sujeição ao capitalismo internacional. Hoje, a
arquitetura, principalmente nas cidades da costa leste do país, o urbanismo e a arquitetura insistem em
reproduzir o modelo ocidental como maneira de ostentar o milagre econômico chinês e sua opção capitalista.
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