É FERRO NA BONECA

Transcrição

É FERRO NA BONECA
É FERRO NA BONECA!
Rodrigo Naves
Este livro veio para confundir e, talvez, para ficar. Mais: talvez fique
justamente porque veio para confundir. Em outras palavras: há aqui um material que
ajuda a colocar em xeque a concepção generosa (e pouco realista) que vê na produção
artística das camadas mais pobres de nossa população um caráter exclusivamente
singelo e lírico, porque sua arte teria origem numa relação amistosa com a natureza.
Criada por homens e mulheres de origem rural, ela guardaria as marcas desse vínculo
direto com a realidade. Não foi por outra razão que por um bom tempo a arte popular –
um termo que este livro praticamente põe de lado – foi identificada com as raízes da
cultura nacional. Daquela relação imediata com a terra brotariam as diferenças que aos
poucos, como ocorre com uma árvore, constituiriam a complexidade de uma civilização.
E a arte popular guardaria a lembrança daquele momento íntegro e puro.
Se um dia alguém se dispuser a mapear e compreender os diferentes usos do
substantivo “povo” e de seus derivados (“popular”, “popularesco” etc.), certamente
entenderemos melhor aspectos significativos de nossa tradição cultural. Possivelmente a
expressão “José é muito popular em Santo Antônio da Alegria” tenha um sentido neutro
que a aproxima da generalidade suposta pela palavra “povo”. O mesmo não poderia ser
dito de “José é um homem do povo”. Aqui, “povo” designa alguém que pertence às
classes mais pobres da população. Não tem um sentido tão vago, como ocorre na
acepção anterior. E entre “Movimento de Libertação Popular” e “música popular
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brasileira” a mesma palavra percorre uma trajetória complexa e acidentada que,
acredito, conviria investigar, bem como sua relação com contextos sociais específicos.
No entanto, outras comparações podem ser ainda mais reveladoras. Nos
Estados Unidos, ao menos nas artes visuais, “pop” (uma abreviação do termo
“popular”) significa praticamente o oposto daquilo que, em geral, a mesma palavra
designa entre nós. Nas telas de Andy Warhol, sua melhor tradução, “pop” diz respeito a
uma realidade que rompeu totalmente os nexos que poderia manter com a experiência.
A Marilyn Monroe de seus quadros remete a uma imagem – uma fotografia do filme
Niagara, cujos direitos foram adquiridos por Warhol – que substitui perfeitamente a
mulher real que, supõe-se, existiu um dia. Ao contrário, o “popular” que comparece em
boa parte de nossa arte popular parece se referir a um padrão estável – a origem – que
serviria para medirmos o maior ou menor afastamento em relação a uma experiência
radical, que nos marcaria com traços originais e singularizantes.
Teimosia da imaginação – dez artistas brasileiros mostra que as coisas são
bem mais complexas do que supunha a tentativa de estabelecer um metro com que
medir a fidelidade a um solo primeiro, que deveria permanecer sempre no horizonte.
Aqui os artistas, suas obras e seus relatos – porque as autoras decidiram dar voz aos
próprios homens e mulheres que aparecem no livro – apontam para uma trama bem
menos homogênea. Cidade e campo, ensinamento e experiência, loucura e relação
serena com o meio, procedimentos modernos e técnicas tradicionais deixam de se pautar
por parâmetros claros e excludentes, embora eles também se mantenham. No mais das
vezes, porém, eles se encavalam, se sobrepõem de maneira mais ou menos violenta,
dando origem a trabalhos de arte que guardam a lembrança dessas relações complicadas
e imperfeitas.
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Aurelino dos Santos nasceu em Salvador e a estranha geometria de seus
quadros indica uma realidade – a vida nas grandes cidades – que não se deixa
representar com facilidade. Suas pinturas recusam qualquer maneira pacífica de traduzir
a convivência complexa em uma cidade como Salvador, ainda que o artista insista em
ordená-la. Sua fala entrecortada, atravessada por uma lógica problemática, pode indicar
uma psicologia frágil, de mais um homem que a cidade grande levou à lona. Ao mesmo
tempo, sua arte é feita de um movimento de abstração – a passagem da realidade
tridimensional para a bidimensionalidade de padrões geométricos que combinam
figuração e esquemas – que supõe um processo intrincado, feito de mediações que
envolvem tanto uma concepção complexa do mundo quanto processos artísticos
sofisticados. Um barquinho estilizado teima em reinar no centro de uma pintura, para
rapidamente ser tragado pelo ritmo meio indolente das fachadas e casarios. No limite,
fica a impressão de que a força da arte de Aurelino dos Santos advém da tentativa
dilacerada de representar equilibradamente uma realidade que se furta à harmonia. Uma
escala ao mesmo tempo rural e urbana – a provável origem rural de um homem que
cresceu na metrópole – tensiona ao máximo seu projeto, fazendo-o estalar e, nesse
preciso momento, alcançar sua significação máxima.
Uma realidade semelhante – a vida na cidade do Rio de Janeiro – fez com
que Getúlio Damado, nascido na cidadezinha de Espera Feliz, em Minas Gerais,
encontrasse oportunidade para um tipo de arte praticamente oposta à de Aurelino dos
Santos. Seu trabalho vive de uma espécie de colagem harmoniosa, em que os restos da
vida urbana acham uma convivência lúdica e sem conflitos. E essa maneira de
aproximar as coisas vem de sua experiência rural: “Eu já vim da história de que
recuperar não é daqui do Rio. Eu aprendi no interior. Não jogar fora uma casca de
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banana, sobra de comida, servia pra porco, o bagaço da cana servia pra esterco. Então
eu já vim com a cultura de interior, não vim com outra cultura”. Pobre não desperdiça
nada, como se sabe. E sua arte tira suas pequenas alegrias justamente da capacidade de
aproximar produtivamente escovas, garrafas, embalagens médicas, serras e tudo o mais
que lhe caia nas mãos. O excesso e a incompatibilidade dos dejetos das cidades não o
oprimem. Ele traz da vida no campo a chave capaz de reciclar todas as sobras do
mundo. E por isso seus objetos são leves e felizes.
Antônio de Dedé também cria objetos que lembram a vida dura que teve na
infância. São Francisco, para ele, não é apenas um santo de devoção. De certo modo, o
homem de Assis sintetiza um ideal que ele mesmo reproduz em suas esculturas: a
relação amorosa entre homens e animais, o lirismo entre todos os seres deste mundo. Na
sua obra cavalo e cavaleiro mal se distinguem. Ambos são constituídos da mesma
matéria – a madeira – e se apoiam reciprocamente. Não há dominante e dominado. E
quando as diferenças existem – nas muitas outras figuras que são cavalgadas –, as cores
reequilibram as relações. E então um animal azul, de identidade incerta, ganha um
destaque que o torna mais visível que o homem que o cavalga. E Adão e Eva, ao que
tudo indica, dificilmente tiveram uma representação tão fiel a sua origem comum. Mas
na arte de Antônio de Dedé a harmonia é obtida a partir de elementos de natureza
semelhante – a madeira, pintada ou não –, diferentemente das operações que conduzem
a arte de Getúlio Damado.
Já as esculturas de Izabel Mendes da Cunha – Dona Izabel, como é
conhecida – tiram sua unidade de outro tipo de ideia. Suas obras são inteiriças desde o
início. Modeladas em argila, elas possuem desde o começo os contornos das figuras que
a artista pretende mostrar. Por mais que sejam divididas em partes, suas obras
constroem unidades que se impõem aos “fragmentos” de que são constituídas. As
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noivas, mães e noivos de Dona Izabel são figuras singulares que buscam sugerir
personagens mais gerais, que agrupariam todos os seres que poderiam ser reunidos sob
a categoria ampla de Noivas, Mães ou Noivos. E por isso suas esculturas são tão
majestosas. Não são apenas a representação de figuras passageiras – mães, noivas,
noivos. Elas apontam para pessoas que encarnam todas as características daqueles
personagens e (e esse detalhe é fundamental) ao mesmo tempo não se reduzem a eles.
São mães, noivas e noivos.
São também seres absolutamente irredutíveis àquelas
características. Ainda que as representem às maravilhas. E é desse ir e vir, entre
singularidade e generalidade, que as esculturas de Dona Izabel tiram o que têm de
melhor.
E no entanto Manoel Galdino faz da proximidade entre campo e cidade a
fonte de seres imaginários, nos quais realidade e irrealidade convivem sem conflitos,
pois suas esculturas em argila querem justamente aproximar aquilo que a rigidez deste
mundo pôs em campos distintos. Mas para que a boca de um animal gere um ser
humano, em tudo diferente da criatura que a gerou, será preciso que o artista encontre os
elos intermediários que proporcionem a passagem entre coisas tão distintas entre si. E
por isso se entende a importância dos detalhes, das pequenas intervenções na argila, em
sua obra. Por meio dessas leves passagens, o artista torna possível a transição entre
realidades muito diversas. A criação desse tecido intermediário – a trama criada pelos
delicados toques do artista – viabiliza a passagem entre mundos incompatíveis, que a
arte desse “homem do povo” conduz ao diálogo e à convivência.
Essa transição entre realidades aparentemente incomunicáveis também
norteia a arte de Francisco Graciano. Mas suas esculturas e pinturas obedecem a
princípios muito diferentes. Nas pinturas, situações e movimentos distintos são
aproximados por uma estranha geometria, que põe em contato tempos e espaços
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distantes entre si. Um mesmo lugar, constituído de apenas duas dimensões, consegue
abrigar realidades muito diferentes, dada a capacidade que o artista tem de fazê-las
dialogar, por meio de uma trama que torna familiares mundos díspares. Já em suas
esculturas Francisco Graciano lança mão de um movimento muito mais unificador.
Numa metamorfose contínua, suas figuras saem uma da outra, num ritmo que as
padronagens pintadas sobre as madeiras tornam ainda mais contínuas.
Por vias muito distintas, a arte de Antônio de Dedé, Francisco Graciano,
Dona Izabel e Manoel Galdino aponta para soluções em que os desencontros entre
cidade e campo, violência e ternura parecem ser superados. Os descompassos entre
experiências muito distintas tendem a uma continuidade amistosa que põe em contato
harmônico esferas quase excludentes.
No entanto, a obra de artistas que supõem o contato com situações menos
ásperas – a produção de outros criadores, um menor autodidatismo, por exemplo – pode
conduzir a soluções semelhantes, a despeito de um embate menor com experiências
imediatas e cruas. A escultura de Jadir dos Santos sente a todo momento a pressão da
arte de GTO, ainda que seu “mundo encaixado” não tenha a mesma grandeza da do
artista que o estimulou. No mundo de Jadir, a unidade dada pela madeira ou pelo
desdobramento das formas tende a antecipar o próprio trabalho escultórico, e com isso o
drama da arte se reduz consideravelmente. De maneira semelhante, a pintura de Nilson
Pimenta parece tirar sua substância da consciência dos limites e possibilidades da
pintura ingênua – não custa lembrar que o pintor trabalha hoje no Ateliê Livre do
Museu de Arte da Universidade Federal de Mato Grosso, em Cuiabá –, na qual tradição
e modernidade convivem problematicamente, mas que aqui se inclinam a um convívio
pacífico e sem drama.
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A meu ver, é na obra de José Bezerra e Cícero Alves dos Santos, o Véio,
que a complexidade que permeia a arte popular contemporânea encontra seu ponto mais
alto. Na obra desses artistas, a proximidade ameaçadora que ronda os modos
tradicionais de vida, a ambiguidade que torna os progressos tecnológicos algo liberador
e, ao mesmo tempo, escravizante encontram uma maneira notável de revelação. Cidade
e campo deixaram de ser portos seguros e engendram problemas e conflitos
desconhecidos até há pouco tempo. Embora por vezes os dois artistas partam de
procedimentos semelhantes – a identificação, ainda nos troncos e galhos, das formas a
que chegarão ao final de seu trabalho –, chegam a resultados muito distintos, o que
também nos dá uma medida da riqueza das experiências que os movem.
A princípio, os estranhos seres criados por Cícero Alves dos Santos parecem
um protesto da imaginação tradicional – povoada por sacis, boitatás, mulas sem cabeça
e lobisomens – contra os “transformers”, androides e “robocops” com que a
comunicação de massa tenta alimentar a pouca fantasia de nossos dias. A constituição
sinuosa e irregular do mundo vegetal confere a suas figuras um movimento em tudo
oposto às articulações rangentes daqueles bichos da televisão e do cinema. Mas a
fluência das esculturas de Véio não conduz a uma harmonia em que energias vitais
animassem igualmente todas as regiões de uma escultura. Ao contrário, torções,
entrecruzamentos e desequilíbrios falam de uma natureza distante de um sistema de
vasos comunicantes e, portanto, sempre apta a reequilibrar-se. E devem conduzir a
formas que tragam à luz do dia os processos que intervêm no seu curso, truncando-o.
Mas isso não é tudo. Véio tem clareza de que vivemos num mundo híbrido, em que as
fronteiras nítidas entre tradições e costumes diversos deixaram de existir. E, assim,
entende-se que ele recubra suas figuras com cores estridentes e contrastantes, a lembrar
muito mais as cores pop do que os leves matizes da natureza. Do mesmo modo, o artista
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pode inverter totalmente seu processo de trabalho e intervir excessivamente na madeira,
produzindo miniaturas paradoxais, já que é praticamente impossível ver nelas o esforço
colossal que foi investido naquelas formas diminutas. E então o artesanato volta a
cobrar seus direitos, ainda que mal se enxergue o resultado de sua intervenção.
José Bezerra talvez seja o artista em que a natureza amena e bondosa,
recorrente na tradição popular, perde mais sua eficácia, ainda que sejam as feições
sugeridas pelas madeiras que aticem sua imaginação. Sem pintura, mantendo a
lembrança das tortuosidades das árvores que crescem em condições adversas e aparada
a rudes golpes de facão, sua escultura se recusa a fazer o elogio do trabalho artesanal
engenhoso, que aos poucos consegue conduzir os materiais aos contornos desejados.
José Bezerra chega mesmo a ironizar aqueles que passam a vida “alisando madeira”. E
por isso figura e material trocam incessamente de posição em seu trabalho, sem jamais
encontrarem – ao menos, a meu ver, nas melhores obras – um repouso tranquilo. A todo
instante uma região das esculturas parece recuar para uma vida totalmente alheia ao
mundo da figuração, por mais que, de outro lado, um focinho ou uma pata insistam em
ser identificados. O trabalho – atividade que tendia a ser compreendida como aquilo que
corrigiria as imperfeições da natureza – por vezes radicaliza as incorreções da madeira,
tornando-a ainda mais áspera. E a natureza em algumas situações parece tomar o artista
pelas mãos, mostrando-lhe o caminho a ser seguido. Mais nada consegue manter uma
posição pacífica. A todo instante as coisas podem mudar de lugar, e mais uma vez
teremos de nos adaptar à nova configuração. As obras que acentuam esse percurso
acidentado podem oferecer uma fruição mais complicada. Mas poucas coisas se
assemelham tanto às novas realidades do país.